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Vol. 2, No 2 | 2013
Criatividade e protagonismo indígenas
Publisher
Núcleo de Antropologia Visual da Bahia
Electronic reference
Natelson Oliveira de Souza, « A história está no “drama”: jovens Xokó e produção de socialidade com
linguagem das artes », Cadernos de Arte e Antropologia [Online], Vol. 2, No 2 | 2013, posto online no dia
01 Outubro 2013, consultado o 01 Outubro 2016. URL : http://cadernosaa.revues.org/440 ; DOI :
10.4000/cadernosaa.440
O artigo explora alguns discursos e práticas de jovens índios Xokó, os quais apon-
tam para estratégias de produção da socialidade do grupo, pequeno povo indígena
ribeirinho situado no estado de Sergipe, Brasil, tendo em vista o seu processo
de territorialização presente na própria vida diária. Das diversas estratégias,
aquela que faz uso de linguagens das artes, objeto de análise neste texto, alcança
grande importância para o grupo mais jovem, uma vez que envolve um tipo
inovador de economia nativa de comunicação intersubjetiva com os não índios,
assim como entre eles mesmos. O uso da escrita e da linguagem teatral toma o seu
devido espaço quando está em causa, para os Xokó, o ato de transmitir, eficiente e
eficazmente, aos diversos interessados que constantemente os procuram, o signifi-
cado étnico do seu modo de ser e o percurso histórico que experimentaram para ser
o que são na vida contemporânea.
Palavras-chave: índios Xokó; juventude; história; socialidade; arte
Introdução
Inicio este texto com um breve panorama. Os Xokó são um pequeno povo indígena ri-
beirinho situado entre os estados de Sergipe e Alagoas, Nordeste do Brasil. Ocupam uma ilha
e uma porção de terras continentais no baixo rio São Francisco, margem direita a jusante do
rio, no município de Porto da Folha, estado de Sergipe. Trata-se de um povo cujo território e
ascendência reporta-nos às missões jesuíticas e capuchinhas estabelecidas no final do século
XVII, e encarregadas de efetuar conversões relativamente unilaterais dos sistemas de crenças
das populações nativas americanas, i.e., convertê-los ao cristianismo, assim como integrá-los,
num momento posterior, ao sistema social e laboral da nova colônia portuguesa. Não realizo,
1 Programa de Pesquisas sobre Povos Indígenas no Nordeste Brasileiro. Mestre em Antropologia (PPGA/
UFBA). Email: natelson81@hotmail.com
A história dos índios Xokó é demarcada por conflitos violentos por terras e territórios,
infortúnios bastante comuns a praticamente todas as populações nativas americanas. Trata-se
de uma característica muito persistente ainda na contemporaneidade, uma vez que diversas
populações culturais e étnicas, tais como quilombolas, ribeirinhos, pescadores, camponeses, sem
terras, entre outras, continuam sendo, no mundo rural, alvos destacados de pressões do capital.
Isso ocorre, muitas vezes, à margem da constituição brasileira e dos tratados internacionais em
vigor. Casos contemporâneos amplamente conhecidos são aqueles que envolvem os Guarani-
Kaiowa e o agronegócio, e a instalação da usina hidrelétrica de Belo Monte, marcada por lacu-
nas procedimentais estatais com riscos à segurança biológica, cultural e territorial de grandes
porções da Amazônia brasileira, como o rico Parque Indígena do Xingu.
Pelo foco da minha pesquisa, cujo presente artigo é um dos seus desdobramentos, presto
atenção aos efeitos deste contexto também entre os índios mais jovens, uma vez que eles, por um
lado, quando não nascem e crescem já experimentando diretamente as situações de violência,
física ou simbólica, criadas por colonos e determinadas “políticas públicas”, por outro, conhe-
cem, desde cedo, as narrativas dos mais experientes sobre suas histórias de vida recorrentemente
marcadas por graves violações de direitos fundamentais decorrentes da relação assimétrica que
têm estabelecido com o Estado e a sociedade nacional. Exemplos amplamente conhecidos desta
assimetria são os difundidos e arraigados predicativos que veiculam uma imagem negativa do
índio, ora como um ser pertencente genuinamente ao passado (essencialismos), ora “atrasado”
convenientemente (instrumentalismos) em relação ao modelo único de desenvolvimento e mo-
dernização.
Os índios mais jovens não estão alheios a estas questões e, cada vez mais, constatamos o
aprofundamento das suas articulações, em âmbito nacional, em torno da construção de uma
política indígena efetiva que contemple, também, o protagonismo das juventudes nos enfren-
tamentos dos problemas que afligem seus respectivos povos. O mais recente discurso oficial-
-coletivo é a Carta da Juventude Indígena à Sociedade Brasileira3. Podemos mencionar, ainda,
o recente encontro de um grupo de jovens lideranças com o atual presidente do STF, ministro
No caso dos jovens Xokó contemporâneos ao meu estudo5, eles são marcados duplamente
pelas situações acima descritas, pois tanto vivenciaram, quando crianças, parte do tempo de
violência decorrente do longo litígio em torno da terra com a então poderosa família Britto6,
quanto cresceram, já num momento que denominam tempo de paz, ouvindo os mais velhos
referirem a esta história, seja em ambiente familiar, nas escolas indígenas ou nas constantes
reuniões coletivas, quanto em âmbitos mais amplos do movimento interindígena brasileiro.
Esta exposição contínua aos fatos violentos vividos e/ou memorados permitiu que os jovens
não apenas experimentassem um sentimento particular7, como também construíssem releituras
e práticas estratégicas a fim de continuar atribuindo, eles mesmos, sentido à história vivida e/ou
transmitida. Isso permitiu um engajamento permanente nas tentativas de superação das condi-
ções adversas junto aos seus parentes mais experientes.
Atento a estes aspectos de suas vidas, busco analisar uma faceta deste engajamento a partir
da perspectiva e ações locais do jovem fomentador de uma linguagem cênica que busca contar a
história recente da luta indígena: Anísio Xokó. Tendo em vista que esta linguagem se apóia no
recurso da memória, descreverei como alguns jovens narram, através de residuais recordações de
infância, alguns momentos considerados tensos entre índios e pistoleiros da família supracitada
na década de 1980, sem perder de vista, sobretudo, o sentimento que vem à tona entre eles, ca-
racterizado por uma patente condolência em relação aos constrangimentos sofridos pelos seus
pais e os mais antigos índios Xokó nesta disputa. A partir destes aspectos, analiso como surge
a apropriação da linguagem das artes já em um contexto posterior e mais pacífico, e como esta
passa a funcionar – ainda que marginalmente – como estratégia agregadora de sociabilidades
deste povo, sobretudo da juventude local na re-produção da memória em face da história apre-
endida; e frente àqueles que constantemente os procuram, demonstrando interesse em saber
mais sobre as suas vidas, a exemplo dos estudantes das escolas e faculdades regionais e dos
sucessivos pesquisadores acadêmicos que, na linguagem teatral, são criativamente incorporados
como personagens interpretados pelos próprios indígenas.
Por fim, analiso como o exercício dessas linguagens é por eles impulsionado a fim de ob-
jetivar um sentimento de ser indígena mediante a relação com as experiências de vida entre si
e no âmbito da interetnicidade, i.e., na relação histórica e mutuamente representacional expe-
rimentada no contato com outras populações indígenas e mesmo com os não índios, cujo con-
tato é mais imediato na região em que vivem. Cabe frisar que a necessidade desta objetivação
possui um sentido específico voltado à re-produção e transformação contínuas de um estado de
bem-estar social, tomado, aqui, como dinâmica da socialidade8 do grupo, e de sua relação com
A tensão na memória
O discurso dos mais experientes, que remonta à trajetória histórica dos índios Xokó para
atribuir sentido à vida diária da terra indígena, é percebido como uma referência fundamental
para os jovens no que tange à construção de uma disposição afetiva específica em torno do que
se entende por “identidade Xokó”, e do que eles são e/ou deveriam ser no decorrer do tempo,
enquanto “continuístas” de um território muito recentemente conquistado. Nesse sentido, pode-
-se afirmar, em alguma medida, que esta disposição10 está relacionada, em parte, a duas dimen-
sões: i) como já dito, com as histórias contadas pelos pais e demais parentes que protagonizaram
diretamente o conflito; e ii) com fragmentos de “memórias” da infância da parte dos próprios
jovens adultos com os quais dialoguei, qual seja, com aqueles que em meu estudo tinham cerca
de trinta anos. Cabe destacar, então, que uma parcela dos jovens ouviu e vivenciou a luta, ao
passo que outros apenas dela ouviram falar, do que resulta que há entre eles percepções bastante
diferenciadas no presente contexto de pesquisa.
Ao ouvir, interessado, suas histórias de vida, meu objetivo parecia-lhes algo um tanto esti-
mulante, pois não era comum pesquisadores buscarem o passado justamente em suas falas, mas
naquelas dos mais vividos. Alguns ficavam surpresos e hesitantes quando eu solicitava conversar
sobre as suas histórias. Joana11, que estava prestes a fazer o vestibular, por exemplo, expressou
desconforto diante de meu incomum pedido. Dominada pela timidez, recuou, não obstante
tenha se disposto a falar em outra ocasião: “eu não sou muito boa nisso, meu avô [o pajé] e
minha avó sabem contar melhor”. De um modo geral, as memórias que recolhi remetem-nos
ao contexto de privações em que viviam os pais e parentes destes jovens e, simultaneamente, às
vantagens que os fazendeiros insensíveis a tais condições buscavam extrair-lhes, mesmo que eles
estivessem enfrentando as piores condições de sobrevivência. Este contexto de subalternidade
é algo marcante na lembrança daqueles que conversaram comigo. O cacique Bá costumava me
dizer: “hoje, todos nós vivemos em um paraíso. Com todos os problemas que ainda enfrenta-
mos, nem se compara. E é por isso que temos que lutar para não perder nunca mais nenhuma
destas conquistas”.
lidade que se materializam as moralidades e eticidades do grupo e os códigos que visam à garantia da organização
social que se aproxima de um tipo ideal. Ver McCallum ([1989] 2001), Strathern ([1988] 2006) e Viegas (2007).
9 Sahlins (2011), em sua análise recente sobre parentesco, trabalha com a noção-chave ‘mutuality of being’ para
demonstrar que a construção de uma rede de parentes ocorre, sobretudo, pela percepção da mútua implicação da
existência de uma pessoa em outras.
10 Esta disposição não deve ser considerada sob a perspectiva de que ela condicionaria os jovens a um mundo
social dado, no qual eles conseguiriam apenas uma rígida adaptação aos valores sociais já estabelecidos pelos mais
experientes. Devemos considerar que os jovens, assim como os veteranos, são atores sociais que desempenham um
papel criativo em sua própria historicidade, sendo agentes – isto é, portadores de agência (Ortner 2006) – diante
dos fenômenos do cotidiano que produzem a socialidade Xokó, um tipo de disposição afetivo-relacional posta em
prática no cotidiano da aldeia.
11 Nome fictício.
Numa conversa com Anísio, criador do “Drama”, ele me relatou uma tensa recordação do
tempo de criança, quando lhe era permitido, na ocasião em que seu povo enfrentava proibições
de entrada e utilização de recursos naturais da área contígua à Ilha de São Pedro13, acompanhar
o pai para coletar fechos de madeira na Caiçara14, parcela da terra indígena ainda sob a posse dos
Britto e na qual mantinham a criação de seu gado sob forte vigilância armada:
[…] a gente era um povo pobre, não existia aposentadoria … eu não sei por que … E a gente vivia da panela,
da cerâmica … minha mãe, meu pai … até pra gente sobreviver às custas da cerâmica era um pouco difícil
porque o barro apropriado pra construção era na Caiçara, e pra isso tinha que ir buscar lá … não podíamos ir
por conta do fazendeiro … muitos jagunços, pistoleiros … mas ainda lembro quando eu ia buscar lenha com
meu pai … a terra, os fazendeiros dividiu por muitas cancelas … sabe o que é cancela? […] quando a gente
vinha e ia daqui pra lá, passar sem peso dava pra abrir a cancela e fechar, mas de lá pra cá, vinha com peso,
não tinha condições de fechar a cancela porque era muito alta … aí meu pai … eu lembro, eu era pequeno …
lembro quando ele passava pela cancela, ele mandava eu ficar com uma certa distância já no bote … pra gente
atravessar … a gente atravessava o canal de bote. Atravessava e ainda atravessa … ele empurrava a cancela pra
longe que era pra dar tempo de chegar no rio, que a cancela ia lá, voltava e batia … se tivesse pistoleiro por
perto, numa certa distância … chamava atenção … E aí ele com fecho de lenha muito grande nas costas saía
correndo, pegava a canoa … já jogava o fecho, jogava o bote pra fora, quando eles vinham aparecer na beirada
do canal, a gente já vinha no meio do canal pra cá e pronto […]
Apesar dessa participação perigosa de Anísio nas idas e vindas pelas matas contíguas,
vale registrar que a necessidade de vigilância dos Xokó entre si e os parciais impedimentos de
mobilidade concernentes aos menos experientes ocorriam praticamente em todos os âmbitos
da vida diária da Ilha. Conforme Bá relatou, por qualquer mínimo descuido dos pais, jovens e
Não era muito raro, contaram-me, eles serem repreendidos pelos pais por conta desse
descuido. As brincadeiras que ocorriam entre eles eram restritas ao centro da Ilha, aos olhos de
todos. Certamente, isso afetava, sensivelmente, os mais jovens, pois muitos deles, em particular
as crianças, eram submetidas a uma forte tensão, cuja lógica, de certa maneira, deveria soar um
tanto incompreensível devido às suas tenras idades, mas que seria inevitavelmente desvendada
algum tempo depois, no contexto em que o litígio já estava consumado. Esta história passou
a servir como um vetor fundamental para a construção de uma nova socialidade Xokó, assim
como serviu de suporte para a mobilização coletiva em torno das posteriores políticas locais
de identidade, centradas nas novas conquistas de políticas públicas de Estado direcionadas ao
desenvolvimento autônomo dos povos indígenas.
Na perspectiva dos jovens adultos que vivenciaram parte do processo, a compreensão, ain-
da que tardia, da lógica do que enganosamente lhes parecia ilógico nas restrições de mobilidade
promovidas pelos pais e demais parentes, nos tempos em que eram crianças, certamente produ-
ziu efeitos consideráveis sobre suas identidades já “amadurecidas” na rotina segura da aldeia. Um
destes efeitos certamente se refere aos possíveis condicionamentos morais (considerados rela-
tivos) que viriam a atingir, em alguma medida, as suas dinâmicas cotidianas de agencialidades.
Entre essas dinâmicas destaca-se a elaboração de uma reconstituição cênica destas memórias,
conforme analisarei num âmbito bem particular deste artigo, qual seja, nas práticas norteadas/
norteadoras pelas/das linguagens específicas das artes como suporte para uma transmissão desta
história e do estado de indianidade.
Como não descrevi, anteriormente, o exato contexto histórico no qual se desenvolve o en-
redo teatral, cabe, aqui, um brevíssimo panorama15. A peça remonta à última luta dos “caboclos
da Caiçara” (como eram antes conhecidos) pela recuperação das terras da Ilha e Caiçara, antes
em posse dos Britto. Esta luta, em uma perspectiva historiográfica, pode ser dividida em dois
ciclos de eventos. O primeiro ciclo se inicia em setembro de 1978, quando os caboclos retomam
a Ilha de São Pedro, desencadeando um longo litígio, na justiça, contra os Britto. Os índios são
expulsos e um ano depois, diante da morosidade do processo, retornam novamente à Ilha, dis-
postos a não mais saírem. Neste mesmo ano, Delvair Melatti, antropóloga da FUNAI, reconhe-
ce a ascendência indígena dos Xokó, ao tempo que a documentação comprobatória é compilada
pela igreja de Propriá-SE e por acadêmicos de universidades, logrando êxito as reivindicações
dos caboclos em relação à Ilha. O segundo ciclo da luta refere-se ao processo de disputa da
Caiçara, território contíguo, que termina apenas em 1991 com a homologação das duas porções
de terras pelo governo Collor. Com o fechamento do primeiro ciclo, em meados de 1984, eles
se inserem parcialmente em um novo contexto que denomino “rotinização da aldeia”, no qual
15 Para uma leitura mais densa sobre esta luta, ver indicações na nota 13.
Cabe mencionar que a realização de peças sobre a Paixão de Cristo teria sido uma prática
mais ampla e recorrente naquela região17, devido ao forte catolicismo popular presente na cul-
tura sertaneja. A antropóloga norte-americana Jan Hoffman-French desenvolveu pesquisas, na
segunda metade da década de 1990, no Mocambo, comunidade quilombola vizinha aos Xokó,
e verificou a existência destas peças (plays). No Mocambo, assim como na Ilha de São Pedro,
as apresentações cênicas também passaram a funcionar como instrumento de apoio ao próprio
processo de reconhecimento étnico. No entanto, há uma diferença fundamental entre as moti-
vações imediatas em torno do teatro encenado pelos jovens do Mocambo, no período específico
analisado por French, em 1997, e o contexto mais recente daquele encenado pelos jovens Xokó,
e aqui analisado.
No que concerne ao teatro Xokó, ele ocorre num período em que o processo de auto e
alter-reconhecimento oficial já está aparentemente consolidado, muito embora não constitua
uma realidade acabada, conforme analisarei mais detidamente nas conclusões deste artigo. Os
16 Note-se que, tendo em vista que uso os dois termos, sociabilidade difere de socialidade. O primeiro, presente
na sociologia de Georg Simmel, refere à dimensão mais pura e lúdica da relação social. O ser humano tende na-
turalmente a se relacionar sem que para isso haja, necessariamente, motivações e finalidades objetivas. Strathern
(1999: 18-19) difere os termos da seguinte maneira: "Sociality is frequently understood as implying sociability,
reciprocity as altruism and relationship as solidarity, not to speak of economic actions as economistic motivations”.
17 Cf. Hoffman-French (2002; 2009): “Local sertanejan culture is entwined with centuries-old rural folk
Catholic practices, such as praying over people who are ill, using local herbs and plants to treat ailments, pre-dawn
processions dedicated to patron saints, passion plays, festivals, and a complex system of godparentage.” (2002: 24,
grifo meu).
18 Ver French (2009: cap. 6).
Relatando este fato, i.e., a realização cênica da Paixão de Cristo, Anísio revela que, ao
assisti-la ainda criança, foi-lhe despertado, imediatamente, o interesse pela criação artística, seja
na escrita literária, seja na elaboração de roteiros para encenações similares àquela promovida
por Rogério. Ao prestigiar a apresentação, ele se inquietou tentando desvendar o modus operandi
da linguagem teatral, pensando em como era possível a organização das falas, das pessoas em
seus momentos de entrar em cena, do enredo, das conexões entre as temáticas entrelaçadas e, so-
bretudo, lançando-se ao desafio de pensar como ele teria feito se fosse o próprio diretor. Este foi
o princípio das posteriores atividades criativas sistemáticas de Anísio. Alguns anos depois, ele
passou a vasculhar livros velhos e a escrever, incessantemente, sobre temas diversos, guardando
e compilando tudo o que elaborou. Numa das nossas conversas, ele me mostrou alguns de seus
pequenos livros artesanais guardados entre um considerável volume de papéis organizados em
pastas plásticas. Tratam-se, basicamente, de histórias fictícias, contos e poemas que contêm, em
seus criativos títulos, de modo bastante sugestivo, alguns elementos das históricas relações com
os não índios, seja com as populações negras, cuja relação de parentesco com os Xokó é bastante
Ao tempo em que ele me apresentava seus diferentes registros, eu aproveitava a sua dispo-
sição para lançar-lhe algumas de minhas perguntas fundamentais de pesquisa, e assim pudemos
conversar de maneira espontânea. O modo como Anísio respondia a algumas delas diferia, radi-
calmente, das formas mais protocolares de respostas que eu conhecia acerca de indagações bas-
tante conhecidas pelos indígenas. “Quando você diz que é índio, o que isso significa para você,
Anísio?” Perguntei-lhe. Ele manteve-se um instante em silêncio e, considerando que eu parecia
requerer uma resposta nem tanto óbvia ou imediata, pensou por alguns segundos e sacou, entre
os papéis, um de seus cadernos de poemas que estava entre as pastas. Ficou a vasculhar por al-
gum tempo e escolheu uma poesia que ele havia escrito alguns dias antes, justamente pensando
nisso. E recitou:
Logo após, ele passou a me explicar qual era o significado, o qual julgava ser apenas o co-
meço – muitas vezes negligenciado por quem pergunta – de uma resposta possível para a minha
indagação. Ele parecia sugerir que eu atentasse para o fato de que qualquer resposta ou conclu-
são para esse tipo de questão não deveria ser satisfeita de forma tão imediata, através de uma
resposta sintética, objetiva e, sobretudo, conclusiva: “é um talento que não se explica”. Isto é, pa-
recia sugerir que qualquer tentativa nesse sentido estaria implicada, necessariamente, nas com-
plexas dinâmicas de subjetividades, desejos e potencialidades contextuais de cada pessoa que se
sente indígena, sendo este o meio fundamental dela mesma identificar, em palavras, como se
19 Os Xokó são vizinhos da comunidade quilombola Mocambo. Para saber mais sobre estas relações de paren-
tesco e segmentação étnica, ver Arruti (2001).
Apesar do momento instigante provocado pela pergunta, retomei a conversa sobre as ati-
vidades em torno da peça teatral já conhecida pela comunidade. Ele relatou que Rogério Xokó
não estabeleceu uma rotina para as apresentações da peça na aldeia, de modo que não hou-
ve mais encenações. Sentindo que tinha capacidade para dar continuidade às apresentações,
Anísio, anos depois, tomou a iniciativa de articular com alguns jovens parentes a possibilidade
de construir uma nova peça que pudesse ter longevidade maior, e, desta vez, o conteúdo seria a
história recente da luta do povo Xokó, de maneira que pudesse encená-la, anualmente, na se-
mana em que eles comemoram a conquista definitiva da terra, nove de setembro. Essa escolha
fez-se, sobretudo, em atenção ao contexto em que costumam receber diversos visitantes não
índios que vão até a Ilha querendo saber um pouco mais sobre suas vidas, sua história e cultura
étnica, um significado mais preciso para o que é ser indígena.
Trata-se de uma peça de teatro improvisada, i.e., feita com muito esforço coletivo da parte
dos jovens e sem dispor de qualquer tipo de apoio financeiro. O acesso ao material cênico básico
depende do que os participantes conseguem contribuir a partir do que já possuem. A peça é
No que tange à escolha do momento histórico chave da peça, cabe mencionar que o con-
flito por terras entre índios Xokó e colonos é conhecido desde o início do século XVII, quando
o colonizador Pedro Gomes recebe uma doação de 30 léguas em quadra de terras da coroa
portuguesa, dando origem ao extenso Morgado de Porto da Folha. No entanto, “O Drama” se
concentra na história de conflitos violentos e litígios judiciais que os Xokó tiveram, ao longo do
século XX, com a última família que tomou posse irregular do território indígena, favorecida
pela Lei de Terras de 1850. Esta história conflituosa se configura como fato definitivo para a
mudança radical da vida dos índios Xokó. É no seu decorrer que a transformação mais pro-
funda ocorre, inclusive na indianidade, quando se opera uma espécie de “viagem da volta”. É
neste contexto que os jovens atores destacam, cronologicamente, os diversos momentos difíceis
22 Distantes da observação dos mais experientes, tanto para garantir-lhes a surpresa, quanto a autonomia e o
próprio protagonismo dos jovens em torno da construção do enredo.
23Ver Grünewald (2005).
Numa revisão da literatura mais recente sobre os índios Xokó, pode-se perceber que O
Drama ainda é bastante marginal, e jamais foi comentado enquanto um acontecimento que
detém a sua devida importância na formação étnica dos jovens, se confrontada com o trata-
mento dado a outros elementos das manifestações mais tradicionais e emblemáticas da política
de identidade local. Como são os casos do complexo ritual do Ouricuri e o Toré, considerados,
com razão, as principais “locomotivas” das identidades dos povos indígenas do Nordeste e da
continuidade histórica da cultura nativa. Acontece que, nesta metáfora que aqui lanço mão, os
“vagões” restantes trazem à tona, também, importantes e diversos elementos – que poderiam
ser percebidos apenas como “supérfluos da identidade” – para a compreensão ainda mais ampla
A apropriação de uma linguagem das artes através da concepção de uma peça de teatro que
sirva como suporte para contar a história do povo Xokó, sobretudo aos não índios que visitam a
Ilha com seus diversos interesses, certamente possui efeitos bem mais complexos do que aquele
proporcionado pelo objetivo pragmático mais imediato de Anísio: poupar as lideranças mais
idosas da tarefa intensa e cíclica de contar e recontar a história para os inúmeros pesquisado-
res interessados. Pode-se supor que esta apropriação é um desmembramento autônomo, entre
outros, da matriz relacional que constitui o modo de vida cotidiano dos índios Xokó, i.e., um
suporte performativo, como tantos outros, a exemplo do Toré, no qual eles põem em evidência
o desejo de um modelo relativamente estável de relação entre si e os não índios, cada parte com
as suas características, de modo que os diálogos e práticas (re)produzam ao máximo possível
um sentido compartilhado, uma mutualidade afetiva. O objetivo central desse desejo seria pro-
porcionar, por um lado, a coesão entre os parentes Xokó e, por outro, o respeito mútuo entre
eles e os visitantes não índios através da construção e manutenção de uma intersubjetividade
incessante. Este anseio constitui parte fundamental do que proporciona o estado de socialidade
dos primeiros.
Nas propostas analíticas centradas neste conceito, pode-se compreender que a abordagem
do conceito de socialidade surgiu a partir de um contexto de crítica à ideia hegemônica de socie-
dade até então pactuada nas ciências humanas, estabelecida mediante uma série de dicotomias,
tais como parte/todo, indivíduo/coletivo, biológico/cultural entre outros pares antinômicos, de
tal maneira que o foco na inter-relação imanente a estes pares permaneceu, até certo ponto,
prejudicado. Nesse sentido, aqueles que passam a recorrer ao conceito de socialidade como ins-
trumento de análise inserem-se numa vertente de pensamento que, basicamente, busca rejeitar
a ênfase hierárquica da investigação em uma das partes dos esquemas opositivos (binarismo),
para focar, então, nos fenômenos da relação como dimensão propriamente (des-)constitutiva
das pessoas e dos diversos (des-) vínculos entre elas [a sociedade]. Ou seja, busca-se foco pri-
vilegiado para os processos relacionais, os quais proporcionam sentido e, sobretudo, dinâmica à
vida e ao cotidiano – tanto em seus aspectos objetivos quanto subjetivos e intersubjetivos, e que
se conectam um ao outro de modo a compreendermos que a pessoa e o mundo social não são
dados a priori, mas mutuamente construídos e transformados de modo incessante, a partir dos
processos de vivência que ocorrem nas próprias contingências da vida diária.
No primeiro caso [para que], podemos pensar que suas motivações e protagonismo se vol-
tam à própria constituição local da política de identidade, de territorialização e de parentesco
indígena, ou seja, ao self associável a um grupo de afins e um lugar, tendo em vista o acúmulo
de histórias e memórias adquirido especialmente com os mais experientes, os quais cumprem,
por sua vez, um amplo papel pedagógico construído nos roteiros de vida social estabelecidos
desde a “rotinização da aldeia”, assim como no próprio cotidiano. No segundo caso [com quem],
podemos pensar, por um lado, que eles visam produzir relação positiva (socialidade) entre eles
mesmos enquanto parentes, a fim de garantir a permanente territorialização assim como a pró-
pria indianidade, dois elementos que não são vistos entre os Xokó como realidades acabadas.
E, por outro lado, visam constituir um tipo de “socialidade interétnica” com os vizinhos não
índios, cujas relações demonstram, claramente, serem inexoravelmente assimétricas25, a fim de
construírem, mutuamente, uma rede social que esteja o máximo possível de acordo com os seus
anseios. Ainda que regidos por diferentes gramáticas sociais, buscam um modo de relação que
seja capaz de romper com as persistentes rotas de colisão, ou ao menos diminuir os seus efeitos
mais deletérios.
Numa possível leitura perspectivista, se bem a compreendo, estas situações suscitam a ideia
de que a realidade não é um dado26, de modo que ela sempre tende a ser vista sob dois ou mais
pontos de vista, tal como é considerada pela teoria relativista. A realidade seria, então, o tipo de
relação que se acentua/prevalece – não necessariamente objetivo, ou sintético de uma relação
dialética – na dinâmica do encontro destes pontos de vista27. Por um lado, se os visitantes se
dispõem a viajar até a Ilha de São Pedro para assistir ao Drama, é no sentido claro de i) buscar
estabelecer um tipo de relação, de conhecer a história local onde ela mesma se expressa através
das pessoas; ii) dispor as suas referências práticas e teóricas anteriores à prova para saber em que
podem se transformar essas experiências. Por outro lado, se os Xokó elaboram uma laboriosa
peça de teatro visando estes outros é, também, no sentido de i) transmitir o conhecimento de si
e de seu povo para além de suas fronteiras porque isto seria, em alguma medida, necessário para
a plena efetivação do seu reconhecimento; ii) e este, para estar completo, depende, além do pró-
prio auto reconhecimento dos índios, da rede social mais ampla e da mútua perspectiva dos não
índios. Estas dimensões certamente não se esgotam, mas fiquemos apenas nesta amostragem.
25 Apesar do reconhecimento oficial, eles ainda afirmam sofrer, constantemente, com as dúvidas e preconceitos
em torno de sua indianidade.
26 Se tomarmos a realidade como objeto, podemos dizer que “a noção relativista do objeto como coisa em si não
tem nenhum lugar ‘nesse mundo marcado pela variação dos pontos de vista’” (Lima, 1996: 33 apud Pansica, 2008:
17).
27 Pansica (2008: 19).
Enfim, a produção de socialidade almejada pela linguagem teatral construída pelos jovens
Xokó parece refletir esta busca contínua por um modelo de relação que reflita um estado de
bem-estar e de bem-viver basicamente momentâneos e desejáveis, um estado da vida e não uma
versão acabada desta, sem possibilidades de novas transformações.
Referências bibliográficas
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The history is in the "drama": young Xoko Indians and the production of
sociality with the languages of art
This article explores some discourses and practices of young Xoko Indians, which point to strategies for
the production sociality of this group – a small indigenous community located in the state of Sergipe,
Brazil – in view of their process of territorialisation, as present in everyday life. Among their various
strategies, those that makes use of the languages of art attain special importance for the younger mem-
bers of the community, as it fosters a certain kind of an economy of native inter-subjective communica-
tion with non-Indians, and among themselves. The use of writing and theatrical language becomes
especially important when it comes to communicate efficiently and effectively to the many outsiders of
the community the meaning of their “ethnic” way of being and to demonstrate what, historically, made
them be what they are today in contemporary society.
Keywords: Xoko Indians; youth; history; sociality; art