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Maria no diálogo ecuménico

Na Encíclica Ut Unum Sint o Papa João Paulo II lembrou que, entre os cinco grandes
temas de controvérsia que permanecem e que importa aprofundar no diálogo ecuménico
para se alcançar um verdadeiro consenso na fé, se encontra “a Virgem Maria, Mãe de
Deus e Ícone da Igreja, Mãe espiritual que intercede pelos discípulos de Cristo e pela
humanidade inteira” 1. Não se trata aqui, aliás, simplesmente de um ponto de
controvérsia entre outros, mas de uma questão que - juntamente com o papado – mais
dificuldades coloca no confronto entre a identidade e espiritualidade católicas, por um
lado, e as Confissões cristãs provenientes da Reforma, por outro (isto sem menosprezo
das divergências católico-ortodoxas também existentes nesta matéria) 2. De facto,
Maria, não tendo sido embora causa imediata de separação na altura da Reforma,
tornou-se o lugar simbólico em que se sedimentam e exprimem pontos nucleares do
desacordo católico-protestante.
Nestas breves notas começa-se por lembrar os principais factores e expressões dessa
divergência. Explicitam-se, depois, sinais e conteúdos de uma nova abertura ao diálogo
sobre Maria no mais recente diálogo ecuménico. Conclui-se esta reflexão com uma
referência a algumas questões e tarefas em ordem ao futuro.

1. Factores e expressões de um difícil diálogo

No diálogo sobre Maria há que distinguir, à partida e como é sabido, entre o diálogo
católico-ortodoxo e o diálogo com o mundo protestante em geral.

1.1. Maria no diálogo católico-ortodoxo

Apesar das diferenças de espiritualidade e de práticas devocionais existentes, há uma


visão comum bastante ampla, quase total, entre católicos e ortodoxos quanto ao
significado e ao papel de Maria no acontecimento da salvação e na vida quotidiana dos
cristãos. As diferenças que se observam têm mais a ver com o modo como cada uma das
duas tradições, enraizadas em contextos culturais diferentes, encara os mistérios da fé: é
conhecido que a mentalidade oriental é marcada por um forte sentido de tradição, por
uma valoração acentuada do enquadramento existencial litúrgico, por uma linguagem
mais de teor meditativo (e não tanto racional), aberta à rica expressividade dos símbolos
3
. Face ao mistério da maternidade divina de Maria, a teologia ortodoxa assume uma
atitude de discreção e quebra o seu silêncio sobretudo através da linguagem doxológica
dos hinos. Nessa medida, os textos litúrgicos são os principais pontos de referência da
teologia ortodoxa, aliás vistos não como expressão magisterial dogmática (critica-se até
o formalismo doutrinal romano), mas como testemunhos de uma experiência existencial
da salvação.
Assim, do ponto de vista dogmático estrito, na teologia ortodoxa Maria é parte
constitutiva da cristologia em razão da sua colaboração no mistério da encarnação, e

1
Ut Unum Sint, nº 79.
2
“Em nenhum outro ponto, como na mariologia, é tão grande a diferença entre a doutrina da Igreja e o
Novo Testamento”: J. MOLTMANN, Existe una mariología ecuménica?, in Concilium 188 (1983) 178-
184, aqui 178.
3
Cf. F. COURTH, Maria/Marienfrömmigkeit. IV. Orthodoxie, in Theologische Realenzyklopädie, 22,
Walter de Gruyter-Berlin-New York 1992, 148-151, aqui 149. Cf. VL. ZIELINSKY, Le mystère de
Marie, source d’unité, in Nouvelle Revue Théologique 121 (1999) 72-91; e ainda J. E. BORGES DE
PINHO, O lugar de Maria numa perspectiva ecuménica, in Humanística e Teologia 9 (1988) 139-168,
aqui 151-158.

1
nesse sentido a designação de Maria como Theotokos (“Geradora de Deus”,“Mãe de
Deus”) no 3º Concílio Ecuménico (Éfeso, 431) é o enquadramento doutrinal-dogmático
determinante da sua pessoa. Nessa ordem de ideias, a teologia ortodoxa não aceita a
dogmatização da Imaculada Conceição e da Assunção de Nossa Senhora 4, ainda que os
conteúdos afirmados nestes dois dogmas não sejam totalmente alheios à piedade e à
reflexão ortodoxas.
Na rejeição da doutrina sobre a Imaculada, e apesar de haver um ponto de partida
comum nos títulos honoríficos que a ortodoxia dedica a Maria (sobretudo o de
“Panagia”, a “Toda Santa”, a “Santíssima”), considera-se que o dogma não tem apoio na
Escritura, é demasiado tributário da tradição ocidental e da interpretação augustiniana
do pecado original, repousa sobre uma visão jurídica da redenção e atribui um privilégio
especial a Maria que a colocaria à margem do destino comum a todos os homens. Na
sua perspectiva, o facto de se reconhecer que Maria atingiu o mais alto grau de
santidade ao qual pode chegar uma criatura humana, sendo a primeira a beneficiar
plenamente da salvação operada pela vida, morte e ressurreição do seu Filho, não está
em relação com a sua concepção, mas é fruto da graça que lhe permitiu vencer a sua
natureza pecadora. Quanto ao destino final de Maria, a tradição ortodoxa fala de
“Dormição” (às vezes de “Assunção”, ainda que as duas ideias não se equivalham) e
reconhece o lugar preeminente de Maria na comunhão dos santos, admitindo mesmo a
afirmação da sua Assunção como uma opinião doutrinal legítima. Mas determinante
aqui é o facto de a Ortodoxia considerar que este dogma (como o da Imaculada) foi
integrado solenemente de maneira ilegítima no conteúdo da fé confessado pela Igreja
católica, ao envolver a infalibidade do papa e sem haver nenhuma circunstância exterior
que a isso a obrigasse.
De resto – convém sublinhá-lo de novo – o essencial da visão ortodoxa de Maria não
passa por aqui, antes a importância de Maria na vida das Igrejas ortodoxas traduz-se na
sua presença constante na oração, na liturgia, na iconografia. É através de ícones e dos
textos litúrgicos, mais do que através de reflexões teológico-doutrinais, que se percebe
melhor o espírito da teologia mariana ortodoxa e da sua profunda piedade: “A
veneração ortodoxa da Theotokos – escreve T. Moldovan - conduz a uma piedade
mariana de profunda vivência e espiritualidade, dificilmente compreendida e apreciada
em seu justo valor pelos não ortodoxos”. E prossegue: “Nas tradições do Oriente cristão
há uma relação íntima, psicológica, espiritual, às vezes dramática e idílica entre os fiéis
e a Mãe de Deus. Dirigem-se a ela com fé e confiança, com dor e nostalgia, mas
sobretudo, com amor, por ser a Mãe de Jesus e mãe da humanidade, a segunda Eva,
mediante a qual nos chegou a redenção, a salvação, por haver gerado o Filho de Deus
Unigénito. Ninguém como ela e o seu divino Filho compreendem melhor o drama
humano e ninguém como eles intervêm com mais compaixão e misericórdia em nossa
ajuda” 5.

1.2. O diálogo com as Igrejas da Reforma

Quanto ao diálogo com os cristãos provenientes da Reforma, os problemas são


indiscutivelmente muito mais amplos e complexos, num processo que se foi agravando
com o desenvolvimento da própria Reforma e com o modo como o catolicismo se
articulou na sua resposta à interpelação protestante. Logo na altura da Reforma houve

4
A. KALLIS, Maria, Mutter Jesu. V. Ostkirche, in Lexikon für Theologie und Kirche, 6, Freiburg-Basel-
Wien 1997, 1325.
5
T. MOLDOVAN, Doctrina y piedad mariana en la Iglesia ortodoxa, in Ephemerides Mariologicae 42
(1992) 267-294, aqui 291.

2
uma atitude ambivalente relativamente a este ponto. Por um lado, Lutero, os outros
Reformadores e os próprios Escritos Confessionais luteranos mantiveram, no
fundamental, a sua adesão à fé da Igreja antiga: Maria continuou a ser vista como a sem
pecado, a mãe virginal de Jesus, a Theotokos. Mas, por outro lado, a crítica reformadora
incidiu desde logo na mariologia católica e nas formas da piedade mariana, vistas como
práticas devocionais exageradas que aproximavam Maria como mediadora ao lado de
Cristo, aparentemente até às vezes mesmo em seu lugar. Isso explica o significado
reduzido que Maria vai tendo progressivamente nas comunidades eclesiais protestantes,
em demarcação cada vez mais nítida e polémica relativamente ao espaço católico. A
piedade mariana católica, associada ao culto dos santos, foi vista mesmo como um
elemento típico dos principais erros que a Reforma pretendia combater.
De facto, a aplicação consequente dos princípios reformadores – sola Scriptura, solus
Christus, sola gratia, sola fide – tinha que conduzir, inevitavelmente, a uma limitação e
a um apagamento da figura de Maria nas comunidades da Reforma. Sintetizam-se a
seguir os principais pontos de crítica protestante à visão católica de Maria:

a) Globalmente, considera-se que a veneração católica de Maria obscurece a acção


salvífica de Cristo. No lugar dado a Maria põe-se em causa a centralidade cristológica
de toda a existência cristã. Esquece-se assim que as afirmações sobre Maria no Credo
têm como finalidade apenas afirmar a verdadeira humanidade e divindade de Jesus e
assegurar que Cristo, através da sua Mãe, pertence à unidade do género humano. Aceita-
se a sua designação como Theotokos precisamente porque e na medida em que constitui
uma afirmação cristológica auxiliar (não uma dignidade que possa servir de fundamento
a uma mariologia independente).

b) A doutrina e a piedade marianas manifestam um entendimento do acontecimento da


salvação que não respeita integralmente a gratuidade desse mesmo acontecimento e da
resposta crente dada pela fé (sola gratia – sola fide). Em causa está sobretudo a
cooperação que se atribui a Maria na obra da redenção, não só no passado mas também
na actual experiência crente, uma vez que se afirma a continuação da sua mediação
maternal da salvação em Cristo 6. Aliás, é convicção protestante que a veneração dos
santos (em geral) põe em causa o solus Deus e o solus Christus.

c) Tanto no aspecto doutrinal como na dimensão devocional relativa a Maria está


radicalmente em causa o primado da Escritura. Assim se justifica, de modo particular,
a rejeição dos dogmas da Assunção e da Imaculada Conceição, considerados como
“especulações” que não têm base bíblica, pelo que não se fundam explicitamente na
revelação. Mas esses dogmas são recusados também pelo facto de serem definições
“dogmáticas”, pelos conteúdos teológicos que afirmam e pelas formas ambíguas de
piedade que fomentaram (fomentam). A motivação fundamental do dogma da
Imaculada parece estar mesmo em contradição com a revelação bíblica. A doutrina da
Assunção e as consequências eclesiológicas desta escatologia mariológica são rejeitadas
porque não têm fundamento na revelação.

d) Os protestantes insistem que nada para além da Bíblia pode ser tornado obrigatório
para a fé cristã (criticam o recurso à autoridade da tradição viva da Igreja, contrapondo
o princípio da sola Scriptura). Por isso, tendo em conta também que não há suporte
cristológico para essa afirmação, os cristãos evangélicos têm a liberdade de não
6
R. FRIELING, Maria/Marienfrömmigkeit. III. Dogmatisch. III/1. Evangelisch, in Theologische
Realenzyklopädie, 22, Walter de Gruyter-Berlin-New York 1992, 1340.

3
considerarem obrigatória a afirmação da “virgindade perpétua” de Maria, mesmo que
dela se fale no II Concílio de Constantinopla (553) e nos Escritos Confessionais
luteranos. Para esta posição contribuiu certamente também a mentalidade decorrente do
desenvolvimento da exegese histórico-crítica, que veio questionar dados
tradicionalmente aceites. É o caso da própria concepção virginal, que não era ponto de
discussão na altura da Reforma.

e) A visão católica de Maria, com as prerrogativas que lhe reconhece e apresentando-a


como tipo da Igreja, corre o risco de favorecer uma “divinização” da Igreja. A ideia da
ausência de pecado na pessoa de Maria fomenta um falso paralelismo com Cristo, o que,
numa compreensão simbolizante, tem grandes consequências para o modo como se
entende a relação de Cristo com a Igreja e a própria realidade da Igreja.

f) No debate mariológico emerge, no seu conjunto, um modo diferente de situar e


avaliar as diversas fontes e mediações do conhecimento doutrinal, bem como a
autoridade respectiva que se atruibui a cada uma delas. Em concreto, há um modo muito
diferente (entre católicos e protestantes) de considerar a autoridade respectiva da
Escritura, dos Concílios, das Tradições e do Papa.

h) Em suma, na visão evangélica a mariologia e a piedade marianas corporificam o


cerne das questões ecuménicas. Todas as linhas mestras da teologia católica convergem
para esta doutrina: “Se o diálogo ecuménico encontra dificuldades excepcionalmente
graves no campo da mariologia, a fundamental não é constituída pelo carácter
específico deste campo da teologia, mas pelo facto de que nela culminam outros
sectores de teologia e de metateologia difíceis de conciliar com os da reforma” 7.

2. Nova abertura ao diálogo ecuménico sobre Maria

2.1. O significado do Concílio Vaticano II e sua recepção

Apesar das dificuldades apresentadas (e que, substancialmente, persistem), há a


assinalar um notável progresso no diálogo ecuménico sobre Maria na sequência do
Concílio Vaticano II e da sua recepção doutrinal e pastoral, ainda que esta recepção não
tenha sido um processo homogéneo e de sentido único 8.
De grande significado para uma nova abertura ao diálogo neste âmbito foi a opção
conciliar de não dedicar a Maria um documento autónomo, mas de integrar a doutrina e
a visão católica sobre Maria na Constituição sobre a Igreja Lumen Gentium. Ou seja,
visto no contexto do debate conciliar sobre este ponto, apontou-se assim a necessidade
de superar a tendência a assimilar o mais possível Maria a Cristo (visão “cristotípica”,
de teor “maximalista”) e de reintroduzir Maria no seu lugar na Igreja, ainda que como
membro mais eminente e mais perfeito no conjunto do povo de Deus a caminho
(tendência “eclesiotípica”). Esta viragem na consideração doutrinal, espiritual e pastoral
de Maria possibilitou uma doutrina mariana mais integrada, aberta à interpelação
ecuménica.

7
S. C. NAPIÓRKOWSKY, Ecumenismo, in S. de FIORES – S. MEO (dir.), Nuevo Diccionario de
Mariología, Madrid 1988, 648.
8
Poder-se-ia pensar aqui na tentativa de retomar, porventura dogmatizando-a, a linguagem de Maria
como “co-redentora”.

4
Dessa opção básica e da sua explicitação no imediato pós-Concilio, com particular
relevo para a Exortação Apostólica de Paulo VI Marialis Cultus (1974) 9, ressaltaram
alguns critérios orientadores em ordem à renovação da teologia e da piedade marianas,
com grande repercussão ecuménica. Ainda que não se possa dizer que já esteja
cumprida a exigência conciliar de reencontrar uma teologia mariana plenamente
integrada no mistério de Cristo e da Igreja, há um conjunto de perspectivas que
progressivamente vão constituindo património comum e cada vez mais determinante na
visão católica de Maria. Assim:

- tem-se vindo a reconhecer a importância fundamental da orientação pela Escritura,


orientação que deve marcar toda a teologia e piedade marianas, possibilitando-se desse
modo um renovado olhar para a imagem bíblica de Maria;

- há consciência da necessidade de centrar a teologia e a piedade marianas em referência


a Jesus Cristo, o único Mediador, e de deixar inequivocamente claro que “a função
maternal de Maria em relação aos homens de modo algum ofusca e diminui esta única
mediação de Cristo; manifesta antes a sua eficácia” 10;

- reconhece-se como indispensável o enquadramento eclesial de Maria, o seu lugar de


primeira crente e de primeira discípula numa Igreja a caminho, situando-a dentro da
Igreja, de que faz parte como seu membro eminente, único e exemplar;

- tem-se maior consciência de que não se pode falar de Maria sem uma sensível
preocupação ecuménica, dando cumprimento à exortação conciliar de que se evite “com
cuidado, nas palavras e atitudes, tudo o que possa induzir em erro acerca da doutrina da
Igreja os irmãos separados ou quaisquer outros” 11;

- emergem como particularmente dignos de atenção e reflexão alguns aspectos


fundamentais de ordem antropológica envolvidos na mariologia e na piedade mariana,
os quais não podem deixar de interpelar também a consciência evangélica (religiosidade
popular, papel da mulher na sociedade e na Igreja, teologia feminista);

- não faltam, finalmente, as insistências (também por parte do magistério) de que o culto
e a piedade marianos se devem integrar harmonicamente na liturgia da Igreja e seus
critérios, de modo a não deixar qualquer dúvida de que a devoção a Maria não está em
contradição com a única mediação de Jesus Cristo (Maria não tem um papel salvífico
autónomo).

2.2. Sinais e expressões de abertura no campo evangélico

2.2.1. Maria não é só católica, mas também evangélica

Não é sem relação com estes impulsos de renovação no seio católico e das interpelações
daí resultantes que surgiram no pós-Concílio sinais de uma nova abertura ao diálogo

9
AAS 66 (1974) 113-168; La Documentation Catholique 1651 (1974) 301-309. Cf. S. C.
NAPIÓRKOWSKY, Mariologie et ecuménisme [sic !] après le Concile Vatican II, in Ephemerides
Mariologicae 42 (1992) 215-236.
10
LG, nº 60.
11
LG, nº 67.

5
sobre Maria no campo não católico. Isso tem-se traduzido, por exemplo, no trabalho
ecuménico desenvolvido nos Congressos Mariológicos Internacionais.
Essa abertura foi simbolizada de forma particular num documento elaborado em 1982
pelo Círculo de Estudos “Catholica” da Igreja Evangélica-Luterana Unida da Alemanha
(VELKD) e pelo Comité Nacional Alemão da Federação Luterana Mundial 12. Nesse
texto admite-se que os protestantes, por reacção ao catolicismo, adoptaram como ponto
de partida um “minimalismo mariano” e caíram a maior parte das vezes até numa
“abstenção mariana” 13, o que necessita de ser corrigido. Ao mesmo tempo reconhece-
se, sem hesitações, que Maria é uma figura do Novo Testamento e que há,
consequentemente, “uma imagem bíblica de Maria”, pelo que, à luz do próprio
“princípio da Escritura”, não se pode ignorar Maria: “Igrejas que têm por norma a
Sagrada Escritura não podenm deixar de aprofundar estas afirmações bíblicas. Além
disso, a mãe corporal de Jesus não pode ser insignificante para pessoas que confesam
Jesus Cristo, porque descobrem em Jesus de Nazaré a revelação definitiva do ser e da
vontade de Deus” 14.
O conjunto do documento distancia-se, é certo, das posições católicas habituais,
expressando receios relativamente a elas. E insiste no carácter relativo, secundário, do
lugar de Maria na existência cristã, sem deixar de reconhecer ao mesmo tempo que está
aqui algo a merecer, indiscutivelmente, uma maior consideração: “Aos cristãos, para os
quais a mariologia e a piedade mariana são elementos estranhos, não falta em princípio
nada, se têm só Jesus Cristo como centro e medida da sua fé. Mas uma memória de
Maria orientada pelo critério da Sagrada Escritura pode ilustrar e acentuar o Evangelho.
Para a fé cristã Maria é ilustrativa, não normativa” 15.
A viragem sinalizada neste texto da VELKD encontrou expressão qualificada num
documento publicado em 1992 no âmbito do diálogo oficial católico-luterano nos
Estados Unidos 16. É um texto verdadeiramente pioneiro, não só porque introduziu o
tema mariano no diálogo ecuménico oficial em curso no pós-concílio, mas sobretudo
porque se tornou um ponto de referência para a reflexão posterior, designadamente para
os dois mais recentes e mais amplos documentos sobre a questão mariana, documentos
esses com um significado inovador e de enorme importância para o futuro da
aproximação ecuménica sobre Maria. Trata-se, antes de mais, do documento “Maria no
plano de Deus e na comunhão dos santos” (1997) 17, elaborado pelo Grupo des Dombes,
um grupo não oficial de diálogo constituído fundamentalmente por teólogos católicos e
protestantes do espaço francês. O outro documento, intitulado “Maria, graça e esperança

12
LUTHERISCHES KIRCHENAMT DER VELKD (ed.), Evangelische Fragen und Gesichtspunkte.
Eine Einladung zum Gespräch, in Una Sancta 37 (1982) 184-201. Citado a seguir VELKD.
13
Cf. VELKD, 185 e 196.
14
VELKD, 184
15
VELKD, 198.
16
The One Mediator, the Saints, and Mary, in H. G. ANDERSON – J. F. STAFFORD – J. A. BURGESS
(eds.), Lutherans and Catholics in Dialogue VIII, Augsburg-Minneapolis 1992. Encontra-se uma síntese
dos aspectos mais significativos deste documento em S. C. NAPIÓRKOWSKY, Ecumenismo, 650-652.
17
GROUPE DES DOMBES, Marie dans le dessein de Dieu et la communion des saints. I. Dans
l’histoire et l´Ecriture, in La Documentation Catholique nº 2165 (1997) 721-749; II. Controverse et
conversion, in La Documentation Catholique nº 2187 (1998) 719-745. Cita-se a seguir: Dombes, I e
Dombes, II. Há uma tradução portuguesa deste texto, editada pela Gráfica de Coimbra. Para a análise de
todo o documento, e para além de outros textos citados a seguir, cf. CH. DUQUOC, Oecuménisme et
Mariologie, in Lumière et Vie 240 (1998) 81-88 ; J. FAMERÉE, J., Marie à l'épreuve de l'oecuménisme.
Un document pionnier du Groupe des Dombes, in Revue Théologique de Louvain 29, 4 (1998) 506-518.

6
em Cristo” (2004) 18, foi elaborado no âmbito da Comissão Mista Internacional de
Diálogo entre Católicos e Anglicanos - ARCIC II e representa o primeiro texto (e único
até agora) sobre Maria no âmbito de um diálogo internacional a nível de Comissão
Mista constituída pela Igreja Católica e por outra Confissão cristã. São documentos que
procuram fazer, de uma forma bastante ampla, uma releitura comum de Maria e, ao
mesmo tempo, apresentam perspectivas e afirmações pontuais que merecem ser
sublinhadas.

2.2.2. “Maria no plano de Deus e na comunhão dos santos”

a) O Grupo des Dombes começa por reconhecer que o debate interconfessional acerca
da Virgem Maria “mostra com evidência que este é talvez hoje o ponto de cristalização
mais sensível de todas as diferenças confessionais subjacentes, relativos nomeadamente
à soteriologia, à antropologia, à eclesiologia, à hermenêutica: trata-se de questões de
fundo, de maneira que o diálogo ecuménico sobre Maria é bem em definitivo um lugar
apropriado de verificação dos nossos desacordos doutrinais, como ele é também um
lugar não menos apropriado para lançar uma olhar autocrítico sobre os nossos
comportamentos eclesiais respectivos face à Mãe do Senhor” 19. Na consciência deste
dado, dois princípios de leitura presidiram à reflexão do Grupo des Dombes nesta
abordagem mariológica: o princípio da justificação pela graça mediante a fé (princípio
fundador para as Igrejas da Reforma), e o princípio da hierarquia das verdades (proposto
pelo Vaticano II e acolhido por outras Igrejas), princípio esse que, no entendimento do
Grupo, “faz da teologia mariana, no sentido literal do termo, uma realidade, não
secundária, mas segunda em relação a Cristo, da qual ela depende e da qual ela recebe a
sua legitimidade” 20.

b) Na perspectiva do documento do Grupo des Dombes, o principal ponto de


controvérsia, abordado por isso mesmo em primeiro lugar, é a questão da “cooperação”
(termo utilizado sempre entre aspas!) de Maria no acontecimento da salvação. Neste
aspecto, admite-se como ponto de partida que a graça, sendo embora sempre o dado
primeiro e absoluto, “não só não exclui uma resposta humana, mas pelo contrário a
suscita e a torna possível, até mesmo a obriga”. A esta luz, a resposta activa de Maria,
cuja fé não é um fazer mas um receber, “inscreve-se na recepção passiva do favor que
lhe é feito, a ela a toda ‘cheia de graça’, para se tornar a mãe do Senhor, a theotokos, a
mãe de Deus”. Ou seja, o uso do termo “cooperação” não põe em causa “a convicção de
que a resposta decisiva, aquela que salva, é única e inteiramente dada pelo Filho único
que se encarna, se entrega e assim realiza por si só, uma vez por todas e para todos, a
salvação” 21. A reflexão feita neste ponto específico, permitindo superar as principais
ambiguidades, possibilita aos membros do Grupo concluir que a clarificação doutrinal
obtida acerca da “cooperação” de Maria, “mesmo se não resolveu todo o problema nas
suas diversas aplicações, chegou, no que concerne a Maria, a um resultado suficiente
para exprimir uma comunhão na fé” 22.

18
Marie: grâce et espérance dans le Christ. Rapport de la Commission internationale anglicane-
catholique romaine (ARCIC), in La Documentation Catholique 2341 (2005) 752-785. Citado a seguir :
Marie.
19
Dombes, I, nº 119, p. 737.
20
A. BLANCY – M. JOURJON, Présentation, in Dombes, II, 720.
21
A. BLANCY – M. JOURJON, Présentation, 720. Cf. Dombes, II, nºs 208-227, 723-726.
22
Dombes, II, nº 295, 736. Cf. Dombes, II, nº 323, 740. Cf. A. BLANCY, Marie et la Réforme. Les
protestants et le document du Groupe de Dombes sur Marie, in Nouvelle Revue Théologique 121 (1999)

7
c) Quanto aos dois dogmas marianos, reconhece-se em comum que as afirmações nele
contidas não subtraem Maria ao destino da condição humana, antes eles querem
manifestar, em Maria, a realização e o sucesso do plano de salvação de Deus para toda a
humanidade, de que ela representa uma concretização antecipada 23. Está, no fundo, a
falar-se da esperança cristã, do que verdadeiramente a funda, da certeza do pleno
cumprimento dessa esperança final, do destino daqueles que Cristo fez seus irmãos. “O
dogma da Assunção – lê-se no documento do Grupo des Dombes - fala neste sentido do
nosso próprio futuro, ele designa o objecto da esperança que nos habita desde já no
tempo da história, porque ‘a criação espera com impaciência a revelação dos filhos de
Deus’, e ‘nós também, que possuímos as primícias do Espírito, nós gememos
interiormente, esperando a adopção, a libertação para o nosso corpo’ (Rm 8, 19 e 23). A
Assunção atesta que Deus já antecipou para a mãe do seu Filho a salvação esperada
pelos cristãos” 24. Na opinião dos participantes no Grupo des Dombes, a mesma
preocupação de reconhecer que Maria viveu plenamente a condição humana e de honrar
sem reservas a soberania de Cristo, enraizada e expressa numa teologia da graça, é o
pano de fundo do dogma da Imaculada Conceição, mesmo se não há acordo entre
católicos e protestantes sobre o facto de se confessar que Maria foi isenta de todo o
pecado 25.
Perante a dificuldade real de acolhimento destes dois dogmas por parte dos protestantes,
o documento do Grupo des Dombes coloca a possibilidade de uma atitude diversificada
em termos de obrigação de adesão, uma vez que estes dogmas não pertenciam como tais
à expressão comum da fé no momento da separação 26. Admitindo essa atitude diversa
na adesão (na prática, não obrigação de adesão por parte dos protestantes), a Igreja
católica poderia exercer relativamente aos outros cristãos a mesma atitude de prudência
e a mesma caridade que ela manifestou ao longo de séculos sobre estas questões.
Pressuposto fundamental, no entanto, é que se reconheça que o conteúdo destes dogmas
não implica nada que seja contrário ao Evangelho. A partir destes considerandos
pergunta-se no documento do Grupo des Dombes se a proposta seguinte não será a
solução mais sábia: “A Igreja católica não faria destes dois dogmas uma exigência
prévia à plena comunhão entre as Igrejas. Ela pediria somente aos parceiros com os
quais ela restabeleceria esta comunhão que respeitem o conteúdo destes dogmas, que
não os julguem contrários ao Evangelho nem à fé, mas que os considerem como
consequências livres e legítimas duma reflexão da consciência católica sobre a
coerência da fé”27.

d) Relativamente à devoção mariana, sublinha-se que, em rigor de termos, toda a oração


e todo o louvor não podem dirigir-se senão só a Deus, mais precisamente ainda ao Pai
pelo Filho no Espírito Santo 28. A invocação é, antes de mais, um louvor gratuito pela
graça feita a Maria, ela “é manifestação e expressão da comunhão que a morte não
poderá abolir, mesmo se ela transforma a modalidade dessa comunhão” 29. Também
para os católicos participantes no Grupo des Dombes, a oração não pode ser senão uma

26-33 ; J.-M. HENNAUX, Le document du Groupe des Dombes sur la Vierge Marie, in Nouvelle Revue
Théologique 121 (1999) 41-58, aqui particularmente 41 ss.
23
Cf. A. BLANCY – M. JOURJON, Présentation, 721.
24
Dombes, II, nº 265, 731.
25
Dombes, II, nºs 269-272, 732.
26
Cf. Dombes, II, nºs 296-300, 736 s.
27
Dombes, II, nº 298, 737. Cf. Dombes, II, nº 326, 740.
28
Dombes, II, nº 276, p. 733.
29
Dombes II, nº 278, 733 s.

8
oração dirigida a Deus, o único que pode acolher e responder, plena e definitivamente,
aos anseios e apelos do coração humano, pelo que toda a oração a Maria é,
rigorosamente falando, oração por Maria, através de Maria. “A intercessão é, assim, a
conversação eterna dos fiéis com o seu Deus na sua preocupação uns pelos outros” 30.
Em última análise, a oração cristã, dentro desta comunhão dos santos de todos os
tempos e de todos os lugares, vivos e mortos, em Cristo, insere-se “no movimento
trinitário de louvor ao Pai, pelo Filho e no Espírito que intercede em nós, para nós e por
nós (Rm 8, 26)” 31.

e) Finalmente, merece relevo ainda o facto de o documento chamar a atenção para uma
atitude realista, de respeito pela consciência das pessoas, de atenção ao significado que
a religiosidade de pendor mariano tem merecido e merece na vida de milhões de
pessoas. E adverte: “O discernimento teológico e pastoral deve vigiar no sentido de não
desprezar a fé dos mais humildes, evangelizando em ordem a que uma deusa-mãe não
se esconda sob os traços da Mãe de Deus e a que não se julgue ter todo o cristianismo e
toda a Igreja só na relação afectiva a Maria. Do mesmo modo, a referência ao sentido da
fé dos fiéis (sensus fidelium) deve ser utilizada com precaução, porque o que se
interpreta como tal pode relevar mais do sentimento religioso do que da fé cristã” 32.
Não se pode esquecer, sobretudo, que Maria é essa mulher para quem muitas pessoas
simples, pobres e humildes se voltaram ao longo dos séculos no meio das alegrias e dos
sofrimentos da existência, identificando-se com ela e a sua história dolorosa de vida,
procurando junto dela conforto, consolação e protecção maternal, sentindo-se próximas
daquela em quem descobrem um rosto de ternura, de misericórdia e de compaixão 33.

2.2.3. “Maria, graça e esperança em Cristo”

a) Procurando fazer uma “re-recepção” da doutrina sobre Maria, católicos e anglicanos


partem da verificação de que partilham muitos aspectos comuns na vivência da liturgia
no contexto mariano 34. Estão ainda de acordo em que, tendo em conta o testemunho
normativo da Escritura sobre o plano divino de salvação, “é impossível ser fiel à
Escritura e não tomar Maria seriamente em consideração” 35. Assume-se, aliás, aqui a
base ampla de consenso já manifestado no âmbito do diálogo católico-anglicano
anterior, expresso no documento Autoridade na Igreja II (1981, da responsabilidade da
ARCIC I): “Nós estamos de acordo sobre o facto de que não pode haver senão um único
mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo, e em rejeitar toda a interpretação do
papel de Maria que obscureça esta afirmação. Nós estamos de acordo em reconhecer
que a maneira cristã de compreender Maria está inseparavelmente ligada às doutrinas
sobre Cristo e a Igreja. Nós estamos de acordo em reconhecer a graça e a vocação
únicas de Maria, Mãe de Deus encarnado (Theotokos), em observar as suas festas e em
honrá-la na comunhão dos santos. Nós estamos de acordo em dizer que ela foi
preparada pela graça divina para ser a mãe do nosso Redentor, pelo qual ela própria foi
redimida e acolhida na glória. Mais ainda, nós estamos de acordo em reconhecer em
Maria um modelo de santidade, de obediência e de fé, modelo esse que vale para todos

30
A. BLANCHY – M. JOURJON, Présentation, 722.
31
Dombes, II, nº 278, 733 s. Cf. ainda nº 281, 734.
32
Dombes, II, nº 292, 736.
33
Cf. Dombes, I, nºs 124-125, 738.
34
Cf. A. J. BRUNETT – P. F. CARNLEY, Marie: grâce et espérance dans le Christ. Préface des
coprésidents de l’ARCIC, in La Documentation Catholique 2341 (2005) 753.
35
Marie, nº 6, 755. Cf. nº 80, 774.

9
os cristãos. Nós aceitamos que é possível considerá-la uma figura profética da Igreja de
Deus, tanto antes como depois da Encarnação” 36.

b) Chave hermenêutica de todo o documento é a consideração escatológica de Maria


dentro do paradigma da graça e da esperança. A novidade do documento reside
precisamente no facto de que não se vê a história da salvação a partir do princípio para o
fim (da criação decaída até ao futuro em Cristo), mas parte do seu cumprimento em
Cristo para olhar toda a história anterior a partir deste cumprimento. Esta mudança de
perspectiva permite uma luz nova sobre Maria, ou seja, uma consideração do papel de
Maria dentro da economia da graça 37. Nesse olhar maravilhado para a graça
preveniente de Deus – é aqui fundamental o texto de Rm 8, 28-30 (cf. também 2 Tm 1,
9) – emerge a trajectória da graça de Deus e da esperança de uma resposta humana
perfeita. Vista assim nesta perspectiva escatológica, Maria pode ser considerada, ao
mesmo tempo, como tipo da Igreja e como uma discípula que tem um lugar especial na
economia da salvação 38.

c) A esta luz é possível uma interpretação comum dos dogmas marianos, e neste ponto o
documento católico-anglicano apresenta-se verdadeiramente inovador. Relativamente à
Assunção de Nossa Senhora lê-se no texto: “Nós notamos que o dogma não adopta uma
posição particular sobre a maneira como a vida de Maria se completou, nem utiliza a
seu respeito o vocabulário de morte e de ressurreição, mas celebra a acção de Deus nela.
Assim, dada a compreensão a que chegámos no que respeita ao lugar de Maria na
economia da esperança e da graça, podemos afirmar em conjunto que a doutrina
dizendo que Deus tomou a bem-aventurada Virgem Maria, na plenitude da sua pessoa,
na glória, é uma doutrina em consonância com a Escritura, e que não se pode,
efectivamente, compreendê-la senão à luz da Escritura” 39. Sobre a Imaculada
Conceição, a perspectiva escatológica ilumina também a compreensão comum do papel
e da chamada de Maria: “Em consideração da sua vocação a ser a mãe daquele que é o
Santo (Lc 1, 35), podemos afirmar em conjunto que a obra redentora de Cristo se
reflecte ‘antecipadamente’ sobre Maria nas profundezas do seu ser e em seus
primeiríssimos inícios. Isto não é contrário à Escritura e não pode ser comprendido
senão à luz da Escritura” 40.

d) A intercessão de Maria

O documento reflecte também sobre o lugar de Maria na vida da Igreja peregrina, sobre
o seu papel de intercessão e mediação na comunhão dos santos. O documento reconhece
um ministério característico de Maria entre todos os santos: em razão da maternidade
divina (Theotokos) e vivendo em Cristo vivo, “ela permanece com aquele que gerou,
sempre ‘cheia de graça’ na comunhão de graça e de esperança, o modelo da humanidade
redimida, um ícone da Igreja. Em consequência, crê-se que ela exerce, pela sua oração
activa, um ministério específico de ajuda aos outros” 41. Figura de “ternura e
compaixão”, Maria pode ser invocada sem se pôr em causa a única mediação de Jesus

36
L’autorité dans l’Église. Rapport de la Commission internationale anglicane-catholique romaine
(Windsor 1981), in La Documentation Catholique 1830 (1982) nº 30, 506.
37
Marie, nº 52, 766.
38
Marie, nº 57, 768.
39
Marie, nº 58, 768.
40
Marie, nº 59, 769.
41
Marie, nº 71, 772.

10
Cristo: “Afirmando em conjunto sem ambiguidade a única mediação de Cristo, que traz
frutos na vida da Igreja, nós não consideramos a prática de pedir a Maria e aos santos
que rezem por nós como um factor de divisão da comunhão. Tendo sido afastados os
obstáculos do passado pela clarificação da doutrina, pela reforma litúrgica e pelas
normas práticas da sua aplicação, nós cremos que não persiste mais razão teológica de
divisão eclesial nestas matérias” 42.

3. Questões e perspectivas para o futuro

Apesar de todos os avanços conseguidos, não pode haver qualquer ilusão quanto à
possibilidade de um consenso, a breve ou mesmo a médio prazo, nesta matéria. Para
além das questões doutrinais pontuais, não se pode ignorar o grande peso que as
tradições e divergências confessionais continuam a ter na consciência dos fiéis dentro
das respectivas comunidades eclesiais. O que deve sublinhar-se tanto mais quanto a
elaboração dos documentos referidos e a recepção destes textos se restringem ainda
apenas a um grupo muito limitado de pessoas. Realisticamente só se pode falar, pois, de
caminhos viáveis de maior aproximação e apontar direcções nesse sentido, não sendo
possível (nem previsível) falar-se de uma convergência substancial (ainda estaremos
longe mesmo da possibilidade de um “consenso diferenciado”, como ocorreu no diálogo
católico-luterano sobre a doutrina da justificação). Na consciência disso apresentam-se,
em breves tópicos e a concluir, algumas questões e perspectivas em ordem ao futuro.

a) Maria não é só motivo de separação

Na consideração de que Maria não é, pode não ser só motivo de separação, mas
estímulo na percepção da mesma fé, estará o aspecto básico mais positivo, o fruto
principal do diálogo dos últimos anos, para além dos contributos pontuais de reflexão
que tenha trazido. Esta perspectiva permite um olhar mais sereno, ajudando a superar
visões deturpadas da realidade: nem do lado católico só há exageros marianos, nem do
lado evangélico só há negação total do significado de Maria. Importa, por isso,
reconhecer e valorizar o que é experiência comum na fé, os dados fundamentais de
consenso na visão de Maria que o diálogo ecuménico tem feito emergir: desde o valor
do itinerário humano de Maria à exemplaridade da sua fé (a primeira crente dentro da
história eclesial da fé), desde o seu lugar como a primeira discípula (na disponibilidade
obediente aos critérios de Deus) ao testemunho, no conjunto da sua existência, do que
significa ser cristão e ser Igreja.

b) A aproximação ecuménica como tarefa global

Um avanço na consideração teológico-doutrinal de Maria e na abertura comum ao seu


significado na experiência crente só pode acontecer, não de forma isolada, mas dentro
de uma convergência ampla de reflexão doutrinal, de experiência eclesial, de progresso
nos afectos relacionais entre cristãos. Se isto é um princípio indiscutível no diálogo
ecuménico em geral, mais o é no que se refere a Maria, tendo em conta que aqui
convergem diversos registos de profunda controvérsia confessional. Daqui decorre um
duplo imperativo: por um lado, importa perceber que qualquer avanço na clarificação
doutrinal e na aproximação prática em termos ecuménicos se repercute na questão
mariana; por outro lado, exige-se cada vez mais que se coloquem todas as questões

42
Marie, nº 75, 773.

11
relativas a este tema específico dentro do quadro geral do diálogo ecuménico em curso
(nas suas aquisições, dificuldades, perspectivas de mudança e esperanças).

c) A capacidade de acolher sensibilidades e expressões eclesiais diferentes

No caminhar ecuménico há cada vez maior consciência de que a unidade futura não é
uma vivência da fé marcada pela uniformidade, mas uma unidade onde é possível e até
necessária a diversidade. O objectivo do diálogo ecuménico não é eliminar todas as
diferenças, mas garantir que as diferenças que permanecem se integram num consenso
fundamental quanto aos dados irrenunciáveis da fé, sendo assim reconhecidas como
perspectivas legítimas ou, pelo menos, admitidas como toleráveis. Nesta perspectiva,
Maria coloca a questão de se saber até onde a unidade na mesma fé poderá, terá de
acolher sensibilidades existenciais diversas, identidades confessionais diferentes.
Neste aspecto importa ter consciência de que - e isto como advertência a qualquer
atitude “maximalista” católica – não se pode ser mais exigente no campo ecuménico do
que no diálogo interno católico (sabendo-se, como se sabe, que também existem
sensibilidades católicas diferentes nesta matéria). De resto, é indispensável reconhecer
uma pluralidade legítima de vivências eclesiais e de experiências espirituais, em
consequência do enraizamento e da experiência inicial da fé em contextos
(confessionais) muito diferentes.

d) A atenção à “hierarquia das verdades” da fé

Nessa ordem de ideias é fundamental colocar, como o faz o Grupo des Dombes, a
questão mariológica dentro de uma reflexão sobre a “hierarquia das verdades” da fé. O
que não se esgota só no aspecto doutrinal, mas toca em diversos registos da vivência
crente em Igreja (pode falar-se de uma “hierarquia das verdades” segundo critérios de
ordenação lógicos, existenciais-subjectivos, soteriológicos, epistemológicos, de
conteúdos essenciais…). Se estamos aqui, reconhecidamente, diante de um dos pontos
mais inovadores e sugestivos da reflexão conciliar em termos ecuménicos, há que
reconhecer, no entanto, que este é um dos aspectos em que se tem deparado também –
tanto em termos de epistemologia teológica como de clarificação prática – com grandes
dificuldades de concretização 43. Admitir uma “hierarquia das verdades” da fé traz
consequências difíceis de integrar em elementos tradicionais de compreensão e de
prática, pelo que só o amadurecimento trazido pelo decurso do tempo pode ajudar a
clarificar as possibilidades existentes. De qualquer modo, está aqui uma chave de leitura
e de integração existencial absolutamente indispensável (neste como noutros pontos do
diálogo ecuménico) para se avaliar a realidade presente, acolher modalidades de um
“consenso diferenciado”, admitir diferenças toleráveis dentro da mesma fé, aceitar até
ao fim as consequências da historicidade que marca o caminhar na fé.

e) A exigência de conversão

Toda a tarefa ecuménica – naturalmente também no âmbito mariano - supõe um


caminho de conversão, a exigência de disponibilidade para a transformação de
mentalidades e de atitudes práticas na realidade quotidiana de cada experiência
confessional, para “deixar Deus ser Deus” no acolhimento do seu Mistério, com tudo o

43
Veja-se, por exemplo, o comentário de J.-M. HENNAUX, Le Document du Groupe des Dombes, 54-
58. Cf. J. E. BORGES DE PINHO, A recepção como realidade eclesial e tarefa ecuménica, Lisboa 1994,
246-252.

12
que isso implica de correcção de hábitos adquiridos e de abertura a novas perspectivas.
Essa exigência de mudança é tarefa difícil: frequentemente, os problemas de
controvérsia rodopiam sobre si mesmos, porque, em nome da (nossa!) verdade, dos
(nossos!) princípios, das (nossas!) evidências feitas, não existe a mínima abertura à
percepção da posição do outro e à consequente mudança de atitude que nos é exigida.
Por isso mesmo e no contexto mariano, merece ser profundamente reflectido o apelo
formulado pelo Grupo des Dombes no sentido de uma tríplice conversão: conversão de
atitude, conversão doutrinal, conversão do culto mariano 44. Em causa está a
necessidade de uma mútua correcção dentro da tarefa global de re-recepção da própria
tradição, tirando daí consequências para um olhar diferente sobre as divergências
tradicionais.

f) Maria e a cooperação humana na obra da salvação

A questão da cooperação humana na obra da salvação exemplifica-se de modo singular


em Maria, mas, como é sabido, atravessa todo o conflito católico-protestante (com
tendências e valorações diferentes num e noutro lado). O caminho percorrido até agora
– como mostra o referido Documento do Grupo des Dombes ou a Declaração católico-
luterana acerca da justificação pela fé (1999) – permite esperar que, sem ignorar as
(legítimas) sensibilidades ou acentuações diferentes que existem e que permanecerão
numa indispensável polaridade, se possa avançar nos próximos tempos para um
consenso mais amplo e consistente nesta matéria. No caminho, certamente difícil, de
uma aproximação afectiva e efectiva na questão mariana, a visão de Maria como
exemplo singular da fé pode permitir um olhar comum para o primado incondicional da
graça, com repercussões em toda a questão das consequências no homem da justificação
pela fé e da capacidade humana – também por parte da comunidade eclesial - de
‘cooperar’ no acontecimento da salvação. A questão de Maria poderá (deverá) conduzir
assim ao cerne do debate nesta matéria e – assim se espera – poderá (deverá) ajudar a
iluminar um consenso possível.

g) A pergunta comum pela verdadeira e plena humanidade

A questão do lugar atribuído a Maria - em termos doutrinais, mas sobretudo na


experiência viva dos crentes - só pode encontrar uma resposta ecuménica mais
consensual dentro da pergunta comum pelas possibilidades e pelas condições de uma
verdadeira e plena humanidade à luz de Deus. Perante os desafios de um mundo que
questiona o sentido humanizador da fé e corre o risco de perder indicativos
fundamentais de humanidade, os cristãos das diversas confissões têm de perguntar sobre
o significado que pode ter Maria na construção de uma verdadeira humanidade, mais
livre, mais justa, mais fraterna.
Neste horizonte de questionamento emerge o testemunho de milhões de crentes que, ao
longo dos séculos, encontraram em Maria sinais do rosto materno e misericordioso de
Deus, a força que os ajudou a vencer o peso da fragilidade e do pecado humanos, a
esperança que os animou a enfrentar as dificuldades e os dramas da vida. Por isso
mesmo, em rigor, ninguém pode ficar indiferente à pergunta pelos valores de verdadeira
humanidade que podem estar escondidos na piedade mariana, às razões pelas quais a
maternidade protectora de Maria é sentida por muitos cristãos como impulso de uma
nova esperança de vida. Numa perspectiva ecuménica, Maria pode ser - pode vir a ser -
44
Dombes, II, nº 289-338, 735-742.

13
aquele sinal luminoso que contém e traduz o apelo do Evangelho a uma humanidade
renovada e que interpela os cristãos a uma atitude mais sensível às exigências da
Humanidade do homem.

José Eduardo Borges de Pinho

14

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