OS ESTUDOS FONÉTICOS-FONOLÓGICOS E SUA APLICAÇÃO AO ENSINO-
APRENDIZAGEM DO PORTUGUÊS BRASILEIRO
Os estudos sobre aspectos fonéticos-fonológicos e seus efeitos na linguagem
intrigam pesquisadores e pensadores desde a Grécia Antiga, pois, conforme Callou e Leite (1994), Platão já havia iniciado uma tentativa de separar sons vocálicos dos consonantais do grego, dividindo “as oclusivas das contínuas”. Logo, é importante notar a relevância da temática que é alvo de investigação desde épocas remotas. Tal fato, suscita-nos a defender uma ampla reflexão dos fenômenos fonéticos-fonológicos que esteja amparada por pressupostos teóricos da Linguística e que chegue às salas de aula de língua portuguesa. Uma vez que, como sabemos, os documentos que orientam o ensino defendem a identificação da riqueza e da variedade de nossa língua. Com o intuito de demonstrar essa importância dos aspectos teóricos a respeito do tema e relacioná-los com o ensino, discorremos sobre os principais conceitos que podem colaborar com um ensino de língua portuguesa preocupado e engajado com o aprendizado de aspectos fonéticos-fonológicos de nossa língua materna. Nosso principal objetivo é relacionar o teor essencialmente teórico dessa disciplina com a prática do ensino em sala de aula, por isso defendemos que o estudo do caráter fonético-fonológico da língua portuguesa pode ocorrer em contextos de aula sobre variação linguística, mediante discussões sobre preconceito linguístico, tema atual que enquadra o ensino da oralidade em sala de aula, conforme preveem os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs. Para isso, é fundamental que os professores tenham conhecimento acerca do suporte teórico que ampara os estudos sobre a compreensão dos sons de nossa língua, dessa forma, buscamos colaborar com a ampliação do repertório de conhecimentos teóricos dos professores e discorremos a seguir alguns dos principais teóricos e suas contribuições para o tema. No século XIX, os estudos sobre a origem das línguas e a busca por uma protolíngua comum a alguns idiomas europeus levaram pesquisadores, como W. Humboldt e F. Bopp, a buscar correspondências sistemáticas entre os sons dos vocábulos das línguas que pesquisavam. Esse método ficou conhecido como histórico- comparativo e, apesar de, posteriormente, muito criticado, trouxe alguns avanços para os estudos dos sons e sua relação com a língua, bem como, para os fenômenos da linguagem. Uma das contribuições dos estudos históricos-comparativos diz respeito à depreensão de leis fonéticas que regiam alterações em mecanismos de produção dos sons e às técnicas apropriadas para a transcrição da fala. Outras importantes contribuições foram devidas ao diplomata inglês W. Jones, que ficou conhecido como “pai da fonética” por tentar estabelecer uma relação entre sânscrito, persa e árabe, seus estudos refletiam sobre os aspectos articulatórios dos sons que levariam a um traço comum nas três línguas. É possível perceber uma grande preocupação com traços articulatórios nos estudos mencionados, uma vez que todos se relacionavam com os aspectos fonéticos das línguas pesquisadas, tinham, pois como objeto de estudo os sons dessas línguas. Essa é a principal característica da fonética, o estudo das entidades físico- articulatórias isoladas, ela descreve os sons da língua e analisa suas particularidades acústicas e perceptíveis, não se preocupa, diretamente, com o papel linguístico que os sons ocupam num sistema linguístico, regido por processos interacionais, por isso, sua unidade mínima de estudo é o fone. Uma preocupação com o valor significativo que os sons podem ocupar em uma língua como sistema é uma das características da fonologia, que foi estabelecida com esse nome posteriormente. Foi a partir dos estudos de F. Saussure que o lugar da fonética nos estudos da linguagem passa a se relacionar, sistematicamente, com as relações fonológicas. Uma vez que, para Saussure: “o fonema é a soma de impressões acústicas e dos movimentos articulatórios da unidade ouvida e da unidade falada”. Dessa forma, Saussure criticava os estudos anteriores que se detinham apenas ao caráter sonoro da língua, pois para o mestre genebrino, era necessário notar as relações mais relevantes entre os elementos da linguagem. Algumas dessas relações, por ele estabelecidas, dizem respeito às dicotomias: sincronia vs diacronia; langue vs parole; significante vs significado; sintagma vs paradigma. É importante frisar que toda teoria saussuriana está arraigada sob o caráter arbitrário da linguagem, que considera o signo linguístico uma entidade formada por um significante (imagem acústica) e um significado (conceito), essa relação não se apoia em nenhuma lei pré-estabelecida, mas em convenções sociais regidas pela langue. Por isso, Saussure define a langue como um sistema de valores que se opõem e administrado por uma convenção social, construída pela coletividade. Podemos perceber a importância que Saussure dá aos estudos dos sons, uma vez que ele considera o signo formado por uma cadeia sonora em conjunto com uma ideia que não se relaciona com o som. Dessa forma, Saussure fundamenta sua crítica aos estudos histórico-comparativos, uma vez que defende os estudos sincrônicos da linguagem, pois, para ele, é necessário descrever os fenômenos da língua tais como as distinções sonoras que geram mudanças significativas no sistema linguístico, como nas palavras “pomme” e “paume”, as quais Saussure recorre para exemplificar como a alteração de um som pode gerar uma distinção pertinente ao sistema da língua, diferença reconhecida pela massa social que constrói essas alterações em um dado recorte temporal, mesmo que respeitando os aspectos históricos. O reconhecimento de formas pertinentes ao sistema só é viável também pela “combinação de formas mínimas numa unidade linguística superior” que surge a partir da linearidade do signo. Com isso, Saussure defende a dicotomia sintagma vs paradigma; segundo a qual a impossibilidade de pronunciar dois sons em um mesmo espaço temporal exige que o falante escolha a imagem acústica apropriada para representar o conceito que tem em mente. Essas escolhas do falante são possíveis, pois é no eixo paradigmático, compartilhado com sua comunidade, que ele localiza as opções para preencher suas ideias, assim, fica claro que para Saussure, o pesquisador da linguagem não precisa deter-se apenas ao caráter sonoro das línguas, é crucial que seus estudos avaliem também como essas relações sonoras são apreendidas pelo falante que reconhece as distinções dessas relações, marcando o traço arbitrário do signo linguístico. Os estudos saussurianos forma cruciais para o desenvolvimento das reflexões posteriores que marcam a clara divisão dos estudos das relações fonéticos-fonológicas, pois, como vimos, apesar da fonologia valer-se da fonética para a identificação de sons pertinentes ao sistema linguístico, foi o mestre genebrino que postulou a predominância dos estudos sincrônicos da língua com o intuito de se avaliar o sistema por suas oposições de valor, observando que não se poderia resumir o estudo da língua a meras comparações históricas. Foi a partir desse pensamento que surgiu a necessidade de conceber uma disciplina que tivesse como foco as diferenças fônicas cujos valores fossem notados como pertinentes pelos falantes. Essa disciplina passou a chamar-se fonologia e foi defendida por estudiosos do Círculo Linguístico de Praga, como Trubtzkoy, Jackobson e Hjelmslev cuja principal preocupação foi estender à parte sonora da linguagem as ideias de F. Saussure, mantendo constante a eficácia da dicotomia langue-parole para o sistema e estabelecendo uma unidade operacional mínima discreta, o fonema, bem como suas variações fonéticas, combinatórias e estilísticas que pertencem a parole. Outra dicotomia saussuriana fundamental para os estudos do círculo foi sintagma-paradigma, uma vez que a noção de sistema que classifica elementos mediante relação de oposição levou os membros do círculo a classificar essas oposições de dimensões fonológicas tanto no eixo sintagmático (estrutura silábica) quanto no eixo paradigmático (oposições que acarretam mudanças de sentido). Diante desse contexto, o conhecimento dos aspectos teóricos mencionados até aqui é essencial para o processo de ensino-aprendizagem da língua portuguesa. Pesquisadoras como Soares (2016) demonstram como é fulcral esse conhecimento em processos de alfabetização, em que o aluno ainda está em processo de apropriação da chamada consciência fonológica, que é a capacidade metalinguística para identificação e manuseio dos fonemas que constituem a língua materna. A aquisição da escrita está intimamente relacionada com a consciência fonológica, posto que para dominar o código escrito, é necessária a reflexão sobre os sons da fala e sua representação na escrita. Enquanto o falante não supera a fase em que a fala se sobrepõe à escrita, os conhecimentos sobre a consciência fonológica são essenciais para o processo de alfabetização. Reconhecer a importância do tema faz-se ainda mais necessário quando recordamos a relevância que os Parâmetros Curriculares Nacionais atribuem à oralidade, pois perspectivas antigas de ensino pregavam que, como o falante já chega à escola com a língua oral sistematizada ela não teria necessidade de dedicar tempo de reflexão e estudo a essa modalidade de ensino. No entanto, avesso a esse posicionamento, os PCNs defendem o trabalho com a oralidade em sala de aula, o qual pode ser intercambiado pelos aspectos fonéticos-fonológicos, muitas vezes, negligenciado pelo ensino. Defendemos que as diferenças fonéticas-fonológicas sejam mais abordadas em sala de aula, não apenas em conteúdos que visem a alfabetização dos alunos ou, ainda, sob perspectivas ortográficas essencialmente, somos favoráveis ao ensino reflexivo desse conteúdo de forma que possa levar o educando a refletir criticamente sobre, por exemplo, a diversidade sociolinguística de nossa língua materna, sendo capaz de reconhecer e de posicionar-se a respeito, por exemplo, do preconceito linguístico que marginaliza algumas parcelas da população. Para tal, é fulcral que o aluno reconheça as distinções das unidades operacionais mínimas (fonemas), explorando traços como vozeado (quando ao pronunciar um som, o ar sai pelas fossas nasais), desvozeado (quando ao pronunciar um som, o ar sai pela boca), bem como conhecendo os pontos de articulação para a produção do som, isso poderiam colaborar para a compreensão do fenômeno da variação linguística, levando o educando a refletir sobre as consequências desse fato para sua vida prática, dessa forma, colaborando para práticas de letramento que ultrapassam a barreira da alfabetização. Outra importante informação que poderia colaborar com o ensino engajado dessas práticas, diz respeito à compreensão da diferença entre grafema, que é a representação dos sons mediante o desenho de letras, e fonema, que é a tentativa de representação dos sons pertinentes ao sistema linguístico, essa explicação poderia ser intermediada pelo professor por meio da apresentação do sistema vocálico do português brasileiro, uma vez que contamos com sete sons pertinentes à formação de palavras, mas contamos com cinco representações gráficas. Ainda sob essa perspectiva, o professor poderia explorar mais apropriadamente a diferença entre letra e fonema, pois diante de aulas em que o conteúdo de fonética- fonologia é pouco explorado, muitos alunos ainda confundem essas noções. Acreditamos que um bom suporte teórico capaz de suprir o professor para uma aula com essa temática está no trabalho de Hjelmslev que concebe a língua como forma, tal qual Saussure, porém segmentada em dois planos: expressão e conteúdo. Apesar de considerar e priorizar os aspectos formais da língua, Hjelmslev não desconsiderou o caráter menos “acessível” da língua, o qual chamou substância. Para Hjelmslev, a substância é o suporte físico da forma, nós reconhecemos e percebemos sua existência, mas não, necessariamente, seria objeto do estudo linguístico. Assim, Hjelmslev, estabeleceu um mapa que cruza as seguintes categorias: expressão x conteúdo; forma x substância. Para resumir, podemos diferenciar substância da expressão que trata de fenômenos fonéticos; substância do conteúdo que diz respeito a processos mentais; forma da expressão que trata do caráter distintivo das unidades mínimas operacionais, forma do conteúdo que diz respeito ao significado do signo linguístico. Defendemos que esse conhecimento é fundamental para o professor de língua materna, por isso salientamos que o espaço para a aprendizagem das relações fonéticos- fonológicas também seja ampliado no ensino superior, a fim de que os futuros professores possam conhecer o caráter teórico que sustenta esse conteúdo e, assim, repassá-lo adequadamente aos estudantes da educação básica. Dominar esse conhecimento acerca da obra de Hjelmslev é essencial para a distinção entre letra (forma da expressão) e fone (substância da expressão), esse conteúdo pode ser levado ao aluno do ensino superior, didaticamente, com o intuito de esclarecer sobre a diversidade linguística do português brasileiro. Esse ponto de vista também é defendido por Mussalin e Bentes (2011) que observam a seguinte distinção: caro /Karu/ e carro /KaRu/ nessas palavras, percebemos uma diferença que, consoante nomenclatura das categorias estabelecidas por Hjelmslev, é ao mesmo tempo de forma e de substância, uma vez que o uso de uma unidade mínima diferente reflete em um significado também diverso e assumido pela massa social que está representada na langue saussuriana. Já nas formas [Kaɾu] e [KaXu] percebemos a mesma forma representada pela palavra carro, mas com uma distinção no nível da substância que, para Hjelmslev, não seria interessante para o sistema da língua. No entanto, defendemos que diferenças como essa devem ser reconhecidas e mais estudadas pelos profissionais da educação, a fim de que possamos compreender melhor as múltiplas variedades da língua, uma vez que essas formas marcam diferentes variações da mesma palavra. Outro aspecto que pode enriquecer o ensino dessas variações é considerar os alofones como sons que representam a realização dessas variações. Como sabemos, alofones são representações concretas que não estão em distribuição complementar, ou seja, que não se opõem, como o exemplo a seguir, o fonema /t/ apresenta estas representações fonéticas: [tʃ] e [t], esses sons não configuram uma distinção que marquem diferenças significativas para o sistema da língua portuguesa no Brasil. Por outro lado, ao considerarmos as variedades linguísticas regionais do país, iremos notar que esses sons caracterizam diferentes localidades dentro de um mesmo estado, por exemplo, o som [t] é característico da região sul do Ceará, enquanto o som [tʃ] é típico da capital do mesmo estado. Com isso, ratificamos nosso propósito de defender que os aspectos fonéticos-fonológicos da língua não podem ficar restritos a uma perspectiva que force a memorização de representações fonéticas ou fonológicas, por isso, é fundamental que o professor esteja amparado por um repertório teórico que possa ser adaptável ao nível de ensino trabalhado. Mesmo no ensino básico, como esperamos ter deixado claro, é possível destacar que a relevância do conteúdo vai muito além do ensino no âmbito da ortografia. Assim, defendemos que é possível relacionar o conteúdo abordado pela fonética- fonologia no ensino das diversas variações linguísticas que se apresentam na língua portuguesa, a fim de arrefecer o preconceito linguístico que ainda vigora no país, bem como ampliar a discussão sobre o teor fonético-fonológico da língua portuguesa em sala de aula, com o intuito de desenvolver a consciência fonológica dos educandos, facilitando o desenvolvimento de práticas de letramentos posteriormente. Com isso, amplia-se também a discussão sobre a oralidade em sala de aula de tal forma que se possa refletir sobre esse aspecto da língua em uma outra abordagem, porém sempre respeitando o que defende os PCNs sobre o ensino de língua materna: “o objeto de ensino é o conhecimento linguístico e discursivo com o qual o sujeito opera ao participar das práticas sociais”. Por fim, defendemos que a preocupação secular sobre o caráter sonoro e significativo das línguas sempre foi relevante, porém com a evolução das práticas de ensino, bem como das pesquisas em Linguística, esse campo desponta e urge maior atenção nas salas de aula.