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1. Natureza e Fundamento do
conhecimento histórico
“ Sem dúvida a história é o nosso mito. Ela combina o ‘pensável’ e a origem,
de acordo com o modo através do qual uma sociedade se compreende”
(CERTEAU, 1982:33)
Quem nunca quis contar uma história? Quem nunca sentiu uma vontade enorme de
contar para alguém, algo que se viveu, viu ou ouviu? O beijo apaixonado torna-se assim
poesia, a catástrofe climática torna-se matéria jornalística, o experimento de laboratório torna-
se hipótese científica. A história nasce desta vontade de compartilhar o vivido, do laço
humano que produzimos com nossas narrativas e os significados que damos para aquilo que
nos passa ao longo do tempo.
No entanto, entre tantas narrativas, qual seria a especificidade da história, qual seria
sua natureza? Falamos do que passou, do que se foi; falamos sempre do outro, mesmo quando
falamos de nós mesmos, pois a boca que fala do outro, ao fazê-lo, fala também de si.
Comprometidos com a vontade de falar a verdade sobre o passado, amarramos com palavras o
fluxo do tempo e tecemos com ele espaços de duração, que nos ajudam a lidar com a vida. O
que se passou nos inspira/ensina a viver e por isso, não precisamos reinventar a roda e o fogo
todos os dias.
O Outro que viveu nos excede e nos estranha, alongando nossa compreensão do
humano em suas belezas e horrores. As estruturas do poder e as teias da dominação desenham
para nós mapas, que nos ajudam a caminhar novos caminhos e a estudar os novos, e às vezes
os mesmos, traçados que compõem os esqueletos do poder que nos sustentam, e as nervuras
da dominação que nos tornam aquilo que somos. Compreender estes ossos e nervos é um
primeiro passo, para iniciarmos a intriga da resistência cotidiana e das burlas que reinventam
nossos corpos – uma das utilidades da história para a vida.
Narramos o Outro aos outros! Entre tantos outros precisamos eleger e sermos aceitos
por um grupo para chamarmos de nós – os pares, os homens do presente – e o eles para
estranharmos como Outro – os mortos, os Homens do passado. Mas como trazer para Nós a
experiência deste Outro, se apenas temos as palavras como veículo? Como realizar o desejo
de dizer a verdade? Será que dizemos todos os detalhes? Será que exageramos? Será somos
justos/fieis com o vivido e sinceros com nossos pares, quando narramos àquilo que aconteceu
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a quem não está mais aqui para conversar conosco? É sobre estas questões e as tramas que
fundamentam o conhecimento histórico, que trataremos neste texto.
O que queremos tornar eterno? Sob o fantasma do esquecimento a maior parte daquilo
que vivemos é olvidada em função do fluxo do tempo. Para resistir a este fluxo tecemos
narrativas, selecionamos nossos feitos e contamos, para nossos pares, o que selecionamos
(pelo desejo e pela capacidade de lembrar) como mais interessante daquilo que nos passou.
Essas narrativas sobrevivem à morte de seus enunciadores e são recontadas através
das gerações, unindo as comunidades de ouvintes; dando-lhes a ideia de pertencimento a
grupos com um passado comum. Aliado e às vezes indissociável da religião, o relato sobre o
passado tece identidades e produz significados para a vida dos homens ao longo do tempo.
O passado é requisitado na busca de uma origem. Na procura por uma resposta para a
questão - como tudo começou?- tecemos narrativas que tem o poder de nos dar significado à
existência e ao fluxo do tempo. As religiões são fundadas nesta perspectiva, de modo
semelhante o são as nações, os clãs, as tribos e os impérios. O passado é forte, gigantesco ele
se impõe sobre o presente através de narrativas que fixam significados e identidades.
Nesse sentido, somos brasileiros, chineses ou sul coreanos, não apenas pelo território
geográfico compartilhado, ou por uma língua e características biológicas comuns. Nos
identificamos como tal, por que as narrativas sobre o passado nos constituem, por que não
conseguimos romper o laço com o que foi, e por isto criamos um lugar para ele – a história.
A história aponta um lugar de onde tudo teria começado, ou de quando começou a se
ter registro de algo, aliada a uma explicação de porque somos o que somos; ou do porque não
somos mais o que éramos, em função daquilo que se passou.
Mas ela não é a única a fazer isso, a história não é senhora do passado nem como
proprietária nem como amante; ela disputa seus rastros com as memórias e as artes, com as
representações coletivas, as tradições culturais e com a ficção literária e pictórica. Em uma
batalha constante, a história luta de olhos vendados na sua odisseia própria rumo à verdade, e
assim como para Odisseu1 não é a chegada o mais interessante de sua trajetória, mas a
narrativa do que lhe acontece no caminho.
1
Conheceremos melhor este personagem no decorrer deste texto.
3
Nesse sentido, ao longo do tempo, a história criou distinções de suas primas. Ela
passou a rejeitar as explicações mitológicas, substituindo por outras mais sofisticadas. Ela
suspeita dos relatos da memória e do senso comum em busca de uma triagem que tem a busca
da verdade como baliza para seu ofício. Então, qual seria a diferença entre o relato de
memória, de alguém que viveu o acontecimento, e o discurso do historiador atual?
Uma primeira distinção seria entre as fontes nas quais se baseiam seus discursos: o
testemunho e o documento. O primeiro é produzido pela testemunha, por alguém que viveu,
sentiu, viu ou ouviu. Alguém cuja existência está marcada pelo acontecido e do qual pode dar
um relato que pode ser admissível, que pode se aceito como verossímil; mas que precisa ser
lido como parcial tendo em vista o modo como o sujeito recorta e reconta aquilo que viveu;
como suas subjetividades, memórias e distancias estão implicadas quando realiza um
depoimento (CHARTIER, 2009: 21).
O testemunho tem a lembrança como suporte, e não lembramos tudo, em todo lugar e
a todo o momento; a lembrança é um processo de seleção, recorte e caça nos campos da
memória, de acordo com as intensidades e circunstâncias daquilo que nos passou e do
momento da rememoração (CARTROGA, 2001: 20-22). O fundamento do testemunho é
baseado na fidelidade que o depoente tem à memória e a crença na honestidade de sua
recordação. (CHARTIER, 2009: 21).
A história se faz baseada em documentos. Por isto sua relação com a memória é
diferente, pois ela se pretende desprendida da recordação, uma vez que em sua caça à verdade
exercita o desejo de análise para além das subjetividades. Seu relato baseia-se em explicações
causais fundamentadas na racionalidade e num exercício crítico constante de falseabilidade.
(CHARTIER, 2009: 22)
Num exercício de desapego aos sentimentos, a história funda-se na crítica. Quando
esta se volta sob a memória, ela precisará lidar com a desconstrução de suas verdades, caso
diferente do testemunho que trabalha na afirmação delas (CHARTIER, 2009: 22).
De modo semelhante a história se distingue da ficção por seus métodos específicos e
pela vontade de verdade que lhe constitui. Para compreendermos isto com um pouco mais de
cuidado, vamos discutir um pouco sobre a fundação do Brasil, inicialmente a partir de um
quadro de Vitor Meireles, um dos principais pintores ligados à corte de D. Pedro II:
4
Figura 1: Primeira Missa no Brasil, 1860. Óleo sobre tela, 268 x 356 cm. Rio de Janeiro,
Museu Nacional de Belas Artes.
causa, bem como o imperador D. Pedro II, que Academia de Belas Artes do Rio de
Janeiro. (...) foi o primeiro brasileiro a
patrocinava a formação de artistas como o fez
expor no Salão Oficial em Paris, em
com o próprio Vitor Meirelles em sua longa
1861, onde representou seu país com a
estadia na França. Em busca de um marco para o
pintura “Primeira Missa no Brasil”.
nascimento do Brasil, Meireles coloca a primeira Retirado de
missa como o espaço ritual que daria a luz à http://www.dezenovevinte.net/obras/
nação, já simbolizada pela palmeira no canto vm_missa.htm Acesso em 19 11 13
direito do quadro. (FRANZ, 2007) às 12: 26
No alto a cruz o céu e as árvores. Em harmonia perfeita, a natureza abre espaço para a
demarcação da cruz sob o céu sem nuvens do país tropical. Apenas um índio intrometesse no
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lado esquerdo da tela, pois assiste ao ritual sobre o galho de uma árvore. Mas ele não trás
nenhum problema, pois este sujeito, integrado à natureza, simboliza a inocência de um paraíso
perdido, aliada à conversão anunciada pela missa.
No rito estariam presentes os dois personagens bem quistos no mito de origem
brasileiro: o “branco conquistador” e o “nobre índio” a ser catequizado. Todos sob a luz do
sol que está direcionada à cruz no centro do quadro2, o amarelo emerge como, talvez, a
representação da vontade de Deus a abençoar o ritual. Brancos e índios assistem ao
acontecimento que daria origem a nação harmônica, católica, sem grandes conflitos e com
exuberante natureza.
Percebemos com isso, que a pintura assim como a história e a memória traça uma
representação do passado, seu lugar não é o da verdade, mas o do impacto afetivo e da síntese
imagética. Os pintores fazem uso do passado, fazem dos quadros canhões de guerra. Com seu
poder de representar, eles projetam imagens que sobrevivem ao fluxo do tempo e seduzem as
nações em torno de projetos; que como o deste caso, visa fundar uma nacionalidade e uma
identidade sem derramamento de sangue, suor, dores e conflitos; sem dominação e sem
resistência.
Comprometida com a crítica, a história atual pode inclusive usar o relato de memória
ou o quadro de Meireles como fonte; mas o seu trabalho repousa sobre a desconstrução, sobre
a análise, sobre as estratégias de construção das representações e não na aceitação das
mesmas. A história não pode tomar como verdadeira, a ideia de que a primeira missa
realizada no Brasil tenha se dado deste modo; mesmo que nunca chegue a saber, como
realmente foi, o seu lugar é o da desconfiança em relação as representações, as certezas e os
projetos civilizatórios.
Assim como acontece na literatura, a pintura lida com o passado para seus objetivos
próprios, elas tem tramas e lugares específicos para os quais o passado tem como lugar a
provocação dos afetos. Em serviço à corte que o patrocinava, Meirelles tinha como ofício
produzir as imagens necessárias à propaganda dos projetos do império brasileiro, bem como
de pintar os ideais de seu tempo. A história realiza uma operação parecida, mas seus
pertencimentos são outros.
A literatura também é uma prima próxima, ela pode, inclusive, utilizar personagens
reais, estratégias de escrita e métodos de pesquisa semelhantes ao do historiador. O literato
2
Atente a diferença dos tons das cores no centro próximo a cruz e nas bordas junto aos índios; o jogo entre os
iluminados e aqueles que estão nas sombras em clara alusão a uma simbiose entre a razão iluminista e o
cristianismo chegando nos trópicos.
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pode criar citações e notas de rodapé, pode inclusive valer-se de fatos que aconteceram. Ele
pode fazer pesquisas bibliográficas e de fontes, mas ele não tem o comprometimento que o
historiador tem com o passado, o que não quer dizer que o literato não possa engajar-se com
este passado, mas que as características de seu ofício são outras. (CHARTIER, 2009: 25-31)
Tomemos uma obra clássica como exemplo, A Odisseia, atribuída ao poeta grego
Homero do século VIII A.C. Trata-se da viagem de volta para casa de Ulisses, ou Odisseu;
depois de ter vencido a Guerra de Tróia. A história conta a trajetória deste homem que foi à
guerra e que demorou mais de 20 anos para voltar, e que, ao longo deste tempo, tem como
sonho regressar à Ítaca, sua terra, à sua esposa Penélope e à seu filho Telêmaco.
Nessa viagem de volta, ele vive uma infinidade de aventuras lidando com a fúria dos
deuses e dos homens. Por fim, ele consegue chegar à terra natal, mas não é reconhecido por
sua esposa, que estava sendo cortejada por vários homens. Por isto, Um banquete é preparado
para a disputa pelo casamento com ela, que propôs como desafio aos concorrentes usar o arco
de Ulisses arremessando a flecha para passar por doze machados. Após as tentativas dos
pretendentes Ulisses realiza o feito revelando-se e retornando a seu trono.
É o objetivo de chegar a Ítaca que guia o seu caminho diante do desconhecido, assim
como é a verdade como objetivo, que marca conduz o historiador em suas pesquisas sobre o
passado. A poesia clássica aconteceu a partir do registro das narrativas orais, como as
histórias presentes na Odisseia; ela emergiu da criação e recriação das histórias, que em
ultima instancia são de ficção, mesmo que lidem com acontecimentos reais como a Guerra de
Troia. O seu lugar é a beleza da paixão de um homem por seu sonho, da poesia que a
trajetória de uma viagem fictícia que transforma um homem, da mitologia, de como o tempo
nos transforma e de como somos pequenos diante das forças da natureza.
Também é o lugar da lição, pois Ulisses cometeu a hybris, a desmedida, provocou a
ira do deus dos mares - Posseidon. A poesia épica tem uma lógica própria, que não é a da
causalidade e a da separação entre verdadeiro e falso. A literatura tem muito a ensinar aos
homens e a história, ela pode ser fonte de estudo da história,e pode usar a história como fonte
para si, mas não pode ser confundida com ela.
É também no mundo grego que a história emerge, com Heródoto o primeiro
historiador (sec. V A.C.), num exercício de diferenciação da poesia épica (como a de
Homero), pois pretendia lidar apenas com os relatos de quem viu; com o objetivo de registrar
a verdade, e por isto, os deuses e seres como ciclopes não poderão ter lugar na narrativa
histórica como sujeitos efetivos. O que não quer dizer que Heródoto não pudesse crer nestas
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coisas, mas que sua empreitada não abria lugar para estes personagens. Vamos conhecê-la um
pouco mais, no tópico a seguir.
O historiador, assim como Alice tem hábitos pouco comuns. Ele passa muito tempo
solitário com suas fontes e livros. Por horas ele se debruça sobre uma carta régia do século
XVI, com uma escrita que parece indecifrável; por dias ele busca fontes nos arquivos como
matérias de jornais, páginas de livros, imagens de revistas. Assim como Alice ele sonha com
o País das Maravilhas, isto é, com outro mundo, com o diferente, com o avesso do nosso
mundo.
Assim como a menina o historiador é seduzido pelos personagens desse mundo que
encontra nos arquivos. Assim como ela ele precisa de um caminho, de um portal, que em
Alice no País do Espelho é o próprio espelho e no caso do historiador são as fontes. Assim
como a garota ele insiste que é possível que o espelho torne-se névoa e que a fonte nos leve a
seu produtor, que é possível chegar perto deste lugar e dizer ao mundo, a nós, o que há por lá,
mesmo que os riscos sejam o nosso descrédito e o grito da rainha pedindo a cabeça dele.
Alice e o historiador são curiosos, pensam que são maravilhas a vida neste país
exótico. Mas o que torna o diferente tão maravilhoso que nos vemos no dever de registrá-lo
para que não caia no esquecimento?Além disso, como narrá-lo para alguém que não o
conhece? Podemos rapidamente trocar de personagem, substituindo Alice pelo primeiro
historiador – Heródoto – para pensarmos como tudo começou e quais os fundamentos deste
trabalho.
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homem de uma cultura baseada na oralidade, para a qual a palavra dita tinha mais valor que o
escrito, pois este poderia mentir, e no homem poder-se-ia confiar (HARTOG,1999: 289).
Nesse sentido emergem mais dois fundamentos da história é que ela acontece através
de estratégias que lhe garantem a credibilidade, seja o lugar da testemunha para a cultura
baseada na oralidade dos gregos do século V A. C. ou lugar dos documentos oficiais no
século XIX em uma cultura que deposita sua crença sobre o escrito. A história possui
mecanismos próprios de controle e distinção daquilo que é dito, para que seja lido como
crível ou não.
A história é seleção, recorte, opções de trabalho traçadas dentro de circunstancias
culturais, políticas, sociais e econômicas. Longe de ser um platô, um lugar plano onde
facilmente se edifica uma casa, a história é um terreno pedregoso, cheio de declives e desvios;
de mudanças e descrenças. Edificar nele exige escavação, estudo do solo, fuga dos pântanos,
fundamentos os mais sólidos possíveis, e como em toda construção precisa de ferramentas e
técnicas que mudam em função das culturas e do tempo.
Heródoto trabalhava com sua palavra, com o lugar de si ou dos outros como
testemunha ocular. A história trás muitas semelhanças com sua proposta, tanto é que ainda o
compreende como “pai da história”, mas será que trabalhamos como ele? Vimos que a
história distingue-se do relato de memória. Será que as descrições de Heródoto, se lidas em
relação a história atual, não estariam mais próximas de relatos de memória, ou do trabalho do
jornalista ou antropólogo? Certamente muita coisa mudou no modo de produzir a história
nestes 2500 anos. Então, como se escreve a história hoje?
“É você que ama o passado e que não vê, que o novo sempre vem.(...) Ainda
somos os mesmos e vivemos como nossos pais3.”
Parricidas! Os historiadores temem o tempo, que lhe consomem as entranhas e por isto
procedem com um duplo jogo enganador. Por um lado, “fingem” adorá-los prestando-lhe o
culto que são as suas escritas. Por outro, assim como os primeiros deuses gregos, eles matam
seus pais, para conseguirem existir. Tememos o tempo e a morte, o devir e os mortos e por
3
Trecho da canção Como nossos pais de Belchior. Letra retirada de:
http://www.letras.com.br/#!belchior/como-nossos-pais, acesso em 25/11/ 2013 as 13: 21.
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isto criamos uma maneira de aquietá-los, de dar-lhe um lugar controlado em nosso mundo – a
história.
Parricidas, por que os homens do passado são um peso demasiado sobre os ombros
dos do presente, e com os historiadores não é diferente. A história é escrita e reescrita a cada
geração. O novo sempre vem, mesmo que use velhas roupas. Os historiadores do presente,
para criar um lugar para si, precisam lidar com o legado historiográfico deixado e construir
um lugar novo.
Eles precisam “matar estes pais”, precisam arquitetar o novo, reinventar a narrativa,
tecer de outro modo o passado. Mas como em todos os filhos, os pais de algum modo
sobrevivem neles, de algum modo “ainda somos os mesmos”, como nos canta Belchior na
canção anunciada na epigrafe. É através deste jogo entre morte e vida, passado e presente que
pensaremos sobre a natureza e os fundamentos da história atual.
Retomemos Heródoto. A natureza da história continua sendo, de certo modo, a mesma
desde ele, pois a história continua sendo uma narrativa baseada na pretensão de homens de
um presente de dizer a verdade sobre o seu passado. No entanto, o que entendemos como
narrativa e verdade mudou desde o século V A.C.
Entre vários modelos de narrativa, a história lida com personagens os mais variados. A
narrativa pode ser a de um sujeito como nas biografias e nos textos de micro história, mas
também pode ser uma categoria como o mar mediterrâneo ou o capitalismo. Pode-se cruzar as
vidas dos homens com os fenômenos da natureza, ou as singularidades das decisões políticas
com as permanências de valores e representações de um imaginário. Independentemente das
escolhas do historiador, toda a história é escrita a partir do tripé: montagem, enredo e escrita,
o que acaba por aproximar a história das obras de ficção. (HARTOG, 1998:193)
Parente da ficção a história pretende a verdade, mas aconteceu um recuo nas
pretensões de narrar o passado tal qual foi. Desde o século XIX, a história criou um lugar para
si entre a filosofia e as ciências sociais, em suas buscas por fundamentações para a sua
produção da verdade. O historiador atual tem consciência da dificuldade disto, e por isto,
exercita cada vez mais o trabalho de crítica documental e de ampliação/foco das/nas fontes.
Seu trabalho pretende fazer uma leitura possível, dar uma interpretação do passado, ele deseja
estar o mais próximo da verdade possível, mas sabe da impossibilidade de chegar a ela.
Outra questão ainda mais radical é a consciência de que a verdade é histórica. Pois, a
história no seu exercício de desconstruir as certezas, acaba por duvidar de si mesma. O
historiador atual precisa estar consciente de que a verdade que produz é provisória, é
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histórica, é demasiadamente humana para ser metafísica; isto é, para permanecer sempre a
mesma.
Nesse sentido, a produção histórica da verdade é construída no interior de tramas de
poder, de jogos de interesses, dos afetos e das subjetividades e os próprios historiadores
quando escrevem a história não estão distantes disto. A história é uma ciência, mais por sê-la
não está distante da corrosão do tempo.
Desse modo, mesmo com a pretensão à neutralidade, a ciência apenas constrói
modelos, leis e conceitos que não sobrevivem ao tempo e na sua pretensão de se colocar no
lugar do real, são denunciados pela história como fabulações de um vapor barato. Pasteur
desconstruiu o modo de pensar a medicina no século XIX, com o desenvolvimento da
bacteriologia. Até então as práticas médicas eram entendidas como a verdade sobre as
doenças, sem levar em conta que o próprio médico era um transmissor ao passar de um leito
ao outro, por exemplo.
O trabalho da história é torna pública esta desconstrução, mostrando que as certezas
são contingentes. Em seu ultrarrealismo a história se pretende mais científica que a ciência.
Em sua pretensão de entender o tempo, ela denuncia os seus erros, angustias, medos,
humanidades e transformações; discutindo com isto, que o saber científico é cultural e
socialmente construído, e que suas verdades são humanas e provisórias. (REIS, 2010:18)
Frágil e provisória, a verdade histórica vê-se demasiadamente acuada. Pequenina ela
poderia definhar sem os historiadores em sua defesa. Mas há uma razão para permanecermos
vigilantes, pois como Chartier nos incita a pensar: “abandonar essa intenção de verdade,
talvez desmesurada, mas certamente fundadora, seria deixar o campo livre a todas as
falsificações, a todos os falsários que por traírem o conhecimento, ferem a memória”
(CHARTIER, 2002: 100).
Nesse sentido, entender a verdade como um produto humano, e que, como todos os
produtos humanos, ela é passível de mudança; não é equipará-la a mentira. Esquecer isto é
abrir-se ao engodo, aos interesses do poder, à redução da espessura histórica do nosso mundo,
das possibilidades de esperança e ação para um mundo distinto do nosso e ao esfacelamento
do atual sentido ao nosso ofício.
Quanto aos fundamentos que sustentam o saber histórico hoje, cabe-nos dizer
inicialmente que muito das estratégias de Heródoto permanecem as mesmas. Em primeiro
lugar, o texto do historiador é um texto que se assina. É um texto baseado num pacto
silencioso entre o autor e o leitor, que parte do princípio da integridade do autor. De que ele
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não falseou suas provas ou manipulou seus dados, de que sua pesquisa é confiável em
primeiro lugar pela honestidade do historiador.
Neste sentido, ao tecer sua trama, o historiador escreve com seu próprio sangue.
Arraigado a valores ancestrais, é praticamente impossível negar que há um resquício do
fundamento da honra na prática do historiador, da palavra dada e irrevogável. Há o desejo de
uma ética do ofício que rege as apostas feitas e que desenham as responsabilidades daquilo
que é dito.
Isso não quer dizer que todos os historiadores sejam cavaleiros da távola redonda, ou
príncipes montados em cavalos brancos; mas que a trama social no qual o ofício do
historiador está colocado baseia-se nesse princípio. Por isto, quando o leitor, especialista ou
leigo, lê uma obra de história, suas representações são mobilizadas em torno da crença de que
o autor diz a verdade, ou ao menos que é sincero em suas apostas.
Ainda como Heródoto, como nos provoca Certeau com a pergunta “aterrorizante” – “o
que fabrica o historiador, quando escreve a história?” (CERTEAU, 1982: 65) - o texto
histórico pretende ser crível e inteligível tanto quanto deseja ser verdadeiro. Um texto
histórico que não é respeitado por seus leitores, que não se faz compreender, que não recebe
crédito da comunidade de historiadores tem pouco ou nenhum lugar em nosso mundo.
Certeau com a mesma pergunta, nos liga a Heródoto pela vontade de credibilidade e
nos afasta dele, pois os modos de produzir esta crença, atualmente, são outros. Os
fundamentos do saber histórico atual estão em sua aproximação com a ciência, seja pela
vontade de ser uma, dentro da trama do saber/poder que nos convence de que a ciência seria
um saber superior aos demais; seja pelo modo como desde o século XIX ela faz
aproximações, bebe de suas fontes, apropria- se de seus métodos e conceitos.
Conforme Certeau4 (1982) a escrita da história é produzida a partir de três partições
que se imbricam. Toda história é escrita na articulação entre o lugar social do historiador, um
conjunto de práticas de pesquisa e a tessitura da narrativa. Compreender como a história é
fundamentada nos exige compreender os modos como cada uma destas instâncias determinam
o modo como a história é produzida.
4.1. Um lugar.
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A discussão que trago neste momento baseia-se no texto A Operação historiográfica de Michel de Certeau, do
livro A escrita da história. Tendo em vista a densidade do texto, torna-se difícil localizar as partes que estão
sendo resumidas aqui a cada ponto, por isto evitarei localizar as páginas que estou tratando a cada momento.
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5
Entenda-se política num sentido bastante amplo, o do desejo próprio engajado nas mais variadas instâncias.
Deste modo, praticamente todas as relações sociais são políticas na medida em que são produzidas junto a modos
de conceber a vida e geri-la coletivamente.
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É o estudo da história das palavras.
7
É a ciência que estuda as moedas antigas.
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tarefas cada vez mais requisitadas por uma sociedade que está passando a se preocupar com
explicações racionais sobre o tempo e as transformações.
Aquilo que se deve guardar, e o que não, são definidos por estes grupos. Assim os
registros que se tem dos acontecimentos, base para a produção do documento histórico, foram
previamente definidos, e são algo com o qual o historiador vai precisar aprender a lidar. As
fontes, neste sentido, já definem em parte o que se pode pesquisar ou não, tendo em vista que
não se produz história de algo que não se tem de onde buscar informações.
De modo semelhante, os procedimentos para tratar este material foram sendo
incorporados pelos historiadores no seu trabalho de interpretação dos registros do passado. O
historiador em sua formação passa a trabalhar com séries documentais, passa a pesquisar
sobre um mesmo tipo de arquivo por anos e seu olhar especializa-se na interpretação deste
resíduo do passado. Com um olhar treinado, o historiador desenvolve habilidades de caça às
informações e interpretação do outro. Nisto baseia-se seu saber, uma sensibilidade aguçada
para as pistas e sinais do que se foi.
Coletadas as pistas, o procedimento seguinte seria a pesquisa dos lugares de produção
destas informações. Os historiadores precisam estar atentos para a diferença entre o que se
escreve num documento oficial e uma carta a um amigo; a diferença entre uma pintura
encomendada, patrocinada e a pintura particular, por exemplo. Atento a estas diferenças, e
correlacionando e cruzando as informações o historiador tece redes que o permitem produzir
significados para os acontecimentos do passado.
Por fim, o historiador em sua formação lê o que foi escrito sobre a história. Mas dentro
da impossibilidade de tudo conhecer, as instituições de formação definem leituras que guiam
esta formação. Deste modo, algumas interpretações da história são mais conhecidas que
outras de acordo com os lugares da instituição da qual se faz parte. Determinadas leituras são
mais aceitas que outras, e com isto, no momento da pesquisa, esta formação reverbera nas
escolhas realizadas pelo historiador, esteja ele consciente delas ou não.
A parte que se dá a ler/ver do historiador é uma narrativa. Por mais que se pretenda
científica, a história tem seus parentescos com a literatura, pois seu modo de exposição é o da
produção de significado através de uma trama. O “bom” historiador é aquele que consegue
produzir o “efeito de real” no leitor, de provocar-lhe na imaginação a “ilusão referencial”, de
que o que está sendo dito aconteceu. Ao mesmo tempo, ele precisa, em todo momento, ter em
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conta que o acontecido é o fiador da verdade histórica, e que para certificar o leitor disto, ele
vale-se de referências e citações (CHARTIER, 2009: 28). Dito de outro modo, Para fugir dos
riscos do parentesco com a ficção, foram desenvolvidos sistemas de escrita que são próprios
da ciência, num esforço de criar na obra, bases para sua mínima objetividade.
O historiador apresenta as fontes das quais ele pesquisou as informações; ele as
confronta entre si e com a bibliografia. Ele cita os autores que já trataram do tema, usando-os
como base para legitimar o seu próprio discurso. Seu trabalho é lidar com cronologias,
recortes no tempo que ajudam a produzir os significados desejados. Relativamente arbitrários,
estes modos de tecer o tempo criam linhas de causa e efeito, sucessões que ligam as varias
dimensões do recorte espacial e temporal escolhido, preenchendo as lacunas daquilo que
desconhece com uma escrita bem articulada em torno de um problema de pesquisa, as fontes e
a bibliografia.
É o modo como o historiador consegue produzir um texto com poucas “brechas”,
seguindo adequadamente às regras e procedimentos estabelecidos pela instituição que está em
jogo no julgamento de seu trabalho. A história fundamenta-se, portanto, na mediação entre
um trabalho próprio, a produção de um texto que se assina: um trabalho individual; e as
tramas de um trabalho coletivo, produzido pela instituição histórica em seu constante processo
de reinvenção.
Como faziam os mitos, mas com procedimentos bem distintos, a história nos produz
sentido para a passagem do tempo, para as transformações, para o desconhecido. Ela nos dá
espessura histórica, nos aponta uma origem, a partir da qual pensamos e nos deslocamos de
nós mesmos através do modo como lidamos com o que se foi. De natureza narrativa e
fundamentada no controle da instituição histórica a história é um saber científico, se assim
quisermos chamá-lo, que desterritorializa a própria ciência ao produzir um saber sobre o
tempo e seu devir.
A história, por fim, é um ritual. Como nos provoca Certeau, ela é o lugar que nosso
mundo produziu para lidar com os mortos. Ordenando o passado através de uma narrativa
controlada, o historiador cria um lugar para o passado para chamá-lo de Outro. É um modo de
abrir espaço para os vivos, pois com a narrativa histórica dizemos já não somos como eles, ou
que somos os herdeiros deles. De ambos os modos, narrando os mortos dá-se através da
linguagem, um lugar para eles e abre-se espaço para que os vivos reinventem a vida.
Referencias bibliográficas
18
CARROLL, Lewis. Alice no país do Espelho. Trad. William Lagos. Porto Alegre. L&PM,
2010
CARTROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Coimbra, Quarteto, 2001.
CERTEAU, Michel de.. In_ A Escrita da Historia. Trad. Maria de Lourdes Menezes.Rio de
Janeiro. Forense Universitária,1982.
CHARTIER, Roger. A Beira da Falésia: a história entre certeza e inquietude. Trad. Patrícia
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Texto complementar
R. B.: [REIS, José Carlos. O desafio Historiográfico. Rio de Janeiro, Ed FGV,2010:
25-26]
garantiram a sobrevivência. A história revela as suas raízes temporais, que são tão
caleidoscópicas quanto as dela, que as suas autorrepresentações mudaram tão frequentemente
quanto as dela. O apreço do político também é compreensível, pois a história, habilmente,
jamais lhe diz que os tempos lhes são desfavoráveis, oferecendo-lhes raízes no passado mais
longínquo, profundas, consolidando poderes frágeis, visando alianças e proteções
demasiadamente humanas. A história, como conhecimento da mudança, explica todos a eles
mesmos. Ela dá sucessividade, historicidade, lugar e época, nomes, datas, aos saberes. Ela
desintegra a sua ambição de verdade universal, global, total, absoluta, final. A história revela
os seus fracassos, decepções, frustrações, traições. Ela mostra o transcurso, a passagem do ser
ao novo ser.
ATIVIDADES