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LORENZO MACAGNO

o dilema
multicultural

Apresentação
Peter Fry

Prefácio
Michel Cahen

~.

LJFPR
GRAPHIA
©COPYRIGHT
Lorenzo Macagno

CAPA E PROJETO GRÁFICO


Renata Kühn

FOTOGRAFIA DE CAPA
Lorenzo Macagno
Fachada de casa na Kasbah dos Oudaias,
Rabat (Marrocos).

ESTE LIVRO SEGUE O NOVO ACORDO


ORTOORÁRCO DA LÍNGUA PORTUGUESA.

UNIVERSIDADE FEDERAL 00 PARANÁ


SISTEMA DE BIBLIOTECAS - BIBLIOTECA CENTRAL
COORDENAÇÃO DE PROCESSOS TÉCNICOS

Macagno, Lorenzo
O dilema multiculturaI! Lcrenzo Macagno; prefácio MicheI Cahen.-
Curitiba: Ed. UFPR; Rio de Janeiro: Graphia, 2014.
304p.

ISBN 9788565888868 e 978-85-85277-72-7


Inclui referências e índice

I. Mulriculturaltsmo. 2. Etnologia. 3. Antropologia política.!. Título.

CDD305.8

GRAPHIA
RUA DA GLÓRIA 366 / 1001 - GLÓRIA
RIO DE JANEIRO - 20241-180
GRAPHIAOORAPHIA.COM.BR
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2014
Genealogia do racismo 1980, quaisquer uns desses termos pareciam criar em seus propiciado-
res a ilusão de estarem testemunhando - parafraseando Clifford Geertz
(2004b) - a uma nova e instigadora reconfiguração do pensamento
social. Algo parecido aconteceu com Pierre Bourdieu, quando concei-
tos como campo, habitus, poder simbólico superpovoavam os textos de
emuladores - alguns mais convincentes e esforçados do que outros -
Por que se interrogar sobre a genealogia do racismo - ou seja, sem que o seu criador pudesse ter um controle sobre aquele bricollage
acerca das suas formações discursivas e não sobre suas causas históricas sociológico que, por vezes, parecia adquirir vida própria. Quiçá a causa
- pode ser um ponto de partida útil para uma reflexão sobre o multicul- dessa fraseologia resida no esforço, precedido de uma simplificação deli-
turalismo? Se tivéssemos que nos apressar a responder essa indagação, berada, de se apropriar de algumas ferramentas conceituais em prol das
diríamos que tal opção se deve a que ambas as dimensões (a do "proble- mais diversas formas de intervencionismo acadêmico-político.
ma" racista e a da "solução" multiculturalista) transitam, de mãos da- Para Gilles Deleuze (1990), Michel Foucault é um grande filó-
das, pelos tortuosos caminhos das mitologias nacionais e das narrativas sofo porque conseguiu se valer da história em proveito de outra coisa.
de origem, ou seja: onde mito e história se retroalimentam. Em grande medida, isso nos conduz à problemática das mitologias, as
Seguindo as trilhas de Michel Foucault, sabemos que genealogia, quais, segundo ensina Lévi-Strauss, têm a peculiaridade de se situa-
antes de se referir à questão da origem, remete-se às disputas concretas rem na história e, ao mesmo tempo, fora dela. De certa forma, Fou-
em torno da legitimidade de determinados saberes. Durante as céle- cault consegue pensar "com" e "contra" os mitos, os quais realizam,
bres conferências ministradas no início de 1976, no College de France, simultaneamente, uma operação de apropriação e extração: ou seja, se
Foucault se debruçou precisamente sobre a "genealogia do racismo". valem da história, não com objetivos meramente cronológicos, mas,
Apenas parcialmente divulgadas em 1991 na revista Les Temps Moder- sobretudo, lógicos e simbólicos.
nes, sob o título "Faire vivre et laisser mourir: Ia naissance du racisme", Em um opúsculo de diatribes antropológicas que se tornou cé-
essas conferências foram publicadas, na sua totalidade, no volume 1l lebre - Waiting for Foucault and Other Aphorismszo - Marshall Sahlins
faut défendre Ia sociétél9• ironiza os jargões da moda "pós" e sobre o próprio Foucault. Afora
É possível que essa tentativa - a de iniciar uma reflexão sobre essa saudável e sarcástica distância que pode funcionar como uma
multiculturalismo seguindo as pegadas de Michel Foucault - corra o perigosa e arrogante autossuficiência antropológica, consideraremos
risco de assumir a forma de uma exumação intelectual tardia. O jargão as conferências de Michel Foucault como um subsídio para pensarmos
à Ia Foucault está - salvo algumas exceções - em processo de extinção: um problema fulcral: o racismo - e a "guerra de raças" - que, resultado
discurso, biopoder, governabilidade, conhecimento-poder. Nos anos de uma contingência histórica, acaba por assumir a forma e a força de
uma autêntica mitologia moderna.
" Uma versão em espanhol das conferências foi publicada, em 1992, sob o titulo Genealoj{Ía
del racismo; mais tarde, em 2000, a editora Fondo de Cultura Económica publicou uma versão
completa sob o título Defender Ia sodedad. Curso en el Col/ege de France (1975-/976). A edição zo Refiro-me à coleção de aforisrnos e reflexões dispersas de Sahlins (1999). A versão brasileira foi
brasileira foi publicada pela editora Marrins Fontes, em 1999, sob o título Em defesa da sociedade. publicada em 2004 pela editora Cosac Naifv, sob o título Esperando Foucault, ainda.

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Esse objetivo pode significar um desvio do argumento original caso Esses índios, habitantes das montanhas norte-americanas, conhe-
de Foucault, que não estava interessado em simplesmente encontrar as ciam brancos e negros. Tal como acontece na maior parte das mitolo-
causas do racismo, mas em traçar a genealogia de um saber e sua irnple- gias, a narrativa de origem coloca no centro da criação divina - e de
mentação, através de táticas discursivas21 e de dispositivos de saber-poder forma autocelebratória - o grupo que veicula e reproduz a narrativa.
que terminam moldando os combates políticos concretos. Não se trata, Nesse caso, o grupo protagonista - o narrador da história - é descrito
portanto, de abordar o racismo como mera ideologia. Ao identificar, como a obra mais perfeita do Criador. Segundo o relato, Deus - o gran-
através da genealogia, os combates políticos concretos, estamos mui- de artesão e oleiro - primeiro teria construído um grande forno para
to longe do racismo concebido como uma espécie de "operação ide- dar vida a suas peças. Em seguida, da massa que havia criado, modelou
ológica com a qual o estado ou uma classe tratariam de jogar contra três figuras humanas. Após colocar as figuras no forno, esperou seu co-
um adversário mítico as hostilidades que outros teriam jogado contra zimento. Mas sua impaciência para ver o resultado era tamanha que
eles ..." (Foucault, 1992: 185). A especificidade do racismo moderno, retirou, rapidamente, a primeira figura. A imagem ainda não estava su-
diz, consiste em outra coisa: "Creio - em todo caso - que há algo mais ficientemente cozida. O resultado, portanto, foi uma figura pálida e sem
profundo que uma velha tradição ou uma nova ideologia. O que faz a graça. Este foi o primeiro antepassado do homem branco. Já a segunda
especificidade do racismo moderno não está vinculado a mentalidades, figura, foi retirada no tempo certo, e sua cor era morena e agradáveL
a ideologias, a mentiras do poder, senão mais precisamente à técnica do Dessa imagem perfeita descendem os índios. Admirado com a sua obra,
poder, à tecnologia do poder" (1992: 185; sublinhado meu). Seja como o Criador observou-a extasiado durante um longo tempo. A contem-
for, a lição que podemos aprender com Foucault consiste em constatar plação durou tanto que se esqueceu de retirar a terceira figura. Quando
a irredutibilidade do racismo como formação discursiva, seu caráter ar- reagiu já era tarde. Abriu o forno e encontrou a última imagem escura
bitrário e, ao mesmo tempo, singular. . e queimada: o primeiro homem negro".
A forma de etnocentrismo descrita nessa narrativa mítica, ou
seja, esse mecanismo simbólico primário que ressalta as qualidades do
Etnocentrismo universal e racismo particular próprio grupo, em detrimento dos grupos vizinhos, constitui uma opera-
ção autoafírrnadora universaL O tema foi abordado por Lévi-Strauss em
Em um volumoso, e quase esquecido, manual de antropologia es- seu famoso ensaio Raça e História. Trata-se, com efeito, de uma "atitude
crito por Melville Herskovits - discípulo de Franz Boas - encontramos do pensamento" em nome da qual um grupo se autodefine como porta-
um breve relato mitológico atribuído aos índios Cherokis da América dor dos valores da humanidade enquanto o resto é relegado à categoria
do Norte sobre a origem das "raças" humanas. Herskovits evoca o mito de "preto-homens", Como nos recorda Lévi-Strauss, essa humanidade
a fim de chamar a atenção sobre o fato de que, ao longo da história, a
maioria dos grupos tem elaborado suas próprias convicções etnocêntri- ... cessa nas fronteiras da tribo, do grupo linguístico, às vezes mesmo
da aldeia; a tal ponto, que um grande número de populações ditas pri-
11 Tal como salienta Michael Donnelly, a noção de tática está vinculada a mecanismos discretos que

correspondem a um nível de análise genealógica (e mais analítica), enquanto a noção de estratégia


vincula-se aos efeitos de longo prazo, que correspondem a uma análise epocal (1990: 194-195). 12 Esse relato foi reproduzido em Herkovits (1981: 83).

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mitivas se autodesignam com um nome que significa 'os homens' ( ... ) vincentes dessa redenção se produz em 1940, quando Ruth Benedict
implicando assim que as outras tribos, grupos ou aldeias não participam
(1887 -1948) publica seu livro Raça: ciência e política. Sem dúvida, a per-
das virtudes ou mesmo da natureza humana, mas são, quando muito,
compostos de "maus", de "malvados", de "macacos da terra", ou de sistência do sistema segregacionista norte-americano e a consolidação
"ovos de piolho" (1993: 334). do nazismo na Europa outorgavam a esse trabalho um significado espe-
cial. Esse esforço percorria o caminho já aberto por Franz Boas (1858-
o caráter universal do etnocentrismo inaugura problemas que, 1942) que, no mesmo período, publica Race, language and culture. De
para além da boa vontade dos humanistas e reformadores de todas as uma forma decisiva, a antropologia norte-americana embarcava em um
espécies, não têm sido resolvidos. Por isso, já em 1952, Lévi-Strauss questionamento dos postulados racistas, empenhados em buscar na bio-
chama a atenção para os princípios, um tanto abstratos, veiculados no logia explicações causais para os comportamentos culturais.
catálogo de boas intenções da Declaração Universal dos Direitos do A intenção de Ruth Benedict consistia em mostrar que a ideo-
Homem emitida pela UNESCO. Com efeito, logia racista havia criado as "raças", e não o contrário. Esse processo de
criação era suscetível de ser identificado em um momento específico
... a simples proclamação da igualdade natural entre todos os homens, da história moderna. Com efeito, ela procurava mostrar que o racismo
e da fraternidade que deve uni-los sem distinção de raça ou de cultura,
não tinha se difundido no pensamento moderno até o momento em
tem algo de decepcionante para o espírito, pois negligencia uma diver-
sidade de fato que se impõe à observação, e da qual não hasta dizer que que começou a ser aplicado aos próprios conflitos internos da Euro-
não afeta o fundo do problema para que sejamos teórica e praticamente pa: primeiro, aos conflitos de classe e, depois, aos nacionais (Benedict,
autorizados a nos comportarmos como se ela não existisse (1993: 335). 1987: 139-140). Dito de outra forma, o racismo havia sido a arma que a
aristocracia francesa, ameaçada e incomodada com a tirania do Estado,
Lévi-Strauss sugere com essa advertência que os fatos culturais usou contra o rei, seus ministros e o povo. Por isso, este constitui um
- sendo o etnocentrismo um deles - são infinitamente mais comple- acontecimento (em um sentido levistraussiano) quegera os rudimentos
xos do que os fatos biológicos. Portanto, as operações simbólicas que de uma linguagem - racista - singular e inédita.
alguns povos põem em movimento para classificar os seus "Outros" O porta-voz dessa revolta contra o "soberano" foi o Conde de
nada tem a ver com o racismo tal como foi engendrado pela mo- Boulainvilliers. Seu discurso consistia em defender o exclusivismo dos
dernidade. Salvo que caiamos naquilo que Lévi-Strauss denomina de nobres franceses invocando o sangue germânico de seus antepassados.
pecado original da antropologia, ou seja: " ... na confusão entre a no- Eles eram descendentes dos germani, os bárbaros teutões que derrota-
ção puramente biológica de raça (supondo, aliás, que, mesmo nesse ram o Império Romano e que foram entusiasticamente descritos pelo
terreno limitado, essa noção pudesse pretender à objetividade, o que a historiador Tácito cem anos depois de Cristo. No seu relato histórico
genética moderna contesta) e as produções sociológicas e psicológicas antirromano, Tácito, farto da "degeneração" de Roma, exaltou " ... a
das culturas humanas" (1993: 329). energia e o valor dos bárbaros e o seu 'princípio de mando'" (Benedict,
Mas, há tempos que a antropologia se redimiu daquele pecado 1987: 141). Boulainvilliers inspira-se nessa história antirromana para
(o do racismo científico do século XIX). Uma das tentativas mais con- construir sua genealogia racista: os nobres francos do século XVII eram

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descendentes daquela "raça" germânica, disciplinada e heroica, ao con- Discurso aristocrático e "guerra de raças"
trário do povo, que era feito de outra argila: descendiam dos antigos e
derrotados galos-romanos (celtas e mediterrâneos). Como é sabido, um dos alvos de ataque prediletos de Foucault é
Os antecedentes racistas da nobreza incomodada com o universa- a noção de poder apoiada no modelo clássico de soberania, tal como foi
lismo da Revolução francesa inspiraram, mais tarde, o trabalho do Conde elaborado por Hobbes e os contratualistas. Esse modelo ajudou a marcar
de Gobineau: Ensaio sobre a desigualdade das raças hUTnaruLS (publicado os caminhos percorridos por grande parte da ciência política moderna,
entre 1853 e 1857). Contrariando os ventos igualitaristas que sopravam bem como as análises sobre o poder dela derivadas. Segundo essa visão
por toda a Europa, Gobineau fundou, em plena revolução de 1848, uma clássica, o soberano tem a tarefa de zelar pela "boa vida" dos súditos e
revista que" ... atuava a favor do estabelecimento de uma república go- pela sua segurança. Se os súditos depositaram em suas mãos o direito de
vernada por aristocratas" (Benedict, 1987: 142). Passados mais de trinta natureza que possuíam, foi para escapar dos perigos da anarquia. O fato de
anos da publicação do trabalho de Ruth Benedict, o nome de Boulain- que a soberania possa limitar as liberdades não significa que o soberano
villiers, antecedente político de Gobineau, seria novamente evocado, deva exercer a violência sobre os súbditos. O soberano é, antes de tudo, a
dessa vez por Michel Foucault nos mencionados cursos do College de única antidesordem eficaz possível, aquela capaz de salvar seus súditos da
France. O assunto era, também, a "genealogia do racismo". Só que dessa "guerra de todos contra todos" (Lebrun, 1984). Assim, os homens acei-
vez o objetivo era completamente diferente ao de Ruth Benedict. tam confiar no soberano em troca da sua segurança. Porém, a guerra de
Mais do que uma advertência humanista sobre o caráter não cien- todos contra todos - que, segundo o discurso jurídico-político de Hobbes,
tífico e arbitrário do racismo, o que Foucault buscava identificar era um equivale ao estado de natureza - nasce de uma perpétua rivalidade. Esse
tipo de discurso histórico-político inédito na história de Ocidente. Esse argumento, segundo Michel Foucault, não tem base de sustentação, já
discurso, inaugurado pela aristocracia nobiliária francesa entre o século que se apoia em uma guerra "irreal".
XVII e XVIII, é o que introduz o modelo da guerra para pensar a histó- Em um estado permanente de guerra, tal como aquele descrito por
ria e constitui, segundo Foucault, o antecedente do racismo de Estado Hobbes, não há armas, nem conquistas. Não há batalhas, não há sangue,
no século XIX. Não estava nos planos do filósofo fazer uma história do não há cadáveres. O que há, então? "Há somente representações, ma-
racismo no sentido geral e tradicional do termo, mas indagar" ... de que nifestações, signos, expressões enfáticas, astutas, mendazes; há enganos,
modo no Ocidente apareceu uma análise (crítica, histórica, política) vontades disfarçadas do seu contrário, inquietações mascaradas por cer-
do Estado, de suas instituições e de seus mecanismos de poder, levada a tezas e assim por diante" (Foucault, 1992: 69). O sujeito desse discurso é
cabo em termos binários" (Foucault, 1992: 65). É possível, através das um sujeito universal, que se coloca fora das lutas concretas. Trata-se, em
trilhas da indagação de Foucault, vislumbrar a singularidade histórica última instância, de um sujeito que ocupa a posição do jurista ou do filó-
sobre a qual o discurso racista se edifica. sofo. Mas, em que consiste esse discurso que nasce e se situa no âmbito
das lutas concretas, e não no campo abstrato do direito ou da "verdade
universal"? Semelhante discurso deve se distanciar da concepção - irreal
- de guerra formulada por Hobbes. Deve, ainda, ser um discurso simetri-

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camente inverso à célebre tese de Carl von Clausewitz, segundo a qual histórico dos romanos, como o do medievo, tinha a função política de
um ritual de consolidação da soberania (1992: 53-54).
a guerra é a continuação da política por outros meios. Para Foucault,
o poder não deve ser concebido como cessão, contrato, ou em termos
Boulainvilliers foi, precisamente, uns dos que se pronuncia contra
funcionalistas (economicistas) para a mera manutenção das relações de
essa história, proporcionando com essa contra-história uma visão mais re-
produção. Ele deve ser apreendido como relações de força, de luta.
lacional do poder. Isto significaque "...0 poder não é uma propriedade, não
Essa inversão, que contesta o argumento naturalista segundo o
é uma potência; é uma relação que deve ser estudada através dos termos
qual a política seria a continuação da guerra por outros meios, terá suas
nos quais opera. Não se pode fazerentão a história dos reis nem a história
consequências a respeito da análise do poder e colocará em questão o mo-
dos povos, mas apenas a história do que constitui um frente ao outro, esses
delo "artificialista" e contratualista, ou seja, o modelo da soberania para dois termos dos quais nunca um é o infinito e o outro um zero" (1992: 124).
entender o poder. Resumindo: esse novo discurso, produzido pelos porta- Boulainvilliers, ao fazeressa história, ao definir o caráter relacional do po-
-vozes da aristocracia decadente: 1) introduz o modelo da guerra para der, rejeitava o modelo jurídico da soberania que, até então, havia sido o
pensar a história; 2) investe contra as histórias sustentadas na concepção único modo de pensar as relações entre o povo e os que governam.
filosófico-jurídica do contrato; 3) não nasce de um discurso universal: O modelo da guerra para pensar o poder proposto por Bou-
sua verdade se apoia no fato de ser parte do conflito. Como tal, para lainvilliers se opõe ao modelo jurídico de soberania, da mesma ma-
esse novo discurso, o ponto zero da história é a "invasão", ou seja, uma neira que o bárbaro se opõe ao selvagem. O que isto significa? Se-
singularidade histórica irreversível. Nele se apoiarão o poder dos Estados I gundo Foucault, o bárbaro é alguém que só pode ser compreendido
modernos para construir, por sua vez, o discurso biologizante que logo e definido em relação a uma civilização com a qual se encontra em
desenvolverá as bases teóricas do racismo. uma relação de exterioridade: "Não há bárbaro sem uma civilização
Michel Foucault chama esse novo discurso de contra-história. que ele trata de destruir e da qual quer se apropriar. O bárbaro é sem-
Na verdade, será a primeira história antirromana, que se construiu em pre o homem que ronda as fronteiras dos Estados, é quem ameaça as
contraposição àquela que celebrava as grandes façanhas e os rituais de muralhas das cidades" (1992: 141). Em Hobbes, a guerra de todos
reforço do poder e da soberania: contra todos consiste em um jogo de representações, mediante a
qual cada indivíduo mede o perigo que o outro indivíduo representa.
Creio que seria possível dizer - falando em termos gerais - que a histó- Hobbes anula com essa operação o tema da conquista como ins-
ria, até os umbrais do nosso tempo, foi uma história da soberania, uma
tância de análise. Para Boulainvilliers, ao contrário, essa questão é
história que se desenvolveu na dimensão e na função da soberania (...).
Nesse sentido, a história que se praticava na Idade Media estava ainda fundamental: "Diferentemente do selvagem, o bárbaro não se apoia
em relação de continuidade direta com a história que vinha sendo re- em um plano de natureza ao qual se integra. Recorta-se sobre um
latada pelos romanos, a de Tito Lívio ou a dos primeiros analistas, não plano de civilização, contra o qual se choca. O bárbaro não entra na
tanto pela forma da narração ou porque os historiadores do medievo
história fundando sociedades, mas sim penetrando, incendiando e
não perceberam diferenças, descontinuidades, rupturas entre a história
romana e a relatada por eles, senão, mais precisamente porque o relato destruindo uma civilização" (1992: 141).

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o argumento faz referência a uma conquista pontual, concreta, sentidos, o selvagem (bom ou mau) e o homem da natureza que os juris-
que ocorre na Europa ocidental: a invasão da Galia-Romana pelos fran- tas, ou teóricos do direito, consideravam como prévio à sociedade". O
cos ou, no caso da atual Inglaterra, a conquista dos norrnandos contra selvagem "histórico-jurídico" pode se transformar, caso incluamos a te-
os saxões. Esse discurso da contra-história emerge de uma nobreza que oria da troca, no selvagem do "homo economicus". Mas o "bárbaro", diz
perde gradualmente sua posição de privilégio, tanto em relação ao po- Foucault, não intercambia: saqueia, incendeia, domina: "Isto significa
der do soberano, quanto ao que posteriormente será chamado de Ter- que o modelo de governo é para o bárbaro um governo necessariamente
ceiro estado. Nesse caso - diferentemente da história baseada no "direito militar, e que não se funda nesses contratos de cessão civil que carac-
público", ou seja, da história inventada pelos juristas - o relato histó- terizam ao selvagem" (1992: 142). Para Foucault, essa personagem do
rico é parte integrante da história. A nova história - que é, ao mesmo bárbaro contribuiu para instaurar, no século XVIII, a história ao estilo
tempo, uma contra-história - não se coloca nem no centro nem no de Boulainvilliers. Ao chegarmos neste ponto cabe a pergunta: o que a
exterior dos conflitos. Pelo contrário, sua verdade se apoia no fato de contra-história tem a ver com o discurso racista?
que ela é parte direta do conflito. Por isso, o discurso da nobreza con-
siste em uma visão da guerra não como uma mera fundadora do direito, Da "guerra de raças" ao racismo
mas como uma totalidade que o recobre: o que são, pois, as leis para a
nobreza de origem germânica, senão uma forma de "continuação da A partir da segunda metade do século XVIII, produz-se um deslo-
guerra por outros meios"? Os germanos, diz Foucaulr, camento entre o que Foucault chama o poder disciplinar e a biopolítica23•
Ou seja, temos, por um lado, entre os séculos XVII e parte do XVIII um
...pouco a pouco se transformam em cavaleiros, em cruzados, que des-
cuidam a tal ponto das coisas da sua terra e do seu país que se encon-
tram despossuídos de suas fortunas e do seu poder. As cruzadas (como
1
I
tipo de poder que se mantém em virtude de uma série de procedimen-
tos, nos quais a distribuição espacial e os controles dos corpos indivi-
duais estão intimamente ligados. Esse é o poder que Foucault (1989)
grande viático para o além) são, segundo Boulainvilliers, a expressão, a
descreve em um dos capítulos de Vigiar e punir. Trata-se de um poder
manifestação do que sucedeu quando a nobreza se preocupou com um
mundo distante. Enquanto os nobres se encontravam em Jerusalém, (disciplinar) construído a partir da vigilância, e que aponta um "ho-
o que sucedia nas suas terras? O rei, a Igreja e a antiga aristocracia mem corpo", através do qual a questão da visibilidade se converte em
galo-romana manipulavam as leis, escritas em latim, que serviriam para um imperativo fundamental. Assiste-se, portanto, à construção desses
privá-Ios das suas terras e dos seus direitos (1992: 112).
grandes observatórios dos indivíduos, tais como as cidades operárias, os
hospitais, os asilos.
Retomando a distinção entre bárbaro e selvagem, se este últi- A biopolítica, ao contrário, não se dirigirá ao homem-corpo, mas
mo, ou seja, o "homem natural" é o ponto de partida para os teóricos ao homem-espécie. Surge, portanto, uma disciplina em torno de um
da soberania, aquele - o bárbaro - será o fundamento do discurso da conjunto de processos próprios da vida: nascimento, morte, produção,
contra-história. Há em Boulainvilliers um antinaturalismo; seu grande
" Ambos correspondem, respectivamente, aos dois pelos referenciados por Michael Donnelly
adversário "...é o homem da natureza, é o selvagem, entendido em dois (1990: 193): O corpo como máquina e o corpo como espécie, penetrado pela mecânica do vivo.

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enfermidade. Foucault já havia começado a contornar esse assunto, sobre- tável, já que supõe que as tramas epistêmicas podem ser independentes das
tudo no último capítulo da Vontade do saber. Em que consiste, então, a teses sustentadas e das respectivas posições políticas. Para além das críticas
biopolítica? Em princípio, em um conjunto de práticas, cujo objeto é a previsíveis, o que Foucault anuncia é que o racismo que se desenvolve nas
espécie humana (e, junto com ela, a população), ou seja, uma "tecnologia sociedades modernas em tomo do biopoder já não assume a forma de uma
do poder" que não trabalha nem com a sociedade - à maneira dos teóricos "guerra de raças". Não é que um discurso tenha sido substituído por ou-
da soberania - nem com o indivíduo-corpo: "O que aparece é um novo tro, senão que um proporcionou ao outro uma matriz epistêmica. Mas não
corpo, um corpo múltiplo, com uma quantidade inumerável, senão infinita se trata, simplesmente, de uma substituição; o que tem ocorrido, segundo
de cabeças. Trata-se da noção de população. A bíopolítica trabalha com a Foucault, é um aburguesamento: um saber que tem sido colonizado por ou-
população. Mais precisamente: com a população como problema biológico tro. Portanto, o inimigo, que no discurso de Boulainvilliers aparece como
e como problema de poder" (1992: 176). Estamos, então, a um passo do o inimigo externo, passa a ser um inimigo interno: "Aparece então a ideia
racismo de Estado, tal como surgiu no século XIX. de uma guerra intestina como defesa da sociedade contra os perigos que
rÓ poder do soberano consistia no direito de "fazer morrer" ou "dei-
L nascem no seu mesmo corpo e pelo seu próprio corpo. Trata-se da grande
xar viver". Já o sistema político centrado no biopoder consiste em um "fa- inversão do histórico-biológico no pensamento da guerra social, do passo
zer viver" ou "deixar morrer'~"Como um poder que consiste em fazer viver, do constituinte ao médico" (1992: 156).
pode deixar morrer?", interroga-se Foucault. Como dissemos, aqui entra a
gênese da ePisteme racista. No primeiro volume da História da sexualidade,
Foucault anuncia: "Se o genocídio é por certo o sonho dos poderes moder- Mitologias da modernidade
nos, isso não se deve a um retomo, hoje, do velho direito de matar; se deve
a que o poder reside e se exerce no nível da vida, da espécie, da raça e dos A consequência mais evidente - e, talvez, mais perturbadora - do
fenômenos massivos de população" (1990: 166). Em que consiste o racis- argumento de Foucault é o caráter irredutível, singular, histórico e contin-
mo para Foucault? Em primeiro lugar, em um modo no qual, "...no âmbito ,~ gente do surgimento - na Europa ocidental- de um tipo de discurso, cuja
'.
da vida que o poder tomou sob a sua gestão, introduz-se uma separação, trama epistêmica abre as portas ao discurso racista. Colocando em perspec-
a que se dá entre o que deve viver e o que deve morrer" e, logo, em uma tiva as diferentes mitologias, podemos dizer que aquela que funda o racismo
relação entre "...minha vida e a morte do outro que não é de tipo guerrei- moderno possui, se aprendemos bem a lição de Foucault, uma peculiarida-
ro, senão de tipo biológico" (1992: 182-183). O que permitiu, portanto, a de sintomática explicável na noção de biopoder.
inscrição do racismo nos mecanismos do Estado foi a irrupção do biopoder. De qualquer forma, outros empreendimentos, além do genealógico,
Mas, que relação tem essa irrupção com o discurso da contra-história têm sido assumidos para pensar o par racismo/modernidade. Em ocasiões,
formulado por Boulainvilliers? Poder-se-ia dizer que a "trama epistêmica" buscou-se apelar a princípios sociológicos gerais baseados na oposição es-
que a referida história proporciona acaba se manifestando - em virtude do I' trutural igualitarismo/hierarquia. Como se sabe, essa tentativa foi ensaiada
que Foucault chama a reversibilidade tática do discurso - no racismo moder- por Louis Dumont que, levando ao extremo o desafio relativista e o com-
no. É verdade que essa ideia pode implicar um relativismo pouco confor- parativismo radical, colocou em perspectiva duas sociedades irreduti-

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velmente opostas: a sociedade igualitarista - cujos princípios nascem ao prazer estético que lhe provoca a contemplação do primeiro índio e,
da Revolução Francesa - e a sociedade hierárquica - cujos princí- concomitantemente, frustra-se face ao péssimo resultado de suas outras
pios nascem do sistema de castas na Índia. Uma das críticas sagazes duas obras: o branco e o negro.
de Dumont aponta para o uso indiscriminado que alguns sociólogos Quantas combinatórias poder-nos-iam oferecer essas 'mito-lógi-
norte-americanos fizeram da categoria "casta" para explicar as rela- cas'? Quantas possíveis interpretações cada uma delas poderiam gerar em
ções entre brancos e negros no sul dos Estados Unidos. O problema, nome do exclusivismo racial ou cultural? Recordemos, rapidamente, o
explica Dumont, consiste em que " ... a história dos Estados Unidos capítulo X do Livro de Gênesis, cuja interpretação fundamentalista aju-
nos diz que a discriminação racista sucedeu à escravidão dos negros, dou a ideologia racista dos Africâners - ou Boers - da Igreja Reformada
uma vez que esta foi abolida ( ... ). À distinção entre senhor e escravo Holandesa, na África do Sul, a justificar o apartheid. Segundo essa pas-
sucedeu a discriminação dos brancos frente aos negros" (1970: 324). sagem do Gênesis, Cam teria sido amaldiçoado por Deus em virtude da
Com efeito, não basta a proclamação do ideal moderno para que a sua falta de respeito a Noé. A partir daí, estaria sujeito à subordinação
hierarquia desapareça; ao contrário esta aparece - e permanece - sob perpétua de parte de seus outros irmãos. Segundo a interpretação dessa
uma forma "perversa", ou seja, sob a forma do racismo. Não basta, narrativa mítica, os negros, condenados à inferioridade e à servidão, se-
portanto, anunciar que todos os homens têm sido criados iguais. É riam os descendentes do desrespeitoso CamZ4•
precisamente nessa inversão estrutural que o racismo acaba sendo Os mitos, como Claude Lévi-Strauss nos ensina, deslocam-se ge-
uma função, uma forma perversa do igualitarismo. Dito de outra ma- ograficamente, e com esse deslocamento se transformam - apesar de os
neira: a distinção - que obedecia ao princípio hierárquico - entre constrangimentos ecológicos não se imporem de maneira fatal sobre os
senhores e escravos foi substituída pela discriminação - que obedece constrangimentos simbólicos ou "mentais". Levando ao extremo essa
à forma perversa do igualitarismo - de brancos frente a negros. constatação, e nela buscando inspiração interpretativa, não teríamos difi-
Estamos, aqui, longe das genealogias e das matrizes epistêrni- culdade para lembrar que, de acordo com a conhecida análise de Roberto
da Matta, o mito ou fábula das "três raças" se transformou em uma das
cas de Foucault. Permanece, porém, a tentação de apelar a algumas
narrativas mais poderosas da mitologia nacional brasileira. Esse mito" ...
analogias aparentemente extravagantes, mas, no seu comparativismo,
tomou-se uma ideologia dominante, abrangente, capaz de permear a visão
instigadoras: com efeito, as "três raças" elementares que compõem a mi-
do povo, dos intelectuais, dos políticos e acadêmicos de esquerda e de di-
tologia moderna do Conde de Gobineau (cuja matriz discursiva, Fou-
reita, uns e outros gritando pela mestiçagem e se utilizando do 'branco', do
cault nos dizia, foi inaugurada por Boulainvilliers) pouco tem a ver com
'negro' e do 'índio' como as unidades básicas através das quais se realiza a
as "três raças" da mitologia Cheroki referida no início deste capítulo.
exploração ou a redenção das massas" (1987: 63).
Naquela encontramos uma construção hierárquica, uma narrativa de
superioridade, onde os códigos da biologia são arbitrária e racialmente 24 Essa passagem bíblica foi analisada pelo cenógrafo e missionário Henri-Alexandre [unod
(1931: 10), que afirma que alguns estudiosos rejeitaram essa "absurda interpretação" inventada,
ordenados. Nesta - dos Cheroki - vislumbramos, simplesmente, uma ao que parece, por comentaristas ralmúdicos dos primeiros séculos da nossa era. Os Boers
(africâncrs) teriam utilizado essa interpretação para justificar suas políticas de segregação na
operação mental etnocêntrica, na qual um Deus criador se rende face Africa do Sul, a ponto de considerarem-se um povo escolhido em busca da terra prometida.

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Assim, os componentes etnogenealógicos que conformaram o
"povo" brasileiro se basearam na combinatória dessas três substâncias inte-
lectualmente inventadas e arbitrariamente hierarquizadas, segundo a pre-
ferência ideológica de seus respectivos mentores e porta-vozes.
Em um sentido amplo, o etnocentrismo como operação simbólica
universal é o gênero, enquanto que o racismo, como acontecimento histó-
rico particular - "moderno" - é a espécie. Por isso, a antropologia, de um
lado, e Foucault, de outro, nos ensinam qual é a diferença entre o etnocen-
trismo cultural dos Cheroki e o racismo biológico de Gobineau. Porém, os
discursos identitários étnico-nacionais modernos dificilmente têm podido
separar a ordem da cultura da ordem da natureza. Suas mitologias associa-
ram determinadas características socioculturais ao "sangue". Eis a grande
e perversa metonímia: esse processo de associação, sem poder distinguir
a língua, a religião ou os costumes do suporte puramente genético, tem
condicionado a atribuição e o usufruto dos direitos do cidadão a critérios
baseados em genealogias arbitrárias historicamente inventadas.

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