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Revista Portuguesa de Musicologia

n. 0 10, Lisboa, 2000, pp. 83-116

Depois de Bomtempo: A Escola de Música do Conservatório


Real de Lisboa nos anos de 1842 a 1862 1

JoAQUIM CARMELO RosA

A amenidade que o estudo da muzica introduz nos


custumes, a acção que esta sublime arte exerce em nossos
sentidos, e [m] nossos corações, e em nossos espiritos, ligam
a ordem moral á vida material, e sendo a linguagem propria
dos sentimentos su[a]ves e benevolentes, torna-a de uma tal
importancia no estado actual de civilização, que não curar
seriamente da sua propagação, seria um anachronismo. 2

ntegrada no Conservatório Geral de Arte Dramática,


I
projectado por Almeida Garrett e instituído por decreto de
15 de Novembro de 1836, a Escola de Música foi herdeira e
continuadora da tradição do Seminário da Patriarcal, fundado
quase um século e meio antes, bem como do Conservatório de
Música da Casa Pia criado em 1835. Ocupou por isso um lugar
fulcral enquanto centro de formação de músicos, sendo aliás, a
nível nacional, a única instituição oficial em funcionamento
nesse domínio ao longo de todo o século XIX. Como tal
constituiu um importante ponto de confluência de algumas das
principais personalidades e tendências estéticas da época,
simultaneamente reflexo e agente privilegiado da vida musical
nacional, em particular da lisboeta.
Contrariamente aos poucos estudos que existem sobre o
Conservatório no século XIX, os quais se centram

O presente artigo é extraído da dissertação de mestrado defendida pelo autor na


Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (cf.
((Essa pobre filha bastarda das Artes)): A Escola de Música do Conservatório Real de
Lisboa 1842-1862, Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 1999,
dactilografado).
Relatório Administrativo do Conservatório Real de Lisboa, 1850-51, elaborado pelo
Conde de Farrobo, Ministério do Reino, Arquivo das Secretarias de Estado
(adiante designados por MR e ASE), documento manuscrito.
3 Entre os quais se deve destacar particularmente o excelente estudo de Maria ]osé de
LA FUENTE, «]oão Domingos Bomtempo e o Conservatório de Lisboa», in João
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essencialmente na época da sua fundação, 3 o presente artigo pretende


estudar o período imediatamente posterior à morte do seu primeiro
director, o pianista e compositor João Domingos Bomtempo (1775-1842),
tendo como principal objectivo estudar o quotidiano da Escola de Música,
naquilo que podíamos designar pela sua «existência regular», traçando um
quadro tão vivo quanto possível dessa realidade. Em termos cronológicos
pode-se consider.ar por isso que o período aqui em estudo se inicia em
Novembro de 1842, quando no dia 5 é celebrada uma Missa e um Libera
Me em honra do falecido director, e no dia 8 toma posse como novo
director Francisco Xavier Migone (1811-1861). 4 Embora decorra com
alguma naturalidade, a sucessão de Bomtempo por Migone não foi isenta
de polémica. Nomeado por Decreto com a data de 23 de Setembro, o seu
contrato estipulava a condição de, pelo mesmo ordenado que
anteriormente auferia Bomtempo, juntamente com a responsabilidade de
Direcção e aula de Contraponto, assegurar ainda a aula de Piano e a de
Harmonia e acessórios, da qual, ao que tudo indica, já era professor. A sua
posse seria adiada até à data atrás referida, por causa da contestação à
nomeação feita por Manuel Joaquim dos Santos, violinista na Orquestra
do Teatro de S. Carlos, Real Câmara e Sé Patriarcal.
A conclusão do período aqui tratado começa a delin·ear-se a 23 de
Fevereiro de 1857, data da Portaria que nomeou Francisco Xavier Migone
«para escripturar artistas de canto e baile para o Theatro de S. C ar los», 5
nomeadamente em Paris e Milão. O director não mais voltaria ao
Conservatório. Regressará a Portugal co:r:n a saúde extremamente
debilitada não mais exercendo qualquer função, vindo a falecer em 1O de
Junho de 1861. A conclusão efectiva do nosso estudo estende-se no
entanto até ao ano lectivo de 1861-62, já que a mudança geracional que a

Pedro Alvarenga (coord.), }oão Domingos Bomtempo 1775-1842, Lisboa, Instituto da Biblioteca
Nacional e do Livro, 1993, pp. 11-55. Com um âmbito m~is abrangente uma referência ainda os
trabalhos de Carlos Alberto Faísca Fernandes GOMES, Contributos para o Estudo do Ensino
Especializado de Música em Portugal, Memória Final do CESE, Instituto Piaget-Almada, 2000,
dactilografado, e de António Angelo de Jesus F erre ira de VASCONCELOS, O Conservatório de
Música: Actores, Organização e Políticas, Dissertação de Mestrado, FPCE- UL, 2000
dactilografado.
4 Nascido em 27 de Maio de 1811, Migone estudou no Seminário da Patriarcal com Fr. José
Marques Piano e Composição, sendo nomeado em 1835 «Professor de Orquestra» do
Conservatório de Música da Casa Pia e passando daí para o Conservatório Geral de Arte
Dramática quando da sua transferência. Ocupou o cargo de maestro concertatore no Teatro de S.
Carlos, onde serão representadas, nos anos cinquenta, duas óperas suas.
5 P-Lc, Entrada Livro 4~ 1851-1864.
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morte de Migone assinala em termos simbólicos terá um marco


significativo no ano seguinte com a nomeação de Guilherme Cossoul
como director interino da Escola de Música, personalidade
completamente estranha à geração fundadora do Conservatório.

Organização e objectivos

As Escolas do Conservatório encontravam-se instaladas no antigo


Convento dos Caetanos, aliás o mesmo onde ainda se encontram, embora
naturalmente o edifício tenh.a sofrido obras importantes de renovação que,
não alterando a estrutura original, o terão modificado consideravelmente.
Por exemplo o auditório do Conservatório, embora tenha sido uma ideia
frequentemente avançada durante o período do nosso estudo,
nomeadamente pelo Conde de Farrobo, só será inaugurado bastante mais
tarde, em 25 de Agosto de 1892. 6
De acordo com todos os testemunhos e evidências, a Escola de Música
cedo aparece como a escola mais destacada da instituição, apesar de se
poder adivinhar nos objectivos expressos no Decreto fundador do
Conservatório Geral de Arte Dramática ter ela um carácter algo
complementar em relação à Escola de Declamação. 7 É no entanto aquela
que, transferida da Casa Pia, tem desde logo um corpo docente
perfeitamente estabelecido, uma tradição de ensino por detrás de si e
ainda um projecto já em marcha.
Os Estatutos de 24 de Maio de 1841 limitavam-se a dizer, referindo-
se à Escola de Música, que nesta se ensinava «musica vocal e instrumental
e a theoria da arte». 8 Já o Regulamento Especial da Escola de Musica,
aprovado pelo Inspector Geral, Almeida Garrett, em 30 de Setembro de
1839, é bastante mais explícito quanto aos seus objectivos, organização e
funcionamento. Relativamente ao primeiro aspecto salientava:

o Estudo da Arte e Sciencia da Musica; para facilitar os seus


progressos em geral, para conservar e propagar a sua pratica, para

6 Miguel Ângelo LAMBERTINI, «Portugal», in Albert Lavignac (ed.), Encyclopédie de la Musique et


Dictionaire du Conservatoire, Vol. VI, p. 2440.
7 O §.5° do Artigo 3° do Decreto de 15 de Novembro de 1836 refere como objectivos do
Conservatório «se fomente, e proteja a Arte Dramatica, e suas subsidiarias tão abandonadas e
perdidas entre nós».
8 Estatutos do Conservatorio Real de Lisboa, p. 26.
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formar compositores, professores propriamente ditos, e Artistas


para o serviço das Cathedrais, das Orchestras, e do Exercito nas
bandas Militares. 9

No que respeita à organização da escola atribuía ao director o papel de


responsável absoluto em termos de fiscalização, orientação e gestão da sua
vida. Era coadjuvado por vogais e um secretário no Conselho de Direcção,
que normalmente não ultrapassava o número de quatro elementos. O
director era substituído no seu impedimento pelo professor mais antigo, e
o Secretário pelo professor adjunto «mais moderno». 10 O Conselho de
Direcção reunia-se pelo menos uma vez por semana e tinha como função
auxiliar o director na gestão da vida escolar, particularmente na parte
pedagógica.
O curso duraria cinco anos, com a possibilidade de prolongamento por
mais um, sendo necessária a aprovação na classe de Rudimentos,
Preparatório e Solfejo para a frequência de todas as outras classes. Os
alunos não podiam frequentar mais de duas classes ao mesmo tempo, nem
era permitido acumular o estudo «de dous instrumentos d'especie
differente», 11 podendo no entanto os alunos de Canto frequentar a aula de
Piano. Também o acesso à classe de Contraponto e Composição tinha
como precedência a aprovação na classe de Harmonia.
Estava ainda estabelecido que no fim do ano lectivo haveria exames
públicos onde seriam atribuídos prémios aos alunos mais destacados. Na
realidade estes prémios foram geralmente atribuídos numa espécie de
concurso, que se realizava em época posterior à dos exames, designados
por Exercícios públicos do qual falaremos adiante. Os exames, assim como
os Exercícios públicos, eram avaliados por um júri especial, composto por
doze jurados, dois terços deles professores em exercício do Conservatório,
e os restantes membros da secção de música da Academia. 12

9 P-Lan, MR, ASE, Documento Manuscrito. Curioso notar a ausência de referência ao teatro
lírico, onde trabalhavam muitos dos elementos do corpo docente, e que outras fontes referem
como uma das principais saídas profissionais para o corpo discente.
10 lbid.
11 lbid . .
12 O Conservatório Real de Lisboa incluía na sua estrutura, para além das escolas, uma «Associação
de Literatos e Artistas», cujos objectivos, como rezavam os estatutos eram «restaurar, conservar, e
aperfeiçoar a litteratura dramatica e a lingua portugueza, a musica, a declamação e as artes
mimicas [promovendo ainda] o estudo da archeologia, da historia e de todos os ramos de
sciencia, de litteratura e de arte que podem auxiliar a dramatica». Os seus sócios eram
personalidades de mérito reconhecido nas respectivas áreas, quer nacionais quer estrangeiros.
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JoAQUIM CARMELO RosA

Ainda outro documento importante para a compreensão da orgânica


da escola era o «Programma de Estudos», uma espécie de currículo
publicado na imprensa periódica. Conhecemos apenas o do ano de 1840-41, 13
que revelava que o curso da Escola de Música se dividia em «quatro
períodos de ensino, ou termos», 14 a saber: o primeiro consagrado à
frequência da aula de Rudimentos preparatórios, e solfejos em todas as
setes claves; o segundo ao estudo de música instrumental ou vocal,
consoante a opção do aluno; o terceiro termo dedicado ao estudo de
Harmonia e suas acessórias; e, finalmente no quarto e último, estudava-se
Contraponto e Composição. Haveria provas todos os sábados, presididas
pelo director da escola, em que este designaria as peças que os alunos
deveriam apresentar, tendo os professores que corrigir os alunos no
momento. No último sábado haveria uma prova mensal do mesmo tipo da
anterior, mas com um complemento que era o dos alunos serem
«strictamente examinados sobre os principias e regras do que
praticarem». 15 Por último determinava-se que os alunos da classe de canto
que se destinassem aos teatros tinham que concluir os dois primeiros
termos da Escola de Declamação, sem o que não lhes seria passado «titulo
para se poderem escripturar em qualquer Theatro lyrico, como alumnos
do Conservatorio.» 16

O corpo docente

Segundo o Artigo 84 ° dos Estatutos do Conservatório, os professores


seriam escolhidos por «concurso e opposição pública, perante o jury de
premias e exames.» 17 Os candidatos teriam que comprovar a sua
«idoneidade moral, prática, e scientífica». 18 Para as diversas cadeiras o
Regulamento Especial da Escola de Musica estabelecia as bases sobre as quais
se realizariam as provas. Assim na cadeira de Rudimentos e preparatórios
os candidatos tinham de solfejar em todas as claves, sendo dada
preferência aos que tivessem «conhecimentos theoricos, e praticas do

13 DÍarÍo do Governo, 27 de Novembro de 1840.


14 Jbjd,
15 Jbjd,
16 Jbjd,
17 Estatutos do ConservatórÍo Real de LÍSboa, p. 27 ..
18 P-Lan, MR, ASE, Regulamento para a Eschola de MusÍca do ConservatorÍo Geral da Arte
Dramatka.
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acompanhamento no Piano». 19 Nas Classes de Canto e Instrumentos


exigia-se a execução de duas peças, uma à escolha do candidato, outra à
escolha do júri. Os candidatos à aula de Piano, Harmonia e suas
acessórias, além das duas peças acima indicadas, eram ainda examinados
«theorica e praticamente no acompanhamento de numeras, partituras e
transportes», 20 tendo ainda que harmonizar a quatro vozes uma melodia
dada pelo júri. Na cadeira de Contraponto e Composição tinham que
escrever uma Fuga a quatro partes sobre um tema ou temas dados pelo
júri, e ainda compôr uma peça vocal e instrumental «sobre assunto poetico
que pelo mesmo lhe fôr dado: tudo d'entro de horas rasoaveis que lhes
serão marcadas.» 21 Os candidatos podiam ser ainda inquiridos oralmente
sobre qualquer assunto de ordem musical.
A grande maioria dos professores que estão em actividade no ano
lectivo de 1842-43 são ainda profissionais cujos vínculos contratuais
datam da época do Conservatório de Música da Casa Pia, tendo alguns
mesmo ainda trabalhado no Seminário da Patriarcal, casos de João Jordani
e Francisco Kuchenbuch, aí integrados por ocasião da última reforma da
instituição, que ampliou o ensino da música instrumental. Em relação ao
período da vigência de Bomtempo como director da Escola de Música,
podemos constatar que também não há grande diferença entre os
professores, excepção feita ao próprio Bomtempo e a José Avelino
Canongia, cuja cadeira, Instrumentos de palheta, desapareceu pura e
simplesmente, só sendo retomada nos anos sessenta por Augusto
Neuparth.
O quadro seguinte permite-nos observar sinteticamente o corpo
docente efectivo da Escola de Música e as disciplinas por eles leccionadas
no período aqui em estudo:

Francisco Xavier Migone Piano Pianista e compositor de origem italiana,


(t1861) maestro concertatore do Teatro de S. Carlos.

António Porto Canto Baixo, mestre de canto da rainha e do rei,


(t1863) empresário do Teatro de S. Carlos. Passa à
reforma em 1861.

19 lbid.
20 lbid.
21 lbid.
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]OAQUIM CARMELO RosA

José T. Higino da Silva Rudimentos Aluno do Seminário da Patriarcal,


(t1873) (sexo feminino) professor no Conservatório de Música da
Casa Pia.

Fábio Máximo Carrara Canto Tenor, veio para Portugal integrado numa
(t1869) (sexo feminino) companhia do Teatro de S. Carlos. Ocupa
o lugar até 1842. De novo contratado em
1861.

Francisco Gazul Rudimentos Professor de música no Colégio dos Nobres.


(t1868) (sexo masculino)

Vicente Tito Mazoni Violino e violeta Primeiro violino da orquestra de S. Carlos


(t 1870) e membro da Real Câmara. Professor no
Conservatório de Música da Casa Pia.

João J ordani Violoncelo e Filho de um músico italiano que viera para


(t1860) Contrabaixo a Real Câmara no séc. XVIII, primeiro
violoncelo da orquestra do S. Carlos.
Professor do Seminário da Patriarcal e do
Conservatório de Música da Casa Pia.
Ocupa o lugar até 1860.

Francisco Kuchenbuch Instrumentos Professor do Seminário da Patriarcal e do


(t1845) de latão Conservatório de Música da Casa Pia.
Ocupa o lugar até 1845.

José Gazul Júnior Flauta e Flautim Filho de um músico catalão que viera para
(t1865) a Real Câmara no séc. XVIII. Flautista da
orquestra do S. Carlos, do Teatro D.
Maria II, da Sé e da Real Câmara.

Domingos Luís Lauretti Canto Sopranista, cantor da Patriarcal e da capela


(t1857) (sexo feminino) da Sé. Contratado para substituir F. M.
Carrara em 1844.

Francisco A. N. dos Instrumentos Compositor e instrumentista, membro da


Santos Pinto de latão orquestra do S. Carlos e da Real Câmara.
(t1860) Contratado em 1849 em substituição de F.
Kuchenbuch.

Guilherme Cossoul Violoncelo e Compositor, instrumentista, director de


(t1880) Contrabaixo orquestra e empresário. Solista, membro da
orquestra do S. Carlos e empresário do
mesmo teatro. Contratado para substituir J.
Jordani em 1861.

Ernesto Victor Wagner Instrumentos Contratado para substituir F .A.N. dos


(t1903) de latão Santos Pinto em 1861.

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Além das personalidades citadas neste quadro, outras pessoas


exerceram funções lectivas no Conservatório. Efectivamente o Regimento
do Conservatório, de 27 de Março de 1839, determinava, no seu Título I,
Artigos 7° e 8° respectivamente, que: «Üs alumnos mais adiantados serão
promovidos a decuriões para ajudar, sob a direcção de seu respectivo
Professor, o ensino dos outros» e «Os decuriões, que se distinguirem por
seu methodo d'ensino, e bom procedimento terão acesso aos lagares de
Substitutos.» 22 Os primeiros Decuriões são nomeados por altura dos
primeiros Exercícios públicos, em 3 de Setembro de 1839, havendo notícia
de nomeações até ao ano de 1849, 23 e sem ser de excluir que depois disso
essa prática se mantivesse. 24 Uma Ordem do Secretário da Inspecção
Geral, servindo de Inspector, datada de 25 de Outubro desse ano, faz
alguma luz sobre como se desenrolaria a actividade dos Decuriões
determinando que «coadjuvem [... ] os respectivos professores [... ] em
turnos mensaes alternados por escalla, conforme lhes for determinado pela
Direcção da Eschola.» 25
Entretanto outras cadeiras se afirmaram, durante o período em estudo,
no plano curricular da Escola de Música, nomeadamente as aulas de
línguas Italiana, Francesa e Latim, embora sem atingirem grande realce.
João Nepomuceno de Seixas, professor de Rudimentos históricos da
Escola de Declamação, propõe, em Outubro de 1854, «abrir um curso de
Historia- Musica para os Alumnos matriculados na Escola de Musica». 26
Não temos notícia desta iniciativa ter tido qualquer seguimento.
Juntamente com estas novas disciplinas devem-se destacar ainda as
autorizações que se deram a várias alunos da Escola de Música,
particularmente da aula de Canto, para frequentarem aulas das outras
duas Escolas, no sentido de lhes dar uma formação mais abrangente,
virada para uma possível carreira nos teatros líricos. 27
O que se passa com os vencimentos dos professores do Conservatório,
durante o período em estudo, é exemplar em relação às dificuldades por

22 RegÍmento, 27 de Março de 1839, Imprensa Nacional. O Regulamento para a Eschola de Muska do


ConservatorÍo Geral da Arte Dramatka, de 30 de Setembro de 1839, precisava no seu Artigo 17°
que «Üs professores propõem ao Conselho de Direcção os discipulos habeis para substitutos e
decuriões, para os exames e exercidos» (P-Lan, MR, ASE).
23 P-Lc, LÍvrodeSahÍda, n°6, daEscoladeMuska /1839-1851]
24 Encontrámos ainda uma referência à sua actividade em Dezembro de 1855. Ver nota 62, p.l8.
25 P-Lc, LÍvro de Ordens, da lnspecção Geral.
26 P-Lc, LÍvrodeSahÍda, n°6, daEscoladeMuska /1839~1851]
27 P-Lc, LÍvro de Ordens, da lnspecção Geral.
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]OAQUIM CARMELO ROSA

que passou o País nesta época, e também no que diz que respeito à menor
atenção com que o poder político olhou para a causa do ensino da música.
Uma carta do Secretário da Inspecção Geral António Gomes Lima ao
Ministro e Secretário de Estado do Ministério do Reino da altura,
Joaquim António de Aguiar, data de 2 de Novembro de 1841, dá bem a
medida de como a conjuntura era desfavorável:

Consta extra-officialmente que alguns dos professores d' este


Conservatorio, oppondo-se, com indecoro e aviltamento da
.Repartição, ao que regularmente fôra estatuido, por Determinação
Régia de 14 de Janeiro d' este anno, a instancia de seu Chefe,
pedem continuar a ser pagos de seus ordenados pela extranha
Repartição da Administração Geral, que nenhuma interferencia
tem n'este Instituto, creado por Lei especial, e que goza das honras
de se corresponder immediatamente com o Govêrno de S.M.
Parece servirem de fundamento a este pedido a menor consideração
que, por infortunio, hão tido no mercado as cedulas do
Conservatorio, não querendo attingir a que esta differença não é a
elle imputavel, mas sim a ter-se deixado de pagar, ha mais de cinco
meses, a Folha do serviço do mesmo Conservatorio cujo importe,
na maior parte, é de vencimentos dos empregados e mesmo de
alguns dos referidos professores que n' ella vão incluidos com
gratificações.
Em geral, e por motivo do atrazo dos pagamentos, as cedulas de
todas as Repartições teem baixado de seu justo preço, e por vezes
chegado a uma completa depreciação: mas estas vicissitudes por
certo não devem induzir a deslocar as attribuições que lhes
pertencem, em menos cabo da boa ordem, da fiscalisação que lhes
cumpre ter, e em prejuizo de terceiro, por que este apparecerá
(realizada que seja a pretendida mudança de pagamento) com as
cedulas que por aqui se passam, em consequencia do processo e
pagamento das mencionadas Folhas de serviço, não havendo razão
plausivel para que umas o sejam e outras não. 28

A circunstância de atrasos no pagamento de vencimentos tenderá a


atenuar-se com o decorrer do período em estudo, particularmente com a

28 P-Lc, documento manuscrito.


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crescente estabilidade que advirá com o Fontismo. Associada a esta


questão, os magros vencimentos que auferiam no Conservatório, estará a
situação de pluriemprego em que estavam envolvidos todos os professores
da Escola de Música, com particular destaque para a ligação ao Teatro de
S. Carlos e à sua orquestra. Outra fonte de rendimentos, sobre a qual se
fez ainda pouca luz, era o ensino particular. Muitos jovens, sobretudo das
classes mais altas, para já não falar dos próprios infantes, 29
tiveram a sua formação musical sem passarem pelo Conservatório. O
pluriemprego, na área da docência musical, é um estado quase natural,
sobretudo ao nível dos docentes instrumentistas, não sendo de excluir que
essa condição pudesse servir de justificação socialmente relevante para a
atribuição de honorários mais modestos. E se é verdade que os professores30 de
música eram tradicionalmente pagos abaixo dos restantes - veja-se por
exemplo o caso do que se passava no Liceu de Coimbra em 1854, em que
o professor de Música recebia 250$000 réis/ano contra os 400$000
réis/ano atribuídos aos restantes professores - é verdade também que, no
que diz respeito aos professores do Conservatório, o seu trabalho era
reconhecido socialmente através da atribuição de diversos títulos
honoríficos, nomeadamente a Ordem de Cristo.
O Artigo 51° do Título XII do Regimento do Conservatório definia a
obrigação dos professores elaborarem «Compendias, e obras elementares
para as suas aulas». 31 Enquanto tal não acontecesse o Regulamento Especial
determinava que se seguissem os do Conservatório de Paris «e as obras
dos auctores classicos» 32 , evidenciando-se desde logo a referência ao
modelo francês, matriz fundamental de todos os Conservatórios europeus
oitocentistas, e para a qual deve ter contribuído a «vivência» francesa de
Bomtempo. Relativamente aos novos métodos, em 28 de Janeiro de 1845
o «opusculo intitulado Princípios Elementares de Musica [... é] authorizado
para servir de compendio nas aulas de rudimentos da Eschola de
Musica», 33 compra obrigatória para os alunos da aula de Rudimentos, sob
pena de não serem admitidos nas aulas. Embora Ernesto Vieira ponha em
causa a sua autoria é o nome de Domingos Luís Laureti que surge na
29 Além de Bomtempo ter sido Mestre de Música da Rainha, em Janeiro de 1853 Vicente Tito
Mazoni é feito Mestre de Música do Infante D. Luís (P-Lc, Livro de Sahida, n° 6, da Escola de
Musica [1839-1851]).
30 Diario do Governo, 1Ode Outubro de 1853, p. 1423.
31 Regimento, p. 8.
32 lbid.
33 P-Lc, Livro de Ordens, da lnspecção Geral
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]OAQUIM CARMELO ROSA

capa, também ele autor de uns Exercicios de agilidade para as vozes de baixo
e barítono, podendo egualmente servir para a voz de contralto transportadas
uma sa
alta, 34 igualmente aprovados, em Junho de 1840, para uso no
Conservatório. 35 Deve-se ainda destacar o Breve Tratado de Musicographia,
obra aprovada pela Escola de Música em Sessão de 11 de Março de 1854,
para ser utilizada nas aulas de Rudimentos, da autoria de José Teodoro
Higino da Silva, que igualmente publicou, em 1856, uma Grammatica
Musical ou Elementos de Musica, compêndio que pensamos não ter sido
objecto de aprovação por parte do Conservatório, e que, mais uma vez,
Vieira refere como não podendo «ser recommendado pela boa redacção
nem pela clareza». 36
Embora não pertencendo ao corpo docente, estavam ainda
consignados nos documentos que regiam a vida do Conservatório dois
cargos muito importantes na vida da Escola de Música. O Regimento
autorizava no seu Artigo 26° «as despesas necessarias para o serviço de um
afinador, e de um copista.». 37 A primeira referência que encontrámos,
relacionada com o copista, ocorre em 7 de Agosto de 1839, na sequência
da preparação dos exames desse ano, em que João Ciríaco Lence, copista
do S. Carlos, se oferece para o cargo. 38 Referente ao primeiro semestre do
ano seguinte temos a primeira notícia de uma conta de «affinações de
pianos e cravos», 39 de João Baptista Antunes, neto de Manuel Antunes, o
primeiro construtor de pianos que se conhece em Portugal, que já antes
cuidava dos instrumentos do Seminário da Patriarcal. 40
]á no ano de 1849, a 25 de Setembro, João Ciríaco Lence apresenta
uma proposta para fornecer «toda a música para os estudos dos alunos»,

34 M.]. LA FUENTE, no seu estudo «]oão Domingos Bomtempo e o Conservatório de Lisboa», dá a


entender que seriam duas obras diferentes. Não partilhamos dessa opinião. Em Conferência
Geral de 28 de Maio de 1842, Laureti oferece dois exemplares de Exercícios de Agilidade para as
Vozes de Baixo e Barítono, que ficam guardados no Repositório de Música. A referência de
Ernesto Vieira, no seu Diccionario (cf. Diccionario biographico de musicos portuguezes: historia e
bibliographia da música em Portugal, Lisboa, 1900, vol. 2, p. 15) a esta obra como tendo sido
imprensa na litographia Lence em 1842, juntamento com uma Ordem do Inspector Geral
Almeida Garrett (P-Lc, Livro de Ordens) para a impressão do método de Canto de Lauretti, em 9
de Fevereiro de 1841, parecem apontar na direcção de ser uma e a mesma obra.
35 P-Lc, Entrada 1836-1839 [?], P, Secretaria.
36 E. VIEIRA, op. cit., vol. 2, p. 318.
37 Regimento, p. 4.
38 P-Lc, Entrada 1836-1839 [?], P, Secretaria.
39 lbid.
40 E. VIEIRA, op. cit., vol. 1, p. 39.
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apresentando João Baptista Sassetti uma outra, no mesmo sentido, a 3 de


Outubro. Não sabemos qual foi o desfecho deste processo, embora
Sassetti tenha colaborado posteriormente com o Conservatório,
nomeadamente na reedição dos Princípios Elementares de Musica, de
Domingos Luís Lauretti.
Em 1862, final do período sobre o qual se debruça o nosso estudo, o
quadro dos professores efectivos em exercício do Conservatório tinha já
sofrido algumas alterações significativas, que se acentuariam a curto prazo.
Fábio Máximo Carrara volta a trabalhar no Conservatório na sequência de
um concurso realizado no Verão de 1861, por causa da jubilação de António
Porto. Carrara tinha aliás substituído António Porto, a título provisório,
durante as repetidas licenças que lhe tinham sido concedidas. Guilherme
Cossoul vai ser nomeado pelo Decreto de 18 de Abril de 1861 professor da
cadeira de Rabecão grande e pequeno na sequência do concurso realizado
em 15 de Abril do mesmo ano, após a morte do anterior titular João
Jordani. 41 Ernesto Victor Wagner é designado professor da aula de
Instrumentos de latão por Decreto de 29 de Maio de 1861. A ausência de
titulares nas aulas de Composição, Harmonia e Piano não significa que
durante a ausência, e após a morte, de Francisco Xavier Migone essas
cadeiras tivessem deixado de ser leccionadas. Assim logo em 9 de Março de
1857 são nomeados Eugénio Masoni, para reger temporariamente a aula de
Piano, que o fará até 30 de Setembro de 1858, e Eugénio Ricardo Monteiro
de Almeida para a aula de Contraponto e Harmonia. Em 20 de Outubro de
1858 António Pereira Lima Júnior substitui Eugénio Masoni na Classe de
Piano. 42 Eugénio Masoni voltará a dirigir a cadeira de Piano, agora com o
estatuto de professor substituto, em 29 de Dezembro de 1862. De notar que
os três últimos são antigos alunos do Conservatório os quais, de forma algo
natural, assumiam plenamente funções docentes na instituição que os tinha
formado. Uma nova vaga de docentes tomava o leme da Escola de Música.

41 Personalidade multifacetada, distingue-se tanto na actividade musical como fora dela.


Violoncelista da Orquestra do Teatro de S. Carlos, e mais tarde também maestro e empresário,
músico da Real Câmara e compositor, desenvolveu também uma carreira de solista com
deslocações ao estrangeiro. Será nomeado Director interino da Escola de Música do
Conservatório em 1863.
42 P-Lc, Ofício do Secretário Carlos da Cunha Menezes ao Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do
Reino, de 23 de Outubro de 1865.
94
JoAQUIM CARMELO RosA

O corpo discente

Os candidatos a alunos eram sujeitos a um exame preliminar efectuado


pelo Conselho de Direcção, após informação do professor da cadeira a
que o requerente se candidatava, e que determinava o seu destino na
escola. O Regulamento Especial da Escola de Musica determinava os
critérios dessa avaliação estabelecendo os limites etários mínimos e
máximos de oito e vinte anos e a necessária capacidade física para o
instrumento a que se destinava. Salvaguardava-se uma excepção para os
talentos reconhecidos. 43 A partir dos anos cinquenta os anúncios de
abertura de inscrições fazem as seguintes referências às habilitações
académicas mínimas exigidas aos candidatos:

Nas aulas do 1° termo (rudimentos de musica) ler, escrever, e contar.


Nas de 2° termo (canto, instrumentos, e harmonia) as mesmas
habilitações e rudimentos de grammatica portugueza, ficando
obrigados á frequencia da aula de lingua italiana.
Nas de 3° termo (contraponto e composição) conhecimento das
linguas latina, franceza e italiana, que tambem se leccionam neste
estabelecimento aos alumnos approvados no 1° termo, que se
queiram utilisar deste beneficio. 44

Mas como era constituído o corpo discente da Escola de Música?


Quem eram as pessoas que frequentavam as aulas de Música? Em relação
à frequência, o número de alunos que frequentaram a Escola de Música
variou entre 112, no ano lectivo de 1846-47, e 218, em 1861-62. Em
relação à sua origem social os dados que conseguimos apurar não são
completamente conclusivos. No entanto alguns elementos fazem luz sobre
esta questão. Um Ofício de 31 de Março de 1845, da Inspecção Geral,
sobre a formação da Companhia para o Teatro de D. Maria II, referia, a
propósito da Escola de Declamação, que «muitos alunos de talento teem
deixado de frequentar os estudos por se envergonharem dos seus
condiscípulos em consequencia do seu pobre trajar.» 45 Ainda, numa
referência à condição social dos alunos do Conservatório, Joaquim

43 O registo desta avaliação era feito directamente sobre a folha do requerimento de candidatura,
cujo processo envolvia ainda uma certidão de baptismo, um atestado de bons costumes e um
certificado de vacinação.
44 Diario do Governo, 5 de Outubro de 1854, p.l251.
45 P-Lc, Livro 3, Cópia dos Oficios da lnspecção Geral dos Theatros 1845/1850.
95
REVISTA PORTUGUESA DE MUSICOLOGIA

Larcher diz, no seu Relatório ao Ministério do Reino de 30 de Novembro


de 1841, a propósito da vantagem da existência dos prémios e pensões
alimentícias, ser uma excelente ideia para conseguir que «os mais velhos
perseverem no estudo e conservem a regularidade e disciplina que aliás
fôra impossivel manter entre crianças, pela maior parte, sem educação
alguma.» 46 Oito anos mais tarde, o Conde de Farrobo, então Inspector
Geral dos Teatros, no seu Relatório, de 31 de Dezembro de 1849, a
propósito dos alunos da Escola de Música diz:

Podem dividir-se estes alumnos em duas classes: sendo uma d' ellas
composta de individuas que tão sómente concorrem ás aulas com o
fim de gratuitamente aprenderem uma arte, para seu
intertenimento particular; e a outra, composta d' aquelles que as
frequentam com o intuito de obter, por meio das habilitações que
n' ellas se lhes proporcionam, meios honestos de subsistencia. Os
primeiros, apenas chegam a adquirir certos conhecimentos
superficiaes, com que se julgam aptos para o fim que se tem
proposto, que é de mero recreio, dão por findos os seus estudos, e
sahem do Conservatorio imperfeitos, e apenas iniciados na arte a
que se dedicaram. O mesmo acontece aos outros, ainda que por
diversos motivos; estes, porque pertencem ás classes mais
necessitadas, e que por esta razão, só com grande sacrificio de suas
familias, é que podem dedicar-se ao estudo de uma arte, cuja longa
duração é para elles tanto mais onerosa, quanto o tempo é para
estes infelizes um capital, que não póde estar estagnado, sem grave
detrimento; abandonam os seus estudos logo que, com o pouco que
sabem, podem ganhar uma parca subsistencia; resultando, d'este
inevitavel procedimento, desdouro e descredito para o
Conservatorio. 47

Embora algumas destas referências tenham como objecto declarado os


alunos das Escolas de Dança e de Declamação, a baixa origem social e a
situação de precariedade económica deveria aplicar-se igualmente a
grande número de alunos da Escola de Música. As repetidas referências à
importância do estabelecimento de um internato e ao papel

46 P-Lc, documento manuscrito. É o rascunho do Relatório que será enviado ao Ministério do Reino
com a data de 24 de Dezembro de 1841.
47 Conde de F ARROBO, Relatório do Conservatorio Real de Lisboa e lnspecção Geral dos Theatros, p. 8.
96
JoAQUIM CARMELO RosA

desempenhado pelos prémios pecuniários, apontam igualmente nesta


direcção. No entanto, segundo informação de Maria José de La Fuente,
que não nos foi possível confirmar, havia entre o corpo discente filhos de
«funcionários públicos (desembargadores, amanuenses de Secretarias de
Estado e dos Correios), de oficiais do exército e da marinha (major,
tenente-coronel, vice-almirante), de um farmacêutico, de um negociante». 48
A verdade é que da esmagadora maioria dos alunos não se conhece a
ocupação dos progenitores, já que tal informação não consta dos
documentos necessários à inscrição nas escolas, e o âmbito do nosso
trabalho não nos permitiu um outro tipo de investigação. A existência de
inscrições de alunos titulados ao longo de todo o período em estudo ·
permite avançar a hipótese de haver alguma heterogeneidade social no que
diz respeito à Escola de Música, ao contrário do que parece acontecer nas
outras escolas, nomeadamente na de Dança, em que todo o material era
fornecido pela respectiva escola. 49 De assinalar que nenhum descendente
directo de sócios da Academia do Conservatório, com excepção dos filhos
de músicos e professores, 5° se inscreveu durante o período do nosso estudo
como aluno do Conservatório. Deve-se ainda -notar o papel que o ensino
particular por certo desempenhava, já que nenhum dos «filhos de família»
que animavam, por exemplo, as noites do Conde de Farrobo passou pelo
Conservatório.
Também no que respeita à frequência a Escola de Música vai ser, no
conjunto das escolas do Conservatório, a mais destacada. Esta questão é
relevante nomeadamente em termos da credibilidade do trabalho aí
desenvolvid:o, como é frequentemente destacado nos Relatórios da
Inspecção qeral, de que é.. exemplo, o relatório assinado por António
Pereira dos Reis em 11 de Março de 1848, que diz:

As escholas do Conservatorio não foram n' este ultimo anno lectivo


tão frequentadas como nos anos anteriores. Todavia o n° de
alumnos matriculados chegou a 117, pertencendo a quasi totalidade

48 M.]. LA FUENTE, op. cit., p. 42.


49 Igualmente a obrigatoriedade de todos os alunos da Aula de Rudimentos terem de comprar os
Princípios Elementares de Música de Lauretti, ao contrário ·dos da Escola de Dança a quem todo os
\": artigos de vestuário era fornecido, parece corroborar esta análise.
50 É notória a presença de muitos filhos de músicos, inclusivé professores do Conservatório, além de
alguns filhos de artistas de outras áreas das artes do espectáculo como os dos bailarinos Fernando
e Isabel Rugali e do destacado actor João Anastácio Rosa.
97
REVISTA PORTUGUESA DE MUSICOLOGIA

à eschola de musica, que se deve considerar como a base do Instituto.


Esta eschola merece protecção e fomento; é assaz frequentada, e os
professores, em geral, são assiduos no desempenho de suas
obrigações; cabendo-me fazer particular menção do seu habil e
zeloso director, a quem se deve o estado regular a que elia tem
chegado. 51

É interessante notar ainda que os momentos de diminuição de


frequência na Escola de Música coincidem com acontecimentos marcantes
na vida nacional da época, o primeiro com o período da Guerra Civil de
1846-47, e o segundo com as epidemias de cólera e febre amarela, em 1856.
Debruçando-nos sobre a questão do nível etário dos alunos é de referir a
particular incidência de alunos na faixa etária dos 10 aos 21 anos (com
relevo para os picos de 25 alunos com 13 anos de idade, inscritos no ano
lectivo de 1860-61, e de 24 alunos com 14 anos, em 1850-51) podendo-se
assim considerar que os pressupostos etários estabelecidos no Regulamento
Especial da Escola de Musica foram cumpridos.
Outro elemento que nos parece importante para a caracterização do
universo discente é a distribuição de alunos em termos de sexo. Para além
da esperada predominância do sexo masculino, dada a tradição do ensino
público da música, é de destacar o crescimento gradual e constante dos
alunos do sexo feminino, de 3 alunas, em 1838-39, até 98, em 1861-62.
Neste particular é curioso também observar a distibuição etária das alunas.
Para além de um pico de frequência verificado em 1861-62, com a inscrição
de 12 alunas de 12 anos, é de realçar um estreitamento da faixa etária mais
significativa, que vai sensivelmente dos 1O aos 18 anos, com uma maior
incidência nas idades mais jovens, possivelmente fruto dos códigos sociais
da época. Outro elemento importante para a compreensão do que se
passava no Conservatório é a maneira como se distribui o corpo discente
pelas diversas cadeiras do Conservatório. Deve-se destacar a enorme
quantidade de inscrições em Rudimentos, disciplina nuclear dos estudos de
música no Conservatório. Em seguida surgem as cadeiras de Piano e Canto,
cadeiras que frequentemente estavam associadas, particularmente no caso
dos alunos de Canto, e que eram altamente valorizadas pelo contexto
musical e social da época.

51 P-Lc, Documento manuscrito.


98
JoAQUIM CARMELO RosA

Finalmente um outro aspecto que vem igualmente anotado nos Livros


de Matrículas, é a indicação do lugar de naturalidade. Em relação ao ano
de 1843-44 constatámos que a grande maioria dos alunos era natural de
Lisboa: 92 num total de 117. Destes últimos 6 haviam nascido fora de
Portugal e 3 no Porto. As restantes localidades são apenas representadas
por um aluno. Este desequilíbrio tenderá a agudizar-se com o decorrer
dos anos o que demonstra quão difícil era para aqueles que não residiam
na capital frequentar a única escola de música do país.
O Regulamento Especial da Escola de Musica estipulava que «o curso
regular será de cinco annos; [... podendo] ser prorrogado por mais um anno,
quando o Conselho de Direcção» 52 assim o entendesse. Todavia esta
duração de estudos raramente será cumprida. Um número muito
significativo de alunos faz uma passagem meteórica, de apenas um ano, pela
Escola de Música. Noutros casos, número que aumenta à medida que o
período em estudo vai avançando, prolongam a sua permanência muito para
além do previsto. O caso de aluno que durante maior número de anos
frequentou a Escola de Música é o de Francisco Bibiano Pereira Lisboa, que
frequenta desde os seus 11 anos até aos 25. 53 De qualquer forma a realização
do curso em 5 anos ou 6, seria sempre problemática, já que um aluno que
entrasse no primeiro ano do 1° Termo, 1a Classe de Rudimentos, teria a
expectativa de ter pela sua frente, pelo menos, mais 2 anos de Rudimentos
seguidos de 3 anos de curso de instrumento. Por outro lado os
desenvolvimentos que a escola vai sofrer, como instituição viva e dinâmica
que era, vão contrariar as intenções originais. Também a designação de
alunos ordinários, voluntários e obrigados parece cair em desuso, deixando
de constar nos Livros de Matrículas a partir do ano lectivo de 1846-4 7.
Mas, por essa mesma altura, surge outra categoria, a de aluno ouvinte, que
parece corresponder a alunos entrados já com o ano em curso.
Uma última nota diz respeito à matrícula de expostos da Santa Casa da
Misericórdia como alunos da Escola de Música. Esta colaboração já se
tinha iniciado, no ano lectivo de 1840-41, com as Escolas de Dança e
Declamação, embora sem grande sucesso já que todos os alunos acabaram
por desistir, não voltando a inscrever-se. Em 16 de Julho de 1855 volta a

52 P-Lan, MR, ASE, Mç. 3535.


53 16 anos lectivos seguidos, de 1840-41 até 15 de Outubro de 1856, altura em que lhe é passada a
Carta Final do Curso de Canto.destacado actor João Anastácio Rosa.
99
REVISTA PORTUGUESA DE MUSICOLOGIA

surgir uma proposta do Conselho de Direcção da Escola de Música «para


que dos expostos d'ambos os sexos da Sta Caza da Mizericordia se escolha
doze ou mais que tenhão boa voz para se dedicarem á profissão artistica.» 54

A Escola em funcionamento

Os anúncios de aberturas para matrículas no Conservatório surgiam nos


periódicos lisboetas, como o Diario do Governo, durante o mês de
Setembro, por vezes mesmo no dia 1 de Outubro, podendo estas ser feitas
até à data de abertura das aulas, que oficialmente era 5 de Outubro mas
que frequentemente era adiada para 15 ou outro dia do mesmo mês. Nos
primeiros anos do período em estudo chegou a haver um segundo período
de matrículas, na Primavera. Os alunos que se tinham matriculado em
anos anteriores só tinham que apresentar o respectivo requerimento, sendo
dispensados de apresentar a restante documentação. Não temos notícia de
alguma vez se ter cobrado qualquer propina, situação que é, aliás, coerente
com a constante referência à deficitária condição económica dos alunos.
Algumas referências soltas permitem-nos reconstruir um pouco do
ambiente da época na Rua dos Caetanos. A propósito do despedimento do
Porteiro, Joaquim dos Santos Figueiredo, a 1 de Julho de 1854, Carlos da
Cunha Menezes refere: «como este lugar não pode deixar de ser servido
por alguém - que não só guarde as portas do Edificio, mas tambem tome
conta nos chapeos dos alumnos, e faça conservar a decencia d'um
estabelecimento onde concorrem pessoas d'ambos os sexos [... ]». 55 A falta
de segurança do edifício é o argumento que fundamenta a decisão de
transferir para o cofre do escritório da casa do Conde de F arrobo os fundos
do Conservatório, já que era «nenhuma a ·.segura~ça que offerece a
Secretaria e de mais cazas do Estabelecimento, para n' ellas continuar a
guardár-se o dinheiro da Repartição, sem prigo [sic] de desastrosas
consequencias [ ... ]». 56 No entanto, aí viviam a Vice-regente, com uma
filha, e ainda o amanuense Costa Araújo. É a Vice-regente, encarregue de

54 P-Lc, Livro de Sahida, n° 6, da Escola de Musica /1839-1858/ Registámos apenas, no ano lectivo
de 1861-62, a matrícula de Domingos Eduardo, de 11 anos, exposto da Santa Casa da
Miserjcórdia, q~e nesse 'mesmo ano será «approvado com distinção na 3a classe» da Aula de
Rudimentos (P-Lc, Matriculas, Livro 3~ 1853-1861).
55 P-Lan, MR, ASE, Mç. 3566.
56 P-Lc, Livro de Ordens, da lnspecção Geral, 9 de Março de 1849.
100
JoAQUIM CARMELO RosA

zelar pelo bem estar das alunas, que solicita, em 10 de Outubro de 1842, «a
graça de lhe mandár dár hum Quarto, cujo fique proximo ás sallas, a fim
de que as allunas tenhão onde possão mudar de sappatos, (em razão da
chuva) e pôr os xappeos; e bem assim para decencia de Estabellecimento,
para n' ellas continuar a guardár-se o dinheiro da Repartição, sem prigo
[si c] de desastrosas consequencias [ ... ] ». No entanto, aí viviam a V ice-
regente, com uma filha, e ainda o amanuense Costa Araújo. É a Vice-
regente, encarregue de zelar pelo bem estar das alunas, que solicita, em 10
de Outubro de 1842, «a graça de lhe mandár dár hum Quarto, cujo fique
proximo ás sallas, a fim de que as allunas tenhão onde possão mudar de
sappatos, (em razão da chuva) e pôr os xappeos; e bem assim para
decencia de Estabellecimento, pede mais que no dito Quarto haja hum
Pote para Agua, pois só a sim se ivitará as allunas virem a Porta da Rua
pedir agua ao Porteiro, couza bem indecente [ ... ].» 57 Larcher considera
pertinente e dá seguimento à reivindicação. Um documento de 1842 dá-
nos conta da atribuição de algumas das salas da Escola de Música: «n° 7,
Canto ambos os sexos, n° 8, Trompa e Flauta, n° 11 e 12 Rudimentos
ambos os sexos». 58 Uma referência ainda para a Sala de Conferências,
onde se faziam, entre outras actividades, as reuniões da Academia. Este
domínio do espaço físico carece no entanto de um estudo mais
aprofundado.
De acordo com o Regulamento Especial_as aulas deveriam iniciar-se
diariamente às 9 horas e 30' da manhã, sendo isto também objecto de
muitas adaptações, o que é perfeitamente compreensivel numa instituição
tão complexa, analisada durante um período tão alargado. A título de
exemplo de como os horários variaram ao longo dos tempos temos o caso
da Ordem n° 103, emanada da Inspecção Geral, que diz: «Sendo mui
encommoda a hora das oito da manhan para a abertura de aulas,
especialmente na estação invernosa, obrigando as jovens do delicado sexo
a que muito antes d'ella se achem n'este Estabelecimento com risco de sua
saude; e informado de que não existe incompatibilidade para que nas tres
differentes escholas do Instituto se principie a leccionar das nove horas da
manhan por diante, prohibo que mais se abram aulas aquella hora das oito
da manhan.» 59
57 P-Lc, Documento manuscrito.
58 lbid.
59 P-Lc, Livro de Ordens, da lnspecção Geral Ordem despachada em 22 de Março de 1842.

101
REVISTA PORTUGUESA DE MUSICOLOGIA

O Artigo 26° do Regulamento Especial da Escola de Musica estabelecia


que «o número de alumnos para cada classe é o de doze». 60 Esse número
podia ser alterado por determinação do Conselho de Direcção, o que
forçosamente terá acontecido, particularmente no que diz respeito às aulas
de Rudimentos, à medida que a Escola de Música foi vendo aumentar, de
forma significativa, a sua frequência. O Artigo 29° do mesmo Regulamento
determinava a proibição de frequência de qualquer classe sem a conclusão
da Classe de Rudimentos. Esta aula, pela sua natureza a mais numerosa da
Escola de Música, foi uma das que primeiramente se viu envolvida em
polémica, fazendo com que o Inspector Geral Almeida Garrett tomasse
medidas no sentido de um maior controle do que aí se passava. Na origem
destas acções esteve uma carta anónima de um «Amante do Conservatório»,
que denunciava que apenas os filhos de italianos ou os alunos que pagavam
é que tinham direito a lições, sendo todos os outros tratados com menor
atenção, com a consequente falta de aproveitamento nos seus estudos. 61 O
resultado deste caso vai ser a prática, posteriormente estendida a todas as
disciplinas, de elaboração de mapas que relatavam o desempenho dos alunos
ao longo do ano. Higino da Silva, professor· de Rudimentos do sexo
feminino, elabora, em 31 de julho de 1842, uma «synopsis» em que propõe,
em relação à realização de exames, dividir «os estudantes em classes
conforme o seu saber e na vespera do exame, um estudante de cada classe
tirar um ponto o qual determinasse as doctrinas e mais provas que ya Exa [o
· director da escola] julgasse praticaveis a cada classe d' estudantes.» 62 E
acrescentava que «o exame por esta forma praticado ficaria classico e facil,
todos os estudantes teriam acesso ao dito exame, e a maneira pela qual se
desenvolvessem junta com o informe que vai na relação inclusa lhes serviria
de titulo para a admissão á nova matricula.» 63 O «informe» que cita é um
relatório sobre «o estado de adiantamento tanto theorico como pratico de
cada uma das alumnas». 64 Aí referindo-se, por exemplo, a Fortuné Levi:
60 P-Lan, MR, ASE.
61 Cf. M. ]. LA FUENTE, op. cit., p.40. Temos conhecimento de ainda outro caso, desta vez em
Dezembro de 1855, em que uma mãe foi «pedir explicações» a um decurião por causa da má nota
que este tinha dado a sua filha, que por sua vez tinha explicações particulares com uma filha do
dito decurião (P-Lc, documento manuscrito), que indicia toda uma teia, um circuito paralelo,
movendo-se à volta do Conservatório, e que porventura constituem elementos importantes para
um melhor entendimento das complexidades da instituição e da realidade do ensino da música na
época.
62 P-Lc, documento manuscrito.
63 lbid.
64 lbid.
102
JoAQUIM CARMELO RosA

«Tem os conhecimentos acima mencionados: Solfejos, tem estudado os


d'Asioli, Rollet e Baldassar, em todas as claves». 65 Ou referindo-se a
Mariana Adelaide da Silva Gaião especifica que os «conhecimentos acima
mencionados» são:

diffinições [sic] de Musica e som, e como se divide: logo em


seguida o conhecimento das vozes, das diversas figuras de muzica
tanto regulares como alteraras [sic], seus valores etc. bem como
suas pausas: do ponto de augmentação simples, duplo etc.: das
ligaduras e syncopas: dos generos e especies de compaços [sic]: da
rudução [sic] de uma especie e genero de compaço a outro: das 3
claves e suas diversas posições: dos accidentes tanto simples como
duplos: das abbreviaturas e signaes usados na escripturação da
Musica: dos tons e seus transportes: dos intervallos e suas inversões:
dos andamentos e suas modificações.
Os Solfejos que se tem praticado são os seguintes: a primeira e
segunda partes d'Asioli: dittos d'Italia de varias authores: ditta de
David Perez: de Baldassar: de M. Sardini: de Righini: e de Rollet. 66

Sobre as alunas que «não estão no cazo de fazerem exame e dos


motivos porque o não fazem», 57 Higino da Silva diz, referindo-se à mesma
Mariana Adelaide da Silva Gaião: «Tem muito boa conta d'anno mas não
esta ainda bem instruida no conhecimento dos tons e transportes: e
juntamente no Solfejo.» 68 Em relação a Adelaide judite Garcia refere que:
«Poucas tem sido as lições que tem dado sabidas conversa quasi todo o
tempo da aula por cujo motivo pouco ou nada sabe.» 69 E ainda, referindo-
se a Emília Adelaide Pereira Lisboa: «Pouca compreenção [sic], e pouca
idade.» 70
65 Jbjd.
66 lbÍd. Dos autores citados podemos identificar Bonifazio Asioli (1769-1832), teórico, compositor
e pianista italiano, primeiro director do Conservatório de Milão e autor de relevante material
didáctico-musical; Vincenzo Righini (1756-1812), compositor, mestre de capela, cantor e
professor de canto; possivelmente Pietro Baldassare (c1690-c1768), compositor italiano que se
destacou sobretudo na composição de Oratória, mas cuja maior parte da obra se perdeu. Em
relação às obras de David Perez a sua proveniência deveria ter origem no espólio do Seminário da
Patriarcal, que contém um significativo número delas, assim como várias coleções dos Solff!)os de
ltáHa (cf. Rui CABRAL, lnventárÍo PreHmÍnar dos LÍvros de Múska do SemÍnárÍo da PatrÍarcal,
Lisboa, Centro de Estudos Musicológicos- Biblioteca Nacional, 1999, dactilografado).
67 lbÍd.
68 lbÍd.
69 lbÍd.
70 lbÍd.
103
REVISTA PORTUGUESA DE MUSICOLOGIA

O seu colega de Rudimentos do sexo masculino, a 5 de Agosto de


1842, produz um mapa idêntico, mas caracterizando diferentemente a
avaliação, refere, por exemplo, a propósito do desempenho de Luís
Machado dos Santos: «Não tenho expressões para elogiar esta creança,
dotada da maior habilidade, da as mais lisongeiras esperanças para a arte
que estuda, e de que, se assim continuar, virá a ser um dos principaes
ornamentos. Optimas lições; irreprehensivel comportamento.» 71
Referindo-se a António Luís Ferreira diz: «Frequenta desde o principio
do Conservatorio; e é completamente inhabil para este estudo. Bom
comportamento.» 72
No ano seguinte Francisco Gazul passa a quantificar, no seu relatório,
a qualidade das lições que os alunos deram. Assim, referindo-se a Eugénio
Masoni diz: «Lições que deram em todo o anno: Boas - 20; Sofriveis -
73; Mas- 100». 73
A necessidade da existência de prémios, honoríficos, para as Classes de
Rudimentos, complementares aos atribuídos aos instrumentistas nos
Exercícios Públicos, faz-se sentir a partir do ano de 1842-43.
A cadeira de Canto, que fazia já parte do 2° termo, tem um particular
relevo, num contexto em que o teatro, quer o lírico, quer o declamado,
ocupava um lugar central na vida cultural da cidade. António Porto vai
estar a frente de uma das classes desta cadeira quase até final do período
em estudo, mas a sua prestação vai ser extremamente inconstante. Com
efeito, dado o seu envolvimento com o S. Carlos, gozando amiúde de
licença para ir contratar a companhia de canto em França e Itália, por um
lado, quer o seu carácter instável, aparentemente com reflexos na sua
saúde, por outro, fazem com que seja quase tanto o tempo que está
ausente como o que está a leccionar. Após a brevíssima passagem de
Carrara pela Escola de Música, será Lauretti quem assumirá, em 1844 a
responsabilidade pela aula de Canto do sexo feminino, e, no ano seguinte
o ensino das vozes agudas. Do já referido método de canto de Lauretti
não foi possível encontrar, até ao momento, nenhum exemplar, temos, no
entanto, um conhecimento indirecto dele através de vários documentos,
entre eles de uma carta que ele dirigiu a João Domingos Bomtempo,

7l lbid.
72 lbid.
73 P-Lc, documento manuscrito de 14 de Agosto de 1843.
104
JoAQUIM CARMELO RosA

director da Escola de Música, em 15 de Maio de 1840, a propósito do


processo de aprovação pelo Conservatório da sua obra. Nela refere
Lauretti:

Pareceu-me ser util, e indispensavel fazer conhecer a extenção, que


compete a cada voz; e eis porque puz a f. 9 uma tabella em que isto
se demonstra; [ ... ] Tratei do registro da voz de Contralto em
particular, f. 12; juntando-lhe no fim duas Escalas que servem para
o estudo da união de todos os registros, f. 15. Tambem augmentei
a f. 34 os intervallos da Escala Diatonica desde o de 2a até ao de
13a inclusive. A f. 36 juntei as segnificações [sic] da linha curva. A
f. 53 juntei o estudo dos intervallos de 2a até ao de 15a em
exerci cios chromaticos: [ ... ] os Exercícios preparatorios as Escalas I
Volatas I f. 110: tambem augmentei os Exercícios de colxeias [sic],
e semicolxeias; [ ... ] Tambem renovei o trinado chromatico; e
desde f. 234 até f. 240 se acham outros novos trinados: a f. 276 fiz
uma explicação da sincopa, juntando-lhe os competentes exemplos:
a f. 291 tambem o Presto está demonstrado com o seu exemplo: a f.
299 fiz uma pequena explicação sobre a Musica Sacra; não lhe
juntando exemplo; porque os de Portamento podem servir para este
genero de Musica: augmentei a 3a parte com uma outra
Canzonetta f. 350. A f. 366 está novamente a posição da boca:
[... ]74

Do punho de António Porto também temos um documento, de 12 de


Dezembro de 1848, que ilustra o seu trabalho na aula de Canto:

[ ... ] Logo na abertura das Aulas muitos alumnos concorreram a


matricular-se, sem com tudo haver um só, que o fizesse na Aula de
canto para seguir a profissão, defeito este, que a Authoridade,
então á testa do Estabelecimento, dezejava remediar, pelo unico
meio que há, o de ter alumnos internos, porque só assim poderá
haver um estudo methodico, d'outro modo acontece, que os
Discípulos, logo que tenham um pequeno reportaria de Arias,
Cavatinas, Duettos, etc., para aparecerem nas Sociedades, dão-se
elles mesmos por promptos, e não tornam a matricular-se; hoje
apenas há um alumno matriculado [possivelmente o barítono
Hermogénio Lisboa}, que vae seguindo o estudo com regularidade,

74 P-Lc, documento manuscrito.


105
REVISTA PORTUGUESA DE MUSICOLOGIA

e que se dedica a seguir a profissão, e também quatro alumnos


ouvintes, dois dos quaes tambem dezejam seguir a profissão. - Pela
direcção da Escola de Musica foi mandado adaptar o Methodo de
Domingos Laureti, aliás muito bom; eu na minha humilde opinião
acho que todos os methodos são bons, a maneira porém de os pôr
em pratica, é donde se pode tirar pior, ou menor proveito: eu tenho
até hoje adaptado a maneira de Garcia Pai, [ ... ] assistindo por
muitas vezes ás Lições, que elle dava a um grande numero de
Discípulos, dos quaes não poucos se acham ainda hoje nos
primeiros Theatros, fazendo mui distincta figura; tanto quanto
minhas fracas forças me permittem, é este o systema d' ensino, que
sigo, e oxalá que d' elle eu podesse tirar os bons resultados, que tirou
aquelle meu modello. A Aula de Canto precisa d'um Piano, de
Musicas do sexo masculino, pois que aquellas, que os alumnos
te em, ou foram fornecidas por mim, ou por elles. 75

De assinalar a resistência de António Porto a seguir o método de


Lauretti, contrapondo a este a sua experiência com uma das grandes
autoridades do ensino do canto, Manuel Garcia, pai (1775-1832).
Da aula de Violino, ou Rebeca, e Violeta, há a registar o pedido que
Mazoni fez, procurando conciliar as suas actividades, solicitando que o
horário das suas aulas fosse antecipado, de Inverno, para as 8 horas da
manhã, em vez das 9 horas previstas, «1 ° porque os deminutos ordenados
dos ditos Professores não podem remediar nem aproximadamente a
circunstancias dos mesmos Professores sem o auxilio de outras
dependencias: 2° O Professor Vicente Titus Mazoni está por escriptura
ligado a obrigações no Theatro de S. Carlos que muito difficil será o
dezempenhar de prompto em ambas as repartições.» 76 Sucessivas são as
suas requisições de cordas para Violino e Violeta, assim como o arranjo de
instrumentos e arcos.
Da aula de Violoncelo e Contrabaixo, ou Rabecão pequeno e grande
que, durante uma quantidade muito significativa do período em estudo,
foi dirigida por João Jordani, e depois por Guilherme Cossoul, há a referir
nomeadamente o maior investimento que este último fez na sua carreira
de concertista internacional, pedindo em 6 de Maio de 1862 licença de 6
meses para esse efeito. Compromete-se a deixar a substituí-lo seu pai Jean

75 lbid.
76 P-Lc, Documento manuscrito, de 8 de Outubro de 1839.
106
JoAQUIM CARMELO RosA

Louis Olivier Cossoul. O Secretário da Inspecção Geral servindo de


Inspector apoia essa pretensão, sugerindo que Cossoul visite os
Conservatórios dos Países onde se deslocar, estudando a sua organização· e
desenvolvimento, «e fazendo de tudo um relatorio circunstanciado em que
compare aquelles estabelecimentos ao Conservatorio Real de Lisboa
[proponha as reformas] de que ele carece para se aproximar do estado
florescente dos que lhe serviram de comparação e poder assim mais
· eficazmente exercer a sua acção essencialmente civilisadora.»77 Saliente-se
a referência explicita aos modelos inspiradores estrangeiros, a preocupação
com a actualização do modelo de ensino e a crença nas virtudes
eminentemente educativas da música. Uma sugestão idêntica, aliás, já
tinha sido feita aguando de uma deslocação de António Porto em Maio
de 1852. 78
A aula de Flauta e Flautim será orientada, durante todo o período que
o nosso estudo cobre, por José Gazul Júnior. Num documento datado de
26 de Dezembro de 1848, dirigido ao director da Escola de Música, faz
um historiai da sua entrada em funções no Conservatório, e acrescenta: 79

Sendo esta Aula então nascente, de tudo carecia, e eu fui


requisitando o que para ella era indispensavel, com tal infelicidade
porem, que, mau grado a activa co-operação que ya Exa se dignou
conceder-me, apoiando e conseguindo do Vice Presidente d'aquella
epocha a approvação das minhas requisições, jamais se poude obter
fossem levadas a effeito. Eis o motivo de ainda hoje só têr para o
ensino dos meus discipulos um estropiado livro, falto de folhas, e
que custa já a reconhecer como exemplar do Methodo do
Conservatorio de Pariz. [ ... ] E em verdade admira que tenham
sabido da minha Aula tantos discipulos merecedores de approvação
nos exames escolares, e premiados pelo ]uri nas provas publicas,
sem que para attingirem esse grau de merecimento hajam tido
outros recursos mais do que o meu zelo, o qual me teem levado a
ministrar-lhes musicas minhas, e a condescendencia d' elles em
procurar as que lhes aconselho. [ ... ] seguindo-se o que se pratica

77 P-Lan, MR, ASE, Mç. 3605.


78 Cf. P-Lc, Entrada Livro 4~ 1851-1864.
79 P-Lc, Documento manuscrito. Anote-se, para além das condições deficientes em que se
processava o ensino, a referência ao método do Conservatório de Paris, escola cujos métodos se
tornaram referência fundamental do ensino da música em toda a Europa.
107
REVISTA PORTUGUESA DE MUSICOLOGIA

em alguns paizes, esta Academia prestasse bons instrumentos cuja


importancia recebesse dos alumnos em modicas prestações, que
facilidade não encontrariam elles no estudo, que se lhes torna
difficilimo quando não podem comprar Flauta, ou que, por barata,
é de má qualidade!
Direi agora que a mesa existente na casa que serve de Aula, é
impropria - até indecente; e que eu necessito um ponteiro de
sufficiente tamanho para que sem me levantar aponte a qualquer
sitio da solfa dos discipulos que precise de explicação ou emenda;
evitando assim um movimento continuo na Aula, procedido das
attenções que os estudantes teem para comigo, necessariamente
com muito incommodo d'elles.

A aula de Instrumentos de Latão vai ter a dirigi -la, ao longo do


período em estudo, duas personalidades bem distintas, Francisco
Kuchenbuch, pessoa aparentemente discreta e sem grandes rasgos, e
Francisco António Norberto dos Santos Pinto, nas palavras de Vieira
«tranquillo e methodico sem paixões nem arrebatamentos», 80 mas de
grande envolvimento e dinamismo em termos de vida musical, sendo
referido no Relatório de 1844-45, a propósito da sua aprovação no
concurso para aquela cadeira como «um dos mais acreditados professores
da capital, sendo até excelente compositor; do que tem dado grandes
mostras.» 81 Ao contrário de Santos Pinto, o trabalho de Kuchenbuch
chegou a ser posto em causa. Com efeito, immediatamente após a sua
morte, um Ofício da Inspecção Geral dirigido ao Ministério do Reino,
em 26 de Junho de 1845, informa sobre a frequência da aula de
Instrumentos de Latão, em que «não passavam de vinte os alumnos
matriculados na dita aula em os seis últimos annos lectivos; e por me
parecer estranha tanta deficiencia em uma aula que, segundo as alegações
dos professores da Eschola de Musica, é importantissima em todo o
sentido, mandei ouvir o Conselho de Direccao sobre as causas que
poderiam motivar esta apparente anomalia». 82 A supressão da cadeira, por
razões económicas, chega mesmo a ser proposta. Um Ofício do Conde de
Farrobo, ele próprio um distinto trompista, 83 datado de 17 de Novembro

80 E. VIEIRA, op. cit., vol. 2, p. 178.


81 PLan, MR, ASE.
82 P-Lc, Livro 3, Cópia dos Oflcios da lnspecção Geral dos Theatros 184511850
83 E. Vieira classifica-o de «não só apreciado solista mas habil e seguro executante d' orchestra» (op.
cit., vol. 1, p. 400).
108
JoAQUIM CARMELO RosA

de 1849 enviado ao Ministério do Reino a propósito da contestação de


João Gazul ao Concurso para professor da cadeira, esclarece a situação
reafirmando que:

seria um desdouro para o Conservatorio Real, que aquella Aula


/compreendendo trompa clarim, trombone, cornetta de chaves, e
ophicleyde/ fosse supprimida sendo ella uma das mais uteis e até
indispensaveis não só porque taes instrumentos são a base das
orchestras do Theatro, mas tambem a parte mais essencial das
bandas militares. O estudo dos instrumentos de latão tem
ultimamente merecido tal atenção que M° Fetis, cuja opinião é
respeitada nésta materia, na sua obra que tem por titulo = La
musique mise à la porte de tout le monde = diz elle o seguinte. «Üs
instrumentos de latão, taes como trompas, clarins, trombones, e
ophicleydes teem nestes ultimas tempos adquirido uma importancia
que, antigamente não tinham; Mehul e Cherubini foram os
primeiros que deram o impulso; Rossini completou a revolução,
empregando estes instrumentos e enriquecendo o seu uso, com uma
variedade de combinações e effeitos até ahi desconhecidos.» [... ] sou
de parecer que se deve conservar, e prover quanto antes a ditta
cadeira, na pessoa de Francisco Antonio Norberto dos Santos Pinto,
que com todas as formulas legaes para ella se habilitou, tendo alem
disso dado provas não equivocas da sua aptidão e distincto
merecimento durante o curso gratuito a que, por especial graça de
Sua Magestade, deu commeço em 11 de Dezembro do anno findo. 84

Na sequência da entrada em funções de Santos Pinto, em Janeiro de


1849, é dirigida uma carta ao Duque de Saldanha, então Ministro dos
Negócios da Guerra, solicitando o fornecimento de instrumentos de latão
pelo Arsenal do Exército, referindo que «muitos dos quaes [alunos]
costumam destinar-se ao serviço do exército», 85 e que não havia um só
instrumento à data no Conservatório, nem dinheiro para os comprar. A
resposta surge pela mão do Barão de Vila Nova de Ourém dizendo que
não há no Arsenal instrumentos nem dinheiro par~ os fazer, e que se os
querem terão que os pagar: «Corneta de Chaves, 22$500; Clarim, 7$200;
Trompa, 40$000; Trombão tenor, 24$000; Trombão basso, 24$000;
Ophycleid, 50$680. 30 de Janeiro de 1849.»86

84 P-Lc, Livro 3, Cópia dos Oficios da Inspecção Geral dos Theatros 1845/1850.
85 P-Lan, MR, ASE, Mç. 3547.
86 lbid.
109
REVISTA PORTUGUESA DE MUSICOLOGIA

Um documento datado de 13 de Setembro de 1854, do punho de


Santos Pinto, requisita «para uso da aula de Instrumentos de Latão, das
seguintes obras: 30 Estudos dedicados a Victor de Wan fleury. [?]; 40
Preludias dedicados a Charles Courcier; 12 Caprichos dedicados a E.
Poigné. Tudo Composição de Gallay para Trompa.» 87 Destaque-se a
introdução do Sax-horn ou tuba no currículo da cadeira de Instrumentos
de latão a partir do ano lectivo de 1853-54.
Embora referida aqui em último lugar no contexto das cadeiras do 2°
Termo, a cadeira de Piano era das mais importantes da Escola, sendo
orientada por Francisco Xavier Migone, igualmente professor de todas as
cadeiras do 3° Termo.
Um documento datado de 30 de Dezembro de 1865, de António
Pereira Lima Júnior, um dos substitutos de Migone durante a sua
ausência, refere que «o curso antigo da Aula de Piano éra de 5 annos, e
um de aperfeiçoamento. Total 6. [ ... ] 6° anno, ou de aperfeiçoamento:
Estudos de Chopin, 2 livros contendo 24 Estudo.s, o 2° livro dedicado a
Liszt. Transporte. Reducção de Partituras. Acompanhamento de
numeros.» 88 Poucas informações encontrámos sobre a aula de Piano. Um
documento de 1842 solicita a aquisição de dois livros para as aulas de
Piano, já que metade delas eram dadas por Migone, e as outras pelos
Decuriões. 89
O acesso ao 3° termo tinha a precedência do 1° ano da aula de Piano,
constando da aula de acompanhamento de numeras e transportes e a aula
de Harmonia. A aula de Harmonia era precedência para as aulas de
Contraponto e Composição, que constituiam o 4° termo.
Regressando ao decorrer do ano lectivo, estava contemplada a
realização regular de sabatinas através de um Edital· de 2 de Outubro de
1840. Inicialmente estavam previstos dois tipos de sabatinas, as semanais
e as mensais, mas a breve trecho vão ficar reduzidas apenas à
periodicidade mensal. Desta actividade não temos muitas referências,
valendo no entanto a pena deixar duas notas. Uma que se refere à Ordem
emitida pelo Inspector Geral Joaquim Larcher, em 2 de julho de 1842,

87 P-Lc, documento manuscrito. Jacques François Gallay (1795-1866), professor do Conservatório


de Paris e autor de numerosas obras, nomeadamente de carácter didáctico, para trompa. F oi o
último grande virtuoso francês de trompa natural.
88 lbid.
89 Cf.lbid.

110
JoAQUIM CARMELO RosA

repreendendo Francisco Gazul por faltar duas vezes seguidas às ditas


sabatinas. E outra, relacionada com a visita que a Rainha e o Rei, o
Príncipe D. Pedro, os Infantes D. Luís e D. João, e a Infanta D. Maria
Ana, fizeram ao Conservatório em 3 de Junho de 1850, para presenciar
«os exercicios mensaes», na designação da Imprensa da. época. Dos
periódicos de então a Revista Universal Lisbonense é a que faz uma
descrição mais detalhada do evento, referindo:

Todas as peças executadas eram classicas. Entre outras a inspirada


salve regina de Newman, um bello effeito, pela severa afinação com
que foi entoada. A aula de instrumentos de latão, ao cabo de um
anno de estabelecimento, deu provas de que é perfeitamente
dirigida. Os exercícios duraram proximamente duas horas.
Assistiram alguns socios. SS.MM. deram mostras de satisfação, e
El- Rei na sua pratica com os professores provou que é distincto
cultor da difficil e formosa arte da musica. 90

Várias momentos festivos pontuavam a vida do Conservatório como


era o caso das celebrações, a 7 de Agosto, do dia de S. Caetano como
Santo Padroeiro do Conservatório. Da Festa de S. Caetano de 1843
conhecem-se ecos na imprensa periódica. A Revista Universal Lisbonense
descreve assim a ocasião: «0 concurso foi muito e lusido e a solemnidade
mui decente. - A missa, Kirios e Gloria, composição do Sr. Migóni [sic]
[ ... ] teem sido elogiados pelos da arte e agradaram aos que o não são: -é
porque o Sr. Migóni possue ingenho, gosto e cultura, e sobre tudo respeita
as impreteriveis barreiras que a razão e a philosophia teem levantado entre
a musica thetral e ecclesiastica. [ ... ] Os muitos discipulos que entraram na .
execução, tanto instrumental como vocal, mórmente a Sra D. Clementina,
houveram-se perfeitamente.» 91
O encerramento do ano lectivo estava previsto, nos Estatutos, para o
dia 30 de Agosto. Tal, no entanto, raramente acontecerá, sendo a
tendência, a partir de meados dos anos quarenta, para terminar as aulas a
15 de julho. A partir dessa data começavam os preparativos para os
exames, que a partir de 1859 tendem a fixar o dia 1 de Agosto como data
do seu início. Todos os alunos de todas as disciplinas só podiam transitar
de ano após a realização de um exame.

90 Revista Universal Lisbonense, n° 35, Tomo II, 2a série, 6 de Junho de 1850, p. 427.
91 lbid, n° 47, vol. II, Série IV, 10 de Agosto de 1843, p. 548.
111
REVISTA PORTUGUESA DE MUSICOLOGIA

A última actividade do ano lectivo eram os Exercícios Públicos. Eram o


coroar glorioso do ano lectivo e a grande montra do trabalho que se
produzia no Conservatório. A sua preparação incluía a continuação das
aulas dos alunos que se íarn apresentar nos Exercícios Públicos, depois do
seu encerramento para a generalidade dos alunos. Não havia data pré-
determinada para a sua realização, decorrendo, a maioria daqueles que
conseguimos confirmar a data, no mês de Setembro, o mês de férias.
A despesa feita com os prérnios a serem atribuídos aos alunos era
determinada por lei, ano a ano. É curioso notar que desde o momento em
que a Escola de Declamação deixa de participar nos Exercícios Públicos,
desde finais dos anos quarenta, até ao final do período em estudo, a verba
destinada aos prérnios das restantes duas escolas se mantém inalterada:
180$000 réis. Inicialmente a verba era para ser distribuída
equitativarnente pelas 3 escolas. Entretanto, dado o sucesso da Escola de
Música e o definhamento das outras duas, particularmente notório no que
dizia respeito à Escola de Declamação, até possivelmente pelas
expectativas que tinham rodeado a sua criação, essa situação vai ser posta
rapidamente em causa. A participação dos sócios no júri de adjudicação
dos prérnios vai-se tornando, com o decorrer dos anos, cada vez mais
problemática. Assim nos Exercícios Públicos de 1859-60 não há
convocatória para Conferência Geral, 92 e os doze sócios que compõem o
júri de adjudicação de prérnios são avisados disso por circular. Três deles,
José Jacinto Tavares, João Baptista Klantau e Francisco Gaspar Lahrneyer,
pedem dispensa de comparecer. 93
Conhecemos vários locais onde se realizaram Exercícios Públicos,
desde o Teatro do Salitre, passando pelo Teatro da Rua dos Condes, até
ao Salão Nobre do Teatro de S. Carlos. A realização que escolhemos
corno exemplo prático ocorreu no edifício do próprio Conservatório, aos
Caetanos, que parece ter sido um lugar que, a partir de meados dos anos
40, passou a ser o eleito para esse efeito. Frederico Correia de Lacerda, no
Relatório de 1845, refere que «os exercicios publicas dos alurnnos das trez
escholas do Conservatorio fizeram-se com a devida solernnidade, e a elles
concorreram cada noite perto de seiscentas pessoas das primeiras classes

92 As Conferências Gerais eram as reuniões magnas da Academia do Conservatóri? onde, entre


outros assuntos, se escolhiam os sócios que fariam parte dos júris de exames e exercícios públicos.
93 Cf. P-Lc, Entrada LÍvro 4~ 1851-1864.
112
da sociedade, as quaes por muitas vezes romperam em applausos,
mostrando-se sempre mui satisfeitas do que observavam. Não comportava
mais nurneroza reunião a estreiteza da sala, que outra causa não é, que um
cruzeiro de dous corredores !». 94 Este sucesso corrobora o que se tinha
dado no ano anterior, e que o mesmo Lacerda refere num Ofício ao
Ministério do Reino, de 6 de Setembro de 1844: «Em ambos estes actos
houve notavel concorrencia de espectadores, tornando-se mister o
estabellecirnento de urna guarda de policia que obstasse á entrada de
grande número de pessoas que já não poderiam caber na sala.» 95 No
Relatório respeitante ao ano de 1843 esclarece-nos a questão da opção pela
Conservatório: «Os exercicios publicas fizeram-se com a possivel
solernnidade na pequena sala d'este Estabellecirnento, por não estar o
cofre habilitado para as despezas que se exigiam, para que fossem feitos,
corno nos annos anteriores, em algum dos theatros da capital.» 96 O
programa compunha-se de árias de óperas de compositores italianos como
Rossini, Mercadante, Donizetti, Pacini, Ricci, Mario Aspa e Ernesto
Vera, fantasias para diversos instrumentos solistas com acompanhamento
de piano ou de um quarteto de cordas - urna delas da autoria de Schubert,
as outras de compositores hoje praticamente esquecidos, corno Mayseder,
Bianchi, Osborne, Drouet e, o professor da Escola, João Jordani- e ainda,
a abrir cada urna das partes do recital, dois coros interpretados pelos
alunos das aulas de rudimentos: o primeiro da ópera Marin'Faliero de
Donizetti, o segundo de A Criação de Joseph Haydn, provavelmente em
italiano. 97 A realização desta última obra em contexto escolar inspira-se
provavelmente no exemplo de Bonifazio Asioli, que, no início do século
XIX, realizou com os seus alunos a primeira audição da obra em Itália.
Os Exercícios Públicos foram em seguida decaindo e por meados da
década de cinquenta a reforma do Conservatório é urna necessidade
constantemente referida pelos jornais nas suas notícias, os Inspectores
Gerais nos seus Relatórios, os professores nos seus Ofícios. O pianista
polaco Antonio de Konstky, então de passagem por Lisboa, e segundo
Vieira apoiado pelo Conde de Farrobo, 98 faz publicar na Revista Universal

94 P-Lan, MR, ASE.


95 lbíd.
96 lbíd.
97 lbíd.
98 Cf. E. VIEIRA, op. dt., vol. 2, p. 8.
113
REVISTA PORTUGUESA DE MUSICOLOGIA

Lisbonense um Projecto de melhoramentos para o Conservatorio Real de


Lisboa. 99 Nele oferece a sua colaboração, e propõe a criação de um modelo
de concertos sinfónicos, à semelhança dos instituídos por Habeneck no
Conservatório de Paris, pretendendo fazer ouvir repertório e permitir aos
professores e alunos do Conservatório tocarem-no, mediante uma
retribuição extra.
Kontsky reconhece além disso o talento de muitos dos professores do
Conservatório de Lisboa mas lamenta a desadequação e má qualidade dos
métodos usados, principalmente no piano. 100 Termina defendendo o
primado da formação do «bom musico», aquele que conhece as obras dos
«grandes legisladores da musica», que vão de Palestrina e Bach, passando
pelos três mestres do Classicismo, até Mendelssohn, Hummel e
Clementi, de modo «a que se possa tocar a sua musica no momento em
que se exija». 101 Defende que para se ser compositor «é necessario
conhecer perfeitamente os generos seguintes: - estylo de egrf!)a ou religioso;
estylo synphonico, ou musica de orchestra,· estylo symphonico e chorai, ou
oratorias: estylo dramatico ou operas, etc.». 102
Em relação ao acolhimento que este documento recebeu por parte das
instâncias oficiais, Vieira refere que «encontrou nas regiões
administrativas aquella resistencia passiva que por meio de hypocritas
amabilidades costuma anniquilar qualquer boa vontade que por acaso
possa perturbar il dolce far niente official.» 103

Conclusão

Uma comunicação apresentada à Academia Real das Ciências, em


]unho de 1858, a propósito da Instrucção pública em Portugal referia-se
ao trabalho desenvolvido pelo Conservatório dizendo que

99 RevÍsta UnÍversal LÍSbonense, n° 47 e 48, Tomo 1, 2a Série, 27 de Setembro de 1849 e 4 de Outubro


de 1849, pp. 561 e 562, e 572 e 573.
100 Jbjd.
101 lbÍd.
102 Jbjd.
103 E. VIEIRA, op. cH., vol. 2, p. 8.
114
JoAQUIM CARMELO RosA

Se a pureza da linguagem, e as galas do estilo, como as sabia


manejar o Visconde de Almeida Garrett, bastassem para dar vida
prospera a um estabelecimento desta ordem, de certo que o Officio
do insigne poeta, que serve como de relataria ao Decreto, ter-lha-
hia dado; mas infelizmente não é assim, outras condições são
necessárias; e a essas é, que se não attendeu; de sorte que esta
instituição mal fadada, depois de tantos annos de existencia, poucos
discipulos terá produzido que pelo menos chegassem a tocar as
ráias da mediocridade. 104

Já em 1892, Manuel Ramos diz que «o Conservatorio não deu um


unico artista real. O ensino particular tem feito o pouco ou o muito que
ainda temos.» 105 Em que medida é que estes pontos de vista sobre a
realidade do Conservatório, mesmo sendo fruto de determinados
contextos e representando sem dúvida uma leitura com algum eco na
sociedade portuguesa, correspondern à realidade? Que efeitos, que marcas,
que resultados, que influência teve o trabalho do Conservatório durante o
período em estudo na vida musical portuguesa desta época e de épocas
vindouras? O Conservatório era apenas sombra ou projectava alguma luz?
Urna das relações que sobressai, observando as ligações do
Conservatório com instituições da vida musical lisboeta, é a que ocorre
com o Teatro de S. Carlos, enquanto principal instituição musical do país
na época ao nível da produção de eventos musicais. Começando desde
logo pelo corpo docente, em que um número significativo de professores
tinha um segundo emprego, quiçá primeiro, no Teatro. Migóne, Porto,
Masoni, Jordani, Gazul Júnior, Santos Pinto, Cossoul aí trabalharam.
Muitos dos seus alunos foram contratados, mesmo ainda enquanto
estudantes, para coristas -do S. Carlos. Também a orquestra do Teatro
absorveu número significativo de ex-alunos do Conservatório. Sinal da
importância dada ao S. Carlos na orientação acadérnica da Escola de
Música é o Ofício de 6 de Novembro de "1844 do director da escola
«designando para frequentar o camarote de S. Carlos, Clernentina [Rosa
Cordeiro], [Francisca Adelaide] Freire, [Emília Carlota] Zenoglio e
[Mariana Adelaide da Silva Gaião] Gayão», 106 as quatro mais distintas

104 João Ferreira CAMPOS, Apontamentos relativos à Instrucção Publica apresentados á Academia Real das
Sciencias em}unho de 1858pelo Socio.. ., pp. 27 e 28.
105 Manuel RAMOS, A Musica Portugueza, Porto, p. XXXI.
106 P-Lc, Livro 2° de Entrada, de 1841 a 1845, do Conservatorio Real de Lisboa e lnspecção Geral dos Theatros.
115
REVISTA PORTUGUESA DE MUSICOLOGIA

alunas da aula de Canto desse ano, numa primeira referência a uma


colaboração cuja tradição ainda hoje se mantêm.
Noutras instituições também alunos e ex-alunos do Conservatório
ocupavam posições de relevo tanto em termos qualitativos como
quantitativos, como por exemplo nas orquestras dos Teatros D. Maria II,
D. Fernando e Rua dos Condes. O magnífico trabalho de Luís Augusto
Palmeirim sobre a situação do Conservatório no início da década de
oitenta fornece-nos elementos preciosos para sopesarmos o extraordinário
impacto da Escola de Música na vida musical. Aliás no quadro de 14
professores da Escola de Música nessa altura, 7 tinham sido alunos no
período que estudámos. 107
No final do período aqui tratado o Conservatório tinha como único
projecto consistente a Escola de Música que, apesar de todas as
contrariedades, continuava a ser uma instituição prezada e respeitada
pelos profissionais da música que procuravam entrar nos seus quadros,
sinal de reconhecimento social e artístico. Insofismável é o abandono da
causa musical por parte dos poderes públicos - apesar dos músicos
também nem sempre terem sabido zelar da melhor forma pelos seus
interesses - enquanto, tal como hoje, «mutatis mutandis», os símbolos
máximos do poder, a Família Real, tinham a música em alta estima, não
só como ouvintes mas também, nalguns casos, como dedicados
praticantes. Desta forma o Conservatório Real de Lisboa, e a Escola de
Música em particular, enquanto instituição fundamental do complexo
musical português, viram-se privados de realizarem plenamente o projecto
da sua fundação, o de ser uma instituição nacional líder nas questões
musicais. Num quadro desfavorável de «investimento envergonhado» em
que o produto estrangeiro tinha a primazia, o Conservatório não deixou,
porém, de se afirmar cofno uma instituição credível contribuindo
decisivamente para a formação de destacados músicos da segunda metade
do século, entre os quais se contam personalidades como Ernesto Vieira e
Miguel'angelo Lambertini, entre outros.
107 Eram eles Eugénio Ricardo Monteiro de Almeida (Harmonia e Contraponto), Joaquim José
Garcia Alagarim (Rabeca), Francisco de Freitas Gazul (Rudimentos), Manuel Martins
Soromenho (Ajudante de Rudimentos), João Eduardo da Matta Júnior (Ajudante de Piano),
Amelia Guilhermina Alegro (Ajudante de Piano) e Pedro Alexandrino Roque de Lima
(Ajudante de Rabeca) (cf. Luiz Augusto PALMEIRIM, Memoria Ácerca do Ensino das Artes Scenicas
e com Especialidade da Musica, p. 42).
116

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