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GUGA DOREA
Resumo Abstract
do XX, mostrou-nos com muita clareza sistema cedeu lugar a uma aparente
Michel Foucault, o adestramento do participação do cidadão-consumidor,
corpo passou a ser uma estratégia fun- concebido agora como um corpo útil
damental para a pacificação da socie- e cúmplice da lógica vigente. A
dade. É simbologia midiática, criada em tor-
no da queda do Muro de Berlim, pas-
(...) o corpo da sociedade que se torna, sou a engendrar o que Balandier de-
no decorrer do séc. XIX, o novo princí- nominou uma nova realidade tele-
pio. É este corpo que será preciso pro- imagética ou, melhor dizendo, do con-
teger, de um modo quase médico. (...). senso em torno da órbita capitalista
Serão aplicadas receitas terapêuticas
de consumo.
como a eliminação dos doentes, o con-
trole dos contagiosos, a exclusão dos
delinqüentes. A eliminação pelo suplí- O fracasso do comunismo na Europa
cio é, assim, substituída por métodos oriental foi fatal para esse Terceiro
de assepsia: a criminologia, a eugenia, Mundo já enfraquecido: arruinou aqui-
a exclusão dos degenerados.3 lo que mantinha a aparência de um
vasto conjunto ou campo de forças
progressistas. [...]. Desse modo, o fra-
A sociedade disciplinar investiu na
casso do terceiro-mundismo revolucio-
normalização dos corpos com base no nário e a degradação, que não passa-
confinamento, o que levou à formula- va de um álibi para o monopólio da
ção de rígidas e meticulosas regras de classe estatal e de seus aliados, acaba-
atuação, além de gerar, em seu contra- ram por criar o desejo daquilo que ha-
fluxo, constantes abalos por meio de via apresentado como aspectos do mal:
resistências. Mas logo após a segunda a democracia pluralista, a mercadoria
guerra, de acordo com Deleuze, 4 ini- e o dinheiro, a cultura alienante.5
ciou-se uma gradativa e contínua pas-
sagem da sociedade disciplinar, des- A partir dessa dinâmica, novas rea-
crita por Foucault, para o que ele cha- lidades estão sempre sendo cons-
mou, baseado na descrição de truídas e reconstruídas, produzindo
Burroughs, de sociedade de controle. opiniões públicas ou reforçando ou-
Não se trata de dizer que a socie- tras, de acordo com os interesses de
dade de controle eliminou por com- um modelo subjetivo de vida cada vez
pleto a necessidade da disciplina, mas mais exigente e competitivo. Tal pro-
que o capitalismo entrou na órbita on- cesso também vai ao encontro do que
dulante do controle, no qual a possí- Balandier intitulou tele-realidade, em
vel docilidade do homem diante do que a mídia tem o poder de simular a
imagem de um mundo possível, tal-
a produção, que dever ser cada vez Diante dessa inusitada realidade, o
mais contínua e veloz. A palavra de controle se estabelece pela estabiliza-
ordem é abolir o tédio e estimular a ção de metas a serem rigorosamente
vontade de trabalhar pela empresa, cumpridas, além de um espaço tempo-
intensificando-se o processo produtivo ral cada vez mais reduzido para tal
em função da possibilidade de um empreendimento. A forma como essa
mercado consumidor mais abrangente meta vai ser cumprida é o que menos
e exigente. interessa nessa dinâmica de comunica-
A concentração sem centralização ção em rede. Ora, no instante em que
leva os trabalhadores a supostamente o trabalhador se concebe como respon-
agirem em função do que eles realmente sável direto por essas metas e pelas
pensam, tanto no âmbito da empresa tomadas de decisão, aparentando uma
como de suas vidas (territórios existen- suposta liberdade de ação entre o man-
ciais) aparentemente particularizadas. dar e o obedecer, gera-se a possibili-
A resolução quanto à tomada de deci- dade de um controle mais sutil e eficaz
sões passa a ser considerada livre, sig- sobre seus passos.
nificando ainda um poder ilusoria- O risco é deixar de agir e ser con-
mente maior das atividades inerentes cebido como passivo, antiprodutivo e
a cada setor produtivo ou administra- pouco competitivo no mercado de tra-
tivo da empresa, sem a presença cons- balho, tornando-se uma peça descar-
tante de uma força superior acompa- tável para a empresa. Dessa forma, o
nhando e enunciando palavras de or- medo do desemprego passa a ser utili-
dens expressas e inquestionáveis. zado como uma arma essencial para que
se estabeleça o autocontrole. E não é
Uma das afirmações em favor da nova só isso. O interesse, no momento atual,
organização do trabalho é que descen- é o de sintonizar as partes inteligentes
traliza o poder, quer dizer, dá às pes- do corpo com a produção, estabelecen-
soas nas categorias inferiores dessas do-se
organizações mais controle sobre suas
atividades. Certamente é uma afirma-
(...) todo um sistema de demanda que
ção falsa, em termos das técnicas em-
perpetua a dependência inconsciente
pregadas para desmontar os velhos
em relação ao sistema de produção. 17
colossos burocráticos. Os novos siste-
mas de informação oferecem um qua-
dro abrangente da organização aos Sem a necessidade do mando in-
altos administradores de uma forma flexível, autoritário e, muitas vezes,
que deixa o indivíduo em qualquer opressivo, o objetivo é apostar em um
parte da rede pouco espaço para es- corpo supostamente participativo, cuja
conder-se. 16
le-se, dessa forma, a distância entre o ciais estabelecidos pelo modo de ser
tempo e o espaço. dominante, principalmente quando se
O telejornalismo busca investir na é capturado subjetivamente pelos flu-
possibilidade de o telespectador se as- xos desterritorializantes e reterrito-
sociar às imagens decodificadas, tor- rializantes desencadeados pelo sistema,
nando-o um potencial participante do o indivíduo tende a entrar em um pro-
que se passa através de seus enuncia- cesso de culpabilidade, muitas vezes
dos midiáticos. Desse ponto de vista, destrutivo, de se conceber como infe-
é interessante notar, enunciados pro- rior diante das exigências cognitivas
fundamente sedutores partem constan- e subjetivas do mundo atual.
temente do princípio de que apenas a
vitória, delimitada a um ângulo pura- A verdadeira polícia do capitalismo é
mente consumista, pode gerar indiví- a moeda e o mercado... Porque é de fato
duos estáveis e equilibrados. Basta assim que todo o sistema se mantém e
manter esse postulado na mente dos funciona, e realiza perpetuadamente
a sua própria imanência. É assim que
indivíduos para que se possa e isso
ele é o objeto global de um investimen-
a mídia o faz muito bem defender to de desejo. 19
incondicionalmente a inclusão social e
a conquista de uma cidadania plena. A ilusão criada, em todo esse pro-
Mas com um detalhe dos mais cruciais: cesso de midiatização do ser humano,
sem colocar em risco os suportes bási- procura vender a idéia de que apenas
cos dos interesses dominantes. a inclusão do não cidadão na lógica
No outro lado dessa intrigante da subjetividade dominante é o bas-
equação, grande parte da população, tante para que o sonho de uma reali-
sobretudo a mais carente, corre o risco zação final se torne realidade, ou seja,
de cair na armadilha de se rotular como injeta-se o pressuposto de uma possí-
incapaz de vencer no escopo das nor- vel segurança imagética, fazendo com
mas vigentes, simplesmente por não ter que o telespectador possa atravessar
supostamente conseguido alçar vôos a maior parte de seu tempo objetivan-
mais altos em sua existência. Polarizan- do uma satisfação ainda inexistente e
do-se a vida entre o tudo ou nada, são não usufruindo necessariamente dos
criados então os protótipos do fracas- prazeres prometidos pelo midiático
sado e do derrotado, em que o in- mundo da cidadania e do consumo con-
teresse passa a ser fundamentalmente temporâneo.
o de alcançar o status de vencedor e Cria-se, então, a expectativa e a es-
superior diante do outro, ainda mais perança de vir a ser um cidadão pleno
quando a possibilidade do fracasso de seus direitos humanos e civis, dissi-
está sempre à espreita. E para evitá-lo
é preciso ser ágil e esperto.
Ao se auto-rotular como despre- 20. DELEUSE, Gilles e GUATTARI, Félix. (s/d),
parado para lidar com os valores so- op. cit. pp. 248-249.
21. GUATTARI, Félix. (1987), Revolução molecular: 22. VIRILLO, Paul. (1999), A bomba informática,
op. cit., p. 188. São Paulo, Estação Liberdade, pp. 21-22.