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Da dietética à
um estudo de caso
O l h a r e s C r u z a d o s : B ra s i l - Po r t u g a l
Adelino (orgs.). Percursos na
Elemento Humor Órgão Qualidade Constituição história do livro médico (1450-
1800). Lisboa: Edições Colibri,
Ar Sangue Coração Quente e Sanguínea 2011, p. 73-91.
húmido 7
Ver FLANDRIN, Jean-Louis.
Água Fleuma, linfa Cérebro Frio e húmido Fleumática Da dietética à gastronomia ou
ou pituíta a libertação da gula. In: FLAN-
DRIN, Jean-Louis, MONTA-
Fogo Bílis amarela Fígado Quente e seco Colérica ou NARI, Massimo (dir.). História
biliosa da alimentação. Vol. 2, Lisboa:
Terramar, 1998, p. 261-278.
Terra Bílis negra Baço Frio e seco Melancólica 8
Cf. PITTE, Jean-Robert. Gas-
tronomie française: histoire et
géographie d’une passion.
A alimentação adequada passaria pela ingestão de mantimentos
Paris: Fayard, 1991, p. 23-24;
variados, em quantidades moderadas e de acordo com a estação do ano, a DROUARD, Alain. Gourmets
idade, a constituição, o sexo e o esforço físico que cada um exercia quoti- and gourmands. French cuisine
in the 19th and 20th centuries. In:
dianamente. Entendia-se que as crianças eram quentes e húmidas, os jovens FREEDMAN, Paul (dir.). Food.
quentes e secos, os adultos frios e secos e os idosos frios e húmidos, mais The history of taste. Londres:
Thomas & Hudson, 2007, p. 264.
raramente frios e secos. Consequentemente, os alimentos frios e secos eram
adequados às crianças, os frios e húmidos aos jovens, os quentes e húmidos 9
Não conseguimos localizar
nem a obra nem o autor, ape-
aos adultos e os quentes e secos ou quentes e húmidos aos idosos, numa sar de termos recorrido a vá-
personalização sempre suscetível de ser corrigida e adaptada. Apesar de rios instrumentos, mormente
SIMÓN PALMER, Carmen.
aparecerem alimentos “temperados”, isto é, nem quentes nem frios, mas Bibliografia de la gastronomia
húmidos, como a galinha e a codorniz, embora essa tendesse para o calor, española. Notas para su realiza-
a maioria foi qualificada como quente e seca ou fria e húmida, como se ción. Madrid: Academia Nacio-
nal de Gastronomia e Ediciones
pode ver pelo quadro, realizado a partir das indicações de Francisco da Velazquez, 1977.
Fonseca Henriques, médico de D. João V4. 10
Refere-se a Arte de cozina, pas-
telería, vizcochería y conservería.
Quadro 2: Humores, Idade, Sexo e Alimentos Madrid: Luis Sánchez, 1611.
11
RODRIGUES, Domingos.
Humor Quali- Consti- Idade Sexo Tipo de Alimentos Arte de cozinha. Lisboa: Impren-
dade tuição alimen- (exemplos) sa Nacional Casa da Moeda,
tos 1987. A primeira edição é de
1680.
Sangue Quente e Sanguí- Crianças Frio e Centeio, carnes de 12
Cf. BLUTEAU, Rafael. Vo-
húmido nea seco bode e vaca, laranjas,
cabilario portuguez e latino. V.
maçãs, nata, peras.
2. Coimbra: Colégio das Artes
da Companhia de Jesus, 1712,
Fleuma, Frio e Fleumá- Idosos Femi- Quente e Açúcar, arroz, agriões, p. 599.
linfa ou húmido tica nino seco alhos, carnes de coe-
pituíta lho, lebre, porco- mon- 13
Cf. SILVA, António de Mo-
tês e veado, cebola, raes. Diccionario da lingua por-
cenoura, couve, farelo tugueza. T. 1. Lisboa: Oficina
de Simão Tadeu Ferreira, 1789,
de trigo, feijão, grão,
p. 345.
hortelã, mel, salsa.
14
BLUTEAU, Rafael, op. cit.,
Bílis Quente e Colérica Jovens Mascu- Frio e Alface, ameixas, ba- v. 4, p. 98.
amarela seco ou lino húmido nana, carnes de cabrito, 15
Cf. SILVA, António de Mora-
biliosa frangão e vitela, cerejas, es, op. cit. t.1, p. 664.
cogumelos, ervilhas,
espinafres, favas, leite,
16
Cf. MENNEL, Stephan. All
melancia, melão, mo- manners of food: eating and taste
rangos, nabo, peixes e in England and France from the
middle ages to the present. 2.
mariscos, peras, pepi-
ed. Urbana: Chicago, Universi-
no, pêssegos, queijo,
ty of Illinois Press, 1996, p. 267.
requeijão, sal.
17
Sobre as questões de identida-
Bílis Frio e Melan- Adultos Quente e Ananás, azeite, carnes de culinária, cf. SCHOLLIERS,
negra seco cólica húmido de cordeiro, leitão, Peter. Meals,
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food narrati-
pato e porco, coco, fi- ves, and sentiments of belon-
gos, maçãs, manteiga, ging in past and present. In:
SCHOLLIERS, Peter (dir.).
ovos, uvas.
Food, drink and identity: cook,
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2. Lisboa: Terramar, 2001, p.
sido inventada por Joseph Berchoux, em 1801, que a utilizou no título de 384. Para o caso italiano, cf. CA-
um poema. Disseminou-se, em seguida, e deu origem a gourmand, então PATTI, Alberto, MONTANARI,
Massimo, op. cit., p. 60-62,
entendido como o glutão, ou seja, assumindo uma acepção pejorativa, e a
MONTANARI, Massimo, op.cit.
gourmet, a pessoa de gosto refinado. Por seu lado, o gastrónomo era mais do p.113, passim; Idem. L’identidà
que o gourmet, pois além de possuir bom gosto escrevia sobre a temática16. italiana in cucina. Bari: Laterza,
2010, p. 75-80.
21
BRUEGEL, Martin, LAU-
O nascimento das cozinhas nacionais RIOUX, Bruno. Introduction.
Histoire et identités alimen-
Sabemos que a existência de pratos nacionais e regionais não foi uma taires en Europe. In : BRUE-
GEL, Martin, LAURIOUX,
realidade contemporânea dos primeiros livros de cozinha. A afirmação da Bruno (dir.). Histoire et identités
identidade culinária17 só aos poucos se foi tornando algo concreto. Não es- alimentaires en Europe. Paris :
Hachette, 2002, p. 10-11.
queçamos que, no espaço europeu, em textos de proveniência diversificada,
podemos encontrar receitas com as mesmas designações e com um conte- Sobre estas conceptualiza-
22
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atendendo a que alguns autores introduziram paralelamente às designações 46
Ibidem, p. 251.
“à francesa”, “à inglesa”, etc. a indicação “prato brasileiro”, “prato russo”, 47
Sobre o interesse económico
etc. Vejamos alguns casos sintomáticos. O Manual do conserveiro e confeiteiro do turismo, cf., por exemplo,
BORSAY, Peter. A history of
(1875) apresentou diversos doces cujas designações apelaram a uma natu- leisure: the british experience
ralidade estrangeira: bolos de Moscóvia, de Reims, e de Sabóia, fatias da since 1500. Hampshire/Nova
York: Palgrave Macmillan,
China, compotas de limões e laranjas à chinesa, melindres à espanhola, à 2006; BATTILANI, Patrizia, op.
mexicana e à napolitana, ovos tártaros, pão de Espanha, torrão de Alicante, cit., p. 23-51.
de Espanha e francês31. Na Arte de cozinha (1876), João da Mata descreveu 48
Sobre as políticas estatais
várias dezenas de receitas de diversas inspirações, com grande destaque de promoção turística e sobre
a relação entre as ditaduras
para a França, de tal modo que seria fastidioso enunciar, contudo usou e e o turismo na Europa, cf. a
abusou de termos franceses quer na designação das receitas quer até nos síntese de FARALDO, José M.
ingredientes e nos utensílios. Paralelamente – e este é o primeiro alerta nos e RODRÍGUEZ-LÓPEZ, Caro-
lina. Introducción a la historia
textos impressos – especificou um prato russo e um outro brasileiro32. O del turismo. Madrid: Alianza
Manual da conserveira (1890) não fugiu à realidade mais frequente, embora Editorial, 2013, p. 124-146.
de forma mais moderada, ao publicar receitas de biscoito de Sabóia, bolos 49
Sobre esta instituição, cf.
inglês, à polonesa e de Sabóia, fatias da China, palitos a la reyna, pudins PINA, Paulo. Portugal: o tu-
rismo no século XX. Lisboa:
à espanhola, à inglesa e inglês33. O cozinheiro indispensavel (1894) indicou Lucidus, 1988, p. 14-19, passim.
uma profusão de receitas de origens diversas: arroz doce à espanhola, à 50
Cf. PINA, Paulo, op. cit.p. 21-
brasileira e à japonesa, açorda à espanhola, à andaluza e à sevilhana, alca- 31, passim.
chofras à espanhola e à italiana, atum à provençal, batatas à inglesa, carne 51
Sobre esta matéria, cf. PINA,
estufada, coelho e croquetes de bacalhau à espanhola, coelho à valenciana, Paulo, op. cit., p. 53-63; Viajar:
viajantes e turistas à desco-
dobrada à espanhola, ervilhas à francesa e à inglesa, feijoada à brasileira, berta de Portugal no tempo
macarrão com salsichas à italiana, mão de vaca à brasileira, mexilhão à da Primeira República. Lisboa:
Comissão Nacional para as
provençal, molhos alemão, espanhol e holandês, pimentos à espanhola,
Comemorações do Centenário
pirão à brasileira, rosbife à alemã e à inglesa, sopa à inglesa, à italiana, à da República, Turismo de Por-
espanhola e à brasileira34. Por seu lado, a Novissima arte de cozinha (1889), tugal, 2010, em especial o texto
de Maria Alexandre Lousada,
além das situações habituais antes descritas, teve o cuidado especial de Viajantes e Turistas. Portugal,
apresentar receitas genuinamente brasileiras, tais como: sopas de fígado, 1850-1926, Ibidem, pp. 65-75.
de cebola à mineira, de sagu e de peixe a Caiapó; molhos pardo à mineira, 52
Cf. SOBRAL, José Manuel.
para assar, de laranjas verdes e à mineiro além de diversos pratos de car- Nacionalismo, culinária e clas-
se: a cozinha portuguesa da
ne, nomeadamente: churrasco à rio-grandense, lombo de vaca à mineira, obscuridade à consagração
língua branca, língua ensopada parda, tripas de vaca à mineira, tripas de (séculos XIX-XX). Ruris, v. 1,
n. 2, Campinas, 2007, p. 40-43.
vaca enroladas, chouriço de vitela, costeletas de vitela guisadas, guisado
de vitela com grelos, salame de cabeça de vitela, vitela assada de creme, Cf. PINA, Paulo, op. cit., p.
53
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Tejo, cf. CATARINO, Maria Ma-
receitas nacionais e regionais. A saber, arroz à antiga portuguesa, dobrada à nuela. Na margem direita do baixo
moda do Porto, salsichas à alentejana, mexilhões à moda de Aveiro, alcatra Tejo: paisagem rural e recursos
alimentares (séculos XIV e XV).
à açoriana e ainda arroz doce, bifes, bacalhau, iscas de fígado de vaca, fa-
Cascais: Patrimonia, 2000; Idem,
vas, coelho, sável, moqueca, salsichas, panela, lombos de pescada, capatão A carne e o peixe nos recursos
recheado e ervilhas, tudo à portuguesa. A mesma obra salientou ainda que alimentares das populações
do Baixo Tejo. In: ALARCÃO,
“cada país tem a sua arte de doçar ou fazer doce e cada localidade tem os Miguel, KRUS, Luís e MIRAN-
seus pratos especiais e os seus produtos peculiares. Assim, pois, em parte DA, Maria Adelaide (coord.).
Animalia: presença e represen-
alguma se fabricam morcelas como em Arouca, queijadas como em Sintra,
tações. Lisboa: Colibri, 2002,
ovos-moles como em Aveiro, arrufadas como em Coimbra, pão-de-ló como p. 49-59.
em Margaride, cavacas como em Resende e frigideiras como em Braga”46. 63
Cf. BRAGA, Isabel M. R. Men-
Evidenciavam-se, assim, alguns preparados regionais. des Drumond. A circulação e a
distribuição dos produtos. In:
A partir da implantação da República (1910), o interesse pelo turismo SERRÃO, Joel e MARQUES,
expandiu-se. Esta actividade, com dupla dimensão: económica e prática A. H. de Oliveira (dir.). Nova
social e cultural47, foi acarinhada pelo novo regime e, posteriormente, pelo história de Portugal. V. 5. Lisboa:
Presença, 1998, p. 230-231 (dis-
Estado Novo48. Deste modo, se no final da Monarquia, em 1906, se criara a ponível em <https://www.aca-
Sociedade Propaganda de Portugal49, com jurisdição sobre o turismo, em demia.edu/7314174/>). Sobre as
pescas de algarvios no Norte de
1911, Lisboa acolheu o IV Congresso Internacional de Turismo, permitindo África, cf. MAGALHÃES, Joa-
a Portugal inserir-se nos órgãos federativos internacionais. Nesse mesmo quim Romero de. Para o estudo
ano, foi criada a Repartição do Turismo, do Ministério do Interior50. Em do Algarve económico durante
o século XVI. Lisboa: Cosmos,
1916, a Revista de Turismo, passou a ser publicada e, no princípio da dé- 1970, p. 160-161.
cada de 20, foram identificados e classificados 135 lugares turísticos, com 64
Pensemos, por exemplo, no
destaque para 69 praias e 47 termas. Entretanto, a publicação de brochu- que chegava da Galiza e das
ras, cartazes, folhetos e guias diversos, destinados a públicos distintos, Astúrias ao Porto. Cf. FERREI-
RA, José Albino Pinto. Visitas de
incluindo estrangeiros, foi tendo lugar. Destaque-se o Guia de Portugal, saúde às embarcações entradas na
cujos primeiros dois volumes saíram em 1924 e 1927, sob a tutela de Raul Barra do Douro nos séculos XVI e
XVII. Porto: Câmara Municipal,
Proença51. É neste contexto inicial52, desenvolvido durante o Estado Novo, 1977, SILVA, Francisco Ribeiro
nomeadamente pela mão de António Ferro, que se intensifica o interesse da. O Porto e o seu termo (1580-
pelos costumes locais e por uma certa “portugalidade”. No entanto, na 1640): os homens, as institui-
ções e o poder. Vol. 2. Porto:
década de 30, o parque hoteleiro era precário tanto a nível das instalações Arquivo Histórico, Câmara
quanto dos serviços prestados por pessoal não qualificado. Refira-se, por Municipal, 1988, p. 748; MA-
CHADO, Maria de Fátima. O
exemplo, que o primeiro curso de gerentes de hotéis datou de 1931 e que central e o local: a vereação do
em 1933 se promoveu uma exposição inaugurada em Lisboa sobre o Hotel Porto de D. Manuel a D. João
Modelo, na qual foram apresentados oito projectos arquitectónicos de hotéis III. Porto: Afrontamento, 2003,
p. 120.
regionais (Minho, Douro, Trás-os-Montes, Beira Alta, Beira Baixa, Estre-
65
O pagamento de tributos,
madura, Alentejo e Algarve), o que acabaria por dar origem à concepção nomeadamente do dízimo,
das pousadas, a partir de 194053. nem sempre foi pontualmente
Note-se que este interesse pelas escalas regional e local foi ���������
rela-
����� satisfeito pelos pescadores,
o que suscitou ameaças de
tivamente presente ao longo dos tempos, manifestando-se em vários excomunhão por parte dos
domínios, nomeadamente no da produção historiográfica. Verificaram- visitadores de Santo André
de Mafra em 1505 e 1506. No
se preocupações mais ou menos entusiásticas pela história regional, documento pode ler-se que a
normalmente entendida como uma maneira de alicerçar o sentimento dízima devida à igreja deveria
nacional e a consciência histórica, em particular a partir do século XIX54. ser paga por inteiro, antes de
ser retirada a vintena perten-
Especialmente na segunda metade da centúria, e no início do século XX, cente ao Rei. Cf. PEREIRA,
sob o impulso das considerações de Alexandre Herculano, assistiu-se ao Isaías da Rosa. Visitações de
São Miguel de Sintra e de Santo
incremento do interesse pela história regional baseada na necessidade de André de Mafra (1466-1523).
lançar os alicerces de uma história de Portugal devidamente fundamenta- Lusitania Sacra, t. 10, Lisboa,
da55. Surgiram, deste modo, historiadores dedicados a diversas zonas do 1978, p. 208-209. A questão
dos tributos chegou a levar a
país56. Apareceram então trabalhos eruditos, baseados em documentação excessos por parte de alguns
inédita, que muitas vezes foi publicada pelos próprios autores, a par de pescadores. Por exemplo, na
visitação de 1613, a São Pedro
algum trabalho mais voltado para o pitoresco57. As monografias do final da Ericeira, o Doutor Tomás
do século XIX e início do século XX tenderam a ser textos narrativos, voca- Gonçalves Ferreira, visitador,
O l h a r e s C r u z a d o s : B ra s i l - Po r t u g a l
do consumidor na cidade me-
despendidas na aquisição de peixe fossem elevadas74. dieval: os produtos alimentares
Obtido o peixe, importava transportá-lo para as diferentes zonas do (Lisboa, séculos XIV-XV). In:
Um olhar sobre a cidade medieval.
Reino, o que era feito por barca, besta e azémola, depositado em barris,
Cascais: Patrimonia, 1996, p.
canastras, seiras e golpelhas75, não se sabendo se, tal como em Castela 102; SILVA, Francisco Ribeiro
se utilizava neve para assegurar a frescura76. Além do peixe consumido da, op. cit., vol. 2, p. 749; MA-
CHADO, Maria de Fátima, op.
fresco era frequente o gasto de peixe salgado, seco, fumado, em empadas, cit., p. 120-121. Sobre estas pre-
em escabeche e em conserva em barris, nomeadamente atum e salmão77. ocupações em outros espaços
europeus, cf. MOLÉNAT, Jean-
Assim, as técnicas de conservação, ainda que rudimentares, não deixavam
Pierre. L’approvisionnement de
de motivar o aparecimento de receitas destinadas a preservar por mais Tolède au XVe siècle, d’après les
tempo as espécies78. ordennances municipales. In :
L’approvisionnement des villes de
Tal como outros géneros, os peixes conheciam uma hierarquia que se l’Europe Occidentale au Moyen
traduzia no preço e, consequentemente, na possibilidade de aquisição de Age et aux Temps Modernes.
Auch : Flaran, 1985, p. 217;
algumas espécies só por parte dos mais abastados. Se a sardinha e o baca-
BENNASSAR, Bartolomé. L’ap-
lhau79 eram habitualmente entendidos como alimentos dos pobres, já por provisionnement des villes de
exemplo, a lampreia e o linguado eram só para algumas bolsas. Nos grupos Castille aux Temps Modernes,
Ibidem, p. 160, KINTZ, Jean-
privilegiados, o comportamento alimentar era marcado pela abundância Pierre. L’approvisionnement
e variedade de carnes, quase só se utilizando o peixe nos chamados dias en vivres des villes des Pays
du Main et du Rhin Supérieur
magros, devido aos preceitos de jejum e abstinência decretados pela Igreja,
(XVI e-XVII e siècles), Ibidem,
já nos mais humildes a situação era diferente. Por exemplo, na alimentação p. 259.
medieval do campesinato, em matéria piscícola, o destaque incidia nas 69
Este autor escreveu três me-
sardinhas80. Por outro lado, junto da Ribeira, em Lisboa, durante o século mórias sobre peixe e pesca.
A saber: Memória sobre a
de Quinhentos, havia 10 cabanas com braseiros manipulados por homens e preparação do peixe salgado,
mulheres que aí assavam sardinhas e outros peixes, os quais alimentavam e seco das nossas pescarias,
homens livres e escravos que trabalhavam nas imediações81. memória sobre a decadência
das pescarias de Portugal e
Em 1610, Duarte Nunes do Leão traçou um quadro da actividade Memória sobre algumas ob-
piscícola do Reino, salientando irezes, sáveis e solhos do Guadiana; aze- servações feitas no ano de
1789 relativas ao estado da
vias, cações, corvinas, linguados, sáveis, solhos e tainhas do Tejo; eiroses, pescaria da província de Entre
lampreias, linguados, relhos, salmões, sáveis e trutas dos rios Ave, Cávado, Douro e Minho. Estes textos
Douro, Leça, Lima, Minho, Mondego, Neiva e Vouga e trutas – peixe de foram publicados nas Memórias
económicas da Academia Real
água doce – obtidas nas terras da Beira e de Entre Douro e Minho. A pesca das Ciências de Lisboa, para o
marítima foi ainda considerada, tendo merecido destaque besugos, cher- adiantamento da agricultura, das
artes, e da indústria em Portugal
nes, linguados, salmonetes, sargos, pescadas, peixes-agulha, rodovalhos, e suas conquistas (1789-1815). T.
sardas e sardinhas de Setúbal e atum do Algarve, além de cações, corvi- 4. Lisboa: Banco de Portugal,
nas, linguados, lixas, pescadas, polvos e raias de Aveiro, Buarcos, Cascais, 1991, p. 197-240, 241-288 e 249-
313, respectivamente.
Pederneira, e Peniche82.
70
Sobre estas questões, cf.
Nos livros de culinária, o peixe ocupou um espaço relevante. Do- BRAGA, Isabel M. R. Mendes
mingos Rodrigues na sua Arte de cozinha, publicada pela primeira vez em Drumond. O peixe na dieta
1680, dissertou acerca das épocas em que cada espécie piscícola era melhor, alimentar dos portugueses
(séculos XVI-XVIII). In: Do
escrevendo: “os linguados do rio, azevias, rodovalhos, cabras e pescadas, primeiro almoço à ceia: estudos
são sempre bons todo o ano, e as lampreias no tempo em que as há. Po- de história da alimentação, op.
cit., p. 35-60.
rém sáveis, gorazes, cachuchos, robalos, bogas e tamboril, são em janeiro,
fevereiro e março. Congros, sargos, abróteas, e eirós, em todo o tempo de
71
Sobre estes dois conceitos, cf.
POMMARÈDE, Pierre Pomma-
janeiro até setembro. Cibas [isto é, polvos] e cações, de fevereiro até ao fim rède. Le jeûne et l’abstinence.
de maio. Pargos, douradas, fanecas e sardas, de abril até outubro. Corvinas In : Du bien manger et du bien
vivre à travers les âges et les ter-
só em maio e junho. Chernes, tainhas e carapaus, em junho e agosto. Sal- roirs. Pessac :
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Maison des Scien-
monetes, besugos e choupas em agosto, setembro e outubro. Sardinhas e ces de l’Homme d’ Aquitaine,
raias, em novembro e dezembro”83. O autor apresentou 66 receitas de peixe 2002, p. 83-93. Sobre a vivência
dos dias de jejum e abstinência
e de marisco, as quais representaram 11 % do total. Contudo, estas não em Portugal, cf. MARQUES,
incluíram todos os tipos de peixes que antes tinha enunciado. Em termos A. H. de Oliveira. A sociedade
medieval portuguesa: aspectos de
de técnicas culinárias, o peixe apareceu cozido, frito e assado, mas também vida quotidiana. Lisboa: Sá da
para recheio, em caril, escabeche, conserva, empada, torta e pastéis. Costa, 1981, p. 10 e COELHO,
O l h a r e s C r u z a d o s : B ra s i l - Po r t u g a l
Azevedo Santos, Jantar e cear na
caso, o mexilhão. Olleboma forneceu cinco receitas: sopa e caldeirada de corte de D. João III, op. cit., p. 43.
enguias à pescadora (Ria de Aveiro), sopa de peixe à pescadora (na qual 76
Cf. JACINTO GARCIA, L.,
os peixes a utilizar podiam ser enguias ou fabaça, linguado, robalo, solho op. cit., p. 53.
ou outro), caldeirada de enguias, enguias à moda de Aveiro e mexilhões 77
Cf. BEIRANTE, Maria Ângela
à moda de Aveiro92. Eis que estamos perante um conjunto de receitas que da Rocha. Santarém quinhentis-
ta. Lisboa: [s.n.], 1981, p. 247;
constituiu o primeiro passo na apresentação da gastronomia regional SANTOS, Maria José Azevedo
aveirense. Efectivamente, se dermos um salto no tempo e passarmos para Santos. O peixe e a fruta na ali-
um dos mais conhecidos livros de receitas tradicionais portuguesas, o de mentação da corte de D. Afonso
V: Breves Notas. In: Idem. A
Maria de Lourdes Modesto, cuja primeira edição datou de 1981, podere- alimentação em Portugal na idade
mos aí encontrar preparados semelhantes, nomeadamente a caldeirada de média, op. cit., p. 1-33.
enguias e os mexilhões, ambos à moda de Aveiro, a par dos ovos-moles93. 78
Cf. Lisboa, BNP, Cod. 7376,
Note-se que Olleboma, no prefácio à sua obra esclareceu os seus fols 81 e 85, de entre outras.
Veja-se anexo, receitas n.os 1 e 2.
propósitos acerca da compilação das receitas: “não pretendemos dar neste
79
Sobre o consumo de baca-
modesto trabalho uma lista completa de todos os pratos nacionais e regio- lhau, cf. SOBRAL, José Manuel.
nais portugueses – alguns faltarão, sobretudo os que constituem especia- Alimentação, comensalida-
lidades individuais, por se ignorar onde se encontram os seus preparados de e cultura: o bacalhau e os
portugueses. XI congresso luso
ou inventores”, em seguida identificou as suas fontes: muitas senhoras que afro brasileiro de ciências so-
lhe enviaram receitas e, finalmente, expôs os seus objectivos: ciais - Conlab, Salvador, 2011.
Disponível em <http://www.
xiconlab.eventos.dype.com.br/
evitar que caiam no esquecimento excelentes preparações, que mostram qualidades resources/anais/3/1307570983_
de originalidade, de sabor característico com perfumes equilibrados e agradáveis, ARQUIVO_AlimentacaoXI-
ConlabJMS.pdf >. Acesso em 28
revelando personalidade que deixam impressões de agrado, a nós portugueses e de set de 2013, BRAGA, Isabel
aos estrangeiros que nos visitam […], pretendemos também chamar a atenção dos Drumond. Morue, POULAIN,
Jean-Pierre (dir.). Dictionnaire
hoteleiros e dos proprietários dos restaurantes, especialmente das regiões turísticas des cultures alimentaires. Paris :
e de passagem mais ou menos forçada do automobilismo, para as receitas culinárias PUF, 2012, p. 889-893.
nacionais, lembrando a conveniência, para eles individualmente e para a região 80
COELHO, Maria Helena da
onde vivem e trabalham, em preparar especialidades, que executem com cuidado, Cruz. Apontamentos sobre a
comida e a bebida do campe-
empregando só produtos das melhores qualidades, escolhidos de preferência entre sinato coimbrão em tempos
os produzidos ou transformados na própria região e que aí se encontrem perfeitos medievos. In: Homens, espaços
e com facilidade.94 e poderes (séculos XI a XVI): I.
Notas do viver social. Lisboa:
Horizonte, 1990, p. 9-22.
Eis um programa que agradou na época e que não perdeu actualida- 81
BUARCOS, João Brandão de.
de, mesmo entre os seguidores de movimentos como o slow food. Grandeza e abastança da cidade de
Lisboa em 1552. Lisboa: Livros
Horizonte, 1990, p. 107.
*** 82
Cf. LEÃO, Duarte Nunes do,
op. cit. p. 195-197.
A gastronomia aveirense fundamenta-se, tal como a de outros 83
Cf. RODRIGUES, Domingos,
espaços do país, tendo em conta um conjunto diversificado de fontes e, op. cit.
simultaneamente, sendo colocada sob a óptica da longa duração. Ausente 84
Sobre a importância destas
dos primeiros receituários, começa a emergir quando os regimes políticos duas obras ainda no século
XIX, cf. BRAGA, Isabel M. R.
no âmbito dos seus projectos governativos valorizam os âmbitos regional Mendes Drumond. Portugal
e local, em busca de especificidades com fins utilitários, quer económicos à mesa: alimentação, etiqueta
quer culturais. Deste modo, é impossível entender a gastronomia regional e sociabilidade (1800-1850).
Lisboa: Hugin, 2000, p. 103-114.
se a mesma não for enquadrada num amplo conjunto de opções que são
85
Cf. RIGAUD, Lucas Rigaud,
em primeiro lugar políticas. op. cit.
No caso concreto de Aveiro, é a ria e, em particular, a riqueza das 86
A título meramente exempli-
águas que circundam a cidade, a responsável pela abastança proveniente ficativo, vejamos dois casos. Em
do comércio do sal e, no caso que nos interessa, pelas diversas espécies Sintra, as especialidades locais
indicadas foram queijadas – da
ictiológicas, com particular destaque para as enguias, secundadas pelos Sapa, Matilde, etc. – as quais se
famosos moluscos bivalves, os mexilhões, já saudados num passado de encontravam “à venda em qua-
se todos os estabelecimentos e
séculos. Se as caldeiradas e outros preparados de peixe, nomeadamente as
na estação dos caminhos-de-
89
SOARES, Fernando, op. cit. semelhantes. Nesse caso, delas há notícias desde o século XVII, embora
p. 160.
inicialmente sem se associarem à cidade de Aveiro.
90
Sobre os ovos-moles, cf.
BRAGA, Isabel M. R. Mendes
Drumond. Ovos, ovos, ovos
℘
e mais ovos: cultura, econo- Artigo recebido em abril de 2014. Aprovado em maio de 2014.
mia, dietética e gastronomia.
Revista de História da Sociedade
e da Cultura, v. 13, Coimbra,
2013, p. 399-432. Disponível
em <https://www.academia.
edu/6982216/>.
91
Cf. MAIA, Carlos Bento da,
op. cit., p. 311-312, 575.
92
OLLEBOMA, op. cit., p. 35-36,
45-46, 80-81, 84-85 e 170.
93
Cf. MODESTO, Maria de
Lourdes. Cozinha tradicional
portuguesa. Lisboa: Verbo, 1989.
94
OLLEBOMA, op. cit., p. 25.