Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
Lara Ovídio
O tempo que se acelera a si mesmo, isto é, a nossa própria história, abrevia os campos da experiência,
rouba-lhes sua continuidade, pondo repetidamente em cena mais material desconhecido, de
modo que mesmo o presente, frente à complexidade desse conteúdo desconhecido, escapa em
direção ao não experimentável.1
A r t i g o s | l a r a ov í d i o 81
O presente se enche de novidades até transbordar.2 separam de fato, de alguma forma. Sinto como
O que é isso do presente que transborda? O que se minha própria vida tivesse sido acelerada pela
não é possível se dar conta ou justamente o que é quantidade de acontecimentos políticos do país:
possível perceber? O que se perde? O que se faz vai ter impeachment, não vai, vai, não vai, liga-
passado? O presente que não pode ser mais expe- ções “vazadas”, delações, prisões, prisões, prisões,
rimentado, mas ainda pode ser conhecido, desde Temer cai, não cai, Temer cai, não cai. Infelizmente,
que se faça passado. Talvez por isso tantos livros, não cai. Aparentemente, meu dia a dia não inter-
talvez por isso a proliferação de possibilidades de fere em nada no cotidiano político do país, mas o
timelines. Talvez por isso os arquivos, os memo- contrário não é verdade.
riais, os monumentos. Sinto falta de um plural
Fico na dúvida se distorci completamente Koselleck
para presente que não o transforme em coisa,
ou se lhe dei um pouco de ar. Talvez, as rever-
que possa abarcar a infinidade de presentes que
berações na minha história tenham me permitido
se sobrepõem, se cruzam, se atropelam, se perce-
entender mais concretamente esse movimento de
bem e se perdem.
aceleração que se iniciou no século 18 e já não
Aqueles que ainda no século 19 atiraram nos re- deixou de ser, nem de fazer sentido.6
lógios para parar o dia3 haverão ou não logrado
seu intento? Um verdadeiro ato poético.4 Um ver- O novo
dadeiro ato mágico.
Custa-me entender que o tempo nem sempre foi
O tempo todo acontece qualquer coisa que eu um agente de mudanças, nem sempre teve uma
não vejo. direção, nem sempre escorreu. O novo nem sem-
Isso se assemelha muito à minha noção de presente. pre existiu assim, como um elemento que chega e
pode mudar tudo, sobretudo as expectativas para
16.11.2016 o futuro.7
Hoje eu descobri que, todas as vezes que usei a //////////////////////////////////////ou os planos para sábado
citação de Koselleck5 falando sobre o tempo que à noite.
se acelera a si mesmo, o fiz de maneira equivoca-
Talvez na história isso faça realmente sentido. Já
da. Voltando ao texto, quatro anos depois, enten-
para a física, o tempo obedece a uma seta que tem
di que ele se referia ao momento histórico que
uma direção determinada: aponta para a frente,
antecedia à Revolução Francesa enquanto eu me
aponta para o futuro. A desordem aumenta, e o
referia à minha própria experiência de tempo,
universo se expande na mesma direção em que
nisso que arrisco chamar de contemporaneidade.
sentimos o tempo passar. Por isso não é possível,
Senti um pouco de graça e um pouco de vergonha. diante de um copo em cima da mesa, lembrar-se
Graça pelo tropeço e vergonha por me confundir dele quebrado dali a dois dias.8
na fala. Graça de descobrir que não sou tão precisa
O que será que John Cage queria dizer com: “a
quanto imagino ser.
rigor nada a dizer sobre ritmo, porque não há
Agora, no entanto, estou pensando se esses tempo”9? – essa é uma dessas coisas que eu não
tempos que atravessam história e indivíduo se consigo imaginar.
A r t i g o s | l a r a ov í d i o 83
Lara Ovídio. Sem título #14 - série Territórios Perecíveis, 2014. Pigmento mineral sobre algodão, dimensões variáveis
pensar e é impossível. Resta-lhe andar de um lado em Territórios Perecíveis,16 acreditava que essas
para outro, contar as árvores da rua e fazer rabis- duas proposições eram coisas distintas. Cada vez
cos na areia. O tempo se excede em presença. menos consigo ver essa separação.
O tédio pode ser o tempo que não escapou em Tem dois anos e dois dias17 que eu fiz uma coleta
direção ao não experimentável, ou o tempo ex- de águas com o propósito de não perder um dia
perimentado em toda sua potência, do qual não específico emaranhado entre tantos outros. Ten-
se pode fugir, mas contra o qual reagimos com- tei criar provas para mim de que aquele 17 de
bativamente. Formas de passar o tempo. Formas novembro de 2014 realmente existira, hora por
de matar o tempo. Por isso me fascina a imagem hora, minuto por minuto, transformado em ma-
daquelas duas pessoas presas em uma cabine de terialidade. Ou que eu mesma existira naquele
vidro lendo um milhão de anos.13 Contrapõe-se a quando, passando. Em algum momento do dia,
um desejo permanente de distração. em que eu já levava algumas horas cumprindo a
proposição, a proposta de coleta deixou de ser
Para Pauline Kaels,14 os filmes de Andy Warhol que alguma coisa que aconteceria em função do mo-
abordavam um cotidiano em que nada acontecia vimento natural do dia e passou a determinar o
apenas “matavam tempo no caminho para a cova”. próprio dia. Ao sair de casa, eu precisaria levar
instrumentos suficientes para realizar a coleta e
O curso de um dia a anotação. O jogo: ver o tempo – suas regras;
esquecer o tempo – a diversão de cumpri-las.
Ações para ver o tempo, ações para esquecer o
tempo.15 Enquanto eu fazia os pequenos experi- Assim, as proposições deslocaram o meu trabalho
mentos que registraria com o uso da fotografia, da imagem para a prática, do resultado para o
A r t i g o s | l a r a ov í d i o 85
Contar um milhão de anos tem sua própria demora Notas sobre One million years, On Kawara:
e nada tem a ver com essa fala que dura menos de
A contagem como convite ao tédio.
1”56: “um milhão de anos”.
A contagem como combate ao tédio.
Cada vez que a leitura dos fichários de One million
O convite e o combate entrelaçados na mesma
years de On Kawara acontece, as duas pessoas que
experiência.22
estão dentro da cabine pensam que vão morrer.
A performance é a leitura dos anos.
O tédio é desesperador, às vezes, mas tem quase
A performance é a contagem de um milhão de anos.
sempre uma coisa de fascínio também.
A obsessão é a performance – todo o trabalho de
O performer e o espectador se encontram nessa
On Kawara tem um elemento performativo que se
experiência em que o tempo passa arrastado, em
esconde na proposição que antecede os objetos.
que o tempo resiste a passar.
“Sua obra se identifica menos com um corpo de
Acredita-se que serão necessários 2.700 CDs para objetos que com uma prática.”23
completar a gravação da leitura do trabalho do
passado ao futuro, de forma que, se 27 discos Uma proposição para morrer de tédio 2
fossem produzidos por ano, seriam necessários
2.14 Adiante 2
100 anos para se concluir a gravação das leituras.
Por que nos lembramos do passado e não do futuro?
Um cálculo que parece inútil, mas não é. Um cálculo
Pergunta que quase ninguém faz.
que é inútil, mas não parece.
Venta de piel de lobos marinos de un solo pelo, contagem,24 livro-objeto, 10x7x4cm, 2016
um
Adiante 1
ir e vir Adiante. Adiante. Adiante.
ir e vir O único sentido possível.
ir e vir Adiante. Adiante. Adiante.
ocasião pude lembrar. Acho engraçado lembrar cozinha, se concentram na pia e, quando me
de coisas que nunca imaginei que fosse esquecer. aproximo, levantam voo. As formigas também co-
meçam a traçar outra vez os mesmos caminhos
Como é difícil distrair-se no meio de toda aquela esquecidos no outono. Não são as mesmas formi-
vastidão. Meu corpo me chamava de volta para a gas. Não é a mesma primavera, mas os caminhos
realidade: o suor, o calor, a demora. Adentrar essa se repetem. Pensei, por um segundo, se não seriam
terra em que nada acontece pedia-me um outro esses caminhos que chamavam o sol para perto.
ritmo, aquele de quem já cansou de esperar e, por Sei que não, mas gosto de pensar essas coisas en-
isso, se demora junto com o tempo onde ele ainda quanto limpo tudo, tentando despistar mosquitos
demora a passar. e formigas.
A r t i g o s | l a r a ov í d i o 87
Teching Hsieh, One year performance 1980-1981, Time Clock Piece, instalation view in Liverpool Biennial, 2010
Mas aí mora também a possibilidade de subversão: Time,32 em português Cumprindo a pena. Na tra-
“a prática da repetição literal pode ser entendida dução imprecisa – Fazendo tempo – encontro,
como o início de uma ruptura na continuidade da porém, um enunciado utópico que para mim
vida porque cria, por meio da arte, um excesso de parece se aproximar mais da potência subversiva
tempo não histórico”.31 Groys explica que o tempo do trabalho.
que está em vias de se perder, por seu caráter impro-
Camaradas do tempo33 cada vez que permitem
dutivo, é acolhido pelas artes com base no tempo,
é documentado. Dois entendimentos antagônicos ao tempo manifestar-se como excesso e cada vez
convivem na imagem dos cartões de ponto e foto- que acolhem esse mesmo excedente que permi-
grafias colecionadas ao longo de um ano: o tempo tiram revelar-se.
histórico esvaziado e homogêneo; e o tempo exce-
dente reincorporado à narrativa histórica. Do oco dos dias
Um trabalho que se baseia na espera. O tempo O que habita o cotidiano: tudo que se esquece de ver.
em que nada acontece, coincide com o tempo em
“Para entender o significado de nouveauté, é
que se espera que algo possa acontecer.
preciso retornar à novidade na vida cotidiana.
Em 2017 os trabalhos de Teching Shieh foram Por que todo mundo comunica as últimas no-
expostos juntos e sob um mesmo título: Doing vidades aos outros? Provavelmente para triunfar
A r t i g o s | l a r a ov í d i o 89
3 Referência à Revolução de julho de 1830 em Paris. 10 Referência ao caráter assertivo das narrativas
Ver Benjamin, Walter. Magia e técnica, arte e política: contemporâneas que antecipam futuros catastróficos,
ensaios escolhidos sobre literatura e história da reiterados pela confiabilidade atribuída às previsões
cultura. v.1. São Paulo: Ed. Brasiliense, 2012:213, 250. feitas a partir de equipamentos tecnológicos. Ver
Sanz, op. cit.:16.
4 Referência aos atos poéticos de Jodorowsky.
Ver Jodorowski, Alejandro. Psicomagia. Madrid: 11 Benjamin, 2012, op. cit.:221.
Ediciones Siruela, 2004:15.
12 Informação verbal apresentada na palestra “Aquele
5 Kosselleck, op.cit.:35. que espera: Walter Benjamin e a fotografia” durante
o Seminário internacional Biblioteca Walter Benjamin,
6 Menção à questão levantada por Koselleck de
realizado no Museu de Arte do Rio, em 8.7.2016.
que o tempo histórico “está associado à ação social
e política, a homens concretos que agem e sofrem 13 Cf. A obsessão é a performance.
as consequências de ações, a suas instituições e
14 Kaels, apud Osborne, Peter. Anywhere or not at
organizações”, razão pela qual o tempo é formado
all: philosophy of contemporary art. London/New
por uma quantidade de tempos que se sobrepõem
York: Verso, 2013:181, tradução minha.
e se cruzam. Ver Koselleck, op. cit.:14. Resgato
também aqui a noção de cronista de Benjamin, 15 Menção à segunda forma de tédio listada por
aquele que “narra os acontecimentos, sem distinguir Heiddeger em Conceitos fundamentais da metafísica.
entre os grandes e os pequenos, leva em conta Ver Osborne, op. cit.:181, que o cita: “A ideia de que
a verdade de que nada do que um dia aconteceu nossa relação imediata com o tédio é negativa e de
pode ser considerado perdido para a história”. Ver que ele se manifesta ordinariamente na vida cotidiana
Benjamin, 2012, op. cit.:242. e só o percebemos por meio das tentativas de ‘passar
o tempo’. Já que o tédio é um alargamento do tempo,
7 Menção à proposição de Koselleck de que
mandaríamos o tédio embora mandando o próprio
historicamente o tempo é vivido de acordo com
tempo embora (…).O tédio sempre se mostra de
determinadas ideias de passado e de futuro, o que
uma forma tal, que imediatamente nos colocamos
só é possível porque o entendimento do tempo é
contra ele.” Nessa e nas demais citações em idiomas
alguma coisa que se constrói. Quando a imagem
estrangeiros, a tradução é minha.
do futuro coincidia com o apocalipse, as mudanças
eram tão lentas, que o futuro era pensado quase 16 Série de fotografias em desenvolvimento, iniciada
como um retorno ao passado; o que estava por se em 2014, que aborda a passagem do tempo no
conhecer não era mais do que o que se conhecia: cotidiano.
“a ruptura entre o espaço vivido e o imaginado
17 Em referência ao dia da escrita, 19/11/2016.
como futuro não chegava a interromper o ciclo de
repetições transmitido de uma geração a outra”. Ver 18 Duchamp, apud Osborne, op. cit.:179.
Sanz, op. cit.:8. 19 Benjamin, Walter. Passagens. Belo Horizonte:
8 Hawking, Stephen. Uma breve história do tempo. Editora UFMG, 2006:158.
Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015:181. 20 Título do trabalho de On Kawara: Um milhão
9 Cage, John. De segunda a um ano. Rio de Janeiro: de anos [Passado]: para todos aqueles que viveram
Cobogó, 2013:121. e morreram.
A r t i g o s | l a r a ov í d i o 91