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DOENÇA/TRANSTORNO MENTAL, BIOLOGIA E CULTURA1

ANTHONY F. C. WALLACE2
Universidade da Pensilvânia

Tradução: Cristopher Feliphe Ramos

Culturas diferentes encorajam estilos diferenciados de doença mental? Há sociedades


em que a doença mental está ausente, ou em que ao menos seja rara em relação a nossa
própria sociedade? Será que ora o estilo (padrão), ou a frequência das doenças mentais, ou
ambos, se transformaram/modificaram ao longo da história Ocidental? Estas e perguntas
similares, incitadas por preocupações práticas com a saúde mental de nossas populações
mundiais contemporâneas, evocaram respostas por parte dos antropólogos. Sim, diferentes
culturas efetivamente encorajam estilos diferentes de doença mental, mas as principais
categorias de doença mental (as psicoses orgânicas, as psicoses funcionais, as neuroses, as
reações situacionais, etc.) parecem ser aflições humanas universais. Não, Não há sociedades a
quem se possa confiantemente dizer sobre a inexistência de doenças mentais/transtornos
mentais, ou certamente, de que estes são raros, mas certamente há diferenças nas frequências
das doenças e na prontidão dos diferentes sistemas sociais em reconhecer aquilo que a
psiquiatria Ocidental denominaria de doença no sentido de desordem/incapacidade
significativa. Sim, os estilos e frequências de diversas doenças mentais se transformaram no
decorrer dos anos mais recentes da história (histeria, por exemplo, agora é um diagnóstico
relativamente raro, e demônios e espíritos/diabretes foram substituídos pelo rádio e pelo radar
nos delírios paranoides), mas nós não sabemos todos os motivos para tais transformações ao
longo do tempo, nem pela diferença entre classes sociais e entre regiões.
Por conseguinte, a relação entre cultura e saúde mental permanece sendo um problema
intrigante para os antropólogos, um campo promissor para pesquisa, e talvez algum dia um
campo ricamente compensador para atuação. No momento atual, assim como outros cientistas
interessados nas doenças mentais, os antropólogos ainda estão procurando conceitos mais
adequados, teorias mais poderosas, e técnicas de observação mais eficazes. Uma das vias de
pesquisa que está sob/mediante rápida construção a algum tempo fora da antropologia é
conceitual e metodicamente (seus métodos) biológica (pertencentes à biologia); uma vez que
esta abordagem é relativamente pouco explorada pelos antropólogos, ela permanece sendo
potencialmente de grande significância para a teoria antropológica, portanto, uma parte
considerável deste capítulo será dedicada à consideração das maneiras que o trabalho
antropológico-cultural contemporâneo nesta área pode assimilar e explorar o que, no contexto
da antropologia, é considerado um posicionamento da antropologia física.

CERTAS LIMITAÇÕES DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS CONVENCIONAIS SOBRE AS


DOENÇAS MEN TAIS

A tradição da Escola de Cultura e Personalidade na Antropologia extraiu seus modelos


de desenvolvimento da personalidade, sua caracterologia, e suas concepções de doença mental
quase exclusivamente através da combinação da teoria da aprendizagem, teoria da gestalt e
teoria psicanalítica. Isto, em partes, é um acidente histórico: estas abordagens funcionais se
desenvolveram mais vigorosamente na psicologia e psiquiatria americanas da época, ao final
da década de 20, início da década de 1930, quando pela primeira vez ao antropólogos

1
2
culturais direcionavam seriamente sua atenção ao indivíduo. Os antropólogos rapidamente
consideraram estas psicologias aplicáveis a uma compreensão do indivíduo na cultura; e os
psicólogos e psicanalistas encontravam nos materiais culturais comparados (transculturais)
evidências corroborativas úteis para suas teorias. Mas a abordagem biológica mais
recentemente desenvolvida, embora ela ainda não tenha (mais, ou melhor, do que a
abordagem funcional) concedido/arranjado/providenciado um espectro de "curas" de tais
agrupamentos de doenças refratárias tais como a esquizofrenia e arteriosclerose cerebral, já
nos apresentou um corpo de conhecimentos considerável dos processos (neste caso, dos
mecanismos orgânicos) que estão implicados em ou, ou outro tipo de psicopatologia. Este
conhecimento deveria ser incorporado sem demoras, num esboço geral, no armamento
conceitual de todo antropólogo preocupado não somente com as doenças mentais, mas
também com o desenvolvimento normal da personalidade e seu funcionamento.
No atual momento as abordagens antropológicas dos temas relacionados à doença
mental, particularmente realizada pelos estudiosos da Escola de Cultura e Personalidade,
geralmente dependem de um simples paradigma: a sintomatologia da doença sob escrutínio é
considerada como sendo motivada por comportamentos que expressam conflitos psicológicos
e que em algum grau são efetivos na redução das tensões e ansiedades; os sintomas são
"interpretados" nos termos de algum esquema dedutivo que pretende expor o conflito (ao qual
frequentemente se presume ser inconsciente); Alguns Cultural Anlagen são observados no
comportamento sintomático; e finalmente, a fonte do conflito é procurada nos dilemas
cognitivos e/ou emocionais traumáticos impostos pela cultura da vítima; ou, ao invés disso,
ela atribui à psique da vítima uma habilidade virtualmente mágica de controlar o estado de seu
corpo, pressupondo acriticamente que quase toda expressão somática pode ser
satisfatoriamente explicada meramente pela asserção de um conflito intrapsíquico plausível e
concomitante. Até mesmo o posicionamento "psicossomático", que seja enfatizado, não é
"orgânico" no sentido acima apontado, pois ele procura a explicação dos transtornos
somáticos e comportamentais em condições antecedentes culturais e psicológicas, ao invés de
condições fisiológicas anteriores: por conseguinte, a úlcera é explicada atribuindo-se-lhe à
uma descarga autonômica ocorrida mediante conflito psíquico, e a existência do conflito
intrapsíquico é explicada fazendo-se referência a experiências de aprendizado culturalmente
partilhadas/produzidas (engrenadas, conjuntas), ao invés dos processos neurofisiológicos.
Por conseguinte, mesmo no que diz respeito às síndromes conhecidas aos médicos
clínicos Ocidentais e convencionalmente (ou então invariavelmente) concebidas como sendo
funcionais em sua etiologia, o pressuposto/a afirmação de que os determinantes biológicos são
negligenciáveis está se tornando cada vez mais perigoso/a de ser feito. Mas o antropólogo é
peculiarmente vulnerável à crítica quando ele emprega o paradigma funcional sem
qualificação para explicar formas exóticas de doenças mentais, tais como o pibloktoq dos
Esquimós Polares e a psicose windigo dos caçadores Algonquinos (Algonkian) do norte. Aqui,
além das dificuldades engendradas pela ambiguidade fundamental da teoria psiquiátrica
contemporânea a respeito dos papéis causais dos fatores psicológicos e orgânicos em
síndromes clinicamente similares, há (ou deveriam haver) graves incertezas introduzidas pelo
reconhecimento das condições climáticas, epidemiológicas (no que tange às doenças
infecciosas) e nutricionais extremas as quais povos tecnologicamente primitivos são por vezes
expostos (ver, por exemplo, a discussão de Tooth que até mesmo psiquiatras enfrentam, ao
empregarem critérios puramente comportamentais, em produzir um diagnóstico diferencial
entre esquizofrenia e determinados tipos de tripanossomíase na África Ocidental) (Tooth,
1950).
Todavia, este artigo não tem o propósito de aconselhar os antropólogos a abandonar
um dogma obsoleto a fim de que abracemos uma nova verdade científica. Ao invés disso, a
necessidade de incorporação de uma nova perspectiva numa tradição já existente será
observada. Que esta incorporação implicará em mudanças em algumas crenças e
procedimentos, já é esperado; mas o novo posicionamento teórico deve resultar numa forte
síntese, ao invés de um fraco substituto.

A ABORDAGEM ORGÂNICA NA PSIQUIATRIA

O ano de 1927 pode ser considerado como o início da codificação do posicionamento


da Escola de Cultura e Personalidade na antropologia, pois naquele ano o artigo pioneiro de
Sapir denominado "A padronização inconsciente do comportamento na sociedade" publicado
num simpósio sobre O inconsciente (Mandelbaum, 1949). O ensaio de Sapir, provavelmente o
primeiro tratado teórico central da tradição da Escola de Cultura e Personalidade estabeleceu,
ou ao menos prefigurou, a estrutura de referência dos trabalhos antropológicos posteriores
nesta área. Esta estrutura de referência era predominantemente psicológica, ao invés de
biológica; ela pressupunha que as organizações fundamentais e frequentemente inconscientes
do comportamento individual convencionalmente denominadas de "personalidade" são
moldadas, não pela constituição física, mas por uma combinação de ambiente cultural e
experiência individual. O caráter correspondentemente funcional da perspectiva convencional
da Escola de Cultura e Personalidade em relação aos transtornos mentais, tal como
desenvolveu-se nos anos posteriores através dos trabalhos de Sapir, Benedict, Mead e outros,
pode ser prontamente explicado pela ausência de qualquer corpo/sistema de pensamento
oposto/opositor; pois a abordagem biológica na psiquiatria ainda não tinha sequer iniciado até
posteriormente 1927.
O sistema/corpo teórico psiquiátrico mais impressionante em 1927 era psicanalítico.
Esta teoria, embora tenha dado algum reconhecimento ao pensamento biológico, e embora
seus fundadores estivessem bem fundamentados na neurologia, era na sua forma de
atuação/operação intransigentemente psicológica. Correspondentemente, as histórias de casos
clínicos publicadas proviam muito pouca informação concernente ao estatuto fisiológico dos
pacientes. O analista por vezes empregava metáforas físicas (como "a economia da energia
psíquica"), invocada predisposições constitutivas, e formulava pressuposições acerca de
instintos organicamente fundamentados, zonas corporais erógenas, e etapas da maturação
sexual. O próprio Freud, um neurologista bem conceituado (distinto), asseverou que por
detrás do analista havia o homem com uma seringa (doutor/médico). Mas a fisiologia
psicanalítica, na medida em que saiu do controle de Freud, tornou-se crescentemente/cada vez
mais uma pseudofisiologia. O ser humano biológico era, para todos os propósitos, uma
constante na equação psicanalítica, e os eventos "psicológicos" (Aprendizados, comunicações,
fantasias, motivos, mecanismos de defesa, etc.) eram as variáveis.
A maioria dos métodos atuais e predominantemente "orgânicos" de tratamento, foram
desenvolvidos após o alcance da maturidade teórica da psicanálise. Em 1927 a psiquiatria
tinha pouco mais a oferecer em tratamentos do que os métodos psicológicos (incluindo-se
psicanalíticos) acerca de "como agir bem/fazer bem" (well to do - bem [como] a ser
feito/fazer) e cuidados através de custódia (oferecidos conjuntamente à sedativos,
hidroterapia, e terapia laboral [do trabalho]) para os pobres. O tratamento de coma nos casos
de esquizofrenia através da aplicação de insulina foi introduzido aproximadamente na década
de 1930 e a terapia convulsiva com metrazol em 1936; o eletrochoque não se desenvolveu até
1938 (e todos estes tratamentos foram primeiramente publicamente descritos na Europa). A
psicocirurgia desenvolveu-se seriamente em Portugal aproximadamente em 1935 e neste país
em 1936. A psicofarmacologia, até então uma especialidade de algum modo exótica, começou
a florescer apenas durante a Segunda Guerra Mundial. O uso de drogas para ab-reação de
conflitos emocionais em neuroses de guerra se tornou proeminente durante os primeiros anos
da Guerra; e a intensa investigação/estudo das drogas psicotomiméticas (principalmente os
alucinógenos) e seu uso experimental para propósitos terapêuticos se desenvolveu
principalmente desde a Segunda Guerra Mundial. As novas drogas tranqüilizantes (ou
"ataracticas") foram primeiramente oferecidas à profissão médica em 1952, e os energéticos
(ou "psicoestimulantes") vieram ainda depois.
Contribuições cientificas básicas, para além da teoria psicoanalítica, também foram
igualmente pouco inspiradoras em 1927. Inspiradas pela descoberta do papel da sífilis nas
psicoses paréticas, especulações embrionárias/iniciais sobre o papel da infecção focal na
etiologia de outras psicoses não estava sendo capaz de encontrar confirmação empírica. O
primeiro relato de Berger sobre o uso do eletroencefalograma (EEG) para o registro das
"ondas cerebrais" (potenciais elétricos originados no córtex cerebral e igualmente em outras
partes do cérebro) não foi publicado na Alemanha até 1929; e somente depois de 1935 que os
cientistas americanos publicaram descobertas confirmatórias. A química clínica desenvolveu
somente nos últimos quinze anos precedentes as técnicas básicas para a análise de pequenas
amostras de sangue; antes da Primeira Guerra Mundial, as investigações sobre os processos
metabólicos humanos tiveram de depender em ampla medida de pesquisas sobre a dieta e a
urina, por que as quantias de sangue requeridas para análise química eram tão grandes, de
modo que se proibia seu uso enquanto procedimentos clínicos rotineiros. A aplicação destas
novas técnicas de análise do sangue à problemas da pesquisa psiquiátrica, e as descobertas
bioquímicas fundamentadas em seu uso, surgiram quase em toda sua plenitude, após 1927.
Por conseguinte, a exemplo, a endocrinologia ainda se encontrava em sua infância em 1927.
A importância dos hormônios do córtex adrenal, que desempenham um papel na regulação do
metabolismo dos carboidratos e no equilíbrio dos eletrólitos minerais nos fluidos corporais, e
que caso utilizados em excesso podem precipitar estados psicóticos, não foi descoberto até o
final da década de 1920. A difusão das pesquisas nesta área para outros ramos de
conhecimento foi tão lenta que até 1944, num simpósio de dois volumes amplamente lido e
intitulado Personalidade e Transtornos do Comportamento (Personality and Behavior
Disorders) (Hunt, 1944), o córtex adrenal recebe/ganha um parágrafo [dedicado a comentá-lo]
(e nenhuma menção no índice). Por conseguinte, a primeira publicação de Selye acerca do
célebre conceito da síndrome do estresse/esgotamento, ou da adaptação geral (o trecho está
confuso) foi primeiramente publicado na Nature em 1936 (vide Selye, 1956); e as "psicoses
relacionadas à cortisona" nem sequer existiam até que a cortisona fosse isolada, sintetizada, e
finalmente utilizada no tratamento da artrite aproximadamente em 1945. Os relatos iniciais de
Franz Kallman sobre seus estudos/pesquisas genéticos/as sobre a esquizofrenia utilizando-se
de pares de gêmeos idênticos foi publicado em 1938 (Kallman, 1938). As teorias mais
modernas referentes à transmissão dos impulsos nervosos (dos nervos) surgiram durante e
depois da Segunda Guerra Mundial, algumas delas estimuladas por investigações sobre a ação
dos assim chamados "gases dos nervos" (nerve gas) pelo Centro/Departamento Químico do
Exército.
Mas não há motivo para continuarmos a demonstração. O ponto central está claro:
uma grande parcela do conhecimento moderno sobre os parâmetros fisiológicos do
comportamento do sistema nervoso central no ser humano foi acumulado desde que a
estrutura conceitual original da perspectiva da Escola de Cultura e Personalidade foi
construída por Sapir, Mead e outros teóricos pioneiros. Extensas literaturas, rivalizando em
tamanho todo o corpo de escritos da Escola de Cultura e Personalidade, agora existe sobre
tópicos tais como a relação entre os hormônios adrenais e as funções mentais, a localização do
trabalho no cérebro tal como revelado por técnicas eletroencefalográficas e (demais técnicas)
derivadas, e o efeito das drogas sobre o humor e processos cognitivos. E a principal porção de
todos estes campos de conhecimento apresentou suas contribuições bem depois que a Escola
de Cultura e Personalidade se comprometeu com a abordagem funcional.
Ainda assim, as diversas linhas de pesquisa especiais da abordagem orgânica não
alcançaram sua síntese, nem entre si próprios, e tampouco com a tradição psicológica
(efetivamente antiga/mais velha) da psiquiatria e das ciências sociais. Não obstante, uma
filosofia geral poderia animar (adaptar) a (ou, tal) abordagem e determinar a natureza de
qualquer síntese futura com um possível posicionamento funcionalista. Esta filosofia
pareceria residir em quatro princípios:

1. Declarações sobre o “comportamento”, “mente”, “personalidade”, “psique”, “transtornos mentais” e


outras entidades “psicológicas” são declarações sobre sistemas físicos que incluem o cérebro (pois o
cérebro é a mente).
2. Qualquer disfunção física do cérebro implica numa disfunção mental.
3. Algumas disfunções físicas produzirão desordens nos sistemas neurais, cuja maioria dos componentes
permanecerão individualmente não danificados.
4. A maioria dos casos de transtornos comportamentais crônicos e graves (incluindo-se as psicoses
funcionais) são as conseqüências sintomáticas de disfunções físicas crônicas, ou agudas, do cérebro.

O leitor notará que a abordagem orgânica, tal como apresentada, não reivindica que
todos os estados mentais, atitudes, ou motivos indesejados necessariamente implicam numa
disfunção física; por conseguinte, evidências de hostilidade e ansiedade, defesas “neuróticas”,
suicídio, atuações anti-sociais, e assim sucessivamente, podem, a principio, ser produzidas por
cérebros que funcionam perfeitamente bem e que foram sujeitados a pressões ambientais
(incluindo-se comunicação insuficiente) para os quais estes “sintomas” são respostas
“normais”. Mas a abordagem orgânica difere da abordagem funcional ao reivindicar que um
cérebro funcionalmente adequado será capaz de se adaptar, ou reduzir, as pressões ambientais,
e que disfunções mentais crônicas são, não obstante, preponderantemente a conseqüência de
uma disfunção física crônica que existia antes do, ou independentemente da
supressão/cerceamento do organismo pelo ambiente. Uma teoria radicalmente funcional,
contrastivamente, atribuiria um papel bem menor aos fatores orgânicos enquanto agentes
causais a não ser nos casos de dano cerebral orgânico mais graves e óbvios; mas a maioria dos
funcionalistas provavelmente concederia/concordaria que o estresse psicogênico crônico
pode, em algumas ocasiões, evocar alterações fisiológicas, por vezes irreversíveis, que
agravam transtornos mentais funcionais (assim como o estresse psicogênico crônico pode
conduzir a transtornos mentais não-orgânicos tais como a úlcera duodenal).
Mais especificamente a abordagem orgânica pode ser dividida em áreas temáticas
centrais tais como:

1. O estudo da anatomia e da fisiologia do sistema nervoso central (incluindo-se o sistema autônomo)


considerado enquanto uma entidade.
2. O estudo/análise da localização e organização do trabalho no cérebro (incluindo-se a estrutura
lógica das conexões/redes neuronais (de terminações nervosas).
3. O estudo das terminações nervosas (nervos) e impulsos nervosos.
4. O estudo da relação entre os processos metabólicos e o funcionamento cerebral (incluso digestivo,
excretório, circulatório, endócrino, e bioquímico intra-celular).
5. O estudo da genético dos transtornos mentais.
6. O estudo do efeito da hipóxia, hipoglicemia, e desequilíbrio eletrolítico no funcionamento cerebral
e os diversos processos responsáveis pela hipóxia, hipoglicemia e desequilibro eletrolítico.
7. A psicofarmacologia (incluindo o estudo dos tranqüilizantes, energéticos e agentes
psicotomiméticos).
8. O estudo do efeito das variáveis nutricionais sobre o funcionamento cerebral.
9. O estudo das terapias de choque (principalmente o coma induzido por insulina e o eletro choque)
10. A busca por parcelas/amostras de sangue contendo substâncias psicopatogênicas (tóxicas) suspeitas
espontaneamente produzidas pelo corpo.
As disciplinas envolvidas neste e em outros estudos sobre psicopatologia estendem-se
desde a física matemática e o design de computadores, até ciências laboratoriais tais como a
química física, bioquímica, química clínica, fisiologia, psicologia experimental, e
neuropsiquiatria, àquelas áreas da antropologia e da sociologia que podem contribuir com
dados, métodos, ou teorias a investigações organicamente orientadas.
Um problema principal da abordagem orgânica tem sido, é claro, sua relativa
insularidade em relação aos conhecimentos psicossociais (este não tem sido um problema
somente da abordagem funcional). Respectivamente, uma das principais necessidades de
ambas as abordagens seria uma melhor compreensão de como o conhecimento e a
especulação concernente aos aspectos físicos dos sistemas humanos podem ser mais bem
relacionada ao conhecimento e especulação concernente aos aspectos psicológicos e sociais
destes sistemas. Tal fato é imperativo por que embora os casos de doença/transtorno mental
sejam normalmente identificados na comunidade pelos leigos, que utilizam critérios sociais,
ao invés de critérios provenientes das ciências físicas, e embora uma parcela do processo total
de adoecimento seja invariavelmente uma função de um sistema social interagindo com a
personalidade individual, se o desenvolvimento de muitos destes casos depende dos processos
orgânicos, então uma análise muito cuidadosa da interação dos eventos sociais e orgânicos
deve ser feita. E a antropologia, tanto através de sua teoria, quanto de seu campo de
investigação, pode contribuir significativamente para um avanço deste tipo de análise.

UM CASO/PROBLEMA ILUSTRATIVO: PIBLOKTOQ3

Na sua forma mais simples o problema enfrentado pela teoria antropológica na área da
saúde mental pode ser ilustrado pela situação/caso da síndrome pibloktoq entre os Esquimó
polares do Distrito de Thule, ao norte da Groelândia. O curso clássico da síndrome, tal como
foi julgado/avaliado a partir de casos descritos por diversos viajantes do norte (MacMillan,
1934; Peary, 1907; Rasmussen, 1915; Whitney, 1911) e das fotografias de um ataque (Museu
de História Natural Americano, 1914), é tal como segue (entrevisto a seguir):
1. Prodrome. Em alguns casos um período de horas, ou dias é descrito e durante o qual a vítima parece
estar moderadamente irritada, ou retraída.
2. Agitação. Repentinamente, com pouco, ou sem aviso algum, a vítima se torna ferozmente agitada. Pode
rasgar suas roupas, quebrar móveis, gritar obscenidades, atirar objetos, comer fezes, ou desempenhar
outros atos irracionais. Normalmente ele abandona o lar e corre freneticamente na tundra, ou bloco de
gelo, atirando-se em montes de neve, escalando/subindo em icebergs, colocando-se, de fato, numa
situação de perigo considerável, de onde, todavia, as pessoas que correm atrás dele freqüentemente o
resgatam. A agitação pode persistir por alguns poucos momentos até aproximadamente meia hora.
3. Convulsões e estupor. A agitação é sucedida por convulsões e pelo menos em alguns casos, pelo
colapso, e finalmente por um sono paralisante, ou coma, que pode durar até doze horas.
4. Recuperação. Seguindo-se um ataque, a vítima se comporta de modo perfeitamente normal; há amnésia
em relação à experiência. Algumas vítimas apresentam ataques repetidos/consecutivos, sabe-se,
contudo, que outras não tiveram mais do que um somente.

Os parâmetros epidemiológicos parecem ser:

3
A descrição da síndrome pibloktoq está fundamentada numa compilação de descrições manuscritas publicadas,
tanto específicas, quanto generalizadas, produzidas por uma diversidade de observadores, desde as notas do
missionário Hans Egede de 1765 até notas (material escrito) da década de 1940. Dezessete fotografias de uma
mulher durante um ataque de pibloktoq em Etah foram tiradas por Donald MacMillan em Junho de 1914; nós
pudemos utilizar as cópias dos negativos originais no arquivo da Divisão Fotográfica do Museu de História
Natural Americano. Sou grato ao Sr. Robert Ackerman, meu colaborador na pesquisa sobre o pibloktoq, que
coletou boa parcela dos dados e contribui enormemente para sua interpretação; ao Dr. Zachary Gussow, que
gentilmente me permitiu o uso de seu manuscrito não publicado do pibloktoq; e ao Dr. Gilbert Ling, que revisou
e contribuiu para seu refinamento/sua melhoria.
1. Geográfico. Sabe-se que o Pibloktoq (ou, no idioma Dinamarquês, perdlerorpoq) ocorre entre os
Esquimó polares do Distrito de Thule. Se a mesma síndrome (independentemente de como a
chamemos) ocorre em outras/demais localidades nos é incerto. Hoygaard, numa análise dietética e
médica dos Esquimó Angmagssalik em 1936-1937 relatou que “Surtos histéricos acompanhados de
intensa agitação mental e física eram freqüentes, especialmente nas mulheres.” (Hoygaard, 1941: 72).
Contudo, parece que esta não foi observada entre os Esquimó Canadenses e do Alasca, sendo tampouco
certo que esta ocorra na Ásia, ou no Norte da Europa. Por conseguinte, nós só podemos dizer/afirmar
que ela certamente ocorre no norte da Groelândia; que ela provavelmente ocorre em outros lugares da
Groelândia; e que ela pode ocorrer em qualquer lugar do mundo. Se a síndrome deve ser considerada
uma aflição/doença exclusivamente polar ou dos Esquimós do Ártico, ou não, dependerá do quão
exclusiva/única é esta doença.
2. Sazonal. Os relatos descrevem casos ocorrendo durante/ao longo de todas as estações do ano, mas diz-
se que eles são menores no verão.
3. Histórico. Como poder-se-ia esperar, uma vez que os Esquimó Thule não foram visitados pelos homens
brancos até o ano de 1818, os registros de caso e descrições são recentes, as melhores delas datadas do
período das visitas de Peary aos Esquimó Polares na primeira década do século XX. Descrições
detalhadas foram providenciadas por Peary (1907) MacMillan (1934), Knud e Niels Rasmussen (1915),
e Gussow (1960), e outros cronistas familiarizados com os Esquimó Polares. Todavia, é provável que o
transtorno seja relativamente antigo na área. Desde meados do século XVIII, relatava-se que os
Groenlandeses do norte eram/estariam peculiarmente sujeitos/afeitos a “ficarem doentes/a doença das
quedas”. E em 1850 a tripulação do navio Kane encalhado no gelo e que já passava seu segundo
inverno ao norte de Thule foi afligida/afetada por uma estranha “doença epilética” que, combinada com
o escorbuto, matou pelo menos dois homens, incapacitou outros, e tornou seus cães inúteis (Kane,
1856). “Epileptóide” é uma frase descritiva razoavelmente precisa do pibloktoq.
4. Freqüência. Pibloktoq pode aparentemente alcançar proporções epidêmicas: oito dentre dezessete
mulheres Esquimó que se associaram/ajuntaram à expedição de Peary em 1908 foram afetadas durante
uma das estações de inverno; outros observadores alegaram que por vezes alguns casos pareciam ser
cotidianos numa única aldeia.
5. Não há especificidade racial. Como observado acima, diversos casos prováveis de pibloktoq dentre os
brancos diagnosticados com escorbuto foram observador por Kane e Hayes em 1850 na mesma região.
6. Possível ausência de especificidade quanto à espécie. “Convulsões” entre cães (“das neves”), com
retraimento social, rosnados, brigas, e convulsões, os quais freqüentemente acabavam em morte, são
considerados pelos Esquimó como sendo/consistindo na mesma síndrome, tendo recebido o mesmo
nome, pibloktoq, assim como o nome para os ataques humanos.

A HIPÓTESE DA HISTERIA

A principal explicação psicológica sobre a síndrome do pibloktoq era psicanalítica. Em


1913 A. A. Brill, o apóstolo americano indicado pelo próprio Freud, escreveu um artigo sobre
o assunto fundamentando-se numa leitura de um dos livros de Peary, tendo debatido o assunto
pessoalmente com Donald MacMillan, o comandante naval que acompanhava Peary (Brill,
1913). Brill considerou a síndrome como um caso clássico de histeria. Seguindo um modelo
freudiano relativamente simplificado ele interpretou as convulsões como expressões de
frustração em decorrência da falta de amor e citou um caso típico de uma mulher que
apresentava ataques particularmente exibicionistas/esplendorosos. Esta jovem e atraente
mulher não havia sido bem sucedida em conseguir um marido por que era uma costureira
pobre; ela conseqüentemente havia sido frustrada em sua necessidade emocional de amor no
sentido físico e mais estrito da palavra. Mais recentemente, Gussow (1960) ampliou a
formulação de Brill interpretando a fuga histérica como uma manobra/estratégia sedutora/de
sedução, um “convite para ser perseguida/procurada”, em pessoas cujas inseguranças crônicas
foram mobilizadas pela precipitação de alguma perda, ou medo de perda, e que buscam uma
reconfirmação/reconforto amoroso de maneira caracteristicamente “primitiva e infantil, mas
caracteristicamente Esquimó”. De fato, ele sente que tais reações são uma manifestação da
personalidade básica Esquimó. A maior freqüência do pibloktoq entre as mulheres é por ele
explicada como sendo o resultado “da posição socialmente subserviente das mulheres... e seu
desamparo acrescido diante de experiências culturalmente traumáticas”. A nudez é, em partes,
explicada pela tendência comum dos Esquimó em se despirem dentro de casa e a resfriarem o
corpo nu na parte de fora (de casa/do lado de fora) após um banho de suor. A glossolalia, o
comportamento mimético, gritos, choros, e cantos são por vezes observados nas
performances/desempenhos xamãnicos e cerimônias religiosas, não somente entre os
Esquimós, mas também na Coréia. A fuga é considerada um convite histericamente motivado
a ser atendido/cuidado, ao invés de um componente de um padrão de convulsões
psicomotoras involuntárias, pois não houve relatos de casos em que a vítima não tenha sido
vista, seguida e resgatada. A asseverada tendência de ocorrência do pibloktoq no inverno é
iluminada/esclarecida pela observação “de que o inverno, mais do que em outras estações,
intensifica a insegurança dos Esquimó – e portanto, sua propensão aos transtornos – embora a
crescente ameaça de fome/penúria, as altas taxas de acidentes, medo do futuro e assim
sucessivamente”.
Todavia, estas explicações psicanalíticas e psico-culturais não são plenamente
satisfatórias por diversos motivos. A nudez, por exemplo, é, de fato, culturalmente
prefigurada/prevista, uma vez que é o único meio de reduzir a temperatura corporal para as
pessoas que não tem outras roupas para vestir, a não ser peles pesadas em residências
pobremente ventiladas onde a temperatura pode ir até 100˚ F (37˚ C). Mas isto sugere que o
processo de desnudamento pode ser meramente uma resposta a uma repentina sensação
somática de calor extremo. O fato de que a maior parte das vítimas da fuga histérica foram
resgatadas do perigo sem qualquer ferimento pode obviamente ser um artefato da observação:
todas as vítimas que congelaram, se afogaram, se perderam, foram levadas pelo gelo à deriva,
que caíram e morreram na neve, e assim sucessivamente, seriam, por definição, aquelas que
não foram observadas. Além do mais, em pelo menos um caso, uma mulher resgatada estava
ferida; ela congelou uma mão e um seio, uma condição séria na ausência da tecnologia
médica européia. Dois dos homens de Kane faleceram e os cachorros freqüentemente
morrem. Glossolalia, cantoria, e assim sucessivamente dificilmente consistiriam em
evidências de uma influência da cultura Esquimó sobre a forma desta histeria, uma vez que
estes comportamentos são virtualmente pandêmicos. As evidências de um estresse fisiológico
extremo (olhos injetados de sangue, rubor na face, espumar pela boca, movimentos
convulsivos), comportamento demente/perturbado (tentar caminhar no telhado, comer fezes, e
destrutividade inefetiva, não estão prefigurados na cultura. E, finalmente, os Esquimó não
foram descritos explicando tais convulsões (em contraste com os transtornos psicóticos) por
meio de teorias sobrenaturais sobre a doença (tais como possessão, bruxaria, punição por
violação de tabu, ou perda da alma), mas parecem considerá-las doenças/problemas naturais,
vivenciados/experimentados igualmente pelos seres humanos e cachorros, comparável talvez
a uma gripe comum, um membro quebrado, e outros males a que está sujeita a carne. Esta
resposta fleumática não seria capaz de nos prover muito que a atrelasse/associasse a uma
recompensa por causa/em decorrência de uma convulsão/crise histérica. (ou seja, o autor está
indicando que a hipótese é duvidosa – tradutor).

A HIPÓTESE DA DEFICIÊNCIA DE CÁLCIO

Uma hipótese alternativa e parcialmente biológica que explica o pibloktoq com igual
plausibilidade pode ser sugerida. Baixas concentrações de cálcio ionizado no sangue
(hipocalcemia) produzem uma síndrome neuromuscular conhecida como tétano, a qual é
freqüentemente complicada por desordens cognitivas e emocionais. Os sintomas neurológicos
do tétano incluem espasmos musculares característicos das mãos, pés, garganta, face, e
outras/demais musculaturas, e em intensos ataques com convulsões graves. A síndrome
tetânica pode ser provocada por estímulos triviais e freqüentemente é breve e esporádica, ao
invés de contínua (um tétano contínuo, é claro, seria fatal). Embora as informações
disponíveis nas fotografias e na literatura não sejam suficientes em si mesmas para
estabelecerem um/o diagnóstico, os sintomas do pibloktoq são compatíveis com o quadro
clínico de tétano hipercalcêmico, e diversas autoridades no assunto sugeriram a hipótese da
deficiência de cálcio (Hoygaard, 1941: 72; Bashuus-Jensen, 1935: 344, 388; e Alexander
Leighton numa comunicação pessoal). Seria necessário que tanto a observação, quanto a
realização de testes em campo confirmassem a hipótese da hipocalcemia excluindo, desta
feita, hipóteses alternativas (choque hipoglicêmico, histeria, intoxicação alimentar, vírus,
encefalite, etc.). Também é possível que uma tendência à epilepsia possa ter sido
geneticamente determinada em decorrência da endogamia ocorrida neste pequeno grupo
isolado; isto é sugerido nos relatos/nas descrições de que a epilepsia é mais comum no norte
da Groenlândia do que em qualquer outra parte da ilha/do continente. Contudo, as teorias da
hipocalcemia e da epilepsia não excluem uma à outra, uma vez que a hipocalcemia
provavelmente tenderia a provocar uma convulsão (convulsibilidade) latente em pessoas
propensas à epilepsia. A observação e teste (realização de testes) dos diagnósticos diferenciais
demandariam tanto a evocação de signos/sinais neurológicos nas vítimas durante os ataques,
ou nas pessoas com um histórico de ataques, quanto à realização de testes sanguíneos (por
meio de coleta de sangue das) vítimas e coleta de amostras séricas de cálcio, séricas de
potássio, e possivelmente de outros elementos (constituintes), de pessoas propensas ao
pibloktoq, e de pessoas livres do (que não apresentam propensão ao) pibloktoq.
Contudo, a plausibilidade da hipótese da deficiência de cálcio é apoiada não somente
pelas opiniões de determinadas autoridades, como também pela compatibilidade da síndrome
do pibloktoq com a síndrome do tétano hipercalcêmico. Esta hipótese é sugerida pelas
evidências indiretas, tanto médicas, quanto ecológicas.
Medicamente, os Esquimó da Groenlândia (incluindo-se os do Distrito de Thule) são
caracterizados por uma propensão à hemorragia e baixo nível de coagulação (sanguínea)
(Hoygaard, 1941: 83 – 85, e Cook, 1894: 172). Tal tendência ao sangramento/à sangria pode
ser/estar concebivelmente associada a baixos níveis séricos de cálcio (embora a deficiência de
vitamina K provavelmente tenda a conduzir/levar a/produzir esta condição). Em
Angmagssalik, as convulsões nos recém nascidos, que sugerem a hipótese do tétano
hipocalcêmico, foram descritas por Hoygaard como sendo freqüentes (Hoygaard, 1941: 78,
135), e Bertelsen observou num relato médico sobre os Esquimó da Groenlândia que havia
uma elevada freqüência de espasmos, especialmente nas pernas, até mesmo nos adultos
(Bertelsen, 1940: 216). Estas observações são reminiscentes da explicação oferecida por Kane
acerca da “estranha doença epilético-tetânica” que incapacitou sua tripulação ao norte de
Smith Sound em 1850. Ele diagnosticou dois casos fatais de “tétano” que apresentavam
espasmos na laringe (estes de fato poderiam ter sido casos de tétano hipocalcêmico que se
transformaram/evoluíram para um status eclampticus (convulsões graves com período maior
do que cinco minutos), dois casos fatais de “doenças epilético-tetânicas” e diversos casos de
espasmos e dores musculares, acompanhados por vezes de “sintomas mentais” de
desorientação e confusão, tanto nos cães, quanto nos seres humanos (Kane, 1856).
Ecologicamente, pode-se afirmar sem hesitação que a ecologia do (alto) ártico não
provê ricas fontes de cálcio nutricionalmente disponíveis durante todas as estações do ano às
populações tecnologicamente primitivas. Hoygaard descobriu que aproximadamente metade
do cálcio anual consumido em Angmagssalik era adquirida a partir de capelim seco (Mallotus
villosus, uma espécie de peixes pelágicos de pequenas dimensões da família Osmeridae),
(sendo que os ossos do capelim são comestíveis). Quando o capelim se encontrava disponível,
o consumo de cálcio era baixo, mas acima do nível asseverado pelas autoridades médicas
como sendo o mínimo para a manutenção da saúde. Mas sem o capelim seco (uma
circunstância que ocorria periodicamente como resultado da indisponibilidade do peixe, ou da
inadequação do clima para secá-los), a quantidade de consumo de cálcio bem abaixo do
mínimo (Hoygaard, 1941). Rodahl também descobriu que a dieta de determinados grupos de
Esquimó é relativamente baixa em cálcio (Rodahl, 1957). Em Thule, embora nenhuma
pesquisa dietética cuidadosa tenha sido encontrada, há descrições de que a baixa freqüência
da pesca decorre da escassez/carência de peixes e de que este não é capturado em quantidades
suficientes. Contudo, talvez como modo de substituir o capelim podem ser utilizados pássaros
– as “tordas anãs (Alle Alle)” – que, após armazenadas em óleo de foca, podem ser comidas
inteiras, incluindo-se, aparentemente, alguns dos ossos (MacMillan, 1918). Uma complicação
ecológica adicional pode decorrer da própria latitude elevada. O ser humano requer uma
quantia de vitamina D a fim de absorver e utilizar o cálcio consumido de modo eficiente (e
possivelmente também para metabolizar adequadamente os carboidratos). Esta vitamina é
formada na pele humana e animal quando a luz ultravioleta ativa determinados óleos que
contém colesterol. No alto/rigoroso ártico, contudo, uma combinação da baixa incidência do
ângulo solar durante o verão, um grande período de escuridão de inverno, e a necessidade de
roupas pesadas durante a maior parte do ano, deve impedir que o corpo humano sintetize uma
boa parcela de vitamina D (necessária). Se uma quantia adequada de vitamina D pode ser
garantida a partir da fauna marítima nesta latitude, é incerto. O óleo de foca contém quantias
significativas de vitamina D, mas, em Thule, os óleos de peixe ricos em vitamina D tais como
o óleo de fígado de bacalhau, provavelmente não constituem uma das principais fontes de
suprimento em decorrência da já antes citada escassez de pesca na região. A fim de resumir o
problema ecológico brevemente/sumariamente, mesmo que uma quantia adequada de
vitamina D se encontre disponível a fim de permitir máxima eficiência na absorção e
utilização do cálcio, ainda permanece altamente provável que algumas pessoas, em algumas
estações do ano, sejam incapazes de garantir uma adequada/elevada ingestão de cálcio de
modo a alcançarem os padrões médicos publicizados/estabelecidos. Se um consumo tão baixo
de cálcio for acompanhado com/de um consumo elevado de proteínas e potássio, as
conseqüências neurológicas serão intensificadas, e o elevado consumo de carne dos Esquimós
Polares envolve uma ingestão de grandes quantidades de proteínas e potássio.
Contudo, um (simples) fato, milita contra a hipótese simplificada da deficiência de
cálcio: a raridade com que foram descritos casos de raquitismo entre os recém-nascidos
Esquimós e de osteomalacia nos Esquimós adultos (por exemplo, nas mulheres grávidas e em
lactação) (Bertelsen, 1940). Estas são doenças nas quais, em decorrência de um consumo e
uso inadequado de cálcio, ou ambos, os ossos abdicam de seu cálcio ao sangue, e
eventualmente, à urina, com o afligido, doravante, gradualmente perdendo o cálcio do corpo à
custa do tecido ósseo. Em latitudes temperadas, o raquitismo e a osteomalacia normalmente
são prevenidos pelo consumo de leite, exposição à luz solar, e consumo de misturas
preparadas de vitamina D suplementar, como através do consumo do óleo de bacalhau e de
pílulas de vitamina D. Se formularmos a hipótese de que a dieta dos Esquimós contém pouco
consumo de cálcio, e talvez pouca vitamina D formada pela exposição à luz solar, como é que
não foram evidenciados casos de raquitismo? A resposta a esta questão requer outra hipótese
concernente ao funcionamento hormonal. Parece que se o consumo de cálcio, ou de vitamina
D, é cronicamente baixo no meio ambiente ártico, então a fisiologia dos Esquimós deve ter
sido forçada a “escolher” ao longo/através de diversas gerações entre o tétano e o raquitismo –
e, diferentemente de populações mais ao sul, acabou por escolher (adaptar-se ao) tétano como
sendo o menor dos males. (Mais precisamente, é claro, é o ambiente que selecionou a
alternativa fisiológica mais bem adaptada). O raquitismo e a osteomalacia seriam fatais numa
economia primitiva como a dos Esquimós por que elas são fisicamente debilitadoras. Ataques
esporádicos de tétano, mesmo que ocasionalmente danosos, ou até mesmo fatais, seriam
comparativamente meramente um incômodo. Doravante, a hipocalcemia requer o corolário de
que os Esquimós Polares e demais Esquimós tendem a apresentar um hipotiroidismo
moderado (ou, mais exatamente, novamente, que nesta matriz ecológica cultural, um
funcionamento adequado da paratireóide requer uma menor atividade do que seu
funcionamento mediante as condições estabelecidas pela prática médica americana e
européia). Tal hipotiroidismo (“hipoparatiroidismo”) poderia/deveria ser concebido como um
produto da seleção natural da/estabelecido pela/necessário à vida primitiva num ambiente
ártico, apresentando um tipo de equilíbrio hormonal que retém o cálcio nos ossos, mesmo
quando os níveis séricos de cálcio ocasionalmente diminuem. Há, de fato, algumas evidências
para apoiar/sustentar esta hipótese. Os extintos nórdicos medievais, ainda não pré-adaptados a
um rigoroso ambiente ártico e que se estabeleceram ao longo da costa oeste da Groenlândia, e
que finalmente se extinguiram/morreram e foram substituídos pelos não-raquíticos Esquimós,
efetivamente sofriam de raquitismo e osteomalacia (Maxwell, 1930: 20).
Mas se propusermos uma hipótese de hipocalcemia, ignoraremos a cultura Esquimó?
Certamente não. A consideração dos fatores culturais já está, de fato, implícita na hipótese tal
como anunciada. Esta hipótese jaz no pressuposto de que a tecnologia de subsistência é
“primitiva”, isto é, nesta aplicação do conceito, que as vitaminas manufaturadas e os
alimentos importados, ou especialmente processados e que contém cálcio não estão
disponíveis e que, aos caçadores, uma estrutura esquelética forte e não deformada (sem
deformidades) apresenta maior valor de sobrevivência do que a liberdade/liberação em
relação a ataques ocasionais de tétano. Estas características culturais tornam a população local
vulnerável a uma escassez dietética de cálcio e de vitamina D, selecionando/escolhendo o
sistema nervoso e muscular, ao invés do esqueleto/tecido ósseo, como o tecido alvo de
qualquer deficiência nutricional de cálcio, ou vitamina D.
Mas a cultura Esquimó também funciona de modo a minimizar, dentro dos limites
acima estabelecidos, a freqüência e gravidade dos ataques, via os costumes de acumulação,
processamento e armazenagem de grandes quantidades de pássaros ricos em cálcio (as “tordas
anãs”); da obtenção, preservação e do amplo uso de óleos de foca que contém vitamina D; do
hábito de despir-se e expor o corpo a luz do sol diretamente sempre que o clima o permitir; do
desmame tardio das crianças (doravante, garantindo-lhes o consumo máximo de cálcio através
do leite materno durante os períodos de vulnerabilidade ao raquitismo característicos da
infância); da garantia às mulheres grávidas (particularmente vulneráveis à osteomalacia) e às
crianças um acesso privilegiado a alimentos frescos e armazenados ricos em cálcio
(especificamente, as “tordas-anãs” e quaisquer tipos de peixe seco disponíveis), tornando as
mulheres e crianças os principais responsáveis pela captura dos pássaros e coleta dos ovos, e
(a julgar pelos tabus descritos para outros grupos de Esquimós além dos residentes do Thule)
pela manutenção de tabus alimentares que possuem o efeito de, em determinados momentos,
restringir substancialmente a mãe gestante, ou em lactação, de utilizar peixe seco, pássaros, ou
outros alimentos armazenados com alto teor de cálcio.
É possível que, a despeito de seu papel na etiologia, o costume Esquimó afete os
detalhes da sintomatologia observada. Na medida do possível, a fuga impetuosa do grupo
freqüentemente descrita durante as fases iniciais de um ataque podem refletir um traço de
personalidade comum entre os Esquimós: a retirada/recuo, ao invés da agressão, em situações
nas quais a confiança do individuo em sua habilidade de lidar com ela (tais ocasiões) foi
abalada. Tal tendência pode ser refletida no hábito dos homens Esquimós em abandonar a
caça de caiaque se sua confiança foi perturbada/alterada em algum momento (“fobia de
caiaque”); pela prática do kiviktoq, ou de “ir para as montanhas” para viver uma vida de
ermitão, aos homens e mulheres que igualmente se sentem rejeitados por suas comunidades;
pela disposição relatada dos mais velhos e enfermos/fracos em serem abandonados para
morrer; e pela ansiedade dos pais Esquimós em não perturbar a confiança de seus filhos,
mesmo quando brincam perigosamente, através da emissão de comandos negativos
frustradores. Tal interpretação psicológica – que é, em certo sentido, diretamente contraditória
à hipótese da histeria – se assenta no pressuposto de que qualquer disfunção neurológica
incipiente está suscetível à diferentes interpretações por parte da vítima e de seus
companheiros/associados e pode, não obstante, precipitar diferentes respostas observáveis, a
depender dos costumes particulares dos indivíduos e do grupo.
E finalmente, no que tange ao manuseio de casos de pibloktoq o costume Esquimó
obviamente desempenha um papel muito importante. Um ataque de pibloktoq não é
automaticamente considerado um sinal da incompetência geral do indivíduo. A vítima é, caso
necessário, é protegida de ferir a si mesma e aos outros/demais; outrossim, esta permanece
sozinha até que o ataque passe. O ataque pode ser alvo de bom humor e piadas
posteriormente, mas não é empregado para justificar restrições à participação social da vítima.
Em outras palavras, há pouco, ou nenhum estigma; o ataque é considerado/tratado como um
evento isolado ao invés de um sintoma de uma doença mais profunda/grave. Tal abordagem
fleumática, novamente, parece ter sido bem calculada a fim de minimizar quaisquer danos à
confiança pessoal do indivíduo, e, portanto, atuaria na prevenção do desenvolvimento de uma
invalidade (invalidação) psicológica crônica. O impacto sobre a cronicidade de tais
transtornos episódicos a partir de seu manuseio diferencial é bem ilustrado na história da
psiquiatria do combate (de guerra) americana, que entre a Segunda Guerra Mundial e a Guerra
Coreana atingiu/alcançou uma redução de 50% na taxa de psiconeuroses crônicas resultantes
de colapsos de guerra (neuroses de guerra – pós-traumáticas) simplesmente recusando-se a
tratar o colapso como um sintoma de doença (Glass, 1953).

IMPLICAÇÕES DAS (APRESENTADAS PELAS) TEORIAS ALTERNATIVAS

Duas grandes teorias de gabinete sobre o pibloktoq foram apresentadas. Embora a


teoria "orgânica" (hipocalcemia) pareça preferível, a teoria orgânica está tão preocupada com
a análise dos fatores culturais, quanto à teoria "psicológica" (da histeria). A fim de escolher
entre as duas, uma investigação de campo será necessária. Tais investigações de campo terão
uma significância considerável para as teorias antropológicas sobre os transtornos mentais (e
a teoria psiquiátrica profissional, neste caso). Pois não somente ela irá contribuir para a
solução de um problema particular - e para alguns olhares, talvez, um problema diagnóstico
desnecessariamente exótico, como também apresentará conseqüências a (na solução de) dois
problemas teóricos centrais/maiores/principais.
Uma destas questões centrais é a compreensão da própria histeria. Como bem se sabe,
a psicanálise foi originalmente concebida como um meio de tratamento para a histeria, e boa
parte de sua estrutura teórica foi erigida mediante a análise de casos diagnosticados como
histeria. Desde a época de Freud, a histeria se tornou um transtorno incomum/raro em boa
parte da Europa e da America. Isto pode ser uma conseqüência de mudanças culturalmente
determinadas da estrutura da personalidade modal dos países Ocidentais e na preferência por
diversos estilos de expressão psicossomática. Pode ser que isto também seja o resultado de
mudanças na prática diagnóstica (sugeriu-se, por exemplo, que a "histeria foi
banida/desapareceu dentro (foi absorvida) no diagnóstico de epilepsia" (Peterson, 1950). E
pode ser que transformações culturalmente determinadas de questões tais como o estilo de
vestimenta e residência, as horas de trabalho, os métodos de aquecimento/iluminação, e
dietéticos, que poderiam afetar, em particular, o consumo/absorção de cálcio e sua utilização
em pessoas vulneráveis ao tétano e raquitismo. Certamente o raquitismo se tornou mais raro
precisamente naqueles grupos mais propensos à histeria: As populações urbanas européias
Ocidentais. Mas agora nós estaríamos sugerindo que ao menos um tipo de histeria (o "grande
ataque histérico") não seja puramente psicogênico!
Tal implicação demanda apoio através de investigação empírica - uma investigação
que, de fato, assume novamente uma linha malograda(?)/abortiva de investigação (abortive
line?) sobre a relação entre o tétano e a histeria que se iniciou na Europa antes das teorias
psicanalíticas haverem varrido abordagens concorrentes/rivais (Barrett, 1919 - 1920: 385 -
386). Trata-se de um interesse que vai além da mera apreciação de antiquários (antiguidades,
lembranças vagas) recordar que houve uma verdadeira endemia de tétano entre a classe
trabalhadora de Viena, Paris e outras cidades européias (Shelling, 1935: 115 - 116). Esta
praga do tétano (tetânica) não foi compreendida etiologicamente à época, pois o papel do
cálcio no tétano não havia sido estabelecido. Durante o mesmo período, o trabalho dos
neuropsiquiatras franceses e vienenses sobre a histeria estava sendo mais intensivamente
realizado, e culminou, como todos sabem, nos Estudos sobre a Histeria de Freud e Breuer,
que foi publicado em 1895, após uma publicação preliminar em 1893. Este estudo revelou a
conexão psicológica entre o sintoma histérico e o conflito emocional traumático e sugeriu
uma técnica de "terapia da fala" que rapidamente se desenvolveu no método psicanalítico.
Todavia, nós podemos agora nos indagarmos se o ambiente fisiológico da hipocalcemia não
pode ter sido um fator condicionante da histeria. As endemias mais sérias de raquitismo e de
tétano hipocalcêmico - determinadas por restrições do costume, e/ou da economia em relação
a alimentação, vestimenta, iluminação/aquecimento interna/o, horas de trabalho, e acesso a
espaços abertos/públicos não somente entre os trabalhadores, mas entre todas as classes na
Europa do final do século XIX - ocorreram/surgiram precisamente na mesma época em que a
histeria atingiu seu auge enquanto problema psiquiátrico. A descoberta do valor da luz do sol,
do leite e dos alimentos que contém vitamina D, e uma melhora geral das condições sociais,
durante o início do século XX, foi acompanhada por uma drástica redução nas freqüências de
raquitismo, tétano e histeria. Por conseguinte, podemos sugerir enquanto hipótese para a
investigação médica-histórica, que o ataque histérico, e talvez até mesmo as conversões
histéricas ocorreram mais prontamente em pessoas com baixos níveis séricos de cálcio
ionizado e que níveis cronicamente baixos podem manter um ambiente neurofisiológico no
qual tanto o tétano, quanto os ataques histéricos, hipersugestibilidade, ou aprendizado
histérico de sintomas de conversão se tornam, cedo, ou tarde, inevitáveis, a escolha do
transtorno dependendo de diversos fatores condicionantes relacionados à situação,
história/histórico pessoal, e individualidade bioquímica.
A sugestão de que as histerias européias do final do século XIX consistiam, numa
proporção considerável/significativa, de casos não diagnosticados de deficiência nos níveis
séricos de cálcio suscita uma suscitam uma questão central à teoria psiquiátrica, pois a
psicanálise foi fundada com base na análise de histéricos. A luz deste fato, talvez seja
adequado avaliar ainda mais profundamente as dimensões culturais e históricas da questão. Os
estudiosos da histeria do final do século XIX – incluso Freud – estavam cientes de que os
histéricos poderiam apresentar perfis fisiológicos incomuns, bem como comportamento
inadequado/desordenado, e alguns sentiam que uma predisposição hereditária desempenhava
um papel/uma função na patogênese da doença. Mas estes psiquiatras de 1890 se
encontravam, de algum modo, na mesma posição vis a vis à explicação fisiológica da histeria
como os antropólogos da década de 1920 se encontravam vis a vis (mediante – em/na frente
de/defrontados) com as explicações da psicopatologia em geral: as investigações fisiológicas
ainda não haviam avançado o suficiente para proverem uma base estruturante de hipóteses
fisiológicas testáveis.
Por conseguinte, a primeira demonstração de que o tétano estaria associado a uma
concentração reduzida de cálcio no sangue não foi realizada até 1908; Até agora/então o
diagnóstico dependia da descoberta de sinais neurológicos positivos. Mas foi somente em
1921 que o desenvolvimento dos métodos micrométricos na determinação das quantias séricas
de cálcio tornaram possível a ampla realização de testes envolvendo/para a descoberta dos
níveis séricos de cálcio (Shelling, 1935: 114 – 116). (a determinação d-) O diagnóstico
diferencial em determinados casos (cuja escolha variava) entre histeria e tétano era
extremamente difícil, e de fato, provavelmente era arbitrária antes do desenvolvimento da
hipótese sobre a relação entre os níveis séricos de cálcio e o tétano, e a provisão (obtenção) de
métodos químicos clínicos adequados. Conseguintemente, alguns casos que hoje
provavelmente seriam inequivocamente considerados como sendo tétano (e.g., a síndrome
tetânica que se segue à tiroidectomia) eram diagnosticados no ano de 1904 como consistindo
numa mistura de tétano e histeria (cf. Curschmann, 1904). Portanto, é impossível que Freud
tenha considerado a possibilidade de que a histeria poderia ser uma conseqüência sintomática
de baixos níveis séricos de cálcio. O ambiente cultural no qual ele trabalhava não foi capaz de
provê-lo com os conceitos, ou instrumentos, através dos quais tal questão poderia ser
formulada, ou respondida. Considerando-se que não podemos retornar ao século XIX para
realizarmos avaliações/testes sobre os níveis séricos de cálcio dos pacientes originais de
Freud, nós não poderíamos determinar quais teriam sido os resultados, e tampouco estimar
seu impacto sobre o desenvolvimento da psicanálise, caso as descobertas tivessem
sido/fossem positivas. Mas ao menos nós temos outra resposta histórica à questão “Por que a
histeria virtualmente desapareceu na Europa e nos Estados Unidos?” Nossa resposta
(metafórica) é “Ela se diluiu em garrafas de leite e óleo de fígado de bacalhau” – com isto
quero dizer que as mudanças culturais associadas a uma apreciação/valorização da
importância da luz do sol, vitamina D, leite e diversos outros fatores na manutenção de um
equilíbrio adequado (nos níveis) de cálcio, conjuntamente com uma melhoria geral dos
padrões nutricionais, eliminou virtualmente (exceto em determinadas condições médicas
raras) uma síndrome total, um conjunto de sintomas que numa determinada época foi (e ainda
é) denominado tétano, e outro conjunto de sintomas que num determinado período foi
denominado (mas já não é mais) de “grande ataque histérico”.
A necessidade de evidências empíricas que fundamentem as hipóteses esboçadas
acima imediatamente conduzem a uma consideração acerca da segunda questão principal: a
estrutura teórica mais ampla que deveria guiar tal investigação. É evidente que mesmo que
seja possível identificar uma variável fisiológica específica enquanto uma precipitação
(precipitant) da sintomatologia observável, uma explicação adequada da freqüência da
síndrome na população, sua amplitude geográfica, sua distribuição racial e entre espécies,
suas variações sazonais, sua história, e a gravidade e os detalhes da forma dos sintomas em si
mesmos, devem depender da avaliação de outras variáveis, fisiológicas, psicológicas, e
culturais. É a interação destas outras variáveis com a variável precipitante imediatamente
fisiológica que provê as condições necessárias e suficientes para que um tipo de doença
mental ocorra num grupo com uma freqüência particular. Nós já sugerimos algumas destas
condições na análise do pibloktoq. Voltemos agora nossa atenção ao desenvolvimento de uma
estrutura referencial que pode conduzir ao refinamento da teoria, bem como a aquisição de
dados empíricos relevantes. Nós começaremos, na seção a seguir, com uma discussão
adicional de uma observação introduzida na análise do pibloktoq: a importância de uma
“teoria da doença” na formação de uma estrutura sintomática. E finalmente, nós tentaremos
generalizar a linha de pensamento representada na análise do pibloktoq, e na discussão a
seguir, num modelo de base/inicial/rudimentar de uma abordagem biocultural aos transtornos
mentais.

A IMPORTÂNCIA DE TEORIAS CULTURALMENTE INSTITUCIONALIZADAS


SOBRE A DOENÇA ENQUANTO DETERMINANTES DAS RESPOSTAS ÀS
PSICOPATOLOGIAS ORGANICAMENTE FUNDAMENTADAS

A doença mental é um episódio num programa de vida/vital, freqüentemente


seguindo-se um período mais, ou menos, amplo de normalidade (tal como definido tanto pela
pessoa, quanto por sua comunidade), e encerrado tanto pela morte, ou através de um retorno
(talvez temporário) à normalidade. No modelo biocultural, uma conjunção de eventos
patogênicos, orgânicos, e psicológicos é considerada como capaz de abortar/interromper um
programa vital normal à sociedade incapacitando o aparato de organização cognitiva da
vítima. Com o início de uma desemantication [redução da matriz semântica] fisiologicamente
determinada (capacidade de organização cognitiva reduzida) a vítima é incapaz de organizar
suas percepções, motivos, ações significativamente a fim de satisfazer seus próprios desejos
sem frustrar o de outros, ou vice-versa. Seus esforços mais, ou menos, desesperados em
proteger-se das conseqüências que ele espera que ocorram após a drástica redução de suas
capacidades cognitivas tendem a ser/consistir nos sintomas mais evidentes do transtorno:
retirada (reclusão), agressão, delírios paranoides, e o uso bizarro dos mecanismos de defesa
familiares da repressão, sublimação, negação, etc. E simultaneamente, a vítima da
comunidade responde a esta sintomatologia observável com seus próprios procedimentos de
reclusão, agressão, terapia, e assim sucessivamente.
O que determinará as expectativas da vítima e da comunidade em relação às
conseqüências de suas escolhas de estratégia defensiva? Evidentemente, a freqüência,
duração, e previsibilidade dos períodos de desemantication [redução da matriz semântica], e
sua freqüência na população, serão dados de extrema importância na avaliação do self/da
ipseidade/de si por parte da vítima e da vítima pela comunidade. Se o período de
desemantication for relativamente breve (não mais do que poucos dias), é relativamente
infreqüente (não mais do que uma vez ao mês), é previsível (seja por um meio/instrumento
“calêndrico(?)” [calendário], ou por associação com outros eventos programados/agendados),
e comumente se observa que ele ocorre comumente nos outros sem conseqüências
desastrosas, então até graus graves de desemantication com uma inconveniência e desconforto
associados consideráveis podem ser tolerados pela personalidade. Similarmente, transtornos
observáveis, breves, infreqüentes, previsíveis, e comuns podem ser tolerados pela
comunidade. Tais situações (para fornecer alguns exemplos familiares) ocorrem nas tensões
pré-menstruais, intoxicação alcoólica, ou por drogas, dissociação ritualmente induzida,
exaustão, e o pibloktoq dos Esquimós polares. Quanto mais tardio no programa vital, mais
freqüente e mais prolongado, menos previsível e menos comum o evento, mais ameaçador
será para a personalidade e para a comunidade, e mais desesperador e (para a vítima) mais
mal concebidas suas estratégias defensivas complementares se tornarão. Onde a de-
semanticação é grave e irreversível, como nas síndromes cerebrais crônicas, a vítima pode
estar tão preocupada em manter seu sentimento de competência/habilidade anterior que até
mesmo contratempos triviais precipitam “reações catastróficas” (Goldstein, 1940). (Casos
de) esquizofrenia e talvez psicoses afetivas (tais como a melancolia involutiva) aparentam
apresentar um status intermediário entre as síndromes crônicas e breves ataques episódicos. A
de-semanticação não é plenamente/inteiramente contínua e a vítima conseqüentemente é
capaz de reter, durante um período considerável, a normalidade intermitente da função, mas
os episódios acabam sendo cada vez mais suficientemente freqüentes, prolongados, e graves
de modo a resultarem numa acumulação de estratégias defensivas permanentes que
eventualmente em si mesmas tornam a participação social adequada quase impossível durante
os períodos mais claros/livres/transparentes, e, por vezes, mesmo depois que a própria fase de
de-semanticação já passou (tenha passado).
Mas não é somente a temporalidade e convencionalidade do transtorno que afetará a
resposta defensiva da vítima e sua comunidade. A personalidade da vítima e a cultura do
grupo provêm modelos das experiências e sintomas do evento que lhes atribuem significações
definidas e provêm receitas para que se possa lidar com a situação. Estes modelos são, no
caso individual, uma função de outros aspectos da cultura, sua estrutura social, e sua história.
Elas são amplamente variáveis em sua forma e não são inteiramente previsíveis a partir de um
conhecimento sobre a temporalidade e convencionalidade do transtorno. Enquanto que o
antropólogo pode, ou não, se comprometer/envolver com a solução de problemas relacionados
ao diagnóstico diferencial e etiologia (que, conforme observamos anteriormente,
inevitavelmente envolve questões de dinâmica biológica, bem como psicológica), ele
certamente pode investigar as teorias sustentadas pelo paciente e pela comunidade sobre a
doença e seu tratamento. Por conseguinte, sua contribuição mais imediatamente relevante
pode consistir numa análise de como, na sociedade em questão, a sintomatologia e sua
programação são normalmente conceituadas. Como indicado acima, independente de sua
etiologia, o curso de uma doença ocorre numa matriz social e é observado tanto pela vítima,
quanto pelos seus associados/companheiros. Sua concepção sobre o que está acontecendo
desempenhará um importante papel na determinação de qual será sua resposta aos sintomas
(ver Wallace, 1959). Portanto, mesmo que a etiologia e os sintomas primários da doença
fossem, exceto numa investigação epidemiológica, considerados acidentes fisiológicos e,
portanto, amplamente independentes da cultura, os esforços da vítima e de seus companheiros
em lidar com a doença devem ser reconhecidos como sendo altamente dependentes da cultura,
pois estas respostas às doenças são bastante consideravelmente determinadas por aquilo que
podemos chamar de teorias nativas da doença – em particular, a teoria do paciente. Em suma,
uma vez que a causa da doença mesmo que seja fisiologicamente iniciada é progressivamente
modificada pelo retorno/resposta (feedback) através da concepção que a vítima e a
comunidade possuem da doença, a personalidade da vítima e a cultura da comunidade
desempenhando um papel determinante.
Uma parcela da literatura recente em psiquiatria social direcionou sua atenção à teoria
da doença enquanto uma variável significativa. De particular interesse são os
estudos/pesquisas sobre as doenças psiquiátricas em New Haven resumidas no livro de
Hollingshead e Redlich Classes sociais e Transtornos mentais (1958). Estas análises
demonstram novamente não somente diferenciais de classe na prevalência de determinados
tipos de doenças mentais tratadas (por exemplo, que a esquizofrenia é quase nove vezes mais
prevalente nos grupos socioeconômicos mais baixos do que nos estratos mais altos, mesmo
após a padronização do tamanho da população investigada), mas também diferenciais de
classe nos métodos de tratamento (isto é, que os esquizofrênicos das camadas sociais mais
baixas recebem ora tratamento orgânico, ou nenhum tratamento, enquanto que os
esquizofrênicos das classes abastadas recebem psicoterapia e/ou tratamento orgânico. Estas
diferenças são, sem dúvidas, parcialmente uma função do acesso diferencial aos recursos
econômicos; mas, como Hollingshead e Redlich cuidadosamente demonstram, elas também
são parcialmente uma função das diferenças nas concepções de doença e de tratamento entre
as classes/camadas baixas e altas. Especificamente, a dissonância entre os (modelos
cognitivos, teorias sobre a doença dos – tradutor) pacientes da classe baixa e as teorias sobre o
que (daquilo que) constitui a(s) doença(s), de como elas se originam, e como são curadas,
conhecidas pelos médicos de classe média, interferem na livre comunicação. Estas diferenças
tornam a aceitação mútua, o gostar, a confiança, e a cooperação inteligente difíceis, e
freqüentemente resultam seja numa retirada/recuo mútuo, ou na recusa do paciente em
adentrar efetivamente numa relação psicoterapêutica.
Outras fontes abordaram o problema da teoria da doença a partir de diversos pontos de
vista. Cannon e outros, por exemplo, analisaram o fenômeno da “morte por vodu” como um
tipo de sobre-resposta a um trauma “realisticamente” trivial por uma vítima que é convencida
de que irá morrer por que foi enfeitiçada por um inimigo, ou condenada em decorrência da
infração de algum tabu (Cannon, 1942). Análises comparáveis, embora menos dramáticas,
revelaram que as feridas corporais e as enfermidades mentais de um tipo, ou outro, conduzem
a diferentes respostas a depender da significação culturalmente estabelecida para a situação.
Por exemplo, numa coleção de artigos descrevendo as investigações realizadas no Instituto
Nacional de Saúde Mental sobre o impacto do transtorno mental sobre a família, Clausen e
Yarrow descrevem com detalhes as diferenças na “significação” de doença mental para
diversas pessoas, inclusive do paciente, e o efeito destes posicionamentos semânticos na
padronização do caminho para, através, e a partir do hospital de saúde mental (Clausen e
Yarrow, 1955). Em seu estudo de trinta e três famílias nas quais o marido era o paciente, eles
descobriram que quase metade de todos os maridos nunca era visitado por um psiquiatra antes
de ser organizado/planejado seu internamento/sua hospitalização. A dificuldade, e
freqüentemente a relutância, com que a família do paciente passava a definir seu problema
como requisitando de cuidados psiquiátricos, e a lentidão e incerteza com que eles procediam
a garantia deste cuidado, significava que “descontinuidades na ação eram freqüentes, e os
caminhos que conduziam ao hospital eram acossados por obstáculos e traumas para marido e
mulher” (Clausen e Yarrow, 1955: 32). E durante nossa própria pesquisa no Instituto
Psiquiátrico da Pensilvânia Oriental, nós havíamos nos ocupado com o problema de como a
teoria do paciente sobre o mecanismo da alucinação afeta a resposta dele e de seus colegas em
relação àquela experiência. Nós trabalhamos com materiais culturais comparados na literatura
e observamos, por exemplo, o contraste entre as respostas à intoxicação por mescalina por
parte de voluntários brancos normais e dos peiotistas religiosos indígenas americanos
(Wallace, 1959).

UM MODELO PARA A ANÁLISE DAS TEORIAS SOBRE OS


TRANSTORNOS/DOENÇAS MENTAIS

Nós concebemos que dentre o conjunto (mazeway – labirinto, caminho complexo) de


“mapas” cognitivos que cada indivíduo mantém, descrevendo e interpretando o mundo tal
como o concebe, se encontra sua teoria sobre a doença/transtorno mental. Este mapa fornece
significação para a experiência, definindo os estados/as situações possíveis que uma pessoa
pode ocupar num contexto de saúde mental, relacionando tais estados/situações uns com os
outros através de diversos mecanismos de transferência, de modo a prover uma razão
suficiente para a ação. Não obstante, tal mapa pode ser concebido como possuindo três
aspectos: (1) os estados especificados; (2) os mecanismos de transferência que são
concebidos como promovendo mudanças de um estado para outro; e (3) o programa da
doença e sua recuperação que é descrita pelo sistema como um todo/total. Nós confinaremos
nossa atenção aqui ao programa do paciente tal como vivenciado por ele mesmo; seus
programas para outras pessoas, e o programa dos outros para ele, podem (ou não) ser
diferentes. Por conseguinte, nas análises a seguir a entidade a que cada descrição de um
estado se refere é constante, sendo esta entidade ego, mesmo que (o) ego seja variável tanto
no sentido de possuir propriedades diferentes nos diferentes níveis do programa, quanto no
sentido de estar “agora” em um, ou outro, destes estados na própria opinião (não
necessariamente correta) de ego. (Possibilidades interessantes de programas envolvendo
múltiplas entidades referenciais, em decorrência das complexidades lógicas de tais esquemas,
não serão consideradas aqui).
Evidentemente, é possível “conectar-se” a um programa individual numa (através de
uma) quantia bastante variada de níveis de abstração. A fim de minimizar parcialmente a não-
confiabilidade da descrição que se sucede/ocorre caso o nível de abstração não seja
(permaneça sem ser) especificado, nós consideramos útil fundamentar a análise em cinco
“etapas/estados”, que constituirão etapas de todo programa: “normalidade”,
“desconforto/irritação”, “psicose”, “em tratamento”, e “personalidade inovadora”. Estas
sempre deverão ser compreendidas enquanto as concepções do próprio sujeito sobre seus
estados possíveis e não enquanto os conceitos do observador sobre a condição do sujeito. Os
termos não são importantes; eles simplesmente apontam para/indicam/rotulam posições no
modelo. Normalidade refere-se a um estado no qual a pessoa está desempenhando a sua e a
satisfação dos outros nos papéis adequados a sua situação em sociedade. Irritadiço refere-se
ao estado em que o desempenho do papel foi reduzido a um nível de adequação mínima, com
notável desconforto pessoal, e/ou de grupo. A psicose é um estado em que o desempenho do
papel se tornou tão inadequado que a fim de reduzir o desconforto pessoal e de grupo, algum
grau de isolamento social (seja auto-imposto, ou imposto pelo grupo) deve ser instituído. Em
tratamento é um estado em que a pessoa está recebendo cuidados de especialistas, treinados
na remoção das condições responsáveis pelo desconforto pessoal, ou de grupo, e pelo retorno
do paciente à participação social plena. Personalidade inovadora é uma etapa na qual a
pessoa é novamente capaz de desempenhar os papéis com vistas à satisfação pessoal e de seu
grupo, mas papéis diferentes, num maior, ou menor grau, daqueles desempenhados num
estado N (conforme a diferença atinge um grau insignificante, P se aproxima de N). Estes
cinco estados podem ser concebidos ordenadamente num gráfico cujo ponto inicial é N, com a
“adequação/bondade” do estado decrescendo de acordo com a posição à direita de N:

N U

I T

Nós pressupomos que qualquer classificação individual de estados/etapas incluirá


estes(-tas) cinco exceto onde o conceito I é/for equivalente à N, caso em que o gráfico se
reduzirá para:

N P

T
Nós igualmente pressupomos que entre quaisquer dois estados uma a cada quatro
relações de transferência pode ser concebida: nenhuma transferência possível (simbolizada
por um espaço aberto); transferência unidimensional ( ); transferência unidimensional ( );
e transferência reversível ( ). A definição dos estados e dos mecanismos de transferência
pode normalmente ser representada não graficamente, mas em tabelas anexas a fim de evitar
confundir/desordenar o gráfico com anotações/observações escritas. O leitor observará/notará
que quaisquer dois estados podem permanecer, em relação uns aos outros, como (sendo)
objetivos positivos e negativos que dependem de seu posicionamento/posição relativa na
dimensão de/dos valores/valorativa. Por exemplo, U pode ser um objetivo negativo para uma
pessoa que está/se encontra no estado N, mas um objetivo positivo para uma pessoa num
estado P. E finalmente, a depender das circunstâncias, estados adicionais podem ser
acrescidos ao modelo caso façam parte do mundo fenomenológico do sujeito individual, ou de
sua cultura.
Uma dada teoria da doença de um paciente pode ser inferida a partir de diversos tipos
de comportamento:

1. Declarações diretas/abertas (“É preocupante que faz\as pessoas perderem a cabeça”).


2. Declarações comparativas (“Joan realmente estava doente/adoecida quando a trouxeram, mas agora ela
está aqui há algum tempo, e ela se aquietou bastante”).
3. Comportamento motor diferencial (evita determinados pacientes enquanto socializa com outros).
4. Material da história de caso (informação de que a vivência de alucinações primeiramente/inicialmente
convenceu o paciente de que ele estava gravemente doente e que precisava de auxílio psiquiátrico).

Estes, e outros dados, obtidos através de entrevistas gravadas com os pacientes e sua
família e companheiros, registros mantidos por assistentes sociais e terapeutas, observação
direta na enfermaria, e assim sucessivamente, permitem a classificação de conceitos e crenças,
e a elaboração de suas inter-relações na mazeway (estrutura cognitiva) do sujeito. O
investigador deve manter constantemente em mente que estas estruturas de crenças podem se
transformar e (isto freqüentemente é difícil) que é o sistema de crenças do sujeito (ou da
comunidade), e não a “verdadeira” condição do paciente tal como percebida pelo médico
clínico, que está sendo estudado (e caso o sistema de crenças do clínico estiver sendo
estudado, a validade das crenças do médico é tecnicamente irrelevante). O tédio de tal tarefa
não deve ser subestimado. Uma história de caso satisfatória, por exemplo, cobrindo eventos
diários durante meses antes da hospitalização, e durante a própria estadia no hospital, requer
uma checagem/avaliação ampla e uma verificação adicional (cruzada) com dezenas de fontes
de informação. O processo é comparável a compilação de dados para uma biografia.
Itens/elementos informativos discretos, selecionados a partir de diversas fontes, são
primeiramente ordenados cronologicamente e então por tópicos até que um processo
internamente coerente se apresente no qual as decisões e atitudes do sujeito estejam
demonstravelmente relacionadas à sua situação atual/efetiva e experiências passadas. Por
conseguinte, uma fonte pode revelar que numa determinada data o paciente, um católico
ritualmente fiel, foi incapaz de ir à missa; outra fonte pode demonstrar que no dia anterior, ele
tinha uma entrevista com seu pároco, que o aconselhou a exercitar sua vontade de poder e que
parasse de se entregar à autocomiseração; uma terceira fonte revela que na outra semana o
paciente foi visitar seu médico de família e recebeu uma prescrição de tranqüilizantes; e uma
quarta fonte finalmente demonstra que algum tempo durante a semana que precedeu a visita
ao padre, o paciente vivenciou um impulso ameaçador de matar/assassinar sua esposa e filho.
Estes detalhes se encaixam no padrão de um processo. Com um medo crescente e conseqüente
perda de autocontrole, o paciente, que ainda considera seu estado “irritadiço” como
moralmente incerto, procura por ajuda junto ao pároco; mas o conselho deste não o ajuda a
solucionar a incerteza, e então ele redefine sua situação como sendo de “doença”, a qual
requer atenção médica.

ILUSTRAÇÃO: UMA TEORIA ZULU DAS DOENÇAS/TRANSTORNOS MENTAIS

Entre os Zulus conhecidos por Canon Callaway na África do Sul, aproximadamente na


metade do século passado, uma teoria complexa e deveras sofisticada era sustentada e, em sua
estrutura formal, não é dessemelhante a algumas variantes da teoria psiquiátrica
contemporânea. A estrutura desta teoria é fornecida na seguinte fórmula:
A

N D U P

S T

A definição dos estados, tal como fornecida na tradução de Callaway sobre os textos
Zulu (Callaway, 1931) é tal como se segue:

N: “Robusto”, com bom apetite, não muito seletivo em relação aos alimentos.
D: “Delicado, não tendo uma doença efetiva/real, mas encontrando-se delicado”.
A: “Doente”; seletivo em relação aos alimentos; perda de apetite; sofre dores vagas; sonhos ansiosos; possuído
por espíritos de ancestrais.
U: “Doente”, seletivo em relação aos alimentos; perda de apetite; sofre de dores vagas; sonhos ansiosos;
possuído por uma classe de espíritos conhecidos como Amatongo.
P: “Um tolo, incapaz de compreender qualquer coisa”, “louco”, “não um ser humano”.
T: Adoecimento da saúde continuado, insônia, perda de peso, doenças da pele, mas esperançoso em se tornar um
xamã.
S: Boa saúde física; o estado de ser um xamã, ou inyanga, i.e., um com a “cabeça leve” que, com o auxilio de
seus espíritos familiares dentre os Amatongo, desempenha o respeitável papel social de “adivinho” (aquele que
encontra objetos perdidos e médico de pessoas possuídas).
W: “Sempre mal de saúde”, incapaz de adivinhar, mas de uma sabedoria incomum, e capaz de trabalhar.

As operações de transferência, nas medidas em que são descritas no texto de Callaway


são:

N D: Possessão inicial por Amatongo, ou espíritos ancestrais.


D A: Compleição da possessão por parte dos espíritos ancestrais.
A N: Renúncia/expulsão da possessão pelos espíritos ancestrais após haver sido exorcizado pelo
sacrifício de gado mediante a direção de xamãs.
D U: Amatongo aumenta seu controle sobre a vítima, mas se divide em dois grupos, um grupo
(sob influência de medicamentos e exorcismos através do sacrifício de gado) objetando a completa possessão e o
outro insistindo na possessão plena/completa.
U P: Bloqueio continuado “do acesso” (de entrada) do Amatongo através de exorcismo e
medicamentos ingeridos oralmente.
U T: A família do paciente, o paciente, e a comunidade, reconhecem que o Amatongo está
tentando possuir o paciente, e encerram o uso de medicamentos e do exorcismo.
T S: O paciente procura comunicação com o Amatongo em seus sonhos e em seus cantos; a
comunidade participa de seus cantos e dirige perguntas que o Amatongo deverá responder.
S W: Um “grande médico” pode “descansar/acalmar o espírito” do Amatongo na medida em que
é capaz de evitar que o paciente se torne um adivinho, mas somente à custa de deixá-lo cronicamente no estado
W.

Aspectos notáveis do modelo são, primeiramente, a importância do diagnóstico


diferencial (por um xamã) entre a possessão por ancestrais relativamente benevolentes e os
Amatongo; e em segundo lugar, a natureza irreversível da possessão por Amatongo, que
resulta num estado de demência a menos que a vítima aceite seu destino e se submeta ao curso
completo de treinamento como um inyanga.

A APLICAÇÃO DE UM MATERIAL DE CASO CLÍNICO

Na aplicação dos conceitos precedentes ao material do caso clínico, deve-se ter em


mente que a estrutura e desenvolvimento da teoria da doença de um paciente pode estar
relacionada à, mas não obstante é distinta da estrutura e do desenvolvimento da estrutura
conflituosa (“neurose”) e de seu regime terapêutico. Em um dos dois casos que nós
analisamos com alguns detalhes contando com o auxilio do modelo, nós descobrimos que este
era útil na compreensão de um impasse temporário, com uma exaltação/excesso de
comportamentos perturbados/desviantes, o qual atingiu um determinado grau na terapia. O
problema crucial do tratamento, do ponto de vista do terapeuta, era a indisposição do paciente
em aceitar em si mesmo a presença de sentimentos hostis em relação a diversos parentes
próximos. O terapeuta definia o objetivo do tratamento (I) por ser uma personalidade menos
repressiva (ou recomendando isso) e encorajava o paciente a afirmar-se e afirmar suas
necessidades mais livremente e a reconhecer que estas necessidades, e as hostilidades geradas
por sua frustração, não eram más, mas meramente humanas. O paciente era teimosamente
resistente, não meramente por causa da psicodinâmica da situação, mas também por que o
terapeuta estava sugerindo que ele, de algum modo, “atuasse/interpretasse” do mesmo modo
que seu pai psicótico antes de sua hospitalização alguns anos antes. Por conseguinte, o
terapeuta estava sugerindo ao paciente um estado I que, na teoria da doença do paciente, era
difícil de distinguir de P; A atenção consciente do paciente estava, à época, centrada num
conflito a fim de evitar entrar no estado P; portanto, as sugestões do terapeuta eram
aterrorizantes, não somente por que elas podem ter suscitado resistências inconscientes (no
sentido psicodinâmico convencional), mas por que elas os conduziam em direção a uma auto-
identificação com o pai psicótico.
A solução do impasse foi providenciada pelo desenvolvimento que este fez de um
compromisso, que o terapeuta estava disposto a aceitar, entre sua teoria original e a teoria do
terapeuta. Este compromisso assumiu a seguinte forma:

N U P

Ele firmemente reteve a crença de que o objeto de seus esforços consistia num retorno
ao seu self/sua ipseidade normal e pré-sintomática de bom marido e pai (N). Mas ele aceitou
T como um meio/uma parada necessário/a no caminho até N e como um meio de evitar o
estado alternativo P. Sua aceitação da existência e valor de T foi seguida quase imediatamente
de uma liberação para o departamento ambulatorial.

(SUA) APLICAÇÃO À CLASSIFICAÇÃO CULTURAL (DE CULTURAS)

Por causa da ubiquidade dos principais tipos de doença/transtorno mental, e por causa
da incerteza em relação à compreensão etiológica, é perigoso classificar culturas como sendo
mais, ou menos, patogênicas no que diz respeito a qualquer doença mental em particular, ou
transtornos mentais em geral. Mas é muito provável, conforme o conhecimento sobre as
causas dos transtornos mentais for ampliado, que se tornará mais fácil de discernir a relação
entre cultura e etiologia. Portanto, pode ser que no futuro seja possível considerar a
frequência, distribuição, e formas de transtornos mentais numa sociedade como índice de sua
cultura. Mas no presente momento, a despeito da popularidade/ de determinadas hipóteses
fundamentadas em pressupostos psicodinâmicos sobre a relação entre cultura e transtornos
mentais, não é feasible que se estabeleça uma classificação fundamentada em processos
etiológicos demonstrados.
Contudo, é razoável sugerir que culturas podem, mesmo fundamentando-nos nos
conhecimentos atuais, ser classificadas no que diz respeito a tais respostas culturalmente
institucionalizadas a diversos tipos de transtornos mentais, tal como no caso da taxonomia e
das definições de doença mental fornecidas pela sociedade, sua teoria, ou suas teorias, sobre a
doença, e suas técnicas de terapia e sua lógica/racionalidade inerente. Tal classificação deve,
com efeito, formar uma matriz de intercessão de uma tipologia constante de transtornos
mentais (isto é, um a tipologia definida pelo investigador e utilizada como referencial
constante para o controle das comparações culturais comparadas [transculturais]). Os tipos
assim definidos podem, então, ser investigados a fim de se discernir se existe, ou não, uma
correlação entre o tipo de resposta e outros aspectos da cultura. Se for possível demonstrar
que tais correlações existem, então ao menos respostas aos transtornos mentais poderá ser
considerado um índice da cultura (cultural).
Evidentemente, um grande número de esquemas possíveis, com graus variados de
complexidade e abstração, podem ser criados, fundamentados em diferentes tipologias
constantes e diferentes painéis de respostas alternativas. Um sistema tipológico fundamentado
nas considerações teóricas introduzidas nas seções precedentes será esboçado aqui. Para a
tipologia constante, categorias diagnósticas não Ocidentais, mas as duas dimensões
dicotômicas da gravidade e da cronicidade serão utilizadas (moderado versus severo/grave, e
intermitente versus contínuo). Para a tipologia de respostas, duas dimensões utilizadas:
interpretações episódicas versus sintomáticas da doença, e tratamento versus extrusão como
método de lidar com a doença. Estas concepções podem ser adicionalmente definidas tal
como se segue: moderação e gravidade referem-se ao grau de anormalidade/desvio do
comportamento observável em si mesmo, e não sobre sua duração, ou frequência de
ocorrência; intermitência e continuidade referem-se à metades de um contínuo, a
intermitência consistindo na metade em que o transtorno pode ser caracterizado por ataques
discretos separados por intervalos de normalidade, e continuidade como sendo a metade na
qual o transtorno pode ser caracterizado por um período disfuncional sem interrupções.
Interpretações episódicas da doença confinam a atenção apenas ao transtorno observável em
si mesmo e o consideram um episódio isolado num programa de vida essencialmente normal,
enquanto que interpretações sintomáticas constroem o transtorno observável enquanto um
sinal de uma inadequação subjacente mais séria/grave que ameaça ocorrer novamente,
possivelmente numa forma mais indesejada, em ocasiões posteriores. O tratamento enquanto
método para lidar com a doença implica numa política de tentar curar, melhorar, ou tolerar
(mesmo ignorando-se o comportamento) e fazer o melhor uso da vítima, em contraste com o
método de extrusão, que através de dispositivos tais como o confinamento,
banimento/expulsão, ou até mesmo execução tenta livrar a sociedade inteiramente de um
partícipe incompatível. As dicotomias sugeridas são, é claro, divisões de continuidades, e as
distinções são mais fáceis de serem elaboradas nos casos extremos, do que o seriam nos casos
intermediários.Por conseguinte, uma série de ataques epiléticos é fácil de ser classificada na
tipologia constante como sendo intermitente, ou severa, e um caso de medos obsessivos de
altura como sendo moderado e contínuo; mas uma dada psicose esquizofrênica pode não ser
claramente contínua, tampouco notavelmente severa, e (mas) ainda assim, se contrastada com
a epilepsia, ou com o medo de altura, requer uma classificação contínua e severa/grave.
Todo o esquema pode ser representado no diagrama que se segue:
Intermitente Contínuo

Episódico, ou sintomático Episódico, ou sintomático


Moderado
Tratamento, ou extrusão Tratamento, ou extrusão
Episódico, ou sintomático Episódico, ou sintomático
Grave
Tratamento, ou extrusão Tratamento, ou extrusão

Por conseguinte, qualquer grupo, no que diz respeito a qualquer síndrome dada, pode
ser classificado como consistindo em tratamento-episódico, episódico-extrusão (extrusivo),
tratamento-sintomático, ou sintomático-extrusão (extrusivo), dentro daquela célula que
caracteriza a síndrome com base numa tipologia constante. Se considerarmos o pibloktoq, por
exemplo, nós o classificaríamos como sendo intermitente-grave na tipologia constante, e o
manuseio (deste) realizado pelos Esquimós Polares como sendo um tratamento-episódico na
tipologia de respostas. A mesma síndrome no contexto, digamos assim, de uma das asas
operacionais (batalhões?) do Comando Aéreo Estratégico dos Estados Unidos também seria
considerada intermitente-severa/grave, mas o manuseio da condição seria considerado
sintomático-extrusão (extrusivo). E, novamente, esta mesma síndrome intermitente-grave no
contexto do campus de uma faculdade de letras e ciências humanas seria abordada ora através
de um tratamento episódico, ou sintomático.
O grande número de padrões culturais possíveis estabelecidos por este paradigma é
bastante amplo. Embora, no que diz respeito a qualquer síndrome singular/única (exclusiva),
apenas quatro tipos de respostas são considerados, sendo que para cada qual existem estas
quatro possibilidades. Por conseguinte, a quantia de padrões culturais possíveis é de 44 ou
256. Além do mais, é claro, qualquer descrição da maneira através da qual uma sociedade lida
com os transtornos mentais produzirá muitas distinções, até mesmo de tipo classificatório, que
não podem ser inclusas num esquema classificatório padronizado. Portanto, por exemplo, no
que diz respeito à classe de "tratamento", é possível se observar em qualquer descrição se a
condição em questão foi ignorada, se é reconhecida mas tolerada, ou se é diretamente
abordada por meios terapêuticos. Se a terapia for empregada, ela pode ser médica
(fisiológica), ou psicológica; e caso seja psicológica, ela pode ser secular, ou religiosa,
catártica, ou repressiva, e assim sucessivamente. Ao invés de tentar abarcar todos os 256
padrões, desconsiderando as elaborações e refinamentos adicionais desejáveis à qualquer tipo
de explicação descritiva, não obstante, parece ser útil obervar que dentre o grande número de
padrões possíveis, diversos deles destacam-se enquanto padrões de estoque (Stock) que, a
princípio, podem ser utilizados com o propósito da busca do estabelecimento da existência de
correlações entre o modo de um grupo lidar com transtornos comportamentais e outros
aspectos de sua cultura.
Quatro tipos de padrões ideais são oferecidos abaixo:

(I) Intermitente Contínuo (II) Intermitente Contínuo

Moderado Sintomático- Sintomático- Episódico- Sintomático-


Extrusão Extrusão Tratamento Tratamento
Grave Sintomático- Sintomático- Episódico- Sintomático-
Extrusão Extrusão Tratamento Extrusão
(III) Intermitente Contínuo (IV) Intermitente Contínuo

Moderado Sintomático- Sintomático- Sintomático- Sintomático-


Tratamento Tratamento Tratamento Tratamento
Grave Sintomático- Sintomático- Sintomático- Sintomático-
Extrusão Extrusão Tratamento Tratamento

Sugere-se - não tanto com a esperança de que as sugestões convencerão, tanto quanto
provocarão pensamentos e considerações nos estudos/investigações empíricos/as de que estes
quatro padrões de respostas institucionalizadas aos transtornos mentais estejam associados a
tipos definidos de estruturas sociais. O padrão I, por exemplo, parece ser característico de
grupos de elite agressivos e que buscam o poder, geralmente auto-eleitos, sejam estes
relacionados à parentesco, poder militar, político, econômico, ou religioso. Estes grupos de
elite extrude (screen out - selecionam?) todas as pessoas com anomalias comportamentais
visíveis (sintomáticas de outras incapacidades possíveis/possivelmente ainda não reveladas) a
fim de manter uma organização maximamente confiável e efetiva. O padrão II parece ser
característico de comunidades pequenas e tecnologicamente primitivas que reconhecem o
transtorno como um sintoma de uma fraqueza oculta e ameaçadora apenas quando este é
contínuo, e que recorrerá à extrusão apenas quando esta for tanto contínua, quanto
severa/grave. O padrão III parece ser característico da civilização Ocidental pré século XIX:
todos os transtornos são sintomáticos, e todos os transtornos graves requerem extrusão. O
padrão IV, por outro lado, parece caracterizar a tradição psicodinâmica na qual a tradição
psiquiátrica Ocidental do século XX, e uma grande quantia de outros sub-grupos educados
das populações Ocidentais, que consideram todos os transtornos sintomáticos, mas que
igualmente consideram que todos os transtornos devem ser tratados, ao invés de eliminados
pela extrusão.
A falta de espaço não permite uma elaboração adicional destes conceitos; mas o
suficiente já foi dito, talvez, para indicar não somente os problemas na tentativa de criar uma
taxonomia de respostas às doenças mentais com valor de indexação cultural, mas também o
possível valor de tal taxonomia no estabelecimento de relações entre respostas aos transtornos
mentais e outros aspectos da cultura. Na medida em que estes padrões de respostas possuem
uma influência sobre o curso de diversas síndromes, seja qual for sua etiologia, uma
taxonomia deste tipo pode adicionalmente apresentar alguma utilidade enquanto índice
avaliativo de eficiência social ao lidar com problemas relacionados à transtornos mentais. Nós
podemos especular, por exemplo, que um grupo cuja resposta ao transtorno comportamental
consiste em considerá-lo enquanto sintomático de uma incompetência crônica subjacente e
ameaçadora, ao invés de um episódio num programa normal de vida (vital normal), induzirá
na vítima um sentimento de sua própria inadequação que é, em si mesma, diretamente
patogênica. Nós ainda podemos especular que seus esforços ansiosos em se defender afetarão
marcadamente/de modo impressionante a forma e o curso do transtorno em si mesmo. Se
estes esforços defensivos não forem direcionados no sentido de garantir uma terapia
validamente efetiva, então a pressão patogênica das definições culturalmente
institucionalizadas sobre e respostas à doença mental não serão compensadas. Em tais casos
infelizes, mesmo que a etiologia do transtorno fosse efetiva e completamente orgânica, a
cultura estaria desempenhando um papel na contribuição do processo de adoecimento mental.

NA DIREÇÃO DE UMA TEORIA BIO-CULTURAL DOS TRANSTORNOS


MENTAIS: A INTEGRAÇÃO DAS ABORDAGENS ORGÂNICA E FUNCIONAL
Como o antropólogo cultural é capaz de relacionar suas concepções sobre a
estruturação do comportamento social com as teorias biológicas dos transtornos mentais? O
modelo de doença/transtorno mental defendido neste artigo enquanto resposta a esta questão é
essencialmente homeostático. Um sistema comportamental é considerado
perturbado/transtornado quando uma variável independente, orgânica em sua natureza,
ultrapassa determinados limites de valores; e as respostas dos diversos componentes deste
sistema podem ser construídas enquanto esforços motivados na tentativa de reestabelecimento
do equilíbrio. Estas respostas são prescritas pelo sistema em si mesmo em sua teoria sobre a
doença/transtorno. Mas a mera consideração/defesa do ideal de uma abordagem
"interdisciplinar", e pleas pelo reconhecimento da importância dos fatores biológicos e
culturais não resolverão o problema científico. Apenas uma abordagem que considere a
natureza específica da interação entre as variáveis biológicas e culturais (psicossociais) pode
possuir/apresentar alto/elevado valor preditivo/de previsão.
A natureza específica desta interação biocultural pode ser melhor investigada através
da concepção do curso total do episódio psicótico enquanto um único evento e então, analisá-
lo por etapas/estágios. Cada etapa é definida por mudanças em uma das principais dimensões
relevantes deste evento. Uma determinada quantidade de programas plausíveis pode ser
construída através de um raciocínio a priori partindo-se de diferentes pressupostos sobre a
identidade da etapa/estagio inicial. Um programa como este deriva do pressuposto (ainda não
justificado por descobertas empíricas) de que o evento inicial no episódio psicótico é a
ocorrência de uma disfunção orgânica em um, até então, indivíduo intacto (mesmo que
peculiarmente vulnerável).
Se partimos deste pressuposto, cada episódio de transtorno mental grave pode ser
dividido em quatro etapas/estágios (exclusivos às etapas terapêuticas e de reabilitação).
Na primeira etapa o organismo está funcionando normalmente.
Na segunda etapa uma interferência orgânica intermitente, ou contínua, de maior, ou
menor, gravidade com um funcionamento cerebral normal ocorre. Presumivelmente a
invariância transcultural frequentemente observada das principais entidades clínicas e a
ausência de psicoses étnicas exclusivas ocorrem por que o número de tipos de interferências
orgânicas é limitado. Muitas fontes de tais interferências são conhecidas, contudo:
hipoglicemia cerebral, ou hipoxia, transtornos eletrolíticos, grave troca/substituição de
tecidos, autointoxicação hormonal, metabólitos tóxicos, drogas, invasão viral, anomalias na
ação enzimática, e assim sucessivamente. Estas fontes imediatas, por sua vez, podem
depender de diversas causas "finais", incluindo estados de estresse psicodinamicamente e
socialmente determinados (tais como aqueles revelados pelas investigações psicanalíticas) que
podem produzir transformações temporárias, e concebivelmente, por vezes, até
transformações irreversíveis na química corporal. Fatores genéticos podem também ser
responsáveis pelas vulnerabilidades diferenciais no interior de uma população aos diversos
fatores nocivos. Por conseguinte, mesmo partindo-se de um posicionamento
orgânico/organicista é possível confortavelmente olhar para os processos psicológicos e
sociais enquanto causas "finais", particularmente se a incidência diferencial dos transtornos,
ao invés de uma compreensão dos casos individuais, for de maior interesse. Coincidindo com
as disfunções neurais ocorrem as disfunções psicológicas.. A qualidade desta
disfunção/transtorno é melhor concebida enquanto uma dificuldade relativa em organizar o
conteúdo cognitivo: dificuldade em encontrar a "significação" dos dados perceptivos,
dificuldade em manter uma estrutura de motivos, dificuldade em relacionar o afeto à
considerações "racionais". Estas dificuldades podem ser metaforicamente descritas como
sendo de-semanticação (de-semantização): A redução da matriz semântica. Este tipo de
transtorno/disfunção pode variar em gravidade desde um decréscimo quase imperceptível à
um decréscimo tão catastrófico que se aproxima ao processo de retirada do cérebro
(decerebralização), com a ocorrência da perda de contato perceptivo com o ambiente,
descargas motoras, e liberação das funções autonômicas. Num nível intermediário de
confusão moderada e inconsciência parecem estar inclusas as experiências de ausência de
sentido, descrita por alguns esquizofrênicos como um sentimento de irrealidade,
despersonalização e perda da identidade. A de-semanticação/de-semantização pode ser
brevemente episódica, como nos ataques histeriformes, ou crônica, como (aparentemente) na
esquizofrenia. Igualmente coincidindo com as disfunções neurológicas e psicológicas se
encontra uma falha comportamental primária resultante/que ocorre durante/após a de-
semantização (semanticação). Esta é uma falha/incapacidade tal como concebida pela vítima,
pelos membros de seu grupo, ou ambos, e pode ocorrer numa diversidade de setores da vida,
tanto interpessoais, quanto tecnológicos. Enquanto que a incompetência nas relações
interpessoais pode consistir na consequência mais conspícua da de-semantização
(desemantication) aos olhos do grupo, falhas técnicas no desempenho de tarefas rotineiras
essenciais, tais como caminhar/andar, navegar (paddling) um caiaque, passar roupas, preparar
alimentos, podem ocorrer primeiramente/inicialmente à percepção da própria vítima. Tais
falhas/incapacidades podem variar em sua duração e na importância social, ou individual, da
área comportamental envolvida.
Caso uma avaliação auto-negativa feita pela vítima siga os eventos da segunda etapa,
então a terceira etapa ocorrerá, caracterizada por ansiedade, depressão, ou outros afetos
negativos direcionados ao self/a si. Todas as pessoas constantemente monitoram e avaliam
sua competência na obtenção/alcance de seus objetivos, tanto através da autopercepção como
pela percepção das respostas dos outros ao seu comportamento. Uma pessoa vivenciando de-
semantização considera o desempenho de suas tarefas mais difícil e em algumas instâncias
impossível. Se a de-semantização for contínua e relativamente grave, ele será incapaz de
negar a realidade de sua perda de competência. Sua avaliação destas incapacidades, que são
uma função complexa de sua experiência atual, as respostas dos outros, e o aprendizado
passado, serão menos efetivos do que o normal precisamente por causa da própria
desemantização. Mas ela se fundamentará em partes e em cada instância, nos conceitos que
lhe estiverem disponíveis desde seu aprendizado passado sobre as interpretações
culturalmente padronizadas de experiências e incompetências específicas que ele agora
reconhece em si mesmo. Por conseguinte, ele pode interpretar as vozes que ouve e lhe causam
perplexidade enquanto revelações religiosas, enquanto um delírio acompanhado de febre,
como um resultado do excesso de trabalho, como consequência de um conflito emocional, e
assim sucessivamente, a depender do conteúdo da experiência, as reações dos outros, e as
explicações oferecidas pelo seu próprio pano de fundo cultural. Na medida em que a
autoavaliação é negativa, ele perde confiança em sua habilidade de controlar seu próprio
comportamento, de dominar (apreender/ser capaz de lidar com) seu ambiente, e a relacionar
seu comportamento sistematicamente ao dos outros.
A quarta etapa é a do dano cognitivo provocado no curso da resposta defensiva da
vítima à auto-avaliação negativa. A resposta a sua própria ansiedade e depressão é, por causa
da existência de disfunções fisiológicas, em si mesma predisposta/apta a ser/estar
desorganizada. Mas ela é desenvolvida a fim de melhorar a auto-imagem negativa e proteger a
pessoa da catástrofe, e pode, em algum grau, aliviar a ansiedade e depressão do paciente,
mesmo que à custa de um dano cognitivo na forma de alucinações paranoides, retirada/recuo
auto-limitador da sociedade, e assim sucessivamente. Parte da resposta pode ser "neurótica",
no sentido da utilização de tais mecanismos de defesa tal como negação, repressão, projeção,
supersimplificação paranoide, e assim sucessivamente. Parte disso pode consistir numa luta
impulsiva contra, ou retirada/recuo em relação à, um mundo agora/atualmente perigoso e
exaustivo. Parte disso pode ocorrer na forma da busca por ajuda. O estilo através do qual uma
pessoa tenta se defender, manter o respeito próprio, e garantir ajuda, claro está, refletirá este
aprendizado cultural.
Através do segundo, terceiro e quarto estágios/etapas, a comunidade da vítima também
está avaliando e respondendo a ele como uma "pessoa mudada/transformada". Mesmo numa
comunidade homogênea, a avaliação e resposta social pode ser consideravelmente diferente
da vítima, tanto pelo fato da de-semantização da vítima constranger seu comportamento,
quanto pelo fato de seus motivos poderem divergir daqueles do seu grupo. Se seus motivos
divergirão, ou não, de seu grupo dependerá consideravelmente da natureza destas crenças.
Logo, por exemplo, se os transtornos mentais tal como evidenciado pelas alucinações são
culturalmente definidos como uma condição degradante a qual a sociedade responde através
da extrusão social, a vítima será fortemente motivada a esconder/ocultar sua condição, a negá-
la, a recuar diante dos olhos/olhares prying e a acusar os outros de conspirar contra ele caso
lhe sejam dirigidas acusações. Se, por outro lado, a alucinação é um sinal de contato - talvez
desconfortável - com um mundo sobrenatural, e é atendida com rituais de intensificada
aceitação social, os motivos do alucinante não serão, com toda probabilidade, direcionados no
sentido da negação, ocultação, e defesa, mas no sentido de uma máxima
publicidade/publicização.
Este modelo sobre o processo de se tornar mentalmente adoecido enquanto uma
consequência imediata de disfunções neurofisiológicas ocorridas num ambiente social, podem
ser sucintamente representadas num paradigma. Tal paradigma, é claro, representa apenas
uma forma canônica, ou tipo modal. Os símbolos são lidos tal como se segue: "O" representa
o nível de função neurofisiológica do cérebro; "S" representa o nível semântico de função
psicológica; "B" representa o nível de sucesso comportamental observável no alcance dos
objetivos colocados pelo contexto social; "A" representa o nível de ansiedade, depressão e
outros afetos negativos direcionados a si/ao self/à ipseidade; e "D" representa o grau de dano
cognitivo incorrido no curso das respostas defensivas do indivíduo a sua própria auto-
avaliação negativa. O operador representa transformação/mudança patológica, ʌ representa
"e".

Etapa 0: Eufunction (Eufuncionamento) (O,S,B) ʌ (A) ʌ (D)


Caso ocorra dano físico, então:

Etapa 1: Disfunção Primária ( O, S, B) ʌ (A) ʌ (D)


Caso ocorra uma auto-avaliação negativa, então:

Etapa 2: Ansiedade e Depressão ( O, S, B) ʌ ( A) ʌ (D)


Se a ansiedade e a depressão forem graves e prolongadas, então:

Etapa 3: Dano cognitivo ( O, S, B) ʌ (A) ʌ ( D)

CONCLUSÃO

A importância dos fatores orgânicos na psicopatologia foi amplamente ignorada pela


teoria antropológica, que enfatizou os aspectos psicológicos quase exclusivamente/em sua
inteireza. Se adotarmos o ponto de vista de que os eventos orgânicos desempenham um papel
significativo na etiologia de diversos transtornos mentais, é possível perceber o papel das
diferenças culturais como sendo particularmente relevantes à etiologia via sua influência na
determinação da frequência com a qual os eventos orgânicos patogênicos ocorrem. Deste
ponto de vista também, as teorias culturalmente institucionalizadas das doenças e as terapias
aparentam ser extremamente importantes na decisão da natureza das respostas da vítima e de
seu grupo ao transtorno. Um modelo das doenças/transtornos mentais enquanto um tipo de
evento é oferecido e integra as abordagens orgânicas e psicossociais.
Podemos manter a esperança de que antropólogos que tenham a oportunidade de
proceder a observações em campo de pessoas com transtornos mentais serão futuramente
capazes de obter e registrar informações mais amplas sobre o status/a situação física e a
história das vítimas. Dados sobre nutrição, doenças infecciosas, ferimentos na cabeça, e
sintomatologia autonômica, tanto no que tange aos casos individuais, como também no que
diz respeito à comunidade como um todo, seriam úteis na descrição dos casos individuais, na
compreensão das diferenças de/entre grupos, e em colocar os freios nas atribuições
psicopatológicas demasiadamente fáceis à "estrutura social", "cultura" e "personalidade
básica".

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