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1 Artista Plástica, Fotógrafa, Especialista em Saúde mental Coletiva e Sanitarista pela Escola
de Saúde Pública (ESP/RS). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e
Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
2 Doutora em Psicologia do Desenvolvimento. Docente do Programa de Pós-Graduação em
Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
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3 Para Ecléa Bosi, que utiliza o termo velho como categoria social, no seu livro: Memória e
Sociedade: lembranças de velhos: “a velhice, que é fator natural como a cor da pele, é tomada
preconceituosamente pelo outro”. (BOSI, 2009, p. 79).
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rememora. É neste percurso temporal que se altera também a identidade do sujeito das
lembranças. Perceber o idoso enquanto categoria social faz necessária uma imersão nas
origens desta categorização para gerar novas formas de percepção de sua função no tecido
social.
A sociedade ocidental contemporânea apresenta um caráter excludente muito
marcante que pode ser interpretado a partir de diversos níveis de categorização e
nivelamento de seus integrantes. A velocidade com que o tempo e as ações se processam
altera não apenas a identidade da pessoa contemporânea, como também, determina outras
formas de ação no presente, outros fluxos de registro e usos da memória, bem como novas
categorias para pessoas do presente e pessoas do passado, ainda no presente.
Os velhos, pode-se dizer formam hoje uma das categorias de sujeitos
contemporâneos, tais como os jovens, os adultos e as crianças. A busca da longevidade,
destacam Marques e Pachane (2010), sempre foi uma preocupação dos homens,
intimamente ligada à capacidade física e relacionada à condição de produtividade social.
Os autores chamam a atenção de que a crescente melhoria nas condições de vida ao
longo do tempo contribuiu para a ampliação do número de idosos na sociedade moderna.
Entretanto, paradoxalmente em nossa sociedade, ao mesmo tempo em que se busca a
longevidade, nega-se a velhice.
A sociedade determina, de acordo com Marques e Pachane (2010), o lugar e o
papel do idoso. O critério de idade não é o único usado pela sociedade, mas reúne em si
justificativas para a desvalorização e não emancipação dos idosos.
Paula (2009) ressalta que estamos numa sociedade em que os mais velhos não são
ouvidos, não são vistos e, por consequência, não são respeitados. Ser velho, de acordo
com a autora, é estar à margem e, infelizmente, o idoso em nossa sociedade ainda não é
visto como fonte de sabedoria.
Não se percebe na sociedade contemporânea, portanto, uma valorização do sujeito
idoso, do saber do idoso, mas antes, o conhecimento do idoso é interpretado como um
conhecimento desatualizado, produto de um sujeito social improdutivo; a memória antes
de ser incorporada numa função de compartilhamento, assume a partir de lembranças,
imagens evocativas, objetos e locais de memória, uma função de alento ou atestado de
existência no presente. Conforme, Mazzuchi Ferreira apud Tedesco (2001, p. 37) os
vestígios memoriais seja através de objetos, fotografias ou locais habitados no passado,
são importantes porque funcionam “como armas contra a desconfiguração social dos
velhos”; talvez como forma de resistência à desfiguração social, como negação ao lugar
de desvio e tentativa de preservação numa moldura imagética do tempo áureo, contrária
ao que lhes é atribuído no presente da velhice.
Muito se tem falado de um mnemotropismo contemporâneo, onde autores afirmam
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estar-se vivendo um período de ansiedade com relação ao futuro que ocasiona uma
necessidade de armazenamento de memórias. A velocidade de produção e de consumo
característicos da cultura contemporânea faz com que a sociedade assuma contornos
efêmeros, quase solúveis. Propõe-se, aqui discutir a memória do idoso, enquanto fonte
rica de dados para o patrimônio social, pelo viés da saúde mental.
A Organização Mundial de Saúde entende a saúde como “um estado de bem-estar
físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença ou dor”. Nesta definição, a
“saúde mental” é entendida como um aspecto vinculado ao bem-estar, à qualidade de
vida, à capacidade de exercer plenamente sua condição de pessoa e de se relacionar com
os outros. Ao defini-la nesta perspectiva positiva, a OMS propõe a saúde mental para além
da dicotomia saúde x doença expressa apenas a partir de sintomas. A definição revela o
caráter biopsicossocial da pessoa para pensar a sua saúde como um bem estar integrado.
Acredita-se que a rememoração seja um ato constante na vida do idoso que, em
momentos de ócio, transcorre longos períodos de imersão no passado. Antes de ser um ato
nostálgico por natureza, propõe-se a escuta das histórias de idosos, carentes de vínculos
familiares e sociais, como um ato terapêutico em si, além de uma contribuição para a
memória social a qual acrescentam com sua visão de mundo.
Para Candau (2011; pp.118), “Transmitir uma memória e fazer viver, assim, uma
identidade não consiste, portanto, em apenas legar algo, e sim uma maneira de estar
no mundo.” Ou seja, tanto a transmissão de saberes, quanto a experiência registrada na
memória a partir de memórias cumulativas são constitutivos da identidade da pessoa e
sem tais memórias ou sem o ato de compartilhamento não haveria identidade. Segundo
Candau (2011, pp. 59) “A perda de memória é, portanto, uma perda de identidade”.
As pesquisas sobre memória de idosos, no campo da memória, identidade e
patrimônio, tem, a grosso modo, apresentado dois perfis de idosos:
a) Um idoso desiludido, deprimido, esquecido, sem função social, esperando a morte,
muito presente nos textos de Eclea Bosi (2009).
b) Um idoso ativo, que frequenta Grupos de Terceira Idade, trabalha, é arrimo de
família com os ganhos da aposentadoria, assume a função de cuidar dos netos,
guardião da tradição. Para este idoso temos como exemplo os Nonos de João Carlos
Tedesco (2001).
Pode-se, então, ao analisar os trabalhos com memória de idosos encontrar duas
grandes categorias de memória:
a) Uma Memória encerrada- A memória do já vivido visto como uma marca de
finitude associada a idéia de que não há mais o que viver, encerramento dos ciclos e
encerramento da função de compartilhamento social. O idoso se recolhe da participação
social.
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Pode-se sentar para ouvir uma infinidade de histórias, se houver tempo no presente
veloz em que se vive e, gerar saúde mental individual e social. Da mesma forma que as
políticas públicas voltadas para a saúde se ocupam desta, na qualidade de direito universal
amplo, possam ser recriados e exercidos verdadeiramente, os instrumentos de proteção
que compreendem a cultura de um grupo, também como reflexo de saúde social.
Uma breve revisão bibliográfica sobre pesquisas que investigaram memória em
idosos, tanto institucionalizados enquanto residentes como os que participam de atividades
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como as citadas neste trabalho, podem muito bem dar conta desta demanda legal.
Para Bosi (2009) a função do idoso poderia ser comparada a de guardião do
tesouro espiritual da comunidade, porta voz da tradição, pois através da memória dos
velhos pode-se ter contato com uma riqueza e uma diversidade que não se conhece. Esse
contato possibilita, nas palavras da autora, a humanização do presente. Por outro lado, a
impossibilidade desse contato provoca uma sensação de perda e morte, de empobrecimento
para todos, pois o velho deixa de contribuir, para a comunidade, com o que é inerente à
sua faixa etária: os dados das experiências, memórias, conhecimentos, vivências, dores e
acertos, enfim, toda uma vida a ser contada e compartilhada.
Nesse sentido, é pertinente salientar o que Tedesco (2004; p.36) relata sobre as
pesquisas com idosos:
Sentir e contar histórias em comum significa dar possibilidade
de criação e fortalecimento comunitário. Os idosos por nós
entrevistados determinam um tempo de pertencimento, que não
é o de “hoje”, tempo esse de criação e participação ativa no seio
comunitário, de identificação de um sentimento de um agir regido
pela profunda autodeterminação de si.
Referências
BÓSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 13.ed. São Paulo: Cia. das
Letras, 2009.