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PRIMEIRO VOLUME
O ESPECIALISTA INSTANTÂNEO
EM FILOSOFIA
Jim Hankinson
Tradução e adaptação
Desidério Murcho
O QUE A FILOSOFIA É
Eis uma coisa que o leitor deve sempre evitar tentar explicar. Mas
pode desejar ficar com duas coisas claras desde o início.
Em primeiro lugar, a filosofia não é um assunto, é uma actividade.
Consequentemente, não se estuda: fazse. É assim que os filósofos,
pelo menos os da tradição anglosaxónica (que por qualquer razão
histórica obscura parecem incluir os finlandeses), têm tendência para
pôr a coisa. Em segundo lugar, a filosofia é em grande parte uma
questão de análise conceptual ou seja, pensar sobre o pensamento. Por
agora, limitemonos ao mais básico.
Isto é algo que alguns filósofos sentem ser impossível, mas não há
razão para o leitor lhes seguir o exemplo. Para o visitante casual que
observa de relance a paisagem, a filosofia parece desconcertantemente
difícil. Uma das suas maiores dificuldades é o facto de os filósofos,
salvo raras e honrosas excepções, acharem praticamente impossível usar
uma linguagem compreensível para as pessoas comuns, como por exemplo o
português. Acontece até que quando um filósofo quer referirse à
Pessoa Comum (uma espécie que é improvável que tenha conhecido em
primeira mão, apesar de poder ter ouvido lendas de viajantes acerca
dela), usa a expressão «o homem que apanha a carreira 45 para a
Algés», aparentemente sem se dar conta de que já ninguém usa a palavra
«carreira», excepto para referir o percurso vicioso dos políticos, e
que Algés já não é também o exemplo ideal da mediocridade suburbana
lisboeta.
A sua tarefa, portanto, é alcançar pelo menos uma ténue compreensão do
mais profundo alcance do vocabulário técnico, tal como é usado, de
forma tão enigmática, pelo filósofo contemporâneo. Não se preocupe. A
competência linguística, como o Segundo Wittgenstein teria dito (que
não deve confundirse, é claro, com o Primeiro Wittgenstein, que não
diria tal), é uma questão de pôr as palavras na ordem certa. O leitor
não terá realmente de compreender que quer dizer a maior parte disto,
se é que quer dizer alguma coisa.
AS MORTES DOS FILÓSOFOS
Segundo os epicuristas, a morte nada é para nós mas apesar da
opinião deles, incluímos a seguinte lista de mortes filosóficas
bizarras, para efeitos de completude.
Há duas tradições no que respeita à morte de Empédocles. De acordo com
uma delas, morreu de uma perna partida; mas a outra defende que saltou
para a cratera do Monte Etna para provar assim que era um deus. Não se
sabe como poderia isto constituir tal prova.
Heraclito, contudo, contraiu hidropisia em resultado de viver de erva
e de outras plantas numa encosta de uma montanha, numa veneta
misantrópica. Ao ser informado pelos médicos que o seu estado não
tinha cura, tomou o tratamento a seu cargo, obrigandose a ser coberto
da cabeça aos pés com estrume, sendo depois deixado na rua (ou talvez
tivesse acontecido apenas que ninguém o queria em casa). Segundo o
historiador Diógenes Laércio, «ele não conseguiu tirar o estrume, e,
estando assim irreconhecível, foi devorado pelos cães». Talvez os cães
não o tivessem devorado se soubessem quem era.
Nunca mencione a morte de Sócrates com cicuta numa cela ateniense; mas
se tiver a infelicidade de alguém lho mencionar, tente fazer notar que
a descrição da sua morte no Fédon de Platão é completamente
inconsistente com os efeitos conhecidos da cicuta: por isso, alguém
estava a mentir.
Pitágoras foi uma vítima do seu próprio vegetarianismo extremo. Ao ser
perseguido por vários clientes insatisfeitos, chegou a um campo de
feijão e, para não o pisar, ficou onde estava, acabando assim por ser
morto.
Crínis, o estóico (uma escola famosa pela sua atitude imperturbável e
indiferente em relação aos aspectos terrenos) morreu de medo com um
guincho de um rato. A filosofia estóica nunca conseguiu recuperar
completamente deste revés.
Crisipo, o estóico, por outro lado, morreu a rir de uma das suas
terríveis anedotas. Um macaco de uma velha, assim reza a história,
comeu uma vez uma grande quantidade dos figos de Crisipo, após o que
este lhe ofereceu o seu odre, dizendo «É melhor ele dar um golo para
acompanhar os figos», após o que desatou às gargalhadas. Depois
morreu. Com um sentido de humor assim, não temos de nos sentir
culpados se pensarmos que foi uma sorte nenhum dos seus 700 livros ter
sobrevivido.
Diógenes terá morrido de uma das seguintes três maneiras:
1) Porque não se deu ao trabalho de respirar.
2) Devido a uma grave indigestão em resultado de comer polvo cru.
3) Por ter sido mordido no pé ao dar polvo cru aos seus cães.
Depois do período antigo a qualidade das mortes filosóficas decaiu
consideravelmente, apesar de valer talvez a pena registar que Tomás de
Aquino morreu na retrete, tal como já tinha acontecido a Epicuro.
Francis Bacon morreu em resultado de uma pneumonia que apanhou quando
tentava congelar uma galinha na neve, em Hampstead Heath. É talvez o
único homem que alguma vez morreu em resultado de uma investigação
relacionada com a comida e não por a ter efectivamente comido.
Finalmente, Descartes teve a pouca sorte de morrer por se levantar
demasiado cedo. Atraído pela corte da Rainha Cristina da Suécia,
descobriu para seu horror que ela queria ter explicações diárias e que
a única hora que tinha livre era às cinco da manhã. O choque matouo.
A CENA CONTEMPORÂNEA Os Filósofos AngloSaxónicos
Os filósofos anglosaxónicos (incluindo, é claro, os finlandeses), têm
tendência para negar que fazem parte de uma qualquer escola ou
corrente: na verdade, costumam encarar o sectarismo filosófico como um
perigoso hábito continental, devendo por isso ser desprezado. No
entanto, têm realmente tendência para se juntar, como se precisassem
de apoio, acreditando talvez, possivelmente com razão, que precisam
dele. São invariavelmente classificados em bloco como «filósofos
analíticos», mesmo que nunca tenham na verdade analisado nada.
Antes da Primeira Guerra Mundial, as duas personalidades mais
importantes da filosofia britânica eram provavelmente (lembrese,
nunca se comprometa, se o puder evitar) Bertrand Russell e G. E.
Moore. Russell conseguiu a sua reputação com a publicação de Principia
Mathematica, cujo coautor foi A. N. Whitehead, e que por isso é por
vezes conhecida como «Russell e Whitehead», à maneira dos grandes
estudos sobre sexo. Esta obra é uma exposição extremamente detalhada
da lógica simbólica formal e como tal não é uma leitura recomendável
para viagens longas de comboio; na verdade, não é uma leitura
recomendável em nenhuma situação.
Moore, para não ser ultrapassado no que respeita a títulos latinos
sonoros e portentosos, reagiu com o seu influente tratado Principia
Ethica, no qual sustentava que a palavra «bem» é indefinível, apesar
de ser o nome de uma qualidade não natural. Um conceito de Moore muito
discutido neste contexto é o da «falácia naturalista». No entanto, é
muito difícil dizer exactamente o que é isso: a ideia de Moore parece
ser a de que não podemos definir termos éticos em termos de termos não
éticos e que não se podem deduzir proposições éticas de proposições
factuais não éticas.
Esta confusão faz com que a falácia naturalista seja extremamente
útil, especialmente se o leitor seguir os passos do próprio Moore e
nunca argumentar a favor da ideia de que isto é uma falácia, mas se
limitar antes a asseverar que é. O leitor pode complementar isto de
maneira muito útil, numa conversa de café, com outro conceito de
Moore, o argumento da questão em aberto. Este argumento defende que,
seja o que for que se verifique factualmente em relação a um objecto
ou propriedade particular (que as pessoas gostam dele, por exemplo; ou
que sabe a queijo), continua a ser uma questão em aberto se isso é um
bem ou não. Moore era famoso pela sua robusta aproximação à filosofia,
não admitindo disparates sem sentido; uma vez informou uma turma
atónita que nada era mais certo do que o facto de ter duas mãos. Não
se sabe claramente quem tinha estado disposto a duvidar disso.
Quanto a Russell, as suas outras grandes contribuições para a
filosofia (para além das suas outras actividades, que incluíam o
pacifismo e a promiscuidade, podendo assim serem definidas pelo slogan
dos anos sessenta «Make Love Not War», o que Russell fez até uma idade
invejavelmente avançada) incluem a descoberta do paradoxo de Russell,
com o qual pôs fim a uma coisa depreciativamente conhecida por teoria
ingénua dos conjuntos, assim como a teoria das Descrições. A teoria
das Descrições é uma tentativa de analisar a lógica da linguagem
natural (não se esqueça desta expressão) e, em particular, o problema
dos nomes próprios. Este último, tal como a maioria dos problemas
filosóficos, não é um problema para mais ninguém a não ser para os
filósofos. Russell usou como exemplos algumas frases regularmente
usadas pelos ingleses, como «O actual Rei de França é careca» ou
«Scott escreveu o Waverley». Esta última, segundo Russell, significa
na realidade que «alguém escreveu o Waverley; só uma pessoa escreveu o
Waverley; e se alguém escreveu o Waverley, essa pessoa era Scott». Com
isto uma pessoa pode sentirse tentada a inferir que os filósofos
sabem tanto acerca da linguagem comum como sabem acerca das pessoas
comuns (ver a Introdução).
A atitude correcta em relação à História da Filosofia Ocidental, de
Russell, é elogiar o seu estilo, lucidez e humor, ao mesmo tempo que
se manifestam algumas reservas quanto ao seu conteúdo: «Uma leitura
maravilhosa, claro, mas não pensas que é um pouco tendenciosa?» A
expressão «não pensas» faz parte de uma pergunta de retórica, e nunca
deve ser tomada literalmente.
Talvez o mais influente encontro filosófico ocorrido antes da Primeira
Guerra Mundial tenha sido o que ocorreu em 1912, quando (o Jovem)
Wittgenstein se encontrou com Russell em Cambridge, e lhe perguntou (a
Russell) se ele (o Jovem Wittgenstein) era um completo idiota; é que,
se acaso o fosse, iria para piloto de aviões. Russell disselhe que
fosse escrever qualquer coisa; o Jovem Wittgenstein assim fez, Russell
leu uma linha e disselhe que ele era demasiado esperto para ser um
aviador.
A guerra interrompeu a carreira do Jovem Wittgenstein em Cambridge,
mas regressou depois disso já como Primeiro Wittgenstein, passando a
dominar a vida filosófica de Cambridge, e não só, durante os trinta
anos seguintes. Sendo uma personagem encantadoramente excêntrica,
apaixonado por filmes medonhos, vivia numa cadeira de espaldar debaixo
de um aquecedor eléctrico, num quarto do Trinity College, que para
além disso estava completamente vazio. Publicou um único livro em toda
a sua vida, o Tractatus LogicoPhilosophicus, no qual trata de
problemas como a estrutura da proposição, a questão de saber como tem
a linguagem significado, assim como as noções de verdade e falsidade.
As suas investigações fizeramno acreditar que só as proposições
construídas através dos conectivos lógicos a partir de proposições
atómicas tinham sentido. Daí o nome «atomismo lógico» que designa este
tipo de filosofia. Tudo o resto não tinha literalmente sentido, o que
nos livra da metafísica, juntamente com muitas outras coisas. Na
verdade, tem a consequência infeliz de fazer com que quase todo o
Tractatus seja ele próprio destituído de sentido, se o que afirma for
verdade.
O Primeiro Wittgenstein reconhecia isto, dizendo que só se de alguma
maneira já soubermos o que ele quer dizer podemos compreender o seu
livro; e que a sua filosofia é como uma escada que deitamos fora
depois de a subirmos. Muitas pessoas interpretaram a metáfora
literalmente. A última frase do livro resume a ideia: «Do que um homem
não pode falar, tem um homem de fazer silêncio.», ou, para o
especialista instantâneo realmente ambicioso: «Wovon man nicht
sprechen kann, darüber muß man schweigen.»
Depois disso Wittgenstein deixou a filosofia por uns tempos,
convencido que já tinha dito tudo. Contudo, acabou mais tarde por
mudar de ideias: este é o ponto crucial em que o Primeiro Wittgenstein
se torna no Segundo Wittgenstein e, enquanto tal, a segunda figura
(depois do Primeiro Wittgenstein) verdadeiramente influente da
filosofia do período entre as duas guerras.
No Tractatus, Wittgenstein pensava que as proposições têm significado
porque são como imagens dos factos que referem. Mas o Segundo
Wittgenstein discordava disto, assimilando ao invés o significado ao
uso, concedendo ainda que a linguagem comum era mais complexa (e mais
rica em significado) do que o Primeiro Wittgenstein pensava. O
resultado póstumo disto é a sua obra Investigações Filosóficas. Morreu
em 1951; desde essa altura que têm aparecido regularmente, em
publicação póstuma, apontamentos, registos de aulas, listas de
compras, notas que escrevia à senhoria, etc., dando a Wittgenstein a
distinção extraordinária de ter escrito apenas um livro em toda a sua
vida, mas mais ou menos quinze depois de morto. E tudo leva a crer que
a sua actividade editorial póstuma está para durar.
Depois da Guerra, a filosofia inglesa centrouse em Oxford, apesar de
Cambridge discordar desta ideia, quando uma misteriosa entidade
conhecida por «filosofia de Oxford», ou, ironicamente, «filosofia
linguística», veio à existência. Os seus principais expoentes eram
Gilbert Ryle, um fumador de cachimbo de renome, e J. L. Austin, outro
fumador de cachimbo de renome. Austin era conhecido pelas suas «manhãs
de Sábado», nas quais um grupo de filósofos distintos, que se
distinguiam sobretudo por fumarem todos cachimbo, se reuniam para
discutirem as subtis nuánces da linguagem comum ou para discutirem
minhoquices, conforme a sua perspectiva. Estas discussões tinham
tendência para acabar por distinguir seis significados diferentes de
expressões como «carrinho de mão», não sendo por isso surpreendente
que provocasse raiva e escárnio entre os que eram excluídos por
qualquer razão, como, por exemplo, não serem suficientemente espertos
ou não fumarem cachimbo.
Contudo, aceitase geralmente, excepto, como é natural, em Oxford, que
a partir da Guerra o centro de gravidade da filosofia anglosaxónica
se mudou para a América do Norte (até mesmo o bocadinho finlandês), um
estado de coisas que pode ter talvez alguma relação com o facto de as
universidades americanas pagarem enormes salários. O Grande Patriarca
da filosofia americana é Willard van Orman Quine («Van» para os
amigos), conhecido por sustentar que a distinção de Kant entre o
analítico e o sintético (ver Glossário) é, na melhor das hipóteses,
vaga e, na pior, inútil, tal como por ter chamado a um livro seu From
a Logical Point of View por causa de uma música popular caraíba de
Harry Belafonte.
Os seus sucessores incluem Saul Kripke, no campo da lógica filosófica
e no estudo da modalidade (não vale a pena saber o que é isto), cuja
obra mais importante, Naming and Necessity sobre nomes próprios,
sentido e referência, mundos possíveis e muitos outros termos que
encontrará no Glossário , vale a pena mencionar de passagem por
constituir, talvez, a obra filosófica mais significativa escrita
depois da guerra.
O leitor reparará também que o nome absurdo é uma ajuda tão grande na
filosofia americana como o foi para os positivistas de Viena muitos
dos quais foram parar à América, talvez por isso mesmo , impressão
essa confirmada por Alvin Plantinga, um lógico modal e um filósofo da
religião (uma combinação ligeiramente instável) e Robert Nozick, um
anarquista político da direita radical que pensa que se deve
privatizar tudo.
Um filósofo americano importante é John Rawls, cuja obra magna, Uma
Teoria da Justiça, se tem vendido muito bem. Basicamente, Rawls
defende que a justiça pode ser analisada em dois princípios:
1. Toda a gente deve ter a mesma liberdade e, dado esse
constrangimento, tanta liberdade quanta for possível;
2. As desigualdades entre as pessoas só se justificam se os que
estão pior estiverem na realidade melhor do que estariam num outro
sistema qualquer mais igualitário.
Tenha cuidado com isto: não é tão idiota como parece à primeira vista,
apesar de ser verdade que permite desigualdades extremas, o que pode
ser usado contra ele a não ser, é claro, que o leitor calhe ficar
beneficiado. Este tipo de coisa é conhecido como teoria da justiça
distributiva e pode em algumas circunstâncias vir mesmo a jeito.
Os Continentais
Há duas variedades principais de continentais: os franceses e os
alemães.
O movimento filosófico continental mais importante nos últimos tempos
foi talvez o existencialismo, que teve partidários franceses e
alemães. O expoente francês principal foi Sartre, um polímato
invejável que combinava a filosofia com a agitação política marxista,
a autoria de romances e peças de teatro, e uma capacidade prodigiosa
para o álcool. Foi ele que introduziu o slogan «a existência precede a
essência», que quer dizer, mais ou menos, que devemos estar menos
preocupados com o tipo de coisas que as coisas são, do que com o facto
de serem.
Os existencialistas resistem a ser classificados, insistindo
geralmente na autonomia do individual: logo, têm tendência para ficar
um bocado irritados só pelo facto de lhes chamarmos existencialistas.
O existencialismo, ou pelo menos a sua linha francesa, tem conexões
literárias muito fortes, sendo Camus e o próprio Sartre os seus
maiores expoentes. A literatura tende a concentrarse no conceito de
acte gratuit (refiraa em francês, claro), que constitui supostamente
a essência da afirmação existencialista da sua própria existência. Mas
para o resto das pessoas parecese mais com um caso de crueldade
caprichosa. Uma vez que o acte gratuit, pelo menos na literatura, tem
tendência para ter uma natureza violenta ou, no mínimo dos mínimos,
antisocial, viver com um existencialista (pelo menos com um
existencialista francês) deve ser de arrasar com os nervos.
Os alemães, dos quais vale a pena referir Martin Heidegger e Karl
Jaspers, são um bando muito diferente. Não têm pretensões literárias,
felizmente, e tendem a ser mais explícitos quanto às suas influências,
referindo filósofos como Kierkegaard e Edmund Husserl, um filósofo
alemão dos princípios do século que desenvolveu de uma maneira
sistemática e tipicamente alemã o conceito de fenomenologia, i.e., a
tentativa de penetrar, por entre as aparências superficiais das
coisas, na realidade básica da nossa apreensão consciente delas (ou
coisa assim).
O existencialismo não arrasta consigo qualquer compromisso religioso
para qualquer dos lados: Sartre era ateu, Jaspers cristão; Heidegger
era nazi, mas isto é em geral convenientemente esquecido. Um ponto
interessante a notar é que os livros de filosofia escritos em inglês
têm geralmente de ter três elementos nos seus títulos, sendo Language,
Truth and Logic (Linguagem, Verdade e Lógica), Truth, Probability and
Paradox (Verdade, Probabilidade e Paradoxo) e Mind, Language and
Reality (Mente, Linguagem e Realidade) alguns exemplos proeminentes,
ao passo que o número de elementos exigidos para os títulos
existencialistas parece ser de apenas dois, como em Sein und Zeit (Ser
e Tempo), de Heidegger, e em L'Etre e le Neant (O Ser e o Nada), de
Sartre. Os filósofos analíticos anglosaxónicos têm tendência para
desprezar o existencialismo por não ser suficientemente analítico; os
existencialistas têm tendência para desprezar os filósofos analíticos
anglosaxónicos por não serem suficientemente.
Já falámos o suficiente sobre o positivismo lógico e, em qualquer
caso, os seus expoentes estão na realidade mais próximos da tradição
anglosaxónica. Nos anos trinta, muitos deles fugiram da Europa e de
Hitler em direcção à América, onde Rudolph Carnap e Carl Hempel têm
sido particularmente influentes desde a Guerra, especialmente na
filosofia da ciência. Entre os ingleses, o mais importante dos
positivistas lógicos (que, a propósito, incluem o Primeiro, mas não o
Segundo, Wittgenstein) foi A. J. Ayer (refirase sempre a ele como
«Freddie»), que continua a ser conhecido pela sua primeira obra,
Language, Truth and Logic, apesar de ele mais tarde ter acabado por
pensar que estava tudo errado de uma ponta à outra, o que deve ter
sido muito humilhante. Ayer foi também muito influenciado por Russell,
inclusivamente na condução da sua extravagante vida pessoal.
Falta discutir um grande movimento do pensamento continental: o
estruturalismo e o seu obscuro sucessor, o pósestruturalismo, que por
sua vez parece terse tornado no positivamente opaco pósmodernismo.
O estruturalismo começou originalmente com Saussure como um método em
linguística, tendose espalhado para a antropologia com LéviStrauss,
e desde então nunca mais parou, pelo menos em França e nos
departamentos de literatura inglesa das universidades americanas.
Quase ninguém admitirá hoje em dia ser um estruturalista e em qualquer
caso é muito difícil definilos com precisão. No entanto, é importante
ter ideias firmes acerca deles. São quase completamente ignorados nos
departamentos de filosofia britânicos, o que demonstra as preocupações
rigorosamente analíticas da filosofia britânica ou a sua
extraordinária insularidade depende do lado em que o leitor estiver.
Certifiquese de que está de um lado qualquer, mas de um apenas. Uma
característica do estruturalismo e do pósestruturalismo é a sua
desconfiança em relação às disciplinas académicas, e a sua gíria
impenetrável.
Entre os seus expoentes mais importantes incluemse Roland Barthes (no
campo da crítica literária e das suas ramificações sociais), Michel
Foucault (história, sociologia e, por fim, sexo) e Jacques Derrida
(linguagem, crítica literária, retórica). Este último é em muitos
aspectos o mais interessante, apesar de ser também o mais
irritantemente obscuro. As opiniões variam imenso quanto ao seu
estatuto como pensador: génio ou charlatão, depende do gosto.
Aborreceu em especial os filósofos analíticos (quer dizer, os
anglosaxónicos), pelo menos os que se deram ao trabalho de o ler, por
tentar mostrar que por debaixo da superfície cuidadosamente cultivada
de rigor, lógica, análise e investigação desapaixonada, a filosofia
analítica é uma actividade altamente tendenciosa, retórica e
subjectiva.
Ele fez isto empregando um método conhecido como desconstrucionismo,
que se tornou entretanto numa imensa indústria americana. Consiste
essencialmente em mostrar que qualquer obra literária gera
necessariamente dentro de si mesma contradições fatais, minando assim
o argumento que avança ostensivamente.
Notese que de facto o desconstrucionismo se desconstrói a si mesmo
(um pouco como o Tractatus de Wittgenstein), um facto que não parece
preocupar os próprios desconstrucionistas (para grande irritação dos
filósofos analíticos: esta pode ser uma técnica que valha a pena
imitar).
A grande vantagem do pósmodernismo é que ninguém, incluindo os seus
expoentes, faz ideia do que seja. Dizer de uma coisa (ou, na verdade,
seja do que for) que é «pósmoderno» é um golpe útil muito usado pelos
seus defensores principais, incluindo Deleuze e Baudrillard.
As melhores estratégias a adoptar com a filosofia continental em geral
são as seguintes:
a) Afirmar que não faz, literalmente, sentido.
b) Dizer, causticamente, que seja ela o que for, não é filosofia (a
estratégia analítica);
c) Comentar cuidadosamente que não deve ser afastada
irreflectidamente. (Esta técnica funciona melhor quando alguém está
a defender uma das duas outras ideias.)
O Que a Filosofia não é
Uma concepção errada, mas comum, vê a filosofia como qualquer coisa
que na verdade é mais ou menos como a religião. Uma boa estratégia a
adoptar em relação a isto é observar que a filosofia trata de
questionar e fazer desmoronar os dogmas, ao passo que a religião trata
unicamente da sua aceitação e defesa.
O leitor irá igualmente encontrar pessoas (se não tiver cuidado) que
afirmam estar interessadas numa coisa chamada «Filosofia Oriental» ou
«Misticismo Oriental». Só há uma coisa a fazer quando confrontado com
este tipo de pessoa: faça notar firmemente que, seja a Filosofia
Oriental ou o Misticismo Oriental o que forem, não são filosofia. Seja
firme em relação a isto. Não se trata de subestimar os praticantes
desta arte arcaica: algumas pessoas dãose bastante bem e o misticismo
pode levarnos longe.
Nota: Como Ser um Místico
1. Invente alguns paradoxos sem sentido (tais como «a única luz
verdadeira encontrase nas trevas», ou «cada passo em frente é um
passo atrás»).
2. Use com um ar misterioso provérbios sem qualquer significado (tais
como «em casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão» ou
«quanto maior é a altura, maior é a queda»).
3. Professe uma crença em pelo menos um absurdo metafísico palpável,
tal como na afirmação que Tudo é o Uno Único ou que a Realidade Comum
é meramente uma Ilusão Básica em Comparação com a Vera Luz da
Divindade. Não se esqueça de Falar com Letras Maiúsculas.
4. Dê a entender de maneira obscura que a Via para a Iluminação,
apesar de Longa e Árdua, será no Fim Cumprida; e sugira que um bom
método para o conseguir é entrar numa Relação Física de Comunhão
consigo mesmo.
5. Adopte permanentemente um Sorriso Benigno, que para todos os
efeitos práticos não se consiga distinguir do Esgar Inane.
GLOSSÁRIO
Não se esqueça da regra de ouro do especialista instantâneo: as coisas
soam sempre melhor em línguas que as pessoas não sabem. Por qualquer
razão, isto é especialmente verdade do alemão. Assim:
Zeitgeist O Espírito do Tempo, a perspectiva prevalecente da
humanidade num certo tempo histórico (se é que há alguma).
Weltanschauung (esta é mesmo boa) A Visão do Mundo; a Mundividência.
Experimente em comentários como «isso é o tipo de coisa que obriga uma
pessoa a mudar de Weltanschauung».
Erkenntnis Conhecimento; é também o nome da revista fundada pelos
Positivistas Lógicos vienenses (pessoas como Otto Neurath, Carl Hempel
e Rudolph Carnap), que eram conhecidos por:
Der Wiener Kreis O círculo de Viena.
Sinn und Bedeutung Sentido e Referência: uma distinção entre dois
tipos de significação devida a Frege e uma das pedras de toque da
lógica filosófica moderna.
Gesamtheit Totalidade: muito útil no dictum de Wittgenstein: «Die Welt
ist die Gesamtheit der Tatsachen, nicht der Dinge» (o mundo é a
totalidade dos factos, e não das coisas). Não confundir com
«Gesundheit» («Santinho!»).
Mas o especialista instantâneo não consegue safarse só com o alemão.
Tem de ter alguma ideia (ainda que ténue) do vocabulário técnico
português.
Lógica Uma palavra muito útil. Pode designar tanto um sistema formal
de raciocínio (como a silogística aristotélica), como pode ser usada
de maneira mais vaga para indicar a força argumentativa de um
fragmento de raciocínio. «Qual é a lógica desse argumento?» é uma
pergunta útil para se fazer, especialmente se está a precisar de algum
tempo para escapar de uma situação delicada.
Um Argumento, que na linguagem filosófica é a exposição racional de um
ponto de vista e não, como por vezes se pensa, uma maneira de enganar
retoricamente a outra pessoa (apesar de ser surpreendente como uma
coisa degenera tantas vezes na outra), pode ser válido ou inválido,
relevante ou não. Um argumento é válido se consiste em premissas
ligadas de tal forma que, se forem verdadeiras, então a conclusão que
se tira delas é verdadeira. É relevante só se todas as premissas forem
verdadeiras e for também válido (assegurando assim a verdade da
conclusão).
A Consistência é uma excelente arma no arsenal do especialista
instantâneo. Duas ou mais proposições são inconsistentes se é
impossível que todas sejam verdadeiras ao mesmo tempo. Nunca é de mais
apontar as inconsistências das outras pessoas. Mas evite que lhe façam
o mesmo.
As Proposições são unicamente frases que são verdadeiras ou falsas,
como «O presidente Clinton é um esquilo»; assim, segundo esta
definição, «Que dizes se formos para minha casa ver a minha colecção
de queijos antigos?», não é, estranhamente, uma proposição, apesar de
ser uma proposta com algum futuro. As proposições atómicas são
proposições básicas que afirmam algo acerca de uma coisa qualquer,
tendo por isso sido vistas pelo Primeiro Wittgenstein (mas não pelo
Segundo Wittgenstein, é claro) como as partes fundamentais da
linguagem.
Derivabilidade A relação entre as premissas de um argumento relevante
ou válido e a sua conclusão: se x deriva y, então y seguese de x
(impressiona bastante mais falar de derivabilidade do que afirmar que
uma coisa se segue da outra).
Condicionais Proposições da forma «se...então...»; são as peças
básicas para a construção de argumentos lógicos.
Contrafactuais Um tipo de condicional na qual o primeiro bocadinho (a
antecedente, «se...») é falso, tal como: «se os porcos tivessem asas,
os carros da polícia seriam obsoletos». São interessantes para os
filósofos porque é muito difícil analisar as suas condições de
verdade; e dão muito jeito ao especialista instantâneo em comentários
como «Não sei muito bem como interpretar essa contrafactual». São por
vezes conhecidos como «condicionais subjunctivos», geralmente por
pessoas que querem fazer notar que sabem latim.
Condições de Verdade As condições debaixo das quais uma coisa é
verdade; tendo isto em consideração, fazse um espalhafato enorme com
esta coisa.
Trivialidade Ao contrário do que poderia talvez esperarse, não é uma
característica geral de toda a actividade filosófica, mas antes um
conceito lógico. Uma coisa é trivialmente verdadeira se a sua verdade
se segue sem qualquer inferência lógica especial de qualquer outra
coisa: assim, se ambas as frases, «p» e «q» são verdadeiras, «p» é
trivialmente verdadeira. É surpreendente como se conseguem irritar
pessoas bastante fleumáticas com comentários como «Isso é verdade;
mas, é claro, é apenas uma verdade trivial».
Racional (1) com razões; (2) (Matemática) um número que pode ser
expresso como uma função de dois outros; (3) tudo o que nós mesmos
dizemos.
Irracional (1) sem razões; (2) (Matemática) um número que não pode ser
expresso como uma função de dois outros; (3) tudo o que os outros
dizem.
Analítico e Sintético Uma distinção útil de Kant entre dois tipos de
verdade: as verdades analíticas são as que são verdadeiras unicamente
em virtude do significado das palavras nelas contidas,
independentemente do estado do mundo (como «Nenhum solteiro é
casado»); as verdades sintéticas, por outro lado (como «nenhum
bacalhau é cantor de ópera»), são verdadeiras ou falsas em função de
circunstâncias empíricas (poderiam existir bacalhaus que cantassem no
Coliseu). Uma das grandes tragédias da vida é o facto de as verdades
analíticas, apesar de certas e indubitáveis, serem de pouquíssima
utilidade, ao passo que as verdades sintéticas, apesar de muito úteis,
não serem de forma alguma certas e indubitáveis. Kant, na verdade,
discordava disto, pensando que poderiam existir verdades sintéticas a
priori (ver a seguir), tais como as verdades da geometria. Mas
infelizmente estava enganado.
A priori e a posteriori Um tipo de distinção semelhante. As verdades a
priori podem ser conhecidas independentemente de quaisquer factos
empíricos; as verdades a posteriori não.
Necessidade e Contingência As verdades necessárias são as que não
poderiam não ser verdadeiras; as contingentes são as que poderiam.
Assim, a frase «Jorge Sampaio é Presidente da República» é
contingentemente verdadeira, ao passo que a frase «Jorge Sampaio é
Jorge Sampaio» é necessariamente verdadeira (o que mostra que podem
existir verdades necessárias infelizes). Outra maneira de pôr a coisa,
muito usada pelos americanos, é dizer que as verdades necessárias são
verdadeiras em todos os mundos possíveis.
Mundos Possíveis A extravagante criação de filósofos fantasiosos como
Leibniz: um mundo possível é qualquer estado de coisas que poderia
verificarse (mas que em geral, infelizmente, não se verifica). Os
realistas (ver a seguir) em relação aos mundos possíveis, como David
Lewis, sustentam que existem realmente infinitos mundos possíveis, não
sendo menos reais (apesar de serem, confusamente, menos actuais) do
que este. Isto tem a consequência reconfortante de fazer com que
existam mundos perfeitamente reais (apesar de, infelizmente, não serem
actuais) nos quais somos devastadoramente bemparecidos, ricos e por
aí fora.
O Idealismo, enquanto conceito filosófico, não quer dizer uma
preocupação com o bemestar das focas bebés (nem sequer com o
bemestar de actrizes francesas eminentes que se preocupam com o
bemestar das focas bebés), nem uma fé na Irmandade Humana, mas antes
a noção introduzida por Berkeley segundo a qual os objectos exteriores
não existem realmente senão enquanto objectos de percepção. Na
verdade, os idealistas têm muita dificuldade em explicar exactamente o
que querem dizer com isto, pois têm a tendência de sustentar que isto
não quer dizer que os objectos são ilusórios; mas parece também que a
tese que sustentam é ontológica e não epistemológica. O idealismo
contrasta com o
Realismo, que é a crença que sustenta que os objectos exteriores estão
realmente lá fora e não apenas quando alguém se dá conta deles. O
realismo, contudo, é um termo múltiplo e ambíguo em filosofia. Na
filosofia da ciência, é a ideia segundo a qual as leis científicas se
referem a relações reais existentes no mundo físico, o que contrasta
com o instrumentalismo: a ideia segundo a qual as leis científicas são
meramente modelos de previsão. Putnam inventou recentemente uma coisa
a que chamou «realismo interno», no qual não existe um «mundo já
feito» (uma expressão útil), mas em que, no entanto, as coisas não são
por isso irremediavelmente subjectivas (o que é exactamente o mesmo do
que comer o bolo e conseguir ficar com ele ao mesmo tempo). Putnam
sustenta que isto é de inspiração kantiana e talvez seja por essa
razão que é tão difícil (se não impossível) de perceber; além disso (e
por isso mesmo) é ideal para o especialista instantâneo.
Nominalismo a posição segundo a qual os universais (por vezes
conhecidos por categoriais: termos gerais como «gato» e «mesa»), não
existem independentemente da colecção das suas instâncias, isto é, não
existem independentemente dos gatos e das mesas que fazem parte da
mobília do mundo. Neste sentido, os realistas acreditam que existem
entidades universais individuais que explicam o facto de sermos
capazes de ordenar o mundo em grupos coerentes de coisas. Platão era
um realista neste sentido (e também em alguns outros).
Semântica Uma distinção útil para ter em mente, especialmente quando
falamos com apanhados por computadores, é a que existe entre a
semântica e a sintaxe. Fornecese uma semântica para um argumento (ou
seja para o que for) quando se fornece um método de traduzir os
símbolos que contém para qualquer coisa que tenha significado: dar uma
semântica para uma linguagem pressupõe, ou envolve, uma teoria do
significado. Contrasta com a sintaxe, que é apenas a gramática formal
do sistema, que determina unicamente se os símbolos estão
correctamente juntos ou não. Pode assim seguirse a sintaxe de um
sistema sem ter a mínima ideia da sua semântica. Na verdade, isto é em
grande parte o que faz o especialista instantâneo em filosofia: ele
sabe, de preferência, como manipular os termos de uma linguagem, como
o Segundo (mas não, é claro, o Primeiro) Wittgenstein diria; mas não
faz a mínima ideia do que quer afinal dizer tudo aquilo.
O Especialista Instantâneo em Filosofia, de Jim Hankinson
Gradiva, 1996, 78 pp.
Trad. e adaptação de Desidério Murcho
Divulgar a filosofia, estimular o pensamento
Desidério Murcho
Como é natural, as minhas opiniões sobre o ensino e a divulgação da
filosofia devem ser criticamente avaliadas por si e deve ter em mente
que diferentes pessoas têm diferentes ideias sobre a natureza da
filosofia e consequentemente sobre o seu ensino e divulgação. O leitor
deve procurar exporse às várias opiniões para que possa formar a sua
própria opinião informada e crítica. As minhas palavras procuram
ajudálo a atingir esse objectivo. Mesmo que discorde das minhas
opiniões, ficarei amplamente satisfeito; o importante é permitir que
forme a sua opinião, com base em dados abundantes e fidedignos.
Defendo que a filosofia é um conjunto de problemas, teorias e
argumentos. O leitor pensará que esta definição é tão lata que será
pacífica, mas enganase: muitas pessoas discordam até desta
caracterização, pelo menos na sua prática, ainda que a aceitem em
teoria. No entanto, não vou defender aqui esta ideia; quero apenas
tornar explícito que esta é a caracterização que determina
praticamente todas as minhas opiniões seguintes.
Mas que acontecerá, perguntará o leitor, com aqueles que discordam
desde logo desta caracterização? Bom, é claro que quem discorda desta
caracterização acha que o que direi a seguir nada tem a ver com a
filosofia; aceito isso, até porque também eu acho em geral que o que
essas pessoas fazem nada tem a ver com a filosofia. Mas o importante é
notar que, ainda que aquilo a que chamo filosofia seja completamente
diferente daquilo a que outras pessoas chamam filosofia, temos com
certeza ambos o direito de estudar, ensinar e divulgar a nossa prática
intelectual. Isto é sem dúvida pacífico.
Como o leitor já reparou, a minha caracterização não serve para
distinguir a filosofia de outras actividades cognitivas, como as
ciências: também elas são um conjunto de problemas, teorias e
argumentos. Mas a filosofia é um conjunto de problemas, teorias e
argumentos sobre os nossos conceitos mais básicos, como a realidade, o
conhecimento, o significado, o bem, a mente, a beleza, o número, a
inferência, e muitos outros. Os filósofos pensam acerca dos problemas
associados a estes conceitos e propõem teorias, sustentadas por
argumentos. Divulgar e ensinar a filosofia é introduzir esses
problemas de uma maneira elementar, assim como as teorias que procuram
resolvêlos e os argumentos que as sustentam, apesar de estes não
serem em geral elementares mas isso não é uma dificuldade, uma vez que
também a física não é elementar, e no entanto não só é ensinada desde
cedo aos jovens, como é divulgada ao público leigo.
A divulgação e o ensino da filosofia em Portugal tem sido dificultada
por dois obstáculos, resultando ambos de uma confusão conceptual
infeliz. Em primeiro lugar, confundemse os textos altamente
especializados da filosofia com os textos de divulgação e introdução.
Em segundo lugar, confundese a filosofia com a sua história.
A felicidade de O Mundo de Sofia foi ter percebido que não se pode
introduzir e divulgar a filosofia através dos textos especializados
dos próprios filósofos: seria o mesmo do que tentar ensinar geometria
através dos textos de Euclides, música através das partituras de Bach,
ou física através dos textos de Einstein: um desastre cultural,
pedagógico e científico (ou artístico). Os filósofos, assim como os
músicos ou os cientistas, produzem obras cujo destinatário são os
outros profissionais e não o público leigo.
Significa isto que não devemos «ir ao texto», para usar a infeliz
expressão da gíria universitária? Não. Significa sobretudo que não
podemos limitarmonos a ir aos textos, sem que antes tenhamos
preparação para tal a consequência de o fazer é a repetição acrítica
das frases dos filósofos, sem que no entanto se compreenda o seu
significado, para já não falar na capacidade para ter uma opinião
crítica sobre o que dizem os filósofos. Não podemos portanto começar
pelos textos dos filósofos, tal como não começamos com as partituras
de Bach. Mas nenhum filósofo terá uma boa formação se não estudar
directamente os textos dos grandes filósofos, do presente ou do
passado, tal como nenhum músico será bem formado se não tiver estudado
algumas partituras de alguns grandes músicos. O mesmo acontece aliás
com os cientistas, que depois da formação universitária primária terão
de aprender a ler os ensaios dos grandes cientistas; a única diferença
é, neste caso, de carácter histórico: nenhum astrónomo tem de ler uma
só linha de Copérnico, porque a sua teoria está ultrapassada mas Bach
e Descartes têm uma importância maior do que a meramente histórica.
O Mundo de Sofia conseguiu ultrapassar o primeiro obstáculo, e o seu
êxito devese com certeza também a este factor, entre outros. Está
claro que não se segue que o livro de Gaarder seja bom na verdade, é
muito mau, mas porque falhou num outro aspecto fundamental, que
corresponde, precisamente, ao segundo obstáculo a que me referi acima:
a confusão da história da filosofia com a própria filosofia. (Na
verdade, Gaarder confundiu a filosofia com outra coisa ainda mais
distante da filosofia: a história das ideias). As relações entre a
filosofia e a sua história são diferentes das relações que têm a
física ou a biologia com as suas histórias respectivas, porque falta à
filosofia o progresso que as outras conhecem, pelo menos no sentido em
que as outras o conhecem: há hoje na física uma teoria consensual
sobre a gravitação, mas não há uma teoria filosófica consensual sobre
a verdade, a beleza, o número, a realidade, o bem, ou o conhecimento;
no entanto, há um certo progresso em filosofia, no sentido em que hoje
percebemos melhor as subtilezas e as dificuldades desses problemas do
que Platão ou Aristóteles; e também sabemos hoje que algumas teorias
são falsas, e que alguns argumentos são inválidos. Por tudo isto,
algumas teorias e argumentos de Platão, ou de qualquer outro filósofo,
têm hoje um interesse mais do que meramente histórico: têm um
interesse, precisamente, filosófico são, plausivelmente, teorias
verdadeiras ou argumentos relevantes. A confusão entre filosofia e
história da filosofia consiste em pensar que tudo o que um filósofo
disse, só porque o disse e era filósofo, e teve repercussão histórica,
tem interesse filosófico. O efeito perverso deste erro é transformar a
filosofia numa espécie de museu filosoficamente passivo em que se
encontram cronologicamente ordenadas todas as ideias que os filósofos
produziram. Mas a filosofia, tal como a entendo (e tal como Sócrates,
Platão, Aristóteles, Descartes, Hume ou Kant a entendiam), não é isto!
A filosofia é a discussão crítica dos seus problemas, teorias e
argumentos. E não podemos confundir a discussão filosófica e crítica,
com a discussão filológica, apesar de esta poder ser igualmente
crítica, mas num sentido completamente diferente.
Está claro que para poder discutir criticamente os problemas, as
teorias e os argumentos da filosofia temos de ter instrumentos; temos
de saber como discutilos e como avaliálos. Nenhuma instrução ou
divulgação da filosofia terá sucesso se não atender a esta exigência
formativa básica; não passará de uma caricatura de mau gosto da
verdadeira filosofia, tal como o canto coral era, em tempos idos, uma
caricatura de mau gosto da música, a que os alunos do liceu se
submetiam, impotentes. Que instrumentos são estes? Sobretudo, os que
permitem usar as capacidades críticas, ou as faculdades cognitivas
superiores que podem ser treinadas, como se treina um músculo. Por
exemplo, um estudante de filosofia com o mínimo de treino tem de ser
capaz de detectar o erro crucial e básico patente neste raciocínio
infelizmente tão comum: «todas as coisas têm uma causa, logo tem de
haver uma causa para todas as coisas»; e tem de ser capaz de saber a
diferença entre os argumentos que, por ignorância do auditório, podem
ser convincentes, dos argumentos que são realmente bons. Em suma, os
instrumentos básicos que devem ser colocados à disposição dos
estudantes de filosofia são os instrumentos críticos que lhe
permitirão formar a sua própria opinião: autênticos instrumentos de
libertação cultural. Rigor, cuidado, simplicidade e humildade são os
valores que resultam de uma aprendizagem deste tipo, porque o
estudante aprende que o erro nos espreita em cada esquina, que os
problemas da filosofia são intrincados, que as soluções são difíceis,
e que o disparate bacoco e injustificado nunca produziu senão erro e
ilusão.
As capacidades críticas desenvolvemse através do seu próprio uso. E
definham quando as substituímos pela citação acrítica, ainda que
erudita, das frases dos filósofos. A correcta formulação dos
problemas, teorias e argumentos tradicionais da filosofia são
excelentes exercícios para o desenvolvimento das capacidades críticas;
mas a relação entre o que um filósofo disse e o seu contexto histórico
não pode senão ser uma informação adicional não pode confundirse com
o verdadeiro objectivo do ensino da filosofia: ensinar a pensar
sofisticadamente, e não ensinar a citar sofisticadamente.
Que é razoável exigir da divulgação e do ensino da filosofia? Tanto
num caso como noutro, uma introdução aos problemas, argumentos e
teorias da filosofia, que num caso será profissionalmente aprofundada,
e que no outro constituirá parte da formação cultural básica de um
cidadão civilizado. É exactamente o mesmo que se espera da divulgação
da física, ou da música e reparese que ninguém confunde uma
introdução à música com uma introdução à história da música, tal como
também ninguém procura introduzir a música através das partituras dos
grandes músicos. Do filósofo original, assim como do músico original,
esperase uma contribuição importante: a formulação de um problema, de
uma teoria, ou de um argumento novos, ou uma nova formulação de um
problema, de uma teoria, ou de um argumento antigos. Esta actividade é
uma das mais nobres, tanto no caso do músico, como no caso do filósofo
ou do físico. Mas esta actividade não pode existir sem a divulgação e
a introdução, desde os níveis mais elementares, até aos níveis mais
avançados: é para isso que existem os professores e os divulgadores. E
é por isso que essa actividade é também tão nobre: é a condição de
possibilidade, e deve ser o primeiro estímulo, para que existam
filósofos, músicos ou cientistas inovadores a verdadeira medida do
valor universal de uma cultura.
Julgo que não é necessário justificar o papel que a filosofia tem na
cultura em geral, porque julgo que não é necessário justificar o papel
que o pensamento crítico tem numa cultura livre e civilizada. Só por
si, isso justificaria o esforço de divulgar e de ensinar a filosofia.
Mas num momento em que o mundo parece cada vez mais pertencer à
todapoderosa indústria do entretenimento que estimula eficientemente
os jovens a praticar o surf e o bodyboard, a internet e os jogos de
computador, a vida nocturna e o rock , estimular os jovens a fazer
coisas simples como ler um livro, pensar com rigor e cuidado, ou
conduzir uma conversa inteligente, tornase um desígnio
civilizacional. Mas para quem não gosta de desígnios civilizacionais,
ou para quem achar, como eu, que, em qualquer caso, esse desígnio já
está perdido, resta ainda o dever de fazer saber a algumas pessoas que
no mundo não há só surfistas, políticos, diletantes culturais pastosos
e futebolistas. Há também pessoas simples que fazem coisas simples:
lêem livros, pensam disciplinada e detalhadamente sobre coisas, e têm
gosto em conhecer o mundo.
Desidério Murcho
Sociedade Portuguesa de Filosofia
Av. da República, 37, piso 4
1050 Lisboa, Portugal
(Texto publicado, com algumas alterações, na revista Barata, número 39
(1996)).
O Erro de Aristóteles
Desidério Murcho
Todos fomos mais ou menos educados debaixo do preconceito de que a
lógica clássica é uma extensão da lógica aristotélica. Um sistema de
lógica L1 é uma extensão de outro sistema de lógica L0 se e somente se
todos os teoremas de L0 são teoremas de L1, ou se, do ponto de vista
semântico, todas as inferências válidas de L0 são também inferências
válidas de L1.
Sabíamos que existiam inúmeras inferências dedutivas válidas, básicas
e complexas, incapazes de serem reconhecidas como tal na lógica
aristotélica, uma das mais simples das quais é
p & q, logo p
No entanto, a verdade é que na lógica aristotélica há dois tipos de
inferências válidas que não são válidas na lógica clássica:
(1) Todos os A são B; Logo, alguns A são B.
e
(2) Nenhum A é B; Logo, algum A não é B.
Logo, a lógica moderna não é uma extensão da lógica aristotélica,
apesar de ser verdade que muitas inferências válidas nesta última são
também válidas na primeira.
A demonstração de que as inferências (1) e (2) não são válidas na
lógica clássica é a seguinte: seja D o domínio de uma interpretação I
no qual existem dois objectos apenas, o1 e o2. o1 exemplifica o
predicado B e o2 exemplifica o predicado C.
A premissa da inferência (1) é (vaziamente) verdadeira em I: [Ao1 ®
Bo1] & [Ao2 ® Bo2] é uma frase verdadeira porque a antecedente de cada
um dos conjuntos, Ao1 e Ao2, é falsa. E sabese que, numa condicional
da lógica clássica, basta que a antecedente seja falsa para que toda a
condicional seja verdadeira.
Mas a conclusão de (1) é falsa em I: [Ao1 & Bo1] ou [Ao2 & Bo2] é uma
frase falsa porque ambos os disjuntos são falsos nem o objecto 1 nem o
objecto 2 exemplificam simultaneamente os predicados A e B.
Logo, a inferência (1) não é válida na lógica clássica.
A premissa da inferência (2) é (vaziamente) verdadeira na mesma
interpretação I: [Ao1 ® ¬Bo1] & [Ao2 ® ¬Bo2] é uma frase verdadeira
porque a antecedente de cada um dos conjuntos, Ao1 e Ao2, é falsa. E
sabese que, numa condicional da lógica clássica, basta que a
antecedente seja falsa para que toda a condicional seja verdadeira.
Mas a conclusão de (2) é falsa em I: [Ao1 & ¬Bo1] ou [Ao2 & ¬Bo2] é
uma frase falsa porque ambos os disjuntos são falsos nem o objecto 1
nem o objecto 2 estão na situação de exemplificar o predicado A e de
não exemplificar o B.
Logo, a inferência (2) não é válida na lógica clássica.
Qual foi então o erro de Aristóteles? Foi terse pura e simplesmente
esquecido da existência de predicados com extensão nula, como o
predicado "cavalo alado". A lógica aristotélica só é válida se
excluirmos as interpretações em que os predicados têm extensão nula, o
que não parece filosoficamente razoável: uma lógica comprometida com a
extensão dos predicados é uma má lógica, pois não funciona nos casos
em que não se sabe se um certo predicado tem ou não extensão. Por
exemplo, os astrónomos podem não saber exactamente se o predicado
introduzido pela descrição "o planeta desconhecido que perturba a
órbita de mercúrio" é ou não vazio; mas não querem com certeza
entregar as suas inferências a uma lógica que, caso se venha a
descobrir que tal predicado é de extensão nula, os conduz a conclusões
falsas, mesmo quando as suas premissas são verdadeiras.
Há duas formas de contornar esta deficiência estrutural da lógica
aristotélica. Uma delas é o chamado princípio da implicação
existencial; a outra é o recurso ao conceito de entimema.
Comecemos pela última. A ideia é a de que sempre que estamos perante
uma inferência em que uma das premissas é uma proposição universal, há
uma premissa adicional "escondida" que afirma que o predicado que
ocorre como termo sujeito dessa proposição é exemplificado. Em lógica
clássica isso equivale a introduzir a premissa $xAx.
Esta solução enfrenta dois problemas. Por um lado, faz apelo a um
conceito psicológico ou conversacional que não pode ter lugar numa
lógica formal. Do ponto de vista formal só há dois tipos de
inferências: as correctas e as incorrectas; não há lugar a inferências
que, para serem correctas, obrigam à introdução de premissas
adicionais que originalmente não eram explícitas. Este recurso ao
conceito de entimema parece colocarnos numa posição escorregadia:
como podemos ter a certeza, perante um qualquer argumento incorrecto,
de que não se trata afinal de um argumento correcto a que falta uma
das premissas?
Por outro lado, a suposta premissa adicional é de facto inexprimível
na lógica original de Aristóteles, que como se sabe é uma lógica de
dois termos, S e P. Todas as proposições bem formadas da lógica de
Aristóteles são da forma "A __ B". A lógica aristotélica não tem meios
formais para exprimir a frase que corresponde à fórmula $xAx, existem
objectos A. Dos objectos A, a lógica de Aristóteles só pode afirmar
que são todos B, ou que nenhum é B, ou que alguns são B, ou que alguns
não são B.
Vejamos agora a solução da implicação existencial. A ideia é defender
que as proposições universais, "todo o A é B" e "todo o A é não B"
implicam a existência de objectos A. Na verdade é uma posição bizarra,
que nos convida a aceitar o que sabemos ser falso. Pode ser que,
empiricamente, os falantes de uma língua como o português ou o grego
não afirmem como verdadeira uma proposição universal quando o termo
sujeito tem extensão nula. Mas isto é tão irrelevante como é
irrelevante para a decisão quanto à correcção ou incorrecção da
inferência "todas as coisas têm uma causa, logo há uma causa para
todas as coisas" o facto de empiricamente todas as pessoas sem treino
lógico estarem dispostas a admitir a sua correcção.
Mas admitamos que a ideia da implicação existencial é uma boa solução.
Então, (i) ou não podemos usar frases universais quando o termo
sujeito tem extensão nula, ou (ii) quando as usamos nessas
circunstâncias tais frases são falsas, ou (iii) quando as usamos
nessas circunstâncias tais frases não têm valor de verdade.
A hipótese (i) é claramente má, uma vez que, dada a nossa ignorância
sobre muitos factos empíricos, usamos muitas vezes proposições
universais cujo termo sujeito descobrimos mais tarde não ter extensão.
A hipótese (ii) é incoerente, uma vez que se uma frase como "Todo o A
é B" é falsa quando A tem extensão nula, a sua negação tem de ser
verdadeira. Mas a negação de "todo o A é B" é "Algum A não é B" e esta
última não pode ser verdadeira, uma vez que afirma que existe um
objecto A que tem uma certa propriedade, quando na verdade não há
qualquer objecto A.
A hipótese (iii) é temerária, mas é a única praticável. Corresponde,
grosso modo, à atitude antirealista típica do intuicionismo à lá
Dummett, defendendo que há buracos de valores de verdade, frases
aparentemente declarativas e assertivas que no entanto não têm valor
de verdade. A lógica intuicionista é uma alternativa séria à lógica
clássica, mas a sua aceitação permanece restrita, ao contrário do que
acontece com a clássica.
Antes de terminar, é bom que se esclareça que a expressão "implicação
existencial" é por vezes usada num sentido diferente do que foi aqui
usado. Tal como foi aqui usada, a expressão "implicação existencial"
referese a uma espécie de implicatura conversacional segundo a qual
quando afirmamos uma proposição universal estamos comprometidos com a
existência de objectos que exemplifiquem o predicado que ocorre na
antecedente da condicional (ou o predicado que ocorre na posição de
sujeito, do ponto de vista aristotélico).
Mas a expressão "implicação existencial" usase também, por vezes,
para referir o princípio da lógica clássica de primeira ordem segundo
o qual a inferência seguinte é válida:
(*) "xAx
$xAx
Todavia, esta inferência válida da lógica clássica não deve
confundirse com a inferência aristotélica:
"x(Ax ® Bx)
$x(Ax & Bx)
Reparese que (*) não permite efectuar a inferência aristotélica.
Mesmo que entendamos (*) como um princípio metalinguístico aplicável a
fórmulas complexas, o que se obtém com a sua aplicação é a expressão
$x(Ax ® Bx). Mas, como é óbvio, nenhuma condicional pode implicar uma
conjunção! Na interpretação I acima referida, a fórmula $x(Ax ® Bx) é
verdadeira, mas a fórmula $x(Ax & Bx) continua a ser falsa em I: da
primeira não se pode, portanto, derivar a segunda.
Portanto, neste sentido na expressão, a implicação existencial não
permite sancionar a inferência aristotélica.
Em conclusão, a lógica brilhante de Aristóteles não é uma parte
própria da lógica clássica de Frege e Russell porque admite
inferências inválidas, e não dá conta, por outro lado, de algumas
inferências válidas. A evolução lógica que se observa entre a lógica
aristotélica e a lógica clássica é assim em tudo idêntica à evolução
que se observa nas ciências naturais. É por isso defensável que é tão
irrelevante estudar hoje em dia a lógica de Aristóteles como é
irrelevante estudar a teoria de Ptolemeu em astronomia, uma vez que
quer a teoria de Ptolemeu quer a teoria de Aristóteles foram
ultrapassadas no sentido que em ciência se dá geralmente a esta
expressão.
Ainda que não se concorde com esta ideia, há pelo menos uma outra
razão para não ensinar a lógica de aristóteles, pelo menos no liceu. É
que, quer como instrumento de análise filosófica, quer como
instrumento de análise crítica geral do raciocínio, a lógica de
Aristóteles é praticamente irrelevante, uma vez que os raciocínios dos
filósofos e os raciocínios que efectuamos no quotidiano só muito
raramente são formalizáveis na silogística; mas são claramente
formalizáveis na lógica clássica. No entanto, a nível universitário, o
estudo da lógica aristotélica, enquanto curiosidade histórica, é sem
dúvida interessante.
Desidério Murcho
Sociedade Portuguesa de Filosofia
Av. da República, 37, piso 4
1050 Lisboa, Portugal
Como estudar filosofia
Desidério Murcho
Eis alguns conselhos sobre o estudo da filosofia. Espero que sejam
úteis sobretudo para os estudantes, universitários e liceais.
Em primeiro lugar, é preciso perceber que não se pode começar o estudo
da filosofia lendo os textos dos grandes filósofos, tal como não se
começa a aprender atletismo competindo na maratona, nem se aprende a
pintar olhando para os quadros de Magritte. É preciso ler primeiro
outros livros, que nos introduzem a filosofia. Na secção "Estou em
Portugal e gosto de filosofia" pode encontrar alguns desses livros
introdutórios. Infelizmente, a maioria deles não estão traduzidos para
português.
Na Filosofia Aberta publiquei 3 bons livros de introdução à
filosofia, cuja leitura é compensadora e que constituirão talvez o
melhor começo para quem não lê inglês, juntamente com Os Problemas da
Filosofia, de Bertrand Russell (trad. de António Sérgio, publicado na
Arménio Amado, só existe em livrarias especializadas). Em português há
ainda A Cultura da Subtileza, do M. S. Lourenço (Gradiva, 1995), que
apesar de ser um pouco mais avançado é ainda indicado como leitura
introdutória (o livro teve origem num programa de rádio da Antena 2
cujo objectivo era, precisamente, divulgar a filosofia junto do
público leigo).
Alguns clássicos de filosofia, pela sua clareza, são particularmente
recomendáveis para os iniciados. Depois de ler os livros de introdução
acima, aconselho como primeira leitura as Meditações sobre a Filosofia
Primeira, de Descartes (trad. de Gustavo de Fraga, Livraria Almedina,
várias ed.). A longa introdução e as muitas notas do tradutor devem
ser ignoradas nas primeiras leituras (e são sobretudo de carácter
histórico e não filosófico). O texto de Descartes não exige quaisquer
conhecimentos de filosofia para que possa ser razoavelmente
compreendido, não faz 20 citações em cada página a 30 autores
diferentes, não usa uma terminologia barroca e pasmese oferece à
nossa compreensão crítica argumentos e teorias claramente expostos e
cuidadosamente formulados.
O mesmo acontece com o Tratado do Conhecimento Humano, de Berkeley
(trad. de Vieira de Almeida, Atlântida, só existe em livrarias
especializadas) e com alguns diálogos de Platão, como o Êutifron
(trad. de José Trindade Santos, INCM, várias ed.). Ler Platão é um
bocadinho confuso porque os diálogos estão cheios de referências
históricas e culturais que não só não se percebem como são muitas
vezes completamente irrelevantes para a discussão filosófica em causa.
Isto faz com que o leitor se possa perder, dispersando a sua atenção
em aspectos históricoculturais, muito interessantes em muitos
aspectos, mas irrelevantes filosoficamente. No entanto, se seguir as
indicações seguintes, conseguirá talvez concentrar a sua atenção no
que é realmente importante do ponto de vista filosófico.
Como ler filosofia: os problemas
A literatura filosófica é intrincada e subtil, mesmo quando se trata
de textos claros e acessíveis, como os que indiquei acima. É por isso
importante aprender a isolar o que é filosoficamente importante do que
é apenas acessório.
Quando lemos um texto de filosofia devemos concentrar a nossa atenção
sobre os seguintes aspectos:
os problemas
as teorias
os argumentos Os bons filósofos costumam começar por enunciar os
problemas que estão a procurar resolver nas suas obras. É o que faz
Descartes, que declara logo na primeira meditação que está preocupado
com o problema do fundamento do conhecimento. Nos diálogos de Platão
também é costume surgir logo após o preâmbulo dramático o enunciado do
problema, muitas vezes uma pergunta de Sócrates, como «o que é a
piedade?»
Mas os detalhes dos problemas filosóficos são subtis e intrincados. É
fácil de ver que o fundamento do conhecimento é o problema que
Descartes procura resolver nas Meditações. Mas em que consiste
exactamente este problema? É aqui que o conceito de «formulação» tem
de ser introduzido. Quando eu andava no liceu usavase muitas vezes a
expressão «explicar pelas suas próprias palavras». Esta é uma boa
formulação do que é a formulação. A formulação de um problema
filosófico, por exemplo, do problema filosófico que Descartes procura
resolver nas Meditações, é enunciar esse problema de forma clara,
organizada e detalhada claro que a melhor forma de o fazer é no papel,
mas podemos tentar fazêlo, de forma mais informal, mesmo quando
estamos a ler, ou oralmente, nas aulas e com os amigos. Quando
formulamos um problema filosófico devemos estar preocupados com os
seguintes aspectos:
Qual é a sua formulação exacta?
Quais são as causas da sua existência?
Quais são as suas consequências? A formulação correcta de um
problema, de uma teoria ou de um argumento é o indício mais seguro de
que o autor da formulação compreendeu o que está a dizer. Numa boa
formulação as relações lógicas têm de se tornar claras. As suas
subtilezas têm de ser cuidadosamente expostas, as suas obscuridades
clarificadas, as suas ambiguidades desambiguadas. O inverso disto é a
paráfrase e as citações superabundantes, óptimas para dar volume e
evitar trabalho (no meu tempo chamavase "palha" a isto). Se não
percebemos muito bem uma certa passagem, o melhor é citála: quem nos
lê ficará com a sensação que é estúpido porque não percebe algo que o
autor deve ter percebido, caso contrário não teria citado. Esta
estratégia, claro, é desonesta. É preferível escrever 5 linhas claras
onde se explica por que razão não se percebeu uma passagem do que
encher 5 páginas obscuras onde se cita a passagem e mais 30
comentadores e outras tantas paráfrases, ocultando o facto crucial de
não ter percebido. Por vezes, a expressão clara de uma incompreensão
tem valor filosófico porque essa incompreensão pode ela própria ter
valor filosófico: a passagem em causa pode ser filosófica ou
logicamente incongruente. Ao fazêlo, o estudante mostra que leu com
atenção crítica; ao limitarse à paráfrase e à citação bacoca o
estudante mostra que se limitou a prosseguir uma função mecânica e
acrítica o contrário do espírito crítico da filosofia.
Por causas e consequências não se entende, obviamente, causas e
consequências extrafilosóficas. Por exemplo, é irrelevante que
Descartes estivesse preocupado com os fundamentos do conhecimento por
ter descoberto um dia que não podia ter a certeza se a sua namorada o
amava de facto, ou por causa de mais uma das muitas guerras absurdas
que se viviam no seio da Europa. E é irrelevante que o problema do
conhecimento tenha levado ao suicídio algum estudante mais
desequilibrado do séc. XVI, ou que tenha provocado a queda de algum
rei, ou uma qualquer convulsão social, política, económica ou
cultural. Todos estes aspectos são interessantes, cada um à sua
maneira; mas não são filosoficamente interessantes. Da mesma forma que
a tinta que Mozart usou para escrever o Requiem é irrelevante para a
análise musical do Requiem, também todas as questões políticas,
económicas, culturais e sociais que rodeiam obviamente todos os
filósofos são irrelevantes do ponto de vista filosófico. Estas
questões são interessantes do ponto de vista... bem, político,
económico, cultural e social mas não filosófico.
As causas e as consequências que nos interessam enquanto estudantes de
filosofia são, claro, as causas e consequências filosóficas. Por
exemplo, depois de formularmos de forma correcta o problema do
conhecimento que Descartes enuncia no início da primeira meditação,
podemos perguntar: que razões o levam a pensar que o problema do
fundamento do conhecimento existe realmente? Não será apenas uma
fantasia? Na verdade, uma das reacções negativas mais comuns em
relação à filosofia é o menosprezo pelos seus problemas. Mas uma coisa
é menosprezar sumariamente um problema como irrelevante ou mal
formulado ou como o resultado de uma confusão conceptual; outra coisa
e isto é já um trabalho filosófico é elaborar essa reacção e mostrar
que o problema X que o filósofo Y levanta resulta de um erro
categorial. Na verdade, grande parte do trabalho dos filósofos
consiste em tentar mostrar que os outros filósofos cometeram esse tipo
de erros (é o que acontece, por exemplo, no livro The Concept of Mind,
onde Ryle procura mostrar que o conceito cartesiano de mente resulta
de um erro categorial).
Perceber as causas de um problema filosófico é perceber de que depende
a sua existência. Por exemplo, Wittgenstein procurou mostrar que o
problema filosófico do solipsismo, levantado por Locke e que é ainda
uma consequência da atitude de Descartes perante o conhecimento é uma
consequência de uma concepção errada (no sentido forte de erro:
logicamente incongruente) da linguagem. Claro que não se espera que um
estudante de filosofia, ao tentar descobrir as causas dos problemas
filosóficos que está a ler, tenha a mesma capacidade crítica que os
filósofos altamente especializados e treinados têm. Mas têm de começar
a ter alguma dessa capacidade crítica. E a melhor coisa a fazer para
desenvolver uma capacidade é treinála pacientemente a partir de
exercícios simples.
Quando procuramos as causas de um problema filosófico perguntamonos
como é que as coisas têm de ser para que aquele problema exista e o
que aconteceria se as coisas fossem ligeiramente diferentes. Não é
importante, inicialmente, se é para nós claro que as coisas são de
facto como têm de ser para que se levante tal problema; mas é
importante perceber claramente que para se levantar tal problema as
coisas têm de ser desta maneira e daquela. Mas de que coisas se trata?
Não se trata, com certeza, de dados acerca da iliteracia dos
portugueses, ou da análise do trabalho dos jornalistas portugueses.
Tratase, sim, de certos aspectos da natureza da linguagem, do mundo,
e dos nossos conceitos acerca destas duas coisas. Por exemplo: que
conceito de conhecimento e de linguagem tem Descartes para que se
levante o problema do fundamento do conhecimento?
Tudo quanto disse em relação às causas se aplica às consequências.
Neste caso, temos de nos perguntar o que somos obrigados a aceitar se
aceitarmos uma certa formulação de um certo problema. Se aceitarmos,
como Descartes, que existe um problema com o fundamento do
conhecimento, o que se segue daí? Poderemos continuar a conceber a
ciência, por exemplo, como concebíamos antes? Ou não? E a religião? Se
o conhecimento precisa de fundamentos, que temos de fazer para os
encontrar? E qual será o método para o fazer?
Como ler filosofia: as teorias
Como é óbvio, os filósofos não se limitam a enunciar problemas
intrincados e subtis. Querem também resolvêlos. É por isso que
constroem teorias, também elas muitas vezes intrincadas e subtis. No
entanto, se não percebermos que problemas procuram eles resolver é
altamente improvável que compreendamos e possamos apreciar o valor das
suas teorias: o mais natural é ficarmonos pela aceitação ou rejeição
epidérmica (e que muitas vezes é falsamente identificada com uma
postura estética, como se gostar realmente de uma sinfonia pudesse ser
uma atitude acrítica e epidérmica). «Penso, logo existo» é a fórmula
mágica da teoria de Descartes. Mas que significa isto realmente?
Porque se deu ele ao trabalho de escrevêlo? Que procurava ele
resolver com o cogito (o termo com que a sua teoria é conhecida)?
Estas são as perguntas prévias que têm de orientar a nossa compreensão
de uma teoria filosófica.
Posteriormente, temos de tentar compreender os labirintos da teoria
que estamos a estudar. Como é que a teoria funciona? E funciona? Não
terá alguns problemas de concepção? Por exemplo, poderá Descartes, na
situação em que se coloca, saber realmente que pensa e que existe? E
tratarseá a expressão que enuncia o princípio da sua teoria («penso,
logo existo») uma inferência, como o indica a palavra «logo»? Ou
quererá ele apenas dizer que, por mais que duvide de tudo, a condição
de possibilidade para poder duvidar é existir e pensar? E como se
articula o resto da sua teoria com este princípio tão básico? Como
consegue ele inferir a existência de Deus e do mundo a partir deste
princípio tão básico? Estarão essas inferências correctas? Ou terá
cometido erros? Este é o tipo de análise que o estudante terá de
fazer, de forma progressivamente mais detalhada e sistemática, ao
longo do seu estudo.
Como ler filosofia: os argumentos
Muito bem, estive a fazer um bocadinho de batota: não comecei por
falar do mais importante de tudo em filosofia os argumentos. Mas filo
porque espero que, depois de lerem esta secção, percebam subitamente
que todo o trabalho que descrevi nas secções anteriores não é possível
realizar sem argumentos. Precisamos de argumentos para nos convencer
que o problema do conhecimento de Descartes é realmente um problema e
não uma fantasia de um soldado aborrecido fechado num quarto aquecido.
Precisamos de argumentos para nos convencer que as causas filosóficas
de certo problema são estas e não aquelas, e que as suas consequências
não são estas mas aquelas. E precisamos de argumentos para nos
convencer que a teoria consegue realmente resolver o que pretendia
resolver e que é verdadeira e não apenas um agregado de frases talvez
atraentes mas escandalosamente afastadas da verdade.
E o que são argumentos? Os argumentos são razões que apresentamos para
sustentar uma qualquer afirmação. Há vários tipos de argumentos:
dedutivos, por analogia, causais, de autoridade, por exemplo. Para
todos eles há regras que nos ajudam a apreciar o seu valor. É por isso
que estudar um livro como [14]A Arte de Argumentar é importante.
Muitas vezes os filósofos são lidos mais ou menos com a mesma atitude
com que os gregos consultavam o oráculo e os portugueses lêem o
horóscopo: acriticamente. Esta atitude é muito bizarra porque, tal
como as profecias oraculares e as prescrições dos horóscopos, os
filósofos contradizemse. De maneira que é muito difícil lêlos a
todos como fontes de verdade: não podem ter todos razão. Pode ser que
um deles tenha razão; mas mesmo que queiramos tomar a atitude
arriscada de defender que era Kant, ou Descartes, ou Aristóteles, ou
Russell, ou Frege que tinha razão, se o quisermos fazer de forma
razoavelmente racional teremos de mostrar que têm de facto razão. A
alternativa é aceitar aquele filósofo cujas teorias vão ao encontro
dos nossos preconceitos. Mas isto é, claramente, o contrário de uma
atitude crítica, que é exactamente o que a filosofia é suposta ser.
É muito mais provável que todos os filósofos, como todos os cientistas
e todas as pessoas em geral, tenham a sua conta de verdade e falsidade
misturadas, como sempre. Também aqui, o que se impõe é o estudo
cuidado das suas teorias e argumentos, com o objectivo último de
destrinçar um bocadinho mais a verdade da falsidade, do erro e da
ilusão essas constantes humanas a que alguns, talvez tocados pelos
deuses, dizem ter escapado.
Filosofia e história da filosofia
Uma ideia muito difundida, mas não menos falsa, defende que a
filosofia é a sua história. Este hegelianismo só pode defenderse
defendendo o próprio hegelianismo; mas isso será já uma discussão
filosófica, e não histórica, pelo que a defesa do hegelianismo se
arrisca a ser um exemplo admirável de uma contradição pragmática (uma
contradição que ocorre quando aquilo que estamos a fazer é
inconsistente com o que estamos a dizer: como quando dizemos "não
estou a dizer nada").
Esta ideia tem a desvantagem terrível de dar às pessoas a ideia de que
se pode estudar filosofia através da sua história, o que na verdade é
tão improvável acontecer como conseguir estudar música ou pintura ou
física através das grandes obras históricas de música ou pintura ou
física. Na verdade é precisamente o contrário: tal como para fazer
história da música ou da pintura ou da física é preciso saber música
ou pintura ou física, também para fazer história da filosofia é
preciso saber filosofia. Caso contrário acabamos por não fazer mais do
que paráfrases dos textos dos filósofos, sem perceber muito bem o que
querem realmente dizer: uma sintaxe sem semântica, um formalismo sem
conteúdo.
O estudante de filosofia deve dirigir a sua atenção para a questão de
saber se o que diz Platão ou Descartes ou Kant é verdade. Para isso,
deve observar todas as subtilezas aqui descritas. A questão de saber o
que queria certo filósofo realmente dizer é relativamente irrelevante
(mas não completamente irrelevante) para o estudante de filosofia;
essa é uma área altamente especializada do historiador de filosofia
(que tem de ter, claro, formação filosófica). O que interessa ao
estudante de filosofia é aprender filosofia; se a teoria de Descartes
não era exactamente aquilo que a tradição lhe atribui, aquilo que numa
primeira leitura parece ser, isso só é realmente grave
(filosoficamente) se a teoria que lhe atribuirmos for,
filosoficamente, irrelevante. Caso contrário, está tudo bem, uma vez
que estamos a discutir uma teoria, um problema ou um argumento
interessantes filosoficamente, ainda que, historicamente, ninguém os
tenha defendido.
Isto não faz do estudante de filosofia uma pessoa historicamente
descuidada, que atribui o cogito a Platão e a teoria das formas a
Wittgenstein. Limita apenas o tempo, o esforço e a atenção dedicados a
questões históricas. Há um momento, ditado pelo bom senso, em que o
estudante de filosofia pára de se preocupar com a questão de saber o
que disse realmente Platão ou Descartes e assume que eles disseram X;
e depois entra no que interessa: discutir X. E é claro que esta
discussão pode sempre ser revista. Mas ainda que se venha a descobrir
que o cogito de Descartes era completamente diferente do que pensamos
hoje ser, isso é historicamente interessante, mas filosoficamente
irrelevante: a versão que conhecemos do cogito é filosoficamente
interessante, ainda que ninguém a tenha defendido.
Só quando entramos na discussão filosófica estamos a dialogar com a
tradição filosófica; quando estamos a fazer a sua história estamos
apenas a exercer as funções de conservador de museu e de um
conservador da Tate Gallery não se pode dizer que dialoga com a
tradição da pintura. Quem dialoga com os quadros que o conservador da
Tate Gallery recolhe, preserva e expõe são os pintores e não o
conservador. São os pintores e os filósofos e os físicos que
prosseguem, inovam, invertem ou se rebelam em relação aos seus
predecessores, e não os historiadores da pintura ou da filosofia ou da
física. São os filósofos e os pintores e os físicos, que, em última
análise, exercem a actividade que depois competirá aos historiadores
recolher, conservar, sistematizar e divulgar. Como escreveu Kant:
Há letrados para quem a história da filosofia (tanto antiga como
moderna) é a sua própria filosofia; os presentes prolegómenos não
são escritos para eles. Deverão aguardar que os que se esforçam por
beber nas fontes da própria razão tenham terminado a sua tarefa, e
será então a sua vez de informar o mundo do que se fez. (I. Kant,
Prolegómenos a toda a Metafísica Futura, trad. de Artur Morão, ed.
70, 1982, p. A3)
Espero que estas notas o estimulem a estudar filosofia e a participar
activamente no debate mundial de ideias que começou com Sócrates e tem
conseguido prosseguir, contra a vontade dos que querem cidadãos
passivos e intelectuais acríticos.
Desidério Murcho
Sociedade Portuguesa de Filosofia
Av. da República, 37, piso 4
1050 Lisboa, Portugal
Filosofia e Exegese
Desidério Murcho
Uma das características que distinguem a forma analítica de fazer
filosofia da forma continental, sobretudo portuguesa, baseiase na
diferente posição que tomam em relação à exegese filosófica. Ao passo
que para os continentais a exegese filosófica não se distingue da
simples paráfrase, os analíticos distinguem esta da formulação,
identificando com esta última o sentido da expressão «exegese
filosófica» mas não com a primeira.
A distinção entre a paráfrase e a formulação pode ser facilmente
captada se tivermos em conta que alguém que nada perceba de medicina
ou música pode no entanto parafrasear eficientemente um texto de
medicina ou música do século XVI, bastando para tal conhecer a língua
em que tal texto foi escrito, ao passo que para formular o conteúdo de
um texto de medicina ou música do século XVI já é necessário saber
medicina ou música, consoante o caso.
Compreendese assim por que razão outra das características que
distinguem a maneira analítica de fazer filosofia da maneira
continental consiste na hierarquia conceptual dada à exegese
filosófica: para um filósofo analítico só é possível fazer exegese
filosófica depois de se saber filosofia, ao passo que os continentais
defendem que se aprende filosofia a fazer exegese, o que aos olhos dos
analíticos é tão absurdo como defender que se aprende medicina ou
música lendo os textos clássicos da medicina ou da música.
Para um filósofo analítico a expressão «exegese filosófica» significa
«formulação» e não «paráfrase», pois não podem existir «paráfrases
filosóficas», uma vez que a filosofia pressupõe uma compreensão
crítica e a paráfrase apenas pressupõe a capacidade mentecapta da
mimese. Esta divisão, entre analíticos e continentais, quanto ao
significado da expressão «exegese filosófica» é a causa última do tipo
de ensino da filosofia praticado em Portugal, e que aos olhos dos
analíticos não passa de uma caricatura do que é o verdadeiro ensino da
filosofia. Nos liceus e nas faculdades, os alunos de filosofia são
lançados, sem preparação, para os textos clássicos da filosofia (numa
atitude que a um analítico parece autêntico terrorismo intelectual),
sendolhes exigido em troca um conjunto mais ou menos bacoco de
paráfrases em que os mais disparatados erros, as mais gritantes
ambiguidades e imprecisões e a mais evidente incompreensão dos
problemas, argumentos e teorias que os filósofos discutiram ao longo
dos tempos são sinais infelizes de um tipo de ensino que não tem
capacidade para formar pessoas que sabem, sobretudo, pensar, mas antes
pessoas que sabem, sobretudo, repetir.
A formulação dos problemas, teorias e argumentos da filosofia permite
ao aluno perceber os problemas, teorias e argumentos da filosofia, ao
passo que a sua paráfrase não lhe permite senão a repetição mecânica
das palavras dos filósofos. É por este motivo que a avaliação dos
alunos de filosofia, sobretudo no liceu, é um problema latente em
Portugal. Uma vez que não são transmitidos aos alunos conteúdos cuja
formulação mais ou menos precisa seja possível avaliar de forma justa,
mas antes conjuntos de frases que os alunos devem repetir de forma
mais ou menos vaga, o professor nunca sabe se está perante um aluno
com uma excepcional verve filosófica, se perante alguém que nada
percebeu, acabando todos por ser avaliados em função de critérios
extrafilosóficos como a qualidade do português, a quantidade de
autores referidos por cada frase e a capacidade para citar a
bibliografia de forma competente.
O filósofo analítico, por outro lado, sabe exactamente o que está a
avaliar, tal como um professor de música ou de medicina. Existem
conteúdos filosóficos precisos cuja maior ou menor compreensão, tal
como é revelada pela sua formulação escrita e oral, pode ser avaliada
de forma justa. Tal como um professor de medicina avalia até que ponto
um aluno compreendeu o processo digestivo dos seres humanos e tal como
um professor de música avalia até que ponto um aluno compreendeu o
conceito de intervalo musical, também o professor de filosofia
analítica avalia até que ponto um aluno compreendeu a teoria da
referência de Kripke ou os argumentos cépticos da segunda Meditação de
Descartes.
Outra das consequências da diferente concepção de exegese filosófica
que distingue os analíticos dos continentais é a ausência conspícua de
livros de introdução à filosofia, do lado continental, e a sua
abundância, do lado analítico. De facto, como escrever um livro de
introdução à filosofia quando a concebemos como a arte, mais ou menos
delirante, da paráfrase? Se vamos explicar o conceito de frase
analítica, temos de parafrasear Kant ou Quine, citando ambos os
autores abundantemente; nada mais resta para fazer. Não há quaisquer
conteúdos conceptuais que possam ser organizados e apresentados
didacticamente, do mais simples para o mais complexo, do mais
importante para o menos importante. Quando se tem um conceito
continental de filosofia nada resta excepto a paráfrase. Mas isso é
negar à filosofia o papel crítico que faz parte da sua própria
essência, e sem o qual ela se torna um exercício oco culturalmente
empobrecedor e, sem dúvida, verdadeiramente redutor.
Desidério Murcho
Sociedade Portuguesa de Filosofia
Av. da República, 37, piso 4
1050 Lisboa, Portugal
Em Defesa da Filosofia Continental
Desidério Murcho
Se um ser humano discordar de si, deixeo viver.
Não encontrará outro numa centena de biliões de galáxias.
Carl Sagan
O objectivo destas linhas é defender aquela que penso dever ser a
atitude correcta a adoptar pelos partidários da filosofia analítica em
relação à filosofia continental. O título deixa desde logo adivinhar o
que parece uma provocação: então uma das pessoas que mais tem
defendido a filosofia analítica vem agora defender a filosofia
continental? É precisamente porque é fácil confundir a defesa da
filosofia analítica com o ataque intolerante à filosofia continental e
porque esse ataque se pauta por estratégias de corredor de baixo
perfil moral que decidi tomar uma posição pública sobre o assunto.
Apesar de a causa próxima ser o artigo de Carlos Leone no
EXPRESSO, esta não é de modo algum a única causa da minha tomada de
posição. Acontece que o artigo de Carlos Leone me fez tomar
consciência de algo que muito me desagrada nas relações entre os
partidários da filosofia analítica e os partidários da continental.
Por isso, quero demarcarme claramente em relação a essas atitudes.
Vou começar por dizer claramente aquilo em que acredito e os
objectivos que pautam a minha intervenção. Seguidamente, procurarei
mostrar por que razão podemos não ser contra a filosofia continental
sem adoptar qualquer tipo de relativismo, fácil e de baixo perfil
intelectual, ou mais «sofisticado» e de perfil académico. Finalmente,
concluirei com uma nota sobre a minha postura na vida intelectual.
Esta última parte é claramente pessoal o que não significa que não
seja discutível. Não tenho o hábito de defender as minhas convicções
afirmando que são minhas, porque tenho a pretensão, que a muitos
parecerá insensata mas que me parece razoável, de ter convicções
objectivamente razoáveis e não meras idiossincrasias pessoais.
1. Os objectivos
A filosofia analítica é uma prática académica respeitável. Penso que
esta é uma proposição pacífica, que mesmo os continentais aceitarão
sem hesitar, ainda que achem que se trata de uma forma errada de fazer
filosofia. Na verdade, em termos mundiais, a filosofia analítica é
dominante, quer em termos de publicações (livros e revistas), quer em
termos de número de filósofos activos hoje em dia. No entanto é
praticamente desconhecida em países como Portugal, França e Espanha. E
o pouco que se conhece nestes países são caricaturas positivistas da
prática actual da filosofia analítica. A título exemplificativo,
vejase o que afirma o Dicionário Breve de Filosofia, de Alberto
Antunes, António Estanqueiro e Mário Vidal (Editorial Presença,
Lisboa, 1995):
Filosofia analítica Corrente de pensamento filosófico segundo a qual a
lógica e a teoria da significação ocupam um papel central na
filosofia. A tarefa fundamental da filosofia seria a análise
lógica das sentenças, através da qual se obtém a solução dos
problemas filosóficos. Desenvolveuse sobretudo na Inglaterra e
nos Estados Unidos, a partir dos inícios do século XX. (pág. 74)
Esta era talvez a ideia de filosofia analítica de pessoas como Carnap
ou Quine, no princípio do século. Hoje em dia, não há muitos filósofos
vivos que defendam estas ideias. E a ironia é que, mesmo no princípio
do século, alguns dos maiores nomes da filosofia analítica teriam de
ser excluídos se aceitássemos esta definição.
Vamos então passo a passo. A primeira tese: a filosofia analítica
caracterizarseia por defender que a lógica e a teoria do significado
ocupam um lugar central. É verdade que há pessoas, como Dummett, que
defendem que a filosofia da linguagem é a disciplina central da
filosofia. E é verdade que grande parte dos filósofos analíticos se
ocupam do estudo da linguagem. Mas daí não se segue que a filosofia da
linguagem seja uma disciplina central, pelo simples motivo de que
ninguém consegue demonstrar que a solução dos problemas da filosofia
da linguagem seja também a solução dos problemas da metafísica, da
estética, da ética, da filosofia política ou da filosofia da religião.
Os filósofos, como Dummett, que acham que a filosofia da linguagem é
central na filosofia analítica e que isso caracteriza a filosofia
analítica sofrem de distorção profissional: do mesmo modo que alguns
historiadores da filosofia moderna têm tendência para pensar que o
período histórico que estudam é o período decisivo na história da
filosofia, pessoas como Dummett acham que a filosofia da linguagem, só
porque é tudo o que conhecem e tudo o que fazem, é central na
filosofia.
A importância dada à linguagem, na filosofia analítica, resulta de
contingências históricas; e é claro que é lisonjeador pensar que a
nossa área de especialização é a mais importante. Mas, se isso fosse
assim, seria fácil responder a este desafio: mostrese a solução ou
uma aproximação a uma solução de um problema substantivo da ética, da
filosofia política, da estética ou da filosofia da religião que
resulte da investigação sobre a filosofia da linguagem. Ninguém será
capaz de mostrar tal coisa porque tal coisa é impossível. A crença de
que é possível é apenas uma distorção profissional, psicologicamente
compreensível, mas filosoficamente sem fundamento.
Quanto à segunda característica apontada no Dicionário Breve: a tarefa
fundamental da filosofia analítica seria a análise lógica das frases,
através da qual se obteria a solução dos problemas filosóficos. Esta
foi uma ideia por vezes ventilada no princípio do século por pessoas
como Carnap e Wittgenstein. Mas este projecto está hoje morto e
enterrado. Não é possível resolver os problemas substantivos da
filosofia através da análise da forma lógica das frases. Seria como
tentar resolver os problemas da física através da análise algébrica.
Nenhum problema substantivo da física pode ser resolvido
matematicamente: é preciso fazer experiências, investigar partículas,
levantar hipóteses. O mesmo acontece com a filosofia. Por mais que eu
analise a forma lógica da expressão «Deus existe» não vou conseguir
saber se a frase é verdadeira ou falsa que é o que interessa à
filosofia da religião.
É verdade que a lógica e a filosofia da linguagem ocupam um papel
importante na filosofia analítica, o que não acontece na filosofia
continental, sobretudo em relação à lógica. Mas isto é porque ambas
constituem instrumentos filosóficos, tal como a matemática é um
instrumento dos engenheiros navais. A lógica e a filosofia da
linguagem ajudam o filósofo analítico a não cometer falácias, a
produzir argumentos e teorias rigorosos, e ajudamno a tentar escapar
às ilusões que resultam de certas expressões linguísticas. Mas não
constituem a água de alcatrão ou a panaceia filosófica.
Por alguma razão que desconheço, talvez por mero atraso cultural e
pelo facto de as bibliotecas universitárias portuguesas serem, em
geral, risíveis, a generalidade da comunidade filosófica portuguesa
olha para a filosofia analítica como os próprios analíticos pelo
menos, alguns olhavam para ela há 50 anos.
É precisamente porque a imagem que os portugueses têm da filosofia
(tal como os franceses) é falsa, que a tarefa de divulgar a filosofia
analítica é tão importante. Se toda a gente soubesse o que é a
filosofia analítica, como toda a gente sabe o que é a filosofia
continental porque é o que há nas faculdades e liceus, não era preciso
fazer nada no sentido de a divulgar; as pessoas poderiam escolher em
consciência o que queriam. Mas essa não é a situação em que estamos.
Os alunos chegam às faculdades e já trazem preconceitos contra a
filosofia analítica, pois esta surgelhes como uma actividade que
procura reduzir a verdadeira actividade filosófica a meia dúzia de
cálculos lógicos e de elucubrações misteriosas sobre a linguagem.
Penso que todos concordamos, analíticos e continentais, que as pessoas
têm direito à informação fidedigna, pois só assim poderão tomar
decisões em consciência. Até agora, em Portugal, as pessoas não
escolhiam a filosofia continental; esta era a única coisa que havia. O
meu objectivo não é acabar com a imensa maioria que, em Portugal,
constitui os que estudam a filosofia continental; o meu objectivo é
unicamente o de fazer com que essa maioria seja o resultado de uma
escolha informada e não de uma contingência histórica e geográfica.
Acho que tenho o dever de o fazer porque se não tivesse descoberto a
filosofia analítica no momento certo teria desistido do curso. O que
me move é unicamente este sentido do dever e não uma qualquer
tentativa de «acabar com eles». Do ponto de vista estritamente pessoal
estoume nas tintas para quem manda na filosofia em Portugal as lutas
simiescas pelo poder não me interessam; e no dia em que eu tiver de
agir imoralmente para ter emprego, mudo de profissão.
2. Tolerância sem relativismo
A filosofia continental, tal como a filosofia analítica, é uma prática
académica respeitável. Eu acho que a filosofia continental, nas suas
diversas vertentes, é uma forma errada de fazer filosofia. Acho que
tem consequências pedagógicas, culturais e científicas verdadeiramente
desastrosas. Mas acho que as pessoas que a praticam têm todo o direito
de a praticar. Na verdade, muitas delas são minhas amigas. Apesar de
ter feito uma licenciatura continental, nunca tive senão relações
cordiais e até de amizade com os meus professores e colegas. Mas não é
por isso que eu não sou contra a filosofia continental. É porque acho
errado ser contra qualquer prática académica, seja ela qual for. Se a
alquimia e a astrologia não tivessem sido banidas das universidades,
hoje teriam dignidade académica e eu não seria contra o seu estudo nas
academias. Isso não significa, claro, que tais práticas teriam
dignidade científica. Mas eu penso que se uma prática está
institucionalizada, ainda que seja cientificamente inválida, o seu
desaparecimento deve ser uma consequência natural do seu vazio
científico e não uma imposição de quem não a pratica.
É fácil de ver que não só não estou disposto a levantar um dedo que
seja contra a filosofia continental e os seus praticantes, como seria
o primeiro a sair para a rua em protesto caso eles fossem impedidos de
ensinar e estudar o seu modo de fazer filosofia sejam eles
existencialistas, heidegerianos, derridanos, historicistas,
escolásticos ou pósmodernistas. Na verdade, seria o primeiro a
manifestar o meu desacordo caso eles sofressem da mesma falta de
condições que nós, os analíticos, sofremos. Por exemplo: a
generalidade das editoras só editam filosofia continental; as pessoas
que escrevem nos jornais são quase todas de formação continental; os
programas do ensino secundário são fruto das ideias continentais;
todos os departamentos universitários são controlados por
continentais; todas as revistas portuguesas de filosofia são
continentais. Só agora os analíticos conseguiram conquistar um pouco:
há a Filosofia Aberta, há a Disputatio e há um curso de mestrado. É
muito pouco e não representa nenhuma ameaça à filosofia continental
portuguesa.
Teremos de ser miseravelmente relativistas para ser tolerantes com
respeito à filosofia continental? Acho que não. Acho que os
continentais têm todo o direito de ensinar, divulgar e praticar o seu
ideal de filosofia, apesar de achar que esta é a forma errada de fazer
filosofia. A grande responsabilidade intelectual por alguns dos
maiores horrores da prática e teoria políticas do século XX é a
incapacidade que as pessoas têm para serem tolerantes ao erro. Os
marxistas, como os fascistas, não toleram que as pessoas possam estar
erradas, não toleram que eles defendam ideais políticos que, do seu
ponto de vista, estão errados. E é isso a tolerância: achar que
aqueles que, segundo o nosso ponto de vista, estão errados, têm o
direito de estar errados. O mundo já viu demasiados crimes demasiado
horríveis praticados em nome da luta contra o erro: os cristãos,
munidos do seu Cristo morto na cruz, torturaram e mataram em nome da
sua verdade achavam intolerante que as outras pessoas não acreditassem
no seu deus e que vivessem no erro. Preferiam matálas. Eu prefiro
falar com elas e dizerlhes frontalmente que acho que estão erradas,
mas que têm todo o direito de estar erradas.
Isto não é uma forma de relativismo porque esta tolerância tem
limites. É claro que eu não sou tolerante com respeito a tudo o que
acho que está errado. Não sou tolerante, por exemplo, relativamente
aos assassinos. Não só acho que eles estão errados, como acho que não
têm o direito de estar errados, porque os seus erros têm consequências
claramente horríveis. Mas, por mais desastrosa que seja a filosofia
continental do ponto de vista cultural e intelectual, as suas
consequências não são assim tão más que não possam ser toleradas. Os
analíticos que mostram intolerância relativamente à filosofia
continental fazemno por questões psicológicas, o que é compreensível,
mas não recomendável.
Alguns continentais de formação e convicções religiosas são contra a
filosofia analítica porque, para eles, «filosofia analítica =
ateísmo». Esta atitude é fruto da ignorância e revela uma postura
pouco séria em termos intelectuais e perigosa em termos sociais. É
perigosa porque está muito perto da atitude da inquisição que não está
assim tão longe: vejase a vida miserável que Salmon Rushdie tem de
ter por causa da intolerência religiosa. Revela uma postura
intelectualmente pouco séria porque coloca a investigação na
dependência de convicções religiosas e neste aspecto, a figura de
Galileu, finalmente perdoado pela Igreja católica 350 anos depois,
assume proporções a que só o génio poético de António Gedeão conseguiu
fazer justiça. E é fruto da ignorância, pois grande parte dos
filósofos analíticos são pessoas religiosas há imensos livros sobre
filosofia da religião publicados por crentes; e muitas outras pessoas
que fazem coisas que nada têm a ver com religião (como filosofia da
linguagem) são religiosas: é o caso do próprio Dummett, que é
católico. Penso que este dogma se explica pela «síndrome BR», a
síndrome Bertrand Russell. Russell, além de filósofo, foi um dos
primeiros humanistas declaradamente ateus; porque foi também um dos
principais filósofos analíticos, as pessoas assimilaram as duas
coisas. Mas também o existencialismo conheceu o seu apogeu com um dos
primeiros filósofos ateus da história, Sartre no entanto, há hoje
muitos católicos existencialistas e nenhum católico afirmará que
«existencialismo = ateísmo». No entanto, ainda que a equação da
ignorância, «filosofia analítica = ateísmo», fosse verdadeira, não
penso que esse fosse um bom motivo para não se dar condições aos
filósofos analíticos para estudar, divulgar e publicar, tal como não
penso que a Igreja católica tinha razão ao proibir Galileu de
prosseguir os seus estudos.
3. Conclusão
Muitos sectores da vida humana são dominados por jogos de bastidores,
alianças estratégicas, tentativas subreptícias de eliminar a
«concorrência». Isto acontece na vida dos partidos políticos (mesmo na
vida interna de cada partido), nos jornais e na vida académica. No
entanto, essa não é a minha postura. Nunca levantei um dedo contra a
filosofia continental, às escondidas ou às claras. Nunca fiz jogos de
bastidores contra esta ou aquela pessoa, como já fizeram contra mim a
mais recente dessas atitudes é a recensão do Carlos Leone que referi
logo no início. Não é essa a minha postura na vida intelectual. Não só
não gosto de jogos de poder, como os acho moralmente execráveis. E não
consigo evitar pensar que esses tipos de atitudes são ainda as
manifestações persistentes das nossas origens simiescas; são
antropologicamente compreensíveis, mas moralmente deploráveis.
Quando andava no 12.o ano, com a arrogância típica dos jovens, o meu
professor de filosofia apanhoume a «massacrar» uma colega que queria
estudar Direito para ser advogada, ganhar muito dinheiro e ter
estatuto social. O meu professor surpreendeume com palavras simples
que nunca esqueci. Disseme: «tens de respeitar a profissão das outras
pessoas se quiseres que respeitem a tua». Por vezes, os analíticos eu
incluído esquecem esta verdade simples. É tempo de o relembrar.
Eu não entrarei no jogo de pessoas como Carlos Leone, sejam elas
analíticas ou continentais. Respeito o trabalho de Carlos Leone,
apesar de achar que é objectivamente mau, enquanto jornalista. Por
exemplo: há algumas semanas, antes da diatribe contra mim e a
Disputatio, ele escrevia uma coluna em que tecia largos elogios à
editora Colibri. A razão era a importância de publicar ensaios em
Portugal. É verdade que é muito importante publicar ensaios em
Portugal, um país no qual sempre que se fala de livros se tem em mente
romances, muitas vezes de péssima qualidade e que só servem para nos
distrair durante uma semana. Mas, apesar de a Colibri ser uma pequena
gráfica simpática, que faz sem dúvida falta e que tem desempenhado um
papel importante na academia como foi ele esquecerse de editoras como
a Dom Quixote, as Edições 70, a Editorial Presença, a EuropaAmérica e
tantas outras que publicam por mês mais ensaios do que a Colibri
publica num ano? Ou da recente investida do Instituto Piaget, que num
ano publicou mais ensaios na área da filosofia do que a Colibri em
toda a sua vida? Isto é mau trabalho jornalístico.
Curiosamente, há um aspecto desse artigo do Carlos que chocou muita
gente, e que eu achei justo. Ele afirmou que a Philosophica, a revista
do meu departamento, publicada pela Colibri, era a melhor revista
portuguesa de filosofia. Eu acho justo porque, no panorama nacional
das revistas de filosofia, e tendo em conta que se trata de revistas
de filosofia continental, a Philosophica é a melhor. Que outra revista
poderia ser a melhor? A Revista Portuguesa de Filosofia tem uma idade
venerável, é verdade, e é uma instituição respeitável. A Revista
Filosófica de Coimbra tem marcado um espaço próprio. A Análise está
ausente desde há muito tempo. E que mais há? A Disputatio não pode
medirse pelos mesmos padrões porque é uma revista de filosofia
analítica, produzida segundo padrões internacionais e, de qualquer
modo, é demasiado jovem para poder avaliarse. Os Cadernos de
Filosofia são ainda mais jovens. Classificar a Philosophica como a
melhor revista portuguesa de filosofia não me choca: pareceme justo.
Isto não significa que as outras 2 grandes revistas sejam más;
significa apenas que não são tão boas. E isto também não significa que
as outras não sejam boas. No caso da Disputatio, nem se pode comparar
porque se trata de um projecto com um perfil muito diferente das
tradicionais revistas portuguesas de filosofia. Afirmar que a
Philosophica é a melhor quer dizer uma coisa que é verdade: a maior
parte das pessoas que escrevem nela artigos são alguns dos melhores
filósofos e historiadores continentais portugueses. Penso que isso é
indisputável. Isto não significa que os melhores filósofos do país
publiquem na Philosophica; pessoas como o Fernando Gil e o Manuel
Maria Carrilho, ambos com uma vasta obra publicada, cá e em França,
nunca publicaram nela e possivelmente nunca publicarão, dado o clima
«clubista» da academia portuguesa.
Detiveme sobre esta «polémica» porque ela mostra uma certa atitude
que acho que deve ser evitada. Essa atitude tem duas vertentes. Uma
delas é a pura ignorância. Os académicos portugueses ignoramse uns
aos outros, não lêem os artigos e livros uns dos outros, o que é
disparatado. Para quem mais estão eles a escrever? Não podemos pedir
que os outros leiam as coisas que escrevemos se nós não lermos as
coisas que os outros escrevem. É natural que os analíticos não leiam
os continentais, nem viceversa. Isso acontece também lá fora, se bem
que eu ache isso idiota num país tão pequeno como o nosso. Mas o que é
surpreendente é que os analíticos (os 3 ou 4 que existem) também não
leiam o trabalho uns dos outros! E o mesmo acontece com os
continentais. É claro que eu não posso saber o que fazem as pessoas no
segredo das suas casas: talvez todos se leiam mutuamente com afinco.
Mas isso é irrelevante. O que conta é que dessas leituras, se é que
existem, não resulta nunca uma crítica, um eco, um reparo; nada.
Quem ler a Philosophica e a comparar com as outras, percebe que os
artigos são em geral mais profundos, revelam um maior conhecimento
histórico e bibliográfico e pautamse por um maior rigor formal (do
ponto de vista textual e lexical). Isso não significa que constituam
exemplos de boa filosofia; do ponto de vista analítico, são exemplos
de má filosofia. Mas não devemos nunca desprezar o trabalho das outras
pessoas só porque elas não pertencem ao nosso «clube». E desprezálo
quando nem sequer o lemos é uma atitude no mínimo pouco séria.
A outra vertente, relacionada com a primeira, é a «crítica de
corredor». Apesar de os académicos portugueses não serem leitores das
obras uns dos outros, sussurram críticas nos corredores ao trabalho
uns dos outros. Eu acho que essas críticas deviam ser substituídas
pelo respeito mútuo e pela crítica aberta, publicada nas revistas e
apresentadas nas conferências. Ninguém consegue fazer um bom trabalho
se não for avaliado pelos seus pares. Afirmar publicamente, de forma
séria e argumentada, que o artigo de alguém tem defeitos, é ajudar
essa pessoa a não voltar a cometêlos; não é uma exibição de
gladiadores embrutecidos. Penso que a filosofia em Portugal teria
muito a ganhar se começasse a haver diálogo e se as pessoas começassem
a ler o trabalho umas das outras.
Termino com uma nota pessoal, como prometi. Gosto de coisas simples.
Ler e discutir filosofia e pensar nos seus problemas, argumentos e
teorias. Ler literatura e ensaio. Ouvir música. Cultivar amizades
sinceras e frontais e ter relações de trabalho honestas e verticais.
Gosto de árvores, de sol e da natureza. Gosto de crianças e do milagre
da bondade e do altruísmo humanos. Admiro a coragem e a abnegação.
Estas declarações pessoais e com o seu quê de ridículo servem para
mostrar que é inútil atirarme pedras: eu não respondo com outras
pedras. Já o demonstrei mais de uma vez. Faço o trabalho em prol dos
outros que acho que tenho o dever de fazer, prejudicandome muitas
vezes a mim próprio, trabalho esse que só um punhado de pessoas
reconhece. E é tudo. Tenho amigos e um dia vou morrer
irremediavelmente só, como todos os seres humanos. Enquanto estiver
por aqui procurarei compreender melhor o mundo que me rodeia e tirar
partido da felicidade simples das coisas simples. O resto, não me
interessa.
Desidério Murcho
Sociedade Portuguesa de Filosofia
Av. da República, 37, piso 4
1050 Lisboa, Portugal
Etimologia do disparate: filosofia, paradoxos e falácias
Desidério Murcho
A tarefa de ensinar e divulgar a filosofia não é tarefa fácil. Em
particular, não é fácil redigir manuais do ensino secundário que
possam constituir, para alunos e professores, instrumentos valisos de
trabalho. O manual a que faço referência nestas páginas resulta sem
dúvida da vontade de transmitir o melhor possível o gosto pela
filosofia e terá sido redigido com o cuidado que tão nobre tarefa
merece. Infelizmente, há pelo menos um erro científico grave e
incontroverso neste manual. O meu objectivo é mostrar de que erro se
trata e reflectir um pouco sobre o que a existência deste erro
significa.
Na página 71 do manual do 11.o ano do ensino secundário intitulado
Pensar e Ser, de Fátima Alves, José Arêdes e José Carvalho
apresentase como exemplo de uma falácia o que é conhecido como
paradoxo de Epiménides e que os autores baptizaram como «sofisma de
Epiménides». Este é apenas um exemplo da infelizmente medíocre cultura
filosófica nacional. Outro exemplo encontrase no famigerado Grande
Dicionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo, onde a
definição dada de paradoxo é «opinião contrária à opinião comum». Esta
mesmíssima expressão surge aliás no menos badalado mas muito melhor
Grande Dicionário da Língua Portuguesa de José Pedro Machado (que
merecia, aliás, uma edição electrónica mas, claro, sem as fantasias
gráficas com que inutilizaram o Cândido de Figueiredo). Já o
Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora (que, modestamente,
não se titula de «grande»), resolveu inovar e afirma que um paradoxo é
uma «opinião contrária ao sentir comum», inovação imediatamente
copiada pelo recente Dicionário Universal da Língua Portuguesa, da
Texto Editora.
Os engenheiros informáticos sabem que uma maneira simples de descobrir
se um certo fragmento de código de programação foi copiado é procurar
erros iguais: a probabilidade de se cometer duas vezes certos tipos de
erro é de tal forma pequena que a hipótese de ter sido uma
coincidência é muito menor do que a hipótese de cópia. Acredito
seriamente que este heideggerianismo das etimologias aplicado à
definição de paradoxo, com os resultados infelizes que estão à vista,
tem de ter uma origem comum. Mas não sei, infelizmente, qual é.
Nestas páginas, vou discutir esta definição errada de paradoxo, a
confusão inacreditável entre o conceito de paradoxo e o de falácia e a
importância deste estado de coisas para a situação da cultura
filosófica portuguesa. Para isso, claro, terei de lhe oferecer, caro
leitor, uma caracterização precisa do conceito de paradoxo e do
conceito de falácia. Pelo caminho ficará também uma discussão da
importância destes conceitos para uma cultura filosófica lúcida e
informada.
O que é uma falácia?
Uma falácia é um raciocínio logicamente inválido. Um raciocínio
logicamente inválido é um raciocínio errado: um raciocínio que não
conduz à verdade, ainda que as premissas nas quais se baseia sejam
todas verdadeiras. Por exemplo, se eu afirmar que todos os animais
rugem porque todos os leões rugem e todos os leões são animais,
estarei a evocar premissas verdadeiras para sustentar a minha ideia
tola de que todos os animais rugem (talvez porque acredito que o meu
canário ruge às escondidas). Essas premissas são: «todos os leões
rugem» e «todos os leões são animais». No entanto, claro, a minha
conclusão («todos os animais rugem») é falsa. O que correu mal? O meu
raciocínio: é um mau raciocínio, como se pode demonstrar facilmente.
Qualquer pessoa percebe intuitivamente o que é um mau raciocínio. Mas
há certas subtilezas que provocam sempre alguma confusão. Que
subtilezas são essas? Tratase de dois factos: os raciocínios errados
podem ter conclusões verdadeiras (ao contrário do que acontece no
nosso exemplo dos leões); e os raciocínios válidos ou correctos podem
ter conclusões falsas. Quando se diz isto às pessoas elas respondem
sempre: mas então para que serve a lógica? Se os bons raciocínios
podem ter conclusões falsas e se os maus podem ter conclusões
verdadeiras! Mais vale ir ao futebol, onde é tudo afinal a brincar...
A verdade, no entanto, é que as coisas em filosofia e em lógica não
são a brincar, como no futebol, e são razoavelmente mais subtis,
apesar de possivelmente mais fáceis de perceber. Senão, vejamos. Que
raciocínios válidos ou correctos podem ter conclusões falsas?
Resposta: aqueles que partirem de premissas falsas. Não admira: se
partimos de falsidades, por melhor que seja o raciocínio, é natural
que cheguemos a falsidades; estranho seria que assim não fosse. Por
mais que nos esmeremos a fazer o almoço de Domingo, se os ingredientes
forem maus, o almoço será mau.
E o outro caso? Como explicar que os maus raciocínios possam conduzir
a conclusões verdadeiras? Bom, da mesma maneira que explicamos como
podemos acabar por ir parar aonde queríamos apesar de não sabermos o
caminho: por puro acaso. Num argumento inválido com uma conclusão
verdadeira as premissas não sustentam de facto a conclusão: chegámos
àquela conclusão por sorte. Mas quando uma conclusão não é realmente
sustentada pelas suas premissas, não podemos ter a certeza de que é
verdadeira, uma vez que não temos dados relevantes que sustentem a
nossa crença de que é verdadeira: os dados que temos não sustentam
realmente a nossa crença, apenas parecem fazêlo.
Por isso, apesar de os raciocínios ou argumentos inválidos poderem
conduzir a conclusões verdadeiras e apesar de os argumentos válidos
poderem conduzir a conclusões falsas, a importância da lógica (que nos
permite distinguir os raciocínios correctos dos incorrectos) e da
verdade (que nos permite partir de premissas verdadeiras) é central.
Só com raciocínios correctos que partem de premissas verdadeiras temos
a garantia de chegar a conclusões verdadeiras.
O que é então uma falácia? Já dissemos que uma falácia é um raciocínio
errado (a que também se pode chamar incorrecto e que em termos
técnicos é conhecido como inválido). Mas nem todos os raciocínios
errados são falácias, apesar de todas as falácias serem raciocínios
errados. Para que um argumento errado seja uma falácia é necessário
que pareça um raciocínio válido: e é esta característica que faz das
falácias um conceito, em certa medida, extralógico, um conceito quase
psicológico (no entanto, pelo menos parcialmente, é possível explicar
em termos estritamente lógicos esta semelhança que nos faz,
psicologicamente, tomar como válidos certos raciocínios inválidos). O
conceito de falácia é assim um conceito importante não tanto em
lógica, onde os argumentos ou são correctos ou incorrectos e não há
lugar a considerações psicológicas, mas antes em lógica informal ou
retórica, onde tais considerações são extremamente importantes.
O que é um paradoxo?
E o que é afinal um paradoxo? Um paradoxo é um raciocínio que, tanto
quanto conseguimos perceber, é válido e que, tanto quanto conseguimos
perceber, parte de premissas verdadeiras, mas que no entanto nos
conduz a um resultado inaceitável. Já se está a ver o erro monstruoso
que consiste em confundir paradoxos com falácias: a condição de
possibilidade da existência de um paradoxo genuíno é este não ser uma
falácia. Se um raciocínio for falacioso, não pode ser um paradoxo e se
for um paradoxo genuíno não pode ser falacioso.
Os paradoxos são em geral enunciados através da proposição
aparentemente pacífica que conduz a resultados inaceitáveis. Mas que
resultados inaceitáveis são estes? O resultado paradoxal é a
autocontradição. Para explicar o que é a autocontradição tenho de
explicar primeiro o que é a contradição, como é óbvio. E o que é isso?
Bom, todos nós temos uma ideia intuitiva do que é uma contradição:
acusamos alguém de se contradizer quando afirma agora uma coisa que é
a negação do que afirmou antes (como é, tipicamente, o caso dos
políticos e dos dirigentes «desportivos»). Uma contradição é uma
relação lógica existente entre duas proposições. Duas proposições são
contraditórias quando a verdade de uma implica a falsidade da outra e
viceversa. Por exemplo, a frase «a vida não tem sentido» (um
enunciado tipicamente existencialista) é contraditória com a frase «a
vida tem sentido». Mesmo que não saibamos qual das duas frases é
verdadeira, sabemos que se a primeira for verdadeira, a segunda será
falsa; e que se a segunda for verdadeira, a primeira será falsa.
A autocontradição é a situação paradoxal na qual uma frase é
contraditória consigo mesma. Assim, quando temos uma frase
contraditória e procuramos saber o seu valor de verdade, deparamos
sempre com a seguinte situação: quando partimos do princípio de que
ela é verdadeira, concluímos que é falsa; e quando partimos do
princípio que ela é falsa, concluímos que é verdadeira. Incrível, não
é? Dá até a impressão que tal monstruosidade não pode existir. Mas
existe: são os paradoxos.
Paradoxos e falsos paradoxos
Vamos então ver alguns exemplos de paradoxos e de falsos paradoxos.
Imagine o leitor que encontrava a seguinte frase no jornal da manhã:
«esta frase é falsa». Se o leitor tiver o hábito, aliás saudável, de
desconfiar do valor de verdade de tudo o que lê no jornal,
perguntarseia certamente: será esta frase verdadeira? Imaginemos que
sim. Bom, se a frase for verdadeira, verificase aquilo que ela
afirma, certo? Mas a frase afirma dele mesma que é falsa. Logo, se for
verdadeira, é falsa. E se for falsa? Bom, se for falsa não se verifica
aquilo que ela afirma. Mas a frase afirma dela mesma que é falsa.
Logo, se for falsa é verdadeira.
Chegámos então ao resultado paradoxal: a frase é verdadeira se for
falsa e é falsa se for verdadeira. Abreviadamente, costumamos dizer
que a frase é verdadeira se, e só se, for falsa. Este é o resultado
que qualquer paradoxo tem de produzir; se não o produzir não é um
paradoxo, apesar de poder ser confundido com um paradoxo. Por exemplo,
na página 71 do manual de Fátima Alves, José Arêdes e José Carvalho,
no qual se apresenta o paradoxo de Epiménides como um exemplo de uma
falácia, a formulação escolhida pelos autores é a seguinte:
o sofisma de Epiménides, poeta cretense do século VI a.C., que
afirmou: «todos os cretenses são mentirosos». Ora, atendendo a que
ele próprio era cretense, será o enunciado verdadeiro?
É deplorável a capacidade inventiva dos autores, que os fez
transformar o conhecido paradoxo do mentiroso num «sofisma» ou
falácia. O leitor já sabe que a condição de possibilidade para que
algo seja um paradoxo é não ser uma falácia, de forma que esta
confusão entre as duas categorias é um erro científico muito grave.
Mas é também interessante verificar que a formulação clássica do
paradoxo do mentiroso, apresentada pelos autores, não é, na verdade,
um paradoxo!
Reparese: Epiménides afirma que todos os cretenses são mentirosos.
Mesmo que admitamos que por «mentirosos» se quer dizer «pessoas que
nunca dizem a verdade» (o que constitui, convenhamos uma definição
estranhíssima de mentiroso), não se consegue gerar nenhum paradoxo.
Ora veja lá: admitamos que o que Epiménides disse é verdade; daí
seguese todos os cretenses são mentirosos; logo, o que ele diz,
porque é cretense, é falso. Logo, se o que ele diz é verdade, é falso.
Admitamos agora que o que Epiménides disse é falso. Se o que ele disse
é falso, a negação do que ele disse é verdade. A negação do que ele
disse é «alguns cretenses não são mentirosos». Mas não há nenhum
problema em admitir que Epiménides é cretense e que alguns cretenses
não são mentirosos. Na verdade, Epiménides, ao afirmar que todos os
cretenses são mentirosos, está a pregarnos uma grande mentira: a
verdade é que alguns cretenses não o são. E uma vez que ele nos está a
mentir, ele é que é mentiroso!
Conclusão: não se trata de um paradoxo. Se raciocinarmos disciplinada
e sistematicamente descobrimos que afinal a afirmação de Epiménides
tem de ser falsa. Se fosse um paradoxo, a sua afirmação não podia ser
verdadeira nem falsa.
Mas então, perguntará o leitor, por que razão se formulava
tradicionalmente desta forma errada o paradoxo do mentiroso? Porque se
errava ao raciocinar! A negação da afirmação «todos os cretenses são
mentirosos» é, como disse acima, «alguns cretenses não são
mentirosos»; mas é fácil errar e pensar que a sua negação é antes
«nenhum cretense é mentiroso». Por que razão esta última não é a
negação da outra? É simples: a negação de uma frase qualquer tem de
ter o valor de verdade oposto a essa frase, como é óbvio. Se a frase
«todos os portugueses são altos» é verdadeira, a sua negação tem de
ser falsa e viceversa. Mas agora repare que, apesar de esta frase ser
falsa (como é óbvio, nem todos os portugueses são altos), a frase
«nenhum português é alto» é também falsa. Logo, apesar de esta última
parecer intuitivamente constituir a negação da primeira, não o é de
facto. Este facto simples já era conhecido por Aristóteles, que chamou
«contrárias» a estas frases que não são a negação uma da outra. Às
frases que se negam mutuamente chamou Aristóteles «contraditórias».
A etimologia do disparate
Agora que o leitor tem uma ideia clara do que é um paradoxo e do que é
uma falácia, está apto a compreender o significado cultural da
definição de paradoxo que surge nas obras portuguesas de referência e
no manual escolar referido. A característica geral da definição de
paradoxo que surge nestas obras (nas quais se inclui a enciclopédia de
filosofia da Verbo, a Logos) é o recurso à etimologia. «Paradoxo» quer
dizer literalmente, segundo a etimologia grega, «contra a opinião».
Está tudo muito bem. Que este seja o único conceito que surge num
dicionário da língua portuguesa, ainda que se intitule de «grande»,
ainda se desculpa; mas que em obras de referência e em manuais
escolares a mesma má definição seja apresentada ao leitor como
informação fidedigna é um crime cultural.
Um estudante de filosofia que não sabe distinguir um paradoxo de uma
falácia é como um estudante de música que não sabe distinguir as
cordas dos metais, ou um estudante de medicina que não distingue o
fígado da bexiga. Como é óbvio, um estudante que não distingue um
paradoxo de uma falácia tem altas probabilidades de cometer falácias;
e será também muito provavelmente incapaz de examinar de forma
correcta os problemas filosóficos, uma vez que estes têm muitas vezes
um carácter paradoxal. Da filosofia esperase que ofereça aos que a
estudam lucidez e claridade no pensamento; mas enquanto se confundirem
dois dos seus conceitos mais básicos, não se pode esperar senão
confusão e erro.
A riqueza de uma cultura patenteiase na riqueza da sua língua; e a
riqueza de uma língua manifestase na capacidade para exprimir
conceitos complexos, subtis e importantes. Cercear esta riqueza é
impedir o pensamento e o desenvolvimento cultural, é impedir os
portugueses de dialogar com o mundo cultural, obrigandoos à clausura
de uma provinciana cultura de realejo, fechada ao mundo e à
criatividade. Mas quem sabe? talvez o objectivo seja mesmo esse.
Desidério Murcho
Sociedade Portuguesa de Filosofia
Av. da República, 37, 4.o
1050 Lisboa
Epistemologia da Modalidade em David Hume
Desidério Murcho
Artigo publicado na Revista Filosófica de Coimbra, n.o 12, 1998, pp.
441449.
O estudo das modalidades aléticas, introduzido por Aristóteles e
cultivado na Idade Média, foi praticamente esquecido na Idade Moderna.
O conceito de verdade necessária, no entanto, continuou a desempenhar
um papel importante nas filosofias da Idade Moderna. Os filósofos
racionalistas, como Leibniz ou Espinosa, encontram nas verdades
necessárias o modelo do conhecimento fidedigno, ao passo que um
filósofo empirista, como Locke, tem necessidade de explicar que a sua
origem é ainda empírica, contra todas as aparências. Nos princípios do
presente século, a atitude positivista perante as verdades necessárias
era ainda uma sombra distante da atitude empirista típica: ao procurar
explicar as verdades necessárias através da ideia de convenção
linguística era ainda a ideia de que aquelas não representavam
aspectos do mundo, mas antes convenções da linguagem.
Também o pai da lógica contemporânea, Frege, procurou reduzir o
conceito de necessidade ao conceito de universalidade.(1) Esta redução
corresponde a afirmar que a frase «Necessariamente, todos os homens
são mortais» exprime a mesma proposição que a frase «Todos os homens
são mortais». Também Kant (KrV, B3B4) parece sancionar a ideia de que
a necessidade se pode reduzir à «absoluta universalidade». No entanto,
esta redução carece de uma justificação. Aparentemente, afirmar que
todos os homens são mortais é muito diferente de afirmar que
necessariamente todos os homens são mortais; no primeiro caso
afirmamos algo acerca do que se verifica de facto, enquanto no segundo
caso afirmamos algo acerca do que se verifica em todas as
circunstâncias contrafactuais.
O estudo das modalidades aléticas só foi reactivado em meados do
presente século, tendo sido decisiva a semântica dos mundos possíveis
introduzida por Kripke, que permitiu encontrar uma única estrutura a
relação lógica de acessibilidade nos diferentes sistemas de lógica
modal (T, S4, B e S5). A existência da lógica modal demonstra que nada
há de contraditório na ideia de verdade necessária. Mas é óbvio que do
facto de um conceito ser logicamente bem formado não se segue que seja
filosoficamente adequado. Uma outra forma de avaliarmos a legitimidade
filosófica de um conceito é perguntarmonos pela sua origem
epistemológica. Esta é a atitude de David Hume na obra An Enquiry
Concerning Human Understanding (ECHU).(2) Estas páginas são dedicadas
à discussão da sua secção VII, intitulada precisamente «Of the Idea of
Necessary Connexion».
Preliminares
O tratamento técnico actual dos conceitos modais, bastante complexo e
com amplo alcance, nomeadamente no âmbito tecnológico, permite que
possa colocarse já aquele tipo de questões de segunda ordem que
caracterizam uma parte importante do trabalho do filósofo. É assim já
com base num conjunto de resultados teóricos que o filósofo dos finais
do século XX, ao contrário de Hume, enfrenta os problemas subjacentes
aos conceitos modais. Tal como no caso do cálculo matemático das
probabilidades ou no caso dos teoremas da incompletude de Gödel, a
questão geral que agora se levanta é quanto ao significado filosófico
dos conceitos modais. O filósofo encontrase já perante resultados
teóricos precisos, mas interrogase agora sobre algumas questões que
estão para além do domínio técnico.
Uma vez que a própria expressão «significado filosófico» não é de
maneira alguma clara, passo a expor os dois problemas básicos que a
análise do significado filosófico de um qualquer conceito C em geral
tem de enfrentar. Antes, porém, de se poder levantar a primeira
interrogação sobre determinado conceito C, tem de se enfrentar um
problema prévio, que consiste na questão de saber se C é na verdade
consistente, i.e., se é possível dispor de um tratamento de C tal que
não se caia em inconsistências, quer no interior da teoria que propõe
C, quer em relação a outros resultados amplamente aceites. As críticas
de Quine(3) aos conceitos modais foram no sentido de tentar mostrar a
sua inconsistência. Mas a distinção clara entre necessidade,
respectivamente possibilidade, de re/de dicto, mostra que os
argumentos de Quine são inválidos.
A primeira questão propriamente dita quanto ao significado filosófico
de um conceito C consiste na análise do estatuto ontológico de C.
Assim, em relação à modalidade tratase de saber a que tipo de
realidade se referem as proposições necessárias, uma vez que não se
referem a uma realidade espáciotemporalmente localizada;
respectivamente, em relação à ética, tratase de saber a que tipo de
realidade se referem as proposições morais. É neste âmbito que surgem
as questões em relação ao realismo, antirealismo, quaserealismo ou
ficcionalismo. Enquanto que para um realista da modalidade as
proposições necessárias referem uma realidade objectiva e independente
que, no entanto, não tem localização espáciotemporal, já o
ficcionalista modal defende que as proposições necessárias referem
apenas ficções teóricas construídas por determinados agentes
cognitivos, nomeadamente nós, para melhor compreenderem certos
fenómenos, sem que no entanto tenham mais realidade que Pégaso ou
Sherlock Holmes; respectivamente, em relação à ética, um realista
defenderá que as suas proposições referem uma realidade objectiva e
independente, contrapondo o antirealista a ideia de que a moral é
apenas uma construção social e linguística sem mais realidade do que
um conto de fadas.
A segunda questão quanto ao significado filosófico de um conceito C
consiste na análise da epistemologia estrita de C. Assim, em relação à
modalidade, tratase de saber 1) qual é a fonte de conhecimento das
verdades necessárias; respectivamente, em relação à ética, tratase de
saber qual é a fonte de conhecimento das verdades morais; 2) como
podemos distinguir a verdade da ilusão acerca de C; e 3) que processos
cognitivos estão envolvidos no processamento da informação acerca de
C.
É verdade que as questões ontológicas e as questões epistemológicas
podem ser confundidas, mas não devem sêlo. Ainda que se prove não
existir fonte alguma de conhecimento de um determinado conceito C, não
se segue que a realidade referida por C não possa existir real e
objectivamente. Seguese apenas que, para determinados agentes
cognitivos, C é incognoscível.
Não é menos verdade que as questões epistémicas estritas podem ser
confundidas com questões gerais da teoria do conhecimento. A teoria do
conhecimento tem duas grandes divisões, consoante se analisa a forma
lógica da linguagem onde ocorre C ou a acessibilidade de C
relativamente a determinados agentes cognitivos, em particular os
seres humanos. Um conceito C pode ser inteligível em princípio, mas
ser inacessível a um determinado agente cognitivo, por este não dispor
de uma estrutura epistémica que lhe permita aceder à sua cognição
real, mas apenas à discussão quanto à sua possibilidade. Por exemplo,
discutir a possibilidade lógica do conceito de Deus (num sentido a
definir) é manifestamente diferente de discutir a possibilidade
epistémica de Deus ser conhecido pelos seres humanos.
Lógica, física e metafísica
Os conceitos lógicos de necessidade e possibilidade, dão origem a
algumas confusões conceptuais que é necessário desde já procurar
evitar. Em primeiro lugar, temos de distinguir a necessidade
epistémica dos outros tipos de necessidade. A necessidade epistémica
não é senão o a priori: uma proposição é epistemicamente necessária se
e só se pode ser conhecida independentemente da experiência. A
confusão entre necessidade epistémica e os outros tipos de
necessidade, denunciada por Kripke,(4) poderá ter sido a origem do
infeliz critério kantiano de a priori: estrita universalidade e
necessidade (KrV, B3B4).
A necessidade lógica, um dos três conceitos de necessidade não
epistémica, é fácil de definir: uma proposição P é logicamente
necessária se e somente se ou 1) é um teorema ou um axioma da lógica
(clássica ou não), ou 2) é uma verdade analítica. Os teoremas e
axiomas constituem o que por vezes se chama as verdades lógicas em
sentido estrito. As condições 1) e 2) distinguem as verdades da lógica
estrita (cálculo proposicional e predicativo) das verdades analíticas
em geral. A proposição
(A) A Ú ¬A
é um teorema do cálculo proposicional, mas a contraparte simbólica da
frase
(B) Todos os objectos verdes têm cor
não é um teorema do cálculo de predicados, apesar de ser claramente
uma verdade analítica. Tanto (A) como (B) são, pela nossa definição,
verdades logicamente necessárias.
O conceito de necessidade física é também relativamente fácil de
definir. Uma proposição P é fisicamente necessária se e só se 1) é uma
verdade física ou 2) é uma consequência lógica de uma verdade física.
É fácil de ver que a noção de necessidade física não coincide com a
noção de necessidade lógica. Por exemplo, a proposição expressa pela
frase «nenhum objecto viaja mais depressa do que a luz» não é
logicamente necessária, mas é fisicamente necessária.
É difícil definir a noção de necessidade metafísica de forma precisa.
Uma definição imprecisa é a seguinte: uma proposição P é
metafisicamente necessária se 1) a sua verdade resultar das
propriedades dos objectos a que se refere, ou se 2) for uma
consequência lógica das propriedades dos objectos a que se refere. Na
verdade, esta concepção de necessidade metafísica pode confundirse
com a necessidade física, uma vez que algumas das propriedades que os
objectos têm consistem em propriedades que são o resultado da
aplicação das leis físicas a esses objectos, como, por exemplo, a
propriedade de não se poder viajar mais depressa do que a luz. A
diferença entre necessidade física e metafísica compreendese mais
claramente se admitirmos a existência de situações contrafactuais com
leis físicas diferentes das actuais; numa dessas situações a frase
«nenhum objecto viaja mais depressa do que a luz» seria falsa: alguns
objectos viajariam mais depressa do que a luz, uma vez que as leis da
física seriam diferentes. Admitida a possibilidade desta situação
contrafactual, seguese que a frase «nenhum objecto viaja mais
depressa do que a luz» seria fisicamente necessária, mas
metafisicamente contingente. (A frase citada surgiu erradamente
grafada na versão impressa deste estudo.) A posição naturalista nesta
matéria faz coincidir a noção de necessidade metafísica com a noção de
necessidade física, excluindo a possibilidade de situações
contrafactuais com leis da natureza diferentes das actuais.
Para facilitar a exposição, referi apenas a necessidade física. Mas
existem outros tipos de necessidade análogos, como a necessidade
química e biológica. Doravante referirmeei indiferentemente a
qualquer destas categorias através do termo «necessidade natural».
A necessidade e a possibilidade são interdefiníveis: p « ¬à¬p e àp «
¬¬p No entanto, a relação conceptual entre os vários conceitos de
possibilidade é mais fácil de compreender do que a relação conceptual
entre os vários conceitos de necessidade,(5) podendo representarse
comodamente no seguinte diagrama:
As fronteiras entre a possibilidade
física/química e a possibilidade
biológica, por exemplo, representam o facto de existirem situações
fisicamente possíveis que não são, no entanto, biologicamente
possíveis: a existência de girafas com listas é fisicamente possível,
mas talvez não seja biologicamente possível.(6) A interrogação na zona
da possibilidade metafísica representa o facto de um naturalista fazer
coincidir a sua fronteira com a fronteira da possibilidade natural,
excluindo assim a existência de possibilidades metafísicas que não
sejam possibilidades naturais. Um filósofo naturalista exclui, por
exemplo, a possibilidade de viajar mais depressa do que a luz, se for
fisicamente impossível viajar mais depressa do que a luz.
Origens empíricas
A análise que David Hume oferece do conceito de necessidade, na sua
terminologia «conexão necessária», é conduzida por considerações
epistemológicas quanto à sua origem. A questão de saber se Hume tem em
mente o conceito de necessidade natural ou o conceito de necessidade
metafísica é talvez insolúvel. Em qualquer caso, a distinção entre
proposições metafisicamente necessárias e proposições fisicamente
necessárias não é usada claramente por David Hume, nem estava
claramente traçada no seu tempo. No entanto, a diferença entre a
secção VII da ECHU e a IV parece consistir, na verdade, na diferença
de objecto de análise, ainda que permaneça a mesma orientação
epistemológica. Assim, o conceito analisado na secção VII parece ser o
de necessidade metafísica, ao passo que na secção IV Hume parece
analisar o conceito de necessidade natural.
Podemos reservar o termo «necessidade» para os casos de necessidade
metafísica, e tratar os casos de necessidade natural como casos que
são perfeitamente captados pelo quantificador universal da lógica
clássica de Frege ("), o que farei a partir deste momento.(7) Com esta
mudança de terminologia tornase evidente que os problemas
epistemológicos relativos ao conceito de necessidade natural, agora
reformulado em universalidade, se transformam nos problemas relativos
à indução. Em particular, Hume debruçouse de facto sobre a
epistemologia da relação causal natural, por achar acertadamente que
esta é central para o nosso conhecimento do mundo.
A diferença entre uma proposição P verdadeira que estabelece uma
relação causal natural e uma proposição P´ verdadeira que estabelece
uma relação causal metafísica é a seguinte. P é verdadeira no mundo
actual, mas pode ser falsa noutros mundos metafisicamente possíveis.
Mas P´ é verdadeira em todos os mundos metafisicamente possíveis. As
secções IV e V da ECHU enfrentam as questões epistemológicas quanto ao
conceito de relação causal natural, analisando, em particular, a
origem do conhecimento causal natural. A secção VII da ECHU analisa a
origem do conhecimento causal metafísico.
É vantajoso dispor de uma pequena sinopse dos resultados de Hume em
relação à análise do conceito de causalidade natural, uma vez que a
primeira perplexidade suscitada pela sua análise do conceito de
necessidade é o facto de adoptar como método a procura daquele dado
dos sentidos (na sua terminologia, «impressão») que estará na origem
do conceito (na sua terminologia, «ideia») a analisar. Esta
perplexidade inicial é removida pelo menos parcialmente quando
compreendemos que o que Hume visa na sua análise da epistemologia
modal não é a origem do conceito lógico de necessidade, que ele
reconhece existir nas operações lógicas em geral (na sua terminologia,
«relações de ideias»). O que Hume visa na secção VII é a origem do
conceito de relação causal metafísica, tal como visa na secção IV a
origem do conceito de relação causal natural.
Uma vez que as relações causais naturais são factos do mundo físico,
na sua terminologia «matéria de facto», e não relações lógicas de
conceitos, é legítimo esperar que a origem epistemológica das
proposições que exprimem relações causais naturais não possa
encontrarse senão nos dados dos sentidos. É verdade que no século
XVIII Hume tem à sua disposição um tratamento muito rudimentar da
lógica talvez pior do que alguns medievais , mas aquilo de que dispõe
é suficiente para caracterizar sumariamente a necessidade lógica,
ainda que o faça de maneira ambígua, que pode ser interpretada como
psicologista. Em qualquer caso, Hume faz uma separação cuidadosa entre
relações lógicas e dados dos sentidos.
Os factos do mundo são em última análise os únicos objectos a
constituirse como dados dos sentidos, uma vez que Hume nem sequer
considera a hipótese, que Kant também não admitirá, de existir uma
intuição conceptual. Os factos do mundo, ao contrário das relações
lógicas, têm a característica de ser logicamente contingentes. Isto é,
dada uma qualquer proposição P, verdadeira, simples e com conteúdo
empírico, ¬P pode ainda ser verdadeira. Mas a negação de uma
proposição verdadeira complexa que exprime uma relação lógica é uma
contradição. Estes factos levantam a Hume a questão de saber como se
poderá justificar epistemologicamente o facto de estarmos dispostos a
aceitar como universal a proposição P. O método que Hume usa é o de
procurar a fonte do conhecimento causal natural, e o que é desde logo
tomado como óbvio é que essa fonte não pode repousar nas relações
lógicas.
Compreendese assim que também na análise da origem do conhecimento
das proposições necessárias as relações lógicas não sejam desde logo
consideradas como hipóteses. Tratase de procurar a origem das
proposições que não são relações lógicas, mas que se pretendem apesar
disso necessárias.(8)
Cognição ou ilusão
A análise da origem do conhecimento modal conduz Hume a considerar as
suas duas fontes possíveis: a intuição externa e a intuição interna.
Mas nem num caso nem no outro se encontra qualquer dado dos sentidos
que possa ser a origem do conceito de necessidade. Tanto nos dados dos
sentidos externos como nos internos, só temos acesso a factos
empíricos contingentes e nunca a factos necessários. Os dados dos
sentidos, internos ou externos, dão a conhecer o facto a e o facto b,
mas nenhuma conexão modal entre os factos é percepcionável. A origem
epistemológica do conceito de necessidade revelase obscura.
A perplexidade que surge no leitor ao deparar com a passagem da parte
I da secção VII para a parte II é a seguinte. Na parte I Hume mostrou,
com argumentos que putativamente nos deixam convencer, que não existe
nenhum dado dos sentidos, internos ou externos, que possa ser a origem
do conceito de necessidade. Assim, quando Hume nos apresenta, na parte
II, a sua teoria sobre a origem dos conceitos modais não podemos
deixar de ficar surpreendidos, pois a parte I parece ter já
considerado todas as fontes possíveis, com resultados negativos. Mas
como se sabe, Hume encontra na experiência repetida a origem do
conceito de causalidade necessária, na secção VII, tal como na secção
V encontrara no costume a origem do conceito de causalidade natural.
Para que se compreenda o alcance da nossa perplexidade é conveniente
ter em conta o seguinte. Ao procurar a origem epistemológica da
causalidade necessária, chamemoslhe c, Hume dirigese primariamente
aos objectos dos sentidos, onde não encontra tal. Parece assim que a
questão epistemológica quanto à origem de c é respondida pela
negativa. Mas na parte II Hume defende que a experiência repetida é a
origem de c. Uma vez que a experiência repetida é uma experiência
mental como qualquer outra, parece que a questão epistemológica quanto
à origem de c é agora respondida pela positiva.
Este é o problema crucial que tem de se enfrentar para se poder
compreender a teoria de Hume sobre os conceitos modais. Reparese que
na secção anterior já respondemos à questão de saber por que razão
Hume não procura nas relações lógicas a origem dos conceitos modais.
Mas esta questão parece agora voltar a imporse, pois em relação a
qualquer raciocínio lógico realmente efectuado por um agente cognitivo
há dois aspectos a considerar: 1) o aspecto cognitivo e 2) o aspecto
psicológico. A cognição é de facto uma relação lógica e como tal não é
empírica, mas a experiência psicológica do raciocínio lógico não é ela
mesma uma relação lógica, mas uma experiência empírica do sentido
interno. Podemos assim argumentar que ainda que não se possa encontrar
no raciocínio lógico a origem dos conceitos modais, podemos todavia
encontrar tal origem na experiência empírica e psicológica que ocorre
quando efectuamos um raciocínio lógico.
A formulação da nossa perplexidade torna mais claro o problema da
interpretação da tese de Hume sobre a origem epistemológica dos
conceitos modais e a aparentemente concomitante tese sobre o estatuto
ontológico dos mesmos. Se Hume achasse que a experiência repetida,
enquanto experiência empírica, constituía a origem do conceito de
causalidade necessária, então seria na verdade um objectivista quanto
à modalidade. Isto é, para Hume os factos modais existiriam
objectivamente no mundo empírico, se bem que não onde se poderia
pensar que estariam nos objectos , mas na relação entre dois tipos de
fenómenos: a psicologia dos agentes cognitivos e a repetição de certos
fenómenos empíricos. Mas a psicologia dos agentes cognitivos é ela
própria um fenómeno empírico, tanto quanto a existência de coelhos.
Neste caso, Hume seria um objectivista, se bem que os factos modais
não seriam propriedades de relações entre objectos, mas propriedades
de pares ordenados cujo primeiro membro seria um fenómeno causal e
cujo segundo membro seria um fenómeno psicológico. As proposições
modais seriam assim asserções genuínas sobre esses pares ordenados,
mas não sobre o mundo da experiência de objectos exteriores. Será esta
teoria defensável?
Dificilmente. O problema que se levantava à relação modal entre os
fenómenos causais do mundo levantase agora à relação entre esses
fenómenos e a nossa predisposição psicológica para, perante a sua
experiência repetida, reagir de uma certa forma. Por outras palavras,
da mesma forma que a afirmação de uma relação modal entre fenómenos do
mundo empírico carecia de análise, também a relação (modal ou apenas
natural) entre esses fenómenos e a nossa psicologia carece de análise.
A alternativa que resta a Hume é considerar que o facto psicológico de
se gerar uma expectativa na mente dos agentes cognitivos aquando da
experiência repetida não produz conhecimento, mas apenas uma forma de
ilusão que consiste em atribuir ao mundo exterior uma propriedade que
ele não tem de facto, não se podendo afirmar sequer que esta propensão
psicológica mantenha com a experiência repetida uma qualquer relação
cognitivamente adequada. A própria experiência psicológica interna não
pode neste caso constituirse como origem epistemológica dos conceitos
modais porque é apenas um facto psicológico destituído de significado
cognitivo. A experiência repetida produz um certo efeito psicológico
sobre determinados agentes cognitivos, mas este efeito não é em
qualquer caso um facto do mundo interno que mantenha uma relação
cognitiva com o mundo externo é apenas uma ilusão do nosso sentido
externo.(9)
É conveniente lembrar que do facto de não existir uma origem
epistemológica de um determinado conceito C não se segue estritamente
que, do ponto de vista ontológico, tal conceito não possa referir uma
realidade objectiva, apesar de epistemicamente inacessível. Assim,
apesar de Hume não encontrar a origem epistemológica dos conceitos
modais, mas apenas uma origem psicológica destituída de conteúdo
cognitivo, não se segue que estes não existam; seguese apenas que são
incognoscíveis para os seres humanos.(10)
Desidério Murcho
Sociedade Portuguesa de Filosofia
Av. da República, 37, 4.o
1050 Lisboa
Artigo publicado na Revista Filosófica de Coimbra, n.o 12, 1998, pp.
441449.
Notas
1. Cf. Begriffsschrift (publicado em 1879), p. 45 (trad. inglesa de
Peter Geach, Oxford: Blackwell, 1952, p. 4).
2. Publicada em 1748, está hoje disponível na edição canónica de L.A.
SelbyBigge e P. H. Nidditch, Oxford University Press, Oxford,
1975.
3. Nomeadamente, em «Reference and Modality» in From a Logical Point
of View, Harvard University Press, Cambridge, Mass. e Londres,
1953, pp. 139159.
4. Cf. Naming and Necessity, Oxford: Blackwell, 1980, pp. 3435.
5. Isto acontece porque, ao passo que todas as possibilidades
naturais são possibilidades lógicas (apesar de nem todas as
possibilidades lógicas serem possibilidades naturais), nem as
necessidades lógicas são necessidades naturais, nem as
necessidades naturais são necessidades lógicas: a intersecção do
conjunto das necessidades lógicas com o conjunto das necessidades
naturais é vazio.
6. Sobre este tema deve lerse o capítulo «The Possible and the
Actual» do penúltimo livro de Daniel C. Dennett, Darwin's
Dangerous Idea, London: Penguin, 1995, pp. 104123.
7. De um ponto de vista técnico preciso o quantificador universal não
pode substituir o operador de necessidade numa verdade
naturalmente necessária, uma vez que uma verdade naturalmente
necessária é verdadeira em todos os mundos possíveis que tenham
leis da natureza iguais às leis da natureza do mundo actual, ao
passo que o quantificador universal da lógica clássica não
quantifica sobre mundos.
8. Para Kant a questão é a de saber, admitindo que as ciências
produzem proposições necessárias, como é isso possível (KrV,
B20B21).
9. Em A Treatise of Human Nature (17391740), edição de L.A.
SelbyBigge e P. H. Nidditch, Oxford University Press, Oxford,
1978, p. 166, Hume parece subscrever
10. Beneficiei dos comentários de vários membros do Grupo de Análise
Filosófica (SPF), entre os quais o Pedro Santos e o Luís
Bettencourt, e da discussão detalhada com o Prof. João Paulo
Monteiro, que agradeço calorosamente. Muitos erros foram evitados.
Perplexidades lógicas
Desidério Murcho
Este estudo tem por objectivo fornecer ao leitor já familiarizado com
a lógica elementar alguns resultados menos evidentes cujo
desconhecimento pode gerar alguma perplexidade. Os resultados aqui
apresentados são os seguintes: o conjunto de todos os conectivos
lógicos binários, a distinção entre a relação lógica de dedução e a de
implicação, a relação lógica entre o Modus ponens, o princípio do
terceiro excluído e o princípio da não contradição, a definição de
fórmula satisfazível do cálculo de predicados, e a intransitividade da
dedução num sistema de lógica livre. A minha esperança é estimular os
leitores a ter uma visão ampla e crítica da lógica.
Conectivos lógicos
O cálculo proposicional clássico conhece 4 conectivos binários e um
unário:
Ú, Ù, ®, «, ¬.
Sabemos que podemos prescindir de quaisquer três dos primeiros quatro
e ficar apenas com o restante e a negação. Mas sabemos também que a
economia tem um preço: quanto mais económico for um sistema dedutivo
(quer quanto ao número de conectivos, quer quanto ao número de axiomas
e de regras de inferência), mais prolixas serão as suas demonstrações.
Conversamente, quanto mais prolixo for um sistema dedutivo (quer
quanto ao número de conectivos, quer quanto ao número de axiomas e de
regras de inferência), mais económicas serão as suas demonstrações.
Apesar de tradicionalmente o cálculo proposicional conhecer no máximo
4 conectivos binários, os conectivos binários possíveis são no entanto
16, número que resulta da combinação exaustiva dois a dois (porque são
dois os valores de verdade) das quatro filas existentes numa tabela de
verdade com duas variáveis proposicionais. A tabela que se obtém é a
seguinte:
1
2
¬Ù, |
3
®
4
†
5
¬
6
¬Þ
7
«
8
¬Ú,
9
Ú
10
¬
11
Þ
12
¬¬
13
Ü
14
¨
15
Ù
16
VV
V
F
V
F
V
F
V
F
V
F
V
F
V
F
V
F
VF
V
V
F
F
V
V
F
F
V
V
F
F
V
V
F
F
FV
V
V
V
V
F
F
F
F
V
V
V
V
F
F
F
F
FF
V
V
V
V
V
V
V
V
F
F
F
F
F
F
F
F
A análise da tabela acima revela imediatamente que os conectivos 916
são a negação dos conectivos 18, e reciprocamente. Para cada
conectivo tradicional existe por isso um outro conectivo que é a sua
negação. Os conectivos 2, 8, 10 e 14 são, respectivamente, a negação
dos conectivos 15 (Ù), 9 (Ú), 7 («) e 3 (®). É também instrutivo notar
que o traço de Sheffer (|) capaz, só por si, de representar todas as
funções de verdade é de facto a negação da conjunção (conectivo 2) e
que a adaga de Quine () também ela capaz de, só por si, de
representar todas as funções de verdade é de facto a negação da
disjunção (conectivo 8).
Excluídas as tradicionais e as suas negações, ficamos com oito
conectivos. Destes oito, podemos concentrar a nossa atenção apenas nos
quatro primeiros, pois os restantes são apenas a negação destes.
Destes quatro conectivos, o 5 é obtido por comutação das variáveis
proposicionais a partir do 3 (®), podendo por isso ser representado
por «¬».
Restam assim três conectivos, dos quais o 1 é pouco interessante, uma
vez que transforma em tautologia todas as proposições nas quais este
conectivo seja o principal, independentemente do valor de verdade das
variáveis proposicionais.
Os dois conectivos que restam são o 4 e o 6. Mas imediatamente se
percebe que o 4 se obtém na verdade por comutação a partir do 6, de
forma que podemos concentrar a nossa atenção no 6. No entanto, é a
negação do 6 que é realmente interessante, de forma que vamos tomar 11
(«Þ») como o conectivo primitivo e 6 como a sua negação. O conectivo
«Þ» garante que se obtém o valor de verdade V se e só se a segunda
variável proposicional tem o valor de verdade V.
Com o nosso novo conectivo «Þ» podemos simplificar algumas proposições
da lógica clássica. A tautologia expressa na proposição
(1) [(Q ® ¬P) ® ¬(P ® Q)] ® P
pode agora exprimirse na proposição
(2) (Q Þ P) ® P.
(2) pode acrescentarse como axioma a um sistema axiomático do tipo do
de Hilbert, pois representa o comportamento do próprio conectivo «Þ».
Será interessante verificar se as demonstrações num sistema que
contenha este novo conectivo resultam mais económicas, como é legítimo
esperar.
Dedução e implicação
A relação lógica entre a dedução e a implicação é a seguinte: sejam a
e b duas fórmulas moleculares do cálculo de predicados ou do cálculo
proposicional; então
(3) para quaisquer a e b, se a | b então a ® b
(4) existem fórmulas a e b tal que a ® b e a [not_der.GIF] b.
A proposição (3) é na verdade o Teorema da Dedução, cuja demonstração
não cabe apresentar aqui. A proposição (4) demonstrase da seguinte
forma:
1. Seja T uma teoria axiomática independente para o cálculo
proposicional
2. Nenhum axioma de T é derivável a partir de outro qualquer axioma
3. Mas todos os axiomas são tautologias
4. Se duas fórmulas a e b são tautologias, então têm o mesmo valor de
verdade. Logo, a e b são equivalentes.
5. Mas se duas fórmulas a e b são equivalentes, então a ® b.
6. Logo, qualquer axioma de T implica qualquer outro axioma de T.
7. Existem assim fórmulas a e b tal que a ® b e a [not_der.GIF] b.
Modus ponens e terceiro excluído
Uma aplicação do resultado anterior é o seguinte: é óbvio que
quaisquer duas tautologias se implicam mutuamente, e assim não é de
estranhar que o princípio do terceiro excluído
(TE) a Ú ¬a
implique a formulação proposicional da regra de inferência modus
ponens
(MP) [a Ù (a ® b)] ® b ,
e reciprocamente. Mas é agora pertinente perguntar se TE deriva de MP
e reciprocamente. A resposta positiva demonstrase assim:
Caso 1: TE MP
1. a Ú ¬a TE
2. (A ® B) Ú ¬(A ® B) 1, RI
3. ¬(A ® B) Ú (A ® B) 2, Comutatividade de «Ú»
4. ¬(A ® B) Ú (¬A Ú B) 3, Eliminação da «®»
5. [¬(A ® B) Ú ¬A] Ú B 4, Associatividade de «Ú»
6. ¬[(A ® B) Ù A] Ú B 5, De Morgan
7. [(A ® B) Ù A] ® B 6, Introdução da «®»
8. [(a ® b) Ù a] ® b 7, RI
9. [a Ù (a ® b)] ® b 8, comutatividade de «Ù»
Caso 2: MP TE
1. [a Ù (a ® b)] ® b MP
2. [(a ® b) Ù a] ® b 1, Comutatividade de «Ù»
3. [(A ® B) Ù A] ® B 2, RI
4. ¬[(A ® B) Ù A] Ú B 3, Eliminação da «®»
5. [¬(A ® B) Ú ¬A] Ú B 4, De Morgan
6. ¬(A ® B) Ú (¬A Ú B) 5, Associatividade de «Ú»
7. ¬(A ® B) Ú (A ® B) 6, Introdução de «®»
8. (A ® B) Ú ¬(A ® B) 7, Comutatividade de «Ú»
9. a Ú ¬a 8, RI
Uma vez que o princípio do terceiro excluído
(TE) a Ú ¬a
deriva do princípio da não contradição
(NC) ¬(a Ù ¬a)
e reciprocamente (por De Morgan), seguese que NC, TE e MP são
princípios interderiváveis.
Satisfazibilidade
Todos os estudantes de lógica elementar sabem que existem três tipos
de fórmulas moleculares bem formadas no cálculo proposicional:
fórmulas contingentes, tautologias e contradições. No cálculo de
predicados existe um paralelo óbvio com as tautologias e as
contradições: são as fórmulas universalmente válidas (FUV) e as
fórmulas universalmente inválidas (FUI).
Uma fórmula proposicional molecular bem formada a é uma tautologia se
e só se resulta verdadeira em todas as atribuições de valores de
verdade às suas variáveis proposicionais; uma fórmula predicativa
molecular bem formada a é uma FUV se e só se resulta verdadeira em
todas as interpretações. Uma fórmula proposicional molecular bem
formada a é uma contradição se e só se resulta falsa em todas as
atribuições de valores de verdade às suas variáveis proposicionais;
uma fórmula predicativa molecular bem formada a é uma FUI se e só se
resulta falsa em todas as interpretações.
Este paralelo perdese no que respeita às fórmulas contingentes. Com
efeito, na lógica proposicional, a é uma fórmula contingente se e só
se existem atribuições de valores de verdade às variáveis
proposicionais de a que a tornam falsa e outras atribuições que a
tornam verdadeira. Mas, na lógica predicativa, para que a seja uma
fórmula satisfazível (FS) basta que existam interpretações que tornem
a verdadeira; não é necessário que existam também interpretações que a
tornem falsa (mas podem existir interpretações que a tornem falsa).
Formalmente, os axiomas que regulam o conceito de FS são os seguintes:
(A1) FUV(f) ¬FS(¬f)
(A2) FS(f) ¬FUV(¬f)
Pelos axiomas é fácil verificar que existem dois tipos diferentes de
fórmulas que são FS: fórmulas como
(5) "x(Px ® Qx)
e fórmulas como
(6) "x(Px ® Px).
Ora, uma análise básica de (5) e (6) revela imediatamente que se trata
de dois tipos diferentes de fórmulas: (5) é verdadeira em alguns
domínios e falsa noutros, enquanto (6) é verdadeira em todos os
domínios. O conceito de satisfazibilidade expresso nos axiomas
(A1)(A2) cobre estes dois casos.
Tornase assim claro que (i) existem de facto contrapartes
predicativas das fórmulas contingentes da lógica proposicional, e que
(ii) o conceito corrente de FS não satisfaz o paralelismo com a lógica
proposicional por considerar como FS dois tipos diferentes de
fórmulas.
Proponho que se chame a (5) uma fórmula predicativa contingente (FPC).
A sua definição
(7) FPC(f) FPC(¬f)
é perfeitamente paralela em relação ao cálculo proposicional e dá
conta do facto mais relevante: a negação de qualquer fórmula como (5)
é ainda uma FPC.
Um resultado interessante dos axiomas (A1)(A2) é a sua incompletude:
não podemos a partir de (A1)(A2), com os meios tradicionais da
lógica, derivar como teoremas pelo menos uma verdade básica acerca das
relações entre as FUV e as FS.
Demonstração: Seja a uma FUV. É fácil verificar que a é uma FS. Logo,
podemos assumir como uma verdade que FUV(f) ® FS(f). Mas este
resultado não é derivável sintacticamente a partir dos axiomas. Não
ofereço a demonstração deste facto, que pode com economia ser
realizada através do método das árvores semânticas, mas ofereço a
derivação mais próxima a que é possível chegar, porque tem o interesse
de mostrar uma contradição semântica que não é no entanto uma
contradição sintáctica:
(A1), (A2) FUV(f) ® FS(f)
(Reductio)
1. ¬[FUV(f) ® FS(f)] Hip. Red.
2. FUV(f) Ù ¬FS(f) 1, Tautologia
3. ¬FUV(¬f) ® FS(f) (A2), Tautologia
4. FUV(¬f) 2, 3, MT
5. FUV(f) Ù FUV(¬f) 2, 4
6. FUV(f) ® FS(f) 15, Red.
O passo 5, única contradição a que é possível chegar para demonstrar o
teorema desejado, não é de facto uma contradição no sentido sintáctico
do termo. É apenas uma contradição semântica: afirma que a fórmula a e
a sua negação são FUV, o que é diferente de uma contradição
sintáctica, que teria de ser «FUV(f) Ù ¬FUV(f)».
Intransitividade da dedução
Qualquer estudante sabe que as lógicas livres se caracterizam por
admitir domínios de quantificação vazios ou nomes sem denotação. Esta
frase é propositadamente ambígua, e pode ser erradamente interpretada
como significando que admitir domínios de quantificação vazios e nomes
sem denotação é a mesma coisa. Mas a verdade é que são dois conceitos
distintos.
A distinção entre os dois é comodamente compreendida considerando que
podemos ter uma lógica com domínios possivelmente vazios e em que
todos os nomes próprios denotam objectos existentes num domínio.
Admitir domínios de quantificação vazios implica considerar que
(8) "xPx | $xPx
não é válida.
Sustentar que todos os nomes têm denotação implica considerar que
(9) Pa | $xPx
é válida.
Mas Hodges quer admitir como válida também
(10) "xPx | Pa ,
o que parece permitir a existência de nomes sem denotação, única
possibilidade de tornar (10) uma inferência válida, uma vez que a
asserção universal pode estar a quantificar sobre um domínio vazio. Na
verdade a ideia de Hodges é diferente: sempre que se utiliza no
sistema dedutivo um nome próprio, existe um objecto denotado por esse
nome.
Da aceitação de (10) seguese ainda a consequência desagradável da
dedução ter de ser considerada intransitiva, caso contrário (8) é
derivável a partir de (10) e (9).
No entanto, a implicação é transitiva em Hodges:
(11) ("xPx ® Pa) , (Pa ® $xPx) | ("xPx ® $xPx) .
O resultado é um sistema de lógica cuja relação de derivabilidade é
intransitiva, apesar de a implicação ser transitiva. Esta é aliás a
única hipótese de manter um sistema de lógica com domínios
possivelmente vazios, mas cujos nomes denotam necessariamente.
Desidério Murcho
Sociedade Portuguesa de Filosofia
Av. da República, 374.o, 1050 Lisboa
HUME E GOODMAN SOBRE A INDUÇÃO
Desidério Murcho
O objectivo geral desta nota é explicar a natureza do problema da
indução, fazendo contrastar as posições de Hume e de Goodman. Mais
especificamente, vou procurar mostrar a diferença crucial entre a
formulação clássica do problema da indução, habitualmente atribuída a
Hume, e a contemporânea, apresentada por Goodman. O aspecto técnico
mais delicado em relação à formulação de Goodman do problema da
indução é o que diz respeito ao exemplo do «verdul» (mistura de verde
e azul). Por isso, tentarei formular o exemplo de Goodman de forma
clara e detalhada, procurando responder às perplexidades e
incompreensões que costumam surgir.
Devo dizer desde já que o estilo de filosofia que eu pratico a
filosofia analítica é um pouco diferente daquilo a que estamos
habituados em Portugal. Essa diferença será evidente nesta nota. Mas
convém dizer duas palavras sobre essa diferença, porque sei que sobre
a filosofia analítica há no nosso país sobretudo informação errada.
Em primeiro lugar, a filosofia analítica não é uma escola filosófica,
no sentido de um movimento que defende um certo conjunto de teses ou
de métodos; a filosofia analítica é sobretudo uma forma de abordar com
clareza e precisão os problemas da filosofia.
Em segundo lugar, a filosofia analítica não reduz a filosofia à
lógica; a lógica é para nós, como o era para Aristóteles, um
instrumento filosófico. Como instrumento que é, a lógica não serve
para resolver os problemas da filosofia; serve apenas para nos ajudar
a distinguir a verdade da ilusão.
Em terceiro lugar, é importante que se diga que a filosofia analítica
não se reduz à filosofia da linguagem e disciplinas adjacentes. Na
verdade, como ficou provado no último número da revista Disputatio, a
maior parte das publicações analíticas são da área da ética e da
filosofia política e não da filosofia da linguagem.
Por fim, convém dizer que não podemos confundir a filosofia analítica
com uma das suas defuntas escolas, o positivismo lógico; este
movimento filosófico foi apenas um dos muitos movimentos filosóficos
analíticos; hoje em dia, duvido que ainda exista algum positivista
lógico. No entanto, abundam os filósofos analíticos.
Posto isto, passemos então ao tema desta nota.
O que a indução não é
Há uma ideia errada que já era ensinada quando eu era estudante de
liceu e que infelizmente continua a ser ensinada. Essa ideia é a
seguinte: a indução caracterizase por partir do particular para o
geral; a dedução, do geral para o particular. Isto é falso. Para
mostrar que é falso que a dedução parte do geral para o particular
basta encontrar um raciocínio dedutivo válido onde isso não aconteça.
Tomese o seguinte exemplo:
(1) Aristóteles era um filósofo grego. Logo, Aristóteles era um
filósofo.
Fn Ù Gn \ Fn
Neste caso, a inferência é dedutiva e procede do particular para o
particular. Mas também há inferências dedutivas que procedem do geral
para o geral:
(2) Todos os filósofos são seres humanos; todos os seres humanos
são mortais. Logo, todos os filósofos são mortais.
"x (Fx ® Hx), "x (Hx ® Mx) \ "x (Fx ® Mx)
E, mais espantoso ainda, há inferências dedutivas que procedem do
particular para o geral:
(3) Aristóteles era um filósofo e era idêntico a si mesmo. Logo,
todos os filósofos são idênticos a si mesmos.
Fn Ù n = n \ "x (Fx ® x = x)
É verdade que esta última inferência tem uma característica especial
(é vacuamente válida porque a sua conclusão é uma verdade lógica); mas
bastam as outras duas para refutar a ideia de que o que caracteriza a
inferência dedutiva é o facto de partir do geral para o particular.
Penso que não será muito difícil encontrar exemplos de inferências
indutivas do particular para o particular, nem do geral para o geral,
nem do geral para o particular. Não vou dar exemplos, mas poderemos
voltar a isso no fim, se alguém o quiser.
Comecei por denunciar este erro típico porque penso que ele é
responsável, pelo menos em parte, por algumas dificuldades em
compreender o problema clássico da indução.
Na verdade, só podemos compreender claramente o problema clássico da
indução se soubermos lógica elementar; e também só podemos compreender
o «novo enigma da indução» de Goodman se soubermos lógica elementar.
No entanto, espero poder fazerme compreender sem pressupor quaisquer
conhecimentos de lógica, para além das intuições dedutivas básicas que
todos os seres humanos possuem.
Qual é o problema clássico da indução?
Regressemos à primeira inferência dedutiva apresentada:
(1) Aristóteles era um filósofo grego. Logo, Aristóteles era um
filósofo.
Fn Ù Gn \ Fn
É óbvio que há uma relação especial entre a conclusão e a premissa: a
verdade da premissa garante a verdade da conclusão. Isto é, se a
premissa for verdadeira, a conclusão será também verdadeira. Não há
nenhuma circunstância na qual a premissa seja verdadeira e a conclusão
falsa.
Reparese agora na seguinte inferência indutiva:
(4) Todos os corvos que observámos até hoje eram pretos. Logo,
todos os corvos são pretos.
"x ((Cx Ù Ox) ® Px)) \ "x (Cx ® Px)
Não é muito difícil imaginar situações nas quais a premissa seja
verdadeira e no entanto a conclusão seja falsa. No entanto, a
inferência parecenos perfeitamente razoável. Reparese agora no
seguinte raciocínio dedutivo:
(5) Aristóteles era filósofo. Logo, Aristóteles era filósofo e
grego.
Fn \ Fn Ù Gn
A conclusão é de facto verdadeira, tal como a premissa. Mas não é
muito difícil descobrir situações nas quais a premissa seja verdadeira
e a conclusão falsa: basta pensar que Aristóteles poderia ter nascido
no Egipto e ser filósofo.
Há no entanto uma assimetria entre este exemplo e o anterior. Nós
achamos que neste caso a verdade da premissa não garante a verdade da
conclusão porque o raciocínio é errado. Mas no primeiro caso achamos e
com razão que o raciocínio é razoável. Tanto mais razoável quantos
mais corvos pretos tiverem sido observados.
É esta a diferença entre a dedução e a indução:
* Nos bons raciocínios dedutivos a verdade das suas premissas
garante a verdade das suas conclusões; se num raciocínio dedutivo
a verdade das premissas não garantir a verdade da conclusão,
achamos que estamos perante um mau raciocínio dedutivo é o que se
chama uma inferência inválida, ou, em alguns casos, uma falácia.
* Nos bons raciocínios indutivos a verdade das suas premissas não
garante a verdade das suas conclusões; apesar de esta falta de
garantia ser óbvia, não achamos, só por isso, que o raciocínio
indutivo em causa é mau. Pelo contrário, pode parecernos bastante
razoável.
Estamos agora em condições de perceber o problema clássico da indução.
Dado que ao contrário do que acontece na dedução a verdade das suas
premissas não garante, nos raciocínios indutivos, a verdade das suas
conclusões, como justificar a indução? Há duas hipóteses: ou
justificamos a indução dedutivamente, ou a justificamos indutivamente.
No primeiro caso, se conseguirmos fazêlo, ficaremos com uma
justificação demasiado forte a verdade das premissas passará a
garantir afinal a verdade das conclusões. No segundo caso, ficaremos
com uma justificação circular, pois justificaremos a indução pela
indução. A esta alternativa desagradável deuse o nome de dilema de
Hume. E este é, em traços gerais, o problema clássico da indução: como
justificar a indução, dado que a verdade das suas conclusões não é
garantida pelas suas premissas? Há muitas formas de reagir ao problema
clássico da indução. Já de seguida apresentarei a reacção de Goodman.
O país dos verduis
As tentativas de solução do problema clássico da indução centravamse
na tentativa de justificar a relação de confirmação existente entre as
premissas de uma indução e a sua conclusão. Que mecanismo justifica a
relação de confirmação? Goodman introduz, no entanto, um novo
problema, bastante mais preciso do que o clássico.
Considerese a seguinte indução:
(6) Todas as esmeraldas observadas até hoje eram verdes. Logo,
todas as esmeraldas são verdes.
"x ((Ex Ù Ox) ® Vx) \ "x (Ex ® Vx)
Esta indução parecenos perfeitamente razoável. O problema clássico da
indução consiste em determinar qual é o mecanismo de confirmação
existente entre a premissa e a conclusão. Procurase explicar como é
que os exemplares positivos (ou instâncias positivas) de uma
generalização podem confirmar a generalização em causa.
Considerese agora a seguinte indução:
(7) Todas as esmeraldas observadas até hoje eram verduis. Logo,
todas as esmeraldas são verduis.
"x ((Ex Ù Ox) ® Wx) \ "x (Ex ® Wx)
O predicado verdul é definido da seguinte maneira:
(8) Um objecto é verdul se, e só se, tiver sido descoberto até hoje
e for verde, ou for descoberto no futuro e for azul.
Dada esta definição de verdul é fácil de ver que se todas as
esmeraldas forem verduis, as esmeraldas que descobrirmos amanhã serão
azuis. E também é fácil de ver que todas as esmeraldas observadas até
hoje são efectivamente verduis, uma vez que todas as esmeraldas
observadas até hoje são verdes.
Mas se todas as esmeraldas forem efectivamente verdes, e não verduis,
as esmeraldas que descobrirmos amanhã serão verdes. Chegámos por isso
ao resultado paradoxal: as premissas de ambas as induções são
verdadeiras; a forma lógica das inferências é a mesma; e, no entanto,
as suas conclusões são inconsistentes não podem ser ambas verdadeiras.
Estamos no cerne do novo enigma da indução. Vou agora tentar desfazer
algumas perplexidades habituais, umas mais sofisticadas, outras menos.
Se subsistirem perplexidades, não hesitem em tomar nota delas para
podermos esclarecêlas no fim.
Em primeiro lugar, é preciso compreender o modo como o predicado
verdul está definido. Um objecto verdul não é um objecto que é hoje
verde e que amanhã se torna azul. Um objecto que seja verdul e que
tenha sido observado pela primeira vez até ao dia de hoje, é verde;
mas se esse objecto for verde e só for observado pela primeira vez
amanhã, não será verdul. Para que um objecto que seja observado pela
primeira vez amanhã seja verdul, terá de ser azul.
Em segundo lugar, levantase uma perplexidade mais sofisticada. Não
resulta o nosso resultado paradoxal do facto de termos usado um
predicado tão estranho? A resposta é sim e não. É óbvio que o
resultado paradoxal resulta do predicado verdul. Mas em que medida,
exactamente?
A tentação é dizer que o predicado verdul é logicamente complexo, ao
passo que o predicado verde é logicamente simples e que é por isso que
geramos o paradoxo. Mas isto não pode ser verdade. Este é o aspecto
mais subtil do exemplo de Goodman, pelo que vou recorrer a uma pequena
dramatização.
Imaginemos dois países: o nosso país, o país dos verdes, que falam a
linguagem do verde, e o país dos verduis, que falam a linguagem do
verdul. Quando chegamos ao país dos verduis achamos muito estranho que
afirmem que as esmeraldas são verduis. Quando finalmente percebemos o
que eles querem dizer, apontamos a definição de verdul dada acima no
nosso caderno e achamos que eles não são muito bons da cabeça.
Mas que dirão eles quando nos ouvem dizer que todas as esmeraldas são
verdes? Ao princípio não compreendem nada. Quando finalmente
compreendem apontam a seguinte definição de verde nos cadernos deles:
(9) Um objecto é verde se, e só se, tiver sido descoberto até hoje
e for verdul, ou for descoberto no futuro e for azerde.
No nosso idioma, um objecto é azerde se, e só se, tiver sido
descoberto até hoje e for azul, ou for descoberto no futuro e for
verde.
Que nos mostra a definição que os estranhos habitantes do país dos
verduis escreveram nos seus cadernos? Mostra uma coisa muito
importante: os predicados verde e verdul são interdefiníveis.
A interdefinibilidade é algo completamente transparente para quem sabe
lógica elementar. Por exemplo, os quantificadores universal e
existencial são interdefiníveis, assim como os operadores modais de
necessidade e de possibilidade:
"x jx º ¬$x ¬jx
$x jx º ¬"x ¬jx
¨ A º ¬à ¬A
à A º ¬¨ ¬A
O facto de verdul ser interdefinível relativamente a verde quer dizer
que são logicamente equivalentes. Isto significa que o artificialismo
introduzido pela referência ao momento da descoberta do objecto é
apenas aparente: «verde» também pode ser definido através de uma
referência ao momento da descoberta.
O facto de existir um parâmetro temporal na definição de verdul não
pode, por isso, explicar o insucesso da inferência verdul, pois esse
parâmetro só existe na nossa linguagem, que é a linguagem dos verdes.
Na linguagem dos verduis é o nosso predicado que tem um parâmetro
temporal.
O novo enigma de Goodman
Que mostra então o exemplo da indução verdul? Mostra que o problema da
indução é mais complexo do que Hume pensava. Mesmo que conseguíssemos
explicar a relação de confirmação existente entre as premissas das
induções e as suas conclusões, não conseguiríamos resolver o problema
da indução. O exemplo de Goodman mostra que isso não basta. É preciso
explicar também por que razão alguns predicados servem para fazer
induções e outros não. E a explicação não pode ser lógica, porque os
predicados verdul e verde são logicamente interdefiníveis.
Imaginese que tínhamos uma teoria (como na realidade temos a
probabilidade) que explicava a relação de confirmação entre as
premissas e as conclusões das induções. Uma vez que as premissas de
ambas as inferências (a verde e a verdul) são verdadeiras e uma vez
que não há diferença lógica entre os predicados, nenhuma explicação em
termos de teoria da confirmação será capaz de excluir uma como má e
incluir a outra como boa.
Como explicar então a diferença entre as duas inferências? Só podemos
fazêlo, segundo Goodman, recorrendo ao conteúdo dos predicados, à sua
semântica. O que se passa com o predicado verdul é que não é
projectável, não serve para fazer boas inferências. Para que um
predicado seja projectável tem de ter certas características. O
trabalho de Goodman tem consistido em tentar apresentar uma tipologia
convincente dessas características.
Reparese que Goodman arranjou um exemplo dramático, mas é possível
começar a perceber o novo enigma da indução com exemplos mais banais.
Consideremse as seguintes inferências:
(10) Todas as vacas observadas até hoje eram mamíferos. Logo, todas
as vacas são mamíferos.
(11) Todas as vacas observadas até hoje nasceram antes do ano 2000.
Logo, todas as vacas nascem antes do ano 2000.
Também neste caso se torna manifesto que, apesar de a forma lógica das
inferências ser a mesma, o predicado usado na segunda não é
projectável. A ideia de Goodman é por vezes difícil de aceitar talvez
porque nós somos em geral muito bons a fazer induções, e escolhemos
inconscientemente os predicados certos. Mas quando começamos a
perceber a ideia de Goodman começamos a darnos conta da imensidão de
alternativas a que, sem nos apercebermos, não damos crédito. Para dar
um exemplo do próprio Goodman, todas as palavras que eu proferi até
agora foram proferidas antes deste momento. No entanto, ninguém
concluiu, espero, que todas as palavras por mim proferidas serão
proferidas antes deste momento.
Hume tentou explicar como as regularidades do passado podiam
justificar as nossas previsões relativamente ao futuro. O que ele não
percebeu foi que nem todas as regularidades servem para fazer boas
previsões. E esta é, numa palavra, a diferença entre o novo e o velho
enigma da indução.
[12]Desidério Murcho
Sociedade Portuguesa de Filosofia
Av. da República, 374.o, 1050 Lisboa
Comunicação apresentada no Encontro de Filosofia "Teoria do
Conhecimento" realizado na Escola Secundária da Cidade Universitária
(Lisboa), em 6 de Março de 1998.
Lógica, Filosofia e Cognição
Desidério Murcho
O tema principal destas páginas é o papel da lógica na filosofia. Mas
o organizador da conferência que lhe deu origem manifestoume a
importância de abordar um outro tópico mais geral, viz., uma
caracterização da própria filosofia. De forma que vou fazer o
seguinte: primeiro, oferecerei uma caracterização sumária da
filosofia; depois, caracterizarei, também sumariamente, a lógica;
finalmente, tentarei mostrar qual é o papel que a lógica tem nesta
concepção de filosofia.
1. O que é a filosofia?
Quando caracterizamos uma actividade, um conceito ou uma propriedade,
o ideal é atingir uma definição precisa, expressa em termos de
condições necessárias e suficientes. Mas a verdade é que muitas vezes
este tipo de definições precisas é inatingível. (Os diálogos
aporéticos de Platão são precisamente sobre as dificuldades de definir
desta forma rigorosa alguns dos nossos conceitos mais básicos, como a
justiça, o bem, a beleza, etc.)
Não é possível compreender o que é uma definição em termos de
condições necessárias e suficientes se não soubermos distinguir uma
condição necessária de uma condição suficiente. Mas isto é de facto
fácil. Basta ver os seguintes exemplos: estar inscrito em Filosofia é
uma condição necessária para passar a Filosofia. Mas estar inscrito em
Filosofia não é uma condição suficiente para passar a Filosofia. (Se o
fosse, a vida dos estudantes de filosofia seria muito mais fácil.)
Outro exemplo: ter asas é uma condição necessária para ser um pássaro
porque não há pássaros sem asas; mas não é uma condição suficiente: os
aviões têm asas e não são pássaros. Uma condição necessária garante
que a nossa definição inclui tudo o que queríamos incluir; mas permite
que a nossa definição inclua coisas que não queríamos incluir.
O inverso acontece com uma condição suficiente: permite que a nossa
definição não inclua tudo o que queríamos incluir, mas garante que não
incluímos o que não queríamos incluir. Por exemplo, ter 10 valores é
uma condição suficiente para passar a Filosofia. Mas ter 10 valores
não é uma condição necessária para passar a Filosofia. (Um aluno pode
passar a filosofia com 18 valores, apesar de ser talvez raro.)
Reparese no caso dos pássaros: uma condição suficiente para um animal
ser um pássaro é ser um pardal; mas nem todos os pássaros são pardais.
Se juntarmos estes dois tipos de definição temos o melhor dos mundos:
com a condição suficiente garantimos que só incluímos o que desejamos,
e com a condição necessária garantimos que incluímos tudo o que
queríamos. Contudo, não dispomos em geral de definições deste género.
Desde Platão e Aristóteles que a filosofia procura clarificar os
problemas associados aos diferentes tipos de definição; não quero
entrar nessa matéria agora. O meu objectivo é apenas alertar o leitor
para o facto de não ser nada de extraordinário que ninguém disponha de
uma definição de filosofia deste género. Mas é claro que há outras
formas disponíveis de definição, que não em termos de condições
necessárias e suficientes.
Alguém sabe o que é a ciência, por exemplo? Possivelmente ninguém é
capaz de oferecer uma definição em termos de condições necessárias e
suficientes; mas toda a gente sabe, num certo sentido relativamente
impreciso, o que é a ciência. Porquê? Bom, porque podemos reconhecer
que a física é uma ciência, mas que a astrologia não é uma ciência;
pelo menos, a astrologia não é uma ciência no mesmo sentido em que a
física é uma ciência.
Quando perguntamos o que é a ciência e alguém nos responde com
exemplos (como a química, a sociologia, a geologia, etc.), essa pessoa
está a oferecernos uma definição implícita. Este tipo de definição
distinguese da definição através de condições necessárias e
suficientes, que se chama definição explícita. Chamase «implícita» a
esta definição porque a pessoa que a usa está implicitamente a definir
algo, apesar de não o fazer directamente. Apesar de não dispormos de
definições explícitas de muitos dos nossos conceitos mais simples, não
se segue daí que não saibamos do que estamos a falar. Por isso, também
não é à partida grave que não tenhamos uma definição explícita de
filosofia. Por exemplo, a maioria das pessoas é incapaz de definir
explicitamente uma cor qualquer, como o azul, mas todos somos capazes
de dizer se o céu está azul ou não, ou se o vestido da nossa namorada
é azul ou não. Isto é, apesar de não termos à nossa disposição
definições explícitas de certos conceitos, nem por isso deixamos de
reconhecer quando um certo caso específico pode ou não ser
classificado desta ou daquela maneira.
Macei o leitor com esta história toda das definições explícitas e
implícitas porque me lembro que quando frequentava o 10.o de filosofia
se andava à voltas com a definição de filosofia. O resultado (aliás
nada surpreendente) deste tipo de ensino era o cepticismo do próprio
aluno em relação ao projecto da filosofia. Pois se os próprios
filósofos não eram capazes de definir claramente a sua própria
actividade, como poderiam ser bons filósofos? Bom, acho que já
respondi a essa pergunta: alguém tem dúvidas em reconhecer umas calças
de ganga azuis, apesar de não saber definir explicitamente o azul?
Passase o mesmo com a filosofia: desde que se consiga distinguir
claramente o que é filosofia do que não é, não é grave que não
tenhamos uma definição explícita de filosofia.
Mas será que os alunos do secundário têm uma boa definição implícita
de filosofia? Aqui temos um grande problema. Os alunos do secundário
têm de facto uma boa definição implícita de filosofia; mas de uma
certa maneira de fazer filosofia. Uma maneira de tal forma bizarra que
eu, e outras pessoas como eu, acham que isso não é filosofia. E é
claro que há outras pessoas que acham que aquilo que eu faço e a que
chamo filosofia não é filosofia.
Quero fugir da discussão de saber quem tem razão, porque não há nada
para discutir. As pessoas são livres de chamar às suas actividades o
que quiserem. Os praticantes do ocultismo, da astrologia e da alquimia
chamam à sua actividade «ciência»; mas nem por isso aquilo que eles
fazem se confunde com o que faz um geólogo, um biólogo, ou um físico,
pois não? Da mesma maneira, a prática a que nos liceus se chama
filosofia tem muito pouco a ver com o que eu faço e com o que
reconheço como filosofia. E o que eu faço e o que eu reconheço como
filosofia é o que se faz em quase todo o mundo, à excepção de meia
dúzia de sítios, como Portugal, Espanha e Itália, que se deixaram
influenciar pela cultura filosófica francesa.
Um dos maiores mistérios que gostaria de ver resolvido prendese com a
autoria dos programas de filosofia do ensino secundário. Não sei quem
os fez, quem é responsável, com quem se pode discutir; sei vagamente
que são vagamente parecidos aos programas do ensino secundário
francês. E quanto mais filosofia aprendo, mais incríveis me parecem os
conteúdos (se é que assim se pode chamar) com que os alunos são
massacrados. Deixemme dizer isto claramente: não percebo nada da
maioria dos manuais do ensino secundário. São confusos, prolixos e têm
erros gritantes. Estão ilustrados como se fossem banda desenhada, sem
que se saiba porquê. E são na maioria dos casos uma manta de retalhos
de pequenos textos igualmente ininteligíveis. Claro que esta é a
perspectiva de alguém que tem uma prática filosófica muito diferente
da que está instituída em Portugal e França.
Sejamos honestos: a filosofia em Portugal não tem prestígio. Os
estudantes acham que a filosofia não tem pés nem cabeça; os melhores
alunos são precisamente os que têm dificuldades com esta disciplina,
apesar de nunca terem tido dificuldades com as outras disciplinas. Os
alunos têm a sensação de que não há conteúdos específicos, que é tudo
subjectivo, que tudo depende do professor. Por outro lado, os colegas
dos professores de filosofia (os professores de física, de matemática,
de informática) desprezam no seu íntimo a filosofia: acham que é uma
aldrabice.
Esta situação é aliás semelhante à situação que conhecia o infame
Canto Coral do meu tempo. Era uma coisa horrível, estupidificante, sem
conteúdos e sem critérios de excelência académica. Toda a gente,
alunos e professores, desprezava o Canto Coral e com razão. Mas da
mesma maneira que não podemos confundir o Canto Coral com a música,
também não podemos confundir a filosofia que se ensina nos liceus (e
até na faculdade) com a verdadeira filosofia. Reparese, aliás, que
este desprestígio da filosofia não ocorre só nos liceus: também na
universidade a generalidade dos professores de física, química,
informática, matemática, etc., despreza a filosofia.
É preciso que se diga, obviamente, que nem todos os professores
universitários, assim como nem todos os professores do liceu,
contribuem para este estado de coisas. As excepções são honrosas e são
cada vez mais; se isso não fosse assim, nunca teria sido convidado a
proferir esta conferência.
Não vou perder muito tempo a caracterizar a filosofia tal como é
ensinada nos liceus e na faculdade: essa filosofia já o leitor a
conhece e pode tirar as suas conclusões. Nessa filosofia falase do
Ser (com letra maiúscula), do Saber (também com letra maiúscula), do
Absoluto (igualmente com letra maiúscula) e de muitas outras coisas,
todas com letra maiúscula. Na verdade, parece que tudo se inclina para
Deus. Aliás parece que falar do Ser é uma maneira disfarçada de falar
acerca de Deus. E sugiro a quem quiser comprovar a orientação
religiosa dos programas do secundário que passe por uma igreja
católica e leia atentamente os folhetos da catequese e dos vários
grupos de acção religiosa; vão encontrar semelhanças gritantes.
O resultado último que aparentemente se procura atingir com a
filosofia no liceu é uma espécie de catequese barata: supõese que o
aluno deverá converterse a Deus no final do 11.o ano que constitui
precisamente o último tópico do programa. Eu sou ateu, mas se fosse
crente também não gostaria de ver os meus filhos convertidos a Deus de
forma mais ou menos subliminar, escondida, envergonhada. Afinal, por
que haveria de ter vergonha de crer em Deus? Contudo, o resultado
último que se consegue atingir quando se disfarça a catequese barata
de má filosofia é o horror criado no jovem estudante às duas coisas: à
catequese e à filosofia.
Eu estou aqui para vos estimular e para vos mostrar que a filosofia,
tal como eu e a maioria das pessoas do mundo inteiro a praticam, não é
nada disto. Aliás, se olharem para o que Platão, Aristóteles,
Descartes, Kant, Leibniz ou Hume fizeram, reparam que também eles não
fizeram nada disto. Muita gente procura usar a filosofia para muitas
coisas; aparentemente, a filosofia oferecelhes uma cobertura
conveniente para fazerem passar às escondidas o que não querem
defender às claras. Mas isto não é filosofia: é usar a filosofia para
fins obscuros.
Reparese na concepção de filosofia que se tem. Que diria o leitor se
eu me apresentasse como filósofo? Diria que eu era pretensioso. No
entanto, uma pessoa exactamente com as mesmas qualificações do que eu
que esteja no ramo da matemática é um matemático; e se estiver no ramo
das artes, é um músico, ou um pintor, ou um escultor. Há uma boa razão
para isto e uma má razão. A boa razão é que entendemos por filósofo
apenas aquela pessoa que revolucionou a filosofia, como Einstein
revolucionou a física; mas esta razão não é suficiente; se fosse
suficiente, o número actual de físicos no nosso país seria reduzido a
0, assim como o de matemáticos, para já não falar nos músicos ou nos
pintores.
É a má razão que explica por que não posso dizer que sou filósofo sem
que o leitor ache que sou pretensioso. E a má razão é esta: a
definição implícita de filosofia que lhe transmitiram faz dos
filósofos uma espécie de poetas loucos, tocados pelos deuses, uma
espécie de santos padroeiros do Saber (com letra maiúscula), mais ou
menos como o São Francisco de Assis. É claro que vocês têm razão,
felizmente: nesse sentido não sou, nem gostaria de ser, filósofo.
Mas acontece que a filosofia, tal como eu a vejo (e tal como Platão,
Aristóteles, Descartes, Kant e Hume a viam), não é nada disso. A
filosofia é uma actividade cognitiva cujo objectivo é compreender
melhor um conjunto de problemas. Para compreender esses problemas os
filósofos constroem por vezes teorias. E usam argumentos, claro. Os
argumentos são a única forma de distinguir uma boa teoria de uma má
teoria, uma boa formulação de um problema de uma má formulação de um
problema. Como filósofo, estudo estes três tipos de coisas: problemas,
teorias e argumentos.
Perante isto, o leitor dirá: está tudo muito bem, mas é tudo muito
vago. Que tipo de problemas, que tipo de argumentos, que tipo de
teorias é que interessam à filosofia? A resposta circular é: os
problemas filosóficos, os argumentos filosóficos e as teorias
filosóficas. Mas esta resposta circular não é informativa. No entanto,
não posso darlhe uma definição explícita do que é um problema, uma
teoria ou um argumento filosófico. É como no caso da cor azul. Mas,
tal como posso darlhe exemplos de objectos azuis, também posso
darlhe exemplos de problemas, argumentos e teorias filosóficos.
Eis 4 problemas filosóficos, a título de exemplo:
O problema da mentecorpo. O problema de saber qual é a natureza
da mente e do corpo, se a mente se pode reduzir ao cérebro ou não
e, caso não possa reduzirse, que relações tem a mente com o
cérebro.
O problema do bem. Que estamos a dizer quando dizemos qualquer coisa
como «o João não devia ter beijado a Maria sem mais nem menos»?
Estamos a descrever um facto, ou estamos unicamente a manifestar a
nossa desaprovação?
O problema do cepticismo. Será que existe algum conhecimento imune à
dúvida? Teremos razões para acreditar nas coisas mais básicas em que
acreditamos, como na existência de outras pessoas e na existência de
mundo exterior?
O problema da linguagem. Como é possível que uma palavrinha que eu
pronuncio descuidadamente tenha o poder de referir coisas com as quais
nunca estive em contacto? Quando digo «ouro» estou a referir todo o
ouro que há, que houve e que haverá. Mas como podemos explicar essa
relação entre a palavra «ouro» e o ouro?
Os filósofos tratam de coisas deste género: problemas acerca de alguns
dos nossos conceitos mais básicos, quer sejam conceitos comuns, quer
sejam conceitos científicos, religiosos ou artísticos. Os conceitos de
realidade, conhecimento, significado, bem, mente, beleza, número,
inferência e muitos outros, são o objecto de análise do filósofo. A
tarefa do filósofo é pensar criticamente sobre esses problemas e esses
conceitos. Pensar criticamente é avaliar cuidadosamente todas as
afirmações, em vez de as aceitar só porque alguém as disse, ou porque
são úteis ou confortáveis.
Por exemplo, parece que para algumas pessoas é espiritualmente
confortável acreditar em Deus, porque é espiritualmente confortável
acreditar que existe um desígnio no universo, desígnio no qual nós
temos um papel importante. Na verdade, acho difícil que esta ideia
seja espiritualmente confortável, a não ser que tenhamos espíritos
particularmente tacanhos e pouco exigentes. Mas admitamos que é de
facto espiritualmente confortável acreditar em Deus por estas razões.
Deve o filósofo proclamar que Deus existe porque é espiritualmente
confortável acreditar que Deus existe? Claro que não! O compromisso do
filósofo, tal como o compromisso do cientista e do artista, é com a
verdade e não com o conforto. O objectivo do filósofo, tal como o
objectivo do cientista ou do artista, é atingir uma cognição mais
perfeita, mais clara, mais lúcida do mundo e não impedir a cognição
por ser perigosa para o conforto espiritual. É por isso que podemos
afirmar que a filosofia é, num certo sentido, um desporto radical: é
arriscado como tudo, exige muito treino, muita dedicação e não há
garantia de se ganhar a medalha, que no caso do filósofo é a
descoberta de uma verdade importante e desconhecida. A diferença entre
o surf e a filosofia é esta: a filosofia não é uma habilidade física,
é uma habilidade cognitiva. O resultado da filosofia, ao contrário do
resultado do surf, é conhecer melhor o mundo.
A actividade crítica da filosofia fazse através de argumentos. Se
alguém afirma que Deus existe, o filósofo pergunta que razões tem essa
pessoa para afirmar tal. Essas razões são argumentos a favor da
existência de Deus; o papel do filósofo é avaliar, discutir, analisar
esses argumentos.
O mesmo se passa em relação às teorias. Uma teoria filosófica não tem
valor por si mesma; vale exactamente o mesmo que valem os argumentos a
favor da sua aceitação e não apenas porque uma grande autoridade morta
há 500 anos a defendeu. A teoria das ideias de Platão, a doutrina da
substância de Aristóteles, a estética transcendental de Kant ou a
filosofia da linguagem de Wittgenstein têm o valor que os argumentos
favoráveis a essas teorias tiverem; não é a autoridade de Aristóteles
que empresta plausibilidade às suas teorias; é ao contrário: é a
plausibilidade das suas teorias que confere autoridade a Aristóteles.
O trabalho do leitor, e o meu trabalho, como estudantes de filosofia,
é compreender os problemas, os argumentos e as teorias filosóficas.
Isso fazse através da formulação dos problemas, teorias e argumentos
e não através da sua repetição. Formular um problema, uma teoria ou um
argumento é mostrar que o compreendemos; é dizêlo pelas suas próprias
palavras. Repetir é apenas um exercício de memória bacoco,
estupidificante e vazio. A filosofia, tal como a ciência ou a arte, é
uma actividade criativa e inteligente.
Penso que já ficaram com uma ideia do que é a filosofia. A filosofia é
uma actividade cognitiva que trata de problemas, argumentos e teorias
acerca de alguns dos conceitos mais básicos e gerais: o significado, o
bem, a beleza, a arte, o conhecimento, o livre arbítrio, a realidade,
o número, a inferência e muitos outros. Vou agora darvos uma ideia do
que é a lógica.
2. O que é a lógica?
Tal como a matemática estuda diversas disciplinas, como a aritmética e
a geometria, também a filosofia estuda diversas disciplinas, como a
epistemologia (que estuda o conhecimento), a estética e a filosofia da
arte, a ética e a filosofia política, a filosofia da religião, a
filosofia das ciências e a lógica.
É muito fácil definir a lógica: é a disciplina que estuda as
inferências, os raciocínios ou os argumentos. Mas o que é uma
inferência, um raciocínio ou um argumento? Bom, uma inferência ou um
raciocínio é o processo de concluir uma certa frase a partir de um
certo conjunto de outras frases. Há muitas formas de raciocínios:
raciocínios dedutivos, indutivos, analógicos, por exemplo. O tipo de
raciocínio dedutivo é o melhor conhecido e a palavra «lógica» usase
por vezes como sinónima do estudo, ou até do resultado do estudo, do
raciocínio dedutivo. Os silogismos que se estudam no 11.o ano
constituem uma teoria (originalmente construída por Aristóteles, mas
hoje ultrapassada) que pretende dar conta do raciocínio dedutivo.
O que é o raciocínio dedutivo e como se distingue dos outros tipos de
raciocínio? A característica central da dedução é esta: se um
raciocínio dedutivo for válido, isto é, correcto, e se as suas
premissas forem verdadeiras, então a conclusão está também garantida
como verdadeira. Por exemplo: se for verdade que o João e a Maria
foram ao supermercado, então é verdade que o João foi ao supermercado.
Este é um raciocínio dedutivo. Mas mesmo que seja verdade que o João
costuma ir ao supermercado com a Maria às quintasfeiras, pode ser
falso que o João tenha hoje ido ao supermercado, apesar de hoje ser
quintafeira e apesar de um raciocínio indutivo razoável concluir que
o João foi hoje ao supermercado.
Um raciocínio dedutivo garante a verdade da sua conclusão se for
correcto ou válido e se as suas premissas forem verdadeiras; mas um
raciocínio por analogia, ou através de exemplos, ou um raciocínio
indutivo podem ser correctos e ter premissas verdadeiras e no entanto
a sua conclusão ser falsa. Tudo o que um argumento indutivo correcto
com premissas verdadeiras pode garantir é que é provável que a
conclusão seja verdadeira; mas não pode garantir que é realmente
verdadeira.
O exemplo da Maria e do João é muito simples e há por vezes uma
tendência para achar que a lógica dedutiva não pode ser informativa,
uma vez que só trata de tautologias (como lhe chamou Wittgenstein).
Isto é um disparate (apesar de não ser este o disparate que
Wittgenstein tinha em mente). A lógica dedutiva é extremamente
complexa; mas, tal como a aritmética, temos de começar por aprender as
coisas mais básicas. Ninguém acha que a matemática é uma coisa básica
porque começamos por aprender quanto é 2 + 2, pois não?
Já dei ao leitor uma ideia do que é a lógica. Vamos agora ver que
papel tem a lógica na filosofia.
3. O papel da lógica na filosofia
A parte estritamente formal da lógica permitenos isolar e estudar as
propriedades dos argumentos válidos. É um estudo complexo e
extremamente estimulante, cujo resultado tecnológico último foram os
actuais computadores. Este estudo é importante para a filosofia porque
permite perceber argumentos filosóficos complexos, o que em última
análise nos permite saber se são bons argumentos ou não.
Tomemos um exemplo. Imagine que está numa aula e um dos textos que tem
de ler é o seguinte:
O próprio facto de o Universo existir, com tudo o que contém, é uma
evidência segura de que os cépticos se colocam numa perspectiva a
que poderíamos chamar errónea. Na verdade, o conhecimento é uma
possibilidade em aberto se o Universo, ou o Todo, existe,
assegurando assim a facticidade do próprio Ser e a eloquente
negação do Nada. Por outro lado, abrese um abismo dilacerante no
seio mesmo desta questão, pois a própria intangibilidade teorética
do conhecimento se apresenta em alternativa paralela à
intangibilidade da perspectiva céptica, o que, convenhamos, não
corresponde à própria existência do Todo, nem à negação do Nada.
Perante este texto eloquentemente obscuro e ininteligível podemos
fazer duas coisas: ou nos dedicamos antes ao surf, ou procuramos saber
se isto quer de facto dizer alguma coisa, ao contrário do que parece.
Antes de a lógica nos poder dizer se estamos na presença de um
argumento válido, ou correcto, precisamos de saber se estamos sequer
perante um argumento. À primeira vista estamos apenas perante uma
logorreia bacoca e sem sentido.
Se eliminarmos aquilo a que na gíria do liceu do meu tempo se chamava
«palha» ficamos com um argumento muito simples:
Se o universo existe, o conhecimento é possível.
Ou o conhecimento não é possível, ou os cépticos estão enganados.
Mas o universo existe.
Logo, os cépticos estão enganados.
Esta formulação já começa a fazer sentido. Temos uma conclusão clara e
temos três frases como premissas do nosso raciocínio. A lógica
permitenos perceber que o raciocínio é correcto (na verdade é um
raciocínio elementar que estava escondido por detrás da logorreia
anterior, que por ser logorreia parecia profunda). Mas daí não se
segue que a conclusão seja uma verdade. Porquê? Bom, porque a
correcção lógica só nos garante que a conclusão é verdadeira se todas
as premissas forem verdadeiras. Ora, a primeira premissa afirma que se
o universo existe, o conhecimento é possível, o que é no mínimo
discutível. Por isso temos de discutir agora esta premissa, pois a
verdade da conclusão depende da verdade desta premissa.
Que ganhámos com isto? Ganhámos clareza e afastámos a obscuridade e a
ilusão. Reparem que o próprio autor do parágrafo logorreico que vos li
pode estar iludido, pensando que descobriu uma verdade filosófica
importante, quando na verdade mais não fez do que apresentar um
argumento infantil que, talvez por acaso, até é válido. Mas de pouco
vale ser válido, pois uma das suas premissas é altamente discutível.
Sem esta análise simples ficaríamos todos iludidos e o objectivo de
alcançar uma cognição mais pura seria fracassado.
Ficámos assim a perceber para que serve a lógica: permitenos dizer se
um certo argumento é válido ou não. Se um argumento é inválido, isso
significa que a conclusão pode ser falsa, ainda que todas as premissas
sejam verdadeiras. Logo, o autor de um argumento inválido, ou
incorrecto, não consegue defender a verdade da sua conclusão, uma vez
que não está a oferecernos razões para acreditar na conclusão: nós
podemos acreditar nas razões que ele invoca, isto é, nas premissas do
seu argumento e mesmo assim não aceitar a conclusão.
E que acontece quando a lógica afirma que o argumento é válido?
Ficamos a saber que se todas as premissas forem verdadeiras, a
conclusão também é verdadeira. E agora podemos discutir cuidadosamente
as premissas uma a uma para ver se serão todas verdadeiras.
Quer a análise lógica revele que um argumento é válido, quer revele
que é inválido, pelo caminho fizemos um trabalho de clarificação
imprescindível para o nosso objectivo: compreender melhor o mundo.
Estes são dois dos papéis principais da lógica: clarificar os
argumentos e as teorias filosóficas e dizernos se um argumento é ou
não válido.
A estes dois juntase um terceiro papel: a lógica permitenos também
saber se determinada teoria, ou se determinada proposição é ou não
consistente com outras verdades, ou até se é autoconsistente. Uma
teoria filosófica inconsistente com verdades mais básicas (quer sejam
verdades comuns, quer sejam verdades científicas) está com certeza
errada. E uma teoria filosófica autoinconsistente não pode ser
verdadeira.
Quero agora falarlhe de uma coisa acerca da qual se fala muito hoje
em dia: a retórica. Muitas pessoas insinuam (estas pessoas gostam de
insinuar, porque é menos arriscado do que ser honesto e dizer as
coisas directamente) que a lógica é insuficiente como instrumento
filosófico por ser puramente formal e que cabe à retórica o verdadeiro
papel criativo na argumentação filosófica. Esta posição está certa e
está errada. Está certa se entendermos por retórica aquilo que ela
deve ser: um conjunto de regras que têm por objectivo único tornar
mais clara a expressão dos argumentos. Mas acontece que não é isto que
estas pessoas em geral entendem por retórica: para eles, a retórica é
a arte do engano (tão duramente criticada por Platão e Aristóteles),
que consiste em conseguir convencer os outros sem que tenhamos boas
razões para sustentar as nossas posições.
Vou darvos um exemplo do que é a verdadeira retórica. Imaginem que eu
defendo o seguinte argumento:
(P1) Se desejarmos apurar as capacidades cognitivas dos alunos,
temos de lhes ensinar a formular com clareza, precisão e
criatividade os problemas, teorias e argumentos filosóficos.
(P2) Se concebemos a filosofia como uma actividade cognitiva, o
objectivo do seu ensino será apurar as capacidades cognitivas dos
alunos.
(C) Logo, se concebemos a filosofia como uma actividade cognitiva,
temos de ensinar os alunos a formular com clareza, precisão e
criatividade os problemas, teorias e argumentos filosóficos.
Do ponto de vista estritamente lógico tanto faz apresentar o argumento
por esta ordem, ou inverter a ordem e começar por (P2) em vez de (P1).
No entanto, o argumento é mais facilmente compreensível se começarmos
por (P2). A retórica, entendida no bom sentido da palavra,
aconselhanos a começar por (P2).
Mas a retórica, entendida no mau sentido da palavra, aconselhanos a
não mudar a ordem, precisamente pela mesma razão. A diferença é que
enquanto a boa retórica é uma actividade honesta que tem como
objectivo a clareza, a má retórica é uma aldrabice que tem por
objectivo ocultar os argumentos, por forma a que seja difícil
criticálos e avaliálos. Assim, enquanto a boa retórica tem por
objectivo oferecer a possibilidade do pensamento crítico, a má
retórica tem por objectivo impedir o pensamento crítico e convencer a
outra pessoa, independentemente de existirem ou não boas razões para
aceitar o que está em causa.
Os grandes mestres nacionais da má retórica são os políticos e as
figuras públicas que aparecem na televisão e nos jornais: quando estas
pessoas discutem, o objectivo delas não é a verdade; é ganhar a
discussão para se autopromoverem. Esta actividade burlesca é
completamente estranha à forma de fazer filosofia que tenho defendido
nesta conversa.
Já vimos, sumariamente, o que é a lógica e a retórica. Vimos também,
de certa forma, que papel pode a retórica ter na filosofia: a retórica
torna os argumentos mais facilmente compreensíveis. Mas a retórica não
pode fazer isto sem o auxílio da lógica. Nenhuma retórica pode tornar
um argumento logicamente incorrecto num argumento correcto; pode, com
certeza, dar a ilusão ao interlocutor de que se trata de um argumento
correcto. Mas não torna o argumento correcto. O mesmo acontece com
quem é aldrabão e engana com muita habilidade as pessoas no troco do
jornal; por mais habilidade que tenha, isso não faz com que o troco
esteja certo; só faz com que a pessoa desprevenida não se dê conta de
que está a ser enganada.
Não entendo a filosofia como uma arte da aldrabice e do engano. Também
não reduzo a filosofia à história da filosofia; não embarco na
adoração acrítica e parareligiosa dos grandes filósofos mortos. A
filosofia é uma actividade viva, feita por pessoas vivas que estão
perante problemas vivos. Também não reduzo a filosofia à adoração
bacoca do Ser, essa atitude mística acrítica. O meu objectivo o
objectivo da filosofia que pratico é a cognição, o conhecimento, a
libertação cultural, mental e intelectual.
Enfim. O que quero dizerlhe era só isto: se deseja saber pensar,
estude filosofia. Verá que não se vai arrepender. Saber pensar é uma
das habilidades mais extraordinárias a que o ser humano tem acesso. A
Marguerite Yourcenar afirmou que «Um homem que lê, ou que pensa, ou
que calcula, pertence à espécie e não ao sexo; nos seus melhores
momentos escapa mesmo ao humano.» Era só isto que eu queria dizerlhe.
Agora já está dito.
Desidério Murcho
Sociedade Portuguesa de Filosofia
Av. da República, 37, piso 4
1050 Lisboa, Portugal
Limites do papel da lógica na filosofia
Desidério Murcho
Aristóteles considerava a lógica um instrumento filosófico
imprescindível e a tradição escolástica cultivou a argumentação
estritamente silogística. No entanto, a cultura filosófica está hoje
dividida quanto ao papel da lógica na filosofia. Ao inaugurar a
filosofia da época moderna, Descartes introduziu também um profundo
desprezo pela lógica silogística, a única então conhecida, enquanto
instrumento filosófico. É irónico que os filósofos mais argumentativos
da época moderna, como Descartes e David Hume, tenham desprezado o
papel da lógica na filosofia. Esta atitude ficou sem dúvida a deverse
às insuficiências da própria lógica silogística e talvez também ao
juízo nem sempre justo daqueles que, ao procurar inovar numa dada área
do conhecimento, sentem o legado deixado pela tradição como um
obstáculo incómodo aos seus novos propósitos e métodos. É neste
contexto que temos de entender a afirmação de Kant de que a lógica
era, já no seu tempo, uma disciplina acabada e perfeita. Um século
mais tarde, Frege iria provar que Kant estava profundamente enganado:
muito havia ainda a fazer no estudo da lógica.
O advento da lógica moderna de Frege cristalizou duas atitudes
antagónicas quanto ao papel da lógica na filosofia. Por um lado, há
filósofos que ignoram a lógica (seja ela moderna ou silogística), à
semelhança dos seus antecessores do Renascimento. Por outro lado,
filósofos houve, como Carnap, que viram na lógica moderna o
instrumento que em última análise permitiria a solução dos problemas
filosóficos. Hoje em dia já ninguém partilha com Carnap esta crença
errada nos poderes da sintaxe da lógica dedutiva. No entanto, continua
a fazerse sentir uma divisão quanto ao papel da lógica na filosofia.
De um lado, continuam aqueles que negam à lógica qualquer pertinência
para a filosofia e, do outro, aqueles que, apesar de não acreditarem
que a lógica possa resolver os problemas da filosofia, lhe reservam
todavia um papel importante. É a esse papel, e aos seus limites, que
resolvi dedicar estas páginas, sem pressupor por parte do leitor
qualquer conhecimento de lógica.
Uma questão prévia: ao longo destas páginas, por facilidade de
exposição, irei usar o conceito de proposição, uma vez que as frases
são objectos linguísticos inapropriados para as operações lógicas. No
entanto, as proposições são objectos abstractos independentes da
consciência, o que provoca algum malestar em filósofos mais
preocupados com as suas ontologias, como Quine. Nestas páginas, sem
qualquer prejuízo para o seu conteúdo, todas as ocorrências da
expressão «proposição» e suas cognatas podem ser substituídas pela
expressão que designa o objecto preferido pelo leitor para desempenhar
o papel lógico das proposições (frasetipo, afirmação ou enunciado).
A diferença conspícua entre proposições e frases é facilmente
compreendida se considerarmos as frases «Sócrates era um filósofo» e
«Socrates was a philosopher». É claro que se trata de dois objectos
linguísticos, mas não é menos claro que «dizem o mesmo». São de facto
duas frases que exprimem uma única proposição. Tal como duas frases
distintas podem exprimir uma única proposição, também uma única frase
pode exprimir proposições diferentes. Por exemplo, a frase «eu sou
português», dita por Jorge Sampaio, exprime a proposição verdadeira de
que Jorge Sampaio é português; mas dita pelo presidente do Brasil
exprime a proposição falsa de que o presidente do Brasil é português.
As frasestipo, por sua vez, distinguemse das proposições por não
acarretarem os compromissos ontológicos daquelas. Quando afirmamos de
duas frases que constituem uma só frasetipo, afirmamos apenas que
agrupamos ambas na mesma classe de frases, sem que estejamos
comprometidos com a existência independente da classe em causa.
A natureza da lógica
O conhecimento humano tem duas fontes: a experiência e a razão. Na
linguagem filosófica é costume dizerse que uma proposição é a priori
se a sua verdade pode ser conhecida sem apelar para a experiência; e a
posteriori se pelo contrário só podemos conhecer a sua verdade através
da experiência.
Um raciocínio é o processo pelo qual se chega a uma conclusão,
partindo de uma sequência de proposições, a que se chamam premissas.
As premissas e a conclusão podem ser a priori ou a posteriori. Por
exemplo, apesar de o raciocínio seguinte ser dedutivo, todas as suas
proposições são a posteriori: "Todos os cães ladram; Boby é um cão;
logo, Boby ladra." Por vezes confundese a qualidade a priori típica
do raciocínio dedutivo com o carácter das suas proposições. Mas um
raciocínio é um processo de chegar a uma conclusão, usando certas
proposições. A qualidade a priori ou a posteriori dessas proposições é
independente da qualidade do processo que as usa. Um raciocínio é como
uma fábrica que produz sabonetes a partir de certas matériasprimas;
do facto de usarmos perfumes para produzir sabonetes não se segue que
a fábrica é um perfume; do facto de um raciocínio dedutivo usar
proposições a posteriori não se segue que o raciocínio seja a
posteriori. E do facto de o raciocínio dedutivo ser a priori não se
segue que as proposições por si usadas não possam ser a posteriori,
tal como do facto de a fábrica de sabonetes não ser feita de perfumes
não se segue que não possa usar perfumes como matériaprima.
É necessário distinguir o conceito lógico de raciocínio do conceito
psicológico de raciocínio. O conceito psicológico de raciocínio denota
aquela actividade mental que os seres humanos realizam desta ou
daquela maneira, melhor ou pior, com prazer ou não. O conceito lógico
de raciocínio é uma abstracção independente de factores psicológicos.
A lógica não estuda o fenómeno psicológico do raciocínio; isso é
estudado por parte da psicologia. A lógica não é uma disciplina
empírica acerca da maneira como as pessoas raciocinam de facto. A
lógica é uma disciplina a priori que, entre outras coisas, estabelece
as normas que as pessoas têm de cumprir se desejam realmente alcançar
o raciocínio correcto ou válido. Se a lógica fosse uma disciplina
empírica acerca da maneira como as pessoas pensam de facto, teria de
admitir como correctos ou válidos aqueles raciocínios que a maioria
das pessoas realizam supondo serem correctos ou válidos. Mas a verdade
é que os raciocínios incorrectos ou logicamente inválidos não se
tornam válidos mesmo que todas as pessoas os tomem como válidos.
É necessário agora distinguir claramente a validade, ou a correcção de
um raciocínio, da verdade. A validade é uma propriedade dos
raciocínios e não das proposições que os compõem, ao passo que a
verdade é uma propriedade das proposições que compõem os raciocínios.
Isto é, uma proposição pode ser verdadeira ou falsa; mas não faz
sentido dizer que é válida ou inválida. Pelo contrário, um raciocínio
é válido ou inválido mas não faz sentido dizer que é verdadeiro ou
falso. Esta não é uma mera convenção, nem uma distinção meramente
verbal; ela corresponde à diferença que existe entre a avaliação
positiva (ou negativa) de um raciocínio e a avaliação positiva (ou
negativa) de uma proposição. Avaliar positivamente (ou negativamente)
uma proposição é muito diferente de avaliar positivamente (ou
negativamente) um raciocínio. Quando avaliamos positivamente um
raciocínio, por exemplo, sancionando a sua qualidade, afirmamos que
ele nos «conduz» à verdade, assumindo que as premissas são
verdadeiras. Esta verdade a que ele nos «conduz» é a proposição que se
conclui. Assim, avaliar positivamente um raciocínio é afirmar que,
assumindo a verdade das suas premissas, ele nos garante a verdade da
conclusão. Logo, temos de distinguir essa qualidade que os bons
raciocínios têm, que consiste em garantir a verdade das suas
conclusões, da própria verdade das suas conclusões: é preciso
distinguir o comboio que nos conduz ao Porto, do Porto.
A melhor forma de explicar a diferença entre verdade e validade é
através de um exemplo. Tomese o raciocínio expresso na frase «Todos
os génios são loucos; logo, alguns loucos são génios». Este raciocínio
é válido, já Aristóteles o sabia (cf., no entanto, [12]"O erro de
Aristóteles"). Mas é a sua premissa verdadeira? Pode ser verdadeira ou
falsa; a lógica nada nos diz sobre isso. E a sua conclusão é
verdadeira ou falsa? A lógica também não diz. O que a lógica afirma é
que se a premissa for verdadeira então a conclusão também é
verdadeira: é por isso que é um raciocínio dedutivo válido. É aliás
isso mesmo que é um raciocínio dedutivo válido. Um raciocínio dedutivo
válido é aquele em que se as premissas forem verdadeiras então a
conclusão também é verdadeira. Claro está que se as premissas forem
falsas a conclusão pode ser falsa, ainda que o raciocínio seja válido.
A lógica estuda as leis a priori da inferência dedutiva. A lógica
estuda as leis que permitem que de premissas verdadeiras se derivem
conclusões verdadeiras. A lógica não pode pronunciarse sobre a
verdade das premissas de um raciocínio; afirma apenas que a conclusão
de um raciocínio é verdadeira se e só se (1) o raciocínio é válido e
(2) as premissas são verdadeiras.
Está claro que existe outro tipo muito comum de raciocínio: a indução.
Mas neste caso a conclusão não se segue logicamente das premissas. Um
raciocínio indutivo razoável é ainda um raciocínio inválido
dedutivamente. Isto não significa que a indução não seja um tipo de
raciocínio extremamente importante. Significa apenas que a indução não
se pode confundir com a dedução e que não podemos avaliar a correcção
de um raciocínio indutivo com critérios dedutivos. Por isso, a indução
não é um objecto de estudo da lógica dedutiva. Por outro lado, não
existe nenhuma lógica indutiva razoável, apesar de existirem várias
tentativas, algumas talvez promissoras.
Como já vimos, as premissas de um raciocínio dedutivo tanto podem ser
a priori como a posteriori. Porém, as teorias e os argumentos
tipicamente filosóficos são dedutivos, e muitas vezes as premissas
desses argumentos são também a priori, no sentido em que não são
confirmáveis ou refutáveis pela experiência. Teorias e argumentos
indutivos com premissas a posteriori são típicos das disciplinas
empíricas como a história ou a física.
Verdade e ilusão
Se um raciocínio é válido ou correcto e as suas premissas são
verdadeiras, então a sua conclusão também é verdadeira. Está claro que
podemos ter o caso interessante de obter conclusões verdadeiras a
partir de premissas falsas com raciocínios inválidos; por exemplo,
«Nenhum pássaro é preto; logo, algumas coisas pretas são pássaros».
Mas mais interessante ainda é o facto de se poder obter conclusões
verdadeiras a partir de premissas falsas com raciocínios válidos; por
exemplo, «Todos os pássaros são pretos; logo, algumas coisas pretas
são pássaros» (cf., no entanto, [13]"O erro de Aristóteles").
Estes dois exemplos mostram como se pode chegar a conclusões
verdadeiras o principal interesse dos filósofos partindo quer de
premissas falsas, quer de raciocínios inválidos. Chegámos por isso ao
ponto em que os mais saudavelmente cépticos perguntarão que papel
poderá a lógica ter na filosofia, considerando que podemos ter as
seguintes situações:
(1) raciocínios inválidos com premissas falsas e conclusões falsas;
(2) raciocínios inválidos com premissas verdadeiras e conclusões
verdadeiras;
(3) raciocínios inválidos com premissas verdadeiras e conclusões
falsas;
(4) raciocínios inválidos com premissas falsas e conclusões
verdadeiras;
e ainda:
(5) raciocínios válidos com premissas falsas e conclusões falsas;
(6) raciocínios válidos com premissas falsas e conclusões
verdadeiras;
e que, para além de distinguir claramente os argumentos válidos dos
inválidos, a lógica só nos garante que
(7) em raciocínios válidos com premissas verdadeiras as conclusões
são também verdadeiras.
Para responder a esta pergunta tenho de voltar a lembrar o facto de
que todo o conhecimento humano é fruto ou da experiência ou do
raciocínio. Se optarmos por uma postura intelectual honesta não
podemos deixar de nos perguntar como poderemos nós distinguir o
conhecimento verdadeiro da mera ilusão. Que critério podemos nós usar
que nos permita distinguir a verdade da ilusão? A resposta depende do
domínio de conhecimento a que nos referimos. Se estamos no domínio do
conhecimento empírico temos a experiência como guia: ninguém acredita
numa proposição que afirma que todos os pássaros são pretos quando o
nosso canário é amarelo, ainda que esta seja defendida por uma
qualquer grande autoridade, com um léxico terrorista e uma gramática
barroca.
Mas como poderemos nós distinguir a verdade da ilusão, do erro e da
falsidade quando as proposições que proferimos estão completamente
fora do alcance da experiência? Se alguém nos afirma que os humanos
são essencialmente racionais mas acidentalmente bípedes, como reagir a
esta afirmação? É certamente muito diferente daquela outra que
afirmava que todos os pássaros são pretos. Nesse caso tínhamos a
experiência para confirmar ou refutar tal ideia. Mas agora não temos
tal coisa. E se estamos num domínio cognitivo não podemos considerar
como argumento o facto de essa pessoa afirmar ter tido uma experiência
mística em que essa verdade lhe foi revelada. Talvez ela pense que
teve essa experiência; mas como vamos nós conseguir distinguir a
experiência verdadeira que ela pensa que teve, da ilusão de que a
teve? Num contexto cognitivo é irrelevante apelar para experiências
pessoais que não podem ser repetidas por terceiros e que nem eles
próprios podem distinguir da mais banal das ilusões ainda que isso
seja reconfortante de um ponto de vista afectivo e pessoal, para
aquelas pessoas que são pouco exigentes quanto ao valor de verdade
daquilo em que confortavelmente acreditam. Mas a ciência, a filosofia
e a arte não são pessoais mas sim públicas, discutíveis, passíveis de
controlo por terceiros. Não se aceita uma lei da física que só se
verifica no laboratório de um cientista quando ele está sozinho; não
se aceita uma proposição da filosofia para a qual não há argumentos
discutíveis mas que o filósofo afirma sentir ser verdadeira; não se
aceita o valor de um quadro que ninguém consegue jamais apreciar
excepto aquele mesmo que o pintou.
Lógica, argumentos, filosofia
A tarefa da filosofia, tal como a tarefa das ciências, é descobrir
proposições verdadeiras. Mas ao contrário do que acontece com as
ciências empíricas, a experiência raramente fornece à filosofia um
critério para distinguir a verdade da falsidade. Assim, apesar de a
lógica parecer fornecer tão pouco, é na verdade o único meio seguro
que temos para excluir argumentos que, ainda que conduzam à verdade, o
fazem de forma tal que não o podemos saber. A lógica não pode decidir
se as premissas são ou não verdadeiras; a lógica não pode tãopouco
decidir se a conclusão de um raciocínio é verdadeira ou não; mas a
lógica diznos se tal conclusão deriva ou não de tais premissas.
É a lógica que permite distinguir claramente os argumentos válidos das
falácias. Uma falácia ou um sofisma é um argumento inválido que no
entanto parece ser válido. Quando o nosso campo de investigação excede
claramente a experiência, só a lógica permite evitar as falácias.
Reparese no seguinte argumento: tem de existir algo que seja a causa
de todas as coisas porque todas as coisas têm uma causa. A
generalidade das pessoas que não sabe lógica aceita este argumento. No
entanto ele é falacioso, como sabem aqueles que conhecem os rudimentos
mínimos de lógica para a investigação filosófica. Reparese que se
alguém nos afirmar que tem de existir alguém que seja a mãe de todas
as pessoas porque todas as pessoas têm uma mãe, já se vê claramente
que o argumento não é válido. Isto acontece porque a conclusão pode
ser verificada empiricamente: não existe uma pessoa que seja a mãe de
todas as pessoas. Mas este argumento é logicamente idêntico ao
argumento anterior; a forma lógica de ambos os raciocínios é a mesma.
Num caso temos proposições empiricamente verificáveis; no outro não
mas temos a lógica que permite excluir imediatamente também este
argumento como inválido.
Reparese num argumento típico da filosofia. O filósofo quer defender
a ideia de que o bem é o que dá prazer. Nós perguntamos: por que diz
você tal coisa? E ele responde: porque isto, e porque aquilo, e porque
aqueloutro; logo, o bem é o que dá prazer. A lógica permitenos dizer:
não senhor, dessas premissas é que não se pode derivar tal conclusão;
esse raciocínio não é válido. Até pode ser que o bem seja o que dá
prazer; mas a verdade da proposição que o bem é o que dá prazer não se
pode derivar das premissas apresentadas. Como não podemos ter dados
empíricos acerca de tal questão, vamos ter de arranjar outras
quaisquer premissas donde se possa derivar que o bem é o que dá
prazer. Há dois mil anos que os filósofos cristãos procuram um
argumento dedutivo para provar a existência do seu deus; mas até hoje
ninguém conseguiu. O que é também típico da filosofia: é que a lógica
diznos se um argumento é ou não válido; mas mesmo que um argumento
não seja válido pode ser que a sua conclusão seja verdadeira. Quem a
propõe tem é de convencer a inteligência dos outros filósofos; e o
único recurso é arranjar um outro argumento que seja válido.
Claro está que ainda que um filósofo conceba um argumento válido para
demonstrar que Deus existe, não se segue que Deus existe de facto;
seguese apenas que se as premissas desse argumento forem verdadeiras
então Deus existe. Todos os filósofos passam agora a discutir a
verdade de uma ou outra premissa em particular; e para argumentar a
favor dessa premissa em particular vamos ter outra vez o dilema: ou
temos o critério da experiência para confirmála ou temos de
argumentar. Mas se temos de argumentar (o que é tipicamente o caso da
filosofia) então temos outra vez todo o processo a repetirse. É isto
que torna a filosofia muito difícil.
O que torna a filosofia sublime é o carácter extraordinário que a faz
perguntar pelo que a experiência não pode alcançar, sem desistir de
exigir que se distinga a verdade da ilusão. Estas perguntas podem ser
incómodas para as pessoas que têm um forte espírito técnico e um fraco
espírito interrogativo. Mas a filosofia é fundamentalmente uma
actividade de fazer perguntas incómodas e tentar encontrar respostas
razoáveis. Perguntas muito simples sobre as questões mais gerais da
realidade. Tão gerais que não podem ter uma resposta empírica. A
questão de saber o que é a consciência pode ser, num certo sentido,
respondida pelas ciências empíricas. Mas quando a neurofisiologia, a
psicologia e as ciências da cognição nos disserem o que é a
consciência, o problema filosófico sobre a natureza da consciência
continuará a existir. O filósofo dirá: «sabemos agora o que é a
consciência e como funciona. Mas as coisas poderiam ou não ter sido de
outra maneira? Qualquer ser que possua consciência tem de ter uma
consciência como a nossa?» A questão filosófica sobre a consciência
fica sem dúvida enriquecida com a investigação científica; mas não se
confunde com ela.
As teorias filosóficas típicas não podem ser confirmadas ou infirmadas
pela experiência; ultrapassamna. Só a lógica e a discussão séria
podem ajudarnos a avaliar a verdade das suas teorias, uma vez que
queremos excluir do nosso estudo o apelo irracional a experiências
místicas. Mas como vimos, um argumento válido nunca é conclusivo em
filosofia porque é sempre possível duvidar da verdade das premissas;
por outro lado, um argumento inválido pode ainda assim ter uma
conclusão verdadeira. Assim, a lógica não pode de forma alguma
resolver os problemas da filosofia; não pode pelo menos, seguramente,
resolvêlos todos. Mas é um instrumento básico sem o qual a tarefa do
filósofo é bastante mais confusa, correndo o risco de se tornar ou num
discurso autofágico, ou num veículo de divulgação disfarçada de ideias
pouco inteligentes que querem furtarse à livre discussão. O
verdadeiro filósofo é aquele que procura satisfazer a sua curiosidade
intelectual pela verdade, nada sacrificando ao valor da verdade; por
mais que uma ideia seja pessoalmente reconfortante para um
intelectual, o seu compromisso é com a verdade, não com o conforto; o
seu compromisso é com a inteligência, não com a crença injustificada.
Quem poderá pretender que a garantia da verdade de uma tese é o facto
de o autor sentir que ela é verdadeira? Não se trata de deitar o
sentimento humano fora, transformando assim as pessoas em máquinas
destituídas de sentimentos. Tratase muito simplesmente de ser
imperioso distinguir a verdade da ilusão. Por mais que um pintor que
não tem qualquer domínio de qualquer técnica de pintura sinta que o
mau quadro que pintou é bom, temos de poder distinguir esse sentimento
que ele tem acerca do valor do seu quadro da verdade acerca do valor
do seu quadro.
Lógica, consistência, clarificação
Para apresentar o segundo papel da lógica na filosofia tenho agora de
introduzir brevemente a noção de inconsistência. Duas proposições são
inconsistentes se e somente se não podem ser ambas verdadeiras. Por
exemplo, a proposição que a vida tem sentido é inconsistente com a
proposição que a vida não tem sentido.
A dificuldade da filosofia faz com que muitas das teorias que merecem
ser consideradas seriamente não se deixem no entanto apresentar como
conclusões de argumentos dedutivos. Isto é, existem muitas teorias
filosóficas, possivelmente a maioria, que não são suportadas por
argumentos a partir dos quais essas teorias seriam deduzidas. Como
avaliar criticamente teorias filosóficas que não são suportadas por
argumentos dedutivos? É aqui que a lógica encontra o seu segundo papel
fundamental na filosofia. A tese filosófica proposta pode não ser
consequência lógica de nenhumas premissas mas também não poderá ser
inconsistente com verdades mais básicas amplamente aceites, sob pena
de ter de ser afastada logo à partida da discussão.
Uma tese de tipo hegeliano que afirme serem todas as verdades do
universo dedutíveis a partir de um conjunto finito de verdades lógicas
é inconsistente com resultados fundamentais da própria lógica. Não
pode por isso ser verdadeira. Mas a tese que afirma a existência de
Deus ainda não se provou até hoje ser inconsistente com quaisquer
verdades conhecidas; seguese então que esta tese é verdadeira? Não;
seguese apenas que pode ser verdadeira, tanto quanto sabemos. Mais
uma vez deparamos com o facto de a lógica carecer de poder para
determinar a verdade das teorias filosóficas. Mas mais uma vez também
percebemos o papel reservado à lógica: permitir que se separe
claramente aquelas teorias que merecem ser consideradas daquelas
outras que por pura análise lógica têm de ser logo à partida afastadas
da discussão séria.
Se entendermos que a filosofia consiste na discussão de teorias e
argumentos com o objectivo último de ganhar conhecimento acerca do
mundo (do qual nós somos uma parte) não podemos deixar de enfrentar o
problema de saber como podemos nós avaliar as diferentes teorias e
argumentos em discussão. É o que se chama a avaliação crítica. A
avaliação crítica filosófica não pode ser confundida com arrumação
histórica filosoficamente acrítica por carecer de instrumentos
adequados. Temos de saber distinguir claramente a discussão histórica
acerca do que disse de facto determinado filósofo e das diversas
circunstâncias culturais, sociais e psicológicas que eventualmente o
levaram a afirmar tal, da discussão filosófica que consiste em avaliar
criticamente a plausibilidade da teoria em causa. É irrelevante para a
verdade ou falsidade de uma teoria filosófica que tenha de facto sido
defendida por determinado filósofo ou não. O que se pretende discutir
em filosofia são teorias e argumentos interessantes conceptualmente,
independentemente de terem sido defendidos historicamente. A lógica
fornece instrumentos para afastar logo à partida aquelas teorias e
argumentos que são insustentáveis conceptualmente, ainda que tenham
sido defendidos historicamente.
Para que qualquer destes dois papéis que a lógica tem na filosofia
(detectar a validade dos argumentos e a consistência das teorias)
possa na verdade ser alcançado é imperioso que se proceda a uma
clarificação conceptual de forma a saber com razoável precisão o que
está a ser afirmado. Este é o papel mais básico que a lógica (agora
numa acepção mais lata) tem na filosofia. Este papel clarificador não
pode ser desprezado.
Um exemplo concreto desta capacidade clarificadora da lógica é o
seguinte. Um argumento péssimo que por vezes se ouve afirma que as
inconsistências não só não podem ser evitadas, como nem devem sêlo,
pois o mundo é ele mesmo inconsistente. Este argumento é péssimo
porque resulta de uma confusão conceptual básica. Que diria o leitor
se eu lhe afirmasse que o Mário Soares não é divisível por dois de
forma a que o resto seja zero uma vez que é um número ímpar? Diria que
apesar de o Mário Soares ser um, não é o número um e que só os
números, mas não as pessoas, são divisíveis por outros números. Claro!
O mesmo se passa com a questão da inconsistência. Não se pode afirmar
que o mundo é inconsistente porque o mundo não é constituído por
proposições; e só as proposições podem ser inconsistentes. As
inconsistências só podem existir nas nossas teorias (que são compostas
de proposições) acerca do mundo. Mas as inconsistências são
insustentáveis porque de uma contradição seguese logicamente tudo.
Isto quer dizer que, se aceitamos uma inconsistência qualquer, estamos
logicamente obrigados a aceitar tudo incluindo a negação do que
queríamos defender. Logo, se temos uma teoria inconsistente isso
significa que tudo, incluindo a negação da nossa teoria de partida,
tem de ser considerado verdadeiro. Uma teoria inconsistente é uma
fantasia que não permite conhecer melhor o mundo.
É a lógica, no sentido mais lato da palavra, que permite fazer
distinções conceptuais básicas que clarificam os argumentos e as
teorias filosóficas. A noção de predicados de primeira e segunda
ordem, por exemplo, é crucial para que se evitem argumentos e teorias
que não podem conduzir à verdade. Se afirmarmos «as pessoas são
numerosas e Sócrates é uma pessoa, logo Sócrates é numeroso»,
percebese facilmente que algum erro foi cometido algures no
raciocínio, porque a conclusão é manifestamente desprovida de sentido,
apesar de as premissas serem verdadeiras. O que se passa é que o
predicado «numeroso» é na verdade um predicado de segunda ordem, uma
vez que se aplica à classe das pessoas, mas não aos elementos que
constituem essa classe, isto é, as próprias pessoas. Da mesma maneira
que não podemos dizer que a classe das pessoas é mortal, apesar de
todos os seus elementos as pessoas o serem, também não podemos dizer
que os elementos da classe são numerosos, pois este é um atributo da
classe. Ou, noutro exemplo, não podemos dizer que a classe das coisas
verdes é ela própria verde; os seus elementos é que são verdes. Nestes
casos não precisamos da lógica para nada, uma vez que o seu carácter
empírico e básico nos permite perceber imediatamente que alguma coisa
está errada. Mas o que poderá acontecer quando não temos o critério da
experiência para nos guiar (o que é típico na filosofia)? Só a lógica
permite afastar da nossa discussão aqueles argumentos que não vale a
pena considerar por serem inválidos. Pensese nas confusões que podem
surgir quando se confunde a classe das coisas que existe, muitas vezes
infelizmente chamada «o ser», com os elementos que a constituem;
pensese nos predicados que se podem atribuir à classe das coisas que
existem, mas que não se podem atribuir às coisas que pertencem à
classe, e viceversa.
Lógica, retórica e filosofia
Não posso deixar de abordar um tema de que se fala muito hoje em dia:
a retórica. Uma tese que quero clarificar é a que afirma que a lógica
é insuficiente como instrumento filosófico por ser puramente formal, e
que cabe à retórica o verdadeiro papel criativo na argumentação
filosófica. Para discutir esta ideia é necessário distinguir dois
conceitos opostos de retórica. Por «retórica» podemos entender um
conjunto de regras que têm por objectivo único tornar mais clara a
expressão dos argumentos. Mas acontece que por «retórica» pode
entenderse outra coisa muito diferente, a saber, a arte do engano,
tão duramente criticada por Platão e Aristóteles, que consiste em
conseguir convencer os outros sem que tenhamos boas razões para
sustentar as nossas posições.
O papel da verdadeira retórica pode ser ilustrado com o seguinte
argumento:
(P1) Se desejarmos apurar as capacidades cognitivas dos alunos,
temos de lhes ensinar a formular com clareza, precisão e
criatividade os problemas, teorias e argumentos filosóficos.
(P2) Se concebemos a filosofia como uma actividade cognitiva, o
objectivo do seu ensino será apurar as capacidades cognitivas dos
alunos.
(C) Logo, se concebemos a filosofia como uma actividade cognitiva,
temos de ensinar os alunos a formular com clareza, precisão e
criatividade os problemas, teorias e argumentos filosóficos.
Do ponto de vista estritamente lógico é indiferente apresentar o
argumento por esta ordem, ou inverter a ordem e começar por (P2) em
vez de (P1). No entanto, o argumento é mais facilmente compreensível
se começarmos por (P2). A retórica, entendida no bom sentido da
palavra, aconselhanos a começar por (P2).
Mas a retórica, entendida no mau sentido da palavra, aconselhanos a
não mudar a ordem, precisamente pela mesma razão. A diferença é que
enquanto a boa retórica é uma actividade que tem como objectivo a
clareza, a má retórica tem por objectivo convencer o interlocutor a
qualquer preço e é mais fácil convencer o interlocutor quando ele não
consegue avaliar o argumento em causa, uma vez que assim também não
consegue refutálo. Enquanto a boa retórica tem por objectivo oferecer
a possibilidade do pensamento crítico, a má retórica tem por objectivo
impedir o pensamento crítico e convencer a outra pessoa,
independentemente de existirem ou não boas razões para aceitar o que
está em causa.
Nenhuma retórica pode transformar um argumento mau num bom argumento;
o que a má retórica pode fazer, no máximo, é disfarçálo; mas não nos
ajuda a descobrir a verdade. A verdadeira retórica, entendida como
instrumento de estudo da verdade, depende da lógica. Não pode por isso
afirmarse que o papel da retórica é mais importante para a filosofia
do que o papel da lógica. A retórica complementa a lógica; não pode
substituíla.
Conclusão
A lógica tem então apenas estes três papéis: 1) dizer claramente se
determinada conclusão se pode ou não seguir de determinadas premissas
em certo argumento dedutivo; 2) dizer claramente se determinada
conclusão é ou não consistente com verdades mais básicas; e 3)
clarificar os argumentos e teorias filosóficos. Mas acontece que estes
papéis muito modestos da lógica são na verdade muito importantes
porque de pouco mais nos podemos valer para avaliar a discussão
detalhada, por vezes enervante, outras deliciosa, mas sempre
estimulante, com os outros filósofos. Evitar o erro de raciocínio, a
inconsistência e a obscuridade pode parecer pouco. Mas quando a
experiência não pode dizernos onde está a verdade, é uma benesse que
a lógica possa detectar a inconsistência porque aí não pode estar a
verdade , detectar o erro de raciocínio porque mesmo que aí esteja a
verdade nós não podemos sabêlo , e clarificar as teorias e argumentos
para que a avaliação crítica seja realmente possível.
Para terminar, quero chamar a atenção para a diferença entre o estudo
de uma disciplina e o uso dessa disciplina enquanto instrumento. A
diferença é clara: uma coisa é usar a matemática na engenharia naval,
outra coisa muito diferente é investigar a própria matemática. O
engenheiro naval não precisa de mais do que um conhecimento
instrumental da matemática; os problemas da matemática não lhe dizem
respeito. O mesmo se passa com a filosofia em relação à lógica, com a
diferença que se pode alegar que a lógica é uma disciplina filosófica,
ao passo que a matemática não é, claramente, uma disciplina da
engenharia naval. O filósofo moral ou político não precisa de conhecer
a lógica senão como instrumento; para tal bastam alguns rudimentos.
São os lógicos que conhecem a lógica profundamente, investigam e
discutem os seus problemas; pode argumentarse que os lógicos são uma
subclasse dos filósofos porque as decisões fundamentais a tomar quanto
à natureza da lógica são decisões filosóficas e não lógicas. Mas mesmo
que se defenda que todos os lógicos são filósofos, não se segue daí
que se tenha de defender que todos os filósofos são especialistas em
lógica, tal como ninguém defende que todos os engenheiros navais são
especialistas em matemática. Por outro lado, não podemos fazer hoje
filosofia seriamente sem o auxílio da lógica, como procurei mostrar
nestas páginas, tal como não podemos seriamente fazer engenharia naval
sem o auxílio da matemática.
Desidério Murcho
Sociedade Portuguesa de Filosofia
Av. da República, 37, piso 4
1050 Lisboa, Portugal
Ensino da Filosofia e Exegese
Desidério Murcho *
Quero partilhar com os leitores algumas ideias sobre o ensino da
filosofia analítica. Uma vez que o próprio conceito de filosofia
analítica é razoavelmente pouco conhecido, escolhi a exegese como a
actividade em relação à qual a filosofia analítica se distingue
claramente da continental. O meu objectivo é disponibilizar alguma
informação que julgo importante não só para a tomada de decisões de
fundo no que respeita ao ensino da filosofia, mas também para a
prática docente quotidiana. A ênfase é colocada sobretudo no ensino
liceal da filosofia, mas sem perder de vista o ensino universitário.
A pequena cultura filosófica portuguesa pertence a um sector muito
específico e minoritário, em termos mundiais, da prática filosófica
internacional. É comum designarse esta forma minoritária de fazer
filosofia como 'filosofia continental', porque é sobretudo nos países
do continente europeu (França, Portugal, Espanha, Itália e parte da
Alemanha) que se cultiva esta forma de fazer filosofia. A filosofia
analítica é dominante em países como o Reino Unido, os EUA, a
Austrália, alguns países nórdicos europeus e parte da Alemanha. Nos
países de forte tradição continental, como a França e a Espanha, o
movimento analítico tem vindo a crescer ao longo dos anos, apesar de
continuar, nesses países como em Portugal, claramente minoritário.
Toda a gente conhece a filosofia continental: foi o que nos ensinaram
e continuam a ensinar no liceu, é o que se ensina nas universidades e
a maior parte dos livros e revistas de filosofia são de perfil
continental. Uma das características que distinguem a forma analítica
de fazer filosofia da forma continental, sobretudo portuguesa,
baseiase na diferente posição que tomam em relação à exegese
filosófica. Ao passo que para os continentais a exegese filosófica não
se distingue da simples paráfrase, os analíticos distinguem esta da
formulação, identificando com esta última o sentido da expressão
'exegese filosófica' mas não com a primeira.
A distinção entre a paráfrase e a formulação pode ser facilmente
captada se tivermos em conta que alguém que nada perceba de medicina
ou música pode no entanto parafrasear eficientemente um texto de
medicina ou música do século XVI, bastando para tal conhecer a língua
em que tal texto foi escrito, ao passo que para formular o conteúdo de
um texto de medicina ou música do século XVI já é necessário saber
medicina ou música, consoante o caso.
Compreendese assim por que razão outra das características que
distinguem a maneira analítica de fazer filosofia da maneira
continental consiste na hierarquia conceptual dada à exegese
filosófica: para um filósofo analítico só é possível fazer exegese
filosófica depois de se saber filosofia, ao passo que os continentais
defendem que se aprende filosofia a fazer exegese, o que aos olhos dos
analíticos é tão absurdo como defender que se aprende medicina ou
música lendo os textos clássicos da medicina ou da música.
Para um filósofo analítico a expressão 'exegese filosófica' significa
'formulação' e não 'paráfrase', pois não podem existir 'paráfrases
filosóficas', uma vez que a filosofia pressupõe uma compreensão
crítica e a paráfrase apenas pressupõe a capacidade mimética. Esta
divisão, entre analíticos e continentais, quanto ao significado da
expressão 'exegese filosófica' é a causa última do tipo de ensino da
filosofia praticado em Portugal, e que aos olhos dos analíticos não
passa de uma caricatura do que é o verdadeiro ensino da filosofia. Nos
liceus e nas faculdades, os alunos de filosofia são lançados, sem
preparação, para os textos clássicos da filosofia (numa atitude que a
um analítico parece autêntico terrorismo intelectual), sendolhes
exigido em troca um conjunto mais ou menos bacoco de paráfrases em que
os mais disparatados erros, as mais gritantes ambiguidades e
imprecisões e a mais evidente incompreensão dos problemas, argumentos
e teorias que os filósofos discutiram ao longo dos tempos são sinais
infelizes de um tipo de ensino que não tem capacidade para formar
pessoas que sabem, sobretudo, pensar, mas antes pessoas que sabem,
sobretudo, repetir.
A formulação dos problemas, teorias e argumentos da filosofia permite
ao aluno perceber os problemas, teorias e argumentos da filosofia, ao
passo que a sua paráfrase não lhe permite senão a repetição mecânica
das palavras dos filósofos. É por este motivo que a avaliação dos
alunos de filosofia, sobretudo no liceu, é um problema latente em
Portugal. Uma vez que não são transmitidos aos alunos conteúdos cuja
formulação mais ou menos precisa seja possível avaliar de forma justa,
mas antes conjuntos de frases que os alunos devem repetir de forma
mais ou menos vaga, o professor nunca sabe se está perante um aluno
com uma excepcional verve filosófica, se perante alguém que nada
percebeu, acabando todos por ser avaliados em função de critérios
extrafilosóficos como a qualidade do português, a quantidade de
autores referidos por cada frase e a capacidade para citar a
bibliografia de forma competente.
O filósofo analítico, por outro lado, sabe exactamente o que está a
avaliar, tal como um professor de música ou de medicina. Existem
conteúdos filosóficos precisos cuja maior ou menor compreensão, tal
como é revelada pela sua formulação escrita e oral, pode ser avaliada
de forma justa. Tal como um professor de medicina avalia até que ponto
um aluno compreendeu o processo digestivo dos seres humanos e tal como
um professor de música avalia até que ponto um aluno compreendeu o
conceito de intervalo musical, também o professor de filosofia
analítica avalia até que ponto um aluno compreendeu a teoria da
referência de Kripke ou os argumentos cépticos da segunda Meditação de
Descartes.
Outra das consequências da diferente concepção de exegese filosófica
que distingue os analíticos dos continentais é a ausência conspícua de
livros de introdução à filosofia, do lado continental, e a sua
abundância, do lado analítico. De facto, como escrever um livro de
introdução à filosofia quando a concebemos como a arte, mais ou menos
delirante, da paráfrase? Se vamos explicar o conceito de frase
analítica, temos de parafrasear Kant ou Quine, citando ambos os
autores abundantemente; nada mais resta fazer. Não há quaisquer
conteúdos conceptuais que possam ser organizados e apresentados
didacticamente, do mais simples para o mais complexo, do mais
importante para o menos importante. Quando se tem um conceito
continental de filosofia nada resta excepto a paráfrase. Mas isso é
negar à filosofia o papel crítico que faz parte da sua própria
essência, e sem o qual ela se torna um exercício oco culturalmente
empobrecedor e, sem dúvida, verdadeiramente redutor.
Para terminar, gostava de afirmar claramente que da minha posição
favorável à filosofia analítica não se segue que eu ache que a
filosofia continental deva acabar. Defendo e sempre defendi a
tolerância e a liberdade. Acontece que, da mesma maneira que acho que
os partidários da filosofia continental têm o direito de estudar,
ensinar e divulgar a sua prática, também acho que os partidários da
filosofia analítica têm o mesmo direito. Esta posição não deve
confundirse com um relativismo mais ou menos irresponsável, no qual
tudo é igual a tudo; é apenas o resultado de um princípio que me
parece sensato: nestas matérias pacíficas, as pessoas têm o direito de
estar erradas. Compete ao público fazer a sua escolha.
*Desidério Murcho
Sociedade Portuguesa de Filosofia
Av. da República, 37, piso 4
1050 Lisboa