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TOTALIDADE E NEGATIVIDADE:
a crítica de Adorno à dialética hegeliana
DOSSIÊ
Luiz Repa*
Até certo tempo atrás, era comum, na his- mo com o pensamento dialético como tal, são
tória da teoria social, realizar uma associação geralmente citados Adorno, Benjamin,
demasiado rápida entre a teoria crítica e a Horkheimer e Marcuse. Entre aqueles em que
dialética. Foi somente a partir de uma série de ocorreria uma quase completa dissociação, des-
estudos sobre a teoria crítica, apontando para tacam-se os nomes de Habermas e Honneth. Vale
uma diversidade de diagnósticos de época, e, jun- lembrar, no entanto, que também entre os pri-
tamente com isso, de concepções metodológicas meiros a relação com a dialética não é nem um
no interior dessa tradição de pensamento (Dubiel, pouco pacífica. Nesse ponto, talvez seja Adorno
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so que, para Adorno, é nessa indissociabilidade tual da negação; mais tarde a figura de uma nega-
ção da negação deu nome a isso de maneira
que se encontra o ponto cego da dialética marcante. Este livro gostaria de libertar a dialética
hegeliana. Para Adorno, nessa indissociabilidade, dessa essência afirmativa, sem perder em nada
de sua determinação. O desdobramento de seu
a negação se coloca, ao fim e ao cabo, para a
título paradoxal é um de seus propósitos. (Ador-
afirmação do todo, o que para ele significa uma no, 2003, p.9; trad. p.7)
relação acrítica, afirmativa e, no limite,
apologética para com a realidade social. No en- Essas linhas, certamente, podem descon-
tanto, apesar da crítica ao conceito hegeliano de certar o historiador da filosofia. Se a grande no-
totalidade, não é fácil perceber até que ponto o vidade que Adorno quer realçar contra a tradi-
próprio Adorno pode se desembaraçar também ção filosófica consiste em que sua dialética pre-
de um pensamento totalizante, de modo que a tende ser essencialmente negativa, ao passo que
totalidade só se apresenta como invertida, como todas as formas de dialéticas anteriores teriam
uma má totalidade, mas cuja força de explicação sido, de uma maneira ou de outra, positivas, afir-
e de crítica permanece intacta. Nesse caso, a mativas, então essa grande novidade depende de
negatividade parece muito mais voltada para uma imagem bem encurtada da tradição. Pois bas-
mostrar falsas oposições, para mostrar a unida- ta lembrar Aristóteles e, sobretudo, Kant, para des-
de e o compromisso mútuo do que é aparente- fazer o vínculo entre positividade e dialética. Difi-
mente contraditório. cilmente se pode esperar da dialética transcendental
Por outro lado, em um nível que se pode um resultado positivo. Em Kant, a dialética
chamar de micrológico, Adorno desenvolve um transcendental lida com as ilusões necessárias da
conceito de negatividade bem diferente, em que a razão, as quais consistem em justamente conferir
questão reside muito mais em criticar falsas iden- uma determinação positiva para as ideias de alma,
tificações. É nesse nível que a crítica a Hegel se mundo e Deus, ou seja, conferir um uso transcen-
justifica em primeiro lugar. De um modo geral, dente das ideias transcendentais. E todas essas
pretendo mostrar, então, que há usos distintos das ideias transcendentais, como insistia criticamen-
categorias de negação e totalidade em Adorno. Em te Lukács (Lukács, 2003), são formas de totalida-
seguida, tentarei também ensaiar uma interpreta- de que jamais podem ser positivadas pelo enten-
ção que possa combinar esses usos distintos. An- dimento humano. A dialética é a lógica da ilusão
tes disso, porém, vou apresentar rapidamente a e, ao mesmo tempo, a crítica dessa ilusão, isto é, a
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relação entre negatividade e totalidade em Hegel, descoberta de suas causas subjetivas (Kant, 1989).
tendo em vista a abordagem de Adorno. Porém, em relação a Hegel, que é, na ver-
dade, o grande alvo da crítica adorniana, o juízo
*** de que a dialética é sempre pensada em função
de um resultado positivo é fiel à própria compre-
Segundo Adorno, a diferença fundamental ensão hegeliana de seu método. E é em razão dis-
entre a sua concepção de dialética e a de Hegel, e so que Adorno confere à sua investigação sobre a
mesmo a de Marx (embora Adorno evite, no mais dialética negativa um caráter assumidamente pa-
das vezes, igualar explicitamente este com aquele radoxal. A figura da negação da negação, ou da
no que diz respeito ao método), é o fato de ela ser negação determinada, constitui o mecanismo
simplesmente negativa. Já nas primeiras linhas de fundamental da dialética hegeliana. Ao longo de
sua Dialética Negativa, ele não tem dúvida de es- sua obra madura, Hegel não se cansa de alertar
tar combatendo também toda a tradição filosófica: para o fato de que a negação dialética tem uma
natureza produtiva; a negação não resultaria em
A formulação ‘Dialética Negativa’ choca-se con-
um puro nada, mas é somente a negação de uma
tra a tradição. Já em Platão a dialética pretende
que algo positivo se produza pelo meio intelec- coisa determinada, e por coisa (Sache) se enten-
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de desde uma forma de consciência, uma cate- to sobre o objeto, do conceito sobre o que é con-
goria lógica, ontológica, psicológica, jurídica etc. ceituado, da razão sobre a natureza.
Dessa maneira, a coisa contraditória resultaria Também nesse caso, não se trata de uma
em uma nova positividade, que é em si mesma a leitura inteiramente infiel à autocompreensão de
negação da negação da coisa: Hegel, pelo menos do que diz respeito à relação
entre negação determinada e totalidade. Pois,
O único elemento para obter progressão científi-
para Hegel, é somente por meio da negação de-
ca [...] é o conhecimento da proposição lógica
segundo a qual o negativo é igualmente positivo, terminada que o processo se desenvolve até che-
ou segundo a qual o contraditório não se dissol- gar ao todo, ao absoluto, que é essencialmente
ve no nulo, no nada abstrato, mas essencialmen-
te apenas na negação de seu conteúdo particu- resultado, conforme uma passagem célebre do
lar, ou segundo a qual uma tal negação não é toda prefácio da Fenomenologia do Espírito:
negação, mas a negação da coisa determinada
que se dissolve, e com isso é negação determina-
da, portanto [a proposição] segundo a qual no O verdadeiro é o todo. O todo, porém, é apenas a
resultado está contido essencialmente aquilo do essência que se perfaz por meio de seu desenvol-
qual ele resulta (Hegel, 1963, p.35). vimento. Do absoluto deve-se dizer que ele é es-
sencialmente resultado, que só no fim ele é o que
é em verdade; e sua natureza consiste justamen-
Se é assim, se a negação determinada sig- te em ser efetivo, em ser sujeito ou vir-a-ser de si
nifica sempre uma nova posição que contém o mesmo. (Hegel, 1986, p.24; trad. p.36)
que é negado por ela, seria de esperar que Ador-
no recusasse um papel fundamental para uma O todo, o absoluto, se desenvolve por meio
tal concepção de negação. Porém, ao dizer que a da negação determinada de suas formas particu-
dialética negativa não pretende perder nada em lares e finitas, até chegar o momento em que to-
determinação, Adorno quer enfatizar que tam- das as particularidades se tornam voláteis. Se a
bém para ele a negação determinada possui uma negatividade não fosse uma forma de positividade,
posição central. Ou seja, ao mesmo tempo em o desenvolvimento do todo seria impensável. Po-
que critica o caráter positivo da negação deter- rém também o inverso se pode dizer: sem a
minada hegeliana, Adorno reivindica para si a imanência do todo em cada momento particular
mesma figura. O que a dialética negativa do processo, não seria possível a positividade da
adorniana tem de responder é, então, como é negação determinada, como já alertava Jean
possível manter a negação determinada sem a Hyppolite em seu clássico comentário sobre a
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chegou a um total saber de si mesmo. De um rendo sempre a uma mesma ideia fundamental:
ponto de vista retrospectivo e rememorativo, ele toda identidade de uma coisa (sempre enten-
reconhece a si mesmo em todas as formas limi- dendo coisa no sentido mais geral: desde uma
tadas anteriores. Antes disso, Hegel só precisa forma de consciência até uma instituição social
confiar no método da negação determinada, en- e política) é constituída pela mediação interna
tendendo-a como uma forma de crítica imanente. com a não-identidade, com a diferença que a
Tal método consiste fundamentalmente em coisa estabelece entre si e o que exclui de si.
não exigir outro parâmetro crítico a não ser aque- Dessa maneira, a identidade não é sem a não-
le que é dado pela coisa criticada. É na diferença identidade, ela tem o seu outro dentro de si. Toda
entre o que a coisa afirma de si mesma, o seu identidade finita é, assim, contraditória, pois é
conceito, e o que ela efetivamente é, sua realida- mediada pelo seu oposto. Consequentemente,
de efetiva, que se encontra o motor da dialética e quanto mais a identidade se põe como absoluta e
da crítica, que, na verdade, é apenas uma autônoma, tanto mais aumenta sua oposição in-
autocrítica contínua da coisa, uma negação de si terna. Para a relação fundamental entre sujeito e
mesma e, com isso, de seus limites, até enfim se objeto, que é constitutiva do conhecimento, essa
apresentar como forma absoluta, em que nenhu- ideia da identidade mediada pela não-identidade
ma negação nova faz sentido. Dessa maneira, para significa que o sujeito e o objeto se constituem
a investigação dialética, a construção conceitual reciprocamente. O que é o sujeito, que se põe
prévia de critérios da verdade é inteiramente dis- como sempre idêntico a si mesmo, depende do
pensável: basta uma atitude puramente observa- que para ele é o objeto de conhecimento, o não-
dora, contemplativa, que evite qualquer acrésci- idêntico, ao mesmo tempo em que esse objeto é
mo subjetivo do teórico. O filósofo precisa apenas constituído pelo próprio sujeito.
mergulhar na imanência da coisa, no que ela diz a A distinção rígida entre sujeito e objeto
respeito de si mesma e como ela se desenvolve a impediria, portanto, reconhecer as mediações
partir de seus critérios próprios (Hegel, 1986). entre um e outro, fazendo ignorar sua constitui-
Evidentemente, semelhante concepção de ção recíproca. Dessa maneira, o esforço da filo-
crítica imanente pressupõe um conceito de ver- sofia hegeliana consiste em atingir um grau
dade bastante distante da adequatio dos moder- conceitual em que a contradição interna e exter-
nos. A verdade não consiste, para Hegel, na re- na de ambos os polos e em todos os níveis do
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seus aspectos fundamentais e resta à filosofia ao primado do sujeito sobre o objeto, porque,
somente o rememorar de sua própria história. O em última instância, é tão somente o sujeito re-
fim da história coincide, dessa maneira, com o fletido sobre si mesmo no objeto. Assim, em uma
fim da filosofia. O espírito absoluto coincide com passagem da Dialética Negativa, pode-se ler:
a reconciliação do espírito consigo mesmo.
Em Hegel, apesar de todas as afirmações do con-
trário, o primado do sujeito sobre o objeto per-
*** manece intocado. Isso é mal ocultado pelo termo
semiteológico Espírito, no qual não se pode eli-
minar a recordação da subjetividade individual.
A totalidade hegeliana supõe, portanto,
(Adorno, 2003, p.49; trad. p. 40)
um estado de reconciliação. Adorno, por sua vez,
acrescentaria: o espírito se reconcilia consigo O conceito hegeliano de espírito seria, para
mesmo porque nada mais se lhe oporia. A críti- Adorno, tão somente o de um macrossujeito,
ca adorniana não se dirige substancialmente con- que escapa aos limites da subjetividade indivi-
tra a suposta loucura metafísica e idealista do dual, mas mantém sua estrutura fundamental.
espírito do absoluto, mas sim contra o que há de Da mesma maneira que o sujeito individual se
verdade nela: a tendência totalitária da socieda- contempla a si mesmo como um objeto na for-
de moderna de subsumir sobre ela tudo que lhe ma da consciência de si, o espírito absoluto se
for diferente, o não-idêntico. Essa tendência se contempla a si mesmo em suas realizações his-
mostra na relação da sociedade com o indiví- tóricas e culturais, sendo que o próprio mundo
duo, socializado em todos os seus poros, mas histórico e cultural é ele mesmo. A estrutura
também na dimensão individual, na relação da autorreferencial da consciência de si, em que
razão subjetiva com a natureza, do conceito com consciência e objeto da consciência são idênti-
o conceituado, do pensamento com o que não é cos, é simplesmente alargada, tornando-se o prin-
pensamento, do sujeito com o objeto, de modo cípio do pensamento e do ser. Isso significa di-
que o indivíduo reproduz, em si mesmo, o con- zer que a dialética positiva de Hegel não poderia
texto coercitivo em que está inserido, ao mesmo se exercer, se o espírito não fosse, desde o início,
tempo em que esse contexto coercitivo se repro- a realidade natural e social sobre a qual ele se
duz a partir de todas as operações, ativas e pas- debruça de uma maneira inteiramente
sivas, práticas e teóricas, dos sujeitos individu-
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de tudo porque se constitui como um estado de são de totalidade se mantém em sua função teó-
injustiça e reificação. O mundo é falso na quali- rica para a explicação de como essa má-totalida-
dade de um mundo absolutamente administra- de se organiza em termos históricos e sociológi-
do, que absorve em si os indivíduos em sua li- cos, reproduzindo-se de maneira funcional em
berdade e espontaneidade na mesma medida em todas as partes do sistema social. As duas coisas
que é reproduzido por eles (Adorno, 2003). O vão juntas nessa perspectiva: a crítica da totali-
mundo administrado se configura, então, como dade como estado falso da sociedade e a explica-
um estado falso, de não-reconciliação, o oposto ção totalizante que a fundamenta em termos
do que Hegel pretendeu com o conceito de espí- materialistas.
rito absoluto. Tal interpretação se impõe principalmente
Se é assim, a negação determinada em quando se enfatiza a continuidade, na Dialética
Adorno teria de ser acompanhada por uma re- negativa, do diagnóstico de época elaborado por
cusa da totalidade. Porém já o próprio conceito Adorno e Horkheimer na obra Dialética do es-
de mundo administrado não parece ser outra clarecimento. Segundo esse diagnóstico, a socie-
coisa do que um conceito de totalidade, a partir dade moderna tem de ser entendida como atra-
do qual se explica o fundo falso de todo produto vessada de ponta a ponta pela racionalidade ins-
cultural e social. Na Dialética Negativa e nos trumental, um tipo de racionalidade que tem seus
trabalhos da mesma época, não faltam referên- critérios somente na escolha adequada de meios
cias à totalidade social como ponto de partida para a obtenção de fins, sendo que os fins se ajus-
para a explicação das manifestações culturais tam à autopreservação do indivíduo e dos gru-
particulares e dos processos de socialização. Nes- pos sociais em que se inserem os indivíduos
ses casos, a totalidade social é apresentada como (Adorno; Horkheimer, 1985; Horkheimer, 1976).
um contexto funcional cada vez mais integrado Dessa maneira, tudo se converte em meios
que desmente a autonomia de cada esfera do reificados para a obtenção de fins extrínsecos.
saber e da ação individual. Ou seja, a totalidade Embora a racionalidade instrumental se
é vista como um sistema social coercitivo, de desdobre universalmente com o desenvolvimen-
modo que o sistema hegeliano tem algo de ver- to das relações de troca capitalistas, Adorno e
dadeiro justamente por não ser verdadeiro: “Só Horkheimer enxergam as raízes da razão instru-
hoje, após cento e vinte e cinco anos, o mundo mental já nos fundamentos antropológicos da his-
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concebido pelo sistema hegeliano se revelou li- tória da humanidade, já na relação de domínio da
teral e satanicamente um sistema, isto é, o siste- natureza, que começa com as explicações mitoló-
ma de uma sociedade radicalmente socializada” gicas dos processos naturais e nas formas de do-
(Adorno, 1971, p.273). minação por meio do trabalho. Tanto o mito como
Desse modo, parece que, em Adorno, a o esclarecimento que desmistifica o mito têm em
totalidade é apenas recusada em seu sentido comum o propósito de dominar a natureza. Esse
normativo e aceita em seu sentido explicativo. propósito constitui a razão última das duas teses
Ela é recusada em seu sentido normativo por- centrais, segundo as quais “o mito já é esclareci-
que ela não representa, de modo algum, um es- mento e o esclarecimento acaba por reverter à
tado de reconciliação do espírito. Nesse aspecto, mitologia.” (Adorno; Horkheimer, 1985, p.15).
a totalidade é somente uma má-totalidade. Daí Para a relação de dominação da natureza, é
se pode tirar a conclusão de que a totalidade constitutiva a posição do sujeito individual em
hegeliana é apenas invertida: em vez da realiza- relação ao objeto como seu outro, bem como o
ção da razão, encontra-se a realização da desrazão princípio da identificação para a formação de uma
na forma da razão instrumental e do princípio identidade subjetiva rígida e para a definição do
racional da identidade. Por outro lado, a preten- objeto em gênero e espécie, o que permite sua
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manipulação. O domínio da natureza exige não só que gira em falso continuamente, porque o todo
enquadrar conceitualmente os processos naturais, social contamina de antemão todas as tentativas
mas também o próprio domínio da natureza sub- de emancipação. Essa seria uma interpretação que
jetiva, o próprio corpo, e o domínio dos homens ligaria novamente a negação determinada ao prin-
entre si. Daí o mito de Ulisses e as sereias ter uma cípio de totalidade. Mas essa hipótese explicativa
função paradigmática. Ulisses quer poder usufruir seria inteiramente refutada por quase todas as pas-
do canto das sereias sem se destruir e, para isso, sagens em que Adorno trata diretamente da nega-
manda tapar os ouvidos dos marinheiros e se amarra ção determinada.
ao mastro da sua nau. Com isso, ele obtém da na- Pois em todas essas passagens da Dialética
tureza o que quer, dominando, de maneira Negativa, Adorno não se cansa de dizer que a
mutiladora, os outros e a si mesmo. negação determinada não se constitui em fun-
Com a modernização capitalista, a ção da totalidade, seja em que sentido for, mas
racionalidade instrumental se autonomiza em re- antes em mostrar como o todo é sempre uma
lação a cada sujeito individual, e todo o sistema ilusão. Dessa maneira, se a grandeza de Hegel foi
social aparece como uma totalidade que se re- ter colocado no nível do conceito a articulação
produz por meios dos indivíduos que mantêm, do conceito com o não-conceitual, do idêntico
a todo custo, sua preservação. Nesse contexto, a com o não-idêntico, do sujeito com o objeto, ele
dialética é quase sempre pensada muito mais nos acabou traindo seu programa de dialética ao con-
termos de uma simbiose entre processos e ele- verter a negação determinada como produtora
mentos de início contraditórios – como na rela- de algo positivo, e esse positivo como o todo.
ção marxiana entre forças produtivas e relações Insistentemente, Adorno assevera que a negação
de produção (Dubiel, 1978) –, de modo que, em da negação não significa afirmação, que essa ten-
cada lance e projeto de emancipação, encontra- dência de Hegel se deve antes aos motivos
se o cerne da coerção e da dominação. Dessa antidialéticos do próprio Hegel, os quais
perspectiva, o que está em jogo é muito mais a transparecem na ideia de sistema e de sujeito
identidade dos opostos, como na relação entre absoluto. Mas o que seria então a negação da
esclarecimento e mitologia, do que a sua contra- negação em Adorno, se ela pretende ter tão pou-
dição real. co a ver com o positivo e com a totalidade? A
Até que ponto a Dialética negativa preser- resposta a essa questão se encontra fundamen-
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to, na medida em que ela ainda não é idêntica a é falsa normativa e teoricamente. Por sua vez, a
ele, a crítica imanente de Adorno se atém à dife- negatividade é operada em função não de demons-
rença fundamental entre a coisa e o conceito, trar a aparente oposição de dois elementos relaci-
para desmentir a ilusão da identidade total en- onados, como era o caso da Dialética do esclare-
tre eles. A identidade total entre conceito e coisa cimento, mas para demonstrar a efetiva oposição
é uma ilusão que só pode ser rompida mostran- sob a aparente identidade entre eles. Se esse es-
do, a cada vez, em todos os processos intelectu- boço de interpretação está correto, na Dialética
ais e culturais tomados em sua singularidade, negativa de Adorno parecem conviver, então, dois
como o conceito depende do não-conceitual, do modelos bastante distintos, senão contraditórios,
não-idêntico, e que este nunca pode ser expres- de totalidade e de negatividade, ou mesmo de
so inteiramente pelo conceito. dialética.
Um dos poucos comentadores de Adorno Certamente esses modelos e usos do con-
a perceber essa diferença entre o modelo ceito de totalidade e negatividade se articulam
adorniano de crítica imanente e aquele de Hegel em dimensões distintas. Martin Jay, em seu li-
foi Marcos Nobre, em seu livro A dialética ne- vro Marxismo e Totalidade, distingue um nível
gativa de Theodor W. Adorno – A ontologia do macrológico, em que a totalidade, o mundo como
Estado falso. Vale a pena insistir, com as pala- um sistema fechado em si mesmo, é “inteira-
vras dele, nesse aspecto: mente à prova d’água em seu poder de reificar e
cooptar qualquer resistência” (1984, p.266), e um
Para Adorno, crítica imanente não significa com-
nível micrológico, em que se exploram as resis-
paração do conceito com o conceituado em vista
da sua unidade (atual ou potencial), mas não- tências e as negações teóricas e estéticas frente
identidade de conceito e conceituado em vista ao poder coercitivo da totalidade. Essa distinção
da ilusão necessária de sua identidade real. Com
isso, a crítica imanente está obrigada a acolher faz sentido, mas certamente não resolve por si
dentro de si propriamente o elemento material muita coisa na compreensão de como esses ní-
do conceituado que não pode ser absorvido pelo
veis se articulam. O próprio Jay considera que,
conceito (Nobre, 1988, p.175).
de fato, parece haver bastante inconsistência
Da perspectiva adorniana, portanto, a to- nesses recursos à totalidade, mas considera tam-
talidade conceitual é o que precisa ser rompido bém que cobrar uma coerência lógica seria exi-
pela dialética, relembrando insistentemente a ori- gir de Adorno o que ele está criticando em rela-
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identificante do conceito esquecido do seu ou- de identidade. O conceito teria de liberar nova-
tro, mas também socialmente necessária, por- mente esse elemento mimético sem recorrer a
que se deve a uma fusão de razão subjetiva e nada mais do que a ele próprio, na forma de
princípio da troca mercantil. uma denúncia constante contra si mesmo. Além
Antes de desenvolver essa hipótese, con- disso, se o estado de reconciliação for algum dia
vém se ater um pouco ao que há de comum, possível, ele não se configurará como uma for-
desde o início, entre os dois modelos. Refiro-me ma de totalidade. Como ele diz em outro lugar,
ao que há de falso na totalidade nos níveis “uma humanidade emancipada não seria nenhu-
macrológico e micrológico. Falso aqui possui, ma totalidade” (Adorno, 1997, p.292). A libera-
como dito, um sentido normativo, embora não ção do não-idêntico, a convivência pacífica com
se possa separar esse sentido da noção de verda- o diferente já não poderia ser pensada por ne-
de. Verdadeiro e justo se relacionam intimamente nhum conceito que sintetizasse essa convivên-
no conceito enfático de verdade que Adorno co- cia. Nesse aspecto, a expressão “má totalidade”
loca na base de sua teoria crítica (cf. Wellmer, teria de ter algo de redundante.
1985). Tal como em Hegel, também em Adorno Seja como for, o critério do que é falso
a verdade se explicita pela ideia de reconcilia- normativamente parece ser sempre o mesmo: a
ção. Trata-se da reconciliação entre o idêntico e coação sobre o não-idêntico. A dificuldade resi-
o não-idêntico, entre sujeito e objeto, entre ra- de muito mais em pensar o todo como realmen-
zão e natureza, e também entre os próprios in- te constitutivo em um nível e como ilusório em
divíduos em suas singularidades. outro nível. Como disse, a solução pode passar
O estado de reconciliação seria, portanto, pela ideia de “ilusão socialmente necessária”. Essa
extremamente exigente: não se trata somente das expressão adorniana remete diretamente à no-
relações inter-humanas, mas também da relação ção de aparência objetiva desenvolvida pela pri-
do homem com a natureza como um todo, tanto meira vez por Marx no primeiro capítulo do
a natureza corporal como com todos os corpos Capital para explicar o fetichismo da mercado-
em geral. Mas, para Adorno, diferentemente de ria, isto é, o fato de que as mercadorias tenham
Hegel, a reconciliação precisa dispensar a figura valor, independentemente do seu valor de uso,
da totalidade. Nas poucas passagens em que isto é, independentemente de suas proprieda-
Adorno se dispõe a apresentar a sua ideia de des naturais. As mercadorias se apresentariam
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REFERÊNCIAS
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The paper aims to clarify, first, Adorno’s criti- L’article se veut, tout d’abord, d’expliquer la
que of the association between negativity and totality critique d’Adorno à l’association entre la négativité et
in Hegel, to then show that, despite this criticism, Ador- la totalité de Hegel pour montrer ensuite que, malgré
no himself does not dispense with the concept of totality cette critique, Adorno lui-même ne dispense pas un
with an explanatory function. Only on a micrological concept de totalité ayant une fonction explicative. Ce
level Adorno’s critique seems justified, in that the n’est qu’à un niveau micrologique que la critique
concept of totality is criticized as positivation of adornienne semble se justifier, dans la mesure où le
contemporary society. Thus, his work on the negative concept de totalité est critiqué comme positivation de
dialectic exercises two distinct uses of the concepts of la société contemporaine, Ainsi, son travail sur la
negativity and totality, which can be combined by dialectique négative s’exerce à deux utilisations
means of his conception of totality as a socially distinctes des concepts de négativité et de totalité, qui
necessary illusion. peuvent être agencés par le biais de sa conception de
totalité comme illusion socialement nécessaire.
KEYWORDS: dialectics, determinate negation, totality, MOTS-CLÉS: dialectique, négation déterminée, totalité,
socially necessary illusion, instrumental reason. illusion socialement nécessaire, raison instrumentale.
CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. 62, p. 273-284, Maio/Ago. 2011
Luiz Repa - Doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo. Professor do Departamento de Filoso-
fia da Universidade Federal do Paraná. Integra o Núcleo de Pesquisa Direito e Democracia do CEBRAP,
desenvolvendo pesquisas na área de filosofia política e teoria crítica. Suas mais recentes publicações
são: Hegel, Habermas e a modernidade. Dois pontos: Curitiba. v.7, 2010, p.151-162; A transformação
da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica. São Paulo: Esfera
Pública, 2008. Reconhecimento da diferença na teoria crítica. In: Amarildo Luiz. (Org.) Cultura, dife-
rença e educação.
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