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LICENCIATURA EM LETRAS
LICENCIATURA EM LETRAS
Como expõe Gledson, “muito poucos brasileiros foram capazes de realizar em 1900 – ver
sua própria realidade em termos suficientemente críticos para questionar Bento enquanto
narrador” (2006, p.20), ou seja, por décadas, o leitor brasileiro – situado em um cenário
machista, conservador e patriarcal – teve participação ativa como cúmplice da traição de Capitu,
logo, da insuspeita discursiva de Bento Santiago. Somente após uma leitura crítica de alguém à
parte a realidade brasileira, tornou-se possível enxergar a outra face da moeda. Helen Caldwell e
John Gledson, ambos estrangeiros, com visões distintas, mas complementares, marcaram a época
pós-60 da crítica machadiana.
Sem desprender-se da relação com o todo já exposto, encontra-se, em outras críticas mais
recentes, uma abordagem sobre procedimento retórico de Dom Casmurro. Visto como forma de
apagar o caminho que distancia a verossimilhança da verdade, ou seja, de considerar o que for
verdadeiro para autor-ficcional será a absoluta verdade, Silviano Santiago, em Retórica da
Verossimilhança, cria o conceito de “apriorismo”. Essa verdade precedente, ou apriorismo, para
Dom Casmurro – detentor da verdade – é a traição de Capitu. No entanto, se a culpa de Capitu
fosse verdade em todos os níveis, não haveria a mínima sombra de remorso para o narrador.
Sombra podendo assim ser entendida literalmente no contexto da obra, quando Dom Casmurro
diz “Aí vinde outra vez inquietas sombras” (2006, pg. 2), fazendo uma metáfora com seu próprio
remorso.
A não dissolução total da dúvida ante a traição de Capitu é um dos fatores que move a
obra; ou seja, tentar definir se ela é inocente ou culpada significa fechar os olhos para o que de
mais magnífico a obra possui; é ignorar que, se isso fosse resolvido, o romance sequer pudesse
existir. Pois, pesar de o foco dele ser contra a Capitu, sua escrita acaba funcionando contra si
próprio. A retórica da verossimilhança assim se chama, pois tem como base não a verdade em si,
mas o uso do que é verossímil para persuadir – neste caso, tanto o leitor quanto ele mesmo.
Por um lado, Dom Casmurro se baseia em fatos, fundamentos e argumentos verdadeiros;
por outro, ele se vale de outro termo de Silviano Santiago, que é a “imaginação”. Pois Casmurro
não possui um fato concreto da traição de Capitu – ao contrário do que acontece em outras obras
de Machado, como em Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba. Apesar de utilizar
a imaginação no lugar do que é verossímil e verdadeiro, esses elementos são “invisibilizados”
através do discurso que ele utiliza; outro traço importantíssimo.
Bento Santiago é um advogado, com formação seminarista, fruto da pequena burguesia
brasileira do século XX. Nele está presente a representação de um duplo obscuro, que, se
perceptível ao leitor, põe em cheque toda a narrativa: de um lado, Bento alegoriza o sistema
religioso, jesuítico, da cultura brasileira; e de outro, ele é a representação do bacharelesco.
Ambos possuem a marca da tradição da persuasão, do uso da palavra como forma de obter não a
verdade, mas de alcançar o convencimento.
O que nos remete a outra análise muito bem feita por Silviano Santiago, presente no
mesmo livro anteriormente citado, referente à mudança de profissão no contexto literário
brasileiro. Até então, a profissão caracterizada na literatura era a de Médico, possuidor do
discurso que põe às claras, que mostra a verdade – traço naturalista. Essa mudança em Machado
é muito significativa, porque agora se apresenta um profissional que utiliza a palavra como
instrumento. Portanto, o discurso de Dom Casmurro consegue esconder, “invisibilizar” a
imaginação como verdade, pois se trata de uma retórica que esconde e que faz com que seu
discurso passe a ser ambíguo: ao mesmo tempo de acusação – por acusar Capitu – e de defesa –
por defender a si próprio de uma acusação não feita, mas precavida, que por ventura surja de
alguma dúvida do leitor – a mais provável, de que ele seria um ciumento.
Outro traço potencializador para isso a ser observado é que, parafraseando Helen
Caldwell, no transcorrer do livro, faz-se necessário atentar para as atitudes de Santiago; enquanto
ele é muito pródigo na representação do alheio, existe uma personagem que fica oculta durante
toda a obra, essa personagem é ele próprio. Narrador, em um nível, e Bentinho em outro; por
exatamente escondê-lo, finda em revelá-lo. Ou seja, o esforço de o narrador esconder-se pode ser
justamente uma traição.
Ao relacionar os elementos em análise e ao considerar a opinião de Roncari que “o plano
da história que é vivido mais imediatamente pelas personagens não é o dos fatos políticos nem o
das grandes mudanças sociais (...), mas o da crise do modelo de constituição familiar, no caso, da
família patriarcal” (2007, p. 251), fica difícil, sem as reflexões expostas até então, fazer uma
análise social, política e cultural. Entretanto, tendo essas formulações em mãos, pode-se
analogamente relacionar a família patriarcal com esses objetos de análise. A respeito disso, o
livro se divide em dois panoramas: o primeiro, na relação de autoridade e submissão; e o
segundo, na inversão do primeiro panorama.
Num plano inicial, reside à casa de Matacavalos, Dona Glória, mãe de Bentinho e mulher
detentora de terrenos, escravos e outros bens de grande valor, que atua o papel de patriarca
familiar. Típico do cenário da época, por sua posição social, ela possui, além seu filho, outros
residentes, como: familiares e agregados. Prima Justina e tio Cosme compondo a família, e José
Dias e a família Pádua compondo os agregados. No entanto, isso não significa que a relação de
todos eles com a Dona Glória seja diferente de uma agregação. O agregado tornou-se símbolo
dessa sociedade, o qual agia de forma meticulosamente a não se afirmar, tampouco de marcar
posição. Incitando certa analogia, pode-se pensar nessa situação como um modelo de análise
social brasileira de uma forma geral. A posição do proprietário burguês não seria então
extremamente confortável a ponto de se declarar autônoma. Uma relação de dependência mútua,
onde tanto a família precisa do agregado para se auto-afirmar quanto o agregado necessita do
sistema patriarcal para sobreviver, estaria proposta. E assim acontece, não só com José Dias,
exemplo mais notório, mas também com Capitolina, vizinha e namorada de Bentinho.
Dom Casmurro, ao utilizar-se das exímias técnicas narrativas, aproveita-se de sua posição
favorável seja econômica, seja narrativa, seja autoral, para criar a situação que bem deseja. Logo,
dá ao leitor uma imagem pulsante de Capitu, detentora de uma capacidade argumentativa
incomum para sua idade – constatada, por exemplo, pelo convencimento que ela praticava sobre
Dona Glória, figura grandiosa e temível na obra. Desde pequena, diferentemente dos outros
agregados, era a única que se impunha e mantinha opinião própria a respeito de todos, sem
modelar seu discurso em favor dos outros e da própria dependência.
No entanto, chegando-se ao plano reverso, Dom Casmurro apresenta outra Capitu. Mais
uma vez, por meio de sua maestria retórica, Bento induz, de um lado, o leitor a observar sua
condição anti-patriarcal: casar-se com mulher pobre, puramente por amor, abandonando os
rituais sociais vigentes; e de outro, estrategicamente dispersas no texto, a perceber as atitudes e
referências à mulher de Bento Santiago diminuem e ocorre paulatinamente o silenciamento de
Capitu. Assim, dando a entender que a esperteza predominante em Capitu é fundamental para
tramar, em silêncio, o que viria a ser a traição com Escobar.
Conclui-se, portanto, que “... provas para inocentá-la ou incriminá-la existem, mas se
equiparam quantitativa e qualitativamente; assim, as duas forças opostas, defesa e acusação,
coexistem de tal forma que só podemos incriminá-la e inocentá-la, ou seja, suspendendo nossos
juízos, só podemos conviver com a interrogação que é essa metonímia da escrita machadiana.”
(RAMOS, 2008, pg. 1).
Referências: