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Nina teve o instinto de se encolher ao ver Nicolas ao fundo. O rapaz que passara mais
cedo na livraria, que deixou seu telefone na esperança dela ligar. Os olhos cor de âmbar
dele se perdiam no mar de lobisomens que abusavam de alucinógenos. Sintomas da
transformação eram comuns quando um licantropo usava drogas, principalmente as
mágicas.
— Ela está ali — Daniel disse, a pegando pelo braço. Nina o olhou, assustada. —
Barbara — se explicou, apontando para o balcão. — Barbara está ali.
E de fato ela estava. Sentada no balcão, com um copo de bebida nas mãos, com o
pescoço alto observando a banda. Os cachos dourados de seu cabelo caiam até os
ombros. Ela conversava vagamente com Theo, o líder dos lobisomens, que servia as
bebidas da noite.
— Vai falar com ela? — perguntou Nina.
Daniel engasgou-se antes de falar.
— Sim. É a única que pode me falar sobre esse lobo que anda matando garotas.
— Mas você disse que ela não quer mais te ver — Nina o lembrou.
Daniel revirou os olhos.
— Ela não quer — ele soltou, um pouco risonho.
Daniel a deixou para trás e arrumou o cabelo, indo em direção ao balcão. Certamente,
se Tália estivesse ali, falaria que Daniel estava prestes a usar seu charme com cheiro de
suor. Nina riria, contente por estar em grupo. Porém, fora deixada mais uma vez, e se
perguntou se estava fazendo a coisa certa o acompanhando.
De forma que não ficasse aparente, Nina se esgueirou entre a multidão, ficando perto
deles. A guitarra tocou mais acordes, e Barbara balançou a cabeça, empolgada.
— Barbara — ele começou, com voz branda.
Nina conseguiu ver a garota revirando os olhos.
— Bem que eu senti um cheiro ruim — ela respondeu, descruzando as pernas e
pousando o copo sobre o balcão, ao seu lado. Theo desviou a atenção para a simples
tarefa de secar os copos. — O que você quer, Daniel?
— Te ver. Escuta, eu só não liguei ontem de manhã porque eu...
— Talvez porque ontem de manhã a gente não tivesse nada para falar. Talvez
anteontem. Mas para você, não faz a mínima diferença.
Daniel deu um passo para trás, acuado.
— Barbara, eu estive ocupado.
— Ocupado demais com outras meninas, não? — inquiriu, retórica. — Eu andei
conversando com algumas garotas bruxas, elas disseram que você era ótimo na cama. E
também confirmaram que você é um cretino.
— Eu errei! — quase gritou, com os punhos fechados ao lado do corpo. — Talvez eu
fui mesmo um cretino. Mas nós podemos recomeçar, não? — Com mãos rápidas, ele
pegou o copo no instante que ela iria o fazer. As mãos de ambos se tocaram. Barbara se
retraiu, depois de longos segundos encarando a situação que num primeiro encontro
poderia ser embaraçosa. Daniel ficou com o copo para si, bebeu um gole de seja lá o
que a garota desfrutava. — Eu ouvi dizer que um lobo está causando um tumulto por aí.
O olhar de Barbara decaiu, entediado e com raiva. Se entreolhou com Theo, antes de
falar:
— Seja o serviço que for que você está fazendo para Eliza, não venha pedir
informações para mim. Não seja tão baixo, Daniel. — Barbara pulou do balcão,
sinalizando com o cabeça para Theo. Disse, de costas: — Pode ficar com a bebida.
O que restou a ele fora o amargo gin que estava no copo. Nina se aproximou, com uma
ligeira vontade de rir. O colocou a mão no ombro, como uma consolação malfeita.
A música parou de forma abrupta, com as batidas rompendo, sem continuidade. Num
instante para o outro, todos os licantropos dali estavam de pé, olhando para a porta, com
olhos ardendo em amarelo. O cheiro ácido das drogas empesteava o local, fazendo Nina
piscar repetidas vezes. Sua visão demorou alguns segundos para focar, e, o que viu, não
foi muito agradável.
Vampiros em território inimigo.
Lá estavam as caras pálidas, com olhos desinteressados e sorrisos que tiravam sarro de
tudo. Se achavam superiores pelo simples fato de serem o que eram. Desprezavam os
licantropos mais do que costumavam fazer com qualquer outro infernal.
Ao fundo, Nina viu as garotas bruxas, já drogadas e sem muita ciência, se encolherem
numa parede.
Mikael, o líder dos vampiros — um sujeito alto, loiro e tão branco como a lua —, deu
um passo à frente, com ambas as mãos para cima.
— Viemos em paz — falou, entre um sorriso sarcástico.
Theo cerrou os olhos, desconfiado. O lugar se afundou num silêncio de burburinhos.
Alguns licantropos cochicharam entre si, outros apenas se preparavam para um possível
embate. Embora os vampiros se achassem melhores, o simples ato de desafiar os
colocaria em pedaços. Eram um pequeno grupo de cinco. Apenas Mikael, mais três
sujeitos, e Solange, a segunda em posto, e, pelos boatos, namorada de Theo.
Nina teve o reflexo de se afundar nas sombras, com Daniel. Eram figurinhas no álbum
de Mikael. Ele a ajudara num passado nada distante. Tinha uma dívida com ele, questão
de honra. Quis, por ora, evitar constrangimentos.
— O que veio fazer aqui, Mikael? — Theo perguntou, deixando um copo em cima do
balcão, com cuidado.
— Resolver problemas, Theo — falou, com um tremendo esforço. Mikael se
assemelhava a um boneco mecânico, com falar forçadas e um jeito que deixava
qualquer um intrigado. Carregava ódio nos olhos escuros, mas um sorriso de deboche na
face alva. Se debruçou no balcão, aproximando o rosto a ponto de se olhar nos olhos do
lobisomem. — Quero um vinho, só para abrir a noite.
Os vampiros seguiram seu mestre. Solange se perdia, encarando o longe, evitando
encarar Theo. Os lobisomens se eriçaram em seus lugares, rosnando baixo.
— Calma, pessoal — Theo entoou, rígido como deveria ser um líder. — Mikael, seja o
que esteja pensando, aquele lobisomem não é da alcateia.
— Eu não estou pensando nada, não sobre o lobisomem. — O olhar dele se estreitou.
— Penso sobre a vampira que acabamos de encontrar morta, na frente do meu bar. É
bom que ensine seus homens a não deixar rastro, da próxima vez.
Os dedos finos e ossudos de Mikael deixaram um grande tufo de pelo prateado em
cima do balcão. Brilhavam como um fragmento da lua.
— Eu já disse que ele não pertence a alcateia, não é um problema meu — Theo
argumentou, sólido.
Mikael respirou calmo, e arrumou a gravata vermelha.
— Primeiro as fadas, depois os ordinários, e agora a gente — falou, apertando os pelos
e depois soltando. — Você está brincado com fogo, lobisomem. Estão furiosos com
você e essa sua falta de interesse. Controle os seus, para se impor ao resto. — Mikael se
virou em cima dos pés, leve como uma pena.
Os vampiros saíram sem muita cerimônia, apenas deixando o clima tenso no lugar.
Demoraram alguns minutos para que tudo se acalmasse, e todos parassem de olhar para
Theo, que não dava a mínima para a situação.
Daniel comparou o pelo do balcão com o que tinha no bolso. Eram igualmente
prateados.
— Isso está ficando pior do que pensei — comentou, realmente preocupado.
— Ian havia me dito sobre a vampira — Nina explicou. — Não pensei que Mikael
fosse realmente se abalar.
— Melhor do que isso, impossível. Haverá uma guerra entre os infernais se eu não
parar esse lobisomem — murmurou, nada satisfeito. Cruzou os braços acima do peito.
— Precisamos de mais informações, não podemos ficar de braços cruzados. —
Contraditório, ele desfez a postura.
Nina olhou em volta, confusa e um pouco zonza. Viu rostos risonhos, outros aflitos.
Em suma, eram uma maré mutável e forte, carregados de emoção. As garotas bruxas
tinham ido embora, deixando seus parceiros lobisomens numa parede, desfrutando de
bebidas.
E, enquanto tentava arranjar uma solução, Nina viu Nicolas no meio da multidão. Ele
estava no meio de uma roda de colegas, em pé, ao lado duma mesa. Com uma das mãos
segurava um copo cheio, e, com a outra, portava um longo cigarro.
Sem muitas opções, Nina resolveu recorrer a opções rudes e instintivas, a sedução.
Tentou arrumar os cabelos, puxou o vestido e acertou as meias. Cobriu a athame para
que ninguém pudesse a ver.
— Você veio, afinal — ele falou, ao vê-la. Abriu os braços, olhando para todos os
amigos em volta. Eles sorriram, curiosos e satisfeitos. Ao fundo, a banda se recompunha
em acordes lentos e progressivos, se elevando numa melodia quente. O cheiro cítrico do
cigarro a fez tossir. — Pessoal, essa é a garota de quem eu falei mais cedo.
— Da livraria? — perguntou um sujeito corpulento com roupas escuras. Ele fedia a
drogas.
— Sim — Nicolas concordou, risonho. — Então, Nina, veio sozinha ou aquele
feiticeiro ali é seu namorado? — indagou, apontando com o queixo para Daniel.
Nina olhou por cima do ombro, e viu Daniel confuso, a encarando.
— Ele é um amigo, só. — Suas mãos envolveram forte a barra do vestido, num gesto
incontrolável. Sentiu-se suar pela nuca. Aspirou mais ar podre. — Nicolas...
— Nic, para você — ele corrigiu, chegando mais perto.
— Nic — disse, engolindo em seco. — Será que podemos conversar? — Olhou para os
sujeitos na mesa. — Em particular — acrescentou, desviando dos olhares maliciosos
dos outros lobisomens.
Nicolas a levou para fora daquele lugar. Quis agradecer por ele ter o feito. Nina não
aguentava mais os olhares, os corpos, o calor humano dali. Do lado de fora, conseguia
ouvir apenas o som abafado da música. Fugiu do olhar malicioso dele, olhando para a
fila de pessoas na entrada. Daniel saiu disfarçadamente, se enfiando na multidão para a
vigiar, de propósito.
O licantropo a puxou pelo pulso, a puxando para perto. Gritou, baixo. O punho cerrado
desceu severo, na direção da athame. O bafo quente e alcoólico foi arrepiante contra seu
pescoço. O viu mais de perto. Os cabelos curtos e mal penteados.
Se empurrou para trás, tentando não parecer abrupta.
— Não é isso, Nic — falou, se controlando para não mata-lo ou sair correndo. Forçou o
máximo de sua visão periférica, e pôde ver Daniel, conversando com uma garota loira
com asas coloridas nas costas. Talvez realmente estivesse sozinha. — Eu preciso saber
de uma coisa...
— Isso não pode ficar para depois? — A mão dele deslizou até seu quadril. Nina o
policiou, colocando sua mão sobre a quase transformada pata de lobisomem.
— Não — disse, em tom mais rígido.
Como um cachorro de rua, o cenho de Nic baixou quando ela engrossou a voz. Ele
gemeu baixo.
— Tá certo — ele concordou, sem querer de fato. — O que é?
— Esse lobisomem que anda matando garotas... — começou, introduzindo tudo que
sabia. Com Nic distraído e perdido encarando apenas seus olhos, ela conseguiu se
desfazer das mãos dele. Se colocou numa distância recomendada para manter uma
conversa entre dois recém-conhecidos. — O que você sabe?
Nic a encarou com receio. Seus lábios mexeram, mas não emitiram som algum. Se
perguntou se não tinha o ouvido, já que a música batia forte contra a parede dos fundos,
balançando os vidros da janela. Na verdade, o movimento sutil na boca do licantropo
pareceu-se mais com um espasmo causado por algum efeito colateral das drogas.
Nina percebeu também que Nic suava.
— Eu não posso falar sobre isso — falou, se arrastando para o lado. Suas pupilas
dilatadas começaram a se fechar. — Ele não é da alcateia. Theo não gosta que falemos
dele.
Nicolas deu mais dois passos com as costas coladas na parede, olhando diretamente nos
olhos de Nina. Na imensidão que alternava entre o âmbar vívido dos lobisomens
tomados pela besta interior e o castanho suave do garoto causal, ela vislumbrava uma
ponta de inocência, tomada pelo medo.
Se viu ali.
Pegou Nic pelo pulso.
— Por favor — apelou, tentando lançar um olhar compreensivo.
Ele olhou para os lados, cuidadoso.
— Isso é para o seu namorado feiticeiro? — indagou, tão rápido que demorou cerca de
três segundos para Nina decifrar o que ele havia dito.
— Não... — respondeu, passando a certeza que não tinha. — E Daniel não é meu
namorado. Eu era amiga da vampira que morreu — belfou. — Quero achar quem a
matou.
— Foi o lobo da lua... — a voz dele tremeu, como uma criança que contava uma
anedota temida para um amigo. — É como o chamam. É uma lenda, entre nós,
lobisomens.
— O que mais você sabe? — Nina apertou o pulso do rapaz, involuntariamente.
— Não muito — seu medo em estar contando o que não devia transparecia a
sinceridade. — Não se sabe muito. Tudo que sabem é que são pessoas que perdem o
controle, e viram bestas para sempre. Não tem controle algum. E são mais fortes que os
outros lobisomens. São brancos, como a lua, pegam toda sua força dela. — Ele parou
para respirar. — Ouvi dizer que o investigador dos vampiros já está atrás dele. Não há
de que se preocupar. Apesar de eu achar que ele vá morrer.
Nina tremeu por dentro. O investigador dos vampiros, conhecido por toda a cidade e os
infernais por essa alcunha infeliz, era Ian, seu namorado. A história do pacto dele com
Mikael era complexa, e, já feita, por mais que desejasse, nada que os dons dela
pudessem fazer ajudaria Ian, o tiraria daquele meio podre.
— Não vá atrás dessa besta — Nic falou, atormentado. Seus olhos se abriram muito,
suas sobrancelhas quase se juntaram com o cabelo. — É imparável. É uma praga. Vai
rondar a região, até não sobrar mais nada. É impossível de controlar um ser como esse.
Vá embora, você é uma garota, corre perigo.
O calafrio desceu pela espinha, balançando as pernas.
— Obrigada — agradeceu, forçando um sorriso para Nic. Seus lábios espasmaram,
iguais ao dele.
Nic não se despediu. Apenas virou em cima dos calcanhares e se foi.