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https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/02/biografia-aponta-fraudes-de-freud-e-
poe-psicanalise-em-xeque.shtml
Stefano Pupe
Resumo
Autor afirma que uma nova biografia de Freud, escrita por Frederick Crews e ainda
inédita no Brasil, põe em xeque a própria psicanálise ao criticar duramente a
imagem mitológica de seu fundador. O livro, calcado em evidências documentais,
baseia-se também em cartas do austríaco que foram divulgadas há pouco tempo.
Leia também o contraponto de M. M. Owen.
Mas Frederick Crews tem um ponto de vista diferente e lançou no ano passado
"Freud: The Making of an Illusion" (Freud: a construção de uma ilusão), ainda sem
lançamento previsto no Brasil.
Fronteiras do Pensamento: E como sua crítica atual ao pensamento de Freud se encaixa no projeto
hedonista que caracteriza sua filosofia?
Michel Onfray: Bem, escrevi uma espécie de continuação (Apostille au crépuscule: pour une psychanalyse
non freudienne, 2010), que talvez incorpore como um apêndice, um posfácio, enfim, em que defendo que é
possível construir uma psicanálise pós-freudiana, uma psicanálise existencial. É possível partir de Sartre e de
sua filosofia existencial, como também é possível partir da etiologia e da neurologia, e com isso construir
um outro tipo de psicanálise que possa ser efetiva e curar, e não manter a patologia, como faz a psicanálise
freudiana. A psicanálise freudiana mantém o indivíduo em sua lenda.
Ao propor uma outra psicanálise, que incorpore o inconsciente pessoal à História — coisa que Freud jamais
fez —, creio que é possível aproximar essa psicanálise existencial não freudiana do hedonismo. Para Freud,
a História não existe, como também não existem as classes e outras tantas condições sociais contingentes —,
elas sequer são um problema. Se você está desempregado, vive em condições miseráveis e com uma família
para sustentar, é um pouco óbvio que você tenha problemas sexuais — mas não para Freud. Freud explicaria
isso à luz do complexo de Édipo etc. É por isso que alguém como Reich vai destacar o papel da História,
chamando atenção para a necessidade de incorporar isso à análise.
Fronteiras do Pensamento: Você insiste, e fez questão de frisar isso em sua conferência no Fronteiras
do Pensamento, que Freud não é um homem de razão, mas um homem de fé. Em que consiste essa fé
freudiana?
Michel Onfray: Freud toma seus desejos por realidade. Postula que o inconsciente existe; postula que no
inconsciente há a horda primitiva, que há o complexo de Édipo, que há a violação da primeira mulher; e
simplesmente nos diz: "é assim". Não "é assim para mim", mas "para todos". É a nossa realidade. Mas não é
assim que um filósofo, um pensador, enfim, procede. A simples universalização de sua própria máxima a
partir de uma intuição pessoal e subjetiva não é suficiente para fazer um filósofo. Isso é fé.
Se você pegar uma biografia de Maomé vai ver que é assim que as coisas se passam: o arcanjo Gabriel lhe
aparece e lhe diz que era preciso escrever o Alcorão e pronto, ali está a verdade. E não se discute a verdade,
pois foi ditada pelo arcanjo Gabriel que, por sua vez, era enviado de Deus. Freud passa um pouco essa
impressão, parece ser alguém que escreve ditado por uma espécie de bom espírito que lhe faz ver a verdade
universal. Assim, ele nos anuncia que no inconsciente existe o complexo de Édipo, que é uma verdade,
filogeneticamente transmissível, e pouco importam as provas, simplesmente é preciso acreditar.
Em um texto seu sobre a técnica psicanalítica, ele chega mesmo a dizer em certo momento que a psicanálise
somente produz seus efeitos se nela acreditarmos. É preciso ter fé. Basta lembrar o que diz Moisés: o mágico
produz seus efeitos a partir do momento em que acreditamos na mágica. Portanto, o que temos é de fato um
pensamento mágico que produz efeitos, mas de modo algum por ser uma ciência, mas sim porque há uma
espécie de adesão, de fé — e um filósofo não pode nos exigir isso.
Em suma, não se pode afirmar — e menos ainda como Freud o faz, valendo-se de exemplo — que a
renúncia da vida sexual vai gerar, de fato, a sublimação. É falso que, se a libido não está direcionada à vida
sexual, ela se encontra na vida intelectual. É simplesmente falso. E assim para muitos outros aspectos da
teoria, que se desconstrói a partir de uma biografia que demonstra que Freud mente, que falsifica, que
inventa, que diz que certas coisas se passaram quando isso não foi o caso.
Em sua correspondência, ele afirma que trabalhou em "x" casos clínicos, casos de neuroses obsessivas, se
não me engano, 23 casos; contudo, ele tinha, à época, seis pacientes. Seis não é o mesmo que 23, e nada
consta que fossem todos os seis casos de neurose obsessiva. Quer dizer, ele inventa casos. Com seu talento
literário, ele associa coisas ouvidas aqui e ali e transforma-as na história de um indivíduo que, quando vê
aquilo, certamente não se reconhece no que vê.
Tome-se o caso do Pequeno Hans, a história do cavalo, da fobia de ser mordido, do bigode do pai, da fobia
da castração etc. A certa altura, o Pequeno Hans afirma que não era nada daquilo, que apenas vira, quando
ainda menino, um cavalo cair perto dele na rua e que isso obviamente provocara uma impressão muito forte,
como seria o caso com qualquer menino. Não há por que imaginar que, quando se tem medo da mordida de
um cavalo, trata-se de medo do bigode do pai ou que, quando se tem fobia de cavalo, trata-se da fobia da
castração, porque a figura do pai está obrigatoriamente sempre em uma lógica da castração.
Quando Freud fala que tratou do menino, anos mais tarde o Pequeno Hans negará, dizendo que não fora
tratado coisa nenhuma, que apenas tivera, na infância, essa fobia de cavalos porque lhe ocorrera certo
episódio na rua, e que essa fobia desapareceu com o tempo. É por isso que acredito que a biografia permite-
nos desconstruir a teoria.