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CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE:


O POETA, O MUNDO E AS ARTES
PLÁSTICAS

João Coviello
2

"Não há guarda-chuva
contra o poema
subindo de regiões onde tudo é surpresa..".

(João Cabral de Melo Neto, "À Carlos


Drummond de Andrade")

"Pintura... Que sentido


tem a palavra arte, que me ensinam?

A selva ancilosada na parede


da sala de visitas
não me convence
ou vence.

No céu sem moldura,


o arco-íris, brinquedo-de-olhar, jogo de olhar
e de pegar com a mente,
breve se desfaz, e continua
em mim, fascinador: arte-maior.

("O Arco Sublime", C.D.A.)


3

Para Denise
(Hoje tenho um amor e me faço espaçoso)
4

RESUMO

O objetivo desta pesquisa foi analisar o vínculo de Carlos Drummond de Andrade


com as Artes Plásticas.
Há várias referências na obra poética e em prosa de Drummond a artistas, cores,
texturas, planos... mas percebe-se, principalmente, um jeito de olhar que o transforma num
Crítico ou num Historiador da Arte, já que os vários textos desde seu primeiro livro
(Alguma Poesia, 1930) transformaram sua obra num painel sobre a Arte (principalmente
brasileira) do Século XX.
É possível, também, a partir desses textos, perceber como Drummond compreendia
a Arte, e, por extensão, o Mundo. E como estava atento ao que de principal foi produzido
num período importante das Artes Plásticas brasileira.
Drummond buscava um diálogo com artistas deste período (importante para
consolidação da estética modernista), assim como fizeram Murilo Mendes e João Cabral de
Melo Neto. Mas em Drummond, numa escala maior.
5

SUMÁRIO

RESUMO..................................................................................................... 4
SUMÁRIO....................................................................................................5
1.0 - INTRODUÇÃO....................................................................................6
2.0 - AS VÁRIAS PORTAS DA PINTURA................................................8
3.0 - PORTINARI: CONTRA O TRISTE MUNDO FASCISTA..............13
4.0 - GOELDI: O PESQUISADOR DA NOITE MORAL.........................35
5.0 - POESIA EM EXPOSIÇÃO.................................................................47
6.0 - CORES, LINHAS, PLANOS E LUZES..............................................85
7.0 - CONCLUSÃO...................................................................................127
8.0 - BIBLIOGRAFIA...............................................................................128
6

1.0 - INTRODUÇÃO

Um poema de João Cabral de Melo Neto, publicado no livro Museu de Tudo define,
talvez, a relação que os poetas tem com as Artes Plásticas. Esse poema chama-se "A Lição
de Pintura" e seus principais versos são os seguintes: "...tem na tela, oculta, uma porta/ que
(1)
dá a um corredor/ que leva a outra e muitas outras". Com Carlos Drummond de Andrade
este sentimento não foi diferente. Assim veremos.
Baudelaire usou o desenhista, aquarelista e gravador Constantin Guys (1805-1892),
para colocar o termo modernidade na ordem do dia. Constantin Guys é o G. que Baudelaire
descreve em "O Pintor da Vida Moderna". Em Guys, exaltou o furor do lápis e o poema
composto de mil croquis.(2) Para Baudelaire, o artista deveria agir com rapidez para não
deixar escapar o instante exato. Deveria ser o homem do mundo e ter a multidão como
universo. A modernidade estava nas ruas. O poeta percebeu em Guys uma singularidade que
os críticos não perceberam: "Durante dez anos desejei travar conhecimento com G., que é,
por temperamento apaixonado por viagens e muito cosmopolita. Sabia que durante muito
tempo ele fora correspondente [de guerra] de um jornal inglês... (...). Vi, desde essa época,
uma quantidade considerável desses desenhos improvisados nos próprios locais e pude ler
assim uma crônica minuciosa e diária da campanha da Criméia, melhor do que qualquer
(3)
outra". No livro As Flores do Mal, Baudelaire dedicou à Guys um poema chamado "Sonho
Parisiense": "Desta fantástica paisagem,/ Que ninguém viu jamais um dia,/ Esta manhã ainda
a imagem,/ Vaga e longínqua, me extasia". (4)
Essa necessidade de ter o outro para refletir e dialogar também encontraremos em
três grandes poetas brasileiros: Cabral de Melo Neto, Murilo Mendes e Carlos Drummond de
Andrade, foco desta pesquisa. Cabral sempre escreveu sobre pintores, seja Paul Klee, Cícero
Dias ou Vicente do Rego Monteiro.(5) Murilo Mendes escreveu um livro sobre Ismael
Nery(6), sobre Ouro Preto(7), teve seu retrato pintado por Guignard e foi um colecionador com
gosto sofisticado, como demonstra o acervo que formou durante a vida. E percebeu o quanto
é importante o diálogo entre a poesia e a pintura: "Que o instrumento básico da poesia é a
linguagem, não há a menor dúvida; tornando-se supérfluo mencionar o conhecido diálogo de
Mallarmé com Degas". (8)
7

Estes olhares agudos que enumeramos até agora, revelam que os poetas tem um
senso de observação que difere de nós, simples mortais. No mínimo, percebem coisas que
passam despercebidas. Agem da mesma forma que Sherlock Holmes, que é capaz de
desvendar um crime descobrindo cinzas de charuto no canto da sala, que passam
despercebidas por todos (mesmo quando as cinzas estão no meio da sala). A razão de tanta
sofisticação crítica destes poetas é a disponibilidade para o diálogo da qual falou Murilo
Mendes.
Ninguém dialogou tanto com a pintura e com os pintores quanto Carlos Drummond
de Andrade. Há muitas referências em sua imensa obra, e a partir dessas referências é
possível perceber suas idéias estéticas; mas, muito mais que perceber suas idéias estéticas, é
possível perceber que a partir da cor ou da textura, Drummond via o mundo.
Porém, Drummond é um poeta e um intelectual tão complexo e especial, que tudo
que se escrever, mesmo que absolutamente correto, poderá estar errado.

NOTAS
(1) Melo Neto, João Cabral de. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Ed. José
Olympio, 1989, p.307.
(2) Baudelaire, Charles. Sobe a Modernidade: O Pintor da Vida Moderna.
Tradução de Suely Cassal. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1997, pp.32 e 38.
(3) Idem, p.16 (Grifo de Baudelaire).
(4) "De ce terrible paysage,/ Tel que jamais mortel n'en vit,/ Ce matin encore
l'image,/ Vague et lointaine, me ravit". "Rêve Parisien", "Sonho Parisiense",
poema CII de "As Flores do Mal" de Baudelaire, dedicado à Constantin Guys.
Tradução de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1988, p. 187.
(5) Melo Neto, João Cabral. Antologia Poética...
(6) Mendes, Murilo. Recordações de Ismael Nery. São Paulo: Edusp, 1996.
(7) Mendes, Murilo. Antologia Poética. Seleção de João Cabral de Melo Neto. Rio
de Janeiro: Ed. Fontana/INL, 1976. (Há uma cumplicidade, que vai além da
mera afinidade, entre Drummond, Cabral e Murilo Mendes, que chega ser
emocionante, como é possível perceber nesta Antologia organizada por Cabral,
ou nos poemas que cada um escreveu em homenagem aos outros. Eram amigos,
sem dúvida.)
(8) Mendes, Murilo. "A Poesia e o nosso Tempo". In Suplemento Dominical do
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 25 de Julho de 1959.
8

2.0 - AS VÁRIAS PORTAS DA PINTURA

(1)
Em 1947, Drummond enviou à revista Joaquim , de Curitiba, um artigo sobre o
"Manifesto Invencionista", de um grupo de vanguarda argentino chamado Grupo Arte
Concreto-Invención. Este Manifesto fora publicado originalmente na revista Arte Concreto,
de Buenos Aires, em seu primeiro número, 1946. (2)
Este artigo de Drummond nos fornece pistas sobre suas idéias estéticas e explica
algumas de suas escolhas.
O Grupo "Arte Concreto-Invención" foi influenciado pelo Movimento Concreto de
Max Bill e Hans Arp, que mantinha uma disputa estética com a arte figurativa e com a arte
abstrata de fundo lírico. Este Manifesto deixou Drummond indignado, principalmete pelo
tom agressivo de suas frases:

La era artística de la ficción representativa toca a su fin. El hombre se torna de más


en más insensible a las imágenes ilusorias. (...)
La estética científica reemplazará a la milenaria estética especulativa e idealista.
Las consideraciones en torno a la naturaleza de lo Bello ya no tienem razón de ser. La
metafísica do Bello há muerto por agostamiento. Se impone ahora la física de la belleza.
No hay nada esotérico en el arte; los que se pretenden 'iniciados' son unos falsarios. (...)
Ni buscar ni Encontrar: Inventar. (3)

O Manifesto Invencionista foi redigido por Tomás Maldonado, Arden Quin e pelo
poeta Edgar Bayley. Faziam, também, parte do grupo Gyula Kosice, Martin Blaszko,
Alfredo Hlito, Manuel Espinosa, Enio Iommi, Cláudio Girola e Raúl Lozza, entre outros.
Maldonado e Iommi chegaram a lecionar na Escola Superior da Forma, em Ulm,
Alemanha, quartel-general da Arte Concreta, idealizada por Max Bill, em 1950, nos moldes
que Gropius criou a Bauhaus. Maldonado chegou a ser seu Diretor, substituindo Max Bill.
Lá também estudaram os brasileiros Geraldo de Barros, Almir Mavignier e
Alexandre Wollner, entre outros. Aluísio Carvão chegou a ser artista visitante em 1960. (4)
A Arte Construtivista vinha ganhando terreno em todo mundo, e no Brasil também
havia uma tendência para a radicalização entre arte figurativa e arte abstrata, que atingiria o
9

ápice na década de 50, com a realização da 1a Bienal de São Paulo, em 1951, e os


lançamentos dos Manifestos Ruptura (1952), Atelier Abstração (1956) e Neoconcreto
(1959).
O artigo de Drummond foi publicado na revista curitibana Joaquim (no 9 de Março
de 1947), cujo Diretor era Dalton Trevizan. Em sua página 12, publicou-se o Manifesto
Invencionista, juntamente com reproduções em preto e branco de Jorge Souza, Primaldo
Monaco, Raul Lozza e Tomas Maldonado. Na página 13, ao lado do Manifesto, foi
publicado o artigo de Drummond, com o irônico título de Invencionismo.
Este texto é útil para perceber o que Drummond achava de determinadas vanguardas
da primeira parte do século XX e marcou profundamente a compreensão que tinha dos
movimentos de renovação que surgiram posteriormente.
Verdadeira súmula de suas escolhas estéticas, o texto Invencionismo é uma análise
sobre a transição pelo qual passava o Modernismo. Apesar do tema (um grupo de
vanguarda argentino), o pano de fundo era o processo brasileiro. Drummond antecipou as
polêmicas que se seguiram após a 1a Bienal de São Paulo, em 1951, e continuaram por toda
década de 50.
O texto é de 1947, antes, portanto, da criação do Museu de Arte Moderna de São
Paulo - MAM, em 1948. E antes da histórica exposição de Max Bill no MASP, em 1950, e
da consagração das tendências abstrato-geométricas com a Bienal de 1951. Desta forma,
este artigo explica a escolha por Portinari e Goeldi, e antecipa os embates entre figurativos
e abstratos, que se tornaram épicos durante e após a 1a Bienal.
Drummond começa o seu artigo reclamando que notícias tão próximas, como estas
de Buenos Aires, não obtêm eco no Brasil, já ocorrências como o existencialismo, que para
ele já é uma "velha notícia, servida a paladares cansados ou inexperientes", acabam
repercutindo.
Após este preâmbulo, Drummond avisa que esta "idéia nova" (assim entre aspas),
não deixa de apresentar-se como um "ismo" (também entre aspas). Ainda com fina ironia,
chama o grupo de "seita":

Num dos primeiros documentos impressos da seita - um caderno que tem dois aros
de metal à guisa de grampo - Kósice expõe ainda com incerteza os seus fundamentos e fins.
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Atento aos movimentos artísticos do século, Drummond fornece uma análise da


gênese abstrata (percebe-se que o poeta era um leitor atento de uma literatura especializada
sobre arte). Comentando as palavras do Manifesto sobre a necessidade de reconstrução do
mundo através da Arte Concreta, Drummond assim escreveu:

Estas últimas palavras fornecem-nos a filiação do movimento argentino, que vem a


ser nada mais nada menos que uma continuação do pensamento de Kandinski. Como se
sabe, coube a este pintor russo, radicado na Alemanha e ultimamente exilado na França,
onde morreu a pouco, aprofundar as conquistas da arte moderna no campo da abstração,
de que usou largamente. Escrevendo para "XX Siécle", em 1938, Kandinski empregava as
mesmas palavras que Bayley em 1945: "a pintura chamada abstrata ou não-figurativa, e
que eu prefiro chamar concreta..".; "o meu desenvolvimento do figurativo ao abstrato
(concreto, de acordo com a minha terminologia - mais exata e mais expressiva que a
habitual - pelo menos na minha opinião...)" E o mesmo Kandinski recorda que essa
evolução já era visível nas gravuras de madeira de "Klange", livro publicado em Munich,
ano da graça de 1913: eis uma certidão de idade. [Os grifos constam no texto de
Drummond, assim como a grafia com final i no nome Kandinsky.]

Insistimos que este texto é a chave para a compreensão da escolha de Drummond


por um tipo de arte como a de Portinari ou Goeldi. O expressionismo influenciou não
apenas Drummond, mas todo o meio intelectual brasileiro, que sofria a influência de um
período conturbado politicamente. O expressionismo supria a demanda por uma arte
politicamente comprometida. Depois de um período longo de ditadura (o Estado Novo) e a
tragédia da II Grande Guerra, os artistas sentiam a urgência de participação.
Portinari era o artista com um tipo de representação certa no momento certo. Afinal,
depois da barbárie nazista, produzir uma arte que parecia (naquele momento) alienada das
coisas do mundo, deixava todos de cabelo em pé. Algo parecido foi sentido pelos artistas
dos anos 70, quando o mundo foi dividido entre artistas engajados e alienados, em função
da necessidade de denuncia contra a ditadura. Mesmo a arte mais formalista, deveria ter um
11

conteúdo político tradicional. A luta pela especificidade da arte, como podemos ver, tem
idas e vindas freqüentes.
O receio de uma arte individualista explica, ainda mais, as idéias estéticas de
Drummond:

O invencionista pretende alcançar a comunhão social pela arte pura. Não há


evidentemente atitude intelectual mais individualista que esta - e a negação extrema do
individualismo, individualismo é.

Para Drummond, Portinari e Goeldi são as antíteses do individualismo. Esta é a base


ética que repousa todo seu pensamente estético. A crítica ao individualismo é percebida nos
principais livros políticos de Drumomnd ou nos dois livros que estão seus principais
poemas de cunho social: Sentimento do Mundo (1940) e A Rosa do Povo (1945).
A conclusão do artigo é exemplar, pois resume algumas preocupações de
Drummond e antecipa, de certa forma, o Manifesto Neoconcreto, de 1959, na crítica que
faz à arte meramente conceitual. Assim está no Manifesto Neoconcreto:

A expressão neoconcreto indica uma tomada de posição em face da arte não-


figurativa "geométrica" (neoplasticismo, construtivismo, suprematismo, escola de Ulm) e
particularmente em face da arte levada a uma perigosa exacerbação racionalista. (...) O
racionalismo rouba à arte toda a autonomia e substitui as qualidades intransferíveis da
obra de arte por noções da objetividade científica: assim os conceitos de forma, espaço,
tempo, estrutura - que na linguagem das artes estão ligados a uma significação existencial,
emotiva, afetiva - são confundidos com a aplicação teórica que deles faz a ciência. (5)

Assim termina o artigo de Drummond:

A estética invencionista deve apresentar obras assexuadas, de onde a curva esteja


proscrita, porque a curva, por seu sensualismo, nos lembra a figura, a anedota, a
circunstancia subjetiva, que não interessa ao puro conceitualismo. Por sinal que foi aí que
se manifestou a cisão entre os estetas: em defesa da linha curva (e quem, entre nós
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himanos, não a defenderia?) separou-se o sub-grupo Madi (palavra inventada, como


convinha), e que, posto advogue uma arte "matemática, fria, dinâmica, cerebral e
dialética", recomenda em francês: "É preciso manter alerta os sentidos".
Este em linhas gerais, o "novo humanismo" que nos vem do Prata, e que Bejarlia
considera a primeira tendência de vanguarda oriunda da América Espanhola. Mas receio
muito que seja original e nada haja inventado.

(1) Drummond de Andrade, Carlos. "Invencionismo". In Revista Joaquim no 9,


Março de 1947, Curitiba, p 13. (Os trechos não citados são deste artigo)
(2) Manifesto Invencionista. Grupo Arte Concreto-Invención. In Modernidade:
Vanguardas Artísticas na América Latina. Ana Maria de Moraes Belluzzo,
Organizadora. São Paulo: Memorial/Unesp, 1990, pp 283 a 285.
(3) Idem.
(4) Um histórico bastante detalhado deste período, encontra-se num quadro
cronológico, desenvolvido por Valéria Piccoli (Cronologia 1945-1964),
publicado no livro Arte Construtiva no Brasil - Coleção Adolpho Leirner.
Vários autores. Edição bilingüe português-inglês. Organizado por Aracy
Amaral. São Paulo: Companhia Melhoramentos/DBA Artes Gráficas, 1998, pp
277 a 303.
(5) Manifesto Neoconcreto. In Arte Construtiva no Brasil - Coleção Adolpho
Leirner, pp 270-275. (Este Manifesto foi publicado originalmente no Jornal do
Brasil, Rio de Janeiro, na edição de 22 de Março de 1959 de seu Suplemento
Dominical. Apesar de assinado por um grupo de artistas, entre eles Amilcar de
Castro, Lygia Clark e Lygia Pape, o Manifesto foi escrito pelo poeta Ferreira
Gullar.)
13

3.0 - PORTINARI: CONTRA O TRISTE MUNDO FASCISTA

No livro Sentimento do Mundo, de 1940, há um poema dedicado a Portinari, A Noite


Dissolve os Homens.(1) Não apenas este poema, mas todo o livro tem uma preocupação
social importante. Não por acaso, o poema é dedicado a Portinari, pintor social por
excelência, e que tem a mesma visão de mundo de Drummond: a arte deve representar toda
tensão do estar-no-mundo. Não por acaso, o livro se chama Sentimento do Mundo.
No poema dedicado a Portinari, há uma preocupação enorme com o mundo:

A NOITE DISSOLVE OS HOMENS

A PORTINARI

A noite desceu. Que noite!


Já não enxergo meus irmãos.
E nem tampouco os rumores
que outrora me perturbavam.
A noite desceu. Nas casas,
nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos,
a noite espalhou o medo
e a total incompreensão.
A noite caiu. Tremenda,
sem esperança... Os suspiros
acusam a presença negra
que paralisa os guerreiros.
E o amor não abre o caminho
na noite. A noite é mortal,
completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens,
diz que é inútil sofrer,
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a noite dissolve as pátrias,


apagou os almirantes
cintilantes! nas suas fardas.
A noite anoiteceu tudo...
O mundo não tem remédio...
Os suicidas tinham razão.

Aurora,
entretanto eu te diviso, ainda tímida,
inexperiente das luzes que vais acender
e dos bens que repartirás com todos os homens.
Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva
[noturna.
O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus
[dedos,
teus dedos frios, que ainda não modelaram
mas que avançam na escuridão como um sinal verde e
[peremptório.
Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza de tua vinda.
O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se
[enlaçam,
os corpos hirtos adquirem uma fluidez,
uma inocência , um perdão simples e macio...
Havemos de amanhecer. O mundo
se tinge com tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para colorir tuas pálidas faces, aurora.
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O pessimismo é compreensível (o livro é de 1940), mas há esperança na Aurora,


símbolo de transformação do mundo. Portinari será o parceiro ideal de Drummond para
entendermos sua poesia, e Drummond será o parceiro ideal de Portinari para entendermos
sua pintura, irmanados que estavam no sonho utópico de uma arte, se não transformadora
do mundo, o que seria um projeto ingênuo demais para o sofisticado Drummond, mas que
pelo menos retratasse a inquietação do artista. Mas não podemos esquecer que as questões
ideológicas misturavam-se com as questões artísticas da época. A década de 30 e 40 foram
agitadas quanto a necessidade de uma arte participativa.
No livro O Observador no Escritório, que contém trechos do diário que Drummond
mantinha, ele assim escreve, em março de 1945, sobre Portinari (em texto batizado como
"A Família Portinari"):

Jantar em casa de Portinari, no Cosme Velho. Depois da mesa, apresentação de


seus últimos quadros. Uma enorme Água, com formas verdes, roxas em claro-escuro e
vermelhas, indicando um rumo novo do artista. Interessam-me particularmente a tela das
Lavadeiras e outra em que surgem um morto e um cachorro, entre figuras desoladas, de
uma beleza trágica. Chegam os pintores Djanira e Milton Dacosta, e um funcionário
falante do Banco do Brasil, vindo dos Estados Unidos. Depois, aparecem Marques Rebelo
e Elza e o escritor espanhol Francisco Ayala. Portinari é o centro de atenção e fascínio.(2)

O fascínio por Portinari mostra a paixão de Drummond por uma arte marcada,
principalmente, pela comunicação com o espectador. A pintura deve tocar quem a vê, como
a poesia deve tocar no quotidiano de quem a lê. Deve conter o sentimento do mundo, do
qual o artista (o poeta ou o pintor) deve ser o tradutor.

...

No livro Lição de Coisas, de 1962, Drummond publica o poema A Mão, verdadeira


elegia a Portinari. Como vimos, em 1940, o poeta havia publicado o poema A noite
dissolve os homens, também dedicado a Portinari. Mas neste A Mão, Drummond dedica-se
a interpretar o artista, através de um procedimento diferente: além da homenagem, ele faz
16

uma análise extensa de Portinari. Assim, o poema caminha para além da elegia, e
transforma-se numa análise primorosa do trabalho de Portinari e de sua relação com a cor.
Publicado no ano em que Portinari morreu, A Mão é a melhor homenagem que o
artista recebeu, porque Drummond o explicou como ninguém. Além de análise, podemos
chamar A Mão de uma quase-biografia:

A MÃO

Entre o cafezal e o sonho


o garoto pinta uma estrela dourada
na parede da capela,
e nada mais resiste à mão pintora.
A mão cresce e pinta
o que não é para ser pintado, mas sofrido.
A mão está sempre compondo
módul-murmurando
o que escapou à fadiga da Criação
e revê ensaios de formas
e corrige o oblíquo pelo aéreo
e semeia margaridinhas de bem-querer no baú dos
[vencidos.
A mão cresce mais e faz
do mundo-como-se-repete o mundo que telequeremos.
A mão sabe a cor da cor
e com ela veste o nu e o invisível.
Tudo tem explicação porque tudo tem (nova) cor.
Tudo existe porque foi pintado à feição de laranja
[mágica
não para aplacar a sede dos companheiros,
principalmente para aguçá-la
até o limite do sentimento da terra domicílio do homem.
17

Entre o sonho e o cafezal


entre guerra e paz
entre mártires, ofendidos,
músicos, jangadas, pandorgas,
entre roceiros mecanizados de Israel
a memória de Giotto e o aroma primeiro do Brasil
entre o amor e o ofício
eis que mão decide:
Todos os meninos, ainda os mais desgraçados,
sejam vertiginosamente felizes
como feliz é o retrato
múltiplo verde-róseo em duas gerações
da criança que balança como flor no cosmo
e torna humilde, serviçal e doméstica a mão excedente
em seu poder de encantação.

Agora há uma verdade sem angústia


mesmo no estar-angustiado.
O que era dor é flor, conhecimento
plástico do mundo.
E por assim haver disposto o essencial,
deixando o resto aos doutores de Bizâncio,
bruscamente se cala
e voa para nunca-mais
a mão infinita
a mão-de-olhos-azuis de Cândido Portinari.

Os quatro primeiros versos mostram o início de vida e o início do percurso artístico


de Portinari. Nascido em Brodowski, em 1903, era filho de um casal de imigrantes italianos
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que chegaram ao interior de São Paulo ainda jovens, com o objetivo de trabalhar numa
grande fazenda produtora de café, como era comum no final do século XIX.
Surpreendendo os professores e o vigário local com o talento para o desenho e a
pintura, é indicado para acompanhar os trabalhos de ornamentação da fachada da nova
igreja, tornando-se, assim, ajudante do pintor Vitório Gregolini, responsável pelo trabalho.
A partir de então, como disse o poeta, nada mais resiste à mão pintora do artista.

A mão cresce e pinta


o que não é para ser pintado mas sofrido.

É de sua Brodowski que Portinari tirará seus temas cheios de vida. Pela região, em
que tudo era movido pelo café, transitavam trabalhadores de todos os tipos. Mesmo longe,
o artista decide pintá-los, mesmo não sendo temas pictóricos, como escreve Drummond. A
decisão de pintar trabalhadores e explorados, que não podem ser pintados, gerará uma
disputa que prossegue até hoje, como veremos. Drummond não o via como um populista,
mas como um artista que amadurece e cuja mão está sempre trabalhando:

A mão está sempre compondo


módul-murmurando
o que escapou à fadiga da Criação
e revê ensaios de formas
e corrige o oblíquo pelo aéreo
e semeia margaridinhas de bem-querer no baú dos
[vencidos.

Esta mesma mão continua compondo o que escapou da Criação. Portinari, nesta
fase, ainda retoca a realidade, ainda usa o módul-murmurante para corrigir o oblíquo pelo
aéreo. Ainda, como quase um clássico, semeia margaridinhas no baú dos vencidos. Os
mesmos vencidos que estarão em seus trabalhos futuros, para horror do triste mundo
fascista.
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A mão cresce mais e faz


do mundo-como-se-repete o mundo que telequeremos.
A mão sabe a cor da cor
e com ela veste o nu e o invisível.
Tudo tem explicação porque tudo tem (nova) cor.
Tudo existe porque foi pintado à feição de laranja
[mágica
não para aplacar a sede dos companheiros,
principalmente para aguçá-la
até o limite do sentimento da terra domicílio do homem.

Mas a mão cresce, e Drummond vislumbra uma nova fase de Portinari: o mundo-
como-se-repete se transforma em um mundo que telequeremos. A utopia portinariana e
drummondiana não quer o mundo repetido, ainda mais para uma geração que viveu a
guerra. No poema A noite dissolve os homens, Drummond, lembrando a guerra, escrevia
sobre os rumores que outrora o perturbavam e sobre a aurora que divisava, mesmo que
tímida. Neste A Mão, confiante em relação a modernidade e usando uma linguagem própria
da época, fala de um mundo que telequeremos.

A mão sabe a cor da cor


e com ela veste o nu e o invisível.

Mais uma vez a mão do artista é especial, pois é capaz de perceber a cor da cor.
Uma metáfora sutil para nos lembrar que o artista é capaz de tornar visível uma cor
diferente, posto que é a cor da cor. Assim, nos perguntamos qual é a cor da cor marrom,
por exemplo? Ou qual é a cor da cor vermelha? É com essas cores diferentes de todas que
existem, que Portinari veste o invisível. E o invisível para Drummond tem explicação:

Tudo tem explicação porque tudo tem (nova) cor.


20

O invisível, vestido pela cor da cor, ganha explicação porque Portinari criou uma
nova cor. Eis a novidade do artista, a criação de uma nova cor. Uma cor, portanto, que
existe, porque foi criada pelo artista e que torna visível o que era invisível. Drummond nos
transporta para a célebre definição de Paul Klee: "A arte não reproduz o visível, mas torna
visível". (3) Esta relação preciosa entre arte e realidade parece irmã-gêmea dos versos:

A mão cresce e pinta


o que não pode ser pintado mas sofrido.
(...)
A mão está sempre compondo
(...)
o que escapou à fadiga da Criação

A cor da cor que veste o nu e o invisível, parece mais próximo da definição de Klee
sobre a prevalência do tornar visível sobre o ver. Esta mágica de que fala Drummond,
capaz de aguçar a sede dos companheiros ao invés de aplacá-la, vai até o limite do
sentimento da terra, domicílio do homem.
O que quer dizer Drummond sobre o sentimento da terra, domicílio do homem?
Pode significar que sentir a terra é tão importante quanto tê-la. E neste sentido terra tem o
significado próprio para o início dos anos 60: terra é terra mesmo. Chão. Lugar para
trabalhar. Ligação afetiva com o meio em que se vive. Questão cara para a geração de
Portinari e Drummond, que tanto lutou pela reforma agrária. Mas pode, também, ter o
sentido de mundo. Planeta. A terra é azul, de Gagarin, tão caro naqueles idos.
De qualquer forma, o sonho utópico de Portinari aguça a sede dos companheiros,
como uma laranja-mágica capaz de criar cores novas para um mundo novo. Mas como
Portinari não é um simples artista, ele cria cores novas para pintar o mundo. Estas idéias
ficam mais claras nos versos que dão continuidade ao poema:

Entre o sonho e o cafezal


entre guerra e paz
entre mártires, ofendidos,
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músicos, jangadas, pandorgas,


entre roceiros mecanizados de Israel
a memória de Giotto e o aroma primeiro do Brasil
entre o amor e o ofício
eis que a mão decide:

Entre o sonho (a utopia) e o cafezal (cravado na alma do artista); entre guerra e paz
(referência ao painel que pintou para a sede da ONU, em 1952); entre mártires, ofendidos,
músicos, jangadas e pandorgas (referência ao painel Tiradentes, aos trabalhadores
ofendidos e as várias personagens que pintou); entre os roceiros mecanizados de Israel
(referência à serie de desenhos Israel e às exposições que realizou em Tel Aviv, Haifa e Ein
Harod), a memória de Giotto (referência a influência do renascimento italiano sobre o
artista) e o aroma primeiro do Brasil (referência à obra A primeira Missa no Brasil); entre o
amor e o ofício (referência à dedicação apaixonada com que Portinari se entregou ao
trabalho)... eis que mão decide:

Todos os meninos, ainda os mais desgraçados,


sejam vertiginosamente felizes
como feliz é o retrato
múltiplo verde-róseo em duas gerações
da criança que balança como flor no cosmo
e torna humilde, serviçal e doméstica a mão excedente
em seu poder de encantação.

Para Drummond, a utopia se realiza: todos os meninos serão vertiginosamente


felizes, como feliz viveu o menino entre o cafezal e o sonho. Fruto do poder de encantação
da mão do artista.

Agora há uma verdade sem angústia


mesmo no estar-angustiado.
O que era dor é flor, conhecimento
22

plástico do mundo.
E por assim haver disposto o essencial,
deixando o resto aos doutores de Bizâncio,
bruscamente se cala
e voa para nunca-mais
a mão infinita
a mão-de-olhos-azuis de Cândido Portinari.

Uma característica comum nos poemas sobre artes plásticas de Drummond (e não só
nesses), é a polarização de extremos, que o poeta parece compreender como ninguém. Esta
característica aparecera, por exemplo, no poema dedicado a Goeldi, que veremos adiante.
Este Raio X da alma, com suas pulsões contraditórias, é uma das virtudes da poesia de
Drummond. Neste A Mão não é diferente. Triste pela partida do amigo-artista, o poeta
percebe que agora há uma verdade sem agústia, mesmo no estar-angustiado e o que era
dor, agora é flor: conhecimento plástico do mundo. Assim, para o poeta, Portinari era
capaz de captar o mundo a partir do conhecimento plástico que tinha dele, ou seja,
materializar o mundo num espaço de pano pintado.
Mas aquele que sempre se preocupou com o essencial, deixando o resto para os
doutores de Bizâncio, como ironicamente escreveu Drummond (talvez pensando nos
críticos de Portinari), bruscamente se cala. Porém, se Portinari se calou em 1962 (voou para
o nunca-mais), sua mão infinita, sua mão-de-olhos-azuis nos deixou o essencial.
Percebe-se que Drummond associa a mão do artista (que dá título ao poema) aos
seus olhos. Ver e pintar são a mesma coisa, percebe o poeta. A mão que pinta e o olho que
vê, são os instrumentos do artista, e, na verdade, um só instrumento: uma mão-de-olhos-
azuis.

...

Descrevendo o escritório do poeta, Humberto Werneck relata como Drummond


decorou seu lugar mais sagrado:
23

A parede branca às suas costas foi durante muitos anos dominada por um nu
feminino do pintor italiano Enrico Bianco, seu amigo, assistente de Candido Portinari;
ladeando esse quadro, um retrato de Dolores por outro artista amigo, o russo Dmitri
Ismailovitch, e fotos do coronel Carlos de Paula Andrade, pai do escritor. Em outra parede
havia uma cena de tourada, presente com dedicatória do poeta espanhol Rafael Alberti.
Um dia Drummond resolveu transferir a obra de Bianco para o corredor, e o neto Pedro
Augusto quis saber pôr quê. Não ficava bem, explicou Carlos, deixar entre a mulher e o pai
uma senhorita em pêlo. (4)

Indiretamente, Portinari sempre o acompanhou. Até nos últimos escritos Portinari


estava presente. No livro Arte em Exposição (chamo de livro, já que Drummond o
concebeu como um livro autônomo, apesar de incorporado a Farewell; analisaremos
adiante, em capítulo exclusivo, pela importância desse texto para a compreensão deste
trabalho), há um pequeno poema dedicado e inspirado em um trabalho de Portinari,
chamado Tiradentes, com apenas quatro versos:

Fez-se a burocrática justiça.


O trono dorme invencível vingado.
Postas de carne do sonhador
referem o caminho das minas.(5)

Quatro versos, apenas, mas o suficiente para descrever o quadro de Portinari.


"Escritores modernos são homens comuns de fala coloquial", escreveu Silviano Santiago,
sobre Drummond, no Posfácio de Farewell. Pintores modernos são homens comuns que
utilizam uma sintaxe comum em seus quadros, poderíamos dizer de Portinari. A afinidade
entre as sintaxes de Drummond e Portinari, está na busca de contato com o outro (o
espectador ou o leitor). Complementa Santiago:

A comunicabilidade com o outro pela palavra poética, no caso, com o leitor, é


conquista e fracasso do individualismo e é, ao mesmo tempo, ideal ascético de exigência
introspectiva e de simplicidade humana, vale dizer, de responsabilidade cidadã e de
24

aversão ao culto do escritor como alguém que, por exercer uma profissão dita nobre,
difere dos outros. (6)

Irmanados na linguagem, Drummond e Portinari se unem, também, na busca de


simplicidade. "Simplicidade é, pois, a forma mais valente, vigorosa e audaciosa do
artesanato poético". (7)
Ética e estética se unem nos dois Mestres. A arte é um exercício ético em que conta
a relação com o mundo. A arte, para Drummond e Portinari, é o campo ético por
excelência, pois como a Ética, a Arte é uma reflexão sobre as ações humanas. A "arte é
uma fazer", como queria Argan, que constrói coisas que o tempo não traga, que cria valores
e se pergunta a todo instante sobre o sentido do agir humano. (8)
Drummond não é um Crítico, decerto, mas tinha um olhar original. Portinari é alvo
de revisões constantes, num verdadeiro Fla-Flu da crítica. A metáfora futebolística pode
parecer descabida, mas à propósito de Arte em Exposição, Silviano Santiago escreve que
raramente Drummond "aprecia o todo do quadro, ou seja, os diversos momentos da sua
composição. Trata-se antes de um olho crítico seletivo e, principalmente, obsessivo". (9)
Discordamos. Drummond via o todo e de modo algum seu olhar é seletivo ou
obsessivo. Drummond não é Drummond por acaso, ele usa um viés aparentemente simples,
mas altamente reflexivo.
Voltemos a metáfora futebolística. Daniel Piza joga luz sobre a questão futebolística
e, de quebra, sobre o Fla-Flu crítico: "Mas o pior é que eles [torcedores e analistas] tinham
algo em comum [sobre o escrete canarinho pentacampeão]: cada um via o que queria ver,
(10)
não o que ocorria em campo". Como buscar uma compreensão crítica e decifrar
aspectos que, as vezes, até o próprio autor não percebe, sem tornar-se um torcedor, é o
principal desafio do critico.
Alvo de criticas que o acusavam de um diluidor da fase clássica de Picasso, do
Muralismo mexicano e do Renascimento italiano, Portinari tinha uma visão estética que o
aproximava do engajamento político. O Realismo foi a forma que encontrou para realizar
seu projeto de aproximar-se de temas brasileiros. Esbarrou, sem dúvida, na técnica
acadêmica, que dominava como ninguém, já que buscou a excelência técnica desde criança.
25

Profundo conhecedor dos segredos artesanais, procurou usá-los com o objetivo de incluir a
Arte como agente de mudança na consciência do espectador.
Portinari é uma questão crítica hoje, ou melhor, um problema para o critico. Antônio
Bento, crítico e historiador que conviveu com o artista, o considera "nosso maior pintor
(11)
social". Segundo seu depoimento, Bento o conheceu em 1924, quando ambos eram
ainda estudantes, e revela o quanto Portinari era rigoroso com a aprendizagem e com o
trabalho. Este rigor artesanal, sua origem simples e sua carreira no exterior, o
transformaram num ídolo para a segunda geração modernista, principalmente aquela saída
também dos Liceus de Artes e Ofícios, e sem a oportunidade de estudar em Paris, como os
artistas da primeira geração. Aprendendo principalmente com as raras reproduções que
chegavam em suas mãos, esses jovens artistas tinham em Portinari um exemplo mais que
positivo, mas que trabalhava muito realizando retratos encomendados. Drummond também
nunca viajou, a não ser as raras vezes para Buenos Aires, onde morava sua filha, o que
aumentava ainda mais a admiração pelo amigo, que depois de muita luta, passou a expor
com freqüência no exterior.
Bento ainda nos revela mais sobre a ligação de Drummond e Portinari:

Pintou muita gente importante da sociedade brasileira e da de outros países. E fez


também retratos de simples trabalhadores. Como é o caso do negro da coleção de Carlos
Drummond de Andrade, um retrato magistral. (12)

Como demonstra Bento, Portinari trabalhava muito para ganhar a vida e estudou em
razão de uma vocação inata. Segundo Sergio Miceli, que analisou o trabalho retratista de
Portinari, o artista realizou 680 retratos que "registraram as feições de um contingente
representativo e extremamente diversificado dos diferentes segmentos da elite brasileira".
(13)
Neste grupo de pintores, poetas, músicos, políticos, empresários, crianças, senhoras...,
estava incluído também um retrato de Drummond, então com 34 anos de idade, e que
trabalhava como chefe de gabinete do ministro Gustavo Capanema.

Drummond viera para o Rio de Janeiro três anos antes a convite de Capanema, já
tendo publicado seus dois primeiros volumes de poesia. O retrato foi executado no mesmo
26

ano em que o ministro convidou Portinari para realizar os murais dos ciclos econômicos
da história brasileira no prédio novo em construção, tendo sido Drummond o porta-voz e a
autoridade responsável pelo detalhamento dessa importantíssima encomenda. (14)

Ainda segundo Miceli, Portinari elegeu "como foco do tratamento pictórico a


matéria expressiva desse rosto jovem e cadavérico, carregando dentro de si o 'sentimento
do mundo'..". (15)
O Portinari retratista é uma questão ainda mais complicada para os críticos.
Desfazer esse nó conceitual que o artista nos meteu é uma questão ainda mais complicada.
Para este pesquisador a questão é simples: Portinari precisava trabalhar. Para outros
autores, como Herkenhoff o problema é outro: "Portinari e Guignard foram os dois maiores
retratistas da burguesia brasileira e de seus políticos. No entanto, enquanto Portinari
transformou sua retratística em moeda de negocição de prestígio e poder, para Guignard foi
(16)
mais uma estratégia de sobrevivência material e emocional". Falar em poder e prestígio
num mundo dominado por curadores parece anacrônico, se não perverso. Todas estas
questões são complexas demais no mundo artístico contemporâneo, esta é a razão de
Drummond ser tão importante.
Paralelamente ao trabalho de retratista, Portinari realiza obras que ainda geram
discussões: o artista parece caminhar para uma obra cada vez mais social. Frutos
(Drummond e Portinari) de uma época complexa, os dois retomaram uma prática que vem
desde Courbet, mas já percebida em outros artistas, como Goya (ver os rostos de pânico no
fuzilamento de Três de Maio, 1808) ou Daumier (ver os trabalhos em que retratava os
pobres de Paris).
Mas, para este pesquisador, Courbet é o primeiro artista genuinamente moderno.
Realizava obras que chocavam pela monumentalidade e realismo. Era o que buscava. Se
não inovou na forma, foi moderno no conteúdo. Seu Os Quebradores de Pedra, de 1849,
com 1,60 m x 2,59 m (destruída em 1945, quando pertencia ao acervo da antiga Galeria de
Arte de Dresden), mostra a exploração do trabalho infantil. Um dos personagens é
provavelmente uma criança, pois há um contraste de tamanho entre os dois personagens do
quadro, que carregam e quebram, literalmente, pedras. (17)
27

A arte de conotação política sempre se fez presente na História da Arte. Muda-se


apenas a forma como as coisas são transmitidas. Portinari usou o suporte bidimensional,
por ser, é preciso aceitar, um intrépido renascentista. Mas vemos o eco de Portinari em
obras atuais, como a instalação 111, de Nuno Ramos, realizada no início da década de 90,
em que o artista alinha matematicamente 111 pedras, criando um clima mórbido (porém
fascinante), em que não conseguimos deixar de lembrar das mortes de 111 presos, ocorridas
dentro de uma prisão pública de São Paulo. Ou quando Carlos Zilio, nos anos 70, escreve a
palavra Fome no fundo de uma marmita. Ambos ecoam o desejo de Portinari de realizar
uma obra política. Objeto, instalação ou a tradicional tela como uma janela para o mundo, a
sensação é a mesma: nestes tempos pós-Gênova, pós-AIDS e pós-11 de Setembro, todos se
mostram atuais, incluindo o polêmico Portinari. A escolha de Drummond mostrou-se
acertada.
Em relação a escolhas, é possível perceber a trajetória do maior crítico brasileiro,
Mário Pedrosa, a partir de vários ensaios que escreveu sobre Portinari a partir de 1934.
Otília Arantes assim escreve:

Esses ensaios sobre Portinari permitem-nos retraçar o caminho do Crítico:


preocupado inicialmente com as imposições da matéria, sobretudo da matéria social,
passando pelo elogio do muralismo à valorização crescente da especificidade da arte. Se a
ênfase muda, o que é sempre perseguido neste esforço de decifração das obras é a sua
vocação sintética e universalizadora. (18)

Mário Pedrosa escreveu muito sobre Portinari. O melhor é que foi no calor da hora,
pois foi contemporâneo do artista. Mas optamos por apresentar um texto que escreveu em
1970, num exílio forçado em Cabo Frio. É um longo texto, que faz um balanço das artes
plásticas no Brasil, e com um longo trecho sobre Portinari, quase pessoal, mas certeiro
como sempre e que deveria ser transcrito integralmente. Seguem alguns trechos, onde é
possível perceber uma análise acurada da obra e da personalidade de Portinari:

Ao abrir-se a Bienal, em 1951, no local do antigo Trianon, na Avenida Paulista,


onde se ergue hoje o Museu de Arte, era Portinari, sem dúvida, o maior "nome" da pintura
28

brasileira, quase sinônimo para o povo, como Picasso para o mundo, de arte "moderna"
ou "futurista". Sua poderosa aparelhagem artesanal lhe permitia excepcional ecletismo de
maneiras, escolas e experiência. Ele era um artista social por excelência. Com isso
queremos dizer que sua inspiração vinha de fora, do convívio cultural, das influências
determinantes no momento, dos problemas da época. Sua vocação era "política", não no
sentido estrito da palavra, pois nunca foi um político, mesmo quando se candidatou e foi
eleito, no duro, senador pelo PCB, mas num sentido amplo, de gosto, de convivência, de
comércio social, de participação. Magnificamente armado artesanalmente, ouvia e gostava
de captar idéias e sugestões dos meios intelectuais que apreciava.(...) Exemplo: a
insistência com que todos nós procuramos incutir nele a importância "culminante" dos
muralistas mexicanos, não só quanto à temática mas inclusive quanto à técnica. E
Portinari manda incontinente buscar no México uma pistola de pintar, preconizada então
por Siqueiros em suas andanças por aqui, como o neo plus ultra em matéria de arte social
e coletiva. Experimenta-a, e vem decepcionado nos dizer que não serve, não dá matéria e a
cor é chata, plana.
Ele tinha no fundo o gosto coloquial do narrador, do comentador de temas em
voga. (...) As preocupações do bom artesão eram o que mais espontaneamente aparecia
nele. (...) A partir dessas aquisições, tomadas daqui e de acolá, acabou o pintor pôr
conseguir uma maneira própria que afinal o marcou como um dos momentos importantes
da pintura brasileira. Não foi, entretanto, Portinari um colorista, não foi tampouco um
retratista excepcional, para o que lhe faltava o gosto do instantâneo psicológico, da
marcação sintética dos planos da figura ou da cabeça no espaço; não foi um inventor de
formas nem jamais se deixou arrebatar pelo ímpeto de um ritmo linear autônomo ou
criativo. Mas foi sem dúvida um grande artista do Brasil pelo poder de absorção que tinha
no agregar para definir na sua obra tudo o que lhe podia interessar e pelo didatismo
permanente que lhe emprestava, no desejo de responder a uma demanda que sentia existir
(19)
no ar e de assim atuar sobre o meio social ambiente. (Uma pequena correção: Portinari
candidatou-se a Deputado Federal em 1945 e a Senador em 1946. Não sendo eleito nas
duas oportunidades.)
29

Uma outra opinião, a de Carlos Zilio, considera que Portinari não via arte moderna
(20)
como ruptura, mas como estlização do clássico. Em alguns aspectos a análise de Zilio
mostra-se importante. Zilio destaca a intenção nacionalista do artista, sua preocupação com
a temática brasileira, a figura humana como dominante e o caráter político que tenta
transmitir, a partir da apreensão do cotidiano popular.
Outro aspecto importante é a análise do realismo portinariano. Zilio aponta o perigo
de confundir-se realismo com nacionalismo, da mesma forma que se confunde arte
figurativa com arte formalista. A simplificação destas questões leva ao risco de se cair no
Realismo socialista ou no Realismo nacional-socialista, "cujas diferenças formais são
(21)
inexistentes". Estas observações são importantes, principalmente em uma época em que
os artistas buscavam uma arte socialmente participativa, como no romance regionalista, por
exemplo. Quando se busca uma arte política, corre-se o risco de reducionismo ideológico. E
compromete-se o resultado estético. Mas, o exemplo mais claro da possibilidade de
realização de uma arte esteticamente relevante e que sirva como registro de sua época, são
os livros de Drummond dos anos 40.
Em relação a Portinari, sua empatia com o povo é questionada por alguns críticos,
principalmente pela idealização do trabalhador que o artista repetidamente representava em
seus trabalhos. Em sua época, esses trabalhos ganharam a aura de arte revolucionária,
principalmente porque esta era a tendência intelectual do momento, e Portinari acabou
transformando-se no herói do modernismo para a maioria dos intelectuais e críticos.
Drummond também o via como um herói. Em carta para Portinari, de 15 de outubro de
1946, Drummond demonstra toda sua admiração, logo após a abertura de uma exposição do
artista em Paris:

Querido Candinho,
Estou contente com o sucesso de sua exposição, de que chegam aqui os primeiros
ecos. E mais contente ainda porque não foi nenhuma surpresa, o êxito previsto pelos seus
amigos, o reconhecimento inevitável, da grande obra que você vem realizando com seu
próprio destino. Você é a alegria e a honra do nosso tempo e da nossa geração. Não sabia
se saberia dizer-lhe isso pessoalmente, mas encho-me de coragem nesta carta para
exprimir uma convicção que é de todos os seus companheiros, os quais se sentem elevados
30

e explicados na sua obra. Sim, meu caro Candinho, foi em você que conseguimos a nossa
expressão mais universal, e não apenas pela ressonância, mas pela natureza mesma de seu
gênio criador, que ainda que permanecesse ignorado ou negado nos salvaria para o
futuro.(22)

As acusações de populista e de artista oficial partiram principalmente daqueles que


lutavam pela especificidade da pintura, o que julgamos justa, porém uma arte política não é
necessariamente populista. As últimas edições da Bienal têm mostrado cada vez mais uma
preocupação dos artistas com temas políticos. Se os temas hoje não são somente o trabalho
e seus vários níveis de exploração ou a luta contra os vários tipos de fascismo,
permanecem as inquietações sobre a sexualidade (vide os trabalhos sobre a AIDS), sobre as
várias etnias, sobre os rumos das cidades, etc... Percebemos que o conteúdo político da arte
expandiu-se para um campo ilimitado. Drummond e Portinari devem estar felizes. Antonio
Callado também, já que tinha as mesmas preocupações dos dois Mestres aqui estudados.
Tanto que escreveu o roteiro de um audiovisual sobre o painel Tiradentes (hoje exposto no
Memorial da América Latina, em São Paulo). Sua idéia era que o público pudesse
acompanhar o texto com a apreciação do painel, afinal, Portinari tinha o "gosto coloquial
do narrador", como dissera Mário Pedrosa, aqui citado. O texto seria lido por várias vozes
(poderia até ser duas) e inicia-se com uma introdução sobre Portinari:

VOZ 1: (...) Para os quadros históricos [Portinari] fazia, baseados em suas leituras
e pesquisas, esboços, croquis, até se satisfazer com a expressão que devia dar ao rei, ao
bandeirante, ao mártir. Freqüentemente, quando estava no ateliê trabalhando, esse pintor
nascido "na Alta Mogiana" , como dizia, lembrava o trabalho de sol a sol do pai e da mãe,
plantadores de café, como se ele também, com o pincel, estivesse lavrando a terra - no
caso a terra da sensibilidade do Brasil, da memória do seu povo.
(...)
VOZ 2: (...) O Tiradentes se transformara de pronto em notícia de jornal,
reportagem, entrevista, crítica. E desde o primeiro dia atraiu uma multidão ao Automóvel
Clube do Rio, onde foi primeiro exposto ao público. Tinha tanta gente, no primeiro dia,
31

que Graciliano Ramos, grande amigo de Portinari, deixou para ir ao Automóvel Clube no
dia seguinte. Depois mandou este bilhete: (Mostrar bilhete)
"Querido Portinari. Estive uma hora hoje a admirá-lo. Não valia pena vir ontem -
dia de gente fina".
(Grande vista do painel)
VOZ 1: Aí está visto pelo grande pintor do Brasil, o suplício do Tiradentes. Um
quadro grande em si mesmo, na sua concepção , grande no seu tamanho de 18 metros de
comprido por 3 metros e 15 de altura. A inconfidência exposta em cerca de 56 metros
quadrados de têmpera sobre tela. A historiografia oficial brasileira é superficial, bem-
comportada, apresentando a história do Brasil como branda, civilizada, avessa à violência
e ao derramamento de sangue. Quando este painel foi primeiro exposto no Rio e em São
Paulo, muitos se detiveram diante dele comovidos, silenciosos. Havia, ali, uma revelação.
(...) (23)

O roteiro continua sob os acordes da Bachiana no 5, de Villa-Lobos, contando a


história do painel e, principalmente, a história de Tiradentes. Uma interpretação belíssima,
a partir do painel de Portinari. Dedicado ao Diretor Teatral Fávio Rangel a partir de uma
idéia deste, segundo Callado:

Um audiovisual - me disse Flávio - que fale sobre o painel aos visitantes, sobretudo
aos colegiais, aos adultos meio esquecidos de história e até aos turistas. (24)

Para Callado, que parodia Nelson Rodrigues, Portinari mostra "a História como ela
é", e nos convida na fala final a olharmos apenas o quadro diante de nós, "sem mais pensar
no que representa. Olhemos a pura pintura. Suas formas, suas cores. Em silêncio e
(25)
recolhimento. Como quem ouve música. Um concerto". Percebe-se que Portinari foi o
artista preferido dos poetas e escritores, pois foi um artista descritivo por excelência. E
esteve sempre cercado deles; pintou, entre outros, Jorge Amado, Mário de Andrade,
Graciliano Ramos, Murilo Mendes, Manuel Bandeira e Jorge de Lima. Além do próprio
Drummond, já citado.
32

A ligação de Drummond e Portinari, artisticamente intensa, nos revela sempre novas


facetas, vira e mexe eles se encontram. Assim é a arte, sempre surpreendente. Álvaro
Cotrim - o Alvarus - também artista, e como Callado, também conheceu os dois Mestres,
escrevendo sobre o livro Dom Quixote, acaba narrando o encontro em livro de Drummond
e Portinari. (26)
O editor José Olympio foi o primeiro a publicar uma tradução de Dom Quixote no
Brasil, em 1952, com as históricas ilustrações de Gustave Doré. Para se ter uma idéia da
magnifica edição, a tradução foi de Almir de Andrade e Milton Amado, e continha 375
ilustrações de Doré, gravadas por H. Pisan, prefácio de Luís da Câmara Cascudo,
introdução de Brito Broca, perfil de Gustave Doré por H. Hustin e ornatos de G. B. Blow.
Uma edição primorosa.
Desejando reeditar o Quixote, agora ilustrado por um artista brasileiro, convidou
Portinari para que executasse por volta de trinta desenhos de alguns trechos da novela.
Esqueceu-se, porém, de pedir para que fossem em preto e branco, em função das
dificuldades técnicas da época. Assim escreve Álvarus:

Esquecera-se o editor de recomendar fossem essas composições em preto e branco,


e qual não foi seu admirado espanto ao receber de Candinho os mais soberbos desenhos
do artista famoso, porém realizados a cores, executados que foram a lápis de cera
colorida, isto porque ele, já atingido pelos males que o levariam ao fim, ficara proibido
por seu médico de usar tinta a óleo, que era o que o estava envenenando, pois continha
sais de chumbo. Causa emoção que aquele ponto final da obra de nosso maior pintor
coincidisse com a utópica tragédia de Dom Quixote, ao viver seu próprio drama na eterna
busca inatingida de um ideal. (27)

Em 1972, é publicado um livro com os desenhos de Portinari, acompanhados de


poemas de Drummond:

Mas o que veio a dar incomensurável dimensionalidade à tão esmerada edição é,


sem dúvida, o suporte da poética drummoniana nas glosas que acompanham as ilustrações
e que vão desde a poesia concreta ao soneto alexandrino. Nosso poeta maior, Carlos
33

Drummond de Andrade, com aquela doce ironia de que é tão ricamente dotado, com
injustificável humildade considerou-se um "penetra entre Cervantes e Portinari", na
dedicatória que fez para um seu fiel amigo, nesse admirável livro. (28)

Álvarus refere-se a Portinari como "nosso maior pintor" e a Drummond como


"nosso poeta maior". Como Álvarus, também nos sentimos espantados com o encontro
destes artistas nesse livro, e , depois de tantos encontros pela vida afora, encontrá-los em
um livro é o gesto mais simbólico que poderiam nos deixar. (29)

...

Há outras referências a Portinari na obra de Drummond, que serão analisadas no


decorrer deste trabalho.

(1) Foi utilizado para este trabalho, o livro que juntava toda a obra de Drummond
até 1974, Reunião: 10 Livros de Poesia. Ed. José Olympio, 1974. [Nas
próximas citações serão utilizados apenas os nomes dos livros originais e datas,
sem notas. Nos livros posteriores a 1974, utilizar-se-ão notas completas).
(2) Drummond de Andrade, Carlos. O Observador no Escritório. São Paulo: Ed
Círculo do Livro, s/d, p 26 [grifos do Autor; este livro foi publicado
originalmente pela Editora Record em 1985].
(3) Klee, Paul. "Confissão Criador". In Sobre a arte moderna e outros ensaios.
Tradução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p 43.
(4) Werneck, Humberto. "O Ninho da Poesia", Prefácio. In Farewell, último livro
de poesias de Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1997,
p 10.
(5) Arte em Exposição. In Farewell, pp 32-33.
(6) Santiago, Silviano. Posfácio. In Farewell, p 112.
(7) Santiago, Silviano. Idem, p 113.
(8) Este conceito de arte como fazer, está bem claro em: Argan, Giulio Carlo.
História da Arte como História da Cidade. Tradução de Pier Luigi Cabra. São
Paulo: Ed. Martins Fontes, 1992, p 35. (No capítulo sobre Goeldi, este tema será
aprofundado.)
(9) Santiago, Silviano. Ibdem, p 125. (Grifo do Autor)
(10) Piza, Daniel. Fla-Flu verbal. In O Estado de São Paulo, de 30 de junho de
2002.
(11) Bento, Antônio. "Cândido Portinari". In Aspectos da Arte Brasileira.
Vários autores. Rio de Janeiro: Funarte, 1981, p 117.
34

(12) Idem, p 119.


(13) Miceli, Sergio. Imagens Negociadas: Retratos da Elite Brasileira (1920-
40). São Paulo: Ed. Cia. das Letras, 1996, pp 14-15.
(14) Idem, p 96.
(15) Idem, p 97.
(16) Herkenhoff, Paulo. "Indelével e Fugaz". In Marcas do Corpo, Dobras da
Alma, XII Mostra da Gravura de Cutitiba. Organizadores: Paulo Herkenhoff
e Adriano Pedrosa. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 2000, p 46.
(17) Há uma reprodução dessa obra, em preto e branco, no livro Iniciação à
História da Arte, de H.W. Jansson e Anthony F. Jansson. Tradução de
Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1996, p 328.
(18) Arantes, Otília Beatriz Fiori. Prefácio. In Política das Artes. Textos de
Mário Pedrosa. Organização e Apresentação de Otília Beatriz Fiori Arantes. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1995, p 29.
(19) Idem, pp 228-230.
(20) Zilio, Carlos. A Querela do Brasil. A Questão da identidade na arte
brasileira: a obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari/1922-1945. Rio de
Janeiro: Funarte, 1982, p 108.
(21) Idem, pp 107-108.
(22) Carta de Carlos Drummond de Andrade a Portinari, de 15 de Outubro de
1946. In Portinari, suplemento especial sobre o artista publicado no jornal O
Estado de São Paulo. São Paulo, 2000. O suplemento completo pode ser
acessado no site www.estado.com.br/edicao/especial/porti.
(23) Callado, Antonio. "Uma revelação que a história oficial não registra". In
Nossa América - Revista do Memorial da América Latina no 2. São Paulo:
Memorial da América Latina, Maio/Junho de 1989, pp 28-33.
(24) Idem.
(25) Ibdem.
(26) Cotrim, Álvaro. "Cervantes. Daumier. Portinari. Drummond". In Revista
Cultura no 35. Brasília: Ministério da Educação e Cultura, Julho/Dezembro de
1980, pp 52-64.
(27) Idem, p 64.
(28) Ibdem, p 64.
(29) Esse livro, incluído na Bibliografia de Drummond, foi publicado em 1972
com o título de D. Quixote. Glosas a 21 desenhos de Candido Portinari. Rio
de Janeiro: Diagraphis, 1972.
35

4.0 - GOELDI: O PESQUISADOR DA NOITE MORAL

Em um poema chamado simplesmente "A Goeldi", publicado em A Vida Passada a


Limpo (1959), Drummond faz a afirmação mais exata sobre aquele que é considerado "a
(1)
maior personalidade da gravura no Brasil em todos os tempos". O verso "ó Goeldi:
pesquisador da noite moral sob a noite fisíca", resume toda densidade psicológica e toda
apreensão do mundo social que o artista buscou apresentar em suas gravuras. Quando
dizemos que a afirmação de Drummond foi certeira, queremos reafirmar o olhar
privilegiado do poeta. Poucos conseguiram ser tão claros na definição de um artista.
Drummond mais uma vez demonstra que era um atento apreciador de artes plásticas, com
um repertório e uma sensibilidade que o aproximava de um crítico aparelhado para proferir
conceitos importantes. Para Argan, às vezes uma pincelada é mais importante que a própria
(2)
obra. Perceber essa pincelada exige do observador um olhar diferente. Ouso dizer que
esse olhar diferente é uma particularidade dos poetas. Mas não uma exclusividade, é claro.
Daí Drummond perceber detalhes em Goeldi que até o melhor especialista não percebe.
Assim, os poetas são nossos melhores críticos.
O poema sobre Oswald Goeldi (1895-1961) faz jus a um dos mais importantes
artistas e gravadores brasileiro (transcreveremos integralmente):

A GOELDI
De uma cidade vulturina
vieste a nós, trazendo
o ar de suas avenidas de assombro
onde vagabundos peixes esqueletos
rodopiam ou se postam em frente a casas inabitáveis
mas entupidas de tua coleção de segredos,
ó Goeldi: pesquisador da noite moral sob a noite física.

Ainda não desembarcaste de todo


e não desembarcarás nunca.
Exílio e memória porejam das madeiras
36

em que inflexivelmente penetras para extrair


o vitríolo das criaturas
condenadas ao mundo.

És metade sombra ou todo sombra?


Tuas relações com a luz como se tecem?
Amarias talvez, preto no preto,
fixar um novo sol, noturno; e denuncias
as diferentes espécies de treva
em que os objetos se elaboram:
a treva do entardecer e a da manhã;
a erosão do tempo no silêncio;
a irrealidade do real.

Estás sempre inspecionando


as nuvens e a direção dos ciclones.
Céu nublado, chuva incessante, atmosfera de chumbo
são elementos de teu reino
onde a morte de guarda-chuva
comanda
poças de solidão, entre urubus.

Tão solitário, Goeldi! mas pressinto


no glauco reflexo furtivo
que lambe a canoa de teu pescador
e na tarja sanguínea a irromper, escândalo, de teus
[negrumes
uma dádiva de ti à vida.

Não sinistra,
mas violenta
37

e meiga,
destas cores compõe-se a rosa em teu louvor.

Drummond descreve Goeldi de maneira exemplar, que depois seria confirmado por
Mário Pedrosa no primoroso texto em que faz um balanço das artes no Brasil até 1970:
(3)
Goeldi seria um dos primeiros artistas brasileiros com mensagem social consciente. Ao
lado de Goeldi, cita o também gravador Lívio Abramo, que curiosamente escreveu um belo
texto sobre o "companheiro de rota" nos difíceis anos de renovação da gravura brasileira. (4)
Estes dois gravadores representam para Pedrosa as verdadeiras "tendências sociais
da arte", que foi tema de sua célebre conferência As tendências sociais da arte e Käthe
Kollwitz, no Clube dos Artistas Modernos de São Paulo (CAM), em 16 de junho de
1933.(5) Esta conferência fundadora, em que se discutia a "função social" da arte, marca um
momento declaradamente ideológico e polarizado na vida brasileira: revolução de 30,
revolução paulista de 32, crise do café, ascensão do nazismo, aparecimento do integralismo
e, tão importante para nós, a exposição de Käthe Kollwitz e um grupo de expressionistas
alemães, que marcou toda uma geração que tinha como horizonte "a função social da arte".
O expressionismo, portanto, desde Anita Malfati e Lasar Segall, nos anos 10, marcou a
vanguarda artística brasileira. Afinal, o expressionismo supria uma necessidade do artista
de mostrar o lado opaco da vida. O artista não poderia ficar alheio a um mundo tão intenso.
O expressionismo daria ao artista moderno brasileiro a régua e o compasso.
Goeldi, como Drummond, Portinari e outros artistas que viveram intensamente estes
anos, tinha como projeto o desenvolvimento de uma espécie de modernismo utópico, que
traria em seu corpus a refundação de uma nação complexa e ainda cheia de problemas.
Deste momento rico, emerge o trabalho de Goeldi, para quem Drummond escreveu
seu poema. Também de outro poeta, Ferreira Gullar, igualmente irmanado às Artes
Plásticas, Goeldi recebeu as seguintes palavras: "Nenhum artista brasileiro mereceu de
mim, intimamente, admiração e respeito tão grandes como Oswaldo Goeldi, e creio que
todos, artistas e críticos". (6)
Goeldi representa a atitude ética exemplar, da qual a arte é capaz, como queria
Argan [ver capítulo sobre Portinari]. Esta admiração que Goeldi desperta, da qual falou
Ferreira Gullar, vem da excepcional identificação entre grandeza moral e obra, ou como
38

disse Reis Junior: "Acontece que a obra de Oswaldo Goeldi corresponde, plenamente, no
plano estético, à grandeza moral de sua atitude". (7)
A partir da gravura em madeira, Goeldi alcança o grau de comunicação que tanto
queriam os pares de sua geração, além de criar uma arte original e ao mesmo tempo
humana. O fazer arganiano encontra em Goeldi uma boa tradução: viveu exclusivamente de
sua profissão e exerceu seu ofício com dedicação, desde o esmero com que lixava e
desbastava a madeira até a cópia com o esfregão (Goeldi não usava prensa). A relação com
a madeira, com as goivas, com os rolos... era de um escrúpulo religioso. Foi isso que
Drummond percebeu e relatou como ninguém.

De uma cidade vulturina


vieste a nós, trazendo
o ar de suas avenidas de assombro
onde vagabundos peixes esqueletos
rodopiam ou se postam em frente a casas inabitáveis
mas entupidas de tua coleção de segredos,
ó Goeldi: pesquisador da noite moral sob a noite física.

Nestes versos iniciais, Drummond nos mostra uma das chaves da poética de Goeldi:
a busca de um universo palpável e próximo. Mas essa busca nada tem de singela, já que o
universo goeldiano é composto de avenidas de assombro, de vagabundos, peixes e
esqueletos, de casas inabitáveis, de coleções de segredo. É isto que transforma Goeldi num
pesquisador da noite moral sob a noite física. Mas que noite é essa que precisa do adjetivo
moral? Para entender a afirmação de Drummond, devemos iniciar pela exclamação ó
Goeldi, que transforma o poema em quase oração. Assim, temos outra questão: que santo-
gravador é esse, que merece uma oração? A resposta é do próprio poeta: Ora, é Goeldi, o
pesquisador da noite moral. É aquele que manteve sua individualidade num mundo que
valoriza a noite física. Goeldi leva ao extremo seu ideário ético: se o mundo tem avenidas
de assombro e esqueletos, grava-se este mundo como quem procura uma marca de
identidade. Marca-se na madeira ou no papel uma identidade que só é possível para um
pesquisador da noite moral.
39

Mas há alguns problemas: os vagabundos, os peixes e os esqueletos, rodopiam ou se


postam em frente a casas inabitáveis e entupidas da coleção de segredos de Goeldi. E quais
seriam esses segredos? E que cidade vulturina é essa que Drummond nos fala? O termo
vulturino é forte, diz respeito a abutres, aves da família dos vulturídeos, também
conhecidos como urubus. Sendo tão forte assim, porque o poeta a usou? Mais uma vez a
chave para os segredos de Goeldi e sua vinda de uma cidade vulturina, está na aclamação ó
Goeldi: pesquisador da noite moral sob a noite física. Para Rodrigo Naves, o sofrimento
dos personagens de Goeldi "decorre de uma singularidade miserável, que nada pode
redimir. Bêbados, urubus [aqueles da família dos vulturídeos], caveiras, guarda-chuvas ou
armários estão condenados a um isolamento sem remissão, e sua individualidade extremada
(8)
não aponta a existência positiva e feliz". Para Naves, as personagens de Goeldi estão
sempre em risco. É a noite física que os ameaça, que Drummond percebeu tão bem. Mas há
a noite moral e seu pesquisador, apesar de seus segredos e de sua cidade vulturina, de suas
casas inabitáveis e de suas avenidas de assombro. São as dobras da alma, de que fala Paulo
Herkenhoff:

As pouquíssimas gravuras de Guignard reconfiguram o corpus expressionista do


universo gráfico brasileiro, com seus pilares em Goeldi e Segall. Esses três gravadores
convertem o pathos do sujeito moderno em espécie de ética, uma passagem que Anita
Malfatti não soube realizar. Guerras na Europa e exploração social no Brasil foram as
bases políticas dessas marcas do corpo e dobras da alma. Daí Carlos Drummond de
Andrade falar da prevalência da noite moral sobre a noite física na obra de Goeldi.
sujeito moderno tinha a realidade do século, além de Marx, Freud e dada filosofia (de
Schopenhauer a Sartre) alimentando o pessimismo do eu expressionista, discreta
persistência no Brasil. (9)

Desta forma, as contradições de Goeldi encarnam o sujeito moderno, aquele que


busca a apreensão do mundo como um pesquisador verdadeiro. Na segunda parte do
poema, Drummond esquadrinha essas contradições e todo o temário goeldiano, feito de
"criaturas condenadas ao mundo":
40

Ainda não desembarcaste de todo


e não desembarcarás nunca.
Exílio e memória porejam das madeiras
em que inflexivelmente penetras para extrair
o vitríolo das criaturas
condenadas ao mundo.

Ainda não desembarcaste de todo e não desembarcarás nunca. Drummond não quer
pontuar as contradições de Goeldi, mas as contradições da natureza humana. Não deixa de
ser uma projeção do poeta num espelho drummondiano e goeldiano ao mesmo tempo. Para
Drummond, Goeldi extrai da madeira marcas de exílio e memória. Exílio no sentido de não
estar em seu lugar. Afinal, Goeldi não desembarcou de todo. Para isto ele teria de ser um
artista que se mostra inteiro. Nem o poeta era assim. Ele também se sente um exilado: no
poema Prece de mineiro no Rio, ele escreve sobre a saudade da pátria imaginária. Em
Confidência do Itabirano, Drummond é ainda mais explícito:

(...)
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede
Mas como dói!

Sim, como o poeta, Goeldi é um exilado ao seu modo, que apenas sugere, não
escancara. Porém, não segura as rédeas do desejo. Ele está nas gravuras. Aqui faço sua
defesa: mesmo que Goeldi fosse um artista naturalista, ele não se mostraria inteiro. É
próprio da moral goeldiana deixar brechas para o desejo do espectador. Como na canção de
Jobim: o teu desejo é sempre o meu desejo.
A constatação, primorosa de Drummond, de que Goeldi apenas sugere, contrasta
com a afirmação de que exílio e memória encontram-se na madeira. O exílio tem
conotações negativas, porque invariavelmente é frustrante, já que não se escolhe o exílio
(pelo menos na maioria dos casos). Já a memória tem uma conotação mais positiva, pelo
41

menos no caso de Goeldi. Em Goeldi a memória não é seletiva, em razão de um processo


de autodefesa, mas um método de (auto) análise, que transforma as experiências em
epifanias, ou em revelações intensas, para não dizer dramáticas, por mais paradoxal que
esta afirmação pareça. Epifanias dramáticas? Sim, pois Drummond nos mostra que tudo é
feito para extrair o vitríolo das criaturas condenadas ao mundo. Notem que o quase-
farmacêutico lançou mão da linguagem técnica (vitríolo=ácido sulfúrico) para mostrar o
que é extraído das criaturas condenadas ao mundo. Há dois aspectos interessantes nestes
versos: das madeiras de Goeldi porejam exílio e memória, e delas [das madeiras]o artista
extrai o vitríolo das criaturas condenadas ao mundo. O artista extrai algo que é comum a
(10)
vários sulfatos, mais especialmente o ácido sulfúrico. O ácido, então, é parte integrante
da essência do homem. Somos em parte sulfato. Esta afirmação pré-socratiana remete à
busca da essência que Goeldi buscava.
Em segundo lugar, não somos criaturas condenadas do mundo, mas criaturas
condenadas ao mundo. Já fomos condenados à liberdade, como queria Sartre, ou à
linguagem, como queria Lacan; mas no fundo, somos criaturas condenadas ao mundo,
como queria a dupla Goeldi-Drummond. Estamos impregnados de mundo, e não há como
fugir. Desta forma, o mundo está nas gravuras de Goeldi e na poesia de Drummond. Daí o
fascínio que os dois artistas exercem.

És metade sombra ou todo sombra?


Tuas relações com a luz como se tecem?
Amarias talvez, preto no preto,
fixar um novo sol, noturno; e denuncias
as diferentes espécies de treva
em que os objetos se elaboram:
a treva do entardecer e a da manhã;
a erosão do tempo no silêncio;
a irrealidade do real.

Nesta terceira parte do poema, Drummond começa questionando Goeldi com duas
dúvidas importantes. Na primeira, Drummond retoma as contradições de Goeldi: És metade
42

sombra ou todo sombra? A segunda pergunta (um complemento da primeira), Drumnond


toca numa das características mais importantes de Goeldi: as relações entre sombra e luz. E
pergunta: Como elas se tecem? Esta é a questão fundamental para entender Goeldi: como se
tecem suas relações com a luz?
Goeldi usou o preto na gravura de forma genial. É sua assinatura. Reconhecemos
um Goeldi facilmente, pelo uso dos espaços em preto. A comparação com Livio Abramo é
inevitável. Os dois mestres e amigos tinham muito em comum, inclusive a preocupação
social, como observou Mário Pedrosa. Mas eram diferentes num ponto (e por isso se
completavam): enquanto Abramo investe seu talento na paixão pelas linhas e no
aproveitamento da arquitetura dos sulcos naturais da madeira, Goeldi se utiliza das
manchas, principalmente pretas. Goeldi dá um novo tipo de tratamento a xilo, sua gravura é
pintura. Assim se expressou Paulo Herkenhoff:

Goeldi desenvolveu singulares processos constitutivos da cor. A xilogravura de


Goeldi é pintura. O artista criou uma complexa arquitetura da cor, delimitada inicialmente
pelo corte. O entintamento da matriz é decisivo, já calculado na escavação da madeira até
a fase da administração da quantidade e qualidade da tinta na mesma matriz. A matriz
também pode receber tinta preta para ser retirada, porém resíduos devem permanecer
para a produção de sombra na própria cor. (...) Cada cópia será, pois, uma experiência
única. Goeldi constrói fisicamente a cor para realizar seus fins morais. (11)

Se Goeldi está mais para a pintura, Abramo está mais para as artes gráficas
propriamente dita, da qual a xilo é uma das principais técnicas. Porém, ambos, a seu modo,
revolucionaram a gravura.
Drummond vai mais longe. A luz, sobre um espaço majoritariamente preto, fixa um
novo sol, um sol noturno. A luz de Goeldi é o sol. Os versos (...) e denuncias/ as diferentes
espécies de treva/ em que os objetos se elaboram... podem ser lidos de forma positiva. A
palavra treva está mais associada a cor principal de Goeldi, o Preto Goeldi, uma cor preta
só dele, como existe o Azul Klein, de Yves Klein. Assim, a treva que Drummond anuncia,
está ligada aos versos anteriores: Amarias talvez, preto no preto,/ fixar um novo sol,
noturno (...). Belíssimos versos para um artista que sempre buscou isto: fixar um novo sol e
43

não envolver sua gravura-mundo na escuridão completa, que a palavra treva pode talvez
sugerir.
Esta terceira parte termina com uma das melhores definições sobre a obra de Goeldi,
para não dizer que é uma conclusão brilhante para esta terceira parte. Atenção para o último
verso desta parte, duas palavras que mereceriam um livro inteiro:

Amarias talvez, preto no preto,


fixar um novo sol, noturno; e denuncias
as diferentes espécies de treva
em que os objetos se elaboram:
a treva do entardecer e a da manhã;
a erosão do tempo no silêncio;
a irrealidade do real.

Drummond acredita que Goeldi consegue captar as diferentes espécies de treva em


que os objetos se elaboram. Captar esse preto que envolve os objetos é tarefa para quem
tem uma percepção especial, tarefa para quem consegue fixar um novo sol. Não um simples
sol, mas um sol noturno. Somente desta forma Goeldi é capaz de produzir obras que captam
a treva do entardecer e a da manhã, a erosão do tempo no silêncio e a irrealidade do real.
Por que o último verso desta terceira parte (a irrealidade do real) é uma das
chaves poéticas goeldiana? (Junto com o pesquisador da noite moral da primeira parte.)
José Maria dos Reis Júnior faz as mesmas perguntas:

Portanto, qual o mistério do fascínio exercido por suas gravuras de temas tão
comezinhos, tão corriqueiros, tão prosaicos, tão simples? Por que a nuvem, o mar, o
pescador, o beco molhado pela chuva, os antigos sobrados habitados por segredos, o
mísero urubu, o velho guarda-chuva rasgado, os animais domésticos, o peixe morto ou
vivo, a gaivota que risca o céu - por que, enfim, todas essas "coisas elementares" cavadas
por Goeldi na madeira ganham transcendência, transfiguram-se e empolgam-nos? Será
porque ele surpreende e revela-nos a "irrealidade do real", como diria o nosso querido
grande poeta Carlos Drummond de Andrade? ou, sem especulações metafísicas,
44

simplesmente porque ele talhava na madeira, com amor, as formas com que sua solidão
revestia essas coisas? (12)

A resposta, talvez, esteja na constatação de que há artistas que conseguem


materializar o que é quase impossível, bem diferente de outro grupo de artistas que partem
da representação pura e tornam-se, digamos, artistas fenomenológicos. Goeldi é do
primeiro time, ele materializa coisas não palpáveis e não mensuráveis, fora dos parâmetros
tradicionais da ciência. Goeldi materializa a erosão do tempo e o silêncio, coisas que não se
vêem e nem se tocam, e que só se podem senti-las. Em outras palavras, Goeldi materializa a
irrealidade do real.
Drummond torna mais clara esta definição exemplar [a irrealidade do real], na
quarta parte do poema:

Estás sempre inspecionando


as nuvens e a direção dos ciclones.
Céu nublado, chuva incessante, atmosfera de chumbo
são elementos de teu reino
onde a morte de guarda-chuva
comanda
poças de solidão, entre urubus.

Drummond acha que Goeldi é um observador privilegiado, aquele que está sempre
inspecionando as nuvens e a direção dos ciclones. Este olhar agudo de Goeldi o faz
representar aspectos da vida nem sempre presentes nas obras de outros artistas. Drummond
chamou estes aspectos de reino de Goeldi, algo como um temário próprio do artista: o céu
não é um céu normal, mas nublado; a chuva não é uma chuva comum, mas incessante; a
atmosfera é de chumbo, uma atmosfera que só Goeldi é capaz de representar.
Na quinta parte do poema, Drummond mostra que estes temas aparentemente
pesados (como a atmosfera de chumbo), são na verdade uma dádiva do artista à vida:

Tão solitário, Goeldi! mas pressinto


45

no glauco reflexo furtivo


que lambe a canoa de teu pescador
e na tarja sanguínea a irromper, escândalo, de teus
[negrumes
uma dádiva de ti à vida.

Apesar de considerar Goeldi solitário, no sentido de ser um artista único no talento,


na técnica, no suporte e nos temas, o poeta pressente algo escondido (furtivo) e
aparentemente escandaloso nas gravuras escuras (negrume) de Goeldi: uma dádiva à vida.
É no ornato sanguíneo, e portanto, vivo e quente, que, arrebatadamente e
escandalosamente, surge algo dos pretos de Goeldi: a vida. As palavras furtivo e escândalo
explicam o sentimento de Drummond em relação às gravuras de Goeldi: ele consegue ver,
apesar de escondida, e para escândalo do mundo, uma ode à vida, onde aparentemente há
apenas manchas pretas.
Na última parte, composta de quatro versos, Drummond retoma as complexas
oposições de Goeldi (que não são, como já discutimos, meras contradições):

Não sinistra,
mas violenta
e meiga,
destas cores compõe-se a rosa em teu louvor.

A cor preta de Goeldi (sua marca no mundo) ou seus temas, não são sinistros, apesar
de violentos. Mas apesar de violentos, eles também são meigos. Estas aparentes
contradições são no fundo as impressões (sem trocadilho) de um artista que observa a
direção dos ciclones. Foi isto que pressentiu Drummond, que termina este poema de trinta e
oito versos livres da seguinte forma:

destas cores compõe-se a rosa em teu louvor


46

As cores com que Drummond pintou Goeldi são primorosas e reveladoras, mesmo
sendo construídas de dúvidas e contradições, porque, tal qual o reflexo furtivo que percebeu
nas gravuras de Goeldi, seu poema é também uma dádiva à vida.
Assim foi composta a rosa em louvor à Goeldi.

(1) Herkenhoff, Paulo. "Notas para o tema gravura e modernismo". In Catálogo da


XI Mostra da Gravura Cidade de Curitiba. Curitiba: Fundação Cultural de
Curitiba, 1995, p 12.
(2) Pedrosa, Mário. "A Bienal de Cá para Lá". In Política das Artes, p 247.
(3) Abramo, Lívio. "Oswaldo Goeldi". In Arte y Artistas de Brasil y Paraguay.
Asunción: Editorial El Lector, 1999, pp 44-46. (Texto em espanhol)
(4) A frase exata é: "uma pincelada pode ser tanto ou mais significativa que a
descrição de um objeto". Giulio Carlo Argan. "Il primo Rinascimento", em
Classico, Anticlassico - Il Rinascimento da Brunelleschi a Bruegel. Milano:
Feltrinelli, 1984, p1. Citado por Rodrigo Naves no Prefácio que escreveu para o
livro de Argan, Arte Moderna. Tradução de Denise Bottmann e Federico
Carotti. São Paulo: Ed. Cia. das Letras, 1993, p xvi.
(5) Esta conferência está publicada em Política das Artes, pp 35-56.
(6) Citado por José Maria dos Reis Júnior em "Carlos Oswald, Raimundo Cela,
Oswaldo Goeldi". In Aspectos da Arte Brasileira. Vários Autores. Rio de
Janeiro: Funarte, 1981, p 107.
(7) Idem, p 107.
(8) Naves, Rodrigo. A Forma Difícil, Ensaios sobre arte brasileira. São Paulo:
Ed. Ática, 1996, p 25.
(9) Herkenhoff, Paulo. "Indelével Fugaz", p 40.
(10) Conforme o Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Ed. Nova Fronteira, edição de 1995, p 676: Vitríolo. S.m. Designação
comum a vários sulfatos, especialmente o ácido sulfúrico.
(11) Herkenhoff, Paulo. "A cor no Modernismo brasileiro - a navegação com
muitas bússolas".In XXIV Bienal de São Paulo. Catálogo. Volume Núcleo
Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismo. São Paulo: Fundação
Bienal de São Paulo, 1998.
(12) José Maria dos Reis Júnior. "Carlos Oswald, Raimundo Cela, Oswaldo
Goeldi", p 105.
47

5.0 - POESIA EM EXPOSIÇÃO

Arte em Exposição foi publicado postumamente, mesmo assim, Drummond chegou


a finalizá-lo. Como sempre fazia, organizou as folhas datilografadas em uma pasta. Não foi
publicado isoladamente, mas incorporado à Farewell, seu último livro concluído, e deixado
pelo poeta em pasta diferente. A união dos dois livros, mais os últimos poemas escritos,
geraram um volume único, Farewell.
(1)
Arte em Exposição, porém, foi publicado isoladamente em 1990 , talvez como
planejou o poeta, e pode ser considerado um longo poema ou um livro com uma coleção de
poemas. Optamos pela segunda hipótese, já que o consideramos um livro temático, com
poemas curtos. Mais uma vez usamos o termo epifânias, já que estes poemas parecem
pequenos momentos iluminados sobre alguns artistas e/ou sobre algumas obras, que o poeta
considerava especiais. São quase hai-kais. Os poemas mais curtos têm apenas dois versos,
os maiores chegam a seis versos. Alguns versos têm apenas uma palavra. É importante
perceber que esses poemas são praticamente os últimos de Drummond, que chegou a uma
síntese perfeita de comunicação - quase goeldiana - no sentido de usar poucos recursos para
atingir objetivos máximos.
Além da própria linguagem, um outro aspecto chama atenção em Arte em
Exposição: as sofisticações das escolhas do poeta. Eclético, ele fez um mapeamento
interessante da História da Arte, a partir de seu gosto pessoal. Fez escolhas ousadas:
Sasseta, Soutine, Carrá, Giorgione, Houdon, Mondrian, Quentin Metsys... além de
Velasquez, Da Vinci, Munch, Van Gogh, Matisse, entre outros. A lista é grande, e
demonstra um observador atento e aberto, capaz de amar Giorgione e Mondrian.
Drummond realizou uma leitura pessoal, sim, mas capaz de ser tão importante quanto a de
um crítico profissional, pois era capaz de ver detalhes interessantes e a partir deles criar
momentos únicos de poesia, do qual tomamos a liberdade de chamá-los de quadros-
poemas. Reparem que muitas das escolhas de Drummond recaem sobre algumas obras
menos conhecidas de artistas que o poeta tanto gostava. Essas escolhas demonstram o
talento de Drummond em analisar um quadro, nos orientar (como um bom crítico), e
escrever sobre ele, mas não um texto em prosa, e sim a forma mais sofisticada de
linguagem: um poema! Assim escreveu Silviano Santiago sobre Arte em Exposição: "Seus
48

olhos vão diretamente ao detalhe que dá forma ao quadro ou à escultura e que, para ele,
ilumina o todo, se ilumina sob a forma de poema". (2)
Percebemos, assim, ao longo dos vários poemas, alguns instantes de descobertas,
complexos mesmo para o mais experiente observador. Eis porque Drummond é um sutil
crítico de arte, que conheceu essas obras apenas por reproduções em livros, os livros pelos
quais foi tão apaixonado. Lembramos que grande parte dos modernistas brasileiros formou-
se mais pelos livros do que por viagens à Europa, particularmente a segunda geração.
Mesmo com as dificuldades de se perceber a materialidade de uma obra, as experiências
com os livros continuam sendo o melhor contato com artistas de várias partes do mundo,
apesar de todo o esforço de exposições importantes, como as várias Bienais, que tornam-se
didáticas para um grande número de pessoas. Então, para quem não é um freqüente
viajante, os livros ocupam a parte mais importante na formação visual. Drummond foi mais
longe: não podendo ir aos grandes museus da Europa (como de fato nunca foi), criou um
museu particular, para nos transportar ao interior de seus quadros-poemas. Esta era a
viagem principal de Drummond: para dentro do poema. Assim, dentro do poema, podemos
observar melhor a exposição que este curador notável organizou.
São 32 quadros-poemas, não numerados, que Drummond escreveu para nos guiar
em sua galeria de arte, uma espécie de catálogo, tão comum em exposições. Cada poema
tem como título o mesmo com o qual as obras tornaram-se conhecidas.
Os poemas são os seguintes, com a grafia original e enumerados apenas para estudo:

1 Casamento de São Francisco de Assis com a pobreza (Sasseta)


2 Auto-retrato (Soutine)
3 Músicos cegos (Velasquez)
4 Retrato de Madame Héroterne (Modigliani)
5 O Grito (Munch)
6 Leda (Da Vinci)
7 Gentil homem bêbado (Carrá)
8 Odalisca vermelha (Matisse)
9 A cadeira (Van Gogh)
10 A cigana adormecida (Henri Rousseau)
49

11 A Ponte de Mantes (Corot)


12 A Anunciação (Fra Angelico)
13 Almoço sobre a relva (Manet)
14 Vênus e o organista (Ticiano)
15 Tiradentes (Portinari)
16 Café noturno (VanGogh)
17 Transverberação de Santa Teresa (Bernini)
18 Retrato do casal Arnolfini (Jan van Eyck)
19 Salomé (Giorgione)
20 Vênus Adormecida (Giorgione)
21 Jardim do Manicômio (Van Gogh)
22 Voltaire (Houdon)
23 Sapatos (Van Gogh)
24 Auto-retrato com copo de vinho (Chagall)
25 Quadro I (Mondrian)
26 Carnaval de Arlequim (Miró)
27 Fuzilamento na Moncloa (Goya)
28 As Três Graças (Rubens)
29 Pietá (Miguel Ângelo)
30 A Duquesa de Alba (Goya)
31 Gioconda (Da Vinci)
32 Retrato de Erasmo de Rotterdam (Quentin Metsys)
50

1 CASAMENTO DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS


COM A POBREZA (Sasseta)

O amor te escolheu
por seres a mais casta
entre as virgens ideais.
A união é do ar
e da água e do pão
em migalhas.

Muitos artistas pintaram São Francisco, entre eles Cimabue, Giotto e Sasseta
(Stefano Di Giovanni Sasseta, 1392 - 1450 ou 1451). O martírio de São Francisco e
também sua aura santa, foi imortalizada por artistas que o idealizaram como representante
de um mundo mais humano. Esta imagem nos foi legada também por Sasseta, que também
imortalizou em nosso imaginário esse homem devotado aos destituídos da terra. Esse
homem que escolheu a pobreza, os animais e a natureza, inspirou Sasseta, um dos grandes
mestres da arte religiosa do século XV, que pintou os retábulos do altar da igreja de São
Francisco, entre 1437 e 1444.
O artista, a obra e a personagem, chamaram a atenção de Drummond, que na
segunda parte do poema Estampas de Vila Rica, escreveu sobre São Francisco de Assis.(3)
Este primeiro poema de Arte em Exposição, pode ser dividido em duas partes de três
versos. Na primeira parte, Drummond justifica a escolha de São Francisco. Na segunda
parte o poeta explica de forma filosófica esta escolha: o ar, a água e o pão em migalhas.
Para ele são estes os elementos primordiais da união de São Francisco com a pobreza. São
elementos constitutivos de uma união escolhida para ser a mais perfeita, assim como
algumas teorias cosmogônicas procuravam um elemento primordial para explicar o mundo.
Para Tales de Mileto, a água era a matéria-prima do Universo. Anaxímenes achava que era
o ar; Heráclito, o fogo. Empendocles reuniu os quatro elementos: Terra, Ar, Fogo e Água.
Drummond descobriu um outro elemento, e ainda mais puro: a migalha de pão. Sasseta e
São Francisco de Assis o levaram a esta descoberta.
51

Quando se pensa em São Francisco, associa-se a Giotto e seu ciclo de Assis (as 28
cenas da vida de São Francisco que adornam a Basílica Superior, pintadas pelo artista);
porém, Drummond escolheu outro Mestre, Sasseta, para iniciar seu livro-galeria, e,
principalmente, nos aproximar de um mestre essencial para a História da Arte. Um Mestre
importante no uso da cor, e não menos importante que Giotto, apenas um pouco menos
conhecido. A cor de Sasseta deve ter impressionado Drummond, que logo no início do
livro-exposição mostra que suas escolhas não serão as mais comuns.

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2 AUTO-RETRATO (Soutine)

Sou eu ou não sou eu?


Sou eu ou sou você?
Sou eu ou sou ninguém,
e ninguém me retrata?

No auto-retrato sempre existiu o fascínio (não só narcísico) da própria imagem.


Podemos achar vários grandes auto-retratistas: Schiele (uma centena), Dürer (o pioneiro
que causou escândalo), Rembrandt (com obras da adolescência até a velhice, como que
traçando seu percurso biológico).
No auto-retrato há a apreensão de alguma coisa sobre nós mesmos. Do artista em
relação ao reflexo de sua própria imagem e nossa em relação a identificação com a imagem
que vemos. Portanto, esta importante experiência na busca de identidade, se processa
também no auto-retrato. Podemos imaginar uma cena: o pintor curitibano Freyesleben
(Valdemar Kurt Freyesleben, Curitiba, 1899-1970) em frente ao espelho, executando um
auto-retrato (que batizou de O Sósia). Reconheço-me nele, sou a imagem deste outro, mas
ele é meu sósia, um quase eu. Neste outro me revelo. E apesar desta imagem se assemelhar
a mim, não me alieno nele. Ele é meu sósia, e é nele que aquilo que eu quero me é revelado.
E minha identidade se compõe em oposição a este outro.
52

Assim, apesar de toda a intolerância, inundo esta tela de eus, inundo o mundo de
eus. Na Curitiba dos anos 50, o solitário, individualista e autônomo Freyesleben, chocava a
cidade preocupando-se com auto-retratos de pinceladas grossas e empastadas, num
expressionismo freyeslebeano, particular, como foi o expressionismo de Soutine, também
de pinceladas tempestuosas, capaz de materializar através delas todos os tipos de
sentimentos. Chaim Soutine nasceu em Smilovitch, Lituânia, em 1894 e morreu em Paris,
em 1943. Foi um dos maiores expoentes da Escola de Paris, momento em que a cidade
reuniu pintores de todos os países (incluindo brasileiros), e era o centro da cultura artística
do mundo.
Seu auto-retrato, feito de um cromatismo agressivo, gerou as mesmas dúvidas de
Freyesleben em Drummond. O auto-retrato é o espelho do artista, esta é a definição
clássica, mas Drummond inverte a questão: o auto-retrato é o espelho do espectador. Por
isso ele se pergunta: Sou eu ou não sou eu? Sou eu ou sou você?
Soutine causou estranhamento em Drummond, a ponto de confundi-lo. O poeta
identifica-se com o retrato que vê, mas coloca em dúvida esta identificação. E esta dúvida o
deixa triste: Sou eu ou sou ninguém?
Freyesleben não se vê no auto-retrato que pintou, por isso o reduziu a condição de
sósia, a condição de um outro; Drummond, ao contrário, se vê na imagem que Soutine
pintou dele [Soutine], e na dúvida sobre quem é quem, reclama de que ninguém o retrata.
Assim o poeta se sentiu, e os sentimentos são complexos, sabemos, mesmo para
Drummond, que é personagem de um dos melhores retratos de Portinari; mesmo para ele
próprio, que criou a melhor caricatura de si, com traços ágeis de um grande desenhista.(4)
Talvez aí se encontre a explicação para este livro [Arte em Exposição]: não fosse o poeta
que é, Drummond teria sido um genial desenhista.

...

3 MÚSICOS CEGOS (Velasquez)

Violino e guitarra são videntes,


olham pelos olhos dos cantantes.
53

Considerado um dos maiores pintores do Barroco, Diego Velasquez (Sevilha, 1599 -


Madri, 1660), retratou uma galeria imensa de tipos humanos. Principalmente retratista,
Velasquez tinha uma sensibilidade grande para captar com sutileza o universo complexo
dos retratados.
Foi isso que percebeu Drummond, e o explicou com apenas dois versos. Esta
capacidade de interpretar uma obra de Velasquez em poucas palavras, contrasta com a
necessidade comum da maioria dos mortais (como a deste pesquisador) de usar muitos
parágrafos.
Estes dois versos nos transportam para um universo poético diferente. Sabemos pelo
título que os músicos são cegos, e que seus olhos são o violino e a guitarra. Através da
música, descobre-se que os músicos são cegos, porém videntes. A palavra vidente tem
vários significados: além da faculdade de uma visão sobrenatural, pode significar uma
pessoa perspicaz ou mesmo uma pessoa que tem a faculdade da visão. Este múltiplo uso da
palavra vidente, consegue unir o universo poético de Drummond com o universo poético de
Velasquez. Ela faz uma síntese perfeita da arte de Velasquez, que foi escolhido por
Drummond porque era também um retratista de pessoas comuns. Era o pintor da corte, sim,
mas além das encomendas reais, ocupava seu tempo com retratos de pessoas a margem da
vida palaciana. Seu senso de humanidade o transformou num artista diferente, capaz de
influenciar artistas contemporâneos, como Francis Bacon, que nos anos 50 do século XX,
pintou uma série de variações da obra Inocêncio X, que Velasquez realizou a partir de uma
encomenda do Vaticano.
Já podemos vislumbrar uma característica no gosto estético de Drummond: sua
paixão pelo retrato. Seu acervo particular é ilustrativo, como já percebemos. O elo que une
as obras e os artistas desta galeria drummondiana é a paixão pela figura humana e todas as
complexas reflexões que o retrato nos sugere. A paixão por Portinari pode ser explicada,
dentre outras coisas, pela sua vocação de retratista, e pelas contradições que o trabalho de
retratista traz. Usando um lugar-comum, pode-se dizer que o retrato nos diz tanto do
retratado quanto do retratista. Portinari refugiava-se nos retratos dos amigos (como o de
Drummond) e de pessoas comuns, que o transportavam a sua Brodowski da infância;
Velasquez, igualmente, mesmo sendo pintor da corte, buscou humanidade nos príncipes e
54

princesas que pintou (vide As Meninas, talvez sua obra mais conhecida), e refugiou-se
também nos rostos que vislumbrava nas ruas (vide este Músicos Cegos).
Há nas obras escolhidas por Drummond uma afinidade que se tornará mais clara
enquanto avançamos em nossas observações. Mas já é possível perceber que entre
Portinari, Goeldi, Sasseta, Soutine, Velasquez e Drummond, há muitas afinidades.

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4 RETRATO DE MADAME HÉROTERNE (Modigliani)

Plantada na torre do pescoço


a cabeça na altura,
mal percebe nossas inquietações de planície.

Retrato de Madame Héroterne, parece ser, na verdade, um dos vários retratos (nada
menos que vinte e cinco), que Amadeo Modigliani realizou de sua companheira Jeanne
Hébuterne. Modigliani (Livorno, 1884 - Paris, 1920), foi um artista único, no estilo, nas
preocupações estéticas e existenciais. Parece encarnar como ninguém o mito do artista
boêmio e solitário, que parte para a Paris no auge da École.
Apesar de ser também um escultor, são seus retratos que atingem o ponto alto de
toda a sua produção, em sua curta vida. Modigliani recolocou o retrato como um gênero
importante da pintura (como queria Drummond), apesar de viver no auge da revolução
fotográfica. O artista parece captar um aspecto caro para Drummond: a representação
simbólica da personalidade do retratado.
Drummond percebeu as principais características estilísticas de Modigliani: suas
linhas delicadas, o afilamento dos corpos, os olhos assimétricos e, as vezes, estranhos. A
linguagem pictórica está nestes três versos: a cabeça na torre do pescoço e os olhos que
parecem olhar apenas para o pintor que os retrata, e mal percebem nossas inquietações.
Modigliani entre os muitos retratos que fez, retratou um de seus amigos mais
íntimos: Soutine, outro dos preferidos de Drummond.
55

Modigliani e Jeanne Hébuterne conheceram-se em 1917 e passaram a viver juntos.


Em 1918 nasceu a filha de ambos, que logo foi reconhecida por Modigliani como sendo sua
filha. Pouco antes de casarem oficialmente, e com Jeanne grávida novamente, Modigliani
adoeceu gravemente com tuberculose e morreu em 24 de janeiro de 1920. No dia seguinte
Jeanne suicidou-se. A filha, que levou o mesmo nome da mãe, foi adotada pela irmã de
Modigliani, e escreveu uma importante biografia do pai, Modigliani: o Homem e o Mito.
Drummond conhecia as dimensões dramáticas da obra de Modigliani, e por isso a
escolheu. Um artista como Modigliani não poderia ficar de fora de uma exposição como
esta, ainda mais sendo o retratista que era. A associação de Modigliani com outros artistas
de Arte em Exposição é inegável. É possível vê-lo como quase um clássico. Apesar de
todas as lendas em torno de sua vida e obra, suas preocupações eram as mesmas de outros
artistas desde o Renascimento (que admirava): o homem deve ser o principal tema da arte, e
a arte, por sua vez, deve transforma-se num espelho. Modigliani deve ter chamado atenção
de Drummond por estes aspectos: sua preocupação com as pessoas e sua capacidade de
condensar sentimentos em linhas e planos extremamente sutis.

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5 O GRITO (Munch)

A natureza grita apavorante.


Doem os ouvidos, dói o quadro

Edvard Munch nasceu na Noruega, em 1863, e morreu em 1944, e desde o início


não buscou a representação do mundo à maneira realista, mas a captação de sentimentos
profundos, influenciado por Van Gogh e Gauguin. Com pinceladas enérgicas que
resultaram em obras intensas, Munch é considerado uma das maiores influências na pintura
dos expressionistas. Para Argan, as imagens de Munch não devem apenas impressionar o
olho, “mas penetrar, atingir profundamente..". (5)
56

Em O Grito, de 1893, Munch atingiu uma enorme expressividade dramática,


utilizando pinceladas flutuantes e contínuas, como ondas, o que provoca uma tensão
psicológica intensa. As pinceladas flutuantes provocam uma estranha sensação de ondas
sonoras se expandindo. O céu e tudo em volta parecem expandir-se, “doem os ouvidos, dói
o quadro”, como escreveu Drummond.
Em Munch, tudo é precário e a palavra é um grito que faz doer os ouvidos do poeta.
“Ele [Munch] não é do tipo cínico amargo, e sim do vidente inspirado, que prevê o destino
trágico, a questão inelutável da sociedade”, escreveu Argan. (6) Suas pinceladas não buscam
significação, mas expressão. E esta expressividade apavorou Drummond, talvez pelo tom
angustiante deste quadro antecipatório da barbárie que viria e que o poeta registrou tão bem
em seus livros da década de 40. Além disso, os quadros de Munch revelam um mundo de
angústias, paixões, desejos... que sempre provocarão um sentimento apavorante. Por isso,
este O Grito, apesar de ser um retrato estilizado ao máximo, transmite uma dramaticidade
que se torna mais insuportável cada vez que o observamos. É assustador não só para
Drummond. O que dizer dos dois homens que observam a personagem sob a ponte? Para
uma geração que viveu o trauma do fascismo, como a geração de Drummond, O Grito faz
doer os ouvidos. O terror psicológico transmitido pelo quadro é sintetizado nestes dois
versos. A impressão é que Drummond sabia com detalhes o que Munch queria dizer.

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6 LEDA (Da Vinci)

Já gozaste demais, diz Leda ao cisne.


Que venha logo Jove cataclismo.

A escolha de Leda e o Cisne, de Leonardo Da Vinci, sugere, ainda mais, que as


preferências de Drummond não eram aleatórias. O simbolismo contido no mito de Leda e o
Cisne, chamou atenção não apenas de Da Vinci, que o pintou por volta de 1505-1510.
Depois dele, uma avalanche de artistas utilizou o mesmo tema. Citamos Corregio,
57

Michelangelo, Rubens, Cézanne e, mais recentemente, Matisse, e um incrível Vicente do


Rego Monteiro, que pintou o mesmo tema com um naturalismo impressionante.
Para compreensão dos versos de Drummond, tentaremos resumir o conteúdo
mitológico por trás do poema: Zeus se apaixonou por Leda e se transformou num cisne para
possui-la. Esta é a cena que Da Vinci e outros artistas tão bem representaram. O erotismo
que envolve este ato sexual entre uma mulher e um animal, gerou o primeiro verso de
Drummond, tão explícito quanto Rego Monteiro: Já gozaste demais, diz Leda ao cisne.
Da união sexual com o deus-ave, Leda pôs dois ovos que geraram, conforme o mito,
duas filhas: Helena, futura Helena de Tróia, e outra foi Clitemnestra, que acabou
assassinando o marido Agamênon, com ajuda do amante. Deste mito, nasceu toda uma
epopéia que Homero, depois, aproveitou tão bem.
Do extremo erotismo do mito, Da Vinci criou uma obra que emoldura todo seu
talento e estilo, como no fundo inconfundível a lembrar Mona Lisa, ou nas crianças que
brincam, junto as cascas de ovos, aos pés de Leda, lembrando aquelas crianças que tanto
chamaram atenção de Freud, em sua análise sobre Da Vinci. (7)
O abraço que Leda dá no deus-cisne, com o rosto ligeiramente virado para o lado
oposto parece confirmar o verso certeiro de Drummond: já gozaste demais. O erotismo
delicado e simbólico de Da Vinci, com sua ave fálica, contrasta com a cópula real que Rego
Monteiro retratou.
A Leda de Da Vinci não parece aterrorizada por sujeitar-se a vontade de um deus
transformado em ave; pelo contrário, há paixão erótica entre os dois amantes tão diferentes,
que o artista conseguiu transmitir com sucesso, apesar da cena antinatural. Drummond viu
gozo entre Leda e o cisne, gozo que Da Vinci demonstra através dos gestos sutis dos dois
amantes.
Outro poeta importante, o irlandes W. D. Yeats, prêmio Nobel em 1923, também
escreveu sobre o mito de Leda e o Cisne. Como Drummond, Yeats captou o erotismo do
mito; as duas primeiras estrofes do poema chamado Leda e o Cisne, são exemplares:

Um sopro súbito: as grandes asas batendo ainda


Sobre a jovem cambaleante, as coxas acariciadas
Pelas membranas escuras, a nunca presa no seu bico.
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Ele sustenta o peito desamparado sobre o próprio peito.

Como poderiam aqueles dedos vagos e aterrorizados afastar


A glória emplumada das coxas que as abandonavam?
E o que poderia o corpo caído naquele branco ímpeto
Senão sentir o estranho coração batendo onde se aloja?(8)

Depois de tanto gozo, que venha logo o cataclismo. Ou melhor: que venha logo
outro orgasmo (o cataclismo). Jove (Zeus) é uma mistura de gozo e cataclismo. Drummond
resume as contradições do desejo. No primeiro verso Leda diz ao cisne: já gozaste demais,
tão bem retratado por Da Vinci, com Leda, delicadamente, virando o rosto. No segundo
verso, Leda esquece do interdito e proclama: que venha logo Jove (Zeus) cataclismo. Num
primeiro momento, ela rejeita o Cisne-Zeus, avisando que ele já gozou demais, depois ela
pede para que Zeus venha logo, mesmo ele sendo, para ela, um desastre, que a palavra
cataclismo representa tão bem.
Drummond, como Da Vinci, conhecia os labirintos do desejo.

...

7 GENTIL HOMEM BÊBADO (Carrá)

De Baudelaire o conselho:
É preciso estar sempre bêbado.
Além do imaginário e do real
é preciso estar sempre sóbrio
para pintar a bebedeira.

A preferência pelo italiano Carlo Carrá (1881-1966) tem vários significados. O


primeiro deles diz respeito à própria escolha, já que Carrá é um artista com participação em
vários grupos de vanguarda artística da primeira metade do século XX. Inquieto, sua
importância não é só artística, mas também existencial. Isto significa que sua arte buscava
59

dialogar com vários aspectos, desde políticos até filosóficos. A semelhança com
Drummond não é mera coincidência. Carrá esteve ligado ao Futurismo, à Pintura
Metafísica, ao Novecento italiano, aos movimentos anarquistas e socialistas. Sua arte
acabou sendo uma mistura disso tudo: foi lírica e social, teve corte cubista e o ritmo
futurista, foi naturalista e metafísica, e, como sugere Argan, sempre conservou um “fundo
(9)
de mistério, de solidão silenciosa e serena”. Todos estes extremos se manifestaram
durante sua vida. De certa forma, é como se ele tivesse “repercorrendo a história”. (10)
Apaixonado por Cézanne e pelos mestres italianos do início da Renascença, Carrá
foi a ponte ideal para uma arte cosmopolita. Quando Drummond “repercorre” a História da
Arte para interpretar a si mesmo, ele acaba agindo como um Carrá buscando um jeito de se
comunicar com o mundo.
Os traços da personagem do quadro de Carrá já foram associados aos traços da
(11)
autocaricatura de Drummond, que citamos anteriormente. As linhas sintéticas e rápidas
de Drummond e Carrá, estão sintonizadas com uma tendência moderna de concisão, da
qual Baudelaire foi o sumo sacerdote. Baudelaire é o Grão-Mestre dessa confraria de poetas
que se dedicou a escrever sobre arte e artistas, de uma forma diferente dos críticos,
historiadores e filósofos.
No poema em prosa, número XXXIII, de O Spleen de Paris, há o famoso verso
inicial: É preciso estar sempre bêbado, assim traduzido por Drummond, um profundo
conhecedor do francês, a ponto de traduzir Proust!
Drummond já havia usado este verso em outro poema, Poema da Necessidade:

(...)
É preciso estudar volapuque,
é preciso estar sempre bêbado,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.
(...)
60

Baudelaire é um poeta sempre citado por Drummond. No poema dedicado ao


quadro de Carrá, o mesmo verso de Baudelaire é citado, porém com um complemento:

(...)
Além do imaginário e do real
é preciso estar sempre sóbrio
para pintar a bebedeira.

Drummond coloca a questão para além do imaginário e do real. Mas além destes
dois registros há um outro? Com a palavra além (portanto, mais adiante), Drummond
reformula esta antinomia entre real e imaginário, e nos coloca um terceiro registro. Para
compreender essa nova ordem é preciso estar sempre sóbrio. Carrá também subverte o
conselho de Baudelaire, já que para pintar seu cavalheiro bêbado precisou estar sóbrio.
A metáfora de Baudelaire não é simples assim, claro, a bebedeira não é de vinho
apenas:

Deve-se estar sempre bêbado.


(...)
De vinho, de poesia ou de virtude, a teu gosto. Mas embriaga-te.
(...)

Esta aparente contradição entre estar sóbrio ou bêbado para produzir uma obra, seja
um poema ou um quadro, encontra em Drummond e Carrá, a sua tradução. Os dois
produziram uma obra pontuada por um registro sóbrio e sereno, mesmo quando parecem
soltar as rédeas da razão. No fundo, os dois seguiram o conselho de Baudelaire e
embriagaram-se de poesia. Eis porque é preciso ir além do imaginário e do real. Esta
terceira instância, para Drummond, superará os fenômenos ilusórios (apesar de importantes
na construção do eu), que chamou de imaginário; e superará o real, já que o, as vezes,
cético Drummond sabia que há uma parte de nós que escapa à razão. Cabe ao artista, então,
superar estas duas estruturas [o imaginário e o real], para estar sempre sóbrio e pintar a
bebedeira.
61

8 ODALISCA VERMELHA (Matisse)

A indolência da odalisca em rosa rubra


respira paz de lânguido fervor.
A sensualidade se dilui:
pura cor.

Voltamos ao Fla-Flu. Entre dois grandes artistas que revolucionaram a História da


Arte, Drummond escolheu Matisse, e não Picasso. Isto prova que o poeta buscou montar
um painel diferente. Buscou, também, uma linha conceitual que é possível perceber nestes
primeiros quadros de sua exposição: a figura humana – o retrato, principalmente – e, acima
de tudo, um tipo de arte com um profundo sentimento do mundo, seja na linhas ou nas
cores. É neste sentimento do mundo, método drummondiano por excelência, que
encontramos a resposta para a difícil pergunta: por que gostamos de um quadro?
Drummond parece responder com suas escolhas. Todos os quadros desta Arte em
Exposição têm uma história. É esta história que parece interessar ao poeta.
Com Odalisca Vermelha, Drummond percebeu a potencialidade da cor de Matisse
(1869-1954), que batizou de pura cor. Foi Matisse, afinal, quem levou ao extremo as
experiências cromáticas dos primeiros anos do século XX. Para tanto, o artista se utilizou
da tendência expressiva que já ocorria com Gauguin e Van Gogh, por exemplo, desde as
últimas décadas do século XIX.
Mas para chegar a pura cor de Matisse, Drummond faz uma enorme introdução de
três versos. Esta Odalisca Vermelha faz parte de uma série de trabalhos realizados durante
a Guerra, em que o artista radicaliza ainda mais sua idéia de impregnar o mundo de cor.
(12)
Argan chama a cor matisseana de “cor-matéria, cor-realidade, cor-estrutura”. O artista
busca a emoção estética a partir do equilíbrio entre a sensibilidade e a força da cor.
Drummond não o escolheu por acaso: Matisse o emocionava.
A aparente preguiça da Odalisca, deitada com os braços na nuca, os seios desnudos
e com um pano vermelho encobrindo o sexo, apresenta, para Drummond, as oposições que
o poeta tanto amava: a Odalisca, apesar da indolência, respira paz de lânguido fervor. As
62

palavras indolência, paz, lânguido e fervor, demonstram o quanto Drummond amava as


polarizações, afinal, tão freqüentes em nossa vida. Para o poeta, a pura cor dilui a
sensualidade da Odalisca, já que materializando a cor real, ela diminui as tensões e os
dramas da vida. Como queria Matisse.

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9 A CADEIRA (Van Gogh)

Ninguém está sentado


mas advinha-se o homem angustiado.

O homem angustiado do poema, que lutou contra a fome, a pobreza e a loucura,


hoje é um cânone. Van Gogh (1853-1890) compreendeu bem o Impressionismo, mas foi
além dele, construindo uma árvore que gerou galhos como o Expressionismo ou o
Fauvismo, por exemplo. Pintor tão popular quanto Da Vinci ou Michelangelo, Van Gogh é
reconhecido como o fundador de uma escola em que a cor ganha dramaticidade, a partir de
camadas grossas e fortes. Van Gogh usava, as vezes, o próprio tubo de tinta diretamente
sobre a tela. A textura que obtinha é única, facilmente reconhecida.
Pintou uma série grande de auto-retratos, porém, Drummond preferiu uma obra em
que o artista não aparece, mas é impossível não vê-lo, impossível não advinha-lo, como
disse o poeta. Van Gogh pintou sua cadeira rústica como um auto-retrato. Lá está ela,
solitária, como o artista, e identificada pelo fumo e pelo cachimbo.
Esta cadeira tem uma história: ela faz parte de um conjunto de móveis que Van
Gogh comprou para uma utópica Colônia de Artistas, que nunca foi concretizada. A cadeira
representava a expectativa pelo fim da solidão, mas o sonho da Colônia começou a ruir
quando Paul Gauguin foi embora. No quadro, a representação da cadeira é de uma solidão
absoluta. O contrário do que representava no sonho vangoghiano. Daí Drummond adivinhar
o homem angustiado. É uma cadeira, mas poderíamos colocá-la no conjunto de auto-
retratos que Van Gogh pintou.
Para Argan, há uma grande mudança ética e estética com a arte de Van Gogh: “a
63

matéria pictórica adquire uma existência autônoma, exasperada, quase insuportável; o


quadro não representa: é". (13)

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10 A CIGANA ADORMECIDA (Henri Rousseau)

Para te acordar
do sono profundo
disfarço-me: leão
que ao te roçar
esquece a missão.

Henri Rousseau (1844-1910) chamou a atenção de seus contemporâneos,


principalmente Picasso e seu círculo, por causa de uma arte marcadamente visual e menos
intelectualizada, num momento em que ainda não haviam eclodido as várias tendências das
vanguardas européias, que ocorreram por volta de 1910, com o Cubismo à frente. Alguns o
chamam até de pai da arte naï f. Foi um autodidata que só passou a se dedicar a pintura
depois de se aposentar. Foi funcionário da alfândega durante muitos anos, daí referirem-se
a ele como Le Douanier, o Aduaneiro. Assim era conhecido pelos artistas da época: o
Aduaneiro Rousseau.
A Cigana Adormecida mostra, num clima de sonho, uma mulher deitada numa
belíssima paisagem noturna, com um leão muito próximo, como a roçar seu pescoço. O
clima é onírico e erótico, que Drummond pontuou bem com a palavra roçar. O humor
típico do poeta aparece no fim: para acordá-la, o amante se disfarça de leão, mas ao tocá-la,
esquece da missão [de acordá-la]. O poema é simples, como os quadros de Rousseau. Esta
simplicidade, apesar de confundida por alguns como ingenuidade, mostrou-se importante
num momento de transição da arte européia, mergulhada que estava no Simbolismo.
Rousseau colocava em dúvida os mitos da civilização moderna. Não foi a toa que Picasso,
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ao pintar Guernica, lembrou-se de Le Douanier: a “ingenuidade” de Rousseau traduziu-se


em uma realidade assustadora.

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11 A PONTE DE MANTES (Corot)

Assim quisera eu ser:


ponte árvore canoa água serena
ignorante de tudo mais bem longe.

Jean-Baptiste-Camille Corot (1796-1875) foi um dos maiores paisagistas da História


da Arte. Transformou a paisagem num gênero importante, e influenciou até os
Impressionistas. Suas paisagens são construídas a partir da cor, principalmente com cores
rebaixadas ou veladas. Suas principais paisagens, portanto, são claras, e tem o objetivo de
fazer o espectador viver uma experiência com a natureza. Há aí uma conotação moral: a
pintura como experiência, que seria uma postura comum a partir dos primeiros modernos,
como os Impressionistas. O alargamento que Corot tinha desta visão é ainda mais
contemporâneo: é preciso procurar a unidade entre o homem e a natureza.
A leitura de Drummond faria Corot feliz: o poeta quis ser o próprio quadro (ponte
árvore canoa água serena). Mas o terceiro e último verso traz um problema: o poeta quer
estar bem longe, ignorante de tudo. Fazer o observador unir-se ao quadro é o sonho de todo
artista. Faze-lo fugir de todos os problemas, talvez não. Mas é preciso relevar: a arte não
quer alienar ninguém, e o poeta tinha suas razões para sentir-se assim. Como todos nós.

...

12 A ANUNCIAÇÃO (Fra Angelico)

O anjo desprende-se da arquitetura


para dar a notícia
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precisamente conforme a traça


de sublime arquiteto.

Fra Angélico (1400-55) era um frei dominicano, cujo nome verdadeiro era Guido di
Pietro. Mestre florentino do início da Renascença, realizou uma bela interpretação da
Anunciação. Presente no Novo Testamento, a Anunciação narra o momento em que o anjo
Gabriel apareceu à Virgem Maria para dar a notícia de que ela fora a escolhida para ser a
mãe de Jesus Cristo.
Drummond faz a mesma narração: O anjo desprende-se da arquitetura para dar a
notícia. Fra Angélico pintou um pórtico com várias colunas; o anjo entre elas, parece
desprender-se da complexa arquitetura criada pela artista.
A notícia é dada conforme a traça de sublime arquiteto. Há um aspecto complexo
nestes dois últimos versos, que poderiam ser da seguinte forma: a notícia é dada conforme
traçou o sublime arquiteto (Deus). Mas Drummond não é simples assim, sabemos, então a
leitura pode ser assim: o anjo dá a notícia conforme a traça (plano) de sublime arquiteto.
Este de é um complicador: o plano perfeito de sublime arquiteto foi executado com êxito.
Mas poderia ser também: plano de sublime arquiteto (Deus), já que só Deus conseguiria
traçar um plano de sublime arquiteto, pois Ele é o sublime arquiteto.
Fra Angélico e Drummond são complexos: tanto o trabalho de Fra Angélico quanto
o poema de quatro versos de Drummond, mereceriam um livro inteiro, pois ambos são
compostos de centenas de detalhes, fazendo que qualquer interpretação possa soar
superficial.

...

13 ALMOÇO SOBRE A RELVA (Manet)

Conversamos placidamente
junto da nudez
que pela primeira vez
não nos alucina.
66

Almoço sobre a relva, de Edouard Manet (1832-1883) pode marcar o início de uma
nova era, se não pelo estilo, já com marcas revolucionárias, mas pelo choque que causou
ver dois homens em trajes da época, acompanhados de uma modelo nua, em pleno
piquenique. O tema é diferente, assim como as amplas camadas de cor envolvidas por uma
luz intensa. O artista buscou a mera sensação, daí que tudo se traduz em cor. Mesmo com a
busca da sensação, há algo de clássico na tela, que lembra principalmente a arte
renascentista. Mas há também uma naturalidade quase fotográfica dos modelos. Tudo isso
transforma Almoço sobre a relva numa das obras mais importantes da História da Arte.
A História registra que Manet usou modelos conhecidos para realizar o quadro. A
modelo nua, por exemplo, era bastante conhecida em Paris. Figuras nuas em alegorias, sim,
mas em situações reais, não, mesmo que a nudez da moça não alucinasse os rapazes, que
conversam placidamente, como escreveu Drummond. O poeta percebe (o poema é na
primeira pessoa do plural, como se ele fosse um dos rapazes) que não há tensão erótica na
cena. Mas por que chocou tanto? Talvez a despreocupação com que a moça nua, sentada na
grama, conversa com os dois rapazes, também despreocupados, seja a causa de tanta
polêmica.
Manet não idealizou suas personagens, mas buscou uma proximidade com a vida
que tanto fascinava Drummond, que se colocou no lugar de uma das personagens a ponto
de escrever um poema como se estivesse vivendo a situação do quadro.

...

14 VENUS E O ORGANISTA (Ticiano)

O som envolve a nudez


e chega ao cachorrinho.
O músico esquece a partitura.
As pulseiras de Vênus não escutam.
67

Ticiano (1488/9-1576) tinha um jeito especial de lidar com as formas,


principalmente as formas da figura humana. Os volumes eram sempre envolvidos por um
brilho que transformava a cor em matéria viva. Foi assim com a série Vênus, incluindo este
Vênus e o Organista.
Vênus está reclinada no divã. Neste instante o músico volta-se (ele estava tocando
de costas para Vênus) para olhar o corpo da mulher. O músico esquece a partitura, escreve
Drummond. Sua música envolve a nudez, mas nem as pulseiras de Vênus escutam. A cena
chega a ser engraçada, o músico volta seu olhar para a parte mais desejada do corpo de
Vênus. O poema é quase surreal: o primeiro e o terceiro versos são objetivos:

O som envolve a nudez


O músico esquece a partitura.

Mas não teriam a graça que tem, sem o segundo e o quarto versos:

e chega ao cachorrinho.
As pulseiras de Vênus não escutam.

A própria cena pintada por Ticiano se encarrega de provocar estranhamento. Se o


quadro provoca isso, o poema apenas reflete esta realidade.

...

15 TIRADENTES (Portinari)

Fez-se a burocrática justiça.


O trono dorme invencível vingado.
Postas de carne do sonhador
referem o caminho das minas.
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Portinari é o artista mais freqüente na poesia de Drummond. O vínculo entre o poeta


e o pintor pode ser assim enumerado:

A Noite dissolve os homens (Sentimento do Mundo)


Mário de Andrade desce aos Infernos (A Rosa do Povo)
As Mãos (Claro Enigma)
Quixote e Sancho: de Portinari (As Impurezas do Branco)
Aspectos de uma casa (As Impurezas do Branco)
Legendas para 12 estampas de Carnaval (Poesia Errante)
Tiradentes (Farewell)

A lista é grande, porque assim como Baudelaire teve em Delacroix o artista


preferido e aquele para quem mais escreveu, o mesmo se passa com Drummond em relação
a Portinari, que o teve como preferido e como o artista com mais referências em toda sua
obra.
Tiradentes emociona até hoje, vide o texto de Antonio Callado, citado no capítulo
sobre Portinari. O verso: Fez-se a burocrática justiça, é um belo achado para qualquer
abuso de poder, disfarçado de constitucional. Slogan político por excelência, podemos
imaginar este verso na boca de um orador inflamado, em qualquer praça, de qualquer lugar
do mundo. O segundo verso é também incisivo politicamente: O trono dorme invencível
vingado. As palavras postas de carne, do terceiro verso, soam sinistramente reais, quando
lembramos que Tiradentes foi esquartejado e exibido em praça pública. Postas de carne de
alguém que sonhou com a liberdade. Drummond escreveu um poema político, inspirado em
um pintor também político.

...

16 CAFÉ NOTURNO (Van Gogh)

Alucinação de mesas
que se comportam como fantasmas
69

reunidos
solitários
glaciais.

Em setembro de 1888, Van Gogh pintou Café Noturno e Café Noturno: Exterior.
No primeiro, que inspirou o poema de Drummond, vê-se mesas e cadeiras em torno de uma
mesa de bilhar. Três mesas, apenas, estão ocupadas: um homem parece dormir sobre os
braços, um casal que talvez namore e dois homens conversam, aparentemente cansados.
Neste Café, alucinado de mesas, há poucas pessoas. Para Drummond, as mesas vazias, são
fantasmas solitários, reunidos. O poeta viu solidão neste Café.
Em carta ao irmão Théo, de 8 de setembro de 1888, Van Gogh assim escreveu sobre
o seu Café (pode-se perceber a importância que artista dava a cor):

Em meu quadro do Café Noturno, busquei exprimir que o café é um lugar onde
podemos nos arruinar, ficar loucos, cometer crimes. Enfim, procurei, através dos
contrastes de rosa tênue e de vermelho-sangue e borra de vinho, de suaves verdes Luís XV
e Véronesè, contrastando com verde-amarelos e verdes-azuis duros, tudo isto numa
infernal atmosfera de fornalha, de enxofre pálido, exprimir algo como o poder das trevas
de uma espelunca. (14)

No Café Noturno: Exterior, este pesquisador viu um momento diferente. Van Gogh
gostava da cor amarela, influenciado pela pintura japonesa, que amava. O amarelo, para ele,
representava a amizade. Nada melhor, portanto, que esta parte externa do Café fosse toda
ela amarela, com suas mesas na calçada e uma bucólica rua de paralelepípedos, tudo
banhado por uma cor amarela cheia de brilho e luz.
A parte externa do Café parece aconchegante, já que um Café pode, entre outras
coisas, representar a reunião fraterna de amigos em torno de boa conversa. O amarelo
parece confirmar esta opinião.
Van Gogh e Drummond viram solidão no interior do Café. Este pesquisador viu
amizade em sua parte externa. Amizade ou solidão, um quadro de Van Gogh desperta
sentimentos diversos.
70

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17 TRANSVERBERAÇÃO DE SANTA TERESA (Bernini)

Visão celestial, doce delírio.


Da cabeça aos pés nus
êxtase (orgasmo?) relampeia.

Gianlorenzo Bernini (1598-1680) é considerado o maior escultor-arquiteto do


século XVII. A Transverberação de Santa Teresa é considerada a obra-prima deste artista
que conseguiu unir escultura, pintura e arquitetura, além de realizar uma síntese dos ideais
do Barroco.
Também chamado de O Êxtase de Santa Teresa, este imenso conjunto de esculturas
de mármore é iluminado por raios dourados que vêm de um ponto acima do altar. Bernini
retrata o momento exato, descrito por Santa Teresa de Ávila, em que um anjo crava uma
flecha em seu coração. Daí a palavra transverberação, que significa deixar passar algo. O
uso da palavra êxtase, vem do sentimento de arrebatamento que Santa Teresa tem com esta
visão do anjo. Uma experiência mística que une dor física (a ponto de gritar) com um
sentimento de profunda doçura. Bernini sensualiza esta experiência física e espiritual, que
leva Drummond a perguntar se este doce delírio, iluminado por raios, não é um orgasmo
real, já que da cabeça aos pés nus, o êxtase relampeia.
Como Leda, de Da Vinci, Santa Teresa parece repetir: que venha logo o cataclismo.
Talvez por isso, Santa Teresa pareça flutuar.

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18 RETRATO DO CASAL ARNOLFINI (Jan Van Eyck)

A imagem reproduz-se até o sem-fim.


O casal sem filhos
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gera continuamente nos espelhos


a imagem de perpétuo casamento.

Jan Van Eyck (1390 ?-1441) foi um pintor fundador. Drummond sintetizou suas
descobertas em quatro brilhantes versos. A ele, afinal, é atribuída a invenção da pintura a
óleo e de todas as possibilidades que esta técnica sugere. A pintura a óleo tem resistência e
flexibilidade, além disso, não seca rapidamente, fazendo com que haja tempo para a
elaboração. Antes disso, usava-se pigmentos a partir de cores de plantas e minerais,
dissolvidos num meio líquido a partir de clara de ovo (têmpera). Porém a têmpera secava
muito rápido. Van Eyck, então, passou a adicionar óleo de linhaça como meio líquido
aglutinante. Os resultados conhecidos fizeram com que o óleo seja usado até hoje.
Já Retrato do casal Arnolfini é tão cheio de detalhes simbólicos que parece sem-fim,
segundo palavras de Drummond. O espelho ao fundo reforça ainda mais a idéia de sem-fim.
Tudo no quadro sugere fertilidade, mas o casal nunca teve filhos. Apesar de Van Eyck
enfatizar o ventre da esposa, ela não está grávida. O artista reforça a cada detalhe a imagem
de perpétuo casamento, como quer Drummond, de forma um tanto irônica, pois sabia que
nunca tiveram filhos, e sabia que Arnolfini se metera em confusões com amantes, sendo,
uma vez, ao menos, processado por uma delas, que queria compensações por se sentir
abandonada. Mas a imagem é tão bela e tão real (uma certidão de casamento, como querem
alguns historiadores), que é possível sonhar com um perpétuo casamento.

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19 SALOMÉ (Giorgione)

Que instinto maternal, que suavidade


embala esta cabeça decepada?

O veneziano Giorgione (c 1478-1510) morreu jovem, aos 32 anos. Não atingiu o


mesmo sucesso do amigo Ticiano, por causa de sua breve vida. Apenas cinco quadros são
atribuídos, com certeza, ao artista, apesar de não ter assinado nem datado nenhuma delas. A
72

morte prematura fez com que algumas obras fossem terminadas por amigos ou discípulos,
como o próprio Ticiano.
O ar poético de suas obras, aliado a cores rebaixadas e quase melancólicas, fez com
que Drummond enxergasse em Salomé um instinto maternal e uma suavidade embalando a
cabeça de São João. Mas Drummond tem mais dúvidas que certezas: Giorgione é um pintor
enigmático. O poema termina com um ponto de interrogação.

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20 VÊNUS ADORNECIDA (Giorgione)

Acalenta no sono
o púbis acordado.

Dois versos curtos, com poucas palavras, mas que tentam revelar o real significado
de uma obra que inspirou dezenas de artistas. Quantas Vênus foram pintadas depois desta!
Ticiano fez várias; uma delas, Vênus e o Organista, foi escolhida por Drummond, outra,
Vênus de Urbino, tem a mão também sobre o púbis, e as pernas na mesma posição, mas não
está dormindo. Ticiano a colocou num ambiente interno, e a pintou 30 anos após a Vênus
Adormecida de Giorgione, que, apaixonado pela paisagem, a colocou no campo. Sua Vênus
dorme nua, com a mão no púbis e com uma paisagem exuberante ao fundo, assim como em
A Tempestade, também de Giorgione, uma mulher amamenta seu filho, em meio a uma bela
paisagem e indiferente à tempestade que se aproxima.
Goya pintou sua Maja Denuda, o mesmo fez Manet com sua Olympia, Modigliani
também pintou uma série de mulheres nuas. Todos estes artistas utilizaram poses parecidas
com a Vênus de Giorgione, que se tornou pioneiro em um tipo de iconografia da história da
arte. Lembramos que todos estes artistas citados estão na Galeria de Drummond.
Para o poeta, se a Vênus de Giorgione está adormecida, seu púbis está acordado: sua
mão esconde suavemente o que acalenta seu sono. Se a Vênus de Urbino, de Ticiano,
acordada, repousa sua mão sobre o púbis, a Vênus Adormecida, de Giorgione, parece
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acariciá-lo. Não há luxuria, há poesia. Esta Vênus inaugura uma tradição na história da arte
que nos acompanha até hoje.

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21 JARDIM DO MANICÔMIO (Van Gogh)

O jardim onde passeia a ausência de razão


é todo ele ordem natural.
A terra acolhe o desvario
que assimila a verdura e a leveza do ar.

No início de 1889, as crises de Van Gogh continuam e ele permanece internado.


Neste período, pinta o Jardim do Hospital com cores expressivas, principalmente com o
azul e o verde (a verdura, como chamou Drummond). Van Gogh transformou este Jardim
em uma feliz composição de linhas coloridas.
Para o poeta, na aparente ordem que se vê neste jardim, passeia a ausência de
razão. Se nesta primeira parte, Drummond faz um diagnóstico preciso e impiedoso de Van
Gogh, na segunda parte, o poeta percebe o desejo do artista em buscar um porto seguro.
Estes dois últimos versos reforçam este desejo. Drummond percebeu que a natureza pintada
pelo artista acolhe seus delírios, que por sua vez, transformam este pequeno instante num
momento de plena vida.

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22 VOLTAIRE (Houdon)

O mundo não merece gargalhada. Basta-lhe


sorriso de descrença e zombaria.
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Jean-Antoine Houdon (1741-1828) foi o mais famoso escultor francês do século


XVIII, e talvez o mais famoso de seu tempo, a ponto de receber uma encomenda de George
Washington, do outro lado do Atlântico.
Houdon retratou os maiores homens de sua época, e foi capaz de captar o caráter
singular de cada modelo. Sua obra-prima é Voltaire Sentado (também fez um busto
dedicado ao filósofo). O caráter individual de Voltaire está todo neste modelo de 1,19 m,
representado com uma túnica, como se fosse um filósofo clássico. Ninguém captou tão bem
a expressão humana como Houdon.
Os comentários de Auguste Rodin (1840-1917) sobre Houdon, durante uma visita
ao Museu do Louvre, ilustram o quanto Voltaire provoca admiração. Seus comentários
explicam os dois versos de Drummond:

Que maravilha! É a personificação da malícia.


Os olhos ligeiramente oblíquos parecem espreitar algum adversário. O nariz
pontudo lembra o de uma raposa - como se estivesse todo o tempo farejando, aqui e ali, o
abuso e o ridículo; vê-se que freme. E a boca - que obra-prima! Está emoldurada por dois
sulcos de ironia. Parece resmungar não sei bem que sarcasmo.(15)

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23 SAPATOS (Van Gogh)

Cansaram-se de caminhar
ou o caminho se cansou?

Van Gogh é o artista mais visitado por Drummond em Arte em Exposição. São
quatro obras. Este Sapatos desperta em Drummond uma vontade de ser ainda mais sintético
que nos poemas anteriores. Como no hai-kai, Drummond atinge seu objetivo com um
mínimo de palavras. Ou quase sem palavras.
Nesta coleção de micropoemas que é Arte em Exposição, Drummond conseguiu
captar o instante como um repórter fotográfico. O instante não é só aquele em que olhamos
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os quadros escolhidos para esta exposição, mas também aqueles em que estes vários artistas
conseguiram congelar, para depois nos reportar. Foi o que fez Van Gogh com sua cadeira,
com seu jardim, com seu Café e com estes sapatos.
Se lembrarmos da cadeira pintada isoladamente, veremos que ela tinha uma história,
a de Gauguin, assim como o jardim do hospital. Estes hai-kais vangoghianos (no plural,
porque o artista pintou cinco pares de sapatos - ou botas - em seu período parisiense) são
primorosos pela simplicidade; mas, ao mesmo tempo, são complexos pela espacialidade
sugerida, pelas cores e pela inversão dos valores estéticos da época. Sapatos é quase uma
natureza-morta, mas com o arrepio das coisas simples que Van Gogh conseguia transmitir.
Não são frutas, mas sapatos já usados, e, portanto, com uma história de quem muito
caminhou.

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24 AUTO-RETRATO COM COPO DE VINHO (Chagall)

Seja celebrada a alegria nas alturas


por cima dócil das mulheres.
A cavalo melhor se chega ao céu.

A imaginação de Marc Chagall (1887-1985), associada às lembranças de infância, o


transformaram num artista simples e sofisticado ao mesmo tempo. Ele parece reformular
essas lembranças o tempo todo. Sua poética está associada ao clima de sonho, a uma
espacialidade única e às figuras que flutuam. As cores transparentes favorecem ainda mais
estas sensações. Alguns destes aspectos o associam a Drummond: a linguagem simples,
livre e sofisticada, as lembranças da infância, e as composições originais. Chagall foi
vizinho de Soutine e Modigliani, em Montparnasse, o que torna a Galeria Drummondiana
ainda mais especial. Chagall afirmava que em um quadro, a lógica não tem importância; daí
o anticonvencialismo de suas obras.
No auto-retrato escolhido por Drummond, o artista está nos ombros de uma mulher,
e sorri com um copo de vinho, celebrando a alegria nas alturas. O poeta o vê querendo
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chegar ao céu. Chagall que pintou tantas personagens voando, desta vez precisou dos
ombros de uma mulher para chegar ao céu.
Numa exposição organizada de forma particular pelo poeta, nada melhor que um
auto-retrato nada comum de um artista que dizia que pintura é uma janela para alçar vôo
para um outro mundo.

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25 QUADRO I (Mondrian)

Universo passado a limpo.


Linhas tortas ou sensuais desaparecem.
A cor, fruto de álgebra, perdura.

Piet Mondrian (1872-1944) afirmava que buscava a expressão da realidade pura. Se


toda imagem é realidade, ela pode, então, ser estruturalmente ordenada. A arte, para
Mondrian, é uma forma de organizar a vida.
Quadro I, de 1921, representa as principais idéias do Neoplasticismo de Mondrian:
traços retos e cores primárias. Para tanto, o artista buscava eliminar as linhas curvas e
despreocupava-se com o espaço tridimensional.
A utopia mondriana criava uma arte em que o equilíbrio e a disciplina fossem
refletidos. Assim, com sua obra, Mondrian construiu uma verdadeira teoria da arte, mesmo
não sendo escrita. Drummond percebeu o projeto de Mondrian: o universo passado a
limpo, as linhas tortas ou sensuais que desaparecem e a cor, fruto da álgebra, que perdura.
Não parece uma crítica, mas uma análise, que está próxima de Argan:

Parece (e, em certo sentido, é) uma operação matemática. (...) O postulado de


Mondrian é "eliminar o trágico da vida"; e é trágico tudo o que provém do inconsciente,
dos complexos de culpa ou de poder, de inferioridade ou superioridade.(16)
77

Por isso Mondrian queria eliminar as linhas tortas ou sensuais. Drummond não o
critica, apesar de amar as linhas tortas e sensuais, como pode-se ver nesta Exposição. À
eterna alegria de viver de Matisse(17), ao riso entre lágrimas de Chagall(18), às curvas da
Vênus de Giorgione, ao trágico grito de Munh, e a quase todas as obras desta Exposição,
Drummond contrapõe um Mondrian, mostrando que é possível resolver, em parte, as
contradições do mundo. Na utopia drummondiana, a arte possibilita a todos uma
convivência social sem o recurso da violência. Neste sentido podemos concordar com a
opinião de Argan:

Por isso, pode-se dizer que, não obstante a deliberada frieza de sua pintura (ou
justamente devido a ela), Mondrian foi, depois de Cézanne, a consciência mais elevada,
mais lúcida, mais civilizada na história da arte moderna.(19)

Não por acaso Drummond o escolheu. Mondrian elevou o projeto abstrato às


alturas.

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26 CARNAVAL DE ARLEQUIM

Descobri que a vida é bailarina


e que nenhum ponto inerte
anula o viravoltear das coisas.

Contrapondo-se ao geométrico Mondrian, Drummond escolheu um artista que


trabalhava principalmente com desenhos curvilíneos: Juan Miró (1893-1983). No entanto, o
mesmo rigor e as mesmas preocupações estão presentes, tanto em Mondrian quanto em
Miró. Por caminhos diferentes, ambos buscavam imagens que justificassem a
individualidade humana. Porém, Miró preferiu a espontaneidade dos símbolos
inconscientes, com seus signos irracionais e suas cores puras. Eis a importância da ação do
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pintor: ele é o elo para fazer vir à tona uma dimensão psíquica profunda. Argan o compara
com Klee:

É fácil notar que a dimensão psíquica em que se move Miró é a mesma de Klee,
porém o movimento é inverso: Klee mergulha e explora, Miró sobe e aflora.(20)

Drummond pontua a característica lúdica de Miró, ao escrever que descobriu que a


vida é bailarina. Sim, os signos de Miró parecem bailar. Lembramos que o escultor
americano Calder materializou em móbiles as linhas e planos de Miró.
Mas apesar da obra de Miró ser irônica, jovial e lúdica, Carnaval de Arlequim, traz
à tona aspectos dramáticos da personalidade do artista: este quadro nasceu num período
difícil de sua vida (1924/25). Miró ficava horas tentando captar as sensações provocadas
pela fome, e não se preocupou com o espaço realista, mas em trazer o inconsciente para o
espaço pictórico. Em Carnaval, estes aspectos estão presentes: insetos dançam e tocam
músicas, mas Arlequim tem o aspecto triste. Drummond percebe e o adverte: nenhum ponto
inerte anula o viravoltear das coisas. O poeta aproveita para inventar um verbo
maravilhoso e miróniano: viravoltear, mistura de virar, voltear e viravoltar.

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27 FUZILAMENTO NA MONCLOA (Goya)

Balé de tiros gritos corpos derrubados.


A lanterna tranqüila
acena para a esperança da Ressurreição.

As obras de Francisco Goya (1746-1828) sempre causam algum tipo de impacto.


Virtuoso, ele se aproveitava do talento para criar obras de profundo caráter emotivo. Não
foi diferente com o Fuzilamento na Moncloa. Goya pintou duas monumentais telas sobre o
tema. Na primeira, o artista mostrou o levante do povo contra o exército de Napoleão. O
absurdo da guerra é mostrado sem nenhuma alusão a patriotismo ou qualquer tipo de
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maniqueísmo. Há apenas o horror de uma batalha de rua de uma inexplicável guerra. Na


segunda tela (2,66 x 3,45 m), Goya mostra a represália dos franceses: os manifestantes são
executados sem qualquer julgamento para provar ou não o envolvimento na rebelião.
Drummond captou bem a lanterna tranqüila iluminando a cena. Na tela, há um
grande lampião jogando luz sobre os rebeldes espanhóis, ressaltando as expressões de
horror e desespero. A figura central, de braços abertos, tornou-se uma das personagens
mais famosas da pintura. A fileira de soldados sem rostos, com gestos mecânicos,
preparando-se para atirar, também se tornou um símbolo do terror. Mas a personagem
central, com sua camisa branca e seus braços abertos, como um Cristo, acena com um
desafio, para a esperança da Ressurreição.
O poeta viu um balé de tiros gritos corpos derrubados, justamente o drama que o
artista quis transmitir, com todo impacto emocional que queria registrar para a História.
Goya é precursor da revolução artística que ocorreria alguns anos depois.

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28 AS TRÊS GRAÇAS (Rubens)

Curvilíneos volumes se consultam


e concluem:
Beleza é redundância.

Rubens (1577-1640) nasceu na Alemanha, viveu em Antuérpia (onde se tornou o


mais célebre pintor flamengo), aos 22 anos foi para a Itália, iniciando uma série de viagens
entre os dois países. Nasceu Peter Paul (em flamengo, Peeter Pauwel), mas depois de adulto
adotou a forma italiana, Pietro Pauolo. Foi um fecundo pintor e criou uma importante
oficina, com um fluxo intenso de trabalho. Também criou uma importante obra sobre o
mito de Leda e o Cisne, que tanto impressionou Drummond.
Rubens tem uma característica particular: o tratamento que dava a pele humana.
Percebe-se este aspecto em As Três Graças: as curvas das mulheres voluptuosas refletiam
seu conceito artístico de beleza, que Drummond resumiu em seus três versos. As três
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mulheres, nuas, abraçadas, concluem: Beleza é redundância. Esta conclusão pode significar
que Beleza é excesso (no caso, volume) ou supérfluo (elas são tão belas para o ideal
rubensiano, que a própria Beleza deixa de ter importância, permanecendo apenas a
serenidade da própria composição). Drummond escreveu Beleza com B maiúsculo, como
se quisesse ressaltar (1) a grandeza da Beleza, (2) as curvas sensuais da letra B maiúscula,
(3) os curvilíneos volumes das três mulheres. Desde o texto publicado na revista Joaquim, o
poeta-curador é um defensor das linhas curvas, e sempre aproveita para exaltá-las.

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29 PIETÀ (Miguel Ângelo)

Dor é incomunicável.
O mármore comunica-se,
acusa-nos a todos.

Michelangelo (ou Miguel Ângelo, como escreve Drummond), nem é preciso dizer,
representa a figura-síntese do Renascimento, ou o conceito de genialidade sobre-humana.
Cada vez mais, Michelangelo, como Leonardo Da Vinci, nos espanta com sua capacidade
de criar e perpetuar valores como a beleza, por exemplo.
Algumas de suas características estão em Pietà, que Drummond sintetizou em três
versos: a expressão das emoções das personagens (a dor incomunicável), a sofisticada
técnica do artista em ressaltar a anatomia dos corpos, em particular o corpo contorcido de
Cristo e da mão de Nossa Senhora apoiando o corpo do filho. O mármore de Michelangelo
é capaz de comunicar estes detalhes, e nos transmitir um realismo tão intenso, que até hoje
estes gestos imortalizados pelo artista emocionam.
O silêncio dos dois (já que a dor é incomunicável) é quebrado pelo grito de dor do
mármore, cinzelado para acusar-nos a todos.

...
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30 A DUQUESA DE ALBA (Goya)

Ser o cachorrinho da Duquesa


é de certo modo
ser uma partícula da Duquesa.

Conta-se que o relacionamento entre Goya e a Duquesa de Alba causou escândalo.


Bonita, inteligente e poderosa, a Duquesa era 16 anos mais moça que Goya, e, ainda por
cima, era considerada impulsiva. A principal lenda conta que a Duquesa foi a modelo para
as famosas telas eróticas A Maja Desnuda e A Maja Vestida. Sabe-se que quando o Duque
morreu, a Duquesa levou o artista para sua propriedade, onde ela teria sido modelo para
vários trabalhos.
Em um de seus retratos, a Duquesa está vestida como um das Majas de Madri, com
um vestido negro e luxuoso, num céu sem nuvens e um fundo idílico. Ela aponta para o
chão, onde está escrito "Solo Goya", Somente Goya. Em suas mãos há dois anéis, onde se lê
os nomes Goya e Alba. (21)
Em outro retrato, a Duquesa está com um vestido branco e uma faixa vermelha na
cintura. A paisagem ao fundo é parecida com a do retrato anterior e há um cachorrinho
branco aos seus pés, que também tem uma fita vermelha. Este cachorrinho chamou atenção
de Drummond: o vestido branco da Duquesa, com uma fita vermelha em volta da cintura e
com detalhes também vermelhos no pescoço e no peito, e o minúsculo cachorro, também
todo branco e com uma pequena fita vermelha, o transformam numa pequena partícula da
Duquesa. A semelhança entre os dois é engraçada. Drummond captou o humor de Goya,
acrescentando mais humor.

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31 GIOCONDA (Da Vinci)

O ardiloso sorriso
alonga-se em silêncio
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para contemporâneos e pósteros


ansiosos, em vão, por decifrá-lo.
Não há decifração. Há o sorriso.
Drummond não poderia deixar de fora o quadro mais famoso do mundo. É um
quadro pequeno (76,8 x 52,7 m), protegido por um vidro à prova de balas, no Museu do
Louvre, em Paris. Se inspirou tantos artistas, inspirou também Drummond neste poema,
que avisa a todos esses artistas inspirados por La Gioconda: Não há decifração. Há o
sorriso.
O poema de Drummond começa pelo óbvio: o sorriso. Antes da leitura do final,
perguntamos como todas as pessoas do mundo: Qual o segredo deste sorriso? Já
antecipamos a resposta de Drummond: nunca saberemos. O poeta nos pede para ficarmos
apenas com o sorriso. O sorriso como fenômeno, apenas, sem explicações. Ele o chama de
ardiloso sorriso: uma armadilha. Sendo assim, ele alonga-se em silêncio, e em silêncio
permanece nestes quinhentos anos em que tentamos decifrá-lo. Drummond chegou mais
perto: é um sorriso ardiloso, e, portanto, um sorriso manhoso, um sorriso astuto, um sorriso
esperto. Uma armadilha.

...

32 RETRATO DE ERASMO DE ROTTERDAM (Quentin Metsys)

Santidade de escrever,
insanidade de escrever
equivalem-se. O sábio
equilibra-se no caos.

Quentin Metsys (1465 ou 66-1530) era um pintor flamengo que criava um clima
espiritual em suas obras, fossem elas religiosas ou retratísticas. Percebemos isto no Retrato
de Erasmo de Rotterdan, de que nos fala Drummond. Estava irmanado no estilo com Van
Eyck, mas foi muito influenciado por Rafael e Leonardo Da Vinci.
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Erasmo de Rotterdan (1466-1536) foi um dos maiores humanistas do Renascimento.


Alguns o consideram o maior. Criticou a Igreja e Lutero. Estas críticas buscavam modificar
a Igreja e melhorar as reformas propostas por Lutero. Na obra de Metsys, Erasmo aparece
de perfil, escrevendo. Silviano Santiago acredita que Drummond identificou-se com
Erasmo: "Ele se vê num quadro, como o modelo se enxerga a si mesmo num retrato pintado
(22)
por Quentin Metsys". Esta personagem que escreve como um santo e como um insano,
será Drummond? O próprio Drummond responde (falando de Erasmo e talvez de si): A
santidade de escrever e a insanidade de escrever, equivalem-se. Voltamos aos extremos,
que para Drummond, equivalem-se; afinal, o sábio equilibra-se no caos. Não há melhor
verso para encerrar esta Exposição.

(1) Arte em Exposição. Rio de Janeiro: Ed. Salamandra/Ed. Record, 1990.


Farewell foi publicado em 1996. Foi mantida a grafia de todos os nomes de
artistas e obras, que constam no volume Farewell, que serviu de base para este
trabalho.
(2) Santiago, Silviano. Posfácio de Farewell, p 125.
(3) Publicado em Fazendeiro do Ar, de 1955.
(4) Essa autocaricatura está na primeira página do livro Antologia Poética,
organizada pelo poeta. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2001.
(5) Argan, Giulio Carlo. Arte Moderna, p 258.
(6) Idem, p 215.
(7) Freud, S. Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância. Tradução de
Walderedo Ismael de Oliveira e Órizon Carneiro Muniz. Rio de Janeiro: Ed.
Imago, 1997.
(8) Traduzido do inglês por Alcir Pécora e Paulo Franchetti. Publicado na edição de
19 de Agosto de 2000, do jornal Correio Popular, de Campinas. As duas
primeiras estrofes originais do poema Leda and the swan, de W. B. Yeats, são
as seguintes: A sudden blow: the great winds beating stil
Above the staggering girl, her thighs caressed
By the dark webs, her nape caught in his bill.
He holds her helpless breast upon his breast.

How can those terrified vague fingers push


The feathered glory from her loosening thighs?
And how can body, laid in that white rush.
But feel the strange heart beating where it lies?
(9) Argan, Giulio Carlo. Arte Moderna, p 658.
(10) Idem.
(11) Geraldo Jordão Pereira, citado por Silviano Santiago, p 127.
(12) Argan, Giulio Carlo. Arte Moderna, p 674.
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(13) Idem, p 125.


(14) Van Gogh, Vincent. Cartas a Théo. Tradução de Pierre Ruprecht. Porto
Alegre: Ed. L&PM, 1991, p 203.
(15) Rodin, Auguste. A Arte - Conversas com Paul Gsell. Tradução de Anna Olga
de Barros Barreto. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1990, p 97.
(16) Argan, Giulio Carlo. Arte Moderna, p 412.
(17) Idem, p 412.
(18) Idem, p 412.
(19) Idem, p 414 (Grifo do Autor).
(20) Idem, p 459.
(21) As Majas eram jovens famosas pela beleza, usavam roupas sedutoras e tinham
um estilo de vida sem preocupações. Seus envolvimentos amorosos,
geralmente, eram tumultuados. Os Majos eram seus protetores. Goya pintou um
quadro, As Majas no Balcão, onde estas características estão presentes: duas
jovens bonitas estão sentadas num balcão, iluminadas por uma esplendorosa
luz, observadas por dois homens encobertos ao fundo.
(22) Santiago, Silviano. Posfácio de Farewell, p 127.
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6.0 - CORES, LINHAS, PLANOS E LUZES

Drummond sempre utilizou um código artístico para auxiliá-lo no objetivo de


refletir sobre o mundo. Este processo original de criação, usando cores, planos, linhas ou
nos remetendo a algum artista ou obra, não deve ser compreendido como apropriação de
um código específico de uma determinada linguagem artística, mas um jeito de ver o
mundo através de uma visão interdependente. Afinal, Drummond escrevia de todos os
jeitos, e de todos os jeitos escreveu sobre Artes Plásticas.
Este capítulo é uma viagem por estas referências.
Já em seu segundo livro, Brejo das Almas, de 1934, há um poema dedicado a
Aleijadinho, O vôo sobre as igrejas. Seus versos já apresentam o futuro especialista que
escreveria com freqüência sobre temas ligados a arte. O jovem Drummond faz um vôo
literal sobre as igrejas do barroco mineiro, e em especial, sobre Aleijadinho:

Vamos até a Matriz de Antônio Dias


onde repousa, pó sem esperança, pó sem lembrança, o
[Aleijadinho.
(...)
Este mulato de gênio
lavou na pedra-sabão
todos os nossos pecados,
as nossas luxúrias todas,
e esse tropel de desejos,
essa ânsia de ir para o céu
e de pecar mais na terra;
este mulato de gênio
subiu nas asas da fama,
teve dinheiro, mulher,
escravo, comida farta,
teve também escorbuto
e morreu sem consolação.
86

(...)
Era uma vez um Aleijadinho,
não tinha dedo, não tinha mão,
raiva e cinzel, lá isso tinha,
era uma vez um Aleijadinho,
era uma vez muitas igrejas
com muitos paraísos e muitos infernos,
era uma vez São João, Ouro Preto,
Mariana, Sabará, Congonhas,
era uma vez muitas cidades
e o Aleijadinho era uma vez.

Há no Barroco as polaridades que Drummond aprecia: crise e criatividade, início


das grandes descobertas científicas e o aguçamento da tradição religiosa, razão e fé,
reforma e contra-reforma, absolutismo e liberdade. Estas polarizações resultaram numa
linguagem plástica e literária que demonstravam estes dilemas.
Affonso Ávila, estudioso da arte barroca, escreveu da seguinte forma sobre as
repercussões destas dualidades no Brasil, em Minas Gerais de Drummond e em
Aleijadinho:

No Brasil, e mais amadurecidamente nas Minas Gerais do chamado Ciclo do Ouro,


favorecido pela excepcionalidade do contexto econômico, o Barroco assumiu, ainda que às
vezes tardiamente, esta instância superior de inventividade, fazendo aqui se conjugarem,
de modo redimensionador e original, os elementos definidores da proposta dialético-
histórica e estético-criativa do estilo que surgiu vitoriosamente no Seiscentos e vigorou até
o fim dos Setecentos: a intenção persuasória, o primado do visual e o enleamento lúdico.
Acresce a isso a carga de tropicalidade com que o Barroco se refundiu e se investiu em
toda a América ibérica, numa franca e acentuada resposta de cor, luz e paixão da arte do
colonizado à arte transplantada do colonizador. (1)
87

As partes do poema que escolhemos falam especificamente de Aleijadinho, e


ilustram o ensaio que Mário de Andrade escreveu sobre o artista, em 1928. Mais que
ilustrar o poema de Drummond, este ensaio parece demonstrar a enorme influência que
Mário de Andrade exerceu sobre o grupo de jovens que inauguraram a segunda fase do
modernismo brasileiro. Eis alguns trechos, com a grafia peculiar de Mário de Andrade, para
comparação entre as duas abordagens:

Antônio Francisco Lisboa era respeitado. Lhe pressentiam o gênio, e si não


enriqueceu, de certo foi porque, ver a maioria dos artistas, gastava o que ganhava. (...)
Reconhecidamente aceito com artista de valor, célebre a ponto de lhe aceitarem as
exigências e caprichos, o Aleijadinho quase não foi celebrado no tempo dele. (...)
Afirmamos a genialidade do Aleijadinho, mas esbarramos logo com o conceito de
genialidade que nos veio da Europa. (...)
O Aleijadinho não teve o estrangeiro que... lhe desse gênio. E por isso nós não
acreditamos em nós. (...)
É certo que em Congonhas o Aleijadinho tratou mais a madeira do que a pedra.
Ora, ele foi um técnico formidável que sabia perfeitamente se condicionar aos materiais
que empregava, bem como até que ponto os podia condicionar à sua imaginação
expressiva. (...)
Na pedra foi um plástico intrínseco, na madeira um expressionista às vezes feroz.
(...)
E na escultura ele é toda uma história da arte. (...)
Era de todos, o único que se poderá dizer nacional, pela originalidade das suas
soluções. (...)
É a solução brasileira da Colônia. (...)
O Aleijadinho lembra tudo! Evoca os primitivos itálicos, bosqueja a Renascença, se
afunda no gótico, quasi francês por vezes, muito germânico quasi sempre, espanhol no
realismo místico. (...) (2)

Mário de Andrade contribuiu para a descoberta do Brasil: toda uma geração se


beneficiou das lições do mestre modernista. Mais velho, Mário era uma espécie de farol
88

intelectual. Vide o número de cartas que trocou com quase todos os jovens talentos da
primeira metade do século XX, incluindo as cartas que trocou com Drummond (já
publicadas em livro).(3) Ambos comungavam a mesma opinião sobre a genialidade de
Aleijadinho, e, talvez, sobre as curvas barroquistas. Mais uma vez lembramos o artigo de
Joaquim, onde Drummond perguntava: Quem, entre nós humanos, não defenderia as linhas
curvas? E lembramos, também, as várias obras de Arte em Exposição, cujos artistas
pareciam criar verdadeiras odes às linhas curvas.
No terceiro livro, Sentimento do Mundo (1940), há o poema dedicado a Portinari, A
noite dissolve os homens, já analisado, e com o belíssimo verso: O mundo se tinge com as
tintas da antemanhã... Neste livro há outro poema, Lembrança do mundo antigo, em que os
quatro primeiros versos representam um verdadeiro tratado sobre a cor:

Clara passeava no jardim com as crianças.


O céu era verde sobre o gramado,
a água era dourada sob as pontes,
outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,
o guarda-civil sorria, passavam bicicletas,
a menina pisou a relva para pegar um pássaro,
o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era
[tranqüilo em redor de Clara.
(...)

As descrições que Drummond faz das cores, lembram as cartas que Van Gogh
enviou ao irmão Théo, relatando os quadros que estava pintando. Há a mesma paixão pelas
cores.
Em A Rosa do Povo, de 1945, o poema Mário de Andrade desce aos internos,
dedicado ao amigo querido, as referências, em sua parte IV, são para Portinari (sempre),
Cézanne e Picasso. Uma verdadeira Santíssima Trindade das Artes:

IV
(...)
89

Mais perto, e uma lâmpada. Mais perto, e quadros,


quadros. Portinari aqui esteve, deixou
sua garra. Aqui Cézanne e Picasso,
os primitivos, os cantadores, a gente de pé-no-chão,
a voz que vem do Nordeste, os fetiches, as religiões,
os bichos... Aqui tudo se acumulou,
esta é a Rua Lopes Chaves, 546,
outrora 108. Para aqui muitas vezes voou
meu pensamento. Daqui vinha a palavra
esperada na dúvida e no cacto.
Aqui nunca pisei. Mas como o chão
sabe a forma dos pés e é liso e beija!
Todas as brisas da saudade balançam a casa,
empurram a casa,
navio de São Paulo no céu nacional
vai colhendo amigos de Minas e Rio Grande do Sul,
gente de Pernambuco e Pará, todos os apertos de mão,
todas as confidências a casa recolhe,
embala, pastoreia.
(...)

Este longo poema, do qual apresentamos um trecho, mostra a importância de Mário


de Andrade na formação intelectual dos jovens modernistas (Daqui vinha a palavra
esperada na dúvida e no cacto). Mas, dentre outras coisas, Drummond fala da paixão de
Mário por quadros, que transformou a famosa casa da Rua Lopes Chaves em uma autêntica
Galeria de Arte. Portinari lá esteve e deixou sua garra, assim como Cézanne e Picasso. Os
primitivos também. O poeta destaca o amor de Mário de Andrade pela cultura brasileira.
Mário representa toda uma geração de intelectuais e artistas que buscaram conciliar a
paixão pela cultura européia (representada no poema por Cézanne e Picasso) e pela cultura
popular. Entre os dois artistas revolucionários e europeus, estão os primitivos, os
cantadores, a gente de pé-no-chão, a voz que vem do Nordeste, os fetiches, as religiões, os
90

bichos...Mário de Andrade tudo acumulou na Rua Lopes Chaves. O amigo mais velho
sempre tinha a palavra esperada, e Drummond, reservado como era, na Lopes Chaves
nunca esteve. Mas se era reservado nas relações, Drummond soltava as rédeas em seus
poemas. Ninguém se desnudou tanto.
Em Claro Enigma (1951) há o poema A Tela Contempada:

Pintor da soledade nos vestíbulos


de mármore e losango, onde as colunas
se deploram silentes, sem que as pombas
venham trazer um pouco do seu ruflo;

traça das finas torres consumidas


no vazio mais branco e na insolvência
de arquiteturas não arquitetadas,
porque a plástica é vã, se não comove,

ó criador de mitos que sufocam,


desperdiçando a terra, e já recuam
para a noite, e no charco se constelam,

por teus condutos flui um sangue vago,


e nas tuas pupilas, sob o tédio,
é a vida um suspiro sem paixão.

A Tela Contemplada é um soneto brilhante, tanto para quem ama a pintura, quanto
para quem ama a poesia de Drummond, sem contar a maestria com que o poeta comenta
alguns dos valores plásticos em que sempre acreditou e que sempre foram caros a ele.
Concordando ou não com estes valores, é importante ler as opiniões de Drummond, escritos
democraticamente e com tal precisão, que acabamos tocados.
A qual pintor Drummond se refere? Sabemos que o poeta dirige-se ao pintor da
soledade nos vestíbulos de mármore e losango... Se pensarmos em vestíbulo como sendo o
91

espaço entre a rua e a entrada de um edifício; e soledade como um lugar ermo, deserto ou
solitário, podemos considerar esse pintor como sendo o pintor de uma paisagem solitária e
fria como o mármore, cujas colunas lamentam silenciosamente tamanha solidão, onde nem
as pombas agitam suas asas.
O poeta continua apresentá-lo: sua obra é resultado do traçado de finas torres
consumidas no vazio mais branco. Um pintor do vazio, portanto, além de um pintor da
solidão. E mais: essas finas torres são consumidas no vazio mais branco, sim, mas também
na insolvência de arquiteturas não arquitetadas. O vazio é ainda pior, porque o espaço não
foi arquitetado: ficou insolvente. Mas ficou devendo a quem afinal? Drummond responde
deixando claro suas idéias estéticas: As torres foram consumidas no vazio e na insolvência
de uma arquitetura não realizada porque a plástica é vã, se não comove. Eis a chave para o
entendimento da ideologia estética de Drummond: a beleza, por si só, é ilusória, se não
comover. Esta divisa atravessa toda sua obra e reflete todas as suas escolhas.
Drummond chama esse pintor da solidão, das colunas lamuriosas e das torres
consumidas, de criador de mitos que sufocam, aquele que desperdiça a terra e no charco se
reune, por cujas veias flui um sangue indefinido e nas pupilas, sob o tédio, a vida é um
suspiro sem paixão.
A referência, talvez, não é a um pintor em especial, mas a uma tendência
racionalista demais para o poeta. O título do poema, A Tela Contemplada, é uma das chaves
para esta conclusão: a fruição estética para Drummond, se dava principalmente pela
contemplação da obra de arte. Uma contemplação reflexiva, meditativa, embevecida. O
livro Claro Enigma é de 1951, ano chave e fundador para as Artes Plásticas no Brasil [já
analisamos este período], quando o Abstracionismo de vários matizes encontrou, enfim,
sua morada definitiva entre nós. Drummond dava, assim, através de um soneto, sua opinião.
Aliás, não foi o único a opinar, todos opinavam e as polêmicas eram freqüentes.
Drummond usou a forma mais sutil, o poema, num momento em que a temperatura era alta
entre artistas, críticos, intelectuais e jornalistas. À sua maneira, refletiu sobre o tema e
deixou cravado no poema suas idéias: 1) a plástica é vã, se não comove; 2) a vida não pode
ser um suspiro sem paixão. Há algo de romântico neste soneto, perceptível em toda a obra
de Drummond, mas um pouco mais escancarado aqui. Este soneto e as idéias contidas nele,
escrito num período de retomada da ordem após o radicalismo modernista dos anos 20 e 30,
92

marcam não só Drummond, mas o período pós-45. Alguns apontam como o período de
maturidade do poeta, outros como a tradução de um certo reacionarismo. Drummond não
mudou, ou seu livro não se chamaria Claro Enigma, achado fantástico para suas reflexões
sobre as polaridades, que ressaltamos com freqüência durante todo este trabalho.
Drummond gostava de antíteses, de contradições, de polaridades, confirmados por
Francisco Achcar:

O título do livro é um oxímoro - antítese em que os termos opostos se contradizem


ou negam: obscuridade e clareza, sombras e luz. E é no escuro que o livro começa: sua
primeira parte se intitula "Entre Lobo e Cão".(4)

Neste caso, clareza contrapõe-se a sombra ou a dúvida. Drummond queria dizer que
não tinha certezas, e que suas opiniões representavam apenas um ponto de vista. Assim, um
quadro era observado do lugar que o poeta ocupava, do ponto de onde estava. Vimos até
agora que suas escolhas tinham um único mediador: ele próprio. Os últimos versos do
poema Relógio do Rosário, que fecha o livro Claro Enigma, as polarizações
drummondianas são otimistas, a sombra dá lugar a luz e a cor:

Mas na dourada praça do Rosário,


foi-se, no som, a sombra. O columbário

já cinza se concentra, pó de tumbas,


já se permite azul, risco de pombas.

Drummond voltaria a se ocupar das artes no livro A vida passada a limpo, de 1959.
São três os poemas que abordam o tema desta pesquisa: Um morto na Índia, sobre o pintor
Tomás Santa Rosa; o soneto que dá título ao livro, A vida passada a limpo, que não aborda
diretamente as Artes Plásticas, mas faz uma bela referência à cor; e o importante poema A
Goeldi, já analisado.
Tomás Santa Rosa nasceu na Paraíba, em 1909, e morreu em 1956, durante uma
viagem à Índia. Daí o título A um morto na Índia. Foi discípulo de Portinari, conviveu com
93

artistas e intelectuais no Rio de Janeiro, e criou a cenografia para Vestido de Noiva, de


Nelson Rodrigues, em 1943, encenação que mudou a história do teatro brasileiro. Foi
ilustrador, diagramador, cenógrafo, figurinista, professor, crítico de arte e pintor.
O poema dedicado a este versátil artista começa assim:

Meu caro Santa Rosa, que cenário


diferente de quantos compuseste,
a teu fim reservou a sorte vária,
unindo Paraíba e Índias de leste!

Desenhou capas para um emocionado Drummond:

(...)
Meus livros são teus livros, nessa rubra
capa com que os vestiste, e que entrelaça
um desespero aberto ao sol de outubro
à aérea flor das letras, ritmo e graça.
(...)

As duas últimas estrofes mostram a personalidade do artista, sua paixão pela pintura
(irá pintar o céu) e a dor do poeta pela perda prematura do amigo:

Cortês amigo, a fala baixa, o manso


modo de conviver, e a dura crítica,
e o mais de ti que em fantasia dança,
pois a face do artista é sempre mítica,

em movimento rápido se fecha


na rosa de teu nome, claro véu,
ó Tomás Santa Rosa... E em Nova Delhi,
o convite de Deus: pintar o céu.
94

No soneto A vida passada a limpo, o branco tem papel importante. Esta cor
aparecerá mais vezes:

Ó esplendida lua, debruçada


sobre Joaquim Nabuco, 81.
Tu não banhas apenas a fachada
e o quarto de dormir, prenda comum.

Baixas a um vago em mim, onde nenhum


halo humano ou divino fez pousada,
e me penetras, lâmina de Ogum,
e sou uma lagoa iluminada.

Tudo branco, no tempo. Que limpeza


nos resíduos e vozes e na cor
que era sinistra, e agora, flor surpresa,

já não destila mágoa nem furor:


fruto de aceitação da natureza,
essa alvura de morte lembra amor.

É em Lição de Coisas, de 1962, que encontramos o poema A Mão, dedicado a


Portinari. Neste livro, encontramos também o poema Ataíde, dedicado ao pintor barroco
Manuel da Costa Ataíde:

Alferes de milícias Manuel da Costa Ataíde:


eu, paisano,
bato continência
em vossa admiração.

Há dois séculos menos um dia, contados na folhinha,


95

batizaram-vos na Sé da Cidade Mariana,


mas isso não teria importância nenhuma
se mais tarde não houvésseis olhado ali para o teto
e reparado na pintura de Manuel Rabelo de Souza.
O rumo fora traçado.
Pintaríeis outras tábuas de outros tetos
ou mais precisamente
romperíeis o forro para a conversação radiante com
[Deus.

Alferes
que em São Francisco de Assis de Vila Rica
derramais sobre nós no azul-espaço
do teatro barroco do céu
o louvor cristalino coral orquestral dos serafins
à Senhora Nossa e dos Anjos;
repórter da Fuga e da Ceia,
testemunha do Poverello,
dono da luz e do verde-veronese,
inventor de cores insabidas,
a espalhar por vinte igrejas das Minas
"uma bonita, valente e espaçosa pintura":
em vossa admiração
bato continência.

E porque
ao sairdes de vossa casinha da Rua Nova nos fundos
[do Carmo
encontro-vos sempre caminhando
mano a mano com o mestre mais velho Antônio Francisco
[Lisboa
96

e porque viveis os dois em comum o ato da imaginação


e em comum o fixais em matéria, numa cidade após outra,
porque soubestes amá-lo, ao difícil e raro Antônio
[Francisco,
e manifestais a arte de dois na unidade da criação,
bato continência
em vossa admiração.

Manuel da Costa Ataíde (Mariana, 1762-1830) é considerado o principal pintor do


período colonial brasileiro. Ataíde pintou forros e telas. Drummond bate continência ao
artista em sinal de admiração, e demonstra conhecer muito bem sua obra. Seu poema é uma
análise perfeita do pintor e do Barroco mineiro.
A principal obra de Ataíde (sua obra-prima) é o teto da Igreja de São Francisco, em
Ouro Preto, que Drummond destaca, assim como o inventor de cores insabidas, em função
das cores quentes que o artista utilizou. Drummond também cita a frase de Ataíde, que se
propôs a fazer uma pintura bonita, valente e espaçosa.
Drummond entra no poema e diz: encontro-vos sempre caminhando mano a mano
com o mestre mais velho Antônio Francisco Lisboa. Este poema tem algumas semelhanças
com o poema publicado em seu segundo livro e dedicado a Aleijadinho, O vôo sobre as
igrejas. Drummond conhecia o Barroco mineiro e sempre escreveu sobre ele.
Na trilogia Boitempo, publicado a partir de 1968, há dois poemas importantes para a
compreensão da estreita relação de Drummond com a cor. O primeiro poema é Água-cor:

O País da Cor é liquido e revela-se


na anilina dos vasos de farmácia.
Basta olhar, e flutuo sobre o verde
não verde-mata, o verde-além-do-verde.

E o azul é uma enseada na redoma.


Quisera nascer lá, estou nascendo.
Varo a laguna de ouro do amarelo.
97

A cor é o existente; o mais, falácia.

O poeta solta a imaginação e usa as cores de uma forma lúdica, para lembrar a
infância: o País da Cor (grafado assim, em maiúscula, pelo poeta). Se pudessemos
perguntar ao poeta qual a sua memória mais remota, talvez ele respondesse que é a
percepção das cores. A farmácia é um mundo de cores, basta olhar seus vasos e o poeta
flutua no verde-além-do-verde.
Há também na memória do poeta, o azul, como uma enseada na redoma, imagem
belíssima, que o faz imaginar nascendo neste azul. Se a enseada é azul, a laguna é amarela.
O poeta encerra seu poema com um verso que é a razão de ser deste trabalho:

A cor é o existente; o mais, falácia.

O outro poema, O Arco Sublime, que abre este trabalho, Drummond faz afirmações
importantes:

Pintura... Que sentido


tem a palavra arte, que me ensinam?

A selva ancilosada na parede


da sala de visitas
não me convence
ou vence.

No céu sem moldura,


o arco-íris, brinquedo-de-olhar, jogo de olhar
e de pegar com a mente,
breve se desfaz, e continua
em mim, fascinador: arte-maior.
98

Drummond se questiona: Que sentido tem a arte, que me ensinam? Para o poeta,
não é na parede da sala de visitas que a arte o convence, mas no céu sem moldura, onde o
arco-íris se transforma em arco sublime, em arte-maior. Porém, como Drummond não tem
certezas absolutas, na parede da sala de visitas a arte pode não convence-lo ou pode vence-
lo.
No primeiro volume de Boitempo, batizado por Drummond de A falta que ama, em
1968, há um poema dedicado a Lasar Segall (!891-1957), Notícia de Segall:

Segall desaparecido
ressurge no preto-e-branco
da linha pura
lacônica
exata
conta a gravidade do ser
perdido
numa aventura sem explicação
se não existisse o amor
antecâmara da piedade
e a poesia
erva renitente no ar sem raiz
poesia que elimina o som
e volta à linha
como as criaturas voltam a si mesmas
na visão de Segall prospectivo-nostálgica.

A seu gesto
a madeira o cobre o ácido revelam
entre sulcos aquele
que conduz à negação do labirinto
ao essencial das coisas
cicatriz
99

relâmpago
tristeza depositada no quarto
de velório no florir da moça
no ver
no simples ver o visto todo dia
em seu carvão de rude e mel
no objeto exposto
com desespero contido
filtrado
pacificado
sobre a dor bíblica intemporal
e a dor contemporânea
que podemos pegar de tão doendo
até pressentir a alegria do conhecimento
solidário.

Somos chamados
a compreender e amar num ato único
as formas as gentes os animais retirados da noite
para a festa de serenidade melancólica
no coração-estúdio de Lasar Segall
aberto em confissão
aos murmúrios da terra.

O que torna este poema interessante é o foco nos trabalhos em papel de Lasar
Segall, sejam eles gravuras ou desenhos. Para Rodrigo Naves, "o traço de Lasar Segall é o
momento da compaixão". (5) Há em Segall uma identificação com as figuras que desenha,
há um profundo humanismo que Drummond soube captar: apesar da dor bíblica
intemporal, da dor contemporânea e da opção de Segall pelos deserdados do mundo, há a
alegria do conhecimento solidário. Apesar de um certo pessimismo, fruto da barbárie que
presenciou, Segall, com seus gestos na madeira ou no cobre, conduz à negação do
100

labirinto, seu carvão de rude e mel filtra e pacifica o desespero. Em seu coração-estúdio,
Lasar Segall ouve os murmúrios da terra e os transpõem para o preto-e-branco da linha
pura.
Marcus de Lontra Costa chega a conclusões próximas de Drummond:

Segall sempre pautou seu tema em torno da figura humana. A gravura foi uma
excelente técnica para esse artista comprometido com o drama da existência humana. A
economia de meios da técnica permitiu a Segall realizar imagens contundentes e de grande
força trágica.(6)

Notem que as escolhas de Drummond têm um elo comum: afora alguns momentos
de expressividade abstrata, o poeta parece preferir a figura humana e seus dramas. O
Drummond da década de 40, chocado com as tragédias do mundo, parece reencontrar-se
nas gravuras e desenhos de Segall.
As Impurezas do Branco, de 1973, é um livro especial, aquele em que o poeta mais
escreveu sobre cores, paisagens, planos, linhas e, principalmente, sobre artistas (com
exceção, obviamente, de Arte em Exposição). A começar pelo título: uma referência a cor
que mais citou, e provavelmente, a preferida.
Serão analisados vários poemas deste livro, começando com Paisagem: como se
faz:

Esta paisagem? Não existe. Existe espaço


vacante, a semear
de paisagem retrospectiva.
A presença da serra, das imbaúbas,
das fontes, que presença?
Tudo é mais tarde.
Vinte anos depois, como nos dramas.

Por enquanto o ver não vê; o ver recolhe


fibrilhas de caminho, de horizonte,
101

e nem percebe que as recolhe


para um dia tecer tapeçarias
que são fotografias
de impercebida terra visitada.

A paisagem vai ser. Agora é um branco


a tingir-se de verde, marrom, cinza,
mas a cor não se prende a superfícies,
não modela. A pedra só é pedra
no amadurecer longínquo.
E a água deste riacho
não molha o corpo nu:
molha mais tarde.
A água é um projeto de viver.

Abrir porteira. Range. Indiferente.


Uma vaca-silêncio. Nem a olho.
Um dia este silêncio-vaca, este ranger
baterão em mim, perfeitos,
existentes de frente,
de costas, de perfil,
tangibilíssimos. Alguém pergunta ao lado:
O que há com você?
E não há nada
senão o som-porteira, a vaca silenciosa.

Paisagem, país
feito de pensamento da paisagem,
na criativa distância espacitempo,
à margem de gravuras, documentos,
quando as coisas existem com violência
102

mais do que existimos: nos povoam


e nos olham, nos fixam. Contemplados,
submissos, delas somos pasto,
somos a paisagem da paisagem.

Há um texto-irmão desta Paisagem: como se faz, escrito por Fernando Pessoa, que
não foi elaborado para ser um poema, não tem o ritmo de um poema, não tem a estrutura de
um poema, mas para este pesquisador é um poema, que o emociona a cada leitura, como o
poema de Drummond:

Todo estado de alma é uma paisagem, isto é, todo o estado de alma é não só
representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. Há em nós um
espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. (...) E - mesmo que não se
queira admitir que todo o estado de alma é uma paisagem - pode ao menos admitir-se que
todo o estado de alma se pode representar por uma paisagem. Se eu disser "Há sol nos
meus pensamentos", ninguém compreenderá que os meus pensamentos estão tristes. (...) De
maneira que a arte que queira representar bem a realidade terá de a dar através duma
representação simultânea da paisagem interior e da paisagem exterior. (...) (7)

Este texto é um apontamento solto, sem data, não assinado, mas atribuído com
certeza a Fernando Pessoa, tanto que foi publicado na primeira edição de sua Obra Poética,
pela Editora Aguilar, em 1960.
Para Fernando Pessoa, há duas paisagens, para Drummond, também: a paisagem
que vai ser e a paisagem da paisagem. Estes poetas-irmãos não estão irmanados apenas na
língua portuguesa, mas também no mesmo olhar agudo e reflexivo sobre o mundo. A
paisagem é um branco que vai tingir-se de verde, marrom, cinza...Drummond é implacável:
A pedra só é pedra no amadurecer longínquo. Para os dois poetas, a paisagem é construída:
a percepção que temos de uma paisagem é afetada pelo nosso estado de alma. Só que para
Drummond tudo é mais tarde, como nos dramas. Antes recolhemos, mesmo sem perceber,
fibrilhas de caminho, para depois, amadurecidos, semear o espaço vacante, de paisagem
retrospectiva.
103

Em Museu vivo, o poeta utiliza a imagem de um museu para criticar alguns aspectos
da vida moderna: estátuas andróginas, idéias conversíveis, embriões humanos in vitro, a
sexalegria industrializada em artigos de supermercado... Há, neste museu moderno por
excelência, até um catálogo (como existem em todos os museus e exposições), impresso em
grito, para terror do poeta, em seus versos finais:

O museu muge eufórico


assume solenemente
o papel de deus-universo, espetáculo de si mesmo.

Há também em As Impurezas do Branco, as glosas que Drummond escreveu para os


desenhos de Portinari sobre o Quixote. Mesmo despido dos desenhos do artista, os poemas
de Drummond, com o título de Quixote e Sancho. De Portinari, são plenos de vida.
Drummond dá início, então, a uma seqüência de poemas dedicados a Tarsila do
Amaral, Enrico Bianco, Fayga Ostrower e Wega Nery.
Brasil/Tarsila merece transcrição integral. O poema é para Tarsila (1886-1973),
claro, mas é também dedicado a Aracy Amaral, crítica, historiadora da arte e sobrinha da
artista. Drummond junta-se a Aracy Amaral para a interpretação de uma das mais
importantes artistas brasileiras. O poema de Drummond exige uma análise verso a verso,
pela riqueza de detalhes que o poeta conseguiu transmitir. Não é à toa que o poema é
dedicado a Aracy Amaral, uma das especialistas mais aparelhada para explicar Tarsila e a
pintura brasileira.

BRASIL/TARSILA

A Aracy Amaral

Tarsila
descendente direta de Brás Cubas
Tarsila
princesa do café na alta de ilusões
104

Tarsila
engastada na pulseira gótica do colégio de Barcelona
Tarsila
medularmente paulistinha de Capivari reaprendendo
o amarelo vivo
o rosa violáceo
o azul pureza
o verde cantante
desprezados pelo doutor bom gosto oficial.

Tarsila radar tranqüilo


captando em traço elíptico
o vazio da rua de Congonhas com um cachorro e uma galinha
[servindo de multidão
a mudez da rua de São João del-Rei com duas meninas no
[cenário operístico de casas e igreja
o silêncio do desvio ferroviário
o sono da cidade pequena onde as casas são boizinhos espalhados
[em presépio.
(Tarsila, Oswald e Mário revelando Minas aos mineiros de Anatole.)

Tarsila acordando para o pesadelo


de assombrações pré-colombianas tão vivas agora como outrora
abaporu das noites na fazenda
bichos que não existem? mas existentes
cactos-animais, pedras-árvores,
monstros a expulsar de nossa mente
ou a recolher para melhor
seguir nosso traçado preternatural.
Tarsila mágica,
meu Deus, tão simples,
105

alheia às técnicas analíticas de Freud


e desvendando
as grutas, os alçapões, as perambeiras
da consciência rural,
expondo ao sol
a alegria colorida da libertação.

Tarsila relâmpago
de beleza no Grande Hotel de Belo Horizonte em 24
acabando com o mandamento das pintoras feias
Quero ser em arte
a caipirinha de São Bernardo
A mais elegante das caipirinhas
a mais sensível das parisienses
jogada de brincadeira na festa antropofágica.

Tarsila
nome brasil, musa radiante
que não queima, dália sobrevivente
no jardim desfolhado, mas constante
em serena presença nacional
fixada com doçura,
Tarsila
amora amorável d'amaral
prazer dos olhos meus onde te encontres
azul e rosa e verde para sempre.

Drummond inicia seu poema-homenagem lembrando a origem paulista de Tarsila


(medularmente paulistinha) que reaprendeu a gostar e usar as cores (ah, as cores para
Drummond!): não um simples amarelo, mas o amarelo vivo; não um simples rosa, mas o
106

rosa violáceo; não um simples verde, mas o verde cantante... cores desprezadas pelo doutor
bom gosto oficial, representada, principalmente, pela arte acadêmica.
Na segunda parte do poema, Drummond a chama de Tarsila radar tranqüilo. O
radar de Tarsila, para o poeta, será capaz de captar, através de seu traço elíptico, a união
entre uma poética particular, uma sintaxe aprendida durante sua sólida formação (que vai
desde a orientação, quando bem jovem, de Pedro Alexandrino, até o contato com os
grandes mestres do modernismo, durante o período que passou em Paris), e a descoberta de
uma certa brasilidade, projeto desenvolvido por Tarsila e quase todos os modernistas
brasileiros pioneiros.
Para provar a eficácia deste radar tarsiliano, Drummond, nesta segunda parte, faz
referência à histórica viagem às cidades barrocas de Minas Gerais, juntamente com Oswald
de Andrade, Mário de Andrade, o poeta francês Blaise Cendrars e outros artistas. Para
Maria José Justino é difícil precisar quando foi despertado o sentimento de brasilidade em
Tarsila:

Minas ou Europa? Penso que em ambas, Tarsila reencontra o popular tanto nas
interpretações feitas pelas estéticas européias sobre a arte negra e sobre outras culturas
como na confrontação com as suas raizes.(8)

Justino conclui:

Foi, então, no confronto com outras culturas, que Tarsila pode ver a verdade da
sua. (9)

Para Drummond, Minas tem um papel fundamental nesta descoberta da cultura


brasileira:

o vazio da rua de Congonhas com um cachorro e uma galinha


[servindo de multidão
a mudez da rua de São João del-Rei com duas meninas no
[cenário operístico de casas e igreja
107

o silêncio do desvio ferroviário


o sono da cidade pequena onde as casas são boizinhos espalhados
[em presépio.
(Tarsila, Oswald e Mário revelando Minas aos mineiros de Anatole.)

Drummond bate continência desta vez para o grupo que buscou criar uma
identidade para a arte brasileira. Cita Tarsila, Oswald e Mário e mostra a gênese de algumas
obras criadas por Tarsila no calor das experiências mineiras: o vazio da rua de Congonhas,
a mudez da rua de São João del-Rei, o silêncio do desvio ferroviário e uma imagem
belíssima para um casario brasileiro da artista: o sono da cidade pequena onde as casas são
boizinhos espalhados em presépio.
Drummond fala em vazio, em mudez da rua, em silêncio, em sono da cidade... mas
sem conotações negativas: o mundo de Tarsila é silencioso, afinal ele é captado pelo radar
tranqüilo da artista.
Há, para Drummond, três Tarsilas: a Tarsila-radar, da qual comentamos; a Tarsila-
mágica e a Tarsila-relâmpago.
A Tarsila-mágica de que fala o poeta, refere-se a uma fase da artista em que estão
presentes elementos enumerados pelo poeta-crítico: noites na fazenda, cactos-animais,
pedras-árvores, monstros, abapurus... Assim escreveu Justino sobre esta Brasil/Tarsila, num
texto que confirma a análise do poeta:

A passagem pelo cubismo, a viagem pelo primitivismo, as experiências tocando a


interpretação surreal, que levaram Tarsila a metamorfosear as pedras-plantas-bichos, as
serpentes enroladas em ovos, os cactos solitários, os sóis-laranja-fruto, fizeram a artista
aportar na brasilidade.(10)

As cores tropicais, citadas na primeira parte do poema, as curvas do Barroco, as


memórias da infância passada na fazenda, com todas as histórias fantásticas que ouvia,
além da exuberante paisagem brasileira... tudo isso levaram Tarsila a alegria colorida da
libertação, como escreveu o poeta. As curvas que Drummond tanto ama, passaram a fazer
parte da poética tarsiliana, após a viagem de 1924 e após o aprendizado europeu.
108

Por fim, Drummond escreve sobre Tarsila relâmpago de beleza, e relembra sua
passagem por Belo Horizonte em 1924, acabando com o mandamento das pintoras feias:

A mais elegante das caipirinhas


a mais sensível das parisienses

Assim, em mais uma das polaridades do poeta, aparecem a modernidade que Paris
representava e a origem da artista. Além de tudo, Tarsila é a musa radiante que não
queima, que o poeta lembra com carinho: ela é a serena presença nacional fixada com
doçura. Drummond quase repete a imagem do radar tranqüilo, pois ela é doce e serena. O
poeta termina de forma comovente:

Tarsila
amora amorável d'amaral
prazer dos olhos meus onde te encontres
azul e rosa e verde para sempre.

Quase sem fôlego, depois do arrepiante final do poema para Tarsila, chegamos ao
poema dedicado a Enrico Bianco, amigo de Drummond e assistente de Portinari quando
jovem. O poema chama-se Motivos de Bianco:

Melodiosas mulheres movem-se


libertas da corrupção do vestido
e, como jangadas ou feixes de trigo,
são variações de concretude
tamisadas de sonho,
forma plena, bastante,
sob a luz que esmerilha
a pelúcia das coisas.

O mar invade o quadro,


109

a sala,
o contemplante,
num fulgor de balanço,
e entre os raios da rede ilumina-se
e dança
o negro cavernante
da água ou de nós mesmos, em marulho.
Sobre os infindos olhos esféricos do boi-bumbá
- lanternões acesos na alegria religiosa
do povo menino
do Brasil -:
festa
folia
flauta
coração da terra.

Assim Bianco, viajando


a cor e seus compartimentos encantados,
registra o ofício de homens e mulheres
jungidos à natureza por uma chispa
de ouro, um cipó
telúrico, semente
de amor explodindo em cântico.

Como vimos, Drummond tinha, em seu escritório, um nu de Bianco, e é sobre os


nus que o poeta começa seu poema: Melodiosas mulheres movem-se libertas da corrupção
do vestido. A imagem criada por Drummond [a corrupção do vestido] é de uma forte
beleza para explicar os nus de Bianco, um artista de origem italiana, nascido em Roma, em
1918, mas que vive no Brasil desde 1937. Chegou muito jovem ao Brasil, transformando-se
num autêntico artista brasileiro. Paulo Victorino relata o encontro com Portinari:
110

Havia seis meses que Bianco estava no Brasil quando o pintor Paulo Rossi lhe
sugeriu visitar uma obra que Portinari estava preparando na Sede do Ministério da
Educação. Ele foi, mas só encontrou lá três ajudantes: Burle Marx (1909-1994), Inês e
Ruben Cassa (1905).
Percebendo as dificuldades que os três estavam tendo com a ampliação, em
afresco, da mão de um garimpeiro, pediu que o deixassem tentar e, contando com o
assentimento, pintou sozinho aquele detalhe.
Pouco depois chega Portinari e, com intuição de mestre, percebeu a interferência,
perguntando com irritação: "Quem é que fez aquela mão ali?" Os discípulos apontaram
para Bianco, encolhido a um canto, a quem o mestre, aparentemente, deu pouca ou
nenhuma atenção.
Bianco, se soubesse, nem teria ido lá mas, já que estava, deixou-se ficar,
apreciando o desenvolvimento da obra. Pela hora do almoço, decidiu voltar à casa,
despedindo-se de Portinari, que lhe perguntou: "Mas, aonde vai?" "Vou para casa",
respondeu Bianco.
O mestre estendeu-lhe a mão, com a mesma cara de zangado e lhe perguntou: "Mas
amanhã você volta, não volta?"
Foi assim que, aos poucos, o jovem pintor foi se integrando à equipe de Portinari,
tornando-se, por muitos e muitos anos, um valoroso colaborador.
A "mão do garimpeiro", a primeira intervenção de Bianco na pintura do mestre,
continua lá, onde foi pintada. E a influência de Portinari em Bianco é visível em muitos de
seus quadros. O pintor cresceu, ganhou vida própria, mas nunca se afastou do estilo que
assimilou e aprendeu a respeitar.(11)

Na segunda parte, Drummond demonstra o quanto este artista é, de fato, brasileiro:


o mar que invade o quadro é um pedaço da paisagem brasileira, assim como os olhos do
boi-bumbá, a alegria religiosa do povo menino do Brasil, a festa, a folia, a flauta, o
coração da terra... Assim é Bianco para o poeta: aquele que faz viajar a cor e seus
compartimentos encantados. A homenagem faz jus a um artista que tem cor até no nome.
E, ainda por cima, uma cor tão cara a Drummond.
111

Depois de Tarsila e Bianco, chega a vez da gravadora, pintora, escritora e professora


Fayga Ostrower (1920-2002). O poema tem o nome da artista, Fayga Ostrower:

Fayga fez a forma


flutuar e florir na pauta
musicometálica.
Água forte, água tinta
água fina
lavam
a crosta da terra
varam
a delicada ordenação das estruturas
manifestam
o diáfano.

Fayga exige à madeira


suas paisagens concentradas
mundos lenhosos que sobem à vida
no coro de cores, cor
ressoando nas coisas, independente de som.

Fayga faz e perfaz


a fundação de objetos líricos
sob superfícies falazes.
Depois bloqueia a luz, e a espessa
atmosfera do Não volve em depósito
de infinitos esquemas
vibrando noturnamente.

Fayga é um fazer,
filtrar e descobrir
112

as relações da vida e do visto


dando estatuto à passagem
no espaço: viver
é ver sempre de novo
a cada forma
a cada cor
a cada dia
o dia em flor no dia.

Fayga nasceu na Polonia e mudou-se para o Rio de Janeiro em 1934. Foi aluna de
Axl Lescoschek e Carlos Oswald. Marcus de Lontra Costa assim escreveu sobre ela:

A valorização da gravura brasileira nos anos 50 deve-se principalmente à Fayga


Ostrower, pioneira da abstração, artista cuja produção no Brasil somente pode ser
comparada a de Oswaldo Goeldi. Em Fayga, a gravura funda a cor substantiva. À
precisão técnica, Fayga sempre soube aliar uma profunda compreensão do espaço
moderno. Suas manchas de cor articulam-se para a criação de um discurso extremamente
sofisticado onde as formas dialogam orientadas por uma sólida base teórica. (12)

O radar tranqüilo de Tarsila é prima-irmã do modo com que Fayga faz a forma
flutuar e florir na pauta musicometálica. A obra de Fayga reflete as palavras de Drummond
sobre a delicada ordenação das estruturas. A comparação entre imagem e som acompanha
todo o poema: Drummond fala em pauta musicometálica, coro de cores, cor ressoando nas
coisas, independente som. Se as superfícies são ilusórias (falazes), ela bloqueia a luz, faz e
perfaz a espessa atmosfera do Não [assim em maiúscula] que volve em depósitos infinitos
esquemas vibrando noturnamente. Será este Não de Fayga, que vibra noturnamente, igual
ao Preto Goeldi? Um fenômeno parecido acontece com os dois: O Preto Goeldi perde o
estatuto monocromático: há mais cores no preto de Goeldi que se imagina. O mesmo
acontece com o Não de Fayga, mas, obviamente, suas manchas são diferentes. Enquanto
Goeldi procura fixar um sol noturno e denuncia as diferentes espécies de trevas; Fayga,
também nas palavras de Drummond, faz com que suas paisagens concentradas tenham a
113

cor ressoando nas coisas, como num coro de cores. Estas últimas palavras [coro de cores]
é uma bela definição para as manchas aquareladas das gravuras da artista. Os infinitos
esquemas vibrando noturnamete de Fayga, não são - repito - iguais ao sol noturno de
Goeldi, mas sempre os associamos por causa da força de suas imagens, mestres que são,
daquilo que Fernando Pessoa chamou de paisagem interior.
Drummond termina seu retrato de Fayga com belos versos reveladores:

(...)
[viver]
é ver sempre de novo
a cada forma
a cada cor
a cada dia
o dia em flor no dia.

O quarto poema desta série de As impurezas do Branco, é dedicado a Wega Nery,


artista que nasceu em Corumbá, em 1912, e viveu em São Paulo e Rio de Janeiro. O poema
chama-se Pintura de Wega:

À tona do mundo irrompem


os mundos de Wega
violentos
verdinatais, vermelhoníricos
sobressaltando a natureza.
O último? o primeiro
dia da criação implanta
a densa vida tensa
em que a terra é criação do homem
e a criatura revela sua íntima
dramática estrutura.
114

Wega estudou com Takaoka e Samson Flexor, participou do Atelier-Abstração,


grupo importante no início dos anos 50. A artista acha que suas imagens abstratas são
paisagens imaginárias, conceito próximo da paisagem interior de Fernando Pessoa.
Os artistas desta galeria drummondiana, já percebemos, tem elos que os une:
Bianco-Portinari, unidos na amizade e admiração; Wega-Fayga Ostrower, unidas na
abstração, mas diferentes no uso da cor; Wega, com cores intensas, Fayga, com cores
transparentes, diáfanas, e, as vezes, sobrepostas.
Drummond percebeu o uso dramático da cor: o que vem à tona são os mundos de
Wega, por vezes violentos. Mais uma vez, Drummond cria novas cores: verdenatais e
vermelhoníricos, cores que sobressaltam a natureza. As polarizações drummondianas
aparecem também neste poema dedicado a Wega: os mundos violentos contrapõem-se com
cores aparentemente pacificas: os verdenatais e vermelhoníricos. Mas se não parecem
violentos, mesmo assim elas sobressaltam a natureza. A resposta está no verso a densa vida
tensa, onde as cores parecem representar o primeiro dia da criação, não o último. Nesta
densa e tensa vida, revela-se toda a dramática estrutura. Os mundos de Wega realmente
nos sobressaltam.
Quase no final de As impurezas do branco, há dois poemas (Livraria e Aspectos de
uma casa), em que os quadros parecem fazer parte da paisagem com tal naturalidade, que
reforçam a tese deste trabalho: há uma estreita relação entre Drummond e as Artes
Plásticas. Para se entender o mundo poético de Drummond, a compreensão de sua paixão
pela pintura é um bom caminho.
Em Livraria, Drummond cita Paul Klee:

(...)
Aquário de aquarelas,
mosaicos, bronzes,
nus,
arabescos de Klee,
piscina onde flutuam
sistemas e delírios
mansos de filósofos,
115

sentido e sem sentido


das ciências e artes
de viver: a quem sabe
mergulhar numa página,
o trampolim se oferta.
(...)

O poeta também fala em sinfonia de letras e cores enlaçadas no silêncio de livros


abertos em gravura. Versos verdadeiros, para um apaixonado por livros em geral e livros
de arte em particular. Drummond foi um leitor voraz de livros e imagens. A vida chega
aqui, disse ele em Livraria, para concluir no último verso: para o leitor liberto. Impossível
não concordar.
Aspectos de uma casa é dividido em seis partes: Criação, O Living, O quarto dos
rapazes, O quarto de Pedro, O quarto de Maria e O quarto de banho. O poema é inspirado
na casa da filha Maria Julieta, e o poeta não esqueceu dos quadros entre os aspectos da
casa. Assim começa o poema (a primeira parte chamada Criação):

A casa de Maria é alta


e clara.
Não a projetam arquitetos,
construtores não a fazem.
(...)
Maria cria sua casa
como o pássaro cria seu vôo
clarialto.
(...)
a casa é o rosto de Maria
à luz reencontrado.

Mas é na segunda parte, O Living, que o poeta volta a citar Portinari, Bianco e
Fayga. Cita também Baumeister e Picasso. A referência a Willi Baumeister (1889-1955) é
116

interessante. Pouco citado, Baumeister foi um artista que sempre pesquisou várias
tendências, ou seja, seguiu e não seguiu muitas tandências. Múltiplo, teve uma visão ampla
da arte, desde a arte primitiva até as melhores lições das vanguardas européias. Um
drummondiano, portanto. É importante lembrar que muitas de suas obras foram queimadas
durante o período nazista.
Eis a segunda parte de Aspectos de uma casa, chamada O Living:

Aqui se pode conversar


a imemorial conversa
que de tudos e nadas
se alimenta,
glosa livre do mundo.
Passeia a vista descansada
em coisas afetuosas
vindas de muitas partes para ouvir
sem o menor ruído
mas participando do colóquio
pelo poder de integração
que a poltrona, a lâmpada
trazem consigo
se nos sabemos eleger,
coisas e seres.
Portinari, Bianco, Fayga
Baumeister
estão conosco, os 90 anos de Picasso
em estampa colorida,
o ex-voto conciso do Nordeste
e o coral dos livros
(surdinado) nas brancas prateleiras.

Sala de viver
117

na opção de viver
a graça de viver.

Parece continuaçao de Livraria. O poeta faz uma afirmação afetuosa aos quadros,
livros, poltronas, lâmpadas: eles vieram de muitas partes do mundo, para ouvir e participar,
sem ruído, das conversas do living, pelo poder de integração que trazem consigo. Mas para
isso temos de saber elegê-los: são nossas escolhas. Neste conjunto de conversas, quadros,
livros, poltronas e lâmpadas que compõem esta sala de viver está a graça de viver.
O livro Corpo, de 1984, tem ilustrações de Carlos Leão. Em O poder ultrajovem, de
1978, há um poema dedicado ao artista, chamado Desenhos de Carlos Leão:

O corpo feminino revelado


em sua linha virginal e eterna
(cada manhã, surpresa e novo encontro
a cada novo olhar que nele pouse):
são de Carlos Leão estes desenhos
expostos na Décor, ou se criaram
por si mesmos, à luz dos movimentos
que a mulher vai fazendo e desfazendo
no simples existir da intimidade?
A melodia corpora expande-se,
contrai-se, tudo é música no gesto
ou no repouso. O sono, esse escultor
modela raras formas e aparências.
Carlos Leão, que tudo vê e sente,
recolhe-as no seu traço, com amor.

Corpo também tem um poema dedicado a Augusto Rodrigues, chamado Pintor de


Mulher:

Este pintor
118

sabe o corpo feminino e seus possíveis


de linha e de volume reinventados.
Sabe a melodia do corpo em variações entrecruzadas.
Lê o código do corpo, de A ao infinito
dos signos e das curvas que dão vontade de morrer
de santo orgasmo e de beleza.

Estes dois poemas têm em comum a atenção que Drummond dava a figura humana,
e, em particular, a figura feminina. Este trabalho já citou vários quadros de mulheres, que
chamaram atenção de Drummond. O pintor, ilustrador e caricaturista Augusto Rodrigues
(1913-1993), registrava como ninguém a figura feminina, com a sabedoria de quem
buscava realizar uma representação mais próxima da vida cotidiana da mulher retratada.
Este código artístico chamou atenção do poeta, a ponto dele exlamar: essas curvas dão
vontade de morrer de santo orgasmo e de beleza!
É em Corpo que há o longo poema Canções de Alinhavo, dividido em dez partes,
com dezenas de citações a amigos, situações, artistas, escritores, poetas... Drummond
parece filosofar sobre a vida, sobre os amigos, sobre a arte. Este poema parece sintetizar
uma característica importante em sua obra: a reflexão. O poeta medita constantemente e
cria uma poesia que pode ser comparada a Fernando Pessoa. Este Canções de Alinhavo os
aproxima ainda mais. Em sua parte IX, Drummond cita Antoine Watteau (1684-1721) e seu
quadro L'Indifferent:

L'Indifferent de Watteau é um gato acordado. Os gatos


são indiferença armada. Inútil considerá-los
superfícies elásticas de veludo e macieza de existir.
Tantas vezes me arranhei ao contato deles que hoje
eu próprio me arranho e firo, felino maquinal.
Penso o gato e sua destreza, o gato e seu magnetismo.
Sua imobilidade contém todas as circunstâncias
e ângulos de ataque. Assim me seduz
o possível de um gato dormindo. Mulheres que nunca me olha-
119

[ram
levam consigo gestos de paixão, de morte e êxtase.
Mas os gestos pensados são mármore. O gato é mármore.
A vida toda espero desprender-se - um minuto! - a estátua
e a menos que me torne igualmente estátua, jamais saberei
o interior da mudez. A pouca ciência da vida
não esclarece os fatos inexistentes, muito mais poderosos
que a história do homem em fascículos. Datas, como vos des-
[prezo
em vossa arrogância de marcos da finitude.
Uma noite, em companhia de Emílio Guimarães Moura,
identifiquei o sertão. Eram duas pupilas de fogo
e hálito de terra seca em boca desdentada.

Em L'Indifferent, Watteau pintou um rapaz com gestos teatrais, marcadamente


posados, com os braços abertos e um dos pés a frente. L'Indifferent parece uma coreografia
ao ar livre, bem ao estilo do artista. Elegantemente vestido, o rapaz do quadro parece um
nobre. Em seu Prefácio Interessantíssimo, do livro Paulicéia Desvairada, Mário de
Andrade escreveu: Andarei a vida de braços no ar, como o "Indiferente" de Watteau.(13)
Para Drummond, o rapaz indiferente de Watteau é um gato acordado. Foi assim que
ele o viu. Para ele, sua imobilidade contém todas as circunstâncias e ângulos de ataque.
Drummond viu polaridades nesse gato: indiferença e magnetismo, sedução e ataque. Mário
viu liberdade. Não há contradição entre os dois poetas: o estilo rococó de L'Indifferent
parece ocultar algum significado ou desejo, que Drummond definiu como sendo uma
indiferença armada, a aparente imobilidade contém todas as circunstâncias para o ataque.
Ah, o desejo! A pouca ciência da vida não esclarece os fatos inexistentes, completou o
poeta.
Em Corpo, ainda, Drummond revisita Ouro Preto em Ouro Preto, Livre do Tempo.
Em seus últimos versos, o poeta assim a define:

Ouro Preto, mais que lugar


120

sujeito à lei de finitude,


torna-se alado pensamento
que de pedra e talha se eleva
à gozoza esfera dos anjos.

No livro seguinte Amar se aprende amando, de 1985, Drummond publica uma série
de poemas, como se fossem crônicas da época em que foram escritas. Não poderiam faltar
referências a exposições, artistas e eventos importantes.
Em A semana foi assim, com data de 18.X.1969, Drummond, num longo poema
rimado, reporta o que se passou naqueles idos. Tudo que lhe pareceu importante passou por
seu crivo, inclusive uma exposição de Antônio Bandeira (1922-1967), importante pintor
brasileiro, cuja maior característica era a liberdade com a qual lidava com imensas telas,
onde a matéria era submetida a um exercício livre de associações. Mestre do
Abstracionismo não-geométrico, Bandeira deixou uma obra consistente e coerente. A
exposição de Bandeira ocorria naqueles dias, misturada com vários outros fatos, como uma
vitória de seu querido Vasco. Na seleção de fatos que escolheu, uma vitória do Vasco era
tão importante quanto a exposição de Bandeira. Para Drummond, vida e arte se equivalem,
e ele aproveitava para elogiar Bandeira (pintura da mais fina) e lamentar sua morte precoce
(pintura é sina e prêmio de viver após a vida tão longe e tão depressa fenecida):

(...)
Olha o Dia do Mestre: o professor
(que do dinheiro ainda não viu a cor
em Minas) recebendo na bandeja
confetes de ternura e de ora-veja...
Em São Paulo calou-se o sax-barítono
de Booker Pittman: procuro um terno átono
para exprimir a falta , a grande pena
do som perdido, em meio à dor de Eliana.
E o sax-soprano, o clarinete? Música
de jazz, que jaz, silente, em flauta mágica.
121

Mas voltemos à rima, com Bandeira,


pintor, Antônio, e sua vida inteira
convertida em pintura da mais fina,
que veremos no MAM: pintura é sina
e prêmio de viver após a vida
tão longe e tão depressa fenecida.
E viva, viva o Vasco: o sofrimento
há de fugir, se o ataque lavra um tento
(...)

Em outro poema da série, A Bolsa, o Bolso, de 9.V.1971, mais uma vez o poeta-
repórter escreve sobre o seu tempo. Num momento em que todos falavam sobre a Bolsa de
Valores (era a época do Milagre Econômico dos primeiros anos da década de 70) e sobre a
Bolsa de Arte, o poeta dava sua opinião:

(...)

À Bolsa de Arte, e arrematar

dois Volpi, três Dacosta e mais Guignard,

não esquecendo, é claro, Cavalcanti

(Di), Djanira, Pancetti, tutti quanti

couber na cobertura da Lagoa.

Não tenho cobertura? Oh, essa é boa.

Compro-a logo na Barra da Tijica,

de faz-de-conta, sonho. Minha cuca

vai abrindo outras Bolsas de Valores:

de Glória, de Poder, de Amor-Amores.

A Bolsa de Beleza, a de Romance,


122

a de Poesia, pelo maior lance.

(...)

Microlira, de 16.VI.1973, é um poema dividido em várias partes, em que o poeta


mais uma vez escreve sobre coisas do dia-a-dia, como se fosse uma crônica. A segunda
parte chama-se Arte e tem apenas seis versos. Mais uma vez, o poeta vê-se as voltas com a
arte contemporânea e com as mudanças em relação ao consumo pelas quais passava a
sociedade brasileira, visível nos poemas-crônicas destes anos. E espantava-se, também,
como em 1947, com alguns procedimentos:

No Salão Moderno

obras se desfazem

antes de exibidas.

Resumo:

são consumidas

em autoconsumo.

Em Textos Mínimos, de 8.IX.1973, também quase uma crônica, o poeta medita em


cada estrofe sobre um acontecimento. É um longo poema que mapeia o início dos anos 70,
incluindo sua opinião sobre a arte daqueles anos. Seguem três estrofes como exemplo da
crítica humorada e às vezes ácida do observador Drummond:

(...)

Gosto tanto de ir ao teatro

que por amor ao teatro

vê lá se vou ao teatro.

(...)

Arte dos 70:

sacramento
123

do excremento.

(...)

Cartão de identidade

(informa o broto cintilante)

não levo comigo.

Acho bastante

o umbigo.

Em Notícias de Janeiro, de 19.I.1974, Drummond usa os mesmos procedimentos de


outros poemas. Como se fossem crônicas, ele nos remete ao Baudelaire, de Manet, dois
artistas sempre visitados pelo poeta. E também nos remete às boas sensações de cores que
tanto amava:

(...)

Quero, 74, ter a graça

de ver uma uma rolinha visitar

a janela e, chegando entre meus livros

e o rosto de Baudelaire por Manet

gravado (que é presente de uma amiga),

sair sem censurar que perdi tempo,

meu tempo consumido entre aparências

de sombras, palpitantes nessas páginas.

O que te peço? Umas coisas,

independentes de poder ou guerra,

umas coloridas, outras brancas,


124

todas leves, levíssimas, no vento....

Ora, atende-me, pois; vê se te mancas.

Em Poesia Errante, de 1988, coletânea publicada após a morte de Drummond, o


poeta reprisa alguns métodos dos poemas de Corpo. Lá estão a mesma liberdade e a
intenção de refletir sobre fatos que o poeta observava, e, mais perceptível ainda neste livro,
escrever sobre amigos, desejos e paixões. A arte não está de fora, obviamente. Drummond
escreve sobre Heitor dos Prazeres, sambista pioneiro e pintor genial, no poema Heitor dos
Prazeres, Artista, em que enaltece suas duas artes:

(...)

Por tua pintura e música

passa um fluido de poesia.

Poesia das coisas simples,

unidas em melodia.

(...)

Noite de festa no Rio,

noite de danças e cores,

em que teus pincéis e notas

embalam nossos amores.

(...)

Em Visão de Patchwork, o poeta, com humor crítico, cita Van Gogh e os objetos e
não objetos da Bienal, numa época em que a arte cada vez mais se tornava conceitual e as
instalações tomavam conta das discussões artísticas. Drummond deu sua opinião, como
sempre através da poesia: se juntarmos tudo num bolo de cor, som e expressão,
aguardaremos uma magnífica explosão:
125

Como se faz a moda patchwork? A receita é simples,

tomem nota:

o matraquear da metralhadora em serviço;

o canto gregoriano;

as tintas passionais de Van Gogh;

os bigodes do Dr. Schweitzer;

o choro do bebê reclamando que não lhe trocaram a fralda;

a Carolina de Chico Buarque na janela;

o grito de vitória de Tarzan;

os objetos e não objetos da Bienal;

o pôr-de-sol de primeira classe do Leblon;

o buzinar de carros no engarrafamento da manhã;

o chute em gol de Pelé;

o silêncio gelatinoso da pílula;

os pregões na Bolsa de Valores;

o concerto de música experimental serial concreta

[de vanguarda;

misture bem misturado num coquetel,

junte numa colcha de retalhos,

faça um bolo de cor, som e expressão

e aguarde

- pum - a magnífica explosão.

Legendas para 12 estampas de Carnaval, pode ser definido como um longo poema
de 12 estrofes ou um conjunto de 12 pequenos poemas em sequência. O nome nos dá a
dica para a independência de cada estrofe (as 12 estampas). No nono poema (ou estrofe),
126

Portinari retorna. Foi com ele que iniciamos este trabalho e com ele terminamos, como
uma homenagem incidental aos dois mestres:

Assim Portinari vê o carnaval.

E vejo Portinari nesta cena.

As folhas se interligam, e da aliança

brota o gozo de viver em plenitude

o plástico milagre da existência.

(1) Ávila, Afonso. "A Arte do Barroco e o Ciclo do Ouro". In Brasil 500 anos, A
Arte no Ciclo do Ouro. Org. Enock Sacramento. São Paulo: Byk, 2000, p16.
(2) Andrade, Mário de. "O Aleijadinho". In Aspectos das Artes Plásticas no
Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1984, pp 11-42.
(3) A lição do amigo. Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de
Andrade. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1988.
(4) Achcar, Francisco. Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Publifolha,
2000, p 71.
(5) Naves, Rodrigo. A Forma Difícil, p 206.
(6) Costa, Marcus Lontra. "A Gravura e a Arte Moderna". In Poética da
Resistência - Aspectos da Gravura Brasileira. São Paulo: SESI, 1994, p 12.
(7) Pessoa, Fernando. O eu profundo e os outros eus . Rio de Janeiro: Ed. Nova
Fronteira, 1980, pp 73-74.
(8) Justino, Maria José. O Banquete Canibal - A modernidade em Tarsila do
Amaral. Curitiba: Editora UFPR, 2002, pp 66-67.
(9) Idem, p 77.
(10) Idem , p 91.
(11) Victorino, Paulo. Sumário Biográfico. http://www.pitoresco.com.br
(12) Costa, Marcus Lontra, "A Gravura e a Arte Moderna", p 14.
(13) Andrade, Mário de. De Paulicéia Desvairada a Café - Poesias Completas.
São Paulo: Circulo do Livro, 1982.
127

7.0 - CONCLUSÃO

Os poemas comentados neste trabalho nem sempre figuram nas antologias, mesmo
naquela organizada pelo próprio Dummond. Apenas o poema dedicado a Portinari, A Mão,
foi escolhido para figurar na famosa Antologia Poética, que o poeta lançou quando já tinha
60 anos de idade, em 1962. Por isso, este pesquisador espera que este trabalho possa servir
como uma Antologia: são poemas belíssimos que merecem uma publicação autônoma para
compreensão da paixão de Drummond pelas Artes Plásticas, além de um excelente
mapeamento de várias décadas da arte brasileira.
Parece que há um elo unindo as obras e os artistas escolhidos por Drummond para
figurarem nas páginas de sua obra. Para Drummond, além da plasticidade, era importante
que o quadro tivesse uma história. Se para Argan há quadros em que uma pincelada é mais
importante que o próprio quadro, para Drummond, a aura de aventura humana que
emoldura um quadro era mais importante que suas pinceladas.
Assim, repetimos que Drummond mapeou a História da Arte, tinha opiniões claras
sobre ela, e nos últimos anos, apesar da incompreensão de algumas abordagens da chamada
Arte Contemporânea, procurou escrever ainda mais sobre artistas que admirava.
Além disso, Drummond sempre gostou de usar as cores em seus poemas. Neste
caso, falamos de cores reais, mesmo aquelas em que o poeta criava uma palavra para
enfatizar um aspecto, como o verdenatal ou o vermelhonírico.
Os poemas de Drummond que tentamos analisar, merecem atenção especial. É
difícil falar de Goeldi, por exemplo, sem citá-lo. Muitos dos artistas citados por
Drummond, foram traduzidos com precisão pelo poeta. Mesmo não sendo um crítico,
Drummond nos ajudou a compreender muitos artistas. Seu olhar era certeiro.
Devemos lê-lo com atenção.
128

8.0 - BIBLIOGRAFIA

1 Andrade, Carlos Drummond. Nova Reunião - 19 Livros de Poesia. 2 Volumes.


Rio de Janeiro: Ed. J.Olympio/INL, 1983
2 Andrade, Carlos Drummond. Corpo. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1984
3 Andrade, Carlos Drummond. Amar se aprende amando. Rio de Janeiro: Ed.
Record, 1985.
4 Andrade, Carlos Drummond. Farewell. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1997.
5 Andrade, Carlos Drummond. O Observador no Escritório. São Paulo: Ed.
Círculo do Livro, s/d.
6 Andrade, Carlos Drummond. O poder ultrajovem. Rio de Janeiro: Ed. J.
Olympio, 1978.
7 Andrade, Carlos Drummond. "Invencionismo". In Revista Joaquim no 9. Março
de 1947, Curitiba.
8 Abramo, Lívio. Arte y Artistas de Brasil y Paraguay. Asunción: Editorial El
Lector, 1999.
9 Achcar, Francisco. Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Publifolha,
2000.
10 Amaral, Aracy (Org.). Arte Construtiva no Brasil - Coleção Adolpho
Leirner. Vários autores. São Paulo: Companhia Melhoramentos/DBA Artes
Gráficas, 1998.
11 Andrade, Mário de. Aspectos das Artes Plásticas no Brasil. Belo Horizonte:
Ed. Itatiaia, 1984.
12 Andrade, Mário de. A lição do amigo. Cartas a Carlos Drummond de Andrade.
Rio de Janeiro: Ed. Record, 1988.
13 Andrade, Mário de. De Paulicéia Desvairada a Café - Poesias Completas. São
Paulo: Círculo do Livro, 1982.
14 Argan, Giulio Carlo. Arte Moderna. Tradução de Denise Bottmann e Federico
Carotti. São Paulo: Ed. Cia. das Letras, 1993.
15 Argan, Giulio Carlo. História da Arte como História da Cidade . Tradução de
Pier Luigi Cabra. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1992.
129

16 Ávila, Afonso. "A Arte do Barroco e o Ciclo do Ouro". In Brasil 500 anos, A
Arte no Ciclo do Ouro. Org. Enock Sacramento. São Paulo: Byk, 2000.
17 Baudelaire, Charles. Sobre a Modernidade: O Pintor da Vida Moderna.
Tradução de Suely Cassal. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1997.
18 Baudelaire, Charles. Poesia Completa. Tradução de Ivan Junqueira. Rio de
Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1988.
19 Beluzzo, Ana Maria de Moraes (Org.). Modernidade: Vanguardas Artísticas
na América Latina. São Paulo: Memorial/Unesp, 1990.
20 Bento, Antônio. "Cândido Portinari". In Aspectos da Arte Brasileira. Vários
autores. Rio de Janeiro: Funarte, 1981.
21 Callado, Antonio. "Uma revelação que a história oficial não registra". In Nossa
América - Revista do Memorial da América Latina no 2. São Paulo:
Memorial da América Latina, Maio/Junho de 1989.
22 Costa, Marcus Lontra. "A Gravura e a Arte Moderna". In Poética da
Resistência - Aspectos da Gravura Brasileira. São Paulo: SESI, 1994.
23 Cotrim, Álvaro. "Cervantes, Daumier, Portinari, Drummond". In Revista
Cultura no 35. Brasília: Ministério da Educação e Cultura, Julho/Dezembro de
1980.
24 Freud, S. Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância. Tradução de
Walderedo Ismael de Oliveira e Órizon Carneiro Muniz. Rio de Janeiro: Ed.
Imago, 1997.
25 Herkenhoff, Paulo. "A cor no Modernismo brasileiro - a navegação com muitas
bússulas". In XXIV Bienal de São Paulo. Catálogo. Volume Núcleo
Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismo. São Paulo: Fundação
Bienal de São Paulo, 1998.
26 Herkenhoff, Paulo. "Indelével e Fugaz". In Marcas do Corpo, Dobras da
Alma. XII Mostra da Gravura de Curitiba. Organizadores: Paulo Herkenhoff
e Adriano Pedrosa. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 2000.
27 Herkenhoff, Paulo. "Notas para o tema gravura e modernismo". In Catálogo da
XI Mostra de Gravura Cidade de Curitiba. Curitiba: Fundação Cultural de
Curitiba, 1995.
130

28 Jansson, H.W. e Janssen, Anthony F. Iniciação à História da Arte. Tradução


de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1996.
29 Justino, Maria José. O Banquete Canibal - A modernidade em Tarsila do
Amaral. Curitiba: Editora UFPR, 2002.
30 Klee, Paul. Sobre a arte moderna e outros ensaios. Tradução de Pedro
Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
31 Melo Neto, João Cabral de. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Ed. J.Olympio,
1989.
32 Mendes, Murilo. Recordações de Ismael Nery. São Paulo: Edusp, 1996.
33 Mendes, Murilo. Antologia Poética. Seleção de João Cabral de Melo Neto. Rio
de Janeiro: Ed. Fontana/INL, 1976.
34 Mendes, Murilo. "A Poesia e o nosso Tempo". In Suplemento Dominical do
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 25 de Julho de 1959.
35 Miceli, Sergio. Imagens Negociadas: Retratos da Elite Brasileira (1920-40).
São Paulo: Ed. Cia. das Letras, 1996.
36 Naves, Rodrigo. A Forma Difícil, Ensaios sobre arte brasileira. São Paulo:
Ed. Ática, 1996.
37 Pedrosa, Mário. Política das Artes. Organização e Apresentação de Otília
Beatriz Fiori Arantes. São Paulo: Edusp, 1995.
38 Pessoa, Fernando. O eu profundo e os outros eus . Rio de Janeiro: Ed. Nova
Fronteira, 1980.
39 Piza, Daniel. "Fla-Flu Verbal". In O Estado de São Paulo, de 30 de Junho de
2002.
40 Portinari. Suplemento Especial de O Estado de São Paulo. São Paulo, 2000. O
suplemento pode ser acessado no site www.estado.com.br/edicao/especial/porti
41 Reis Júnior, José Maria dos. "Carlos Oswald, Raimundo Cela, Oswaldo Goeldi".
In Aspectos da Arte Brasileira. Vários Autores. Rio de Janeiro: Funarte, 1981.
42 Rodin, Auguste. A Arte - Conversas com Paul Gsell. Tradução de Anna Olga
de Barros Barreto. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1990.
43 Van Gogh, Vincent. Cartas a Théo. Tradução de Pierre Ruprecht. Porto Alegre:
Ed. L&PM, 1991.
131

44 Victorino, Paulo. Sumário Biográfico. http://www.pitoresco.com.br


45 Zilio, Carlos. A Querela do Brasil. A questão da identidade na arte
brasileira: a obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari/1922-1945. Rio de
Janeiro: Funarte, 1982.

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