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dos editores

R eunir, coordenar, opinar, produzir, revisar, propor, discutir, planejar, e, é claro,


escrever... Descobrimos o fazer da revista ao fazê-la. Alguns de nós tínhamos, de fato,
mais experiência do que outros. No final, a experiência coletiva de participar do
processo de elaboração do segundo número de uma jovem revista – jovem, mas que
já havia nascido grande – foi um trabalho memorável, um prazer inesperado.
No fundo, trata-se de um trabalho, sobretudo, de equilíbrio. Buscávamos, desde o
início, harmonia entre seriedade e experimentação. Ser original sem a pretensão de
desprender-se das origens. E, como no próprio fazer diplomático, nosso equilíbrio
era móvel, demandava firme prudência. Trabalhamos no limiar entre o entusiasmo da
criação e a persistente sensação de que tudo era frágil.
Mas não nos faltou apoio. A muitos devemos o êxito desse projeto – não
poderíamos deixar de mencioná-los aqui. Ao Embaixador Celso Amorim, que, com
sua sensibilidade cultural e alentador envolvimento nas atividades do Instituto
Rio Branco, apoiou a Revista Juca desde o início. Ao Embaixador Samuel Pinheiro
Guimarães, sempre presente no Instituto, sempre instigante, promovendo salutar
ênfase na diversidade e excelência acadêmica de nossa formação.
Gostaríamos de manifestar nosso especial agradecimento também aos que
estiveram diretamente envolvidos na produção da Juca 02, sobretudo no Instituto
Rio Branco e na Fundação Alexandre de Gusmão. Ao nosso Diretor Honorário,
Embaixador Fernando Guimarães Reis, que permaneceu interessado, participativo
e disponível, em todas as etapas, devemos a inspiração criativa e o crucial liame
institucional. Ao Embaixador Jeronimo Moscardo, igualmente, agradecemos
o apoio, não só para esta edição como para a anterior. Parabenizamos os
colaboradores, last but not least, por seus textos eruditos e engraçados, líricos e
engajados, belos e alarmantes.
Escrevemos essas palavras ao apagar das luzes. E agora, considerando em
retrospecto o ano que se passou, percebemos que a ansiedade se transformou na
compreensão de que a Revista, diferentemente de nós, deverá sempre permanecer
experimental, operando nos limiares entre a juventude e a grandeza, como o próprio
José Maria. Que venham os próximos Jucanos!

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sumário
APRESENTAÇÕES
03 Dos Editores
06 Expediente
07 Colaboradores

PERFIS
08 Ramiro, empregado do Brasil
– João Francisco Pereira
14 Embaixador Ovídio de Andrade Melo,
o Juca – Filipe Nasser

ESPECIAL: COMUNIDADES
BRASILEIRAS NO EXTERIOR
28 Presos no exterior –
Adriana Telles Ribeiro
36 Comunidades Brasileiras no espaço
MERCOSUL – Aloísio Barbosa de S. Neto
43 Desafios das migrações internacionais
ao Direito e ao Brasil – Leandro Vieira
49 Comportamento social e preconceito
– Mariana Lobato

ARTIGOS E ENSAIOS
56 Espartanos, mutantes e excluídos:
um ensaio sobre cultura e relações
internacionais – Paulo André Moraes de Lima
63 Sob o olhar cético: diplomacia e
cultura na Antigüidade
– Gabriella Guimarães Gazzinelli

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Juca número 02
68 Dança das Cadeiras: a reforma do Conselho de
Segurança das Nações Unidas
– Fábio Simão Alves
75 La cuestión del cambio en la Teoría de las
Relaciones Internacionales
– Romina Paola Bocache

PELO MUNDO
84 Uma experiência brasileira no Sudão
– Luiz Fernando Deo Evangelista
92 Heriberto, nosso homem em Havana: reflexões
literárias sobre a vida cultural em Cuba
– Felipe Krause Dornelles

RESENHA
100 O Amor nos Tempos do Cólera: amor, cinema
e literatura no universo de Gabriel Garcia
Márquez – Maurício Alves da Costa

POESIA E PROSA
104 Orientações importantes à nova musa
– Raphael Nascimento
108 Buenos Aires – Romina Bocache
110 Nuvem – César Nascimento
111 Arquitetura – D.G. Ducci
112 Papo de língua – Francisco Figueiredo de Souza
116 Buraco na parede – André Cortez

DEPOIMENTO
120 Crónicas de un emotivo encuentro entre Río
Branco e Isen – Silvina Aguirre, Sebastián Coronel,
M. Florencia Segura (ISEN)
122 Nota sobre a capa – Embaixador Ovídio de
Andrade Melo

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expediente

Comissão Editorial
Bruno Santos de Oliveira
Candice Sakamoto Souza Vianna
Carlos Augusto Resende
Carlos Kessel
Catarina da Mota Brandão de Araújo
Christiana Lamazière
Diretor Honorário Ciro Marques Russo
Embaixador Fernando Guimarães Reis Cristina Vieira Machado Alexandre
Daniel Afonso da Silva
Felipe Krause Dornelles – Editor-Chefe Fábio Simão Alves
Raphael Nascimento – Diretor Executivo Felipe Santos Lemos
Bruno Rodrigues – Editor de Resenhas Filipe Thomaz Mallet
Daniel Guilarducci – Editor de Poesia e Prosa Gabriela Guimarães Gazzinelli
Francisco Figueiredo de Souza – Editor do Gustavo da Cunha Westmann
Especial Comunidades Brasileiras no Exterior Gustavo Ludwig Ribeiro Rosas
João Francisco Pereira – Editor de Perfis João Augusto Costa Vargas
Pedro Brancante Machado – Editor de Leandro Antunes Mariosi
Artigos e Ensaios Maurício Gomes Candeloro
Leonardo Valverde – Relações Públicas Sydma Aguiar Damasceno
Mariana Lobato – Projeto Gráfico
Vanessa Bonifácio – Diretora Jurídica Direção de Arte e Diagramação
Vicente Amaral Bezerra – Diretor Financeiro Fabiana Marafiotti

Agradecimentos
Embaixador Ramiro Elysio Saraiva Guerreiro e Embaixatriz Maria da Glória Vallim Guerreiro;
Embaixador Ovídio de Andrade Melo; Embaixador Francisco Soares Alvim Neto; Embaixador
Jeronimo Moscardo ; Conselheiro Sérgio Barreiros de Santana Azevedo; Conselheiro
Sarquis José Buainain Sarquis; Conselheiro Geraldo Cordeiro Tupynambá; Secretário Pedro
Montenegro; Secretário Filipe Nasser, Secretário Eduardo Lessa e toda a Equipe JUCA 01;
Secretário Octavio Lopes; Clarissa Henriques e Silva; George Wanderley Costa Júnior e
Maria Nilva de Almeida.

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colaboradores Adriana Telles Ribeiro (turma 2006-2008 do
IRBr) é bacharel em Ciência Política pela New
School for Social Research.
Luiz Fernando Deo Evangelista (turma
2007-2009 do IRBr) é bacharel em Medicina
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e
pós-graduado em Relações Internacionais pela
Aloísio Barbosa de S. Neto (turma 2007-2009 Universidade Cândido Mendes.
do IRBr) é bacharel em Relações Internacionais
pela Universidade de Brasília. M. Florencia Segura (turma 2007-2008 do
Instituto del Servicio Exterior de la Nación
André Souza Machado Cortez (turma 2007- – ISEN) é formada em Direito e mestre em
2009 do IRBr) é bacharel em História pela Filosofia e Ciência Política pela Universidad
Universidade de São Paulo. Nacional de Mar del Plata.

César Nascimento (turma 2006-2008 do IRBr) Mariana Lobato Benvenuti (turma 2007-2009
é bacharel em Administração de Empresas pela do IRBr) é bacharel em Direito pela Faculdade
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. de Direito da Universidade de São Paulo.

Daniel Guilarducci Moreira Lopes, D.G.Ducci Maurício Alves da Costa (turma 2007-2009 do
(Turma 2007-2009 do IRBr) é bacharel em IRBr) é bacharel em Letras/Japonês e mestre em
História e bacharel em Biblioteconomia e Ciência Letras pela Universidade Federal do Rio Grande
da Informação pela Universidade de Brasília. do Sul.

Fábio Simão Alves (turma 2007-2009 do IRBr) Michel Laham Neto (turma 2007-2009 do
é bacharel em Relações Internacionais pela IRBr) é bacharel em Relações Internacionais pela
Universidade de São Paulo. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Felipe Krause Dornelles (turma 2007-2009 Paulo André Moraes de Lima (turma 2000-
do IRBr) é mestre em Desenvolvimento 2002 do IRBr) é bacharel em Comunicação
Internacional pela Universidade de Oxford. Social pela Universidade Federal Fluminense
e mestre em Comunicação e Cultura pela
Filipe Nasser (turma 2006-2008 do IRBr) Universidade Federal do Rio de Janeiro.
é bacharel em Relações Internacionais pela
Universidade de Brasília. Foi Editor-Chefe da Juca 01. Raphael Nascimento (turma 2007-2009
do IRBr) é bacharel e mestre em Relações
Francisco Figueiredo de Souza (turma 2007-2009 Internacionais pela Universidade de Brasília.
do IRBr) é bacharel em Relações Internacionais
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Romina Paola Bocache (turma 2005-2006 do
e bacharel em Comunicação Social/Jornalismo ISEN e turma 2007-2009 do IRBr) é formada
pela Universidade de São Paulo. Integrou o projeto em Direito pela Universidad de Buenos Aires,
“Universidades em Timor Leste” durante o com Medalha de Ouro, e pós-graduada em
segundo semestre de 2004. Diplomacia e Tecnologias da Informação e
da Comunicação pela University of Malta e
Gabriella Guimarães Gazzinelli (turma 2007- DiploFoundation.
2009 do IRBr) é bacharel em Letras/Grego
Antigo e mestre em Filosofia pela Universidade Sebastián Leonardo Coronel (turma 2007-
Federal de Minas Gerais. 2008 do ISEN) é formado em Direito pela
Universidad Nacional de Tucumán e pós-
João Francisco Pereira (turma 2007-2009 do IRBr) graduado em Relações Internacionais pelo
é bacharel em Comunicação Social/Jornalismo pela Instituto para la Integración y el Desarrollo
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Latinoamericano.

Leandro Vieira Silva (turma 2007-2009 do IRBr) Silvina Aguirre (turma 2007-2008 do ISEN)
é mestre cum laude em Direito Internacional é formada em Direito e mestre em Relações
Público pela Universidade de Leiden. Foi Internacionais pela Universidad de Buenos
Consultor Legislativo do Senado Federal, assessor Aires. Completou Curso de Aperfeiçoamento
técnico da CPMI da Emigração e revisor final do em Direito Internacional e Europeu de Direitos
Relatório apresentado pela Comissão. Humanos na Universidad de Alcalá.
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PERFIL
RAMIRO,
EMPREGADO
DO BRASIL
João Francisco Pereira

C orria o mês de janeiro de 1979, pouco antes da posse do novo


chefe do Executivo, quando o então Embaixador brasileiro em Paris foi
chamado com urgência a Brasília para uma audiência reservada com o
futuro Presidente. Diplomata experiente, exercera durante a gestão anterior
o cargo mais alto da carreira do Serviço Exterior brasileiro, a Secretaria-
Geral do Itamaraty. Presumia-se que o conteúdo da conversa embutiria um
convite oficial, ou pelo menos assim esperava, intimamente, o Embaixador.
Ao chegar à capital federal, não se decepcionara. Em pouco mais de meia-
hora, o General João Baptista Figueiredo convidava-o a assumir em seu
governo a pasta das Relações Exteriores, com o compromisso de manter
as bases da administração anterior, adaptando-as às transformações do
cenário externo. Ramiro Elysio Saraiva Guerreiro tornava-se, então, o 105°
chanceler da história do País.

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_perfil

Quando Figueiredo teve a certeza de que que o jovem Ramiro pudesse imaginar em
seu nome seria o escolhido pelo governo princípios de 1945, quando então com pouco
para a sucessão de Ernesto Geisel à frente mais de 25 anos ingressara definitivamente nas
da Presidência da República, uma mudança arcadas neo-coloniais daquele vistoso palácio
substancial já tivera início nas diretrizes básicas na antiga rua Larga, hoje avenida Marechal
da política externa nacional. Azeredo da Silveira, Floriano. Primeiro colocado em um concurso
que assumira o comando do Ministério das que também trouxera à carreira diplomática
Relações Exteriores anos antes, impusera uma nomes como Antônio Houaiss e João Cabral
nova linha à atuação internacional do Brasil, de Mello Neto, Saraiva Guerreiro muito se
resgatando alguns dos pressupostos da Política esforçara para estar ali. Alguns anos antes,
Externa Independente levada a cabo nos anos ao deparar pela primeira vez com a idéia
imediatamente precedentes ao golpe militar de de seguir a carrière, a falta de conhecimento

Eram muitos, pois, os desafios a serem enfrentados por


Saraiva Guerreiro à época de sua assunção à chefia do
Itamaraty. Nada que o jovem Ramiro pudesse imaginar
em princípios de 1945, quando então com pouco mais
de 25 anos ingressara definitivamente nas arcadas neo-
coloniais daquele vistoso palácio na antiga rua Larga,
hoje avenida Marechal Floriano.
1964. O pragmatismo responsável universalista em línguas estrangeiras o desestimulara. Ao
que reposicionara o país internacionalmente notar a dificuldade dos pais para custear-lhe
abrira, de fato, novos mercados aos produtos os estudos, dirigiu-se ao balcão do DASP
nacionais e estreitara laços econômicos, (o finado Departamento Administrativo
políticos e culturais com países antes do Serviço Público, de herança getulista) e
menosprezados pela diplomacia brasileira. perguntou sobre concursos para profissões
A conjuntura internacional ao final que lhe pagassem ao menos um conto e
da década de 70, entretanto, sofrera cem mil-réis mensais, o suficiente para arcar
grave mudança. O forte crescimento com as despesas da preparação. Acabou por
econômico do decênio, embutido na lógica virar comissário de polícia. A experiência em
desenvolvimentista de “Brasil potência” delegacias, contudo, durou pouco. Não tardou
e estimulado pelo pesado endividamento a lograr aquele que considerava ser o maior de
externo a juros flexíveis, não tardaria a seus objetivos: tornar-se um empregado, um
cobrar seu preço. O segundo choque do empregado do Itamaraty.
petróleo e o conseqüente aumento das taxas A expressão, que por sinal serve de
de juros norte-americanas teriam severas título a um livro de sua autoria, reflete
implicações ao país. A América Latina, perfeitamente o espírito com o qual Ramiro
subitamente, fora à bancarrota. Por todo o Saraiva Guerreiro se entregava à profissão.
continente, os recursos em caixa não eram Entreouvida, no princípio da carreira, de um
mais suficientes para honrar compromissos de seus primeiros chefes, Cyro de Freitas-
frente a credores internacionais. Para o novo Valle, a alcunha de “empregado do Itamaraty”
ministro, uma grande questão: como fazer seria levada consigo pelo resto da vida. Um
política externa em um contexto restritivo raciocínio simples e de fácil justificativa:
de contenção de despesas?
Eram muitos, pois, os desafios a serem “Achei que a expressão era
enfrentados por Saraiva Guerreiro à época enaltecedora: em primeiro lugar
de sua assunção à chefia do Itamaraty. Nada porque nosso emprego era de

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dedicação exclusiva e não podíamos alguns anos, deslocou-se o jovem Terceiro
mesmo servir a outro patrão; em Secretário para integrar os trabalhos da
segundo lugar porque a palavra Comissão de Direito Internacional.
‘empregado’, geralmente usada para As lembranças da carreira parecem
denominar domésticos, em minha tornar-se mais claras à medida que,
opinião, mesmo nesse caso é honrosa pausadamente, em tom baixo e professoral,
para esses trabalhadores de que tanto a vasta experiência vai sendo passada
dependemos; em terceiro lugar, porque adiante. A convicção é absoluta ao assumir
sublinha o aspecto de disciplina que é o papel protagônico na solução da
essencial à nossa carreira, embora ela contenda, que já se arrastava há alguns anos,
seja civil. Não há capacidade de mando com a Argentina no âmbito da construção
se antes não se obedeceu”. de Itaipu. Os fatos não o desmentem. Ao
assumir a chancelaria, o debate acerca
Prestes a completar 90 anos, o da inviabilidade de serem construídas
Embaixador vive sua aposentadoria ao duas hidrelétricas no mesmo Rio Paraná,
lado de Dona Glória, sua companheira há ainda mais considerando-se o tamanho
mais de seis décadas, em um confortável descomunal do empreendimento paraguaio-
apartamento no bairro carioca de Ipanema. brasileiro, parecia longe de ser resolvida.
Mantém-se cercado por fotografias da família As opiniões públicas de ambos os países,
e de seus tempos áureos, enquanto, todos insufladas pelo tom belicoso tradicional
os fins de semana, a juventude a caminho dos governos militares, exigiam, cada qual
da praia insiste em invadir a tranqüilidade para seu lado, uma saída que satisfizesse os
de sua rua. O olhar é carregado, mirando interesses estratégicos internos.
um horizonte imaginário e saboreando, aos O problema, porém, ao menos aos
poucos, à medida que vêm aos olhos, todos olhos do recém-empossado Chanceler,
aqueles momentos vividos tempos atrás. O não parecia se resumir a aspectos práticos
vigor físico talvez não seja o mesmo de há 30 envolvendo a construção de Itaipu. Para
anos, mas a memória e a lucidez continuam Saraiva Guerreiro, parecia claro que qualquer
a mesma do homem que viu, como poucos tentativa de consenso entre as partes não
e de forma tão próxima, a história do século seria possível enquanto o tema não passasse
XX ser construída. a ser tratado de modo unicamente racional.
Entrando para O excesso de carga política e emotiva que
o serviço exterior envolvia a questão acabava por dificultar
no apagar das luzes quaisquer possibilidades de acordo, o qual,
da Segunda Guerra para o novo governo, poderia ser facilmente
Mundial, Ramiro alcançado se fossem ressaltados apenas os
Saraiva Guerreiro elementos técnicos. A estratégia, singela, mas
testemunhou a profundamente estudada, começara já no dia
construção de uma de sua posse. Dentre todas as autoridades
das instituições presentes à Brasília, a que recebera
mais sólidas e mais maior atenção fora o brigadeiro-do-ar
importantes do reformado Carlos Pastor, o nome à frente
século XX. Quando da chancelaria argentina. Caberia aos dois
se mudou para Nova resolver o impasse em que se encontravam.
Iorque em meados de 1946, Em realidade, a conclusão de um acordo
o imponente prédio-sede das tripartite já quase obtivera êxito ainda
Nações Unidas às margens do na gestão anterior. Mas a insistência do
East River ainda nem saíra do governo brasileiro em acrescentar duas
papel. As reuniões da recém- outras turbinas às dezoito inicialmente
criada ONU ocorriam no planejadas acabara por levar as conversas
longínquo subúrbio de Flushing de volta à estaca zero. Sendo assim, sob a
Meadows, para onde, durante nova perspectiva, havia que se garantir que

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_perfil

as negociações regressassem, ao menos, aproximação. Há 40 anos um presidente


ao ponto em que já haviam anteriormente brasileiro não visitava oficialmente a
chegado. E, afinal, perguntava-se o alto capital argentina e apenas dois já o haviam
escalão do Itamaraty, o quão essenciais feito anteriormente: Campos Sales, nos
eram de fato essas turbinas adicionais? O primórdios da
gigantesco projeto inicial já não era, mesmo República Velha,
em longo prazo, suficiente para satisfazer a e Getúlio Vargas,
demanda energética nacional? antes mesmo de
Uma comissão de especialistas, a pedido instaurar o Estado
do novo ministro, encarregou-se das duas Novo. Figueiredo,
perguntas. As respostas, vindas ainda em ademais, tinha uma
meados de agosto de 1979, pouco mais relação especial
de quatro meses depois da posse do novo com a cidade, uma
Executivo, eram categóricas: não; não havia a vez que morara ali
necessidade imediata de que o planejamento em sua juventude
inicial fosse aumentado. O Brasil, numa acompanhando o
proveitosa exibição de boa-vontade política, pai, então exilado
poderia fazer concessões, demonstrando ao por ter sido um dos
governo argentino que trocava a expansão comandantes da Revolução
de um dos projetos mais importantes para Constitucionalista de 1932.
o seu progresso em troca de uma boa Dessa viagem, Saraiva
convivência com o mais importante de Guerreiro levaria para
seus vizinhos. O Embaixador, muitos anos sempre a singular aura de
depois, quando instigado a analisar o tema, emoção que a cercou. Em
hesitaria, humildemente, a assumir esse seu ápice, João Baptista
passo como fundamental ao surgimento do Figueiredo, general de quatro
Mercado Comum do Sul, eixo central da estrelas e antigo chefe do
política externa brasileira contemporânea. SNI, chorara copiosamente
A historiografia, contudo, pode ao ser recebido com honras
indubitavelmente afirmar que naquela tarde no Clube Atlético San Lorenzo de Almagro,
de 17 de outubro de 1979, reunidos em para o qual torcera durante a adolescência.
Ciudad Stroessner (atualmente, Ciudad del A lua-de-mel, que passara mesmo
Este), os chanceleres Ramiro Elysio Saraiva pela assinatura de diversos acordos de
Guerreiro, Carlos Pastor e Alberto Nogués cooperação entre os dois países seria,
abriam espaço para um novo momento nas entretanto, duramente abalada por um
relações internacionais do Cone Sul. episódio inesperado aos olhos do governo
O retorno à normalidade no que tange brasileiro, episódio este que, nas palavras do
ao relacionamento com aqueles que tão Embaixador, “foi uma das maiores surpresas
usualmente denominamos “hermanos” fora da minha carreira”. Em 02 de abril de 1982, a
conquistado. É com amplo e orgulhoso sorriso Argentina, tentando salvar um regime militar
nos lábios que o Embaixador rememora o que começava a tombar sob o peso de sua
que, pessoalmente, crê ser o ponto alto de sua própria ambição, invadia as Ilhas Malvinas.
gestão. Brasil e Argentina, que durante grande A notícia alcançara o Ministro das Relações
parte do século XX tanto haviam insistido Exteriores ainda de pijamas, supreendendo-
em dar as costas um ao outro, voltavam a o enquanto descansava em uma rápida
encontrar-se próximos, unidos, buscando, escala em Nova Iorque após viagem à
como as décadas seguintes terminariam por China. Os jornalistas que acompanhavam
corroborar, um futuro comum. a comitiva amontoavam-se na ante-sala
Um novo momento se iniciara, e o da suíte onde se hospedara o Chanceler,
convite para que o general Figueiredo esperando o posicionamento oficial do
realizasse, em maio de 1980, visita a Buenos governo brasileiro. O Ministro fora pego de
Aires era a prova irrefutável do sucesso da surpresa; e duplamente. Além do choque da

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notícia em si, Saraiva Guerreiro era capaz de argumentação, e apesar de alguns atritos
relembrar vivamente o encontro que tivera inerentes à gravidade do conflito, as relações
em Brasília, apenas alguns meses antes, com bilaterais com ambas as partes conseguiram
sua contraparte argentina, agora representada ser mantidas de forma harmônica. Ademais, por
pelo doutor Nicanor Costa Méndez. Este, ser respeitado por ambas as partes, o Brasil,
embora afirmasse que a questão envolvendo de junho de 1982 a fevereiro de 1990, seria
as Malvinas era de fato prioritária aos o responsável por representar os interesses
argentinos, dera claras indicações de que argentinos junto ao governo de Londres.
qualquer solução para o litígio seria buscada A vida de Ramiro Elysio Saraiva Guerreiro
por intermédio da Assembléia-Geral das há muito já não é envolvida por alvoroços
Nações Unidas. de tal monta. Os tempos de chancelaria,
O Embaixador, então, em um momento os tempos de crise econômica, os tempos
que imediatamente identificara como um de embaixada, os tempos de empregado
dos mais delicados que já havia enfrentado, do Itamaraty já ficaram para trás. Este
tentou se concentrar, procurando uma saída senhor que parcimoniosamente chega a sua
que satisfizesse minimamente os anseios da nonagésima década já parece ter realizado
imprensa e que permitisse, ao menos, que tudo o que esperara de sua vida, talvez até
algumas horas fossem ganhas até o regresso mais do que sonhara quando resolveu, jovem,
ao Brasil. Uma declaração urgia e não havia a optar pelo Serviço Exterior nacional. Agora,
quem recorrer. sempre em companhia de Dona Glória,
Vinte e seis anos mais tarde, ao relembrar descansa confortavelmente em Ipanema,
a insólita situação, Ramiro Saraiva Guerreiro acompanhado de notícias de seus dois
repetiria, sorrindo largamente, o que já filhos, dois netos e um bisneto. Este último
dissera em seu livro de memórias: naquela certamente ouvirá falar do bisavô como
longínqua manhã de 1982 fora salvo por pertencente a um tempo fundamental para a

Este senhor que parcimoniosamente chega a sua nonagésima


década já parece ter realizado tudo o que esperara de sua
vida, talvez até mais do que sonhara quando resolveu, jovem,
optar pelo Serviço Exterior nacional.

um anjo da guarda. O pronunciamento política externa brasileira, tempo,


viera certeiro e sem hesitações. O este, definidor dos parâmetros
Brasil, em 1833, ainda à época regencial, nos quais o País passou a basear
quando da invasão britânica às Malvinas, sua atuação internacional. Em
reconhecera as ilhas como território realidade, sua vasta experiência
argentino. Historicamente, contudo, talvez possa ser resumida em um
o governo brasileiro posicionava- sublime leitmotiv:
se favoravelmente à solução pacífica
de quaisquer conflitos, estimulando, “Esforçemo-nos pela
portanto, que também esta contenda melhora da condição humana
fosse resolvida por meios políticos. conforme nossas convicções
Esse fora o modo encontrado para do que é direito e do que é
que a neutralidade brasileira fosse necessário para a felicidade do
plenamente embasada. Uma justificativa homem, mas não pensemos que nossas
histórica pendia para o lado argentino, mas convicções sejam absolutas e possam ser
havia que se ressaltar, como predicado eficazmente impostas. Lembremo-nos
intrínseco à nação brasileira, a busca por ainda do que dizem os italianos: ‘La vita é
desenlaces conciliatórios. Fazendo uso dessa bella perché é varia’ – variada e difícil”.

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_perfil

EMBAIXADOR OVÍDIO
DE ANDRADE MELO,

O JUCA
Filipe Nasser

A coincidência é mesmo fortuita, à diferença daquela entre o nome


desta publicação e o apelido de juventude do ex-Chanceler cujo título
nobiliárquico batiza a academia diplomática brasileira – esta evidentemente
proposital. O Juca cujas memórias estas páginas percorrem é o “nom de
1

peintre” de outro notável diplomata brasileiro, bastante menos celebrado


nos livros escolares do que o patrono da diplomacia brasileira. Que não se
pretenda com isso apequenar a figura do Barão do Rio Branco e seu legado
para o ethos, thelos e, ufa!, modus operandi da política externa brasileira sob
o manto republicano: faltam exatamente homenagens ao outro Juca, ao
Embaixador Ovídio de Andrade Melo, nosso homem em Luanda às vésperas
da independência angolana.

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_perfil

Juca é a assinatura que consta do rodapé libertação nacional. Ovídio seria também
dos quadros – inspirados nos métodos e responsável pela instalação do Escritório
imagery da arte naïf – que Ovídio de Andrade de Representação brasileiro e, após a
Melo pinta desde 1969, quando era o Cônsul- independência, da futura Embaixada em
Geral do Brasil em Londres. O apelido teria Luanda. A intenção do Governo brasileiro
sido dado pela esposa, Dona Ivony, em alusão era ser o primeiro país a chancelar o novo
à sua teimosia em pintar até as “wee hours of status da ex-colônia lusa em sua estréia na
the morning” da capital britânica2. comunidade das nações.
Em Londres, vale a curiosidade, havia sido Em Luanda, Ovídio mantinha interlocução
chefe do Chanceler Celso Amorim, então em com as três forças que disputavam
seu primeiro posto no
exterior. Antes, Ovídio
havia servido no Consulado Em Londres, vale a curiosidade,
em Toronto, na Embaixada
em Lima, no Consulado havia sido chefe do Chanceler Celso
em Cobe, na Missão junto
à OEA e nas Embaixadas Amorim, então em seu primeiro
em Buenos Aires e em
Argel. No Ministério das posto no exterior.
Relações Exteriores, havia
sido chefe da prestigiosa Divisão das Nações a hegemonia política na Angola pré-
Unidas e Chefe de Gabinete do Embaixador independência e que na capital tinham, cada
Sérgio Corrêa da Costa quando Secretário- uma, o seu Primeiro-Ministro no governo de
Geral. Depois de Angola, seria ainda nosso transição: o Movimento Popular de Libertação
Embaixador em Bancoc e Kingston3. de Angola (MPLA), de Agostinho Neto,
A passagem que, no entanto, singularizou inicialmente baseado na Tanzânia; a Frente
a carreira do Embaixador Ovídio de Nacional de Libertação de Angola (FNLA), de
Andrade Melo foi seu protagonismo em um Holden Roberto, sediado no Zaire; e a União
dos momentos mais ousados da história Nacional para a Independência Total de Angola
diplomática brasileira recente. Nos meses (Unita), cuja base era Nova Lisboa, localizada
que separaram o Tratado de Alvor, em 10 no planalto central angolano. A decisão do
de janeiro de 1975, da independência formal governo brasileiro de manter diplomatas em
de Angola, em 11 de novembro do mesmo Luanda, é preciso dizer, se deu na contramão
ano, o então Cônsul-Geral em Londres foi das outras repartições estrangeiras, que
convidado a servir provisoriamente em fecharam suas portas ao rufar dos tambores
Luanda, por recomendação de Ítalo Zappa – para o reinício da guerra civil.
seu amigo de juventude, conterrâneo de Barra Depois de meses de observação da
do Piraí e então Chefe do Departamento evolução da política local e tendo em vista
de África, Ásia e Oceania do Itamaraty. O que havia elementos suficientes para levar a
convite era para ser Representante Especial crer que o MPLA havia expulsado de Luanda
do Brasil junto ao Governo de Transição de os dois outros movimentos, o representante
Angola, que reunia os três movimentos de brasileiro sugeriu ao Chanceler Azeredo da

1 O autor agradece aos Embaixadores Arnaldo Carrilho, ao Embaixador Fernando Reis e à Embaixatriz Ivony de Andrade Melo
pelos gentis depoimentos e, muito especialmente, ao próprio Embaixador Ovídio de Andrade Melo pela entrevista generosamente
concedida com a finalidade de redigir este ensaio. Agradece também os amigos Gustavo Pacheco, Carlos da Fonseca e João Vargas
pela inspiração, leitura e sugestões.
2 Entrevista com o Embaixador Ovídio de Andrade Melo, Rio de Janeiro, 17/5/2008.

3
Cf. MRE. Anuário do Pessoal. Brasília: sem editora, 1992, p. 560

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Silveira que o Brasil deveria estar preparado povos sob a guarida de Lisboa. Além disso,
para reconhecer a vitória militar e o governo a África lusófona se afigurava como porta
de facto do MPLA. Pareceu a Ovídio o de entrada natural para a aproximação
mesmo que já era aceito pelos observadores com o continente africano, que, por sua
internacionais em solo africano: as eleições vez, constituía prioridade na estratégia
previstas em Alvor seriam de impossível universalista da política externa de Geisel e
realização e a força comandada por Agostinho Azeredo da Silveira, cujas sementes haviam
Neto já governava Angola em meio à guerra sido lançadas por Jânio Quadros e Afonso
civil. No primeiro minuto de 11 de novembro Arinos e pelos demais progenitores da
de 1975, quando os panos rubro-verdes Política Externa Independente.
deram lugar à bandeira da mais nova nação Operador e um dos artífices de um desses
africana alforriada dos grilhões coloniais, a flashes de nossa história diplomática em
Embaixada brasileira se tornaria a primeira que o Brasil desiste de ser espectador do
missão diplomática permanente aberta na concerto das nações para integrar a orquestra,
capital, e estava apta para funcionar. Ovídio, no entanto, não desembarcou da
Ovídio havia desembarcado em Luanda, África coberto das glórias dispensadas, por
de Londres, em janeiro de 1975. Só em exemplo, ao seu “xará” Juca Paranhos após
agosto expediu o telegrama em que conquistar, em Washington, a vitória no litígio
aventava a necessidade de reconhecer o fronteiriço com a Argentina. Pelo contrário,
MPLA, vitorioso pelas armas, quando a data o Juca de Barra do Piraí foi sistematicamente
prevista para a independência chegasse. O preterido em sua promoção a full-Ambassador
despacho do Itamaraty informando que o pelo estamento militar que então controlava
reconhecimento da independência angolana o Estado brasileiro e acusado de ter rendido
pelo governo brasileiro seria feito em 10 seu compromisso patriótico de ofício às suas
de novembro, às 8.00 da noite, horário de simpatias ideológicas.
Brasília, de modo que, dada a diferença de
fusos horários, tivesse efeito exatamente
à meia noite em Luanda. Tal comunicado,
que só chegou às mãos de Ovídio na Descortinemos o pano de fundo: na esteira
véspera, informava que na mesma data do da Revolução dos Cravos, também posta
reconhecimento seria levado o decreto na rua para dar cabo ao império colonial
que determinava a abertura da Embaixada lusitano, o jovem governo de Lisboa reuniu
do Brasil em Luanda para assinatura do MPLA, FNLA e Unita, em Alvor, no sul de
Presidente Geisel. Portugal, num esforço de conciliação política
A decisão de o Brasil ter sido o primeiro que culminou na montagem de um Governo
país a reconhecer Angola como Estado de Transição tripartite. Em Alvor, foi agendada
independente, em meio a uma disputa a retirada das tropas portuguesas de
política local gradualmente contaminada território angolano para 30 de abril daquele
pelos vícios da Guerra Fria, importou gesto ano e, mais importante, estabelecida a data
de outrora rara autonomia, coragem e “mágica” de 11 de novembro de 1975 para
ativismo diplomáticos. A manobra brasileira casar o direito de autodeterminação angolano
foi decorrente exclusivamente de uma leitura com sua respectiva soberania.
do interesse nacional gestada entre as quatro O movimento angolano não estava
paredes do serviço diplomático brasileiro, historicamente isolado, na medida em que
desvinculada dos movimentos de maré do então sucumbia, de uma vez por todas, o
conflito bipolar. Não seria exagerado atestar império colonial português. Em setembro
que também reinventou o compromisso da de 1973, a Guiné-Bissau já havia declarado
política externa brasileira com o continente unilateralmente sua independência; Portugal
africano, até então claudicante quanto ao a reconheceria no ano seguinte. Moçambique
apoio ao direito de autodeterminação dos perfilaria sua bandeira no pavilhão das

_17
_perfil

Nações Unidas ainda em 1975. O Timor- questionável, uniu forças à Unita, em outubro
Leste, embora fosse logo em seguida ocupado de 1975, para avançar em uma blitzkrieg de
pela Indonésia, se preparava, naquele mesmo duzentos tanques em direção a Luanda e lá
contexto, para berrar sua liberdade. Ressaca tentar tomar o poder antes da independência.
dos ventos de abril... Como reação aos movimentos de Pretória,
Em Angola, a despeito da solução de Havana passou a enviar tropas, recursos e
compromisso arrancada de Alvor, em janeiro, conselheiros militares para fortalecer o MPLA4.
em prol da divisão das pastas ministeriais Em agosto, entretanto, o MPLA já tinha
do governo de transição entre as forças de conquistado Luanda, expulsando os outros dois
Agostinho Neto, Holden Roberto e Jonas movimentos e estancando militarmente seu
Savimbi, o março de 1975 testemunhou regresso. Com a vitória nos campos de batalha,
o ressurgimento de combates fratricidas passou a executar funções administrativas
que ressuscitaram a guerra civil, que só e a tocar o governo de transição sem
seria apagada um quarto de século depois. concorrentes. Com a aproximação da data
Livres dos combates com as metrópoles, os marcada para a independência, a questão
postuladores do timão angolano fatiaram o do reconhecimento estrangeiro tornava-se
país em busca do controle territorial de suas seminal para a conclusão do processo de
porções, em particular da capital, e deram descolonização e para a fundação do Estado
sinal verde para intervenções estrangeiras angolano independente. Só que o calcanhar de
transformarem o fim de uma batalha pela Aquiles do MPLA era menos sua plataforma
descolonização em uma arena para os de governo do que sua origem ideológica, esta
gladiadores sob procuração de Moscou e “exótica” ante os olhos do Ocidente.
de Washington.
Acusado de “satélite do Kremlin” e de
tentar instalar uma república comunista no
oeste da África, o MPLA, despertou, desde A rápida missão do Embaixador Ítalo
o seu nascedouro, calafrios em Washington. Zappa a Tanzânia, Zâmbia e Etiópia, em
Para contrarrestar o apoio soviético às forças novembro de 1974 (anterior, portanto, da
de Agostinho Neto, a CIA passou a financiar abertura da Representação Especial), tinha
o FNLA e,
posteriormente,
a Unita, sem É razoável supor que, ademais de
muita parcimônia.
O governo da deixar um legado para a nova política
África do Sul,
aventurando-se africana da diplomacia brasileira, a
em política de
intervencionismo missão ovidiana importou altas doses de
regional de
legalidade sacrifício pessoal para seu protagonista.

4 A cronologia da chegada das tropas cubanas a Angola é importante para compreender a batalha de argumentos em que
Ovídio Melo seria posteriormente envolvido. Henry Kissinger afirmara que soldados cubanos estavam em Angola desde os
enfrentamentos de março. Ovídio afirma que eles só chegariam com o advento da independência, constatando que, antes disso,
só seria possível “no máximo, admitir a presença de poucos conselheiros militares esparsos incógnitos na capital, ou ocultos no
interior do país. Quanto a tropas cubanas e artilharia, só desembarcaram em Luanda na noite mesmo da independência, depois
que a última autoridade portuguesa saiu de Angola, quando Agostinho Neto discursava em praça pública e proclamava Angola
livre. Esse reforço cubano saiu do aeroporto vazio e escuro e foi imediatamente transportado para a frente de batalha, a fim de
enfrentar e derrotar os tanques sul-africanos.”

_18
como objetivo expor às lideranças angolanas exilado Agostinho Neto, e, finalmente, para
e moçambicanas, ainda então exiladas, a o sul do país, para conversar com Savimbi.
mudança de posição brasileira em relação Seu objetivo era contar com anuência das
à descolonização das antigas possessões três forças para abertura do Escritório de
portuguesas. A decisão de reconhecer Angola Representação brasileiro. Das conversas,
e de manter um representante brasileiro no colheu a aprovação dos três chefes, que
país durante todo o governo de transição demonstraram variados graus de entusiasmo
foi tributária dessa mudança de ventos. De quanto à iniciativa da diplomacia brasileira.
acordo com Ovídio, Notou que Agostinho Neto era o mais
preparado dos líderes e o mais interessado
“Silveira pretend[ia] antecipar o e na nova política angolana do Itamaraty.
relacionamento político do Brasil Savimbi – cuja morte, em 2002, poria
com as colônias portuguesas que se finalmente termo à guerra civil angolana
encaminhavam para a independência. E, – pareceu-lhe o mais alheio e indiferente às
para isso, ainda no período de transição, posições políticas que o Brasil havia tido ou
pensava em abrir em Lourenço Marques demonstrava querer ter com Angola e com a
[futura Maputo] e Luanda uma espécie África em geral.
de embrião de Embaixada, para tratar A esta altura, é importante ressaltar
com os movimentos negros que que o Brasil tinha se comprometido com a
Portugal qualificasse como candidatos neutralidade entre as três forças angolanas.
ao poder.”5 Segundo o Representante Especial, foi
somente a realidade dos fatos o motivo do
Zappa tinha ciência de que a oscilação reconhecimento do governo do MPLA.
brasileira em governos anteriores,
excessivamente ciosos das relações com “Fui então para Angola com
Portugal, era recebida com ressentimento instruções para ficar neutro, sem
pelos libertadores e libertados africanos. favorecer qualquer partido, em eleições
A Frelimo, por exemplo, dera evidentes ou lutas que ocorressem, como
demonstrações de desconfiança quando o executor de uma política que era
Brasil buscou reconhecer a independência bem nacional apenas porque parecia
de Moçambique. Recusou a abertura da inspirada em Machado de Assis: ‘Ao
representação especial em Lourenço Marques, vencedor, as batatas’”7.
porque preferia ver como o Brasil se
comportaria em Angola com respeito à isenção O representante brasileiro se situava em
proclamada pelos representantes brasileiros. um conflito antes sobre autodeterminação
O reconhecimento de Angola viria, depois do que sobre ideologia política em que, não
de novembro6, a manobrar a má-vontade obstante, a Guerra Fria estendia suas garras:
moçambicana em relação à política africana
do Brasil e facilitaria, posteriormente, a maior “O Brasil teve que agir e ser visto
penetração do Brasil na África lusófona. como agindo como um observador
Antes de fixar-se em Angola, Ovídio se estrangeiro imparcial em um contexto
deslocou para o Zaire, para encontrar-se extremamente complicado. Ao final de
com Holden Roberto, para Tanzânia, onde 1975, [Angola] tinha se tornado palco
pela primeira vez entrevistou-se com o ainda para agentes da CIA, tropas cubanas e

5 ANDRADE MELO. Ovídio de. “O reconhecimento de Angola pelo Brasil em 1975” In ALBUQUERQUE, José Augusto
Guilhon de (org). Sessenta Anos de Política Externa, Vol III. O desafio geoestratégico. São Paulo: Editora NUPRI/USP, 2000, p. 350.
6 O Brasil reconheceu a independência de Moçambique apenas 4 dias depois, em 15 de novembro.

7
ANDRADE MELO (2000), p. 365.

_19
_perfil

sul-africanas, fundos dos EUA, China escritório no país. Assim Ovídio


e da URSS, mercenários, conselheiros demonstrou a lógica de seu raciocínio
e serviços secretos. Os diplomatas diplomático:
brasileiros tiveram que estabelecer
contato com os três movimentos “Se havíamos chegado a Luanda com
concorrentes de forma que sua promessa de isenção, equanimidade,
‘representação especial’ trabalhasse neutralidade entre os movimentos
como se não tivesse favoritos na angolanos que se disputavam o poder –
contenda doméstica angolana.”8 como poderíamos em agosto voltar atrás
e retirar a Representação Especial, agora
Com a escalada da guerra civil e que MPLA saíra nitidamente vencedor
exercício do Governo do MPLA, o corpo e se aprestava, com indiscutível e amplo
consular em Luanda foi desidratando. apoio popular, a assumir o poder?”9
Zappa, em passagem de 24 horas pela
capital angolana nas alturas de agosto
(momento em que o MPLA já tinha
tomado o poder), sugeriu o fechamento É razoável supor que, ademais
do escritório de representação, ao que de deixar um legado para a
Ovídio manifestou-se contrariamente. nova política africana da
O argumento de Ovídio era o de que o diplomacia brasileira, a
reconhecimento da independência – ou a missão ovidiana
legitimação do governo do MPLA, segundo importou
os críticos – equivaleria exatamente à altas
manutenção da política de neutralidade,
uma vez que negligenciar a vitória já
concretizada seria negar ao partido
de Agostinho Neto o direito
de igualdade garantido
desde a decisão de
instalar um

_20
doses de sacrifício pessoal para seu militar brasileira, cuja afeição por qualquer
protagonista. Amparado por somente mais um movimento de esquerda era insuspeita,
diplomata no Posto na maior parte do tempo, uma decisão de Estado lastreada por um
nos primeiros seis meses, pelo Conselheiro cálculo diplomático foi interpretada por
Cyro Cardoso e nos meses restantes, pelo setores mais “realistas do que o rei” como
Secretário Raul de Taunay, Ovídio viu-se mais aproximação com os comunistas.
que privado dos confortos da Londres que o O Ministro do Exército Sylvio Frota,
abrigara meses. Entretanto, manteve-se tenaz na qualidade de porta-voz da linha-dura,
em seu propósito de transformar o Escritório enxergou uma ameaça soviética embutida
do antigo Consulado numa futura Embaixada na vitória de Agostinho Neto projetando-se
e, principalmente, relatar ao Itamaraty as transatlanticamente contra o Brasil. Frota
minúcias da incrementalmente complicada abriu o manifesto que divulgou em 1978,
política angolana. quando tentou depôr Geisel, com a seguinte
Em depoimento de quando já estava referência: “convenci-me de que Geisel
assentada a poeira dos tempos, nosso homem estava levando o Brasil para o comunismo
em Luanda rememora: quando reconheceu Angola”. E, depois, em
livro publicado postumamente, desferiu:
“Estava numa cidade sitiada, onde
faltava comida, água e luz de vez em “Não se compreende como o
quando e onde as dificuldades de vida governo brasileiro, representante de
eram tremendas. Somente a organização uma revolução visceralmente contrária
de minha mulher conseguiu fazer com ao marxismo, fosse o primeiro, no
que aquelas dezesseis pessoas que concerto universal das nações, a
estavam comigo pudessem manter-se estender a mão ao governo de Luanda,
durante um ano em Angola, porque ela de legitimidade discutida, quando
montou um verdadeiro armazém e um Portugal, onde pululavam os comunistas,
verdadeiro hospital. Tivemos de blindar só o faria depois de três meses.”11
as janelas mais expostas a tiroteios, e
mesmo assim a casa do consulado foi O Estado de S. Paulo atribuiu a decisão à
metralhada de alto a baixo.”10 suposta filiação esquerdista de Ovídio, Zappa
e Silveira, submetendo-lhes as lealdades antes
Mais do que desconforto físico ao a Moscou do que a Brasília:
representante brasileiro, contudo, o
pioneirismo do reconhecimento da “O reconhecimento extemporâneo
independência angolana cobrou ao [da independência de Angola] foi inspirado
desenho de política externa de Geisel e de pelos embaixadores Azeredo da Silveira,
Silveira e, particularmente, ao Embaixador Ítalo Zappa e Ovídio de Andrade Melo.
Ovídio de Andrade Melo críticas das Os três eram esquerdistas notórios e
metralhadoras mais conservadores da favoráveis a um alinhamento automático
sociedade brasileira. Neste episódio em com os interesses e projetos da União
particular da “longa noite” da ditadura Soviética.”12

8 Tradução livre de SPEKTOR, Matias (2006), p.190.


9 ANDRADE MELO (2000), p. 373.
10 Fala de Ovídio de Andrade Melo em: Homenagem ao Embaixador Ovídio de Andrade Melo e, em caráter póstumo, ao

Embaixador Ítalo Zappa. In REBELO, Aldo, FERNANDES, Luis & CARDIM, Carlos Henrique. Seminário Política externa para o século
XXI. Brasília: Câmara dos Deputados, 2004, p. 551.
11 FROTA, Sylvio. Ideais traídos. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2006, p. 185.

12
Editorial de O Estado de S. Paulo, 1º/10/1987.

_21
_perfil

A propósito da opinião de Frota e da polêmica quanto a ter desacatado as


disputa inter-burocrática em questão, Ovídio instruções do Itamaraty a propósito do
ponderou, talvez com algum exagero: reconhecimento, embora a documentação
oficial adormecida nos porões do Ministério
“Havia uma grande discordância das Relações Exteriores proteja sua
entre o Ministério da Guerra e o fidelidade ao Itamaraty. Despacho telegráfico
Itamaraty, felizmente sustentado este de 6 de novembro de 1975 do Itamaraty
pelo Presidente. Mas como o MPLA, para o Escritório de Representação
desde agosto de 1975 até hoje, se esclarece: “O Governo brasileiro, que já
encontra em poder em Angola, é de mantém essa Representação Especial em
se ver que, se tivesse prevalecido na Luanda, pretende reconhecer no dia 11 o
política externa a opinião de Sylvio Governo que vier a ser instalado em Luanda.
Frota, talvez até hoje não tivéssemos Vossa Excelência poderá antecipar esta
reconhecido Angola.”13 informação a esse Governo.”16
A publicação de “In search of enemies”, em
Em face das pressões domésticas ante a 1978, de John Stockwell, chefe da CIA em
possibilidade de reconhecimento de Angola Angola durante o episódio, adicionaria lenha
com um governo comunista, suspeita-se que à fogueira: além de desnudar as artimanhas
a sugestão do Embaixador Zappa de fechar a da agência de inteligência norte-americana
representação tenha sido causada menos por para fortalecer o FNLA, reconheceu que a
solidariedade fraternal quanto às precárias posição brasileira estava coerente com a
condições em que Ovídio trabalhava do que realidade dos fatos e que, por confrontar
por um passo atrás na decisão brasileira seus interesses no país, admite que a CIA
– opinião esta repudiada contundentemente teria pressionado o Governo brasileiro
pelo próprio Zappa14. Ovídio seria ainda a sacar Ovídio de Luanda. O Itamaraty
acusado de ter
negligenciado a
presença de tropas A publicação de “In search of enemies”,
cubanas em Angola,
após Kissinger em 1978, de John Stockwell, chefe da
ter denunciado,
já no varrer de CIA em Angola, adicionaria lenha
praças das festas
de independência, à fogueira: (...), reconheceu que a
a presença de
volumosas levas posição brasileira estava coerente com
de emissários de
Castro ao país15. a realidade dos fatos e que, (...), admite
No calor da hora,
o Representante que a CIA teria pressionado o Governo
Especial foi também
envolvido numa brasileiro a sacar Ovídio de Luanda.
13 Entrevista com Ovídio de Andrade Melo, Rio de Janeiro, 17/5/2008.
14 Cf. PINHEIRO, Letícia. Foreign policy decision-making under the Geisel government: the President, the military and the foreign
policy. London School of Economics and Political Science, Tese de Doutorado, 1994, p. 284-5.
15 Cf. ANDRADE MELO (2000), p. 379-80.

16 Despacho telegráfico n. 393, 6/11/1975. Reproduzido em GARCIA, Eugênio Vargas (org.). Diplomacia Brasileira e Política

Externa: Documentos Históricos (1493-2008). Brasília, 2008, no prelo.

_22
retrucou, por meio de seu porta-voz, do Brasil em Luanda foi aberta e o
que jamais acataria pressões de governos fato comunicado ao Itamaraty. Passei
estrangeiros e que Ovídio agiu seguindo a ser designado como Encarregado
ordens expressas do Governo brasileiro. de Negócios de uma Embaixada que
Ovídio, entretanto, havia de fato sido legalmente ainda não existia”.19
substituído de Angola em um processo que
não foi bem esclarecido. O decreto seria finalmente assinado nas
Pressionados pela miopia ideológica (ou derradeiras horas daquele 1975. E depois
interessada) dos que queriam enxergar de ser Representante Especial em Angola,
um títere soviético sentado no Gabinete comissionado e apresentado como Embaixador;
do Chanceler brasileiro, Geisel e Azeredo depois também de ser nomeado como
da Silveira mantiveram a decisão de Embaixador para as festas da Independência,
reconhecer o “Governo instalado”17 em Ovídio Melo afirma que não poderia aceitar
Luanda, mas optaram por imprimir, em ser rebaixado a Encarregado de Negócios na
um segundo momento, um “low profile” às Embaixada criada após a Independência.20
relações bilaterais. Para isso, em telegrama Silveira designou, então, por telegrama ao
particular, Silveira recomendou que Ministro das Relações Exteriores de Angola,
Ovídio Melo evitasse manter contato com José Eduardo dos Santos, o então Conselheiro
autoridades do Governo angolano. Ovídio Affonso Celso de Ouro Preto como novo
respondeu que isso era impraticável, uma Encarregado de Negócios. Ovídio esperou que
vez que a Embaixada do Brasil era a única Ouro Preto chegasse à capital angolana e, então,
que estava instalada e ainda “porque todas passou-lhe o serviço. No entanto, ao chegar
as novas autoridades tendiam a procurar a Lisboa em seu regresso ao Brasil, Zappa
insistentemente a colaboração do Brasil e Silveira pediram-lhe para voltar a Luanda
com o novo Governo”18. A intenção de imediatamente, a fim de descobrir por que
Silveira era baixar a temperatura dos Ouro Preto não fora devidamente credenciado
críticos, sobretudo dos círculos militares, como novo representante do Brasil. Ovídio
sem, ao mesmo tempo, melindrar Luanda voltou então para Luanda, teve um encontro
e Maputo. com o Ministro Santos, e logo ficou esclarecido
Silveira optou então, por retirar Ovídio que Affonso Ouro Preto havia sido confundido
de Angola, inclusive porque, desde a com Silvestre Ouro Preto – seu meio-irmão e
Independência, o Juca de Barra do Piraí ex-Embaixador do Brasil em Lisboa, que havia
queria deixar o serviço provisório em visitado Angola dez anos antes e, na ocasião,
Luanda. Ovídio Melo nota, a propósito da fizera um discurso de teor colonialista do
situação em que foi deixado em Angola que: qual os novos líderes angolanos não haviam
se esquecido. Entre idas e vindas, Ovídio pôde
“O Itamaraty por esquecimento finalmente partir de Luanda. O Itamaraty
ou prudência não levou o decreto informou que a partida era por “motivos de
de abertura da Embaixada do saúde” do Representante – o que, segundo
Brasil em Luanda para assinatura, e Ovídio Melo, era de fato verdadeiro.
esqueceu de comunicar este fato ao Assim Letícia Pinheiro interpreta a
representante em Luanda. Assim, na simbologia política da maneira como foi
data da independência a Embaixada conduzida a saída de Ovídio de Angola:

17 A Nota de 10/11/1975, cuidadosa com a linguagem empregada, adota o termo “Governo instalado”, omitindo a designação
específica do MPLA, o que não deixa de ser consoante à política inicialmente concebida.
18 Entrevista com Ovídio de Andrade Melo, Rio de Janeiro, 17/5/2008.

19 Idem.

20
Ibidem.

_23
_perfil

“Ao recusar fornecer explicações Paulo Fagundes Vizentini parece concordar


adicionais [sobre sua saída de Luanda], com a pertinência do cálculo brasileiro:
o Itamaraty fez de Ovídio de Melo um
bode expiatório. Deliberadamente ou não, “Angola era um dos países
o Itamaraty possibilitou a interpretação mais interessantes para o tipo de
de que o reconhecimento do governo relacionamento que o Brasil buscava.
do MPLA poderia ser enxergado como Sua riqueza em petróleo, minério de
resultado de um erro de interpretação ferro e diamantes, e a língua comum,
humano e, portanto, punível.”21 permitiria e facilitaria o intercâmbio
comercial, técnico e de know how.
O Brasil, a partir dos estudos de
Zappa, concluíra que o governo do
Com o beneficio do retrospecto, a MPLA tinha mais chance de vencer a
História e a historiografia redimiram o disputa. Ora, o cálculo brasileiro foi
gesto – executado por Ovídio em Luanda no sentido de ganhar a confiança do
e pilotado por Zappa e Silveira de Brasília MPLA o mais cedo possível, até para
– quanto ao que foi percebido à época contrabalançar uma influência excessiva
como inconseqüência esquerdista da dos soviéticos.”23
diplomacia brasileira, despida de qualquer
sentido de pragmatismo. O fato de que o Kissinger reconheceu em seu livro de
MPLA permanece no poder até os nossos memórias o equívoco da política externa
dias é argumento eloqüente do acerto da norte-americana para Angola e o mérito da
diplomacia brasileira. independência diplomática do Brasil na questão.
Elio Gaspari, em sua obra de fôlego sobre
o regime militar brasileiro, compreendeu “Num ponto crucial da crise
a rationale de um gesto que, mais que angolana, quando reclamei por que o
tributário de colorações ideológicas, se Brasil reconhecera o MPLA (...), Silveira
pautou estritamente por uma leitura do lembrou-me que o interesse nacional
interesse nacional: brasileiro estendia-se às possessões
portuguesas na África. Era uma
“A maior potência do mundo continuidade que nenhuma outra antiga
e a mais poderosa nação africana colônia reivindicara. O Brasil se sentia
[África do Sul] haviam-se metido livre para consultar seus interesses
numa encrenca porque acreditaram e sua história, até porque nós não o
que a disputa angolana deveria ser havíamos consultado nem informado a
estudada dentro de uma construção respeito de nossas intenções.”24
geopolítica. As duas desprezaram a
opinião de seus diplomatas. O Brasil, A pergunta que não quer calar: teria
país governado por militares, evitara o Embaixador Ovídio de Andrade Melo
o erro graças à audácia de dois favorecido o MPLA por inspiração ideológica,
funcionários do Itamaraty (Ovídio ferindo, dessa forma, o princípio de
e Zappa), à tenacidade de Azeredo neutralidade em assuntos domésticos de
da Silveira e à mistura de teimosia e outras nações e deliberadamente tomando
antiamericanismo de Geisel.”22 partido na política angolana? Há suficientes

21 PINHEIRO (1994), p.303.


22 GASPARI, Elio. O sacerdote e o feiticeiro: a ditadura encurralada. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 155.
23 VIZENTINI, Paulo Fagundes. A política externa do regime militar brasileiro. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1998, p. 243.

24
Tradução livre de KISSINGER, Henry. Years of renewal. Londres: Weidenfeld & Nicolson, 1999, p. 801.

_24
evidências na historiografia de que não. Nas palavras do nosso homem em Luanda,
Mesmo que tivesse tomado simpatia pessoal “ao abrirmos um embrião de Embaixada num
pelos líderes daquele movimento, a vitória país que ainda não era independente”, com
militar e o governo de facto do grupo de quem o Brasil tinha uma “dívida histórica”,
Agostinho Neto era incontestável. Ovídio de modo a garantir ingresso privilegiado à
havia sido, de toda maneira, instruído explícita diplomacia brasileira, “pudemos fazer uma
e formalmente pelo Itamaraty a reconhecer o coisa diferente na política externa”.26
governo instalado em Luanda como condutor
da independência angolana.
Avaliando o mérito do reconhecimento
da independência angolana, a ousadia da O estilo naïf que inspira a obra artística
manobra de Silveira, Zappa e Ovídio residiu do Embaixador Ovídio serve também como
na precisão da análise política local em metáfora para sua trajetória profissional,
detrimento da escravização à moldura de sobretudo no que se refere a sua “hora
pensamento da Guerra Fria e, mormente, de estrela” lispectoriana. Tal qual a pintura
na disposição da diplomacia brasileira em naïf, caracterizada pela técnica algo
participar nas relações internacionais de errante, cores vibrantes, simbologia de
modo proativo. Consolidou a mudança subversão e temário da “cidade baixa”, o
de leme a respeito da descolonização e gesto diplomático do reconhecimento da
vislumbrou a ampliação das fronteiras independência de Angola e do Governo
diplomáticas brasileiras. Representou uma do MPLA não careceu de simbolismo nem
tentativa de franquear ao Brasil um acesso de certa “ingenuidade subversiva” em seus
inédito, de forma particular, à Angola contornos – se não do ponto de vista
independente e, de modo geral, enviava geopolítico, ao menos do ângulo de sua
um sinal de aproximação diplomática aceitação nos corredores daquela hora da
com as antigas possessões portuguesas. política brasileira.
Era mais um lance da opção pelas vias Como a Macabéia de Clarice Lispector,
atlântica, africana e, no limite, universalista seu ápice foi também o motivo de seu
da política externa de Geisel, que seria ocaso: sacado de Luanda por força de
logo mais aprofundada por Figueiredo. pressões de todos os lados, Ovídio
Tais vertentes seriam redesenhadas pela amargou o ostracismo em duas embaixadas
política externa do Presidente Lula, cuja que considerou “de menor porte”. Sua
ação diplomática também tem colhido os passagem por Angola não somente lhe
frutos da semente plantada por Silveira, havia imposto privações pessoais, como
Zappa e Ovídio – legado reconhecido pelo lhe rendeu indisposição com o estamento
atual Chanceler brasileiro: mais conservador do Itamaraty e da
República sob o chicote militar. Apesar
“Nas conversas que mantive [em de ter protagonizado momento da
Angola, em 2003], foi recordado maior importância diplomática para o
o significativo fato de ter sido o Brasil, foi preterido em mais de noventa
Brasil o primeiro país a reconhecer oportunidades de promoção, tendo podido
o governo angolano, bem como anexar plenamente o sufixo “Embaixador”
o papel desempenhado pelo ao seu nome somente após a desmontagem
embaixador Ovídio de Andrade do regime militar.
Melo nos primeiros momentos do Zappa foi promovido a Ministro
relacionamento bilateral.”25 de Primeira Classe em dezembro de

25 AMORIM, Celso. O Brasil e o “renascimento africano”. In Folha de S. Paulo, 25/3/2003.


26
Entrevista com Ovídio de Andrade Melo, Rio de Janeiro, 17/5/2008.

_25
_perfil

1975, pouco após o reconhecimento de política brasileira. Fui Embaixador na


Angola, tendo sido, em seguida, nomeado Tailândia [sem passar] pelo Senado.
Embaixador do Brasil em Maputo. Faça- O Itamaraty tirou-me do Senado,
se justiça: considerado dos diplomatas alegando que eu era um mero
brasileiros mais talentosos, seria o único Cônsul sem importância, e que ia
de sua estatura naquela geração a não para um país sem importância. Então,
ser agraciado com as medalhas militares. dos países com os quais tínhamos
Tampouco foi despachado como o relações, a Tailândia passava a ser sem
representante brasileiro nos postos ditos de importância. Depois fui para a Jamaica,
“elite”. Depois de Moçambique, seguiu para e o mesmo truque foi aplicado. Devo
Pequim, Havana e Hanói27 – o que, pode-se dizer que vivi 76 anos até hoje,
presumir, estava, ao menos, à altura de seu dos quais 50 anos trabalhando no
professado terceiro-mundismo. Itamaraty. Mas se houve um ano
em que vivi intensamente, foi o de
“Já Ovídio, foi enviado a Bancoc como 1975, que passei em Angola. Aprendi
embaixador, de acordo com seu próprio sobre a vida, sobre o Itamaraty, sobre
desejo, depois de lhe terem oferecido política, dez vezes mais do que tudo
Paramaribo, ambos considerados o que fiz no Itamaraty nesses anos
postos de menor importância. Por todos de vida.” 29
razões que só a necessidade de
ostracizá-lo podem explicar, sua “Campeão sem faixa” da diplomacia
promoção ao mais alto échelon na brasileira, é forçoso constatar que o
hierarquia da carreira diplomática, Embaixador Ovídio de Andrade Melo não
cuja promulgação era esperada, só foi goza de reconhecimento proporcional ao
assinada dez anos depois.”28 pioneirismo e heterodoxia da missão que,
a um só tempo, distinguiu e paralisou sua
Em outras palavras, a despeito de carreira. E de cujos resultados nossa agenda
ter protagonizado um lance ímpar na diplomática se beneficia até nossos dias.
história diplomática brasileira ao custo Gaspari fechou questão:
de altíssimo grau de sacrifício pessoal,
mesmo autorizado por um Presidente- “Por conta de seu rigor
General – ou melhor, cumprindo instruções profissional e de suas opiniões
deste –, foi punido profissionalmente, ao políticas, Ovídio arrumou no
invés de ter sido brindado com as glórias Itamaraty todas as encrencas a que
correspondentes. Ovídio deu testemunho tinha direito. Tiraram-no de Angola
de punho próprio: de forma punitiva, mandaram-no para
a Tailândia e de lá para a Jamaica.
“Tive minha carreira truncada Finalmente, quando o embaixador
pelos brasileiros. Eu, que até então aposentou-se, o andar de cima
tinha [tido] postos importantes, passei parecia ter-se livrado de Ovídio de
a ter postos bastante agradáveis, mas Melo. Engano. Ele continua na briga,
sem grande peso no contexto da como Juca, um teimoso.” 30

27 Cf. MRE (1992), p. 332.


28 Tradução livre de PINHEIRO (1994), p. 305
29 Fala de Ovídio de Andrade Melo em: Homenagem ao Embaixador Ovídio de Andrade Melo e, em caráter póstumo, ao

Embaixador Ítalo Zappa. In REBELO, Aldo, FERNANDES, Luis & CARDIM, Carlos Henrique. Seminário Política externa para o século
XXI. Brasília: Câmara dos Deputados, 2004, p. 552.
30
GASPARI, Elio. “O teimoso continua na briga. É Juca” In Jornal do Commercio, 23/01/2000.

_26
_27
_especial

PRESOS NO
EXTERIOR
Adriana Telles Ribeiro

Michel Lahan Neto

_28
O contínuo aumento do número de nacionais detidos no exterior
instiga reflexão sobre os desafios da política de assistência consular do
Ministério das Relações Exteriores (MRE). Dos detidos por imigração
irregular aguardando deportação nos Estados Unidos aos encarcerados em
diferentes países da Europa e da América do Sul por tráfico de drogas, o
objeto da análise é amplo e heterogêneo.

_29
_especial

Exatamente quantos brasileiros estão 300 presos brasileiros aguardando julgamento


detidos no exterior? Se por detidos ou cumprindo pena em estabelecimentos
pensarmos primeiramente naqueles penitenciários respondem por delitos correlatos
indivíduos cumprindo pena por delitos ao tráfico de entorpecentes.
e crimes cometidos em outros países, as A maior parte dos brasileiros condenados
estatísticas são imprecisas, dado que: por tráfico de drogas é do sexo masculino,
• nem todos os países cumprem a exigência com idade entre 25 e 35 anos, baixa
da Convenção de Viena de 1963, que obriga os escolaridade e sem antecedentes criminais. Na
estados a informar ao detido sobre seu direito maioria dos casos, atraídos pela recompensa

65% dos nacionais cumprindo pena no


exterior foram detidos por tráfico de drogas
a solicitar assistência consular de seu país, bem financeira oferecida por membros das
como informar ao país de origem do cidadão quadrilhas de redes ilícitas, aceitam o risco
sobre sua prisão, caso este o solicite1; de servirem como “mulas” no transporte da
• alguns brasileiros optam por não informar droga e são presos nos aeroportos ao tentar
às autoridades brasileiras sua detenção; e embarcar ou ao chegar ao país de destino.
• em alguns postos existem dificuldades
para a obtenção de dados e estatísticas sobre
presos brasileiros.
Presos por imigração irregular
São apenas indicativos, portanto, os números Nos Estados Unidos, a maioria dos
de nacionais presos relatados anualmente brasileiros presos estão detidos por imigração
nos Relatórios Consulares Anuais do MRE, irregular4. Por não existir sistema integrado
que constituem a principal fonte oficial de informação sobre prisioneiros nas três
citada na imprensa. Estes números estimam esferas governamentais (federal, estadual e
a população presidiária brasileira no exterior municipal), ou entre as diferentes agências
em aproximadamente 2.200 pessoas, com as de repressão, são imprecisos os números
maiores concentrações nos Estados Unidos, na de brasileiros detidos nesses centros e,
Espanha, no Japão e na Guiana Francesa2. muitas vezes, torna-se impossível localizar
ou identificar nacionais presos à espera de
deportação. Sabe-se, no entanto, que vem
Presos por tráfico de drogas crescendo o número de solicitações de
De acordo com informações da Divisão de assistência consular para brasileiros atrás de
Assistência Consular, aproximadamente 65% dos grades naquele país, aguardando deportação
nacionais cumprindo pena no exterior foram em centros de detenção sob custódia das
detidos por tráfico de drogas, principal motivo autoridades imigratórias.
de condenação de brasileiros na Europa e na Geralmente o imigrante irregular detido não
América do Sul3. Na jurisdição do Consulado conhece seus direitos, em muitos casos não
em Madri, por exemplo, a maioria dos cerca de tem acesso à autoridade consular brasileira e é

1 Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas e Consulares de 1963, artigo 36: “Há obrigação da autoridade local de
informar ao cônsul da prisão de seu nacional, subordinado ao pedido do interessado”.
2 Relatório Consular Anual do Ministério de Relações Exteriores, 2006, 2007.

3 Fonte: Arquivos do Núcleo de Assistência a Brasileiros (NAB) da Divisão de Assistência Consular, MRE.

4 Idem.

5 www.immigrationforum.org

_30
Geralmente o imigrante irregular detido não
conhece seus direitos e em muitos casos não
tem acesso à autoridade consular brasileira.

transferido súbita e arbitrariamente de prisão Falsificação de documentos,


em prisão por todo o enorme território dos garimpo irregular e pequenos
EUA em curto espaço de tempo, dificultando
ainda mais as visitas de advogados ou agentes delitos
consulares. De acordo com a ONG norte- Há, ainda, concentrações de brasileiros
americana “National Immigration Forum”5, detidos por outros motivos. Na Europa,
os presos por imigração irregular constituem principalmente em Portugal e na França,
o grupo encarcerado mais vulnerável nos são muitos os brasileiros condenados pela
Estados Unidos, pois, diferentemente daqueles falsificação e o contrabando de documentos.
enquadrados na justiça criminal, são tratados Já na Guiana Francesa, o principal motivo de
na esfera civil e, como tal, têm negados direitos condenação de brasileiros é o garimpo ilegal,
assegurados especificamente a presos. O uso reprimido severamente pela gendarmerie local
crescente de videoconferências reduz ainda de acordo com a atual política francesa. No
mais o acesso dos réus ao juiz. Japão, a maioria dos brasileiros presos são

_31
_especial

jovens que praticaram pequenos delitos6. que se descobrem vítimas do tráfico


Naquele país, a chamada delinqüência juvenil internacional de pessoas7, aliciadas em sua
é conseqüência direta de dificuldades de maioria para fins de exploração sexual.
adaptação e ausência de perspectivas para Convidadas para trabalhar no exterior,
muitos adolescentes decasséguis. todo ano milhares de brasileiras são levadas
para casas de prostituição. Seus documentos
são confiscados pelos aliciadores – sob
Outras prisões o pretexto de pagamento da viagem, da
Se por “detidos no exterior” moradia, da alimentação – e elas ficam presas
compreendemos, além daqueles que estão em cárceres privados, já que a “dívida” será
cumprindo pena, todos os brasileiros que sempre superior aos ganhos. Há centenas
estão sendo explorados e se encontram de denúncias de brasileiras mantidas
em virtual situação de prisioneiros, nossos prisioneiras em casas de entretenimento,
números aumentam. Pois entre os brasileiros cárceres privados e áreas de garimpo -
que vão em busca de melhores condições principalmente em países como Espanha,
no exterior, em percentual crescente desde Holanda, Venezuela, Itália, Portugal, Paraguai,
os anos 80, destaca-se um grupo formado Suíça, Estados Unidos, Alemanha, Guiana
em sua maioria por adolescentes e mulheres Francesa e Suriname8.

_32
As brasileiras saem principalmente Assistência consular a presos no
das cidades litorâneas (Rio de Janeiro, exterior – o papel do Itamaraty
Vitória, Salvador, Recife e Fortaleza),
mas há também numerosos registros de A política de assistência a brasileiros no
casos nos estados de Goiás, São Paulo, exterior está delineada no terceiro capítulo
Minas Gerais e Pará. Ramificação do do Manual de Serviço Consular e Jurídico
crime organizado, as quadrilhas do tráfico (MSCJ) do MRE (veja box) e é executada pela
de pessoas se aproveitam de condições equipe do Núcleo de Assistência a Brasileiros
sociais desfavoráveis e de expectativas das (NAB) da Divisão de Assistência Consular
brasileiras em prosperar para jogá-las em (DAC). Criado em 1995, o NAB é formado
um regime servil e desprovido de qualquer por uma equipe de funcionários treinada
garantia de direitos. O crime organizado e dotada de meios para prestar assistência
muitas vezes se vale de expedientes consular a nacionais no exterior. Diariamente,
aparentemente lícitos, tais como proposta funcionários atendem a uma diversidade de
de casamento repentina, moradia no casos que dizem respeito, principalmente,
estrangeiro, convites para trabalhar no à localização de brasileiros desaparecidos,
exterior ou para viajar para fora do país, denegação de entrada em outros países,
para aliciar brasileiras, a maior parte com detenção em aeroportos, auxílio a enfermos e
idade entre 18 e 30 anos. Cabe lembrar, desvalidos e assistência humanitária a presos.
com relação às redes ilícitas envolvidas no Com relação aos brasileiros cumprindo
tráfico de pessoas, que o consentimento do pena no exterior, funcionários da DAC
indivíduo não descaracteriza o crime. costumam solicitar aos Postos que designem,

De acordo com o Manual do Serviço Consular e Jurídico, cabe à autoridade consular:

1) prestar assistência aos brasileiros que se acharem envolvidos em processos criminais;


2) estabelecer contatos com diretores de penitenciárias situadas em sua jurisdição e manter relação
atualizada de presos brasileiros e andamento dos seus respectivos processos;
3) servir, caso solicitada, de ligação entre os prisioneiros e suas famílias, seja no Brasil ou no exterior;
4) nos postos onde é elevado o número de prisioneiros brasileiros, inteirar-se das condições de
saúde e das instalações onde estejam detidos e, ainda, instruir funcionário a visitar periodicamente os
prisioneiros, mantendo fichário atualizado e enviando relatórios periódicos; e
5) assegurar, na medida do possível, aos brasileiros detidos ou encarcerados, acesso aos serviços
consulares.

Fonte: Manual do Serviço Consular e Jurídico do MRE, Cap. 3 - Assistência e Proteção a Brasileiros - Seção 3.1.23.

6A criminalidade juvenil dos brasileiros é a segunda maior entre os estrangeiros no Japão.


7 De acordo com o Decreto 5.017 de março de 2004, por “tráfico de pessoas” entende-se o recrutamento, transporte,
transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao
rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou
benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração – seja para fins
de prostituição, trabalho ou serviços forçados, escravatura, servidão ou a remoção de órgãos.
8 Leal, Maria Lúcia (org.) “Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Sexual

Comercial” – PESTRAF: Relatório Final, 2002.


9 Tel 354 Brasemb Bangkok, 20/07/2007.

_33
_especial

na medida do possível e com a regularidade Caso as respostas sejam afirmativas, a


necessária, funcionários consulares a fim assistência consular constitui um dever do
de realizar visitas periódicas aos cidadãos Estado e um direito do nacional.
detidos nas respectivas jurisdições. Indagados
sobre a eficácia deste atendimento, Penas desproporcionais -
servidores lotados na DAC afirmam que há
dois problemas graves para o cumprimento casos “humanitários”
de tal atribuição. Quando a pena aplicada a um brasileiro
O primeiro diz respeito a limitações no exterior é desproporcional ao crime
de recursos humanos. O Consulado em cometido de acordo com o regime
Boston, por exemplo, em cuja jurisdição jurídico brasileiro, o caso é considerado
existem mais de 200 cidadãos brasileiros humanitário e é significativo o empenho do
presos por imigração irregular, conta com Governo, incentivado pela imprensa e pela
apenas uma única funcionária responsável sociedade civil, para sua defesa, via pedidos
por percorrer todos os presídios em locais de clemência ou acordos de transferência
diferentes e distantes, o que se torna uma de presos.

140 brasileiros detidos na Guiana Francesa,


a maioria por garimpo irregular

missão humanamente impossível. A situação Condenado à morte em última instância


também é especialmente grave na Guiana pela Justiça indonésia (pendente agora da
Francesa, onde a pequena repartição segunda e última decisão presidencial de
consular tem dificuldade em fornecer clemência), o brasileiro Marco Archer está
atendimento aos 140 brasileiros lá detidos, há cinco anos preso numa ilha remota por
a maioria por garimpo irregular. tráfico de cocaína. Dado o esgotamento
Já em outros casos, o problema diz dos recursos de sua família, o MRE
respeito à falta de priorização do assunto autorizou a contratação de advogado
na atividade consular dos postos. Análise para elaborar o pedido final de clemência.
de um período de dez anos dos arquivos Situação semelhante é vivida pelo
de assistência consular confirma esse brasileiro Rodrigo Gularte, que recebeu
quadro, pois a assistência prestada pode sentença de morte na Indonésia pelo
oscilar em função do interesse maior mesmo motivo em 2005.
ou menor de funcionários servindo em Nas Filipinas, o brasileiro Marcio Jean Reis
determinados postos. Nagashima foi condenado à prisão perpétua
Quanto a esse problema, faz-se por posse de drogas. Portava 139 gramas
necessário, de acordo com a equipe da de maconha, o que torna a prisão perpétua
DAC, um trabalho de conscientização dos pena desproporcional à gravidade do crime
funcionários do Itamaraty para esclarecer de um homem sem antecedentes criminais.
que não lhes cabe o julgamento dos Atualmente a Embaixada do Brasil nas
brasileiros presos. A assistência consular a Filipinas estuda possíveis mecanismos para
presos deverá ser concedida com base em defender o brasileiro no quadro do regime
uma cadeia de perguntas bastante simples: jurídico daquele país.
• é brasileiro? Os arquivos de casos encerrados
• está preso no exterior? da DAC revelam que o empenho de
• precisa de assistência consular? funcionários das áreas consular e política

_34
do MRE pode, em alguns casos, reverter o um modo geral, a triste situação de um Brasil
destino de brasileiros que receberam penas que, apesar de avanços consideráveis, ainda
desproporcionais a seus crimes de acordo não consegue oferecer condições plenamente
com o regime jurídico brasileiro. favoráveis ao desenvolvimento de sua população
e cuja emigração de nacionais reflete aspectos
políticos, econômicos e sociais. Cabe assinalar
Conclusão que análise do conjunto de casos de brasileiros
Dos que migram de forma irregular em detidos no exterior assistidos pela DAC revela
busca de condições sócio-econômicas melhores que a grande maioria não possuía antecedentes
aos que arriscam sua liberdade em troca criminais. Entre os crimes pelos quais foram
de compensação financeira ao transportar condenados há pouquíssimos casos de
ilícitos, o retrato dos nacionais presos ou homicídios ou infrações graves.
com liberdade tolhida no exterior revela, de Longe de seu país e de suas famílias ou
amigos, que raramente possuem recursos
para visitá-los, enfrentando barreiras como o
O retrato dos idioma e o isolamento cultural, muitos desses
brasileiros têm na assistência consular do MRE
nacionais presos seu único vínculo com o Brasil. Ao receber
a visita de uma oficial de chancelaria, um
ou com liberdade brasileiro preso em Mianmar disse ter caído
em lágrimas, pois adquirira ali a certeza de que
tolhida no exterior não seria abandonado à própria sorte9.
No contexto da valorização da ação

revela, de um modo
consular do MRE, é necessário prosseguir na
direção de uma mudança de cultura quanto à
assistência a presos, acabando com a percepção
geral, a triste situação redutora que por vezes ainda a associa a uma
rotina secundária, substituindo-a por outra que
de um Brasil que, valorize sua importância como serviço público e
que garanta sua eficácia e continuidade.
apesar de avanços
consideráveis, ainda
Michel Lahan Neto

não consegue oferecer


condições plenamente
favoráveis ao
desenvolvimento
de sua população e
cuja emigração de
nacionais reflete
aspectos políticos,
econômicos e sociais.

_35
_especial

COMUNIDADES
BRASILEIRAS
NO ESPAÇO
MERCOSUL
Aloísio Barbosa de S. Neto

_36
A s comunidades de brasileiros
radicadas nos países do Cone Sul participaram
menos expressivo, porém de grande relevância,
e que sugere alguma correlação com o
de importantes acontecimentos históricos aprofundamento da integração no bloco.
ocorridos entre o Brasil e seus vizinhos,
muito antes que a região se convertesse na
prioridade da política brasileira de integração.
As comunidades de brasileiros
Apenas para citar alguns exemplos, cabe nos países do MERCOSUL
relembrar o protagonismo dos estancieiros De maneira geral, os fluxos migratórios
gaúchos radicados no Uruguai nos processos tradicionais de brasileiros em direção aos
que culminaram na Guerra do Paraguai, ou, países limítrofes estão relacionados com
ainda, o movimento de intensa migração desequilíbrios agrários do Brasil aprofundados
de agricultores brasileiros ao Paraguai na nas décadas de 1960 e 1970, os quais
década de 1970, que alavancou o agronegócio provocaram deslocamentos populacionais
daquele país. importantes. Marcelo Santa Bárbara aponta
As origens do movimento migratório de os principais fatores de repulsão do
brasileiros em direção aos países limítrofes, campo brasileiro: o processo de reforma
especialmente os do Cone Sul, remontam agrária, a forte concentração fundiária, a
ao século XIX. Esse fluxo teve seu ápice fragmentação de propriedades por herança
nas décadas de 1960 e 1970, pelas razões – que dificultava a venda dos terrenos –, a
que discutiremos a seguir, e atraiu, à época, valorização do preço das terras e, finalmente,
grande visibilidade política, sobretudo em a modernização tecnológica e especialização
função de tensões agrárias decorrentes do da agricultura, que desestruturou as
estabelecimento de agricultores brasileiros e relações de emprego no campo.1 Esses
de problemas de posse e titularidade das terras fatores repulsivos repercutiram tanto sobre
adquiridas por brasileiros nos países vizinhos. proprietários rurais (grandes proprietários
Atualmente, a comunidade de brasileiros no ou pequenos produtores familiares), que
Paraguai é bastante expressiva em termos deixaram suas áreas de cultivo originais
numéricos, enquanto as comunidades em busca de terras mais baratas, quanto
brasileiras na Argentina e no Uruguai são sobre trabalhadores rurais assalariados ou
menos numerosas; deve-se ressaltar, entretanto, mesmo subempregados do campo, tais como
que as três devem ser objeto de atenção do coletores ou extrativistas. Esses últimos,
governo e de pesquisadores, por se situarem na maioria dos casos, permaneceram em
na região prioritária da política brasileira de situação irregular nos países vizinhos ou iam
integração, o MERCOSUL. e voltavam para o Brasil como trabalhadores
Neste artigo, analisaremos a formação sazonais, empregados por patrões brasileiros
das comunidades brasileiras nos países do nos países limítrofes.
MERCOSUL. Buscaremos destacar, de início, as Podemos considerar, portanto, as migrações
condicionantes que levaram ao que chamamos originais de brasileiros em direção aos países
de fluxos migratórios tradicionais e, em limítrofes como desdobramentos dos grandes
seguida, as condicionantes de um movimento fluxos de migrações internas, que expandiram
migratório mais recente, numericamente as fronteiras de produção agrícola para

1
SANTA BARBARA, Marcelo. “Brasiguaios: territórios e jogos de identidades”. A Defesa Nacional, N.o 795. Janeiro-Abril de 2003.

_37
_especial

além das fronteiras geográficas do país. A Paralelamente, Sprandel chama a atenção para
respeito dos migrantes brasileiros no Paraguai, o fato de que os brasileiros residentes nos
por exemplo, Sprandel não os considera países fronteiriços, especialmente no Paraguai,
exatamente “migrantes” ou “emigrantes tiveram pequena participação nas iniciativas mais
internacionais”, mas “agentes de estratégias recentes de mobilização política dos emigrados
familiares ou comunitárias de reprodução brasileiros, como, por exemplo, o I Simpósio
econômica e social, que eventualmente Internacional sobre Emigração Brasileira (Lisboa,
perpassam as fronteiras nacionais”. 2 1997) e o Encontro Ibérico da Comunidade
Sem a pretensão de homogeneizar migrantes de Brasileiros no Exterior (Lisboa, 2002).3 Isso
brasileiros radicados nos países vizinhos sob pode ser indicativo da menor mobilização
uma mesma categoria, o que nos levaria a dessas comunidades como “brasileiros
reforçar estereótipos, mas considerando que residentes no exterior” talvez por estarem
há diferenças notáveis entre estes brasileiros muito próximos do Brasil e conectados a
e aqueles que emigraram para países do uma forte rede que os mantém vinculados
Hemisfério Norte, por exemplo, podemos ao país de origem.
apontar algumas de suas peculiaridades. Em Por último, a própria dinâmica dos
primeiro lugar, a grande maioria dos brasileiros movimentos migratórios em direção aos
que se fixaram no Paraguai, na Argentina ou no países fronteiriços, que constituem, em
Uruguai nas décadas de 1960 e 1970, sobretudo, última análise, uma expansão da fronteira
reside perto da fronteira com o Brasil. Isso agrícola brasileira, levou muitos emigrantes
os leva a permanecer ligados ao País por a continuar realizando as mesmas atividades
diversas redes sociais e comerciais, ao passo profissionais a que se dedicavam no Brasil,
que vivenciam uma duplicidade de vinculações ao contrário dos brasileiros no Hemisfério
típica dos espaços de fronteira. Enquanto Norte, que, em geral, exercem atividades
muitos dos emigrantes de primeira geração diferentes daquelas que exerciam no Brasil4.
já têm filhos registrados nos países de
residência, por exemplo, não raro recorrem
aos serviços de saúde, educação e assistência
Brasileiros no Paraguai
social brasileiros, acessíveis do outro lado da A comunidade brasileira residente no
fronteira. Isso leva a uma grande circulação Paraguai, composta por cerca de 450 mil
de pessoas nas zonas fronteiriças, engrossada, cidadãos, é a mais numerosa na América do
ainda, pelos nacionais dos Estados vizinhos Sul, e corresponde a quase um quarto do
que procuram determinados serviços no total de brasileiros que vivem no exterior. Por
Brasil. Essa realidade reforça a importância isso, o Paraguai aparece como o segundo país
de uma discussão sobre a harmonização de em quantidade de brasileiros residentes, atrás
políticas públicas nas faixas de fronteira. apenas dos Estados Unidos.
Em segundo lugar, a proximidade com o A origem do movimento migratório em
Brasil leva os emigrantes a dispor de um leque direção ao Paraguai está relacionada aos
maior de opções para mediar suas demandas, fatores da conjuntura fundiária do Brasil
que inclui não somente as autoridades comentados anteriormente, mas deriva,
locais, mas também as instituições brasileiras, em grande medida, de uma conjunção
sejam elas as repartições consulares ou as desses fatores com uma política explícita
próprias instâncias administrativas no Brasil. do governo Stroessner para promover o

2 SPRANDEL, Marcia Anita. “Aqui não é como na casa da gente... - comparando agricultores brasileiros na Argentina e no
Paraguai”. In: FRIGERIO, Alejandro e RIBEIRO, Gustavo Lins (Orgs.). “Argentinos e brasileiros - Encontros, imagens e estereótipos”.
Petrópolis, Ed. Vozes, 2002.
3 SPRANDEL, Marcia Anita. “Brasileiros na fronteira com o Paraguai”. Estudos Avançados, N.o 20. São Paulo, 2006.

4 A idéia de continuidade dos espaços e das atividades econômicas entre o Brasil e o país fronteiriço é bem expressa por

Márcia Anita Sprandel no título de seu trabalho “A terra é estrangeira, mas a da minha roça é igual”, apresentado no XXII
Encontro Nacional da ANPOCS, em 1998.

_38
desenvolvimento agrícola paraguaio. Essa e Verón ressaltam que a zona de maior
política, aliada ao baixo preço relativo confluência de brasileiros no Paraguai, entre
das terras e à flexibilidade da legislação os rios Paraná e Caaguazú, sofreu uma
paraguaia, que permitia a aquisição de “brasilianização” econômica e cultural.6
terras por estrangeiros5, fez do Paraguai Outro estudioso do assunto, Sylvain
uma grande zona de atração para grandes Souchaud, que publicou tese de doutorado
contingentes de produtores brasileiros, sobre o tema na Universidade de Poitiers,
sobretudo na década de 1970. na França, defende a existência de um novo
Esses emigrantes, em sua maioria, fixaram- espaço na América do Sul, chamado de
se nos departamentos paraguaios de Alto “brasiguaio”, que não é totalmente paraguaio
Paraná e de Canindeyú e dedicaram-se e tampouco é uma extensão do oeste
principalmente ao cultivo da soja e do do Brasil.7 Para esse autor, a colonização
algodão. É importante ressaltar que, no caso brasileira favoreceu a integração econômica
dos brasileiros no Paraguai, as estratificações e política do Paraguai, mas, ao mesmo tempo,
sociais que experimentavam no Brasil foram aprofundou sua dependência externa.
basicamente reproduzidas naquele país, pois Naturalmente, a ocupação de muitos dos
para lá confluíram tanto grandes empresários brasileiros residentes no Paraguai diversificou-
rurais quanto trabalhadores humildes, muitas se com o tempo e, atualmente, o setor de
vezes em situação clandestina. A estratificação comércio e de serviços também conta com
social “importada” do Brasil provocou o expressiva participação de brasileiros. Ainda
deslocamento de muitas tensões agrárias assim, a grande maioria continua localizada
para o Paraguai. Esses problemas, agravados nos departamentos paraguaios fronteiriços
pelo fim dos contratos de arrendamento com o Brasil. Dos cerca de 450 mil brasileiros
para milhares de famílias de agricultores lá residentes, aproximadamente 325 mil são
e por novos conflitos surgidos em torno contabilizados na jurisdição consular de
da titularidade das terras no Paraguai, Ciudad del Este (Alto Paraná), 70 mil na de
levou a uma inversão do fluxo migratório, Pedro Juan Caballero (Amambay), e 40 mil na
provocando um movimento de retorno ao de Salto del Guairá (Canindeyú).
Brasil, por volta de 1985. Muitos “brasiguaios”,
que assim passaram a ser chamados
justamente por ocasião de seu retorno ao
Brasileiros na Argentina
Brasil, fixaram-se em acampamentos no Sul e e no Uruguai
Centro-Oeste do País e engrossaram as filas O fluxo migratório de brasileiros em
dos trabalhadores rurais que reivindicavam direção à Argentina data de fins do século
terras ao recém-criado Ministério da Reforma XIX e, embora seja mais antigo do que
e do Desenvolvimento Agrário, que então aquele dirigido ao Paraguai, seu volume foi
coordenava o processo da reforma agrária. sempre mais reduzido. Em termos absolutos, a
Os efeitos da migração brasileira em comunidade brasileira na Argentina não sofreu
direção ao Paraguai são notáveis, dadas as grandes variações, diferentemente do boom da
proporções que a comunidade brasileira emigração de brasileiros para o Paraguai na
atingiu no país e a sua considerável década de 1970. O censo argentino de 1895
participação no setor agropecuário da registrava 24.725 brasileiros vivendo no país,
economia local. Os autores paraguaios Palau ao passo que o de 2001 computou 34.7128,

5 O Governo paraguaio revogou, em 1967, lei que impedia a compra de terras por estrangeiros em um raio de 150 km a
partir das fronteiras.
6 Apud SALES, Teresa. “Migrações de fronteira entre o Brasil e os países do Mercosul”. Revista Brasileira de Estudos Populacionais,

N.o 13(1). Campinas, 1996.


7 Apud SPRANDEL (2006). Op. Cit.

8 Instituto Nacional de Estadísticas y Censo de La República Argentina (INDEC). Censo Nacional de Población, Hogares y

Viviendas, 2001.

_39
_especial

isto é, um incremento de apenas 10 mil do Brasil no país vizinho. Mais recentemente,


cidadãos ao longo de mais de 100 anos. as migrações para o Uruguai também foram
Em que pese seu volume reduzido, a relacionadas a questões agrárias, sobretudo
comunidade brasileira na Argentina apresenta à elevação do preço da terra no sul do
elementos importantes para análise. Um Brasil. Sales aponta que um dos fluxos mais
primeiro aspecto que merece atenção é a significativos em direção ao Uruguai é o dos
existência de dois subsistemas migratórios chamados granjeiros gaúchos, cultivadores de
aparentemente desvinculados entre si.9 arroz na região de fronteira que decidiram
O primeiro deles corresponde ao fluxo expandir suas culturas adquirindo terras mais
migratório de brasileiros para a província de baratas no Uruguai.11 Reydon e Plata explicam
Misiones, na fronteira com o Brasil. Suas causas a significativa entrada de brasileiros no
assemelham-se às das migrações de brasileiros Uruguai na década de 1980 em decorrência
para o Paraguai, e os migrantes radicados em da retração do mercado de terras no Brasil.12
Misiones demonstram, em linhas gerais, as De fato, do total de brasileiros residentes
peculiaridades dos migrantes em regiões de no Uruguai, 19,3% deles chegaram ao país
fronteira discutidas anteriormente. naquela década.
O outro fluxo migratório tem como Os brasileiros representam, atualmente,
destino a Área Metropolitana de Buenos Aires, a terceira comunidade de estrangeiros no
e está relacionado a causas bem diferentes, Uruguai, com 10.962 cidadãos em 2006,
sobre as quais nos deteremos em seguida. É atrás apenas dos imigrantes argentinos
interessante notar que, no início da migração, e espanhóis13. Entretanto, a comunidade
nas últimas décadas do século XIX e nas brasileira destaca-se das demais por seu
primeiras do XX, os brasileiros concentravam- padrão de localização no país. Enquanto
se majoritariamente na região de Buenos todas as principais comunidades estrangeiras
Aires e nas províncias pampeanas, localização concentram-se em Montevidéu, os brasileiros
similar à dos muitos imigrantes europeus que estão majoritariamente no interior do país
se dirigiam à Argentina na época. Entretanto, (74,3%), sobretudo nos departamentos de
houve um desvio nesse fluxo, quando a fronteira (principalmente Artigas, Rivera,
província de Misiones tornou-se a principal Cerro Largo e Rocha), ao passo que apenas
área de atração de brasileiros, passando a 25,7% deles moram na capital.
concentrar mais de 50% deles a partir de 1970.
Nota-se, aí, uma coincidência temporal com
a explosão da migração para o Paraguai. Os
Movimento de pessoas
emigrantes radicados na Província de Misiones no espaço do MERCOSUL
ainda perfazem mais da metade dos brasileiros De modo geral, portanto, as migrações
que vivem na Argentina, mas a participação de brasileiros em direção aos países
dos residentes na região de Buenos Aires é do MERCOSUL, que temos chamado
ligeiramente crescente (representam 23,6% do de tradicionais, decorreram de fatores
total de brasileiros residentes no país em 1980, repulsivos do campo brasileiro e, por isto,
27,4% em 1991 e 30,8% em 2001)10. fazem parte do processo de expansão da
Quanto à comunidade brasileira no fronteira agrícola brasileira. Entretanto, na
Uruguai, seu início também remonta ao esteira da integração econômico-comercial
século XIX, e, em sua origem esteve vinculada e política com esses países, surgem outras
à presença econômica e à influência política oportunidades e incentivos para migrações

9 HASENBALG, Carlos & FRIGERIO, Alejandro. Imigrantes Brasileiros na Argentina: Um Perfil Sociodemográfico. Série Estudos, n.
101. Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), 1999.
10 INDEC (Censos de 1980 e 1991, e Encuesta Complementaria de Migraciones Internacionales)

11 SALES, Teresa. Op. Cit.

12 Apud Sales (1996). Op. Cit.

13
Instituto Nacional de Estadística - Uruguay.

_40
de um perfil diferenciado, como, por De fato, o estabelecimento de cidadãos
exemplo, a internacionalização de empresas do MERCOSUL nos outros países sócios
brasileiras nos sócios do MERCOSUL, a é uma das conseqüências esperadas de
formação de parcerias com empresas locais um mecanismo de integração econômica
ou ainda o aumento dos convênios de e política. Nesse sentido, estão em curso
intercâmbio acadêmico. alguns avanços no plano normativo, com
Em estudo sobre o perfil sociodemográfico vistas a regular um fluxo de pessoas que
dos imigrantes brasileiros na Argentina, tende a ser crescente à medida em que
Hasenbalg e Frigerio identificaram uma avance o MERCOSUL. Cabe citar, a este
progressiva reorientação do fluxo de respeito, o Acordo sobre Residência
migrantes brasileiros da Província de Misiones para Nacionais dos Estados Partes do
para a Área Metropolitana de Buenos Aires. MERCOSUL, assinado em 2002.
Ainda segundo esses autores, o fato de que Embora o Acordo não esteja ainda em
o período analisado no estudo, entre 1990 vigor como normativa do bloco, pois não
e 1997, corresponda a uma fase de altos cumpriu os procedimentos de internalização
índices de desemprego na região de Buenos em todos os países membros, o Brasil já
Aires minimiza a possibilidade de migração o aplica bilateralmente, desde 2006, com a
laboral pura e simples. Além disso, a hipótese Argentina14 e com o Uruguai15. O Acordo
da migração seletiva, impulsionada pela de Residência estabelece condições
integração regional, é corroborada por dados simplificadas para que nacionais de um Estado
de radicações e permissões temporárias Parte se estabeleçam em outro membro
(vistos) concedidas a brasileiros, as quais do MERCOSUL e gozem dos mesmos
cresceram significativamente no período direitos e liberdades civis, sociais, culturais e
1994-1997, se comparadas com aquelas econômicas concedidos aos nacionais daquele
concedidas entre 1990 e 1994, período em Estado, inclusive o direito ao trabalho e à
que o MERCOSUL, embora já em vigor, ainda livre iniciativa. Nesse sentido, o instrumento
estava em estágio inicial. A título de exemplo, serve a um duplo propósito: por um lado, cria
podemos citar o número de permissões condições para a regularização dos migrantes
temporárias concedidas pelo Consulado indocumentados, que são uma realidade em
Geral da Argentina no Rio de Janeiro para todos os países do MERCOSUL. Por outro,
a categoria “técnicos”, que aumenta de quando em vigor, será a base normativa para
apenas um no período 1990-91 para 92 no regular o livre trânsito e o estabelecimento
período 1994-97, ou a categoria “executivos, de pessoas no espaço do bloco.
profissionais e gerentes”, que aumenta de 2, Seria precipitado afirmar que está em curso
no primeiro período, para 53, no segundo. uma integração dos mercados de trabalho
Infelizmente não houve estudos posteriores nacionais, ou mesmo que há plenas condições
que demonstrassem a continuidade da para o livre trânsito de pessoas no MERCOSUL.
tendência apontada pelos autores além de Mas tanto a persistência dos movimentos
1997, mas é bastante provável que este tipo migratórios “tradicionais” quanto o incremento
de migração “seletiva”, que, em alguma medida, das comunidades estrangeiras que decorre da
está relacionada à integração econômica, tenha integração regional justificam a necessidade de
permanecido crescente. Naturalmente, não se discussões sobre políticas sociais e trabalhistas
trata um movimento migratório de grandes harmonizadas no bloco. Cada vez mais, o
proporções, mas de uma diferenciação no perfil atendimento às demandas dos brasileiros
dos migrantes e nas motivações que levam ao residentes nos países sócios do MERCOSUL, e
estabelecimento de brasileiros em outros países o próprio aprofundamento deste, dependerá de
do MERCOSUL, sobretudo na Argentina. avanços dessa natureza.

14 O acordo que determina a aplicação bilateral foi assinado pelos Presidentes Lula e Nestor Kirchner na celebração dos 20
anos das Atas de Iguaçu, em 2005, e publicado no Diário Oficial da União em 29/08/2006.
15
A aplicação foi acordada pelos países por troca de notas em outubro de 2006.

_41
_especial

DAS
DESA FIOS
Ç Õ E S
M I G R A N A I S
NAC I O L
IN T E R A
E O B R A S I
TO
AO DIREI Leandro Vieira

_42
Quando vim, se é que vim
de algum para outro lugar,
o mundo girava, alheio
à minha baça pessoa,
e no seu giro entrevi
que não se vai nem se volta
de sítio algum a nenhum.
Que carregamos as coisas,
(...)e um chão, um riso, uma voz
ressoam incessantemente
em nossas fundas paredes.

Carlos Drummond de Andrade,


A Ilusão do Migrante

A dimensão demográfica das migrações internacionais atingiu


proporções sem precedentes. A Organização das Nações Unidas estima em
200 milhões o número de pessoas que vivem fora de seus países de origem,
entre trabalhadores migrantes documentados e indocumentados, refugiados,
asilados políticos e fugitivos de guerra e de situações de conflito armado.
O Brasil é parte desse processo. Em audiência pública no Congresso
Michel Lahan Neto

Nacional em 2006, o Embaixador Manoel Gomes Pereira, então diretor do


Departamento das Comunidades Brasileiras no Exterior, estimou em mais de
3 milhões o número total de brasileiros residentes no estrangeiro. O Brasil,
por outro lado, é destinatário de cerca de um milhão, 185 mil estrangeiros
legais, e de centenas de milhares de estrangeiros em situação irregular.

_43
_especial

Parte do contingente de brasileiros que temáticas mais antigas no que tange à proteção
se dirige ao exterior se vale de redes sociais jurídica internacional – caso dos direitos sociais,
já constituídas para se dirigir aos Estados em que os direitos trabalhistas se inserem –, a
Unidos, ao Japão e ao Paraguai, países que, salvaguarda dos direitos humanos dos migrantes
considerados conjuntamente, concentram em está longe de estar consolidada.
torno de 70% dos emigrados brasileiros. O
restante da população brasileira no exterior
se espalha por países e continentes em que os
Os direitos sociais dos migrantes
laços com o país de origem são mais tênues. e o impacto da jurisprudência
A existência de comunidades brasileiras da Corte Interamericana sobre a
concentradas em determinadas regiões e países
cumpre importante papel na manutenção
proteção dos direitos dos migrantes
de vínculos entre os próprios emigrados e No nível multilateral, destaquem-se quatro
entre estes e o Brasil. A “cultura brasileira”, instrumentos normativos entre os vários que
reinventada, por exemplo, na celebração há relativos aos direitos dos trabalhadores
de festas, na publicação de periódicos em migrantes, que vinculam os países que deles
língua portuguesa, na remessa de divisas e fazem parte: a Convenção nº. 97/1949, da
no comércio de produtos brasileiros, ganha Organização Internacional do Trabalho (OIT);
visibilidade econômica e social e faz de seus a Convenção nº. 143/1975, da OIT, relativa
porta-vozes, os brasileiros emigrados, agentes às Migrações em Condições Abusivas e à
reivindicadores de direitos, tanto em relação à Promoção da Igualdade de Oportunidades e
comunidade na qual se inserem quanto no que de Tratamento dos Trabalhadores Migrantes;
tange à sociedade e ao governo brasileiros. o Protocolo Adicional à Convenção das
Esse quadro, em que o Brasil é, a um só Nações Unidas contra o Crime Organizado
tempo, país de origem de milhões de emigrados Transnacional, relativo ao Combate ao Tráfico
e destinatário de expressivo número de de Migrantes por via Terrestre, Marítima e Aérea,
imigrantes, suscita uma miríade de questões do ano de 2000; e a Convenção Internacional
jurídicas.A título meramente exemplificativo, para a Proteção dos Direitos de Todos os
dada a abrangência do temário passível de ser Trabalhadores Migrantes e Membros de Sua
abordado e a escassez de espaço para análises Família, adotada pela Resolução nº. 45/158 da
mais aprofundadas neste espaço, este texto fará Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1990.
breve menção à proteção legal do trabalhador Entre esses instrumentos, o Brasil ratificou
migrante e às evoluções mais relevantes relativas somente a Convenção da OIT nº. 97/1949
à jurisprudência internacional sobre assistência e o Protocolo contra o Crime Organizado
consular, e deter-se-á, com um pouco mais de Transnacional, concluído em 2000. A Convenção
vagar, sobre a questão atinente à participação nº. 143/1975 da OIT conta com meras 23
política do migrante no país de origem – e ratificações, enquanto a mencionada Convenção
também no de destino. de 1990, que entrou em vigor em 2003, contava
Espera-se, com tais exemplos, indicar a com 33 ratificações em 1º de outubro de 2005.
importância da evolução doutrinária e normativa O baixo número de países que aderiram a
do direito internacional – particularmente na esses instrumentos internacionais é indicativo
vertente de proteção dos direitos humanos das dificuldades de se universalizar o tratamento
– para a proteção dos migrantes e, também, uniforme e livre de preconceitos em relação ao
situar o Brasil, país em desenvolvimento, diante trabalhador migrante. Para que o Brasil tenha
do fenômeno das migrações internacionais. reforçada a defesa do tratamento multilateral
Ao se optar por esses três eixos de análise, dos aspectos referentes aos direitos trabalhistas
atente-se para o fato de que, mesmo em áreas dos migrantes, a adesão aos principais

_44
instrumentos multilaterais com ânimo definitivo, também da Corte Interamericana. Segundo o
mediante assinatura e subseqüente ratificação, parecer da Corte, exarado em setembro de
constitui etapa indispensável. 2003, os princípios da igualdade e da não-
Em relação ao direito à assistência discriminação são essenciais para a proteção
consular, o entendimento acerca de dos direitos humanos, seja no plano interno,
sua importância para a proteção dos seja no âmbito internacional. De impacto
direitos dos migrantes tem passado por profundo para a proteção dos migrantes,
grandes transformações – ênfase seja principalmente aqueles em situação de
posta na decisiva contribuição da Corte fragilidade diante do Estado estrangeiro,
Interamericana de Direitos Humanos para o a manifestação da Corte Interamericana
desenvolvimento desse direito. aponta a direção axiológica que a evolução do
Por meio da jurisprudência da Corte direito deve seguir e institui responsabilidade
Interamericana de Direitos Humanos, em que internacional para os Estados que
se destaca a Opinião Consultiva nº. 16/1999, descumprirem os supracitados princípios.
sobre a Assistência Consular no Âmbito das
Garantias do Devido Processo Legal, a Corte
não deixa dúvida acerca do vínculo do direito Os migrantes e o direito à
à assistência consular com as garantias do participação política
devido processo legal e com o direito à vida.
Em uma época em que o preconceito e a Transformações jurídicas importantes,
suspeição contra o estrangeiro se agravam, derivadas do fenômeno das migrações, têm
por questões de “segurança nacional” ou desafiado concepções tradicionais de cidadania
no contexto da “luta contra o terror”, e de participação política. No Brasil e nas
a interpretação de que dispositivos da demais democracias, o vínculo de nacionalidade
Convenção de Viena sobre Relações tem sido considerado como condição para
Consulares, de 1963, – notadamente o exercício do direito de voto. O Capítulo
o direito à informação sobre destinado aos direitos políticos na Constituição
assistência consular – encontram- Federal estabelece a nacionalidade brasileira
se integrados, nos dias de hoje, como pré-requisito para a fruição dos direitos
à normativa internacional de eleitorais. A única exceção a essa regra é a dos
proteção dos direitos humanos portugueses equiparados, nos termos definidos
constitui alento significativo pelo Tratado de Porto Seguro de 22 de abril
para a salvaguarda da de 2000, celebrado entre Portugal e Brasil
inviolabilidade do direito à (promulgado pelo Decreto nº. 3.927, de 19 de
vida, princípio norteador do setembro de 2001).
Estado brasileiro. Ressalte-se, no entanto, que a correlação
Essa visão humanística entre o vínculo da nacionalidade e o de
do direito internacional, cidadania para o exercício de direitos
que concebe o indivíduo políticos vem sendo matizada em todo o
como sujeito ativo e mundo. Ainda que a implementação dessas
passivo de deveres e importantes transformações conceituais
de direitos na ordem ainda se verifique, na maior parte, no âmbito
jurídica internacional, do direito interno dos Estados nacionais, há
é corroborada formulações doutrinárias e instrumentos
pela Opinião de direito internacional que nos permitem
Consultiva analisar a matéria do ponto de vista do
nº. 18/2003, direito internacional dos direitos humanos.

_45
_especial

À luz das recentes evoluções no do passado,


tratamento dessa matéria, alimentadas pelo assente na
caráter expansivo da proteção internacional distinção simplista
dos direitos humanos, é pertinente sustentar cidadão-estrangeiro,
a interpretação de que o artigo 191 da é insuficiente para
Declaração Universal dos Direitos Humanos acolher o ‘cromatismo’
(Resolução 217 A (III), da Assembléia-Geral cívico que resulta do
das Nações Unidas, em 10 de dezembro de simples fato de que
1948) contempla, “na liberdade de opinião vai sendo cada vez mais
e de expressão” a que toda pessoa faz jus, a rara a situação de pessoas
manifestação política dessa liberdade. que nascem, crescem,
Essa visão, ainda prospectiva, se deve, aprendem, trabalham, casam,
entre outros fatores, ao fato de o conceito procriam, e morrem na mesma
de cidadania não ser estanque, mas histórico2, localidade”3.
com o progressivo aumento do escopo e da No plano da proteção jurídica
proteção jurídica desses direitos, no plano internacional, se se evolui rumo a
internacional e interno. A associação entre uma consciência jurídica universal,
vínculo de nacionalidade e participação se o direito empreende um percurso
política, vista como necessária por vários a partir de um jus inter gentes
ordenamentos jurídicos nacionais, vai cedendo (direito entre as gentes) em direção
lugar a um entendimento de que o direito à ao jus gentium (lei comum a todos os
participação nos rumos políticos da civitas, da homens, sem levar em consideração
cidade ou da comunidade em que se vive, é a nacionalidade), a voz política do
uma prerrogativa do membro da cidade ou da migrante terá de ser ouvida como
comunidade, independentemente do vínculo de pressuposto da observância dos direitos
nacionalidade.Vale frisar que tal evolução está humanos. Nesse sentido, a ascendência
longe de ser linear, e simultaneamente a avanços e/ou o território de origem, critérios
existem retrocessos, motivados, nos dias de comumente empregados para a definição
hoje, à xenofobia associada – não raro, de forma de nacionalidade, passam a ser de pouca
espúria – à ameaça que o migrante traria à valia para delimitar a medida ou o conteúdo
segurança dos Estados nacionais. dos direitos fundamentais dos indivíduos.
Matizado o otimismo por meio dessa Ressalte-se que o estatuto dos estrangeiros
ressalva, a lição de Roberto Carneiro é “sempre foi uma matéria importante no
impecável acerca da revolução doutrinária seio do direito internacional, discutindo-se
que as migrações contemporâneas impõem se estes deviam estar sujeitos ao ‘princípio
ao direito, ao afirmar que “a dicotomia binária do tratamento nacional’ ou a um ‘critério

1 Artigo XIX: “Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência,
ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.”
2 Jaime Pinsky adverte que “mesmo dentro de cada Estado-nacional o conceito e a prática da cidadania vêm se alterando ao

longo dos últimos duzentos ou trezentos anos. Isso ocorre tanto em relação a uma abertura maior ou menor do estatuto de
cidadão para sua população (por exemplo, pela maior ou menor incorporação dos imigrantes à cidadania), ao grau de participação
política de diferentes grupos (o voto da mulher, do analfabeto), quanto aos direitos sociais, à proteção social oferecida pelos
Estados aos que dela necessitam.” In: PINSKY, Jaime, e PINSKY, Carla (orgs.), História da cidadania, Ed. Contexto, p. 5.
3 CARNEIRO, Roberto (Coordenador do Observatório da Imigração do Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas).

Nota introdutória ao trabalho de SILVA, Jorge Pereira da. Direitos de cidadania e direito à cidadania. Lisboa, ACIME, maio de 2004.

_46
mínimo internacional’. O desenvolvimento dos as comunidades brasileiras no exterior,
mecanismos de proteção internacional dos estimadas em mais de três milhões de pessoas,
direitos do homem acabou por fazer prevalecer correspondem a contingente populacional igual
este último critério sobre aquele princípio”4. ou superior a 11 unidades federativas, além do
Nesse contexto, é oportuno frisar Distrito Federal. Pode-se antever o impacto
que a própria Convenção Internacional no sistema político brasileiro que adviria da
sobre os Trabalhadores Migrantes de 1990 representação política específica para brasileiros
já contempla, no artigo 13.2, o direito à no exterior, fenômeno inédito no Brasil, mas
liberdade de expressão, de forma análoga que já ocorre, com conformações variadas, na
ao previsto no artigo 19 da Declaração Itália, França, Portugal, Croácia e Colômbia.
Universal dos Direitos Humanos de 1948.
Uma novidade importante de se destacar
em um instrumento de Direito Internacional
O Itamaraty e o Congresso
dos Direitos Humanos é o previsto no Nacional diante das comunidades
artigo 42.2, que se lê, em tradução livre do brasileiras no exterior
inglês: “O Estado de emprego deve facilitar,
em consonância com a legislação nacional, a O Estado brasileiro tem procurado
consulta ou a participação de trabalhadores acompanhar cada vez mais de perto as demandas
migrantes e membros de suas famílias das comunidades brasileiras no exterior.
em decisões que concernem à vida e à No âmbito do Itamaraty, o tratamento do
administração de comunidades locais.” tema na Secretaria de Estado detém status
Segundo David Earnest5, desde a década de Subsecretaria-Geral desde 2006, pelo
de 1960 há pelo menos 23 democracias Decreto nº. 5.979, que aprovou a estrutura
em que o direito de voto ao estrangeiro regimental do Ministério das Relações
domiciliado passou a ser reconhecido, Exteriores e criou a Subsecretaria-Geral das
ainda que a abrangência desse direito varie Comunidades Brasileiras no Exterior (SGEB),
consideravelmente. No Brasil, proposições cuja responsabilidade inclui “cuidar dos temas
legislativas6 tramitam (ou já tramitaram) no relativos aos brasileiros no exterior e aos
Congresso Nacional para estender o direito estrangeiros que desejam ingressar no Brasil”.
de voto ao estrangeiro domiciliado. Esse fato, A criação da SGEB e o aumento recente
somado às proposições que sustentam a do quantitativo de diplomatas – necessário
ampliação do direito de voto de brasileiros em função do adensamento da participação
residentes no exterior e a criação de do Brasil nos foros internacionais, com a
circunscrições eleitorais específicas para decorrente ampliação do número de postos
as comunidades brasileiras no exterior, no exterior, inclusive os de natureza consular
indica a importância crescente do tema no – podem ser compreendidos como a tentativa
Congresso Nacional. do Estado brasileiro de fazer face aos desafios
Heterogêneas, complexas, com graus que vão surgindo à medida que as comunidades
diferentes de carência e de necessidade de brasileiras no exterior vão crescendo e
assistência por parte do Estado brasileiro, transformando-se.

4 SILVA, Jorge Pereira da. Op. cit., p. 33 (nota 19).


5 EARNEST, David. Noncitizen Voting Rights: A Survey of an Emerging Democratic Norm. Trabalho apresentado perante a
convenção anual da Associação de Ciência Política Americana (American Political Science Association) em Filadélfia, Pensilvânia, de
28 a 31 de agosto de 2003.
6 São exemplo as Propostas de Emenda à Constituição nº 07/2002, nº 33/2002 e 401/2005.

_47
_especial

Ao lado da expansão do número de (substitutivo) e emendas orçamentárias


consulados brasileiros no exterior está o referentes à melhoria do atendimento consular.
propósito de aprimoramento da qualidade Entre essas medidas, é válido mencionar, com
dos serviços prestados, mediante processo o fito de uma exemplificação, o projeto de lei
de informatização. É esse o intuito do que propõe a alteração do Código Penal para
programa de modernização do serviço criminalizar o tráfico internacional de pessoas
consular, que abrange o “Portal Consular” para fins de emigração, e, também, o projeto de
e, posteriormente, o “Sistema Consular” lei que dispõe sobre o ingresso do emigrante
e o “Sistema de Emissão e Controle de brasileiro no Regime de Previdência Social.
Documentos de Viagem”7. A Comissão conferiu apoio político
O Congresso Nacional também tem decisivo à tramitação da PEC nº. 272/2000
procurado contemplar questões de interesse (nº. 24/1999, na origem – Senado Federal), que
direto dos brasileiros residentes no exterior. propunha dar nova redação à alínea “c” do
A par de manifestações individuais de inciso I do art. 12 da Constituição Federal, ao
parlamentares no Plenário de ambas as Casas, recomendar expressamente sua aprovação no
ou por meio de proposições legislativas, iniciativa Relatório Final aprovado pelos Membros da
de relevo uniu a Câmara dos Deputados e CPMI. Conhecida como “PEC dos apátridas”
o Senado Federal por ocasião da Comissão por parte da mídia, sua aprovação deu ensejo
Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da à Emenda Constitucional nº. 54, de 2007.
Emigração, cujos trabalhos se estenderam entre
maio de 2005 e julho de 2006.
Criada pelo Requerimento nº. 2, de 2005,
Considerações finais
do Congresso Nacional, “para apurar os crimes Este texto buscou trazer elementos
e outros delitos penais e civis praticados que ajudam a sustentar a tese de que as
com a emigração ilegal de brasileiros para os normatizações nacionais e internacionais sobre
Estados Unidos e outros países, e assegurar o complexo fenômeno migratório estão em
os direitos de cidadania aos brasileiros que permanente processo de formulação, e que
vivem no exterior”, a CPMI, que contou com a o Brasil é parte importante na dinâmica de
prestimosa colaboração do Itamaraty, efetuou escolhas político-jurídicas relativas ao tema.
verdadeiro inventário sobre os caminhos e Com a evolução do tratamento do indivíduo
descaminhos da emigração brasileira em alguns como sujeito de direitos e obrigações no
dos principais destinos, como os Estados direito internacional, e com a percepção dos
Unidos, o Japão e o Paraguai. Além de analisar direitos humanos como tema global, os Estados
questões de relevância social tais como alguns têm de observar padrão mínimo universal
aspectos dos direitos trabalhistas e o direito de respeito aos direitos humanos, o que
à participação política do migrante, temas independe da condição jurídica do estrangeiro.
mencionados neste texto, a CPMI efetuou Nesse contexto, a salvaguarda dos direitos
investigações sobre o tráfico de migrantes e o fundamentais do indivíduo transcende a óptica
tráfico internacional de pessoas. da legislação nacional, do domestic affair, para
A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito transfigurar-se em international concern8.
da Emigração também desempenhou Se este texto logrou reforçar a importância
papel propositivo: apresentou quatro do empenho do diplomata e do cidadão
projetos de lei, uma proposta brasileiro acerca do tema, pode-se considerar
de emenda à Constituição que o esforço chegou a bom termo.
7Informações obtidas na página da SGEB na Internet, no endereço
8ANDRADE, Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976,
2ª ed., Coimbra, 2001, apud SILVA, Jorge Pereira da. Op. cit., p. 35.

_48
COMPORTAMENTO
SOCIAL
e PRECONCEITO
Mariana Lobato

“O tratamento preconceituoso
dado a grupos de imigrantes é tema
de grande relevância para o Brasil, que
nas últimas décadas deixou de ser um
receptor expressivo e passou a enviar
muitos brasileiros para o exterior. Assim
como ocorre com pessoas de diversas
nacionalidades, brasileiros residentes no
exterior são, com freqüência, vítimas de
preconceito e discriminação. Para combater

_49
_especial

esse fenômeno generalizado, algumas conseqüências de sua ação”. 3

formas de intervenção foram desenvolvidas.


No entanto, o problema persiste. Grande Essa idéia, retirada do trabalho
parte das intervenções contra preconceito
baseia-se, atualmente, no esclarecimento polêmico de B.F. Skinner sobre
de mal-entendidos entre os grupos
envolvidos e na pregação da idéia de que linguagem, pode ser hoje
a discriminação em si é um problema.
Infelizmente, esse método, empregado retomada para trazer luz aos
isoladamente, não parece funcionar de
forma adequada. Em alguns casos, as estudos sobre conhecimento
pessoas até lembram as informações dadas,
mas não mudam suas falas preconceituosas1. socialmente construído, formação
Há entendimentos de que intervenções
baseadas em alterações legislativas e de conceitos e, em especial, de
intervenções de ativistas têm conseguido
reduzir em certa medida práticas preconceitos. O papel das conseqüências
discriminatórias, no entanto, práticas como determinante do comportamento
modernas e sutis de discriminação, como humano é um dos pressupostos teóricos dos
as falas preconceituosas, não são facilmente analistas do comportamento, pressupostos
solucionadas por esse tipo de intervenção2. que ganham cada vez mais espaço na
Uma nova proposta seria agir no contexto psicologia, substituindo as concepções
em que esse tipo de prática ocorre. estruturalistas das vertentes psicanalíticas,
Discursos contra o preconceito podem tão divulgadas no século passado. A análise
ser bastante úteis na arena política e não do comportamento, ao contrário do que
devem ser eliminados, mas a ação direta no se costuma imaginar, vai muito além das
contexto em que ocorre o comportamento concepções pavlovianas de estímulo-resposta.
promete outros resultados. Apesar de não negarem as descobertas de
O comportamento não ocorre no vazio. Pavlov, os analistas do comportamento focam
Eventos precedem e seguem tudo o que não no que precede o comportamento, mas
fazemos, e as ações dependem fortemente de no que ocorre após nos comportarmos.
suas conseqüências no mundo. Para eles, aquilo que segue o que fazemos
acaba por determinar quão provável será
“Os homens agem sobre o repetirmos a mesma ação, ou modificá-la4.
Não reagimos ao mundo, agimos sobre o
mundo, modificam-no e, por mundo e as conseqüências de nosso
próprio comportamento definem o
sua vez, são modificados pelas comportamento futuro.
1 GUERIN, B. “Lessons Learned from Participatory Discrimination Research: Long-term Observation and Local Interventions”.
University of South Australia, 2007.
2 GUERIN, B. “Combating Prejudice and Racism: New Interventions from a Functional Analysis of Racist Language”, 2003.

3 SKINNER, B.F. Verbal Behavior, 1957.

4 SIDMAN, M. Coercion and its Fallout. Boston: Authors Cooperative, 1989.

_50
“Muitas vezes, porém, e está diretamente relacionada à
idéia de comportamento verbal, do
um homem age apenas comportamento que não se dá apenas por
meio da interação com o ambiente não-
indiretamente sobre o meio do social. É com base na comunidade verbal
que uma pessoa aprende a descrever
qual emergem as conseqüências situações não-verbais. Da mesma forma, a
pessoa aprende a fazer afirmações sobre
últimas de seu comportamento. o mundo com base em comportamentos
verbais de outros, como quando
O primeiro efeito é sobre os estudamos história, ou lemos notícias no
jornal. Ambos representam instâncias do
outros homens” . Esse é o caso de
5 conhecimento socialmente construído. 6
comportamentos verbais. Comportamento
verbal não se limita, como se poderia Conceitos são socialmente
imaginar, a expressões escritas ou
faladas. O conceito, dentro da análise do construídos. Assim, são mantidos
comportamento, é mais amplo: envolve
todo e qualquer comportamento cuja com base em conseqüências
conseqüência relevante depende da ação
de outra pessoa. Pode ser piscar, fazer mediadas pela comunidade verbal.
um gesto, desenhar, e mesmo silenciar
diante de algo. O importante é que a Como todo comportamento, no
conseqüência para aquele que se comporta
não seja imediata e sim mediada por outra entanto, não são desinteressados:
pessoa. O exemplo mais óbvio talvez seja
fazer um pedido. Se estamos com fome, dependem de suas conseqüências.
pedimos algo para comer. A conseqüência
relevante será comer, mas não pegamos Ao descrever o mundo, geramos
diretamente a comida: pedimos ao garçom
e ele a traz até nós. Ao piscar para conseqüências específicas
alguém, podemos receber sua atenção.
Se contarmos uma piada em um grupo, mediadas pela comunidade verbal.
podemos conseguir riso, prestígio, amizade,
que geram muitas outras conseqüências Como as conseqüências relevantes não
mediadas por aquele grupo. são as imediatas, os comportamentos verbais
A construção social de conhecimentos podem ser totalmente “desconectados”
decorrentes da interação de pessoas nas do ambiente não-verbal. Essa desconexão
comunidades é um fenômeno de grande da realidade pode se dar por diferentes
interesse da psicologia contemporânea motivos. Pode ocorrer se um grupo não

5 SKINNER, B.F. Verbal Behavior, 1957.


6 GERIN, B. “Behavior Analysis and the Social Construction of Knowledge”. Hamilton: University of Waikato, 1995.

_51
_especial

dá a necessária atenção à correspondência comunidade verbal pode dar atenção


entre descrição e ambiente não-verbal. É simplesmente ao comportamento de se
nesse sentido que podemos compreender comunicar, não importa o que seja dito.
a construção social do que seria “correto” Podemos passar horas em um jantar
ou “verdadeiro”. Será “verdade” aquilo que falando para uma audiência desinteressada
for aceito pelo grupo como tal, nem sempre e intermitentemente atenta sobre como
aquilo que mantém correspondência com o câncer é causado pelo consumo excessivo
ambiente não-verbal.7 de ovos ou como as pessoas que vivem em
O mesmo problema surge quando lugares quentes são mais preguiçosas que
comportamentos verbais são baseados em as que vivem em lugares frios. Nesse caso,
outros comportamentos verbais. Como, por a audiência pode manter o comportamento
exemplo, quando alguém conta algo que lhe verbal simplesmente por meio de controle
foi relatado por outrem e isso é entendido social fraco.8
por um grupo como se fosse uma lembrança
de experiência realmente vivenciada Falas preconceituosas são
previamente, uma experiência lembrada.
Isso pode fortalecer, por exemplo, nosso formas de comportamento
comportamento de afirmar que reatores
nucleares são extremamente perigosos humano e, como tal, surgem e
ou que a cultura de certo país desvaloriza
o trabalho. Nos dois casos, a maioria das são mantidas pelas conseqüências
pessoas que faz esse tipo de afirmação
nunca vivenciou diretamente experiências que geram no mundo a sua
com esses eventos, apesar disso, eles são
apresentados como se fossem descrições volta. Fazem parte da classe de
de experiências vividas, como relatos de
contato direto com o ambiente. Lemos comportamento denominada
ou ouvimos falar a respeito e recebemos
conseqüências por repetir essas idéias em verbal, ou seja, dependem da
determinada comunidade verbal.
Outra situação que leva à desconexão intermediação de outra pessoa
entre os comportamentos verbais e o
ambiente não-verbal é o fato de, muitas para serem mantidas. Podemos
vezes, a conseqüência social que mantém
o comportamento ser muito distante da dizer que os preconceitos são
conseqüência que seria produzida pelo
ambiente não-verbal, sendo baseada, “conceitos” desconectados
por exemplo, simplesmente em elogios,
risos, ou consentimento desatento. A do ambiente não-verbal, que

7 Visãosemelhante a respeito da construção social da verdade pode ser encontrada em “A Ordem do Discurso”, de Michel
Foucault.
8 GERIN, B. “Behavior Analysis and the Social Construction of Knowledge”. Hamilton: University of Waikato, 1995.

_52
são, no entanto, divulgados e emissor do comportamento
exaustivamente repetidos e preconceituoso crê naquilo
mantidos por uma comunidade que expressa ou mesmo deseja
verbal. Dessa forma, a que os outros creiam no que
compreensão da dinâmica dos é dito. Falas preconceituosas
“comportamentos verbais” parece apresentam-se das mais variadas
essencial para a discussão sobre a formas. Sem diminuir a importância das
demais formas de discriminação, Bernard
manutenção dos preconceitos nas Guerin, em estudo de 2003, intitulado
“Combating Prejudice and Racism: New
diversas sociedades. Interventions from Functional Analysis of
Racist Language”, propõe apresentar um tipo
Os preconceitos podem surgir porque particular de discriminação: a discriminação
trazem benefícios para um determinado “sutil”, realizada cotidianamente por meio
grupo. No entanto, podem passar a da linguagem em conversas informais com
ser mantidos não mais porque trazem conteúdo preconceituoso.
esse benefício específico, mas porque Segundo o autor, muitos posicionamentos,
são considerados como afirmativas crenças, atitudes, ou representações sociais
“corretas”, em razão das práticas que de tópicos abstratos podem ter a função de
levam à desconexão com o mundo não- manter relacionamentos ou, simplesmente,
verbal. A partir daí, são mantidos de manter o seguimento de conversas. Podem ser,
forma generalizada pela comunidade portanto, desvinculados de uma intenção de
verbal, que, historicamente, mantém convencer o ouvinte da verdade ou veracidade
aquilo que é considerado correto. Como das colocações. Há muitas formas para manter
afirmado, no entanto, a definição do que é a atenção dos ouvintes, uma delas, infelizmente,
“correto” é controlada pelo próprio grupo são as falas preconceituosas. O argumento do
social e independe, muitas vezes, de sua autor baseia-se na idéia de que comentários
correspondência com o ambiente não-verbal. preconceituosos, muitas vezes, não pretendem
fazer com que as outras pessoas ajam de forma
O desligamento dos nefasta e discriminatória. Seriam realizadas
em contextos de diversão, como piadas. São
preconceitos do mundo não- formas utilizadas por oradores para ganhar
atenção, “status”, em um relacionamento.9 Isso
verbal pode ser tão radical que, não significa que este comportamento não
seja extremamente prejudicial para aqueles
muitas vezes, nem mesmo o grupos que são alvo dos comentários. Apesar
9 GUERIN, B. “Combating Prejudice and Racism: New Interventions from a Functional Analysis of Racist Language”, 2003.

_53
_especial

de muitas vezes não ser o principal objetivo do dessa postura é a “Convenção


falante, esse tipo de comportamento contribui
para práticas discriminatórias dentro das sobre a Eliminação de Todas as
diversas comunidades, além de gerar carga de
tensão acumulada na população atingida. Formas de Discriminação Racial”,
Essa forma de discriminação, bastante
sutil, é difícil de ser combatida. De acordo na qual se afirma que os países
com Guerin, em uma conversa na qual
alguém faz um comentário discriminatório signatários se obrigam a adotar
para gerar “distração”, rebater o
posicionamento com dados da realidade que “todas as medidas necessárias para
se oponham ao que foi dito pode não ser a
melhor estratégia. Primeiramente, porque o eliminar rapidamente a discriminação
que mantém esse tipo de comportamento
não é o ambiente não-verbal, mas sim o racial em todas as suas formas
comportamento das outras pessoas, que,
em geral, respondem positivamente a essas e manifestações, e a prevenir e
atitudes. Além disso, aqueles que expressam
pensamentos preconceituosos utilizam combater doutrinas e práticas
estratégias, bastante conhecidas, para evitar
constrangimentos: utilização de formas racistas com o objetivo de promover o
abstratas e gerais, distanciamento, discurso
indireto, desculpas, educação, ambigüidade. entendimento entre raças e construir
Em terceiro lugar, um confronto direto, cria,
em geral, um mal-estar para quem se coloca uma comunidade internacional livre
contrário à fala racista que, muitas vezes, é
tida como uma “piada inofensiva”. de todas as formas de segregação
A existência de preconceito e racial e discriminação racial”. A Busca
discriminação de pessoas é um pela eliminação do preconceito e
problema contemporâneo de da discriminação é um dever dos
extrema gravidade. A sociedade Estados Modernos, que assumiram
internacional admite a existência a igualdade entre as pessoas como
de tal mazela e busca combatê- princípio fundamental de suas
la de formas diversas. Exemplo constituições. 10

10 GOMES, J. B. B. Ação Afirmativa e Princípio Constitucional da Igualdade. Rio de Janeiro, 2001.

_54
Para combater as falas preconceituosas, conquista de apreciação social.
Guerin propõe novas formas de intervenção: Ao analisar a característica funcional
correções educadas, contra-piadas, fortes das conseqüências do comportamento, em
“put-downs” para calar aquele que fez o especial das conseqüências mediadas pela
comentário indesejado, entre outras, a comunidade verbal, podemos entender como
depender do contexto. Acredita-se que a os preconceitos, apesar de desconectados da
utilização social das falas preconceituosas realidade não-verbal, são mantidos por muito
poderia ser substituída por outras formas de tempo nas diferentes sociedades. Assim, é
se conseguir atenção nas conversas, já que, possível pensar em métodos mais eficientes
com certa freqüência, o conteúdo exposto para combater essa forma tão perversa de
não é o que realmente está em jogo, e sim a comportamento discriminatório.

_55
ARTIGOS E ENSAIOS
ESPARTANOS,
MUTANTES E
EXCLUÍDOS Um ensaio sobre
cultura e relações
internacionais

Paulo André Moraes de Lima

“Enquanto os homens exercem seus


podres poderes
Índios e padres e bichas, negros e
mulheres
E adolescentes
Fazem o carnaval”
Caetano Veloso

“Somos o que somos, somos o que somos


Inclassificáveis, inclassificáveis”
Arnaldo Antunes

_56
L
caderno que só consegue abrigar rabiscos e
desenhos sem aparente valor “cultural”3.
eônidas e Xerxes encontram-se no Três filmes, três narrativas que podem
campo de batalha. De um lado, Esparta: o oferecer, para aqueles que se interessam pela
corpo musculoso e viril do bravo soldado, reflexão sobre as questões da cultura, três
disposto a lutar até a morte por sua leituras distintas sobre o lugar da diferença e
liberdade. Do outro lado, a Pérsia: o corpo da diversidade na vida social das comunidades.
andrógino e excessivo que parece encarnar o Tradicionalmente, a vinculação entre
pesadelo da alteridade, assustadora, opressiva cultura e relações internacionais encontra-
e monstruosa. Uma espécie de Madame Satã se associada à idéia de “diplomacia cultural”.
do Oriente. Ao redor deles, jazem os corpos Nesse contexto, a cultura é entendida como
dos mortos no que nos é apresentado como uma ferramenta a ser utilizada pelos Estados
o choque inevitável entre a em sua política externa. Em uma vertente
civilização e a barbárie1. teórica mais elaborada, a diplomacia cultural
O outro, que surge como o aparece como uma das modalidades do poder
grande vilão em 300, torna-se que os Estados procuram projetar na arena
herói na saga cinematográfica internacional: o soft power, que busca influenciar
dos X-Men2. Aqui, a verdadeira o comportamento dos atores externos e a
ameaça não nasce da diferença conformação da agenda internacional pela
entre “nós” e “eles”, mas da atração dos valores e das idéias transmitidos,
intolerância que ronda todos, entre outros, pelas expressões culturais4
mutantes e humanos, e põe em De uma perspectiva menos “realista” e
risco a sobrevivência tanto de unilateral, a diplomacia cultural é vista como
uns quanto de outros. um instrumento capaz de fomentar a paz e as
Antônio Biá, o “intelectuário” relações harmoniosas entre os Estados, por
do Vale de Javé, tem a missão meio da promoção do conhecimento mútuo
de registrar “cientificamente” e do intercâmbio de manifestações e agentes
a história de sua comunidade culturais, seja na esfera bilateral, seja no nível
num caderno, para demonstrar mais abrangente dos organismos multilaterais.
a presença de um “patrimônio” Para a diplomacia cultural, a articulação
a ser preservado e, assim, evitar entre cultura e relações internacionais aparece
que o local seja submerso pelas como exterior tanto à cultura quanto às
águas de uma barragem em relações internacionais. O entendimento do
construção. Para isso, começa a que pode ser abarcado pela idéia de cultura
ouvir dos moradores de Javé os permanence relativamente limitado a uma
contraditórios e desorganizados combinação, em proporções variadas, de bens
relatos sobre suas origens. Mas e expressões da criatividade humana, oriundos
Javé é um lugar como outro do campo das artes, das formas industriais de
qualquer, habitado por gente produção de entretenimento e das tradições
comum. Seu povo não é nem populares. Ao mesmo tempo, a cultura assim
espartano, nem mutante. São compreendida encontra-se, no que se refere à
apenas excluídos, cujo maior sua vinculação com as relações internacionais,
feito, no fundo, consiste na vã subordinada a algo estranho à sua dinâmica
tentativa de buscar afirmar sua própria: a política externa dos Estados que, por
identidade nas páginas de um sua vez, se limitam a fazer uso dos recursos e

1 300, filme de Zack Snyder (2006).


2 Trilogia formada por X-Men: O Filme (2000), X-Men 2 (2003) e X-Men - O Confronto Final (2006). Os dois primeiros filmes
foram dirigidos por Bryan Singer; o terceiro, por Brett Ratner.
3 Narradores de Javé, filme de Elaine Caffé (2003).

4
NYE JR., Joseph S. Soft Power: The means to success in world politics. New York: Public Affairs, 2004.

_57
_artigos e ensaios

possibilidades que a cultura lhes oferece para modo específico de articulação entre
a realização de seus interesses, definidos numa cultura e relações internacionais.
esfera na qual os “agentes culturais” estão, de A Declaração do México sobre Políticas
um modo geral, ausentes. Culturais, adotada pela Conferência Mundial
Sem eliminar ou substituir a noção de sobre Políticas Culturais, a MONDIACULT,
diplomacia cultural, o surgimento, nas últimas celebrada na Cidade do México, em 1982,
décadas, e a proliferação, mais recente, oferece um mapa abrangente e ainda atual
de diversas questões relacionadas com a do espaço no qual cultura e relações
cultura na agenda internacional refletem e internacionais têm-se relacionado. A
apontam para a constituição de um campo MONDIACULT coroou um extenso processo
no qual a vinculação entre cultura e relações de reuniões internacionais sobre o tema
internacionais ganha novas dimensões e torna- das políticas culturais, com especial ênfase
se, ela mesma, “problemática” e objeto de uma na relação entre cultura e desenvolvimento,
discursividade própria e de um conjunto de realizadas desde o final da década de 1960.
práticas, mecanismos e instituições. A Declaração do México apresenta uma
A partir de uma perspectiva inspirada definição de cultura que será retomada por
pelo pensamento de Michel Foucault ou, todos os documentos oficiais adotados no
mais precisamente, pela atitude crítica e âmbito da UNESCO a partir de então:
metodológica em relação à atualidade,
desenvolvida por Foucault em sua “em seu sentido mais
obra5, procurarei identificar, a seguir, amplo, a cultura pode ser agora
alguns dos elementos que me parecem entendida como o complexo
especialmente relevantes para determinar integral de distintos traços
as possibilidades, tensões e limites desse espirituais, materiais, intelectuais
e emocionais que caracterizam
uma sociedade ou grupo social.
Ela inclui não apenas as artes e
as letras, mas também modos de
vida, os direitos fundamentais do
ser humano, sistemas de valores,
tradições e crenças.”

Embora, por ocasião da conferência,


um tal entendimento da cultura não fosse
novo nas ciências sociais, sua adoção formal
em um documento internacional refletia a
emergência (tanto no sentido de emergir
quanto no sentido de “momento crítico ou
fortuito”) de um espaço dentro do qual a
cultura afirmava-se como um tema autônomo
das relações internacionais, e não mais apenas
uma ferramenta de política externa.
No contexto da Declaração do México,
a concepção mais restrita da cultura como
conjunto de manifestações vinculadas às
artes e à expressão da criatividade humana
é redimensionada em um contexto mais
abrangente que, ao reconhecer a necessidade

5 Atitude elaborada teoricamente por Foucault em diversos textos e intervenções, entre os quais: FOUCAULT, M. Qu’est-ce
que les Lumières? IN: Dits et Ecrits IV. Paris: Gallimard, 1994, p 562-578.

_58
e a legitimidade de políticas públicas que
tenham essas manifestações como objeto,
introduz a dimensão da cultura nos debates e
práticas internacionais da “governabilidade”. As
manifestações culturais, em seu sentido estrito,
condensam e cristalizam a essência dos valores,
tradições e crenças de cada cultura, tomada
em sua acepção “antropológica” ampliada.
Tornam-se, assim, os veículos privilegiados das
diferentes “identidades” culturais que formam
o todo da raça humana. Não são mais a
“cereja do bolo” ou um mero instrumento de
atração ou sedução, mas traduzem a própria
essência da cultura e, como tal, necessitam ser
preservadas e promovidas.
Nesse sentido, nos termos adotados
pela MONDIACULT, fazem-se necessárias
políticas culturais que “protejam, estimulem
e enriqueçam a identidade cultural e
o patrimônio natural de cada povo, e
estabeleçam o respeito absoluto e a apreciação
das minorias culturais e as outras culturas do
mundo”. Além disso, “qualquer política cultural
deveria restaurar o significado profundo e
humano do desenvolvimento”. Uma política
cultural “democrática” deverá ainda “prover
o gozo da excelência artística por todas as
comunidades e pela população inteira”.
Dessa forma, a ampliação do conceito
de cultura, tal como refletida na Declaração
do México, inscreve-se no contexto de
uma reconfiguração das discussões e
das práticas culturais, que expande o
campo de possibilidades, competências e
responsabilidades de atuação dos Estados no
que se refere às suas políticas públicas para
a cultura, tanto na esfera interna quanto na
externa. Os debates em torno da negociação
e da implementação da Convenção sobre identificação de diretrizes, padrões e limites a
a Proteção e Promoção da Diversidade serem levados em conta e respeitados pelos
Cultural6, que afirma o “direito soberano” Estados quando, no plano interno, elaboram e
dos Estados de “formular e implementar implementam suas políticas públicas.Trata-se de
suas políticas culturais”, constituem o um fenômeno que se manifesta, naturalmente,
desdobramento mais recente dessa dinâmica. por meio de instrumentos normativos e de
A trajetória que vai da MONDIACULT à declarações políticas negociados pelos Estados
Convenção da Diversidade Cultural traduz, e que traduzem, nesse sentido, consensos e
no campo da cultura, um fenômeno que denominadores comuns obtidos ao longo
acompanha o crescimento das organizações dos processos negociadores. Entretanto,
internacionais nas últimas décadas: a paralelamente à dinâmica inter-estatal,

6
Adotada pela 33ª Conferência Geral da UNESCO em outubro de 2005 e em vigor desde março de 2007.

_59
_artigos e ensaios

desenvolver-se-á, em torno dos organismos


internacionais, todo um corpo de saberes
e práticas7 que manterá, com o exercício
político da diplomacia, relações de diálogo,
complementaridade e tensão.
Ao mesmo tempo, a complexidade
dos temas abarcados pela Convenção da
Diversidade Cultural aponta para a crescente
transversalidade do campo da cultura, como
já o reconhecia a Declaração do México.
Não somente em relação a campos que lhe
são “naturalmente” afins, como a educação,
a ciência e a comunicação; mas também em
relação a outras áreas, por meio da afirmação
da dimensão cultural do desenvolvimento e
da vinculação entre cultura e democracia.
A transversalização da cultura implica, em
primeiro lugar, a incorporação de temas e
preocupações culturais pelas demais áreas de
atuação do Estado. Como afirmam as diretrizes
gerais do Plano Nacional de Cultura brasileiro,

“as relações entre políticas


de cultura e as demais
políticas setoriais de Estado
são fundamentais para centralidade na formulação das políticas
assegurar os níveis desejados de públicas. Entretanto, a transversalização da
transversalidade e integração cultura não ocorre sem tensões. Para o
de programas e ações. povo de Javé, por exemplo, a força da cultura
Conjugar políticas públicas de demonstra não ser suficiente para salvar
cultura com as demais áreas a comunidade da expulsão e da exclusão.
de atuação governamental é Talvez porque Javé não consiga associar
fator imprescindível para a sua cultura e seu “patrimônio histórico” à
viabilização de um novo projeto de noção de identidade cultural, o que lhe daria
desenvolvimento para o país.”8 legitimidade e força para lutar contra os
interesses da “maioria”: “A maioria eu não sei
A discussão sobre a dimensão cultural do quem são… Mas nós é que somos os tantos
desenvolvimento adquire, ou busca adquirir, do sacrifício”, diz um dos moradores de Javé

7 No campo especifico da cultura, por exemplo, esse corpo se reflete, entre outros, em publicações como os “Relatórios
Mundiais sobre a Cultura” (UNESCO, 1998 e 2000), na coleção de estudos sobre cultura e desenvolvimento publicados pela
UNESCO na década de 1990 e ainda no Relatório sobre Desenvolvimento do PNUD de 2004, que teve como tema “A
Liberdade Cultural num Mundo Diversificado”.
8 Ministério da Cultura, Plano Nacional de Cultura – Diretrizes Gerais. Brasília, 2007.

p. 29. A Constituição Federal brasileira de 1988 inclui, em sua seção relativa à ordem social, dois artigos sobre a cultura, que
atribuem ao Estado a responsabilidade de garantir o “pleno exercício dos diretos culturais e acesso às fontes da cultura nacional” e
define como patrimônio cultural brasileiro, entre outros, os “modos do criar, fazer e viver”. A aprovação da Emenda Constitucional
Nº 48, em agosto de 2005, cria o Plano Nacional de Cultura (PNC), que tem como base conceitual uma compreensão da
cultura em suas dimensões simbólica, cidadã e econômica, e define o papel do Estado como indutor, fomentador e regulador das
atividades, serviços e bens culturais. Constata-se assim, no caso brasileiro, o progressivo aprofundamento da aplicação, às políticas
públicas, do conceito ampliado de cultura.

_60
ao tentar explicar à comunidade as razões da se os vínculos entre a cultura e as relações
construção da barragem e do conseqüente internacionais, para além da noção tradicional
alagamento da vila. de diplomacia cultural.
Além disso, a agenda internacional será, ela Restaria refletir, ainda, em que medida
também, “contaminada” por preocupações de uma noção ampliada da cultura abre também
ordem cultural. O desenvolvimento da noção caminho para a formação de uma dimensão
da natureza “específica” dos bens e serviços conceitual (mas com implicações concretas
culturais, que asseguraria à cultura um local em termos de formulação de políticas) que
diferenciado nas relações comerciais; a discussão identifica a cultura como uma categoria
sobre a relação entre os conhecimentos essencial para a compreensão da dinâmica
tradicionais e os regimes de propriedade das relações internacionais, segundo a qual as
intelectual; a idéia de um necessário equilíbrio diferenças culturais teriam um papel fundador
entre a promoção do direito de acesso à cultura nas interações entre os povos e os Estados.
e a proteção dos direitos de autor; o espaço De um certo modo, volta-se aos princípios
concedido, dentro das políticas e programas que orientam a prática da diplomacia cultural.
de desenvolvimento, às “indústrias criativas”; Entretanto, há aqui uma clara mudança de
a construção de democracias “multiculturais”, ênfase. Onde uma concepção baseada numa
com base na compatibilização entre “liberdade visão da cultura restrita a um conjunto limitado
cultural”, entendida como ampliação das de bens e manifestações culturais colocava
possibilidades de escolha de modos de vida a diplomacia cultural a serviço de interesses
pelos indivíduos; e a preservação das tradições políticos que lhe eram externos (seja no sentido
religiosas e culturais: proliferam os pontos nos do exercício do poder ou da “influência”, seja no
quais a transversalidade da cultura, inerente à sentido do fomento da paz e do entendimento),
sua afirmação como campo autonômo dentro uma visão “culturalista” das relações
da agenda internacional, encontra limites que internacionais, levada ao extremo, subordina o
procura ultrapassar. exercício do político ao reconhecimento das
Assim, se no plano da diplomacia cultural, diferenças culturais e de sua irredutibilidade.
a utilização da cultura como ferramenta de É nesse contexto que voltamos a
política externa mantinha os dois campos encontrar espartanos e mutantes. Para os
externos um ao outro, a transversalização primeiros, o outro aparece como a ameaça
das questões culturais implica, de modo absoluta, que necessita ser combatida a
crescente, a reivindicação de que a própria todo custo. A visão da diferença apresentada
formulação da política externa dos Estados em 300 traduz uma perspectiva neo-
internalize e incorpore a cultura como um de conservadora do mundo e pode ser
seus elementos constituintes. entendida como uma ilustração, dentro da
Foi possível sugerir, até agora, que a estética de Hollywood, da polêmica tese
disseminação de uma noção ampliada da de Samuel Huntington sobre o “choque
cultura favoreceu o desenvolvimento de um das civilizações”9. Quem não é como nós é
conjunto de discussões e práticas interiores à contra nós.
própria cultura, associado à idéia de políticas No caso dos mutantes, em que pese
culturais, que, pela própria natureza transversal o incômodo permanente causado pela
da cultura assim concebida, aponta para pontos presença da diferença, que se tenta eliminar
onde a cultura, de certo modo, “transborda” e pelo extermínio ou pela assimilação (a
“invade” áreas que lhe são externas. Ao longo “cura” dos mutantes), prevalece a visão
desse processo, no qual o papel desempenhado “multiculturalista” liberal encarnada pelo
pela atuação e pelos debates promovidos Professor Xavier, não por acaso, ele próprio
no âmbito das organizações internacionais um mutante. Trata-se de visão análoga à
não deve ser subestimado, redimensionam- que inspira, direta ou indiretamente, ações

9 HUNTINGTON, Samuel P. The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order. New York: Touchstone, 1997 (1ª Ed. 1996).
10
Resolução 90 da 62ª Assembléia Geral da ONU, adotada por consenso em 14 de dezembro de 2007 (A/RES/62/90).

_61
_artigos e ensaios

e iniciativas como a Agenda Global para


o Diálogo entre as Civilizações, adotada
pela ONU em 2001, a mais recente Aliança
das Civilizações, de 2006, e a decisão de
proclamar 2010 como o Ano Internacional
para a Aproximação das Culturas10.
Seja quando afirmam a inevitabilidade de
um confronto entre as culturas, seja quando,
ao contrário, apostam na possibilidade e
na necessidade do fomento do “diálogo
intercultural”, as leituras “culturalistas” do
mundo não questionam a premissa básica que
postula a existência de diferenças essenciais
entre os povos, associadas a identidades
culturais definidas e definíveis. É em nome
da preservação e da promoção dessas
identidades que a cultura afirma seus direitos
e o espaço que lhe é próprio.
Ao mesmo tempo, entretanto, a vinculação
estreita entre cultura e identidade ameaça,
nesses discursos, enredar a cultura na teia
de sua própria diversidade. Pois, quer se
pretenda negá-lo, quer se deseje afirmá-lo
e promovê-lo, o direito à diferença assim
concebida constitui-se a partir de uma lógica
identitária que, ao buscar a coesão pela
uniformidade ou pela regulação das diferenças,
tende a fechar as culturas em seus próprios
sistemas e critérios de pertencimento e
exclusão. Mais do que isso, aprisiona a própria
noção de cultura, privilegiando a definição
do que pode ou merece ser considerado
“cultura” em relação à pluralidade e à
heterogeneidade das práticas culturais.
O que fazer, então, com os narradores excludente, que separa claramente quem
de Javé e seus fragmentos incoerentes de e o que somos do que e de quem não
memórias, insuficientes para a constituição somos, espartanos ou persas, mutantes ou
“científica” de um patrimônio ou de uma humanos, pela afirmação de uma ética da
identidade próprios? Estarão condenados a singularidade inclusiva, na tradição de uma
vagar pelo mundo, como eternos excluídos da antropofagia tropicalista que nos é familiar:
sociedade e da cultura? ao incorporar, aos nossos modos de ser e de
Não tenho a pretensão de responder nos expressar, formas, sons, gestos, sabores,
aqui a essas perguntas. Não consigo, no práticas e sentidos que vêm do outro mas,
entanto, deixar de evocar a possibilidade de no fundo, não pertencem a ninguém; ao
outras formas de problematização da cultura, atualizar, como o povo excluído de Javé, uma
que conduzam a discursos e práticas não cultura que não pode ser registrada no “livro
obrigatoriamente associados à identidade. do patrimônio”, mas que se manifesta no
Formas de problematização que, sem ignorar cotidiano: alegre, incoerente, idiossincrática;
os processos assimétricos de interação e ao celebrar a diferença em nós mesmos e
cultural, sejam capazes de propor modelos nos outros, como aquilo que nos une e nos
alternativos de convívio entre as culturas. torna polifonicamente singulares, porque
E substituam a lógica de uma identidade irredutivelmente plurais.

_62
SOB O OLHAR CÉTICO:
DIPLOMACIA
E CULTURA NA
ANTIGÜIDADE
Gabriela Guimarães Gazzinelli

Zeus, ante dois homens


suplicando coisas contrárias,
prometendo iguais sacrifícios,
não sabia a qual deles assentir,
de modo que se encontrava
naquele estado acadêmico [i.e.
cético] e não poderia recusar
algo a nenhum deles, mas, qual
Pirro, suspendia então o juízo e
continuava a investigar.

Luciano de Samósata,
Icaromenipo

_63
_artigos e ensaios

S egundo Lactâncio1, Carnéades (século


II a.C.), o cético acadêmico, foi escolhido
e Cícero, dominaram, nos séculos III-I a.C., a
Academia fundada por Platão. Propunham um
pelos atenienses para negociar, como entendimento cético dos diálogos platônicos
embaixador, os termos de um tratado de paz e desenvolveram uma argumentação
em Roma. Por essa ocasião, teria discursado dialética que se valia do razoável (eúlogon) e
longamente a favor da justiça na presença do persuasivo (píthanon) como critério de
dos maiores oradores de seu tempo. Para pensamento e de ação. Os céticos pirrônicos
surpresa de todos, porém, no dia seguinte, – tendo Pirro como seu fundador e Timão,
refutou o próprio discurso com outro, em Enesidemo e Sexto Empírico como principais

Além de defenderem uma posição teórica contrária ao


dogmatismo no conhecimento, os céticos preocupavam-se com
questões de natureza prática, procurando, por sua filosofia,
meios de se atingir um estado de tranqüilidade na vida comum.

que atacava a justiça que elogiara na véspera. sucessores – diferenciaram-se dos acadêmicos
O parecer severo do autor cristão afirma que por sua maior ênfase nos benefícios de
tal discurso foi feito “não com a seriedade do uma disposição cética para a vida comum,
filósofo, cuja opinão deve ser firme e estável, sobretudo em vista da tranqüilidade (ataraxía)
mas à maneira de um exercício de retórica, que dela resultaria, bem como por seu exame
com argumentos pro e contra”. Um exame mais acurado dos fenômenos, que adotaram
mais cuidadoso, todavia, leva a crer que como critério da ação.
Carnéades não desejava, com isso, subverter A curiosa relação entre o ceticismo e a
a justiça, mas, sim, evidenciar a volubilidade da diplomacia, sugerida pelo episódio da vida de
argumentação. Carnéades, talvez seja menos improvável do
O ceticismo antigo data do final do século que se poderia imaginar. A natureza dialética
IV a.C., tendo se prolongado até meados da filosofia cética assemelha-se, em certo
do século III d.C. Caracterizava-se pela sentido, ao exercício da diplomacia, em que
contraposição de discursos em defesa de também se opõem discursos rivais, em defesa
teses contrárias (diaphonía) visando alcançar de interesses nem sempre coincidentes. Com
um estádio de equipolência entre diferentes efeito, qual os diplomatas da Antigüidade,
lados de um debate (isosthenía), ao qual muitos dos quais eram retores, os céticos
se acreditava seguir a suspensão de juízo eram tidos por excelentes argumentadores e
sobre a real natureza das coisas. Além de empreendiam verdadeiras logomaquias contra
defenderem uma posição teórica contrária seus adversários filosóficos. O repúdio cético ao
ao dogmatismo no conhecimento, os céticos discurso monológico, caro à filosofia dogmática,
preocupavam-se com questões de natureza evitava reduzir as diferenças aos termos da
prática, procurando, por sua filosofia, meios posição que, porventura, fosse dominante no
de se atingir um estado de tranqüilidade na debate em questão. Muito embora a suspensão
vida comum. O ceticismo antigo compreendia cética do juízo, que resultaria do embate das
duas vertentes: os acadêmicos e os pirrônicos. opiniões, não possa ser facilmente transposta
Os acadêmicos, como Arcesilau, Carnéades à diplomacia, a maneira como sua filosofia

1 Cf. Lactâncio, Divinarum Institutionum, 5.14.3-5. Lactâncio (séc. IV d.C.), retor do norte da África, escreveu obras apologéticas
do cristianismo.
2
Cf. Diógenes Laércio, A vida dos filósofos ilustres, 9.61.

_64
lidava com o conflito de opiniões – voltando e a tranqüilidade, descrevem estados
cuidadosa atenção à “diafonia” discursiva reminiscentes do pensamento oriental.
e desfazendo-se de dogmatismos – pode Afora isso, na própria corte de Alexandre,
aproximá-la da diplomacia. observavam-se oposições teóricas, já que
Mais significativa para essa aproximação, se cercara de filósofos representantes de
porém, parece-me ser a maneira como diversas correntes: o cínico Onesicrito,
os filósofos céticos assimilavam o o atomista Anaxarco, o cético Pirro, o
contato que tiveram com outros povos. peripatético Calístenes e o hindu Calano.
O ceticismo antigo floresceu justamente O pirronismo teria assimilado essa
no período helenístico, marcado pela experiência em suas práticas filosóficas. Um
difusão da cultura grega pelo Mediterrâneo trópos consagrado da argumentação cética
e pela intensificação desse contato. O apóia-se justamente na variedade de estilos
conhecimento de novas culturas, adeptas de vida, leis e crenças míticas que prevalece
de seus próprios costumes e cosmovisões, entre diferentes povos. Como ponderam os
punha em xeque as certezas da filosofia e pirrônicos, o que é justo para alguns, para
da moral gregas. A expansão do império de outros é injusto; e o que, para uns, é bom, é mau
Alexandre Magno (séc. IV a.C.) – a partir da para outros. Diógenes Laércio, ao descrever a
Macedônia até a Índia – e a passagem por variedade dos costumes, ilustra-a por meio de
regiões incógnitas para os gregos operavam, exemplos que, por mais duvidosos que sejam,
portanto, mudanças efetivas na maneira guardam interesse anedótico:
helenística de conceber o mundo.
Pirro de Élida, fundador da escola cética “Os persas não consideram
pirrônica, teria participado da expedição inapropriado ter relações incestuosas,
de Alexandre ao Oriente, vivenciando mas os gregos o repudiam. E os
esse momento de transformação na massagetos, como conta Eudoxo
Antigüidade. Foi nessas viagens que Pirro no primeiro livro do Périplo, têm as
teria conhecido os “magos persas” e os mulheres em comum e os gregos, não.
“sábios nus” indianos (os gimnosofistas)2. Os cilícios deleitam-se na pirataria, mas
Tal convívio parece ter exercido expressiva os gregos não.
influência na formulação de sua filosofia: Cada qual tem em consideração os
muitos de seus fundamentos, como a próprios deuses e uns acreditam na
indiferença, a ausência de afecções, a afasia antevisão e outros não. Os egípcios

_65
_artigos e ensaios

enterram os mortos embalsamados; “estóicos combatendo estóicos”4. Com


os romanos os cremam; os peônios os efeito, à Academia cética, sucederia a
lançam nos pântanos. Assim, sobre a Academia estóica de Fílon de Larissa e
verdade, [segue] a suspensão de juízo.”3 Antíoco de Ascalônia. A rivalidade entre
estoicismo e ceticismo (e, por extensão, entre
Desse modo, a dialética, já consagrada acadêmicos e pirrônicos) tornava-se, pois,
pela filosofia clássica, passa a ter, entre os definidora do novo pirronismo.
céticos, um lastro na intensificação do convívio A tensão entre as duas escolas
cultural experimentada no Período Helenístico. transparece nas posições distintas adotadas
Diferentemente de outras correntes, nas quais no debate voltado para os contrastes
transparece um zelo excessivo pelas próprias culturais, que foram incorporados ao
posições, o ceticismo favorece os valores imaginário do Império na medida em que
da tolerância, por conviver melhor com a os romanos alargaram suas conquistas e
diversidade de opiniões, à qual dispensa toda habitantes de toda parte dirigiram-se a
atenção e interesse. Seus hábitos dialéticos Roma. Os estóicos, por um lado, verificavam
preservam-nos, ainda, do apego a eventuais uma ordem natural no mundo, manifesta
opiniões perniciosas, apego esse por vezes na idéia de uma razão universal, que os
motivado por compromissos dogmáticos. levava a recusar fidelidade às identidades
No Período Imperial, o ceticismo pirrônico locais, privilegiando o compromisso com
foi reelaborado por Enesidemo e Sexto a comunidade moral integrada por toda a
Empírico, ganhando em sutileza e sofisticação. humanidade, que se confundia facilmente
Desdobrou-se na rica tradição filosófica e com os limites do Império. Para a filosofia de
doxográfica, que, em parte, nos foi legada. O orientação cosmopolita, Roma epitomizava
ceticismo acadêmico, por seu turno, passou todo o mundo conhecido, rompendo-se,
a gravitar em torno do estoicismo, contra por assim dizer, os limites entre urbs e orbis.
o qual tanto rivalizara. Segundo Enesidemo, Ovídio afirma mesmo que “o espaço da
em sua época, os acadêmicos mais pareciam cidade romana e do mundo é o mesmo”5.

_66
Os céticos, por outro lado, jamais olhos e precisavam tomar emprestados
pretenderam reduzir a “diafonia cultural” os alheios. O humor na caracterização é
a um discurso universalista. Evitavam esclarecedor: provoca um riso irônico. Nas
fazer juízos de valor sobre as diferenças palavras do Machado “esse movimento ao
culturais, uma vez que nada lhes parecia canto da boca, cheio de mistérios, inventado
ser “nem belo nem feio, nem justo nem por algum grego da decadência, contraído
injusto por natureza, mas segundo a por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire,
convenção e o costume”6. Ao partirem da feição própria dos céticos e desabusados”8.
própria diversidade de valores e costumes Os autores satíricos descreveram-no como
inerente a qualquer sociedade ou grupo um “riso sério” (spoudogelóion) que, nesse
de sociedades, os céticos introduziram caso, tematiza literariamente a percepção

Os céticos evitavam fazer juízos de valor sobre as diferenças


culturais, uma vez que nada lhes parecia ser “nem belo nem
feio, nem justo nem injusto por natureza, mas segundo a
convenção e o costume”

uma maneira sensata e coerente de se das diferenças. A ironia é acentuada pela


lidar com impasses morais, estendendo possibilidade que a “estadia” na Lua propicia
o alcance do ceticismo às considerações a Luciano de “contemplar de longe”
éticas e políticas. Nessa época, as idéias (kataskopeîn) a terra. A distância permite que
céticas foram se tornando tópos consagrado volte ao mundo humano um olhar crítico
também da literatura. O autor satírico cheio de referências filosóficas. A idéia de ver
Luciano de Samósata (séc. II d.C.) – que com os olhos alheios torna-se, pois, tanto
nasceu na Síria, educou-se em Roma e mais reveladora. Quem tiver demasiado apego
Atenas e viajou por todo o Mediterrâneo às próprias opiniões dificilmente aceitará ver
– apropriou-se delas de maneira exemplar por olhos que não os seus.
em suas muitas narrativas. Talvez nisso esteja a principal lição do
Em um episódio alusivo das Histórias ceticismo antigo para a diplomacia em sua
verdadeiras7, Luciano conta que, na Lua, dimensão cultural. Como observa Jacyntho
conheceu seres estranhos que tinham olhos Lins Brandão, helenista luciânico, “a cultura
enroscáveis, que podiam tirar e colocar a seu não pode ser o espaço da indiferença – ou do
talante. Naturalmente, aqueles selenitas mais indiferenciado – mas deve introjetar a visão
distraídos acabavam por perder os próprios do outro que balança nossas certezas”9.

3 Diógenes Laércio, As vidas dos filósofos ilustres, 9.83-84.


4 Fócio, Biblioteca, 170 a 14-17.
5 Ovídio. Fasti, 2.684.

6 Diógenes Laércio, As vidas dos filósofos ilustres IX, 61. Vale lembrar que, no grego, os termos “belo” (kallós) e “feio” (aisxrós)

têm nuances morais complementares à significação estética.


7 Luciano, Verae historae, 1.25-26. Embora Luciano não seja cético, os céticos, em especial Pirro, são personagens freqüentes em

seus escritos literários. Nas Histórias verdadeiras, aparecem brevemente em um episódio na Ilha dos Bem-Aventurados, em que
não conseguem decidir-se por ir ou não à ilha, já que duvidam de sua existência e temem o juiz Radamanto depois de tanto terem
“suspendido o juízo”. Em todo caso, como, no prefácio, Luciano alerta os leitores contra a veracidade de suas histórias e insite que
não acreditem em uma palavra, acredito haver motivos céticos em outras passagens.
8 MACHADO DE ASSIS, “A teoria do medalhão”, Obras Completas, vol. 2, Editora Aguilar, 1962, p. 294.

9 LINS BRANDÃO, Jacyntho. A tradição da diversidade cultural: ensaio de tipologia. p. 11. Disponível em <http://www.letras.ufmg.

br/jlinsbrandao>, acessado em 16 de março de 2008.

_67
_artigos e ensaios

DANÇA DAS
CADEIRAS A reforma do
Conselho de
Segurança
das Nações
Unidas

Fábio Simão Alves

Introdução: uma posição de poder

N a prática da diplomacia multilateral de acordo com o que prevê a Carta? Qual

Michel Lahan Neto


global, poucos postos são tão cobiçados a vantagem política e diplomática de se
quanto um dos quinze assentos do Conselho participar de um mecanismo de segurança
de Segurança das Nações Unidas. Responsável coletiva que, ao longo de seis décadas,
principal pela manutenção da segurança sucumbiu a inúmeras crises, conflitos e
coletiva internacional, o Conselho é um guerras? Que capacidades de poder a
dos principais mecanismos de governança participação no Conselho assegura a um
global. Desde sua primeira reunião, em 17 Estado? Por que tantos Estados ambicionam
de janeiro de 1946, no entanto, o Conselho um assento ao redor da famosa horseshoe
esteve incapacitado de exercer plenamente as table do Conselho?
funções que lhe confere a Carta das Nações Para se responder a essas questões, é preciso,
Unidas. Incorporando a lógica da Guerra Fria primeiramente, definir o conceito de poder
e transformando-se num instrumento dos em política internacional. A definição de poder
Estados Unidos e da União Soviética em sua como o conjunto de capacidades materiais que
contenda global, o Conselho se viu relegado um Estado detém e que lhe facultam o exercício
a um segundo plano no campo da segurança da coerção contra terceiros Estados tem cedido
internacional. A quase paralisia durante a espaço, na atualidade, a uma nova definição
Guerra Fria cederia lugar, no início dos anos no âmbito da Ciência Política, ainda que não
90, a um otimismo sem precedentes; efêmero, consensual, segundo a qual poder é a capacidade
no entanto, não resistiu à emergência de exercida numa relação entre dois ou mais
novos conflitos e guerras por todo o mundo, agentes pela qual o agente ou grupo de agentes
começando com os Bálcãs em 1991 e se A impõe a sua contraparte B comportamentos
estendendo a Darfur, na atualidade. que, de outra forma, B não adotaria, por meio da
O que explica o prestígio de se tomar coação (ameaça) ou da coerção (uso da força)1.
assento no Conselho de Segurança, se este Poder é, num sentido amplo, a capacidade de
é um órgão que não funciona plenamente impor vontades numa relação entre dois ou

_68
mais atores, que se externa seja pelo controle Embora os P-5 – especialmente o P-3 (Estados
do processo decisório, seja pela tomada de Unidos, França e Reino Unido) – atuem em
decisões tout court2. caucus no processo decisório do Conselho,
Em segundo lugar, deve-se ver com a influência dos membros não-permanentes
reserva a suposta ineficiência do Conselho é decisiva, seja porque têm capacidade de
de Segurança. Se é fato que o Conselho não influenciar a agenda3, seja porque podem
pôde impedir a eclosão de inúmeros conflitos enfraquecer ou dificultar a tomada de decisões,
ao longo de sua existência, também é fato seja porque, ainda, o Conselho tem como regra
que em muitas oportunidades foi ele, sim, não-escrita a busca pelo consenso.Ademais, o
capaz de compor as vontades e os interesses voto negativo de sete dos dez membros eleitos é
de seus membros e impor suas decisões, capaz de barrar qualquer decisão do Conselho4.
especialmente ao longo da primeira metade O Estado membro do Conselho de
dos anos 90, período marcado por intensa Segurança, permanente ou não-permanente,
atuação do Conselho, alavancado pelo clima assegura para si uma dupla posição de poder:
de otimismo do pós-Guerra Fria. é, simultaneamente, co-formador da vontade
Outra questão que precisa ser abordada, de um grupo que decide sobre as questões
finalmente, é a capacidade de influência dos fundamentais de paz e segurança internacionais
membros não-permanentes no Conselho. e co-autor da agenda global de segurança. O

_69
_artigos e ensaios

Estado cujo representante toma assento no


Conselho de Segurança detém, pois, ainda
que provisoriamente, uma posição de poder e
influência privilegiada no cenário internacional.

O Plano Razali: a primeira rodada


A disputa por essa posição de poder é o
ponto central do processo de reforma do
Conselho de Segurança5. As atuais discussões
sobre sua reformulação se iniciaram em 1992,
quando a Assembléia Geral adotou a resolução
47/62, solicitando a todos os Estados membros
a apresentação de sugestões para uma eventual passo adiante nas discussões sobre a reforma
revisão da composição do Conselho. Naquele se deu com a aprovação da resolução A/48/26
momento, crescia a percepção de que o (1993), que criou o Open-Ended Working Group
Conselho cristalizara uma realidade geopolítica (OEWG), encarregado de “considerar todos
anacrônica, radicalmente distinta daquela em os aspectos relacionados ao aumento da
que se vivia com o fim da Guerra Fria, ao composição do Conselho de Segurança”.
mesmo tempo em que sub-representava os Em 1998, o OEWG, presidido pelo
membros da Organização. Dos 51 Estados Embaixador Ismail Razali, produziu um plano
fundadores das Nações Unidas em 1945, o que propunha uma reforma do Conselho em
número de membros elevou-se a 179 em três etapas, que contemplaria a adição de cinco
1992. Em quatro décadas e meia, o número de novos assentos permanentes, sem direito a
membros da Organização crescera 211%, ao veto, e quatro assentos rotatórios, até o final
passo que o número de membros do Conselho, de 1998. O chamado Plano Razali, no entanto,
apenas 67%, com a micro-reforma de 1963. Seu jamais chegou a ser colocado em votação. O
déficit de representatividade – especialmente mais curioso em seu insucesso é o fato de que
em relação aos países em desenvolvimento contava com o apoio de todos os P-5, que, por
– tornara-se evidente. motivos diferentes, apoiavam a admissão de Japão
Países como África do Sul, Alemanha, Brasil, e Alemanha e – embora com menos entusiasmo
Índia, Japão e Nigéria foram extremamente – de três países em desenvolvimento como
atuantes desde o início das discussões sobre membros permanentes. O fator decisivo para
uma possível reforma. Mesmo os Estados bloquear a reforma proposta por Razali foi a
Unidos se mostravam a favor, ao apoiar aliança entre um grupo de dez países contrários à
explicitamente o ingresso de Alemanha e Japão expansão da categoria de membros permanentes
no Conselho como membros permanentes. Um (Canadá, Egito, Guatemala, Itália, Líbano, México,

1 Para uma conceituação da teoria relacional (poder como relação) e da teoria substancialista (poder como material), v.
BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade: por uma teoria geral da política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.
2 V. BACHRACH, P. & BARATZ, S. “Two Faces of Power”. American Political Science Review, vol. 56, nº 4, Washington, 1962, pp. 947-52.

3 Os assuntos com os quais lida o Conselho em cada sessão compõem, em cada sessão, sua agenda, elaborada em draft pelo

Secretário-Geral, após comunicação aos quinze membros do Conselho, e aprovada pelo Presidente do órgão. No início de cada
sessão se adota a agenda definitiva por votação procedimental, não sujeita a veto. UNITED NATIONS. Security Council Rules of
Procedure, Document S/96/Rev.7, New York, 1983.
4 Para uma avaliação da importância dos membros não-permanentes, v. Teixeira, P. Le Conseil de Sécurité à l’Aube du XXème

Siècle. Génève: UNIDIR, IFRI, 2002.


5 Entende-se por reforma qualquer tentativa, bem-sucedida ou não, de alterar a composição e/ou os procedimentos de votação

e/ou os métodos de trabalho do Conselho de Segurança. A reforma do Conselho tem sido discutida desde 1979, colocada na
agenda da Assembléia Geral sob o item intitulado “Question of Equitable Representation on and Increase in the Membership of the
Security Council”.

_70
Paquistão, Qatar, Síria e Turquia); a Organização da “o desafio de qualquer
Unidade Africana, que reclamava não menos que
dois assentos permanentes para o continente, reforma é aumentar
com direito a veto; e, finalmente, o Movimento
dos Não-Alinhados, que julgava inaceitável
tanto a eficiência
qualquer reforma que se fizesse com a adição quanto a credibilidade
de menos de 11 assentos e que respeitasse um
cronograma preciso6. Como naquela brincadeira do Conselho e, mais
infantil, a dança das cadeiras começara, a música
parou, mas ninguém se sentou. Faltaram cadeiras.
importante, aprimorar
sua capacidade e
Uma nova oportunidade
disposição de agir frente
Em 2003, o insucesso do Conselho
de Segurança na condução dos assuntos
a ameaças. Isso requer
envolvendo o Iraque e sua incapacidade de um maior envolvimento
impedir a invasão do país despertaram na
comunidade internacional a convicção de no processo decisório
que era imperativa uma reforma abrangente
da ONU, com o intuito de adequá-la a uma
do Conselho daqueles
realidade internacional para a qual não parecia [Estados] que mais
preparada. A euforia do início dos anos 90 dera
lugar, afinal, à sensação de impotência diante de contribuem com
desafios e crises com as quais a Organização
não soube – e ainda não sabe – lidar.
as Nações Unidas,
Com vistas a reformular a ONU para o financeira, militar e
século XXI, o Secretário-Geral Kofi Annan
convocou, em setembro de 2003, o Painel de diplomaticamente” . 9

Alto Nível sobre Ameaças, Desafios e Mudanças.


Reunindo 16 personalidades internacionais7,
o Painel incumbir-se-ia de “avaliar as atuais Com base na representação regional
ameaças à paz e à segurança internacionais” e eqüitativa, o relatório propunha dois modelos
“fazer recomendações para o fortalecimento de reforma: o Modelo A previa a inclusão de seis
das Nações Unidas”8. Em 2004, o Painel produziu novos assentos permanentes (dois para a África,
um extenso relatório, em que recomendava dois para Ásia e Pacífico, um para as Américas
uma reforma completa da Organização:“A More e um para a Europa) e três novos assentos
Secure World: our shared responsibility” afirmava, em não-permanentes, de modo que cada região
relação ao Conselho de Segurança, que – África, Ásia, Europa e Américas – contasse
com um total de seis assentos no Conselho10.
O Modelo B contemplava a inclusão apenas de

6 Para um relato do insucesso do Plano Razali e da atuação do “G-10”, da OUA e


do MNA, v. LAU, O. United Nations Security Council Expansion: the efficacy of small States
under multipolarity and uni-multipolarity. Cambridge: Harvard University Press: 2003;
e BLAVOUKOS, S. & BOURANTONIS, D.The Chair in the UN Context: assessing
functions and performance.The Hague: Cligendael, 2005.
7 Um dos membros do Painel foi o Embaixador João Clemente Baena Soares.

Para a lista completa, v. http://www.un.org/secureworld/panelmembers.html.


Acesso em 07/02/2008.
8 UN Document A/59/565, Note by the Secretary General, New York, 2004, par 3.

9
Idem, A More Secure World: our shared responsibility, New York, 2004, par. 248.

_71
_artigos e ensaios

assentos não-permanentes: a criação de uma Já em 21 de setembro de 2004, o Ministro


nova categoria de membros, com a inclusão das Relações Exteriores da Alemanha, Joschka
de oito assentos para um período de quatro Fischer, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
anos renováveis, e a adição de um assento o Premiê da Índia, Manmohan Singh, e o
para um período de dois anos não-renováveis, Premiê do Japão, Junichiro Koizumi, reunidos
mantendo a distribuição geográfica 6 x 6 x em Nova York para os preparativos da 59ª
6 x 611.Vale notar que a proposição de dois Assembléia Geral, decidiram reunir esforços
modelos evidenciava a dificuldade de se alcançar e criar o G-4, grupo no qual os quatro países
consenso entre 16 pessoas, o que prenunciava passaram a defender de forma coesa uma
dificuldades ainda maiores para que um deles reforma do Conselho de Segurança que
angariasse apoio de 120 países. O segundo
momento do processo de reforma do Conselho
de Segurança iniciava-se já sob dúvidas.
Em 2005, Kofi Annan endossou as
“[inclua], de forma
propostas do Painel de Alto Nível em seu permanente, países que
relatório “In Larger Freedom: towards security,
development and human rights for all”. O tenham a vontade e a
ano de 2005 era o grande momento para
a reforma, com a realização, em setembro
capacidade de assumir
daquele ano, da Cúpula Mundial e da responsabilidades
celebração do 60º aniversário da Organização.
Com fôlego renovado, a reforma adentrava mais significativas em
uma nova fase. Começava uma nova dança das
cadeiras – haveria desta vez algum assento a
relação à manutenção
ser ocupado? da paz e da segurança
internacionais”.
Ao vencedor, as cadeiras: G-4, União
Africana e Unidos pelo Consenso Cristalizaram a aliança do G-4 ao afirmar que,

Natural que o novo impulso dado às


discussões sobre a reforma do Conselho
mobilizasse as diplomacias de todo o mundo.
“baseados no firme
Grupos políticos se organizaram para reconhecimento
apresentar alternativas de reforma, movidos
não apenas por interesses estatais individuais, mútuo de que são
mas também pela percepção de que chegara o
momento de tornar o Conselho de Segurança
candidatos legítimos a
mais representativo, legítimo e eficiente, para membros permanentes
o bem da comunidade internacional. Realismo
político e uma dose necessária de idealismo se num Conselho
uniram para impulsionar as aspirações e ações
de Estados e grupos com vistas à promoção
ampliado, apóiam suas
da tão aguardada reforma do Conselho de candidaturas de forma
Segurança e da necessária democratização das
instâncias decisórias internacionais. recíproca” . 12

10 Curiosamente, a representação regional proposta contrariava a distribuição tradicional dos grupos regionais na Assembléia
Geral, nomeadamente os grupos da África, da América Latina e Caribe, da Europa Ocidental e outros países, da Europa Oriental e
da Ásia-Pacífico.
11
Ibidem, par. 250-3.

_72
Com base no Modelo A, o G-4 inicialmente opõem à expansão da categoria de membros
propunha a criação de seis novos assentos permanentes no Conselho: Argentina, Canadá,
permanentes (um para cada um de seus Colômbia, Coréia do Sul, Costa Rica, Espanha,
membros, mais dois para a África) com Itália, Malta, México, Paquistão, San Marino e
prerrogativa de veto e de quatro não- Turquia. A rivalidade regional com os países do
permanentes (um para a África, um para a Ásia, G-4 é a força motriz por trás da oposição do
um para a América Latina e Caribe e um para a UfC à proposta daquele grupo, como se pode
Europa Oriental). Circulou entre os membros observar por sua composição. O Representante
da ONU, em maio de 2005, uma proposta de Permanente do Paquistão, falando em nome
resolução que contemplava suas aspirações de do UfC, referiu-se aos membros do G-4
reforma, que, diante da fria acolhida por parte como “aqueles que buscam privilégios e
dos demais Estados, levou o Grupo a mudar de poderes especiais, [e que] se mascaram de
estratégia, abandonando a pretensão ao poder de defensores dos fracos e desprivilegiados16”.
veto e propondo um mecanismo de revisão, a ser Argumentando que qualquer reforma que inclua
acionado quinze anos após aprovada a reforma. membros permanentes “dividiria a Assembléia-
Em 11 de julho de 2005, o G-4, co-patrocinado Geral” e “criaria um Conselho ineficiente e
por outros 23 Estados, apresentou formalmente antidemocrático”, o UfC defende a criação de
um draft de resolução à consideração da mais dez novos assentos não-permanentes e a
Assembléia Geral13. Foi o ensejo para que outros abolição da não-reeleição imediata.
Estados entrassem em cena14. O projeto do G-4 não foi colocado em
A União Africana (UA, ex-OUA) mantém votação, alvo de ataques que foi da UA e do
uma posição comum sobre a reforma do UfC, além de ter sofrido oposição aberta por
Conselho desde 1997, quando seus Estados parte dos Estados Unidos e da China. Em
membros aprovaram a Declaração de Harare, 18 de julho, a UA apresentaria seu próprio
defendendo a concessão, para a África, de dois projeto de resolução17, a que se seguiria, em
assentos não-permanentes e dois assentos 26 de julho, o draft do UfC18, que não seriam
permanentes com direito a veto. Respaldadas tampouco colocados em votação. Em setembro,
pela confirmação dos termos de Harare no a Assembléia Geral encerraria seus trabalhos.
chamado Consenso de Ezulwini, de 2005, as Viriam a Cúpula Mundial e as 60ª e 61ª
nações africanas se mobilizaram para rejeitar Assembléias Gerais, sem quaisquer resultados
a “falta de ambição da proposta do G-4”. Nas concretos. A tentativa mais consistente de
palavras do Representante da Argélia, falando reforma do Conselho de Segurança parecia
em nome da UA na sessão em que se discutiu haver falhado.
o projeto do G-4, “as propostas que hoje estão
na mesa de negociações [são] insatisfatórias Conclusão: rumo a um compromisso?
vis-à-vis as aspirações legítimas da África”15. A
mais forte oposição à proposta do G-4 não A reforma do Conselho de Segurança
veio, no entanto, da UA, mas do grupo Unidos continua no topo da agenda das Nações Unidas.
pelo Consenso (Uniting for Consensus – UfC). O G-4, a UA e o UfC continuam tentando forjar
A origem do UfC está diretamente ligada alianças e angariar apoio para seus projetos.
à atuação do G-4. Conhecido como “Coffee A novidade está, no entanto, no fato de que
Club”, referência à informalidade de sua parecem dispostos a rever algumas de suas
formação, o Grupo reúne 12 países que se reivindicações. Recentemente, foi constituído no

12 Comunicado Conjunto do G-4, Nova York, 21 de setembro de 2004. In: MINISTÉRIO das Relações Exteriores. O G-4 e as
Nações Unidas: textos, comunicados e documentos. Brasília: FUNAG, 2007, pp. 21-2.
13 Projeto de Resolução do G-4 sobre a Reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas, Documento A/59/L.64.

MINISTÉRIO das Relações Exteriores, op. cit. pp. 59-66.


14 Para os registros da sessão, v. Verbatim record, 111ª sessão, 59ª Assembléia Geral. UN Document A/59/PV.111, Agenda item

53, New York, 2005.


15
Ibid., p. 6.

_73
_artigos e ensaios

âmbito do OEWG, por iniciativa da Alemanha, Assembléia Geral, de ocupar posto de membro
um grupo informal de consultas (o “informal permanente do Conselho de Segurança.Alguns
overarching group”), com vistas a chegar a uma países africanos, desejosos de barrar o acesso
solução de compromisso entre as diversas desses três países ao Conselho de Segurança,
alternativas de reforma apresentadas. Fala-se, defenderiam a extensão do veto como estratégia
inclusive, numa solução transitória, que seria para uma não-reforma, preferindo esta última
obrigatoriamente revista após determinado a uma reforma que não os contemplasse com
período de tempo. Entre os P-5, os Estados assentos permanentes no Conselho.
Unidos e a China continuam reticentes, embora Outro empecilho são as rivalidades regionais,
aqueles apóiem explicitamente o Japão19 e esta dê que se manifestam de forma inequívoca na
mostras de estar disposta a apoiar a Alemanha, atuação do UfC. É evidente que a intensidade e
o Brasil e, mesmo, a Índia, além de apoiar o nível de tais rivalidades variam; não se pode
explicitamente a inclusão de países africanos perder de vista a diferença que existe, por
como membros permanentes; a França e o Reino exemplo, entre a rivalidade Japão v. Coréia do
Unido apóiam o G-4; a Rússia ostenta uma defesa Sul e Paquistão v. Índia. Ainda assim, parece claro
retórica de qualquer reforma “feita por amplo que a atuação do pequeno grupo se baliza pela
consenso”, mas apóia o ingresso de países em oposição de seus membros a que os países
desenvolvimento como membros permanentes. do G-4 ingressem no Conselho de Segurança
Ao contrário do que se costuma imaginar, como membros permanentes. No caso de Brasil
o grande empecilho para uma reforma do e Alemanha, vencer essa resistência regional a
Conselho de Segurança não tem sido, até o seu pleito por um assento permanente é tarefa
momento, a posição dos P-5, mas, sim, a atuação consideravelmente mais fácil do que no caso de
da UA.Ao insistir na ampliação da prerrogativa Índia e Japão.
do poder de veto a eventuais novos membros As discussões sobre a reforma do Conselho
permanentes, o grupo africano colide exatamente são delicadas na medida em que qualquer
com aquele ponto que se tem mostrado o reforma comportará alterações na distribuição
mais sensível nas discussões sobre a reforma. de poder internacional, como se tentou mostrar
Se os P-5 apóiam, ao menos de forma retórica, no início deste artigo.Talvez por essa razão
a ampliação do Conselho, inclusive com o a ausência de mudanças concretas no curto
aumento de número de membros permanentes, prazo não deva ser vista como sinal de fracasso
nenhum deles, por outro lado, aceita a extensão das negociações. É sempre um processo
do veto a novos membros.A posição comum complexo acomodar interesses fundamentais
da UA, aliás, tem pouco de comum: o fato é que que concernem à segurança internacional. O
determinados países dentro da UA insistem Conselho, cedo ou tarde, terá de ser reformado,
na ampliação do veto como tática para que a sob pena de ver erodidas sua legitimidade e sua
reforma seja bloqueada: são países que, aspirando capacidade de atuação. Alguns países poderão
a ocupar um eventual assento permanente, se ganhar mais do que outros numa eventual
sabem pouco qualificados para tal. Pouco se reforma. Fato é, no entanto, que é a comunidade
dúvida de que África do Sul, Egito e Nigéria internacional como um todo que ganhará com
são os três países que mais chances têm, por a transformação do Conselho num instrumento
seu perfil político e econômico no continente mais adequado para confrontar a realidade
africano e por sua atuação diplomática na internacional contemporânea.
16 Ibid., p. 8.
17 UN Document A/59/L.67, Draft resolution, New York, 2005.
18 UN Document A/59/L.68, Draft resolution, New York, 2005

19 Os EUA apóiam a admissão de “dois ou três” membros permanentes (“two or so”, segundo o ex-Subsecretário Nicholas

Burns), inclusive o Japão. Para o ex-Representante Permanente junto à ONU, John Bolton, “we believe that the [Security] Council
would be more effective if Japan were a permanent member”. UNITED STATES Department of State. Statement by Jonh R. Bolton,
US Permanent Representative to the United Nations, on Security Council reform and expansion, at the General Assembly, July 21, 2006.
Acesso em 06/02/2008, em http://www.reformtheun.org/index.php/government_statements/c466/?startnum=101&theme=alt2.

_74
LA CUESTIÓN
DEL CAMBIO EN
LA TEORÍA DE
LAS RELACIONES
INTERNACIONALES
Romina Paola Bocache

Because we have an inadequate basis for comparison, we are tempted to


exaggerate either continuity with the past that we know badly, or the radical
originality of the present, depending on whether we are more struck by the
features we deem permanent, or with those we do not believe existed before.
Hoffmann. An American Social Science: International Relations

_75
_artigos e ensaios

EL CAMBIO:
UN PROBLEMA FILOSÓFICO
La cuestión del cambio es uno de los “idealista”, hago alusión a una realidad en
problemas filosóficos más antiguos y la que, además de los atributos de poder,
controvertidos, problema al cual la Teoría cuentan elementos superestructurales como
de las Relaciones Internacionales no podía las ideas y las instituciones. En su versión pura
permanecer ajena y que ha llegado a (constructivismo) esto implica que el actor es
constituir uno de los aspectos cruciales a la lo que piensa, y como el pensamiento dirige
hora de diferenciar las distintas escuelas de la acción, en última instancia uno es lo que
pensamiento dentro la disciplina. hace; 2) unidad de análisis: hombre (primera
Desde este enfoque filosófico, hay tres imagen), estado (segunda imagen) o el sistema
variables fundamentales a la hora de definir una internacional (tercera imagen); 3) concepción
postura en cuanto al cambio: 1) concepción del cambio en sí mismo. La relación de lo
de la realidad materialista o idealista. Por nuevo y lo viejo puede concebirse de diversas
“materialista” me refiero a una visión de formas: lo nuevo se yuxtapone a lo viejo
la realidad configurada por la distribución (acumulación), lo viejo y lo nuevo se funden
de los atributos de poder (principalmente en una síntesis (cambio dialéctico), lo viejo
factores económicos y militares): uno es se transforma internamente y da lugar a algo
lo que tiene y actúa según el lugar que nuevo (evolución), lo nuevo es la negación de
ocupe en el ranking del poder. Cuando digo lo viejo (ruptura).

Concepción Concepción
Materialista Idealista

Hombre Realismo clásico (Morgenthau):


no hay cambio

Estado -Liberalismo político (Kant, Fukuyama),


liberalismo económico (Keohane, Nye),
liberalismo institucionalista (Keohane,
Ikenberry): hay cambio.
- Constructivimo: hay cambio

Sistema Realismo Estructural (Waltz, -Constructivismo Estructural (Wendt):


internacional Gilpin): no hay cambio hay cambio.
-Cox: hay cambio

_76
A partir de esta primera aproximación disparidades internas se explica a partir de
esquemática, surge que aquellos la inmutabilidad del principio ordenador
autores que sustentan una concepción del sistema. Más allá de las diferencias
“materialista” de la realidad son escépticos internas, Atenas, Roma o Estados Unidos
en cuanto a la posibilidad de cambios. se han comportado en forma similar pues
Por el contrario, aquellos que introducen han ocupado posiciones similares en la
elementos “idealistas”, creen en la estructura de poder.
existencia del mismo, aunque con diversos La persistencia del principio ordenador
matices, como veremos. de la estructura, es decir, la anarquía,
En la sección II analizaré a los es la que explica la continuidad a nivel
“materialistas sistémicos” que niegan la sistémico, aunque el cambio exista a nivel
existencia de cambios sustanciales en el de la unidad. Para Waltz hay cambio a nivel
sistema internacional; en la sección III de la segunda imagen, pero hay continuidad
abordaré la perspectiva de los que creen en la tercera imagen. Son iluminadoras sus
en el cambio; en la sección IV aplicaré esas siguientes expresiones:
“lentes conceptuales” a la época actual; y en
la sección V concluiré con una reflexión sobre “A veces, la política internacional
el cambio y sus múltiples aristas. es descripta como el dominio de los
accidentes y las perturbaciones, de los
cambios rápidos e impredecibles. Aunque
DOS MATERIALISTAS abundan los cambios, las continuidades
SISTÉMICOS: WALTZ y GILPIN son igualmente impresionantes... La
textura de la política internacional sigue
El sistema internacional para Waltz siendo muy constante, los esquemas
está constituido por la estructura y por se repiten, y los acontecimientos
las unidades interactuantes (estados). La recurren infinitamente. Las relaciones
estructura está definida por tres aspectos: que prevalecen internacionalmente
1) principio ordenador: anarquía; 2) rara vez cambian en tipo o cualidad.
funciones no diferenciadas entre las Están marcadas por una desoladora
unidades; 3) distribución de los atributos persistencia que debe esperarse mientras
de poder, que determina la posición de las ninguna de las unidades involucradas sea
unidades en la estructura. capaz de convertir el anárquico reino
Para Waltz sólo el cambio del principio internacional en un reino jerárquico.”
ordenador significaría un cambio (Theory of International Politics, cap 4).
cualitativo o cambio de sistema. Mientras
ello no ocurra, sólo se verifican cambios Gilpin comparte un enfoque similar. En
cuantitativos dentro del sistema referidos efecto, como Waltz, sostiene que a nivel
al tercer elemento de la estructura, es sistémico hay cambios en la distribución
decir, cambios en la distribución de los de poder entre las unidades. Para explicar
atributos de poder, y por ende, cambio en esta redistribución de poder recurre a
las posiciones relativas de las unidades. Esto la “tasa diferencial de crecimiento”. El
implica un cambio en la polaridad crecimiento económico, tecnológico y
del sistema. militar de los estados a tasas diferentes
Desde este enfoque, la semejanza en hace que la brecha entre las unidades
la conducta de los actores a pesar de sus más poderosas y los competidores que

_77
_artigos e ensaios

le siguen se acorte. De esta manera, para la estructura misma como la identidad y los
estos últimos los costos de cambiar el intereses de dichos actores están dados y son
sistema disminuyen y los incentivos para exógenos a todo el proceso.
hacerlo crecen, lo que conduce a una
contradicción entre el orden existente
(funcional a los intereses del hegemón en
decadencia) y la distribución de poder, que
DESDE OTRAS PERSPECTIVAS,
está virando a favor de los competidores EL CAMBIO DEL SISTEMA
en ascenso. Esta disyunción entre el
sistema y la distribución de poder ha sido
INTERNACIONAL ES POSIBLE
resuelto a lo largo de la historia a través
de guerras hegemónicas, que conducen La teoría liberal de la paz interdemocrática
a un nuevo equilibrio del sistema, con plantea que la instauración de democracias
la emergencia de un nuevo hegemón liberales (cambios internos en los estados)
(individual o colectivo) que impondrá un genera cambios en el sistema internacional
orden nuevo, favorable a sus intereses (Kant, Doyle, Fukuyama).
(teoría de la estabilidad hegemónica). Para otros autores liberales, la fuente
Además del cambio en la polaridad del del cambio reside en la economía o en la
sistema, ligado a un cambio en la distribución estructura interna de los estados, y por
de poder, Gilpin distingue otros dos tipos de tanto señalan la debilidad del neorrealismo
cambio a nivel internacional: para explicar el cambio al obviar este
- cambio de sistema: cambio en la naturaleza nivel de análisis. En este sentido, Keohane
de los actores (por ejemplo, pasaje de imperio señala que Gilpin pretende realizar un
a estado nación). No son frecuentes. análisis sistémico del cambio, para luego
- cambio de interacción: cambio en las contradecirse al basar en parte la decadencia
relaciones o procesos interestatales. Son los del hegemón en factores internos.
más frecuentes.
Para Waltz, sólo el reemplazo de “This Thucydides- Gilpin theory
un principio ordenador por otro is a systemic theory of change only
podría generar un cambio de sistema. in a limited sense. …Yet at a more
Manteniéndose la anarquía, sólo son fundamental level, it does not account
posibles cambios en la polaridad (o fully for the sources of change….
“cambios sistémicos” en el lenguaje de Although it is insightful about systemic
Gilpin) que generan cambios en la conducta factors leading to hegemonic decline, it
de las unidades (“cambios de interacción” also has to rely on internal processes to
según Gilpin). Waltz no considera el cambio explain the observed effects.”
en la naturaleza de los actores como un (“Theory of World Politics: Structural
cambio de sistema ya que ello entraría Realism and Beyond” in Neorealism and
dentro de un análisis de segunda imagen its critics, ed. Keohane, pag. 159, 179).
(al igual que los cambios de interacción) y
por ello no lo toma en cuenta al reflexionar Para el liberalismo institucionalista, las
sobre el sistema internacional. instituciones juegan un rol importante al
En el universo neorrealista sólo aparece una mitigar el impacto de la anarquía sobre
estructura en esencia inmutable impactando los estados, facilitando de ese modo la
sobre la conducta de los actores, pero tanto cooperación entre ellos al reducir el

_78
temor al engaño. En esta perspectiva, las de poder, sino que es un cambio en la
instituciones, si bien dependen para su cultura, en las ideas compartidas. Es que
creación de la voluntad de los estados, la estructura no es material sino social y
luego adquieren cierta autonomía frente a está formada por ideas y conocimientos
éstos, influyendo en su conducta al reducir compartidos. De esta forma, en anarquía,
la incertidumbre, aumentar la confiabilidad los estados pueden actuar de acuerdo con
y facilitar el flujo de la información. distintas lógicas (hobbesiana –de enemistad-
En este sentido es interesante la , lockeana- de rivalidad- o kantiana – de
postura de Ikenberry, para quien la amistad) ya que la anarquía es lo que los
creciente institucionalización del sistema estados hagan de ella.

Partiendo de un enfoque sistémico e


idealista, Wendt concibe el cambio como
evolución y transformación de la estructura
social. En este proceso no sólo cambia el
sistema, sino también cambian los actores,
sus identidades e intereses.

internacional está generando un cambio Partiendo entonces de un enfoque


sustancial en la política internacional al sistémico e idealista, Wendt concibe el
ir incorporando elementos de un orden cambio como evolución y transformación
constitucional al sistema hegemónico de la estructura social. En este proceso no
benevolente actual. Este autor admite sólo cambia el sistema, sino también cambian
la posibilidad de cambio en el sistema los actores, sus identidades e intereses. La
internacional a partir de una noción de estructura social no sólo modela la conducta
cambio diferente a la de autores como de los actores, sino que su impacto es más
Waltz o Gilpin para quienes el cambio profundo ya que alcanza su identidad y sus
implica discontinuidad, ruptura y quiebre. intereses. A su vez, los actores influyen en la
Por el contrario, para Ikenberry el cambio estructura social, no siendo ninguno de los
implica evolución, ya que el nuevo orden dos ontológicamente primitivo o exógeno
(orden constitucional) surge del viejo al proceso de interacción. Los actores y
(orden hegemónico) a partir de un cambio la estructura se co-construyen y son el
incremental (creciente institucionalización). producto de la interacción (“somos lo
En esta misma línea, podemos situar a que hacemos”).
Wendt, quien introduce elementos idealistas En comparación con el neorrealismo,
a su análisis y adopta una noción de cambio este enfoque resulta interesante pues
como evolución. Para Wendt, el cambio supera la dicotomía anarquía/ gobierno
estructural no consiste en una redistribución mundial. Después de la anarquía, hay un

_79
_artigos e ensaios

continuum en que existen diversas formas ONGs y otros actores no estatales en el


de “gobernabilidad sin gobierno”, en el que escenario internacional; surgimiento de una
las instituciones juegan un rol central. sociedad civil global con una conciencia
global; expansión de la democracia y de la
ANTE UNA NUEVA ERA economía de mercado; fin de la guerra fría
y de la bipolaridad). Sin embargo discrepan
EN LAS RELACIONES en cuanto al significado y a los alcances a
INTERNACIONALES? asignarle a los mismos.
Como hemos visto, Waltz y Gilpin
El tema del cambio es tópico de sostienen que no estamos ante un cambio
profundo debate a nivel académico y de sistema, ya que seguimos en un mundo
mediático. La mayoría de los pensadores de anarquía y auto ayuda. Para estos
concuerdan en que ha habido cambios en el autores, los cambios antes mencionados
mundo (revolución en las tecnologías de los podrían agruparse en dos categorías. En
transportes, de las comunicaciones y de la primer lugar, el fin de la guerra fría y de
información; aparición de armas nucleares la bipolaridad implica un cambio dentro
y de destrucción masiva; creciente del sistema o “cambio sistémico” –según
interdependencia económica; problemas Gilpin- ligado a una redistribución de poder
globales; creciente número de instituciones entre los actores. A su vez, este cambio en
multilaterales; creciente participación de el sistema producirá cambios en la conducta

Los liberales en sus diversas corrientes


recalcan la presencia de un cambio
profundo en el sistema a partir de diversas
variables: la extensión de la democracia
liberal y la “zona de paz separada” (Doyle);
la creciente participación en las relaciones
internacionales de actores no estatales,
estableciéndose múltiples canales de
comunicación y de acción (interestatales,
transgubernamentales y transnacionales) con
agendas desjerarquizadas (Keohane y Nye).

_80
de los otros estados. Así, para Waltz, dada Otro aspecto resaltado es la creciente
la preponderancia de los Estados Unidos, institucionalización del sistema. En este
los otros estados (principalmente la Unión sentido, Ikenberry señala en “After
Europea, China, Japón, Rusia) tenderán a Victory” que luego del fin de la Guerra
contrabalancear su poder, hasta que se Fría por el colapso de la Unión Soviética,
llegue a un nuevo equilibrio. En segundo Estados Unidos ha promovido la extensión
lugar, las otras tendencias de carácter de la OTAN y la creación de nuevas
económico-tecnológico y sociológico instituciones (NAFTA, APEC, OMC)
anteriormente señaladas – como la siguiendo con el modelo institucional de
interdependencia, la democratización y la construcción de orden. Esta estrategia
creciente institucionalización- son vistas habría dado más legitimidad al orden
por estos autores como cambios a nivel instaurado y reducido el temor de los más
de las unidades (sea en sus atributos débiles al abandono o a la dominación,
internos o en sus interacciones) que no disminuyendo el incentivo a hacer
impactan significativamente en el sistema balancing contra los Estados Unidos. Este
internacional. Así, el temor al engaño y a sistema altamente institucionalizado y
depender del otro, junto con la barrera legítimo contendría elementos del orden
de las ganancias relativas hacen que los constitucional que, al tornar al poder
grandes poderes no cooperen entre americano aceptable para los demás
sí. En cuanto a las instituciones, para estados, reduciría el incentivo de éstos a
los neorrealistas éstas responden a los deslizarse hacia los órdenes tradicionales
intereses de los poderosos, no teniendo de equilibrio de poder o de hegemonía.
autonomía ni impacto alguno en la
conducta de éstos.
Contrariamente a esta lectura de la
LAS AMBIGÜEDADES DEL
realidad, otros analistas proclaman el CAMBIO
advenimiento de una “nueva era” en la Cuáles son las causas de que exista tanto
política internacional. Así, por ejemplo, debate en torno a la cuestión del cambio en
Fukuyama proclama el “fin de la historia” las relaciones internacionales?
frente al colapso del comunismo y la Como hemos visto, los que pregonan
victoria del modelo representado por la el inicio de una “nueva era” en las
democracia liberal. relaciones internacionales subrayan la
Los liberales en sus diversas corrientes trascendencia de procesos tales como la
recalcan la presencia de un cambio creciente interdependencia, la revolución
profundo en el sistema a partir de diversas tecnológica en los medios de transporte
variables: la extensión de la democracia y de comunicación, la expansión de la
liberal y la “zona de paz separada” (Doyle); democracia, el rol de las instituciones
la creciente participación en las relaciones internacionales, etc... Para otros, estos
internacionales de actores no estatales cambios no han alterado la lógica de
(ONGs, empresas multinacionales, etc...), la política internacional y subrayan las
estableciéndose múltiples canales de continuidades con el pasado.
comunicación y de acción (interestatales, Analizando las dos posturas extremas
transgubernamentales y transnacionales) del “todo ha cambiado” y del “todo sigue
con agendas desjerarquizadas (Keohane igual”, pareciera que uno de los motivos de
y Nye). discrepancia radica en que no existe consenso

_81
_artigos e ensaios

acerca de qué debe entenderse por cambio ni En segundo lugar, la noción misma de
cuales son sus marcadores. cambio debe explicitarse ya que puede
Sucede que el cambio no es un dato objetivo ser pensado de distintas formas: como
de la realidad sino que está en la mirada del ruptura y reemplazo de lo viejo (Fukuyama
sujeto. De las discusiones sobre el cambio, surge afirma su existencia, Waltz y Gilpin lo
claro que no todos vivimos en el mismo mundo niegan), como cambio dialéctico (Cox),
pues vemos realidades distintas, y a ello se suma como evolución (Ikenberry, Wendt) o como
que luego asignamos significados diversos a acumulación con el consiguiente aumento
aquello que vemos. En las discusiones sobre de la complejidad del sistema (Bull y su

El concepto dialéctico del cambio


implica trascender la contradicción de lo
nuevo y lo viejo en una síntesis en la que
coexisten novedad y continuidad.

el cambio haría falta explicitar tres premisas idea de que los elementos de una sociedad
básicas: la perspectiva, la concepción del cambio anárquica de estados –intereses comunes,
y la concepción de la realidad. reglas e instituciones- coexisten en el
En primer lugar, la perspectiva desde la sistema internacional con los elementos
cual miremos el mundo determinará nuestra hobbsianos y kantianos).
percepción del cambio. Tal como lo sostiene La primera noción de cambio (ruptura)
Rosenau en “Turbulence in World Politics”: implica que lo nuevo no tiene nada
en común con lo que lo ha precedido.
“The interpretation of continuity and Particularmente no adhiero a esta visión
change depends on the systemic and ya que considero que lo nuevo no
time perspectives from which they are necesariamente desplaza a lo viejo, sino
assessed. Change and continuity, in other que puede convivir con él de diversas
words, are not objective phenomena. maneras. El concepto dialéctico del cambio
Their observation acquires form through implica trascender la contradicción de lo
conceptual formulation, not from nuevo y lo viejo en una síntesis en la que
empirical ‘reality’.” coexisten novedad y continuidad. El cambio
como evolución implica que lo nuevo surge
Es necesario, pues, delinear con claridad de lo viejo a través de la acumulación
el horizonte temporal y espacial. Cuanto en el tiempo de cambios marginales e
más micro sea la mirada (como la de incrementales.
los medios), más cambios percibiremos. En general, cuando oímos hablar de
Cuando mayor sea el nivel de abstracción cambio, tiende a pensárselo como ruptura,
y generalidad, la sensación de continuidad especialmente después de grandes eventos
predominará sobre la de cambio. como el fin de la guerra fría. Sin embargo,

_82
desconfío de la idea de un “nuevo orden dialéctico), o desaparición. Si las principales
mundial” ya que los cambios suelen instituciones del sistema se hubieran
presentarse como síntesis dialécticas o transformado radicalmente o hubieran
evolución en que conviven la novedad y la desaparecido, entonces se podría hablar de
continuidad. Es más, en muchos casos el un nuevo orden. Como, por el contrario, las
cambio se presenta como una yuxtaposición instituciones mantienen sus características
de lo viejo y lo nuevo, aumentando la principales, aunque con cierto grado de
complejidad del sistema. Esto puede evolución o mayor complejidad, entonces
significar que mientras la lógica realista no puede invocarse un cambio de sistema
persiste en muchas áreas del mundo, nuevas a pesar de cambios en la distribución de
formas de cooperación y gobernabilidad poder o de fenómenos sociológicos tales
estén apareciendo (Unión Europea, como una creciente interdependencia o
procesos de integración regionales, intensificación de las comunicaciones.
regímenes internacionales, etc...). En síntesis, propongo una actitud
Por último, un tercer componente prudente tanto frente a los que pregonan
para definir la visión del cambio reside el advenimiento de una “nueva era” en la
en la concepción del mundo. La visión de que todo sería novedoso, como a los que
un realista, de un liberal, de un marxista sostienen que las “verdades eternas” de
o de un constructivista son, como diría Tucídides son suficientes para comprender
Waever, inconmensurables pues ven mundos todos los rasgos de las relaciones
distintos, y por tanto, no habrá consenso internacionales contemporáneas.
entre ellos acerca de qué ha cambiado y Además, sostengo una visión moderada
que continúa. Sin embargo, más allá de dicha en la que cambio y continuidad no se
“inconmensurabilidad”, deberían intentar excluyen mutuamente dada la complejidad
establecerse marcadores o puntos de del sistema internacional. Es justamente en
referencia, a fin de poder notar desviaciones el marco de esta complejidad que surge
o apartamientos e identificar cambios. la necesidad de disponer de distintos
Ikenberry destaca una tendencia instrumentos teóricos para comprender
hacia una creciente institucionalización un mundo multidimensional, en el que el
del sistema internacional. Partiendo de realismo da cuenta sólo de ciertas facetas (
la noción de institución de Bull –como dilemas de seguridad, auto-ayuda, guerra y
combinación de ideas, prácticas y normas- paz), siendo necesario complementarlo con
, una forma posible de analizar el cambio otros enfoques que iluminen otras parcelas
sería la propuesta por Holsti (“Change in de la realidad, como la cooperación, el
the International System”), consistente en manejo de problemas globales, la creciente
ver qué ha sucedido con las principales institucionalización, etc....
instituciones del sistema internacional Por lo tanto, una teoría del cambio debe
moderno (el estado nación, la soberanía, ser multicausal – ya que deben englobarse
la guerra, la diplomacia, el derecho tanto factores materiales (procesos de
internacional). El cambio podría asumir producción, tecnología) como “idealistas”
distintos matices: creación de instituciones (ideas e instituciones)– , multidimensional
nuevas que aumentan la complejidad (diversos niveles de análisis) y polimorfa
del sistema (cambio acumulativo); (admitir diversos conceptos de cambio) a
transformación de las existentes (evolución); fin de captar la complejidad del poliédrico
síntesis de nuevas y viejas (cambio sistema internacional.

_83
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_84
A ssistir às cenas que ilustram os noticiários televisivos acerca dos
conflitos africanos tornou-se rotina na vida dos cidadãos. Para diplomatas,
tornam-se angustiantes, na medida em que aquelas imagens revelam a
dificuldade e, freqüentemente, a insuficiência das ações preventivas. Esse
texto é um breve relato da minha experiência vivida durante seis meses
- entre dezembro de 1999 e maio de 2000 - no país africano de maior
extensão territorial e com uma história de guerra civil prolongada, cujo
início remonta à independência em 1956.

A presença de inúmeras organizações mas também a esperança estão presentes em


não-governamentais de ajuda humanitária em seu discurso: “Quando a guerra acabar, o Sudão
determinadas áreas do território sudanês será um grande país”.
revela a insuficiência de recursos próprios e O conflito armado no sul do país é
a deficiência das políticas públicas voltadas um dos mais duradouros no continente
para a garantia de padrões básicos de higiene, africano. É impossível compreender os atuais
de saúde e de educação. Aparentemente, os conflitos sem se referir à história recente
sudaneses sabem qual é o principal motivo da antiga Núbia. Desde 1899 dominado por
que os afasta das metas ótimas de crescimento um condomínio anglo-egípcio, o território
econômico e de desenvolvimento humano. sudanês é ocupado por muçulmanos na ampla
Em conversa informal com um funcionário da extensão desértica do norte e por tribos
administração pública da cidade de Malakal, no animistas e cristãs nas savanas e nas florestas
sul do Sudão, não só a percepção do problema tropicais do sul. As diferenças culturais não

_85
_pelo mundo

tardaram a provocar guerra civil pouco Para os diretores e gerentes locais da ONG,
tempo depois que a independência deu tornar-se-ia frustrante a recuperação física de
autonomia de administração aos governantes um centro cirúrgico e o abandono sem função
islâmicos do norte. devido à falta de profissionais especializados. O
Restringir a explicação dos conflitos convite para assumir a responsabilidade dessa
a aspectos culturais passa pelo risco de tarefa foi feito em novembro de 1999 e aceito
defender uma hipótese reducionista da para um período de seis meses. Algum tempo
situação. O território sudanês é rico em depois, foi possível perceber a dificuldade de
petróleo, gás natural, ouro, prata e em manter profissionais sudaneses na cidade.
uma variedade enorme de metais para Alguns médicos, presentes na cidade por
aproveitamento diverso nas indústrias de obrigações de serviço militar, ansiavam pelo
transformação. Muitas dessas riquezas ainda fim do serviço obrigatório e pela emigração
não exploradas aguardam investimentos, para outros países mais desenvolvidos no
impossíveis de serem realizados na conjuntura Oriente Médio. Uma breve conversa revela
de guerra. Essas riquezas determinam também a utopia de manter cirurgiões na cidade de
competição envolvendo as grandes potências, forma espontânea.
cujo resultado é um interessado concerto As dificuldades locais vão desde a obtenção
político nos organismos internacionais. de um padrão mínimo de conforto para um
Malakal é uma cidade com profissional com formação universitária até a
aproximadamente 80 mil habitantes. Suas instabilidade política da região. Não existiam
únicas construções de alvenaria são a habitações confortáveis; a rede de esgoto era
mesquita, a prefeitura, as residências oficiais inexistente (um dos projetos de outra ONG
e o hospital. A reforma do hospital foi feita holandesa no local era a construção de latrinas);
com recursos provenientes da organização a água era farta, proveniente do rio Nilo, mas
não- governamental (ONG) francesa Hôpital o tratamento inexistia para a maior parte
sans frontière (HSF). Essa ONG tem como da população; o comércio local limitava-se a
leitmotiv a recuperação de plantas hospitalares pequenas vendas e feiras; televisão e telefonia
em locais carentes e, quando possível, o por satélite eram restritas aos locais de extrema
suporte à administração local para fazer o necessidade e só podiam ser utilizadas no
hospital funcionar. O trabalho como cirurgião pequeno intervalo de tempo em que a energia
dessa unidade hospitalar insere-se nesse elétrica era fornecida durante duas horas pela
último objetivo. manhã e quatro horas após o pôr-do-sol.

_86
Malakal é uma cidade com aproximadamente
80 mil habitantes. Suas únicas construções de
alvenaria são a mesquita,
a prefeitura, as residências
oficiais e o hospital

Durante os meses vividos na cidade, pudesse ser marcada, uma série de contatos
não houve registro de conflitos armados. com outras ONGs permitiu perceber a
A percepção da guerra era apenas a ronda importância do trabalho humanitário no
constante de tanques pelas ruas de terra da país. Instaladas no setor de embaixadas da
cidade, o toque de recolher após as 22 horas cidade, as sedes das ONGs administravam
e a angústia de um povo que, veladamente, uma enorme rede de assistência em todo
deixava transparecer a insatisfação com os o território. Próximo à sede da Hôpital sans
governantes na capital. frontière, centenas de sudaneses aglomeravam-
O contato dos habitantes com os se diariamente nos portões da embaixada
expatriados era, sistematicamente, de respeito, da Arábia Saudita em busca do sonho da
de carinho e de reconhecimento pelo esforço emigração. A sensação de estranheza por se
que não os deixava em abandono. Em um encontrar no sentido inverso, mesmo que
ambiente de imensa carência, a notícia de um temporariamente, aumentava a percepção
cirurgião na cidade se alastrou com rapidez e das dificuldades que ainda estavam por vir,
não tardaram as filas para atendimento. mas eram mitigadas pela certeza de estar
Longas três semanas foram necessárias contribuindo para que futuros sudaneses não
para que alguma cirurgia pudesse ser realizada precisem sonhar com a partida do solo pátrio.
desde o pouso da aeronave em Cartum até A documentação necessária para a viagem a
a utilização do centro cirúrgico. As iniciativas Malakal só ficaria pronta em janeiro e, naquele
tomadas na capital do país centravam-se momento, os preparativos para o reveillon
na obtenção de vistos de deslocamento, sinalizavam as previsões milenaristas típicas
de permissão de trabalho e de visitas ao e a apreensão em relação ao bug do milênio
consulado brasileiro. Naquele momento, foi (Y2K). A idéia de comemorar a passagem para
estranho encontrar o cônsul do Brasil no o século XXI nas belas pirâmides sudanesas,
Sudão e ter de conversar em inglês. Tratava-se em uma localidade chamada Meroe, acabou
de um consulado honorário, cujas ações eram demonstrando a força do trabalho realizado
reportadas ao Cairo. A sensação de isolamento em equipe. Os expatriados, funcionários
tornou-se maior quando recebi a notícia de de ONGs sediadas em Cartum, tiveram a
que não havia outro brasileiro no território interessante idéia de iluminar a principal
sudanês naquele momento. pirâmide de Meroe, plágio do que Jean Michel
Enquanto as exigências legais eram Jarre faria no mesmo momento em Gizé, no
providenciadas para que a viagem a Malakal Cairo. As dificuldades burocráticas e logísticas

_87
_pelo mundo

foram superadas com empenho individual, e o transporte dos pacientes operados, sobretudo
cerca de cinqüenta estrangeiros, de origens em dias chuvosos. Beneficiado pela estação
diversas, celebraram o novo milênio com uma seca, outras dificuldades se imporiam: ausência
ceia no deserto ao norte de Cartum. de anestesistas; centro cirúrgico pequeno;
Não havia ligação rodoviária ou ferroviária inexistência de unidades de cuidados intensivos;
entre Cartum e Malakal. O acesso à cidade serviço de enfermagem muito mal capacitado
só poderia ser feito por uma viagem de e uma enorme expectativa em torno de um
barco subindo o rio Nilo ou por avião. A cirurgião, como se apenas minha presença
necessidade de poupar tempo tornou a pudesse solucionar qualquer dificuldade.
opção aérea mais adequada e os oitocentos A boa vontade dos funcionários acabou
quilômetros entre as duas cidades foram facilitando a transposição de obstáculos.
transpostos em duas horas. As precariedades Uma equipe de colaboradores diretos
da cidade são rapidamente percebidas, mas se formou rapidamente e planos foram
logo são minimizadas pela simpatia das traçados para que fossem selecionados os
pessoas que nos recebiam. Além do mais, a casos após consultas regulares no período
habitação da ONG se localizava dentro do da tarde. O horário da manhã foi reservado
hospital, construída em alvenaria com dois para as eventuais cirurgias, tão logo as reais
quartos, sala de estar, cozinha, copa e uma possibilidades do hospital fossem identificadas
varanda voltada para o rio Nilo, cuja visão ao e planos fossem feitos para que situações
entardecer amenizava as agruras da distância. de emergência pudessem ser previstas e
As filas de pedidos se avolumaram solucionadas. A principal angústia era a
rapidamente. Fazia seis meses que o último ausência de anestesistas e de respiradores
cirurgião expatriado havia partido e muitos no centro cirúrgico. Alguns técnicos de
dos casos cirúrgicos aguardavam a chegada enfermagem diziam-se preparados para
do próximo médico. Antes de atendê-los, foi administrar anestesia venosa e para monitorar
necessário tomar ciência das possibilidades os sinais vitais durante os procedimentos
locais e adequar o que poderia ser feito ali cirúrgicos, desde que não necessitassem de
e o que deveria ser removido para Cartum. acesso artificial às vias respiratórias.
As diversas instalações do hospital não eram As incertezas quanto à possibilidade de
contíguas, e o trajeto entre uma e outra deveria realizar cirurgias só começaram a desaparecer
ser feito por caminhos de pedra sobre o quando os primeiros casos foram submetidos
terreno de terra. Essa característica dificultaria à cirurgia e os pacientes puderam, após os dias

As dificuldades burocráticas e logísticas


foram superadas com empenho individual, e
cerca de cinqüenta estrangeiros, de origens
diversas, celebraram o novo milênio com uma
ceia no deserto ao norte de Cartum

_88
necessários de recuperação, ter alta com seus Algumas idiossincrasias da medicina local
problemas resolvidos e sem complicações. acrescentavam tensão nas relações médicas.
Precauções foram tomadas para que o tempo Muitas vezes dificultada por dupla tradução-
operatório não excedesse uma hora, quando do idioma tribal para o árabe e desse para
os efeitos colaterais do método anestésico o inglês- certas explicações não convenciam
empregado poderiam ser mais deletérios alguns pacientes. Tornou-se hábito, na região,
do que a solução cirúrgica ser benéfica. As a apendicectomia preventiva, realizada por
cirurgias foram limitadas aos casos mais médicos locais em períodos anteriores. A
simples de pequenas hérnias da parede verdadeira indicação cirúrgica só se verifica na
abdominal, cirurgias proctológicas rápidas, presença de sinais e de sintomas de apendicite
procedimentos obstétricos de partos normais aguda, o que torna a extirpação do apêndice
ou cesarianos. Médicos prestando o serviço vermiforme normal uma prática condenada.
militar obrigatório auxiliavam nas cirurgias e Certa vez, um homem não aceitou a recusa
alguns deles, com interesse na especialização e simulava os sintomas para conseguir o que
cirúrgica, tornavam-se colaboradores queria. Acabou internado por dez dias até
atenciosos e dedicados, fazendo da troca de se convencer de que o que sentia não seria
experiências um aprendizado para todos. corrigido por cirurgia.
Algumas cirurgias maiores tiveram de ser A prática diária da cirurgia nessas
realizadas devido a situações de emergência. Na condições tornava o trabalho também
ausência de traumatismos graves provocados inusitado e preenchia o tempo com
por guerra, duas laparotomias exploradoras particularidades às quais não estava
foram realizadas devido a traumas provocados acostumado. Os horários tinham de ser
por agressões interpessoais. A solução rápida adaptados aos costumes locais, como o
das lesões encontradas acrescentava tensão respeito às horas destinadas à oração voltada
devido ao tempo operatório limitado pelas para Meca e à folga semanal nas sextas-feiras
possibilidades anestésicas. Cirurgias no andar no lugar do domingo. Os hábitos islâmicos se
superior do abdome, normalmente remetidas impunham pela burocracia oficial, mesmo que
a Cartum devido a possíveis complicações a maior parte da população preservasse suas
respiratórias, tiveram de ser realizadas em crenças católicas ou animistas. A presença de
situações de emergência, quando o tempo de missionárias católicas ajudava na catequese
remoção previsto não seria compatível com a e no conforto religioso àqueles de confissão
rapidez necessária à solução. cristã. Apesar da pluralidade de crenças,

_89
_pelo mundo

não presenciei cenas de desrespeito ou de querelas entre os litigantes. As aspirações


preconceito de nenhuma das partes. de consumo são bastante aquém do que
A rotina de cirurgias matutinas e de qualquer cidadão do mundo ocidental pode
consultas vespertinas e a estranha baixa imaginar. Os mitos de origem são intrigantes:
ocorrência de emergências permitiram maior os Schilouck ter-se-iam originados da
convívio social com os médicos sudaneses, fertilização divina de um jacaré e de seu ovo
com os outros expatriados do HSF e de outras teria nascido o Adão da tribo, para fazer uma
ONGs com projetos na cidade e com os analogia ao mito judaico-cristão.
habitantes locais de tribos diferentes. Nessas Com os colegas das outras ONGs,
ocasiões, tornava-se interessante perceber a compartilhavam-se as experiências e as
diversidade de estilos de vida, de crenças, de dificuldades, além de manter-se um círculo
hábitos e de expectativas em relação ao futuro. de amizades que minimizava a saudade.
Com um colega médico do HSF, francês, Assistíamos a filmes, promovíamos festas e
cuja missão naquele momento era apenas de praticávamos esportes, contando sempre
coordenador das obras em outros setores com a ajuda de suprimentos enviados
do hospital, dividiam-se as angústias em regularmente de Cartum com privilégios
relação à eficácia das ações humanitárias. Nos diplomáticos. As notícias tinham hora marcada
momentos em que as obras não seguiam os à noite, quando a energia elétrica permitia
prazos previstos, o colega ponderava acerca sintonizar a rede americana CNN. Hoje,
de ações que pudessem ser mais eficazes ao assistir ao filme Turtles can fly, é possível
e afirmava que melhor seria construir uma lembrar a sensação e o efeito de uma antena
fábrica de sapatos na cidade. A necessidade de parabólica em locais isolados.
calçados era evidente e a oferta de empregos A missão terminou em maio e no
geraria trabalho e renda, com os quais as relatório final constavam oitenta cirurgias
pessoas poderiam pagar por suas necessidades, e centenas de consultas. Reduzir todo o
inclusive as de saúde. Esse tipo de exercício esforço a números, a estatísticas e a papel
intelectual de políticas públicas era constante. não corresponde às expectativas daquele que
Entre os funcionários do hospital, está em contato direto com o destinatário
provenientes de tribos Shilouck, Nuer e final das verbas doadas. Embora aqueles dados
Dinka, a conversa girava em torno de seus sejam necessários à manutenção do trabalho
hábitos, de suas crenças e de suas aspirações. humanitário e ao fluxo de verbas, a verdadeira
O direito primitivo das tribos consistia no recompensa está no rosto daqueles que
arbítrio de seus respectivos reis em caso de foram beneficiados com as ações médicas

_90
A angústia está na percepção de que um
pequeno pote de água foi jogado contra o
grande incêndio em que consiste a situação
político-social do Sudão

realizadas. A angústia está na percepção de apontavam nessa direção, inclusive uma


que um pequeno pote de água foi jogado que prevê um plebiscito em 2011, quando
contra o grande incêndio em que consiste a a população sulista decidirá entre manter-
situação político-social do Sudão. O retorno foi se sob a jurisdição de Cartum ou ganhar
preenchido por pensamentos que nos levam à autonomia política. No sentido contrário,
certeza de que inúmeros problemas de saúde em 2006, a cidade de Malakal ocupou a
poderiam ser resolvidos por ações políticas mídia internacional como palco de novo
adequadas e por um pouco mais de altruísmo. enfrentamento entre as tropas do governo e
As notícias relacionadas ao Sudão o SPLA, causando a morte de cem pessoas e
passaram a ser acompanhadas com mais ferimentos em mais de trezentas. É impossível
atenção desde então. As referências a não se remeter em pensamento e não
cidades e a pessoas passaram a ter maior imaginar o caos enfrentado pelo hospital
consistência na medida em que a memória da cidade, que, com dificuldades imensas,
trazia de volta a experiência vivida. Em 2003, permanece a única fonte de assistência de
o foco internacional voltou-se para outra saúde na região. Torna-se angustiante pensar
região do país, Darfur, onde novamente que pessoas com as quais um fraterno
forças do exército nacional, apoiadas por convívio foi estabelecido estiveram presentes,
milícias islâmicas, estariam tentando dominar foram feridas ou mortas durante esse novo
populações de outras etnias centro-africanas. episódio da guerra civil sudanesa.
Os motivos são semelhantes ao conflito Entre dezenas de teorias e explicações
sulista, e os efeitos são milhões de refugiados para o fenômeno da guerra e da paz, fica a
em países vizinhos, denúncias de genocídio, sensação de que entre a frieza do realismo
insuficiência das ações de paz empreendidas e a utopia do idealismo, os homens se
pela ONU e pela União Africana, além embrutecem na primeira e sonham na última.
da consternação passiva de inúmeros Ambas são aspectos da existência humana.
telespectadores e da tristeza daqueles Apenas a morte pode trazer a possibilidade
que um dia tentaram contribuir para a de um sonho interminável, mas antes que
reconstrução do país. o niilismo tome conta dos pensamentos
Em 2005, o governo de Cartum celebrou humanos, é útil concluir com a singeleza
um armistício com o Exército Popular para teórica ouvida, repetidamente, de meu pai:
Libertação do Sudão (SPLA, sigla em inglês), “Se os homens percebessem que toda guerra
acenando para um longo período de paz a termina em um acordo de paz, iniciariam a
se iniciar no sul do país. Inúmeras cláusulas guerra pelo fim”.

_91
_pelo mundo

HER
NOSS
O HO IBER
MEM
EM H TO,
AVAN
A:
REFLEXÕES
LITERÁRIAS
SOBRE
A VIDA
CULTURAL
EM CUBA
Felipe Krause Dornelles

_92
A lcancei a Plaza de Armas pela Calle
O’Reilly, o suave sol de janeiro derramando-
para nós, no pacato e arborizado bairro de
Vedado, a poucas quadras da nossa pousada.
se entre as folhas, a iluminar as fachadas Apesar de severamente deterioradas, as casas
centenárias. Do outro lado da Plaza, avistei aqui ainda detinham certo charme, e algumas
Heriberto, alojado em seu agradável cantinho eram verdadeiramente belas e impressionantes.
à sombra da folhagem densa que também Ecoavam, longínquas e fantasmagóricas, as
protege a estátua do líder revolucionário descrições de Graham Greene em Our Man in
novecentista Carlos Manuel de Céspedes. Havana (1958): “Wormold drove back to Vedado,
Era final de tarde, e Heriberto, gordinho e to the little white houses and the bougainvilleas
sorridente, estava sentado em uma cadeira of the rich...What quarrels were still in progress
de praia, ao lado de seus companheiros, behind those doll’s house walls?”. Meio século
provavelmente discutindo as vendas do dia, e uma revolução depois da publicação do
o último jogo de pelota. Tragava seu cigarro, clássico romance, os interiores de Vedado,
olhava para os lados, dava uma gargalhada. O alegremente humildes, destoavam das ruinosas
que estava pensando, no fundo? Aproximei-me fachadas burguesas e, às vezes, imponentes.
lentamente. Será que me reconheceria? Heriberto e seu companheiro dividiam com
Foi C. quem conheceu Heriberto outras famílias – não perguntamos quantas
primeiro, uma semana antes das eleições – uma dessas residências.
nacionais. Havíamos recém chegado a Naquela noite, C. comprou vários livros.
Havana, era voraz nosso apetite por Eu comprei um só (o excelente Aire de luz:
experimentar de tudo, conversar com todos. Cuentos cubanos del siglo XX, organizado por
C. queria comprar livros para sua irmã, uma Alberto Garrandés e publicado em 1999):
apreciadora da literatura latino-americana, estava mais interessado em ouvir o próprio
e havíamos ouvido falar da feira de livros Heriberto, que discorria sobre literatura
usados. Heriberto, logo percebemos, era cubana contemporânea com o entusiasmo
talvez o único feirante que legitimamente e a propriedade de um professor. Descobri,
amava e conhecia seus livros. “De hecho, soy mais tarde, que se tratava, na realidade, do
un pésimo negociante”, disse-nos mais tarde. entusiasmo e da propriedade de um escritor.
Marcamos com Heriberto um encontro, à Conquanto não tivesse a postura e o vigor de
noite, para ver os livros que guardava em sua um Ondjaki, discerni em Heriberto algumas
casa. Era localizada, muito convenientemente das qualidades do jovem e brilhante escritor

_93
_pelo mundo

angolano, que esteve no Brasil durante a 4ª Quando finalmente procurei Heriberto,


FLIP1, em 2006: clareza e firmeza conceitual, as eleições haviam chegado e passado
espírito crítico desprendido de academicismo. tão serenamente quanto as caravelas de
Ao final de nosso encontro, não hesitei em Cristóvão Colombo, que aportaram na
indagar se Heriberto estaria interessado em Baía de Bariay, atual província de Holguín,
conceder entrevista à Juca, a revista dos alunos em 1492. Em ambos os casos, as reais
da academia diplomática brasileira. Ele aceitou, transformações na maior ilha do Caribe,
e combinamos que eu o procuraria, ao final do descrita por Colombo como “a mais bela
mês, em seu habitual ponto na Plaza de Armas, paragem da Terra”, viriam mais tarde. Já
La Habana Vieja. Eu imaginava que, especialmente existia, no entanto, alguma inquietação no ar,
após os resultados das históricas eleições, que algo dificilmente tangível, mas que certamente
se dariam em 20 de janeiro, haveria muito o que palpitava, lá por debaixo daquela atmosfera
discutir, sobre política e cultura, sobre o passado quase bucólica dos tranqüilos feirantes
e o futuro da vida literária em Cuba. trocando histórias ao abrigo das palmeiras.

Nada no ar indicava, com precisão, que


estávamos em uma Havana prestes a
despedir-se do Comandante-em-Chefe Fidel
Castro Ruz. O que se pressentia, sim, era um
momento de ebulição equilibrada, produto
de alguns anos de cocção.
Era minha intenção extrair de Heriberto,
interlocutor eloqüente e educado, mas
também próximo do cotidiano trabalhador,
esse cerne palpitante.
Assim, naquela tarde do dia 30 de janeiro
de 2008, o escritor e comerciante Heriberto
Verdecia, reconhecendo-me imediatamente,
aceitou caminhar comigo em direção ao
Parque Central, no centro histórico de
Havana, onde nos beneficiaríamos de um
pouco de anonimato. Até então, lembrava-me
do Parque Central pelos excelentes mojitos
– com duas gotas de Angostura – preparados
pelo barman do hotel que tem vista para a
agitada praça. O alvoroço, logo explicou-me
meu informante cubano, ocorria diariamente:
grupos de homens, jovens e velhos, juntavam-
se para debater, com o fervor de um batalhão

1
Festa Literária Internacional de Parati

_94
de tropas rebeldes, qual era o melhor time em Leningrado, “an almost catatonic demeanor”,
de baseball, ou qual era o melhor jogador da algo entre espanto e genuína incompreensão,
atualidade... Sentamo-nos em um banco de entre os atores soviéticos que haviam sido
pedra, sem encosto, e abri meu caderninho convocados para receber os americanos.
de anotações marrom. Nada no ar indicava, Entretanto, se a turnê da sensual opera que
com precisão, que estávamos em uma Havana conquistou o mundo com melodias como
prestes a despedir-se do Comandante-em- “Summertime” foi, afinal, “warmly received”
Chefe Fidel Castro Ruz. O que se pressentia, pelos soviéticos, Heriberto sentiu-se
sim, era um momento de ebulição equilibrada, irreparavelmente gélido: terminou uma noite
produto de alguns anos de cocção. soterrado na neve em uma rua de Moscou,
vítima de um tremendo conflito interno e de
uma “borrachera infernal”.
“Borrachera infernal” Heriberto não completou os estudos na
Heriberto nasceu em Havana, em 1962. URSS. Retornando a Cuba, dedica-se ao serviço
Seu pai trabalhava no palácio presidencial, militar e reingressa na universidade, formando-
antes da revolução, e sua mãe, uma senhora se em engenharia elétrica. O ano era 1990 e
“casi analfabeta”, era doméstica. Heriberto Cuba estava às vésperas da grande ruptura,
sente a necessidade de ressaltar que nasceu do início dos longos anos de crise econômica.
depois da revolução, e que por isso teve Hoje, permanece peculiar símbolo do fim dos
acesso total à educação. Depois da escola anos dourados da Revolução: partindo de
primária, estudou em uma escola vocacional, Havana pela Autopista Nacional – projeto que,
“la máxima aspiración de cualquier estudiante” financiado pelos soviéticos, deveria vincular
daquela faixa etária. Conta, contudo, que a capital, no ocidente, a Santiago de Cuba,
sentia, entre os colegas, certo preconceito no extremo oriente – chega-se a um ponto,
gerado pelo fato de que seu pai havia sido logo antes da província central de Ciego de
funcionário de Fulgêncio Batista. Ávila, em que a extraordinária estrada de seis
Mas, por um tempo, tudo deu certo, avalia faixas submerge em meio ao mato tropical,
Heriberto. Terminou o colégio e ganhou oferecendo-se como continuação modesta pista
uma bolsa para estudar na União Soviética. de mão única. A abrupta interrupção rodoviária
Heriberto, afinal, era um cidadão exemplar: assemelha-se ao malogro da fulminante
aluno aplicado, foi também militante e depois trajetória do jovem militante: inicialmente
dirigente da Unión de los Jovenes Comunistas. sem emprego, depois recebendo 198 pesos
Heriberto não explica, talvez por reserva, mensais (uma pizza valia 20 pesos) na Unión
exatamente o que aconteceu em Moscou. Não Elétrica – onde, segundo ele, “no había nada que
o pressionei sobre esse assunto, mas tive a hacer, no había trabajo” – Heriberto opta pelo
sensação de que Heriberto houvesse sofrido improvisado caminho do comércio de livros.
uma crise de identidade. Pela primeira vez Se na Cuba de Fidel sempre houve mercado
longe da família, de seu país, inserido em uma subterrâneo de comida e roupa, a partir dos
cultura em muitos aspectos diametralmente anos 1990 o comércio paralelo de livros usados
oposta à cubana, o jovem militante não (assim como o de muitos outros itens do
se adaptou à versão russa da sociedade cotidiano) robusteceu-se. Em 1994, Heriberto
socialista. Ressalvadas as diferenças de época obtém licença que regulariza o estande de
e proporção, recordo-me, ao ouvir a narrativa, livros na Plaza de Armas. Desde então, vive do
de um relato de Truman Capote (“The Muses comércio de livros usados e escreve no tempo
Are Heard”), que descreve a turnê de Porgy livre que lhe resta.
and Bess na União Soviética, em pleno inverno
de 1955. Acompanhados da Sra. Ira Gershwin
– esposa de um dos célebres compositores
O Estado da arte
– e do próprio Capote, os membros do elenco Em seguimento a essa aclaração
– todos negros – provocam, ao desembarcar biográfica, instiguei o engenheiro letrado –

_95
_pelo mundo

ou seria letrado engenheiro? – a expor seus com intelectuais, artistas e escritores. A


pensamentos a respeito da evolução dos mensagem era clara: por um lado,
processos culturais cubanos. Para Heriberto,
durante a “etapa republicana”, ou seja, a “...al igual que nosotros hemos querido
partir de 1902, Cuba compôs, inegavelmente, para el pueblo una vida mejor en el orden
o circuito internacional, com música, shows, material, queremos para el pueblo una
cabarés, etc. Heriberto considera, no vida mejor también en todos los órdenes
entanto, que o escritor era marginalizado, espirituales; queremos para el pueblo una
seja pelo desamparo, seja pela própria vida mejor en el orden cultural.”
repreensão do Estado. De fato, muitos dos
grandes pensadores, poetas e escritores Por outro lado, no entanto,
cubanos, desde José Martí, foram em algum
momento presos ou exilados: Nicolás “La Revolución...debe actuar de manera
Guillén (1902-1989), o poeta da mestiçagem, que todo ese sector de artistas y de
Dulce María Loynaz (1902-1997), ganhadora intelectuales que no sean genuinamente
do Prêmio Cervantes, Alejo Carpentier revolucionarios, encuentre dentro de la
(1904-1980), ganhador do mesmo prêmio e Revolución un campo donde trabajar y
autor do clássico O século das luzes... crear y que su espíritu creador, aun cuando
A vitória dos rebeldes em 1959 foi no sean escritores o artistas revolucionarios,
celebrada por intelectuais cubanos – e do tenga oportunidad y libertad para
mundo inteiro – como um momento de expresarse, dentro de la Revolución. Esto
libertação da tirania. Carpentier retornou à significa que dentro de la Revolución,
ilha no mesmo ano e tornou-se diretor da todo; contra la Revolución, nada.”
Imprensa Nacional. Guillén, por sua vez, foi
convidado por Castro para chefiar a nova O restante da década de 1960 foi
e influente Unión Nacional de Escritores tumultuada, e somente à medida que se foram
y Artistas de Cuba (UNEAC). Desde os consolidando certas normas e instituições
primeiros momentos, no entanto, haveria que se percebeu o enrijecimento das
ambigüidades. Com efeito, os investimentos balizas culturais oficiais. 1968 foi um ano
em cultura, assim como em educação e saúde, particularmente convulso. Enquanto emergia
seriam impressionantes; entretanto, pairava no em vários cantos do mundo uma Nova
ar inquietação quanto à sempre problemática Esquerda, crítica da ortodoxia marxista-
liberdade de expressão. Se existiria novo leninista, debatendo temas como meio
espaço para arte engajada, esclarecida, para ambiente, gênero e sexualidade, a Revolução
literatura crítica (leia-se “anti-imperialista”), Cubana passou a reprimir os movimentos
em defesa dos oprimidos, haveria espaço para da contra-cultura. Em janeiro daquele ano,
dissidência, questionamento, divergência dos realizou-se o Congreso Cultural de La Habana,
ideais da Revolução? que reiterou os principais pontos do discurso
Nesse ponto, Heriberto lembra um de 1961. Ainda em 1968, o poeta Heberto
acontecimento-chave, revelador de como Padilla publica o livro Fuera de Juego, com o
constituir-se-ia a nova política estatal para qual vence o prêmio máximo da UNEAC.
as artes em Cuba durante as próximas No entanto, a obra, qualificada de anti-
décadas. Trata-se do discurso “Palabras a los revolucionária pelo regime castrista, valeu-lhe
intelectuales”, proferido por Fidel Castro em também uma sentença de prisão2 O “Caso
junho de 1961, após um ciclo de reuniões Padilla”, como ficou conhecido, foi um divisor

2 Importante ressaltar que Nicolás Guillén recusou-se a tomar parte nos episódios.
3 Mariana Martins Villaça, A política cultural cubana e o movimento Nova Trova (http://www.hist.puc.cl/iaspm/mexico/articulos/
Villaca.pdf)

_96
de águas, na medida em que intelectuais do o qual também contribuiu para intensificar os
mundo inteiro sentiram-se na obrigação de debates a respeito da liberdade de expressão
tomar uma posição contra (Jean-Paul Sartre, no regime revolucionário.
Octavio Paz, Federico Fellini...) ou a favor
(notavelmente, Julio Cortázar) de certas Os anos 1970 e 1980: da
decisões do governo de Fidel Castro. parametraje ao Mariel
A crise político-intelectual ainda rendeu A arte da censura atinge o auge em
mais um dramático capítulo quando, em 1971, abril de 1971, com o I Congreso Nacional de
o diplomata e escritor Jorge Edwards, enviado Educación y Cultura. Desse encontro, surge
pelo recém-formado governo socialista de legislação detalhada para orientar a produção
Salvador Allende para reabrir a Embaixada do artística, grupo de normas conhecidas como
Chile em Cuba, foi declarado persona non grata “parametraje”.Além do mote revolucionário
em decorrência de suas críticas ao governo de de 1961, estabelece-se o critério de que a arte
Fidel Castro e convidado a retirar-se da ilha. deve ser “facilmente assimilada pelas massas”.
Edwards, outro célebre vencedor do Prêmio Nas palavras de Heriberto, considerando-
Cervantes, publicou polêmico livro relatando os retrospectivamente, os anos 1970 – seus
o acontecimento (Persona non grata, de 1973), anos de juventude – foram um “período vacío y

Nas palavras de Heriberto, considerando-os


retrospectivamente, os anos 1970 – seus anos
de juventude – foram um “período vacío y
tristíssimo” para as artes.

_97
_pelo mundo

tristíssimo” para as artes. Embora não se deva Tabu absoluto é tratar


ignorar o “interessante jogo de tolerância, adesão
e resistência entre artistas e dirigentes”3 que os dirigentes políticos
certamente ocorreu em várias espaços culturais,
é fácil entender o ponto de vista de Heriberto,
analisando-se, por exemplo, as obras datadas da
de maneira crítica, ou
década de 1970 expostas no (esplêndido, em
geral) Museu Nacional de Belas Artes, em Havana.
até mesmo humorística
São, em sua maioria, empreitadas pavorosamente
kitsch, permeadas por constrangedoras e infantis
(sátiras, charges).
alegorias que não fazem jus à seriedade da
própria Revolução nem tampouco respeitam antropólogo também questiona se algumas
a capacidade de discernimento estético das daquelas obras não seriam, na realidade,
“massas”. Uma passagem por essa ala do irônicas e veladas críticas da parametraje).
Museu pode remeter o bravo andarilho ao Ainda com relação à parametraje, Heriberto
romance Schastlivaia Moskva (“Moscou Feliz”, considera que a rigidez dos anos 1970 e
ainda sem tradução para o português), do início dos anos 1980 se deveu ao alinhamento
dissidente soviético Andrei Platonov, em que automático de Cuba com a União Soviética,
transparece, na arte stalinista dos anos 1930, estabelecido sobretudo após Fidel Castro
mais do que simples mau gosto, um projeto anunciar sua defesa incondicional da invasão da
panfletário dedicado a obscurecer, em vez de Tchecoslováquia, em 1968. O alinhamento surge
elucidar. (Ao mesmo tempo, meu espírito de em momento de tensão no mundo socialista,

_98
tendo os líderes de escolher entre o modelo causas desses fenômenos.Tabu absoluto é tratar
russo e o chinês (Che Guevara, nos últimos os dirigentes políticos de maneira crítica, ou até
anos de sua vida, já havia aderido ao maoísmo). mesmo humorística (sátiras, charges). Permeia,
Para Cuba, a adesão às orientações soviéticas no mundo cultural cubano, o que Heriberto
significou o recebimento imediato e maciço de qualifica de “autocensura”, ou seja, por medo
recursos e divisas tão escassos na ilha. das conseqüências, as pessoas são, em geral,
Nas palavras de Heriberto, os anos 1980 cautelosas com o que dizem e, sobretudo, com o
gradualmente insuflaram “aires de renovación” que publicam.
nas artes cubanas. É possível que as mudanças Estamos chegando ao final de nossa entrevista.
tenham tido motivações econômicas, em parte. Um policial passeia com seu pastor alemão, mas
Os problemas já haviam começado ao final dos não nos dá bola. Pergunto a Heriberto se ele se
anos 1970, quando a crise econômica mundial preocupa que estejamos sentados em um parque
atingiu Cuba e a insatisfação com o regime no centro de Havana conversando abertamente
castrista produziu uma série de protestos. sobre temas politicamente sensíveis, eu com o
Milhares de dissidentes invadiram as sedes das caderninho marrom na mão. Gostaria que eu
embaixadas em Havana, sobretudo a do Peru, publicasse a matéria sem revelar seu verdadeiro
para pedir asilo. Heriberto lembra então o nome? Ele diz que em outra época, sim. Hoje, não
famoso “êxodo de Mariel”, uma janela entre é necessário. Está contente com os atuais “aires
os meses de abril e setembro de 1980 em que de renovación”. Para ele,
o Governo cubano permitiu o abandono em
massa de aproximadamente 125.000 pessoas, que “Hay muchos temas en Cuba que hay
embarcaram no Porto de Mariel para ir à Florida. que ponerselos sobre la mesa. Raul [Castro]
Ao falar de Mariel, Heriberto menciona o ha hablado de errores, de cosas que tienen
nome de Reinaldo Arenas, autor de Antes que que cambiar. Pero lo más importante para
anochezca, a emocionante e poética autobiografia Cuba es su soberania, despues arreglar la
que inspirou o igualmente brilhante filme, economia, los asuntos sociales. En Cuba, la
homônimo, do artista plástico Julian Schnabel. gente quiere debate, quiere discutir, necesita
Arenas, aliás, figura no meu Aire de Luz, com o tomar conciencia. La Asamblea Nacional es
libertino e refrescante El cometa Halley (1986), un simulacro. El país tiene que cambiar, es
continuação paródica do clássico La casa de una exigencia de los tiempos.”
Bernarda Alba, de Garcia Lorca. Fiquei alegremente
surpreso com a inclusão desse conto no Aire de Em última análise, Heriberto está longe de
Luz, coletânea declaradamente representativa do ser um típico “miamero”. De fato, se o fosse,
conto cubano contemporâneo e publicada em teria fugido há muito tempo, junto com os
Havana pelo Instituto Cubano del Libro. mais de 50% (de acordo com seus próprios
cálculos) dos colegas com quem se formou na
faculdade de engenharia. Heriberto considera-
Temas tabu e mudanças políticas se um “iconoclasta”: como o britanicamente
– dos anos 1990 em diante cético Wormold, nosso homem em Havana
Essa inclusão, no entanto, não vai de encontro desconfia de toda fonte de autoridade,
à análise de Heriberto acerca da problemática inclusive a norte-americana. De certa forma,
da liberdade de expressão em Cuba a partir não difere da maioria dos cubanos que ele
dos anos 1990. Para Heriberto, hoje o escritor mesmo descreve – para Heriberto, o cubano,
pode, sim, descrever com liberdade razoável as em geral, não se preocupa com o futuro, está
realidades do país: os problemas econômicos, intimamente ligado ao cotidiano. A visão de
a libertinagem sexual (inclusive a onipresente mundo do cubano contemporâneo, segundo
prostituição), as falhas gritantes no sistema de Heriberto, resume-se no popular mote,
transporte público, os mercados subterrâneos, os oferecido normalmente como resposta à
diferentes modos de corrupção cotidiana. O que pergunta de como andam as coisas: estou bem,
não se pode fazer é analisar, profundamente, as obrigado, estou “luchando el presente”.

_99
RESENHA

Amor,
cinema e
literatura
no universo
de Gabriel
Garcia
Márquez
Maurício Alves da Costa
_100
A tentativa de uma análise
comparativa entre uma obra literária e
por seu pai, rejeita Florentino Ariza, na
feira de Cartagena, após ouvir a frase
uma adaptação cinematográfica pode “este não é um lugar adequado para uma
malograr graças às tentadoras “armadilhas” deusa coroada”. Na narrativa de Gabriel
interpretativas inerentes a duas linguagens García Márquez, o leitor acompanha
tão diversas entre si quanto a literatura e cada gesto de Florentino Ariza à espreita
o cinema, ainda que mantenham constante de sua amada, quase sente o cheiro das
relação de intertextualidade. Ao escolhermos verduras e das frutas que acompanham
como objeto de cotejo um obra escrita o protagonista em sua ansiedade, que se
pelo mestre Gabriel García Márquez, essas torna tristeza e decepção profundas. Na
“armadilhas” tornam-se ainda mais atraentes obra cinematográfica, a feira de Cartagena
para o analista. é apenas uma imagem, ainda que belíssima e
A leitura de O Amor nos Tempos do muito bem retratada, o que impossibilita ao
Cólera é um exercício de elaboração e de
assimilação de sentimentos. É incomparável
a forma pela qual Gabriel García Márquez
retrata o cenário da Cartagena das Índias
do século XIX e de suas transformações
sociais e culturais, ao longo dos 55
anos da narrativa, como pano de fundo
de uma história de amor considerada
impossível pelos céticos de nosso mundo
crescentemente utilitarista. O leitor é
envolvido por uma teia de sensações, de
cheiros e de emoções que o fazem se
materializar como personagem naquele
universo fantástico. A subjetividade do
leitor protagoniza a narrativa junto a
Florentino Ariza - o anti-herói romântico.
A “tradução” dessas riquezas narrativa
e descritiva, na qual a subjetividade do
leitor tem participação fundamental, para leitor se envolver da mesma maneira que a
a linguagem cinematográfica, na qual os narrativa literária o permitiria fazer.
cenários são apresentados ao leitor, constitui Escapar do julgamento fácil, no entanto,
desafio de alto risco. Se cada leitor de Gabriel não significa que “não existe pecado
García Márquez tem o cenário mentalmente abaixo do Equador”. A má caracterização
formado, não seria diferente para o diretor de Giovanna Mezzogiorno como Fermina
da obra cinematográfica. A “armadilha” da Daza, a qual parece envelhecer dez anos
decepção, baseada no argumento de que em cinqüenta, e o estereótipo usado para
“eu imaginava tudo diferente”, é, ao mesmo caraterizar Lorenzo Daza são exemplos
tempo, natural e injusta: deve-se respeitar as de aspectos negativos relativos a questões
opções do diretor. básicas da produção.
As dificuldades inerentes à transposição Entre os diversos pecados da versão
de linguagens são fatores de dificuldade na cinematográfica de O Amor nos Tempos
adaptação, como na cena em que Fermina do Cólera, os quais não é possível listar
Daza, após retornar do isolamento imposto nesta breve resenha e nem mesmo é seu

_101
objetivo, pode-se destacar o “corte” da linguagens exige do executor a capacidade
narrativa escolhido pelos autores. Ainda de “transluciferar”, nas palavras de Haroldo
que não seja possível reproduzir a narrativa de Campos, para conseguir recriar o
em todos os seus detalhes e em todos os universo desejado em uma nova plataforma
seus personagens, não se pode prescindir de produção textual.
de elementos essenciais à preservação do A mais significativa e revoltante
sentido interpretativo da obra. Uma das “violência” contra a obra de Gabriel García
passagens mais interessantes da narrativa, Márquez foi a mudança de natureza da
que é a comunicação telegráfica mantida relação entre Florentino Ariza e América
pelos dois jovens apaixonados durante o Vicuña. Certamente resultado da prudência
isolamento de Fermina, reduziu-se a uma comercial da indústria de Hollywood,
mera menção numa cena colateral do filme. América Vicuña, de estudante de treze anos
A edição do filme abdica de quaisquer da sétima série, transformou-se em recém
recursos de transição entre as fases da universitária e professora da escola normal,
narrativa e faz “cortes” bruscos, que são com mais de dezoito anos de idade. Os

Uma das passagens mais


interessantes do romance,
que é a comunicação
telegráfica mantida pelos
dois jovens apaixonados
durante o isolamento de
Fermina, reduziu-se a uma
mera menção de uma cena
colateral no filme

preenchidos pelos conhecedores da obra autores, além disso, excluíram da versão


literária, mas são incompreendidos pelo cinematográfica uma das passagens mais
espectador comum. trágicas, emocionantes e estarrecedoras de
A presença de todos os personagens toda a narrativa de García Márquez.
mais importantes não é capaz de preencher Não se trata de apologia à pedofilia,
as lacunas deixadas pela edição do filme. mas da consciência de que a retirada
As principais amantes de Florentino dessa passagem compromete o sentido
Ariza estão na versão cinematográfica, interpretativo geral de O Amor nos Tempos
seus principais companheiros em todas do Cólera no conjunto da obra de Gabriel
as fases são apresentados e todos os Garcia Márquez. O tema da pedofilia é
principais acontecimentos estão contados. recorrente na obra do prêmio Nobel de
O resultado, entretanto, foi muito aquém literatura e pode ser exemplificado tanto
do possível. A “tradução” entre essas duas em Cem Anos de Solidão, pela paixão do Cel.

_102
Aureliano Buendía por Remédios, de nove
anos de idade, que se tornaria sua esposa,
quanto em Do Amor e Outros Demônios, pela
paixão entre Sierva Maria de Todos Los
Angeles, de catorze anos de idade, e um
padre. A retirada dessa temática do filme por
motivos comerciais e morais impede que o
espectador depare com algo perturbador
que o faria refletir sobre as contradições da
natureza humana.
Para que este resenhista não se transforme
numa “raposa velha”, que se deixa cair
em “armadilhas” fáceis, discutirei alguns
dos méritos da versão cinematográfica. A
cenografia está perfeita. É quase impossível
imaginar uma Cartagena das Índias diferente
daquela trazida pelo diretor às telas de
cinema. Pelo menos três atuações estão
próximas da perfeição: Javier Bardem vaga
pela telas como a verdadeira “sombra”
retratada por Gabriel Garcia Márquez, o Anos de Solidão. O objetivo era o lucro? Que
mesmo “gerente do amor”, cujo coração pena, mas ainda é melhor lucrar mediante a
é um “prostíbulo”; Fernanda Montenegro, divulgação de grandes obras do que repetir
no papel de Trânsito Ariza, personifica a apenas “mais uma comédia romântica”.
mãe do protagonista de forma magistral Diante de todos os obstáculos, dos
e o Dr. Juvenal Urbino desfila pelas ruas equívocos e dos acertos da equipe de
de Cartagena com toda a elegância e toda produção da versão cinematográfica de
a frieza descritas por García Márquez, O Amor nos Tempos do Cólera, é possível
personificado por Benjamin Bratt. A fotografia, afirmar que prevalece a força do
a cenografia e essas três atuações são os universo literário de Gabriel García
grandes pontos altos do filme. Márquez e a “razão de amor”
Mais uma vez, seria fácil rejeitar a versão magistralmente sintetizada e interpretada
cinematográfica de O Amor nos Tempos do por esse homem capaz de transformar
Cólera como mais um “blockbuster” sem a palavra em emoção pura. O desafio dos
importância ou como um mero “enlatado” produtores foi gigantesco: nas palavras
para entretenimento. Nesse caso, o de Drummond “havia uma pedra
caminho correto é o mais difícil: reconhecer no meio do caminho”, e essa
a importância da difusão da obra para o pedra era a dificuldade de
grande público, que provavelmente teve seu transpor a insuperável capacidade
primeiro e, esperançosamente da minha narrativa de García Márquez. O
parte, não último contato com a obra desafio do leitor e do espectador
daquele que considero o maior escritor é ainda maior: deixar-se envolver
da era moderna. Os defeitos da produção pela narrativa e acreditar que o
tornam-se pequenos diante da dimensão verdadeiro amor existe e supera
dada àquela que é a maior obra desse quaisquer ceticismo e
prêmio Nobel de literatura, ao lado de Cem racionalidade.

_103
POESIA E PROSA

Orientações
importantes
à nova musa
Raphael Nascimento

_104
P ois que se recebeste
este texto significa que assumiste por
aclamação inconteste e consensual o
também foi cogitada, mas como ela é
normalmente utilizada para falar aos céus
com Aquele que nunca me escutou, para ti
posto de Musa Inspiradora. Como toda sobrou “tu” mesmo. Prossigamos.
posição de destaque, o cargo tem as suas Peço-te imediatamente que não te assustes
liturgias, que devem ser observadas para o com os possíveis excessos que por certo
bom andamento da tua gestão. Procurarei irei cometer. Tranqüiliza-te, que os escritores
descrevê-las aqui, sem muita pompa somos inofensivos: vivemos nos tempos
ou circunstância, com o intuito puro e em que ainda havia admiradores secretos e
simples de facilitar-te a vida e precaver-te amores-à-primeira-vista e estes não eram
contra eventuais mal-entendidos. Antes de confundidos, um e outro, com serial killers
encerrar este breve intróito, adianto-te e instintos selvagens.Vivemos na época
que a partir de hoje tens a honra de fazer dos bichos falantes, que na segunda pessoa
companhia a marias, fernandas, marianas, espalhavam a sua crua ingenuidade animal
carlas, carolinas e melissas, que outrora, sobre a superfície da Terra. Nosso tempo
com maior ou menor destaque, com mais é de solidão gigantesca e incomensurável,
ou menos elegância, foram donas do cetro que se resolve com um simples e-mail de
que ora carregas nas mãos. agradecimento. Não te preocupes, pois, com os
Cabe primeiro explicar o porquê deste excessos que mencionei, que eles serão apenas
manual de instruções – que isto não é textuais e se materializarão em crônicas,
outra coisa senão um manual de instruções! contos ou poesias. Embora odeie mesóclises,
– seguir escrito na segunda pessoa do enviá-los-ei todos a ti, com maior ou menor
singular. Quando aceitaste a coroa que te freqüência, conforme o grau de sofrimento
ofereci, automaticamente te converteste pelo qual estiver passando. Grau este que
em um estado diferenciado da matéria, algo
entre o líquido e o gasoso, que vez por
outra aparecerá de modo inesperado diante
de meus olhos incrédulos, em qualidade
adimensional, unindo de maneira misteriosa
as paralelas do tempo e do espaço. A um
ser nessa condição, tu hás de concordar, não
se pode dirigir pelo corriqueiro tratamento
de “você”. O “tu”, embora bastante íntimo,
à medida que se descarrilou da locomotiva
velha que conduz o uso cotidiano da
língua, dá ao texto ares de eternidade e o
devido tom de respeito para um diálogo
entre o mortal, que sou eu, e a tua figura
de semideusa. A segunda pessoa do plural

_105
_poesia e prosa

perdido e o pé num balançar involuntário.


A morte é paciente e ri-se do fato de que
eu mesmo esteja a trabalhar por ela. Nessas
horas, provavelmente mandarei a teu celular
algumas peças demasiado piegas e de baixa
qualidade literária, além de diversas pistas
de meu mais profundo desengano. Peço-
te que as ignore por completo, que minha
vergonha será menor no dia seguinte.

Neste cargo,
cumpre esclarecer, teus
direitos são vários.
Tens, sobretudo,
o direito de sorrir.
Sorria sempre que
jamais deverá baixar do nível laranja utilizado
pelo Homeland Security Department para puderes que é para
medir a possibilidade de um ataque terrorista.
Como podes ver, falarei sempre num que eu eventualmente
tom exagerado e pouco lógico, tentando
transmitir a angústia mentirosa de uma vida veja o teu sorriso e
que não pode mais viver sem a tua. Não me
leves tão a sério, portanto. Este sofrimento me sinta um pouco
é necessário para o processo de escrever
e sem ele eu seguiria uma rotina muito da mais feliz na miséria
sem graça a trabalhar nestas coisas que
agora abandono para preparar-te este guia. que será minha vida
Algumas vezes, destarte, direi que sofro
muitíssimo além do que realmente dói. a observar-te tão
Farei isso apenas para chamar um pouco
mais a tua atenção. Outras vezes, contudo,
padecerei de uma dor tão intensa que até
distante. Tens o direito de ler
os meus textos que mais gostares em voz
a morte terá de mim pena e me deixará alta a tuas amigas. Faça de forma que elas
quieto no Martinica a embebedar-me com saibam que dividem o ambiente com um ser
várias Heinekens geladas e a enegrecer importado diretamente do firmamento e que
meus pulmões com os malditos alcatrão a tua presença exala uma fragrância inebriante
e nicotina. Ficarei lá, mudo, fitando o que deve ser aproveitada ao máximo. Dize-
horizonte com a mão no queixo, o olhar lhes que tens asas e que a qualquer momento

_106
podes desaparecer dali, migrar para o sul proceda, prometendo-me a eterna danação
como fazem as garças em busca de um clima caso deixe de cumprir algum dos teus
mais ameno e de melhores oportunidades de mandamentos. Tens, finalmente, o direito
trabalho. Tens também o direito de comprar de ser impossível e inalcançável, sem, no
uma placa de mármore e nela gravar em entanto, ignorar-me. Não poderás nunca
letras grandes o título: “Musa Inspiradora”. demorar mais de 37 horas para responder a
Coloque-a na mesa de teu escritório, na porta um de meus e-mails.
do teu quarto, na carteira da faculdade ou Por fim, devo advertir-te sobre um fato
em qualquer outro lugar que entendas como grave: teu reinado não será longo. Não te
o principal locus dessa tua nova ocupação. assustes. Minha obrigação é avisar-te para
Faça também cartões de visita, que poderás não criar em ti ilusões descabidas sobre a
precisar quando interpelada em uma dessas tua instável condição. Teu domínio sobre
reuniões de afrodites das quais participarás de minha mente e minha alma é efêmero.
hoje em diante. Cedo ou tarde aparecerá outra moça
Não te esqueças, além disso, que és fada que confundirá meus pensamentos e
e, como fada, tens o dom da magia. Tens irresistivelmente dominará minha atenção,
o direito, por conseguinte, de ser sempre exigindo, como o fazem todas – tolas! –, total
mais leve que as meninas comuns e de exclusividade. Eu, novamente fraco, cego,
dizer-lhes, sem um pingo de arrogância perdido, apaixonado, lhe concederei juras
(por favor!), que a elas também está de amor eterno sem nenhum grande peso
reservado um dos meus irmãos de letras. na consciência. Nesse momento, teu nome
Eu, contudo, serei só teu, e tu tens nesse será flexionado ao plural e mecanicamente
sentido o direito de usar-me para os teus posicionado ao lado daqueles que foram
fins incompreensíveis, que minha rasteira citados no último período do primeiro
percepção da realidade jamais conseguirá parágrafo. Serás mais uma. Este texto será
vislumbrar. Neste momento, posso apenas então encaminhado à nova musa e tu, assim,
adorar-te com estes rituais metalingüísticos, sem mais nem menos, virarás apenas mais
e tu tens o direito de exigir que eu assim um fantasma em minha memória.

_107
_poesia e prosa

BUENOS AIRES
Romina Bocache

La ciudad inquieta el círculo perfecto del horizonte marrón azulado.


Sofocantes,
edificios desgarrando un tiempo pastoso

La luz afarolada de la noche


empapa el empedrado antiguo
y el cielo se estrella
en los charcos hondos de oscuridad.

Retazos deshilachados de sueños y palabras,


Buenos Aires es puro cuento.

El Ciego la garabateó
en su íntima penumbra:
hazañas hurañas de héroes,
el grito ensangrentado del cuchillo en los arrabales del último coraje,
la frescura verde de un patio.

Desde entonces,
inconstante, huidiza,
intangible, lunar,
la ciudad titila y se apaga en la claridad del sol.

_108
Sólo reverbera en la suave aspereza de la juventud perdida,
en la ironía de una mueca macabra,
en el laberinto de las encrucijadas titubeantes,
en los vagabundeos de las calles perdidas que nos pierden,
en cada esquina mareada de la vida
en el vértigo de los vacíos abismales
con que todas las otras ciudades la citan
obsesivamente...

Buenos Aires sólo existe


como esas estrellas cadavéricas
que nos parpadean desde un pasado que eternamente ya no será

Desde antes del comienzo, Buenos Aires talló el universo


y se desangra en él.
Flota un instante y al siguiente naufraga
en las turbias turbulencias de un río mentiroso.

Buenos Aires es mi universo,


mi recóndito e insospechado espejo:
una maraña de memorias esquivas, de fugaces olvidos,
implacable desierto de tiempo,
tiempo rugoso y callado,
perfumadamente desolado y
hermosamente atroz como la difícil sencillez del arte.

_109
_poesia e prosa

Michel Lahan Neto


NUVEM
César Nascimento

O corpo poroso
Incorpora ao vácuo
O vapor que calcina.
Do poro o suor
Ao céu se insinua,
Ínfima neblina
Que a pele nua
Expele, expia.

_110
ARQUITETURA
D.G. Ducci

A flor que observa o jarro é minha musa,


que observa a flor do jarro neste intuito
estranho e encantador de revelá-la
ao mundo pelos olhos de arquiteta.

A flor que observo é a musa minha, e o jarro


encontra-se perdido na prancheta.
Ao mundo eu a revelo pelos olhos
de estranho e encantador olhar poeta.

Pudera ser a flor que tanto observa


a musa que se esforça em refazê-la !
Quisera ser o intuito dessa flor,
que mais que a flor, bem mais, é obra bela.

O jarro, a flor, os olhos na prancheta;


o intuito, o mundo, o esforço, a arquiteta;
a flor quem vê é a flor, e só se perde
o estranho e encantador olhar por ela

_111
_poesia e prosa

Francisco Figueiredo de Souza

H á um intervalo constrangedor entre


o primeiro olhar e a primeira palavra, algo
comum em conversas entre dois estrangeiros
que não se conhecem. Antes que o idioma do
diálogo possa ser definido, estudam-se, como
lutadores em primeiro round. O taxista, mais
à vontade, arrisca o primeiro golpe.
– Tropa?
– Não, professor. Me leva até o Liceu?
Entram no táxi, um modelo japonês
importado ao país com mais de uma década
de estrada. Partem.

_112
Naquele ano de 2004, em Timor-Leste,
estrangeiro que respondesse assim, de
pronto e em português, só podia ser luso ou
brasileiro. O motorista arrisca novo palpite. O taxista ri do outro, surpreso. O
professor sabe que seu esforço para aprender
– Então, você, brasileiro? a língua local não tem apenas motivos nobres.
– Eu sou. Além do sorriso, espera ganhar um desconto
Fazia sentido. Brasileiro, se não era tropa, no final da corrida. Aprendera na Nicarágua
só podia ser evangélico ou professor. Os lusos existir uma tabela subjetiva entre taxistas
distribuíam-se por atividades mais diversas. de todo o mundo. Por ela, estrangeiros sem
Havia quem arriscasse classificá-los como domínio da língua franca do lugar merecem
“Rambos” ou “Madres Teresas”, a depender pagar o dobro. Norte-americanos, ou
da motivação para estadia tão longe de casa. forasteiros com bronzeador na cara, o triplo.
Brasileiros pareciam ter um pouco dos dois. Corretos ou não os critérios, parecia-lhe
Dobrada a esquina da nacionalidade, dois tentativa válida de precificar o respeito.
caminhos são oferecidos para o papo, quase
por dedução matemática: futebol e música. – Quanto vai custar?
Ronaldinho era mesmo o melhor jogador – Satu dólar.
do mundo. Uma fita de Leandro e Leonardo Satu é o número um em indonésio. O
estava no porta-luvas. Talvez devessem ouvi-la. preço era bom, mas o professor ainda não
Com breve gesto, o professor recusa. se acostumara com o hábito timorense de
Sugere percurso mais sinuoso. Pretende falar contar dinheiro apenas na língua da escola.
de língua: metalinguar. – Então você também fala bahasa?
– Quero muito aprender tétum – diz. – pergunta ao taxista. Em indonésio, bahasa
quer dizer idioma. É a forma como todos se
– Por quê? referem à língua.
– Acho importante, se vou morar aqui. – Bahasa e um pouco de fataluco, da
O professor recorda os poucos termos minha avó.
que conhece na língua, tão oficial quanto
o português. Fuan, por exemplo, que quer – E sua avó era de onde?
dizer “coração”. E ai-fuan, que ao pé da letra – De Lautém, o distrito mais para lá de
é “coração de árvore”, mas que quer dizer Timor – responde o condutor, apontando
“fruto”. E ainda li-fuan, forma tão fantástica e para o leste. Em Lautém quase só se fala
verdadeira de dizer simplesmente “palavra”. fataluco.
A palavra é o coração da língua. A palavra é o O professor se surpreende com a
fruto do tronco da história. capacidade lingüística dos timorenses. Era
comum encontrar quem falasse quatro,
cinco, seis línguas. Em todo o território, com
cerca um milhão de pessoas, pesquisadores
contabilizaram a existência de trinta e duas.
Línguas ou dialetos, não saberia discriminar.
Dizem que a diferença entre língua e dialeto é
que dialetos não têm exércitos.
– E bahasa falam no país inteiro, não é?

_113
_poesia e prosa

– Na ilha inteira – corrige


o taxista. Também falam bahasa em Timor
Oriental.
Um país, meia ilha, Timor-Leste ainda
precisava a prender a conviver com sua outra
metade. A província ao lado seguirá vinculada O taxista perseguia as
ao governo de Jacarta. palavras que o tétum havia empresado
Por 25 anos, o indonésio fora a língua do português para entender a história do
de sua educação, de todos. Por ela o professor, esforçando-se para não se perder.
motorista nutria sentimento dúbio, entre Achava o português bonito. Era capaz de
o conveniente e o desconfortável. Por um trocar um diálogo curto e padronizado, mas
lado, lembrava os dias difíceis da ocupação. bem assim não o conhecia. No máximo,
Por outro, permitia o contato com reconhecia. Lembrava de, pequeno, ouvir o pai
duzentos milhões de vizinhos: irmãos. falando português em casa, com colegas da
– Me disseram que o bahasa não existia Fretilin. Não tinha culpa por ter freqüentado a

antes do General, verdade?


– pergunta o professor. Ele recorda história
escola apenas no tempo do General, quando a
língua esteve banida.

que ouvira sobre uma visita a Jacarta de uma Silenciam, reflexivos.


alta autoridade do Suriname. Orgulhoso dos O taxista relembra o pai, morto pouco
laços que uniam as antigas Índias Holandesas, antes da última chuva. Pouco vivera sob o
o enviado oferecera belo discurso em javanês, governo que tanto lutou para existir. Fora
língua que aprendera com seu pai, nascido o suficiente para que passasse seus últimos
em Java. Para sua surpresa e frustração, os meses desconfiado da Austrália, antiga vizinha
anfitriões só lhe responderam em inglês. dos fundos, agora sócia majoritária do
Talvez porque viessem de ilhas em que o condomínio da frente. Sempre lhe dizia que o
javanês não fosse língua original. Talvez por português era importante para manter o país
vergonha de expressar-se oficialmente em independente de verdade.
língua que não fosse o indonésio, tão forte era O condutor recorda que na escola lhe
a luta pela unidade nacional. ensinaram que só existia uma língua, assim
como só existe um Deus. O Deus podia
ser muçulmano, cristão ou judeu, desde que
fosse um. A língua tinha que ser o bahasa. Já
não mais.

_114
Com o olhar no horizonte sobre o mar,
onde brilhava a ilha de Ataúro, o professor
relembra visita que fizera ao Cabo da
Boa Esperança. Fora triste ver a cruz
de Bartolomeu Dias, o Capitão do Fim,
solitária e calada em seu outeiro, cercada

de anglofonia por todos os lados.


Triste também era a situação da língua
em Macau. Estivesse ele no território da
recém-China, provável que o motorista
local sequer compreendesse o nome do
destino. Ainda que se tratasse do “Largo do
Pagode da Barra”, assim escrito nas placas,
em bom português. Lugar estranho, Macau,
onde o idioma sobrevive nos letreiros sem
sobreviver nas pessoas.

Uma ave quebra o silêncio perturbado do


Francisco Figueiredo de Souza

motor do carro.

As línguas, no fim
das contas, são como
pássaros. Algumas fogem de casa e
caminham pelos postes antes de voar para
longe. Outras sofrem nas ruas e vêm procurar
ninho nas beiras das casas, discretas.

_115
_poesia e prosa

BURACO
NA PAREDE
André Cortez

_116
H avia exatamente dois dedos de
água dentro do copo abandonado sobre a
mas idêntico ao seu o contemplava do fundo
do copo, desconfiado. Sentia-se cada vez
pia de mármore. O homem mediu com a menor, cada vez menos o morador daquele
mão direita. Um gole. O resto da cozinha duplex. As suas costas, o motor da geladeira
estava absolutamente em ordem. Branco zunia incessantemente como o ronco de um
milimétrico. Cada coisa em seu devido lugar. demônio adormecido.
Facas inoxidáveis, panelas, utensílios para abrir, Sentiu seu corpo esquentar. Desfez o nó da
espremer, triturar, decantar, e alimentos tão gravata e arregaçou as mangas da camisa listrada.
bem organizados que pareciam nunca terem Um filete de suor escorreu da axila pelo flanco
sido tocados. do tórax. Perturbou-se e decidiu investigar.
Não era a primeira vez que chegava do Sobre a mesa de centro da sala ampla, o
escritório e encontrava o copo ali. Outras jornal, cuidadosamente dobrado, repousava
vezes, sobre a mesma pia de mármore, ao lado dos livros de arquitetura e do vaso
encontrara-o vazio. Outras ainda, fora de cristal. O homem recordou que não estava
surpreendido pelo objeto nos demais lá quando saiu de manhã. O havia deixado
cômodos do apartamento. Já o havia notado no banheiro. Também abrira a cortina antes
sobre o criado-mudo do quarto. Não sabia de partir. Agora, no entanto, constatou que
explicar como nem por quê. estava completamente fechada, e a luz da rua
A única pessoa que possuía as chaves transparecia pálida através do tecido.
da casa era ele. Morava só. Passava o Caminhou até o quarto vagarosamente.
dia todo fora, trabalhando dois turnos O corredor parecia ainda mais estreito na
condensados em um. Demorava-se ainda penumbra. Acendeu a luz. Os quadros nas
por causa da academia. Aos finais de semana, paredes iluminaram-se, subitamente revelando
as indispensáveis viagens ao litoral. O coloridas figuras de desenho animado. Ao
apartamento ficava vazio. Ou assim presumia. abrir a porta, surpreendeu-se por definitivo:
Até que começou a reparar na freqüência a cama havia sido feita e roupas limpas jaziam
com que o fenômeno do copo se repetia. dobradas e empilhadas sobre a poltrona
De início, julgou que andava distraído. de canto. Coisas que ele sem dúvida não
Atordoado pela correria do escritório, tivera tempo de fazer ao levantar, pensava
dormindo três horas por noite em média, redobrado, testando a veracidade dos fatos.
a cabeça lhe doía muito. O copo itinerante, Esquadrinhou seus objetos pessoais
inferiu, era conseqüência da pressa e das revirados, e o medo que experimentava de
aspirinas, consumidas às dúzias, uma atrás da repente se liqüefez em uma espécie de raiva.
outra. Parecia-lhe natural que alguns detalhes Ocorreu-lhe esta idéia: a ex-mulher teria
da vida cotidiana passassem despercebidos. passado no apartamento para resgatar vestidos
Ele mesmo consumia o copo d’água antes ou vasos ou qualquer coisa do gênero. Há
de sair e não lembrava disso ao voltar. O quanto tempo vinha fazendo isso? Não havia
raciocínio faria sentido não fosse a certeza de, devolvido a chave ainda? Resolveu ligar.
aquela manhã, perturbado pela dúvida, o haver O telefone tocou várias vezes antes de
propositadamente colocado de ponta cabeça. cair na caixa postal. Sobreveio uma voz
O homem fitava imóvel o objeto de vidro delicada, anunciando uma longa viagem
sobre a pia da cozinha. Meditava enquanto o ao exterior. Voltaria dali a dez dias, dizia
silêncio asséptico do apartamento ameaçava em seguida. A melodia macia da gravação
engoli-lo. Um pequeno rosto deformado impeliu o homem à irritação profunda.

_117
_poesia e prosa

Devolveu o auscultador sem fio à base cozinha. Atentou para área de serviço ao fundo,
com um estouro. Lembranças ruins escondida na escuridão. O vulto só poderia ter
ameaçaram voltar. O enigma do copo migrado para lá. Caminhou até o interruptor
permanecia sem solução. ao lado do fogão elétrico e acionou o botão.
Voltando para a sala pelo corredor, As lâmpadas frias piscaram indecisas antes
arrastava-se encurvado sobre si mesmo. O de acender completamente. Duas máquinas
relógio prateado no seu pulso marcava nove grandes em forma de cubo, com as quais
e meia. Queria assistir ao jornal das dez. tinha pouca familiaridade, emergiram do breu.
Ouvir a opinião dos analistas econômicos Examinando-as, lembrou-se que serviam para
a respeito da crise imobiliária. A televisão lavar e secar roupa e que já lhe haviam sido
ficava no escritório, se é que também não úteis há muito tempo, na época nebulosa que
havia sido trocada de lugar. sucedeu a partida da ex-mulher. Um passado
Achou graça na situação. Daria uma boa remoto do qual se sentia mais ou menos
história, calculou. O dia em que alucinou e emancipado. Certificou-se de que não havia
encontrou a própria casa de pernas para nada dentro ou atrás dos aparelhos.
o ar. Obra das medicações que o analista Quase imperceptivelmente, uma corrente
recentemente lhe receitara, diria: um de vento deslizou pela fresta de uma
comprimido de fluoxetina com três doses do das janelas e agitou os imensos lençóis
uísque de tarja vermelha. Sorriu.Vieram-lhe a pendurados no varal a sua direita. Não havia
expressão “efeito colateral” e as gargalhadas reparado neles ainda. Estavam tão limpos que
dos colegas de trabalho. Ao erguer a cabeça, pareciam a continuação da parede. Achou
sentiu sua espinha como um cabo de alta curiosa a maneira como o pano oscilava
tensão. Seus olhos flagraram nitidamente um em ondas, reproduzindo o ruído suave do
vulto acelerando em direção à cozinha. algodão. Era como se derretesse, revelando
Paralisado, concentrou-se em um ponto outra dimensão.
imaginário localizado na parede cândida O homem, então, conscientizou-se de que
a sua frente, dentro da copa. Ficou ali nunca antes havia reparado que ali havia um
estático alguns minutos, antes de ter certeza varal. Assumira sempre que a área de serviço
que, de fato, vira alguém ou alguma coisa acabava naquela falsa parede branca, construída

Estendeu o braço como se o mergulhasse em


outra Via Láctea e abriu passagem.
se movimentando e que a sombra tinha sobre pano e indiferença. A assombração,
desaparecido dentro da cozinha. concluiu, só poderia ter se escondido ali atrás.
Sob as palmas crispadas, estalou os dedos Estendeu o braço como se o mergulhasse em
das mãos. Respirou fundo. Deu um passo a outra Via Láctea e abriu passagem.
frente, depois outro. Repetia para si mesmo O que viu em seguida o deixou perplexo.
que tudo estava em seu devido lugar. Pé ante A área de serviço continuava ainda alguns
pé, sussurrava a frase em círculos concêntricos. metros e terminava de repente em outra
O som da geladeira voltou a perturbar o parede, essa sim real, em cujo centro havia
homem. Teve a impressão de que aumentara um imenso buraco retangular, pouco mais alto
de volume. Tudo permanecia intocado na que uma pessoa.

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Aproximou-se. Suas retinas demoraram havia sido executado com o mesmo rigor da
para se acostumar à luz cada vez mais escassa. encomenda. O cheiro de concreto emanava
Apoiando-se nas laterais, esgueirou-se e do imenso muro de tijolo, fresco como uma
viu que o buraco abria-se para um cubículo primavera em construção. O homem o sorvia
mínimo. Era escuro no interior da gruta, e o ar a plenos pulmões, deliciando-se. Amanhã
não circulava direito, impregnado de mofo. As mandaria que pintassem. Era como se tivesse
paredes estavam manchadas como hematomas, acabado de se mudar – a mesma euforia que

O cheiro de concreto emanava do imenso muro de tijolo,


fresco como uma primavera em construção. O homem o
sorvia a plenos pulmões, deliciando-se.
provavelmente devido a infiltrações de água. sentiu quando resolveu morar sozinho pela
No canto, ao lado de um colchão de espuma, primeira vez.
havia um caixote de madeira sobre o qual Passeou pelo apartamento. Sentiu-se em
estavam esparramados alguns objetos: pente, paz. Em lugar nenhum por onde passou viu
espelho, rádio de pilha, gilete descartável e uma o copo. Tudo em seu devido lugar. Decidiu se
imagem de Nossa Senhora. escaldar em um banho fervente.
Voltou-se para o lado oposto. Lá estava a Ao entrar no quarto, olhou desconcertado
sombra, rente à parede, como se fosse mais para a cama. Estava desfeita e, sobre o
uma das nódoas de umidade, seu contorno edredon revirado, havia um pijama. Nunca
lembrando vagamente a figura de um ser acontecera antes. Irritou-se. Dessa vez, ele
humano. O homem tentou divisar o espectro. próprio resolveria o problema.
Era difícil. Não enxergava direito. Tentou se Arremessou o conjunto de calça e camisa
comunicar. Perguntou de onde vinha e o que xadrez sobre a poltrona, amarrotou a coberta
fazia ali, mas a sombra se recusou a reagir. e começou a esticar os lençóis. O colchão
O homem aumentou o tom de voz, testou parecia ter a extensão de uma planície. Puxava
palavras em inglês, gritou. Nada. o lençol de uma lado e logo ele desalinhava na
Distanciando-se do buraco, esticou o outra extremidade. Por mais que se esforçasse,
lençol e devolveu à área de serviço sua era incapaz de arrumar a cama e deixá-la tão
antiga proporção. Ligaria para o arquiteto alinhada como sempre costumava encontrá-la.
responsável pelo projeto do apartamento Exausto, desistiu de qualquer perfeccionismo.
assim que acordasse, pensou, e mandaria que A camisa, empapada de suor, colava-se às suas
vedasse o buraco, erguendo nova parede costas como uma película de gelatina.
onde havia o varal. Ao passar pela cozinha, Fechou a porta de vidro temperado do
enxaguou o copo sobre a pia de mármore e, box e girou a torneira da esquerda apenas.
por precaução, trancou a porta atrás de si. Um jato de água jorrou do chuveiro. Aos
Tudo em seu devido lugar. Foi o que poucos recobrava a calma. Outra preocupação
pensou no dia seguinte, ao entrar em casa. maior exigia sua total atenção. Às favas com
Estava farto de dor de cabeça. Deixou a os problemas domésticos, pensou enquanto
pasta de couro preto sobre o sofá da sala enxaguava a cabeça. O homem precisava mesmo
e correu para a área de serviço. O trabalho era retomar a série de exercícios aeróbicos.

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DEPOIMENTO

CRÓNICAS DE UN EMOTIVO
ENCUENTRO ENTRE
RÍO BRANCO
E ISEN
Por Silvina Aguirre,
Sebastián Coronel e
M. Florencia Segura (ISEN)

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A sí como en 1985, cuando nuestros
presidentes Sarney y Alfonsín se reunieron
Luego de las Cataratas, y con pocos
minutos libres antes de proseguir con la
en Foz de Iguazú un 30 de Noviembre, intensa agenda programada, algunos de
simbolizando en aquel encuentro histórico, “nosotros” (léase grupo binacional), pudimos
los sentimientos mutuos de amistad, lealtad, compartir un momento de diversión en
visión estratégica y cooperación a largo la pileta del hotel. Hubo un denominador
plazo entre ambos países, nosotros tuvimos común... el de disfrutar aquello que se había
la oportunidad de concretar lo que nuestros obtenido luego de tanto esfuerzo por los
presidentes soñaron. exámenes de ingreso!
Esta vez, en el 2007 los protagonistas de la En nuestra visita a Itaipú, pudimos
historia fuimos los 101 integrantes de 1° año comprobar el fruto de la grandeza de la
de la Academia Diplomática de Río Branco cooperación y el buen trabajo conjunto de
y los 35 becarios de 1° Año del Instituto del dos países.
Servicio Exterior Argentino. Sin duda, el momento más emotivo, fue
Sentimos la generosidad brasilera, desde la para muchos, el de los discursos pronunciados
puesta a disposición de su avión de la Fuerza por los distinguidos funcionarios a cargo
Aérea en Ezeiza, durante todo el viaje por su de sendas academias. En particular, nuestro
tripulación y hasta el momento de nuestra Director, Embajador Horacio Basabe nos
cálida despedida. hizo dimensionar la importancia histórica del
Una vez que aterrizamos en Foz, sentimos encuentro que estábamos viviendo.
la calidez humana, en persona del Embajador Coronamos un día inolvidable con una
Fernando Reis quien nos dio una afectuosa noche en la que la música fue una excusa
bienvenida. más para conocernos. Además de haber
Nuestra primera sorpresa, ya en las sido agasajados en una fiesta caracterizada
Cataratas, fue quizás la gran cantidad de por la buena organización y la típica buena
ómnibus con colegas que no paraban de bajar onda brasilera, también hubo lugar para la
de ellos, y que venían muy sonrientes hacia improvisación de una “guitarreada” en la que
nosotros. se hizo presente el federalismo a través de las
Tuvimos allí la impresión de que la diferentes melodías regionales, símbolo de la
heterogeneidad en la composición de su integración de culturas.
grupo tenía su correlato en la nuestra. Todas Al día siguiente, con pocas horas de sueño,
las regiones de ambos países tenían su y sin querer partir, pero con la satisfacción
representación en Foz de Iguazú. de haber sembrado la semilla de una amistad
De forma espontánea, y en pequeños duradera y sincera, comenzó nuestra
“grupos binacionales” emprendimos la despedida. En ese momento, se produjo un
visita a ese maravilloso Patrimonio de la intercambio incesante de tarjetas personales
Humanidad que también nos hermana: Las e e-mails para continuar con los vínculos
Cataratas del Iguazú. Fue el momento ideal logrados.
para intercambiar opiniones, impresiones, y Como corolario de estos recuerdos
darnos cuenta que en nuestra vida diaria, hay imborrables, queremos agradecer
más cosas que nos unen que aquellas que sinceramente a todas las autoridades que
nos separan: el fútbol, las clases, las pasantías lo hicieron posible, y no podemos más que
y los exámenes de idiomas. Era por ello, que retribuir tanta amabilidad abriendo las puertas
los argentinos nos esforzábamos por tratar de nuestra casa a la espera del reencuentro
de comunicarnos en portugués, mientras con nuestros colegas de Itamaraty.
que los brasileros lo hacían en español. Fue Como servidores públicos, sentimos el
entonces, que mitad en español y mitad en deber de profundizar y afianzar esta relación
portugués, comenzamos a tomar conciencia para el bienestar de nuestros pueblos,
que compartíamos las mismas pasiones, materializando así aquella visión iniciada 22
ambiciones, miedos e incertidumbres. años atrás...

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NOTA O quadro é da minha primeira fase de
diletantismo pictórico em Londres, em
1968, e dele não tinha lembrança alguma.

SOBRE
Essa fixação minha em ambientes zonais
começou na minha infância, quando
conheci o Mangue, levado por um digno
educador que era irmão Marista.

A CAPA Foi em 1938, quando eu tinha 12


anos e, recém chegado de Barra do
Piraí, estava cursando o primeiro ano
do ginásio, interno no São José da Tijuca.
Getúlio, no Estado Novo, havia criado um feriado nacional de inspiração
fascista, o Dia da Raça, comemorado com uma parada da juventude de
todos os colégios secundários do Rio. O irmãos Maristas, que desejavam
estar bem com o governo, caprichavam no desfile de seus alunos.
Militarmente treinados, com um uniforme de luxo, desfilávamos com
muito garbo e o educandário costumava obter o primeiro lugar entre
todos os participantes da parada. Naquele ano, havia
duas novidades. O desfile já não seria na Avenida Rio
Branco, mas na nova Presidente Vargas. E o uniforme
luxuoso do colégio passava a incluir um penacho,
também azul, no quepe.
O São José assim desfilou gloriosamente, passou pelo
palanque presidencial perto do Ministério da Guerra, e
a dispersão foi feita mais adiante. Os dias seguintes eram
feriados. Os alunos que moravam no Rio, dispersados,
tomaram o caminho de casa. Cerca de vinte alunos da
turma dos Menores moravam fora do Rio e, por este
motivo, tinham de seguir o Irmão Francisco, regente da
turma, de volta ao Colégio na Tijuca.
Aconteceu então uma inesquecível continuação do
desfile. O Irmão Francisco, guia de uns vinte pirralhos,
não encontrou condução para embarcar. Como era
mineiro e desconhecia o Rio, saiu com o seu séquito
por uma rua lateral da nova Avenida. Foi então que eu e mais dezenove
pirralhos conhecemos a zona do meretrício do Rio, o famoso Mangue,
que ficou em minha memória até hoje aos oitenta e três anos.
A invasão da área por um irmão Marista de batina seguido de um
pelotão de pirralhos causou entre as profissionais do meretrício uma
imensa curiosidade. Piadas, gritinhos, convites choveram das janelas e
das portas abertas. O digno irmão Marista caminhou várias quadras
sem pestanejar mas depois explodiu quando uma mulher mais atrevida
tentou agarrá-lo. O diálogo então travado ainda hoje é impróprio para
menores e por conseqüência também não seria apropriado para uma
revista de diplomatas...

Ovídio de Andrade Melo

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