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João Coviello
2
"Não há guarda-chuva
contra o poema
subindo de regiões onde tudo é surpresa..".
Para Denise
(Hoje tenho um amor e me faço espaçoso)
4
RESUMO
SUMÁRIO
RESUMO..................................................................................................... 4
SUMÁRIO....................................................................................................5
1.0 - INTRODUÇÃO....................................................................................6
2.0 - AS VÁRIAS PORTAS DA PINTURA................................................8
3.0 - PORTINARI: CONTRA O TRISTE MUNDO FASCISTA..............13
4.0 - GOELDI: O PESQUISADOR DA NOITE MORAL.........................35
5.0 - POESIA EM EXPOSIÇÃO.................................................................47
6.0 - CORES, LINHAS, PLANOS E LUZES..............................................85
7.0 - CONCLUSÃO...................................................................................127
8.0 - BIBLIOGRAFIA...............................................................................128
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1.0 - INTRODUÇÃO
Um poema de João Cabral de Melo Neto, publicado no livro Museu de Tudo define,
talvez, a relação que os poetas tem com as Artes Plásticas. Esse poema chama-se "A Lição
de Pintura" e seus principais versos são os seguintes: "...tem na tela, oculta, uma porta/ que
(1)
dá a um corredor/ que leva a outra e muitas outras". Com Carlos Drummond de Andrade
este sentimento não foi diferente. Assim veremos.
Baudelaire usou o desenhista, aquarelista e gravador Constantin Guys (1805-1892),
para colocar o termo modernidade na ordem do dia. Constantin Guys é o G. que Baudelaire
descreve em "O Pintor da Vida Moderna". Em Guys, exaltou o furor do lápis e o poema
composto de mil croquis.(2) Para Baudelaire, o artista deveria agir com rapidez para não
deixar escapar o instante exato. Deveria ser o homem do mundo e ter a multidão como
universo. A modernidade estava nas ruas. O poeta percebeu em Guys uma singularidade que
os críticos não perceberam: "Durante dez anos desejei travar conhecimento com G., que é,
por temperamento apaixonado por viagens e muito cosmopolita. Sabia que durante muito
tempo ele fora correspondente [de guerra] de um jornal inglês... (...). Vi, desde essa época,
uma quantidade considerável desses desenhos improvisados nos próprios locais e pude ler
assim uma crônica minuciosa e diária da campanha da Criméia, melhor do que qualquer
(3)
outra". No livro As Flores do Mal, Baudelaire dedicou à Guys um poema chamado "Sonho
Parisiense": "Desta fantástica paisagem,/ Que ninguém viu jamais um dia,/ Esta manhã ainda
a imagem,/ Vaga e longínqua, me extasia". (4)
Essa necessidade de ter o outro para refletir e dialogar também encontraremos em
três grandes poetas brasileiros: Cabral de Melo Neto, Murilo Mendes e Carlos Drummond de
Andrade, foco desta pesquisa. Cabral sempre escreveu sobre pintores, seja Paul Klee, Cícero
Dias ou Vicente do Rego Monteiro.(5) Murilo Mendes escreveu um livro sobre Ismael
Nery(6), sobre Ouro Preto(7), teve seu retrato pintado por Guignard e foi um colecionador com
gosto sofisticado, como demonstra o acervo que formou durante a vida. E percebeu o quanto
é importante o diálogo entre a poesia e a pintura: "Que o instrumento básico da poesia é a
linguagem, não há a menor dúvida; tornando-se supérfluo mencionar o conhecido diálogo de
Mallarmé com Degas". (8)
7
Estes olhares agudos que enumeramos até agora, revelam que os poetas tem um
senso de observação que difere de nós, simples mortais. No mínimo, percebem coisas que
passam despercebidas. Agem da mesma forma que Sherlock Holmes, que é capaz de
desvendar um crime descobrindo cinzas de charuto no canto da sala, que passam
despercebidas por todos (mesmo quando as cinzas estão no meio da sala). A razão de tanta
sofisticação crítica destes poetas é a disponibilidade para o diálogo da qual falou Murilo
Mendes.
Ninguém dialogou tanto com a pintura e com os pintores quanto Carlos Drummond
de Andrade. Há muitas referências em sua imensa obra, e a partir dessas referências é
possível perceber suas idéias estéticas; mas, muito mais que perceber suas idéias estéticas, é
possível perceber que a partir da cor ou da textura, Drummond via o mundo.
Porém, Drummond é um poeta e um intelectual tão complexo e especial, que tudo
que se escrever, mesmo que absolutamente correto, poderá estar errado.
NOTAS
(1) Melo Neto, João Cabral de. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Ed. José
Olympio, 1989, p.307.
(2) Baudelaire, Charles. Sobe a Modernidade: O Pintor da Vida Moderna.
Tradução de Suely Cassal. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1997, pp.32 e 38.
(3) Idem, p.16 (Grifo de Baudelaire).
(4) "De ce terrible paysage,/ Tel que jamais mortel n'en vit,/ Ce matin encore
l'image,/ Vague et lointaine, me ravit". "Rêve Parisien", "Sonho Parisiense",
poema CII de "As Flores do Mal" de Baudelaire, dedicado à Constantin Guys.
Tradução de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1988, p. 187.
(5) Melo Neto, João Cabral. Antologia Poética...
(6) Mendes, Murilo. Recordações de Ismael Nery. São Paulo: Edusp, 1996.
(7) Mendes, Murilo. Antologia Poética. Seleção de João Cabral de Melo Neto. Rio
de Janeiro: Ed. Fontana/INL, 1976. (Há uma cumplicidade, que vai além da
mera afinidade, entre Drummond, Cabral e Murilo Mendes, que chega ser
emocionante, como é possível perceber nesta Antologia organizada por Cabral,
ou nos poemas que cada um escreveu em homenagem aos outros. Eram amigos,
sem dúvida.)
(8) Mendes, Murilo. "A Poesia e o nosso Tempo". In Suplemento Dominical do
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 25 de Julho de 1959.
8
(1)
Em 1947, Drummond enviou à revista Joaquim , de Curitiba, um artigo sobre o
"Manifesto Invencionista", de um grupo de vanguarda argentino chamado Grupo Arte
Concreto-Invención. Este Manifesto fora publicado originalmente na revista Arte Concreto,
de Buenos Aires, em seu primeiro número, 1946. (2)
Este artigo de Drummond nos fornece pistas sobre suas idéias estéticas e explica
algumas de suas escolhas.
O Grupo "Arte Concreto-Invención" foi influenciado pelo Movimento Concreto de
Max Bill e Hans Arp, que mantinha uma disputa estética com a arte figurativa e com a arte
abstrata de fundo lírico. Este Manifesto deixou Drummond indignado, principalmete pelo
tom agressivo de suas frases:
O Manifesto Invencionista foi redigido por Tomás Maldonado, Arden Quin e pelo
poeta Edgar Bayley. Faziam, também, parte do grupo Gyula Kosice, Martin Blaszko,
Alfredo Hlito, Manuel Espinosa, Enio Iommi, Cláudio Girola e Raúl Lozza, entre outros.
Maldonado e Iommi chegaram a lecionar na Escola Superior da Forma, em Ulm,
Alemanha, quartel-general da Arte Concreta, idealizada por Max Bill, em 1950, nos moldes
que Gropius criou a Bauhaus. Maldonado chegou a ser seu Diretor, substituindo Max Bill.
Lá também estudaram os brasileiros Geraldo de Barros, Almir Mavignier e
Alexandre Wollner, entre outros. Aluísio Carvão chegou a ser artista visitante em 1960. (4)
A Arte Construtivista vinha ganhando terreno em todo mundo, e no Brasil também
havia uma tendência para a radicalização entre arte figurativa e arte abstrata, que atingiria o
9
Num dos primeiros documentos impressos da seita - um caderno que tem dois aros
de metal à guisa de grampo - Kósice expõe ainda com incerteza os seus fundamentos e fins.
10
conteúdo político tradicional. A luta pela especificidade da arte, como podemos ver, tem
idas e vindas freqüentes.
O receio de uma arte individualista explica, ainda mais, as idéias estéticas de
Drummond:
A PORTINARI
Aurora,
entretanto eu te diviso, ainda tímida,
inexperiente das luzes que vais acender
e dos bens que repartirás com todos os homens.
Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva
[noturna.
O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus
[dedos,
teus dedos frios, que ainda não modelaram
mas que avançam na escuridão como um sinal verde e
[peremptório.
Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza de tua vinda.
O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se
[enlaçam,
os corpos hirtos adquirem uma fluidez,
uma inocência , um perdão simples e macio...
Havemos de amanhecer. O mundo
se tinge com tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para colorir tuas pálidas faces, aurora.
15
O fascínio por Portinari mostra a paixão de Drummond por uma arte marcada,
principalmente, pela comunicação com o espectador. A pintura deve tocar quem a vê, como
a poesia deve tocar no quotidiano de quem a lê. Deve conter o sentimento do mundo, do
qual o artista (o poeta ou o pintor) deve ser o tradutor.
...
uma análise extensa de Portinari. Assim, o poema caminha para além da elegia, e
transforma-se numa análise primorosa do trabalho de Portinari e de sua relação com a cor.
Publicado no ano em que Portinari morreu, A Mão é a melhor homenagem que o
artista recebeu, porque Drummond o explicou como ninguém. Além de análise, podemos
chamar A Mão de uma quase-biografia:
A MÃO
que chegaram ao interior de São Paulo ainda jovens, com o objetivo de trabalhar numa
grande fazenda produtora de café, como era comum no final do século XIX.
Surpreendendo os professores e o vigário local com o talento para o desenho e a
pintura, é indicado para acompanhar os trabalhos de ornamentação da fachada da nova
igreja, tornando-se, assim, ajudante do pintor Vitório Gregolini, responsável pelo trabalho.
A partir de então, como disse o poeta, nada mais resiste à mão pintora do artista.
É de sua Brodowski que Portinari tirará seus temas cheios de vida. Pela região, em
que tudo era movido pelo café, transitavam trabalhadores de todos os tipos. Mesmo longe,
o artista decide pintá-los, mesmo não sendo temas pictóricos, como escreve Drummond. A
decisão de pintar trabalhadores e explorados, que não podem ser pintados, gerará uma
disputa que prossegue até hoje, como veremos. Drummond não o via como um populista,
mas como um artista que amadurece e cuja mão está sempre trabalhando:
Esta mesma mão continua compondo o que escapou da Criação. Portinari, nesta
fase, ainda retoca a realidade, ainda usa o módul-murmurante para corrigir o oblíquo pelo
aéreo. Ainda, como quase um clássico, semeia margaridinhas no baú dos vencidos. Os
mesmos vencidos que estarão em seus trabalhos futuros, para horror do triste mundo
fascista.
19
Mas a mão cresce, e Drummond vislumbra uma nova fase de Portinari: o mundo-
como-se-repete se transforma em um mundo que telequeremos. A utopia portinariana e
drummondiana não quer o mundo repetido, ainda mais para uma geração que viveu a
guerra. No poema A noite dissolve os homens, Drummond, lembrando a guerra, escrevia
sobre os rumores que outrora o perturbavam e sobre a aurora que divisava, mesmo que
tímida. Neste A Mão, confiante em relação a modernidade e usando uma linguagem própria
da época, fala de um mundo que telequeremos.
Mais uma vez a mão do artista é especial, pois é capaz de perceber a cor da cor.
Uma metáfora sutil para nos lembrar que o artista é capaz de tornar visível uma cor
diferente, posto que é a cor da cor. Assim, nos perguntamos qual é a cor da cor marrom,
por exemplo? Ou qual é a cor da cor vermelha? É com essas cores diferentes de todas que
existem, que Portinari veste o invisível. E o invisível para Drummond tem explicação:
O invisível, vestido pela cor da cor, ganha explicação porque Portinari criou uma
nova cor. Eis a novidade do artista, a criação de uma nova cor. Uma cor, portanto, que
existe, porque foi criada pelo artista e que torna visível o que era invisível. Drummond nos
transporta para a célebre definição de Paul Klee: "A arte não reproduz o visível, mas torna
visível". (3) Esta relação preciosa entre arte e realidade parece irmã-gêmea dos versos:
A cor da cor que veste o nu e o invisível, parece mais próximo da definição de Klee
sobre a prevalência do tornar visível sobre o ver. Esta mágica de que fala Drummond,
capaz de aguçar a sede dos companheiros ao invés de aplacá-la, vai até o limite do
sentimento da terra, domicílio do homem.
O que quer dizer Drummond sobre o sentimento da terra, domicílio do homem?
Pode significar que sentir a terra é tão importante quanto tê-la. E neste sentido terra tem o
significado próprio para o início dos anos 60: terra é terra mesmo. Chão. Lugar para
trabalhar. Ligação afetiva com o meio em que se vive. Questão cara para a geração de
Portinari e Drummond, que tanto lutou pela reforma agrária. Mas pode, também, ter o
sentido de mundo. Planeta. A terra é azul, de Gagarin, tão caro naqueles idos.
De qualquer forma, o sonho utópico de Portinari aguça a sede dos companheiros,
como uma laranja-mágica capaz de criar cores novas para um mundo novo. Mas como
Portinari não é um simples artista, ele cria cores novas para pintar o mundo. Estas idéias
ficam mais claras nos versos que dão continuidade ao poema:
Entre o sonho (a utopia) e o cafezal (cravado na alma do artista); entre guerra e paz
(referência ao painel que pintou para a sede da ONU, em 1952); entre mártires, ofendidos,
músicos, jangadas e pandorgas (referência ao painel Tiradentes, aos trabalhadores
ofendidos e as várias personagens que pintou); entre os roceiros mecanizados de Israel
(referência à serie de desenhos Israel e às exposições que realizou em Tel Aviv, Haifa e Ein
Harod), a memória de Giotto (referência a influência do renascimento italiano sobre o
artista) e o aroma primeiro do Brasil (referência à obra A primeira Missa no Brasil); entre o
amor e o ofício (referência à dedicação apaixonada com que Portinari se entregou ao
trabalho)... eis que mão decide:
plástico do mundo.
E por assim haver disposto o essencial,
deixando o resto aos doutores de Bizâncio,
bruscamente se cala
e voa para nunca-mais
a mão infinita
a mão-de-olhos-azuis de Cândido Portinari.
Uma característica comum nos poemas sobre artes plásticas de Drummond (e não só
nesses), é a polarização de extremos, que o poeta parece compreender como ninguém. Esta
característica aparecera, por exemplo, no poema dedicado a Goeldi, que veremos adiante.
Este Raio X da alma, com suas pulsões contraditórias, é uma das virtudes da poesia de
Drummond. Neste A Mão não é diferente. Triste pela partida do amigo-artista, o poeta
percebe que agora há uma verdade sem agústia, mesmo no estar-angustiado e o que era
dor, agora é flor: conhecimento plástico do mundo. Assim, para o poeta, Portinari era
capaz de captar o mundo a partir do conhecimento plástico que tinha dele, ou seja,
materializar o mundo num espaço de pano pintado.
Mas aquele que sempre se preocupou com o essencial, deixando o resto para os
doutores de Bizâncio, como ironicamente escreveu Drummond (talvez pensando nos
críticos de Portinari), bruscamente se cala. Porém, se Portinari se calou em 1962 (voou para
o nunca-mais), sua mão infinita, sua mão-de-olhos-azuis nos deixou o essencial.
Percebe-se que Drummond associa a mão do artista (que dá título ao poema) aos
seus olhos. Ver e pintar são a mesma coisa, percebe o poeta. A mão que pinta e o olho que
vê, são os instrumentos do artista, e, na verdade, um só instrumento: uma mão-de-olhos-
azuis.
...
A parede branca às suas costas foi durante muitos anos dominada por um nu
feminino do pintor italiano Enrico Bianco, seu amigo, assistente de Candido Portinari;
ladeando esse quadro, um retrato de Dolores por outro artista amigo, o russo Dmitri
Ismailovitch, e fotos do coronel Carlos de Paula Andrade, pai do escritor. Em outra parede
havia uma cena de tourada, presente com dedicatória do poeta espanhol Rafael Alberti.
Um dia Drummond resolveu transferir a obra de Bianco para o corredor, e o neto Pedro
Augusto quis saber pôr quê. Não ficava bem, explicou Carlos, deixar entre a mulher e o pai
uma senhorita em pêlo. (4)
aversão ao culto do escritor como alguém que, por exercer uma profissão dita nobre,
difere dos outros. (6)
Profundo conhecedor dos segredos artesanais, procurou usá-los com o objetivo de incluir a
Arte como agente de mudança na consciência do espectador.
Portinari é uma questão crítica hoje, ou melhor, um problema para o critico. Antônio
Bento, crítico e historiador que conviveu com o artista, o considera "nosso maior pintor
(11)
social". Segundo seu depoimento, Bento o conheceu em 1924, quando ambos eram
ainda estudantes, e revela o quanto Portinari era rigoroso com a aprendizagem e com o
trabalho. Este rigor artesanal, sua origem simples e sua carreira no exterior, o
transformaram num ídolo para a segunda geração modernista, principalmente aquela saída
também dos Liceus de Artes e Ofícios, e sem a oportunidade de estudar em Paris, como os
artistas da primeira geração. Aprendendo principalmente com as raras reproduções que
chegavam em suas mãos, esses jovens artistas tinham em Portinari um exemplo mais que
positivo, mas que trabalhava muito realizando retratos encomendados. Drummond também
nunca viajou, a não ser as raras vezes para Buenos Aires, onde morava sua filha, o que
aumentava ainda mais a admiração pelo amigo, que depois de muita luta, passou a expor
com freqüência no exterior.
Bento ainda nos revela mais sobre a ligação de Drummond e Portinari:
Como demonstra Bento, Portinari trabalhava muito para ganhar a vida e estudou em
razão de uma vocação inata. Segundo Sergio Miceli, que analisou o trabalho retratista de
Portinari, o artista realizou 680 retratos que "registraram as feições de um contingente
representativo e extremamente diversificado dos diferentes segmentos da elite brasileira".
(13)
Neste grupo de pintores, poetas, músicos, políticos, empresários, crianças, senhoras...,
estava incluído também um retrato de Drummond, então com 34 anos de idade, e que
trabalhava como chefe de gabinete do ministro Gustavo Capanema.
Drummond viera para o Rio de Janeiro três anos antes a convite de Capanema, já
tendo publicado seus dois primeiros volumes de poesia. O retrato foi executado no mesmo
26
ano em que o ministro convidou Portinari para realizar os murais dos ciclos econômicos
da história brasileira no prédio novo em construção, tendo sido Drummond o porta-voz e a
autoridade responsável pelo detalhamento dessa importantíssima encomenda. (14)
Mário Pedrosa escreveu muito sobre Portinari. O melhor é que foi no calor da hora,
pois foi contemporâneo do artista. Mas optamos por apresentar um texto que escreveu em
1970, num exílio forçado em Cabo Frio. É um longo texto, que faz um balanço das artes
plásticas no Brasil, e com um longo trecho sobre Portinari, quase pessoal, mas certeiro
como sempre e que deveria ser transcrito integralmente. Seguem alguns trechos, onde é
possível perceber uma análise acurada da obra e da personalidade de Portinari:
brasileira, quase sinônimo para o povo, como Picasso para o mundo, de arte "moderna"
ou "futurista". Sua poderosa aparelhagem artesanal lhe permitia excepcional ecletismo de
maneiras, escolas e experiência. Ele era um artista social por excelência. Com isso
queremos dizer que sua inspiração vinha de fora, do convívio cultural, das influências
determinantes no momento, dos problemas da época. Sua vocação era "política", não no
sentido estrito da palavra, pois nunca foi um político, mesmo quando se candidatou e foi
eleito, no duro, senador pelo PCB, mas num sentido amplo, de gosto, de convivência, de
comércio social, de participação. Magnificamente armado artesanalmente, ouvia e gostava
de captar idéias e sugestões dos meios intelectuais que apreciava.(...) Exemplo: a
insistência com que todos nós procuramos incutir nele a importância "culminante" dos
muralistas mexicanos, não só quanto à temática mas inclusive quanto à técnica. E
Portinari manda incontinente buscar no México uma pistola de pintar, preconizada então
por Siqueiros em suas andanças por aqui, como o neo plus ultra em matéria de arte social
e coletiva. Experimenta-a, e vem decepcionado nos dizer que não serve, não dá matéria e a
cor é chata, plana.
Ele tinha no fundo o gosto coloquial do narrador, do comentador de temas em
voga. (...) As preocupações do bom artesão eram o que mais espontaneamente aparecia
nele. (...) A partir dessas aquisições, tomadas daqui e de acolá, acabou o pintor pôr
conseguir uma maneira própria que afinal o marcou como um dos momentos importantes
da pintura brasileira. Não foi, entretanto, Portinari um colorista, não foi tampouco um
retratista excepcional, para o que lhe faltava o gosto do instantâneo psicológico, da
marcação sintética dos planos da figura ou da cabeça no espaço; não foi um inventor de
formas nem jamais se deixou arrebatar pelo ímpeto de um ritmo linear autônomo ou
criativo. Mas foi sem dúvida um grande artista do Brasil pelo poder de absorção que tinha
no agregar para definir na sua obra tudo o que lhe podia interessar e pelo didatismo
permanente que lhe emprestava, no desejo de responder a uma demanda que sentia existir
(19)
no ar e de assim atuar sobre o meio social ambiente. (Uma pequena correção: Portinari
candidatou-se a Deputado Federal em 1945 e a Senador em 1946. Não sendo eleito nas
duas oportunidades.)
29
Uma outra opinião, a de Carlos Zilio, considera que Portinari não via arte moderna
(20)
como ruptura, mas como estlização do clássico. Em alguns aspectos a análise de Zilio
mostra-se importante. Zilio destaca a intenção nacionalista do artista, sua preocupação com
a temática brasileira, a figura humana como dominante e o caráter político que tenta
transmitir, a partir da apreensão do cotidiano popular.
Outro aspecto importante é a análise do realismo portinariano. Zilio aponta o perigo
de confundir-se realismo com nacionalismo, da mesma forma que se confunde arte
figurativa com arte formalista. A simplificação destas questões leva ao risco de se cair no
Realismo socialista ou no Realismo nacional-socialista, "cujas diferenças formais são
(21)
inexistentes". Estas observações são importantes, principalmente em uma época em que
os artistas buscavam uma arte socialmente participativa, como no romance regionalista, por
exemplo. Quando se busca uma arte política, corre-se o risco de reducionismo ideológico. E
compromete-se o resultado estético. Mas, o exemplo mais claro da possibilidade de
realização de uma arte esteticamente relevante e que sirva como registro de sua época, são
os livros de Drummond dos anos 40.
Em relação a Portinari, sua empatia com o povo é questionada por alguns críticos,
principalmente pela idealização do trabalhador que o artista repetidamente representava em
seus trabalhos. Em sua época, esses trabalhos ganharam a aura de arte revolucionária,
principalmente porque esta era a tendência intelectual do momento, e Portinari acabou
transformando-se no herói do modernismo para a maioria dos intelectuais e críticos.
Drummond também o via como um herói. Em carta para Portinari, de 15 de outubro de
1946, Drummond demonstra toda sua admiração, logo após a abertura de uma exposição do
artista em Paris:
Querido Candinho,
Estou contente com o sucesso de sua exposição, de que chegam aqui os primeiros
ecos. E mais contente ainda porque não foi nenhuma surpresa, o êxito previsto pelos seus
amigos, o reconhecimento inevitável, da grande obra que você vem realizando com seu
próprio destino. Você é a alegria e a honra do nosso tempo e da nossa geração. Não sabia
se saberia dizer-lhe isso pessoalmente, mas encho-me de coragem nesta carta para
exprimir uma convicção que é de todos os seus companheiros, os quais se sentem elevados
30
e explicados na sua obra. Sim, meu caro Candinho, foi em você que conseguimos a nossa
expressão mais universal, e não apenas pela ressonância, mas pela natureza mesma de seu
gênio criador, que ainda que permanecesse ignorado ou negado nos salvaria para o
futuro.(22)
VOZ 1: (...) Para os quadros históricos [Portinari] fazia, baseados em suas leituras
e pesquisas, esboços, croquis, até se satisfazer com a expressão que devia dar ao rei, ao
bandeirante, ao mártir. Freqüentemente, quando estava no ateliê trabalhando, esse pintor
nascido "na Alta Mogiana" , como dizia, lembrava o trabalho de sol a sol do pai e da mãe,
plantadores de café, como se ele também, com o pincel, estivesse lavrando a terra - no
caso a terra da sensibilidade do Brasil, da memória do seu povo.
(...)
VOZ 2: (...) O Tiradentes se transformara de pronto em notícia de jornal,
reportagem, entrevista, crítica. E desde o primeiro dia atraiu uma multidão ao Automóvel
Clube do Rio, onde foi primeiro exposto ao público. Tinha tanta gente, no primeiro dia,
31
que Graciliano Ramos, grande amigo de Portinari, deixou para ir ao Automóvel Clube no
dia seguinte. Depois mandou este bilhete: (Mostrar bilhete)
"Querido Portinari. Estive uma hora hoje a admirá-lo. Não valia pena vir ontem -
dia de gente fina".
(Grande vista do painel)
VOZ 1: Aí está visto pelo grande pintor do Brasil, o suplício do Tiradentes. Um
quadro grande em si mesmo, na sua concepção , grande no seu tamanho de 18 metros de
comprido por 3 metros e 15 de altura. A inconfidência exposta em cerca de 56 metros
quadrados de têmpera sobre tela. A historiografia oficial brasileira é superficial, bem-
comportada, apresentando a história do Brasil como branda, civilizada, avessa à violência
e ao derramamento de sangue. Quando este painel foi primeiro exposto no Rio e em São
Paulo, muitos se detiveram diante dele comovidos, silenciosos. Havia, ali, uma revelação.
(...) (23)
Um audiovisual - me disse Flávio - que fale sobre o painel aos visitantes, sobretudo
aos colegiais, aos adultos meio esquecidos de história e até aos turistas. (24)
Para Callado, que parodia Nelson Rodrigues, Portinari mostra "a História como ela
é", e nos convida na fala final a olharmos apenas o quadro diante de nós, "sem mais pensar
no que representa. Olhemos a pura pintura. Suas formas, suas cores. Em silêncio e
(25)
recolhimento. Como quem ouve música. Um concerto". Percebe-se que Portinari foi o
artista preferido dos poetas e escritores, pois foi um artista descritivo por excelência. E
esteve sempre cercado deles; pintou, entre outros, Jorge Amado, Mário de Andrade,
Graciliano Ramos, Murilo Mendes, Manuel Bandeira e Jorge de Lima. Além do próprio
Drummond, já citado.
32
Drummond de Andrade, com aquela doce ironia de que é tão ricamente dotado, com
injustificável humildade considerou-se um "penetra entre Cervantes e Portinari", na
dedicatória que fez para um seu fiel amigo, nesse admirável livro. (28)
...
(1) Foi utilizado para este trabalho, o livro que juntava toda a obra de Drummond
até 1974, Reunião: 10 Livros de Poesia. Ed. José Olympio, 1974. [Nas
próximas citações serão utilizados apenas os nomes dos livros originais e datas,
sem notas. Nos livros posteriores a 1974, utilizar-se-ão notas completas).
(2) Drummond de Andrade, Carlos. O Observador no Escritório. São Paulo: Ed
Círculo do Livro, s/d, p 26 [grifos do Autor; este livro foi publicado
originalmente pela Editora Record em 1985].
(3) Klee, Paul. "Confissão Criador". In Sobre a arte moderna e outros ensaios.
Tradução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p 43.
(4) Werneck, Humberto. "O Ninho da Poesia", Prefácio. In Farewell, último livro
de poesias de Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1997,
p 10.
(5) Arte em Exposição. In Farewell, pp 32-33.
(6) Santiago, Silviano. Posfácio. In Farewell, p 112.
(7) Santiago, Silviano. Idem, p 113.
(8) Este conceito de arte como fazer, está bem claro em: Argan, Giulio Carlo.
História da Arte como História da Cidade. Tradução de Pier Luigi Cabra. São
Paulo: Ed. Martins Fontes, 1992, p 35. (No capítulo sobre Goeldi, este tema será
aprofundado.)
(9) Santiago, Silviano. Ibdem, p 125. (Grifo do Autor)
(10) Piza, Daniel. Fla-Flu verbal. In O Estado de São Paulo, de 30 de junho de
2002.
(11) Bento, Antônio. "Cândido Portinari". In Aspectos da Arte Brasileira.
Vários autores. Rio de Janeiro: Funarte, 1981, p 117.
34
A GOELDI
De uma cidade vulturina
vieste a nós, trazendo
o ar de suas avenidas de assombro
onde vagabundos peixes esqueletos
rodopiam ou se postam em frente a casas inabitáveis
mas entupidas de tua coleção de segredos,
ó Goeldi: pesquisador da noite moral sob a noite física.
Não sinistra,
mas violenta
37
e meiga,
destas cores compõe-se a rosa em teu louvor.
Drummond descreve Goeldi de maneira exemplar, que depois seria confirmado por
Mário Pedrosa no primoroso texto em que faz um balanço das artes no Brasil até 1970:
(3)
Goeldi seria um dos primeiros artistas brasileiros com mensagem social consciente. Ao
lado de Goeldi, cita o também gravador Lívio Abramo, que curiosamente escreveu um belo
texto sobre o "companheiro de rota" nos difíceis anos de renovação da gravura brasileira. (4)
Estes dois gravadores representam para Pedrosa as verdadeiras "tendências sociais
da arte", que foi tema de sua célebre conferência As tendências sociais da arte e Käthe
Kollwitz, no Clube dos Artistas Modernos de São Paulo (CAM), em 16 de junho de
1933.(5) Esta conferência fundadora, em que se discutia a "função social" da arte, marca um
momento declaradamente ideológico e polarizado na vida brasileira: revolução de 30,
revolução paulista de 32, crise do café, ascensão do nazismo, aparecimento do integralismo
e, tão importante para nós, a exposição de Käthe Kollwitz e um grupo de expressionistas
alemães, que marcou toda uma geração que tinha como horizonte "a função social da arte".
O expressionismo, portanto, desde Anita Malfati e Lasar Segall, nos anos 10, marcou a
vanguarda artística brasileira. Afinal, o expressionismo supria uma necessidade do artista
de mostrar o lado opaco da vida. O artista não poderia ficar alheio a um mundo tão intenso.
O expressionismo daria ao artista moderno brasileiro a régua e o compasso.
Goeldi, como Drummond, Portinari e outros artistas que viveram intensamente estes
anos, tinha como projeto o desenvolvimento de uma espécie de modernismo utópico, que
traria em seu corpus a refundação de uma nação complexa e ainda cheia de problemas.
Deste momento rico, emerge o trabalho de Goeldi, para quem Drummond escreveu
seu poema. Também de outro poeta, Ferreira Gullar, igualmente irmanado às Artes
Plásticas, Goeldi recebeu as seguintes palavras: "Nenhum artista brasileiro mereceu de
mim, intimamente, admiração e respeito tão grandes como Oswaldo Goeldi, e creio que
todos, artistas e críticos". (6)
Goeldi representa a atitude ética exemplar, da qual a arte é capaz, como queria
Argan [ver capítulo sobre Portinari]. Esta admiração que Goeldi desperta, da qual falou
Ferreira Gullar, vem da excepcional identificação entre grandeza moral e obra, ou como
38
disse Reis Junior: "Acontece que a obra de Oswaldo Goeldi corresponde, plenamente, no
plano estético, à grandeza moral de sua atitude". (7)
A partir da gravura em madeira, Goeldi alcança o grau de comunicação que tanto
queriam os pares de sua geração, além de criar uma arte original e ao mesmo tempo
humana. O fazer arganiano encontra em Goeldi uma boa tradução: viveu exclusivamente de
sua profissão e exerceu seu ofício com dedicação, desde o esmero com que lixava e
desbastava a madeira até a cópia com o esfregão (Goeldi não usava prensa). A relação com
a madeira, com as goivas, com os rolos... era de um escrúpulo religioso. Foi isso que
Drummond percebeu e relatou como ninguém.
Nestes versos iniciais, Drummond nos mostra uma das chaves da poética de Goeldi:
a busca de um universo palpável e próximo. Mas essa busca nada tem de singela, já que o
universo goeldiano é composto de avenidas de assombro, de vagabundos, peixes e
esqueletos, de casas inabitáveis, de coleções de segredo. É isto que transforma Goeldi num
pesquisador da noite moral sob a noite física. Mas que noite é essa que precisa do adjetivo
moral? Para entender a afirmação de Drummond, devemos iniciar pela exclamação ó
Goeldi, que transforma o poema em quase oração. Assim, temos outra questão: que santo-
gravador é esse, que merece uma oração? A resposta é do próprio poeta: Ora, é Goeldi, o
pesquisador da noite moral. É aquele que manteve sua individualidade num mundo que
valoriza a noite física. Goeldi leva ao extremo seu ideário ético: se o mundo tem avenidas
de assombro e esqueletos, grava-se este mundo como quem procura uma marca de
identidade. Marca-se na madeira ou no papel uma identidade que só é possível para um
pesquisador da noite moral.
39
Ainda não desembarcaste de todo e não desembarcarás nunca. Drummond não quer
pontuar as contradições de Goeldi, mas as contradições da natureza humana. Não deixa de
ser uma projeção do poeta num espelho drummondiano e goeldiano ao mesmo tempo. Para
Drummond, Goeldi extrai da madeira marcas de exílio e memória. Exílio no sentido de não
estar em seu lugar. Afinal, Goeldi não desembarcou de todo. Para isto ele teria de ser um
artista que se mostra inteiro. Nem o poeta era assim. Ele também se sente um exilado: no
poema Prece de mineiro no Rio, ele escreve sobre a saudade da pátria imaginária. Em
Confidência do Itabirano, Drummond é ainda mais explícito:
(...)
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede
Mas como dói!
Sim, como o poeta, Goeldi é um exilado ao seu modo, que apenas sugere, não
escancara. Porém, não segura as rédeas do desejo. Ele está nas gravuras. Aqui faço sua
defesa: mesmo que Goeldi fosse um artista naturalista, ele não se mostraria inteiro. É
próprio da moral goeldiana deixar brechas para o desejo do espectador. Como na canção de
Jobim: o teu desejo é sempre o meu desejo.
A constatação, primorosa de Drummond, de que Goeldi apenas sugere, contrasta
com a afirmação de que exílio e memória encontram-se na madeira. O exílio tem
conotações negativas, porque invariavelmente é frustrante, já que não se escolhe o exílio
(pelo menos na maioria dos casos). Já a memória tem uma conotação mais positiva, pelo
41
Nesta terceira parte do poema, Drummond começa questionando Goeldi com duas
dúvidas importantes. Na primeira, Drummond retoma as contradições de Goeldi: És metade
42
Se Goeldi está mais para a pintura, Abramo está mais para as artes gráficas
propriamente dita, da qual a xilo é uma das principais técnicas. Porém, ambos, a seu modo,
revolucionaram a gravura.
Drummond vai mais longe. A luz, sobre um espaço majoritariamente preto, fixa um
novo sol, um sol noturno. A luz de Goeldi é o sol. Os versos (...) e denuncias/ as diferentes
espécies de treva/ em que os objetos se elaboram... podem ser lidos de forma positiva. A
palavra treva está mais associada a cor principal de Goeldi, o Preto Goeldi, uma cor preta
só dele, como existe o Azul Klein, de Yves Klein. Assim, a treva que Drummond anuncia,
está ligada aos versos anteriores: Amarias talvez, preto no preto,/ fixar um novo sol,
noturno (...). Belíssimos versos para um artista que sempre buscou isto: fixar um novo sol e
43
não envolver sua gravura-mundo na escuridão completa, que a palavra treva pode talvez
sugerir.
Esta terceira parte termina com uma das melhores definições sobre a obra de Goeldi,
para não dizer que é uma conclusão brilhante para esta terceira parte. Atenção para o último
verso desta parte, duas palavras que mereceriam um livro inteiro:
Portanto, qual o mistério do fascínio exercido por suas gravuras de temas tão
comezinhos, tão corriqueiros, tão prosaicos, tão simples? Por que a nuvem, o mar, o
pescador, o beco molhado pela chuva, os antigos sobrados habitados por segredos, o
mísero urubu, o velho guarda-chuva rasgado, os animais domésticos, o peixe morto ou
vivo, a gaivota que risca o céu - por que, enfim, todas essas "coisas elementares" cavadas
por Goeldi na madeira ganham transcendência, transfiguram-se e empolgam-nos? Será
porque ele surpreende e revela-nos a "irrealidade do real", como diria o nosso querido
grande poeta Carlos Drummond de Andrade? ou, sem especulações metafísicas,
44
simplesmente porque ele talhava na madeira, com amor, as formas com que sua solidão
revestia essas coisas? (12)
Drummond acha que Goeldi é um observador privilegiado, aquele que está sempre
inspecionando as nuvens e a direção dos ciclones. Este olhar agudo de Goeldi o faz
representar aspectos da vida nem sempre presentes nas obras de outros artistas. Drummond
chamou estes aspectos de reino de Goeldi, algo como um temário próprio do artista: o céu
não é um céu normal, mas nublado; a chuva não é uma chuva comum, mas incessante; a
atmosfera é de chumbo, uma atmosfera que só Goeldi é capaz de representar.
Na quinta parte do poema, Drummond mostra que estes temas aparentemente
pesados (como a atmosfera de chumbo), são na verdade uma dádiva do artista à vida:
Não sinistra,
mas violenta
e meiga,
destas cores compõe-se a rosa em teu louvor.
A cor preta de Goeldi (sua marca no mundo) ou seus temas, não são sinistros, apesar
de violentos. Mas apesar de violentos, eles também são meigos. Estas aparentes
contradições são no fundo as impressões (sem trocadilho) de um artista que observa a
direção dos ciclones. Foi isto que pressentiu Drummond, que termina este poema de trinta e
oito versos livres da seguinte forma:
As cores com que Drummond pintou Goeldi são primorosas e reveladoras, mesmo
sendo construídas de dúvidas e contradições, porque, tal qual o reflexo furtivo que percebeu
nas gravuras de Goeldi, seu poema é também uma dádiva à vida.
Assim foi composta a rosa em louvor à Goeldi.
olhos vão diretamente ao detalhe que dá forma ao quadro ou à escultura e que, para ele,
ilumina o todo, se ilumina sob a forma de poema". (2)
Percebemos, assim, ao longo dos vários poemas, alguns instantes de descobertas,
complexos mesmo para o mais experiente observador. Eis porque Drummond é um sutil
crítico de arte, que conheceu essas obras apenas por reproduções em livros, os livros pelos
quais foi tão apaixonado. Lembramos que grande parte dos modernistas brasileiros formou-
se mais pelos livros do que por viagens à Europa, particularmente a segunda geração.
Mesmo com as dificuldades de se perceber a materialidade de uma obra, as experiências
com os livros continuam sendo o melhor contato com artistas de várias partes do mundo,
apesar de todo o esforço de exposições importantes, como as várias Bienais, que tornam-se
didáticas para um grande número de pessoas. Então, para quem não é um freqüente
viajante, os livros ocupam a parte mais importante na formação visual. Drummond foi mais
longe: não podendo ir aos grandes museus da Europa (como de fato nunca foi), criou um
museu particular, para nos transportar ao interior de seus quadros-poemas. Esta era a
viagem principal de Drummond: para dentro do poema. Assim, dentro do poema, podemos
observar melhor a exposição que este curador notável organizou.
São 32 quadros-poemas, não numerados, que Drummond escreveu para nos guiar
em sua galeria de arte, uma espécie de catálogo, tão comum em exposições. Cada poema
tem como título o mesmo com o qual as obras tornaram-se conhecidas.
Os poemas são os seguintes, com a grafia original e enumerados apenas para estudo:
O amor te escolheu
por seres a mais casta
entre as virgens ideais.
A união é do ar
e da água e do pão
em migalhas.
Muitos artistas pintaram São Francisco, entre eles Cimabue, Giotto e Sasseta
(Stefano Di Giovanni Sasseta, 1392 - 1450 ou 1451). O martírio de São Francisco e
também sua aura santa, foi imortalizada por artistas que o idealizaram como representante
de um mundo mais humano. Esta imagem nos foi legada também por Sasseta, que também
imortalizou em nosso imaginário esse homem devotado aos destituídos da terra. Esse
homem que escolheu a pobreza, os animais e a natureza, inspirou Sasseta, um dos grandes
mestres da arte religiosa do século XV, que pintou os retábulos do altar da igreja de São
Francisco, entre 1437 e 1444.
O artista, a obra e a personagem, chamaram a atenção de Drummond, que na
segunda parte do poema Estampas de Vila Rica, escreveu sobre São Francisco de Assis.(3)
Este primeiro poema de Arte em Exposição, pode ser dividido em duas partes de três
versos. Na primeira parte, Drummond justifica a escolha de São Francisco. Na segunda
parte o poeta explica de forma filosófica esta escolha: o ar, a água e o pão em migalhas.
Para ele são estes os elementos primordiais da união de São Francisco com a pobreza. São
elementos constitutivos de uma união escolhida para ser a mais perfeita, assim como
algumas teorias cosmogônicas procuravam um elemento primordial para explicar o mundo.
Para Tales de Mileto, a água era a matéria-prima do Universo. Anaxímenes achava que era
o ar; Heráclito, o fogo. Empendocles reuniu os quatro elementos: Terra, Ar, Fogo e Água.
Drummond descobriu um outro elemento, e ainda mais puro: a migalha de pão. Sasseta e
São Francisco de Assis o levaram a esta descoberta.
51
Quando se pensa em São Francisco, associa-se a Giotto e seu ciclo de Assis (as 28
cenas da vida de São Francisco que adornam a Basílica Superior, pintadas pelo artista);
porém, Drummond escolheu outro Mestre, Sasseta, para iniciar seu livro-galeria, e,
principalmente, nos aproximar de um mestre essencial para a História da Arte. Um Mestre
importante no uso da cor, e não menos importante que Giotto, apenas um pouco menos
conhecido. A cor de Sasseta deve ter impressionado Drummond, que logo no início do
livro-exposição mostra que suas escolhas não serão as mais comuns.
...
2 AUTO-RETRATO (Soutine)
Assim, apesar de toda a intolerância, inundo esta tela de eus, inundo o mundo de
eus. Na Curitiba dos anos 50, o solitário, individualista e autônomo Freyesleben, chocava a
cidade preocupando-se com auto-retratos de pinceladas grossas e empastadas, num
expressionismo freyeslebeano, particular, como foi o expressionismo de Soutine, também
de pinceladas tempestuosas, capaz de materializar através delas todos os tipos de
sentimentos. Chaim Soutine nasceu em Smilovitch, Lituânia, em 1894 e morreu em Paris,
em 1943. Foi um dos maiores expoentes da Escola de Paris, momento em que a cidade
reuniu pintores de todos os países (incluindo brasileiros), e era o centro da cultura artística
do mundo.
Seu auto-retrato, feito de um cromatismo agressivo, gerou as mesmas dúvidas de
Freyesleben em Drummond. O auto-retrato é o espelho do artista, esta é a definição
clássica, mas Drummond inverte a questão: o auto-retrato é o espelho do espectador. Por
isso ele se pergunta: Sou eu ou não sou eu? Sou eu ou sou você?
Soutine causou estranhamento em Drummond, a ponto de confundi-lo. O poeta
identifica-se com o retrato que vê, mas coloca em dúvida esta identificação. E esta dúvida o
deixa triste: Sou eu ou sou ninguém?
Freyesleben não se vê no auto-retrato que pintou, por isso o reduziu a condição de
sósia, a condição de um outro; Drummond, ao contrário, se vê na imagem que Soutine
pintou dele [Soutine], e na dúvida sobre quem é quem, reclama de que ninguém o retrata.
Assim o poeta se sentiu, e os sentimentos são complexos, sabemos, mesmo para
Drummond, que é personagem de um dos melhores retratos de Portinari; mesmo para ele
próprio, que criou a melhor caricatura de si, com traços ágeis de um grande desenhista.(4)
Talvez aí se encontre a explicação para este livro [Arte em Exposição]: não fosse o poeta
que é, Drummond teria sido um genial desenhista.
...
princesas que pintou (vide As Meninas, talvez sua obra mais conhecida), e refugiou-se
também nos rostos que vislumbrava nas ruas (vide este Músicos Cegos).
Há nas obras escolhidas por Drummond uma afinidade que se tornará mais clara
enquanto avançamos em nossas observações. Mas já é possível perceber que entre
Portinari, Goeldi, Sasseta, Soutine, Velasquez e Drummond, há muitas afinidades.
...
Retrato de Madame Héroterne, parece ser, na verdade, um dos vários retratos (nada
menos que vinte e cinco), que Amadeo Modigliani realizou de sua companheira Jeanne
Hébuterne. Modigliani (Livorno, 1884 - Paris, 1920), foi um artista único, no estilo, nas
preocupações estéticas e existenciais. Parece encarnar como ninguém o mito do artista
boêmio e solitário, que parte para a Paris no auge da École.
Apesar de ser também um escultor, são seus retratos que atingem o ponto alto de
toda a sua produção, em sua curta vida. Modigliani recolocou o retrato como um gênero
importante da pintura (como queria Drummond), apesar de viver no auge da revolução
fotográfica. O artista parece captar um aspecto caro para Drummond: a representação
simbólica da personalidade do retratado.
Drummond percebeu as principais características estilísticas de Modigliani: suas
linhas delicadas, o afilamento dos corpos, os olhos assimétricos e, as vezes, estranhos. A
linguagem pictórica está nestes três versos: a cabeça na torre do pescoço e os olhos que
parecem olhar apenas para o pintor que os retrata, e mal percebem nossas inquietações.
Modigliani entre os muitos retratos que fez, retratou um de seus amigos mais
íntimos: Soutine, outro dos preferidos de Drummond.
55
...
5 O GRITO (Munch)
...
Depois de tanto gozo, que venha logo o cataclismo. Ou melhor: que venha logo
outro orgasmo (o cataclismo). Jove (Zeus) é uma mistura de gozo e cataclismo. Drummond
resume as contradições do desejo. No primeiro verso Leda diz ao cisne: já gozaste demais,
tão bem retratado por Da Vinci, com Leda, delicadamente, virando o rosto. No segundo
verso, Leda esquece do interdito e proclama: que venha logo Jove (Zeus) cataclismo. Num
primeiro momento, ela rejeita o Cisne-Zeus, avisando que ele já gozou demais, depois ela
pede para que Zeus venha logo, mesmo ele sendo, para ela, um desastre, que a palavra
cataclismo representa tão bem.
Drummond, como Da Vinci, conhecia os labirintos do desejo.
...
De Baudelaire o conselho:
É preciso estar sempre bêbado.
Além do imaginário e do real
é preciso estar sempre sóbrio
para pintar a bebedeira.
dialogar com vários aspectos, desde políticos até filosóficos. A semelhança com
Drummond não é mera coincidência. Carrá esteve ligado ao Futurismo, à Pintura
Metafísica, ao Novecento italiano, aos movimentos anarquistas e socialistas. Sua arte
acabou sendo uma mistura disso tudo: foi lírica e social, teve corte cubista e o ritmo
futurista, foi naturalista e metafísica, e, como sugere Argan, sempre conservou um “fundo
(9)
de mistério, de solidão silenciosa e serena”. Todos estes extremos se manifestaram
durante sua vida. De certa forma, é como se ele tivesse “repercorrendo a história”. (10)
Apaixonado por Cézanne e pelos mestres italianos do início da Renascença, Carrá
foi a ponte ideal para uma arte cosmopolita. Quando Drummond “repercorre” a História da
Arte para interpretar a si mesmo, ele acaba agindo como um Carrá buscando um jeito de se
comunicar com o mundo.
Os traços da personagem do quadro de Carrá já foram associados aos traços da
(11)
autocaricatura de Drummond, que citamos anteriormente. As linhas sintéticas e rápidas
de Drummond e Carrá, estão sintonizadas com uma tendência moderna de concisão, da
qual Baudelaire foi o sumo sacerdote. Baudelaire é o Grão-Mestre dessa confraria de poetas
que se dedicou a escrever sobre arte e artistas, de uma forma diferente dos críticos,
historiadores e filósofos.
No poema em prosa, número XXXIII, de O Spleen de Paris, há o famoso verso
inicial: É preciso estar sempre bêbado, assim traduzido por Drummond, um profundo
conhecedor do francês, a ponto de traduzir Proust!
Drummond já havia usado este verso em outro poema, Poema da Necessidade:
(...)
É preciso estudar volapuque,
é preciso estar sempre bêbado,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.
(...)
60
(...)
Além do imaginário e do real
é preciso estar sempre sóbrio
para pintar a bebedeira.
Drummond coloca a questão para além do imaginário e do real. Mas além destes
dois registros há um outro? Com a palavra além (portanto, mais adiante), Drummond
reformula esta antinomia entre real e imaginário, e nos coloca um terceiro registro. Para
compreender essa nova ordem é preciso estar sempre sóbrio. Carrá também subverte o
conselho de Baudelaire, já que para pintar seu cavalheiro bêbado precisou estar sóbrio.
A metáfora de Baudelaire não é simples assim, claro, a bebedeira não é de vinho
apenas:
Esta aparente contradição entre estar sóbrio ou bêbado para produzir uma obra, seja
um poema ou um quadro, encontra em Drummond e Carrá, a sua tradução. Os dois
produziram uma obra pontuada por um registro sóbrio e sereno, mesmo quando parecem
soltar as rédeas da razão. No fundo, os dois seguiram o conselho de Baudelaire e
embriagaram-se de poesia. Eis porque é preciso ir além do imaginário e do real. Esta
terceira instância, para Drummond, superará os fenômenos ilusórios (apesar de importantes
na construção do eu), que chamou de imaginário; e superará o real, já que o, as vezes,
cético Drummond sabia que há uma parte de nós que escapa à razão. Cabe ao artista, então,
superar estas duas estruturas [o imaginário e o real], para estar sempre sóbrio e pintar a
bebedeira.
61
...
...
Para te acordar
do sono profundo
disfarço-me: leão
que ao te roçar
esquece a missão.
...
...
Fra Angélico (1400-55) era um frei dominicano, cujo nome verdadeiro era Guido di
Pietro. Mestre florentino do início da Renascença, realizou uma bela interpretação da
Anunciação. Presente no Novo Testamento, a Anunciação narra o momento em que o anjo
Gabriel apareceu à Virgem Maria para dar a notícia de que ela fora a escolhida para ser a
mãe de Jesus Cristo.
Drummond faz a mesma narração: O anjo desprende-se da arquitetura para dar a
notícia. Fra Angélico pintou um pórtico com várias colunas; o anjo entre elas, parece
desprender-se da complexa arquitetura criada pela artista.
A notícia é dada conforme a traça de sublime arquiteto. Há um aspecto complexo
nestes dois últimos versos, que poderiam ser da seguinte forma: a notícia é dada conforme
traçou o sublime arquiteto (Deus). Mas Drummond não é simples assim, sabemos, então a
leitura pode ser assim: o anjo dá a notícia conforme a traça (plano) de sublime arquiteto.
Este de é um complicador: o plano perfeito de sublime arquiteto foi executado com êxito.
Mas poderia ser também: plano de sublime arquiteto (Deus), já que só Deus conseguiria
traçar um plano de sublime arquiteto, pois Ele é o sublime arquiteto.
Fra Angélico e Drummond são complexos: tanto o trabalho de Fra Angélico quanto
o poema de quatro versos de Drummond, mereceriam um livro inteiro, pois ambos são
compostos de centenas de detalhes, fazendo que qualquer interpretação possa soar
superficial.
...
Conversamos placidamente
junto da nudez
que pela primeira vez
não nos alucina.
66
Almoço sobre a relva, de Edouard Manet (1832-1883) pode marcar o início de uma
nova era, se não pelo estilo, já com marcas revolucionárias, mas pelo choque que causou
ver dois homens em trajes da época, acompanhados de uma modelo nua, em pleno
piquenique. O tema é diferente, assim como as amplas camadas de cor envolvidas por uma
luz intensa. O artista buscou a mera sensação, daí que tudo se traduz em cor. Mesmo com a
busca da sensação, há algo de clássico na tela, que lembra principalmente a arte
renascentista. Mas há também uma naturalidade quase fotográfica dos modelos. Tudo isso
transforma Almoço sobre a relva numa das obras mais importantes da História da Arte.
A História registra que Manet usou modelos conhecidos para realizar o quadro. A
modelo nua, por exemplo, era bastante conhecida em Paris. Figuras nuas em alegorias, sim,
mas em situações reais, não, mesmo que a nudez da moça não alucinasse os rapazes, que
conversam placidamente, como escreveu Drummond. O poeta percebe (o poema é na
primeira pessoa do plural, como se ele fosse um dos rapazes) que não há tensão erótica na
cena. Mas por que chocou tanto? Talvez a despreocupação com que a moça nua, sentada na
grama, conversa com os dois rapazes, também despreocupados, seja a causa de tanta
polêmica.
Manet não idealizou suas personagens, mas buscou uma proximidade com a vida
que tanto fascinava Drummond, que se colocou no lugar de uma das personagens a ponto
de escrever um poema como se estivesse vivendo a situação do quadro.
...
Mas não teriam a graça que tem, sem o segundo e o quarto versos:
e chega ao cachorrinho.
As pulseiras de Vênus não escutam.
...
15 TIRADENTES (Portinari)
...
Alucinação de mesas
que se comportam como fantasmas
69
reunidos
solitários
glaciais.
Em setembro de 1888, Van Gogh pintou Café Noturno e Café Noturno: Exterior.
No primeiro, que inspirou o poema de Drummond, vê-se mesas e cadeiras em torno de uma
mesa de bilhar. Três mesas, apenas, estão ocupadas: um homem parece dormir sobre os
braços, um casal que talvez namore e dois homens conversam, aparentemente cansados.
Neste Café, alucinado de mesas, há poucas pessoas. Para Drummond, as mesas vazias, são
fantasmas solitários, reunidos. O poeta viu solidão neste Café.
Em carta ao irmão Théo, de 8 de setembro de 1888, Van Gogh assim escreveu sobre
o seu Café (pode-se perceber a importância que artista dava a cor):
Em meu quadro do Café Noturno, busquei exprimir que o café é um lugar onde
podemos nos arruinar, ficar loucos, cometer crimes. Enfim, procurei, através dos
contrastes de rosa tênue e de vermelho-sangue e borra de vinho, de suaves verdes Luís XV
e Véronesè, contrastando com verde-amarelos e verdes-azuis duros, tudo isto numa
infernal atmosfera de fornalha, de enxofre pálido, exprimir algo como o poder das trevas
de uma espelunca. (14)
No Café Noturno: Exterior, este pesquisador viu um momento diferente. Van Gogh
gostava da cor amarela, influenciado pela pintura japonesa, que amava. O amarelo, para ele,
representava a amizade. Nada melhor, portanto, que esta parte externa do Café fosse toda
ela amarela, com suas mesas na calçada e uma bucólica rua de paralelepípedos, tudo
banhado por uma cor amarela cheia de brilho e luz.
A parte externa do Café parece aconchegante, já que um Café pode, entre outras
coisas, representar a reunião fraterna de amigos em torno de boa conversa. O amarelo
parece confirmar esta opinião.
Van Gogh e Drummond viram solidão no interior do Café. Este pesquisador viu
amizade em sua parte externa. Amizade ou solidão, um quadro de Van Gogh desperta
sentimentos diversos.
70
...
...
Jan Van Eyck (1390 ?-1441) foi um pintor fundador. Drummond sintetizou suas
descobertas em quatro brilhantes versos. A ele, afinal, é atribuída a invenção da pintura a
óleo e de todas as possibilidades que esta técnica sugere. A pintura a óleo tem resistência e
flexibilidade, além disso, não seca rapidamente, fazendo com que haja tempo para a
elaboração. Antes disso, usava-se pigmentos a partir de cores de plantas e minerais,
dissolvidos num meio líquido a partir de clara de ovo (têmpera). Porém a têmpera secava
muito rápido. Van Eyck, então, passou a adicionar óleo de linhaça como meio líquido
aglutinante. Os resultados conhecidos fizeram com que o óleo seja usado até hoje.
Já Retrato do casal Arnolfini é tão cheio de detalhes simbólicos que parece sem-fim,
segundo palavras de Drummond. O espelho ao fundo reforça ainda mais a idéia de sem-fim.
Tudo no quadro sugere fertilidade, mas o casal nunca teve filhos. Apesar de Van Eyck
enfatizar o ventre da esposa, ela não está grávida. O artista reforça a cada detalhe a imagem
de perpétuo casamento, como quer Drummond, de forma um tanto irônica, pois sabia que
nunca tiveram filhos, e sabia que Arnolfini se metera em confusões com amantes, sendo,
uma vez, ao menos, processado por uma delas, que queria compensações por se sentir
abandonada. Mas a imagem é tão bela e tão real (uma certidão de casamento, como querem
alguns historiadores), que é possível sonhar com um perpétuo casamento.
...
19 SALOMÉ (Giorgione)
morte prematura fez com que algumas obras fossem terminadas por amigos ou discípulos,
como o próprio Ticiano.
O ar poético de suas obras, aliado a cores rebaixadas e quase melancólicas, fez com
que Drummond enxergasse em Salomé um instinto maternal e uma suavidade embalando a
cabeça de São João. Mas Drummond tem mais dúvidas que certezas: Giorgione é um pintor
enigmático. O poema termina com um ponto de interrogação.
...
Acalenta no sono
o púbis acordado.
Dois versos curtos, com poucas palavras, mas que tentam revelar o real significado
de uma obra que inspirou dezenas de artistas. Quantas Vênus foram pintadas depois desta!
Ticiano fez várias; uma delas, Vênus e o Organista, foi escolhida por Drummond, outra,
Vênus de Urbino, tem a mão também sobre o púbis, e as pernas na mesma posição, mas não
está dormindo. Ticiano a colocou num ambiente interno, e a pintou 30 anos após a Vênus
Adormecida de Giorgione, que, apaixonado pela paisagem, a colocou no campo. Sua Vênus
dorme nua, com a mão no púbis e com uma paisagem exuberante ao fundo, assim como em
A Tempestade, também de Giorgione, uma mulher amamenta seu filho, em meio a uma bela
paisagem e indiferente à tempestade que se aproxima.
Goya pintou sua Maja Denuda, o mesmo fez Manet com sua Olympia, Modigliani
também pintou uma série de mulheres nuas. Todos estes artistas utilizaram poses parecidas
com a Vênus de Giorgione, que se tornou pioneiro em um tipo de iconografia da história da
arte. Lembramos que todos estes artistas citados estão na Galeria de Drummond.
Para o poeta, se a Vênus de Giorgione está adormecida, seu púbis está acordado: sua
mão esconde suavemente o que acalenta seu sono. Se a Vênus de Urbino, de Ticiano,
acordada, repousa sua mão sobre o púbis, a Vênus Adormecida, de Giorgione, parece
73
acariciá-lo. Não há luxuria, há poesia. Esta Vênus inaugura uma tradição na história da arte
que nos acompanha até hoje.
...
...
22 VOLTAIRE (Houdon)
...
Cansaram-se de caminhar
ou o caminho se cansou?
Van Gogh é o artista mais visitado por Drummond em Arte em Exposição. São
quatro obras. Este Sapatos desperta em Drummond uma vontade de ser ainda mais sintético
que nos poemas anteriores. Como no hai-kai, Drummond atinge seu objetivo com um
mínimo de palavras. Ou quase sem palavras.
Nesta coleção de micropoemas que é Arte em Exposição, Drummond conseguiu
captar o instante como um repórter fotográfico. O instante não é só aquele em que olhamos
75
os quadros escolhidos para esta exposição, mas também aqueles em que estes vários artistas
conseguiram congelar, para depois nos reportar. Foi o que fez Van Gogh com sua cadeira,
com seu jardim, com seu Café e com estes sapatos.
Se lembrarmos da cadeira pintada isoladamente, veremos que ela tinha uma história,
a de Gauguin, assim como o jardim do hospital. Estes hai-kais vangoghianos (no plural,
porque o artista pintou cinco pares de sapatos - ou botas - em seu período parisiense) são
primorosos pela simplicidade; mas, ao mesmo tempo, são complexos pela espacialidade
sugerida, pelas cores e pela inversão dos valores estéticos da época. Sapatos é quase uma
natureza-morta, mas com o arrepio das coisas simples que Van Gogh conseguia transmitir.
Não são frutas, mas sapatos já usados, e, portanto, com uma história de quem muito
caminhou.
...
chegar ao céu. Chagall que pintou tantas personagens voando, desta vez precisou dos
ombros de uma mulher para chegar ao céu.
Numa exposição organizada de forma particular pelo poeta, nada melhor que um
auto-retrato nada comum de um artista que dizia que pintura é uma janela para alçar vôo
para um outro mundo.
...
25 QUADRO I (Mondrian)
Por isso Mondrian queria eliminar as linhas tortas ou sensuais. Drummond não o
critica, apesar de amar as linhas tortas e sensuais, como pode-se ver nesta Exposição. À
eterna alegria de viver de Matisse(17), ao riso entre lágrimas de Chagall(18), às curvas da
Vênus de Giorgione, ao trágico grito de Munh, e a quase todas as obras desta Exposição,
Drummond contrapõe um Mondrian, mostrando que é possível resolver, em parte, as
contradições do mundo. Na utopia drummondiana, a arte possibilita a todos uma
convivência social sem o recurso da violência. Neste sentido podemos concordar com a
opinião de Argan:
Por isso, pode-se dizer que, não obstante a deliberada frieza de sua pintura (ou
justamente devido a ela), Mondrian foi, depois de Cézanne, a consciência mais elevada,
mais lúcida, mais civilizada na história da arte moderna.(19)
...
26 CARNAVAL DE ARLEQUIM
pintor: ele é o elo para fazer vir à tona uma dimensão psíquica profunda. Argan o compara
com Klee:
É fácil notar que a dimensão psíquica em que se move Miró é a mesma de Klee,
porém o movimento é inverso: Klee mergulha e explora, Miró sobe e aflora.(20)
...
...
mulheres, nuas, abraçadas, concluem: Beleza é redundância. Esta conclusão pode significar
que Beleza é excesso (no caso, volume) ou supérfluo (elas são tão belas para o ideal
rubensiano, que a própria Beleza deixa de ter importância, permanecendo apenas a
serenidade da própria composição). Drummond escreveu Beleza com B maiúsculo, como
se quisesse ressaltar (1) a grandeza da Beleza, (2) as curvas sensuais da letra B maiúscula,
(3) os curvilíneos volumes das três mulheres. Desde o texto publicado na revista Joaquim, o
poeta-curador é um defensor das linhas curvas, e sempre aproveita para exaltá-las.
...
Dor é incomunicável.
O mármore comunica-se,
acusa-nos a todos.
Michelangelo (ou Miguel Ângelo, como escreve Drummond), nem é preciso dizer,
representa a figura-síntese do Renascimento, ou o conceito de genialidade sobre-humana.
Cada vez mais, Michelangelo, como Leonardo Da Vinci, nos espanta com sua capacidade
de criar e perpetuar valores como a beleza, por exemplo.
Algumas de suas características estão em Pietà, que Drummond sintetizou em três
versos: a expressão das emoções das personagens (a dor incomunicável), a sofisticada
técnica do artista em ressaltar a anatomia dos corpos, em particular o corpo contorcido de
Cristo e da mão de Nossa Senhora apoiando o corpo do filho. O mármore de Michelangelo
é capaz de comunicar estes detalhes, e nos transmitir um realismo tão intenso, que até hoje
estes gestos imortalizados pelo artista emocionam.
O silêncio dos dois (já que a dor é incomunicável) é quebrado pelo grito de dor do
mármore, cinzelado para acusar-nos a todos.
...
81
...
O ardiloso sorriso
alonga-se em silêncio
82
...
Santidade de escrever,
insanidade de escrever
equivalem-se. O sábio
equilibra-se no caos.
Quentin Metsys (1465 ou 66-1530) era um pintor flamengo que criava um clima
espiritual em suas obras, fossem elas religiosas ou retratísticas. Percebemos isto no Retrato
de Erasmo de Rotterdan, de que nos fala Drummond. Estava irmanado no estilo com Van
Eyck, mas foi muito influenciado por Rafael e Leonardo Da Vinci.
83
(...)
Era uma vez um Aleijadinho,
não tinha dedo, não tinha mão,
raiva e cinzel, lá isso tinha,
era uma vez um Aleijadinho,
era uma vez muitas igrejas
com muitos paraísos e muitos infernos,
era uma vez São João, Ouro Preto,
Mariana, Sabará, Congonhas,
era uma vez muitas cidades
e o Aleijadinho era uma vez.
intelectual. Vide o número de cartas que trocou com quase todos os jovens talentos da
primeira metade do século XX, incluindo as cartas que trocou com Drummond (já
publicadas em livro).(3) Ambos comungavam a mesma opinião sobre a genialidade de
Aleijadinho, e, talvez, sobre as curvas barroquistas. Mais uma vez lembramos o artigo de
Joaquim, onde Drummond perguntava: Quem, entre nós humanos, não defenderia as linhas
curvas? E lembramos, também, as várias obras de Arte em Exposição, cujos artistas
pareciam criar verdadeiras odes às linhas curvas.
No terceiro livro, Sentimento do Mundo (1940), há o poema dedicado a Portinari, A
noite dissolve os homens, já analisado, e com o belíssimo verso: O mundo se tinge com as
tintas da antemanhã... Neste livro há outro poema, Lembrança do mundo antigo, em que os
quatro primeiros versos representam um verdadeiro tratado sobre a cor:
As descrições que Drummond faz das cores, lembram as cartas que Van Gogh
enviou ao irmão Théo, relatando os quadros que estava pintando. Há a mesma paixão pelas
cores.
Em A Rosa do Povo, de 1945, o poema Mário de Andrade desce aos internos,
dedicado ao amigo querido, as referências, em sua parte IV, são para Portinari (sempre),
Cézanne e Picasso. Uma verdadeira Santíssima Trindade das Artes:
IV
(...)
89
bichos...Mário de Andrade tudo acumulou na Rua Lopes Chaves. O amigo mais velho
sempre tinha a palavra esperada, e Drummond, reservado como era, na Lopes Chaves
nunca esteve. Mas se era reservado nas relações, Drummond soltava as rédeas em seus
poemas. Ninguém se desnudou tanto.
Em Claro Enigma (1951) há o poema A Tela Contempada:
A Tela Contemplada é um soneto brilhante, tanto para quem ama a pintura, quanto
para quem ama a poesia de Drummond, sem contar a maestria com que o poeta comenta
alguns dos valores plásticos em que sempre acreditou e que sempre foram caros a ele.
Concordando ou não com estes valores, é importante ler as opiniões de Drummond, escritos
democraticamente e com tal precisão, que acabamos tocados.
A qual pintor Drummond se refere? Sabemos que o poeta dirige-se ao pintor da
soledade nos vestíbulos de mármore e losango... Se pensarmos em vestíbulo como sendo o
91
espaço entre a rua e a entrada de um edifício; e soledade como um lugar ermo, deserto ou
solitário, podemos considerar esse pintor como sendo o pintor de uma paisagem solitária e
fria como o mármore, cujas colunas lamentam silenciosamente tamanha solidão, onde nem
as pombas agitam suas asas.
O poeta continua apresentá-lo: sua obra é resultado do traçado de finas torres
consumidas no vazio mais branco. Um pintor do vazio, portanto, além de um pintor da
solidão. E mais: essas finas torres são consumidas no vazio mais branco, sim, mas também
na insolvência de arquiteturas não arquitetadas. O vazio é ainda pior, porque o espaço não
foi arquitetado: ficou insolvente. Mas ficou devendo a quem afinal? Drummond responde
deixando claro suas idéias estéticas: As torres foram consumidas no vazio e na insolvência
de uma arquitetura não realizada porque a plástica é vã, se não comove. Eis a chave para o
entendimento da ideologia estética de Drummond: a beleza, por si só, é ilusória, se não
comover. Esta divisa atravessa toda sua obra e reflete todas as suas escolhas.
Drummond chama esse pintor da solidão, das colunas lamuriosas e das torres
consumidas, de criador de mitos que sufocam, aquele que desperdiça a terra e no charco se
reune, por cujas veias flui um sangue indefinido e nas pupilas, sob o tédio, a vida é um
suspiro sem paixão.
A referência, talvez, não é a um pintor em especial, mas a uma tendência
racionalista demais para o poeta. O título do poema, A Tela Contemplada, é uma das chaves
para esta conclusão: a fruição estética para Drummond, se dava principalmente pela
contemplação da obra de arte. Uma contemplação reflexiva, meditativa, embevecida. O
livro Claro Enigma é de 1951, ano chave e fundador para as Artes Plásticas no Brasil [já
analisamos este período], quando o Abstracionismo de vários matizes encontrou, enfim,
sua morada definitiva entre nós. Drummond dava, assim, através de um soneto, sua opinião.
Aliás, não foi o único a opinar, todos opinavam e as polêmicas eram freqüentes.
Drummond usou a forma mais sutil, o poema, num momento em que a temperatura era alta
entre artistas, críticos, intelectuais e jornalistas. À sua maneira, refletiu sobre o tema e
deixou cravado no poema suas idéias: 1) a plástica é vã, se não comove; 2) a vida não pode
ser um suspiro sem paixão. Há algo de romântico neste soneto, perceptível em toda a obra
de Drummond, mas um pouco mais escancarado aqui. Este soneto e as idéias contidas nele,
escrito num período de retomada da ordem após o radicalismo modernista dos anos 20 e 30,
92
marcam não só Drummond, mas o período pós-45. Alguns apontam como o período de
maturidade do poeta, outros como a tradução de um certo reacionarismo. Drummond não
mudou, ou seu livro não se chamaria Claro Enigma, achado fantástico para suas reflexões
sobre as polaridades, que ressaltamos com freqüência durante todo este trabalho.
Drummond gostava de antíteses, de contradições, de polaridades, confirmados por
Francisco Achcar:
Neste caso, clareza contrapõe-se a sombra ou a dúvida. Drummond queria dizer que
não tinha certezas, e que suas opiniões representavam apenas um ponto de vista. Assim, um
quadro era observado do lugar que o poeta ocupava, do ponto de onde estava. Vimos até
agora que suas escolhas tinham um único mediador: ele próprio. Os últimos versos do
poema Relógio do Rosário, que fecha o livro Claro Enigma, as polarizações
drummondianas são otimistas, a sombra dá lugar a luz e a cor:
Drummond voltaria a se ocupar das artes no livro A vida passada a limpo, de 1959.
São três os poemas que abordam o tema desta pesquisa: Um morto na Índia, sobre o pintor
Tomás Santa Rosa; o soneto que dá título ao livro, A vida passada a limpo, que não aborda
diretamente as Artes Plásticas, mas faz uma bela referência à cor; e o importante poema A
Goeldi, já analisado.
Tomás Santa Rosa nasceu na Paraíba, em 1909, e morreu em 1956, durante uma
viagem à Índia. Daí o título A um morto na Índia. Foi discípulo de Portinari, conviveu com
93
(...)
Meus livros são teus livros, nessa rubra
capa com que os vestiste, e que entrelaça
um desespero aberto ao sol de outubro
à aérea flor das letras, ritmo e graça.
(...)
As duas últimas estrofes mostram a personalidade do artista, sua paixão pela pintura
(irá pintar o céu) e a dor do poeta pela perda prematura do amigo:
No soneto A vida passada a limpo, o branco tem papel importante. Esta cor
aparecerá mais vezes:
Alferes
que em São Francisco de Assis de Vila Rica
derramais sobre nós no azul-espaço
do teatro barroco do céu
o louvor cristalino coral orquestral dos serafins
à Senhora Nossa e dos Anjos;
repórter da Fuga e da Ceia,
testemunha do Poverello,
dono da luz e do verde-veronese,
inventor de cores insabidas,
a espalhar por vinte igrejas das Minas
"uma bonita, valente e espaçosa pintura":
em vossa admiração
bato continência.
E porque
ao sairdes de vossa casinha da Rua Nova nos fundos
[do Carmo
encontro-vos sempre caminhando
mano a mano com o mestre mais velho Antônio Francisco
[Lisboa
96
O poeta solta a imaginação e usa as cores de uma forma lúdica, para lembrar a
infância: o País da Cor (grafado assim, em maiúscula, pelo poeta). Se pudessemos
perguntar ao poeta qual a sua memória mais remota, talvez ele respondesse que é a
percepção das cores. A farmácia é um mundo de cores, basta olhar seus vasos e o poeta
flutua no verde-além-do-verde.
Há também na memória do poeta, o azul, como uma enseada na redoma, imagem
belíssima, que o faz imaginar nascendo neste azul. Se a enseada é azul, a laguna é amarela.
O poeta encerra seu poema com um verso que é a razão de ser deste trabalho:
O outro poema, O Arco Sublime, que abre este trabalho, Drummond faz afirmações
importantes:
Drummond se questiona: Que sentido tem a arte, que me ensinam? Para o poeta,
não é na parede da sala de visitas que a arte o convence, mas no céu sem moldura, onde o
arco-íris se transforma em arco sublime, em arte-maior. Porém, como Drummond não tem
certezas absolutas, na parede da sala de visitas a arte pode não convence-lo ou pode vence-
lo.
No primeiro volume de Boitempo, batizado por Drummond de A falta que ama, em
1968, há um poema dedicado a Lasar Segall (!891-1957), Notícia de Segall:
Segall desaparecido
ressurge no preto-e-branco
da linha pura
lacônica
exata
conta a gravidade do ser
perdido
numa aventura sem explicação
se não existisse o amor
antecâmara da piedade
e a poesia
erva renitente no ar sem raiz
poesia que elimina o som
e volta à linha
como as criaturas voltam a si mesmas
na visão de Segall prospectivo-nostálgica.
A seu gesto
a madeira o cobre o ácido revelam
entre sulcos aquele
que conduz à negação do labirinto
ao essencial das coisas
cicatriz
99
relâmpago
tristeza depositada no quarto
de velório no florir da moça
no ver
no simples ver o visto todo dia
em seu carvão de rude e mel
no objeto exposto
com desespero contido
filtrado
pacificado
sobre a dor bíblica intemporal
e a dor contemporânea
que podemos pegar de tão doendo
até pressentir a alegria do conhecimento
solidário.
Somos chamados
a compreender e amar num ato único
as formas as gentes os animais retirados da noite
para a festa de serenidade melancólica
no coração-estúdio de Lasar Segall
aberto em confissão
aos murmúrios da terra.
O que torna este poema interessante é o foco nos trabalhos em papel de Lasar
Segall, sejam eles gravuras ou desenhos. Para Rodrigo Naves, "o traço de Lasar Segall é o
momento da compaixão". (5) Há em Segall uma identificação com as figuras que desenha,
há um profundo humanismo que Drummond soube captar: apesar da dor bíblica
intemporal, da dor contemporânea e da opção de Segall pelos deserdados do mundo, há a
alegria do conhecimento solidário. Apesar de um certo pessimismo, fruto da barbárie que
presenciou, Segall, com seus gestos na madeira ou no cobre, conduz à negação do
100
labirinto, seu carvão de rude e mel filtra e pacifica o desespero. Em seu coração-estúdio,
Lasar Segall ouve os murmúrios da terra e os transpõem para o preto-e-branco da linha
pura.
Marcus de Lontra Costa chega a conclusões próximas de Drummond:
Segall sempre pautou seu tema em torno da figura humana. A gravura foi uma
excelente técnica para esse artista comprometido com o drama da existência humana. A
economia de meios da técnica permitiu a Segall realizar imagens contundentes e de grande
força trágica.(6)
Notem que as escolhas de Drummond têm um elo comum: afora alguns momentos
de expressividade abstrata, o poeta parece preferir a figura humana e seus dramas. O
Drummond da década de 40, chocado com as tragédias do mundo, parece reencontrar-se
nas gravuras e desenhos de Segall.
As Impurezas do Branco, de 1973, é um livro especial, aquele em que o poeta mais
escreveu sobre cores, paisagens, planos, linhas e, principalmente, sobre artistas (com
exceção, obviamente, de Arte em Exposição). A começar pelo título: uma referência a cor
que mais citou, e provavelmente, a preferida.
Serão analisados vários poemas deste livro, começando com Paisagem: como se
faz:
Paisagem, país
feito de pensamento da paisagem,
na criativa distância espacitempo,
à margem de gravuras, documentos,
quando as coisas existem com violência
102
Há um texto-irmão desta Paisagem: como se faz, escrito por Fernando Pessoa, que
não foi elaborado para ser um poema, não tem o ritmo de um poema, não tem a estrutura de
um poema, mas para este pesquisador é um poema, que o emociona a cada leitura, como o
poema de Drummond:
Todo estado de alma é uma paisagem, isto é, todo o estado de alma é não só
representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. Há em nós um
espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. (...) E - mesmo que não se
queira admitir que todo o estado de alma é uma paisagem - pode ao menos admitir-se que
todo o estado de alma se pode representar por uma paisagem. Se eu disser "Há sol nos
meus pensamentos", ninguém compreenderá que os meus pensamentos estão tristes. (...) De
maneira que a arte que queira representar bem a realidade terá de a dar através duma
representação simultânea da paisagem interior e da paisagem exterior. (...) (7)
Este texto é um apontamento solto, sem data, não assinado, mas atribuído com
certeza a Fernando Pessoa, tanto que foi publicado na primeira edição de sua Obra Poética,
pela Editora Aguilar, em 1960.
Para Fernando Pessoa, há duas paisagens, para Drummond, também: a paisagem
que vai ser e a paisagem da paisagem. Estes poetas-irmãos não estão irmanados apenas na
língua portuguesa, mas também no mesmo olhar agudo e reflexivo sobre o mundo. A
paisagem é um branco que vai tingir-se de verde, marrom, cinza...Drummond é implacável:
A pedra só é pedra no amadurecer longínquo. Para os dois poetas, a paisagem é construída:
a percepção que temos de uma paisagem é afetada pelo nosso estado de alma. Só que para
Drummond tudo é mais tarde, como nos dramas. Antes recolhemos, mesmo sem perceber,
fibrilhas de caminho, para depois, amadurecidos, semear o espaço vacante, de paisagem
retrospectiva.
103
Em Museu vivo, o poeta utiliza a imagem de um museu para criticar alguns aspectos
da vida moderna: estátuas andróginas, idéias conversíveis, embriões humanos in vitro, a
sexalegria industrializada em artigos de supermercado... Há, neste museu moderno por
excelência, até um catálogo (como existem em todos os museus e exposições), impresso em
grito, para terror do poeta, em seus versos finais:
BRASIL/TARSILA
A Aracy Amaral
Tarsila
descendente direta de Brás Cubas
Tarsila
princesa do café na alta de ilusões
104
Tarsila
engastada na pulseira gótica do colégio de Barcelona
Tarsila
medularmente paulistinha de Capivari reaprendendo
o amarelo vivo
o rosa violáceo
o azul pureza
o verde cantante
desprezados pelo doutor bom gosto oficial.
Tarsila relâmpago
de beleza no Grande Hotel de Belo Horizonte em 24
acabando com o mandamento das pintoras feias
Quero ser em arte
a caipirinha de São Bernardo
A mais elegante das caipirinhas
a mais sensível das parisienses
jogada de brincadeira na festa antropofágica.
Tarsila
nome brasil, musa radiante
que não queima, dália sobrevivente
no jardim desfolhado, mas constante
em serena presença nacional
fixada com doçura,
Tarsila
amora amorável d'amaral
prazer dos olhos meus onde te encontres
azul e rosa e verde para sempre.
rosa violáceo; não um simples verde, mas o verde cantante... cores desprezadas pelo doutor
bom gosto oficial, representada, principalmente, pela arte acadêmica.
Na segunda parte do poema, Drummond a chama de Tarsila radar tranqüilo. O
radar de Tarsila, para o poeta, será capaz de captar, através de seu traço elíptico, a união
entre uma poética particular, uma sintaxe aprendida durante sua sólida formação (que vai
desde a orientação, quando bem jovem, de Pedro Alexandrino, até o contato com os
grandes mestres do modernismo, durante o período que passou em Paris), e a descoberta de
uma certa brasilidade, projeto desenvolvido por Tarsila e quase todos os modernistas
brasileiros pioneiros.
Para provar a eficácia deste radar tarsiliano, Drummond, nesta segunda parte, faz
referência à histórica viagem às cidades barrocas de Minas Gerais, juntamente com Oswald
de Andrade, Mário de Andrade, o poeta francês Blaise Cendrars e outros artistas. Para
Maria José Justino é difícil precisar quando foi despertado o sentimento de brasilidade em
Tarsila:
Minas ou Europa? Penso que em ambas, Tarsila reencontra o popular tanto nas
interpretações feitas pelas estéticas européias sobre a arte negra e sobre outras culturas
como na confrontação com as suas raizes.(8)
Justino conclui:
Foi, então, no confronto com outras culturas, que Tarsila pode ver a verdade da
sua. (9)
Drummond bate continência desta vez para o grupo que buscou criar uma
identidade para a arte brasileira. Cita Tarsila, Oswald e Mário e mostra a gênese de algumas
obras criadas por Tarsila no calor das experiências mineiras: o vazio da rua de Congonhas,
a mudez da rua de São João del-Rei, o silêncio do desvio ferroviário e uma imagem
belíssima para um casario brasileiro da artista: o sono da cidade pequena onde as casas são
boizinhos espalhados em presépio.
Drummond fala em vazio, em mudez da rua, em silêncio, em sono da cidade... mas
sem conotações negativas: o mundo de Tarsila é silencioso, afinal ele é captado pelo radar
tranqüilo da artista.
Há, para Drummond, três Tarsilas: a Tarsila-radar, da qual comentamos; a Tarsila-
mágica e a Tarsila-relâmpago.
A Tarsila-mágica de que fala o poeta, refere-se a uma fase da artista em que estão
presentes elementos enumerados pelo poeta-crítico: noites na fazenda, cactos-animais,
pedras-árvores, monstros, abapurus... Assim escreveu Justino sobre esta Brasil/Tarsila, num
texto que confirma a análise do poeta:
Por fim, Drummond escreve sobre Tarsila relâmpago de beleza, e relembra sua
passagem por Belo Horizonte em 1924, acabando com o mandamento das pintoras feias:
Assim, em mais uma das polaridades do poeta, aparecem a modernidade que Paris
representava e a origem da artista. Além de tudo, Tarsila é a musa radiante que não
queima, que o poeta lembra com carinho: ela é a serena presença nacional fixada com
doçura. Drummond quase repete a imagem do radar tranqüilo, pois ela é doce e serena. O
poeta termina de forma comovente:
Tarsila
amora amorável d'amaral
prazer dos olhos meus onde te encontres
azul e rosa e verde para sempre.
Quase sem fôlego, depois do arrepiante final do poema para Tarsila, chegamos ao
poema dedicado a Enrico Bianco, amigo de Drummond e assistente de Portinari quando
jovem. O poema chama-se Motivos de Bianco:
a sala,
o contemplante,
num fulgor de balanço,
e entre os raios da rede ilumina-se
e dança
o negro cavernante
da água ou de nós mesmos, em marulho.
Sobre os infindos olhos esféricos do boi-bumbá
- lanternões acesos na alegria religiosa
do povo menino
do Brasil -:
festa
folia
flauta
coração da terra.
Havia seis meses que Bianco estava no Brasil quando o pintor Paulo Rossi lhe
sugeriu visitar uma obra que Portinari estava preparando na Sede do Ministério da
Educação. Ele foi, mas só encontrou lá três ajudantes: Burle Marx (1909-1994), Inês e
Ruben Cassa (1905).
Percebendo as dificuldades que os três estavam tendo com a ampliação, em
afresco, da mão de um garimpeiro, pediu que o deixassem tentar e, contando com o
assentimento, pintou sozinho aquele detalhe.
Pouco depois chega Portinari e, com intuição de mestre, percebeu a interferência,
perguntando com irritação: "Quem é que fez aquela mão ali?" Os discípulos apontaram
para Bianco, encolhido a um canto, a quem o mestre, aparentemente, deu pouca ou
nenhuma atenção.
Bianco, se soubesse, nem teria ido lá mas, já que estava, deixou-se ficar,
apreciando o desenvolvimento da obra. Pela hora do almoço, decidiu voltar à casa,
despedindo-se de Portinari, que lhe perguntou: "Mas, aonde vai?" "Vou para casa",
respondeu Bianco.
O mestre estendeu-lhe a mão, com a mesma cara de zangado e lhe perguntou: "Mas
amanhã você volta, não volta?"
Foi assim que, aos poucos, o jovem pintor foi se integrando à equipe de Portinari,
tornando-se, por muitos e muitos anos, um valoroso colaborador.
A "mão do garimpeiro", a primeira intervenção de Bianco na pintura do mestre,
continua lá, onde foi pintada. E a influência de Portinari em Bianco é visível em muitos de
seus quadros. O pintor cresceu, ganhou vida própria, mas nunca se afastou do estilo que
assimilou e aprendeu a respeitar.(11)
Fayga é um fazer,
filtrar e descobrir
112
Fayga nasceu na Polonia e mudou-se para o Rio de Janeiro em 1934. Foi aluna de
Axl Lescoschek e Carlos Oswald. Marcus de Lontra Costa assim escreveu sobre ela:
O radar tranqüilo de Tarsila é prima-irmã do modo com que Fayga faz a forma
flutuar e florir na pauta musicometálica. A obra de Fayga reflete as palavras de Drummond
sobre a delicada ordenação das estruturas. A comparação entre imagem e som acompanha
todo o poema: Drummond fala em pauta musicometálica, coro de cores, cor ressoando nas
coisas, independente som. Se as superfícies são ilusórias (falazes), ela bloqueia a luz, faz e
perfaz a espessa atmosfera do Não [assim em maiúscula] que volve em depósitos infinitos
esquemas vibrando noturnamente. Será este Não de Fayga, que vibra noturnamente, igual
ao Preto Goeldi? Um fenômeno parecido acontece com os dois: O Preto Goeldi perde o
estatuto monocromático: há mais cores no preto de Goeldi que se imagina. O mesmo
acontece com o Não de Fayga, mas, obviamente, suas manchas são diferentes. Enquanto
Goeldi procura fixar um sol noturno e denuncia as diferentes espécies de trevas; Fayga,
também nas palavras de Drummond, faz com que suas paisagens concentradas tenham a
113
cor ressoando nas coisas, como num coro de cores. Estas últimas palavras [coro de cores]
é uma bela definição para as manchas aquareladas das gravuras da artista. Os infinitos
esquemas vibrando noturnamete de Fayga, não são - repito - iguais ao sol noturno de
Goeldi, mas sempre os associamos por causa da força de suas imagens, mestres que são,
daquilo que Fernando Pessoa chamou de paisagem interior.
Drummond termina seu retrato de Fayga com belos versos reveladores:
(...)
[viver]
é ver sempre de novo
a cada forma
a cada cor
a cada dia
o dia em flor no dia.
(...)
Aquário de aquarelas,
mosaicos, bronzes,
nus,
arabescos de Klee,
piscina onde flutuam
sistemas e delírios
mansos de filósofos,
115
Mas é na segunda parte, O Living, que o poeta volta a citar Portinari, Bianco e
Fayga. Cita também Baumeister e Picasso. A referência a Willi Baumeister (1889-1955) é
116
interessante. Pouco citado, Baumeister foi um artista que sempre pesquisou várias
tendências, ou seja, seguiu e não seguiu muitas tandências. Múltiplo, teve uma visão ampla
da arte, desde a arte primitiva até as melhores lições das vanguardas européias. Um
drummondiano, portanto. É importante lembrar que muitas de suas obras foram queimadas
durante o período nazista.
Eis a segunda parte de Aspectos de uma casa, chamada O Living:
Sala de viver
117
na opção de viver
a graça de viver.
Parece continuaçao de Livraria. O poeta faz uma afirmação afetuosa aos quadros,
livros, poltronas, lâmpadas: eles vieram de muitas partes do mundo, para ouvir e participar,
sem ruído, das conversas do living, pelo poder de integração que trazem consigo. Mas para
isso temos de saber elegê-los: são nossas escolhas. Neste conjunto de conversas, quadros,
livros, poltronas e lâmpadas que compõem esta sala de viver está a graça de viver.
O livro Corpo, de 1984, tem ilustrações de Carlos Leão. Em O poder ultrajovem, de
1978, há um poema dedicado ao artista, chamado Desenhos de Carlos Leão:
Este pintor
118
Estes dois poemas têm em comum a atenção que Drummond dava a figura humana,
e, em particular, a figura feminina. Este trabalho já citou vários quadros de mulheres, que
chamaram atenção de Drummond. O pintor, ilustrador e caricaturista Augusto Rodrigues
(1913-1993), registrava como ninguém a figura feminina, com a sabedoria de quem
buscava realizar uma representação mais próxima da vida cotidiana da mulher retratada.
Este código artístico chamou atenção do poeta, a ponto dele exlamar: essas curvas dão
vontade de morrer de santo orgasmo e de beleza!
É em Corpo que há o longo poema Canções de Alinhavo, dividido em dez partes,
com dezenas de citações a amigos, situações, artistas, escritores, poetas... Drummond
parece filosofar sobre a vida, sobre os amigos, sobre a arte. Este poema parece sintetizar
uma característica importante em sua obra: a reflexão. O poeta medita constantemente e
cria uma poesia que pode ser comparada a Fernando Pessoa. Este Canções de Alinhavo os
aproxima ainda mais. Em sua parte IX, Drummond cita Antoine Watteau (1684-1721) e seu
quadro L'Indifferent:
[ram
levam consigo gestos de paixão, de morte e êxtase.
Mas os gestos pensados são mármore. O gato é mármore.
A vida toda espero desprender-se - um minuto! - a estátua
e a menos que me torne igualmente estátua, jamais saberei
o interior da mudez. A pouca ciência da vida
não esclarece os fatos inexistentes, muito mais poderosos
que a história do homem em fascículos. Datas, como vos des-
[prezo
em vossa arrogância de marcos da finitude.
Uma noite, em companhia de Emílio Guimarães Moura,
identifiquei o sertão. Eram duas pupilas de fogo
e hálito de terra seca em boca desdentada.
No livro seguinte Amar se aprende amando, de 1985, Drummond publica uma série
de poemas, como se fossem crônicas da época em que foram escritas. Não poderiam faltar
referências a exposições, artistas e eventos importantes.
Em A semana foi assim, com data de 18.X.1969, Drummond, num longo poema
rimado, reporta o que se passou naqueles idos. Tudo que lhe pareceu importante passou por
seu crivo, inclusive uma exposição de Antônio Bandeira (1922-1967), importante pintor
brasileiro, cuja maior característica era a liberdade com a qual lidava com imensas telas,
onde a matéria era submetida a um exercício livre de associações. Mestre do
Abstracionismo não-geométrico, Bandeira deixou uma obra consistente e coerente. A
exposição de Bandeira ocorria naqueles dias, misturada com vários outros fatos, como uma
vitória de seu querido Vasco. Na seleção de fatos que escolheu, uma vitória do Vasco era
tão importante quanto a exposição de Bandeira. Para Drummond, vida e arte se equivalem,
e ele aproveitava para elogiar Bandeira (pintura da mais fina) e lamentar sua morte precoce
(pintura é sina e prêmio de viver após a vida tão longe e tão depressa fenecida):
(...)
Olha o Dia do Mestre: o professor
(que do dinheiro ainda não viu a cor
em Minas) recebendo na bandeja
confetes de ternura e de ora-veja...
Em São Paulo calou-se o sax-barítono
de Booker Pittman: procuro um terno átono
para exprimir a falta , a grande pena
do som perdido, em meio à dor de Eliana.
E o sax-soprano, o clarinete? Música
de jazz, que jaz, silente, em flauta mágica.
121
Em outro poema da série, A Bolsa, o Bolso, de 9.V.1971, mais uma vez o poeta-
repórter escreve sobre o seu tempo. Num momento em que todos falavam sobre a Bolsa de
Valores (era a época do Milagre Econômico dos primeiros anos da década de 70) e sobre a
Bolsa de Arte, o poeta dava sua opinião:
(...)
(...)
No Salão Moderno
obras se desfazem
antes de exibidas.
Resumo:
são consumidas
em autoconsumo.
(...)
vê lá se vou ao teatro.
(...)
sacramento
123
do excremento.
(...)
Cartão de identidade
Acho bastante
o umbigo.
(...)
(...)
unidas em melodia.
(...)
(...)
Em Visão de Patchwork, o poeta, com humor crítico, cita Van Gogh e os objetos e
não objetos da Bienal, numa época em que a arte cada vez mais se tornava conceitual e as
instalações tomavam conta das discussões artísticas. Drummond deu sua opinião, como
sempre através da poesia: se juntarmos tudo num bolo de cor, som e expressão,
aguardaremos uma magnífica explosão:
125
tomem nota:
o canto gregoriano;
[de vanguarda;
e aguarde
Legendas para 12 estampas de Carnaval, pode ser definido como um longo poema
de 12 estrofes ou um conjunto de 12 pequenos poemas em sequência. O nome nos dá a
dica para a independência de cada estrofe (as 12 estampas). No nono poema (ou estrofe),
126
Portinari retorna. Foi com ele que iniciamos este trabalho e com ele terminamos, como
uma homenagem incidental aos dois mestres:
(1) Ávila, Afonso. "A Arte do Barroco e o Ciclo do Ouro". In Brasil 500 anos, A
Arte no Ciclo do Ouro. Org. Enock Sacramento. São Paulo: Byk, 2000, p16.
(2) Andrade, Mário de. "O Aleijadinho". In Aspectos das Artes Plásticas no
Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1984, pp 11-42.
(3) A lição do amigo. Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de
Andrade. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1988.
(4) Achcar, Francisco. Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Publifolha,
2000, p 71.
(5) Naves, Rodrigo. A Forma Difícil, p 206.
(6) Costa, Marcus Lontra. "A Gravura e a Arte Moderna". In Poética da
Resistência - Aspectos da Gravura Brasileira. São Paulo: SESI, 1994, p 12.
(7) Pessoa, Fernando. O eu profundo e os outros eus . Rio de Janeiro: Ed. Nova
Fronteira, 1980, pp 73-74.
(8) Justino, Maria José. O Banquete Canibal - A modernidade em Tarsila do
Amaral. Curitiba: Editora UFPR, 2002, pp 66-67.
(9) Idem, p 77.
(10) Idem , p 91.
(11) Victorino, Paulo. Sumário Biográfico. http://www.pitoresco.com.br
(12) Costa, Marcus Lontra, "A Gravura e a Arte Moderna", p 14.
(13) Andrade, Mário de. De Paulicéia Desvairada a Café - Poesias Completas.
São Paulo: Circulo do Livro, 1982.
127
7.0 - CONCLUSÃO
Os poemas comentados neste trabalho nem sempre figuram nas antologias, mesmo
naquela organizada pelo próprio Dummond. Apenas o poema dedicado a Portinari, A Mão,
foi escolhido para figurar na famosa Antologia Poética, que o poeta lançou quando já tinha
60 anos de idade, em 1962. Por isso, este pesquisador espera que este trabalho possa servir
como uma Antologia: são poemas belíssimos que merecem uma publicação autônoma para
compreensão da paixão de Drummond pelas Artes Plásticas, além de um excelente
mapeamento de várias décadas da arte brasileira.
Parece que há um elo unindo as obras e os artistas escolhidos por Drummond para
figurarem nas páginas de sua obra. Para Drummond, além da plasticidade, era importante
que o quadro tivesse uma história. Se para Argan há quadros em que uma pincelada é mais
importante que o próprio quadro, para Drummond, a aura de aventura humana que
emoldura um quadro era mais importante que suas pinceladas.
Assim, repetimos que Drummond mapeou a História da Arte, tinha opiniões claras
sobre ela, e nos últimos anos, apesar da incompreensão de algumas abordagens da chamada
Arte Contemporânea, procurou escrever ainda mais sobre artistas que admirava.
Além disso, Drummond sempre gostou de usar as cores em seus poemas. Neste
caso, falamos de cores reais, mesmo aquelas em que o poeta criava uma palavra para
enfatizar um aspecto, como o verdenatal ou o vermelhonírico.
Os poemas de Drummond que tentamos analisar, merecem atenção especial. É
difícil falar de Goeldi, por exemplo, sem citá-lo. Muitos dos artistas citados por
Drummond, foram traduzidos com precisão pelo poeta. Mesmo não sendo um crítico,
Drummond nos ajudou a compreender muitos artistas. Seu olhar era certeiro.
Devemos lê-lo com atenção.
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8.0 - BIBLIOGRAFIA
16 Ávila, Afonso. "A Arte do Barroco e o Ciclo do Ouro". In Brasil 500 anos, A
Arte no Ciclo do Ouro. Org. Enock Sacramento. São Paulo: Byk, 2000.
17 Baudelaire, Charles. Sobre a Modernidade: O Pintor da Vida Moderna.
Tradução de Suely Cassal. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1997.
18 Baudelaire, Charles. Poesia Completa. Tradução de Ivan Junqueira. Rio de
Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1988.
19 Beluzzo, Ana Maria de Moraes (Org.). Modernidade: Vanguardas Artísticas
na América Latina. São Paulo: Memorial/Unesp, 1990.
20 Bento, Antônio. "Cândido Portinari". In Aspectos da Arte Brasileira. Vários
autores. Rio de Janeiro: Funarte, 1981.
21 Callado, Antonio. "Uma revelação que a história oficial não registra". In Nossa
América - Revista do Memorial da América Latina no 2. São Paulo:
Memorial da América Latina, Maio/Junho de 1989.
22 Costa, Marcus Lontra. "A Gravura e a Arte Moderna". In Poética da
Resistência - Aspectos da Gravura Brasileira. São Paulo: SESI, 1994.
23 Cotrim, Álvaro. "Cervantes, Daumier, Portinari, Drummond". In Revista
Cultura no 35. Brasília: Ministério da Educação e Cultura, Julho/Dezembro de
1980.
24 Freud, S. Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância. Tradução de
Walderedo Ismael de Oliveira e Órizon Carneiro Muniz. Rio de Janeiro: Ed.
Imago, 1997.
25 Herkenhoff, Paulo. "A cor no Modernismo brasileiro - a navegação com muitas
bússulas". In XXIV Bienal de São Paulo. Catálogo. Volume Núcleo
Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismo. São Paulo: Fundação
Bienal de São Paulo, 1998.
26 Herkenhoff, Paulo. "Indelével e Fugaz". In Marcas do Corpo, Dobras da
Alma. XII Mostra da Gravura de Curitiba. Organizadores: Paulo Herkenhoff
e Adriano Pedrosa. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 2000.
27 Herkenhoff, Paulo. "Notas para o tema gravura e modernismo". In Catálogo da
XI Mostra de Gravura Cidade de Curitiba. Curitiba: Fundação Cultural de
Curitiba, 1995.
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