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3 3 | julho 2017
NÃO VAMOS AO HIPER, NOS MUDAMOS PARA O
HIPER (E LÁ PERMANECEMOS POR QUATRO DIAS)
A atual sedução por máquinas e tecnologia, especialmente aquelas que têm a capa-
cidade de interagir/comunicar, ou seja, máquinas “inteligentes”, desperta uma produ-
ção simbólica na arte que lida com processos de tomada de consciência sobre cone-
xões entre seres vivos e máquinas. Tratamos aqui de descrever um pouco da vivência
de um acontecimento/dispositivo que provoca essas conexões, o Hiperorgânicos.
Apresentação
Cada vez mais, a pesquisa acadêmica nos di- WE DON’T GO TO HIPEROGÂNICOS, WE MOVE
reciona para o compartilhar das experiências THERE (AND STAY FOR FOUR DAYS) | The
e processos com o que mais nos seduz como current seduction of machines and technology,
expressão da vida: o fazer artístico como ex- especially those that have the ability to interact/
pressão do conhecimento compartilhado. 1 communicate, that is, “intelligent” machines,
awakens a symbolic production in art that deals
Em 2011 escrevemos um artigo sob o título
with processes of awareness about connections
Tecnologia e arte: a estranha conjunção entre
between living beings and machines. Here we
“estar vivo” e subitamente “estar morto”, em
describe a little of the experience of an event/
que tratamos de discutir a atual sedução pela
device that causes these connections, the
produção de máquinas, especialmente aquelas
Hiperorgânicos. | Art, technology, biotelematics,
que têm a capacidade de interagir/comunicar
hiperorgânicos, NANO.
e, de preferência, surpreender as pessoas; má-
quinas “inteligentes” que parecem ter vida.
Convivemos cada vez mais “com máquinas que, além de interagir e comunicar, inventam e ino-
vam, e, para mantê-las vivas, basta ligá-las numa fonte de energia elétrica que iniciam suas fun-
ções pré-programadas. Da mesma forma, um simples toque torna tudo subitamente ‘morto’”.2
Ao mesmo tempo, esse convívio desperta uma produção simbólica na arte tecnológica compu-
tacional atual, produção que lida com processos de tomada de consciência sobre “estar vivo”,
sidade precisa estar em sintonia com a sociedade Uma das premissas do laboratório é permitir
neste momento acelerado de absorção e produ- aos seus participantes explorar por meio de
ção tecnológica; e reconhecer no trabalho do ar- processos individuais uma sensibilidade cole-
tista e pesquisador Roy Ascott, pioneiro da arte te- tiva amparada pelas redes e pelas instalações
lemática, bases teóricas e práticas que norteavam e seu entorno. Para o laboratório é muito cara
nossas pesquisas. Foi com essas certezas que des- a ideia de ecologia híbrida e a integração de
montamos nosso pequeno laboratório, descemos diversos agentes (naturais e artificiais) para a
com tudo que tínhamos para o hall de entrada emergência do que identificamos no concei-
do prédio e montamos um espaço laboratorial
7
to de “organismos estéticos”.8 As diferentes
aberto, para o qual convidamos artistas, alunos, temáticas dão o tom das inter-relações entre
professores, além de toda a comunidade local, artes visuais, musicais, tecnologia, ciência e
para passar algumas horas trocando experiências natureza, que podem compor o cenário de
e mostrando/compartilhando seus processos ar- eventos produzidos pelos artistas, investiga-
tísticos e pesquisas. Foi tão bom, tão intenso e dores, cientistas…9
produtivo, que o dia poderia ter-se estendido por
muitas horas e aqueles que ali estavam não per- Considerando a efervescência de questões que
ceberiam ou não se incomodariam. Era o início de surgem durante o laboratório aberto e a necessi-
um projeto, de um fazer e refletir sobre processos dade de trocar não apenas as experiências práti-
artísticos em contextos colaborativos de investiga- cas, mas também as reflexões sobre os processos,
ção científica e tecnológica. Foi o primeiro de, até após a segunda edição, foi incluído um simpó-
o presente momento, sete Hiperorgânicos. sio ao final de três dias de práticas. Trata-se não
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apenas do momento do diálogo, do exercício do Chegamos ao evento com malas, de mudança
discurso, mas também da oportunidade de trazer temporária, para oferecer e compartilhar esse
convidados específicos para abordar temas pon- momento de possibilidades. Não vamos ao Hiper;
tuais e promover uma expansão de perspectivas nos mudamos para o Hiper, e lá permanecemos
a partir das propostas dos participantes. São or- por quatro dias. Apenas quatro dias. À medida
ganizadas mesas temáticas como fóruns de dis- que o laboratório se monta, se instala, cada par-
cussão com o intuito de estimular uma reflexão ticipante encontra um espaço físico onde vai po-
contextualizada na pesquisa contemporânea em der abrir sua bagagem. Essa ocupação mobiliza
arte. Muitas vezes são realizadas trocas via in- todos, e espaços são conquistados e comparti-
ternet com colaboradores de diversos pontos do lhados a partir das trocas, dos processos. Obser-
planeta, dando continuidade ao sistema de fluxos vamos esses movimentos como coreografias afe-
dinâmicos aplicados no laboratório aberto. Em tivas, em que os corpos se projetam, se recolhem
várias edições do Hiperorgânicos foi possível con- e se subdividem. Esse espaço de laboratório tem
tar com o incentivo e parceria da Rede Nacional um limite mínimo, que possa todos abarcar, mas
de Pesquisa – RNP10 para viabilizar e impulsionar não tem um limite máximo. A expansão ocorre
os sistemas de conexão em rede, como no caso naturalmente. Os participantes vão-se espalhando
da terceira edição, realizada no Palácio Capanema pelos lugares − íntimos, externos, físicos, virtuais.
junto com a Funarte. O que oferecemos como estrutura são concei-
tos, ideias, estratégias que atuam como pon-
Organismos emparelhados tos de convergência, lugares de encontro. Esses
Primeira proposição: a arte é um tipo de co- lugares formam o núcleo das ações. Um deles
nhecimento; segunda proposição: este tipo relaciona-se com o servidor da rede, a porta de
de conhecimento utiliza com sucesso, com entrada e de saída de dados. Também é um ponto
eficácia, algumas formas de conhecimento de expansão, que reflete as diferentes dimensões
como o processo discursivo, como o processo exploradas naquele espaço-tempo de convergên-
intuitivo, como o processo tácito.11 cia. O servidor é máquina que integra os proces-
sos e os distribui − o sistema neural do organis-
Uma pré-produção sem saber exatamente o que mo. Outro ponto de convergência está na atitude,
esperar, o que se vai encontrar, o que vai ser pe- na generosidade. Cada um que se integra no pro-
dido de cada um. Uma preparação laboratorial cesso do laboratório aberto se abre, abre sua mala,
em que se deseja prever necessidades, materiais, se expõe. Sujeito e obra/processo se disponibilizam
máquinas ou ferramentas, possíveis caminhos. É enquanto conjunto: nós (processo + sujeito) deseja-
quando construímos mentalmente o processo, mos conhecer vocês (processo + sujeito). As expec-
imaginamos possíveis ações, acontecimentos, tativas parecem exageradas e são redimensionadas,
antecipamos dificuldades, organizamos crono- os detalhes se revelam e crescem. A capacidade de
gramas e nos disponibilizamos. O Hiperorgâni- cada um de compartilhar e de se concentrar está
cos não é apenas um evento, é um deslocamento diretamente relacionada com o sentimento de sa-
de tempo e espaço, para um lugar onde é pos- tisfação. O olhar dos outros guia nossos olhares,
sível se conectar, pensar junto, produzir e ouvir, somos seduzidos pelo desejo de apreender. É jus-
sentir e imaginar. tamente nos momentos de conjunção, de sinapse,
Após três dias de ações, passamos para o mo- essa busca como tentativa de revelar possibilida-
mento de escuta, reflexão e análise dos processos. des inerentes aos seres vivos que as máquinas hoje
Pensar a prática artística nesse contexto de expe- tentam imitar, ou melhor, que tentamos imitar por
rimentação compartilhada é também promover a meio de máquinas/dispositivos tecnológicos. Nesse
expressão desse fazer pelo discurso. Não é preciso sentido, esforços oriundos de ambientes científicos
moldar o discurso, mas é necessário tê-lo. Cada de- e artísticos se aproximam, se contaminam e se en-
poimento revela um pouco do invisível, daquilo que riquecem com novas trocas e parcerias. Esse não
permeia todo o Hiperorgânicos, constituído durante é um cenário corriqueiro, muito pelo contrário. As
os três dias de laboratório aberto. O simpósio fun- aproximações ocorrem normalmente a partir de
ciona como uma reverberação de ideias, de conhe- provocações dos artistas, muitas vezes estimuladas
cimento coletivo que estimula iniciativas de cará- por programas ou projetos científicos com recursos
ter investigativo, exploratório e transdisciplinar. A destinados também à inovação e produção cultu-
escuta se torna mais ativa e favorece proposições ral, o que ainda é raro no Brasil.
que poderão dar continuidade ao trabalho reali- O projeto Hiperorgânicos adota o formato de
zado durante o laboratório.
laboratório aberto e simpósio, como já des-
crito, mas, além da estratégia metodológica,
Inter-relações estrutura-se sobre os eixos conceituais inves-
O ser humano convive desde sempre com o tigativos: arte, hibridação e biotelemática
mistério da vida: um sopro, luz, ou energia que enquanto tecnologia, processo e campo de
faz com que identifiquemos a existência de ani- investigação, respectivamente − todos entre-
ma no nosso entorno. Muitas vezes nos perce- cruzando arte, ciência e as tecnologias da infor-
bemos dedicando atenção a aqueles seres com mação/comunicação. Entendemos a biotelemática
os quais conseguimos interagir ou perceber in- como a possibilidade de conectividade entre orga-
teração, seja entre corpos ou mentes, no físico nismos naturais e artificiais – homem-máquina, plan-
ou no virtual, no visível ou no invisível, no orgâ- ta-máquina, inseto-máquina etc. Grande parte
nico ou no maquínico. Temos mais dificuldade das experimentações artísticas propostas para
de nos sensibilizar pelas coisas inanimadas com o Hiperorgânicos envolvem questões relativas à
as quais não conseguimos interagir ou comuni- biotelemática, e esse é assunto também direta-
car, como por exemplo vegetais e minerais, ou mente relacionado com a noção de vitalidade
até mesmo o ar que nos rodeia. 12
nas investigações em arte e tecnologia.
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Público no Museu do Amanhã, obra Nós Abelhas, de Malu Fragoso, maio 2017 – Acervo NANO
Acreditamos que ao reunir arte e ciência e fa- zes, à lógica programada das máquinas e dos
zer uso dos recursos tecnológicos disponíveis, sistemas por ela operados. Esse vem a ser o
por meio de um pensamento lúdico e sensível, mote de todo Hiperorgânicos.15
novos horizontes se abrem e possíveis univer-
Breve histórico do projeto Hiperorgânicos16
sos se antecipam. Na interseção arte, ciência e
tecnologia, vemos um campo potencial para Como já mencionado, a primeira edição ocorreu,
pensar um mundo que se tornou complexo em 2010, no hall dos elevadores do Prédio da
de forma demasiada, cujo avanço tecnológi- Reitoria da UFRJ, na Ilha do Fundão, e teve a
co abre portas à vontade humana, ao mesmo duração de apenas um dia, com a participação
tempo em que esta também se dobra, por ve- dos alunos da Escola de Belas Artes (licenciatura,
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de 2017, laboratórios de investigação artística, 2 Fragoso, Maria Luiza P. G. Tecnologia e arte:
científica e tecnológica da Escola de Belas Artes – a estranha conjunção entre “estar vivo” e
EBA, do Laboratório de Métodos Computacionais subitamente “estar morto”. Revista Palíndromo
em Engenharia – Lamce e Laboratório de (online), v. 4, 2011: 59-67.
Realidade Virtual – Lab3D, da Coppe/UFRJ, do
3 Núcleo de Arte e Novos Organismos, núcleo
Laboratório Lamo 3D – FAU/UFRJ e do Laboratório
laboratorial instituído em setembro de 2010,
do Amanhã do Museu do Amanhã. Os campos atua no âmbito da graduação e do Programa
de investigação do evento foram: performance, de Pós-Graduação em Artes Visuais/PPGAV
arte sonora, interfaces vestíveis, ecologias da Escola de Belas Artes – EBA/UFRJ. Tem
híbridas, transculturalidade, bioarte, intervenções, por finalidade desenvolver pesquisas prático-
telemática, vídeo, robótica, arquitetura, teóricas na área de artes com foco específico
biofeedback, microcontroladores, gambiarras em sua intersecção com a tecnologia e a
e DIY. Explorou a utilização de tecnologias de ciência. A motivação desse grupo de pesquisa
reconhecimento de gestos; a realidade aumentada; é consolidar um espaço transdisciplinar para
a realização de experiências no campo telemático; a reflexão e o fomento de novos modelos
o desenvolvimento de arquiteturas que cognitivos com base na prática e em trocas
potencializem a noção de presença em campo dialógicas com foco nas artes assistidas pelas
aumentado; a experimentação e interação com tecnologias da comunicação/informação.
materiais inteligentes para construção de interfaces
4 Lispector, Clarice. Água viva. São Paulo: Círculo
vestíveis; e a experimentação com sistemas
do Livro S/A, 1973: 16.
híbridos com a relação sistêmica e sensorial entre
organismos naturais e artificiais. Paralelamente foi 5 Impossível deixar de mencionar: cinco
montada uma exposição com trabalhos realizados anos (1994-1999) de trabalho de pesquisa e
no NANO e por seus coordenadores, que teve a aprendizado junto ao grupo Corpos Informáticos
duração do Hiperorgânicos, mas que foi vista por e a orientação de Maria Beatriz (Bia) Medeiros.
centenas de visitantes que circulam pelo Museu Grupo e fuleragem; quatro anos de trabalho
diariamente. Processos artísticos se espalharam pelo de pesquisa e aprendizado junto ao grupo
Museu em intervenções e performances resultantes WaWrWt depois Poéticas Digitais (1999-2003)
das pesquisas desenvolvidas e apresentadas ao e a orientação de Gilbertto Prado; nove anos de
longo do laboratório aberto. O simpósio reuniu grupo de pesquisa Rede em colaboração com
três mesas temáticas: Sistemas Verdes, Ambientes Hellen Cristina de Souza, Marinez Cargnin-Stieler
e Ivanete Parzienello do Need de Tangará da Serra
Sensíveis e Transensoriais.
Unemat; atualmente e desde 2010 coordenando
NOTAS o NANO junto com Guto Nóbrega.
1 Fragoso, Maria Luiza P. G. Arte e vida: tecnologia 6 Carlos Augusto (Guto) Nóbrega é artista e
como ferramenta de integração cultural. In: pesquisador, professor doutor credenciado
Venturelli, S.; Rocha, Cleomar. Mutações, no Programa de Pós-Graduação em Artes
confluências e experimentações na arte e tecnologia, Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ. http://
Brasília: Editora PPGArte UnB, 2016: 45-51. cargocollective.com/gutonobrega.
13 Ascott, Roy. Is there love in the telematic Maria Luiza (Malu) Fragoso é artista, educadora,
embrace? Art Journal. Computer and Art: Issues doutora em multimídia pelo Instituto de Artes
of Content, v.49, n.3:241-247. 1990. da Unicamp e pós-doutora pela ECA/USP,
14 Ascott, Roy. Fluxo biofotônico. Unindo realidades coordenadora do grupo REDE – Arte e Tecnologia
virtual e vegetal. In: Maciel, Katia; Parente, André Redes Transculturais em Multimídia e Telemática
(Ed.). Redes sensoriais – arte, ciência e tecnologia. (2004), e do NANO (2010), e trabalha nos
Rio de Janeiro: Contra Capa, 2003. domínios da arte, ciência, tecnologia, e natureza.
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