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“ FAMBA TE KUZA “

( Prologómenos p/ A HISTÓRIA DE QUÉ )


by B. M.

Estava uma tarde de verão, quentíssima, quase irrespirável, quando eu entrei na quitanda do
Bguno à hora do costume, fim do dia para o petisquinho habitual. Como sempre aquela hora, estava
casa cheia, a abarrotar. Só lá nos fundos, mesmo junto às privadas e não era questão de cheirinhos,
porque aquela sempre foi uma casa higiénica, uma única mesa, individual sobrava vazia, mesmo ao
lado daquela que a maltinha tradicionalmente utilizava. Eu é claro, aproveitei-a logo sem hesitação.
Reparei contudo que na mesa ao lado a maltosa dissimulava sorrisinhos enviesados e os olhinhos
rolavam de uns para os outros, silenciosamente como berlindes sobre encerado e todos compunham
uma expressão do tipo – espera lá, que não perdes pela demora...
Já noutras pretéritas ocasiões eu reparara que aquela malfadada mesa, quase sempre ficava
vazia, estivesse a casa cheia ou não. Até parecia mandinga ou uma espécie de maldição, mas nunca
perdera tempo a interrogar-me sobre essa questão. Era uma daquelas merdas. Hoje porém, ao atentar
nas suas expressões maldosas, de sorrisos fugidios e ares mal dissimulados de gozo, inquiri com
curiosidade:
- Atão, o qué qu’se passa ó muadiés? Não me digam qu’este sítio tem mesmo mandinga,
han?
Toda a gente riu de gozo, que se fartou até que um deles, mais apiedado me chamou a
atenção para o facto de, mesmo por cima da fatídica mesa, se encontrar um daqueles grelhadores
eléctricos para moscas e outros insectos. Uma daquelas maquinetas que emitem um fulgor
arroxeado que, vá-se lá saber porquê, são tiro e queda, atraem como que miraculosamente toda a
espécie de bicharada avoadora. Vai-se a ver é alguma espécie de emissor clandestino de feromonas,
o que, se atentarmos aos direitos inalienáveis dos animais devia de ser proibido. Certo é, que assim
que qualquer bicharoco se aproxima das imediações é imediatamente absorvido pela influência
daquela merda e não pensa em mais nada que não seja em poisar e assim que o faz, é
automaticamente estorricado por uma descarga potentíssima. Com efeito, se atentarmos bem, dar
para lembrar que o tampo daquela mesa está quase sempre coberto por uma infinidade de pequenos
cadáveres negros, torrados que o Bguno ou o pai, diligentemente varriam para o chão, com uma
patada de mestre, há muito ensaiada, sempre que por qualquer motivo se aproximavam daquelas
imediações.
Aquilo para mim não tinha espiga nenhuma. Mal eles sabiam o que eu já tivera de mamar, na
pauta da vida. Por isso ri com eles e dispus-me a contar-lhes um velho episódio que me ocorreu à
cabeça, precisamente a propósito de merdas esquisitas e até bizarras que, por força das
circunstâncias um gajo se via às vezes, na obrigação de engolir.

Isto passou-se ainda nos velhos tempos de África, quando eu era moço novo. Não nasci lá,
ao contrário de o que muito boa gente pensa, mas fui para lá ainda muito puto, kandengue, muana-
muana. De modos que por lá cresci, no meio do mato, natureza selvagem, coisa viva, descalço e nú
a maior parte do tempo, como os nativos. Dando mergulhos no rio e caçando lesmas e pequenos
bichos, subindo ás árvores e colhendo fruta, abundante e sem dono. Lá na Zambézia havia uma
época do ano em que sempre pela mesma altura era-mos acometidos por uma incrível praga de
gafanhotos. Mas era uma coisa impressionante, como eu nunca tinha visto, nem por cá as pessoas
estão habituadas ou fazem uma mínima ideia. Eram aos milhões, aos biliões mesmo, tenho a
certeza. Caíam em bloco sobre as plantações e em questão de minutos varriam tudo. Só sobravam os
ramos despidos das árvores. Mesmo na cidade ficava tudo coberto de verde, como um manto. Eram
uns bichos enormes pelos padrões europeus, pelos africanos até nem eram nada de especial. Tinham
para aí o comprimento do dedo indicador de um adulto e eram de uma cor verde alface, muito viva,
quase fluorescente. Quando aterravam, cobriam tudo, estradas, passeios, jardins, parques,
esplanadas, enfim tudo. Não se via um palmo de chão. Parecia que a terra estava viva e tinha
mudado de cor. O chão ficava movediço e as pessoas a andar faziam ploc, ploc, ao pisar aquela
merda e a esmagá-los debaixo dos pés. Uma coisa pavorosa. E aquilo durava dias seguidos, pelo
menos três ou quatro, no mínimo. Podem imaginar o prejuízo. E a paranóia. Para os putos era um
gozo pegado. E para os blacks também. Andavam ziguezagueando entre os automóveis, no meio da
estrada, circulando lentamente com o rodado dos pneus esverdinhados daquela massa nojenta e
peganhiça, com enormes sacos de plástico nas mãos, colhendo às braçadas mãos cheias de
gafanhotos lá para dentro e rindo que nem uns perdidos enquanto falavam excitadamente aos gritos,
uns com os outros. Era engraçado aquele período. E como disse, repetia-se inexoravelmente todos
os anos, pela mesma época. Não me lembro já qual, mas devia de ser altura de colheitas a julgar
pela paranóia e o enfado dos agricultoras. Mas como lá havia pelo menos duas colheitas por ano,
quando não eram três, também não era grave por aí além. Era daquelas coisas que já faziam parte do
enredo. Toda a gente contava com aquilo e era encarado como um facto consumado. Não havia nada
a fazer, excepto encolher os ombros resignadamente e andar prá frente.
Para os narros, como já disse, era uma festa, um autentico festim. Uma fuga ao cardápio
vulgar, de farinha mandioca, feijão ou arroz. Eu via os meus criados, enfim os serventes, o mainato,
o moleque e o cozinheiro, todos entusiasmados depois da caçada, lá para os fundos do quintal, na
zona que lhes estava reservada, discutindo em cafreal aceleradamente, entrecortado com palavras
portuguesas, a maneira como haviam de cozinhar aquela murraça e palavra de honra, fazia-me uma
confusão do caraças.
Aproximando-me dizia-lhes meio na barraca:
- Vocês são mesmo preeto, pá! Não tem vergonha? Comer gafanhoto, arre!...
Eles riam-se, claro. Faziam uma grande barraca e esfregando as mãos no estômago,
ripostavam com os seus dentes alvos e os olhos rolando de gozo nas carantonhas de azeviche:
- Xiii minino, num sabe o qui é bom! Tem qui prová. Milhó qui camarão, jura mêmo... cinco
chaga di Cristo... Xiii... – e riam que nem uns perdidos – Ha, ha, ha...
E o Francisco, o macho que fala, como o meu velhote sempre lhe chamava, com pouco mais
de meia dúzia de palmos de altura, no seu jeito arrevesado, meio sério meio no gozo, ajuntava:
- Mio não é preto não! Preto é carvão, minino, já li disse. Mio é chocolate, café com leite,
coisa boa, di lambê os beiço e chorá por mais, arre... – e todos riamos, bem dispostos – Ha, ha, ha –
mais risota, pra curtir.
Até que, com o correr dos anos, assistindo sempre aquela festa, aprazada todos os anos para
a mesma data, a curiosidade foi mais forte e acabei mesmo por sentar ao lado deles e dizer:
- Vamo lá ver essa merda! Vocês não tá me enganando, não? Mio qué prová essa
xxpsialidade mêmo, coisa di prreto, arre...
E eles, em grande festa, felizes da vida por me terem ali com eles numa de camaradagem e
pura amizade, sem preconceito nem maldade, sem coisa de branco:
- Xiii minino, maravilha, vai prová e gostá, tou le jurando... inté vai querê repeti’... xêe...
jura mêmo... cinco chaga di Cristo...
E assim foi. Sem mais nem aquela. Sentar em roda junto com eles, lá bem nos fundo do
quintal, junto à fogueira, debaixo da grande mangueira, oculto pelo tronco, para a minha velha nem
reparar e toca de fazer a festa. Nesse dia o cardápio era farinha de mandioca com gafanhoto e molho
de coco, regado com vinho de palma e depois umas boas goladas de aguardente de cana. Vou-te te
contar... Festim dos deuses. Mas deuses africanos. Oxolufã, que é Oxalá já velho, pai de Xangô,
Oxóssi e Ógun, Orixás maiores, Santa Trindade, Exú, nosso Satã, senhor das encruzilhadas, da
traição e descaminhos, Yemanjá, a virgem, D. Janaína, senhora das águas, Oloruns, Yansãs, Omolus,
Oyás, senhoras e senhores dos montes, dos brejos, dos ventos, das trevas e do combate e das farras,
dos trovões, dos raios e coriscos, do beijo, do sexo e do amor. Só pode mêmo... deuses divertidos e
curtidões, coisa rara, coisa boa demais, maravilha, festa africana, sem entraves nem pecado, sem
paranóia. Boa comida e bebida, sexo, farra e gozação. Puro gozo do corpo e dos sentidos, como eles
sempre tinham garantido. Deuses importados no coração dos escravos negros, na fetidez e
mortandade dos porões das caravelas negreiras, para Cuba, Brasil, New Orleans e Atlanta,
estabelecendo a ponte do sangue, da alegria, da musica e do amor, através dos ares e oceanos, por
esse mundo monstro – Eparrei! Laroiê! Axé! Minha boa gente, seja de gente de bem ou de bença...
E não é que sabe mesmo a camarão, aquela merda, hãn? Só tem mesmo que arrancar as
patas, segurar pela cabeça, passar pelo molho e morder mesmo junto aos dedos. Depois acrescenta
uma bolinha de miolo de mandioca ou arroz e manda tudo abaixo com uma boa golada de vinho de
palma ou de arroz, ou nipa, ou mapira, ou lá o que for, de acompanhamento. Ôba, festa boa!
Em seguida só mesmo um cafézinho e uma sesta pra desmoer, quem sabe apimentado por
uma nhepa verdadeiramente africana, se houver uma mulata linda de pele olorosa, cor de canela,
cheiro de trevo, calor de forno, nas imediações.

É que África é mesmo assim. Fica-te no corpo, por dentro da pele. Aferra-se à memória,
come-te o crânio, a alma, o coração. Nunca mais vais esquecê-la. Palavra de honra. Um verdadeiro
africanista, é-o para sempre. Morre com ele. Torna-se até chato para as pessoas e para a família,
sempre remoendo aquela merda, aquela saudade, espécie de amor que ficou mal resolvido, sempre
roendo, doendo, se insinuando, por dentro do corpo, debaixo da pele. É curioso, porque acontece
com todos. Não é um caso isolado aqui e além, de um velhadas ou outro já senil, que ficou com
aquela coisa atravessada. Nada. São todos iguais. Centenas, milhares de gajos despejados,
retornados, corridos de África, que ficaram com aquela saudade imensa, aquela nostalgia poética,
aquele langor particular. Todos eles ficam com os olhinhos a brilhar, o coração a bater acelerado,
uma espécie de nó na garganta que não deixa engolir e uma necessidade de afogar aquilo em álcool,
que eu vou te contar... não conheço africanista, sertanejo ou retornado que não tenha histórias de
caça fabulosas, para contar, ou outras, histórias de putas, histórias do mato, noitadas à roda da
fogueira, calor e mosquito, langor.
Eu então, andava um bocado apanhado com aquela cena toda. É que era tudo tão diferente,
tão desproporcionado, tão a dar para o gigantesco. A flora e a fauna, para começar. Ali tudo estava
vivo, exuberante. Sentiam-se as plantas a respirar, a suar, sempre cobertas de gordas gotas de
humidade debaixo daquele aquele calor asfixiante. Era uma coisa impressionante, nunca vista. Os
bichos então, sobretudo os insectos eram desmesurados. Qualquer aranha, gafanhoto ou lesma era
três ou quatro vezes maior e mais ameaçador que qualquer espécie semelhante, da Europa. Isto para
não falar das cobras, dos macacos, dos mabecos de tantas espécies e tão diferentes e todas tão
perigosas, aparentemente, que ou bem um gajo se habitua e releva ou então não consegue sair de
casa. Entra em parafuso. É que o mato é um mundo. Basta um gajo sair cem metros para lá dos
limites da povoação e retrocede no tempo, mil anos. Só a capital está um pouco mais protegida, isto
é já vive neste século. Tem carro e mota, ar condicionado e àgua corrente. Mas as restantes cidades
estão perdidas no tempo e no espaço. Há lá locais, no meio do mato em que os nativos vivem em
plena idade da pedra. Para fazer fogo tem de se por de cócoras a esfregar dois pauzinhos, à espera
da faísca, para chegar-lhe uma mechazita de erva seca e soprar-lhe em cima. É como no cinema.
Qualquer coisa de fantástico. Tem outros sítios em que as crianças nunca viram brancos, na vida, só
ouviram mesmo falar. Um gajo aparece de surpresa, no jipe, a criançada desata a chorar, de medo,
corre tudo a fugir, se esconder, pensa que é aparição.
E um gajo aterra ali de repente, caído do céu, sem preparação de nenhuma espécie, sem livro
de instruções. É de ficar maluco. Eu felizmente adaptei-me rápido. Era moço novo. Queria era farra.
Sobretudo porque não tinha que trabalhar. O dinheiro aparecia fácil, como se escorresse das árvores.
De maneiras que também deixei de estudar. Para quê? Do que é que ia servir-me ali a matemática,
as físico-químicas, a gramática. Eu estava-me bem a cagar para essas merdas. Queria era meter-me
no jeep e desandar para o mato, com a espingarda, munições q.b., alguns víveres essenciais e um
bom guia nativo. Felizmente os velhos eram compreensivos e tinham meios para suportar as minhas
manias. Só não lhes agradou muito quando souberam que eu fumava suruma que nem um louco,
mas aí já não tinham hipótese nenhuma de me agarrar. Eu já estava imparável.

Por essa época passava a vida em casa do Jonas, meu grande amigo e iniciador, a bem dizer
nessas lides. Se bem que já antes, lá no sul, na capital, na Ponta do Ouro e no Xai-Xai, onde
inicialmente passava as férias grandes, já me tinha iniciado, vez por outra, nos fumos. Mas de facto
aquela merda, que rodava por ali, não se comparava nem de longe com as qualidades soberbas do
norte. Exceptuando a D.P., Durban Poison, aqueles stiks finíssimos, que só davam mesmo para um
charro, envoltos em papel caqui, importados da África do Sul, uma passa verde muito clara e boa, o
resto era tudo uma boa merda.
Mal acordava, lá para o meio dia, ia para casa dele, pouco distante da minha. Mandávamos
logo abaixo um charutão de erva que nos deixava dormentes para o resto do dia. Depois
estendíamo-nos a ouvir um bocado de música. Era extraordinário porque aquela merda espevita-nos
os sentidos todos, parece um gajo que tem uma carola deste tamanho. Altamente. Depois vem a
fome. Um apetite devorador. Aí, levantavamo-nos e fazíamos o ataque da praxe à geleira.
Felizmente a D. Anhita, a mãe dele, estava sempre de prevenção. A geleira estava sempre a
abarrotar. Até porque lá em casa era bastante frequente aparecerem de repente e sem aviso uma
caterva de amigos dos filhos e ficarem para comer e para dormir, dois ou três dias, quando não era
por dois ou três meses. Mas eles estavam habituados. Aquilo era boa gente do norte, hospitaleira e
de grande alimento. Bastava olhar para o tamanho do pai dele e do irmão. Isto sem falar dos gatos e
dos cães. A D. Anhita tinha a pancada dos animais. Não podia ver um bicharoco abandonado,
carente ou com cara de fome. Levava-o logo para casa e empanturrava-o de comida. É claro que o
animal nunca mais lhe largava as saias. Só gatos, havia lá em casa alguns trinta e cães, eram para
cima de meia dúzia, sem contar os papagaios, as catatuas e demais passarada, que passavam o dia
em alegre chilreada e cantoria. Era uma casa de doidos. Mas eu gostava daquilo. Havia também os
nharros, no quintal. Para além da criadagem normal que existia em todos os lares, normalmente o
cozinheiro, o mainato e o moleque, ali ainda acumulavam com os aprendizes e os protegidos dos
velhos dele. É que o velho Ronçalves era dentista e protésico afamado, pelo que tinha sempre na
garagem meia dúzia de aprendizes na sofisticada arte das dentaduras postiças. Com as histórias e
aldrabices que eles estavam sempre a contar uns aos outros em cafre, landim ou qualquer outro
dialecto, as gargalhadas e a barulheira infernal das maquinarias mais o chinfrim da bicharada,
ninguém se entendia. Mas a malta estava na maior.
Pelo que, a seguir, já se sabe, era tempo de fumar outro charuto. Mas eram uns cigarrões
enormes, enrolados em papel pardo, de embrulho, porque lá em África não havia mortalhas. Aquela
gente sabia lá o que era isso. Às vezes quando alguém chegava de férias, da metrópole, lá trazia uns
livritos de mortalhas, mas aí era preciso colar três ou quatro juntas, para atingirem o tamanho
habitual, o que tornava os charros muito frágeis. Estavam sempre a abrir e a precisar de mais cuspo.
Portanto o melhor era enrola-los logo em papel caqui. Era mais tóxico mas muito mais prático e
como o que contava era a pedra final, adiante.
Lá para o fim do dia, com a fresca dirigíamo-nos para a baixa, até ao Côco que era o bar
mais fixe da cidade e o único que tinha ar condicionado. Era todo apainelado em madeira nobre e
não tinha janelas, o que o tornava um lugar discreto e confortável. Ficava no rés do chão do Hotel
Chuabo, ao tempo um dos melhores e mais modernos de toda a África Meridional. Frequentemente
estava por lá o gigantesco Álbarro do Bombarral, ex governador da província, ex negreiro, prática
normal nesses tempos, quando a autoridade chegava a qualquer povoação no meio do mato e enchia
um camião de pretos, na ponta da espingarda indo depois revende-los para as minas da África do
Sul, a um tanto por cabeça, gente essa da qual nunca mais se ouvia falar, constava até que daí
provinham as sementes da sua vasta fortuna, ex pisteiro, ex caçador e uma das pessoas mais ricas da
povoação, dono de vastas fazendas, industrial do açúcar, exportador de copra, um verdadeiro
africanista dos sete costados. Era um gajo curioso, enorme, quase nem se conseguia movimentar tal
era o seu peso, arrastando lentamente o seu metro e noventa com o auxílio de uma bengala de pau
preto com castão de marfim, voz de comando, suando em bica, sempre com uma toalha enorme à
volta do pescoço com que enxugava o rosto e a papada, gargalhada pronta e bote mortífero.
Aparentemente odiava a hipocrisia, pelo menos estava sempre a afirmá-lo em altos berros, de modos
que cortava na casaca daquela gente toda e como conhecia os podres de toda a gente da cidade e era
mais rico e poderoso que a maioria deles, humilhava os gajos todos e todos o temiam, porque o gajo
não tinha papas na língua e se lhe dava na telha, era capaz de descompor e arrasar completamente
qualquer figura do burgo, quanto mais grada, mais gozo lhe dava. E o cabrão era mesmo malcriado
e chamava os burros pelo nome. Ninguém ficava abaixo de corno, de aldrabão, de canalha. E depois
expunha extenso rol de misérias familiares, cambalachos políticos, falcatruas na banca, golpes
baixos de toda a sorte. O gajo conhecia os podres de toda a gente, desde pelo menos o principio do
século. Era temido e adulado e estava-se cagando para eles todos, mais as suas reverencias, as suas
vénias, os sorrisos amarelos, os manguitos pelas costas.
Era uma alegria para a malta freak sempre que ele entrava no bar, primeiro porque oferecia
logo uma rodada à malta toda, quando não era uma grade inteira, de cerveja, dependia do humor do
gajo na ocasião e depois, por causa das histórias escabrosas com que ele nos entretinha. Era das
poucas pessoas que apreciava a nossa companhia, se exceptuarmos o grande poeta Sebastião Alba,
que com frequência também se sentava e bebia connosco. Isto é, nas ocasiões em que se encontrava
na cidade, porque a maior parte do tempo passava-a na temba, embebedando-se de pura cachaça de
cana, com os nharros, em casa das amantes africanas que o gajo tinha. Chegava a desaparecer
durante semanas inteiras, deixando o patrão e o serviço às aranhas, a família europeia em pânico,
toda a cidade comentando à boca pequena as suas escapadelas e escândalos. Era outro gigante, com
uma estatura intelectual e humana raras, que estava-se bem cagando para todos os restantes, a
sociedade e os costumes. Era o que bem se pode considerar um cidadão livre, um verdadeiro mestre.
Com a sua grenha despenteada, os seus óculos redondos de intelectual, a sua barbicha à Trotsky.
Uma sumidade. Poeta laureado, estudado no programa oficial da Faculdade de Letras, mas um
verdadeiro popular. Costumava afirmar a meu respeito, com aquele sorrisinho breve, cínico e
malandro, que eu tinha um perfil Kafkeano, o que na sua boca era um elogio desmedido e nunca
deixou de estimular-me para o exercício das belas letras, a que sabia dedicar-me eu, nas horas de
ócio que das putas, das patuscadas e das drogas, me sobravam. Veio a rebentar muitos anos depois,
da forma livre e selvagem que sempre escolheu, como vagabundo, ao abandono e ao relento, sobre
um banco de jardim, vítima da hemoptise, da fraqueza e dos maus tratos a que sempre subordinou o
corpo, na procura insana de um estado de alma ou espírito mais elevados. Saravá meu camarado!
O João Forte também por lá aparecia todos os dias à hora do cocktail, pois se morava no
próprio edifício. Todo aquele quarteirão, o mais central de Qué, pertencia à firma Montego & Giron,
que eram também os proprietários do hotel, do enorme super mercado, o primeiro do género em
toda a província, onde se vendia no mesmo espaço, desde porcas e parafusos a automóveis de topo
de gama, de meia dúzia de alfinetes para a costura, ao tractor para a lavoura, do fato completo ou
vestido de gala para dama e cavalheiro, aos legumes frescos e a fruta da época, um portento. O
restante do quarteirão era ocupado por apartamentos de aluguer, desde o estúdio de duas peças, para
solteiros como era o caso do João, até aos apartamentos de quatro, cinco e seis assoalhadas. O Giron
já tinha falecido havia um ror de tempo, mas o Montego, por uma questão de consideração para com
o antigo sócio que o ajudara a erguer o seu invejado império, continuava a manter a designação
original. O amigo Forte era um gajo porreiro, um bocado mariconço no gesto, que não na atitude,
um bocado medroso, pois viam-se as precauções que tomava na aproximação à maltosa freak,
sempre em bicos dos pés e a olhar por cima do ombro, com receio das bocas e das repercussões
sociais ou mesmo profissionais, pois trabalhava na alfândega e tinha um tacho a defender. E naquele
tempo, dos fachos, a coisa era a doer. Os cabrões não dormiam em serviço. Gajo que pertencesse ao
quadro, tinha que piar fininho e andar bem dentro da linha. Senão punham-lhe a PIDE às canelas e
era uma vez chaval. Destruíam-lhe a carreira, ostracizavam-no socialmente e daí a encarcerarem o
gajo e faze-lo desaparecer para sempre dos registos e da memória das pessoas, era um saltinho de
nada, um bochecho.
Não obstante, o gajo gramava de fumar as suas charradas e era dos poucos que tinha quase
sempre uma banana de Kota Kota lá em casa, quanto a mim a melhor passa do mundo, que adquiria
com regularidade em Belantayre, capital do Malawi a escassos trezentos quilómetros de Qué e onde
o mercado e o consumo de boom, suruma, m’bange, era livre e consentido pelas autoridades.
Custava sete qwachas e meia, o equivalente aí a uns trezentos paus, na altura. Uma bananinha
daquelas, com cerca de um palmo de comprimento e uns dois centímetros de diâmetro, dava à
vontade para um mês, para uma ou duas pessoas à media de três a quatro charros por dia. É que o
artigo era tão bom, que bastava um zepelin, que é uma boga mais pequena que o dedo mínimo e tão
fininho quanto ele, para deixar dois gajos a morrer de cut’s por uma data de horas. Êta, passa do
cacete! Lembrar-me que o vi de rastos, rindo desalmadamente, na praia de Zalala, a tripar que nem
um doido. Parecia um bebé, todo rosadinho, muito loiro e pequenino, completamente passado dos
cornos., a rir-se perdidamente alucinado e a marchar de quatro patas.
Veio a ter um mau fim, coitado, quando a roda do jipe em que seguia pisou uma mina e o
deixou feito em picadinho. Ainda hoje me pergunto o que teria sido feito da sua extraordinária
discoteca, porque era sem dúvida nenhuma o gajo que melhor música tinha, naquele fim de mundo.
Muitas noites passei eu em sua casa curtindo um bom som, uma passa excelente e a companhia
alegre de duas mulatas, descaradas e oferecidas, após aquelas longas tardes de cerveja e langor,
como só em África é possível.
Foi este moço que me apresentou aquele que se viria a tornar no meu grande amigo e um dos
meus mentores, nas artes e na vida, o grande Stichinni, um dos gajos mais loucos e práfrentex que
eu jamais conheci. Naquela idade sobretudo, mal saído da adolescência, o facto de privar, ser
considerado e servir de confidente a uma figura daquelas, era para mim uma honra ímpar. Devo
confessar que, directa ou indirectamente ainda hoje, de quando em vez inesperadamente, detecto
ainda longínquas influências da sua presença, do seu contacto e convivência, na minha pessoa e
vida. Este era um colosso que não cabia por aquela porta, um gigante ruivo, poderoso e com uma
vibração mental que intimidava toda a gente. Na noite em que o conheci, pressenti logo nele algo
estranho e indefinível, qualquer coisa no seu rosto que não batia certo, mas não conseguia precisar.
Depois descobri que era a ausência de sobrancelhas, que ele tinha rapado completamente e lhe dava
ao olhar uma intensidade de loucura, uma áurea de fanatismo. Além disso tinha bochecha perfurada
por um enorme alfinete, mas não era um punk avant la lettre, simplesmente usava-o assim para
abater uma malfadada dor de dentes, segundo me disse, sorridente, quando fascinado pela sua áurea,
o interroguei a respeito. Era um percursor das medicinas alternativas e das técnicas yogis do oriente,
o zen budismo, a sociologia política, a antropologia, a poesia concreta, entre mil outras coisas, como
vim a descobrir com o tempo. Ao tempo trabalhava num banco, para onde a família o tinha
recambiado depois dumas barracas colossais, versando o pacifismo, o abandono das armas e a
reconciliação com o inimigo, temas mais que tabus, roçando mesmo a traição, a que ele se tinha
dado ao luxo, incorporado no exército, do qual fora evidentemente expulso, dado como incapaz,
através da psiquiatria, não sem antes tratarem de lhe tentar rebentar de vez com os cornos através da
terapia dos choques eléctricos e das doses massivas de drunfos, calmantes e psico- trópicos. Não
serviu de muito porque ele também era um gigante, um ser humano livre, inalcansável para eles e
intocável pelos processos rudimentares e primitivos com que o sistema persegue todos os que se lhe
opõem, discordam ou combatem.
Também não terminou bem, conquanto creia que ainda é vivo. As ultimas vezes que o vi
arrastava-se descalço e nú, por baixo de um velho sobretudo militar, mendigando umas moeditas
para comprar vinho a granel, pelas velhas ruelas da baixa lisboeta. Ouvi dizer que foi recolhido pela
Mitra. Saravá para ti também, velho irmão.
Também nos acompanhava frequentemente o Zé Pollo, que era um gajo muito especial. O
único de nós todos que não fumava as passas nem consumia qualquer outra droga, nem sequer
tabaco fumava, mas era o mais freak de todos. Tinha uma pancada do caraças, o gajo. Muito
marcado pelo martírio do irmão mais velho que se tinha imolado pelo fogo, recusando
terminantemente ir para a guerra e pegar em armas contra o povo nativo. Era filho de uma alta
autoridade, o pai era governador do Alto Mulocué, mas quem olhasse para ele pensaria que era um
bandalho. Vestido de andrajos, como os nossos velhos caracterizavam as nossas opções e quase
todos nós, de resto usávamos, a cabeleira enorme, roçando os ombros, recusava-se a conviver com
toda a gente, excepto os freaks. Era um gajo teso, obsecado pela ginástica. Passava boa parte do dia
a fazer exercícios com pesos, de modos que tinha uma musculatura impressionante e já provara que
não era só para vista, embora fosse, como não podia deixar de ser, pacifista. Mas, sujeito a
provocação, não se encolhia e já mais que um daqueles cobardolas de sociedade, que quando em
grupo e aproveitando-se do escuro e da calada da noite, sempre que se cruzavam com algum de nós,
sozinho, sempre aproveitavam para nos insultar – Surumático! Drogado! Pulha! Filho da puta! – e
outros insultos do género, o tinham provado na carne, que o gajo não se ensaiava nada para lhes ir
aos cornos. De resto, andava mesmo desejando que o provocassem. Quando sozinhos, nunca o
faziam. Cortavam-se, baixavam os olhos e passavam rapidinho, de cabeça em baixo. As noites,
passava-as nas putas, na temba, para o que frequentemente me convidava a fazer-lhe companhia. Eu
quase sempre ia, porque gramava altamente do gajo e era mesmo amigo dele, mas nessa época ainda
tinha alguns preconceitos rácicos, em relação às pretas, de maneiras que a maior parte das vezes não
fodia. Fazia-me confusão ir prá cama com uma gaja, sem uns preliminares, sem lhe dar uns beijos
na boca e tal e com as blacks, sentia um bocado de repugnância. Aquele cheiro a catinga, muito
forte, não entrava comigo. De maneiras que aguardava pelo gajo cá fora, au clair de lune, enquanto
ele refocilava a lagardère, com as gajas.
Muitos mais amigos nos reuníamos ali à mesa bebendo e conversando noite adentro,
planificando patuscadas, viagens, golpes e assaltos diversos, e seria fastidioso enumerá-los aqui
todos, até porque este não é o local nem esta a história digna desses relatos, dessas figuras e desses
eventos.
Depois de jantar normalmente ia-mos ao cinema e depois às putas. Uma queca na temba
custava 20$00, nessa época. Eu não apreciava particularmente as pretas porque tinham um cheiro
muito intenso a catinga, os lábios demasiado grossos e perdiam a elegância demasiado depressa,
caindo-lhes as tetas até ao umbigo à pala dos partos sucessivos e da falta de cuidados. Ainda vinha
muito europeizado, sexualmente. Com o tempo acabei por tomar-lhes o gosto, como todos.
Sobretudo às mulatas, de dengue, mornidão e langor, fortes dentes brancos, sábios dedos longos,
xibiu fervente de sabor a mel e trevo, suficientemente e com muito mais competência, imortalizadas
nas sagas sem igual de mestre Jorge Amado.
Normalmente encontrávamos lá pelos bares da temba, a maior parte deles simples barracos
com tecto de zinco, mas onde a cerveja corria gelada e o camarão frito ou grelhado bem fresquinho
e saboroso, temperado com azeite de palma, água de côco e maningue piri-piri, encontrávamos
quase sempre, dizia eu, o pai do Jonas que era um putanheiro do caraças. Depois do trabalho no
consultório, era com as putas que ele ia espairecer. Com ele era certinho. Tiro e queda. Era muito
rara a noite em que não estava lá. Só se houvesse uma calamidade ou estivesse mesmo muito
doente. Era ele que nos pagava as fodas sempre que nos encontrava por lá. O velho Ronçalves,
gordo e confortavelmente instalado no seu cadeirão de verga, que nem uma aranha no centro da teia,
limpando o suor da testa e calva, a sua cabeça única em forma de torpedo. Primeiro convidava-nos
para o petisco e depois de bem comidos e bem regados, na hora do cafézinho e da aguardente de
cana, piscando-nos o olho de satisfação e orgulho, metia-nos umas notas na mão e recomendava-nos
as últimas novidades em termos de mulatas, coisa que ele estava sempre a par. Era uma espécie de
paraíso, aquela vida. De tal maneira que em poucos meses eu me tinha esquecido completamente da
Europa, da civilização, da televisão, da família e dos amigos. Eu queria lá saber. O que eu queria era
curtir.

Foi por esse tempo que eu conheci a Marcela. A Marcela era uma cabrita clarinha, esguia e
tesuda, de olho azulado e suave carapinha loira. Isto sem falar na pele doirada dela, do sorriso
travesso e do seu cheiro de diaba louca, de cabra em cio, de mulher sem enfeites. Marcela era uma
africana arraçada de holandês, descendente directa de cruzamentos consanguíneos entre uma antiga
colónia de tedescos fugidos de Pernambuco e aportados à Zambézia lá pelos idos do séc. XVII ou
XVIII, onde deixaram bem visível a sua marca, sobretudo na excelência das mulatas, mulherões
altas de quase metro e oitenta, cabelo loiro e olho azul, que contrastando com o doirado escuro,
quase canela da pele delas, faziam qualquer macho endoidecer.
Eu então, andava delirante. Nunca conhecera uma fêmea assim. Só cama, langor, carnada.
Só beijo, suor e dentada. Delírio, posse, encantamento. Muita gente me aconselhou para ter cuidado.
Que as mulatas sabiam feitiço. Tinham mandingas poderosas. Sobretudo as mais velhas, as kotas.
Fizesse atenção de nunca aceitar comida delas. Nunca aceitar convite para ir comer, fazer petisco,
em casa delas. Nada prá boca cozinhado pela mão de preta velha, as mãe delas. Muito perigoso.
Assunto de urgente! Nada!!
Tô lhe avisando – diziam eles – Você não sabe da história de fulano? Homem sério, pai de
família com três filho criança, saiu de casa pra ir viver na temba com uma mulata. Largou a mulher,
os filho, a vida boa, caiu na sarjeta à conta de mandinga de mulata. Alcoolizou. Foi despedido do
emprego. Vizinhos e conhecidos viram a cara de lado, fingem que nem conhecem. E casos destes
havia muitos. Não era um nem dois, coisa isolada. Nada disso, era coisa frequente, sina de europeu
que sucumbia aos amores ilícitos, desconhecidos, com tempero de artes mágicas africanas. Coisa
muito perigosa. Verdadeiros dramas de faca e alguidar. Toda a gente me avisou. Mas eu estava bem
cagando. O que eu queria era comer ela. Nunca tinha provado carne assim. Coisa mais gostosa,
mulher mais linda, eu tava mêmo em crer que ali houvesse feitiço, sim! Mulher assim não podia ser
real. Só podia ser coisa mêmo do Demo, do demiurgo, do grande rasteirador. Mas era demais, eu
hein? Puto novo, cheio de sangue na guelra, branco bonitinho e bem cheiroso, bem vestido, com
automóvre, dinhêro no borso, bom de cama oh, caí-lhe mêmo no goto, vou te contar... Ela também,
fez a parte dela. Proporcionou-me noites de maravilha. Eu nem sabia se estava no céu ou no inferno.
De resto, nem queria saber. O que eu não queria era que aquilo acabasse. Andava um bocado
obsecado. Também, era novo, não sabia. Hoje vejo com mais clareza. É claro que ela tinha outros,
só podia. Aquilo era mulher de muito alimento. Nem eu, na altura tinha estofo, andamento e
experiência para aguentar um mulherão daqueles, autentica amazona. Mas ela dizia que sim. Jurava
que não. Que só me amava a mim. Que eu era o único, o homem da vida dela. Que queria casar
comigo. Ter filhos meus. E eu embarcava na cantiga dela. Porque dava-me gozo acreditar naquilo.
Insuflava-me o ego, enchia-me de orgulho. Sentia-me um gigante com três metros de altura. “A
million bucks”, como dizem os americanos. É preciso não esquecer que eu ia muito ao cinema...

Também acompanhava às vezes com o chalado do Pelicano. Este era uma espécie de
protegido do Jonas. O puto não batia lá muito certo da carola, de modos que o Jonas, com a sua
costela de justiceiro, impedia que abusassem demasiado da boa fé do moço. Com o tempo acabou
por lhe ensinar uns truques e ele transformou-se num pirata do cacete. Mas nesse tempo ainda era
um bocado totó. Estava sempre a rir-se com uma expressão apalermada e deixava escorrer a baba
pelos cantos da boca. Estão a ver o género. Ora acontece que o Pelicano tinha uma irmã muito boa.
Mas boa como o milho. Uma gaja mesmo vistosa, gostosa, bem vestida de cara e de corpo. Só muito
mais tarde é que a malta veio a saber que o cabrão do Pelicano é que lhe tinha arrombado os tampos,
quando ainda eram miúdos e viviam no meio do mato. Mas nesta altura do campeonato já ela fazia
figura de grande senhora nos circuitos da capital. E alto lá de quem lhe faltasse ao respeito. Levava
com o irmão em cima, que podia ser retardado mas era um verdadeiro armário que pesava para cima
de noventa quilos.
Eu já o conhecia de vista daqui e d’acolá, mas onde aprofundei mais a relação com o gajo e
nos tornamos verdadeiros compinchas foi na nossa primeira trip. Foi assim daquelas merdas meio
de súbito, sem estar nada programado. Soubemos que estavam lá pela cidade uns gajos da Beira
carregados de ácido e como até eram conhecidos de um dos nossos companheiros, até decidimos
cumprir com os conformes e compramo-lhes umas cup’s na boa, em vez de lhes cairmos em cima e
confiscarmos o material, que normalmente era a maneira como a gente agia, para evitarmos os
abusos da malta de fora.
Depois cada um meteu uma pastilha na boca e fomos os três para a beira rio, à espera que
aquela merda subisse. Tinha-mos pensado em alugar umas almadias aos pretos e curtirmos a remar
um bocado por entre os ilhéus fronteiros à cidade e se nos desse na cabeça podíamos mesmo fazer
uma petiscada em Inhassunge. Logo se via.
Estávamos nós a meio das negociações quando aquela merda começou a subir. Assim, de
repente. O Pelicano desatou logo a rir-se, feito parvo e a andar aos tombos por ali. Até parecia que
não se conseguia equilibrar, de modos que amparava-se às árvores e ria, ria que nem um perdido. Eu
e o Jonas olhava-mos um para o outro meio surpreendidos e ao sentir aquela sobrecarga doida de
energia a subir-nos pela espinha acima e aquela espécie de dentada na base do crânio, os frémitos
nervosos e toda a potência mental e física que aquela merda espantosa proporcionava e de certo
modo contagiados pela histeria do outro e o súbito bombardeio de fabulosas sensações psíquicas, os
flashes fotográficos, a telepatia, eu sei lá... desatamos também a rir a bandeiras despregadas, de um
modo histérico e convulsivo, dobrados e agarrados ao estômago, de tal modo que os blacks com
quem estávamos a regular o aluguer das canoas, olhavam espantados uns para os outros sem
saberem bem como reagir à nossa súbita e estranha hilaridade. Mas também já sabiam que branco
era esquisito, portanto estoicamente, aguardaram sem preocupação. Havia muito que estavam
habituados a só se preocupar com o que lhes dizia respeito. Em assunto de branco, melhor nem se
meter. Como na história do macaco, sabe? Não ouve, não vê, nem fala...
Às tantas lá serenamos um pouco e no meio de desculpas e novas risadas aos arranques, lá
demos algumas moedas aos narros e arrancámos, cada um na sua almadia, rumo ao centro do rio e à
fabulosa sensação de poder e liberdade que nos dominava. Foi fantástico. A água parecia mercúrio
liquido, espessa e gorda como se aguentasse o nosso peso, em pé. De resto foi uma impressão tão
poderosa aquela, de que se quisesse me poderia levantar e caminhar por ela, deixando no rasto uma
senda de pegadas, que não hesitei e fi-lo mesmo. É evidente que me afundei no mesmo momento e
dei por mim de pangaio na mão esbracejando aflito, por respirar. Mas também foi coisa de um
segundo só porque a sensação da água no corpo era maravilhosa, pelo que poisei o remo no barco e
nadei poderosamente algumas braçadas. Depois trepei de volta pela amurada e fazendo sinal aos
outros dirigi-me para os ilhéus em frente, na intenção de explorar os canais entre eles. A bem dizer
não passou disso, da intenção, porque lá chegando perto os mosquitos eram tantos, mas tantos, mas
era coisa de milhões, de biliões mesmo. Nunca vi nem senti tanto mosquito na vida e gordos,
autênticos vampiros que nos cobriam o corpo todo, aferroando-nos de bicadas. Tivemos que
mergulhar imediatamente para não sermos comidos vivos, juro por deus. Nunca vi nada assim. Para
conseguirmos sair dali teve de ser debaixo de água, só com a cabeça e uma mão de fora para
empurrar a jangada. E mesmo assim tínhamos que mergulhá-las constantemente para afastá-los um
momentito. E a seguir mergulhavam de novo em núvens compactas, sobre nós, chiça. Saímos dali
com as caras cobertas de sangue das chapadas que demos em nós próprios. É claro que isso foi
motivo de outra barrigada de riso. Na verdade já não me lembro bem do resto da trip. Mas a
impressão geral que me ficou, foi a de que passei a puta da tarde a rir. De tal maneira que no dia
seguinte doíam-me os maxilares e todos os músculos da face.
Gostámos tanto daquela merda que assim que acordámos fomos logo à procura dos gajos da
véspera para adquirirmos mais trips. Foi por um triz porque o muadié, que se chamava Faneca B.
estava mesmo de arranque, de volta para a Beira. Ia no avião da tarde. Lá ficamos com meia dúzia
de cup’s cada um. Eram uns mata borrões cor de rosa aos quadradinhos, cada um com uma gota
mais escura no meio. Nesse dia estava também o Calica connosco. Outro velho amigalhaço, que não
muito depois haveria de embarcar para Timor, de onde a velha dele era natural, na miragem de
afastá-lo das más companhias e influências negativas, dos amigalhaços drogados. Se ela pudesse
adivinhar coitada, o que se estava a perfilar no horizonte, naturalmente teria pensado duas vezes
antes de enviá-lo para o inferno. Contudo, parece que o gajo até teve sorte e conseguiu escapar aos
massacres posteriores à independência. Fugiu, como clandestino num barco pesqueiro e depois de
passar as passas das antípodas, veio a encontrar refugio seguro na Austrália. Mas a coisa, acho que
esteve mesmo preta, para ele. Até chegou a trabalhar na recolha de lixo, para conseguir morfar.
Foi mais ou menos a receita da véspera. Só que hoje íamos mais prevenidos, levando com a
gente a aparelhagem de música dele e alguns discos. Tínhamos pensado ir nas almadias até aos
batelões de copra que estavam estacionados no meio do rio e lá fazer a festa, com os nharros e
algum chop/chop que levávamos junto. É claro que ninguém se lembrou que a meio da trip ninguém
ia ter fome, mas isso também não era coisa preocupante. Podíamos sempre dar a comida aos blacks.
Também não contamos com as marés, de modos que estava uma correnteza do caralho. Mas isso
também não era o tipo de coisa que nos fizesse hesitar. Toda a gente sabia nadar na perfeição.
Lá embarcamos todos. Eu e o Calica íamos numa almadia um pouco maior, para duas
pessoas e levávamos a aparelhagem entre o meio dos dois. Vencemos a corrente com facilidade,
aproximando-nos a boa velocidade dos batelões. Os outros iam ligeiramente mais atrás. Uma vez lá
chegados um de nós jogou a mão a amurada do barco, para encostarmos bem e proceder a manobra
de retirar a aparelhagem para bordo. Simplesmente, como ninguém da gente era marinheiro de
profissão, nem sequer embarcadiço, cometemos o erro primário e colossal de não contar com a
direcção da correnteza. De maneira que assim que o gajo jogou a ganfia ao barco grande, a canoa
deu de bordo e começou a meter água que era uma coisa parva. Eu bem ouvia os gritos dele:
- A aparelhagem, Zé! Olha o aparelho, caralho!
Pois é. Eu bem olhava e via. O enorme monólito de plástico escuro a resvalar borda fora, o
barco a virar-se, a gente todos molhados, já fora de bordo e com água pelo pescoço. E o engraçado é
que aquela merda toda parecia estar a acontecer em câmara lenta. Por mais rápido que eu me
mexesse e eu bem tentei, não deu jeito. Joguei-lhe as mãos com toda a força e arte de que fui capaz.
Simplesmente o aparelho escapou-se-me entre os dedos, com uma pinta desmarcada. Foi um bring
down realmente, mas não era aquilo que nos ia estragar a trip. Acabamos todos mais uma vez a rir
que nem uns perdidos. O próprio Calica teve que render-se à evidencia. Não havia nada a fazer e o
melhor era aproveitar o resto da tarde e curtir o melhor possível. E de facto podíamos tê-lo feito.
Nada nos impedia. Demos uns belos mergulhos, nadamos e tal, mas havia qualquer coisa que não
batia certo. Parecia que aquela merda não estava a bater na cabeça como era suposto. De modos que
às tantas, depois de muita hesitação e conversa e tal. E que sim e que não, optámos por nos fazer à
estrada e dirigirmo-nos ao aeroporto, para tentar apanhar o Faneca B. Antes do gajo arrancar, para
lhe apresentarmos a nossa reclamação e exigir o nosso dinheiro de volta.
Se pensássemos um pouco melhor, teríamos reparado que estávamos acelerados que nem uns
loucos e a tripar à força toda. Mas não, lá fizemos uma data que quilómetros a pé, para chegarmos
ao aeroporto com os bofes na boca, a tempo de catar o gajo. E catámo-lo de facto. Mas ele foi o
primeiro a chamar-nos a atenção para o que era evidente. Que estávamos realmente a tripar e forte.
Mas a gente estávamos na nossa e não queríamos nem saber. De modos que era um impasse. Com
uma paciência do caraças, tenho hoje que reconhecê-lo, o gajo soube afastar-nos dali, sem dar muito
nas vistas, porque a gente estava por tudo já e tínhamos entrado por ali adentro aos gritos, em plena
sala de embarque no aeroporto e por pouco não nos deteve a segurança, apenas porque estavam
entretidos no bar a mamar umas cervejinhas bem geladas, como se ele nos estivesse a dar a banhada
descaradamente e ele, calmamente, com ponderação lá tentou explicar-nos a situação, fazendo-nos
ver que estávamos a tripar pelo segundo dia consecutivo e que aquilo era mesmo assim, havia a
habituação própria do organismo, não podíamos esperar uma pedrada exactamente igual logo no dia
a seguir, mas que se quiséssemos ser justos, tínhamos que confessar que não era muito normal fazer
mais de cinco quilómetros a pé em menos de um foguete e estarmos ali cheios de energia a exigir-
lhe uma coisa ridícula, como era o estarmos a pedir-lhe o dinheiro de volta quando estava na cara
que estávamos acelerados até dizer chega, mais encarnados que uns diabos e com uma genica do
cacete. Foi complicado, mas lá acabámos por nos entender a todos. Ele inclusivamente disse que
estava na disposição de nos devolver o guito se a gente lhe restituísse as trips restantes e tudo bem,
amigos como dantes, mas que era justo cobrar-nos as que já tínhamos no bucho e que não podíamos
negar o efeito. Houve ainda quem o negasse, sobretudo o Jonas que era de todos o mais perigoso,
mas às tantas reconhecemos o ridículo da situação e fomos mas é todos para o bar beber umas
cervejolas bem geladinhas, que a malta estava era com uma sede do caraças depois daqueles calores
todos, da caminhada e das discussões. Foda-se.

Se este relato tivesse a intenção de se transformar numa novela propriamente dita,


justificava-se neste momento eu utilizar aquele estafado subterfúgio literário, do flash back e
voltava atrás, ao início da narrativa, no bar do Bguno e intercalava a estória com novas cervejas
frescas, algumas anedotas apropriadas e umas poucas de frases em discurso directo, no interesse de
tornar a narração mais objectiva e coerente e verosímil. Como porém eu não aspiro a nenhum
Nobel, Cervantes, Pessoa ou outros prémios mais pacatos, vou-me bem cagar nas regras oficiais da
novelística de bolso e no fazer render o peixe, seguindo de pavio a história toda, sem mais demoras
nem variações.
Vai daí, estava a rapaziada como de costume a beber uns copos na esplanada do Refeba, a
meio da marginal, frente ao majestoso rio dos Bons Sinais, não muito distantes daquela gigantesca
casuarina a que se diz ter o Vasco da Gama mandado amarrar a caravela, quando por aqui passaram
à caça dos cafres e na demanda do malfadado percurso para a Índia, quando nos aparece o Pelicano
todo esbaforido, com o tal sorrisinho de retardado, estampado na fronha e sem mais delongas
arrasta-nos a mim e ao Jonas, um pouco afastados do restante grupo e desabafa a seguinte novidade.
Ao que parecia estavam por lá, pela cidade uns gajos de L.M. (Lourenço Marques, como
nesse tempo se chamava ainda a distante capital), o que só por si já era quase um acontecimento e
tudo apontava, segundo a conversa dele, que os gajos estavam mesmo era à procura de erva,
suruma, boi cola, m’bange, boi vermelho, abreolho, ampericôto, que eram tudo nomes nativos, que
designavam a mesma merda.
Aqui há que fazer um pequeno esclarecimento, para as pessoas ficarem mais a par da
situação local. Acontece que todo o norte de Moçambique era célebre pela qualidade e variedade da
sua erva, ou boi, ou m’bange, ou boom, mais outros sinónimos como os acima utilizados para
suruma, havia dezenas de designações para a passa, consoante o local e o dialecto. O caso é que a
Pide, a polícia política, lá nas Áfricas andava mais ocupada a fazer frente ao terrorismo, dado que
para todos os efeitos estávamos em plena guerra colonial, embora nós, nas cidades nem déssemos
por isso, se exceptuarmos algumas notícias bastante vagas e altamente censuradas, quanto a uns
ocasionais massacres lá para o norte, que às vezes apareciam nas páginas de menor importância dos
jornais, por isso mesmo sem qualquer interesse nem credibilidade, junto da população, estando-se
bem a marimbar em perseguir e reprimir as escassas centenas de meninos bem, brancos, que à falta
de melhor entretenimento, gostavam de fumar aquela merda.
Ora é bem sabido que o uso habitual e prolongado daquele tipo de substancias, aniquila
fortemente a vontade e o espirito de iniciativa, tornando abúlicos os seus consumidores. Eu que o
diga, que até ali na vida, sempre tivera tudo fácil, de bandeja. A posse das coisas, a facilidade com
os amigos, o usufruto das namoradas. Filhinho único, qualquer desejo meu era de imediato realizado
pelos kotas. Uma papa. Isso tornou-me vaidoso, arrogante, um puto insuportável, com a mania que
era melhor que os outros. Sempre me considerara intelectualmente superior à maioria. Tinha
pruridos de sangue azul. Um aristocrata do banlieu. Fôra um wonder boy, isso era inegável, um
portento no desenho desde tenra idade, poliglota com facilidade para as línguas e as pronuncias,
dominando com mestria a língua pátria, as minhas redacções e trabalhos de campo eram famosos na
escola. Nunca precisara de estudar, passando com uma perna às costas todos os graus do curso
liceal. Tudo fácil, tudo simples. Toda a gente me augurava um futuro brilhante, como artista,
jornalista até mesmo escritor.
Até começar a fumar os canhangulos. Tenho de admitir, hoje, que aquilo acabou por me
arruinar a vida. Nada que eu não procurasse por minhas próprias mãos. Mas o facto é que, para lá
dos tempos iniciais de deslumbramento e magia, começou aos poucos a instilar-me o veneno da
dúvida, a falta de confiança e de coragem. Por fim o medo, a psicose, a paranóia. Não foi fácil. Para
além de acabar com todas as restantes perspectivas. A boa sociedade fechou-me as portas,
acabaram-se os convites, os sorrisos, a hipocrisia. Com isso podia eu bem. Na família também tudo
se detiorou. A minha relação com o velho foi ao ar, assim como o brevet de aviação que ele me tinha
prometido se eu passasse o ano. Desisti dessas merdas todas. O que eu queria era ir para o mato,
longas temporadas, viver em acampamentos de caça, fumar m’bange, beber cachaça e derrubar
cabritas no meio do capim.
Todas estas coisas, multiplicadas por “n” famílias, até iam de encontro ao interesse deles, da
bófia, do estado, do poder, porque pelo menos assim, não nos envolvíamos em greves, marchas de
protesto e outras reivindicações sócio políticas, com que os estudantes na Metrópole lhes faziam a
cabeça em merda. Contudo, perante o inevitável, não deixavam de proceder a uma ou outra
detenção, quando a coisa se tornava mesmo flagrante e abusiva e o respectivo processo judicial,
com a correspondente ida a tribunal. Regra geral dava em nada, porque os meninos eram todos
filhos de altas individualidades do regime e quando não, eram brancos para todos os efeitos e em
África, ser-se branco era sagrado, impoluto, inatacável. Não admira o ódio com que eles, os nativos
nos ficaram, nem aquilo que estava em breve para nos cair sobre as cabeças.
Por isso mesmo resumiam a sua acção a prenderam uns narros de quando em vez e em
queimar as plantações na periferia das cidades e quanto ao resto, deixavam correr o marfim. Até
porque havia ordens superiores para não reprimir em demasia os nativos, dado que tradicionalmente
o consumo daquela erva fazia parte da sua cultura e até por motivos étnicos e religiosos, dado que
estava relacionada com alguns rituais de entrada na puberdade e de transito com os antepassados e
os espíritos do além, para assegurar chuva, boas colheitas, etc.
Para todos os efeitos estavam mais ou menos de mãos amarradas. E é claro que a malta
aproveitava. A maioria dos criados e serventes das redondezas eram nossos fornecedores. E ainda
por cima, a maioria nem sequer queria dinheiro, em troca da erva, para não levantar suspeitas. De
maneira que contra uns maços de tabaco e alguns víveres tipo sal, azeite, fósforos, uma peça ou
outra de roupa velha e algumas moedas, tínhamos acesso a toneladas daquela merda. Entre nós, de
resto, sempre que algum se descuidava e ficava sem artigo por um dia ou dois, nunca se cobrou
dinheiro. Dispensávamos uns aos outros às mãos cheias, por simples solidariedade e camaradagem.
Já no sul, havia bastante carência daquilo, sendo que a malta da capital tinha de recorrer aos
fornecimentos da Suazilandia e África do Sul, o que já lhes custava alguns cobres. Por isso,
ocasionalmente lá apareciam uns freaks de L.M. ou meninos Coca Cola, como a gente
depreciativamente lhes chamava, à procura de artigo. Era sabido que a Zambézia era a porta para a
liberdade, se bem que na Beira e arredores, na Gorongoza e nas montanhas da Penha Longa,
existissem artigos de qualidade superior. Mas era facto conhecido que, quanto mais para o norte,
melhor a qualidade e o preço. Pelo que a rapaziada também não se inibia de fazer uns bizenésses
com eles, quando os gajos nos caíam de bandeja entre as mãos.
Ora, segundo o Pelicano, estavam nesse momento, lá na cidade um par desses marmanjos, à
procura do que nós sempre tínhamos em demasia, para poder dispensar.
- O.K.! – respondeu a gente. Qual era o problema? Isso era fácil de arranjar. Era só dar uma
volta pelos nossos fornecedores habituais, que eram a maioria dos criados da vizinhança e pronto.
- Espera aí, caralho! – respondeu ele a rir, com aquela expressão aparvalhada que nele era o
sinal da matreirice:
- Já resolvi a situação – continuou o gajo - Mas preciso da vossa ajuda, porque eles são dois.
Eu e o Jonas olhamos um para o outro meio desconfiados, porque aquele gajo não era lá
muito certo, mas depois acabámos por concordar com o plano dele. Se eu naquela altura já
conhecesse o Nikos grego e o velho Mico Limpo Serra é claro que teria logo vetado aquela
estratégia. Mas não podia adivinhar que ainda me havia de vir a tornar grande amigo de ambos. O
que não impediu que anos mais tarde, noutras circunstâncias, a milhares de quilómetros de
distância, impelido por motivos bem mais dramáticos, não me visse obrigado a fazer-lhe, desta feita
só ao velho Nikos, uma parte parecida, que aparentemente ele nunca mais me perdoou. Mas isso é
outra história, que não cabe aqui. De modos que lá fomos os três, à entrevista que o Pelicano já tinha
combinado com eles, apresentando-nos como os verdadeiros proprietários do artigo e seus patrões.
E depois chamem-lhe parvo. A conversa correu porreiramente e tal, até porque eles estavam bastante
satisfeitos com a amostra que o Pelicano lhes dera para provar a qualidade do duto. De maneira que
só faltava combinar a modalidade da transacção. Isso foi simples. De resto já estava previamente
combinada entre nós. E o Pelicano já tinha tudo preparado. Só queria era sentir-se mais seguro, com
os amigalhaços por trás, se por acaso a coisa desse para o torto. O que era difícil porque a tramóia
estava bem engendrada. Em todo o caso mandámo-los dormir descansadamente nessa noite e ficou
tudo aprazado para o dia seguinte, que era para não parecermos muito fuçangueiros. Os gajos
estavam no Hotel Chuabo, o que por si já era um sinal de muito papel. Além disso o Nikos, como
viemos a saber depois tinha mesmo a alcunha de Nikos rico, por contraste com outro grego também
de L.M. e também freak e apreciador das passas e tal, que era conhecido pelo Nikos pobre. Adiante.
No dia seguinte, de facto correu tudo como planeado. Encontrámo-nos nos arredores de
cidade. Eles num carro, a gente noutro. O Pelicano mostro-lhes a lata, cheia de artigo- era um bidon
de vinte e cinco litros, cheio a abarrotar de passa fresquinha e bem maticada. Parecia pedra, porque
ao fim de dois dias ao sol, tinha secado e solidificado completamente. Com o auxilio de um
canivete, extraíram um pedaço daquilo e um de nós enrolou um charro, que rodou entre todos.
Ficámos com uma pedrada do cacete. O produto realmente era de qualidade superior. Os clientes
ficaram satisfeitos. Procederam ao pagamento acordado sem mais delongas nem desconfianças.
Imagino como terão ficado fodidos ao chegarem à terra deles e verificado que não existia dentro do
latão mais que três ou quatro escassos centímetros de espessura de passa genuína, sendo todo o peso
restante de tabaco de trança, dos blakes. Arre...
E não é que a malta tivesse mesmo necessidade daquilo, porque passa havia em torrão. Foi
mesmo por pura sacanagem. Por represália pela mania de superioridade que os da capital tinham em
relação a nós, os da província. Tratavam-nos por bimbos, porque não havia lá universidade, nem as
comodidades e a sofisticação que eles usufruíam lá na terra deles. E a malta vingava-se com estas
partes. Anos mais tarde tive ocasião de me poder redimir perante ambos, noutras circunstâncias.
Mas isso, como já disse, é outra história, para outra ocasião.
Às vezes mesmo lá na Zambézia, um paraíso tropical, também havia épocas de crise.
Felizmente eram raras. Mas também acontecia. Ou por causa das secas, ou porque a malta se tinha
descuidado e de repente nos encontrávamos tesos e sem artigo, ou por pura maldade, acontecia
termos que nos desenvencilhar de alguma maneira menos ortodoxa.
Estou agora a lembrar-me de uma ocasião em que cheguei a casa do Jonas e o gajo estava
todo fodido, porque estrava-se a acabar o produto e ele já tinha feito o circuito das redondezas e por
mero acaso e falta de sorte, os nossos blakes habituais também estavam secos. Foda-se! Era mesmo
uma raridade, uma situação assim. Não me lembrava de alguma vez ter acontecido nada parecido.
Mas uma vez tinha de ser a primeira. O que é que fazemos? O que é que não fazemos? Resolvemos
dar uma banhada nuns nhurros que o gajo já sabia que tinham chegado do mato, carregados e que
haviam de estar a dormir essa noite no telhado de uma casa das imediações. Ele já tinha tudo
planificado. O Jonas era assim. Eu fazia-me um bocado de confusão, porque ao fim ao cabo, o gajo
falava perfeitamente vários dialectos nativos e facilmente com alguma conversa e pouca despesa
termos acesso ao artigo todo. Mas o gajo nessa tarde estava virado do avesso. Pelos vistos apetecia-
lhe molho. O gajo era mesmo assim. Às vezes, sem mais nem menos, dava-lhe para a porrada e
quem estivesse junto tinha que ir na enxurrada. Também não era grave, se bem que eu não fosse lá
grande apreciador. E depois o gajo era um armário, pelo menos em largura.
Bom, lá estivemos a fazer um bocado de tempo, comendo e bebendo e fumando as ultimas
reservas, até se fazer tarde bastante para os blakes estarem todos bêbedos arrumados com os fumos
e tal, que aquela merda a eles fazia-lhes um efeito muito mais devastador que a nós e finalmente lá
vamos os dois, vestidos de preto com umas cogulas a tapar as caras e ténis nos pés, subindo pé ante
pé as íngremes escadas do prédio em cuja varanda os tipos estavam amalhados. Ele ia à frente,
como sempre e eu atrás, armado com uma moca imensa, de uma raiz de uma árvore qualquer. Só
esperava não ter de dar com aquilo nos cornos de alguém, pois seguramente matalo-ia. Mas ele,
estava-se cagando. Para o gajo era tudo simples.
- Tu, ficas de vigia no meio dos gajos – tinha-me dito ele – enquanto eu rabusco aquela
merda toda. Se algum deles acordar dás-lhe uma marretada nos cornos antes que o gajo dê o alarme.
Depois é só pormo-nos nas putas com o artigo todo.
Nada mais simples, de facto. A porra é que eu já estava a ver um black com a cabeça toda
aberta, aos meus pés, a sangrar e derramando massa encefálica, para cima dos meus ténis. Mas que
se foda. Com o Jonas não há meios termos e os amigos são para as ocasiões. De modos que lá me
posicionei onde era devido, enquanto ele procedia à vistoria.
Aquela merda parecia um filme do Spike Lee, palavra de honra. Eu, com uma moca enorme
nas mãos, no meio de uma roda de pretos a dormir e a ressonar. Eles eram pelo menos uns doze. Se
tudo corresse bem, até era provável que enchêssemos as marmitas, o Jonas e eu. É que aquela malta,
de uso tratava-se bem. Pelo menos no que respeita aquela merda. Assunto de tabaco especial.
Suruma. Abreolho. Ampericoto. O mais natural era cada um daqueles blakes ser de uma região
diferente e cada um ter a sua qualidade especial, para seu próprio consumo. De modos, que com um
bocadinho de sorte, até podíamos sair dali carregados com um cocktail de diversas qualidades de
erva, cada qual melhor que a outra.
A merda é que o filme já estava a demorar tempo demais. Quer dizer, o Jonas estava já farto
de abrir baús, caixas, fardos e até ao momento mais não tinha achado que uma mísera mão cheia de
artigo. O gajo já bufava e na sua ansiedade e precipitação e sem se aperceber começava a fazer
barulho demais. Era a arrastar caixotes, era a praguejar, era a vontade de mandar tudo pró caralho.
Como não podia deixar de ser, mesmo no preciso momento em abre a tampa de um baú imenso e
tem uma exclamação de júbilo, como quem diz – finalmente! – há um cabrão de um black que
acorda. Mesmo à minha beirinha.
Abre os olhos, todos avermelhados do sono e da m’bange e fixa-me, invertidamente. Deve
ter pensado que estava a sonhar, o gajo. Porque isto, de acordar de repente, do melhor dos sonos e
ver assim sem mais nem menos, um branco, um mzungo, debruçado sobre ele, ali no seu sítio, na
sua varanda, entre meio aos seus companheiros, ainda por cima de cabeça para baixo, devido à sua
posição, deve-lhe ter parecido tão bizarro e incongruente, que por um momento ficou a balbuciar
resmungos de bêbedo, sem qualquer reacção.
Eu sabia bem o que tinha que fazer. Era dar-lhe com a moca nos cornos. Mas palavra de
honra, faltou-me a maldade para isso. Vi o filme todo em câmara lenta, dentro da minha cabeça. O
braço a subir, ele a olhar-me longamente com um olhar de incompreensão e pânico estampado no
rosto, a moca a descer com uma violência incongruente. O sangue a espirrar e ele a tombar, morto.
Foi demais. Fui incapaz. Um gemido de ansiedade soltou-se da minha garganta, enquanto o infeliz
do narro, lentamente começava a vir a si, apercebendo-se de aquilo afinal era real. E sobretudo não
estava a agradar-lhe nada. Eu estava como paralizado.
Felizmente o Jonas apercebeu-se da minha insólita indecisão e num salto, chegou-se a mim,
tirou-me a moca das mãos e trufa! Arriou-lhe nos cornos. Uma pancada seca. Ele tombou sem um
queixume. Simplesmente toda aquela agitação foi o suficiente para alguns dos outros nhurros
começarem por sua vez a dar sinais de movimentação e alarme. De modos que o Jonas teve que
distribuir a esmo meia dúzia de cacetadas, meio às cegas, dar-me um puxão violentíssimo no lombo,
para eu acordar, com outro salto por cima da roda dos narros, jogar as gambias ao baú e arrancar a
toda a velocidade, escadas abaixo enquanto os restantes pretos se abanavam uns aos outros emitindo
gritos de alerta e se levantavam ainda meio embriagados e surpresos.
Eu corri atrás dele empurrando quantos se me atravessavam na frente, rumo às escadas, um
buraco negro ao meio de uma parede. Mal tinha chegado aos primeiros degraus ouço uma barulheira
enorme de quem ia por ali abaixo aos trambolhões. De facto era ele, que com o cabrão do baú nas
mãos ocultando-lhe a vista dos detalhes da escadaria, tinha falhado um degrau e rolou por ali
abaixo, que nem um foguete, ele mais a caixa aos tombos. Lá em cima ouviam-se vozes, gritos,
exclamações desencontradas. Não esperei para ver. Chegado cá baixo vejo o Jonas estendido,
estremunhado a abanar a cabeça. Peguei nele de passagem, mais o baú e toca a rasparmo-nos dali na
bisga. Felizmente ninguém nos perseguiu.
Ao chegarmos a casa, tivemos a grata surpresa de verificar que o baú estava cheio de passa.
Foi uma festa. Merecida. Ele ainda estrilhou um bocado, que o trabalho tinha sido todo dele e que
eu era um paneleiro da merda que nem tinha tido tomates para dar com a puta da moca nos cornos
dos blakes, mas finalmente acalmou e depois de termos enrolado uma boga enorme e a fumarmos,
acabamos os dois a rir à gargalhada de toda aquela aventura.

Ou daquela outra vez, em tudo semelhante a esta, em que a malta estávamos reunidos, todos
chateados, sentados no muro mesmo defronte ao Côco, porque mais uma vez, nos tínhamos
descuidado e nesse dia, por mais que variássemos da carola e percorrêssemos os arredores, de
bicicleta em busca de artigo, havia uma crise do caraças e nenhum dos nossos contactos habituais
estava abonado, nem sequer aquele black do Jonas que nos tinha mostrado uma fotografia, fardado
de camuflado e Kalashnikov na mão.
– Xii, você é Frelimo, seu cabrão! – tinha gritado a gente, de surpresa, mas o gajo, cheio de
jogo e descaramento, a sorrir tinha comentado:
- Nada, patrãozinho, isso é foto di milícia, lá no minha terra... Jura mêmo – o cabrão.
De modos que estava tudo fodido, em paranóia, de mau humor, a remoer impossibilidades.
Às tantas apareceu um puto, recém chegado à cidade, vindo da metrópole, com a mania que era
malandro. Vai daí, já não lembro quem, teve a ideia:
- Oi chaval, toma lá cem merréis e vai ali à farmácia comprar duas embalagens de Mandrax.
Não esqueças o nome hein? Mandrax! Se a empregada perguntar alguma coisa, diz que é prá tua
velha, que anda cheia de insónias e não consegue dormir, à noite.
- OK! – disse o puto e lá foi, todo confiante e cheio de boa vontade. É que ele andava
desejando de se fazer aceitar pala malta e entrar no grupo e se lá fosse qualquer outro de nós,
davam-nos a nega de certeza, porque éramos todos sobejamente conhecidos e por demais, como
drogados, na puta daquela terra.
Foi e voltou, o moço. E aviado, ainda por cima, que ele até nem era manco. Maravilha.
Naquela altura a malta já andava enjoada dos speeds. Além disso, a maioria já tinham sido retirados
do mercado, ou então tinham-lhes mudado o nome, se bem mantendo a composição. Em todo o caso
só se podiam levantar com receita médica. Uma boa merda. E depois andava tudo farto de ressaca
de speed. O bringdown, como a gente lhe chamava. Havia muita influência anglófona, lá pelo
Mozambico. Também não é de admirar, rodeados de bifes, por todo o lado. Malawi, Rodésia,
Botswana e África do Sul. E na outra costa, o oceano. Eu, até já tinha chegado a cagar branco, de
tanto comprimido, no sangue. Então a moda, ultimamente era aquela merda do Mandrax.
Ainda não nos tínhamos apercebido de como aquela porra, era perigosa. Sobretudo, se
misturada com álcool. Logo ali desbundámos uma caixa, a dividir por todos. Até o puto, teve direito
a duas capsulas, como recompensa. Mais que suficiente para ele, que não estava habituado. De
resto, ele nem fez questão. Bastava-lhe a nossa companhia, sentir-se parte integrante do grupo.
Eu e o Jonas e o Carlitos C.C. zarpámos dali, dizendo adeus à rapaziada. Fomos prá
esplanada do Refeba, mesmo em frente ao rio, esperar a subida, da cena. Também nós, não
estávamos muito práticos naquela onda. Era uma droga muito recente.
Só o Carlitos Cargau, que era grande camarada do irmão do Jonas, ambos mais velhos que a
malta, é que já tinha experimentado daquilo, a preceito. Ele, mais uns gajos da Beira, que lá tinham
estado umas semanas antes e tinham trazido a novidade. O Carlitos até tinha partido os queixos e
cortado o lábio inferior, à pala daquela merda. Também não era caso de admiração, com aqueles
corta relvas, que o gajo tinha. O caso, é que às tantas, já muito bem aviados, de copos e de pôrros,
descobriram, nem sei como, que desatando à chapada uns com os outros, não sentiam porra de nada.
Uma curtição. Só lhes dava pra rir e uns arrepios do caralho, entre cada bofetão. Estavam
completamente dormentes e zonzos. E partiam a cona a rir, à chapada uns com os outros. De tal
maneira, que no meio da folia, o Carlitos tropeçou a meio dos degraus da igreja e estatelou-se de
queixos, bem no rijo da pedra. Cortou o lábio inferior rés vés, traçou-o em duas metades, com
aquelas dentolas enormes. Mas não sentiu nada, dizia ele. Só deu por ela, porque estava a sangrar
que nem um porco, no matadouro. E porque os outros, é claro, faziam daquilo uma gozação do
cacete. Nem queria ir ao hospital, o gajo. Mas finalmente, lá o convenceram e no meio de uma
risada monstra, acabaram por lhe coser as beiças e adaptar-lhe um freio ao maxilar. Durante uma
data de tempo nem podia mastigar. Só ingeria líquidos.
Mas prá gente, eram favas contadas. Além disso, era voz corrente, que o Cargau, um gajo
porreiro e tal, mas a dar um bocado pró burro. Connosco não iria passar-se nada de semelhante. De
modos que fomos bebendo uns copos e, como eu tinha a embalagem no bolso, por cada novo amigo
que chegava, oferecia-lhe uma capsula e mamava outra. O Jonas não quis mais nenhuma, além das
duas iniciais. Nunca fora grande apreciador de pílulas. E o Carlitos C.C. acho que só tomou mais
uma e passado pouco tempo abalou para casa. É que o velho dele era foda. E o puto tinha de
cumprir uns horários rígidos demais, se ainda queria ter alguma liberdade, mínima. Estava
completamente proibido de acompanhar connosco, pelo que andava sempre na esquiva, às ocultas, a
fugir dos olhares delatores, das pessoas conhecidas.
Passado pouco tempo, a embalagem estava completamente vazia e a malta não notava
nenhuma alteração por aí além. Mas como a tarde estava boa, de sol e calor, a cerveja jorrava a
rodos, sempre acompanhada de petisco, que isto ainda era nos bons tempos em que por cada cerveja
encomendada, vinha um pires de camarão cozido, fomos ficando por ali, no meio da risada e dos
copos. Às tantas o Jonas também zarpou, nem me lembro quando, nem porquê. Fiquei eu e outra
malta menos da pesada. Tudo bem. Já me sentia bem aviado. A bem dizer, já não sentia era porra
nenhuma. Estava para lá de Marraqueche. Foi por isso que dei aquela barraca toda. Um escândalo
do caralho. Nem me lembro de nada.
Só sei que acordei no dia seguinte, todo moído e quando abri os olhos, dei por mim todo
vestido na cama. Esquisito, pensei eu. Olhando em volta, reparei que não estava no meu quarto e
sim numa espécie de caserna, com “n” camas, todas ocupadas por nharros - Foda-se! que sonho
mais esquisito – lembro-me de ter pensado e sem reflectir mais, virei-me de lado e ferrei novamente,
que me sentia todo amassado. Passado um bocado, vim ao de cima novamente. Entreabrindo os
olhos, notei que me encontrava no mesmo local.
– Foda-se! que sonho recorrente – pensei, mas ao mexer-me um pouco mais forte, na cama,
um daqueles gajos comentou:
- Xêe, minino, ontem tavas mêmo grosso. Dôtor deu duas injeção, não passou. Arre! Mêmo
grosso, ha, ha, ha - riu o gajo e os outros, nas camas ao lado, fizeram coro.
Bom, assim verifiquei que não estava sonhando, nada. Aquilo era mesmo a realidade. E nada
agradável, pró meu lado. Como é que eu me deixara cair numa onda daquelas? Hospital, doutor,
injecções... ainda faltava saber a merda toda, que não teria feito na cidade. E como é que tinha ido
ali parar? De ambulância? Que sei eu? É que, não me lembrava de porra nenhuma. Tinha os cornos
completamente em branco. Vou-te contar.
Não demorou muito porém, que a merda chegasse à ventoinha e me rebentasse em cima dos
cornos. Ainda mal acabara de me vestir, apareceu o meu velho, pior que estragado, tipo barata tonta.
Estava de tal modo espigado, que quase nem falava. Só rosnava e bufava, parecia um hipopótamo.
Não que ele fosse muito gordo. Mas estava realmente fodido. É que, na altura, eu estava a trabalhar
num banco. No mesmo banco em que ele era director, bem entendido e à pala das cunhas e
influencia dele. E segundo me foi contando, no curto percurso até casa, eu tinha mesmo dado uma
barraca do catano. Uma escandaleira de todo o tamanho, arrastando-me ébrio, roto e alucinado, de
tasco em bodega, de taberna em inferninho, exprimindo-me mal e porcamente, balbuciando e
gemendo, entre baba, arroto e vómitos, mas sempre exigindo mais bebida, até cair redondo,
inconsciente e comatoso em plena via publica, mesmo em frente ao Côco, no centro da baixa. É
evidente que só me restava pedir a demissão e mesmo assim, o velho ainda tinha que segurar as
pontas, porque a barraca tinha sido mesmo excessiva. Cá por mim, estava-me bem a cagar para as
aparências, os costumes e as pessoas, os superiores hierárquicos do gajo. Mas com ele, era diferente.
Tinha uma reputação e um bom nome a defender. Ficou mesmo abalado, o sacana do velho.
Mas a coisa não ficou por aí. É que o cabrão do médico que me assistira, não contente com
ter-se chibado ao velhadas, sobre as causas do meu desmaio, chamemos-lhe assim, foi-se chibar
também à bófia, o que é bem mais grave, o grande filho da puta. Lá se foi o juramento de
Hipócrates pró camano. Ele, bem que tentou lavar as mãos, como o Pilatos, assegurando ao velhote,
que não fosse pela gravidade da situação e sobretudo pela irresponsabilidade, roçando o risco de
vida, nunca o teria feito. Segundo ele, eu aparecera no hospital perfeitamente em coma. E não
apenas etílico, pois dera-me de imediato uma injecção de Coramina, que ter-me-ia feito passar o
efeito do álcool, de imediato. Não satisfeito com o resultado, repetira a dose, como o black me tinha
contado, de manhã na enfermaria e aí, viu logo que o caso era muito mais sério, dado que eu
continuava a balbuciar coisas incoerentes, a vomitar, meio inconsciente e tinha as pupilas
particularmente dilatadas. Viu logo que havia droga ali no meio. E da pesada, a julgar pelos
sintomas. Procedeu de imediato à tiragem de análises e veio a verificar que eu tinha feito uma
ingestão massiva de barbitúricos, o que misturado com a quantidade extraordinária de álcool que
tinha bebido em seguida, poderia ter sido mortal. Dizia ele, que eu só me tinha safado, graças à
pronta lavagem ao estômago, à minha juventude e ao facto das minhas células ainda estarem cheias
de genica e com uma facilidade de regeneração fantástica. Em todo o caso, deve ter apertado o
suficiente com o meu velho, pois este não só exigiu aos cabrões da bófia que me pregassem um bom
susto, como começou a tomar providências imediatas no sentido de me mandar embora para a
metrópole, também a conselho do mesmo médico, que lhe garantia que na Europa havia muito
menos acesso aos psicotrópicos, bem como a completa ausência, ou quase de marijuana e coisas
afins, além de que só o facto de afastar-me das más companhias habituais, já por si mesma, seria
uma boa terapia.
Vai daí, logo no dia imediato, recebo em casa uma contra fé, exigindo que me apresentasse
nas instalações da DGS, no dia a seguir. Vi logo qual era o filme. E ali também tinha que estar
presente a mão do meu velho. Senão, nem os gajos se atreviam a chatear-me. Nada de especial, pela
certa. Mais uma lição de moral, não havia de passar disso. Não era à toa que éramos brancos,
privilegiados, filhinhos de papai. Contudo, não éramos imunes. Pelo menos totalmente. Tinha ficado
célebre a réplica de um dos mais representativos freacks da alta, o Dingo Bucezzato, ao ser
interrogado pelo juiz em plena sessão de julgamento, se consumia muita droga por dia,
simplesmente respondera:
– Quando tenho muito, fumo muito. Quando tenho pouco, fumo muito. Quando se acaba,
vou buscar mais!
Tinha sido uma risota e uma escandaleira, em plena sala de tribunal.
Este moço, bem como uns quantos outros da sua geração, casos dos irmãos Cangaço, o velho
Fry, que acabaram a carreira de velhos freaks, num mosteiro budista, na Bélgica, o já citado
Armando José Stichinni, o Zé Manel MirHomen, o João Boa Vinda, que junto com o Pilinha, Zeca
Sonsa e o Palinho Gentil, roubaram uma avioneta, pouco antes do 25 de Abril e fugiram para a
Tanzânia, regressando meses depois da revolução com elevados cargos políticos dentro da nova
hierarquia, os irmãos Mugta, do Gurué, País de Deus, na Zambézia, O Tito, o puto Ruca, o Vovô, a
Tereza Maluca e a irmã, com quem ele casou, anos depois, o Cezarini Padeiro e a irmã e tantos,
tantos outros, sobretudo a malta que fugiu para a Penha Longa e instauraram a “farm”, que ficou
famosa nos anais da história freak de Moçambique, por ser a primeira comuna hippie,
verdadeiramente libertária e infelizmente não durou muito, pois foi rapidamente reprimida e
anulada, graças à pérfida actuação da PIDE, valendo-se do subtefúrgio que ali se albergavam
desertores, fugitivos à tropa e revolucionários perigosos, tendo encanado a malta toda. Valeu-lhes
contudo a fama de pioneiros e a admiração perpétua do resto da malta toda, a quem abriram
caminho e serviram de exemplo.
É claro que a bófia tinha bem mais que se preocupar do que com os meninos bem, que nos
seus momentos de tédio, ingeriam umas drogazitas, por desfastio. Tinham uma guerra entre mãos e
a DGS sobretudo, como polícia política, tinha a responsabilidade de combater todas as infiltrações
dos terroristas, no interior nas cidades, o que lhes dava água pela barba. Porém, sempre que a malta
abusava em demasia, os gajos não deixavam de nos dar um apertão de orelhas, só para se manterem
em forma e mostrarem que estavam lá, como se passou dessa vez, em relação à Farm. Eram também
assim uma espécie de ensaios nas formas mais subtis do terror, de sofisticação nos processos de
interrogatório e tortura, pois às tantas deixavam-se abrutalhar nos métodos, exercendo-os apenas
contra os negros, campónios e iletrados, carne para canhão, para a vala comum.
Pelo que, abreviando uma longa história, às tantas lá estava eu, farto de levar com eles e eles
fartos das minhas tangas, pois eu não saía da minha história, de que apenas tinha bebido uns copos
demais e que coisa parecida nunca me tinha acontecido na vida, de perder a consciência, por mais
que bebesse. O ambiente já estava ficando pesado, pois eu bem via que a vontade do energúmeno
que me interrogava, era de por as boas maneiras de lado e desatar à chapada comigo, a exemplo dos
interrogatórios nada meigos, que eu bem ouvia portas adiante, onde o coitado de algum nativo bem
gemia e gritava, nas mãos dos colegas dele. Sempre que lhe davam alguma descarga eléctrica,
frequentemente nos tomates, como o que estava comigo me contou, a luz ambiente baixava de
intensidade e o coitado desmaiava. Os outros aproveitavam a pausa, para descontraírem, enquanto
fumavam um cigarrinho no corredor, comentando entre gargalhadas, os lances e os pormenores mais
macabros do interrogatório. Como eu não me deixava enrolar nem amedrontar por aqueles
expedientes, nem mudava uma virgula no meu depoimento, o outro cabrão acabou por desistir e saiu
da sala, com os papéis na mão, ordenando em voz ameaçadora que eu nem me mexesse. Ao fechar a
porta piscou o olho com ar de gozo, ao escrivão, que nada disse e se manteve mudo e quedo, no seu
lugar.
Eu, é claro, aproveitei para acender também o meu cancerilho e relaxar um bocado, entre
longas baforadas. Já estava ali havia horas e começava a sentir-me cansado e sobretudo com fome,
mas aquela merda não havia meio de se resolver.
De repente entrou um gajo relativamente novo, na sala, seguido do outro que saíra antes,
todo subserviente. Um, que eu ainda não conhecia, trintão, moreno, de sobrancelhas cerradas,
emanando um indiscutível ar de autoridade:
- Levante-se, quando eu entro nas sala, seu bardamerdas! – exigiu com voz estentórea, logo
para começar. Assim fiz, meio receoso e ele, continuando ao ataque, exigiu uma confissão completa,
porque sabiam perfeitamente que eu tinha ingerido uma mão cheia de droga e já bastava de fazer-
lhes perder tempo com lorotas, porque tinham ali na mão e foi-mos logo mostrando, os papéis do
hospital, com o depoimento do médico que me examinara, tudo isso confirmando. Perante aquela
evidência, deixei-me ir abaixo e sem mais delongas disse-lhes o que eles queriam, salvaguardando
evidentemente os detalhes escabrosos e a participação de eventuais cúmplices, na linguagem lá dos
gajos. Disse-lhes simplesmente com uma enorme cara de pau, que tinha ido aos comprimidos para
dormir da minha mãe e tinha mamado uma caixa cheia daquelas merdas, porque andava um bocado
deprimido e tal. O gajo, viu-se que não ficou muito satisfeito, só com aquilo, mas eu fui irredutível e
por mais voltas que eles lhe dessem, já não saí dali. Por fim, depois de uma lição de moral do
caraças, em que ele se alongou sobre o seu papel, o da bófia e do exército, ultimo baluarte do
Ocidente, bem como o dos restantes brancos, como os nossos velhos, na expansão da civilização e
no combate ao comunismo e que era uma vergonha a nossa atitude, de putos irresponsáveis,
verdadeira quinta coluna para a penetração dos sinistros objectivos do inimigo, franqueando as
hostes, através das fraquezas da juventude e que por aquele caminho, qualquer dia teriam pleno
êxito, pois actualmente viam-se obrigados a combatê-los dentro das suas próprias fileiras e tal,
mandaram-me assinar o depoimento e o gajo preparava-se para me mandar embora, quando teve
uma ideia brilhante:
- E agora, para sua vergonha, seu sacana e grande exemplo junto dos seus amigos - ordenou
então ao factotum que corresse a buscar umas sandes de queijo e fiambre e um refrigerante e de
caminho, trazer um barbeiro, para me raparem o cabelo à máquina zero, que era para eu aprender –
E mais – gritou ele, todo exacerbado – Se eu o vejo na rua, depois das 10 horas da noite, mando
prende-lo por seis meses.
Com aquela parte é que o gajo me deitou mesmo abaixo, o filho da puta. Grande vexame,
maior humilhação. Durante quase uma semana nem me atrevi a sair de casa, mas depois acabei por
cagar naquela merda e colocando um képi do exercito no alto da cabeça e um cachimbo do meu
velho, carregado de suruma, entre os dentes, fui logo nessa noite ao basquete, na União Africana.
Mais tarde, enquanto o cabelo crescia, passei a usar uma daquelas mitras que os filhos do islão
usam, como testemunho da fé.
Quanto ao filho da puta, nem teve tempo de exercer as prometidas represálias, porque nem
três semanas tinham passado foi o 25 de Abril, com todas as consequências que se conhecem. Aí, fui
eu e mais umas dúzias de revolucionários exacerbados e meio histéricos, que andamos à cata do
gajo e dos outros Pides, que não tinham tido tempo nem esperteza para se pôr nas putas a tempo, a
exemplo do velho Rêgo, antigo director geral da DGS, que logo três meses antes da revolução, tinha
abalado de férias para o sul de Espanha e a tudo assistiu, de bermudas e charuto na boca, na maior
das calmas. Enquanto que o outro otário, o tal do combate ao Comunismo, tinha pedido
transferência do exército, onde tinha o posto de major, para ir prá PIDE-DGS, substituir o velho
director, a menos de quatro meses antes da revolução, que pôs tudo de pantanas e acabou por lhe dar
cabo da vida. Não foi o único, porém.

Natural não treme. Histórias como estas, temos todos aos milhares na nossa vida, no nosso
dia a dia. Há contudo que lembrá-las, organizá-las, narrá-las convenientemente. Vai daí, está-me a
ocorrer outra, que não deixa de ter a sua piada. Esta diz respeito à minha amiga Gufina. Uma puta
fina. Como todas as gajas, de resto. Uma gaja porreira. Acontece que por este tempo eu tinha assim
uma espécie de paixão. E não era por ela. Era por outra moça. Contudo, a Gufina, pelava-se toda por
me fazer a folha. Tudo bem. Eu cá pelava-me por fazer a folha à Zelrika. Mas havia ainda o
Maderos, que era uma espécie de namorado da Gufina. E o Zuko, que era assim a modos que o
factótum da Zelrika e a Babisa, que era a minha namoradinha. Um triângulo isósceles, em
duplicado, como em todas as histórias de amor e de cama, que se prezam.
De facto, melhor seria que cada qual se deitasse com os outros ou outras todas, de acordos
com as respectivas sintonias. Mas infelizmente as pessoas têm a cabeça cheia de merda. Isto é
sabido, mas não é admitido. De maneira que tudo se complica. Com os ciúmes, as paranóias, as
mentiras, os golpes baixos. E contudo, tudo sempre se resolve. Haja tempo, tesão e boa vontade. E
sacanagem quanto baste.
A Babisa era a menina mais fina da cidade. A filha do governador. Filha única, mimada,
adorada. Por todos, pai, mãe, tios, restante família, serviçais, criados negros de brancas fardas e
alvas luvas, de libré e tarja vermelha, silenciosos, mesurentos e quase competentes. Vivia num
palácio, tipo mil e uma noites. Com piscina, court de ténis, relvados aparados por dúzias de
jardineiros. Arranjos florais em formas de animais. Gazelas, girafas, marmotas, elefantes, felinos, eu
sei lá que mais. Parecia um Taj Mahal. Até possuía um verdadeiro jardim zoológico em miniatura.
Eu era o recém chegado. The new boy in town. Já sabem como estas merdas se passam. Tudo o que
era garota disponível e não só, andavam atiradiças e húmidas a meu respeito. No Liceu, ais e
desmaios pelos corredores. Sorrisos e lances, piscadelas de olho. Murmúrios, combinações, quecas
vadias. Ainda por cima, eu era filho do Senhor Director do Banco. Uma posição de destaque. Tudo
jóia.
A Zelrika era linda. Linda demais. Um tesão de garota. A mais boazona de todas. Filha do
Senhor Engenheiro não sei do quê. Uma figura de destaque máximo, ela também. Tinha duas irmãs
tão ou mais lindas que ela, um pouco putas, dizia-se à boca pequena. A própria mamã era um tesão
de senhora, que já tinha dado as suas baldas, no tempo dela. Pelo menos constava. O sr. Engenheiro
não se importava. Pelo menos, aparentemente não ligava. Não constava. Bebia os seus wisquies lá
no club, à hora do cocktail. Sobranceiramente.
A Gufina nem era moça fina. Nada de especial, em termos de sociedade. Mas bastava ser
branca. Também era tesuda. Bonita, gostosa, atiradiça. O pai, era um quadro médio. Nada de
especial, mas também nada de desdenhável. Talvez para os senhores directores e sobretudo para o
Senhor Governador, não passasse de um bardamerdas. Nada mais natural. A filha contudo era de
outra massa. Ninguém, evidentemente, que os pais do Maderos desejassem para nora, claro. Eles
também eram de primeira linha. Da classe dos senhores engenheiros e respectivas esposas. Além
disso, o menino já lhes tinha dado suficientes chatices. Tivera que ser repatriado às pressas da
Europa porque já andava a fazer merda de mais pelas embaixadas. Dívidas, prisões, vadiagens.
Quando chegou, foi uma escandaleira. Os cabelos loiros, pelos ombros não eram evidentemente
brilhantes labaredas de inteligência. Mas isso passava-se com todos os freaks nessa altura. Não
obstante foram de todos, aqueles que eu escolhi para companheiros de caminho. Os meus cristãos
irmãos. Os peregrinos, cujos trilhos adoptei. Vinha com as calças todas rasgadas. Nos joelhos, no
cú, rasgões por todo o lado que deixavam ver a cor da pele. Parece que era moda lá pelas Europas.
Uma escandaleira. Mas mesmo assim... enfim, lá sossegou. Até arranjou uma namorada. A tal
Gufina. Uma caçadora de dotes, pela certa. Uma vagabunda, sem eira nem beira, a tentar dar o golpe
do baú. Estava na cara, toda a gente o dizia. Especialmente os pais do menino. Um belo palminho de
cara, contudo. Isso era inegável. E um cú, que eu vou-te contar... E desde que o moço tomasse as
devidas precauções e não se deixasse enredar nalgum romance complicado, tipo faca na liga, com
filhos desnaturados e escândalos fora de portas, tudo bem.
Era a mentalidade africana. Nesse aspecto havia bastante tolerância. É sabido que aqueles
climas tropicais desenvolvem prematuramente os genes, a sensualidade, a vontade desenfreada de
fornicação. Nos nativos, qualquer menina de dez, doze anos, é mulher feita e provada. Até é bom
que os moços europeus se desenvolvam semelhantemente. Conquanto não se metam em sarilhos.
Arranjando filhos e cadilhos. Mas para prevenir isso, lá estava o velho Ronçalves com as suas
poções mágicas, as suas tisanas diabólicas. Ou em último recurso, o enfermeiro Aurélio, com uma
injecção de emergência. Para curar os escarepes aos meninos, ou provocar um aborto, às meninas.
Nada de especial. Simples medidas profiláticas. Mas esse, como era paneleiro assumido, era de
evitar. Só mesmo em último recurso.
A Zelrika mandava-me olhares desmaiados, em código mais que evidente, que toda a gente
percebia e comentava, sorrindo. O Zuko espumava invejoso. A Babisa odiava a Zelrika, mas fingia-
se sua grande amiga. Convidava-a sempre para o chá das cinco, o very british five o’clock tea e para
as quotidianas partidas de ténis. A Gufina e o Maderos não punham os pés no palácio. Eram arraia
miúda. Ela, por condição, ele por represália. Nesse tempo ainda não era publicamente conhecida a
minha propensão para as passas e restantes drogas. De maneira que ainda não me tinham
ostracizado. De facto ainda se depositavam grandes esperanças em mim. A todos os níveis. A vida
decorria plácida, prazenteira e morna, sob a sombra acolhedora das buganvílias e das casuarinas. Eu
e a Zelrika namorávamos telepaticamente. Isso era já evidente para todos. Contudo ainda nem
sequer trocáramos um beijo, roubado. Oficialmente as relações eram outras. Enquanto ela e o Zuko,
a quem ela não permitia quaisquer ousadias, excepto um ou outro escasso beijo, cujo único
objectivo era acirra-me os ciúmes, ao mesmo tempo que ferreamente se guardava pura para mim,
bebiam o seu chá, eu e a Babs corríamos no court, trocando bolas e impropérios. Eu perdia muitas
bolas, não só para dar prazer à Babs, como sobretudo para não perder a Zel de vista, um minuto que
fosse.
A Babs não frequentava o liceu. Tinha preceptoras particulares que se deslocavam
diariamente ao palácio para lhe dar as lições. Foi assim que surgiu a minha oportunidade. Só tive
que deixar correr o marfim. A moça estava madura. Numa esquina discreta joguei-lhe a mão ao
pulso, atraía a mim e ultrapassando a sua surpresa e medo e vontade, que numa mescla indecifrável
lhe afogueavam o olhar, beijei-a longamente, sentindo o seu coração como um bombo contra o meu
peito, as suas pernas tremendo de pavor e desejo, entre as minhas, as suas unhas roçando-me
delicadamente a nuca e as costas. Foi o principio de uma paixão desenfreada, que nada nem
ninguém poderia travar. A Gufina porém, estava a pau. Não se perdia, aquela gaja. No mesmo dia,
momentos depois de nos separarmos, por motivo das aulas, acercou-se de mim, num recanto
discreto e com uma expressão maliciosa e uma vontade determinada meteu-me a língua na boca e as
mamas entre os dedos. Foi impossível resistir-lhe. Até porque ela era uma fêmea de respeito. E mais
mulher e mais madura que qualquer das outras duas.
Eis como num só dia tive acesso a três das mais cobiçadas mulheres daquele burgo. Só
faltava mesmo a Maria Manuel, que também era podre de boa e sobretudo herdeira da pastelaria
mais fina da cidade e enfim, caça grossa, na mira de tudo o que era macho solteiro e minimamente
apresentável, dentro dos limites do burgo. Ela porém sempre foi moça que se fez respeitar, portanto
o seu assédio, obrigaria a um cerco demorado e cristalino de intenções, situação para a qual eu não
tinha tempo, nem paciência, nem real disposição e depois, a Marcela, que eu ainda não conhecia ao
tempo mas que viria a virar-me a cabeça, o corpo e a alma do avesso, meses mais tarde.

Há aqui algo de mentira e muito de auto ilusão. É evidente que existiam naquela terra
mulheres bem mais bonitas, maduras e gostosas, que aquelas meninas. Estavam era muito para lá do
meu alcance, das minhas vistas, das minhas possibilidades. De facto, eu nem as via, nem sequer
dava por elas, excepto naquelas festas da alta burguesia para onde os meus velhos sempre eram
convidados, no Ateneu, na inauguração da Feira Agrícola ou nos eventos grados do regime e então
era vê-las, as senhoras finas, nos seus vestidos de lamé e lantejoulas, os seus penteados de contos de
réis e os seus saltos altos finíssimos. Havia realmente gajas fabulosas naquele burgo, entre casadas,
solteiras, divorciadas, amigadas, descomprometidas. Todo um caudal de mulherame, com mais de
vinte e cinco anos, que me era completamente inacessível, por falta de meios, de estilo, de savoir
faire. Palha demais para a minha camioneta. Sem qualquer chance. Por isso nem reparava nelas. Só
tinha mesmo olhos para as mocinhas, as teen agers, as garotas do liceu, dos garden parties e as
outras um pouco mais vadias, que frequentavam os bailes da Associação Africana. As únicas
portanto, que estavam ao meu alcance, as do meu campeonato. Mas todas elas tinham mães, irmãs,
tias, primas, madrinhas. Mulheres muito mais femininas, sabedoras, sofisticadas. Muito mais bem
vestidas, perfumadas, educadas. Com muito mais charme, tesão e savoir faire.
Mas isso era outro campeonato, muito para lá dos meus sonhos mais ousados, da minha
óptica realista, da minha projecção mental. Para não ir mais longe, bastava lembrar a irmã do
Pelicano, sem grandes prendas no campo de social, mas que mulherão. Dizia-se até que fora o
próprio irmão, o atrasadinho, a tirar-lhe os três, quando ainda viviam lá para o cú de Judas, no meio
do mato. Ou a fabulosa a irmã do meio da Zelrika, a universitária, no seu baile de debutante. Que
tesão de mulher. Uma morena linda e descarada, de olhos pardos, com aquele charme de mistério e
gulodice, que só a miopia lhes concede, ao olhar. Ou ainda, a irmã do Calika, de todas a mais bela,
muito por via daquela pinga de sangue maubere, que lhe corria nas veias. O próprio irmão, para
homem era demasiado bonito. Dizia-se até, que durante os tempos que passara em Nampula, a
estudar, longe da família, tivera bem mais liberdades do que aquelas inerentes ao facto de ser
vocalista de uma banda de rock, que animava os bailes de soldados, servindo frequentemente de
amásia a muitos militares, privados por demasiado tempo de mulheres, noivas e namoradas,
recorrendo aos seus serviços, consta que nada módicos, enfeitiçados pelo olor da sua pele lisa e
acetinada, o seu corpo de efebo acobreado sem quaisquer pelos, os seus negros olhos amendoados
de longas pestanas sedosas e o seu cabelo liso e espesso, como crina. Bocas fatelas que corriam à
bocas pequena, pelos bastidores esconsos da cidade velha e em que nós não queríamos acreditar.
Contudo vieram a confirmar-se anos depois, aquando aquela malfadada trip de ácido, na praia de
Zalala, com o chalado do Carlitos Cargau. Parece que andou a perseguir o moço, uma tarde inteira,
pelo meio dos coqueiros, completamente alucinado, numa que o outro lhe papásse a bilha. Foi até,
mais por via desse escândalo, que os velhos dele, envergonhadíssimos, o mandaram de embuta para
Timor. Em má hora o fizeram, porque escassos meses depois, rebentou o 25 de Abril, com o banho
de sangue que se sabe, naquelas paragens. Durante muito tempo não se soube nada dele e pensou-se
inclusive que tinha sido morto, nalgum massacre, até que finalmente chegaram notícias da Austrália,
para onde parece que ele tinha conseguido fugir, após uma série de aventuras mirabolantes.
Eu porém, era demasiado puto, demasiado criança, otário e cabeça no ar. andava
completamente a leste destas merdas todas. Só queria era andar de cabeça quente e que não me
chateassem os cornos. Queria lá saber daquelas gajas. Elas tampouco davam por mim. Nem ela,
nem as colegas, nem as amigas. Refiro-me à irmã da Zelrika, em quem eu forçosamente reparava,
sempre que ela vinha de férias. Ela contudo piscava-me o olho, numa de gozo, quando se apercebeu
que eu estava afim da irmã caçula. E como eu também era um menino bem, das famílias que
contavam, até me deu umas dicas, entre risos e apalpadelas, ela e as amigas, enquanto me
compunham o nó da gravata e acertavam o vinco das calças e incutiam um pouco de coragem, nos
bastidores do palco, antes do meu grande número, na récita do Liceu.

Lembra-me ainda bem as tardes fabulosas subindo e descendo ininterruptamente no ascensor


super rápido, cómodo e sofisticado do Hotel Chuabo, um dos melhores e mais modernos da
província, na sua companhia, minha Zelrika flor do meu penar, meu doce de côco, pétala de sufoco,
imagem de pecado e gozo, provando demoradamente do seu beijo, viajando por lonjuras cósmicas e
quentes, desejando que esses simples momentos nunca mais acabassem e das noites infindas, sob a
sua janela, encoberto pela espessa e cúmplice vegetação do capim selvagem, a sombra protectora de
um enorme coqueiro e os vagidos quase poéticos de sapos, grilos e outros sopradores
indeterminados da noite, delirando poemas e poses, compridos filmes em tecnicolor e suspense,
aventuras mil em que ela era sempre a donzela em perigo (e eu não podia nem queria esquecer a
perigosa proximidade da amizade de longa data do cabrão do Maderos, visita regular e aprovada lá
de casa, com o beneplácito da antiga amizade e completa cegueira dos respectivos velhos) e eu o
encantador herói, o príncipe charmoso, que sempre salvava a menina mesmo no ultimo minuto, na
crista da onda, sob o desabar confrangedor da tragédia e do perigo, como mandam todos os
manuais.
Todos os meses em que sofri calado, estupidamente, sabendo que a amava acima de tudo e
que esse meu tão puro e primeiro grande amor eras correspondido em toda a sua grandeza, mas
estoicamente ia adiando ad eternum a sua conclusão e desejado termino no adolescente e imaturo
temor que por qualquer misteriosa e inimaginável razão, ela me desse uma tampa e aí sim, tudo
estaria definitivamente perdido, enquanto que se a coisa se arrastasse aborrecida e
interminavelmente naquelas meias tintas, nem carne nem peixe, pelo menos sobrava o doce sonho
que sim, era possível, o seu amor, o seu corpo, a sua aquiescência...
Coisas de puto. Felizmente ela era ainda mais miúda, donzela e sonhadora que eu, senão a
conclusão teria sido bem outra. E não foi por que o cabrão do Maderos, que nem sonhava a minha
avassaladora paixão, não o tentasse. O filho da puta bem que vinha aconselhar-se com a malta e
predominantemente comigo, sobre os passos a dar na perspectiva daquela conquista. Felizmente o
gajo, não obstante ser visita regular lá de casa e companheiro de infância da menina, não preenchia
os seus requisitos estéticos. Era demasiado grande, demasiado bruto, completamente inculto.
Salvação!..
Por outro lado, quando começou a andar com a Gufina vinha também pedir pareceres
técnicos, nomeadamente ao Jonas que era um putanheiro do caraças e passava as noites na temba
com as pretas, sobre se haveria o perigo de, enfiando o marzapo apenas até metade e vindo-se
sempre fora, mesmo assim haveria o risco de rebentar os três à pequena e sobretudo – Vade retro
Satanás – de engravidá-la... O Jonas e eu partíamos o coco a rir com as historias dele e lá o
aconselhávamos consoante nos dava na veneta, mas duvidas não subsistem que a pequena algo
aprendeu nessas sessões de meia pívia, a julgar pelo ataque cerrado que me fez e os ciúmes que
manifestou, no próprio dia em que teve a certeza que o meu amor pela Zelrika finalmente fôra aceite
e correspondido.
Neste meio tempo havia muito já que a minha aventura, felizmente inconsequente com a
filha do governador, naufragara. E embora no íntimo nunca me perdoasse, teve pelo menos a
discrição e o bom gosto de me odiar apenas à distancia e na intimidade das suas mais chegadas
confidentes. Era de facto uma garota com um certo nível, a Babisa. Pena que o corpito dela não
correspondesse aos seus elevados ideais, boa educação e pergaminhos. Tinha fixada nos cornos uma
ideia minha, que por não corresponder ao meu verdadeiro eu, ela nunca encontrou em mim, mau
grado a sua intensa pesquisa e a raiva que veio a consumi-la depois, a pontos de ter levado a
abandonar a cidade e a província, com a má desculpa de ir estudar para a Universidade, na
Metrópole. Antes assim.
Essa ideia fixa, essa imagem, essa fotografia da minha pessoa, que lhe tinha cristalizado nos
imaturos neurónios era referente à nossa recita do 5º ano, o ultimo em que eu frequentei
regularmente um estabelecimento de ensino, dado que em seguida caguei completamente para os
estudos. Pelo menos por alguns, largos anos. Nesse ano, contudo, o ano da minha chegada a Qué eu
era ainda um mocinho ajuizado, o menino querido, um menino bem. Enfim, de portas afora. Havia
muito que os meus sabiam aquilo que tinham em casa. Havia muitos anos que o Juca, um dos
prematuramente falecidos irmãos do meu pai, tinha afirmado alto e bom som, para a família toda
ouvir: - Este miúdo não presta! Nunca há de vir a ser ninguém, na vida – coisa que muito havia
chocado a minha santa mãe. Mas eram bem sabidas as minhas partes gagas, pelo menos entre os
familiares mais próximos, a minha compulsão incontrolável para a cleptomania, a minha
irresponsabilidade crónica, a falta de honestidade, rectidão e disciplina, a mais completa
amoralidade. A mania de roubar dinheiro às criadas e brinquedos aos amigos, de faltar às aulas, de
mentir sistematicamente quando confrontado com os meus actos.
Bem apessoado, magro, alto, elegante, de cabelo comprido e roupinha sempre à moda,
filhinho de um Director Bancário e de uma Senhora Professora, era um pão, o dernier cri, the new
boy in town. As garotas, sobretudo as que contavam no burgo, as folhinhas de família, andavam em
polvorosa. Todo o mundo me queria comer. Eu porém, mal pus as vistas na Zelrika, fiquei
definitivamente apaixonado. As coisas depois complicaram-se com aquela história de amores
desencontrados e a entrada em cena da Babisa e do mujo que a outra arranjou para me enciumar,
como já aflorei no relato mais acima. Mas isso apenas veio apimentar a situação, torná-la mais
apetecível e premente. Nada de grave. Mas antes, o que veio propulsionar tudo, o motor activo de
todas estas situações, o que realmente pôs as garotas todas loucas, foi a minha participação na récita,
onde não só passei modelos, pela primeira vez na vida sobre uma passarela, como sobretudo cantei
o Hello Dolly, do velho Satchmo, com aquela voz rouca e arrastada que sempre caracterizou o Louis
Armstrong. Nem o facto de a meio da canção me ter esquecido da letra, assim que arranjei coragem,
todo enlevado pelo meu êxito, para levantar os olhos da cábula onde tinha a letra escrita e mirei o
publico, o que imediatamente me fez ficar encandeado com os projectores, além de
momentaneamente perdido, logo amnésico e completamente cegueta, à toa. O que me salvou no
momento, foi refugiar-me nas célebres onomatopeias, no scat que ele mesmo imortalizou e tornou
banal, ba ba da, bap ba da da, rap ba da da. Aquilo para mim, porém, foi arrasador, na altura. Tinha
apostado tudo naquela performance. Todo o meu charme, a minha reputação. E conquanto ninguém
se tivesse apercebido, intimamente, foi um vergonhaço. Refugiei-me nos fundos do bastidor sem
querer ver ninguém, completamente desmoralizado, a fumar cigarros uns atrás dos outros
nervosamente e a emborcar copázios de cerveja, a ver se diluía a humilhação.
Foi aí que apareceu a fada. A própria da Zelrika, com as suas mãos de madre pérola, o seu
sorriso de anjo, os seus olhos amendoados, o seu sussurro de acalanto. Oh, foi maravilhoso, um
sossego tão grande, uma calmaria do outro mundo, um tesão embriagador. Não me lembro o teor
das suas palavras, apenas o tom sereno da sua voz, a festa que me fez nos cabelos, a mão descendo-
me pela face e sobretudo o beijo, o ténue e leve beijo com que me aflorou os lábios, desaparecendo
logo em seguida num trote ligeiro, mal tocando o chão com as suas pesadas sandálias de pneu de
camião, que não obstante estarem na moda, sempre me interroguei como poderia ela suportar o seu
peso, com aquelas pernitas tão delicadas e finas, como os caules dos jarros, os pescoços dos cisnes.
No momento e ocasião em que eu me fixei definitivamente nela, foi também o momento e
ocasião em que a chalada da Babisa se cristalizou em mim. O que veio a dar origem a todas as
confusões e mal entendidos posteriores.

(Poderia aqui alongar-me contando detalhes escabrosos, deliciosos, sobre todas estas garotas
e as particularidades das nossas relações e a malta fabulosa que conheci lá pelas Áfricas, o João
Traba, os irmãos Cangaço, o Beiros, o meu amigo Rui Cruz, da Beira, o outro Rui Cruz, de Qué,
que acabou completamente passado dos carretos, à pala dos ácidos e das passas, o grande Luís
Andraz, o Tó Zé Maya, além de todos os outros já referidos, as aventuras arriscadas e maravilhosas
por que passei, os sustos, os sonhos, as trips, mas vou deixar isso para outra ocasião e para as
páginas de um romance mais desenvolvido ( A HISTÓRIA DE QUÉ ), não passando estas crónicas
de superficiais recuerdos ao uso da indiana Sherazade, que para entreter o seu rei e salvar o próprio
coiro, ou pelo menos prolongar as suas horas de vida, acabou por entretecer as Mil e Uma Noites,
fábula suficientemente conhecida e divulgada, sobre a qual escuso de me alongar. Não tenho a
pretensão de ir assim tão longe, por isso e por agora me calo, deixando no ar a promessa de em
breve voltar com Mais Estórias Aburridas.)

BELTRANO MANINGUE / FARO / 2000

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