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FILOSOFIA ­­ ARTIGOS DIVERSOS

PRIMEIRO VOLUME

                         O ESPECIALISTA INSTANTÂNEO
                                EM FILOSOFIA
                                      
                               Jim Hankinson
                                      
                            Tradução e adaptação
                              Desidério Murcho
                                      
   O QUE A FILOSOFIA É
   
   Eis uma coisa que o leitor deve sempre evitar tentar explicar. Mas
   pode desejar ficar com duas coisas claras desde o início.
   
   Em primeiro lugar, a filosofia não é um assunto, é uma actividade.
   Consequentemente, não se estuda: faz­se. É assim que os filósofos,
   pelo menos os da tradição anglo­saxónica (que por qualquer razão
   histórica obscura parecem incluir os finlandeses), têm tendência para
   pôr a coisa. Em segundo lugar, a filosofia é em grande parte uma
   questão de análise conceptual ou seja, pensar sobre o pensamento. Por
   agora, limitemo­nos ao mais básico.
   
   Isto é algo que alguns filósofos sentem ser impossível, mas não há
   razão para o leitor lhes seguir o exemplo. Para o visitante casual que
   observa de relance a paisagem, a filosofia parece desconcertantemente
   difícil. Uma das suas maiores dificuldades é o facto de os filósofos,
   salvo raras e honrosas excepções, acharem praticamente impossível usar
   uma linguagem compreensível para as pessoas comuns, como por exemplo o
   português. Acontece até que quando um filósofo quer referir­se à
   Pessoa Comum (uma espécie que é improvável que tenha conhecido em
   primeira mão, apesar de poder ter ouvido lendas de viajantes acerca
   dela), usa a expressão «o homem que apanha a carreira 45 para a
   Algés», aparentemente sem se dar conta de que já ninguém usa a palavra
   «carreira», excepto para referir o percurso vicioso dos políticos, e
   que Algés já não é também o exemplo ideal da mediocridade suburbana
   lisboeta.
   
   A sua tarefa, portanto, é alcançar pelo menos uma ténue compreensão do
   mais profundo alcance do vocabulário técnico, tal como é usado, de
   forma tão enigmática, pelo filósofo contemporâneo. Não se preocupe. A
   competência linguística, como o Segundo Wittgenstein teria dito (que
   não deve confundir­se, é claro, com o Primeiro Wittgenstein, que não
   diria tal), é uma questão de pôr as palavras na ordem certa. O leitor
   não terá realmente de compreender que quer dizer a maior parte disto,
   se é que quer dizer alguma coisa.
   
   AS MORTES DOS FILÓSOFOS
   
   Segundo os epicuristas, a morte nada é para nós ­ mas apesar da
   opinião deles, incluímos a seguinte lista de mortes filosóficas
   bizarras, para efeitos de completude.
   
   Há duas tradições no que respeita à morte de Empédocles. De acordo com
   uma delas, morreu de uma perna partida; mas a outra defende que saltou
   para a cratera do Monte Etna para provar assim que era um deus. Não se
   sabe como poderia isto constituir tal prova.
   
   Heraclito, contudo, contraiu hidropisia em resultado de viver de erva
   e de outras plantas numa encosta de uma montanha, numa veneta
   misantrópica. Ao ser informado pelos médicos que o seu estado não
   tinha cura, tomou o tratamento a seu cargo, obrigando­se a ser coberto
   da cabeça aos pés com estrume, sendo depois deixado na rua (ou talvez
   tivesse acontecido apenas que ninguém o queria em casa). Segundo o
   historiador Diógenes Laércio, «ele não conseguiu tirar o estrume, e,
   estando assim irreconhecível, foi devorado pelos cães». Talvez os cães
   não o tivessem devorado se soubessem quem era.
   
   Nunca mencione a morte de Sócrates com cicuta numa cela ateniense; mas
   se tiver a infelicidade de alguém lho mencionar, tente fazer notar que
   a descrição da sua morte no Fédon de Platão é completamente
   inconsistente com os efeitos conhecidos da cicuta: por isso, alguém
   estava a mentir.
   
   Pitágoras foi uma vítima do seu próprio vegetarianismo extremo. Ao ser
   perseguido por vários clientes insatisfeitos, chegou a um campo de
   feijão e, para não o pisar, ficou onde estava, acabando assim por ser
   morto.
   
   Crínis, o estóico (uma escola famosa pela sua atitude imperturbável e
   indiferente em relação aos aspectos terrenos) morreu de medo com um
   guincho de um rato. A filosofia estóica nunca conseguiu recuperar
   completamente deste revés.
   
   Crisipo, o estóico, por outro lado, morreu a rir de uma das suas
   terríveis anedotas. Um macaco de uma velha, assim reza a história,
   comeu uma vez uma grande quantidade dos figos de Crisipo, após o que
   este lhe ofereceu o seu odre, dizendo «É melhor ele dar um golo para
   acompanhar os figos», após o que desatou às gargalhadas. Depois
   morreu. Com um sentido de humor assim, não temos de nos sentir
   culpados se pensarmos que foi uma sorte nenhum dos seus 700 livros ter
   sobrevivido.
   
   Diógenes terá morrido de uma das seguintes três maneiras:
   
     1) Porque não se deu ao trabalho de respirar.
     2) Devido a uma grave indigestão em resultado de comer polvo cru.
     3) Por ter sido mordido no pé ao dar polvo cru aos seus cães.
     
   Depois do período antigo a qualidade das mortes filosóficas decaiu
   consideravelmente, apesar de valer talvez a pena registar que Tomás de
   Aquino morreu na retrete, tal como já tinha acontecido a Epicuro.
   Francis Bacon morreu em resultado de uma pneumonia que apanhou quando
   tentava congelar uma galinha na neve, em Hampstead Heath. É talvez o
   único homem que alguma vez morreu em resultado de uma investigação
   relacionada com a comida e não por a ter efectivamente comido.
   
   Finalmente, Descartes teve a pouca sorte de morrer por se levantar
   demasiado cedo. Atraído pela corte da Rainha Cristina da Suécia,
   descobriu para seu horror que ela queria ter explicações diárias e que
   a única hora que tinha livre era às cinco da manhã. O choque matou­o.
   
   A CENA CONTEMPORÂNEA ­­ Os Filósofos Anglo­Saxónicos
   
   Os filósofos anglo­saxónicos (incluindo, é claro, os finlandeses), têm
   tendência para negar que fazem parte de uma qualquer escola ou
   corrente: na verdade, costumam encarar o sectarismo filosófico como um
   perigoso hábito continental, devendo por isso ser desprezado. No
   entanto, têm realmente tendência para se juntar, como se precisassem
   de apoio, acreditando talvez, possivelmente com razão, que precisam
   dele. São invariavelmente classificados em bloco como «filósofos
   analíticos», mesmo que nunca tenham na verdade analisado nada.
   
   Antes da Primeira Guerra Mundial, as duas personalidades mais
   importantes da filosofia britânica eram provavelmente (lembre­se,
   nunca se comprometa, se o puder evitar) Bertrand Russell e G. E.
   Moore. Russell conseguiu a sua reputação com a publicação de Principia
   Mathematica, cujo co­autor foi A. N. Whitehead, e que por isso é por
   vezes conhecida como «Russell e Whitehead», à maneira dos grandes
   estudos sobre sexo. Esta obra é uma exposição extremamente detalhada
   da lógica simbólica formal e como tal não é uma leitura recomendável
   para viagens longas de comboio; na verdade, não é uma leitura
   recomendável em nenhuma situação.
   
   Moore, para não ser ultrapassado no que respeita a títulos latinos
   sonoros e portentosos, reagiu com o seu influente tratado Principia
   Ethica, no qual sustentava que a palavra «bem» é indefinível, apesar
   de ser o nome de uma qualidade não natural. Um conceito de Moore muito
   discutido neste contexto é o da «falácia naturalista». No entanto, é
   muito difícil dizer exactamente o que é isso: a ideia de Moore parece
   ser a de que não podemos definir termos éticos em termos de termos não
   éticos e que não se podem deduzir proposições éticas de proposições
   factuais não éticas.
   
   Esta confusão faz com que a falácia naturalista seja extremamente
   útil, especialmente se o leitor seguir os passos do próprio Moore e
   nunca argumentar a favor da ideia de que isto é uma falácia, mas se
   limitar antes a asseverar que é. O leitor pode complementar isto de
   maneira muito útil, numa conversa de café, com outro conceito de
   Moore, o argumento da questão em aberto. Este argumento defende que,
   seja o que for que se verifique factualmente em relação a um objecto
   ou propriedade particular (que as pessoas gostam dele, por exemplo; ou
   que sabe a queijo), continua a ser uma questão em aberto se isso é um
   bem ou não. Moore era famoso pela sua robusta aproximação à filosofia,
   não admitindo disparates sem sentido; uma vez informou uma turma
   atónita que nada era mais certo do que o facto de ter duas mãos. Não
   se sabe claramente quem tinha estado disposto a duvidar disso.
   
   Quanto a Russell, as suas outras grandes contribuições para a
   filosofia (para além das suas outras actividades, que incluíam o
   pacifismo e a promiscuidade, podendo assim serem definidas pelo slogan
   dos anos sessenta «Make Love Not War», o que Russell fez até uma idade
   invejavelmente avançada) incluem a descoberta do paradoxo de Russell,
   com o qual pôs fim a uma coisa depreciativamente conhecida por teoria
   ingénua dos conjuntos, assim como a teoria das Descrições. A teoria
   das Descrições é uma tentativa de analisar a lógica da linguagem
   natural (não se esqueça desta expressão) e, em particular, o problema
   dos nomes próprios. Este último, tal como a maioria dos problemas
   filosóficos, não é um problema para mais ninguém a não ser para os
   filósofos. Russell usou como exemplos algumas frases regularmente
   usadas pelos ingleses, como «O actual Rei de França é careca» ou
   «Scott escreveu o Waverley». Esta última, segundo Russell, significa
   na realidade que «alguém escreveu o Waverley; só uma pessoa escreveu o
   Waverley; e se alguém escreveu o Waverley, essa pessoa era Scott». Com
   isto uma pessoa pode sentir­se tentada a inferir que os filósofos
   sabem tanto acerca da linguagem comum como sabem acerca das pessoas
   comuns (ver a Introdução).
   
   A atitude correcta em relação à História da Filosofia Ocidental, de
   Russell, é elogiar o seu estilo, lucidez e humor, ao mesmo tempo que
   se manifestam algumas reservas quanto ao seu conteúdo: «Uma leitura
   maravilhosa, claro, mas não pensas que é um pouco tendenciosa?» A
   expressão «não pensas» faz parte de uma pergunta de retórica, e nunca
   deve ser tomada literalmente.
   
   Talvez o mais influente encontro filosófico ocorrido antes da Primeira
   Guerra Mundial tenha sido o que ocorreu em 1912, quando (o Jovem)
   Wittgenstein se encontrou com Russell em Cambridge, e lhe perguntou (a
   Russell) se ele (o Jovem Wittgenstein) era um completo idiota; é que,
   se acaso o fosse, iria para piloto de aviões. Russell disse­lhe que
   fosse escrever qualquer coisa; o Jovem Wittgenstein assim fez, Russell
   leu uma linha e disse­lhe que ele era demasiado esperto para ser um
   aviador.
   
   A guerra interrompeu a carreira do Jovem Wittgenstein em Cambridge,
   mas regressou depois disso já como Primeiro Wittgenstein, passando a
   dominar a vida filosófica de Cambridge, e não só, durante os trinta
   anos seguintes. Sendo uma personagem encantadoramente excêntrica,
   apaixonado por filmes medonhos, vivia numa cadeira de espaldar debaixo
   de um aquecedor eléctrico, num quarto do Trinity College, que para
   além disso estava completamente vazio. Publicou um único livro em toda
   a sua vida, o Tractatus Logico­Philosophicus, no qual trata de
   problemas como a estrutura da proposição, a questão de saber como tem
   a linguagem significado, assim como as noções de verdade e falsidade.
   
   As suas investigações fizeram­no acreditar que só as proposições
   construídas através dos conectivos lógicos a partir de proposições
   atómicas tinham sentido. Daí o nome «atomismo lógico» que designa este
   tipo de filosofia. Tudo o resto não tinha literalmente sentido, o que
   nos livra da metafísica, juntamente com muitas outras coisas. Na
   verdade, tem a consequência infeliz de fazer com que quase todo o
   Tractatus seja ele próprio destituído de sentido, se o que afirma for
   verdade.
   
   O Primeiro Wittgenstein reconhecia isto, dizendo que só se de alguma
   maneira já soubermos o que ele quer dizer podemos compreender o seu
   livro; e que a sua filosofia é como uma escada que deitamos fora
   depois de a subirmos. Muitas pessoas interpretaram a metáfora
   literalmente. A última frase do livro resume a ideia: «Do que um homem
   não pode falar, tem um homem de fazer silêncio.», ou, para o
   especialista instantâneo realmente ambicioso: «Wovon man nicht
   sprechen kann, darüber muß man schweigen.»
   
   Depois disso Wittgenstein deixou a filosofia por uns tempos,
   convencido que já tinha dito tudo. Contudo, acabou mais tarde por
   mudar de ideias: este é o ponto crucial em que o Primeiro Wittgenstein
   se torna no Segundo Wittgenstein e, enquanto tal, a segunda figura
   (depois do Primeiro Wittgenstein) verdadeiramente influente da
   filosofia do período entre as duas guerras.
   
   No Tractatus, Wittgenstein pensava que as proposições têm significado
   porque são como imagens dos factos que referem. Mas o Segundo
   Wittgenstein discordava disto, assimilando ao invés o significado ao
   uso, concedendo ainda que a linguagem comum era mais complexa (e mais
   rica em significado) do que o Primeiro Wittgenstein pensava. O
   resultado póstumo disto é a sua obra Investigações Filosóficas. Morreu
   em 1951; desde essa altura que têm aparecido regularmente, em
   publicação póstuma, apontamentos, registos de aulas, listas de
   compras, notas que escrevia à senhoria, etc., dando a Wittgenstein a
   distinção extraordinária de ter escrito apenas um livro em toda a sua
   vida, mas mais ou menos quinze depois de morto. E tudo leva a crer que
   a sua actividade editorial póstuma está para durar.
   
   Depois da Guerra, a filosofia inglesa centrou­se em Oxford, apesar de
   Cambridge discordar desta ideia, quando uma misteriosa entidade
   conhecida por «filosofia de Oxford», ou, ironicamente, «filosofia
   linguística», veio à existência. Os seus principais expoentes eram
   Gilbert Ryle, um fumador de cachimbo de renome, e J. L. Austin, outro
   fumador de cachimbo de renome. Austin era conhecido pelas suas «manhãs
   de Sábado», nas quais um grupo de filósofos distintos, que se
   distinguiam sobretudo por fumarem todos cachimbo, se reuniam para
   discutirem as subtis nuánces da linguagem comum ou para discutirem
   minhoquices, conforme a sua perspectiva. Estas discussões tinham
   tendência para acabar por distinguir seis significados diferentes de
   expressões como «carrinho de mão», não sendo por isso surpreendente
   que provocasse raiva e escárnio entre os que eram excluídos por
   qualquer razão, como, por exemplo, não serem suficientemente espertos
   ou não fumarem cachimbo.
   
   Contudo, aceita­se geralmente, excepto, como é natural, em Oxford, que
   a partir da Guerra o centro de gravidade da filosofia anglo­saxónica
   se mudou para a América do Norte (até mesmo o bocadinho finlandês), um
   estado de coisas que pode ter talvez alguma relação com o facto de as
   universidades americanas pagarem enormes salários. O Grande Patriarca
   da filosofia americana é Willard van Orman Quine («Van» para os
   amigos), conhecido por sustentar que a distinção de Kant entre o
   analítico e o sintético (ver Glossário) é, na melhor das hipóteses,
   vaga e, na pior, inútil, tal como por ter chamado a um livro seu From
   a Logical Point of View por causa de uma música popular caraíba de
   Harry Belafonte.
   
   Os seus sucessores incluem Saul Kripke, no campo da lógica filosófica
   e no estudo da modalidade (não vale a pena saber o que é isto), cuja
   obra mais importante, Naming and Necessity sobre nomes próprios,
   sentido e referência, mundos possíveis e muitos outros termos que
   encontrará no Glossário , vale a pena mencionar de passagem por
   constituir, talvez, a obra filosófica mais significativa escrita
   depois da guerra.
   
   O leitor reparará também que o nome absurdo é uma ajuda tão grande na
   filosofia americana como o foi para os positivistas de Viena muitos
   dos quais foram parar à América, talvez por isso mesmo , impressão
   essa confirmada por Alvin Plantinga, um lógico modal e um filósofo da
   religião (uma combinação ligeiramente instável) e Robert Nozick, um
   anarquista político da direita radical que pensa que se deve
   privatizar tudo.
   
   Um filósofo americano importante é John Rawls, cuja obra magna, Uma
   Teoria da Justiça, se tem vendido muito bem. Basicamente, Rawls
   defende que a justiça pode ser analisada em dois princípios:
   
     1. Toda a gente deve ter a mesma liberdade e, dado esse
     constrangimento, tanta liberdade quanta for possível;
     2. As desigualdades entre as pessoas só se justificam se os que
     estão pior estiverem na realidade melhor do que estariam num outro
     sistema qualquer mais igualitário.
     
   Tenha cuidado com isto: não é tão idiota como parece à primeira vista,
   apesar de ser verdade que permite desigualdades extremas, o que pode
   ser usado contra ele a não ser, é claro, que o leitor calhe ficar
   beneficiado. Este tipo de coisa é conhecido como teoria da justiça
   distributiva e pode em algumas circunstâncias vir mesmo a jeito.
   
   Os Continentais
   
   Há duas variedades principais de continentais: os franceses e os
   alemães.
   
   O movimento filosófico continental mais importante nos últimos tempos
   foi talvez o existencialismo, que teve partidários franceses e
   alemães. O expoente francês principal foi Sartre, um polímato
   invejável que combinava a filosofia com a agitação política marxista,
   a autoria de romances e peças de teatro, e uma capacidade prodigiosa
   para o álcool. Foi ele que introduziu o slogan «a existência precede a
   essência», que quer dizer, mais ou menos, que devemos estar menos
   preocupados com o tipo de coisas que as coisas são, do que com o facto
   de serem.
   
   Os existencialistas resistem a ser classificados, insistindo
   geralmente na autonomia do individual: logo, têm tendência para ficar
   um bocado irritados só pelo facto de lhes chamarmos existencialistas.
   O existencialismo, ou pelo menos a sua linha francesa, tem conexões
   literárias muito fortes, sendo Camus e o próprio Sartre os seus
   maiores expoentes. A literatura tende a concentrar­se no conceito de
   acte gratuit (refira­a em francês, claro), que constitui supostamente
   a essência da afirmação existencialista da sua própria existência. Mas
   para o resto das pessoas parece­se mais com um caso de crueldade
   caprichosa. Uma vez que o acte gratuit, pelo menos na literatura, tem
   tendência para ter uma natureza violenta ou, no mínimo dos mínimos,
   anti­social, viver com um existencialista (pelo menos com um
   existencialista francês) deve ser de arrasar com os nervos.
   
   Os alemães, dos quais vale a pena referir Martin Heidegger e Karl
   Jaspers, são um bando muito diferente. Não têm pretensões literárias,
   felizmente, e tendem a ser mais explícitos quanto às suas influências,
   referindo filósofos como Kierkegaard e Edmund Husserl, um filósofo
   alemão dos princípios do século que desenvolveu de uma maneira
   sistemática e tipicamente alemã o conceito de fenomenologia, i.e., a
   tentativa de penetrar, por entre as aparências superficiais das
   coisas, na realidade básica da nossa apreensão consciente delas (ou
   coisa assim).
   
   O existencialismo não arrasta consigo qualquer compromisso religioso
   para qualquer dos lados: Sartre era ateu, Jaspers cristão; Heidegger
   era nazi, mas isto é em geral convenientemente esquecido. Um ponto
   interessante a notar é que os livros de filosofia escritos em inglês
   têm geralmente de ter três elementos nos seus títulos, sendo Language,
   Truth and Logic (Linguagem, Verdade e Lógica), Truth, Probability and
   Paradox (Verdade, Probabilidade e Paradoxo) e Mind, Language and
   Reality (Mente, Linguagem e Realidade) alguns exemplos proeminentes,
   ao passo que o número de elementos exigidos para os títulos
   existencialistas parece ser de apenas dois, como em Sein und Zeit (Ser
   e Tempo), de Heidegger, e em L'Etre e le Neant (O Ser e o Nada), de
   Sartre. Os filósofos analíticos anglo­saxónicos têm tendência para
   desprezar o existencialismo por não ser suficientemente analítico; os
   existencialistas têm tendência para desprezar os filósofos analíticos
   anglo­saxónicos por não serem suficientemente.
   
   Já falámos o suficiente sobre o positivismo lógico e, em qualquer
   caso, os seus expoentes estão na realidade mais próximos da tradição
   anglo­saxónica. Nos anos trinta, muitos deles fugiram da Europa e de
   Hitler em direcção à América, onde Rudolph Carnap e Carl Hempel têm
   sido particularmente influentes desde a Guerra, especialmente na
   filosofia da ciência. Entre os ingleses, o mais importante dos
   positivistas lógicos (que, a propósito, incluem o Primeiro, mas não o
   Segundo, Wittgenstein) foi A. J. Ayer (refira­se sempre a ele como
   «Freddie»), que continua a ser conhecido pela sua primeira obra,
   Language, Truth and Logic, apesar de ele mais tarde ter acabado por
   pensar que estava tudo errado de uma ponta à outra, o que deve ter
   sido muito humilhante. Ayer foi também muito influenciado por Russell,
   inclusivamente na condução da sua extravagante vida pessoal.
   
   Falta discutir um grande movimento do pensamento continental: o
   estruturalismo e o seu obscuro sucessor, o pós­estruturalismo, que por
   sua vez parece ter­se tornado no positivamente opaco pós­modernismo.
   
   O estruturalismo começou originalmente com Saussure como um método em
   linguística, tendo­se espalhado para a antropologia com Lévi­Strauss,
   e desde então nunca mais parou, pelo menos em França e nos
   departamentos de literatura inglesa das universidades americanas.
   Quase ninguém admitirá hoje em dia ser um estruturalista e em qualquer
   caso é muito difícil defini­los com precisão. No entanto, é importante
   ter ideias firmes acerca deles. São quase completamente ignorados nos
   departamentos de filosofia britânicos, o que demonstra as preocupações
   rigorosamente analíticas da filosofia britânica ou a sua
   extraordinária insularidade depende do lado em que o leitor estiver.
   Certifique­se de que está de um lado qualquer, mas de um apenas. Uma
   característica do estruturalismo e do pós­estruturalismo é a sua
   desconfiança em relação às disciplinas académicas, e a sua gíria
   impenetrável.
   
   Entre os seus expoentes mais importantes incluem­se Roland Barthes (no
   campo da crítica literária e das suas ramificações sociais), Michel
   Foucault (história, sociologia e, por fim, sexo) e Jacques Derrida
   (linguagem, crítica literária, retórica). Este último é em muitos
   aspectos o mais interessante, apesar de ser também o mais
   irritantemente obscuro. As opiniões variam imenso quanto ao seu
   estatuto como pensador: génio ou charlatão, depende do gosto.
   Aborreceu em especial os filósofos analíticos (quer dizer, os
   anglo­saxónicos), pelo menos os que se deram ao trabalho de o ler, por
   tentar mostrar que por debaixo da superfície cuidadosamente cultivada
   de rigor, lógica, análise e investigação desapaixonada, a filosofia
   analítica é uma actividade altamente tendenciosa, retórica e
   subjectiva.
   
   Ele fez isto empregando um método conhecido como desconstrucionismo,
   que se tornou entretanto numa imensa indústria americana. Consiste
   essencialmente em mostrar que qualquer obra literária gera
   necessariamente dentro de si mesma contradições fatais, minando assim
   o argumento que avança ostensivamente.
   
   Note­se que de facto o desconstrucionismo se desconstrói a si mesmo
   (um pouco como o Tractatus de Wittgenstein), um facto que não parece
   preocupar os próprios desconstrucionistas (para grande irritação dos
   filósofos analíticos: esta pode ser uma técnica que valha a pena
   imitar).
   
   A grande vantagem do pós­modernismo é que ninguém, incluindo os seus
   expoentes, faz ideia do que seja. Dizer de uma coisa (ou, na verdade,
   seja do que for) que é «pós­moderno» é um golpe útil muito usado pelos
   seus defensores principais, incluindo Deleuze e Baudrillard.
   
   As melhores estratégias a adoptar com a filosofia continental em geral
   são as seguintes:
   
     a) Afirmar que não faz, literalmente, sentido.
     b) Dizer, causticamente, que seja ela o que for, não é filosofia (a
     estratégia analítica);
     c) Comentar cuidadosamente que não deve ser afastada
     irreflectidamente. (Esta técnica funciona melhor quando alguém está
     a defender uma das duas outras ideias.)
     
   O Que a Filosofia não é
   
   Uma concepção errada, mas comum, vê a filosofia como qualquer coisa
   que na verdade é mais ou menos como a religião. Uma boa estratégia a
   adoptar em relação a isto é observar que a filosofia trata de
   questionar e fazer desmoronar os dogmas, ao passo que a religião trata
   unicamente da sua aceitação e defesa.
   
   O leitor irá igualmente encontrar pessoas (se não tiver cuidado) que
   afirmam estar interessadas numa coisa chamada «Filosofia Oriental» ou
   «Misticismo Oriental». Só há uma coisa a fazer quando confrontado com
   este tipo de pessoa: faça notar firmemente que, seja a Filosofia
   Oriental ou o Misticismo Oriental o que forem, não são filosofia. Seja
   firme em relação a isto. Não se trata de subestimar os praticantes
   desta arte arcaica: algumas pessoas dão­se bastante bem e o misticismo
   pode levar­nos longe.
   
   Nota: Como Ser um Místico
   
   1. Invente alguns paradoxos sem sentido (tais como «a única luz
   verdadeira encontra­se nas trevas», ou «cada passo em frente é um
   passo atrás»).
   
   2. Use com um ar misterioso provérbios sem qualquer significado (tais
   como «em casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão» ou
   «quanto maior é a altura, maior é a queda»).
   
   3. Professe uma crença em pelo menos um absurdo metafísico palpável,
   tal como na afirmação que Tudo é o Uno Único ou que a Realidade Comum
   é meramente uma Ilusão Básica em Comparação com a Vera Luz da
   Divindade. Não se esqueça de Falar com Letras Maiúsculas.
   
   4. Dê a entender de maneira obscura que a Via para a Iluminação,
   apesar de Longa e Árdua, será no Fim Cumprida; e sugira que um bom
   método para o conseguir é entrar numa Relação Física de Comunhão
   consigo mesmo.
   
   5. Adopte permanentemente um Sorriso Benigno, que para todos os
   efeitos práticos não se consiga distinguir do Esgar Inane.
   
   GLOSSÁRIO
   
   Não se esqueça da regra de ouro do especialista instantâneo: as coisas
   soam sempre melhor em línguas que as pessoas não sabem. Por qualquer
   razão, isto é especialmente verdade do alemão. Assim:
   
   Zeitgeist O Espírito do Tempo, a perspectiva prevalecente da
   humanidade num certo tempo histórico (se é que há alguma).
   
   Weltanschauung (esta é mesmo boa) A Visão do Mundo; a Mundividência.
   Experimente em comentários como «isso é o tipo de coisa que obriga uma
   pessoa a mudar de Weltanschauung».
   
   Erkenntnis Conhecimento; é também o nome da revista fundada pelos
   Positivistas Lógicos vienenses (pessoas como Otto Neurath, Carl Hempel
   e Rudolph Carnap), que eram conhecidos por:
   
   Der Wiener Kreis O círculo de Viena.
   
   Sinn und Bedeutung Sentido e Referência: uma distinção entre dois
   tipos de significação devida a Frege e uma das pedras de toque da
   lógica filosófica moderna.
   
   Gesamtheit Totalidade: muito útil no dictum de Wittgenstein: «Die Welt
   ist die Gesamtheit der Tatsachen, nicht der Dinge» (o mundo é a
   totalidade dos factos, e não das coisas). Não confundir com
   «Gesundheit» («Santinho!»).
   
   Mas o especialista instantâneo não consegue safar­se só com o alemão.
   Tem de ter alguma ideia (ainda que ténue) do vocabulário técnico
   português.
   
   Lógica Uma palavra muito útil. Pode designar tanto um sistema formal
   de raciocínio (como a silogística aristotélica), como pode ser usada
   de maneira mais vaga para indicar a força argumentativa de um
   fragmento de raciocínio. «Qual é a lógica desse argumento?» é uma
   pergunta útil para se fazer, especialmente se está a precisar de algum
   tempo para escapar de uma situação delicada.
   
   Um Argumento, que na linguagem filosófica é a exposição racional de um
   ponto de vista e não, como por vezes se pensa, uma maneira de enganar
   retoricamente a outra pessoa (apesar de ser surpreendente como uma
   coisa degenera tantas vezes na outra), pode ser válido ou inválido,
   relevante ou não. Um argumento é válido se consiste em premissas
   ligadas de tal forma que, se forem verdadeiras, então a conclusão que
   se tira delas é verdadeira. É relevante só se todas as premissas forem
   verdadeiras e for também válido (assegurando assim a verdade da
   conclusão).
   
   A Consistência é uma excelente arma no arsenal do especialista
   instantâneo. Duas ou mais proposições são inconsistentes se é
   impossível que todas sejam verdadeiras ao mesmo tempo. Nunca é de mais
   apontar as inconsistências das outras pessoas. Mas evite que lhe façam
   o mesmo.
   
   As Proposições são unicamente frases que são verdadeiras ou falsas,
   como «O presidente Clinton é um esquilo»; assim, segundo esta
   definição, «Que dizes se formos para minha casa ver a minha colecção
   de queijos antigos?», não é, estranhamente, uma proposição, apesar de
   ser uma proposta com algum futuro. As proposições atómicas são
   proposições básicas que afirmam algo acerca de uma coisa qualquer,
   tendo por isso sido vistas pelo Primeiro Wittgenstein (mas não pelo
   Segundo Wittgenstein, é claro) como as partes fundamentais da
   linguagem.
   
   Derivabilidade A relação entre as premissas de um argumento relevante
   ou válido e a sua conclusão: se x deriva y, então y segue­se de x
   (impressiona bastante mais falar de derivabilidade do que afirmar que
   uma coisa se segue da outra).
   
   Condicionais Proposições da forma «se...então...»; são as peças
   básicas para a construção de argumentos lógicos.
   
   Contrafactuais Um tipo de condicional na qual o primeiro bocadinho (a
   antecedente, «se...») é falso, tal como: «se os porcos tivessem asas,
   os carros da polícia seriam obsoletos». São interessantes para os
   filósofos porque é muito difícil analisar as suas condições de
   verdade; e dão muito jeito ao especialista instantâneo em comentários
   como «Não sei muito bem como interpretar essa contrafactual». São por
   vezes conhecidos como «condicionais subjunctivos», geralmente por
   pessoas que querem fazer notar que sabem latim.
   
   Condições de Verdade As condições debaixo das quais uma coisa é
   verdade; tendo isto em consideração, faz­se um espalhafato enorme com
   esta coisa.
   
   Trivialidade Ao contrário do que poderia talvez esperar­se, não é uma
   característica geral de toda a actividade filosófica, mas antes um
   conceito lógico. Uma coisa é trivialmente verdadeira se a sua verdade
   se segue sem qualquer inferência lógica especial de qualquer outra
   coisa: assim, se ambas as frases, «p» e «q» são verdadeiras, «p» é
   trivialmente verdadeira. É surpreendente como se conseguem irritar
   pessoas bastante fleumáticas com comentários como «Isso é verdade;
   mas, é claro, é apenas uma verdade trivial».
   
   Racional (1) com razões; (2) (Matemática) um número que pode ser
   expresso como uma função de dois outros; (3) tudo o que nós mesmos
   dizemos.
   
   Irracional (1) sem razões; (2) (Matemática) um número que não pode ser
   expresso como uma função de dois outros; (3) tudo o que os outros
   dizem.
   
   Analítico e Sintético Uma distinção útil de Kant entre dois tipos de
   verdade: as verdades analíticas são as que são verdadeiras unicamente
   em virtude do significado das palavras nelas contidas,
   independentemente do estado do mundo (como «Nenhum solteiro é
   casado»); as verdades sintéticas, por outro lado (como «nenhum
   bacalhau é cantor de ópera»), são verdadeiras ou falsas em função de
   circunstâncias empíricas (poderiam existir bacalhaus que cantassem no
   Coliseu). Uma das grandes tragédias da vida é o facto de as verdades
   analíticas, apesar de certas e indubitáveis, serem de pouquíssima
   utilidade, ao passo que as verdades sintéticas, apesar de muito úteis,
   não serem de forma alguma certas e indubitáveis. Kant, na verdade,
   discordava disto, pensando que poderiam existir verdades sintéticas a
   priori (ver a seguir), tais como as verdades da geometria. Mas
   infelizmente estava enganado.
   
   A priori e a posteriori Um tipo de distinção semelhante. As verdades a
   priori podem ser conhecidas independentemente de quaisquer factos
   empíricos; as verdades a posteriori não.
   
   Necessidade e Contingência As verdades necessárias são as que não
   poderiam não ser verdadeiras; as contingentes são as que poderiam.
   Assim, a frase «Jorge Sampaio é Presidente da República» é
   contingentemente verdadeira, ao passo que a frase «Jorge Sampaio é
   Jorge Sampaio» é necessariamente verdadeira (o que mostra que podem
   existir verdades necessárias infelizes). Outra maneira de pôr a coisa,
   muito usada pelos americanos, é dizer que as verdades necessárias são
   verdadeiras em todos os mundos possíveis.
   
   Mundos Possíveis A extravagante criação de filósofos fantasiosos como
   Leibniz: um mundo possível é qualquer estado de coisas que poderia
   verificar­se (mas que em geral, infelizmente, não se verifica). Os
   realistas (ver a seguir) em relação aos mundos possíveis, como David
   Lewis, sustentam que existem realmente infinitos mundos possíveis, não
   sendo menos reais (apesar de serem, confusamente, menos actuais) do
   que este. Isto tem a consequência reconfortante de fazer com que
   existam mundos perfeitamente reais (apesar de, infelizmente, não serem
   actuais) nos quais somos devastadoramente bem­parecidos, ricos e por
   aí fora.
   
   O Idealismo, enquanto conceito filosófico, não quer dizer uma
   preocupação com o bem­estar das focas bebés (nem sequer com o
   bem­estar de actrizes francesas eminentes que se preocupam com o
   bem­estar das focas bebés), nem uma fé na Irmandade Humana, mas antes
   a noção introduzida por Berkeley segundo a qual os objectos exteriores
   não existem realmente senão enquanto objectos de percepção. Na
   verdade, os idealistas têm muita dificuldade em explicar exactamente o
   que querem dizer com isto, pois têm a tendência de sustentar que isto
   não quer dizer que os objectos são ilusórios; mas parece também que a
   tese que sustentam é ontológica e não epistemológica. O idealismo
   contrasta com o
   
   Realismo, que é a crença que sustenta que os objectos exteriores estão
   realmente lá fora e não apenas quando alguém se dá conta deles. O
   realismo, contudo, é um termo múltiplo e ambíguo em filosofia. Na
   filosofia da ciência, é a ideia segundo a qual as leis científicas se
   referem a relações reais existentes no mundo físico, o que contrasta
   com o instrumentalismo: a ideia segundo a qual as leis científicas são
   meramente modelos de previsão. Putnam inventou recentemente uma coisa
   a que chamou «realismo interno», no qual não existe um «mundo já
   feito» (uma expressão útil), mas em que, no entanto, as coisas não são
   por isso irremediavelmente subjectivas (o que é exactamente o mesmo do
   que comer o bolo e conseguir ficar com ele ao mesmo tempo). Putnam
   sustenta que isto é de inspiração kantiana e talvez seja por essa
   razão que é tão difícil (se não impossível) de perceber; além disso (e
   por isso mesmo) é ideal para o especialista instantâneo.
   
   Nominalismo a posição segundo a qual os universais (por vezes
   conhecidos por categoriais: termos gerais como «gato» e «mesa»), não
   existem independentemente da colecção das suas instâncias, isto é, não
   existem independentemente dos gatos e das mesas que fazem parte da
   mobília do mundo. Neste sentido, os realistas acreditam que existem
   entidades universais individuais que explicam o facto de sermos
   capazes de ordenar o mundo em grupos coerentes de coisas. Platão era
   um realista neste sentido (e também em alguns outros).
   
   Semântica Uma distinção útil para ter em mente, especialmente quando
   falamos com apanhados por computadores, é a que existe entre a
   semântica e a sintaxe. Fornece­se uma semântica para um argumento (ou
   seja para o que for) quando se fornece um método de traduzir os
   símbolos que contém para qualquer coisa que tenha significado: dar uma
   semântica para uma linguagem pressupõe, ou envolve, uma teoria do
   significado. Contrasta com a sintaxe, que é apenas a gramática formal
   do sistema, que determina unicamente se os símbolos estão
   correctamente juntos ou não. Pode assim seguir­se a sintaxe de um
   sistema sem ter a mínima ideia da sua semântica. Na verdade, isto é em
   grande parte o que faz o especialista instantâneo em filosofia: ele
   sabe, de preferência, como manipular os termos de uma linguagem, como
   o Segundo (mas não, é claro, o Primeiro) Wittgenstein diria; mas não
   faz a mínima ideia do que quer afinal dizer tudo aquilo.
   
   O Especialista Instantâneo em Filosofia, de Jim Hankinson
   Gradiva, 1996, 78 pp.
   Trad. e adaptação de Desidério Murcho
                                      
   Divulgar a filosofia, estimular o pensamento
   Desidério Murcho
   
   Como é natural, as minhas opiniões sobre o ensino e a divulgação da
   filosofia devem ser criticamente avaliadas por si e deve ter em mente
   que diferentes pessoas têm diferentes ideias sobre a natureza da
   filosofia e consequentemente sobre o seu ensino e divulgação. O leitor
   deve procurar expor­se às várias opiniões para que possa formar a sua
   própria opinião informada e crítica. As minhas palavras procuram
   ajudá­lo a atingir esse objectivo. Mesmo que discorde das minhas
   opiniões, ficarei amplamente satisfeito; o importante é permitir que
   forme a sua opinião, com base em dados abundantes e fidedignos.
   
   Defendo que a filosofia é um conjunto de problemas, teorias e
   argumentos. O leitor pensará que esta definição é tão lata que será
   pacífica, mas engana­se: muitas pessoas discordam até desta
   caracterização, pelo menos na sua prática, ainda que a aceitem em
   teoria. No entanto, não vou defender aqui esta ideia; quero apenas
   tornar explícito que esta é a caracterização que determina
   praticamente todas as minhas opiniões seguintes.
   
   Mas que acontecerá, perguntará o leitor, com aqueles que discordam
   desde logo desta caracterização? Bom, é claro que quem discorda desta
   caracterização acha que o que direi a seguir nada tem a ver com a
   filosofia; aceito isso, até porque também eu acho em geral que o que
   essas pessoas fazem nada tem a ver com a filosofia. Mas o importante é
   notar que, ainda que aquilo a que chamo filosofia seja completamente
   diferente daquilo a que outras pessoas chamam filosofia, temos com
   certeza ambos o direito de estudar, ensinar e divulgar a nossa prática
   intelectual. Isto é sem dúvida pacífico.
   
   Como o leitor já reparou, a minha caracterização não serve para
   distinguir a filosofia de outras actividades cognitivas, como as
   ciências: também elas são um conjunto de problemas, teorias e
   argumentos. Mas a filosofia é um conjunto de problemas, teorias e
   argumentos sobre os nossos conceitos mais básicos, como a realidade, o
   conhecimento, o significado, o bem, a mente, a beleza, o número, a
   inferência, e muitos outros. Os filósofos pensam acerca dos problemas
   associados a estes conceitos e propõem teorias, sustentadas por
   argumentos. Divulgar e ensinar a filosofia é introduzir esses
   problemas de uma maneira elementar, assim como as teorias que procuram
   resolvê­los e os argumentos que as sustentam, apesar de estes não
   serem em geral elementares mas isso não é uma dificuldade, uma vez que
   também a física não é elementar, e no entanto não só é ensinada desde
   cedo aos jovens, como é divulgada ao público leigo.
   
   A divulgação e o ensino da filosofia em Portugal tem sido dificultada
   por dois obstáculos, resultando ambos de uma confusão conceptual
   infeliz. Em primeiro lugar, confundem­se os textos altamente
   especializados da filosofia com os textos de divulgação e introdução.
   Em segundo lugar, confunde­se a filosofia com a sua história.
   
   A felicidade de O Mundo de Sofia foi ter percebido que não se pode
   introduzir e divulgar a filosofia através dos textos especializados
   dos próprios filósofos: seria o mesmo do que tentar ensinar geometria
   através dos textos de Euclides, música através das partituras de Bach,
   ou física através dos textos de Einstein: um desastre cultural,
   pedagógico e científico (ou artístico). Os filósofos, assim como os
   músicos ou os cientistas, produzem obras cujo destinatário são os
   outros profissionais e não o público leigo.
   
   Significa isto que não devemos «ir ao texto», para usar a infeliz
   expressão da gíria universitária? Não. Significa sobretudo que não
   podemos limitarmo­nos a ir aos textos, sem que antes tenhamos
   preparação para tal a consequência de o fazer é a repetição acrítica
   das frases dos filósofos, sem que no entanto se compreenda o seu
   significado, para já não falar na capacidade para ter uma opinião
   crítica sobre o que dizem os filósofos. Não podemos portanto começar
   pelos textos dos filósofos, tal como não começamos com as partituras
   de Bach. Mas nenhum filósofo terá uma boa formação se não estudar
   directamente os textos dos grandes filósofos, do presente ou do
   passado, tal como nenhum músico será bem formado se não tiver estudado
   algumas partituras de alguns grandes músicos. O mesmo acontece aliás
   com os cientistas, que depois da formação universitária primária terão
   de aprender a ler os ensaios dos grandes cientistas; a única diferença
   é, neste caso, de carácter histórico: nenhum astrónomo tem de ler uma
   só linha de Copérnico, porque a sua teoria está ultrapassada mas Bach
   e Descartes têm uma importância maior do que a meramente histórica.
   
   O Mundo de Sofia conseguiu ultrapassar o primeiro obstáculo, e o seu
   êxito deve­se com certeza também a este factor, entre outros. Está
   claro que não se segue que o livro de Gaarder seja bom na verdade, é
   muito mau, mas porque falhou num outro aspecto fundamental, que
   corresponde, precisamente, ao segundo obstáculo a que me referi acima:
   a confusão da história da filosofia com a própria filosofia. (Na
   verdade, Gaarder confundiu a filosofia com outra coisa ainda mais
   distante da filosofia: a história das ideias). As relações entre a
   filosofia e a sua história são diferentes das relações que têm a
   física ou a biologia com as suas histórias respectivas, porque falta à
   filosofia o progresso que as outras conhecem, pelo menos no sentido em
   que as outras o conhecem: há hoje na física uma teoria consensual
   sobre a gravitação, mas não há uma teoria filosófica consensual sobre
   a verdade, a beleza, o número, a realidade, o bem, ou o conhecimento;
   no entanto, há um certo progresso em filosofia, no sentido em que hoje
   percebemos melhor as subtilezas e as dificuldades desses problemas do
   que Platão ou Aristóteles; e também sabemos hoje que algumas teorias
   são falsas, e que alguns argumentos são inválidos. Por tudo isto,
   algumas teorias e argumentos de Platão, ou de qualquer outro filósofo,
   têm hoje um interesse mais do que meramente histórico: têm um
   interesse, precisamente, filosófico são, plausivelmente, teorias
   verdadeiras ou argumentos relevantes. A confusão entre filosofia e
   história da filosofia consiste em pensar que tudo o que um filósofo
   disse, só porque o disse e era filósofo, e teve repercussão histórica,
   tem interesse filosófico. O efeito perverso deste erro é transformar a
   filosofia numa espécie de museu filosoficamente passivo em que se
   encontram cronologicamente ordenadas todas as ideias que os filósofos
   produziram. Mas a filosofia, tal como a entendo (e tal como Sócrates,
   Platão, Aristóteles, Descartes, Hume ou Kant a entendiam), não é isto!
   A filosofia é a discussão crítica dos seus problemas, teorias e
   argumentos. E não podemos confundir a discussão filosófica e crítica,
   com a discussão filológica, apesar de esta poder ser igualmente
   crítica, mas num sentido completamente diferente.
   
   Está claro que para poder discutir criticamente os problemas, as
   teorias e os argumentos da filosofia temos de ter instrumentos; temos
   de saber como discuti­los e como avaliá­los. Nenhuma instrução ou
   divulgação da filosofia terá sucesso se não atender a esta exigência
   formativa básica; não passará de uma caricatura de mau gosto da
   verdadeira filosofia, tal como o canto coral era, em tempos idos, uma
   caricatura de mau gosto da música, a que os alunos do liceu se
   submetiam, impotentes. Que instrumentos são estes? Sobretudo, os que
   permitem usar as capacidades críticas, ou as faculdades cognitivas
   superiores que podem ser treinadas, como se treina um músculo. Por
   exemplo, um estudante de filosofia com o mínimo de treino tem de ser
   capaz de detectar o erro crucial e básico patente neste raciocínio
   infelizmente tão comum: «todas as coisas têm uma causa, logo tem de
   haver uma causa para todas as coisas»; e tem de ser capaz de saber a
   diferença entre os argumentos que, por ignorância do auditório, podem
   ser convincentes, dos argumentos que são realmente bons. Em suma, os
   instrumentos básicos que devem ser colocados à disposição dos
   estudantes de filosofia são os instrumentos críticos que lhe
   permitirão formar a sua própria opinião: autênticos instrumentos de
   libertação cultural. Rigor, cuidado, simplicidade e humildade são os
   valores que resultam de uma aprendizagem deste tipo, porque o
   estudante aprende que o erro nos espreita em cada esquina, que os
   problemas da filosofia são intrincados, que as soluções são difíceis,
   e que o disparate bacoco e injustificado nunca produziu senão erro e
   ilusão.
   
   As capacidades críticas desenvolvem­se através do seu próprio uso. E
   definham quando as substituímos pela citação acrítica, ainda que
   erudita, das frases dos filósofos. A correcta formulação dos
   problemas, teorias e argumentos tradicionais da filosofia são
   excelentes exercícios para o desenvolvimento das capacidades críticas;
   mas a relação entre o que um filósofo disse e o seu contexto histórico
   não pode senão ser uma informação adicional não pode confundir­se com
   o verdadeiro objectivo do ensino da filosofia: ensinar a pensar
   sofisticadamente, e não ensinar a citar sofisticadamente.
   
   Que é razoável exigir da divulgação e do ensino da filosofia? Tanto
   num caso como noutro, uma introdução aos problemas, argumentos e
   teorias da filosofia, que num caso será profissionalmente aprofundada,
   e que no outro constituirá parte da formação cultural básica de um
   cidadão civilizado. É exactamente o mesmo que se espera da divulgação
   da física, ou da música e repare­se que ninguém confunde uma
   introdução à música com uma introdução à história da música, tal como
   também ninguém procura introduzir a música através das partituras dos
   grandes músicos. Do filósofo original, assim como do músico original,
   espera­se uma contribuição importante: a formulação de um problema, de
   uma teoria, ou de um argumento novos, ou uma nova formulação de um
   problema, de uma teoria, ou de um argumento antigos. Esta actividade é
   uma das mais nobres, tanto no caso do músico, como no caso do filósofo
   ou do físico. Mas esta actividade não pode existir sem a divulgação e
   a introdução, desde os níveis mais elementares, até aos níveis mais
   avançados: é para isso que existem os professores e os divulgadores. E
   é por isso que essa actividade é também tão nobre: é a condição de
   possibilidade, e deve ser o primeiro estímulo, para que existam
   filósofos, músicos ou cientistas inovadores a verdadeira medida do
   valor universal de uma cultura.
   
   Julgo que não é necessário justificar o papel que a filosofia tem na
   cultura em geral, porque julgo que não é necessário justificar o papel
   que o pensamento crítico tem numa cultura livre e civilizada. Só por
   si, isso justificaria o esforço de divulgar e de ensinar a filosofia.
   Mas num momento em que o mundo parece cada vez mais pertencer à
   toda­poderosa indústria do entretenimento que estimula eficientemente
   os jovens a praticar o surf e o body­board, a internet e os jogos de
   computador, a vida nocturna e o rock , estimular os jovens a fazer
   coisas simples como ler um livro, pensar com rigor e cuidado, ou
   conduzir uma conversa inteligente, torna­se um desígnio
   civilizacional. Mas para quem não gosta de desígnios civilizacionais,
   ou para quem achar, como eu, que, em qualquer caso, esse desígnio já
   está perdido, resta ainda o dever de fazer saber a algumas pessoas que
   no mundo não há só surfistas, políticos, diletantes culturais pastosos
   e futebolistas. Há também pessoas simples que fazem coisas simples:
   lêem livros, pensam disciplinada e detalhadamente sobre coisas, e têm
   gosto em conhecer o mundo.
   
   Desidério Murcho
   Sociedade Portuguesa de Filosofia
   Av. da República, 37, piso 4
   1050 Lisboa, Portugal
   
   (Texto publicado, com algumas alterações, na revista Barata, número 39
   (1996)).
   O Erro de Aristóteles
   Desidério Murcho

   Todos fomos mais ou menos educados debaixo do preconceito de que a
   lógica clássica é uma extensão da lógica aristotélica. Um sistema de
   lógica L1 é uma extensão de outro sistema de lógica L0 se e somente se
   todos os teoremas de L0 são teoremas de L1, ou se, do ponto de vista
   semântico, todas as inferências válidas de L0 são também inferências
   válidas de L1.
   
   Sabíamos que existiam inúmeras inferências dedutivas válidas, básicas
   e complexas, incapazes de serem reconhecidas como tal na lógica
   aristotélica, uma das mais simples das quais é
   
   p & q, logo p
   
   No entanto, a verdade é que na lógica aristotélica há dois tipos de
   inferências válidas que não são válidas na lógica clássica:
   
   (1) Todos os A são B; Logo, alguns A são B.
   
   e
   
   (2) Nenhum A é B; Logo, algum A não é B.
   
   Logo, a lógica moderna não é uma extensão da lógica aristotélica,
   apesar de ser verdade que muitas inferências válidas nesta última são
   também válidas na primeira.
   
   A demonstração de que as inferências (1) e (2) não são válidas na
   lógica clássica é a seguinte: seja D o domínio de uma interpretação I
   no qual existem dois objectos apenas, o1 e o2. o1 exemplifica o
   predicado B e o2 exemplifica o predicado C.
   
   A premissa da inferência (1) é (vaziamente) verdadeira em I: [Ao1 ®
   Bo1] & [Ao2 ® Bo2] é uma frase verdadeira porque a antecedente de cada
   um dos conjuntos, Ao1 e Ao2, é falsa. E sabe­se que, numa condicional
   da lógica clássica, basta que a antecedente seja falsa para que toda a
   condicional seja verdadeira.
   
   Mas a conclusão de (1) é falsa em I: [Ao1 & Bo1] ou [Ao2 & Bo2] é uma
   frase falsa porque ambos os disjuntos são falsos nem o objecto 1 nem o
   objecto 2 exemplificam simultaneamente os predicados A e B.
   
   Logo, a inferência (1) não é válida na lógica clássica.
   
   A premissa da inferência (2) é (vaziamente) verdadeira na mesma
   interpretação I: [Ao1 ® ¬Bo1] & [Ao2 ® ¬Bo2] é uma frase verdadeira
   porque a antecedente de cada um dos conjuntos, Ao1 e Ao2, é falsa. E
   sabe­se que, numa condicional da lógica clássica, basta que a
   antecedente seja falsa para que toda a condicional seja verdadeira.
   
   Mas a conclusão de (2) é falsa em I: [Ao1 & ¬Bo1] ou [Ao2 & ¬Bo2] é
   uma frase falsa porque ambos os disjuntos são falsos nem o objecto 1
   nem o objecto 2 estão na situação de exemplificar o predicado A e de
   não exemplificar o B.
   
   Logo, a inferência (2) não é válida na lógica clássica.
   
   Qual foi então o erro de Aristóteles? Foi ter­se pura e simplesmente
   esquecido da existência de predicados com extensão nula, como o
   predicado "cavalo alado". A lógica aristotélica só é válida se
   excluirmos as interpretações em que os predicados têm extensão nula, o
   que não parece filosoficamente razoável: uma lógica comprometida com a
   extensão dos predicados é uma má lógica, pois não funciona nos casos
   em que não se sabe se um certo predicado tem ou não extensão. Por
   exemplo, os astrónomos podem não saber exactamente se o predicado
   introduzido pela descrição "o planeta desconhecido que perturba a
   órbita de mercúrio" é ou não vazio; mas não querem com certeza
   entregar as suas inferências a uma lógica que, caso se venha a
   descobrir que tal predicado é de extensão nula, os conduz a conclusões
   falsas, mesmo quando as suas premissas são verdadeiras.
   
   Há duas formas de contornar esta deficiência estrutural da lógica
   aristotélica. Uma delas é o chamado princípio da implicação
   existencial; a outra é o recurso ao conceito de entimema.
   
   Comecemos pela última. A ideia é a de que sempre que estamos perante
   uma inferência em que uma das premissas é uma proposição universal, há
   uma premissa adicional "escondida" que afirma que o predicado que
   ocorre como termo sujeito dessa proposição é exemplificado. Em lógica
   clássica isso equivale a introduzir a premissa $xAx.
   
   Esta solução enfrenta dois problemas. Por um lado, faz apelo a um
   conceito psicológico ou conversacional que não pode ter lugar numa
   lógica formal. Do ponto de vista formal só há dois tipos de
   inferências: as correctas e as incorrectas; não há lugar a inferências
   que, para serem correctas, obrigam à introdução de premissas
   adicionais que originalmente não eram explícitas. Este recurso ao
   conceito de entimema parece colocar­nos numa posição escorregadia:
   como podemos ter a certeza, perante um qualquer argumento incorrecto,
   de que não se trata afinal de um argumento correcto a que falta uma
   das premissas?
   
   Por outro lado, a suposta premissa adicional é de facto inexprimível
   na lógica original de Aristóteles, que como se sabe é uma lógica de
   dois termos, S e P. Todas as proposições bem formadas da lógica de
   Aristóteles são da forma "A __ B". A lógica aristotélica não tem meios
   formais para exprimir a frase que corresponde à fórmula $xAx, existem
   objectos A. Dos objectos A, a lógica de Aristóteles só pode afirmar
   que são todos B, ou que nenhum é B, ou que alguns são B, ou que alguns
   não são B.
   
   Vejamos agora a solução da implicação existencial. A ideia é defender
   que as proposições universais, "todo o A é B" e "todo o A é não B"
   implicam a existência de objectos A. Na verdade é uma posição bizarra,
   que nos convida a aceitar o que sabemos ser falso. Pode ser que,
   empiricamente, os falantes de uma língua como o português ou o grego
   não afirmem como verdadeira uma proposição universal quando o termo
   sujeito tem extensão nula. Mas isto é tão irrelevante como é
   irrelevante para a decisão quanto à correcção ou incorrecção da
   inferência "todas as coisas têm uma causa, logo há uma causa para
   todas as coisas" o facto de empiricamente todas as pessoas sem treino
   lógico estarem dispostas a admitir a sua correcção.
   
   Mas admitamos que a ideia da implicação existencial é uma boa solução.
   Então, (i) ou não podemos usar frases universais quando o termo
   sujeito tem extensão nula, ou (ii) quando as usamos nessas
   circunstâncias tais frases são falsas, ou (iii) quando as usamos
   nessas circunstâncias tais frases não têm valor de verdade.
   
   A hipótese (i) é claramente má, uma vez que, dada a nossa ignorância
   sobre muitos factos empíricos, usamos muitas vezes proposições
   universais cujo termo sujeito descobrimos mais tarde não ter extensão.
   
   A hipótese (ii) é incoerente, uma vez que se uma frase como "Todo o A
   é B" é falsa quando A tem extensão nula, a sua negação tem de ser
   verdadeira. Mas a negação de "todo o A é B" é "Algum A não é B" e esta
   última não pode ser verdadeira, uma vez que afirma que existe um
   objecto A que tem uma certa propriedade, quando na verdade não há
   qualquer objecto A.
   
   A hipótese (iii) é temerária, mas é a única praticável. Corresponde,
   grosso modo, à atitude anti­realista típica do intuicionismo à lá
   Dummett, defendendo que há buracos de valores de verdade, frases
   aparentemente declarativas e assertivas que no entanto não têm valor
   de verdade. A lógica intuicionista é uma alternativa séria à lógica
   clássica, mas a sua aceitação permanece restrita, ao contrário do que
   acontece com a clássica.
   
   Antes de terminar, é bom que se esclareça que a expressão "implicação
   existencial" é por vezes usada num sentido diferente do que foi aqui
   usado. Tal como foi aqui usada, a expressão "implicação existencial"
   refere­se a uma espécie de implicatura conversacional segundo a qual
   quando afirmamos uma proposição universal estamos comprometidos com a
   existência de objectos que exemplifiquem o predicado que ocorre na
   antecedente da condicional (ou o predicado que ocorre na posição de
   sujeito, do ponto de vista aristotélico).
   
   Mas a expressão "implicação existencial" usa­se também, por vezes,
   para referir o princípio da lógica clássica de primeira ordem segundo
   o qual a inferência seguinte é válida:
   
                                  (*) "xAx
                                    $xAx
                                      
   Todavia, esta inferência válida da lógica clássica não deve
   confundir­se com a inferência aristotélica:
   
                                "x(Ax ® Bx)
                                $x(Ax & Bx)
                                      
   Repare­se que (*) não permite efectuar a inferência aristotélica.
   Mesmo que entendamos (*) como um princípio metalinguístico aplicável a
   fórmulas complexas, o que se obtém com a sua aplicação é a expressão
   $x(Ax ® Bx). Mas, como é óbvio, nenhuma condicional pode implicar uma
   conjunção! Na interpretação I acima referida, a fórmula $x(Ax ® Bx) é
   verdadeira, mas a fórmula $x(Ax & Bx) continua a ser falsa em I: da
   primeira não se pode, portanto, derivar a segunda.
   
   Portanto, neste sentido na expressão, a implicação existencial não
   permite sancionar a inferência aristotélica.
   
   Em conclusão, a lógica brilhante de Aristóteles não é uma parte
   própria da lógica clássica de Frege e Russell porque admite
   inferências inválidas, e não dá conta, por outro lado, de algumas
   inferências válidas. A evolução lógica que se observa entre a lógica
   aristotélica e a lógica clássica é assim em tudo idêntica à evolução
   que se observa nas ciências naturais. É por isso defensável que é tão
   irrelevante estudar hoje em dia a lógica de Aristóteles como é
   irrelevante estudar a teoria de Ptolemeu em astronomia, uma vez que
   quer a teoria de Ptolemeu quer a teoria de Aristóteles foram
   ultrapassadas no sentido que em ciência se dá geralmente a esta
   expressão.
   
   Ainda que não se concorde com esta ideia, há pelo menos uma outra
   razão para não ensinar a lógica de aristóteles, pelo menos no liceu. É
   que, quer como instrumento de análise filosófica, quer como
   instrumento de análise crítica geral do raciocínio, a lógica de
   Aristóteles é praticamente irrelevante, uma vez que os raciocínios dos
   filósofos e os raciocínios que efectuamos no quotidiano só muito
   raramente são formalizáveis na silogística; mas são claramente
   formalizáveis na lógica clássica. No entanto, a nível universitário, o
   estudo da lógica aristotélica, enquanto curiosidade histórica, é sem
   dúvida interessante.
   
   Desidério Murcho
   Sociedade Portuguesa de Filosofia
   Av. da República, 37, piso 4
   1050 Lisboa, Portugal
   Como estudar filosofia
   Desidério Murcho
   
   Eis alguns conselhos sobre o estudo da filosofia. Espero que sejam
   úteis sobretudo para os estudantes, universitários e liceais.
   
   Em primeiro lugar, é preciso perceber que não se pode começar o estudo
   da filosofia lendo os textos dos grandes filósofos, tal como não se
   começa a aprender atletismo competindo na maratona, nem se aprende a
   pintar olhando para os quadros de Magritte. É preciso ler primeiro
   outros livros, que nos introduzem a filosofia. Na secção "Estou em
   Portugal e gosto de filosofia" pode encontrar alguns desses livros
   introdutórios. Infelizmente, a maioria deles não estão traduzidos para
   português.
   
   Na Filosofia Aberta publiquei 3 bons livros de introdução à
   filosofia, cuja leitura é compensadora e que constituirão talvez o
   melhor começo para quem não lê inglês, juntamente com Os Problemas da
   Filosofia, de Bertrand Russell (trad. de António Sérgio, publicado na
   Arménio Amado, só existe em livrarias especializadas). Em português há
   ainda A Cultura da Subtileza, do M. S. Lourenço (Gradiva, 1995), que
   apesar de ser um pouco mais avançado é ainda indicado como leitura
   introdutória (o livro teve origem num programa de rádio da Antena 2
   cujo objectivo era, precisamente, divulgar a filosofia junto do
   público leigo).
   
   Alguns clássicos de filosofia, pela sua clareza, são particularmente
   recomendáveis para os iniciados. Depois de ler os livros de introdução
   acima, aconselho como primeira leitura as Meditações sobre a Filosofia
   Primeira, de Descartes (trad. de Gustavo de Fraga, Livraria Almedina,
   várias ed.). A longa introdução e as muitas notas do tradutor devem
   ser ignoradas nas primeiras leituras (e são sobretudo de carácter
   histórico e não filosófico). O texto de Descartes não exige quaisquer
   conhecimentos de filosofia para que possa ser razoavelmente
   compreendido, não faz 20 citações em cada página a 30 autores
   diferentes, não usa uma terminologia barroca e pasme­se oferece à
   nossa compreensão crítica argumentos e teorias claramente expostos e
   cuidadosamente formulados.
   
   O mesmo acontece com o Tratado do Conhecimento Humano, de Berkeley
   (trad. de Vieira de Almeida, Atlântida, só existe em livrarias
   especializadas) e com alguns diálogos de Platão, como o Êutifron
   (trad. de José Trindade Santos, INCM, várias ed.). Ler Platão é um
   bocadinho confuso porque os diálogos estão cheios de referências
   históricas e culturais que não só não se percebem como são muitas
   vezes completamente irrelevantes para a discussão filosófica em causa.
   Isto faz com que o leitor se possa perder, dispersando a sua atenção
   em aspectos histórico­culturais, muito interessantes em muitos
   aspectos, mas irrelevantes filosoficamente. No entanto, se seguir as
   indicações seguintes, conseguirá talvez concentrar a sua atenção no
   que é realmente importante do ponto de vista filosófico.
   
   Como ler filosofia: os problemas
   
   A literatura filosófica é intrincada e subtil, mesmo quando se trata
   de textos claros e acessíveis, como os que indiquei acima. É por isso
   importante aprender a isolar o que é filosoficamente importante do que
   é apenas acessório.
   
   Quando lemos um texto de filosofia devemos concentrar a nossa atenção
   sobre os seguintes aspectos:
   
     os problemas
   
     as teorias
   
     os argumentos Os bons filósofos costumam começar por enunciar os
   problemas que estão a procurar resolver nas suas obras. É o que faz
   Descartes, que declara logo na primeira meditação que está preocupado
   com o problema do fundamento do conhecimento. Nos diálogos de Platão
   também é costume surgir logo após o preâmbulo dramático o enunciado do
   problema, muitas vezes uma pergunta de Sócrates, como «o que é a
   piedade?»
   
   Mas os detalhes dos problemas filosóficos são subtis e intrincados. É
   fácil de ver que o fundamento do conhecimento é o problema que
   Descartes procura resolver nas Meditações. Mas em que consiste
   exactamente este problema? É aqui que o conceito de «formulação» tem
   de ser introduzido. Quando eu andava no liceu usava­se muitas vezes a
   expressão «explicar pelas suas próprias palavras». Esta é uma boa
   formulação do que é a formulação. A formulação de um problema
   filosófico, por exemplo, do problema filosófico que Descartes procura
   resolver nas Meditações, é enunciar esse problema de forma clara,
   organizada e detalhada claro que a melhor forma de o fazer é no papel,
   mas podemos tentar fazê­lo, de forma mais informal, mesmo quando
   estamos a ler, ou oralmente, nas aulas e com os amigos. Quando
   formulamos um problema filosófico devemos estar preocupados com os
   seguintes aspectos:
   
     Qual é a sua formulação exacta?
   
     Quais são as causas da sua existência?
   
     Quais são as suas consequências? A formulação correcta de um
   problema, de uma teoria ou de um argumento é o indício mais seguro de
   que o autor da formulação compreendeu o que está a dizer. Numa boa
   formulação as relações lógicas têm de se tornar claras. As suas
   subtilezas têm de ser cuidadosamente expostas, as suas obscuridades
   clarificadas, as suas ambiguidades desambiguadas. O inverso disto é a
   paráfrase e as citações superabundantes, óptimas para dar volume e
   evitar trabalho (no meu tempo chamava­se "palha" a isto). Se não
   percebemos muito bem uma certa passagem, o melhor é citá­la: quem nos
   lê ficará com a sensação que é estúpido porque não percebe algo que o
   autor deve ter percebido, caso contrário não teria citado. Esta
   estratégia, claro, é desonesta. É preferível escrever 5 linhas claras
   onde se explica por que razão não se percebeu uma passagem do que
   encher 5 páginas obscuras onde se cita a passagem e mais 30
   comentadores e outras tantas paráfrases, ocultando o facto crucial de
   não ter percebido. Por vezes, a expressão clara de uma incompreensão
   tem valor filosófico porque essa incompreensão pode ela própria ter
   valor filosófico: a passagem em causa pode ser filosófica ou
   logicamente incongruente. Ao fazê­lo, o estudante mostra que leu com
   atenção crítica; ao limitar­se à paráfrase e à citação bacoca o
   estudante mostra que se limitou a prosseguir uma função mecânica e
   acrítica o contrário do espírito crítico da filosofia.
   
   Por causas e consequências não se entende, obviamente, causas e
   consequências extra­filosóficas. Por exemplo, é irrelevante que
   Descartes estivesse preocupado com os fundamentos do conhecimento por
   ter descoberto um dia que não podia ter a certeza se a sua namorada o
   amava de facto, ou por causa de mais uma das muitas guerras absurdas
   que se viviam no seio da Europa. E é irrelevante que o problema do
   conhecimento tenha levado ao suicídio algum estudante mais
   desequilibrado do séc. XVI, ou que tenha provocado a queda de algum
   rei, ou uma qualquer convulsão social, política, económica ou
   cultural. Todos estes aspectos são interessantes, cada um à sua
   maneira; mas não são filosoficamente interessantes. Da mesma forma que
   a tinta que Mozart usou para escrever o Requiem é irrelevante para a
   análise musical do Requiem, também todas as questões políticas,
   económicas, culturais e sociais que rodeiam obviamente todos os
   filósofos são irrelevantes do ponto de vista filosófico. Estas
   questões são interessantes do ponto de vista... bem, político,
   económico, cultural e social mas não filosófico.
   
   As causas e as consequências que nos interessam enquanto estudantes de
   filosofia são, claro, as causas e consequências filosóficas. Por
   exemplo, depois de formularmos de forma correcta o problema do
   conhecimento que Descartes enuncia no início da primeira meditação,
   podemos perguntar: que razões o levam a pensar que o problema do
   fundamento do conhecimento existe realmente? Não será apenas uma
   fantasia? Na verdade, uma das reacções negativas mais comuns em
   relação à filosofia é o menosprezo pelos seus problemas. Mas uma coisa
   é menosprezar sumariamente um problema como irrelevante ou mal
   formulado ou como o resultado de uma confusão conceptual; outra coisa
   e isto é já um trabalho filosófico é elaborar essa reacção e mostrar
   que o problema X que o filósofo Y levanta resulta de um erro
   categorial. Na verdade, grande parte do trabalho dos filósofos
   consiste em tentar mostrar que os outros filósofos cometeram esse tipo
   de erros (é o que acontece, por exemplo, no livro The Concept of Mind,
   onde Ryle procura mostrar que o conceito cartesiano de mente resulta
   de um erro categorial).
   
   Perceber as causas de um problema filosófico é perceber de que depende
   a sua existência. Por exemplo, Wittgenstein procurou mostrar que o
   problema filosófico do solipsismo, levantado por Locke e que é ainda
   uma consequência da atitude de Descartes perante o conhecimento é uma
   consequência de uma concepção errada (no sentido forte de erro:
   logicamente incongruente) da linguagem. Claro que não se espera que um
   estudante de filosofia, ao tentar descobrir as causas dos problemas
   filosóficos que está a ler, tenha a mesma capacidade crítica que os
   filósofos altamente especializados e treinados têm. Mas têm de começar
   a ter alguma dessa capacidade crítica. E a melhor coisa a fazer para
   desenvolver uma capacidade é treiná­la pacientemente a partir de
   exercícios simples.
   
   Quando procuramos as causas de um problema filosófico perguntamo­nos
   como é que as coisas têm de ser para que aquele problema exista e o
   que aconteceria se as coisas fossem ligeiramente diferentes. Não é
   importante, inicialmente, se é para nós claro que as coisas são de
   facto como têm de ser para que se levante tal problema; mas é
   importante perceber claramente que para se levantar tal problema as
   coisas têm de ser desta maneira e daquela. Mas de que coisas se trata?
   Não se trata, com certeza, de dados acerca da iliteracia dos
   portugueses, ou da análise do trabalho dos jornalistas portugueses.
   Trata­se, sim, de certos aspectos da natureza da linguagem, do mundo,
   e dos nossos conceitos acerca destas duas coisas. Por exemplo: que
   conceito de conhecimento e de linguagem tem Descartes para que se
   levante o problema do fundamento do conhecimento?
   
   Tudo quanto disse em relação às causas se aplica às consequências.
   Neste caso, temos de nos perguntar o que somos obrigados a aceitar se
   aceitarmos uma certa formulação de um certo problema. Se aceitarmos,
   como Descartes, que existe um problema com o fundamento do
   conhecimento, o que se segue daí? Poderemos continuar a conceber a
   ciência, por exemplo, como concebíamos antes? Ou não? E a religião? Se
   o conhecimento precisa de fundamentos, que temos de fazer para os
   encontrar? E qual será o método para o fazer?
   
   Como ler filosofia: as teorias
   
   Como é óbvio, os filósofos não se limitam a enunciar problemas
   intrincados e subtis. Querem também resolvê­los. É por isso que
   constroem teorias, também elas muitas vezes intrincadas e subtis. No
   entanto, se não percebermos que problemas procuram eles resolver é
   altamente improvável que compreendamos e possamos apreciar o valor das
   suas teorias: o mais natural é ficarmo­nos pela aceitação ou rejeição
   epidérmica (e que muitas vezes é falsamente identificada com uma
   postura estética, como se gostar realmente de uma sinfonia pudesse ser
   uma atitude acrítica e epidérmica). «Penso, logo existo» é a fórmula
   mágica da teoria de Descartes. Mas que significa isto realmente?
   Porque se deu ele ao trabalho de escrevê­lo? Que procurava ele
   resolver com o cogito (o termo com que a sua teoria é conhecida)?
   Estas são as perguntas prévias que têm de orientar a nossa compreensão
   de uma teoria filosófica.
   
   Posteriormente, temos de tentar compreender os labirintos da teoria
   que estamos a estudar. Como é que a teoria funciona? E funciona? Não
   terá alguns problemas de concepção? Por exemplo, poderá Descartes, na
   situação em que se coloca, saber realmente que pensa e que existe? E
   tratar­se­á a expressão que enuncia o princípio da sua teoria («penso,
   logo existo») uma inferência, como o indica a palavra «logo»? Ou
   quererá ele apenas dizer que, por mais que duvide de tudo, a condição
   de possibilidade para poder duvidar é existir e pensar? E como se
   articula o resto da sua teoria com este princípio tão básico? Como
   consegue ele inferir a existência de Deus e do mundo a partir deste
   princípio tão básico? Estarão essas inferências correctas? Ou terá
   cometido erros? Este é o tipo de análise que o estudante terá de
   fazer, de forma progressivamente mais detalhada e sistemática, ao
   longo do seu estudo.
   
   Como ler filosofia: os argumentos
   
   Muito bem, estive a fazer um bocadinho de batota: não comecei por
   falar do mais importante de tudo em filosofia os argumentos. Mas fi­lo
   porque espero que, depois de lerem esta secção, percebam subitamente
   que todo o trabalho que descrevi nas secções anteriores não é possível
   realizar sem argumentos. Precisamos de argumentos para nos convencer
   que o problema do conhecimento de Descartes é realmente um problema e
   não uma fantasia de um soldado aborrecido fechado num quarto aquecido.
   Precisamos de argumentos para nos convencer que as causas filosóficas
   de certo problema são estas e não aquelas, e que as suas consequências
   não são estas mas aquelas. E precisamos de argumentos para nos
   convencer que a teoria consegue realmente resolver o que pretendia
   resolver e que é verdadeira e não apenas um agregado de frases talvez
   atraentes mas escandalosamente afastadas da verdade.
   
   E o que são argumentos? Os argumentos são razões que apresentamos para
   sustentar uma qualquer afirmação. Há vários tipos de argumentos:
   dedutivos, por analogia, causais, de autoridade, por exemplo. Para
   todos eles há regras que nos ajudam a apreciar o seu valor. É por isso
   que estudar um livro como [14]A Arte de Argumentar é importante.
   
   Muitas vezes os filósofos são lidos mais ou menos com a mesma atitude
   com que os gregos consultavam o oráculo e os portugueses lêem o
   horóscopo: acriticamente. Esta atitude é muito bizarra porque, tal
   como as profecias oraculares e as prescrições dos horóscopos, os
   filósofos contradizem­se. De maneira que é muito difícil lê­los a
   todos como fontes de verdade: não podem ter todos razão. Pode ser que
   um deles tenha razão; mas mesmo que queiramos tomar a atitude
   arriscada de defender que era Kant, ou Descartes, ou Aristóteles, ou
   Russell, ou Frege que tinha razão, se o quisermos fazer de forma
   razoavelmente racional teremos de mostrar que têm de facto razão. A
   alternativa é aceitar aquele filósofo cujas teorias vão ao encontro
   dos nossos preconceitos. Mas isto é, claramente, o contrário de uma
   atitude crítica, que é exactamente o que a filosofia é suposta ser.
   
   É muito mais provável que todos os filósofos, como todos os cientistas
   e todas as pessoas em geral, tenham a sua conta de verdade e falsidade
   misturadas, como sempre. Também aqui, o que se impõe é o estudo
   cuidado das suas teorias e argumentos, com o objectivo último de
   destrinçar um bocadinho mais a verdade da falsidade, do erro e da
   ilusão essas constantes humanas a que alguns, talvez tocados pelos
   deuses, dizem ter escapado.
   
   Filosofia e história da filosofia
   
   Uma ideia muito difundida, mas não menos falsa, defende que a
   filosofia é a sua história. Este hegelianismo só pode defender­se
   defendendo o próprio hegelianismo; mas isso será já uma discussão
   filosófica, e não histórica, pelo que a defesa do hegelianismo se
   arrisca a ser um exemplo admirável de uma contradição pragmática (uma
   contradição que ocorre quando aquilo que estamos a fazer é
   inconsistente com o que estamos a dizer: como quando dizemos "não
   estou a dizer nada").
   
   Esta ideia tem a desvantagem terrível de dar às pessoas a ideia de que
   se pode estudar filosofia através da sua história, o que na verdade é
   tão improvável acontecer como conseguir estudar música ou pintura ou
   física através das grandes obras históricas de música ou pintura ou
   física. Na verdade é precisamente o contrário: tal como para fazer
   história da música ou da pintura ou da física é preciso saber música
   ou pintura ou física, também para fazer história da filosofia é
   preciso saber filosofia. Caso contrário acabamos por não fazer mais do
   que paráfrases dos textos dos filósofos, sem perceber muito bem o que
   querem realmente dizer: uma sintaxe sem semântica, um formalismo sem
   conteúdo.
   
   O estudante de filosofia deve dirigir a sua atenção para a questão de
   saber se o que diz Platão ou Descartes ou Kant é verdade. Para isso,
   deve observar todas as subtilezas aqui descritas. A questão de saber o
   que queria certo filósofo realmente dizer é relativamente irrelevante
   (mas não completamente irrelevante) para o estudante de filosofia;
   essa é uma área altamente especializada do historiador de filosofia
   (que tem de ter, claro, formação filosófica). O que interessa ao
   estudante de filosofia é aprender filosofia; se a teoria de Descartes
   não era exactamente aquilo que a tradição lhe atribui, aquilo que numa
   primeira leitura parece ser, isso só é realmente grave
   (filosoficamente) se a teoria que lhe atribuirmos for,
   filosoficamente, irrelevante. Caso contrário, está tudo bem, uma vez
   que estamos a discutir uma teoria, um problema ou um argumento
   interessantes filosoficamente, ainda que, historicamente, ninguém os
   tenha defendido.
   
   Isto não faz do estudante de filosofia uma pessoa historicamente
   descuidada, que atribui o cogito a Platão e a teoria das formas a
   Wittgenstein. Limita apenas o tempo, o esforço e a atenção dedicados a
   questões históricas. Há um momento, ditado pelo bom senso, em que o
   estudante de filosofia pára de se preocupar com a questão de saber o
   que disse realmente Platão ou Descartes e assume que eles disseram X;
   e depois entra no que interessa: discutir X. E é claro que esta
   discussão pode sempre ser revista. Mas ainda que se venha a descobrir
   que o cogito de Descartes era completamente diferente do que pensamos
   hoje ser, isso é historicamente interessante, mas filosoficamente
   irrelevante: a versão que conhecemos do cogito é filosoficamente
   interessante, ainda que ninguém a tenha defendido.
   
   Só quando entramos na discussão filosófica estamos a dialogar com a
   tradição filosófica; quando estamos a fazer a sua história estamos
   apenas a exercer as funções de conservador de museu e de um
   conservador da Tate Gallery não se pode dizer que dialoga com a
   tradição da pintura. Quem dialoga com os quadros que o conservador da
   Tate Gallery recolhe, preserva e expõe são os pintores e não o
   conservador. São os pintores e os filósofos e os físicos que
   prosseguem, inovam, invertem ou se rebelam em relação aos seus
   predecessores, e não os historiadores da pintura ou da filosofia ou da
   física. São os filósofos e os pintores e os físicos, que, em última
   análise, exercem a actividade que depois competirá aos historiadores
   recolher, conservar, sistematizar e divulgar. Como escreveu Kant:
   
     Há letrados para quem a história da filosofia (tanto antiga como
     moderna) é a sua própria filosofia; os presentes prolegómenos não
     são escritos para eles. Deverão aguardar que os que se esforçam por
     beber nas fontes da própria razão tenham terminado a sua tarefa, e
     será então a sua vez de informar o mundo do que se fez. (I. Kant,
     Prolegómenos a toda a Metafísica Futura, trad. de Artur Morão, ed.
     70, 1982, p. A3)
     
   Espero que estas notas o estimulem a estudar filosofia e a participar
   activamente no debate mundial de ideias que começou com Sócrates e tem
   conseguido prosseguir, contra a vontade dos que querem cidadãos
   passivos e intelectuais acríticos.
   
   Desidério Murcho
   Sociedade Portuguesa de Filosofia
   Av. da República, 37, piso 4
   1050 Lisboa, Portugal
   Filosofia e Exegese
   Desidério Murcho
   
   Uma das características que distinguem a forma analítica de fazer
   filosofia da forma continental, sobretudo portuguesa, baseia­se na
   diferente posição que tomam em relação à exegese filosófica. Ao passo
   que para os continentais a exegese filosófica não se distingue da
   simples paráfrase, os analíticos distinguem esta da formulação,
   identificando com esta última o sentido da expressão «exegese
   filosófica» mas não com a primeira.
   
   A distinção entre a paráfrase e a formulação pode ser facilmente
   captada se tivermos em conta que alguém que nada perceba de medicina
   ou música pode no entanto parafrasear eficientemente um texto de
   medicina ou música do século XVI, bastando para tal conhecer a língua
   em que tal texto foi escrito, ao passo que para formular o conteúdo de
   um texto de medicina ou música do século XVI já é necessário saber
   medicina ou música, consoante o caso.
   
   Compreende­se assim por que razão outra das características que
   distinguem a maneira analítica de fazer filosofia da maneira
   continental consiste na hierarquia conceptual dada à exegese
   filosófica: para um filósofo analítico só é possível fazer exegese
   filosófica depois de se saber filosofia, ao passo que os continentais
   defendem que se aprende filosofia a fazer exegese, o que aos olhos dos
   analíticos é tão absurdo como defender que se aprende medicina ou
   música lendo os textos clássicos da medicina ou da música.
   
   Para um filósofo analítico a expressão «exegese filosófica» significa
   «formulação» e não «paráfrase», pois não podem existir «paráfrases
   filosóficas», uma vez que a filosofia pressupõe uma compreensão
   crítica e a paráfrase apenas pressupõe a capacidade mentecapta da
   mimese. Esta divisão, entre analíticos e continentais, quanto ao
   significado da expressão «exegese filosófica» é a causa última do tipo
   de ensino da filosofia praticado em Portugal, e que aos olhos dos
   analíticos não passa de uma caricatura do que é o verdadeiro ensino da
   filosofia. Nos liceus e nas faculdades, os alunos de filosofia são
   lançados, sem preparação, para os textos clássicos da filosofia (numa
   atitude que a um analítico parece autêntico terrorismo intelectual),
   sendo­lhes exigido em troca um conjunto mais ou menos bacoco de
   paráfrases em que os mais disparatados erros, as mais gritantes
   ambiguidades e imprecisões e a mais evidente incompreensão dos
   problemas, argumentos e teorias que os filósofos discutiram ao longo
   dos tempos são sinais infelizes de um tipo de ensino que não tem
   capacidade para formar pessoas que sabem, sobretudo, pensar, mas antes
   pessoas que sabem, sobretudo, repetir.
   
   A formulação dos problemas, teorias e argumentos da filosofia permite
   ao aluno perceber os problemas, teorias e argumentos da filosofia, ao
   passo que a sua paráfrase não lhe permite senão a repetição mecânica
   das palavras dos filósofos. É por este motivo que a avaliação dos
   alunos de filosofia, sobretudo no liceu, é um problema latente em
   Portugal. Uma vez que não são transmitidos aos alunos conteúdos cuja
   formulação mais ou menos precisa seja possível avaliar de forma justa,
   mas antes conjuntos de frases que os alunos devem repetir de forma
   mais ou menos vaga, o professor nunca sabe se está perante um aluno
   com uma excepcional verve filosófica, se perante alguém que nada
   percebeu, acabando todos por ser avaliados em função de critérios
   extrafilosóficos como a qualidade do português, a quantidade de
   autores referidos por cada frase e a capacidade para citar a
   bibliografia de forma competente.
   
   O filósofo analítico, por outro lado, sabe exactamente o que está a
   avaliar, tal como um professor de música ou de medicina. Existem
   conteúdos filosóficos precisos cuja maior ou menor compreensão, tal
   como é revelada pela sua formulação escrita e oral, pode ser avaliada
   de forma justa. Tal como um professor de medicina avalia até que ponto
   um aluno compreendeu o processo digestivo dos seres humanos e tal como
   um professor de música avalia até que ponto um aluno compreendeu o
   conceito de intervalo musical, também o professor de filosofia
   analítica avalia até que ponto um aluno compreendeu a teoria da
   referência de Kripke ou os argumentos cépticos da segunda Meditação de
   Descartes.
   
   Outra das consequências da diferente concepção de exegese filosófica
   que distingue os analíticos dos continentais é a ausência conspícua de
   livros de introdução à filosofia, do lado continental, e a sua
   abundância, do lado analítico. De facto, como escrever um livro de
   introdução à filosofia quando a concebemos como a arte, mais ou menos
   delirante, da paráfrase? Se vamos explicar o conceito de frase
   analítica, temos de parafrasear Kant ou Quine, citando ambos os
   autores abundantemente; nada mais resta para fazer. Não há quaisquer
   conteúdos conceptuais que possam ser organizados e apresentados
   didacticamente, do mais simples para o mais complexo, do mais
   importante para o menos importante. Quando se tem um conceito
   continental de filosofia nada resta excepto a paráfrase. Mas isso é
   negar à filosofia o papel crítico que faz parte da sua própria
   essência, e sem o qual ela se torna um exercício oco culturalmente
   empobrecedor e, sem dúvida, verdadeiramente redutor.
   
   Desidério Murcho
   Sociedade Portuguesa de Filosofia
   Av. da República, 37, piso 4
   1050 Lisboa, Portugal
                                      
   Em Defesa da Filosofia Continental
   Desidério Murcho
   
                         Se um ser humano discordar de si, deixe­o viver.
                Não encontrará outro numa centena de biliões de galáxias.
   
                                                               Carl Sagan
   
   O objectivo destas linhas é defender aquela que penso dever ser a
   atitude correcta a adoptar pelos partidários da filosofia analítica em
   relação à filosofia continental. O título deixa desde logo adivinhar o
   que parece uma provocação: então uma das pessoas que mais tem
   defendido a filosofia analítica vem agora defender a filosofia
   continental? É precisamente porque é fácil confundir a defesa da
   filosofia analítica com o ataque intolerante à filosofia continental e
   porque esse ataque se pauta por estratégias de corredor de baixo
   perfil moral que decidi tomar uma posição pública sobre o assunto.
   Apesar de a causa próxima ser o artigo de Carlos Leone no
   EXPRESSO, esta não é de modo algum a única causa da minha tomada de
   posição. Acontece que o artigo de Carlos Leone me fez tomar
   consciência de algo que muito me desagrada nas relações entre os
   partidários da filosofia analítica e os partidários da continental.
   Por isso, quero demarcar­me claramente em relação a essas atitudes.
   
   Vou começar por dizer claramente aquilo em que acredito e os
   objectivos que pautam a minha intervenção. Seguidamente, procurarei
   mostrar por que razão podemos não ser contra a filosofia continental
   sem adoptar qualquer tipo de relativismo, fácil e de baixo perfil
   intelectual, ou mais «sofisticado» e de perfil académico. Finalmente,
   concluirei com uma nota sobre a minha postura na vida intelectual.
   Esta última parte é claramente pessoal o que não significa que não
   seja discutível. Não tenho o hábito de defender as minhas convicções
   afirmando que são minhas, porque tenho a pretensão, que a muitos
   parecerá insensata mas que me parece razoável, de ter convicções
   objectivamente razoáveis e não meras idiossincrasias pessoais.
   
   1. Os objectivos
   
   A filosofia analítica é uma prática académica respeitável. Penso que
   esta é uma proposição pacífica, que mesmo os continentais aceitarão
   sem hesitar, ainda que achem que se trata de uma forma errada de fazer
   filosofia. Na verdade, em termos mundiais, a filosofia analítica é
   dominante, quer em termos de publicações (livros e revistas), quer em
   termos de número de filósofos activos hoje em dia. No entanto é
   praticamente desconhecida em países como Portugal, França e Espanha. E
   o pouco que se conhece nestes países são caricaturas positivistas da
   prática actual da filosofia analítica. A título exemplificativo,
   veja­se o que afirma o Dicionário Breve de Filosofia, de Alberto
   Antunes, António Estanqueiro e Mário Vidal (Editorial Presença,
   Lisboa, 1995):
   Filosofia analítica Corrente de pensamento filosófico segundo a qual a
       lógica e a teoria da significação ocupam um papel central na
       filosofia. A tarefa fundamental da filosofia seria a análise
       lógica das sentenças, através da qual se obtém a solução dos
       problemas filosóficos. Desenvolveu­se sobretudo na Inglaterra e
       nos Estados Unidos, a partir dos inícios do século XX. (pág. 74)
       
   Esta era talvez a ideia de filosofia analítica de pessoas como Carnap
   ou Quine, no princípio do século. Hoje em dia, não há muitos filósofos
   vivos que defendam estas ideias. E a ironia é que, mesmo no princípio
   do século, alguns dos maiores nomes da filosofia analítica teriam de
   ser excluídos se aceitássemos esta definição.
   
   Vamos então passo a passo. A primeira tese: a filosofia analítica
   caracterizar­se­ia por defender que a lógica e a teoria do significado
   ocupam um lugar central. É verdade que há pessoas, como Dummett, que
   defendem que a filosofia da linguagem é a disciplina central da
   filosofia. E é verdade que grande parte dos filósofos analíticos se
   ocupam do estudo da linguagem. Mas daí não se segue que a filosofia da
   linguagem seja uma disciplina central, pelo simples motivo de que
   ninguém consegue demonstrar que a solução dos problemas da filosofia
   da linguagem seja também a solução dos problemas da metafísica, da
   estética, da ética, da filosofia política ou da filosofia da religião.
   Os filósofos, como Dummett, que acham que a filosofia da linguagem é
   central na filosofia analítica e que isso caracteriza a filosofia
   analítica sofrem de distorção profissional: do mesmo modo que alguns
   historiadores da filosofia moderna têm tendência para pensar que o
   período histórico que estudam é o período decisivo na história da
   filosofia, pessoas como Dummett acham que a filosofia da linguagem, só
   porque é tudo o que conhecem e tudo o que fazem, é central na
   filosofia.
   
   A importância dada à linguagem, na filosofia analítica, resulta de
   contingências históricas; e é claro que é lisonjeador pensar que a
   nossa área de especialização é a mais importante. Mas, se isso fosse
   assim, seria fácil responder a este desafio: mostre­se a solução ou
   uma aproximação a uma solução de um problema substantivo da ética, da
   filosofia política, da estética ou da filosofia da religião que
   resulte da investigação sobre a filosofia da linguagem. Ninguém será
   capaz de mostrar tal coisa porque tal coisa é impossível. A crença de
   que é possível é apenas uma distorção profissional, psicologicamente
   compreensível, mas filosoficamente sem fundamento.
   
   Quanto à segunda característica apontada no Dicionário Breve: a tarefa
   fundamental da filosofia analítica seria a análise lógica das frases,
   através da qual se obteria a solução dos problemas filosóficos. Esta
   foi uma ideia por vezes ventilada no princípio do século por pessoas
   como Carnap e Wittgenstein. Mas este projecto está hoje morto e
   enterrado. Não é possível resolver os problemas substantivos da
   filosofia através da análise da forma lógica das frases. Seria como
   tentar resolver os problemas da física através da análise algébrica.
   Nenhum problema substantivo da física pode ser resolvido
   matematicamente: é preciso fazer experiências, investigar partículas,
   levantar hipóteses. O mesmo acontece com a filosofia. Por mais que eu
   analise a forma lógica da expressão «Deus existe» não vou conseguir
   saber se a frase é verdadeira ou falsa que é o que interessa à
   filosofia da religião.
   
   É verdade que a lógica e a filosofia da linguagem ocupam um papel
   importante na filosofia analítica, o que não acontece na filosofia
   continental, sobretudo em relação à lógica. Mas isto é porque ambas
   constituem instrumentos filosóficos, tal como a matemática é um
   instrumento dos engenheiros navais. A lógica e a filosofia da
   linguagem ajudam o filósofo analítico a não cometer falácias, a
   produzir argumentos e teorias rigorosos, e ajudam­no a tentar escapar
   às ilusões que resultam de certas expressões linguísticas. Mas não
   constituem a água de alcatrão ou a panaceia filosófica.
   
   Por alguma razão que desconheço, talvez por mero atraso cultural e
   pelo facto de as bibliotecas universitárias portuguesas serem, em
   geral, risíveis, a generalidade da comunidade filosófica portuguesa
   olha para a filosofia analítica como os próprios analíticos pelo
   menos, alguns olhavam para ela há 50 anos.
   
   É precisamente porque a imagem que os portugueses têm da filosofia
   (tal como os franceses) é falsa, que a tarefa de divulgar a filosofia
   analítica é tão importante. Se toda a gente soubesse o que é a
   filosofia analítica, como toda a gente sabe o que é a filosofia
   continental porque é o que há nas faculdades e liceus, não era preciso
   fazer nada no sentido de a divulgar; as pessoas poderiam escolher em
   consciência o que queriam. Mas essa não é a situação em que estamos.
   Os alunos chegam às faculdades e já trazem preconceitos contra a
   filosofia analítica, pois esta surge­lhes como uma actividade que
   procura reduzir a verdadeira actividade filosófica a meia dúzia de
   cálculos lógicos e de elucubrações misteriosas sobre a linguagem.
   Penso que todos concordamos, analíticos e continentais, que as pessoas
   têm direito à informação fidedigna, pois só assim poderão tomar
   decisões em consciência. Até agora, em Portugal, as pessoas não
   escolhiam a filosofia continental; esta era a única coisa que havia. O
   meu objectivo não é acabar com a imensa maioria que, em Portugal,
   constitui os que estudam a filosofia continental; o meu objectivo é
   unicamente o de fazer com que essa maioria seja o resultado de uma
   escolha informada e não de uma contingência histórica e geográfica.
   Acho que tenho o dever de o fazer porque se não tivesse descoberto a
   filosofia analítica no momento certo teria desistido do curso. O que
   me move é unicamente este sentido do dever e não uma qualquer
   tentativa de «acabar com eles». Do ponto de vista estritamente pessoal
   estou­me nas tintas para quem manda na filosofia em Portugal as lutas
   simiescas pelo poder não me interessam; e no dia em que eu tiver de
   agir imoralmente para ter emprego, mudo de profissão.
   
   2. Tolerância sem relativismo
   
   A filosofia continental, tal como a filosofia analítica, é uma prática
   académica respeitável. Eu acho que a filosofia continental, nas suas
   diversas vertentes, é uma forma errada de fazer filosofia. Acho que
   tem consequências pedagógicas, culturais e científicas verdadeiramente
   desastrosas. Mas acho que as pessoas que a praticam têm todo o direito
   de a praticar. Na verdade, muitas delas são minhas amigas. Apesar de
   ter feito uma licenciatura continental, nunca tive senão relações
   cordiais e até de amizade com os meus professores e colegas. Mas não é
   por isso que eu não sou contra a filosofia continental. É porque acho
   errado ser contra qualquer prática académica, seja ela qual for. Se a
   alquimia e a astrologia não tivessem sido banidas das universidades,
   hoje teriam dignidade académica e eu não seria contra o seu estudo nas
   academias. Isso não significa, claro, que tais práticas teriam
   dignidade científica. Mas eu penso que se uma prática está
   institucionalizada, ainda que seja cientificamente inválida, o seu
   desaparecimento deve ser uma consequência natural do seu vazio
   científico e não uma imposição de quem não a pratica.
   
   É fácil de ver que não só não estou disposto a levantar um dedo que
   seja contra a filosofia continental e os seus praticantes, como seria
   o primeiro a sair para a rua em protesto caso eles fossem impedidos de
   ensinar e estudar o seu modo de fazer filosofia sejam eles
   existencialistas, heidegerianos, derridanos, historicistas,
   escolásticos ou pós­modernistas. Na verdade, seria o primeiro a
   manifestar o meu desacordo caso eles sofressem da mesma falta de
   condições que nós, os analíticos, sofremos. Por exemplo: a
   generalidade das editoras só editam filosofia continental; as pessoas
   que escrevem nos jornais são quase todas de formação continental; os
   programas do ensino secundário são fruto das ideias continentais;
   todos os departamentos universitários são controlados por
   continentais; todas as revistas portuguesas de filosofia são
   continentais. Só agora os analíticos conseguiram conquistar um pouco:
   há a Filosofia Aberta, há a Disputatio e há um curso de mestrado. É
   muito pouco e não representa nenhuma ameaça à filosofia continental
   portuguesa.
   
   Teremos de ser miseravelmente relativistas para ser tolerantes com
   respeito à filosofia continental? Acho que não. Acho que os
   continentais têm todo o direito de ensinar, divulgar e praticar o seu
   ideal de filosofia, apesar de achar que esta é a forma errada de fazer
   filosofia. A grande responsabilidade intelectual por alguns dos
   maiores horrores da prática e teoria políticas do século XX é a
   incapacidade que as pessoas têm para serem tolerantes ao erro. Os
   marxistas, como os fascistas, não toleram que as pessoas possam estar
   erradas, não toleram que eles defendam ideais políticos que, do seu
   ponto de vista, estão errados. E é isso a tolerância: achar que
   aqueles que, segundo o nosso ponto de vista, estão errados, têm o
   direito de estar errados. O mundo já viu demasiados crimes demasiado
   horríveis praticados em nome da luta contra o erro: os cristãos,
   munidos do seu Cristo morto na cruz, torturaram e mataram em nome da
   sua verdade achavam intolerante que as outras pessoas não acreditassem
   no seu deus e que vivessem no erro. Preferiam matá­las. Eu prefiro
   falar com elas e dizer­lhes frontalmente que acho que estão erradas,
   mas que têm todo o direito de estar erradas.
   
   Isto não é uma forma de relativismo porque esta tolerância tem
   limites. É claro que eu não sou tolerante com respeito a tudo o que
   acho que está errado. Não sou tolerante, por exemplo, relativamente
   aos assassinos. Não só acho que eles estão errados, como acho que não
   têm o direito de estar errados, porque os seus erros têm consequências
   claramente horríveis. Mas, por mais desastrosa que seja a filosofia
   continental do ponto de vista cultural e intelectual, as suas
   consequências não são assim tão más que não possam ser toleradas. Os
   analíticos que mostram intolerância relativamente à filosofia
   continental fazem­no por questões psicológicas, o que é compreensível,
   mas não recomendável.
   
   Alguns continentais de formação e convicções religiosas são contra a
   filosofia analítica porque, para eles, «filosofia analítica =
   ateísmo». Esta atitude é fruto da ignorância e revela uma postura
   pouco séria em termos intelectuais e perigosa em termos sociais. É
   perigosa porque está muito perto da atitude da inquisição que não está
   assim tão longe: veja­se a vida miserável que Salmon Rushdie tem de
   ter por causa da intolerência religiosa. Revela uma postura
   intelectualmente pouco séria porque coloca a investigação na
   dependência de convicções religiosas e neste aspecto, a figura de
   Galileu, finalmente perdoado pela Igreja católica 350 anos depois,
   assume proporções a que só o génio poético de António Gedeão conseguiu
   fazer justiça. E é fruto da ignorância, pois grande parte dos
   filósofos analíticos são pessoas religiosas há imensos livros sobre
   filosofia da religião publicados por crentes; e muitas outras pessoas
   que fazem coisas que nada têm a ver com religião (como filosofia da
   linguagem) são religiosas: é o caso do próprio Dummett, que é
   católico. Penso que este dogma se explica pela «síndrome BR», a
   síndrome Bertrand Russell. Russell, além de filósofo, foi um dos
   primeiros humanistas declaradamente ateus; porque foi também um dos
   principais filósofos analíticos, as pessoas assimilaram as duas
   coisas. Mas também o existencialismo conheceu o seu apogeu com um dos
   primeiros filósofos ateus da história, Sartre no entanto, há hoje
   muitos católicos existencialistas e nenhum católico afirmará que
   «existencialismo = ateísmo». No entanto, ainda que a equação da
   ignorância, «filosofia analítica = ateísmo», fosse verdadeira, não
   penso que esse fosse um bom motivo para não se dar condições aos
   filósofos analíticos para estudar, divulgar e publicar, tal como não
   penso que a Igreja católica tinha razão ao proibir Galileu de
   prosseguir os seus estudos.
   
   3. Conclusão
   
   Muitos sectores da vida humana são dominados por jogos de bastidores,
   alianças estratégicas, tentativas sub­reptícias de eliminar a
   «concorrência». Isto acontece na vida dos partidos políticos (mesmo na
   vida interna de cada partido), nos jornais e na vida académica. No
   entanto, essa não é a minha postura. Nunca levantei um dedo contra a
   filosofia continental, às escondidas ou às claras. Nunca fiz jogos de
   bastidores contra esta ou aquela pessoa, como já fizeram contra mim a
   mais recente dessas atitudes é a recensão do Carlos Leone que referi
   logo no início. Não é essa a minha postura na vida intelectual. Não só
   não gosto de jogos de poder, como os acho moralmente execráveis. E não
   consigo evitar pensar que esses tipos de atitudes são ainda as
   manifestações persistentes das nossas origens simiescas; são
   antropologicamente compreensíveis, mas moralmente deploráveis.
   
   Quando andava no 12.o ano, com a arrogância típica dos jovens, o meu
   professor de filosofia apanhou­me a «massacrar» uma colega que queria
   estudar Direito para ser advogada, ganhar muito dinheiro e ter
   estatuto social. O meu professor surpreendeu­me com palavras simples
   que nunca esqueci. Disse­me: «tens de respeitar a profissão das outras
   pessoas se quiseres que respeitem a tua». Por vezes, os analíticos eu
   incluído esquecem esta verdade simples. É tempo de o relembrar.
   
   Eu não entrarei no jogo de pessoas como Carlos Leone, sejam elas
   analíticas ou continentais. Respeito o trabalho de Carlos Leone,
   apesar de achar que é objectivamente mau, enquanto jornalista. Por
   exemplo: há algumas semanas, antes da diatribe contra mim e a
   Disputatio, ele escrevia uma coluna em que tecia largos elogios à
   editora Colibri. A razão era a importância de publicar ensaios em
   Portugal. É verdade que é muito importante publicar ensaios em
   Portugal, um país no qual sempre que se fala de livros se tem em mente
   romances, muitas vezes de péssima qualidade e que só servem para nos
   distrair durante uma semana. Mas, apesar de a Colibri ser uma pequena
   gráfica simpática, que faz sem dúvida falta e que tem desempenhado um
   papel importante na academia como foi ele esquecer­se de editoras como
   a Dom Quixote, as Edições 70, a Editorial Presença, a Europa­América e
   tantas outras que publicam por mês mais ensaios do que a Colibri
   publica num ano? Ou da recente investida do Instituto Piaget, que num
   ano publicou mais ensaios na área da filosofia do que a Colibri em
   toda a sua vida? Isto é mau trabalho jornalístico.
   
   Curiosamente, há um aspecto desse artigo do Carlos que chocou muita
   gente, e que eu achei justo. Ele afirmou que a Philosophica, a revista
   do meu departamento, publicada pela Colibri, era a melhor revista
   portuguesa de filosofia. Eu acho justo porque, no panorama nacional
   das revistas de filosofia, e tendo em conta que se trata de revistas
   de filosofia continental, a Philosophica é a melhor. Que outra revista
   poderia ser a melhor? A Revista Portuguesa de Filosofia tem uma idade
   venerável, é verdade, e é uma instituição respeitável. A Revista
   Filosófica de Coimbra tem marcado um espaço próprio. A Análise está
   ausente desde há muito tempo. E que mais há? A Disputatio não pode
   medir­se pelos mesmos padrões porque é uma revista de filosofia
   analítica, produzida segundo padrões internacionais e, de qualquer
   modo, é demasiado jovem para poder avaliar­se. Os Cadernos de
   Filosofia são ainda mais jovens. Classificar a Philosophica como a
   melhor revista portuguesa de filosofia não me choca: parece­me justo.
   Isto não significa que as outras 2 grandes revistas sejam más;
   significa apenas que não são tão boas. E isto também não significa que
   as outras não sejam boas. No caso da Disputatio, nem se pode comparar
   porque se trata de um projecto com um perfil muito diferente das
   tradicionais revistas portuguesas de filosofia. Afirmar que a
   Philosophica é a melhor quer dizer uma coisa que é verdade: a maior
   parte das pessoas que escrevem nela artigos são alguns dos melhores
   filósofos e historiadores continentais portugueses. Penso que isso é
   indisputável. Isto não significa que os melhores filósofos do país
   publiquem na Philosophica; pessoas como o Fernando Gil e o Manuel
   Maria Carrilho, ambos com uma vasta obra publicada, cá e em França,
   nunca publicaram nela e possivelmente nunca publicarão, dado o clima
   «clubista» da academia portuguesa.
   
   Detive­me sobre esta «polémica» porque ela mostra uma certa atitude
   que acho que deve ser evitada. Essa atitude tem duas vertentes. Uma
   delas é a pura ignorância. Os académicos portugueses ignoram­se uns
   aos outros, não lêem os artigos e livros uns dos outros, o que é
   disparatado. Para quem mais estão eles a escrever? Não podemos pedir
   que os outros leiam as coisas que escrevemos se nós não lermos as
   coisas que os outros escrevem. É natural que os analíticos não leiam
   os continentais, nem vice­versa. Isso acontece também lá fora, se bem
   que eu ache isso idiota num país tão pequeno como o nosso. Mas o que é
   surpreendente é que os analíticos (os 3 ou 4 que existem) também não
   leiam o trabalho uns dos outros! E o mesmo acontece com os
   continentais. É claro que eu não posso saber o que fazem as pessoas no
   segredo das suas casas: talvez todos se leiam mutuamente com afinco.
   Mas isso é irrelevante. O que conta é que dessas leituras, se é que
   existem, não resulta nunca uma crítica, um eco, um reparo; nada.
   
   Quem ler a Philosophica e a comparar com as outras, percebe que os
   artigos são em geral mais profundos, revelam um maior conhecimento
   histórico e bibliográfico e pautam­se por um maior rigor formal (do
   ponto de vista textual e lexical). Isso não significa que constituam
   exemplos de boa filosofia; do ponto de vista analítico, são exemplos
   de má filosofia. Mas não devemos nunca desprezar o trabalho das outras
   pessoas só porque elas não pertencem ao nosso «clube». E desprezá­lo
   quando nem sequer o lemos é uma atitude no mínimo pouco séria.
   
   A outra vertente, relacionada com a primeira, é a «crítica de
   corredor». Apesar de os académicos portugueses não serem leitores das
   obras uns dos outros, sussurram críticas nos corredores ao trabalho
   uns dos outros. Eu acho que essas críticas deviam ser substituídas
   pelo respeito mútuo e pela crítica aberta, publicada nas revistas e
   apresentadas nas conferências. Ninguém consegue fazer um bom trabalho
   se não for avaliado pelos seus pares. Afirmar publicamente, de forma
   séria e argumentada, que o artigo de alguém tem defeitos, é ajudar
   essa pessoa a não voltar a cometê­los; não é uma exibição de
   gladiadores embrutecidos. Penso que a filosofia em Portugal teria
   muito a ganhar se começasse a haver diálogo e se as pessoas começassem
   a ler o trabalho umas das outras.
   
   Termino com uma nota pessoal, como prometi. Gosto de coisas simples.
   Ler e discutir filosofia e pensar nos seus problemas, argumentos e
   teorias. Ler literatura e ensaio. Ouvir música. Cultivar amizades
   sinceras e frontais e ter relações de trabalho honestas e verticais.
   Gosto de árvores, de sol e da natureza. Gosto de crianças e do milagre
   da bondade e do altruísmo humanos. Admiro a coragem e a abnegação.
   Estas declarações pessoais e com o seu quê de ridículo servem para
   mostrar que é inútil atirar­me pedras: eu não respondo com outras
   pedras. Já o demonstrei mais de uma vez. Faço o trabalho em prol dos
   outros que acho que tenho o dever de fazer, prejudicando­me muitas
   vezes a mim próprio, trabalho esse que só um punhado de pessoas
   reconhece. E é tudo. Tenho amigos e um dia vou morrer
   irremediavelmente só, como todos os seres humanos. Enquanto estiver
   por aqui procurarei compreender melhor o mundo que me rodeia e tirar
   partido da felicidade simples das coisas simples. O resto, não me
   interessa.
   Desidério Murcho
   Sociedade Portuguesa de Filosofia
   Av. da República, 37, piso 4
   1050 Lisboa, Portugal
   Etimologia do disparate: filosofia, paradoxos e falácias
   Desidério Murcho
   
   A tarefa de ensinar e divulgar a filosofia não é tarefa fácil. Em
   particular, não é fácil redigir manuais do ensino secundário que
   possam constituir, para alunos e professores, instrumentos valisos de
   trabalho. O manual a que faço referência nestas páginas resulta sem
   dúvida da vontade de transmitir o melhor possível o gosto pela
   filosofia e terá sido redigido com o cuidado que tão nobre tarefa
   merece. Infelizmente, há pelo menos um erro científico grave e
   incontroverso neste manual. O meu objectivo é mostrar de que erro se
   trata e reflectir um pouco sobre o que a existência deste erro
   significa.
   
   Na página 71 do manual do 11.o ano do ensino secundário intitulado
   Pensar e Ser, de Fátima Alves, José Arêdes e José Carvalho
   apresenta­se como exemplo de uma falácia o que é conhecido como
   paradoxo de Epiménides e que os autores baptizaram como «sofisma de
   Epiménides». Este é apenas um exemplo da infelizmente medíocre cultura
   filosófica nacional. Outro exemplo encontra­se no famigerado Grande
   Dicionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo, onde a
   definição dada de paradoxo é «opinião contrária à opinião comum». Esta
   mesmíssima expressão surge aliás no menos badalado mas muito melhor
   Grande Dicionário da Língua Portuguesa de José Pedro Machado (que
   merecia, aliás, uma edição electrónica mas, claro, sem as fantasias
   gráficas com que inutilizaram o Cândido de Figueiredo). Já o
   Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora (que, modestamente,
   não se titula de «grande»), resolveu inovar e afirma que um paradoxo é
   uma «opinião contrária ao sentir comum», inovação imediatamente
   copiada pelo recente Dicionário Universal da Língua Portuguesa, da
   Texto Editora.
   
   Os engenheiros informáticos sabem que uma maneira simples de descobrir
   se um certo fragmento de código de programação foi copiado é procurar
   erros iguais: a probabilidade de se cometer duas vezes certos tipos de
   erro é de tal forma pequena que a hipótese de ter sido uma
   coincidência é muito menor do que a hipótese de cópia. Acredito
   seriamente que este heideggerianismo das etimologias aplicado à
   definição de paradoxo, com os resultados infelizes que estão à vista,
   tem de ter uma origem comum. Mas não sei, infelizmente, qual é.
   
   Nestas páginas, vou discutir esta definição errada de paradoxo, a
   confusão inacreditável entre o conceito de paradoxo e o de falácia e a
   importância deste estado de coisas para a situação da cultura
   filosófica portuguesa. Para isso, claro, terei de lhe oferecer, caro
   leitor, uma caracterização precisa do conceito de paradoxo e do
   conceito de falácia. Pelo caminho ficará também uma discussão da
   importância destes conceitos para uma cultura filosófica lúcida e
   informada.
   
   O que é uma falácia?
   
   Uma falácia é um raciocínio logicamente inválido. Um raciocínio
   logicamente inválido é um raciocínio errado: um raciocínio que não
   conduz à verdade, ainda que as premissas nas quais se baseia sejam
   todas verdadeiras. Por exemplo, se eu afirmar que todos os animais
   rugem porque todos os leões rugem e todos os leões são animais,
   estarei a evocar premissas verdadeiras para sustentar a minha ideia
   tola de que todos os animais rugem (talvez porque acredito que o meu
   canário ruge às escondidas). Essas premissas são: «todos os leões
   rugem» e «todos os leões são animais». No entanto, claro, a minha
   conclusão («todos os animais rugem») é falsa. O que correu mal? O meu
   raciocínio: é um mau raciocínio, como se pode demonstrar facilmente.
   
   Qualquer pessoa percebe intuitivamente o que é um mau raciocínio. Mas
   há certas subtilezas que provocam sempre alguma confusão. Que
   subtilezas são essas? Trata­se de dois factos: os raciocínios errados
   podem ter conclusões verdadeiras (ao contrário do que acontece no
   nosso exemplo dos leões); e os raciocínios válidos ou correctos podem
   ter conclusões falsas. Quando se diz isto às pessoas elas respondem
   sempre: mas então para que serve a lógica? Se os bons raciocínios
   podem ter conclusões falsas e se os maus podem ter conclusões
   verdadeiras! Mais vale ir ao futebol, onde é tudo afinal a brincar...
   
   A verdade, no entanto, é que as coisas em filosofia e em lógica não
   são a brincar, como no futebol, e são razoavelmente mais subtis,
   apesar de possivelmente mais fáceis de perceber. Senão, vejamos. Que
   raciocínios válidos ou correctos podem ter conclusões falsas?
   Resposta: aqueles que partirem de premissas falsas. Não admira: se
   partimos de falsidades, por melhor que seja o raciocínio, é natural
   que cheguemos a falsidades; estranho seria que assim não fosse. Por
   mais que nos esmeremos a fazer o almoço de Domingo, se os ingredientes
   forem maus, o almoço será mau.
   
   E o outro caso? Como explicar que os maus raciocínios possam conduzir
   a conclusões verdadeiras? Bom, da mesma maneira que explicamos como
   podemos acabar por ir parar aonde queríamos apesar de não sabermos o
   caminho: por puro acaso. Num argumento inválido com uma conclusão
   verdadeira as premissas não sustentam de facto a conclusão: chegámos
   àquela conclusão por sorte. Mas quando uma conclusão não é realmente
   sustentada pelas suas premissas, não podemos ter a certeza de que é
   verdadeira, uma vez que não temos dados relevantes que sustentem a
   nossa crença de que é verdadeira: os dados que temos não sustentam
   realmente a nossa crença, apenas parecem fazê­lo.
   
   Por isso, apesar de os raciocínios ou argumentos inválidos poderem
   conduzir a conclusões verdadeiras e apesar de os argumentos válidos
   poderem conduzir a conclusões falsas, a importância da lógica (que nos
   permite distinguir os raciocínios correctos dos incorrectos) e da
   verdade (que nos permite partir de premissas verdadeiras) é central.
   Só com raciocínios correctos que partem de premissas verdadeiras temos
   a garantia de chegar a conclusões verdadeiras.
   
   O que é então uma falácia? Já dissemos que uma falácia é um raciocínio
   errado (a que também se pode chamar incorrecto e que em termos
   técnicos é conhecido como inválido). Mas nem todos os raciocínios
   errados são falácias, apesar de todas as falácias serem raciocínios
   errados. Para que um argumento errado seja uma falácia é necessário
   que pareça um raciocínio válido: e é esta característica que faz das
   falácias um conceito, em certa medida, extra­lógico, um conceito quase
   psicológico (no entanto, pelo menos parcialmente, é possível explicar
   em termos estritamente lógicos esta semelhança que nos faz,
   psicologicamente, tomar como válidos certos raciocínios inválidos). O
   conceito de falácia é assim um conceito importante não tanto em
   lógica, onde os argumentos ou são correctos ou incorrectos e não há
   lugar a considerações psicológicas, mas antes em lógica informal ou
   retórica, onde tais considerações são extremamente importantes.
   
   O que é um paradoxo?
   
   E o que é afinal um paradoxo? Um paradoxo é um raciocínio que, tanto
   quanto conseguimos perceber, é válido e que, tanto quanto conseguimos
   perceber, parte de premissas verdadeiras, mas que no entanto nos
   conduz a um resultado inaceitável. Já se está a ver o erro monstruoso
   que consiste em confundir paradoxos com falácias: a condição de
   possibilidade da existência de um paradoxo genuíno é este não ser uma
   falácia. Se um raciocínio for falacioso, não pode ser um paradoxo e se
   for um paradoxo genuíno não pode ser falacioso.
   
   Os paradoxos são em geral enunciados através da proposição
   aparentemente pacífica que conduz a resultados inaceitáveis. Mas que
   resultados inaceitáveis são estes? O resultado paradoxal é a
   auto­contradição. Para explicar o que é a auto­contradição tenho de
   explicar primeiro o que é a contradição, como é óbvio. E o que é isso?
   Bom, todos nós temos uma ideia intuitiva do que é uma contradição:
   acusamos alguém de se contradizer quando afirma agora uma coisa que é
   a negação do que afirmou antes (como é, tipicamente, o caso dos
   políticos e dos dirigentes «desportivos»). Uma contradição é uma
   relação lógica existente entre duas proposições. Duas proposições são
   contraditórias quando a verdade de uma implica a falsidade da outra e
   vice­versa. Por exemplo, a frase «a vida não tem sentido» (um
   enunciado tipicamente existencialista) é contraditória com a frase «a
   vida tem sentido». Mesmo que não saibamos qual das duas frases é
   verdadeira, sabemos que se a primeira for verdadeira, a segunda será
   falsa; e que se a segunda for verdadeira, a primeira será falsa.
   
   A auto­contradição é a situação paradoxal na qual uma frase é
   contraditória consigo mesma. Assim, quando temos uma frase
   contraditória e procuramos saber o seu valor de verdade, deparamos
   sempre com a seguinte situação: quando partimos do princípio de que
   ela é verdadeira, concluímos que é falsa; e quando partimos do
   princípio que ela é falsa, concluímos que é verdadeira. Incrível, não
   é? Dá até a impressão que tal monstruosidade não pode existir. Mas
   existe: são os paradoxos.
   
   Paradoxos e falsos paradoxos
   
   Vamos então ver alguns exemplos de paradoxos e de falsos paradoxos.
   Imagine o leitor que encontrava a seguinte frase no jornal da manhã:
   «esta frase é falsa». Se o leitor tiver o hábito, aliás saudável, de
   desconfiar do valor de verdade de tudo o que lê no jornal,
   perguntar­se­ia certamente: será esta frase verdadeira? Imaginemos que
   sim. Bom, se a frase for verdadeira, verifica­se aquilo que ela
   afirma, certo? Mas a frase afirma dele mesma que é falsa. Logo, se for
   verdadeira, é falsa. E se for falsa? Bom, se for falsa não se verifica
   aquilo que ela afirma. Mas a frase afirma dela mesma que é falsa.
   Logo, se for falsa é verdadeira.
   
   Chegámos então ao resultado paradoxal: a frase é verdadeira se for
   falsa e é falsa se for verdadeira. Abreviadamente, costumamos dizer
   que a frase é verdadeira se, e só se, for falsa. Este é o resultado
   que qualquer paradoxo tem de produzir; se não o produzir não é um
   paradoxo, apesar de poder ser confundido com um paradoxo. Por exemplo,
   na página 71 do manual de Fátima Alves, José Arêdes e José Carvalho,
   no qual se apresenta o paradoxo de Epiménides como um exemplo de uma
   falácia, a formulação escolhida pelos autores é a seguinte:
   
     o sofisma de Epiménides, poeta cretense do século VI a.C., que
     afirmou: «todos os cretenses são mentirosos». Ora, atendendo a que
     ele próprio era cretense, será o enunciado verdadeiro?
     
   É deplorável a capacidade inventiva dos autores, que os fez
   transformar o conhecido paradoxo do mentiroso num «sofisma» ou
   falácia. O leitor já sabe que a condição de possibilidade para que
   algo seja um paradoxo é não ser uma falácia, de forma que esta
   confusão entre as duas categorias é um erro científico muito grave.
   Mas é também interessante verificar que a formulação clássica do
   paradoxo do mentiroso, apresentada pelos autores, não é, na verdade,
   um paradoxo!
   
   Repare­se: Epiménides afirma que todos os cretenses são mentirosos.
   Mesmo que admitamos que por «mentirosos» se quer dizer «pessoas que
   nunca dizem a verdade» (o que constitui, convenhamos uma definição
   estranhíssima de mentiroso), não se consegue gerar nenhum paradoxo.
   Ora veja lá: admitamos que o que Epiménides disse é verdade; daí
   segue­se todos os cretenses são mentirosos; logo, o que ele diz,
   porque é cretense, é falso. Logo, se o que ele diz é verdade, é falso.
   Admitamos agora que o que Epiménides disse é falso. Se o que ele disse
   é falso, a negação do que ele disse é verdade. A negação do que ele
   disse é «alguns cretenses não são mentirosos». Mas não há nenhum
   problema em admitir que Epiménides é cretense e que alguns cretenses
   não são mentirosos. Na verdade, Epiménides, ao afirmar que todos os
   cretenses são mentirosos, está a pregar­nos uma grande mentira: a
   verdade é que alguns cretenses não o são. E uma vez que ele nos está a
   mentir, ele é que é mentiroso!
   
   Conclusão: não se trata de um paradoxo. Se raciocinarmos disciplinada
   e sistematicamente descobrimos que afinal a afirmação de Epiménides
   tem de ser falsa. Se fosse um paradoxo, a sua afirmação não podia ser
   verdadeira nem falsa.
   
   Mas então, perguntará o leitor, por que razão se formulava
   tradicionalmente desta forma errada o paradoxo do mentiroso? Porque se
   errava ao raciocinar! A negação da afirmação «todos os cretenses são
   mentirosos» é, como disse acima, «alguns cretenses não são
   mentirosos»; mas é fácil errar e pensar que a sua negação é antes
   «nenhum cretense é mentiroso». Por que razão esta última não é a
   negação da outra? É simples: a negação de uma frase qualquer tem de
   ter o valor de verdade oposto a essa frase, como é óbvio. Se a frase
   «todos os portugueses são altos» é verdadeira, a sua negação tem de
   ser falsa e vice­versa. Mas agora repare que, apesar de esta frase ser
   falsa (como é óbvio, nem todos os portugueses são altos), a frase
   «nenhum português é alto» é também falsa. Logo, apesar de esta última
   parecer intuitivamente constituir a negação da primeira, não o é de
   facto. Este facto simples já era conhecido por Aristóteles, que chamou
   «contrárias» a estas frases que não são a negação uma da outra. Às
   frases que se negam mutuamente chamou Aristóteles «contraditórias».
   
   A etimologia do disparate
   
   Agora que o leitor tem uma ideia clara do que é um paradoxo e do que é
   uma falácia, está apto a compreender o significado cultural da
   definição de paradoxo que surge nas obras portuguesas de referência e
   no manual escolar referido. A característica geral da definição de
   paradoxo que surge nestas obras (nas quais se inclui a enciclopédia de
   filosofia da Verbo, a Logos) é o recurso à etimologia. «Paradoxo» quer
   dizer literalmente, segundo a etimologia grega, «contra a opinião».
   Está tudo muito bem. Que este seja o único conceito que surge num
   dicionário da língua portuguesa, ainda que se intitule de «grande»,
   ainda se desculpa; mas que em obras de referência e em manuais
   escolares a mesma má definição seja apresentada ao leitor como
   informação fidedigna é um crime cultural.
   
   Um estudante de filosofia que não sabe distinguir um paradoxo de uma
   falácia é como um estudante de música que não sabe distinguir as
   cordas dos metais, ou um estudante de medicina que não distingue o
   fígado da bexiga. Como é óbvio, um estudante que não distingue um
   paradoxo de uma falácia tem altas probabilidades de cometer falácias;
   e será também muito provavelmente incapaz de examinar de forma
   correcta os problemas filosóficos, uma vez que estes têm muitas vezes
   um carácter paradoxal. Da filosofia espera­se que ofereça aos que a
   estudam lucidez e claridade no pensamento; mas enquanto se confundirem
   dois dos seus conceitos mais básicos, não se pode esperar senão
   confusão e erro.
   
   A riqueza de uma cultura patenteia­se na riqueza da sua língua; e a
   riqueza de uma língua manifesta­se na capacidade para exprimir
   conceitos complexos, subtis e importantes. Cercear esta riqueza é
   impedir o pensamento e o desenvolvimento cultural, é impedir os
   portugueses de dialogar com o mundo cultural, obrigando­os à clausura
   de uma provinciana cultura de realejo, fechada ao mundo e à
   criatividade. Mas quem sabe? talvez o objectivo seja mesmo esse.
   
   Desidério Murcho
   Sociedade Portuguesa de Filosofia
   Av. da República, 37, 4.o
   1050 Lisboa
   Epistemologia da Modalidade em David Hume
   Desidério Murcho
   
   Artigo publicado na Revista Filosófica de Coimbra, n.o 12, 1998, pp.
   441­449.
   
   O estudo das modalidades aléticas, introduzido por Aristóteles e
   cultivado na Idade Média, foi praticamente esquecido na Idade Moderna.
   O conceito de verdade necessária, no entanto, continuou a desempenhar
   um papel importante nas filosofias da Idade Moderna. Os filósofos
   racionalistas, como Leibniz ou Espinosa, encontram nas verdades
   necessárias o modelo do conhecimento fidedigno, ao passo que um
   filósofo empirista, como Locke, tem necessidade de explicar que a sua
   origem é ainda empírica, contra todas as aparências. Nos princípios do
   presente século, a atitude positivista perante as verdades necessárias
   era ainda uma sombra distante da atitude empirista típica: ao procurar
   explicar as verdades necessárias através da ideia de convenção
   linguística era ainda a ideia de que aquelas não representavam
   aspectos do mundo, mas antes convenções da linguagem.
   
   Também o pai da lógica contemporânea, Frege, procurou reduzir o
   conceito de necessidade ao conceito de universalidade.(1) Esta redução
   corresponde a afirmar que a frase «Necessariamente, todos os homens
   são mortais» exprime a mesma proposição que a frase «Todos os homens
   são mortais». Também Kant (KrV, B3­B4) parece sancionar a ideia de que
   a necessidade se pode reduzir à «absoluta universalidade». No entanto,
   esta redução carece de uma justificação. Aparentemente, afirmar que
   todos os homens são mortais é muito diferente de afirmar que
   necessariamente todos os homens são mortais; no primeiro caso
   afirmamos algo acerca do que se verifica de facto, enquanto no segundo
   caso afirmamos algo acerca do que se verifica em todas as
   circunstâncias contrafactuais.
   
   O estudo das modalidades aléticas só foi reactivado em meados do
   presente século, tendo sido decisiva a semântica dos mundos possíveis
   introduzida por Kripke, que permitiu encontrar uma única estrutura a
   relação lógica de acessibilidade nos diferentes sistemas de lógica
   modal (T, S4, B e S5). A existência da lógica modal demonstra que nada
   há de contraditório na ideia de verdade necessária. Mas é óbvio que do
   facto de um conceito ser logicamente bem formado não se segue que seja
   filosoficamente adequado. Uma outra forma de avaliarmos a legitimidade
   filosófica de um conceito é perguntarmo­nos pela sua origem
   epistemológica. Esta é a atitude de David Hume na obra An Enquiry
   Concerning Human Understanding (ECHU).(2) Estas páginas são dedicadas
   à discussão da sua secção VII, intitulada precisamente «Of the Idea of
   Necessary Connexion».
   
   Preliminares
   
   O tratamento técnico actual dos conceitos modais, bastante complexo e
   com amplo alcance, nomeadamente no âmbito tecnológico, permite que
   possa colocar­se já aquele tipo de questões de segunda ordem que
   caracterizam uma parte importante do trabalho do filósofo. É assim já
   com base num conjunto de resultados teóricos que o filósofo dos finais
   do século XX, ao contrário de Hume, enfrenta os problemas subjacentes
   aos conceitos modais. Tal como no caso do cálculo matemático das
   probabilidades ou no caso dos teoremas da incompletude de Gödel, a
   questão geral que agora se levanta é quanto ao significado filosófico
   dos conceitos modais. O filósofo encontra­se já perante resultados
   teóricos precisos, mas interroga­se agora sobre algumas questões que
   estão para além do domínio técnico.
   
   Uma vez que a própria expressão «significado filosófico» não é de
   maneira alguma clara, passo a expor os dois problemas básicos que a
   análise do significado filosófico de um qualquer conceito C em geral
   tem de enfrentar. Antes, porém, de se poder levantar a primeira
   interrogação sobre determinado conceito C, tem de se enfrentar um
   problema prévio, que consiste na questão de saber se C é na verdade
   consistente, i.e., se é possível dispor de um tratamento de C tal que
   não se caia em inconsistências, quer no interior da teoria que propõe
   C, quer em relação a outros resultados amplamente aceites. As críticas
   de Quine(3) aos conceitos modais foram no sentido de tentar mostrar a
   sua inconsistência. Mas a distinção clara entre necessidade,
   respectivamente possibilidade, de re/de dicto, mostra que os
   argumentos de Quine são inválidos.
   
   A primeira questão propriamente dita quanto ao significado filosófico
   de um conceito C consiste na análise do estatuto ontológico de C.
   Assim, em relação à modalidade trata­se de saber a que tipo de
   realidade se referem as proposições necessárias, uma vez que não se
   referem a uma realidade espácio­temporalmente localizada;
   respectivamente, em relação à ética, trata­se de saber a que tipo de
   realidade se referem as proposições morais. É neste âmbito que surgem
   as questões em relação ao realismo, anti­realismo, quase­realismo ou
   ficcionalismo. Enquanto que para um realista da modalidade as
   proposições necessárias referem uma realidade objectiva e independente
   que, no entanto, não tem localização espácio­temporal, já o
   ficcionalista modal defende que as proposições necessárias referem
   apenas ficções teóricas construídas por determinados agentes
   cognitivos, nomeadamente nós, para melhor compreenderem certos
   fenómenos, sem que no entanto tenham mais realidade que Pégaso ou
   Sherlock Holmes; respectivamente, em relação à ética, um realista
   defenderá que as suas proposições referem uma realidade objectiva e
   independente, contrapondo o anti­realista a ideia de que a moral é
   apenas uma construção social e linguística sem mais realidade do que
   um conto de fadas.
   
   A segunda questão quanto ao significado filosófico de um conceito C
   consiste na análise da epistemologia estrita de C. Assim, em relação à
   modalidade, trata­se de saber 1) qual é a fonte de conhecimento das
   verdades necessárias; respectivamente, em relação à ética, trata­se de
   saber qual é a fonte de conhecimento das verdades morais; 2) como
   podemos distinguir a verdade da ilusão acerca de C; e 3) que processos
   cognitivos estão envolvidos no processamento da informação acerca de
   C.
   
   É verdade que as questões ontológicas e as questões epistemológicas
   podem ser confundidas, mas não devem sê­lo. Ainda que se prove não
   existir fonte alguma de conhecimento de um determinado conceito C, não
   se segue que a realidade referida por C não possa existir real e
   objectivamente. Segue­se apenas que, para determinados agentes
   cognitivos, C é incognoscível.
   
   Não é menos verdade que as questões epistémicas estritas podem ser
   confundidas com questões gerais da teoria do conhecimento. A teoria do
   conhecimento tem duas grandes divisões, consoante se analisa a forma
   lógica da linguagem onde ocorre C ou a acessibilidade de C
   relativamente a determinados agentes cognitivos, em particular os
   seres humanos. Um conceito C pode ser inteligível em princípio, mas
   ser inacessível a um determinado agente cognitivo, por este não dispor
   de uma estrutura epistémica que lhe permita aceder à sua cognição
   real, mas apenas à discussão quanto à sua possibilidade. Por exemplo,
   discutir a possibilidade lógica do conceito de Deus (num sentido a
   definir) é manifestamente diferente de discutir a possibilidade
   epistémica de Deus ser conhecido pelos seres humanos.
   
   Lógica, física e metafísica
   
   Os conceitos lógicos de necessidade e possibilidade, dão origem a
   algumas confusões conceptuais que é necessário desde já procurar
   evitar. Em primeiro lugar, temos de distinguir a necessidade
   epistémica dos outros tipos de necessidade. A necessidade epistémica
   não é senão o a priori: uma proposição é epistemicamente necessária se
   e só se pode ser conhecida independentemente da experiência. A
   confusão entre necessidade epistémica e os outros tipos de
   necessidade, denunciada por Kripke,(4) poderá ter sido a origem do
   infeliz critério kantiano de a priori: estrita universalidade e
   necessidade (KrV, B3­B4).
   
   A necessidade lógica, um dos três conceitos de necessidade não
   epistémica, é fácil de definir: uma proposição P é logicamente
   necessária se e somente se ou 1) é um teorema ou um axioma da lógica
   (clássica ou não), ou 2) é uma verdade analítica. Os teoremas e
   axiomas constituem o que por vezes se chama as verdades lógicas em
   sentido estrito. As condições 1) e 2) distinguem as verdades da lógica
   estrita (cálculo proposicional e predicativo) das verdades analíticas
   em geral. A proposição
   
   (A) A Ú ¬A
   
   é um teorema do cálculo proposicional, mas a contraparte simbólica da
   frase
   
   (B) Todos os objectos verdes têm cor
   
   não é um teorema do cálculo de predicados, apesar de ser claramente
   uma verdade analítica. Tanto (A) como (B) são, pela nossa definição,
   verdades logicamente necessárias.
   
   O conceito de necessidade física é também relativamente fácil de
   definir. Uma proposição P é fisicamente necessária se e só se 1) é uma
   verdade física ou 2) é uma consequência lógica de uma verdade física.
   É fácil de ver que a noção de necessidade física não coincide com a
   noção de necessidade lógica. Por exemplo, a proposição expressa pela
   frase «nenhum objecto viaja mais depressa do que a luz» não é
   logicamente necessária, mas é fisicamente necessária.
   
   É difícil definir a noção de necessidade metafísica de forma precisa.
   Uma definição imprecisa é a seguinte: uma proposição P é
   metafisicamente necessária se 1) a sua verdade resultar das
   propriedades dos objectos a que se refere, ou se 2) for uma
   consequência lógica das propriedades dos objectos a que se refere. Na
   verdade, esta concepção de necessidade metafísica pode confundir­se
   com a necessidade física, uma vez que algumas das propriedades que os
   objectos têm consistem em propriedades que são o resultado da
   aplicação das leis físicas a esses objectos, como, por exemplo, a
   propriedade de não se poder viajar mais depressa do que a luz. A
   diferença entre necessidade física e metafísica compreende­se mais
   claramente se admitirmos a existência de situações contrafactuais com
   leis físicas diferentes das actuais; numa dessas situações a frase
   «nenhum objecto viaja mais depressa do que a luz» seria falsa: alguns
   objectos viajariam mais depressa do que a luz, uma vez que as leis da
   física seriam diferentes. Admitida a possibilidade desta situação
   contrafactual, segue­se que a frase «nenhum objecto viaja mais
   depressa do que a luz» seria fisicamente necessária, mas
   metafisicamente contingente. (A frase citada surgiu erradamente
   grafada na versão impressa deste estudo.) A posição naturalista nesta
   matéria faz coincidir a noção de necessidade metafísica com a noção de
   necessidade física, excluindo a possibilidade de situações
   contrafactuais com leis da natureza diferentes das actuais.
   
   Para facilitar a exposição, referi apenas a necessidade física. Mas
   existem outros tipos de necessidade análogos, como a necessidade
   química e biológica. Doravante referir­me­ei indiferentemente a
   qualquer destas categorias através do termo «necessidade natural».
   
   A necessidade e a possibilidade são interdefiníveis: p « ¬à¬p e àp «
   ¬¬p No entanto, a relação conceptual entre os vários conceitos de
   possibilidade é mais fácil de compreender do que a relação conceptual
   entre os vários conceitos de necessidade,(5) podendo representar­se
   comodamente no seguinte diagrama:
   
                               As fronteiras entre a possibilidade 
física/química e a possibilidade
   biológica, por exemplo, representam o facto de existirem situações
   fisicamente possíveis que não são, no entanto, biologicamente
   possíveis: a existência de girafas com listas é fisicamente possível,
   mas talvez não seja biologicamente possível.(6) A interrogação na zona
   da possibilidade metafísica representa o facto de um naturalista fazer
   coincidir a sua fronteira com a fronteira da possibilidade natural,
   excluindo assim a existência de possibilidades metafísicas que não
   sejam possibilidades naturais. Um filósofo naturalista exclui, por
   exemplo, a possibilidade de viajar mais depressa do que a luz, se for
   fisicamente impossível viajar mais depressa do que a luz.
   
   Origens empíricas
   
   A análise que David Hume oferece do conceito de necessidade, na sua
   terminologia «conexão necessária», é conduzida por considerações
   epistemológicas quanto à sua origem. A questão de saber se Hume tem em
   mente o conceito de necessidade natural ou o conceito de necessidade
   metafísica é talvez insolúvel. Em qualquer caso, a distinção entre
   proposições metafisicamente necessárias e proposições fisicamente
   necessárias não é usada claramente por David Hume, nem estava
   claramente traçada no seu tempo. No entanto, a diferença entre a
   secção VII da ECHU e a IV parece consistir, na verdade, na diferença
   de objecto de análise, ainda que permaneça a mesma orientação
   epistemológica. Assim, o conceito analisado na secção VII parece ser o
   de necessidade metafísica, ao passo que na secção IV Hume parece
   analisar o conceito de necessidade natural.
   
   Podemos reservar o termo «necessidade» para os casos de necessidade
   metafísica, e tratar os casos de necessidade natural como casos que
   são perfeitamente captados pelo quantificador universal da lógica
   clássica de Frege ("), o que farei a partir deste momento.(7) Com esta
   mudança de terminologia torna­se evidente que os problemas
   epistemológicos relativos ao conceito de necessidade natural, agora
   reformulado em universalidade, se transformam nos problemas relativos
   à indução. Em particular, Hume debruçou­se de facto sobre a
   epistemologia da relação causal natural, por achar acertadamente que
   esta é central para o nosso conhecimento do mundo.
   
   A diferença entre uma proposição P verdadeira que estabelece uma
   relação causal natural e uma proposição P´ verdadeira que estabelece
   uma relação causal metafísica é a seguinte. P é verdadeira no mundo
   actual, mas pode ser falsa noutros mundos metafisicamente possíveis.
   Mas P´ é verdadeira em todos os mundos metafisicamente possíveis. As
   secções IV e V da ECHU enfrentam as questões epistemológicas quanto ao
   conceito de relação causal natural, analisando, em particular, a
   origem do conhecimento causal natural. A secção VII da ECHU analisa a
   origem do conhecimento causal metafísico.
   
   É vantajoso dispor de uma pequena sinopse dos resultados de Hume em
   relação à análise do conceito de causalidade natural, uma vez que a
   primeira perplexidade suscitada pela sua análise do conceito de
   necessidade é o facto de adoptar como método a procura daquele dado
   dos sentidos (na sua terminologia, «impressão») que estará na origem
   do conceito (na sua terminologia, «ideia») a analisar. Esta
   perplexidade inicial é removida pelo menos parcialmente quando
   compreendemos que o que Hume visa na sua análise da epistemologia
   modal não é a origem do conceito lógico de necessidade, que ele
   reconhece existir nas operações lógicas em geral (na sua terminologia,
   «relações de ideias»). O que Hume visa na secção VII é a origem do
   conceito de relação causal metafísica, tal como visa na secção IV a
   origem do conceito de relação causal natural.
   
   Uma vez que as relações causais naturais são factos do mundo físico,
   na sua terminologia «matéria de facto», e não relações lógicas de
   conceitos, é legítimo esperar que a origem epistemológica das
   proposições que exprimem relações causais naturais não possa
   encontrar­se senão nos dados dos sentidos. É verdade que no século
   XVIII Hume tem à sua disposição um tratamento muito rudimentar da
   lógica talvez pior do que alguns medievais ­, mas aquilo de que dispõe
   é suficiente para caracterizar sumariamente a necessidade lógica,
   ainda que o faça de maneira ambígua, que pode ser interpretada como
   psicologista. Em qualquer caso, Hume faz uma separação cuidadosa entre
   relações lógicas e dados dos sentidos.
   
   Os factos do mundo são em última análise os únicos objectos a
   constituir­se como dados dos sentidos, uma vez que Hume nem sequer
   considera a hipótese, que Kant também não admitirá, de existir uma
   intuição conceptual. Os factos do mundo, ao contrário das relações
   lógicas, têm a característica de ser logicamente contingentes. Isto é,
   dada uma qualquer proposição P, verdadeira, simples e com conteúdo
   empírico, ¬P pode ainda ser verdadeira. Mas a negação de uma
   proposição verdadeira complexa que exprime uma relação lógica é uma
   contradição. Estes factos levantam a Hume a questão de saber como se
   poderá justificar epistemologicamente o facto de estarmos dispostos a
   aceitar como universal a proposição P. O método que Hume usa é o de
   procurar a fonte do conhecimento causal natural, e o que é desde logo
   tomado como óbvio é que essa fonte não pode repousar nas relações
   lógicas.
   
   Compreende­se assim que também na análise da origem do conhecimento
   das proposições necessárias as relações lógicas não sejam desde logo
   consideradas como hipóteses. Trata­se de procurar a origem das
   proposições que não são relações lógicas, mas que se pretendem apesar
   disso necessárias.(8)
   
   Cognição ou ilusão
   
   A análise da origem do conhecimento modal conduz Hume a considerar as
   suas duas fontes possíveis: a intuição externa e a intuição interna.
   Mas nem num caso nem no outro se encontra qualquer dado dos sentidos
   que possa ser a origem do conceito de necessidade. Tanto nos dados dos
   sentidos externos como nos internos, só temos acesso a factos
   empíricos contingentes e nunca a factos necessários. Os dados dos
   sentidos, internos ou externos, dão a conhecer o facto a e o facto b,
   mas nenhuma conexão modal entre os factos é percepcionável. A origem
   epistemológica do conceito de necessidade revela­se obscura.
   
   A perplexidade que surge no leitor ao deparar com a passagem da parte
   I da secção VII para a parte II é a seguinte. Na parte I Hume mostrou,
   com argumentos que putativamente nos deixam convencer, que não existe
   nenhum dado dos sentidos, internos ou externos, que possa ser a origem
   do conceito de necessidade. Assim, quando Hume nos apresenta, na parte
   II, a sua teoria sobre a origem dos conceitos modais não podemos
   deixar de ficar surpreendidos, pois a parte I parece ter já
   considerado todas as fontes possíveis, com resultados negativos. Mas
   como se sabe, Hume encontra na experiência repetida a origem do
   conceito de causalidade necessária, na secção VII, tal como na secção
   V encontrara no costume a origem do conceito de causalidade natural.
   
   Para que se compreenda o alcance da nossa perplexidade é conveniente
   ter em conta o seguinte. Ao procurar a origem epistemológica da
   causalidade necessária, chamemos­lhe c, Hume dirige­se primariamente
   aos objectos dos sentidos, onde não encontra tal. Parece assim que a
   questão epistemológica quanto à origem de c é respondida pela
   negativa. Mas na parte II Hume defende que a experiência repetida é a
   origem de c. Uma vez que a experiência repetida é uma experiência
   mental como qualquer outra, parece que a questão epistemológica quanto
   à origem de c é agora respondida pela positiva.
   
   Este é o problema crucial que tem de se enfrentar para se poder
   compreender a teoria de Hume sobre os conceitos modais. Repare­se que
   na secção anterior já respondemos à questão de saber por que razão
   Hume não procura nas relações lógicas a origem dos conceitos modais.
   Mas esta questão parece agora voltar a impor­se, pois em relação a
   qualquer raciocínio lógico realmente efectuado por um agente cognitivo
   há dois aspectos a considerar: 1) o aspecto cognitivo e 2) o aspecto
   psicológico. A cognição é de facto uma relação lógica e como tal não é
   empírica, mas a experiência psicológica do raciocínio lógico não é ela
   mesma uma relação lógica, mas uma experiência empírica do sentido
   interno. Podemos assim argumentar que ainda que não se possa encontrar
   no raciocínio lógico a origem dos conceitos modais, podemos todavia
   encontrar tal origem na experiência empírica e psicológica que ocorre
   quando efectuamos um raciocínio lógico.
   
   A formulação da nossa perplexidade torna mais claro o problema da
   interpretação da tese de Hume sobre a origem epistemológica dos
   conceitos modais e a aparentemente concomitante tese sobre o estatuto
   ontológico dos mesmos. Se Hume achasse que a experiência repetida,
   enquanto experiência empírica, constituía a origem do conceito de
   causalidade necessária, então seria na verdade um objectivista quanto
   à modalidade. Isto é, para Hume os factos modais existiriam
   objectivamente no mundo empírico, se bem que não onde se poderia
   pensar que estariam nos objectos ­, mas na relação entre dois tipos de
   fenómenos: a psicologia dos agentes cognitivos e a repetição de certos
   fenómenos empíricos. Mas a psicologia dos agentes cognitivos é ela
   própria um fenómeno empírico, tanto quanto a existência de coelhos.
   Neste caso, Hume seria um objectivista, se bem que os factos modais
   não seriam propriedades de relações entre objectos, mas propriedades
   de pares ordenados cujo primeiro membro seria um fenómeno causal e
   cujo segundo membro seria um fenómeno psicológico. As proposições
   modais seriam assim asserções genuínas sobre esses pares ordenados,
   mas não sobre o mundo da experiência de objectos exteriores. Será esta
   teoria defensável?
   
   Dificilmente. O problema que se levantava à relação modal entre os
   fenómenos causais do mundo levanta­se agora à relação entre esses
   fenómenos e a nossa predisposição psicológica para, perante a sua
   experiência repetida, reagir de uma certa forma. Por outras palavras,
   da mesma forma que a afirmação de uma relação modal entre fenómenos do
   mundo empírico carecia de análise, também a relação (modal ou apenas
   natural) entre esses fenómenos e a nossa psicologia carece de análise.
   
   A alternativa que resta a Hume é considerar que o facto psicológico de
   se gerar uma expectativa na mente dos agentes cognitivos aquando da
   experiência repetida não produz conhecimento, mas apenas uma forma de
   ilusão que consiste em atribuir ao mundo exterior uma propriedade que
   ele não tem de facto, não se podendo afirmar sequer que esta propensão
   psicológica mantenha com a experiência repetida uma qualquer relação
   cognitivamente adequada. A própria experiência psicológica interna não
   pode neste caso constituir­se como origem epistemológica dos conceitos
   modais porque é apenas um facto psicológico destituído de significado
   cognitivo. A experiência repetida produz um certo efeito psicológico
   sobre determinados agentes cognitivos, mas este efeito não é em
   qualquer caso um facto do mundo interno que mantenha uma relação
   cognitiva com o mundo externo é apenas uma ilusão do nosso sentido
   externo.(9)
   
   É conveniente lembrar que do facto de não existir uma origem
   epistemológica de um determinado conceito C não se segue estritamente
   que, do ponto de vista ontológico, tal conceito não possa referir uma
   realidade objectiva, apesar de epistemicamente inacessível. Assim,
   apesar de Hume não encontrar a origem epistemológica dos conceitos
   modais, mas apenas uma origem psicológica destituída de conteúdo
   cognitivo, não se segue que estes não existam; segue­se apenas que são
   incognoscíveis para os seres humanos.(10)
   
   Desidério Murcho
   Sociedade Portuguesa de Filosofia
   Av. da República, 37, 4.o
   1050 Lisboa
   
  
   Artigo publicado na Revista Filosófica de Coimbra, n.o 12, 1998, pp.
   441­449.
   
  
   Notas
   
    1. Cf. Begriffsschrift (publicado em 1879), p. 4­5 (trad. inglesa de
       Peter Geach, Oxford: Blackwell, 1952, p. 4).
    2. Publicada em 1748, está hoje disponível na edição canónica de L.A.
       Selby­Bigge e P. H. Nidditch, Oxford University Press, Oxford,
       1975.
    3. Nomeadamente, em «Reference and Modality» in From a Logical Point
       of View, Harvard University Press, Cambridge, Mass. e Londres,
       1953, pp. 139­159.
    4. Cf. Naming and Necessity, Oxford: Blackwell, 1980, pp. 34­35.
    5. Isto acontece porque, ao passo que todas as possibilidades
       naturais são possibilidades lógicas (apesar de nem todas as
       possibilidades lógicas serem possibilidades naturais), nem as
       necessidades lógicas são necessidades naturais, nem as
       necessidades naturais são necessidades lógicas: a intersecção do
       conjunto das necessidades lógicas com o conjunto das necessidades
       naturais é vazio.
    6. Sobre este tema deve ler­se o capítulo «The Possible and the
       Actual» do penúltimo livro de Daniel C. Dennett, Darwin's
       Dangerous Idea, London: Penguin, 1995, pp. 104­123.
    7. De um ponto de vista técnico preciso o quantificador universal não
       pode substituir o operador de necessidade numa verdade
       naturalmente necessária, uma vez que uma verdade naturalmente
       necessária é verdadeira em todos os mundos possíveis que tenham
       leis da natureza iguais às leis da natureza do mundo actual, ao
       passo que o quantificador universal da lógica clássica não
       quantifica sobre mundos.
    8. Para Kant a questão é a de saber, admitindo que as ciências
       produzem proposições necessárias, como é isso possível (KrV,
       B20­B21).
    9. Em A Treatise of Human Nature (1739­1740), edição de L.A.
       Selby­Bigge e P. H. Nidditch, Oxford University Press, Oxford,
       1978, p. 166, Hume parece subscrever
   10. Beneficiei dos comentários de vários membros do Grupo de Análise
       Filosófica (SPF), entre os quais o Pedro Santos e o Luís
       Bettencourt, e da discussão detalhada com o Prof. João Paulo
       Monteiro, que agradeço calorosamente. Muitos erros foram evitados.
   Perplexidades lógicas
   Desidério Murcho
   
   Este estudo tem por objectivo fornecer ao leitor já familiarizado com
   a lógica elementar alguns resultados menos evidentes cujo
   desconhecimento pode gerar alguma perplexidade. Os resultados aqui
   apresentados são os seguintes: o conjunto de todos os conectivos
   lógicos binários, a distinção entre a relação lógica de dedução e a de
   implicação, a relação lógica entre o Modus ponens, o princípio do
   terceiro excluído e o princípio da não contradição, a definição de
   fórmula satisfazível do cálculo de predicados, e a intransitividade da
   dedução num sistema de lógica livre. A minha esperança é estimular os
   leitores a ter uma visão ampla e crítica da lógica.
   
   Conectivos lógicos
   
   O cálculo proposicional clássico conhece 4 conectivos binários e um
   unário:
   
   Ú, Ù, ®, «, ¬.
   
   Sabemos que podemos prescindir de quaisquer três dos primeiros quatro
   e ficar apenas com o restante e a negação. Mas sabemos também que a
   economia tem um preço: quanto mais económico for um sistema dedutivo
   (quer quanto ao número de conectivos, quer quanto ao número de axiomas
   e de regras de inferência), mais prolixas serão as suas demonstrações.
   Conversamente, quanto mais prolixo for um sistema dedutivo (quer
   quanto ao número de conectivos, quer quanto ao número de axiomas e de
   regras de inferência), mais económicas serão as suas demonstrações.
   
   Apesar de tradicionalmente o cálculo proposicional conhecer no máximo
   4 conectivos binários, os conectivos binários possíveis são no entanto
   16, número que resulta da combinação exaustiva dois a dois (porque são
   dois os valores de verdade) das quatro filas existentes numa tabela de
   verdade com duas variáveis proposicionais. A tabela que se obtém é a
   seguinte:
   
                                     1
                                      
                                      
                                      
                                     2
                                      
                                   ¬Ù, |
                                      
                                     3
                                      
                                     ®
                                      
                                     4
                                      
                                     ¬Ü
                                      
                                     5
                                      
                                     ¬
                                      
                                     6
                                      
                                     ¬Þ
                                      
                                     7
                                      
                                     «
                                      
                                     8
                                      
                                   ¬Ú, ­
                                      
                                     9
                                      
                                     Ú
                                      
                                     10
                                      
                                     ¬
                                      
                                     11
                                      
                                     Þ
                                      
                                     12
                                      
                                     ¬¬
                                      
                                     13
                                      
                                     Ü
                                      
                                     14
                                      
                                     ¬®
                                      
                                     15
                                      
                                     Ù
                                      
                                     16
                                      
                                      
                                      
                                     VV
                                      
                                     V
                                      
                                     F
                                      
                                     V
                                      
                                     F
                                      
                                     V
                                      
                                     F
                                      
                                     V
                                      
                                     F
                                      
                                     V
                                      
                                     F
                                      
                                     V
                                      
                                     F
                                      
                                     V
                                      
                                     F
                                      
                                     V
                                      
                                     F
                                      
                                     VF
                                      
                                     V
                                      
                                     V
                                      
                                     F
                                      
                                     F
                                      
                                     V
                                      
                                     V
                                      
                                     F
                                      
                                     F
                                      
                                     V
                                      
                                     V
                                      
                                     F
                                      
                                     F
                                      
                                     V
                                      
                                     V
                                      
                                     F
                                      
                                     F
                                      
                                     FV
                                      
                                     V
                                      
                                     V
                                      
                                     V
                                      
                                     V
                                      
                                     F
                                      
                                     F
                                      
                                     F
                                      
                                     F
                                      
                                     V
                                      
                                     V
                                      
                                     V
                                      
                                     V
                                      
                                     F
                                      
                                     F
                                      
                                     F
                                      
                                     F
                                      
                                     FF
                                      
                                     V
                                      
                                     V
                                      
                                     V
                                      
                                     V
                                      
                                     V
                                      
                                     V
                                      
                                     V
                                      
                                     V
                                      
                                     F
                                      
                                     F
                                      
                                     F
                                      
                                     F
                                      
                                     F
                                      
                                     F
                                      
                                     F
                                      
                                     F
                                      
   A análise da tabela acima revela imediatamente que os conectivos 9­16
   são a negação dos conectivos 1­8, e reciprocamente. Para cada
   conectivo tradicional existe por isso um outro conectivo que é a sua
   negação. Os conectivos 2, 8, 10 e 14 são, respectivamente, a negação
   dos conectivos 15 (Ù), 9 (Ú), 7 («) e 3 (®). É também instrutivo notar
   que o traço de Sheffer (|) ­ capaz, só por si, de representar todas as
   funções de verdade ­ é de facto a negação da conjunção (conectivo 2) e
   que a adaga de Quine (­) ­ também ela capaz de, só por si, de
   representar todas as funções de verdade ­ é de facto a negação da
   disjunção (conectivo 8).
   
   Excluídas as tradicionais e as suas negações, ficamos com oito
   conectivos. Destes oito, podemos concentrar a nossa atenção apenas nos
   quatro primeiros, pois os restantes são apenas a negação destes.
   
   Destes quatro conectivos, o 5 é obtido por comutação das variáveis
   proposicionais a partir do 3 (®), podendo por isso ser representado
   por «¬».
   
   Restam assim três conectivos, dos quais o 1 é pouco interessante, uma
   vez que transforma em tautologia todas as proposições nas quais este
   conectivo seja o principal, independentemente do valor de verdade das
   variáveis proposicionais.
   
   Os dois conectivos que restam são o 4 e o 6. Mas imediatamente se
   percebe que o 4 se obtém na verdade por comutação a partir do 6, de
   forma que podemos concentrar a nossa atenção no 6. No entanto, é a
   negação do 6 que é realmente interessante, de forma que vamos tomar 11
   («Þ») como o conectivo primitivo e 6 como a sua negação. O conectivo
   «Þ» garante que se obtém o valor de verdade V se e só se a segunda
   variável proposicional tem o valor de verdade V.
   
   Com o nosso novo conectivo «Þ» podemos simplificar algumas proposições
   da lógica clássica. A tautologia expressa na proposição
   
   (1) [(Q ® ¬P) ® ¬(P ® Q)] ® P
   
   pode agora exprimir­se na proposição
   
   (2) (Q Þ P) ® P.
   
   (2) pode acrescentar­se como axioma a um sistema axiomático do tipo do
   de Hilbert, pois representa o comportamento do próprio conectivo «Þ».
   Será interessante verificar se as demonstrações num sistema que
   contenha este novo conectivo resultam mais económicas, como é legítimo
   esperar.
   
   Dedução e implicação
   
   A relação lógica entre a dedução e a implicação é a seguinte: sejam a
   e b duas fórmulas moleculares do cálculo de predicados ou do cálculo
   proposicional; então
   
   (3) para quaisquer a e b, se a | b então a ® b
   
   (4) existem fórmulas a e b tal que a ® b e a  [not_der.GIF] b.
   
   A proposição (3) é na verdade o Teorema da Dedução, cuja demonstração
   não cabe apresentar aqui. A proposição (4) demonstra­se da seguinte
   forma:
   
   1. Seja T uma teoria axiomática independente para o cálculo
   proposicional
   
   2. Nenhum axioma de T é derivável a partir de outro qualquer axioma
   
   3. Mas todos os axiomas são tautologias
   
   4. Se duas fórmulas a e b são tautologias, então têm o mesmo valor de
   verdade. Logo, a e b são equivalentes.
   
   5. Mas se duas fórmulas a e b são equivalentes, então a ® b.
   
   6. Logo, qualquer axioma de T implica qualquer outro axioma de T.
   
   7. Existem assim fórmulas a e b tal que a ® b e a  [not_der.GIF] b.
   
   Modus ponens e terceiro excluído
   
   Uma aplicação do resultado anterior é o seguinte: é óbvio que
   quaisquer duas tautologias se implicam mutuamente, e assim não é de
   estranhar que o princípio do terceiro excluído
   
   (TE) a Ú ¬a
   
   implique a formulação proposicional da regra de inferência modus
   ponens
   
   (MP) [a Ù (a ® b)] ® b ,
   
   e reciprocamente. Mas é agora pertinente perguntar se TE deriva de MP
   e reciprocamente. A resposta positiva demonstra­se assim:
   
   Caso 1: TE MP
   
   1. a Ú ¬a TE
   
   2. (A ® B) Ú ¬(A ® B) 1, RI
   
   3. ¬(A ® B) Ú (A ® B) 2, Comutatividade de «Ú»
   
   4. ¬(A ® B) Ú (¬A Ú B) 3, Eliminação da «®»
   
   5. [¬(A ® B) Ú ¬A] Ú B 4, Associatividade de «Ú»
   
   6. ¬[(A ® B) Ù A] Ú B 5, De Morgan
   
   7. [(A ® B) Ù A] ® B 6, Introdução da «®»
   
   8. [(a ® b) Ù a] ® b 7, RI
   
   9. [a Ù (a ® b)] ® b 8, comutatividade de «Ù»
   
   Caso 2: MP TE
   
   1. [a Ù (a ® b)] ® b MP
   
   2. [(a ® b) Ù a] ® b 1, Comutatividade de «Ù»
   
   3. [(A ® B) Ù A] ® B 2, RI
   
   4. ¬[(A ® B) Ù A] Ú B 3, Eliminação da «®»
   
   5. [¬(A ® B) Ú ¬A] Ú B 4, De Morgan
   
   6. ¬(A ® B) Ú (¬A Ú B) 5, Associatividade de «Ú»
   
   7. ¬(A ® B) Ú (A ® B) 6, Introdução de «®»
   
   8. (A ® B) Ú ¬(A ® B) 7, Comutatividade de «Ú»
   
   9. a Ú ¬a 8, RI
   
   Uma vez que o princípio do terceiro excluído
   
   (TE) a Ú ¬a
   
   deriva do princípio da não contradição
   
   (NC) ¬(a Ù ¬a)
   
   e reciprocamente (por De Morgan), segue­se que NC, TE e MP são
   princípios interderiváveis.
   
   Satisfazibilidade
   
   Todos os estudantes de lógica elementar sabem que existem três tipos
   de fórmulas moleculares bem formadas no cálculo proposicional:
   fórmulas contingentes, tautologias e contradições. No cálculo de
   predicados existe um paralelo óbvio com as tautologias e as
   contradições: são as fórmulas universalmente válidas (FUV) e as
   fórmulas universalmente inválidas (FUI).
   
   Uma fórmula proposicional molecular bem formada a é uma tautologia se
   e só se resulta verdadeira em todas as atribuições de valores de
   verdade às suas variáveis proposicionais; uma fórmula predicativa
   molecular bem formada a é uma FUV se e só se resulta verdadeira em
   todas as interpretações. Uma fórmula proposicional molecular bem
   formada a é uma contradição se e só se resulta falsa em todas as
   atribuições de valores de verdade às suas variáveis proposicionais;
   uma fórmula predicativa molecular bem formada a é uma FUI se e só se
   resulta falsa em todas as interpretações.
   
   Este paralelo perde­se no que respeita às fórmulas contingentes. Com
   efeito, na lógica proposicional, a é uma fórmula contingente se e só
   se existem atribuições de valores de verdade às variáveis
   proposicionais de a que a tornam falsa e outras atribuições que a
   tornam verdadeira. Mas, na lógica predicativa, para que a seja uma
   fórmula satisfazível (FS) basta que existam interpretações que tornem
   a verdadeira; não é necessário que existam também interpretações que a
   tornem falsa (mas podem existir interpretações que a tornem falsa).
   
   Formalmente, os axiomas que regulam o conceito de FS são os seguintes:
   
   (A1) FUV(f) ¬FS(¬f)
   
   (A2) FS(f) ¬FUV(¬f)
   
   Pelos axiomas é fácil verificar que existem dois tipos diferentes de
   fórmulas que são FS: fórmulas como
   
   (5) "x(Px ® Qx)
   
   e fórmulas como
   
   (6) "x(Px ® Px).
   
   Ora, uma análise básica de (5) e (6) revela imediatamente que se trata
   de dois tipos diferentes de fórmulas: (5) é verdadeira em alguns
   domínios e falsa noutros, enquanto (6) é verdadeira em todos os
   domínios. O conceito de satisfazibilidade expresso nos axiomas
   (A1)­(A2) cobre estes dois casos.
   
   Torna­se assim claro que (i) existem de facto contrapartes
   predicativas das fórmulas contingentes da lógica proposicional, e que
   (ii) o conceito corrente de FS não satisfaz o paralelismo com a lógica
   proposicional por considerar como FS dois tipos diferentes de
   fórmulas.
   
   Proponho que se chame a (5) uma fórmula predicativa contingente (FPC).
   A sua definição
   
   (7) FPC(f) FPC(¬f)
   
   é perfeitamente paralela em relação ao cálculo proposicional e dá
   conta do facto mais relevante: a negação de qualquer fórmula como (5)
   é ainda uma FPC.
   
   Um resultado interessante dos axiomas (A1)­(A2) é a sua incompletude:
   não podemos a partir de (A1)­(A2), com os meios tradicionais da
   lógica, derivar como teoremas pelo menos uma verdade básica acerca das
   relações entre as FUV e as FS.
   
   Demonstração: Seja a uma FUV. É fácil verificar que a é uma FS. Logo,
   podemos assumir como uma verdade que FUV(f) ® FS(f). Mas este
   resultado não é derivável sintacticamente a partir dos axiomas. Não
   ofereço a demonstração deste facto, que pode com economia ser
   realizada através do método das árvores semânticas, mas ofereço a
   derivação mais próxima a que é possível chegar, porque tem o interesse
   de mostrar uma contradição semântica que não é no entanto uma
   contradição sintáctica:
   
   (A1), (A2) FUV(f) ® FS(f)
   
   (Reductio)
   
   1. ¬[FUV(f) ® FS(f)] Hip. Red.
   
   2. FUV(f) Ù ¬FS(f) 1, Tautologia
   
   3. ¬FUV(¬f) ® FS(f) (A2), Tautologia
   
   4. FUV(¬f) 2, 3, MT
   
   5. FUV(f) Ù FUV(¬f) 2, 4
   
   6. FUV(f) ® FS(f) 1­5, Red.
   
   O passo 5, única contradição a que é possível chegar para demonstrar o
   teorema desejado, não é de facto uma contradição no sentido sintáctico
   do termo. É apenas uma contradição semântica: afirma que a fórmula a e
   a sua negação são FUV, o que é diferente de uma contradição
   sintáctica, que teria de ser «FUV(f) Ù ¬FUV(f)».
   
   Intransitividade da dedução
   
   Qualquer estudante sabe que as lógicas livres se caracterizam por
   admitir domínios de quantificação vazios ou nomes sem denotação. Esta
   frase é propositadamente ambígua, e pode ser erradamente interpretada
   como significando que admitir domínios de quantificação vazios e nomes
   sem denotação é a mesma coisa. Mas a verdade é que são dois conceitos
   distintos.
   
   A distinção entre os dois é comodamente compreendida considerando que
   podemos ter uma lógica com domínios possivelmente vazios e em que
   todos os nomes próprios denotam objectos existentes num domínio.
   
   Admitir domínios de quantificação vazios implica considerar que
   
   (8) "xPx | $xPx
   
   não é válida.
   
   Sustentar que todos os nomes têm denotação implica considerar que
   
   (9) Pa | $xPx
   
   é válida.
   
   Mas Hodges quer admitir como válida também
   
   (10) "xPx | Pa ,
   
   o que parece permitir a existência de nomes sem denotação, única
   possibilidade de tornar (10) uma inferência válida, uma vez que a
   asserção universal pode estar a quantificar sobre um domínio vazio. Na
   verdade a ideia de Hodges é diferente: sempre que se utiliza no
   sistema dedutivo um nome próprio, existe um objecto denotado por esse
   nome.
   
   Da aceitação de (10) segue­se ainda a consequência desagradável da
   dedução ter de ser considerada intransitiva, caso contrário (8) é
   derivável a partir de (10) e (9).
   
   No entanto, a implicação é transitiva em Hodges:
   
   (11) ("xPx ® Pa) , (Pa ® $xPx) | ("xPx ® $xPx) .
   
   O resultado é um sistema de lógica cuja relação de derivabilidade é
   intransitiva, apesar de a implicação ser transitiva. Esta é aliás a
   única hipótese de manter um sistema de lógica com domínios
   possivelmente vazios, mas cujos nomes denotam necessariamente.
   
   Desidério Murcho
   Sociedade Portuguesa de Filosofia
   Av. da República, 37­4.o, 1050 Lisboa
   HUME E GOODMAN SOBRE A INDUÇÃO
   Desidério Murcho
   
   O objectivo geral desta nota é explicar a natureza do problema da
   indução, fazendo contrastar as posições de Hume e de Goodman. Mais
   especificamente, vou procurar mostrar a diferença crucial entre a
   formulação clássica do problema da indução, habitualmente atribuída a
   Hume, e a contemporânea, apresentada por Goodman. O aspecto técnico
   mais delicado em relação à formulação de Goodman do problema da
   indução é o que diz respeito ao exemplo do «verdul» (mistura de verde
   e azul). Por isso, tentarei formular o exemplo de Goodman de forma
   clara e detalhada, procurando responder às perplexidades e
   incompreensões que costumam surgir.
   
   Devo dizer desde já que o estilo de filosofia que eu pratico a
   filosofia analítica é um pouco diferente daquilo a que estamos
   habituados em Portugal. Essa diferença será evidente nesta nota. Mas
   convém dizer duas palavras sobre essa diferença, porque sei que sobre
   a filosofia analítica há no nosso país sobretudo informação errada.
   
   Em primeiro lugar, a filosofia analítica não é uma escola filosófica,
   no sentido de um movimento que defende um certo conjunto de teses ou
   de métodos; a filosofia analítica é sobretudo uma forma de abordar com
   clareza e precisão os problemas da filosofia.
   
   Em segundo lugar, a filosofia analítica não reduz a filosofia à
   lógica; a lógica é para nós, como o era para Aristóteles, um
   instrumento filosófico. Como instrumento que é, a lógica não serve
   para resolver os problemas da filosofia; serve apenas para nos ajudar
   a distinguir a verdade da ilusão.
   
   Em terceiro lugar, é importante que se diga que a filosofia analítica
   não se reduz à filosofia da linguagem e disciplinas adjacentes. Na
   verdade, como ficou provado no último número da revista Disputatio, a
   maior parte das publicações analíticas são da área da ética e da
   filosofia política e não da filosofia da linguagem.
   
   Por fim, convém dizer que não podemos confundir a filosofia analítica
   com uma das suas defuntas escolas, o positivismo lógico; este
   movimento filosófico foi apenas um dos muitos movimentos filosóficos
   analíticos; hoje em dia, duvido que ainda exista algum positivista
   lógico. No entanto, abundam os filósofos analíticos.
   
   Posto isto, passemos então ao tema desta nota.
   
   O que a indução não é
   
   Há uma ideia errada que já era ensinada quando eu era estudante de
   liceu e que infelizmente continua a ser ensinada. Essa ideia é a
   seguinte: a indução caracteriza­se por partir do particular para o
   geral; a dedução, do geral para o particular. Isto é falso. Para
   mostrar que é falso que a dedução parte do geral para o particular
   basta encontrar um raciocínio dedutivo válido onde isso não aconteça.
   Tome­se o seguinte exemplo:
   
     (1) Aristóteles era um filósofo grego. Logo, Aristóteles era um
     filósofo.
     
     Fn Ù Gn \ Fn
     
   Neste caso, a inferência é dedutiva e procede do particular para o
   particular. Mas também há inferências dedutivas que procedem do geral
   para o geral:
   
     (2) Todos os filósofos são seres humanos; todos os seres humanos
     são mortais. Logo, todos os filósofos são mortais.
     
     "x (Fx ® Hx), "x (Hx ® Mx) \ "x (Fx ® Mx)
     
   E, mais espantoso ainda, há inferências dedutivas que procedem do
   particular para o geral:
   
     (3) Aristóteles era um filósofo e era idêntico a si mesmo. Logo,
     todos os filósofos são idênticos a si mesmos.
     
     Fn Ù n = n \ "x (Fx ® x = x)
     
   É verdade que esta última inferência tem uma característica especial
   (é vacuamente válida porque a sua conclusão é uma verdade lógica); mas
   bastam as outras duas para refutar a ideia de que o que caracteriza a
   inferência dedutiva é o facto de partir do geral para o particular.
   
   Penso que não será muito difícil encontrar exemplos de inferências
   indutivas do particular para o particular, nem do geral para o geral,
   nem do geral para o particular. Não vou dar exemplos, mas poderemos
   voltar a isso no fim, se alguém o quiser.
   
   Comecei por denunciar este erro típico porque penso que ele é
   responsável, pelo menos em parte, por algumas dificuldades em
   compreender o problema clássico da indução.
   
   Na verdade, só podemos compreender claramente o problema clássico da
   indução se soubermos lógica elementar; e também só podemos compreender
   o «novo enigma da indução» de Goodman se soubermos lógica elementar.
   No entanto, espero poder fazer­me compreender sem pressupor quaisquer
   conhecimentos de lógica, para além das intuições dedutivas básicas que
   todos os seres humanos possuem.
   
   Qual é o problema clássico da indução?
   
   Regressemos à primeira inferência dedutiva apresentada:
   
     (1) Aristóteles era um filósofo grego. Logo, Aristóteles era um
     filósofo.
     
     Fn Ù Gn \ Fn
     
   É óbvio que há uma relação especial entre a conclusão e a premissa: a
   verdade da premissa garante a verdade da conclusão. Isto é, se a
   premissa for verdadeira, a conclusão será também verdadeira. Não há
   nenhuma circunstância na qual a premissa seja verdadeira e a conclusão
   falsa.
   Repare­se agora na seguinte inferência indutiva:
   
     (4) Todos os corvos que observámos até hoje eram pretos. Logo,
     todos os corvos são pretos.
     
     "x ((Cx Ù Ox) ® Px)) \ "x (Cx ® Px)
     
   Não é muito difícil imaginar situações nas quais a premissa seja
   verdadeira e no entanto a conclusão seja falsa. No entanto, a
   inferência parece­nos perfeitamente razoável. Repare­se agora no
   seguinte raciocínio dedutivo:
   
     (5) Aristóteles era filósofo. Logo, Aristóteles era filósofo e
     grego.
     
     Fn \ Fn Ù Gn
     
   A conclusão é de facto verdadeira, tal como a premissa. Mas não é
   muito difícil descobrir situações nas quais a premissa seja verdadeira
   e a conclusão falsa: basta pensar que Aristóteles poderia ter nascido
   no Egipto e ser filósofo.
   
   Há no entanto uma assimetria entre este exemplo e o anterior. Nós
   achamos que neste caso a verdade da premissa não garante a verdade da
   conclusão porque o raciocínio é errado. Mas no primeiro caso achamos e
   com razão que o raciocínio é razoável. Tanto mais razoável quantos
   mais corvos pretos tiverem sido observados.
   
   É esta a diferença entre a dedução e a indução:
     * Nos bons raciocínios dedutivos a verdade das suas premissas
       garante a verdade das suas conclusões; se num raciocínio dedutivo
       a verdade das premissas não garantir a verdade da conclusão,
       achamos que estamos perante um mau raciocínio dedutivo é o que se
       chama uma inferência inválida, ou, em alguns casos, uma falácia.
     * Nos bons raciocínios indutivos a verdade das suas premissas não
       garante a verdade das suas conclusões; apesar de esta falta de
       garantia ser óbvia, não achamos, só por isso, que o raciocínio
       indutivo em causa é mau. Pelo contrário, pode parecer­nos bastante
       razoável.
       
   Estamos agora em condições de perceber o problema clássico da indução.
   Dado que ao contrário do que acontece na dedução a verdade das suas
   premissas não garante, nos raciocínios indutivos, a verdade das suas
   conclusões, como justificar a indução? Há duas hipóteses: ou
   justificamos a indução dedutivamente, ou a justificamos indutivamente.
   No primeiro caso, se conseguirmos fazê­lo, ficaremos com uma
   justificação demasiado forte a verdade das premissas passará a
   garantir afinal a verdade das conclusões. No segundo caso, ficaremos
   com uma justificação circular, pois justificaremos a indução pela
   indução. A esta alternativa desagradável deu­se o nome de dilema de
   Hume. E este é, em traços gerais, o problema clássico da indução: como
   justificar a indução, dado que a verdade das suas conclusões não é
   garantida pelas suas premissas? Há muitas formas de reagir ao problema
   clássico da indução. Já de seguida apresentarei a reacção de Goodman.
   
   O país dos verduis
   
   As tentativas de solução do problema clássico da indução centravam­se
   na tentativa de justificar a relação de confirmação existente entre as
   premissas de uma indução e a sua conclusão. Que mecanismo justifica a
   relação de confirmação? Goodman introduz, no entanto, um novo
   problema, bastante mais preciso do que o clássico.
   
   Considere­se a seguinte indução:
   
     (6) Todas as esmeraldas observadas até hoje eram verdes. Logo,
     todas as esmeraldas são verdes.
     
     "x ((Ex Ù Ox) ® Vx) \ "x (Ex ® Vx)
     
   Esta indução parece­nos perfeitamente razoável. O problema clássico da
   indução consiste em determinar qual é o mecanismo de confirmação
   existente entre a premissa e a conclusão. Procura­se explicar como é
   que os exemplares positivos (ou instâncias positivas) de uma
   generalização podem confirmar a generalização em causa.
   
   Considere­se agora a seguinte indução:
   
     (7) Todas as esmeraldas observadas até hoje eram verduis. Logo,
     todas as esmeraldas são verduis.
     
     "x ((Ex Ù Ox) ® Wx) \ "x (Ex ® Wx)
     
   O predicado verdul é definido da seguinte maneira:
   
     (8) Um objecto é verdul se, e só se, tiver sido descoberto até hoje
     e for verde, ou for descoberto no futuro e for azul.
     
   Dada esta definição de verdul é fácil de ver que se todas as
   esmeraldas forem verduis, as esmeraldas que descobrirmos amanhã serão
   azuis. E também é fácil de ver que todas as esmeraldas observadas até
   hoje são efectivamente verduis, uma vez que todas as esmeraldas
   observadas até hoje são verdes.
   
   Mas se todas as esmeraldas forem efectivamente verdes, e não verduis,
   as esmeraldas que descobrirmos amanhã serão verdes. Chegámos por isso
   ao resultado paradoxal: as premissas de ambas as induções são
   verdadeiras; a forma lógica das inferências é a mesma; e, no entanto,
   as suas conclusões são inconsistentes não podem ser ambas verdadeiras.
   
   Estamos no cerne do novo enigma da indução. Vou agora tentar desfazer
   algumas perplexidades habituais, umas mais sofisticadas, outras menos.
   Se subsistirem perplexidades, não hesitem em tomar nota delas para
   podermos esclarecê­las no fim.
   
   Em primeiro lugar, é preciso compreender o modo como o predicado
   verdul está definido. Um objecto verdul não é um objecto que é hoje
   verde e que amanhã se torna azul. Um objecto que seja verdul e que
   tenha sido observado pela primeira vez até ao dia de hoje, é verde;
   mas se esse objecto for verde e só for observado pela primeira vez
   amanhã, não será verdul. Para que um objecto que seja observado pela
   primeira vez amanhã seja verdul, terá de ser azul.
   
   Em segundo lugar, levanta­se uma perplexidade mais sofisticada. Não
   resulta o nosso resultado paradoxal do facto de termos usado um
   predicado tão estranho? A resposta é sim e não. É óbvio que o
   resultado paradoxal resulta do predicado verdul. Mas em que medida,
   exactamente?
   
   A tentação é dizer que o predicado verdul é logicamente complexo, ao
   passo que o predicado verde é logicamente simples e que é por isso que
   geramos o paradoxo. Mas isto não pode ser verdade. Este é o aspecto
   mais subtil do exemplo de Goodman, pelo que vou recorrer a uma pequena
   dramatização.
   
   Imaginemos dois países: o nosso país, o país dos verdes, que falam a
   linguagem do verde, e o país dos verduis, que falam a linguagem do
   verdul. Quando chegamos ao país dos verduis achamos muito estranho que
   afirmem que as esmeraldas são verduis. Quando finalmente percebemos o
   que eles querem dizer, apontamos a definição de verdul dada acima no
   nosso caderno e achamos que eles não são muito bons da cabeça.
   
   Mas que dirão eles quando nos ouvem dizer que todas as esmeraldas são
   verdes? Ao princípio não compreendem nada. Quando finalmente
   compreendem apontam a seguinte definição de verde nos cadernos deles:
   
     (9) Um objecto é verde se, e só se, tiver sido descoberto até hoje
     e for verdul, ou for descoberto no futuro e for azerde.
     
   No nosso idioma, um objecto é azerde se, e só se, tiver sido
   descoberto até hoje e for azul, ou for descoberto no futuro e for
   verde.
   
   Que nos mostra a definição que os estranhos habitantes do país dos
   verduis escreveram nos seus cadernos? Mostra uma coisa muito
   importante: os predicados verde e verdul são interdefiníveis.
   
   A interdefinibilidade é algo completamente transparente para quem sabe
   lógica elementar. Por exemplo, os quantificadores universal e
   existencial são interdefiníveis, assim como os operadores modais de
   necessidade e de possibilidade:
   
     "x jx º ¬$x ¬jx
     $x jx º ¬"x ¬jx
     
     ¨ A º ¬à ¬A
     à A º ¬¨ ¬A
     
   O facto de verdul ser interdefinível relativamente a verde quer dizer
   que são logicamente equivalentes. Isto significa que o artificialismo
   introduzido pela referência ao momento da descoberta do objecto é
   apenas aparente: «verde» também pode ser definido através de uma
   referência ao momento da descoberta.
   
   O facto de existir um parâmetro temporal na definição de verdul não
   pode, por isso, explicar o insucesso da inferência verdul, pois esse
   parâmetro só existe na nossa linguagem, que é a linguagem dos verdes.
   Na linguagem dos verduis é o nosso predicado que tem um parâmetro
   temporal.
   
   O novo enigma de Goodman
   
   Que mostra então o exemplo da indução verdul? Mostra que o problema da
   indução é mais complexo do que Hume pensava. Mesmo que conseguíssemos
   explicar a relação de confirmação existente entre as premissas das
   induções e as suas conclusões, não conseguiríamos resolver o problema
   da indução. O exemplo de Goodman mostra que isso não basta. É preciso
   explicar também por que razão alguns predicados servem para fazer
   induções e outros não. E a explicação não pode ser lógica, porque os
   predicados verdul e verde são logicamente interdefiníveis.
   
   Imagine­se que tínhamos uma teoria (como na realidade temos a
   probabilidade) que explicava a relação de confirmação entre as
   premissas e as conclusões das induções. Uma vez que as premissas de
   ambas as inferências (a verde e a verdul) são verdadeiras e uma vez
   que não há diferença lógica entre os predicados, nenhuma explicação em
   termos de teoria da confirmação será capaz de excluir uma como má e
   incluir a outra como boa.
   
   Como explicar então a diferença entre as duas inferências? Só podemos
   fazê­lo, segundo Goodman, recorrendo ao conteúdo dos predicados, à sua
   semântica. O que se passa com o predicado verdul é que não é
   projectável, não serve para fazer boas inferências. Para que um
   predicado seja projectável tem de ter certas características. O
   trabalho de Goodman tem consistido em tentar apresentar uma tipologia
   convincente dessas características.
   
   Repare­se que Goodman arranjou um exemplo dramático, mas é possível
   começar a perceber o novo enigma da indução com exemplos mais banais.
   Considerem­se as seguintes inferências:
   
     (10) Todas as vacas observadas até hoje eram mamíferos. Logo, todas
     as vacas são mamíferos.
     
     (11) Todas as vacas observadas até hoje nasceram antes do ano 2000.
     Logo, todas as vacas nascem antes do ano 2000.
     
   Também neste caso se torna manifesto que, apesar de a forma lógica das
   inferências ser a mesma, o predicado usado na segunda não é
   projectável. A ideia de Goodman é por vezes difícil de aceitar talvez
   porque nós somos em geral muito bons a fazer induções, e escolhemos
   inconscientemente os predicados certos. Mas quando começamos a
   perceber a ideia de Goodman começamos a dar­nos conta da imensidão de
   alternativas a que, sem nos apercebermos, não damos crédito. Para dar
   um exemplo do próprio Goodman, todas as palavras que eu proferi até
   agora foram proferidas antes deste momento. No entanto, ninguém
   concluiu, espero, que todas as palavras por mim proferidas serão
   proferidas antes deste momento.
   
   Hume tentou explicar como as regularidades do passado podiam
   justificar as nossas previsões relativamente ao futuro. O que ele não
   percebeu foi que nem todas as regularidades servem para fazer boas
   previsões. E esta é, numa palavra, a diferença entre o novo e o velho
   enigma da indução.
   
   [12]Desidério Murcho
   Sociedade Portuguesa de Filosofia
   Av. da República, 37­4.o, 1050 Lisboa
   
   Comunicação apresentada no Encontro de Filosofia "Teoria do
   Conhecimento" realizado na Escola Secundária da Cidade Universitária
   (Lisboa), em 6 de Março de 1998.
   Lógica, Filosofia e Cognição
   Desidério Murcho
   
   O tema principal destas páginas é o papel da lógica na filosofia. Mas
   o organizador da conferência que lhe deu origem manifestou­me a
   importância de abordar um outro tópico mais geral, viz., uma
   caracterização da própria filosofia. De forma que vou fazer o
   seguinte: primeiro, oferecerei uma caracterização sumária da
   filosofia; depois, caracterizarei, também sumariamente, a lógica;
   finalmente, tentarei mostrar qual é o papel que a lógica tem nesta
   concepção de filosofia.
   
   1. O que é a filosofia?
   
   Quando caracterizamos uma actividade, um conceito ou uma propriedade,
   o ideal é atingir uma definição precisa, expressa em termos de
   condições necessárias e suficientes. Mas a verdade é que muitas vezes
   este tipo de definições precisas é inatingível. (Os diálogos
   aporéticos de Platão são precisamente sobre as dificuldades de definir
   desta forma rigorosa alguns dos nossos conceitos mais básicos, como a
   justiça, o bem, a beleza, etc.)
   
   Não é possível compreender o que é uma definição em termos de
   condições necessárias e suficientes se não soubermos distinguir uma
   condição necessária de uma condição suficiente. Mas isto é de facto
   fácil. Basta ver os seguintes exemplos: estar inscrito em Filosofia é
   uma condição necessária para passar a Filosofia. Mas estar inscrito em
   Filosofia não é uma condição suficiente para passar a Filosofia. (Se o
   fosse, a vida dos estudantes de filosofia seria muito mais fácil.)
   Outro exemplo: ter asas é uma condição necessária para ser um pássaro
   porque não há pássaros sem asas; mas não é uma condição suficiente: os
   aviões têm asas e não são pássaros. Uma condição necessária garante
   que a nossa definição inclui tudo o que queríamos incluir; mas permite
   que a nossa definição inclua coisas que não queríamos incluir.
   
   O inverso acontece com uma condição suficiente: permite que a nossa
   definição não inclua tudo o que queríamos incluir, mas garante que não
   incluímos o que não queríamos incluir. Por exemplo, ter 10 valores é
   uma condição suficiente para passar a Filosofia. Mas ter 10 valores
   não é uma condição necessária para passar a Filosofia. (Um aluno pode
   passar a filosofia com 18 valores, apesar de ser talvez raro.)
   Repare­se no caso dos pássaros: uma condição suficiente para um animal
   ser um pássaro é ser um pardal; mas nem todos os pássaros são pardais.
   
   Se juntarmos estes dois tipos de definição temos o melhor dos mundos:
   com a condição suficiente garantimos que só incluímos o que desejamos,
   e com a condição necessária garantimos que incluímos tudo o que
   queríamos. Contudo, não dispomos em geral de definições deste género.
   Desde Platão e Aristóteles que a filosofia procura clarificar os
   problemas associados aos diferentes tipos de definição; não quero
   entrar nessa matéria agora. O meu objectivo é apenas alertar o leitor
   para o facto de não ser nada de extraordinário que ninguém disponha de
   uma definição de filosofia deste género. Mas é claro que há outras
   formas disponíveis de definição, que não em termos de condições
   necessárias e suficientes.
   
   Alguém sabe o que é a ciência, por exemplo? Possivelmente ninguém é
   capaz de oferecer uma definição em termos de condições necessárias e
   suficientes; mas toda a gente sabe, num certo sentido relativamente
   impreciso, o que é a ciência. Porquê? Bom, porque podemos reconhecer
   que a física é uma ciência, mas que a astrologia não é uma ciência;
   pelo menos, a astrologia não é uma ciência no mesmo sentido em que a
   física é uma ciência.
   
   Quando perguntamos o que é a ciência e alguém nos responde com
   exemplos (como a química, a sociologia, a geologia, etc.), essa pessoa
   está a oferecer­nos uma definição implícita. Este tipo de definição
   distingue­se da definição através de condições necessárias e
   suficientes, que se chama definição explícita. Chama­se «implícita» a
   esta definição porque a pessoa que a usa está implicitamente a definir
   algo, apesar de não o fazer directamente. Apesar de não dispormos de
   definições explícitas de muitos dos nossos conceitos mais simples, não
   se segue daí que não saibamos do que estamos a falar. Por isso, também
   não é à partida grave que não tenhamos uma definição explícita de
   filosofia. Por exemplo, a maioria das pessoas é incapaz de definir
   explicitamente uma cor qualquer, como o azul, mas todos somos capazes
   de dizer se o céu está azul ou não, ou se o vestido da nossa namorada
   é azul ou não. Isto é, apesar de não termos à nossa disposição
   definições explícitas de certos conceitos, nem por isso deixamos de
   reconhecer quando um certo caso específico pode ou não ser
   classificado desta ou daquela maneira.
   
   Macei o leitor com esta história toda das definições explícitas e
   implícitas porque me lembro que quando frequentava o 10.o de filosofia
   se andava à voltas com a definição de filosofia. O resultado (aliás
   nada surpreendente) deste tipo de ensino era o cepticismo do próprio
   aluno em relação ao projecto da filosofia. Pois se os próprios
   filósofos não eram capazes de definir claramente a sua própria
   actividade, como poderiam ser bons filósofos? Bom, acho que já
   respondi a essa pergunta: alguém tem dúvidas em reconhecer umas calças
   de ganga azuis, apesar de não saber definir explicitamente o azul?
   Passa­se o mesmo com a filosofia: desde que se consiga distinguir
   claramente o que é filosofia do que não é, não é grave que não
   tenhamos uma definição explícita de filosofia.
   
   Mas será que os alunos do secundário têm uma boa definição implícita
   de filosofia? Aqui temos um grande problema. Os alunos do secundário
   têm de facto uma boa definição implícita de filosofia; mas de uma
   certa maneira de fazer filosofia. Uma maneira de tal forma bizarra que
   eu, e outras pessoas como eu, acham que isso não é filosofia. E é
   claro que há outras pessoas que acham que aquilo que eu faço e a que
   chamo filosofia não é filosofia.
   
   Quero fugir da discussão de saber quem tem razão, porque não há nada
   para discutir. As pessoas são livres de chamar às suas actividades o
   que quiserem. Os praticantes do ocultismo, da astrologia e da alquimia
   chamam à sua actividade «ciência»; mas nem por isso aquilo que eles
   fazem se confunde com o que faz um geólogo, um biólogo, ou um físico,
   pois não? Da mesma maneira, a prática a que nos liceus se chama
   filosofia tem muito pouco a ver com o que eu faço e com o que
   reconheço como filosofia. E o que eu faço e o que eu reconheço como
   filosofia é o que se faz em quase todo o mundo, à excepção de meia
   dúzia de sítios, como Portugal, Espanha e Itália, que se deixaram
   influenciar pela cultura filosófica francesa.
   
   Um dos maiores mistérios que gostaria de ver resolvido prende­se com a
   autoria dos programas de filosofia do ensino secundário. Não sei quem
   os fez, quem é responsável, com quem se pode discutir; sei vagamente
   que são vagamente parecidos aos programas do ensino secundário
   francês. E quanto mais filosofia aprendo, mais incríveis me parecem os
   conteúdos (se é que assim se pode chamar) com que os alunos são
   massacrados. Deixem­me dizer isto claramente: não percebo nada da
   maioria dos manuais do ensino secundário. São confusos, prolixos e têm
   erros gritantes. Estão ilustrados como se fossem banda desenhada, sem
   que se saiba porquê. E são na maioria dos casos uma manta de retalhos
   de pequenos textos igualmente ininteligíveis. Claro que esta é a
   perspectiva de alguém que tem uma prática filosófica muito diferente
   da que está instituída em Portugal e França.
   
   Sejamos honestos: a filosofia em Portugal não tem prestígio. Os
   estudantes acham que a filosofia não tem pés nem cabeça; os melhores
   alunos são precisamente os que têm dificuldades com esta disciplina,
   apesar de nunca terem tido dificuldades com as outras disciplinas. Os
   alunos têm a sensação de que não há conteúdos específicos, que é tudo
   subjectivo, que tudo depende do professor. Por outro lado, os colegas
   dos professores de filosofia (os professores de física, de matemática,
   de informática) desprezam no seu íntimo a filosofia: acham que é uma
   aldrabice.
   
   Esta situação é aliás semelhante à situação que conhecia o infame
   Canto Coral do meu tempo. Era uma coisa horrível, estupidificante, sem
   conteúdos e sem critérios de excelência académica. Toda a gente,
   alunos e professores, desprezava o Canto Coral e com razão. Mas da
   mesma maneira que não podemos confundir o Canto Coral com a música,
   também não podemos confundir a filosofia que se ensina nos liceus (e
   até na faculdade) com a verdadeira filosofia. Repare­se, aliás, que
   este desprestígio da filosofia não ocorre só nos liceus: também na
   universidade a generalidade dos professores de física, química,
   informática, matemática, etc., despreza a filosofia.
   
   É preciso que se diga, obviamente, que nem todos os professores
   universitários, assim como nem todos os professores do liceu,
   contribuem para este estado de coisas. As excepções são honrosas e são
   cada vez mais; se isso não fosse assim, nunca teria sido convidado a
   proferir esta conferência.
   
   Não vou perder muito tempo a caracterizar a filosofia tal como é
   ensinada nos liceus e na faculdade: essa filosofia já o leitor a
   conhece e pode tirar as suas conclusões. Nessa filosofia fala­se do
   Ser (com letra maiúscula), do Saber (também com letra maiúscula), do
   Absoluto (igualmente com letra maiúscula) e de muitas outras coisas,
   todas com letra maiúscula. Na verdade, parece que tudo se inclina para
   Deus. Aliás parece que falar do Ser é uma maneira disfarçada de falar
   acerca de Deus. E sugiro a quem quiser comprovar a orientação
   religiosa dos programas do secundário que passe por uma igreja
   católica e leia atentamente os folhetos da catequese e dos vários
   grupos de acção religiosa; vão encontrar semelhanças gritantes.
   
   O resultado último que aparentemente se procura atingir com a
   filosofia no liceu é uma espécie de catequese barata: supõe­se que o
   aluno deverá converter­se a Deus no final do 11.o ano que constitui
   precisamente o último tópico do programa. Eu sou ateu, mas se fosse
   crente também não gostaria de ver os meus filhos convertidos a Deus de
   forma mais ou menos subliminar, escondida, envergonhada. Afinal, por
   que haveria de ter vergonha de crer em Deus? Contudo, o resultado
   último que se consegue atingir quando se disfarça a catequese barata
   de má filosofia é o horror criado no jovem estudante às duas coisas: à
   catequese e à filosofia.
   
   Eu estou aqui para vos estimular e para vos mostrar que a filosofia,
   tal como eu e a maioria das pessoas do mundo inteiro a praticam, não é
   nada disto. Aliás, se olharem para o que Platão, Aristóteles,
   Descartes, Kant, Leibniz ou Hume fizeram, reparam que também eles não
   fizeram nada disto. Muita gente procura usar a filosofia para muitas
   coisas; aparentemente, a filosofia oferece­lhes uma cobertura
   conveniente para fazerem passar às escondidas o que não querem
   defender às claras. Mas isto não é filosofia: é usar a filosofia para
   fins obscuros.
   
   Repare­se na concepção de filosofia que se tem. Que diria o leitor se
   eu me apresentasse como filósofo? Diria que eu era pretensioso. No
   entanto, uma pessoa exactamente com as mesmas qualificações do que eu
   que esteja no ramo da matemática é um matemático; e se estiver no ramo
   das artes, é um músico, ou um pintor, ou um escultor. Há uma boa razão
   para isto e uma má razão. A boa razão é que entendemos por filósofo
   apenas aquela pessoa que revolucionou a filosofia, como Einstein
   revolucionou a física; mas esta razão não é suficiente; se fosse
   suficiente, o número actual de físicos no nosso país seria reduzido a
   0, assim como o de matemáticos, para já não falar nos músicos ou nos
   pintores.
   
   É a má razão que explica por que não posso dizer que sou filósofo sem
   que o leitor ache que sou pretensioso. E a má razão é esta: a
   definição implícita de filosofia que lhe transmitiram faz dos
   filósofos uma espécie de poetas loucos, tocados pelos deuses, uma
   espécie de santos padroeiros do Saber (com letra maiúscula), mais ou
   menos como o São Francisco de Assis. É claro que vocês têm razão,
   felizmente: nesse sentido não sou, nem gostaria de ser, filósofo.
   
   Mas acontece que a filosofia, tal como eu a vejo (e tal como Platão,
   Aristóteles, Descartes, Kant e Hume a viam), não é nada disso. A
   filosofia é uma actividade cognitiva cujo objectivo é compreender
   melhor um conjunto de problemas. Para compreender esses problemas os
   filósofos constroem por vezes teorias. E usam argumentos, claro. Os
   argumentos são a única forma de distinguir uma boa teoria de uma má
   teoria, uma boa formulação de um problema de uma má formulação de um
   problema. Como filósofo, estudo estes três tipos de coisas: problemas,
   teorias e argumentos.
   
   Perante isto, o leitor dirá: está tudo muito bem, mas é tudo muito
   vago. Que tipo de problemas, que tipo de argumentos, que tipo de
   teorias é que interessam à filosofia? A resposta circular é: os
   problemas filosóficos, os argumentos filosóficos e as teorias
   filosóficas. Mas esta resposta circular não é informativa. No entanto,
   não posso dar­lhe uma definição explícita do que é um problema, uma
   teoria ou um argumento filosófico. É como no caso da cor azul. Mas,
   tal como posso dar­lhe exemplos de objectos azuis, também posso
   dar­lhe exemplos de problemas, argumentos e teorias filosóficos.
   
   Eis 4 problemas filosóficos, a título de exemplo:
   
       O problema da mente­corpo. O problema de saber qual é a natureza
     da mente e do corpo, se a mente se pode reduzir ao cérebro ou não
     e, caso não possa reduzir­se, que relações tem a mente com o
     cérebro.
     
     O problema do bem. Que estamos a dizer quando dizemos qualquer coisa
   como «o João não devia ter beijado a Maria sem mais nem menos»?
   Estamos a descrever um facto, ou estamos unicamente a manifestar a
   nossa desaprovação?
   
     O problema do cepticismo. Será que existe algum conhecimento imune à
   dúvida? Teremos razões para acreditar nas coisas mais básicas em que
   acreditamos, como na existência de outras pessoas e na existência de
   mundo exterior?
   
     O problema da linguagem. Como é possível que uma palavrinha que eu
   pronuncio descuidadamente tenha o poder de referir coisas com as quais
   nunca estive em contacto? Quando digo «ouro» estou a referir todo o
   ouro que há, que houve e que haverá. Mas como podemos explicar essa
   relação entre a palavra «ouro» e o ouro?
   
   Os filósofos tratam de coisas deste género: problemas acerca de alguns
   dos nossos conceitos mais básicos, quer sejam conceitos comuns, quer
   sejam conceitos científicos, religiosos ou artísticos. Os conceitos de
   realidade, conhecimento, significado, bem, mente, beleza, número,
   inferência e muitos outros, são o objecto de análise do filósofo. A
   tarefa do filósofo é pensar criticamente sobre esses problemas e esses
   conceitos. Pensar criticamente é avaliar cuidadosamente todas as
   afirmações, em vez de as aceitar só porque alguém as disse, ou porque
   são úteis ou confortáveis.
   
   Por exemplo, parece que para algumas pessoas é espiritualmente
   confortável acreditar em Deus, porque é espiritualmente confortável
   acreditar que existe um desígnio no universo, desígnio no qual nós
   temos um papel importante. Na verdade, acho difícil que esta ideia
   seja espiritualmente confortável, a não ser que tenhamos espíritos
   particularmente tacanhos e pouco exigentes. Mas admitamos que é de
   facto espiritualmente confortável acreditar em Deus por estas razões.
   Deve o filósofo proclamar que Deus existe porque é espiritualmente
   confortável acreditar que Deus existe? Claro que não! O compromisso do
   filósofo, tal como o compromisso do cientista e do artista, é com a
   verdade e não com o conforto. O objectivo do filósofo, tal como o
   objectivo do cientista ou do artista, é atingir uma cognição mais
   perfeita, mais clara, mais lúcida do mundo e não impedir a cognição
   por ser perigosa para o conforto espiritual. É por isso que podemos
   afirmar que a filosofia é, num certo sentido, um desporto radical: é
   arriscado como tudo, exige muito treino, muita dedicação e não há
   garantia de se ganhar a medalha, que no caso do filósofo é a
   descoberta de uma verdade importante e desconhecida. A diferença entre
   o surf e a filosofia é esta: a filosofia não é uma habilidade física,
   é uma habilidade cognitiva. O resultado da filosofia, ao contrário do
   resultado do surf, é conhecer melhor o mundo.
   
   A actividade crítica da filosofia faz­se através de argumentos. Se
   alguém afirma que Deus existe, o filósofo pergunta que razões tem essa
   pessoa para afirmar tal. Essas razões são argumentos a favor da
   existência de Deus; o papel do filósofo é avaliar, discutir, analisar
   esses argumentos.
   
   O mesmo se passa em relação às teorias. Uma teoria filosófica não tem
   valor por si mesma; vale exactamente o mesmo que valem os argumentos a
   favor da sua aceitação e não apenas porque uma grande autoridade morta
   há 500 anos a defendeu. A teoria das ideias de Platão, a doutrina da
   substância de Aristóteles, a estética transcendental de Kant ou a
   filosofia da linguagem de Wittgenstein têm o valor que os argumentos
   favoráveis a essas teorias tiverem; não é a autoridade de Aristóteles
   que empresta plausibilidade às suas teorias; é ao contrário: é a
   plausibilidade das suas teorias que confere autoridade a Aristóteles.
   
   O trabalho do leitor, e o meu trabalho, como estudantes de filosofia,
   é compreender os problemas, os argumentos e as teorias filosóficas.
   Isso faz­se através da formulação dos problemas, teorias e argumentos
   e não através da sua repetição. Formular um problema, uma teoria ou um
   argumento é mostrar que o compreendemos; é dizê­lo pelas suas próprias
   palavras. Repetir é apenas um exercício de memória bacoco,
   estupidificante e vazio. A filosofia, tal como a ciência ou a arte, é
   uma actividade criativa e inteligente.
   
   Penso que já ficaram com uma ideia do que é a filosofia. A filosofia é
   uma actividade cognitiva que trata de problemas, argumentos e teorias
   acerca de alguns dos conceitos mais básicos e gerais: o significado, o
   bem, a beleza, a arte, o conhecimento, o livre arbítrio, a realidade,
   o número, a inferência e muitos outros. Vou agora dar­vos uma ideia do
   que é a lógica.
   
   2. O que é a lógica?
   
   Tal como a matemática estuda diversas disciplinas, como a aritmética e
   a geometria, também a filosofia estuda diversas disciplinas, como a
   epistemologia (que estuda o conhecimento), a estética e a filosofia da
   arte, a ética e a filosofia política, a filosofia da religião, a
   filosofia das ciências e a lógica.
   
   É muito fácil definir a lógica: é a disciplina que estuda as
   inferências, os raciocínios ou os argumentos. Mas o que é uma
   inferência, um raciocínio ou um argumento? Bom, uma inferência ou um
   raciocínio é o processo de concluir uma certa frase a partir de um
   certo conjunto de outras frases. Há muitas formas de raciocínios:
   raciocínios dedutivos, indutivos, analógicos, por exemplo. O tipo de
   raciocínio dedutivo é o melhor conhecido e a palavra «lógica» usa­se
   por vezes como sinónima do estudo, ou até do resultado do estudo, do
   raciocínio dedutivo. Os silogismos que se estudam no 11.o ano
   constituem uma teoria (originalmente construída por Aristóteles, mas
   hoje ultrapassada) que pretende dar conta do raciocínio dedutivo.
   
   O que é o raciocínio dedutivo e como se distingue dos outros tipos de
   raciocínio? A característica central da dedução é esta: se um
   raciocínio dedutivo for válido, isto é, correcto, e se as suas
   premissas forem verdadeiras, então a conclusão está também garantida
   como verdadeira. Por exemplo: se for verdade que o João e a Maria
   foram ao supermercado, então é verdade que o João foi ao supermercado.
   Este é um raciocínio dedutivo. Mas mesmo que seja verdade que o João
   costuma ir ao supermercado com a Maria às quintas­feiras, pode ser
   falso que o João tenha hoje ido ao supermercado, apesar de hoje ser
   quinta­feira e apesar de um raciocínio indutivo razoável concluir que
   o João foi hoje ao supermercado.
   
   Um raciocínio dedutivo garante a verdade da sua conclusão se for
   correcto ou válido e se as suas premissas forem verdadeiras; mas um
   raciocínio por analogia, ou através de exemplos, ou um raciocínio
   indutivo podem ser correctos e ter premissas verdadeiras e no entanto
   a sua conclusão ser falsa. Tudo o que um argumento indutivo correcto
   com premissas verdadeiras pode garantir é que é provável que a
   conclusão seja verdadeira; mas não pode garantir que é realmente
   verdadeira.
   
   O exemplo da Maria e do João é muito simples e há por vezes uma
   tendência para achar que a lógica dedutiva não pode ser informativa,
   uma vez que só trata de tautologias (como lhe chamou Wittgenstein).
   Isto é um disparate (apesar de não ser este o disparate que
   Wittgenstein tinha em mente). A lógica dedutiva é extremamente
   complexa; mas, tal como a aritmética, temos de começar por aprender as
   coisas mais básicas. Ninguém acha que a matemática é uma coisa básica
   porque começamos por aprender quanto é 2 + 2, pois não?
   
   Já dei ao leitor uma ideia do que é a lógica. Vamos agora ver que
   papel tem a lógica na filosofia.
   
   3. O papel da lógica na filosofia
   
   A parte estritamente formal da lógica permite­nos isolar e estudar as
   propriedades dos argumentos válidos. É um estudo complexo e
   extremamente estimulante, cujo resultado tecnológico último foram os
   actuais computadores. Este estudo é importante para a filosofia porque
   permite perceber argumentos filosóficos complexos, o que em última
   análise nos permite saber se são bons argumentos ou não.
   
   Tomemos um exemplo. Imagine que está numa aula e um dos textos que tem
   de ler é o seguinte:
   
     O próprio facto de o Universo existir, com tudo o que contém, é uma
     evidência segura de que os cépticos se colocam numa perspectiva a
     que poderíamos chamar errónea. Na verdade, o conhecimento é uma
     possibilidade em aberto se o Universo, ou o Todo, existe,
     assegurando assim a facticidade do próprio Ser e a eloquente
     negação do Nada. Por outro lado, abre­se um abismo dilacerante no
     seio mesmo desta questão, pois a própria intangibilidade teorética
     do conhecimento se apresenta em alternativa paralela à
     intangibilidade da perspectiva céptica, o que, convenhamos, não
     corresponde à própria existência do Todo, nem à negação do Nada.
     
   Perante este texto eloquentemente obscuro e ininteligível podemos
   fazer duas coisas: ou nos dedicamos antes ao surf, ou procuramos saber
   se isto quer de facto dizer alguma coisa, ao contrário do que parece.
   Antes de a lógica nos poder dizer se estamos na presença de um
   argumento válido, ou correcto, precisamos de saber se estamos sequer
   perante um argumento. À primeira vista estamos apenas perante uma
   logorreia bacoca e sem sentido.
   
   Se eliminarmos aquilo a que na gíria do liceu do meu tempo se chamava
   «palha» ficamos com um argumento muito simples:
   
     Se o universo existe, o conhecimento é possível.
     Ou o conhecimento não é possível, ou os cépticos estão enganados.
     Mas o universo existe.
     Logo, os cépticos estão enganados.
     
   Esta formulação já começa a fazer sentido. Temos uma conclusão clara e
   temos três frases como premissas do nosso raciocínio. A lógica
   permite­nos perceber que o raciocínio é correcto (na verdade é um
   raciocínio elementar que estava escondido por detrás da logorreia
   anterior, que por ser logorreia parecia profunda). Mas daí não se
   segue que a conclusão seja uma verdade. Porquê? Bom, porque a
   correcção lógica só nos garante que a conclusão é verdadeira se todas
   as premissas forem verdadeiras. Ora, a primeira premissa afirma que se
   o universo existe, o conhecimento é possível, o que é no mínimo
   discutível. Por isso temos de discutir agora esta premissa, pois a
   verdade da conclusão depende da verdade desta premissa.
   
   Que ganhámos com isto? Ganhámos clareza e afastámos a obscuridade e a
   ilusão. Reparem que o próprio autor do parágrafo logorreico que vos li
   pode estar iludido, pensando que descobriu uma verdade filosófica
   importante, quando na verdade mais não fez do que apresentar um
   argumento infantil que, talvez por acaso, até é válido. Mas de pouco
   vale ser válido, pois uma das suas premissas é altamente discutível.
   Sem esta análise simples ficaríamos todos iludidos e o objectivo de
   alcançar uma cognição mais pura seria fracassado.
   
   Ficámos assim a perceber para que serve a lógica: permite­nos dizer se
   um certo argumento é válido ou não. Se um argumento é inválido, isso
   significa que a conclusão pode ser falsa, ainda que todas as premissas
   sejam verdadeiras. Logo, o autor de um argumento inválido, ou
   incorrecto, não consegue defender a verdade da sua conclusão, uma vez
   que não está a oferecer­nos razões para acreditar na conclusão: nós
   podemos acreditar nas razões que ele invoca, isto é, nas premissas do
   seu argumento e mesmo assim não aceitar a conclusão.
   
   E que acontece quando a lógica afirma que o argumento é válido?
   Ficamos a saber que se todas as premissas forem verdadeiras, a
   conclusão também é verdadeira. E agora podemos discutir cuidadosamente
   as premissas uma a uma para ver se serão todas verdadeiras.
   
   Quer a análise lógica revele que um argumento é válido, quer revele
   que é inválido, pelo caminho fizemos um trabalho de clarificação
   imprescindível para o nosso objectivo: compreender melhor o mundo.
   Estes são dois dos papéis principais da lógica: clarificar os
   argumentos e as teorias filosóficas e dizer­nos se um argumento é ou
   não válido.
   
   A estes dois junta­se um terceiro papel: a lógica permite­nos também
   saber se determinada teoria, ou se determinada proposição é ou não
   consistente com outras verdades, ou até se é auto­consistente. Uma
   teoria filosófica inconsistente com verdades mais básicas (quer sejam
   verdades comuns, quer sejam verdades científicas) está com certeza
   errada. E uma teoria filosófica auto­inconsistente não pode ser
   verdadeira.
   
   Quero agora falar­lhe de uma coisa acerca da qual se fala muito hoje
   em dia: a retórica. Muitas pessoas insinuam (estas pessoas gostam de
   insinuar, porque é menos arriscado do que ser honesto e dizer as
   coisas directamente) que a lógica é insuficiente como instrumento
   filosófico por ser puramente formal e que cabe à retórica o verdadeiro
   papel criativo na argumentação filosófica. Esta posição está certa e
   está errada. Está certa se entendermos por retórica aquilo que ela
   deve ser: um conjunto de regras que têm por objectivo único tornar
   mais clara a expressão dos argumentos. Mas acontece que não é isto que
   estas pessoas em geral entendem por retórica: para eles, a retórica é
   a arte do engano (tão duramente criticada por Platão e Aristóteles),
   que consiste em conseguir convencer os outros sem que tenhamos boas
   razões para sustentar as nossas posições.
   
   Vou dar­vos um exemplo do que é a verdadeira retórica. Imaginem que eu
   defendo o seguinte argumento:
   
     (P1) Se desejarmos apurar as capacidades cognitivas dos alunos,
     temos de lhes ensinar a formular com clareza, precisão e
     criatividade os problemas, teorias e argumentos filosóficos.
     (P2) Se concebemos a filosofia como uma actividade cognitiva, o
     objectivo do seu ensino será apurar as capacidades cognitivas dos
     alunos.
     (C) Logo, se concebemos a filosofia como uma actividade cognitiva,
     temos de ensinar os alunos a formular com clareza, precisão e
     criatividade os problemas, teorias e argumentos filosóficos.
     
   Do ponto de vista estritamente lógico tanto faz apresentar o argumento
   por esta ordem, ou inverter a ordem e começar por (P2) em vez de (P1).
   No entanto, o argumento é mais facilmente compreensível se começarmos
   por (P2). A retórica, entendida no bom sentido da palavra,
   aconselha­nos a começar por (P2).
   
   Mas a retórica, entendida no mau sentido da palavra, aconselha­nos a
   não mudar a ordem, precisamente pela mesma razão. A diferença é que
   enquanto a boa retórica é uma actividade honesta que tem como
   objectivo a clareza, a má retórica é uma aldrabice que tem por
   objectivo ocultar os argumentos, por forma a que seja difícil
   criticá­los e avaliá­los. Assim, enquanto a boa retórica tem por
   objectivo oferecer a possibilidade do pensamento crítico, a má
   retórica tem por objectivo impedir o pensamento crítico e convencer a
   outra pessoa, independentemente de existirem ou não boas razões para
   aceitar o que está em causa.
   
   Os grandes mestres nacionais da má retórica são os políticos e as
   figuras públicas que aparecem na televisão e nos jornais: quando estas
   pessoas discutem, o objectivo delas não é a verdade; é ganhar a
   discussão para se auto­promoverem. Esta actividade burlesca é
   completamente estranha à forma de fazer filosofia que tenho defendido
   nesta conversa.
   
   Já vimos, sumariamente, o que é a lógica e a retórica. Vimos também,
   de certa forma, que papel pode a retórica ter na filosofia: a retórica
   torna os argumentos mais facilmente compreensíveis. Mas a retórica não
   pode fazer isto sem o auxílio da lógica. Nenhuma retórica pode tornar
   um argumento logicamente incorrecto num argumento correcto; pode, com
   certeza, dar a ilusão ao interlocutor de que se trata de um argumento
   correcto. Mas não torna o argumento correcto. O mesmo acontece com
   quem é aldrabão e engana com muita habilidade as pessoas no troco do
   jornal; por mais habilidade que tenha, isso não faz com que o troco
   esteja certo; só faz com que a pessoa desprevenida não se dê conta de
   que está a ser enganada.
   
   Não entendo a filosofia como uma arte da aldrabice e do engano. Também
   não reduzo a filosofia à história da filosofia; não embarco na
   adoração acrítica e para­religiosa dos grandes filósofos mortos. A
   filosofia é uma actividade viva, feita por pessoas vivas que estão
   perante problemas vivos. Também não reduzo a filosofia à adoração
   bacoca do Ser, essa atitude mística acrítica. O meu objectivo o
   objectivo da filosofia que pratico é a cognição, o conhecimento, a
   libertação cultural, mental e intelectual.
   
   Enfim. O que quero dizer­lhe era só isto: se deseja saber pensar,
   estude filosofia. Verá que não se vai arrepender. Saber pensar é uma
   das habilidades mais extraordinárias a que o ser humano tem acesso. A
   Marguerite Yourcenar afirmou que «Um homem que lê, ou que pensa, ou
   que calcula, pertence à espécie e não ao sexo; nos seus melhores
   momentos escapa mesmo ao humano.» Era só isto que eu queria dizer­lhe.
   Agora já está dito.
   
   Desidério Murcho
   Sociedade Portuguesa de Filosofia
   Av. da República, 37, piso 4
   1050 Lisboa, Portugal
   Limites do papel da lógica na filosofia
   Desidério Murcho
   
   Aristóteles considerava a lógica um instrumento filosófico
   imprescindível e a tradição escolástica cultivou a argumentação
   estritamente silogística. No entanto, a cultura filosófica está hoje
   dividida quanto ao papel da lógica na filosofia. Ao inaugurar a
   filosofia da época moderna, Descartes introduziu também um profundo
   desprezo pela lógica silogística, a única então conhecida, enquanto
   instrumento filosófico. É irónico que os filósofos mais argumentativos
   da época moderna, como Descartes e David Hume, tenham desprezado o
   papel da lógica na filosofia. Esta atitude ficou sem dúvida a dever­se
   às insuficiências da própria lógica silogística e talvez também ao
   juízo nem sempre justo daqueles que, ao procurar inovar numa dada área
   do conhecimento, sentem o legado deixado pela tradição como um
   obstáculo incómodo aos seus novos propósitos e métodos. É neste
   contexto que temos de entender a afirmação de Kant de que a lógica
   era, já no seu tempo, uma disciplina acabada e perfeita. Um século
   mais tarde, Frege iria provar que Kant estava profundamente enganado:
   muito havia ainda a fazer no estudo da lógica.
   
   O advento da lógica moderna de Frege cristalizou duas atitudes
   antagónicas quanto ao papel da lógica na filosofia. Por um lado, há
   filósofos que ignoram a lógica (seja ela moderna ou silogística), à
   semelhança dos seus antecessores do Renascimento. Por outro lado,
   filósofos houve, como Carnap, que viram na lógica moderna o
   instrumento que em última análise permitiria a solução dos problemas
   filosóficos. Hoje em dia já ninguém partilha com Carnap esta crença
   errada nos poderes da sintaxe da lógica dedutiva. No entanto, continua
   a fazer­se sentir uma divisão quanto ao papel da lógica na filosofia.
   De um lado, continuam aqueles que negam à lógica qualquer pertinência
   para a filosofia e, do outro, aqueles que, apesar de não acreditarem
   que a lógica possa resolver os problemas da filosofia, lhe reservam
   todavia um papel importante. É a esse papel, e aos seus limites, que
   resolvi dedicar estas páginas, sem pressupor por parte do leitor
   qualquer conhecimento de lógica.
   
   Uma questão prévia: ao longo destas páginas, por facilidade de
   exposição, irei usar o conceito de proposição, uma vez que as frases
   são objectos linguísticos inapropriados para as operações lógicas. No
   entanto, as proposições são objectos abstractos independentes da
   consciência, o que provoca algum mal­estar em filósofos mais
   preocupados com as suas ontologias, como Quine. Nestas páginas, sem
   qualquer prejuízo para o seu conteúdo, todas as ocorrências da
   expressão «proposição» e suas cognatas podem ser substituídas pela
   expressão que designa o objecto preferido pelo leitor para desempenhar
   o papel lógico das proposições (frase­tipo, afirmação ou enunciado).
   
   A diferença conspícua entre proposições e frases é facilmente
   compreendida se considerarmos as frases «Sócrates era um filósofo» e
   «Socrates was a philosopher». É claro que se trata de dois objectos
   linguísticos, mas não é menos claro que «dizem o mesmo». São de facto
   duas frases que exprimem uma única proposição. Tal como duas frases
   distintas podem exprimir uma única proposição, também uma única frase
   pode exprimir proposições diferentes. Por exemplo, a frase «eu sou
   português», dita por Jorge Sampaio, exprime a proposição verdadeira de
   que Jorge Sampaio é português; mas dita pelo presidente do Brasil
   exprime a proposição falsa de que o presidente do Brasil é português.
   
   As frases­tipo, por sua vez, distinguem­se das proposições por não
   acarretarem os compromissos ontológicos daquelas. Quando afirmamos de
   duas frases que constituem uma só frase­tipo, afirmamos apenas que
   agrupamos ambas na mesma classe de frases, sem que estejamos
   comprometidos com a existência independente da classe em causa.
   
   A natureza da lógica
   
   O conhecimento humano tem duas fontes: a experiência e a razão. Na
   linguagem filosófica é costume dizer­se que uma proposição é a priori
   se a sua verdade pode ser conhecida sem apelar para a experiência; e a
   posteriori se pelo contrário só podemos conhecer a sua verdade através
   da experiência.
   
   Um raciocínio é o processo pelo qual se chega a uma conclusão,
   partindo de uma sequência de proposições, a que se chamam premissas.
   As premissas e a conclusão podem ser a priori ou a posteriori. Por
   exemplo, apesar de o raciocínio seguinte ser dedutivo, todas as suas
   proposições são a posteriori: "Todos os cães ladram; Boby é um cão;
   logo, Boby ladra." Por vezes confunde­se a qualidade a priori típica
   do raciocínio dedutivo com o carácter das suas proposições. Mas um
   raciocínio é um processo de chegar a uma conclusão, usando certas
   proposições. A qualidade a priori ou a posteriori dessas proposições é
   independente da qualidade do processo que as usa. Um raciocínio é como
   uma fábrica que produz sabonetes a partir de certas matérias­primas;
   do facto de usarmos perfumes para produzir sabonetes não se segue que
   a fábrica é um perfume; do facto de um raciocínio dedutivo usar
   proposições a posteriori não se segue que o raciocínio seja a
   posteriori. E do facto de o raciocínio dedutivo ser a priori não se
   segue que as proposições por si usadas não possam ser a posteriori,
   tal como do facto de a fábrica de sabonetes não ser feita de perfumes
   não se segue que não possa usar perfumes como matéria­prima.
   
   É necessário distinguir o conceito lógico de raciocínio do conceito
   psicológico de raciocínio. O conceito psicológico de raciocínio denota
   aquela actividade mental que os seres humanos realizam desta ou
   daquela maneira, melhor ou pior, com prazer ou não. O conceito lógico
   de raciocínio é uma abstracção independente de factores psicológicos.
   A lógica não estuda o fenómeno psicológico do raciocínio; isso é
   estudado por parte da psicologia. A lógica não é uma disciplina
   empírica acerca da maneira como as pessoas raciocinam de facto. A
   lógica é uma disciplina a priori que, entre outras coisas, estabelece
   as normas que as pessoas têm de cumprir se desejam realmente alcançar
   o raciocínio correcto ou válido. Se a lógica fosse uma disciplina
   empírica acerca da maneira como as pessoas pensam de facto, teria de
   admitir como correctos ou válidos aqueles raciocínios que a maioria
   das pessoas realizam supondo serem correctos ou válidos. Mas a verdade
   é que os raciocínios incorrectos ou logicamente inválidos não se
   tornam válidos mesmo que todas as pessoas os tomem como válidos.
   
   É necessário agora distinguir claramente a validade, ou a correcção de
   um raciocínio, da verdade. A validade é uma propriedade dos
   raciocínios e não das proposições que os compõem, ao passo que a
   verdade é uma propriedade das proposições que compõem os raciocínios.
   Isto é, uma proposição pode ser verdadeira ou falsa; mas não faz
   sentido dizer que é válida ou inválida. Pelo contrário, um raciocínio
   é válido ou inválido mas não faz sentido dizer que é verdadeiro ou
   falso. Esta não é uma mera convenção, nem uma distinção meramente
   verbal; ela corresponde à diferença que existe entre a avaliação
   positiva (ou negativa) de um raciocínio e a avaliação positiva (ou
   negativa) de uma proposição. Avaliar positivamente (ou negativamente)
   uma proposição é muito diferente de avaliar positivamente (ou
   negativamente) um raciocínio. Quando avaliamos positivamente um
   raciocínio, por exemplo, sancionando a sua qualidade, afirmamos que
   ele nos «conduz» à verdade, assumindo que as premissas são
   verdadeiras. Esta verdade a que ele nos «conduz» é a proposição que se
   conclui. Assim, avaliar positivamente um raciocínio é afirmar que,
   assumindo a verdade das suas premissas, ele nos garante a verdade da
   conclusão. Logo, temos de distinguir essa qualidade que os bons
   raciocínios têm, que consiste em garantir a verdade das suas
   conclusões, da própria verdade das suas conclusões: é preciso
   distinguir o comboio que nos conduz ao Porto, do Porto.
   
   A melhor forma de explicar a diferença entre verdade e validade é
   através de um exemplo. Tome­se o raciocínio expresso na frase «Todos
   os génios são loucos; logo, alguns loucos são génios». Este raciocínio
   é válido, já Aristóteles o sabia (cf., no entanto, [12]"O erro de
   Aristóteles"). Mas é a sua premissa verdadeira? Pode ser verdadeira ou
   falsa; a lógica nada nos diz sobre isso. E a sua conclusão é
   verdadeira ou falsa? A lógica também não diz. O que a lógica afirma é
   que se a premissa for verdadeira então a conclusão também é
   verdadeira: é por isso que é um raciocínio dedutivo válido. É aliás
   isso mesmo que é um raciocínio dedutivo válido. Um raciocínio dedutivo
   válido é aquele em que se as premissas forem verdadeiras então a
   conclusão também é verdadeira. Claro está que se as premissas forem
   falsas a conclusão pode ser falsa, ainda que o raciocínio seja válido.
   
   A lógica estuda as leis a priori da inferência dedutiva. A lógica
   estuda as leis que permitem que de premissas verdadeiras se derivem
   conclusões verdadeiras. A lógica não pode pronunciar­se sobre a
   verdade das premissas de um raciocínio; afirma apenas que a conclusão
   de um raciocínio é verdadeira se e só se (1) o raciocínio é válido e
   (2) as premissas são verdadeiras.
   
   Está claro que existe outro tipo muito comum de raciocínio: a indução.
   Mas neste caso a conclusão não se segue logicamente das premissas. Um
   raciocínio indutivo razoável é ainda um raciocínio inválido
   dedutivamente. Isto não significa que a indução não seja um tipo de
   raciocínio extremamente importante. Significa apenas que a indução não
   se pode confundir com a dedução e que não podemos avaliar a correcção
   de um raciocínio indutivo com critérios dedutivos. Por isso, a indução
   não é um objecto de estudo da lógica dedutiva. Por outro lado, não
   existe nenhuma lógica indutiva razoável, apesar de existirem várias
   tentativas, algumas talvez promissoras.
   
   Como já vimos, as premissas de um raciocínio dedutivo tanto podem ser
   a priori como a posteriori. Porém, as teorias e os argumentos
   tipicamente filosóficos são dedutivos, e muitas vezes as premissas
   desses argumentos são também a priori, no sentido em que não são
   confirmáveis ou refutáveis pela experiência. Teorias e argumentos
   indutivos com premissas a posteriori são típicos das disciplinas
   empíricas como a história ou a física.
   
   Verdade e ilusão
   
   Se um raciocínio é válido ou correcto e as suas premissas são
   verdadeiras, então a sua conclusão também é verdadeira. Está claro que
   podemos ter o caso interessante de obter conclusões verdadeiras a
   partir de premissas falsas com raciocínios inválidos; por exemplo,
   «Nenhum pássaro é preto; logo, algumas coisas pretas são pássaros».
   Mas mais interessante ainda é o facto de se poder obter conclusões
   verdadeiras a partir de premissas falsas com raciocínios válidos; por
   exemplo, «Todos os pássaros são pretos; logo, algumas coisas pretas
   são pássaros» (cf., no entanto, [13]"O erro de Aristóteles").
   
   Estes dois exemplos mostram como se pode chegar a conclusões
   verdadeiras o principal interesse dos filósofos partindo quer de
   premissas falsas, quer de raciocínios inválidos. Chegámos por isso ao
   ponto em que os mais saudavelmente cépticos perguntarão que papel
   poderá a lógica ter na filosofia, considerando que podemos ter as
   seguintes situações:
   
     (1) raciocínios inválidos com premissas falsas e conclusões falsas;
     (2) raciocínios inválidos com premissas verdadeiras e conclusões
     verdadeiras;
     (3) raciocínios inválidos com premissas verdadeiras e conclusões
     falsas;
     (4) raciocínios inválidos com premissas falsas e conclusões
     verdadeiras;
     
   e ainda:
   
     (5) raciocínios válidos com premissas falsas e conclusões falsas;
     (6) raciocínios válidos com premissas falsas e conclusões
     verdadeiras;
     
   e que, para além de distinguir claramente os argumentos válidos dos
   inválidos, a lógica só nos garante que
   
     (7) em raciocínios válidos com premissas verdadeiras as conclusões
     são também verdadeiras.
     
   Para responder a esta pergunta tenho de voltar a lembrar o facto de
   que todo o conhecimento humano é fruto ou da experiência ou do
   raciocínio. Se optarmos por uma postura intelectual honesta não
   podemos deixar de nos perguntar como poderemos nós distinguir o
   conhecimento verdadeiro da mera ilusão. Que critério podemos nós usar
   que nos permita distinguir a verdade da ilusão? A resposta depende do
   domínio de conhecimento a que nos referimos. Se estamos no domínio do
   conhecimento empírico temos a experiência como guia: ninguém acredita
   numa proposição que afirma que todos os pássaros são pretos quando o
   nosso canário é amarelo, ainda que esta seja defendida por uma
   qualquer grande autoridade, com um léxico terrorista e uma gramática
   barroca.
   
   Mas como poderemos nós distinguir a verdade da ilusão, do erro e da
   falsidade quando as proposições que proferimos estão completamente
   fora do alcance da experiência? Se alguém nos afirma que os humanos
   são essencialmente racionais mas acidentalmente bípedes, como reagir a
   esta afirmação? É certamente muito diferente daquela outra que
   afirmava que todos os pássaros são pretos. Nesse caso tínhamos a
   experiência para confirmar ou refutar tal ideia. Mas agora não temos
   tal coisa. E se estamos num domínio cognitivo não podemos considerar
   como argumento o facto de essa pessoa afirmar ter tido uma experiência
   mística em que essa verdade lhe foi revelada. Talvez ela pense que
   teve essa experiência; mas como vamos nós conseguir distinguir a
   experiência verdadeira que ela pensa que teve, da ilusão de que a
   teve? Num contexto cognitivo é irrelevante apelar para experiências
   pessoais que não podem ser repetidas por terceiros e que nem eles
   próprios podem distinguir da mais banal das ilusões ainda que isso
   seja reconfortante de um ponto de vista afectivo e pessoal, para
   aquelas pessoas que são pouco exigentes quanto ao valor de verdade
   daquilo em que confortavelmente acreditam. Mas a ciência, a filosofia
   e a arte não são pessoais mas sim públicas, discutíveis, passíveis de
   controlo por terceiros. Não se aceita uma lei da física que só se
   verifica no laboratório de um cientista quando ele está sozinho; não
   se aceita uma proposição da filosofia para a qual não há argumentos
   discutíveis mas que o filósofo afirma sentir ser verdadeira; não se
   aceita o valor de um quadro que ninguém consegue jamais apreciar
   excepto aquele mesmo que o pintou.
   
   Lógica, argumentos, filosofia
   
   A tarefa da filosofia, tal como a tarefa das ciências, é descobrir
   proposições verdadeiras. Mas ao contrário do que acontece com as
   ciências empíricas, a experiência raramente fornece à filosofia um
   critério para distinguir a verdade da falsidade. Assim, apesar de a
   lógica parecer fornecer tão pouco, é na verdade o único meio seguro
   que temos para excluir argumentos que, ainda que conduzam à verdade, o
   fazem de forma tal que não o podemos saber. A lógica não pode decidir
   se as premissas são ou não verdadeiras; a lógica não pode tão­pouco
   decidir se a conclusão de um raciocínio é verdadeira ou não; mas a
   lógica diz­nos se tal conclusão deriva ou não de tais premissas.
   
   É a lógica que permite distinguir claramente os argumentos válidos das
   falácias. Uma falácia ou um sofisma é um argumento inválido que no
   entanto parece ser válido. Quando o nosso campo de investigação excede
   claramente a experiência, só a lógica permite evitar as falácias.
   Repare­se no seguinte argumento: tem de existir algo que seja a causa
   de todas as coisas porque todas as coisas têm uma causa. A
   generalidade das pessoas que não sabe lógica aceita este argumento. No
   entanto ele é falacioso, como sabem aqueles que conhecem os rudimentos
   mínimos de lógica para a investigação filosófica. Repare­se que se
   alguém nos afirmar que tem de existir alguém que seja a mãe de todas
   as pessoas porque todas as pessoas têm uma mãe, já se vê claramente
   que o argumento não é válido. Isto acontece porque a conclusão pode
   ser verificada empiricamente: não existe uma pessoa que seja a mãe de
   todas as pessoas. Mas este argumento é logicamente idêntico ao
   argumento anterior; a forma lógica de ambos os raciocínios é a mesma.
   Num caso temos proposições empiricamente verificáveis; no outro não
   mas temos a lógica que permite excluir imediatamente também este
   argumento como inválido.
   
   Repare­se num argumento típico da filosofia. O filósofo quer defender
   a ideia de que o bem é o que dá prazer. Nós perguntamos: por que diz
   você tal coisa? E ele responde: porque isto, e porque aquilo, e porque
   aqueloutro; logo, o bem é o que dá prazer. A lógica permite­nos dizer:
   não senhor, dessas premissas é que não se pode derivar tal conclusão;
   esse raciocínio não é válido. Até pode ser que o bem seja o que dá
   prazer; mas a verdade da proposição que o bem é o que dá prazer não se
   pode derivar das premissas apresentadas. Como não podemos ter dados
   empíricos acerca de tal questão, vamos ter de arranjar outras
   quaisquer premissas donde se possa derivar que o bem é o que dá
   prazer. Há dois mil anos que os filósofos cristãos procuram um
   argumento dedutivo para provar a existência do seu deus; mas até hoje
   ninguém conseguiu. O que é também típico da filosofia: é que a lógica
   diz­nos se um argumento é ou não válido; mas mesmo que um argumento
   não seja válido pode ser que a sua conclusão seja verdadeira. Quem a
   propõe tem é de convencer a inteligência dos outros filósofos; e o
   único recurso é arranjar um outro argumento que seja válido.
   
   Claro está que ainda que um filósofo conceba um argumento válido para
   demonstrar que Deus existe, não se segue que Deus existe de facto;
   segue­se apenas que se as premissas desse argumento forem verdadeiras
   então Deus existe. Todos os filósofos passam agora a discutir a
   verdade de uma ou outra premissa em particular; e para argumentar a
   favor dessa premissa em particular vamos ter outra vez o dilema: ou
   temos o critério da experiência para confirmá­la ou temos de
   argumentar. Mas se temos de argumentar (o que é tipicamente o caso da
   filosofia) então temos outra vez todo o processo a repetir­se. É isto
   que torna a filosofia muito difícil.
   
   O que torna a filosofia sublime é o carácter extraordinário que a faz
   perguntar pelo que a experiência não pode alcançar, sem desistir de
   exigir que se distinga a verdade da ilusão. Estas perguntas podem ser
   incómodas para as pessoas que têm um forte espírito técnico e um fraco
   espírito interrogativo. Mas a filosofia é fundamentalmente uma
   actividade de fazer perguntas incómodas e tentar encontrar respostas
   razoáveis. Perguntas muito simples sobre as questões mais gerais da
   realidade. Tão gerais que não podem ter uma resposta empírica. A
   questão de saber o que é a consciência pode ser, num certo sentido,
   respondida pelas ciências empíricas. Mas quando a neurofisiologia, a
   psicologia e as ciências da cognição nos disserem o que é a
   consciência, o problema filosófico sobre a natureza da consciência
   continuará a existir. O filósofo dirá: «sabemos agora o que é a
   consciência e como funciona. Mas as coisas poderiam ou não ter sido de
   outra maneira? Qualquer ser que possua consciência tem de ter uma
   consciência como a nossa?» A questão filosófica sobre a consciência
   fica sem dúvida enriquecida com a investigação científica; mas não se
   confunde com ela.
   
   As teorias filosóficas típicas não podem ser confirmadas ou infirmadas
   pela experiência; ultrapassam­na. Só a lógica e a discussão séria
   podem ajudar­nos a avaliar a verdade das suas teorias, uma vez que
   queremos excluir do nosso estudo o apelo irracional a experiências
   místicas. Mas como vimos, um argumento válido nunca é conclusivo em
   filosofia porque é sempre possível duvidar da verdade das premissas;
   por outro lado, um argumento inválido pode ainda assim ter uma
   conclusão verdadeira. Assim, a lógica não pode de forma alguma
   resolver os problemas da filosofia; não pode pelo menos, seguramente,
   resolvê­los todos. Mas é um instrumento básico sem o qual a tarefa do
   filósofo é bastante mais confusa, correndo o risco de se tornar ou num
   discurso autofágico, ou num veículo de divulgação disfarçada de ideias
   pouco inteligentes que querem furtar­se à livre discussão. O
   verdadeiro filósofo é aquele que procura satisfazer a sua curiosidade
   intelectual pela verdade, nada sacrificando ao valor da verdade; por
   mais que uma ideia seja pessoalmente reconfortante para um
   intelectual, o seu compromisso é com a verdade, não com o conforto; o
   seu compromisso é com a inteligência, não com a crença injustificada.
   Quem poderá pretender que a garantia da verdade de uma tese é o facto
   de o autor sentir que ela é verdadeira? Não se trata de deitar o
   sentimento humano fora, transformando assim as pessoas em máquinas
   destituídas de sentimentos. Trata­se muito simplesmente de ser
   imperioso distinguir a verdade da ilusão. Por mais que um pintor que
   não tem qualquer domínio de qualquer técnica de pintura sinta que o
   mau quadro que pintou é bom, temos de poder distinguir esse sentimento
   que ele tem acerca do valor do seu quadro da verdade acerca do valor
   do seu quadro.
   
   Lógica, consistência, clarificação
   
   Para apresentar o segundo papel da lógica na filosofia tenho agora de
   introduzir brevemente a noção de inconsistência. Duas proposições são
   inconsistentes se e somente se não podem ser ambas verdadeiras. Por
   exemplo, a proposição que a vida tem sentido é inconsistente com a
   proposição que a vida não tem sentido.
   
   A dificuldade da filosofia faz com que muitas das teorias que merecem
   ser consideradas seriamente não se deixem no entanto apresentar como
   conclusões de argumentos dedutivos. Isto é, existem muitas teorias
   filosóficas, possivelmente a maioria, que não são suportadas por
   argumentos a partir dos quais essas teorias seriam deduzidas. Como
   avaliar criticamente teorias filosóficas que não são suportadas por
   argumentos dedutivos? É aqui que a lógica encontra o seu segundo papel
   fundamental na filosofia. A tese filosófica proposta pode não ser
   consequência lógica de nenhumas premissas mas também não poderá ser
   inconsistente com verdades mais básicas amplamente aceites, sob pena
   de ter de ser afastada logo à partida da discussão.
   
   Uma tese de tipo hegeliano que afirme serem todas as verdades do
   universo dedutíveis a partir de um conjunto finito de verdades lógicas
   é inconsistente com resultados fundamentais da própria lógica. Não
   pode por isso ser verdadeira. Mas a tese que afirma a existência de
   Deus ainda não se provou até hoje ser inconsistente com quaisquer
   verdades conhecidas; segue­se então que esta tese é verdadeira? Não;
   segue­se apenas que pode ser verdadeira, tanto quanto sabemos. Mais
   uma vez deparamos com o facto de a lógica carecer de poder para
   determinar a verdade das teorias filosóficas. Mas mais uma vez também
   percebemos o papel reservado à lógica: permitir que se separe
   claramente aquelas teorias que merecem ser consideradas daquelas
   outras que por pura análise lógica têm de ser logo à partida afastadas
   da discussão séria.
   
   Se entendermos que a filosofia consiste na discussão de teorias e
   argumentos com o objectivo último de ganhar conhecimento acerca do
   mundo (do qual nós somos uma parte) não podemos deixar de enfrentar o
   problema de saber como podemos nós avaliar as diferentes teorias e
   argumentos em discussão. É o que se chama a avaliação crítica. A
   avaliação crítica filosófica não pode ser confundida com arrumação
   histórica filosoficamente acrítica por carecer de instrumentos
   adequados. Temos de saber distinguir claramente a discussão histórica
   acerca do que disse de facto determinado filósofo e das diversas
   circunstâncias culturais, sociais e psicológicas que eventualmente o
   levaram a afirmar tal, da discussão filosófica que consiste em avaliar
   criticamente a plausibilidade da teoria em causa. É irrelevante para a
   verdade ou falsidade de uma teoria filosófica que tenha de facto sido
   defendida por determinado filósofo ou não. O que se pretende discutir
   em filosofia são teorias e argumentos interessantes conceptualmente,
   independentemente de terem sido defendidos historicamente. A lógica
   fornece instrumentos para afastar logo à partida aquelas teorias e
   argumentos que são insustentáveis conceptualmente, ainda que tenham
   sido defendidos historicamente.
   
   Para que qualquer destes dois papéis que a lógica tem na filosofia
   (detectar a validade dos argumentos e a consistência das teorias)
   possa na verdade ser alcançado é imperioso que se proceda a uma
   clarificação conceptual de forma a saber com razoável precisão o que
   está a ser afirmado. Este é o papel mais básico que a lógica (agora
   numa acepção mais lata) tem na filosofia. Este papel clarificador não
   pode ser desprezado.
   
   Um exemplo concreto desta capacidade clarificadora da lógica é o
   seguinte. Um argumento péssimo que por vezes se ouve afirma que as
   inconsistências não só não podem ser evitadas, como nem devem sê­lo,
   pois o mundo é ele mesmo inconsistente. Este argumento é péssimo
   porque resulta de uma confusão conceptual básica. Que diria o leitor
   se eu lhe afirmasse que o Mário Soares não é divisível por dois de
   forma a que o resto seja zero uma vez que é um número ímpar? Diria que
   apesar de o Mário Soares ser um, não é o número um e que só os
   números, mas não as pessoas, são divisíveis por outros números. Claro!
   O mesmo se passa com a questão da inconsistência. Não se pode afirmar
   que o mundo é inconsistente porque o mundo não é constituído por
   proposições; e só as proposições podem ser inconsistentes. As
   inconsistências só podem existir nas nossas teorias (que são compostas
   de proposições) acerca do mundo. Mas as inconsistências são
   insustentáveis porque de uma contradição segue­se logicamente tudo.
   Isto quer dizer que, se aceitamos uma inconsistência qualquer, estamos
   logicamente obrigados a aceitar tudo ­­ incluindo a negação do que
   queríamos defender. Logo, se temos uma teoria inconsistente isso
   significa que tudo, incluindo a negação da nossa teoria de partida,
   tem de ser considerado verdadeiro. Uma teoria inconsistente é uma
   fantasia que não permite conhecer melhor o mundo.
   
   É a lógica, no sentido mais lato da palavra, que permite fazer
   distinções conceptuais básicas que clarificam os argumentos e as
   teorias filosóficas. A noção de predicados de primeira e segunda
   ordem, por exemplo, é crucial para que se evitem argumentos e teorias
   que não podem conduzir à verdade. Se afirmarmos «as pessoas são
   numerosas e Sócrates é uma pessoa, logo Sócrates é numeroso»,
   percebe­se facilmente que algum erro foi cometido algures no
   raciocínio, porque a conclusão é manifestamente desprovida de sentido,
   apesar de as premissas serem verdadeiras. O que se passa é que o
   predicado «numeroso» é na verdade um predicado de segunda ordem, uma
   vez que se aplica à classe das pessoas, mas não aos elementos que
   constituem essa classe, isto é, as próprias pessoas. Da mesma maneira
   que não podemos dizer que a classe das pessoas é mortal, apesar de
   todos os seus elementos as pessoas o serem, também não podemos dizer
   que os elementos da classe são numerosos, pois este é um atributo da
   classe. Ou, noutro exemplo, não podemos dizer que a classe das coisas
   verdes é ela própria verde; os seus elementos é que são verdes. Nestes
   casos não precisamos da lógica para nada, uma vez que o seu carácter
   empírico e básico nos permite perceber imediatamente que alguma coisa
   está errada. Mas o que poderá acontecer quando não temos o critério da
   experiência para nos guiar (o que é típico na filosofia)? Só a lógica
   permite afastar da nossa discussão aqueles argumentos que não vale a
   pena considerar por serem inválidos. Pense­se nas confusões que podem
   surgir quando se confunde a classe das coisas que existe, muitas vezes
   infelizmente chamada «o ser», com os elementos que a constituem;
   pense­se nos predicados que se podem atribuir à classe das coisas que
   existem, mas que não se podem atribuir às coisas que pertencem à
   classe, e vice­versa.
   
   Lógica, retórica e filosofia
   
   Não posso deixar de abordar um tema de que se fala muito hoje em dia:
   a retórica. Uma tese que quero clarificar é a que afirma que a lógica
   é insuficiente como instrumento filosófico por ser puramente formal, e
   que cabe à retórica o verdadeiro papel criativo na argumentação
   filosófica. Para discutir esta ideia é necessário distinguir dois
   conceitos opostos de retórica. Por «retórica» podemos entender um
   conjunto de regras que têm por objectivo único tornar mais clara a
   expressão dos argumentos. Mas acontece que por «retórica» pode
   entender­se outra coisa muito diferente, a saber, a arte do engano,
   tão duramente criticada por Platão e Aristóteles, que consiste em
   conseguir convencer os outros sem que tenhamos boas razões para
   sustentar as nossas posições.
   
   O papel da verdadeira retórica pode ser ilustrado com o seguinte
   argumento:
   
     (P1) Se desejarmos apurar as capacidades cognitivas dos alunos,
     temos de lhes ensinar a formular com clareza, precisão e
     criatividade os problemas, teorias e argumentos filosóficos.
     (P2) Se concebemos a filosofia como uma actividade cognitiva, o
     objectivo do seu ensino será apurar as capacidades cognitivas dos
     alunos.
     (C) Logo, se concebemos a filosofia como uma actividade cognitiva,
     temos de ensinar os alunos a formular com clareza, precisão e
     criatividade os problemas, teorias e argumentos filosóficos.
     
   Do ponto de vista estritamente lógico é indiferente apresentar o
   argumento por esta ordem, ou inverter a ordem e começar por (P2) em
   vez de (P1). No entanto, o argumento é mais facilmente compreensível
   se começarmos por (P2). A retórica, entendida no bom sentido da
   palavra, aconselha­nos a começar por (P2).
   
   Mas a retórica, entendida no mau sentido da palavra, aconselha­nos a
   não mudar a ordem, precisamente pela mesma razão. A diferença é que
   enquanto a boa retórica é uma actividade que tem como objectivo a
   clareza, a má retórica tem por objectivo convencer o interlocutor a
   qualquer preço e é mais fácil convencer o interlocutor quando ele não
   consegue avaliar o argumento em causa, uma vez que assim também não
   consegue refutá­lo. Enquanto a boa retórica tem por objectivo oferecer
   a possibilidade do pensamento crítico, a má retórica tem por objectivo
   impedir o pensamento crítico e convencer a outra pessoa,
   independentemente de existirem ou não boas razões para aceitar o que
   está em causa.
   
   Nenhuma retórica pode transformar um argumento mau num bom argumento;
   o que a má retórica pode fazer, no máximo, é disfarçá­lo; mas não nos
   ajuda a descobrir a verdade. A verdadeira retórica, entendida como
   instrumento de estudo da verdade, depende da lógica. Não pode por isso
   afirmar­se que o papel da retórica é mais importante para a filosofia
   do que o papel da lógica. A retórica complementa a lógica; não pode
   substituí­la.
   
   Conclusão
   
   A lógica tem então apenas estes três papéis: 1) dizer claramente se
   determinada conclusão se pode ou não seguir de determinadas premissas
   em certo argumento dedutivo; 2) dizer claramente se determinada
   conclusão é ou não consistente com verdades mais básicas; e 3)
   clarificar os argumentos e teorias filosóficos. Mas acontece que estes
   papéis muito modestos da lógica são na verdade muito importantes
   porque de pouco mais nos podemos valer para avaliar a discussão
   detalhada, por vezes enervante, outras deliciosa, mas sempre
   estimulante, com os outros filósofos. Evitar o erro de raciocínio, a
   inconsistência e a obscuridade pode parecer pouco. Mas quando a
   experiência não pode dizer­nos onde está a verdade, é uma benesse que
   a lógica possa detectar a inconsistência porque aí não pode estar a
   verdade , detectar o erro de raciocínio porque mesmo que aí esteja a
   verdade nós não podemos sabê­lo , e clarificar as teorias e argumentos
   para que a avaliação crítica seja realmente possível.
   
   Para terminar, quero chamar a atenção para a diferença entre o estudo
   de uma disciplina e o uso dessa disciplina enquanto instrumento. A
   diferença é clara: uma coisa é usar a matemática na engenharia naval,
   outra coisa muito diferente é investigar a própria matemática. O
   engenheiro naval não precisa de mais do que um conhecimento
   instrumental da matemática; os problemas da matemática não lhe dizem
   respeito. O mesmo se passa com a filosofia em relação à lógica, com a
   diferença que se pode alegar que a lógica é uma disciplina filosófica,
   ao passo que a matemática não é, claramente, uma disciplina da
   engenharia naval. O filósofo moral ou político não precisa de conhecer
   a lógica senão como instrumento; para tal bastam alguns rudimentos.
   São os lógicos que conhecem a lógica profundamente, investigam e
   discutem os seus problemas; pode argumentar­se que os lógicos são uma
   subclasse dos filósofos porque as decisões fundamentais a tomar quanto
   à natureza da lógica são decisões filosóficas e não lógicas. Mas mesmo
   que se defenda que todos os lógicos são filósofos, não se segue daí
   que se tenha de defender que todos os filósofos são especialistas em
   lógica, tal como ninguém defende que todos os engenheiros navais são
   especialistas em matemática. Por outro lado, não podemos fazer hoje
   filosofia seriamente sem o auxílio da lógica, como procurei mostrar
   nestas páginas, tal como não podemos seriamente fazer engenharia naval
   sem o auxílio da matemática.
   
   Desidério Murcho
   Sociedade Portuguesa de Filosofia
   Av. da República, 37, piso 4
   1050 Lisboa, Portugal
   
   Ensino da Filosofia e Exegese
   
   Desidério Murcho *
   
   Quero partilhar com os leitores algumas ideias sobre o ensino da
   filosofia analítica. Uma vez que o próprio conceito de filosofia
   analítica é razoavelmente pouco conhecido, escolhi a exegese como a
   actividade em relação à qual a filosofia analítica se distingue
   claramente da continental. O meu objectivo é disponibilizar alguma
   informação que julgo importante não só para a tomada de decisões de
   fundo no que respeita ao ensino da filosofia, mas também para a
   prática docente quotidiana. A ênfase é colocada sobretudo no ensino
   liceal da filosofia, mas sem perder de vista o ensino universitário.
   
   A pequena cultura filosófica portuguesa pertence a um sector muito
   específico e minoritário, em termos mundiais, da prática filosófica
   internacional. É comum designar­se esta forma minoritária de fazer
   filosofia como 'filosofia continental', porque é sobretudo nos países
   do continente europeu (França, Portugal, Espanha, Itália e parte da
   Alemanha) que se cultiva esta forma de fazer filosofia. A filosofia
   analítica é dominante em países como o Reino Unido, os EUA, a
   Austrália, alguns países nórdicos europeus e parte da Alemanha. Nos
   países de forte tradição continental, como a França e a Espanha, o
   movimento analítico tem vindo a crescer ao longo dos anos, apesar de
   continuar, nesses países como em Portugal, claramente minoritário.
   
   Toda a gente conhece a filosofia continental: foi o que nos ensinaram
   e continuam a ensinar no liceu, é o que se ensina nas universidades e
   a maior parte dos livros e revistas de filosofia são de perfil
   continental. Uma das características que distinguem a forma analítica
   de fazer filosofia da forma continental, sobretudo portuguesa,
   baseia­se na diferente posição que tomam em relação à exegese
   filosófica. Ao passo que para os continentais a exegese filosófica não
   se distingue da simples paráfrase, os analíticos distinguem esta da
   formulação, identificando com esta última o sentido da expressão
   'exegese filosófica' mas não com a primeira.
   
   A distinção entre a paráfrase e a formulação pode ser facilmente
   captada se tivermos em conta que alguém que nada perceba de medicina
   ou música pode no entanto parafrasear eficientemente um texto de
   medicina ou música do século XVI, bastando para tal conhecer a língua
   em que tal texto foi escrito, ao passo que para formular o conteúdo de
   um texto de medicina ou música do século XVI já é necessário saber
   medicina ou música, consoante o caso.
   
   Compreende­se assim por que razão outra das características que
   distinguem a maneira analítica de fazer filosofia da maneira
   continental consiste na hierarquia conceptual dada à exegese
   filosófica: para um filósofo analítico só é possível fazer exegese
   filosófica depois de se saber filosofia, ao passo que os continentais
   defendem que se aprende filosofia a fazer exegese, o que aos olhos dos
   analíticos é tão absurdo como defender que se aprende medicina ou
   música lendo os textos clássicos da medicina ou da música.
   
   Para um filósofo analítico a expressão 'exegese filosófica' significa
   'formulação' e não 'paráfrase', pois não podem existir 'paráfrases
   filosóficas', uma vez que a filosofia pressupõe uma compreensão
   crítica e a paráfrase apenas pressupõe a capacidade mimética. Esta
   divisão, entre analíticos e continentais, quanto ao significado da
   expressão 'exegese filosófica' é a causa última do tipo de ensino da
   filosofia praticado em Portugal, e que aos olhos dos analíticos não
   passa de uma caricatura do que é o verdadeiro ensino da filosofia. Nos
   liceus e nas faculdades, os alunos de filosofia são lançados, sem
   preparação, para os textos clássicos da filosofia (numa atitude que a
   um analítico parece autêntico terrorismo intelectual), sendo­lhes
   exigido em troca um conjunto mais ou menos bacoco de paráfrases em que
   os mais disparatados erros, as mais gritantes ambiguidades e
   imprecisões e a mais evidente incompreensão dos problemas, argumentos
   e teorias que os filósofos discutiram ao longo dos tempos são sinais
   infelizes de um tipo de ensino que não tem capacidade para formar
   pessoas que sabem, sobretudo, pensar, mas antes pessoas que sabem,
   sobretudo, repetir.
   
   A formulação dos problemas, teorias e argumentos da filosofia permite
   ao aluno perceber os problemas, teorias e argumentos da filosofia, ao
   passo que a sua paráfrase não lhe permite senão a repetição mecânica
   das palavras dos filósofos. É por este motivo que a avaliação dos
   alunos de filosofia, sobretudo no liceu, é um problema latente em
   Portugal. Uma vez que não são transmitidos aos alunos conteúdos cuja
   formulação mais ou menos precisa seja possível avaliar de forma justa,
   mas antes conjuntos de frases que os alunos devem repetir de forma
   mais ou menos vaga, o professor nunca sabe se está perante um aluno
   com uma excepcional verve filosófica, se perante alguém que nada
   percebeu, acabando todos por ser avaliados em função de critérios
   extra­filosóficos como a qualidade do português, a quantidade de
   autores referidos por cada frase e a capacidade para citar a
   bibliografia de forma competente.
   
   O filósofo analítico, por outro lado, sabe exactamente o que está a
   avaliar, tal como um professor de música ou de medicina. Existem
   conteúdos filosóficos precisos cuja maior ou menor compreensão, tal
   como é revelada pela sua formulação escrita e oral, pode ser avaliada
   de forma justa. Tal como um professor de medicina avalia até que ponto
   um aluno compreendeu o processo digestivo dos seres humanos e tal como
   um professor de música avalia até que ponto um aluno compreendeu o
   conceito de intervalo musical, também o professor de filosofia
   analítica avalia até que ponto um aluno compreendeu a teoria da
   referência de Kripke ou os argumentos cépticos da segunda Meditação de
   Descartes.
   
   Outra das consequências da diferente concepção de exegese filosófica
   que distingue os analíticos dos continentais é a ausência conspícua de
   livros de introdução à filosofia, do lado continental, e a sua
   abundância, do lado analítico. De facto, como escrever um livro de
   introdução à filosofia quando a concebemos como a arte, mais ou menos
   delirante, da paráfrase? Se vamos explicar o conceito de frase
   analítica, temos de parafrasear Kant ou Quine, citando ambos os
   autores abundantemente; nada mais resta fazer. Não há quaisquer
   conteúdos conceptuais que possam ser organizados e apresentados
   didacticamente, do mais simples para o mais complexo, do mais
   importante para o menos importante. Quando se tem um conceito
   continental de filosofia nada resta excepto a paráfrase. Mas isso é
   negar à filosofia o papel crítico que faz parte da sua própria
   essência, e sem o qual ela se torna um exercício oco culturalmente
   empobrecedor e, sem dúvida, verdadeiramente redutor.
   
   Para terminar, gostava de afirmar claramente que da minha posição
   favorável à filosofia analítica não se segue que eu ache que a
   filosofia continental deva acabar. Defendo e sempre defendi a
   tolerância e a liberdade. Acontece que, da mesma maneira que acho que
   os partidários da filosofia continental têm o direito de estudar,
   ensinar e divulgar a sua prática, também acho que os partidários da
   filosofia analítica têm o mesmo direito. Esta posição não deve
   confundir­se com um relativismo mais ou menos irresponsável, no qual
   tudo é igual a tudo; é apenas o resultado de um princípio que me
   parece sensato: nestas matérias pacíficas, as pessoas têm o direito de
   estar erradas. Compete ao público fazer a sua escolha.
   
   *Desidério Murcho
   
   Sociedade Portuguesa de Filosofia
   
   Av. da República, 37, piso 4
   
   1050 Lisboa

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