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DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO — GILLES DELEUZE E FELIX GUATTARI 91

Gilles Deleuze e Felix Guattari:


heterogênese e devir

GUGA DOREA

Resumo Abstract

O objetivo deste texto é buscar com- The objective of this article is to


preender como o chamado cidadão mi- understand as the so-called citizen of the
diatizado pode estar à mercê de processos press can be at the mercy of captures pro-
de captura por parte da mídia eletrônica. cesses on the part of the electronic media.
Até que ponto a dinâmica midiática con- To what extent can the dynamics
temporânea pode estar produzindo enun- contemporary mediatic be producing
ciados que se pretendem verdadeiros e statements that are intended to be true and
consensuais, materializando-se como um consensual, being materialized as a
poderoso instrumento de convencimento powerful instrument of conviction and of
e de sedução de corpos? Concomitante- seduction of bodies? Concomitantly to that
mente a essa possibilidade — e sem o in- possibility — and without the intention of
tuito de transformar tanto Deleuze como transforming as much Deleuze as Félix
Félix Guattari em um novo modelo ou para- Guattari in a new model or paradigm and
digma e sim falar através deles e de outros yes to speak through them and of other
pensadores citados neste texto —, preten- thinkers mentioned in that text —, I also
do também demonstrar que há sempre intend to demonstrate that there is always
uma coexistência entre essa captura e a a coexistence between that capture and the
emergência de linhas de fugas desterrito- emergency of lines of escapes to
rializantes. exterritorial.
Palavras-chave: sociedade de controle; Key-words: control society; electronic
mídia eletrônica; heterogênese; devir; li- media; heterogenesis; become; escape
nhas de fuga. lines.

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O mercado capitalista é contrariado pensamento e criação. A globalização


pelas exclusões e prospera incluindo, do planeta trouxe inusitados impasses
em sua esfera, efetivos sempre para o homem, já que promessas orto-
constantes. O lucro só pode ser doxas de liberdade política e igualda-
gerado pelo contato, pelo compromis-
de social se metamorfosearam em de-
so, pela troca e pelo comércio. A
realização do mercado mundial sigualdades profundas, incertezas e
constituiria o ponto de chegada medos em relação ao futuro.
dessa tendência. Em sua forma ideal, O capitalismo democrático, como
não há um fora no mercado: o afirmou Deleuze, sempre esteve “to-
planeta inteiro é seu domínio.1 talmente comprometido nesta fabrica-
Michael Hardt ção da miséria humana”, enquanto o
intitulado “socialismo real” não dei-
xou de ser um totalitarismo piramidal
e hierárquico, afastando-se da tão al-
Gilles Deleuze deixou um desafio mejada eqüidade social. A mídia, em
dos mais instigantes para quem deseja todo esse processo de rompimento de
pensar as reais transfigurações dester- certezas, buscou investir em novas ver-
ritorializantes2 pelas quais passou a so- dades, supostamente absolutas e uni-
ciedade contemporânea. No âmbito versais.
mundial, o capitalismo de mercado van- Nesse contexto, a nossa vida so-
gloriou-se como vencedor de um em- cietária pode estar vivenciando a pos-
bate midiático, realizado entre os sé- sibilidade de engendramento de uma
culos XIX e XX, contra o outro lado da dinâmica de investimentos intermiten-
moeda — o socialismo de Estado —, tes nas relações humanas e de sedução
que em nome da busca por uma igual- de corpos telemidiatizados. É possível
dade social esmagou a liberdade de afirmar, inclusive, que a derrocada do
socialismo tenha significado o desapa-
recimento de um inimigo visível e pe-
1. HARDT, M. A sociedade mundial de controle. In: rigoso e a suposta vitória da democra-
ALLIES, Éric (org.). (2000), Gilles Deleuze: uma cia liberal, abrindo espaço para que o
vida filosófica. Rio de Janeiro, Editora 34, p. 361.
telejornalismo brasileiro encontrasse
2. Segundo a ótica apresentada por Deleuze e
Guattari, o capitalismo contemporâneo vive em brechas para enunciar temáticas antes
um processo intenso de desterritorialização. O ter- conectadas aos espectros ideológicos
ritório, a partir desse contexto, não deve ser con- de esquerda, tais como cidadania, jus-
fundido com um mero espaço geográfico. Ele pode
tiça social e participação política.
ser compreendido por uma etnia, uma identidade
ou mesmo um simples modo de conceber a vida, Até pelo menos o advento da Se-
apropriado existencialmente por um sujeito ou gunda Guerra Mundial, a noção de pro-
grupo. Significa dizer que o sistema capitalista é gresso procurou disseminar a idéia de
capaz como ninguém de liberar desejos e ações que a humanidade estava subdividida
para, em seguida, controlá-los (descodificação e
desterritorialização de um lado e sobrecodificação entre “civilizados” e “não civilizados”.
reterritorializante de outro). Sobretudo entre o século XVIII e início

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do XX, mostrou-nos com muita clareza sistema cedeu lugar a uma aparente
Michel Foucault, o adestramento do participação do cidadão-consumidor,
corpo passou a ser uma estratégia fun- concebido agora como um corpo útil
damental para a pacificação da socie- e cúmplice da lógica vigente. A
dade. É simbologia midiática, criada em tor-
no da queda do Muro de Berlim, pas-
(...) o corpo da sociedade que se torna, sou a engendrar o que Balandier de-
no decorrer do séc. XIX, o novo princí- nominou uma nova realidade tele-
pio. É este corpo que será preciso pro- imagética ou, melhor dizendo, do con-
teger, de um modo quase médico. (...). senso em torno da órbita capitalista
Serão aplicadas receitas terapêuticas
de consumo.
como a eliminação dos doentes, o con-
trole dos contagiosos, a exclusão dos
delinqüentes. A eliminação pelo suplí- O fracasso do comunismo na Europa
cio é, assim, substituída por métodos oriental foi fatal para esse Terceiro
de assepsia: a criminologia, a eugenia, Mundo já enfraquecido: arruinou aqui-
a exclusão dos “degenerados”.3 lo que mantinha a aparência de um
vasto conjunto ou campo de “forças
progressistas”. [...]. Desse modo, o fra-
A sociedade disciplinar investiu na
casso do terceiro-mundismo revolucio-
normalização dos corpos com base no nário e a degradação, que não passa-
confinamento, o que levou à formula- va de um álibi para o monopólio da
ção de rígidas e meticulosas regras de classe estatal e de seus aliados, acaba-
atuação, além de gerar, em seu contra- ram por criar o desejo daquilo que ha-
fluxo, constantes abalos por meio de via apresentado como aspectos do mal:
resistências. Mas logo após a segunda a democracia pluralista, a mercadoria
guerra, de acordo com Deleuze, 4 ini- e o dinheiro, a cultura “alienante”.5
ciou-se uma gradativa e contínua pas-
sagem da sociedade disciplinar, des- A partir dessa dinâmica, novas rea-
crita por Foucault, para o que ele cha- lidades estão sempre sendo cons-
mou, baseado na descrição de truídas e reconstruídas, produzindo
Burroughs, de sociedade de controle. opiniões públicas ou reforçando ou-
Não se trata de dizer que a socie- tras, de acordo com os interesses de
dade de controle eliminou por com- um modelo subjetivo de vida cada vez
pleto a necessidade da disciplina, mas mais exigente e competitivo. Tal pro-
que o capitalismo entrou na órbita on- cesso também vai ao encontro do que
dulante do controle, no qual a possí- Balandier intitulou tele-realidade, em
vel docilidade do homem diante do que a mídia tem o poder de simular a
imagem de um mundo possível, tal-

3. FOUCAULT, Michel. (1978), Microfísica do po-


der. Rio de Janeiro, Grall, p. 145. 5. BALANDIER, George. (1999), O Dédalo: para
4. DELEUZE, Gilles. (1992), Conversações, Rio de finalizar o século XX, Bertrand Brasil, Rio de Janei-
Janeiro, Editora 34. ro, pp. 15-16.

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vez até fabricando a forma pela qual pitalismo de mercado e o imperialista


as pessoas devem desejar a sua pró- ou monopolista — é que no pós-mo-
pria existência. dernismo nada escapa ao sistema. Para
Ao informar, a mídia é capaz de o autor, é a
gerar paixões e imaginações, libertan-
do aparentemente o indivíduo de seu (...) mais pura forma do capital que ja-
controle para buscar capturá-lo, logo mais existiu, uma prodigiosa expan-
em seguida, mantendo-o sob sua in- são do capital que atinge áreas até en-
fluência. É diante disso, segundo o au- tão fora do mercado. (...). Nesse aspec-
to, sentimo-nos tentados a falar de algo
tor, que ela produz um presente re-
novo e historicamente original: a pe-
cheado de catástrofes e de carências netração e colonização do Inconscien-
concebidas como falta de algo maior te e da Natureza, ou seja, a destruição
para, depois, idealizar um futuro mais da agricultura pré-capitalista do Ter-
promissor, recheado de glorificações ceiro Mundo pela Revolução Verde e a
lucrativas, desde o ponto de vista fi- ascensão das mídias e da indústria da
nanceiro até o emocional. O indivíduo, propaganda.7
ainda partindo dessa premissa, é pas-
sível de acreditar que a vitória de al- Como destacou Jameson, o proces-
gum personagem midiatizado, que so midiático intervém na vida e no co-
pode ser um esportista ou artista, “po- tidiano dos seres humanos, em sua
deria ter sido a sua”. Festejando-se a corporeidade, além de implantar uma
vitória da pretensa liberdade de ex- simbiose entre mercado e mídia, na
pressão, a figura do vencedor se trans- qual todos são considerados, mesmo
formou no principal coadjuvante do que imageticamente, consumidores/ci-
espetáculo midiático. dadãos organizados ou organizáveis.
Em linhas gerais, o capitalismo vive um
A televisão satisfaz assim o direito de momento inusitado, em que as “forças
viver a transgressão, mas por delega- ameaçadoras” do passado estão em
ção; nela se está através das cópias e pleno processo de “desarranjo” ou mes-
dos dublês. 6 mo foram neutralizadas pelo avanço
do “capital global”.
Segundo Fredric Jameson, signifi- Anseia-se, na prática, pela inclusão
ca dizer que a contemporaneidade dos indivíduos no mercado consumi-
embarcou em uma terceira fase do ca- dor, além de um mero investimento na
pitalismo através da informação: a do adesão pacífica e dócil dos corpos, co-
pós-modernismo, que tende a dissipar mo disse Foucault. A distância entre o
cada vez mais a fronteira entre o den- dentro e o fora passa a não fazer mais
tro e o fora. A diferença básica entre
os dois estágios anteriores — o do ca-
7. JAMESON, F. (1997), Pós-Modernismo: a lógica
cultural do capitalismo tardio, São Paulo, editora
6. Ibid., pp. 138-139. Ática, p. 61.

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sentido na sociedade de controle, pois conseqüente servidão maquínica, 10 na


é o mesmo que buscar essencialmente qual procura-se interiorizar e recom-
a hierarquização de práticas e desejos, por modos de percepção e sugestões
podendo estar se verificando a passa- coletivas. Como bem sublinhou Pelbart, 11
gem do que Foucault descreveu como o capitalismo, pela primeira vez em sua
assujeitamento, no âmbito da socieda- história, talvez esteja realmente se tor-
de disciplinar, para uma sujeição social, nando imanente, cada vez mais próxi-
no campo do controle midiático. mo de algo semelhante a uma fluidez
absoluta, nômade e inclusiva.
O que separa essencialmente o homem Chegamos então a um dos aspec-
da máquina é o fato de ele não se dei- tos que melhor exemplifica a socieda-
xar explorar passivamente como ela. de controle: o de que o mundo atual
Pode-se admitir que, nas atuais condi- passou a navegar pela imanência dos
ções, à exploração concernem, em pri-
chamados espaços lisos desterritoria-
meiro lugar, os agenciamentos
maquínicos — tendo o homem e suas
lizantes, enquanto o caracterizado es-
faculdades se tornado partes integran- paço estriado pertencia ao tempo em
tes destes agenciamentos. 8 que o que predominava essencialmen-
te era a sociedade disciplinar.
O que Guattari denominou servo-
mecanismo social tende a “agenciar ele- Certamente, a estriagem subsiste em
mentos infrapessoais e infra-sociais”9 suas formas mais perfeitas e severas
(já não é apenas vertical, mas opera em
dos seres humanos agora maquínicos,
todos os sentidos); não obstante, reme-
diferenciando-se de uma servidão for-
te, sobretudo, ao pólo estatal do capi-
çada e, muito menos, voluntária. A pró- talismo, isto é, ao papel dos modernos
pria mídia, e mais especificamente a te- aparelhos de Estado na organização
levisão, é um exemplo disso, na medi- do capital. Em compensação, no nível
da em que os telespectadores não são complementar dominante de um capi-
mais meros consumidores de mensa-
gens decodificadas e auto-suficientes
10. “Somos submetidos pela televisão como má-
e sim peças conectadas às suas imagens, quina humana na medida em que os telespec-
isto é, são partes constituintes de seu tadores não são mais consumidores ou usuários,
enunciado midiático. nem mesmo sujeitos que supostamente a ‘fabri-
A mídia, diante desse processo, é cam’, mas peças componentes intrínsecas, ‘entra-
das’ e ‘saídas’. [...]. Na servidão maquínica há
capaz de controlar, manipular e insi- tão-somente transformações ou trocas de infor-
nuar sobre formas de vida subjetivas e mações das quais umas são mecânicas e outras
individuais, garantindo a captura e uma humanas”. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix.
(1997), Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de
Janeiro, Editora 34, v. 5, pp. 158-159.
8. GUATTARI, Félix. (1987), Revolução molecular: 11. Ver PELBART, Peter Pál. (2000), “Claustro-
pulsações políticas do desejo, São Paulo, editora fobia contemporânea”. In: A vertigem por um fio:
Brasiliense, p. 197. políticas da subjetividade contemporânea, São Paulo,
9. Ibid. Iluminuras.

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talismo mundial integrado (ou antes gido mais concretamente no final do


integrador), um novo espaço liso é pro- século XX. É entre as décadas de 1980
duzido onde o capital atinge sua velo- e 1990 que surge um novo conceito de
cidade “absoluta”, fundada sobre como deve ser a estrutura interna da
componentes maquínicos, e não mais
empresa moderna. Começa-se a pen-
sobre o comportamento humano do
trabalho. As multinacionais fabricam sar em uma organização empresarial
um espécie de espaço liso desterrito- cuja dinâmica interna não se define mais
rializado onde tanto os pontos de ocu- pela rígida hierarquia e autoridade pi-
pação como os pólos de troca tornam- ramidal, períodos nos quais concepções
se muito independentes das vias clás- de saber e do poder se baseavam na
sicas de estriagem. 12 dicotomia disciplinador/disciplinado.
Segundo Sennett, 15 a palavra de or-
O Capitalismo Mundial Integrado dem da empresa contemporânea não é
(CMI),13 a partir daí, dispõe para si de mais da hierarquização fixa e imutável
um espaço essencialmente liso, em que e sim a da comunicação transversal em
o capital alcança uma velocidade ilimi- rede. Inexiste, ou pelo menos é substan-
tada extremamente maquínica e cialmente minimizada, a chamada cor-
desterritorializante. reia de transmissão vertical, costumei-
ramente emperrada pela burocracia,
O poder do capitalismo está precisa- em que o trabalhador recebia ordens
mente no fato de a sua axiomática nun- unilaterais em uma pirâmide vertica-
ca se saturar, sendo sempre capaz de
lizada regiamente determinada.
acrescentar mais um axioma aos axio-
A rede, ao contrário dos entraves
mas precedentes. O capitalismo defi-
ne um campo de imanência e preen- burocráticos, flexibiliza as relações so-
che-o constantemente. 14 ciais e profissionais. As discussões de
negócios — muitas realizadas fora da
O controle e a empresa empresa — se tornaram supostamente
mais íntimas e mútuas, gerando uma
Ao que tudo indica, a empresa da “lealdade” maior entre as partes, inde-
sociedade de controle parece ter emer- pendentemente da posição hierárqui-
ca em que cada um se situa no âmbito
12. DELEUSE, Gilles e GUATTARI, Félix. op. cit.
da empresa.
pp. 202-203. A autoridade seca e intransigente
13. Esse termo foi criado por Félix Guattari para cedeu lugar para o trabalho em equi-
dizer que há uma forte tendência do capitalismo pe e à ausência da rotina burocrática
contemporâneo em buscar integrar os fluxos des-
territorializantes que sempre estarão escapando
que, segundo essa versão, tende a de-
de seus tentáculos reterritorializantes. Ver, entre sestimular o empregado e a emperrar
outros, GUATTARI, Félix, (1993), Três ecologias.
Campinas, Papirus.
14. DELEUSE, Gilles e GUATTARI, Félix. (s/d). 15. Sennet, Richard. (2000), A corrosão do caráter:
O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Lisboa, conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalis-
Assírio & Alvim, p. 261. mo, Rio de Janeniro, Editora Record.

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a produção, que dever ser cada vez Diante dessa inusitada realidade, o
mais contínua e veloz. A palavra de controle se estabelece pela estabiliza-
ordem é abolir o tédio e estimular a ção de metas a serem rigorosamente
vontade de trabalhar pela empresa, cumpridas, além de um espaço tempo-
intensificando-se o processo produtivo ral cada vez mais reduzido para tal
em função da possibilidade de um empreendimento. A forma como essa
mercado consumidor mais abrangente meta vai ser cumprida é o que menos
e exigente. interessa nessa dinâmica de comunica-
A “concentração sem centralização” ção em rede. Ora, no instante em que
leva os trabalhadores a supostamente o trabalhador se concebe como respon-
agirem em função do que eles realmente sável direto por essas metas e pelas
pensam, tanto no âmbito da empresa tomadas de decisão, aparentando uma
como de suas vidas (territórios existen- suposta liberdade de ação entre o man-
ciais) aparentemente particularizadas. dar e o obedecer, gera-se a possibili-
A resolução quanto à tomada de deci- dade de um controle mais sutil e eficaz
sões passa a ser considerada livre, sig- sobre seus passos.
nificando ainda um poder ilusoria- O risco é deixar de agir e ser con-
mente maior das atividades inerentes cebido como passivo, antiprodutivo e
a cada setor produtivo ou administra- pouco competitivo no mercado de tra-
tivo da empresa, sem a presença cons- balho, tornando-se uma peça descar-
tante de uma força superior acompa- tável para a empresa. Dessa forma, o
nhando e enunciando palavras de or- medo do desemprego passa a ser utili-
dens expressas e inquestionáveis. zado como uma arma essencial para que
se estabeleça o autocontrole. E não é
Uma das afirmações em favor da nova só isso. O interesse, no momento atual,
organização do trabalho é que descen- é o de sintonizar as partes inteligentes
traliza o poder, quer dizer, dá às pes- do corpo com a produção, estabelecen-
soas nas categorias inferiores dessas do-se
organizações mais controle sobre suas
atividades. Certamente é uma afirma-
(...) todo um sistema de demanda que
ção falsa, em termos das técnicas em-
perpetua a dependência inconsciente
pregadas para desmontar os velhos
em relação ao sistema de produção. 17
colossos burocráticos. Os novos siste-
mas de informação oferecem um qua-
dro abrangente da organização aos Sem a necessidade do mando in-
altos administradores de uma forma flexível, autoritário e, muitas vezes,
que deixa o indivíduo em qualquer opressivo, o objetivo é apostar em um
parte da rede pouco espaço para es- corpo supostamente participativo, cuja
conder-se. 16

17. GUATTARI, Félix. (1987), Revolução molecular:


pulsações políticas do desejo, São Paulo, editora
16. Ibid. pp. 63-64. Brasiliense, p. 13.

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dinâmica interna do mundo empresa- rão que estar aptos a intervir na


rial leva as linhas de produção a se melhoria da produtividade, sendo res-
transformarem em um espaço de edu- ponsáveis pela qualidade do produto
cação contínua, desenvolvendo-se a ser fabricado. Nesse aspecto, eles não
uma conexão direta entre a produti- são mais encarados como simples mei-
vidade — que deve ser cada vez mais os de produção ou força de trabalho e,
fortalecida e rápida — e o mercado sim, como integrantes de uma comuni-
consumidor. Estamos diante de um ca- dade de iguais, com objetivos, desejos
pitalismo focado essencialmente no e rituais em comum.
cliente, no mundo do mercado midiáti- Nessa empresa do futuro, e tam-
co e do consumo. bém em sua exterioridade, as referên-
cias básicas são as rígidas exigências da
Já não é um capitalismo dirigido para pirâmide hierarquizada e segmenta-
a produção, mas para o produto, isto rizada de um processo que é vendido,
é, para a venda ou para o mercado. (...). pelo sistema, como sinônimo de suces-
As conquistas do mercado se fazem por so e de felicidade interna. Nesse ins-
tomada de controle e não mais por for-
tante, o marketing tende a se transfor-
mação de disciplina. 18
mar em um importante instrumento de
controle social a céu aberto.
O caminho hoje é o inverso. Captam-
Imageticamente ou não, todos de-
se primeiro as necessidades e os dese-
vem estar incluídos na dinâmica capi-
jos do consumidor para que a indús-
talista, seja como cidadãos consumido-
tria possa ser moldada em função de
res ou como seres supostamente atuan-
seus objetivos, sobretudo em relação
tes e participativos no âmbito da po-
ao ideal do progresso individual na
lítica. A mídia segue essa linha inclusi-
esfera do mercado. Cabe então dizer
va ao procurar gerar no telespectador
que cada empregado deve ter a per-
uma sensação de intimidade insinuan-
cepção de que não é mais uma peça
do-se, a partir dessa lógica, sobre um
descartável e cumpridora de ordens,
indivíduo útil, solidário, soberano de
passando a agir como se fosse um co-
si mesmo e de seus direitos como cida-
produtor no interior da empresa.
dão-consumidor.
Na fábrica da era do conhecimen-
Nessa interface homem/máquina,
to, em suma, não devem mais existir
como afirmou Virillio, não existe mais
fronteiras fortemente hierarquizadas
a diferenciação do que era concebido
entre as pessoas. Os muros tendem a
como público e privado. A casa dos
ser derrubados em nome de uma
telespectadores é transformada no que
pretensa contribuição entre as partes e
o autor chamou de “uma central dos
os empregados, em sua totalidade, te-
acontecimentos mundiais”, fabrican-
do-se a superação contínua entre o
18. DELEUZE, Gilles. (1992), Conversações, Rio de que é realidade imediata e o que é vir-
Janeiro, Editora 34, pp. 223-224. tual nas transmissões eletrônicas. Abo-

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le-se, dessa forma, a distância entre o ciais estabelecidos pelo modo de ser
tempo e o espaço. dominante, principalmente quando se
O telejornalismo busca investir na é capturado subjetivamente pelos flu-
possibilidade de o telespectador se as- xos desterritorializantes e reterrito-
sociar às imagens decodificadas, tor- rializantes desencadeados pelo sistema,
nando-o um potencial participante do o indivíduo tende a entrar em um pro-
que se passa através de seus enuncia- cesso de culpabilidade, muitas vezes
dos midiáticos. Desse ponto de vista, destrutivo, de se conceber como “infe-
é interessante notar, enunciados pro- rior” diante das exigências cognitivas
fundamente sedutores partem constan- e subjetivas do mundo atual.
temente do princípio de que apenas a
vitória, delimitada a um ângulo pura- A verdadeira polícia do capitalismo é
mente consumista, pode gerar indiví- a moeda e o mercado... Porque é de fato
duos estáveis e equilibrados. Basta assim que todo o sistema se mantém e
manter esse postulado na mente dos funciona, e realiza perpetuadamente
a sua própria imanência. É assim que
indivíduos para que se possa — e isso
ele é o objeto global de um investimen-
a mídia o faz muito bem — defender to de desejo. 19
incondicionalmente a inclusão social e
a conquista de uma cidadania plena. A ilusão criada, em todo esse pro-
Mas com um detalhe dos mais cruciais: cesso de midiatização do ser humano,
sem colocar em risco os suportes bási- procura vender a idéia de que apenas
cos dos interesses dominantes. a inclusão do “não cidadão” na lógica
No outro lado dessa intrigante da subjetividade dominante é o bas-
equação, grande parte da população, tante para que o sonho de uma reali-
sobretudo a mais carente, corre o risco zação final se torne realidade, ou seja,
de cair na armadilha de se rotular como injeta-se o pressuposto de uma possí-
“incapaz” de vencer no escopo das nor- vel segurança imagética, fazendo com
mas vigentes, simplesmente por não ter que o telespectador possa atravessar
supostamente conseguido alçar vôos a maior parte de seu tempo objetivan-
mais altos em sua existência. Polarizan- do uma satisfação ainda inexistente e
do-se a vida entre o tudo ou nada, são não usufruindo necessariamente dos
criados então os protótipos do “fracas- prazeres prometidos pelo midiático
sado” e do “derrotado”, em que o in- mundo da cidadania e do consumo con-
teresse passa a ser fundamentalmente temporâneo.
o de alcançar o status de “vencedor” e Cria-se, então, a expectativa e a es-
“superior” diante do outro, ainda mais perança de vir a ser um cidadão pleno
quando a possibilidade do “fracasso” de seus direitos humanos e civis, dissi-
está sempre à espreita. E para evitá-lo
é preciso ser ágil e esperto.
Ao se auto-rotular como “despre- 20. DELEUSE, Gilles e GUATTARI, Félix. (s/d),
parado” para lidar com os valores so- op. cit. pp. 248-249.

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pando-se ao máximo o desejo de dissi- ção, a ampliação e o fortalecimento do


dência em relação à subjetividade ca- sistema.
pitalista. Tal dinâmica é desenvolvida É também nesse sentido que a tele-
na medida em que o telespectador pas- visão busca fabricar efeitos sugestivos
se a estar inserido em seu circuito não ao atuar como um instrumento ma-
mais como consumidor ou usuário e sim quínico de fabricação de subjetivida-
como componente intrínseco à mídia, des, tentando fazer com que suas ima-
em um continuum de re-começos e gens teleguiadas atravessem o incons-
modulações a partir da constituição de ciente dos telespectadores, transfor-
redes transversalizadas e desterrito- mando-os em meros consumidores
rializantes, nas quais os cidadãos são pragmáticos, passíveis de conquistar
constantemente convocados midiatica- ou ter acesso às riquezas provenientes
mente a participar ativamente do an- do capitalismo de mercado, além de ser
seio pelo aumento da produtividade e produtora intermitente de verdades
do consumo. São maneiras encontra- que se entendem absolutas. Instaura-
das pelo capitalismo para controlar o se um fenômeno de serialização hierar-
ímpeto transformador daqueles que su- quizante, no qual todos os desejos des-
postamente não conseguiram o suces- territorializados são habilmente con-
so esperado pela lógica do mercado, trolados, deixando o indivíduo inope-
para se colocarem no topo da pirâmi- rante para interagir consigo mesmo e
de social, política e cultural e, por con- com o outro em função de suas próprias
seqüência, estarem aptos a se conside- referências e desejos.
rar vencedores no âmbito do sistema. É de interesse para o capitalismo
O que interessa é criar condições que a mediação dos meios de comuni-
necessárias para a interatividade ele- cação de massa gere um pensar por nós
trônica entre a mídia, os poderes pú- infantilizador, não no sentido de vol-
blicos e os supostos corpos conscien- tar a ser criança e sim de fazer com que
tes de seus direitos básicos enquanto o sujeito não se conceba como capaz
cidadãos aparentemente ativos e es- de caminhar com autonomia e auto-re-
clarecidos, instituindo-se a possibili- ferência, bloqueando-se, a partir daí,
dade de captura das cargas desejantes qualquer possibilidade de linhas de
que cada individuo possui dentro de fuga criativas e heterogênicas. 20
si. É como se fosse colada ao corpo
desse indivíduo uma etiqueta defini-
20. A partir dos processos intermitentes de
tiva, um modelo de conduta e de se desterritorializações e reterritorializações, Deleuze
comportar diante do aprioristicamente e Guattari desenvolveram a noção de heterogênese,
determinado, levando-o a acreditar para afirmar que é através dela que se produz
ser essa sua essência de vida. Assim, algo novo e inusitado para nossas vidas. As li-
nhas de fuga, por sua vez, são similares ao processo
segregar os indivíduos em prateleiras da heterogênese. Estão inseridas na idéia de que é
fechadas e identitárias torna-se de fun- possível desfazer-se de um território existencial e
damental importância para a manuten- criar outros simultaneamente.

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DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO — GILLES DELEUZE E FELIX GUATTARI 101

O capitalismo é obrigado a construir e deiro e o falso. O processo midiático,


impor seus próprios modelos de dese- enfatizou o autor, passa a ter, na men-
jo, e é essencial para sua sobrevivên- te do indivíduo, um efeito ainda mais
cia que consiga fazer com que as mas- importante do que a sua própria reali-
sas que ele explora os interiorizem.
dade imediata, transformando-se em
Convém atribuir a cada um: uma in-
fância, uma posição sexual, uma repre- “realidade virtual”, ou seja, a mídia ten-
sentação do amor (...). As relações de de a ultrapassar e a se antecipar ao
produção capitalista não se estabele- acontecimento, antes que ele venha a
cem somente na escala dos grandes se tornar, ou não, realidade de fato.
conjuntos sociais; é desde o berço que
modelam um certo tipo de indivíduo A televisão não pode mais ser o que foi
produtor-consumidor. 21 há meio século: um espaço de diverti-
mento ou de promoção cultural, ela
Ainda nessa direção, Virilio afir- deve em primeiro lugar gerar o tempo
mou que a sociedade contemporânea mundial do intercâmbio, [...]. Visto que
assistiu ao “fim da geografia”. Nela, toda imagem vale mais que mil pala-
vras, o desejo das multimídias é trans-
as fronteiras entre o local e o global
formar nossa velha televisão em uma
estão sendo ininterruptamente desin-
espécie de TELESCÓPIO DOMÉSTICO
tegradas e dissipadas, não existindo para ver, prever o mundo que está por
mais, segundo ele, uma “contigüidade vir, a exemplo do que já está aconte-
territorial” e sim uma “continuidade cendo com a metereologia. 22
visual ou audiovisual”, cabendo à tele-
visão ser o protótipo do desenvolvi- Para Virilio, o desequilíbrio existen-
mento do que o autor chamou por te entre os sentidos e a informação mi-
“globalismo totalitário do imaginário diatizada transfere nossos julgamentos
coletivo”. A tese de Virilio nos leva a de valor para uma espécie de interface
dizer que estamos entrando na era da eletrônica, interferindo a todo instan-
“globalização cibernética”, na qual a te e de uma forma cada vez mais rápi-
velocidade, a quantidade e o acúmulo da na ordem de sensações dos que re-
de informação geram, na prática, uma cebem a mensagem. A superexposição
desinformação midiática. Ao poluir-se ou mesmo subexposição — já que o si-
toda uma “ecologia do sensível”, o in- lêncio também promove a criação de
tuito é bloquear qualquer espaço para verdades — fabricam ininterruptamen-
possíveis dissidências. te novos mundos e novas formas cole-
Para ele, a aceleração da informa- tivas de conceber a vida e a existência,
ção gera no telespectador uma “confu- cabendo à publicidade, hoje, não mais
são mental” entre o próximo e o dis- vender produtos e sim criar compor-
tante; o presente e o passado; o verda- tamentos e modos de ser, o que signi-

21. GUATTARI, Félix. (1987), Revolução molecular: 22. VIRILLO, Paul. (1999), A bomba informática,
op. cit., p. 188. São Paulo, Estação Liberdade, pp. 21-22.

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fica um assédio constante da informa- na economia de mercado. Não é por


ção no que há de mais “secreto” e “do- acaso que, sobretudo a partir do fim
méstico” no ser humano em sua parti- da década de 1980, o enunciado
cularidade. midiático diante da pobreza e da cha-
Na sociedade de controle, convém mada alienação política mudou de tom.
então frisar, não se exige mais a auto- Com o desmantelamento do enun-
ridade centralizada e repressiva, pois ciado ortodoxo da esquerda, cujos es-
ela passa a coexistir com o auto-con- pectros ideológicos vinham da promes-
trole estabelecido no âmbito das rela- sa da revolução ou da simples conquista
ções horizontalizadas e aparentemen- do socialismo através da intervenção
te livres de qualquer coerção. Conside- ativa do Estado, questões até então con-
rando-se o espaço liso, quando o capi- cebidas como de protesto contra o sis-
talismo busca preencher todas as lacu- tema vigente, tais como participação e
nas em aberto, o que tende a prevale- conscientização política, foram me-
cer é uma espécie de confinamento sem tamorfoseadas pelo sistema em nome
a eloqüência de instituições segrega- da inclusão dos não cidadãos no siste-
cionais e repressivas. ma vigente.
O controle, de agora em diante, Palavras de ordem como fraterni-
ocorre nas ruas, nas praças, no lazer, dade, solidariedade, cidadania e res-
na frente da televisão, enfim, na vida peito à diferença identitária se torna-
existencial de cada um. Por conseguin- ram referências constantes nos telejor-
te, territórios existenciais estão sendo nais nacionais, perdendo totalmente a
continuadamente desterritorializados sua potência subversiva e disruptora.
e reterritorializados por fluxos que sur- Convém destacar então que, desde
gem e ressurgem de formas inespera- aquele período, a mídia foi e continua
das e mesmo inusitadas, no âmbito do sendo capaz de mobilizar o telespecta-
que Deleuze chamou por “técnica ime- dor para a participação, mesmo que ela
diatamente social”, em que se procura seja apenas imagética.
não deixar espaço para o discenso em Trata-se de pensar em uma socieda-
relação ao modo de vida estabelecido de onde deva prevalecer a adesão ou
pelo capitalismo. cumplicidade de todos os cidadãos no
transcorrer da possível configuração de
A exigência de participação e o devir um modelo de integração que se pre-
tende consensual e mesmo universal.
Opinar e participar interativamente, O corpo, dessa maneira, tem que ser o
o que equivale também a ser um cida- mais saudável e produtivo possível,
dão consciente de seus direitos políti- extraindo-se dele o máximo de sua po-
cos, sociais e econômicos. São essas as tencialidade criativa.
formas que a televisão encontrou para Logo, o que mais importa avaliar
investir na importância da participação daqui para frente, sobretudo se levar-
e integração dos cidadãos na política e mos em consideração que o sistema

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atual só consegue sobreviver adicionan- sincrônica de poder e submissão, bus-


do novos axiomas a seu funcionamen- ca-se reconhecer a alteridade — trocar
to, é a possibilidade de que os enun- com ela — e não apenas tolerá-la e
ciados humanistas de inclusão social e respeitá-la em seu respectivo territó-
da pura e simples tolerância em rela- rio existencial, cada um mantendo-se
ção ao outro tenham sido incorpora- fechado e circunstrito a ele, inexistindo
dos pela subjetividade capitalista para a partir daí qualquer possibilidade de
a sua manutenção. estabelecer para si uma dinâmica pró-
pria de criação auto-referente.
A axiomática capitalista é muito flexí- Assim sendo, Guattari fez uma di-
vel, consegue sempre alargar os seus ferenciação importante entre individua-
limites para acrescentar mais um axi- lidade e singularidade. Indivíduo, para
oma a um sistema já saturado.23 ele, é justamente aquele que é “fabri-
cado, modelizado e serializado”, de
Diante de problematizações como acordo com os interesses da lógica vi-
essas, cabe aqui a seguinte indagação: gente e da produção da subjetividade
Estaríamos entrando em um pretenso capitalista.
mundo da democracia e da liberdade
de pensamento, contando que o cida- A subjetividade está em circulação nos
dão esteja circulando pelo âmbito do conjuntos sociais de diferentes tama-
mercado e do consumo? Se formos pen- nhos: ela é essencialmente social, e as-
sar na idéia da heterogênese, a respos- sumida e vivida por indivíduos em
ta a essa pergunta jamais pode ser con- suas existências particulares. O modo
clusiva, pois da mesma forma que o ca- pelo qual os indivíduos vivem essa
pitalismo busca fechar os cercos para subjetividade oscila entre dois extre-
eventuais desterritorializações auto-re- mos: uma relação de alienação e opres-
são, na qual o indivíduo se submete à
ferentes, os seus próprios flancos ima-
subjetividade tal como a recebe, ou uma
nentes tendem a estar cada vez mais relação de expressão e de criação, na
abertos a possíveis linhas de fugas qual o indivíduo se reapropria dos
criativas e desejantes. componentes da subjetividade, produ-
Para Deleuze e Guattari, é impor- zindo um processo que eu chamaria
tante frisar, o desejo não pode ser con- de singularização. 24
fundido com a necessidade ou carên-
cia de algo inalcansável e transcenden- A diferença, diante desse contex-
te. Ele “não comporta falta”, pois dei- to, passa pela idéia da produção de um
xa-se afetar constantemente por novos coletivo, não no sentido de agrupamen-
campos de imanência processuais. Em to de pessoas, mas em uma composi-
vez de estabelecer uma relação

24. GUATTARI, Félix e ROLNIK, Suely. (1996),


23. DELEUSE, Gilles e GUATTARI, Félix (s/d), Micropolítica: cartografias do desejo, Petrópolis,
O Anti-Édipo...: op. cit., p. 248. Vozes, p. 33.

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ção de forças, desembocando no devir por si só, uma multiplicidade de acon-


enquanto movimento e em uma con- tecimentos que nunca cessam de asse-
cepção diferenciada de liberdade e cria- diá-lo e de gerar efeitos diferenciados
ção. É estar traçando para si novas sin- em sua vida.
gularidades a cada encontro e não ape-
nas tolerar o outro ou mesmo desen- Um efeito é, primeiramente o vestígio
volver com ele única e exclusivamente de um corpo sobre um outro, o estado
um elo de solidariedade, de ajuda hu- de um corpo que tenha sofrido a ação
manitária e de fraternidade. de um outro corpo. (...). Conhecemos
nossas afecções pelas idéias que te-
mos, sensações ou percepções, sensa-
Um devir não é uma correspondência
ções de calor, de cor, percepção de for-
de relações. Mas tampouco ele é uma
ma e de distância. (...). A afecção, pois,
semelhança, uma imitação e, em últi-
não só é o efeito instantâneo de um
ma instância, uma identificação. (...).
corpo sobre o meu, mas tem também
O devir não é uma evolução, ao menos
um efeito sobre minha própria dura-
uma evolução por dependência e
ção, prazer ou dor, alegria ou tristeza.
filiação. O devir nada produz por
São passagens, devires, ascensões e
filiação; toda filiação seria imaginária.
quedas, variações contínuas de potên-
O devir é sempre de uma ordem outra
cia que vão de um estado a outro: se-
que a da filiação. Ele é da ordem da
rão chamados afectos [...]. 27
aliança. 25
Todo o devir, nessas circunstâncias,
Entrar no campo do devir é estar
acontece no encontro entre dois, não
sempre compondo em nossos corpos
sendo mais uma relação na qual é pos-
algo de inusitado a partir do encontro
sível ocorrerem eventuais conversas ou
com o outro, embarcando constante-
mesmo olhares a partir de referências
mente em possíveis linhas de fuga des-
e modelos identificados e pré-deter-
territorializantes. Entre indivíduos su-
minados socialmente, em que se esta-
postamente identificáveis e fechados
belecem encontros tendo como princí-
em si mesmos, o que existe é uma com-
pio opiniões e idéias supostamente fi-
posição de afetos, uma mistura de cor-
xas e inabaláveis, consideradas aprio-
pos, como enfatizou Espinosa. 26 Partin-
risticamente como certezas insofis-
do dessa idéia, é afirmar que cada su-
máveis.
jeito pode ser definido por uma lista
de afetos e devires, quer dizer, ele é,
Devir não é atingir uma forma (identi-
ficação, imitação, Mimese), mas encon-
25. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. (1997), trar a zona de vizinhança, de indis-
Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (Volume 4), cernibilidade ou de indiferenciação tal
Rio de Janeiro, Editora 34, pp. 18-19.
26.Ver, entre outros, DELEUZE, Gilles.(s/d),
Espinosa e os signos, Lisboa, editora Res, MACHA-
DO, Roberto.(1990), Deleuze e a filosofia, Rio de 27. DELEUZE, Gilles. (1997),Crítica e clínica, Rio
Janeiro, Grall. de Janeiro, Editora 34, pp. 156-157.

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qual já não seja possível distinguir-se a loucura ou mesmo a morte, mas de


de uma mulher, de um animal ou de uma dinâmica constante de desterrito-
uma molécula. 28 rializações e singularizações auto-refe-
rentes: a heterogênese.
Procura-se, daí em diante, reconhe-
cer passo a passo, como também disse Daí a força da questão de Espinosa: o
Espinosa, quais afetos estão atravessan- que pode um corpo? De que afetos ele
do o nosso corpo e que tipo de compo- é capaz? Os afetos são devires: ora eles
sição é possível com afetos de outros nos enfraquecem, quando diminuem
corpos. Não se trata mais de uma rela- nossa potência de agir e decompõem
ção de dominação e de auto-submis- nossas relações (tristeza), ora nos tor-
são e sim de transformação mútua a nam mais fortes, quando aumentam
nossa potência e nos fazem entrar em
partir da relação com o outro, compon-
um indivíduo mais vasto ou superior
do algo mais potente para meu corpo (alegria). (...). A questão é a seguinte: o
em pleno processo de singularização. que pode um corpo? De que afetos
você é capaz? Experimente, mas é pre-
Não sabemos nada de um corpo en- ciso muita prudência para experimen-
quanto não sabemos o que pode ele, tar. Vivemos em um mundo desagra-
isto é, quais são seus afectos, como eles dável, onde não apenas as pessoas,
podem ou não compor-se com outros mas os poderes estabelecidos têm in-
afectos, com os afectos de um outro teresse em nos comunicar afetos tris-
corpo, seja para destruí-lo ou ser des- tes. A tristeza, os afetos tristes são to-
truído por ele, seja para trocar com dos aqueles que diminuem nossa po-
esse outro corpo ações e paixões, seja tência de agir. Os poderes estabeleci-
para compor com ele um corpo mais dos têm necessidade de nossas triste-
potente. 29 zas para fazer de nós escravos. (...).
Os poderes têm menos necessidade de
Em função disso, afirmaram nos reprimir do que nos angustiar, ou,
Deleuze e Guattari, temos que cuidar como diz Virillio, de administrar e or-
de nossos devires, para não sermos car- ganizar nossos pequenos temores ín-
regados por nossas percepções ou me- timos. 31
mórias, que estão nos assediando a
todo o momento, queiramos ou não. A liberdade, a partir dessas cons-
Não é o mesmo que falar em uma des- tatações, é um processo que deve estar
territorialização absoluta, 30 pois seria
depois ela própria tem seu perigo, que talvez seja
o pior. Não apenas as linhas de fuga, de maior
28. Ibid, p. 11 declive, correm o risco de serem barradas, segmen-
29. DELEUSE, Gilles e GUATTARI, Félix. (1997), tarizadas, (...), mas elas têm um risco particular a
Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (Volume 4), mais: virar linhas de abolição, de destruição, dos
Rio de Janeiro, Editora 34, p. 43. outros e de si mesma. Paixão de abolição”
30. “Seria um erro acreditar que basta tomar, en- (DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire, (1998), Di-
fim, a linha de fuga ou de ruptura. Antes de tudo, álogos, São Paulo, editora Escuta, p. 162).
é preciso traçá-la, saber onde e como traçá-la. E 31. Ibid, pp. 73-75

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sempre sendo construída e recons- Não é estabelecer exclusivamente,


truída. Ser livre, portanto, é o mesmo como afirmou Benevides, 33 uma cone-
que conceber o território como um lu- xão entre “pessoas diferentes” e sim
gar de passagem e não de chegada, es- entre “modos de existencialização di-
tando sempre em conexão com o mun- ferentes”. São encontros que podem
do, misturando-se a ele a partir do pro- gerar algo de inominável para as duas
cesso dinâmico da heterogênese e do partes em jogo, não existindo mais a
desejo que é, ao contrário da carência clássica distinção entre sujeito e obje-
enquanto necessidade de algo, a po- to. Trata-se, enfim, de estar abertos
tência de estar sempre produzindo algo para novas experimentações e sair do
novo para nossas vidas. que Deleuze chamou por “repetição su-
Em vez de nos localizarmos como perficial dos elementos exteriores idên-
sujeitos puramente comunicativos, pri- ticos e instantâneos”, desfazendo-se a
sioneiros a territórios existenciais fixos todo instante de hierarquias valorativas
e intransponíveis, é interpretar a nós e de territórios existenciais aderentes
mesmos como seres em constante for- ao corpo, o que significa estar sempre
mação, resgatando a posse do proces- aberto a novas conexões e percepções
so de heterogênese e situando-se, como externas, sempre pertencentes a espa-
diriam Deleuze e Guattari, na mais pura ços lisos heterogênicos.
imanência. É o mesmo que pensarmos
em um movimento contínuo de dester-
ritorialização, no qual cada indivíduo,
em sua multiplicidade, caminhasse na Recebido em 4/8/2002
direção do que Guattari chamou por Aprovado em 30/10/2002
“co-gestão com a produção da subjeti-
vidade”, desenvolvendo diante de si
uma dinâmica constante de abertura
para novas possibilidades de alteridade
e do devir outro.
33. Ver BENEVIDES, Regina. (1996), “Dispositi-
vos em ação: o grupo”. In: Cadernos de Subjetivida-
O fato de se formar em Territórios exis- de, São Paulo, Núcleo de Estudos e Pesquisas da
tenciais singulares lhe confere, com Subjetividade do Programa de Estudos Pós-Gra-
efeito, uma potência de heterogênese, duados em Psicologia Clínica da Pontifícia Uni-
quer dizer, de aberturas para proces- versidade Católica, nº especial, junho.
sos irreversíveis de diferenciação ne-
cessários e singularizantes. 32

Guga Dorea, jornalista, doutor em Ciências Po-


lítica pela PUC-SP, professor da Unip-SP e da
32. GUATTARI, Félix. (1992), Caosmose: um novo Faculdade Radial.
paradigma estético, Rio de Janeiro, Editora 34, p. 29. E-mail: gugadorea@ig.com.br

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