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A possibilidade das culturas de matriz africana para o pensamento da

diversidade
Marília Rosa Barbosa
Mestranda em Mudança Social e Participação Política – EACH/USP
Disciplina: Relações de Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos
Professora doutora Elizabete Franco Cruz
Dezembro/2017
Resumo
Estes escritos partem de exposições recentes de Angela Davis e Judith
Butler para sugerir um caminho de pensamento a respeito das possibilidades
interseccionais no âmbito das transformações sociais, dentro e fora do campo
dos direitos humanos, na contemporaneidade, considerando-se elaborações
direcionadas à potencialidade da visão de mundo tecida por culturas de matriz
africana. Por suas pertinências aos objetivos destes escritos, coloca-se,
inicialmente, temas discutidos por essas filósofas em encontro entre ambas
promovido recentemente, junto de considerações de Davis feitas em recente
visita ao Brasil, os quais são comentados, a seguir, a partir de contribuições de
Michel Foucault e de José Carlos dos Anjos.

1. A noção de igualdade

Em junho de 2017, em evento promovido pela Oakland Book Festival,


Judith Butler e Angela Davis levantaram, na mesa de debate On Inequality,
temas que se pode ter como encruzilhadas no que tange processos de
transformação social, dentro e fora do campo dos direitos humanos. Por
“encruzilhadas”, indica-se, aqui, o entrecruzamento de temas que, segundo
essas filósofas, sugerem o cultivo de indagações que levem em conta o
(des)encontro entre problemas e demandas – situados, no contexto da
discussão, à América do Norte, embora, teoricamente, passíveis de extensão,
não sem critérios, a outros territórios – envolvendo as categorias gênero, raça e
classe social. Durante o diálogo, tocando em questões relativas a direito de
acesso a espaços coletivos e à mobilidade, Butler suscita pensar o que se tem
por igualdade, e como o corpo está inserido em dilemas em torno dessa
concepção. Assim, afirma que
Igualdade é uma questão de tratamento igual, oportunidades iguais e é
também sobre vidas que são consideradas iguais, em valor, a todas as
outras vidas. É também sobre ser capaz de exercitar a liberdade do
corpo. [...] Quem são as pessoas que podem se locomover nas ruas?
Que têm a liberdade de se deslocar em segurança nas ruas sem serem
mexidas, assediadas, que andam sem encontrar um impedimento?
Essas questões estão conectadas. (BUTLER 2017)

No mesmo sentido, Davis, em resposta a Butler, questiona a concepção


de igualdade a partir do que se percebe desigualdade:
A desigualdade, por um lado, pode ser muito abstrata. O que queremos
dizer com “desigualdade”? Quais são os parâmetros para a “igualdade”?
Me preocupa o fato de trabalharmos com o pressuposto de que a
igualdade já existe; e de que temos que ser “inclusos”; que alguns de nós
temos sido deixados de fora desse lugar da igualdade… Eu não acho que
eu consiga trabalhar com essa pressuposição, sabe, historicamente. [...]
Me preocupa o fato de que a forma como pensamos a democracia é
completamente racionalizada e nós nunca falamos sobre ódio, nunca
falamos sobre a revolução racial no que tange aos grandes avanços que
se sucederam em relação à igualdade, à justiça e à democracia. E se
falássemos, teríamos também de falar sobre racismo, sobre misoginia.
(DAVIS 2017)

Por esse caminho, o diálogo entre Butler e Davis leva a se pensar


igualdades e desigualdades a partir dos parâmetros que as estabelecem, dos
padrões a que se dobram os grupos e movimentos sociais em busca de
reconhecimento de seus direitos, isto é, de equanimidade entre os grupos social
e economicamente menos favorecidos e os mais favorecidos. Esse pensamento,
sugerem as filósofas, passa por perguntar-se quanto a “qual Estado” as lutas
reivindicam reconhecimento, assim como quanto aos reflexos do sistema
capitalista – dos processos capitalistas como um todo – implícitos e explícitos na
existência dessas desigualdades ou das possibilidades de igualdade. Como
exemplo, tem-se a reivindicação, pela comunidade gay, lésbica, do direito de
casamento: por um lado, é necessário que, se o direito é dado a heterossexuais,
seja dado a todos/as; por outro lado, é preciso que se compreenda “a implicação
do casamento nas relações de propriedade”, isto é, que não se esvazie
“completamente qualquer análise política ou econômica, uma análise do Estado”
(BUTLER 2017) no tocante a essas reivindicações.
Embora incerta quanto à designação do termo, Davis aponta, no decorrer
do diálogo, para a consideração da interseccionalidade entre causas e
movimentos sociais como um dos prováveis caminhos para se repensar
parâmetros e padrões vigentes que, em si, não dão passagem para a resolução
efetiva das desigualdades sociais. Ao concordar com Davis, Butler ressalta o
seguinte aspecto de suas colocações:
... uma das coisas que você está sugerindo é que nós ainda não sabemos
o que igualdade significa. Certo? Então você está pedindo que nós não
aceitemos ideias já estabelecidas de igualdade… Você está pedindo que
não simplesmente nos adaptemos ou nos conformemos [...]. Porque
igualdade não tem sido pensada com a radicalidade que precisa ser
pensada. O que significa que temos que imaginá-la. (BUTLER 2017)

Por fim, releva-se, dessa discussão, que, passando pelo destaque à


abolição da prisão como central “não apenas no que tange a como repensar um
novo sistema de punição, mas repensar e recriar a própria sociedade”, afirma
Davis: “eu acredito que a questão seja ‘por que nós continuamos pressupondo
que os antigos modos de organização, as antigas estruturas epistêmicas vão ser
aquelas que nos conduzirão a um novo mundo?’” (DAVIS 2017).
Outra fala de Angela Davis interessante a estes escritos está no discurso
que a militante proferiu em sua visita ao Brasil em julho de 2017, em conferência
na reitoria da Universidade Federal da Bahia. Na ocasião, Davis afirmou:
Me parece que, neste momento, o movimento das mulheres negras
brasileiras representa o futuro do planeta. As mulheres negras brasileiras
têm uma história extensa de envolvimento em lutas pela liberdade. Como
tem sido simbolizado, por exemplo, pela Irmandade da Boa Morte. O
conceito de Boa Morte nos convida a imaginar a imagem de um futuro
melhor. Isso me leva a reconhecer as amplas contribuições das mulheres
negras no Brasil e na Bahia no contexto da cultura religiosa. [...] Quero
também ressaltar que há alguns anos fui honrada com um convite para
conhecer o terreiro de Mãe Stella de Oxóssi e me encontrar com ela, que
me disse sobre seus esforços a fim de preservar a cultura e a
religiosidade dentro das tradições baianas e que as mulheres negras
estão no centro dessas tradições. [...] A liderança feminista negra é
fundamentalmente coletiva. [...] [Nós, dos Estados Unidos] Precisamos
aprender sobre o poder feminista negro preservado dentro da tradição do
Candomblé. (DAVIS 2017)

Pode-se evidenciar, em Davis, tanto com suas falas colocadas


anteriormente quanto com sua apreciação da visão de mundo candomblecista
que tece militantes negras no Brasil, uma preocupação quanto aos limites
impostos pelo modo de operar capitalista norte-americano, e a conjuntura
político-institucional em que estão inseridos esses processos capitalistas, em
relação à luta do movimento negro, o qual tem, estratégica e necessariamente,
caráter contra-hegemônico. Assim, com o exposto até aqui, intenciona-se o
destaque a uma pergunta: considerando-se os problemas raciais que envolvem,
ao considerar-se falas como a de Angela Davis e Judith Butler, tantos outros
problemas, inclusive os de gênero e sexualidade, no âmbito dos direitos
humanos, como é possível pensar a igualdade nos termos das diferenças?

2. Um poder político racializado

Para pensar a questão colocada acima, convém trazer a concepção de


bio-poder de Michel Foucault, um elemento à disposição para um vislumbre
quanto ao modo pelo qual se convencionou estabelecer diferenças sociais no
Ocidente. Em A Vontade de Saber (1999), escreve o autor sobre direito de morte
na época clássica, que se fundamentava no direito do soberano se defender ou
pedir que o defendessem. A partir do século XIX, pelos processos ocidentais do
conhecer, essa morte aparece como “um simples reverso do direito do corpo
social de garantir sua própria vida, mantê-la ou desenvolvê-la” (FOUCAULT
1999, p. 128). Entretanto, é também a partir desse momento que as guerras se
fizeram mais sangrentas e os regimes propensos a praticar holocaustos em suas
próprias populações. Tais guerras e matanças são travadas “em nome da
existência de todos; populações inteiras são levadas à destruição mútua em
nome da necessidade de viver” (p. 129). São guerras travadas pela existência
biológica de populações por um poder político assumindo, desde o século XVII,
a tarefa de gerir a vida. Esse poder é organizado em torno de dois polos: as
disciplinas do corpo e as regulações da população, investindo na vida de cima
para baixo. Assim:
...se o genocídio é, de fato, o sonho dos poderes modernos, não é por
uma volta, atualmente, ao velho direito de matar; mas é porque o poder
se situa e exerce ao nível da vida, da espécie, da raça e dos fenômenos
maciços de população. [...] São mortos legitimamente aqueles que
constituem uma espécie de perigo biológico para os outros. (FOUCAULT
1999, p. 129 e 130)

Trata-se, ocidentalmente, e a partir de disciplinas e instituições diversas,


de uma administração dos corpos e gestão calculista da vida como fruto de um
processo de entrada da vida na história no campo das técnicas políticas; do
biológico, pela primeira vez, quando do advento da modernidade, ou final ainda
da época clássica, ser refletido no político, de modo que o fato de viver deixa de
ser “esse sustentáculo inacessível que só emerge de tempos em tempos, no
acaso da morte e de sua fatalidade: cai, em parte, no campo de controle do saber
e de intervenção do poder” (FOUCAULT 1999, p. 134). É a era do “bio-poder” (e
também “bio-história” ou “bio-política”) que coloca o sexo, tanto partícipe das
disciplinas do corpo quanto pertencente às regulações das populações, como
disputa política.
Ressalta-se, dessa exposição de Foucault (1999), que o bio-poder é
indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que exigiu, além “da inserção
controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento
dos fenômenos de população aos processos econômicos”, também “o
crescimento tanto de seu reforço quanto de sua utilizabilidade e sua docilidade”;
exigiu “métodos de poder capazes de majorar as forças, as aptidões, a vida em
geral, sem por isto torná-las mais difíceis de sujeitar” (p. 132). É do exercício do
bio-poder, presente em todos os níveis do corpo social, operando como fatores
de segregação e de hierarquização social, a garantia de relações de dominação
e de efeitos de hegemonia. Vivemos, dessa forma, na sociedade de sexualidade:
Os mecanismos de poder se dirigem ao corpo, à vida, ao que a faz
proliferar, ao que reforça a espécie, seu vigor, sua capacidade de
dominar, ou sua aptidão para ser utilizada. Saúde, progenitura, raça,
futuro da espécie, vitalidade do corpo social, o poder fala da sexualidade
e para a sexualidade; quanto a esta, não é marca ou símbolo, é objeto e
alvo. (FOUCAULT 1999, p. 138)

Se, hoje, vive-se, ocidentalmente, em uma sociedade de sexualidade,


vivia-se, em certo período antecedente ao princípio do século XIX, a sociedade
do sangue, a sociedade da “honra da guerra e medo das fomes, triunfos da
morte, soberano com gládio, verdugos e suplícios” (FOUCAULT 1999, p. 138),
em que o poder falava através do sangue. Entretanto, a analítica da sexualidade
e a simbólica do sangue, como assim os chama Foucault (1999), justapõem-se,
interagem e ecoam. É nesse processo que, segundo o autor, forma-se o racismo
– “o racismo em sua forma moderna, estatal, biologizante” (p. 140):
Toda uma política do povoamento, da família, do casamento, da
educação, da hierarquização social, da propriedade, e uma longa série
de intervenções permanentes ao nível do corpo, das condutas, da saúde,
da vida quotidiana, receberam então cor e justificação em função da
preocupação mítica de proteger a pureza do sangue e fazer triunfar a
raça. (FOUCAULT, 1999, p. 140)

A noção do surgimento do racismo em Foucault (1999) reforça o fato de


que o sistema econômico – e nele, o capitalismo –, retém em si, historicamente,
uma operação de organização em sociedade a partir de uma hierarquização
racializada. Sob esse aspecto, pensadores/as vêm considerando os caminhos
pós-estruturalistas, inaugurados por Foucault, para repensar, por exemplo, a
noção de raça (e como esta se aplica) a que devem servir a legislação, as
políticas públicas, a militância dos direitos humanos, de modo que estes sejam
influenciados e repensados em suas estruturações. Mostra-se, assim, produtiva
a consideração de outras formas de sociabilidade, como a que se encontra no
Candomblé – esta vertente cultural mesma que chama a atenção de Angela
Davis quanto às direções do movimento feminista negro.

3. Uma cosmopolítica “diferente”

A hipótese de que “a religiosidade afro-brasileira vem expondo outra


possibilidade de articulação das diferenças étnico-raciais e [de que] essa
emergência se constitui como uma outra cosmopolítica divergente das que até
aqui informam o sentido de nação” – ou de raça (ANJOS 2008, p. 79) é de João
Carlos dos Anjos (2008). Veja-se sua afirmação:
Pedras como perspectivas. Animais e vegetais sacralizados. Santidades
que se alternam. Raças que percorrem outras raças. Esse é o mundo dos
terreiros. No sentido de Viveiros de Castro (2002) poderíamos falar aqui
de um multinaturalismo em que os corpos não têm raças, raças são
perspectivas que circulam por uma multiplicidade de corpos. Raça ou
nação é, na filosofia política afro-brasileira, concebida como o lugar de
onde emanam as perspectivas, ou melhor, espíritos. Espíritos são pontos
de vista que encarnam corpos. A sacralização de determinadas
dimensões da natureza está correlacionada a um processo de circulação
de perspectivas por corpos. Da nação Jeje emanam divindades, batidas,
pontos de vista diferentes da nação Cambinda, mas ambos podem ser
conjugados num mesmo terreiro em momentos diferentes. (ANJOS 2008,
p. 78)

Embora coubessem, aqui, observações quanto ao uso de termos


ocidentais como “espíritos” e suas associações a noções não ocidentais – que
se diferem, portanto, do que se tem, ocidentalmente, por “espíritos” –,
interessante é a noção que o autor encontra, nos terreiros, de raça ou nação. O
questionamento que faz Anjos (2008) perpassa questões acerca de processos
de racialização e desracialização no contexto da construção e reconstrução da
identidade nacional no Brasil, onde o Candomblé, que reúne saberes e práticas
de culturas da matriz africana, tem presença significativa.
O autor sugere a existência de uma filosofia política na religiosidade afro-
brasileira capaz de propor outro equacionamento para o senso de equidade
racial – uma outra cosmopolítica – ou outro equacionamento “da problemática
da (des)racialização da sociedade brasileira e as exigências já demasiadamente
adiadas de justiça racial” (p. 81). Seu texto encontra a fala de Muniz Sodré (2011)
quando este afirma que, socialmente, há um abismo entre o reconhecimento
filosófico do outro, abstrato, e a prática ético-política de aceitar a diversidade
num espaço de convivência. Para Sodré, “é fácil dizer que se aceita a diferença.
O problema é o afeto, a aproximação espacial, afetiva”: a conceituação ocidental
não dá conta da diferenciação (SODRÉ 2011).
Ao relevar conhecimentos de povos originários da África e suas dinâmicas
em território brasileiro para se repensar, filosoficamente, a política no Ocidente,
Anjos (2008) propugna a permissão da emergência da dimensão epistêmica da
concepção nativa na relação existente entre o/a “nativo/a” e o/a antropólogo/a,
para que se promova, dessa forma, o deslocamento “da vantagem estratégica
do antropólogo sobre o discurso do nativo de modo a fazer com que este último
funcione dentro do texto antropológico” (p. 79).
As estratégias para fazer ressoar a filosofia política das práticas religiosas
afro-brasileiras passam pela exploração do contraste com a filosofia
imanente às práticas políticas usuais que manifestam a hegemonia de
uma modernidade política ocidental. (ANJOS 2008, p. 79)

Nesse sentido, o autor busca aproximar o modo de lidar com as diferenças


dentro do terreiro à elaboração deleuziana de um pensamento das diferenças,
assumindo, por meio disso, a possibilidade de políticas públicas que promovam
experiências de raças sem racializar. Em seu percurso, o pensamento de Anjos
(2008) admite que, nos terreiros, há corpos sem raças equacionando as
multiplicidades. Isso porque a religiosidade afro-brasileira, na contramão da
imagem que se tem do sincretismo, que pressupõe uma nova unidade resultante
da mistura de valores de origens diversas – isto é, caracterizado por um
“pensamento arborescente” –, tem um outro modelo para o encontro das
diferenças, que é o rizomático: a encruzilhada como ponto de encontro de
diferentes caminhos que não se fundem numa unidade, mas seguem como
pluralidades” (p. 80). Logo, a encruzilhada designando o encontro de diferentes
caminhos como direções moventes.
[...] Em oposição a uma estrutura que se define pelo conjunto de seus
pontos e de posições, de relações binárias entre esses pontos e de
relações biunívocas entre essas posições, o rizoma não é feito senão de
linhas: linhas de segmentarização, de estratificação, como de dimensões,
mas também de linhas de fuga ou de desterritorialização como dimensão
máxima após a qual, seguindo-a, a multiplicidade se metamorfoseia
mudando de natureza. (DELEUZE apud ANJOS 2008, p. 81)

Trata-se, portanto, de um jogo com a alteridade, um jogo desobediente


“ao princípio de a identidade e da não-contradição” (BASTIDE apud ANJOS
2008, p. 81). Segundo Anjos (2008), a religiosidade afro-brasileira tem por
característica conectar o diferente ao diferente, “deixando as diferenças
subsistirem enquanto tais. Um caboclo permanece diferenciado de um orixá
mesmo se cultuados no mesmo terreiro e sob o mesmo nome próprio” (p. 82).
Outra característica da lógica das diferenças observada, pelo autor, nessa
religiosidade, é que
as diversas nações (Jeje, Ketu, Angola…) não são essências identitárias
pertencentes a indivíduos, mas territórios simbólicos de intensidades
diversas, passíveis de serem percorridos por multiplicidade de raças e
indivíduos. Se retomássemos Deleuze e Guattari a propósito das
possibilidades de se viajar por raças, nações e divindades, o conceito de
intensidades se veria na extensão do conceito afro-brasileiro de
encruzilhada. (ANJOS 2008, p. 82)

Assim, é possível conceber que os jogos das diferenças na religiosidade


afro-brasileira “é uma modalidade de não essencialização das raças, que nem
por isso deixa de se fazer como espaço de racialização” (ANJOS 2008, p. 83).
Considerar a vivência da racialidade como intensidade histórica é o modo pelo
qual é possível resgatar duas dimensões políticas a partir dessa filosofia: “1) é
possível políticas compensatórias de corte racial sem essencialismos; 2) o
patrimônio étnico é o lugar de viagens múltiplas de seres nômades” (idem).
Segundo ao autor,
As políticas públicas poderiam conjunturalmente definir focos racializados
como lugar de incidência de uma dimensão injustiçada de uma história
comum, ao mesmo tempo que o patrimônio étnico se afirmaria como
percurso racializante não restrito ou associado a certo tipo de fenótipo,
mas aberto à multiplicidade como bem se vê nas práticas do terreiro.
(ANJOS 2008, p. 83)

Existe, portanto, na acepção de autores como Anjos, elementos na


religiosidade afro-brasileira que permitem pensar, mais profundamente, a
equidade, nos diversos âmbitos dos direitos humanos, assim como a diversidade
no que diz respeito às relações humanas, seja do ponto de vista da sexualidade,
do gênero e/ou das questões raciais.

4. Conclusão – e uma outra noção de pessoa

Os limites do pensamento ocidental para o lide com questões caras à


atualidade, no que diz respeito a mudanças sociais, dentre elas as questões de
gênero e sexualidade, já são bastante apontados por pensadores/as da corrente
que se convencionou chamar de pós-estruturalista. Segue sob intensa pesquisa,
entretanto, as formas possíveis de se lidar com as diferentes demandas por
transformação social em âmbito mundial, o que, como bem apontam Butler e
Davis (2017), passa por repensar o que se tem por igualdade, por democracia;
convém pensar, enfim, as transformações sociais epistemologicamente.
Interessante, nesse sentido, e o que aqui se buscou apontar, vem se
mostrando notar o modo pelo qual o modelo político da representatividade,
presente nas raízes do pensamento ocidental, e também em todo o caminho pelo
qual se deu a estrutura político-institucional hegemônica no Ocidente, como
informa Foucault (1999), tem seus limites no que diz respeito à necessária
proximidade entre pessoas e povos de diferentes identidades, fenótipos, gênero
e religiões, para que se possa, a partir dessa aproximação, vislumbrar-se
sociedades mais equânimes.
Vertentes culturais como o Candomblé, reunindo saberes não ocidentais,
possuem, no sentido apontado acima, potência epistemológica, como quer dizer
Anjos (2008). A partir deste, complementa-se que, ao buscar-se uma noção de
pessoa a partir dessa vertente, percebe-se, nela, a possibilidade do exercício de
um poder que não está “do lado de fora” dos sujeitos, representando-os, mas,
sim, “dentro”: constituindo-os. Para exemplificar:
O filho de santo, ao se iniciar na religiosidade afro-brasileira, vincula-se a
toda uma série de objetos ritualísticos [...]. O processo de iniciação é
concebido como um renascimento em que a pessoa e o seu orixá de
cabeça irão crescer e adquirir maturidade religiosa juntos. Os contornos
desse processo de crescimento marcam a pessoa em constituição e o
orixá que vai amadurecendo na pedra [acutá, pedra sagrada de onde
emana a força vital, o axé] e na cabeça do iniciado num mesmo processo.
Assim o orixá é inserido, conjuntamente com o filho, num mesmo
processo de iniciação. [...] na proximidade constitutiva de cada iniciado,
em cada casa, cada orixá é uma entidade singular e não individual.
(ANJOS 2008, p. 84)
Nas dinâmicas dentro dos terreiros, estão evidentes a imanência desse
poder, a não transcendência, a experiência do “aqui e agora”, observáveis na
vivência da totalidade do ser das divindades nas incorporações, assim como no
cotidiano; da vivência de um sagrado presente a todo tempo. Não há, portanto,
na relação entre os indivíduos e o que se tem, nessa religiosidade, por poder,
distância entre o representante e o/a representado/a. Diferentemente da cultura
cristã, em cuja prática a hóstia, por exemplo, representa uma presença
transcendente de Cristo, nas culturas de matriz africana não é atribuído um
objeto, ou mesmo um rosto, à presença do sagrado, isto é, representando o
sagrado. Essa proximidade entre um indivíduo e um poder (que o constitui)
também o aproxima de sua coletividade, pois se trata, aqui, de um poder comum,
embora singular – em cada pessoa.
Investidos do impulso do pensamento pós-estruturalista, autores como
Sodré e Anjos percebem essas características na religiosidade afro-brasileira, as
quais, combinadas às elaborações de feministas como Davis e Butler, ganham
uma potência de transformação necessária aos rumos da transformação social
nos termos que essas filósofas e militantes colocam: transformações que
considerem pensar a equidade em meio à diversidade, isto é, considerando-se,
para que se efetivem essas transformações rumo a um pensamento
hegemonicamente mais comunitário, as singularidades dos grupos social e
economicamente marginalizados.

Referências

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Tradução


de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guibon Albuquerque. 13a ed.
Rio de Janeiro: Graal, 1999.
ANJOS, José Carlos dos. A Filosofia Política da Religiosidade Afro-
brasileira como Patrimônio Cultural Africano. Debates do NER, Porto
Alegre, Ano 9, N. 13, p. 77-96, Jan./Jun. 2008
A ignorância da diversidade – Muniz Sodré. Produção: Produção: CPFL
Cultura. 2011. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=WfmEABJVeu4. Acesso em dezembro de
2017.

BERTUCCI, Pri. Uma conversa com Angela Davis e Judith Butler. 2017.
Disponível em: http://www.ssexbbox.com/2017/07/uma-conversa-com-angela-davis-
e-judith-butler/ Aesso em dezembro de 2017.
Luka. Mulheres negras representam o futuro – íntegra da conferência de
Angela Davis na Bahia. 2017. Disponível em:
http://operamundi.uol.com.br/blog/samuel/bide/angela-davis-conferencia-bahia/
Acesso em dezembro de 2017.

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