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Ameaça dentro de casa

Rafael   6 dias ago   Destaques   Nenhum comentário   576 Views

No dia internacional de combate à violência contra a mulher, entenda como esse problema ainda afeta
especialmente o Brasil e como a religião pode contribuir para uma mudança de cenário
Desde 1999, quando a Assembleia Geral da ONU instituiu oficialmente o 25 de novembro como o “Dia
Internacional de Eliminação da Violência contra as Mulheres”, a cada ano novos levantamentos estatísticos
revelam a seriedade do problema que se esconde em milhares de residências e se manifesta em todas as
classes sociais. Um dos mais recentes foi divulgado neste mês pela Faculdade Latino­Americana de Ciências
Sociais (Flacso). E o retrato da América Latina não é dos melhores.

Como mostra o Mapa da Violência 2015, os três países com os maiores índices de homicídios femininos, entre
os 83 que aparecem no ranking, são latino­americanos: El Salvador, Colômbia e Guatemala. Com uma taxa de
4,8 para cada 100 mil habitantes, o Brasil é o quinto da lista. Para se ter uma ideia, em 2013 foram registrados
no país 4.762 feminicídios, o que representa 13 mortes por dia. Outro dado que também assusta é o local das
agressões: 27 por cento desses crimes são cometidos dentro da própria residência das vítimas. Isso porque, em
muitas circunstâncias, os agressores são pessoas da própria família (veja o quadro abaixo).

Porém, os assassinatos em razão de gênero são apenas a ponta
do iceberg. É preciso levar em conta que a violência doméstica se
manifesta de diversas maneiras. A Lei Maria da Penha, que já foi
considerada pela ONU uma das três legislações mais avançadas
do mundo nessa área e completa dez anos de existência em
2016, classifica cinco tipos de violência contra a mulher: física,
psicológica, sexual, patrimonial e moral (veja ao final da
reportagem o quadro “Tipos de violência contra a mulher”).

Contudo, de acordo com levantamento da Secretaria de Políticas
para as Mulheres da Presidência da República divulgado em
março deste ano, a maioria das denúncias recebidas em 2014
através do telefone 180 – serviço criado em 2005 com objetivo de
orientar e encaminhar as vítimas para atendimento judicial e
policial ­, foi de agressões físicas. Dos 52.957 relatos, 27.369
(51,98%) vieram de mulheres agredidas com socos, tapas,
mordidas, pontapés e queimaduras.

Marcas da violência

A fisioterapeuta Cristina Lopes Afonso, de 49 anos, já fez parte
dessas estatísticas. As cicatrizes que ela carrega no corpo são
uma marca permanente dos danos que sofreu em meados da década de 1980. Na época, Cristina era uma jovem
professora de Educação Física recém­formada pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e com perspectivas
de um futuro promissor. Ela tinha acabado de ser aprovada num programa de mestrado na Alemanha e estava
determinada a aproveitar essa oportunidade. Porém, não imaginava o que seu namorado seria capaz de fazer
para impedi­la.

As manifestações de violência começaram com chantagens emocionais. “Ele não queria que eu falasse com as
pessoas, dirigia em alta velocidade para me intimidar, me proibia de ir em determinados lugares. E o pior:
arquitetava a situação de uma forma que eu não via aquilo como violência. Quando não há agressão física, a
tendência é de que muitas mulheres não entendam a violência emocional como uma forma de agressão”,
declara. Mas, pouco tempo depois, a violência psicológica deu lugar à agressão física. “Quando ele me agrediu,
foi para matar”, recorda.

No dia 6 de fevereiro de 1986, no apartamento em que morava, Cristina foi vítima de um crime que comoveu o
Brasil e repercutiu na imprensa nacional e internacional, sendo notícia no Fantástico e até no programa norte­
americano de televisão 60 Minutes. O namorado jogou álcool sobre ela e ateou fogo na jovem, que teve 85 por
cento do corpo queimado.

Pela falta de recursos médicos em Curitiba, Cristina foi levada pela família dela para
a capital goiana, que era uma das referências no tratamento de queimaduras no
país. “Mesmo assim, ao ver a minha situação, os médicos em Goiânia disseram
que eu não tinha chance”, relembra. Contrariando os prognósticos, ela sobreviveu.
Mas teve que enfrentar 24 cirurgias plásticas.

A história de Cristina Lopes Afonso se tornou um marco na luta pelos direitos da
mulher no Brasil. “Foi o primeiro caso de tentativa de homicídio com vítima viva, em
que o réu foi julgado pelo Tribunal do Júri e recebeu uma condenação exemplar”,
afirma ao lembrar que, em 1989, num julgamento histórico, o agressor, que era
Vítima de um crime
médico, pegou 13 anos e 10 meses de prisão.
bárbaro na década de
1980, Cristina Lopes
Logo depois do julgamento do ex­namorado, a professora foi morar em Goiânia, Afonso conseguiu dar a
onde decidiu cursar Fisioterapia e criou o Núcleo de Proteção aos Queimados, uma volta por cima e hoje
organização especializada na recuperação de pessoas com queimaduras graves, auxilia outras mulheres
que sofrem agressões.
inclusive de mulheres que passaram por agressões semelhantes a que ela sofreu.
Foto: arquivo pessoal

Quase três décadas depois desse episódio dramático, a professora da Universidade Estadual de Goiás (UEG) se
dedica a auxiliar vítimas da violência doméstica por meio das palestras que realiza por todo o território nacional.
Ela também ajuda a promover materiais e campanhas educativas que alertam sobre o problema, além de
contribuir, como vereadora em Goiânia, para a criação de políticas públicas de proteção à mulher.

Conscientização pelas letras

Foi também com o objetivo de conscientizar sobre o tema, informar sobre as leis de
proteção à mulher e humanizar as estatísticas que a estudante Jhenifer Costa, que
cursa o último ano de Jornalismo no Unasp, campus Engenheiro Coelho, decidiu
escrever o livro­reportagem Depois do sim. O trabalho de conclusão do curso, que
será apresentado no dia 1º de dezembro, dá um panorama da violência contra a
mulher no Brasil e no mundo, e mostra como o ciclo da violência doméstica é
alimentado.

O trabalho acadêmico chama a atenção não só pela quantidade de dados, mas
principalmente pelas histórias que relata. Dona Creuza Maria de Queiroz é uma das
Livro­reportagem
personagens. Durante 25 anos ela foi agredida pelo ex­marido.
pretende alertar a
população sobre o
problema da violência Além de contar em detalhes as experiências dramáticas vividas por três vítimas da
contra a mulher e ajudar violência doméstica, Jhenifer também analisa alguns fatores que podem ajudar a
as vítimas a buscar coibir esse problema. Para ela, a família, a educação e a religião desempenham um
seus direitos.
papel fundamental tanto na prevenção quanto na recuperação das vítimas de
agressões.

Ao falar sobre o terceiro aspecto, com base na opinião de vários especialistas, o livro considera que “a religião e
a comunidade religiosa são vistas como fonte de recomeço, restauração e reabilitação” para muitas vítimas da
violência doméstica. “Ao final de um relacionamento conturbado, algumas procuram a igreja para se reestruturar
emocionalmente. É na religião que elas encontram apoio e forças para recomeçar. Por esse motivo, a crença em
algo sobrenatural também ajuda a vítima a reerguer­se”, diz a obra (p.28).

CONFIRA A ENTREVISTA COM A AUTORA DO LIVRO­REPORTAGEM

Porém, como observa Jhenifer, nem sempre as vítimas conseguem compartilhar com outros o que estão
vivendo, seja por medo de represália por parte do agressor ou do sentimento de vergonha que essa exposição
pode gerar entre os membros da comunidade. A psicóloga Tereza Verrone, uma das fontes citadas no trabalho,
acrescenta que “algumas religiões não estão preparadas para lidar com esse tipo de crime. Muitas vezes, os
pastores aconselham a mulher a continuar tentando, a perdoar e a submeter­se ao marido, em vez de deixá­lo.
Então, elas sofrem durante anos por causa da imagem falsa que exibem para a igreja” (p. 27).

Apesar disso, a autora reconhece que algumas comunidades religiosas oferecem
um importante apoio às vítimas de violência física, sexual e verbal, além de
desenvolver programas e projetos que incentivam a denúncia e a participação da
sociedade na luta pelo fim da violência contra a mulher. Um exemplo disso, segundo
ela, é o trabalho feito pelos adventistas, por meio da campanha Quebrando o
Silêncio, criada em 2002. Foi através dessa iniciativa, inclusive, que dona Creusa
recebeu a assistência de que precisava.

Nova edição da Contudo, essas iniciativas ainda são pontuais, conforme mostra o livro. Além da
revistaQuebrando o necessidade de mais ações desse tipo, é importante que as igrejas estejam melhor
Silênciodiscute a preparadas para receber quem procura ajuda. “Elas exercem um papel fundamental.
relação entre a
Por outro lado, muitas vezes não sabem como lidar com a situação”, pondera
violência doméstica e o
consumo de bebidas Jhenifer.
alcoólicas e outras
drogas. Para a advogada Damaris Moura, também citada no livro Depois do sim, as
comunidades religiosas precisam “ajudar a vítima a se libertar de seus pesares” e
“não estimular a vergonha e a culpa que ela já está sentindo” (p. 28).

MÁRCIO TONETTI é jornalista e editor associado da Revista Adventista (Com infografia de Eduardo Olszewski)

Para saber +

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