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UM PASSO à FRENTE

COLLEN McCULLOUGH

DIFEL

Digitalização e Arranjo
Agostinho Costa

Este livro foi digitalizado para


ser lido por Deficientes Visuais

Em Holloman, Connecticut, alguém anda a perseguir e a matar adolescentes inocentes.


Num prestigiado centro de investigação de ciências neurológicas, coloquialmente
conhecido como "Hug", são descobertas partes do cadáver de uma jovem num dos seus
frigoríficos. Rapidamente o tenente Carmine Delmonico, da polícia local, descobre
que têm vindo a ocorrer em todo o Estado uma série de desaparecimentos, todos eles
seguindo um padrão semelhante e todos eles com um mesmo final horripilante. Com
as hierarquias de poder do Hug em tumulto e todos os membros do pessoal a
esconderem alguma coisa, Delmonico mergulha na vida e no passado de cada um deles.
É o
maior caso da sua carreira e está decidido a resolvê-lo. Mas como se encontra um
monstro que não deixa pistas e que está sempre um passo mais à frente?

UM PASSO À FRENTE

Tradução de Elsa T. S. Vieira

2ª Edição

Editorial DIFEL

Título original: On, Off

(c) 2006, por Colleen McCuUllugh

Todos os direitos de publicação desta obra em Portugal reservados por:


DIFEL Editorial, S. A.

Denominação Social Sede Social

-Avenida das Tulipas, n.o 40-C


Miraflores '
1495 Algés -Portugal
Telef.: 21 412 35 10
Fax: 21 412 35 19
E-mail: difel@difel.pt

Capa: Design de José Manuel Reis sobre fotografia de Joseph Helfenbergerl


Dreamstime

Composição: Júlio de Carvalho -Artes Gráficas

Impressão e acabamento: Tilgráfica, Braga

Paginação - Rodapé

Para Helen Sanders Brittain,


com boas recordações dos velhos tempos
e muito amor.

Parte Um

Outubro e Novembro de 1965

Capítulo Um

Jimmy acordou gradualmente, consciente ao princípio apenas de uma coisa: o frio


glacial. Tinha os dentes a bater, o corpo dorido, os dedos das mãos e dos pés
entorpecidos.
E por que não conseguia ver? Por que não conseguia ver? À sua volta a escuridão era
de breu, uma escuridão densa como nunca vira igual. À medida que despertava,
apercebeu-se também de que estava aprisionado em algo apertado, malcheiroso,
estranho. Embrulhado! O pânico instalou-se e começou a gritar, a debater-se
freneticamente
contra o que quer que fosse que o prendia. O material rompeu-se e rasgou-se mas,
quando o frio tenebroso persistiu mesmo depois de ter conseguido libertar-se, o
terror enlouqueceu-o. Havia outras coisas à sua volta, o mesmo tipo de barreiras
malcheirosas, mas por mais que gritasse, rompesse, rasgasse, não conseguia
encontrar
uma saída, não conseguia ver uma partícula de luz nem sentir uma baforada de calor.
Então gritou, rompeu, rasgou, com o coração a bater de forma ensurdecedora nos
ouvidos, o silêncio quebrado apenas pelos ruídos que ele próprio fazia.

Otis Green e Cecil Potter vieram juntos para o trabalho, depois de se encontrarem
na Eleventh Street e se terem cumprimentado com

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um grande sorriso. Eram sete da manhã, mas não era fantástico não ter de picar um
relógio de ponto? O seu local de trabalho era civilizado, caramba, quanto a isso
não havia discussão. Puseram as marmitas do almoço no pequeno armário metálico que
lhes tinham reservado para uso próprio - não havia necessidade de fechaduras,
aqui não havia ladrões. Depois começaram o trabalho do dia.
Cecil conseguia ouvir os seus bebés a chamarem por ele; dirigiu-se directamente à
porta e abriu-a, falando com eles em voz terna.
- Olá, rapazes! Como vai isso, hã? Dormiram todos bem?
A porta ainda estava a fechar-se com um silvo atrás de Cecil quando Otis começou a
tratar do trabalho menos agradável do seu dia: esvaziar o frigorífico. O balde
de plástico com rodas tinha um cheiro limpo e fresco; pôs-lhe um saco novo e
empurrou-o até junto da porta do frigorífico, uma porta de aço pesada, com um
manípulo
de pressão. O que aconteceu a seguir foi uma espécie de mancha confusa: algo passou
por ele num relâmpago quando abriu a porta, guinchando como um demónio.
- Cecil, anda cá! - gritou. - O Jimmy ainda está vivo, temos de o apanhar!
O grande macaco estava num estado de frenesim inarticulado, mas, depois de Cecil
falar um pouco com ele e lhe estender os braços, Jimmy saltou para eles, a tremer,
com os guinchos a transformarem-se em gemidos.
- Céus, Otis - disse Cecil, embalando o animal como um pai embalaria um filho -,
como é que o doutor Chandra não viu isto? O pobrezinho passou a noite inteira
fechado
no frigorífico. Pronto, Jimmy, pronto! O papá está aqui, meu querido, agora está
tudo bem!
Ambos os homens estavam chocados, e o coração de Otis batia desvairadamente, mas
não houve danos graves. O doutor Chandra ficaria contente por Jimmy afinal não ter
morrido, pensou Otis, voltando ao frigorífico. Jimmy valia cem notas das grandes.
Mesmo dois fanáticos da limpeza como Cecil e Otis não conseguiam eliminar do
frigorífico o cheiro a morte, por mais que o esfregassem

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com desinfectante e desodorizante. O fedor, não de decomposição, mas de algo mais


subtil, envolveu Otis quando este acendeu a luz, revelando o interior da câmara
de aço. Oh, raios, Jimmy tinha provocado um belo caos! Havia sacos de papel
rasgados espalhados por todo o lado, carcaças de ratos sem cabeça, com pêlos
brancos
e rígidos, caudas obscenamente nuas. E, por trás das dezenas de sacos de ratos,
dois sacos muito maiores, também rasgados. Com um suspiro, Otis foi buscar mais
sacos
a um armário e começou a arrumar a confusão criada por Jimmy. Depois de os ratos
mortos estarem de novo devidamente ensacados, enfiou o braço na câmara gelada e
puxou para a frente o primeiro dos dois sacos maiores. Tinha sido rasgado de cima a
baixo e a maior parte do seu conteúdo estava à vista. Otis abriu a boca e soltou
um grito tão agudo como o de Jimmy. Ainda estava a gritar quando Cecil saiu a
correr da sala dos macacos. Depois, sem parecer reparar em Cecil, deu meia volta e
saiu a correr da ala dos animais, ao longo dos corredores, até ao vestíbulo, saindo
pela porta da rua, as pernas a abrirem e a fecharem numa correria extenuante
ao longo de Eleventh Street, até à sua casa, no segundo andar de um velho prédio de
três andares.
Celeste Green estava a beber café com o sobrinho quando Otis irrompeu pela cozinha;
levantaram-se ambos de um salto e Wesley esqueceu por completo a sua diatribe
apaixonada sobre os crimes do homem branco. Celeste foi buscar os sais de cheiro
enquanto Wesley ajudava Otis a sentar-se numa cadeira. Quando ela voltou com o
frasco,
empurrou bruscamente Wesley para o lado.
- Sabes qual é o teu problema, Wes? Estás sempre no caminho! Se não andasses sempre
a atrapalhar o Otis, ele não diria que não prestas para nada! Otis! Otis, querido,
acorda!
O rosto de Otis, normalmente de um tom castanho quente e profundo, estava agora de
um cinzento pastoso que não melhorou quando

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os vapores de amoníaco lhe entraram pelo nariz. No entanto, acordou e afastou a


cabeça.
- O que foi? O que se passa? - estava Wesley a perguntar.
- Um pedaço de mulher - murmurou Otis.
- Um quê? - perguntou Celeste em tom cortante.
- Um pedaço de mulher. No frigorífico, no trabalho, com os ratos mortos. Uma vagina
e uma barriga. - Começou a tremer.
Wesley fez a única pergunta que, para ele, era importante.
- Era uma mulher branca ou uma mulher negra?
- Não o aborreças com isso, Wes! - gritou Celeste.
- Não era negra - disse Otis, levando as mãos ao peito. - Mas também não era
branca. Mestiça - acrescentou, escorregando pela cadeira e tombando no chão.
- Chama uma ambulância! Depressa, Wes, chama uma ambulância.
Ambulância essa que chegou rapidamente, devido a dois golpes de sorte: primeiro, o
Hospital de Holloman ficava logo ao virar da esquina e, segundo, havia pouco que
fazer a esta hora da manhã. Ainda bem vivo, Otis Green foi colocado dentro da
ambulância com a mulher agachada ao seu lado; o apartamento ficou por conta de
Wesley
le Clerc.
Mas Wesley não se demorou em casa; não quando tinha notícias destas. Mohammed el
Nesr vivia no número dezoito de Fifteenth Street, e tinha de lhe ir contar. Um
pedaço
de mulher! Não era negra, mas também não era branca. Mestiça. Isso queria dizer
negra, para Wesley, bem como para todos os membros da Brigada Negra de Mohammed.
Estava mais do que na altura de os brancos serem chamados a pagar por mais de
duzentos anos de opressão, por tratarem os negros como cidadãos de segunda
categoria,
até mesmo como animais sem almas imortais.
Quando saíra da prisão, em Luisiana, Wesley decidira vir para norte, para a casa da
tia Celeste, no Connecticut. Ansiava por construir uma reputação de negro
importante,
o que era mais fácil numa

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zona do país onde a tendência para atirar os negros para a cadeia por um mero olhar
de esguelha fosse menor do que na Luisiana. O Connecticut era onde estavam Mohammed
el Nesr e a sua Brigada Negra. Mohammed era culto, tinha um doutoramento em Direito
- ele conhecia os seus direitos! Mas, por razões que Wesley via todos os dias
quando olhava para um espelho, Mohammed el Nesr ignorava Wesley, considerava-o um
inútil. Um negro de plantação, um zé-ninguém. O que não arrefecera o ardor de
Wesley;
tencionava provar o seu valor em Holloman, Connecticut! De forma a que Mohammed um
dia o admirasse, a ele, Wesley le Clerc, negro de plantação.
Cecil Potter rapidamente descobriu o que fizera Otis sair aos gritos da ala dos
animais, mas não era homem de entrar em pânico. Não tocou no conteúdo do
frigorífico
nem chamou a polícia. Pegou no telefone e marcou o número da extensão do professor,
sabendo perfeitamente que este estaria no seu gabinete, apesar de ainda ser cedo.
Ele costumava dizer que o seu único momento de sossego era de manhã. "Mas não esta
manhã", pensou Cecil.
- É um caso triste - disse o tenente Carmine Delmonico ao seu colega uniformizado e
superior em posto, capitão Danny Marciano. - Sem outros familiares, pelo menos
que consigamos encontrar, as crianças têm de ser entregues a uma instituição.
- Tens a certeza de que foi ele?
- Absoluta. O pobre tipo tentou fazer com que parecesse que tinha sido um estranho
qualquer a entrar por arrombamento, mas lá estava a mulher dele na cama com o
amante; o amante está um bocado maltratado, mas ela está feita em carne picada...
foi ele, sem dúvida. Aposto que ainda hoje confessará voluntariamente.
Marciano levantou-se.
- Então vamos tomar o pequeno-almoço.
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O telefone dele tocou. Marciano olhou para Carmine de sobrancelhas franzidas e


atendeu. Três segundos depois o capitão da polícia estava rígido e perdera todo o
ar de satisfação.
- Silvestri! - murmurou a Carmine, e começou a acenar com a cabeça. - Claro, John.
Vou mandar o Carmine agora e o Patsy logo que puder.
- Problemas?
- Dos grandes. O Silvestri acaba de receber um telefonema do director do Hug, o
professor Robert Smith. Encontraram parte de um corpo de mulher no frigorífico dos
animais mortos.
- Meu Deus!
Os sargentos Corey Marshall e Abe Goldberg estavam a tomar o pequeno-almoço no
Malvolio's, o restaurante que os polícias usavam por ficar ao lado da sede, o
edifício
dos Serviços Municipais em Cedar Street. Carmine não se deu ao trabalho de entrar:
bateu com os nós dos dedos no vidro da montra, atrás da qual Abe e Corey estavam
a empurrar panquecas cobertas de xarope de ácer com grandes canecas de café.
"Felizardos", pensou. "Eles podem comer, eu tive de entregar o meu relatório a
Danny
e agora não tenho tempo. A antiguidade é uma chatice."
O carro que Carmine considerava seu (era, na realidade, um carro não identificado
do Departamento da Polícia de Holloman) era um Ford Fairlane com um motor V8
modificado
e amortecedores é suspensão especiais. Quando iam os três nele, era sempre Abe que
conduzia, com Corey no lugar do pendura e Carmine instalado mais à vontade, com
os seus papéis, no banco de trás. Contar a Abe e a Corey demorou meio minuto; a
viagem de Cedar Street até ao Hug menos de cinco.
Holloman ficava mais ou menos a meio da costa do Connecti-cut, com o seu vasto
porto voltado para Long Island, do outro lado

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do estreito. Fundada por puritanos dissidentes em 1632, a cidade prosperara sempre,


e não apenas devido às inúmeras fábricas existentes nos seus arredores e ao longo
do rio Pequot. Uma boa parte dos seus cento e cinquenta mil habitantes estava
ligada, de alguma forma, à Universidade Chubb, uma instituição da Ivy League(1) que
não admitia ser considerada inferior a nenhuma outra, nem mesmo a Harvard ou
Princeton. A cidade e os trajes universitários estavam inextrincavelmente ligados.
O principal campus da Universidade Chubb ocupava três lados do grande relvado. Os
edifícios, do princípio do período jorgiano e do gótico do século dezanove,
erguiam-se
lado a lado com outros de uma modernidade chocante, tolerados apenas devido aos
augustos nomes dos arquitectos ligados a cada um; mas havia também a Colina da
Ciência,
a leste, onde ficava o campos de ciências, instalado em torres quadradas de tijolo
escuro e vidro, e, do outro lado da cidade, a oeste, a Faculdade de Medicina da
Chubb.
Uma vez que as faculdades de Medicina cresciam sempre junto a hospitais, em 1965 a
tendência era para estarem situadas na parte pior de qualquer cidade. Neste
aspecto,
Holloman não era diferente. A Faculdade de Medicina da Chubb e o Hospital de
Holloman estendiam-se ao longo da Oak Street, na fronteira sul do maior dos dois
guetos
negros de Holloman, conhecido como Buraco porque ficava num buraco onde, em tempos,
existira um pântano. Para agravar os problemas dos prestadores de cuidados de
saúde, em 1960 os reservatórios de petróleo de East Holloman tinham sido
transferidos para o fundo da Oak Street, um terreno baldio entre a estrada 1-95 e o
porto.
O Centro de Investigação Neurológica Hughlings Jackson ficava em Oak Street, mesmo
em frente à residência Shane-Driver para estudantes de Medicina, constituída de
cem apartamentos para cem estudantes.

*1. Liga de instituições de ensino no Nordeste dos Estados Unidos, com reputação de
grandes feitos académicos e prestígio social. (N. da T.)

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Ao lado da Shane-Driver encontrava-se o Pavilhão Parkinson de investigação médica.


Estava voltado para o vizinho do Hug, o Hospital de Holloman, um grande edifício
de doze andares que fora reconstruído em 1950, o mesmo ano que vira o Hug ser
erigido.
- Porque é que lhe chamam Hug? - perguntou Corey, enquanto o Ford entrava na
estrada provisória que atravessava um gigantesco parque de estacionamento.
- Por serem as primeiras três letras de Hughlings, acho eu -disse Carmine.
- Hug! Não tem qualquer dignidade. Porque não as primeiras quatro letras? Assim
ficaria Hugh.
- Pergunta ao professor Smith - disse Carmine, os olhos postos no caminho.
O Hug era idêntico, embora mais baixo e pequeno, à Torre de Biologia Burke e à
Torre de Ciências Susskind, ambas situadas do outro lado do campus, na Colina das
Ciências; um edifício quadrado e atarracado de tijolo escuro, com inúmeras janelas
grandes de vidro. Ocupava 121,41 ares daquilo que fora anteriormente um bairro
de lata, demolido para dar lugar a este monumento que perpetuava o nome de um homem
misterioso que não tinha tido absolutamente nada a ver com a sua génese. Quem
diabo fora este Hughlings Jackson? Uma pergunta que toda a cidade de Holloman
fazia. Por direito, o Hug devia ter sido baptizado com o nome do seu doador, o
fabulosamente
rico e já falecido Mr. William Parson.
Uma vez que não tinham a chave do portão do parque de estacionamento, Abe deixou o
Ford em Oak Street, mesmo em frente ao edifício, o qual não tinha entrada por
esta rua. Os três homens percorreram um caminho de gravilha ao longo do seu lado
norte, até uma porta de vidro onde uma mulher muito alta os aguardava.
"É como um bloco de uma construção de crianças no meio de uma sala enorme", pensou
Carmine. Cento e vinte e um ares é muito terreno para algo com apenas trinta metros
de lado. E, merda, ela tem um bloco de notas na mão. Administrativa, não médica." A
mente de
Carmine registava automaticamente os detalhes físicos de todas as pessoas que
nadavam no seu pedaço de mar humano, mantendo-se, portanto, ocupada enquanto a
mulher
se aproximava deles: um metro e noventa descalça, trinta e poucos anos, fato azul
de calças e casaco, um pouco largo demais, sapatos rasos de atacadores, cabelo
castanho-acinzentado, um rosto com um nariz a dar para o grande e queixo
proeminente. Nunca teria chegado a Miss Holloman dez anos antes, muito menos a Miss
Connecticut.
No entanto, quando parou em frente dela, Carmine reparou que tinha olhos muito
bonitos e interessantes, de um azul especial, uma tonalidade que sempre achara
muito
bonita.
- Sargentos Marshall e Goldberg. Eu sou o tenente Carmine Delmonico - disse
secamente.
- Desdemona Dupre, gestora de operações - respondeu ela enquanto os conduzia para
um pequeno vestíbulo que, aparentemente, existia apenas para acomodar dois
elevadores.
Mas, em vez de carregar no botão para chamar o elevador, abriu uma porta na parede
oposta e introduziu-os num corredor largo.
- Este é o rés-do-chão, onde ficam as instalações de cuidados animais e as oficinas
- disse ela. O sotaque identificava-a como originária do outro lado do Atlântico.
Virou para outro corredor e apontou para um par de portas mais abaixo. - Ali está,
a ala de cuidados animais.
- Obrigado - disse Carmine. - Nós continuamos sozinhos. Por favor, espere por mim
junto dos elevadores.
Ela ergueu as sobrancelhas mas deu meia volta e desapareceu sem fazer comentários.
Carmine viu-se numa sala muito grande, com as paredes forradas de armários e
caixas. Numa área voltada para um elevador de serviço, muitas vezes maior do que os
dois do vestíbulo, erguiam-se filas de prateleiras altas com gaiolas limpas,
suficientemente grandes para um gato ou um cão. Outras tinham caixas de plástico
com
redes por cima. A sala cheirava bem, um aroma penetrante, como

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uma floresta de pinheiros, com apenas uma leve sugestão de algo menos agradável.
Cecil Potter era um homem bem parecido, alto, magro, muito bem arranjado, com um
fato-macaco branco engomado e botinas de lona. "Os seus olhos", pensou Carmine,
"sorriam muito, embora não estivessem a sorrir agora."
Uma das políticas mais importantes de Carmine, neste ano de agitação crescente, era
que as pessoas negras que encontrava no decurso do seu trabalho ou da sua vida
social fossem tratadas de forma cortês; estendeu a mão, apertou a de Cecil com
firmeza, fez as apresentações sem usar um tom seco e sem se apressar. Corey e Abe
eram os seus homens, para o que desse e viesse, e seguiram as mesmas regras de
cortesia.
- Está aqui - disse Cecil, dirigindo-se a uma porta metálica com um manípulo de
pressão. - Não toquei em nada; limitei-me a fechar a porta. - Hesitou, depois
decidiu
arriscar: -Ah... tenente, importa-se que eu volte para junto dos meus bebés?
- Bebés?
- Os macacos. Macaques. Rhesus diz-lhe alguma coisa? Bom, são eles. Estão ali
dentro e estão muito agitados. O Jimmy não pára de lhes dizer onde esteve e eles
estão
muito agitados.
- Jimmy?
- O macaco que o doutor Chandra pensava que estava morto e pôs num saco dentro do
frigorífico, ontem à noite. Na verdade, foi o Jimmy que a encontrou... virou tudo
do avesso quando acordou no escuro, cheio de frio. Quando o Otis... é o meu
assistente e faz-tudo... foi esvaziar o frigorífico, o Jimmy saiu de lá aos berros
e
aos guinchos. Depois o Otis encontrou-a, e saiu daqui a berrar ainda mais alto do
que o Jimmy. Eu espreitei e depois chamei o professor. Suponho que foi o professor
que vos chamou.
- Onde está o Otis? - perguntou Carmine.
- Se bem o conheço, foi a correr para a Celeste. É ao mesmo tempo mulher e mãezinha
dele.

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Entretanto, tinham calçado as luvas. Abe afastou o caixote da porta e Carmine


abriu-a enquanto Cecil, emitindo sons tranquilizadores, entrava na sala dos
macacos.
Um dos dois grandes sacos ainda estava ao fundo da câmara. O outro, rasgado de cima
a baixo, deixara exposta a metade inferior de um torso feminino. Quando Carmine
reparou no seu tamanho e na ausência de pêlos púbicos, sentiu um aperto no coração
- uma criança na pré-puberdade? Oh, por favor, isso não! Não fez qualquer menção
de tocar em nada; limitou-se a encostar os ombros à parede.
- Vamos esperar pelo Patrick - disse.
- Nunca senti um cheiro assim... de morte, mas não de decomposição - disse Abe,
ansioso por fumar um cigarro.
- Abe, vai à procura de Mrs. Dupre e diz-lhe que pode subir assim que os rapazes de
uniforme chegarem - disse Carmine, que conhecia bem aquela expressão. - Coloca-os
em todas as entradas e saídas de emergência. - Depois, sozinho com Corey, revirou
os olhos. - Porquê ali dentro? - perguntou.
Patrick O'Donnell esclareceu-o.
Ostentando o moderno título de Examinador Médico numa cidade que sempre tivera um
médico legista sem capacidades forenses, Patrick abraçara a Patologia porque não
gostava de pacientes que lhe respondessem, e seguira a vida de patologista público
porque isso significava muitos casos criminais, bem como todas as outras espécies
de mortes súbitas ou misteriosas. Graças à sua campanha implacável para arrastar
Holloman para a segunda metade do século vinte, Patrick conseguira delegar a um
dos seus assistentes a maior parte dos deveres do médico-legista em tribunal, e
construíra um pequeno império que abrangia muito mais do que meras autópsias.
Acreditava
na nova ciência forense e desempenhava um papel activo

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em qualquer caso que lhe interessasse, mesmo que não houvesse qualquer corpo
envolvido.
Tinha uma aparência tão irlandesa como o seu nome, desde o cabelo arruivado aos
olhos azuis-claros, mas na verdade ele e Carmine eram primos direitos, filhos de
duas irmãs de origem italiana. Uma casara com um Delmonico; a outra com um
O'Donnell. Dez anos mais velho do que Carmine, com um casamento feliz e seis
filhos, Patrick
não deixava que nenhum destes embaraços estragasse a amizade profunda que existia
entre ambos.
- Não sei muito, mas aqui está o que sei - disse Carmine, e pô-lo a par dos
detalhes. - Porquê ali dentro? - repetiu no fim.
- Porque se Jimmy, o macaco, não tivesse acordado dos mortos e tido um ataque de
pânico, aqueles dois sacos castanhos, sem qualquer etiqueta e intactos, teriam sido
deitados num receptáculo qualquer e levados para a incineradora de animais - disse
Patrick com uma careta. - É a forma perfeita de alguém se ver livre de um corpo
humano. Puf! Transformado em fumo.
Abe regressou a tempo de ouvir isto e empalideceu.
- Credo! - murmurou, horrorizado.
Depois de tirar as fotografias, Patrick transferiu o primeiro saco para uma maca
com rodas e enfiou-o dentro de um saco para cadáveres, sem o fechar. Depois
examinou
o que conseguia ver sem mexer no papel castanho rasgado.
- Não tem pêlos púbicos - disse Carmine. - Patsy, se gostas de mim, diz-me que não
é uma criança.
- Os pêlos... não estão rapados... foram arrancados, portanto ela já passou a fase
da puberdade. Mas é uma rapariga pequena. Como se o que o nosso assassino quisesse
realmente é que fosse uma criança, mas não tivesse tido coragem para levar para a
frente todos os seus desejos repugnantes. - Levantou o segundo saco, menos
destruído,
e colocou-o ao lado do primeiro. - Vou voltar para a morgue. Estou certo de que
queres o meu relatório o mais depressa possível. - O seu técnico principal, Paul,
já estava a preparar-se para aspirar o interior

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da câmara; depois, procuraria impressões digitais. - Empresta-me também o Abe e o


Corey, Carmine, e podemos deixar o Cecil prosseguir com o seu trabalho. À excepção
dos macacos, devem ter os animais de teste noutro lado... estas são as gaiolas do
dia, limpas e prontas a seguir.
- Não deixem pedra sobre pedra, rapazes - disse Carmine, seguindo o primo e a maca
com o seu macabro conteúdo para o exterior da sala.
Desdemona Dupre - que nome estranho! - estava à espera no vestíbulo, a folhear um
volumoso maço de papéis preso na sua prancha de escrita.
- Mrs. Dupre, este é o Dr. Patrick O'Donnell - apresentou Carmine.
A mulher eriçou-se!
- Não sou Mistress, sou Miss! - disse em tom seco, com o sotaque ainda mais
acentuado. - Vai subir comigo, tenente, ou posso ir? Tenho trabalho para fazer.
- Falamos mais tarde, Patsy - disse Carmine, seguindo Miss Dupre até ao elevador.
- É de... hã... Inglaterra? - perguntou-lhe enquanto subiam.
- Exacto.
- Há quanto tempo está no Hug?
- Cinco anos.
Deixaram o elevador no quarto andar, o último, embora houvesse mais um botão com a
etiqueta "telhado". Aqui percebia-se melhor a decoração interior do Hug. Era pouco
diferente do rés-do-chão: paredes pintadas de um tom creme, madeiras escuras de
carvalho, filas de lâmpadas fluorescentes no tecto, por trás de difusores de
plástico.
Seguiram ao longo de um corredor idêntico ao do primeiro andar, até uma porta
situada para lá do seu final, depois de se passar por outro vestíbulo em ângulos
rectos.
Miss Dupre bateu, uma voz mandou-a entrar e ela empurrou Carmine para os domínios
privados do professor Smith, sem entrar ela própria.

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Carmine viu-se a olhar para um dos homens mais extraordinariamente atraentes que
alguma vez conhecera. Robert Mordent Smith, regente da cadeira William Parson do
Centro de Investigação Neurológica Hughlings Jackson, media mais de um metro e
oitenta de altura, era magro e tinha um rosto inesquecível: uma estrutura óssea
fantástica,
sobrancelhas e pestanas negras, olhos azuis vivos e cabelo grisalho ondulado. Em
alguém suficientemente jovem para ainda não ter rugas, o cabelo conferia-lhe uma
aura de perfeição. O sorriso revelava dentes brancos e regulares, embora esta manhã
não chegasse àqueles olhos maravilhosos. Não era de admirar.
- Café? - perguntou ele, indicando a Carmine a grande e dispendiosa cadeira, em
frente à sua grande e dispendiosa secretária. !
- Sim, obrigado. Sem natas nem açúcar.
Enquanto o professor pedia dois cafés simples pelo intercomunicador, Carmine
inspeccionou a sala, um amplo escritório de seis metros por sete, com enormes
janelas
em duas das paredes. O gabinete do professor ocupava o canto nordeste do andar,
pelo que tinha vista para o Buraco, para a residência Shane-Driver e para o parque
de estacionamento. A decoração era cara mas despretensiosa, com mobília de nogueira
e um tapete Aubusson. Numa parede às riscas verdes havia uma exposição imponente
de certificados, diplomas e distinções académicas, e, por trás da secretária, o que
parecia ser uma cópia excelente de uma paisagem de Watteau.
- Não é uma cópia - disse o professor, seguindo o olhar de Carmine. - Tenho-o por
empréstimo da Colecção William Parson, a maior e melhor colecção de arte europeia
na América.
- Uau - disse Carmine, pensando na gravura barata de Van Gogh que tinha por trás da
sua secretária.
Uma mulher de trinta e poucos anos entrou, com um tabuleiro de prata no qual trazia
uma garrafa-termo, duas chávenas delicadas com os respectivos pires, dois copos
de cristal e uma garrafa de cristal com água fresca. Tratavam bem as visitas no
Hug, sem dúvida!

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A mulher era uma brasa vestida de forma severa, pensou Carmine, examinando-a:
cabelo preto penteado num carrapito, um rosto largo, suave, para o achatado, com
olhos
cor de avelã e um corpo magnífico. O fato de saia e casaco era de bom corte, justo,
e os sapatos eram Ferragamo de saltos rasos. O facto de Carmine saber estas coisas
podia ser atribuído a uma longa carreira numa profissão que exigia um conhecimento
íntimo de todos os aspectos do ser humano e do seu comportamento. Esta mulher
era aquilo a que a sua mãe chamaria uma devoradora de homens, embora não parecesse
ter o mínimo apetite pelo professor.
- Miss Tâmara Vilich, a minha secretária - disse o professor. Nem o mínimo apetite
por Carmine Delmonico, também! Ela
sorriu, acenou levemente com a cabeça e saiu sem se demorar.
- Duas mulheres maduras e solteiras na sua equipa - disse Carmine.
- São simplesmente fantásticas, quando é possível encontrá-las - disse o professor,
que parecia ansioso por adiar o motivo desta entrevista. - Uma mulher casada
tem responsabilidades familiares que, por vezes, tendem a interferir com o seu
horário de trabalho. As mulheres solteiras, por outro lado, entregam-se
completamente
ao trabalho... não se importam de trabalhar até tarde sem aviso prévio, por
exemplo.
- Mais combustível para o motor, estou a compreender - disse Carmine. Bebeu um gole
do café, que estava horrível. Não que estivesse à espera que fosse bom. O
professor,
observou, bebia água da graciosa garrafa, embora tivesse servido ele próprio o café
a Carmine.
- Professor, esteve na sala dos animais para ver aquilo que lá foi encontrado?
O professor empalideceu e abanou energicamente a cabeça.
- Não, não, claro que não! O Cecil chamou-me para me dizer o que o Otis tinha
encontrado e eu telefonei de imediato ao comissário Silvestri. Mas lembrei-me de
dizer
ao Cecil para não deixar entrar ninguém na sala enquanto a polícia não chegasse.

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- E já encontrou o Otis... Otis quê?


- Green. Otis Green. Parece que teve um ligeiro ataque cardíaco. De momento está no
hospital. No entanto, o cardiologista diz que não foi grave, pelo que deverá
ter alta dentro de dois ou três dias.
Carmine pousou a chávena e recostou-se na cadeira forrada, as mãos cruzadas no
colo.
- Fale-me sobre o frigorífico dos animais mortos, professor. Smith pareceu um pouco
confuso; era evidente que estava a ter
de recorrer a reservas interiores de coragem; "talvez", pensou Carmine, "o seu tipo
de coragem não fosse o melhor para lidar com uma crise envolvendo assassínio,
mas apenas comités de bolsas e investigadores ineptos. Ao longo de quantas
recepções da Chubb tive de os ouvir!"
- Bom, todos os institutos de pesquisa têm um frigorífico desses. Ou, se for uma
unidade mais pequena, partilha um com outros laboratórios próximos. Somos
investigadores
e, uma vez que por questões éticas não podemos usar seres humanos como cobaias,
usamos animais considerados abaixo de nós na escala evolucionária. O tipo de animal
depende do tipo de pesquisa... porquinhos-da-índia para investigações relacionadas
com pele, coelhos para pulmões e por aí fora. Uma vez que aqui estamos interessados
em epilepsia e atrasos mentais, e essas doenças se situam no cérebro, os nossos
animais de testes são ratos, gatos e primatas... aqui no Hug, especificamente,
macacos.
No fim de um projecto experimental, as criaturas são sacrificadas... com extremo
cuidado e bondade, apresso-me a acrescentar. As carcaças são colocadas em sacos
especiais e levadas para o frigorífico, onde ficam até às sete da manhã de cada dia
de semana. A essa hora, o Otis esvazia o frigorífico para um receptáculo e leva-o
pelo túnel até ao Pavilhão Parkinson, onde ficam as instalações principais de
cuidados animais da Faculdade de Medicina. O incinerador que crema todas as
carcaças
animais faz parte da ala de cuidados animais do Pavilhão, mas também é usado pelo
hospital, que envia membros amputados e esse tipo de coisas.

26

O tom do seu discurso é tão formal, pensou Carmine, que fala como se estivesse a
ditar uma carta importante.
- O Cecil disse-lhe como os restos humanos foram descobertos? - perguntou.
- Sim. - A expressão do professor estava a começar a parecer aflita.
- Quem tem acesso ao frigorífico?
- Qualquer pessoa aqui no Hug, embora duvide que possa ser usado por alguém do
exterior. As nossas entradas são poucas e estão trancadas.
- Porquê?
- Meu caro tenente, somos o último edifício da linha escola-hospital em Oak Street!
Por trás de nós fica o Buraco e a Eleventh Street. Uma vizinhança pouco agradável,
como deve certamente saber.
- Reparei que também lhe chama Hug, professor. Porquê?

A boca ligeiramente trágica estremeceu.


- A culpa é do Frank Watson - disse por entre os dentes.
- Quem é ele?
- Professor de Neurologia na Faculdade de Medicina. Quando o Hug abriu, em mil
novecentos e cinquenta, ele queria chefiá-lo, mas o nosso benfeitor, o falecido
William
Parson, foi inflexível no seu desejo de que esta regência fosse para alguém com
experiência em epilepsia e atrasos mentais. Uma vez que a área do Watson são as
doenças
desmielinizantes, naturalmente que não era a pessoa certa. Eu disse a Mr. Parson
que devia ter escolhido um nome mais fácil de pronunciar do que Hughlings Jackson,
mas ele estava decidido. Oh, um homem muito decidido, sempre! Claro que seria de
esperar que o nome fosse abreviado, mas pensei que lhe chamassem o Hughlings, ou
o Hugh. No entanto, Frank Watson conseguiu uma pequena vingança. Achou que seria
terrivelmente engraçado chamar-lhe o Hug, e o nome pegou. Pegou!
- Exactamente quem é ou era Hughlings Jackson, senhor?

27

- Um neurologista britânico pioneiro, tenente. A sua mulher tinha um tumor de


crescimento lento na faixa motora... o feixe anterior ao Sulco de Rolando que
representa
a extremidade cortical da função motora voluntária do corpo... ou seja, os
músculos.
"Não compreendo uma única palavra disto", pensou Carmine, en-quanto a voz
monocórdica prosseguia, "mas acham que ele se importa? Nada."
- Os ataques epilépticos de Mrs. Jackson eram de um tipo muito curioso - prosseguiu
o professor. - Limitavam-se a um lado do corpo. Começavam num lado do rosto,
desciam para o braço e mão desse mesmo lado e, finalmente, afectavam a perna. Ainda
são conhecidos como convulsões jacksonianas. A partir delas, Jackson formulou
as primeiras hipóteses sobre a função motora, sugerindo que cada parte do corpo tem
o seu lugar próprio e invariável no córtex cerebral. No entanto, o que impressionou
as pessoas foi a forma infatigável como se sentava junto ao leito da mulher
moribunda, hora após hora, tirando apontamentos sobre os seus ataques, com uma
atenção
minuciosa aos detalhes. O investigador por excelência.
- Bastante desumano, se quer saber a minha opinião - disse Carmine.
- Eu prefiro chamar-lhe dedicação - retorquiu Smith em tom gelado.
Carmine levantou-se.
- Ninguém pode sair deste edifício sem a minha permissão. Isto também o inclui a
si, senhor. Há polícia em todas as entradas, incluindo no túnel. Sugiro que não
fale a ninguém sobre o que aconteceu.
- Mas não temos cantina! - exclamou o professor. - O que hão-de as pessoas fazer em
relação ao almoço, se não tiverem trazido nada de casa?
- Um dos polícias pode tomar nota dos pedidos e ir buscar comida. - Fez uma pausa à
porta e olhou para trás. - Receio que tenhamos de recolher as impressões digitais
de toda a gente.

28

Um inconveniente pior do que o almoço, mas tenho a certeza de que compreende.


Os escritórios, laboratórios e morgue do Examinador Médico de Holloman ficavam no
edifício dos Serviços Municipais, que também albergava o Departamento da Polícia
de Holloman.
Quando Carmine entrou na morgue, viu dois pedaços de um torso feminino, encostados
um ao outro, em cima de uma mesa de autópsias metálica.
- Bem nutrida, rapariga mestiça com cerca de dezasseis anos -disse Patrick. - Ele
depilou-lhe o monte-de-vénus antes de introduzir o primeiro de vários
instrumentos...
talvez vibradores, talvez pénis ocos... é difícil dizer. Ela foi violada várias
vezes por objectos cada vez maiores, mas duvido que tenha morrido disso. Há tão
pouco
sangue nas partes que temos do corpo, que desconfio que tenha sido sangrada como um
animal abatido numa quinta. Não temos braços nem mãos, nem pernas, nem pés, nem
cabeça. Estes dois pedaços foram escrupulosamente lavados. Até agora não encontrei
vestígios de sémen, mas há tantas contusões e inchaços nessa zona... ela também
foi violada analmente... que vou precisar de um microscópio. O meu palpite é que
não vamos encontrar sémen. Ele usou luvas e possivelmente pénis ocos como
preservativos.
Se é que chegou a atingir o orgasmo.
A pele da rapariga era da encantadora tonalidade chamada café com leite, apesar de
estar descolorada pela ausência de sangue. As ancas eram largas, a cintura
estreita,
os seios lindos. Tanto quanto Carmine conseguia ver, não exibia quaisquer lesões
para além da área púbica - nem nódoas negras, nem cortes, nem golpes, nem dentadas,
nem queimaduras. Mas, sem os braços e pernas, era impossível dizer se tinha sido
amarrada.
- A mim parece-me uma criança - disse. - Não uma rapariga Crescida.

29

- Eu diria que media pouco mais de um metro e meio, no máximo. A segunda coisa mais
interessante - continuou Patrick -, é que o desmembramento foi feito por um
verdadeiro
profissional. Um único golpe, com algo como uma faca de talhante ou um bisturi, e
olha para as junções da coxa e dos ombros: desarticulação sem força nem
traumatismo.
- Patrick afastou as duas secções do corpo. - O corte transversal foi feito logo
abaixo do diafragma. A cárdia do estômago foi ligada, para impedir o derramamento
do conteúdo, e o esófago também. A desarticulação da coluna vertebral é tão
profissional como as outras. Não há sangue na aorta nem na veia cava. No entanto -
disse,
apontando para o pescoço -, a garganta foi cortada algumas horas antes de a cabeça
ter sido removida. As jugulares apresentam incisões, mas as carótidas não. Ela
deve ter-se esvaído em sangue lentamente, sem esguichar. Pendurada de cabeça para
baixo, claro. Quando ele lhe tirou a cabeça, separou-a na junção espinal entre
as vértebras C-4 e C-5, o que lhe deixou uma pequena porção de pescoço, bem como
todo o crânio.
- Quem me dera que tivéssemos pelo menos os braços e as pernas, Patsy.
- Também eu, mas desconfio que essas partes foram para o frigorífico ontem,
juntamente com a cabeça.
O que Carmine disse a seguir foi dito de forma tão segura que Patrick deu um salto.
- Oh, não! Ele ainda tem a cabeça dela. Não se vai separar disso.
- Carmine! Esse tipo de coisa não acontece! Ou, se acontece, é com algum maníaco a
oeste das Montanhas Rochosas. Estamos no Connecticut!
- Ele ainda tem a cabeça, venha ele de onde vier.
- Eu diria que ele trabalha no Hug ou, se não no Hug, noutro sítio da Faculdade de
Medicina - disse Patrick.
- Um talhante? Um funcionário de um matadouro?
- É possível.

30

- Disseste "a segunda coisa mais interessante", Patsy. Qual é a primeira?


- Aqui. - Patrick virou a parte inferior do torso e apontou para a nádega direita,
onde uma crosta escura, em forma de coração, com cerca de dois centímetros e meio,
desfigurava a pele perfeita. - Primeiro pensei que ele tivesse feito o corte aqui
de propósito... coração, amor, esse tipo de coisa. Mas não há nenhuma incisão de
molde em torno da ferida. É simplesmente um corte limpo transversal, como já vi um
homem cortar o mamilo de uma mulher. Por isso pensei se ela não teria ali um nevo,
um sinal de nascença mais alto do que a superfície da pele.
- Algo que o ofendesse, que destruísse a perfeição dela - disse Carmine com ar
pensativo. - Quem sabe? Talvez não soubesse que ela o tinha até a ter levado para
onde lhe fez as coisas horríveis que lhe fez. Depende se foi um engate casual ou se
a conhecia antes. Alguma ideia quanto aos antecedentes raciais?
- Não faço ideia, para além de ela ser mais caucasiana do que qualquer outra coisa.
Um pouco de sangue negróide ou mongolóide, ou ambos.
- Estás a presumir que era uma prostituta?
- Sem braços para procurar marcas de agulhas, Carmine, é difícil, mas esta rapariga
é... não sei, tem um ar saudável. Se fosse a ti, procurava nos arquivos de Pessoas
Desaparecidas.
- Oh, faço tenções disso - respondeu Carmine, e voltou para o Hug.
Por onde começar, tendo em conta que Otis Green só poderia ser interrogado no dia
seguinte, na melhor das hipóteses? Por Cecil Potter, então.
- Este emprego é muito bom - disse Cecil, sentado numa cadeira metálica, com Jimmy
no joelho, aparentemente indiferente ao facto

31

de o macaco estar entretido a pentear-lhe o cabelo, passando delicadamente os dedos


pela cabeleira densa numa espécie de êxtase concentrado. Jimmy, explicara Cecil,
ainda estava muito perturbado devido à provação pela qual passara. Carmine acharia
mais fácil lidar com esta cena bizarra se o grande macaco não tivesse meia bola
de ténis cravada no alto da cabeça; isso, explicara Cecil, era para proteger o
conjunto de eléctrodos implantados no seu cérebro e a tomada fêmea verde-vivo
embutida
em cimento dentário cor-de-rosa no seu crânio. Não que a meia bola de ténis
parecesse incomodar Jimmy, que simplesmente a ignorava.
- O que é que torna este emprego tão bom? - perguntou Carmine, apercebendo-se de
que tinha o estômago a roncar. Toda a gente no Hug fora alimentada mas, até agora,
Carmine continuava sem pequeno-almoço e sem almoço.
- Sou o patrão - disse Cecil. - Quando trabalhava no Pavilhão Parkinson, era apenas
mais um a limpar a porcaria. No Hug, os cuidados com os animais são comigo. Gosto
muito, principalmente porque temos os macacos. O doutor Chandra... os macacos são
dele, na verdade... sabe que eu sou o melhor tratador de macacos da costa leste,
por isso deixa-os por minha conta. Até sou eu que os ponho na cadeira para as
sessões. Eles são malucos pelas sessões.
- Não gostam do doutor Chandra? - perguntou Carmine.
- Oh, claro, gostam muito dele. Mas a mim, adoram-me.
- Alguma vez é você a esvaziar o frigorífico, Cecil?
- Algumas vezes, não muitas. Se o Otis vai de férias, contratamos um homem das
reservas físicas das instalações do P. P. O Otis não trabalha muito comigo neste
piso...
é um homem lá de cima. Muda as lâmpadas e também trata dos resíduos perigosos. Eu
consigo tratar dos animais neste piso praticamente sozinho, excepto trazer e levar
as gaiolas para outros pisos. Os nossos animais têm gaiolas limpas todos os dias,
de segunda a sexta-feira.
- Devem odiar os fins-de-semana - disse Carmine em tom solene. - Se o Otis não
trabalha muito consigo, como é que limpa as gaiolas?

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- Está a ver aquela porta ali, tenente? Vai dar à nossa lavagem de gaiolas.
Automática, como uma lavagem de carros, mas melhor. O Hug tem tudo, meu, tudo.
- Voltando ao frigorífico. Quando tem de o esvaziar, Cecil, de que tamanho são os
sacos? É estranho ver sacos tão grandes como o... ah...?
Cecil pensou, a cabeça inclinada para um lado, enquanto o macaco aproveitava a
oportunidade para espreitar para trás da orelha dele.
- Não é estranho, tenente..., senhor, mas é melhor perguntar ao Otis, ele é que é o
especialista.
- Viu alguém a pôr sacos no frigorífico, ontem, alguém que não seja habitual fazê-
lo?
- Não. Os investigadores geralmente trazem eles próprios os sacos para baixo depois
de o Otis e eu sairmos. Os técnicos também trazem sacos, mas pequenos. Sacos
de ratos. A única técnica que traz sacos grandes para baixo é Mrs. Liebman, da sala
de operações, mas ontem não trouxe nada.
- Obrigado, Cecil, foi muito útil. - Carmine estendeu a mão ao macaco. - Adeus,
Jimmy.
Jimmy estendeu a mão e apertou a de Carmine com expressão grave, os grandes olhos
amarelos tão plenos de entendimento que Carmine sentiu um arrepio. Pareciam tão
humanos.
- Ainda bem que o senhor é um homem - disse Cecil, rindo, enquanto acompanhava
Carmine à porta com Jimmy apoiado na anca.
- Porquê? :
- Os meus seis bebés são todos machos e, pá, detestam mulheres! Não suportam ter
uma mulher na mesma sala.
Don Hunter e Billy Ho estavam a trabalhar juntos nalguma espécie de aparelho
complicado, do qual estavam a retirar

33

componentes electrónicos, extensões de plexiglass e uma bomba desenhada para levar


uma pequena seringa de vidro. Tinham por perto duas canecas de café frio e cheio
de borras.
Era evidente que tinham sido ambos treinados nas forças armadas, pois, assim que
Carmine pronunciou a palavra "tenente", afastaram-se da maquineta e puseram-se
imediatamente
em sentido. Billy era de origem chinesa; tornara-se engenheiro electrónico na Força
Aérea dos Estados Unidos. Don era um inglês da zona a que chamava "o Norte" e
prestara serviço no Corpo Real de Blindados.
- Que engenhoca é essa? - perguntou Carmine.
- Uma bomba que estamos a ligar a uns circuitos para só largar um décimo de um
mililitro de trinta em trinta minutos - disse Billy.
Carmine pegou nas canecas.
- Trago-vos café fresco daquela cafeteira que vi no corredor, se me deixarem beber
uma caneca carregada de açúcar.
- Obrigado, tenente. Fique com o açucareiro inteiro. Carmine sabia que se não
introduzisse açúcar no sistema a sua
atenção começaria a dispersar-se. Detestava café demasiado doce mas, pelo menos,
isso impedia que o estômago roncasse. E, enquanto bebia, podia ter uma conversa
amigável. Billy e Don eram homens faladores, ansiosos por explicar o que faziam e
decididos a fazer os possíveis para que Carmine achasse o Hug fantástico. Billy
era o engenheiro electrónico; Don, o mecânico. Entre ambos, pintaram a Carmine um
retrato fascinante de uma vida praticamente passada a desenhar e a construir coisas
que nenhuma pessoa no seu perfeito juízo imaginaria. Porque os investigadores,
ficou Carmine a saber, não eram pessoas no seu perfeito juízo. Eram, na sua
maioria,
maníacos irritantes.
- Um investigador é capaz de dar cabo de um camião de bolas de aço - disse Billy. -
Podem ter cérebros do tamanho de Madison Square Garden e ganhar prémios Nobel
a torto e a direito, mas, céus, como conseguem ser burros! Sabe qual é o maior
problema deles?
- Não, mas ajudava - disse Carmine.

34

- Senso comum. Não têm o mínimo senso comum.


- O jovem Billy tem razão - disse Don. Ou, pelo menos, era o que parecia, por trás
do sotaque carregado.
Quando saiu, Carmine estava convencido de que nem Bill Ho nem Don Hunter tinham
deixado dois pedaços de corpo de mulher no frigorífico dos animais mortos. Se bem
que, quem quer que o tivesse feito, não fosse uma pessoa com falta de senso comum.
O departamento de neurofisiologia ficava no andar acima, o segundo. Era dirigido
pelo Dr. Addison Forbes, que tinha dois colegas, o Dr. Nur Chandra e o Dr. Maurice
Finch. Cada homem possuía um laboratório espaçoso e um gabinete amplo; por trás das
instalações de Chandra ficava a sala de operações e a respectiva antecâmara.
A sala dos animais era grande e continha gaiolas com duas dúzias de grandes gatos
machos, bem como gaiolas para várias centenas de ratos. Carmine começou por aí.
Cada gato, reparou, vivia numa gaiola imaculada, alimentado a comida enlatada e
ração, e fazia as suas necessidades num tabuleiro fundo cheio de aparas aromáticas
de cedro. Eram animais amigáveis, nem assustados nem deprimidos, e pareciam
bastante indiferentes ao facto de terem meia bola de ténis na cabeça. Os ratos
viviam
em caixas de plástico fundas, cheias de aparas mais pequenas, por entre as quais
mergulhavam como golfinhos no mar. Para dentro, para fora, à volta, enrolando as
patinhas, como mãos, nas redes que cobriam as caixas, com muito mais alegria do que
os prisioneiros humanos agarravam as grades das suas celas. Os ratos, viu Carmine,
eram felizes.
O seu guia era o Dr. Addison Forbes, que não estava muito satisfeito.
- Os gatos pertencem ao doutor Finch e ao doutor Chandra. Os ratos são do doutor
Finch. Eu não tenho animais, sou um clínico - disse.

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- As nossas instalações são excelentes - prosseguiu em tom monótono enquanto


conduzia o seu visitante pelo corredor entre a sala dos animais e os elevadores. -
Cada
andar tem uma casa de banho feminina e outra masculina - apontou -, e uma cafeteira
de café da qual o nosso lavador de copos, o Allodice, toma conta. Os gases
engarrafados
ficam neste armário, mas o oxigénio é canalizado, bem como o gás de iluminação e o
ar comprimido. O quarto tubo é para sucção de vácuo. Foi dada uma atenção especial
às ligações à terra e ao isolamento de cobre... trabalhamos em milionésimos de
volt, o que significa que os factores de amplificação que causam interferência são
um pesadelo. O edifício tem ar condicionado e o ar é minuciosamente filtrado, daí o
regulamento de não fumadores. Forbes calou-se e pareceu surpreendido.
- Os termostatos funcionam mesmo. - Abriu uma porta. - Esta é a nossa sala de
leitura e de reuniões. O que completa a visita ao andar. Vamos para o meu gabinete?
Addison Forbes, decidira Carmine ao fim de poucos instantes, era um autêntico
neurótico. Era de uma magreza seca e doentia que sugeria um maníaco do exercício
com
tendências vegetarianas. Tinha cerca de quarenta e cinco anos - a mesma idade do
professor - e poucos atractivos, se se fosse um realizador de cinema à procura de
uma nova estrela. O seu discurso era entrecortado com tiques faciais e gestos
abruptos e desprovidos de significado.
- Tive um enfarte muito grave há exactamente três anos - disse ele. - Foi um
milagre ter sobrevivido. - Era evidente que isso o obcecava, algo pouco invulgar
nos
médicos que, segundo Patrick lhe dissera, nunca pensam que eles também podem morrer
e se tornam em pacientes atrozes quando são forçados a recordar a sua própria
mortalidade. - Agora faço a correr os oito quilómetros entre o Hug e a minha casa
todas as tardes. A minha mulher traz-me de manhã e leva o fato do dia anterior.
Já não precisamos de dois carros, uma poupança muito bem vinda. Como legumes,
fruta, frutos secos e, de vez em quando, uma posta de peixe cozido ao vapor, quando

36

a minha mulher consegue arranjar algum que seja verdadeiramente fresco. E devo
dizer que me sinto maravilhosamente. - Deu uma palmada na barriga, que era tão lisa
que parecia metida para dentro. - Bom para mais cinquenta anos, ha, ha!
"Bolas!", pensou Carmine. "Acho que preferia estar morto a prescindir das gorduras
do Malvolio's. De qualquer maneira, há gente para tudo."
- Com que frequência o senhor ou o seu técnico levam animais mortos para o
frigorífico do rés-do-chão? - perguntou.
Forbes pestanejou, com ar confuso.
- Tenente, já lhe disse que sou um clínico! A minha investigação é clínica, não uso
cobaias. - Ergueu as sobrancelhas de tal forma que pareciam querer ir em direcções
opostas. - Modéstia à parte, tenho uma capacidade extraordinária para dar a cada
paciente individual a medicação anticonvulsiva exacta. É um campo onde se cometem
grandes abusos... imagine a ousadia de um médico de clínica geral qualquer, que
assume a responsabilidade de receitar ele próprio anti-convulsivos! Diagnostica um
pobre paciente como idiopático e enche-o de Dilantin e Fenobarb, e afinal o pobre
paciente tem um pico no lobo temporal do tamanho de um poste! Tch! Dirijo as
clínicas
de epilepsia na unidade de electroencefalografia do Hospital de Holloman, que está
ligada à clínica de epilepsia. Naturalmente que não lido com os eegs normais,
como deve compreender. Há outra unidade para o Frank Watson e a sua equipa
neurológica e neurocirúrgica. No que eu estou interessado é em picos, não em ondas
delta.
- Hum-hum - disse Carmine, cujo cérebro começara a tentar desligar-se a meio desta
semidiatribe. - Então, decididamente, nunca se livra de animais mortos?
- Nunca!
A técnica de Forbes, uma rapariga simpática chamada Betty, confirmou-o.
- O trabalho dele aqui tem a ver com o nível de anticonvulsivos na corrente
sanguínea - explicou em palavras que Carmine podia ter

37

alguma esperança de compreender. - A maioria dos médicos receita medicação em


excesso porque não controla os níveis de medicamentos na corrente sanguínea em
enfermidades
de longa duração, como a epilepsia. Também é a ele que as empresas farmacêuticas
pedem que teste os novos medicamentos. E tem um instinto extraordinário para
perceber
aquilo de que determinado paciente necessita. - Betty sorriu. - Na verdade, ele é
esquisito. Arte e não ciência.
"E como", pensou Carmine enquanto ia à procura do Dr. Maurice Finch, "é que hei-de
escapar-me a ser enterrado vivo debaixo desta incompreensível gíria médica?"
Mas o Dr. Finch não era homem para enterrar ninguém em gíria médica. A sua
pesquisa, explicou brevemente, estava relacionada com o movimento de umas coisas
chamadas
iões de sódio e potássio através das paredes das células nervosas durante um ataque
epiléptico.
- Trabalho com gatos - disse -, em pesquisas de longo prazo. Depois de os
eléctrodos e cânulas de perfusão terem sido implantados nos seus cérebros, sob
anestesia
geral, os animais não sofrem qualquer traumatismo. Na verdade, aguardam com
ansiedade as sessões experimentais.
Uma alma gentil, foi o veredicto de Carmine. Isso não o excluía dos suspeitos do
homicídio, claro; alguns assassinos brutais pareciam as almas mais gentis do mundo
quando os conhecíamos. Com os seus cinquenta e um anos, Finch era mais velho do que
a maioria dos outros investigadores, segundo o professor lhe dissera; ao que
parecia, a investigação era uma actividade para jovens. Era um judeu devoto e vivia
com a mulher, Catherine, numa quinta com um aviário; Catherine criava galinhas
limpas, segundo as leis judaicas. As suas galinhas mantinham-na entretida, explicou
Finch, uma vez que nunca tinham conseguido ter filhos.
- Então não vive em Holloman? - perguntou.
- Logo à entrada da fronteira do condado, tenente. Temos vinte acres. Mas não é
tudo galinhas! Sou um cultivador apaixonado

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de vegetais e de flores. Tenho um pomar de maçãs e também várias estufas.


- É o senhor que leva os seus animais mortos para baixo, doutor Finch, ou é a sua
técnica... a Patrícia?
- Umas vezes sou eu, outras a Patty - disse Finch, fitando Carmine com os grandes
olhos cinzentos, sem indícios de culpa ou perturbação. - Se bem que o meu trabalho
não requeira que sacrifique muitos animais. Quando o meu trabalho com um gato chega
ao fim, tiro os eléctrodos e as cânulas, castro-o e tento arranjar-lhe um dono.
Não lhe faço mal, compreende? No entanto, pode acontecer um gato apanhar uma
infecção no cérebro e morrer, ou simplesmente morrer de causas naturais. Nesses
casos
vão para o frigorífico lá em baixo. Geralmente sou eu que os levo... são pesados.
- Com que frequência é que os gatos morrem, doutor?
- É difícil dizer. Uma vez por mês, por vezes apenas de seis em seis meses.
- Vejo que cuida bem deles.
- Um gato - disse o Dr. Finch pacientemente - representa um investimento de pelo
menos vinte mil dólares. Tem de ter papéis que satisfaçam as várias autoridades,
incluindo a Sociedade para a Prevenção da Crueldade contra os Animais e a Sociedade
Protectora dos Animais. Depois há os custos de manutenção; o animal tem de receber
um tratamento de primeira classe, ou não sobrevive. Preciso de gatos saudáveis.
Portanto, a morte é indesejada, para não dizer mesmo exasperante.
Carmine passou ao terceiro investigador, o Dr. Nur Chandra.
Este deixou-o de boca aberta. As feições de Chandra eram nobres, as pestanas tão
compridas e espessas que pareciam falsas, as sobrancelhas finamente desenhadas e
a pele cor de marfim antigo. O cabelo preto e ondulado era curto, a condizer com as
roupas europeias, mas fora cortado por um mestre e as roupas eram de caxemira,
vicunha e seda. Uma memória enterrada veio ao de cima: este homem e a mulher eram
conhecidos como o casal mais atraente de toda a Universidade.

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Ah, já sabia quem era Chandra! Filho de um marajá qualquer, podre de rico, casado
com a filha de outro potentado indiano. Viviam em dez acres de terreno nos limites
do condado de Holloman, com um exército de criados e vários filhos, educados por
professores particulares. Segundo parecia, a pretensiosa Escola Dormer Day não era
suficientemente pretensiosa. Ou talvez receassem que as crianças apanhassem
demasiadas ideias americanas? Gozavam de imunidade diplomática, embora Carmine não
soubesse
exactamente porquê. Isso significava luvas de pelica e rezar para que não fosse ele
o assassino.
- O meu pobre Jimmy - disse o Dr. Chandra, em voz compreensiva mas sem a ternura de
Cecil quando falava de Jimmy.
- Conte-me a história do Jimmy, doutor, por favor - pediu Carmine, de olhos postos
noutro macaco que, de pernas cruzadas numa pose descontraída, estava sentado numa
complicada cadeira de plexiglass dentro de uma caixa enorme com a porta aberta. O
animal não tinha a sua bola de ténis na cabeça, deixando à vista uma massa cor-de-
rosa
de cimento dentário, na qual estava embutida uma tomada fêmea verde brilhante. Nela
fora inserida uma ficha macho também de um verde brilhante, da qual saía um cabo
composto por fios de várias cores torcidos e que iam até um painel na parede.
Presumivelmente, o painel ligava o macaco ao equipamento electrónico que contornava
a caixa em calhas de cinquenta centímetros.
- O Cecil telefonou-me ontem para me dizer que tinha encontrado o Jimmy morto
quando foi ver os macacos depois de almoço -disse o investigador, no sotaque inglês
mais esquisito que Carmine já ouvira. Não tinha nada em comum com os sotaques de
Miss Dupre ou de Don Hunter, apesar de estes serem muito diferentes entre si. Era
espantoso como um país tão pequeno podia ter tantos sotaques diferentes. - Desci
para o confirmar pessoalmente e juro-lhe, tenente, que o Jimmy estava morto. Não
tinha pulso, não respirava, não havia sons cardíacos nem reflexos e tinha ambas as
pupilas
dilatadas. O Cecil perguntou-me se queria que o doutor Schiller fizesse uma
autópsia, mas eu disse que não. O Jimmy não tinha os eléctrodos implantados há
tempo
suficiente para ter qualquer valor experimental para mim. Mas pedi ao Cecil que o
deixasse estar e disse-lhe que o veria novamente às cinco horas. Se não houvesse
alterações, eu próprio o colocaria no frigorífico. E foi o que fiz.
- E este macaco? - perguntou Carmine, apontando para o animal, que tinha a mesma
expressão de Abe quando estava morto por fumar um cigarro.
- O Eustace? Oh, é terrivelmente valioso! Não és, Eustace?
O macaco transferiu o olhar de Carmine para o Dr. Chandra e abriu um sorriso
medonho. "És um filho da mãe arrogante, Eustace", pensou Carmine.
O técnico de Chandra era um jovem chamado Hank, que acompanhou Carmine à sala de
operações.
Sônia Liebman recebeu-o na antecâmara, apresentando-se como a técnica da sala de
operações. A antecâmara estava ocupada por prateleiras de materiais relacionados
com cirurgia; continha também dois autoclaves e um cofre com um ar portentoso.
- Para os meus medicamentos de aplicação restrita - disse Mrs. Liebman, apontando
para o cofre. - Opiáceos, Pentotal, cianeto de potássio, uma data de coisas
desagradáveis.
- Entregou a Carmine um par de botinas de lona.
- Quem sabe a combinação? - perguntou ele, enquanto as calçava.
- Eu, e não está escrita em lado nenhum - disse ela com firmeza. - Se tiverem de me
levar com os pés para a frente, têm de chamar um arrombador de cofres. Se
partilharmos
um segredo, deixa de ser segredo.
A sala de operações propriamente dita parecia-se com qualquer outra sala de
operações.
- Não opero em condições completamente estéreis - disse ela, apoiando o traseiro na
mesa de operações, que estava coberta por

40 - 41
panos de linho lavados e tinha um aparelho curioso montado numa das extremidades,
com muitas varetas de alumínio, armações e botões graduados pela escala de Vernier.
Mrs. Liebman vestia um fato-macaco limpo e engomado e botinas de lona. Era uma
mulher atraente, com aproximadamente quarenta anos, magra e de ar prático. O cabelo
escuro estava preso atrás num carrapito severo, os olhos eram escuros e
inteligentes e as mãos encantadoras mostravam unhas muito curtas.
- Pensava que uma sala de operações tinha de ser estéril -disse ele.
- A limpeza escrupulosa é muito mais importante, tenente. Já vi salas de operações
mais estéreis do que um gato castrado, mas nunca ninguém as limpava.
- Então a senhora é neurocirurgiã?
- Não, sou uma técnica com um mestrado. A neurocirurgiã é uma área de homens e eles
transformam a vida das neurocirurgiãs num inferno. Mas no Hug posso fazer o que
adoro sem esse tipo de traumas. Dado o tamanho dos meus pacientes, é neurocirurgiã
muito ampliada. Está a ver aquilo? É o meu microscópio de operações Zeiss. Não
há nenhum nas salas de operações de neurocirurgiã da Chubb, nem um - disse ela com
grande satisfação.
- O que é que opera?
- Macacos para o doutor Chandra. Gatos para ele e para o doutor Finch. Ratos para
os neuroquímicos do andar de cima, e também gatos.
- Morrem muitas vezes na mesa de operações? Sônia Liebman pareceu ultrajada.
- O que acha que eu sou, uma carniceira? Não! Eu sacrifico animais para os
neuroquímicos, que raramente trabalham com cérebros vivos. Os neurofisiologistas
trabalham
em cérebros vivos. Para mim, é essa a diferença principal entre as duas
disciplinas.
- Ah... o que é que sacrifica, Mrs. Liebman?
- cuidado, Carmine, muito cuidado!

42

- Ratos, essencialmente, mas também faço descerebrações de Sherrington em gatos.


- O que é isso? - perguntou ele, escrevendo no seu bloco, mas com pouca vontade de
saber... aí vinham mais detalhes abstrusos!
- Remoção de um cérebro do lobo tentório para cima, sob anestesia com éter. Assim
que retiro o cérebro, injecto Pentotal no coração e bam! O animal morre.
Instantaneamente.
- Então coloca animais relativamente grandes em sacos que leva para o frigorífico?
- Sim, nos dias das descerebrações.
- Com que frequência ocorrem esses dias de descerebração?
- Depende. Se o doutor Ponsonby ou o doutor Polonowski pedem cérebros de gato, pode
ser de duas em duas semanas durante dois meses, três ou quatro gatos de cada
vez. O doutor Satsuma não pede com tanta frequência... talvez seis gatos, uma vez
por ano.
- De que tamanho são estes gatos descerebrados?
- Monstros. Machos com cinco a sete quilos.
Muito bem, dois andares já estavam; faltavam mais dois. Os serviços, oficinas e
neurofisiologia estavam despachados. Agora era altura de visitar as instalações
administrativas
no quarto andar, depois descer para a neuroquímica, no terceiro.
Havia três dactilógrafas médicas, todas com cursos de ciências, e uma arquivista
sem nada mais impressionante do que um diploma de liceu - como devia sentir-se
sozinha!
Vonnie, Dora e Margaret usavam grandes máquinas de escrever eléctricas ibm e
conseguiam dactilografar electroencefalografia mais depressa do que um polícia
conseguia
escrever furto. Ali não havia nada de interessante. Deixou-as a trabalhar, com
Denise, a arquivista, a fungar e a limpar os olhos enquanto espreitava para as
gavetas,
e as dactilógrafas a martelarem nas teclas como metralhadoras.
43

O Dr. Charles Ponsonby aguardava-o junto do elevador. Tinha, disse a Carmine


enquanto o escoltava até ao seu escritório, quarenta e cinco anos, a mesma idade
que
o professor, e substituía-o quando este não estava. Tinham andado juntos na Escola
Dormer Day, no liceu e no curso de Medicina na Universidade Chubb. Ambos, explicou
Ponsonby em tom grave, eram ianques(1) do Connecticut desde o início. Mas, depois
da Faculdade de Medicina, os seus caminhos tinham-se separado. Ponsonby preferira
ficar na Chubb para fazer o seu internato neurológico, enquanto Smith fora para a
John Hopkins. Não que a separação tivesse sido longa: Bob Smith voltara para
chefiar
o Hug e convidara Ponsonby ajuntar-se a ele. Isso fora em 1950, quando tinham ambos
trinta anos de idade.
"E por que é que ele terá ficado por cá?", perguntou Carmine a si próprio enquanto
estudava o chefe de neuroquímica. Charles Ponsonby era um homem de estatura média,
com cabelo castanho salpicado de cinzento, olhos azuis deslavados a espreitarem por
cima dos óculos de meia-lua empoleirados no nariz comprido e estreito, e com
o ar de um professor distraído. As suas roupas eram de tweed, puídas, tinha o
cabelo espetado, e Carmine viu que as meias eram desirmanadas: azul no pé direito,
cinzenta no esquerdo. Tudo isto podia apenas confirmar que Ponsonby era um homem
pouco aventureiro, que não vira qualquer vantagem em ir mais longe do que Holloman,
mas algo naqueles olhos húmidos dizia que ele podia ter-se tornado um homem
diferente se tivesse ido para outro lado depois de acabar o curso de Medicina. Era
uma
hipótese baseada num palpite; algo mantivera Ponsonby na sua cidade natal, algo
concreto e de peso. Mas não uma mulher, porque ele dissera, em tom indiferente,
tratar-se
de um solteirão inveterado.
Também era interessante ver os contrastes entre os escritórios dos vários homens. O
de Forbes era extraordinariamente arrumado, sem espaço para mobílias luxuosas
ou quadros nas paredes;

*1. Expressão que designa os naturais do estado de Nova Inglaterra. (N. da T.)

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Havia livros e papéis por todo o lado, até no chão. Finch gostava de plantas
envasadas e tinha até uma espantosa orquídea em flor; as paredes estavam cobertas
por
cascatas de fetos. Chandra preferia o estilo Chesterfield e cabedal, com estantes
para livros com portas de vidro e algumas peças requintadas de arte indiana. E
o Dr. Charles Ponsonby vivia ordenadamente entre artefactos sinistros, como cabeças
encolhidas e máscaras mortuárias de pessoas como Beethoven e Wagner; tinha, também,
quatro reproduções de quadros famosos nas paredes - o Cronos de Goya, a comer uma
criança, duas secções do Inferno de Bosch e o Grito de Munch.
- Gosta de arte surrealista? - perguntou Ponsonby com animação.
- Gosto mais de arte oriental, doutor.
- Tenho pensado muitas vezes que escolhi mal a minha vocação, tenente. A
psiquiatria fascina-me, em particular a psicopatia. Veja aquela cabeça encolhida...
que
crenças podem provocar uma coisa daquelas? Ou que visões terão dado origem aos meus
quadros?
Carmine sorriu.
- Não perca tempo a perguntar-me. Sou apenas um polícia. - E você, acabou com um
comentário silencioso, não é o homem que procuro. Seria demasiado óbvio.
Enquanto Ponsonby o conduzia pelos laboratórios, Carmine viu que, aqui em cima, o
equipamento era mais familiar: uma unidade de absorção atómica, um espectrómetro
de massa, um cromatógrafo de gás, centrifugadoras grandes e pequenas - o tipo de
aparelhos que Patrick tinha no seu laboratório forense, apenas mais novos e
maiores.
Patrick tinha de esticar o orçamento; aqui, gastavam sem nunca ver o fundo ao saco.
Ponsonby deu-lhe mais explicações sobre os cérebros de gato, que eram transformados
naquilo a que ele chamava "sopa de cérebro", com tanta naturalidade que a expressão
não encerrava qualquer elemento de jocosidade. Também usavam sopa de cérebro de
rato. E o Dr. Polonowski estava a conduzir experiências sobre o axónio gigante de
uma das patas de lagosta - não das grandes pinças,

45

mas das patas mais pequenas. Aqueles axónios eram enormes! Marian, que era a
técnica de Polonowski, tinha muitas vezes de passar pela peixaria no caminho para o
trabalho para comprar as quatro maiores lagostas do tanque.
- O que acontece às lagostas depois?
- São distribuídas, à vez, entre aqueles que gostam de lagosta -disse Ponsonby,
como se a pergunta não tivesse qualquer valor quando a resposta era tão óbvia. -
O doutor Polonowski não precisa do resto dos animais. Na verdade, é muito amável da
parte dele distribuí-las por todos. Sempre são as cobaias dele, podia comê-las
todas sozinho. Mas espera pela sua vez, como os outros. Excepto o doutor Forbes,
que se tornou vegetariano, e o doutor Finch, que é demasiado ortodoxo para comer
crustáceos.
- Diga-me, doutor Ponsonby, as pessoas reparam nos sacos de animais mortos? Se o
senhor visse um grande saco de animais mortos completamente cheio e reparasse nele,
o que pensaria?
Ponsonby fez uma expressão levemente surpreendida.
- Duvido que pensasse sequer nisso, tenente, porque duvido que reparasse.
Miraculosamente, Ponsonby não estava ansioso por entrar em detalhes sobre o seu
trabalho; disse apenas estar relacionado com a química de uma célula do cérebro
envolvida
no processo epiléptico.
- Até agora, todas as pessoas com quem falei parecem estar a trabalhar em
epilepsia. Há alguém a estudar o atraso mental? Pensava que no Hug se investigavam
as duas
coisas.
- Infelizmente perdemos o nosso geneticista há vários anos e o professor Smith não
encontrou ninguém adequado para o substituir. São todos atraídos por esta história
do adn, compreende. É mais excitante. - Riu-se. - A sopa deles é feita de E. coli.
E assim Carmine passou ao Dr. Walter Polonowski, uma pessoa com uma disposição
altamente irritável que não tinha nada a ver com os seus antepassados polacos;
isso,
tal como a arte de Ponsonby, teria sido demasiado simples.

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- Não é justo - disse ele a Carmine.


- O que é que não é justo, doutor?
- A divisão do trabalho por aqui. Quem tem um curso de Medicina, como eu, o
Ponsonby, o Finch e o Forbes, tem de atender os pacientes no Hospital de Holloman,
e
atender pacientes diminui o nosso tempo para investigação. Enquanto os doutorados,
como o Chandra e o Satsuma, fazem apenas investigação. Não admira que estejam
tão adiantados em relação a nós. Quando aceitei vir para aqui, o acordo era que eu
atenderia apenas pacientes que fossem atrasados idiopáticos. E o que acontece?
Herdei os pacientes com síndromas de malabsorção! - disse Polonowsky, irritado.
Oh, céus, aqui vamos nós outra vez!
- Não são atrasados, doutor?
- Sim, claro que são, mas em consequência da malabsorção! Não são idiopáticos!
- O que significa idiopático, doutor?
- É uma desordem de etiologia desconhecida... sem causa conhecida.
- Hum.
Walt Polonowski era um homem muito apresentável, alto, bem constituído, com cabelo
louro-escuro e olhos que se confundiam com a pele dourada. O tipo de homem,
calculou
Carmine, que não estava realmente a queixar-se da sobrecarga de pacientes por ser
isso que o incomodava; o que o incomodava eram emoções essenciais, como amor e
ódio. O tipo estava constantemente infeliz, via-se nas linhas do seu rosto.
Mas, tal como todos os outros, nunca reparara em nada tão mundano como um saco de
animais mortos e, muito menos, que tamanho teria um saco de animais mortos. "E
por que raio é que eu estou obcecado com sacos de animais mortos, afinal de
contas?", perguntou Carmine a si próprio. "Porque alguém muito esperto se
aproveitou
do frigorífico de animais mortos sabendo que o pessoal do Hug nunca, mas nunca,
reparava nesses sacos. É por isso, e contudo... tenho

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o pressentimento de que vem aí mais alguma coisa desagradável. Isto ainda não
acabou. Tenho a certeza, sim, tenho a certeza!"
A técnica de Polonowski, Marian, era uma rapariga bonita que disse a Carmine que
era ela quem levava os sacos do Dr. Polonowsky para baixo. Os seus modos eram
desconfiados
e defensivos, mas não por causa dos sacos de animais mortos, pensou Carmine. Esta
era uma rapariga infeliz, e as raparigas infelizes eram-no geralmente por problemas
pessoais, não devido ao local de trabalho. Os empregos eram fáceis de encontrar
para estes jovens, todos formados em ciências, alguns com pequenos projectos por
fora que contariam para um mestrado ou um doutoramento. Carmine estava disposto a
apostar que Marian, por vezes, chegava ao Hug de óculos escuros para esconder o
facto de ter passado metade da noite a chorar.
Depois dos outros, o Dr. Hideki Satsuma era fantástico. O seu inglês era perfeito e
americano; o pai, explicou, estivera na Embaixada Japonesa em Washington desde
que as relações diplomáticas tinham sido restabelecidas, depois da Guerra. Satsuma
acabara os estudos na América e os seus diplomas eram de Georgetown.
- Estou a trabalhar na neuroquímica do rinencéfalo - disse; percebeu a expressão de
incompreensão de Carmine e riu-se. - Aquilo a que por vezes se chama "o cérebro
do olfacto", a matéria cinzenta humana mais primitiva. Está muito envolvido no
processo epiléptico.
Satsuma era outro homem bem parecido; o Hug tinha sem dúvida a sua conta deles!
Também tinha feições nobres e submetera-se a cirurgia para recolher as pregas
epicantais
das pálpebras superiores, deixando assim mais visíveis os olhos negros e
brilhantes. Era bastante alto, para um japonês. Movia-se com a graciosidade de
Rudolf Nureyev
e tinha o mesmo aspecto ligeiramente tártaro. Carmine avaliou-o como uma pessoa
segura, que nunca falharia a recepção de uma bola nem deixaria cair uma proveta.
E também era simpático, o que perturbava Carmine, que passara os seus anos

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de Guerra no Pacífico e não sentia uma grande simpatia pelos japoneses.


- Tem de compreender, tenente - disse Satsuma, seriamente -, que quem trabalha num
local como o Hug não é do género muito observador, a menos que se trate do seu
próprio trabalho. Nesse caso temos uma visão de raios x melhor do que a do Super-
homem. Um saco de animais mortos de papel castanho pode saltar à vista se for uma
intrusão, mas, caso contrário, passa completamente despercebido. Uma vez que os
técnicos do Hug são muito bons, os sacos de animais mortos não são deixados por aí
onde possam incomodar. Eu nunca os levo para baixo, é o meu técnico quem trata
disso.
- Vejo que ele também é japonês.
- Sim. O Eido é o meu assistente em todos os aspectos. Ele e a mulher vivem no nono
andar do edifício Nutmeg Insurance, onde eu possuo a cobertura. Como sabe muito
bem, uma vez que também vive no edifício Nutmeg.
- Na verdade, não sabia. A cobertura tem um elevador privado. Mas já vi o Eido e a
mulher. O senhor é casado, doutor?
- Eu não! Há demasiados peixes lindos no mar para ter seleccionado um só. Sou
solteiro.
- Tem uma namorada aqui no Hug?
Os olhos negros cintilaram, mas divertidos, não irritados.
- Oh, céus, não! Como o meu pai me disse há muitos anos, só um tolo mistura
negócios com prazer.
- Uma boa regra de vida.
- Quer que eu lhe apresente o doutor Schiller? - perguntou Satsuma, sentindo que a
conversa estava terminada.
- Sim, agradeço muito.
Ora, ora, mais um borracho do Hug! Este era um viking. Kurt Schiller era o
patologista do Hug. O seu inglês tinha um leve sotaque germânico, o que justificava
sem
dúvida a expressão selvagem de desagrado que o Dr. Maurice Finch mostrara ao
mencionar o nome

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de Schiller. Não havia muita simpatia de parte a parte. Schiller era alto, esbelto,
com cabelo muito loiro e olhos azuis-claros. Havia nele qualquer coisa que irritava
Carmine, apesar de não ter nada a ver com a sua nacionalidade: o nariz sensível do
polícia farejou homossexualidade. "Se Schiller não o é", pensou, "então o meu
faro de polícia não está bom, e tenho a certeza de que está."
O laboratório de patologia ocupava o mesmo espaço da sala de operações no andar de
baixo, apenas um pouco maior graças a uma sala de animais sem gatos. Schiller
trabalhava com dois técnicos: Hal Jones, que tratava da histologia do Hug, e Tom
Skinks, que trabalhava exclusivamente nos projectos de Schiller.
- Por vezes enviam-me amostras de cérebros, do hospital - disse o patologista -,
devido à minha experiência em atrofia cortical e tecido cicatricial cerebral. O
meu trabalho envolve a procura de cicatrizes no hipocampo e no feixe uncinado.
E blá-blá-blá-blá. Nesta altura, Carmine já aprendera a desligar-se quando
começavam as palavras grandes, apesar de o problema não ser o tamanho, mas sim a
abstrusidade.
Como quando Bill Ho, o engenheiro electrónico, começara a falar de um mu magnético
inferior a um, como se Carmine soubesse automaticamente o que ele queria dizer.
"Todos falamos a nossa gíria especializada, até os polícias", pensou com um
suspiro.
Nesta altura eram seis da tarde e Carmine estava esfomeado. No entanto, o melhor
seria acabar de falar com toda a gente para poderem ir todos para casa. Depois
podia
comer à vontade. Só faltavam quatro pessoas no quarto andar.
Começou com Hilda Silverman, a bibliotecária de pesquisa, que governava uma sala
enorme cheia de estantes metálicas e armários de gavetas com livros, cartões,
ensaios,
sumários, ensaios reimpressos, artigos, excertos significativos de livros.

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- Hoje em dia, tenho os meus registos informatizados - disse ela, apontando com uma
mão mal arranjada para uma coisa do tamanho de um frigorífico de restaurante,
equipado com duas bobinas de catorze polegadas e, numa consola na parte da frente,
um teclado de máquina de escrever. - É uma grande ajuda! Acabaram-se os cartões
perfurados! Tenho muito mais sorte do que a biblioteca da Faculdade de Medicina,
sabe. Eles ainda têm de fazer tudo à antiga. Neste momento estão a montar uma
instalação
no Texas à qual poderemos aceder. Se introduzirmos palavras-chave tais como "iões
de potássio" e "convulsões", receberemos os resumos de todos os trabalhos alguma
vez escritos sobre o assunto, tão depressa quanto um telétipo os consegue imprimir.
Mais uma razão para eu ter deixado a biblioteca principal para vir para aqui
e ter o meu próprio domínio. Tenente, o Hug está a nadar em dinheiro! Embora seja
difícil estar tão longe do Keith - terminou com um suspiro.
- Keith?
- O meu marido, Keith Kyneton. Está a fazer a pós-graduação em neurocirurgia,
precisamente na outra ponta da Oak Street. Costumávamos almoçar juntos, mas agora
não
podemos.
- Então Silverman é o seu nome de solteira?
- Exacto. Tive de o manter... é mais fácil, quando todos os documentos dizem
Silverman.
Carmine calculou que ela estivesse a meio da casa dos trinta, mas talvez fosse mais
nova; a sua expressão era um pouco ansiosa. Vestia um casaco de mau corte que
já tinha visto melhores dias, sapatos gastos, e não usava qualquer jóia para além
da aliança. O cabelo castanho e ondulado estava mal cortado e preso com ganchos
feios; e os olhos castanhos, bastante bonitos, apareciam reduzidos por trás de uns
óculos de fundo de garrafa. O seu rosto, desprovido de maquilhagem, era agradável
de uma forma neutra.
"O que será que faz com que as bibliotecárias pareçam sempre bibliotecárias?",
pensou Carmine. "Os ácaros do papel? O cotão? A tinta das impressoras?"

51

- Gostava de poder ser mais útil - disse ela pouco depois -, mas na verdade não me
lembro de ter visto nenhum saco daqueles. Nunca estive sequer no rés-do-chão,
para além do átrio do elevador.
- Quem são as suas amigas?
- A Sônia Liebman da sala de operações. Mais ninguém, na realidade.
- Miss Dupre ou Miss Vilich, aqui do seu piso, não?
- Essas duas? - perguntou ela com um ar desdenhoso. - Estão demasiado ocupadas a
discutirem uma com a outra para notarem que eu existo.
Ora, ora, finalmente uma informação útil!
"E a seguir? Dupre", decidiu Carmine, e bateu à porta dela. Miss Dupre ocupava o
gabinete do canto sudeste, o que significava janelas em dois lados, uma voltada
para a cidade, a outra para sul, para o porto brumoso. Ora bem, por que é que o
professor não agarrara este gabinete? Ou teria tido receio de perder demasiado
tempo
a olhar para a vista espectacular? Miss Dupre, que definitivamente não tinha nada
de espectacular, tinha também um lado frio o bastante para conseguir resistir ao
que ficava do outro lado das janelas, pensou.
Ela levantou-se de trás da secretária e olhou-o de cima para baixo, algo que era
evidente que gostava de fazer. "Um passatempo perigoso, minha senhora. Tu também
podes ver-te reduzida à tua insignificância. Mas és uma mulher muito inteligente,
muito eficiente e muito observadora; está tudo nesses teus bonitos olhos."
- O que a trouxe ao Hug? - perguntou Carmine, sentando-se.
- Uma carta verde. Era assistente de administração numa das áreas regionais de
cuidados de saúde em Inglaterra. Era responsável por todas as instalações de
investigação
nos vários hospitais e universidades de tijolo vermelho da zona.
-Ah... universidades de tijolo vermelho?
- Aquelas para onde são enviados os estudantes da classe trabalhadora... como eu.
Não entramos em Oxford ou Cambridge, que não são de tijolo vermelho, apesar de
os edifícios mais recentes o serem.
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- O que é que não sabe sobre este lugar? - perguntou ele.


- Muito pouco.
- E sobre os sacos de papel castanho para os animais mortos?
- Já muitas pessoas, para além de mim, repararam na sua fixação inexplicável com os
sacos para os animais mortos, mas nenhum de nós faz a mínima ideia sobre o seu
significado, embora eu tenha um palpite. Por que não me conta toda a verdade,
tenente?
- Limite-se a responder às minhas perguntas, Miss Dupre.
- Então faça-me uma.
- Costuma ver os sacos dos animais mortos?
- Claro. Como gestora de operações, vejo tudo. A remessa antes da última consistia
de um produto inferior, o que me obrigou a envolver-me de forma exaustiva na
questão
- disse Miss Dupre. - No entanto, normalmente, nunca os vejo, muito menos quando
estão ocupados por um cadáver.
- A que horas o Cecil Potter e o Otis Green acabam o trabalho?
- Às três da tarde.
- Toda a gente sabe disso?
- Com certeza. De tempos a tempos, isso desperta as queixas de um dos
investigadores... por vezes partem do princípio de que o mundo inteiro existe
apenas para satisfazer
as suas necessidades. -As suas sobrancelhas claras ergueram-se. - A resposta que
lhes dou é que Mr. Potter e Mr. Green têm o horário necessário para cuidar dos
animais.
Os ritmos circadianos dos animais requerem atenção três ou quatro horas depois do
nascer do Sol. As tardes são menos importantes, desde que estejam bem fornecidos
de comida e as suas instalações estejam limpas.
- Que outras tarefas tem o Otis a seu cargo, para além dos cuidados com os animais?
- O dia de Mr. Green é maioritariamente ocupado com as suas obrigações nas salas
dos animais dos pisos de cima; as suas outras tarefas não são muito exigentes.
Trata
do transporte de coisas pesadas, manutenção da iluminação e tratamento dos resíduos
perigosos.

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Talvez o surpreenda saber que as técnicas do sexo feminino pedem a Mr. Green que
lhes vá buscar os cilindros de gás. Costumávamos deixar as raparigas tratarem
disso,
até que um cilindro foi acidentalmente derrubado e o conteúdo pressurizado escapou-
se. Não houve danos, mas se não fosse um gás inerte... - pareceu pesarosa. - Também
há ocasiões em que um dos investigadores tem de trabalhar com substâncias que
emitem radiações gama. Isso exige que se ergam barreiras de tijolos de chumbo...
muito
pesados.
- Estou surpreendido por neste edifício, que mais parece o Hil-ton, não estar tudo
canalizado.
Ela levantou-se e olhou para ele de cima.
- Tem mais alguma coisa a perguntar-me, tenente?
- Não. Obrigado pelo seu tempo.
"Como é que hei-de cair nas boas graças dela?", pensou enquanto percorria o
corredor até ao gabinete de Tâmara Vilich. "É uma fonte de informações de que estou
muito
necessitado."
O gabinete da secretária do professor tinha uma porta que comunicava directamente
com o escritório dele, reparou Carmine quando entrou.
- Por acaso sabe - perguntou Tâmara Vilich em tom ligeiramente azedo -, que deixar-
nos para o último lugar me causou sérios inconvenientes? Estou atrasada para um
compromisso.
- É o preço do poder - disse Carmine, sem se sentar. - Sabe, já ouvi hoje mais
linguagem afectada e gíria técnica do que oiço geralmente em meses. Também foi um
inconveniente para mim, Miss Vilich. Sem pequeno-almoço, sem almoço e, até agora,
sem jantar.
- Então despache-se! Tenho de sair!
Desespero na sua voz? Interessante.
- Costuma ver os sacos dos animais mortos, minha senhora?
- Não, não costumo - olhou com irritação para o relógio. - Raios!
- Nunca?
- Não, nunca!

54

- Nesse caso pode seguir para o seu compromisso, Miss Vilich. Muito obrigado.
- Estou demasiado atrasada! - gritou, em desespero. - Demasiado atrasada!
Mas já tinha desaparecido, a correr, ainda antes que Carmine pudesse bater à porta
de comunicação.
O professor parecia mais preocupado do que nessa manhã; talvez, pensou Carmine,
porque entretanto não acontecera nada que acalmasse a sua ansiedade ou satisfizesse
a sua curiosidade.
- Tenho de informar o conselho directivo - disse Smith antes que Carmine tivesse
oportunidade de falar.
- Conselho directivo?
- Esta é uma instituição financiada por fundos privados, tenente, e supervisionada
por um conselho superior. Pode dizer-se que todos temos de trabalhar pelos nossos
benefícios. A generosidade do conselho directivo é directamente proporcional à
quantidade de trabalho verdadeiramente original e significativo que o Hug produz.
A nossa reputação é ímpar, o Hug tem de facto feito a diferença. E agora acontece
esta... esta... esta singularidade] Um evento aleatório que tem a capacidade de
afectar drasticamente a qualidade do nosso trabalho.
- Um evento aleatório, professor? Não chamo aleatório a um homicídio. Mas deixemos
isso de lado, por um momento. Quem faz parte desse conselho?
- O William Parson morreu em mil novecentos e cinquenta e dois. Deixou dois
sobrinhos no controlo do seu império: Roger Júnior e Henry Parson. O Roger Júnior é
director-geral
do conselho. O Henry é o seu vice-director. Os filhos deles, Roger III e Henry
Júnior, também são membros do conselho. O quinto membro é Richard Spaight, director
do Banco Parson e filho da irmã de William Parson. O presidente Macintosh, da
Chubb, é um dos directores, bem como o decano de Medicina, o doutor Wilbur Dowling.
Eu, como professor regente, sou o último - disse Smith.

55

- Isso dá uma forte maioria ao contingente Parson. Devem ser muito autoritários.
Smith pareceu espantado.
- Não, de forma alguma! Pelo contrário! Desde que continuemos a produzir o trabalho
brilhante que temos feito nos últimos quinze anos, temos praticamente carta branca.
O testamento do Wil-liam Parson era muito específico. "Quem paga com amendoins só
arranja macacos" era uma das suas expressões preferidas. Portanto pagamos bastante
bem no Hug, e os nossos investigadores são infinitamente mais brilhantes do que os
macacos lá de baixo. Daí a minha preocupação com esta singularidade, tenente.
Parte de mim continua a insistir que não passa de um sonho.
- Professor, o corpo é real e a situação é real. Mas vamos mudar de assunto por um
instante. - Carmine fez uma expressão que a maioria das pessoas considerava
desarmante.
- O que se passa entre Miss Dupre e Miss Vilich?
Smith franziu o rosto comprido.
- É assim tão óbvio?
- Para mim, é. - Não havia necessidade de mencionar Hilda Silverman.
- Durante os primeiros nove anos de existência do Hug, a Tâmara foi, ao mesmo
tempo, minha secretária e gestora de operações. Depois casou-se. Garanto-lhe que
não
sei absolutamente nada sobre o marido, excepto que, poucos meses depois, a deixou.
Enquanto estiveram juntos, a qualidade do trabalho dela foi terrivelmente afectada.
Em resultado, o conselho directivo decidiu que necessitávamos de uma pessoa
qualificada para tratar das questões negociais.
- O marido de Miss Vilich era um Huguita?
- O termo correcto é "Hugger", tenente - disse Smith, como se estivesse a mastigar
lã. - A farpa do Frank Watson cravou-se profundamente. Se há os Chubbers, diz
ele, então também deve haver os Huggers. E não, o marido não era um Hugger nem um
Chubber - disse,

56

com um suspiro. - Para ser perfeitamente sincero, ele levou a pobre rapariga a
fazer um desfalque. Nós resolvemos o assunto internamente e não demos seguimento à
questão.
- Surpreende-me que o conselho não tenha insistido para que a despedisse.
- Eu não podia fazer uma coisa dessas, tenente! Ela veio trabalhar comigo depois de
sair da Escola de Secretariado Kirk, aqui em Holloman, e nunca teve outro emprego.
- Outro enorme suspiro. -No entanto, era inevitável que, quando Miss Dupre
chegasse, a Tâmara se virasse contra ela. Uma pena. Miss Dupre é excelente no seu
trabalho...
muito melhor do que a Tâmara era, para ser honesto! Tem licenciaturas em
administração médica e em contabilidade.
- Uma mulher dura. Talvez elas se dessem melhor se Miss Dupre fosse uma rapariga
mais feminina, não?
O professor não mordeu o isco; preferiu dizer:
- Miss Dupre é muito apreciada em todos os outros quadrantes. Carmine olhou para o
relógio.
- Está na altura de o deixar ir para casa, professor. Muito obrigado pela sua
cooperação.
- Não pensa de facto que o cadáver tem alguma coisa a ver com o Hug e com o meu
pessoal, pois não? - perguntou o professor, enquanto acompanhava Carmine pelo
corredor.
- Penso que o cadáver tem tudo a ver com o Hug e com o seu pessoal. E, professor,
adie a sua reunião com o conselho até à próxima segunda-feira, por favor. A partir
de agora, tem toda a liberdade para explicar a situação a Mr. Robert Parson Júnior
e ao presidente Macintosh, mas a transmissão de informação acaba aí. Não há
excepções,
nem para mulheres, nem para colegas.
Encontrando-se ao lado do edifício dos Serviços Municipais, o restaurante
Malvolio's tinha todo o interesse em estar aberto vinte

57

e quatro horas por dia. Talvez por tantos dos seus clientes vestirem de azul-
escuro, a decoração fazia lembrar um prato Wedgewood azul-claro, com donzelas,
grinaldas
e arabescos de gesso branco para quebrar o azul. Corey e Abe há muito que tinham
ido para casa quando Carmine estacionou o Ford em frente ao restaurante, entrou
e pediu rolo de carne com molho e puré de batata, uma salada com tempero Green
Goddess e duas fatias de tarte de maçã à casa.
Finalmente de estômago cheio, foi a pé para casa. Tomou um longo duche, atirou-se,
nu, para cima da cama, e não se recordava sequer de ter tocado com a cabeça na
almofada.
Hilda Silverman chegou a casa e viu que Ruth já fizera o jantar: costeletas de
porco guisadas, às quais não se dera ao trabalho de tirar a gordura, puré de batata
instantâneo, uma salada de alface mole e transparente devido ao molho italiano
aplicado demasiado cedo, e um bolo de chocolate congelado para sobremesa. "Pelo
menos
eu não tenho problemas em manter a linha", pensou Hilda; o milagre é como o Keith
consegue não engordar, porque ele adora a comida da sua mamã. É praticamente o
único vestígio que ainda lhe resta das suas origens pobres e saloias. Não, Hilda,
sê justa! Ele adora a mãe, tanto como adora os cozinhados dela.
Não que ele estivesse presente. O seu prato, embrulhado em folha de alumínio,
estava em cima de uma panela de água que Ruth deixaria em lume brando até o filho
chegar,
mesmo que isso fosse às duas ou três da manhã.
Hilda não gostava da sogra, que ainda continuava a ser provocantemente pobre e
saloia, mas estavam unidas por Keith. Os ciúmes não tinham nada a ver com o
assunto.
Keith era tudo, pura e simplesmente. Se Keith preferia que as pessoas não
conhecessem as suas origens, a mãe não tinha qualquer problema em relação a isso,
pois
morreria por ele, tão alegremente como a própria Hilda.

58

Ruth fazia uma grande diferença no conforto de Keith e Hilda, pois a sua presença
permitia que Hilda mantivesse o seu emprego muito bem pago. Melhor ainda, Ruth
gostava mesmo de viver numa casa horrível e num bairro horrível; recordava-lhe (a
ela e a uma parte de Keith) a sua velha casa em Dayton, Ohio. Outro local onde
as pessoas enchiam os quintais com máquinas de lavar mortas e cadáveres de carros
ferrugentos. Tão húmido, tão deprimente e tão frio como Griswold Lane, em Holloman,
Connecticut.
Keith e Hilda viviam na pior casa de Griswold Lane porque a renda era muito baixa,
o que lhes permitia poupar a maior parte dos salários de ambos (o dela era o dobro
do dele). Keith, agora que acabara o internato e estava a marcar passo num pós-
doutoramento, planeava adquirir uma quota numa clínica de neurocirurgia lucrativa,
de preferência em Nova Iorque. A monotonia mal paga da medicina académica não era
para Keith Kyneton! Mãe e mulher lutavam heroicamente para o ajudar a alcançar
essa ambição. Ruth era uma sovina nata, que achava o J. C. Penney's
escandalosamente caro e comprava os legumes de anteontem no supermercado; Hilda
poupava em coisas
tão triviais como um corte de cabelo, não comprava um par de travessões mais
bonitos e aguentava estoicamente os óculos de fundo de garrafa. Por outro lado, as
roupas
e o carro de Keith tinham de ser os melhores, e o trabalho dele tornava obrigatória
a despesa descomunal das suas lentes de contacto. O que Keith queria, Keith tinha
de ter.
Nesse momento, precisamente quando Ruth e Hilda se estavam a sentar à mesa, Keith
entrou, e, com ele, o Sol, a Lua, as estrelas e todos os anjos do paraíso. Hilda
saltou para o abraçar e aninhou a cabeça debaixo do queixo dele. Oh, ele era tão
alto, tão... tão fantástico!
- Olá, querida - disse ele, com um braço à volta dela e inclinando-se por cima da
sua cabeça para dar um beijo à mãe. - Olá, mãe, o que é o jantar? Cheira-me às
tuas costeletas de porco!
- É isso mesmo, filho. Senta-te que eu vou buscar o teu prato.

59

E assim sentaram-se à volta da pequena mesa quadrada da cozinha, Ruth e Keith


devorando com gosto a refeição gordurenta e semi-instantânea, Hilda comendo com
pouco
apetite.
- Hoje tivemos um homicídio - disse Hilda, partindo uma costeleta.
Keith ergueu os olhos, demasiado ocupado para comentar; Ruth pousou o garfo e olhou
para ela.
- Não me digas! - exclamou. - Um homicídio a sério?
- Bom, um corpo, pelo menos. Foi por isso que cheguei tão tarde. Havia polícia por
todo o lado e não deixaram ninguém sair, nem para almoçar. Por alguma razão,
deixaram
o quarto andar para o fim, apesar de não fazer sentido... como é que alguém no
último andar havia de saber alguma coisa sobre um corpo encontrado nos cuidados
animais
no primeiro andar? - Hilda bufou com indignação e conseguiu tirar o resto da
gordura da sua costeleta.
- Não se fala de outra coisa no hospital e na faculdade - disse Keith, com uma
pausa para se servir de mais duas costeletas. -Estive todo o dia na sala de
operações
mas, até lá, o anestesista e a enfermeira instrumentista não se calavam com o
assunto. Como se um aneurisma bifurcado na artéria cerebral central não fosse o
suficiente!
Depois o radiologista entrou com a notícia de outro aneurisma na artéria basilar,
portanto o nosso trabalho foi provavelmente para nada.
- Mas com certeza que a angiografia mostrou isso antes de começarem?
- A basilar não encheu devidamente e o Missingham só viu as películas quando já
estávamos quase a acabar... estava em Boston. O assistente dele não encontraria o
próprio traseiro com as duas mãos dentro dos calções, quanto mais um aneurisma numa
artéria basilar mal cheia! Desculpa, mãe, mas foi um dia frustrante. Nada correu
bem.
Hilda fitou-o com olhar doce e expressão adoradora. Como é que alguma vez
conseguira captar a atenção de Keith Kyneton? Era

60

um mistério, mas um mistério pelo qual estaria grata para sempre. Ele era todos os
seus sonhos reunidos numa pessoa só, desde a altura e o cabelo claro e ondulado,
aos lindos olhos cinzentos, os ossos esculpidos do rosto, o corpo musculado. E era
tão encantador, tão eloquente, tão adorável! Não esquecendo que era também um
neuro-cirurgião altamente competente, que escolhera uma boa especialização:
aneurismas cerebrais. Até há bem pouco tempo, os aneurismas eram inoperáveis e
representavam
uma sentença de morte, mas, agora que a neurocirurgia tinha técnicas de
congelamento do corpo e o coração podia ser parado durante alguns preciosos
minutos, enquanto
o aneurisma era extraído, o futuro de Keith estava garantido.
- Vá lá, conta-nos os pormenores - disse Ruth, de olhos a brilhar.
- Não posso, Ruth, porque não sei nada. A polícia foi muito reservada e o tenente
que falou comigo podia dar aulas de discrição a um padre católico. A Sônia disse-me
que o achou muito inteligente e muito bem-educado, e percebo o que ela quis dizer.
- Como é que ele se chamava?
- Um nome italiano qualquer.
- Como todos os polícias, não é? - disse Keith, rindo.
O professor Bob Smith estava em casa com a mulher, Eliza. Tinham acabado de jantar
e os rapazes estavam a fazer os trabalhos de casa.
- Isto vai causar problemas.
- Com o conselho, é o que queres dizer? - perguntou ela, servindo-lhe mais café.
- Sim, com o conselho, mas mais no trabalho, querida. Sabes bem como eles conseguem
ser temperamentais! O único que não me aborrece é o Addison. Esse está feliz
por estar vivo, as suas ideias
61

sobre anticonvulsivos são tão interessantes para ele como para mim e desde que
nenhum do seu equipamento se avarie, vive satisfeito. Embora eu não consiga
perceber
como é que alguém pode correr oito quilómetros por dia e estar feliz. Complexo de
Lázaro - sorriu, o que fez maravilhas pelo seu rosto já atraente. - Oh, como ele
ficou perturbado quando lhe disse que estava fora de questão vir a correr para o
trabalho todas as manhãs! Mas conseguiu controlar a irritação. Ela riu-se, com um
som agradável.
- Devia ter-lhe ocorrido que o cheiro do seu odor corporal depois de uma corrida
dessas não faria dele o companheiro de trabalho ideal. - Depois ficou séria. - É
da pobre mulher dele que tenho mais pena.
- A Robin? Aquela mosquinha morta? Porquê?
- Porque o Addison Forbes a trata como uma criada, Bob. Sim, é verdade! O trabalho
que ela tem para encontrar comida que ele queira comer! E ter de lavar aquelas
roupas malcheirosas... ela não tem vida própria.
- Isso parece-me bastante trivial, querida.
- Sim, suponho que sim, mas ela é... bom, não é a pessoa mais inteligente do mundo,
e o Addison faz questão que ela o saiba. Já o apanhei a olhar para ela de lado
e fiquei arrepiada... juro que ele a odeia, odeia-a mesmo!
- Isso pode acontecer, quando um estudante de Medicina tem de casar com uma
enfermeira para sobreviver - disse Smith em tom seco. - Não há igualdade
intelectual
e, depois de ele atingir os seus objectivos, ela torna-se um embaraço.
- És tão snobe.
- Não, pragmático. E tenho razão.
- Bom, talvez tenhas alguma razão, mas ainda assim é uma atitude cruel - disse
Eliza com convicção. - Quer dizer, até na própria casa ela é excluída! Têm um
torreão
fantástico, com uma varanda com vista para o porto, e ele não a deixa ir lá acima!
O que é aquilo, a câmara do Barba Azul?

62

- Evidência do desmazelo dela e da obsessão dele por ordem. Eu não te deixo entrar
na cave, não te esqueças.
- E não ouvirás queixas minhas nesse aspecto, mas acho que és demasiado duro com os
rapazes. Eles já passaram há muito a idade da destruição. Por que não os deixas
ir lá abaixo?
Ele cerrou os maxilares e a sua expressão endureceu.
- Os rapazes estão permanentemente proibidos de ir à cave, Eliza.
- Nesse caso não é justo, porque passas lá em baixo todos os segundos livres que
tens. Devias passar mais tempo com eles, portanto deixa-os partilhar a tua mania.
- Gostava que não te referisses a isto como uma mania!
Eliza mudou de assunto; ele ostentava agora aquela expressão obstinada, não ia dar-
lhe ouvidos.
- Este homicídio é realmente um problema sério, Bob? Quer dizer, não pode de
maneira alguma ter qualquer coisa a ver com o Hug.
- Eu concordo, querida, mas parece que a polícia pensa de maneira diferente -
lamentou-se Smith. - Acreditas que tiraram as impressões digitais a toda a gente?
Ainda
bem que somos um laboratório de investigação. A tinta saiu bem com xileno.
Walt Polonowsky disse à mulher, em tom desagradável:
- Viste o meu casaco de xadrez encarnado?
Ela fez uma pausa nos seus afazeres na cozinha, com Mikey à anca e Esther agarrada
à saia, e olhou para ele com um misto de desdém e exasperação.
- Por amor de Deus, Walt, não pode ser já outra vez época de caça! - retorquiu.
- Está mesmo ao virar da esquina. Vou lá acima à cabana este fim-de-semana, para a
preparar... e isso significa que preciso do meu casaco e não consigo encontrá-lo
porque não está no sítio dele.

63

- Nem tu. - Ela colocou Mikey na cadeirinha alta e Esther numa cadeira com uma
almofada gorda, depois gritou a chamar Stanley e Bella. - O jantar está pronto!
Um rapaz e uma rapariga entraram a correr, gritando que estavam esfomeados. A mamã
era uma grande cozinheira que nunca os obrigava a comer coisas de que não gostavam
- nem espinafres, nem cenouras, nem couves, a menos que fosse em salada.
Walter sentou-se numa das extremidades da mesa comprida, Paola na outra, onde podia
enfiar colheradas de papa na boca de Mikey, aberta como o bico de um pássaro,
e corrigir as maneiras de Esther à mesa, que ainda estavam longe de ser perfeitas.
- A outra coisa que não suporto - disse, assim que começaram a comer -, é o teu
egoísmo. Seria fantástico ter um sítio onde levar os miúdos no fim-de-semana, mas
não, é a tua cabana, e nós ficamos a assobiar para o ar... Stanley, não estava a
dar-te licença para assobiares!
- Tens razão quando dizes que a cabana é minha - respondeu ele friamente, cortando
a excelente lasanha com um garfo. - O meu avô deixou-me a cabana, Paola... a mim,
e apenas a mim. É o único sítio para onde posso fugir desta confusão!
- Da tua mulher e dos teus quatro filhos, é isso que queres dizer?
- Sim, é isso.
- Se não querias quatro filhos, Walt, por que é que não deste um nó nessa coisa?
Não dancei o tango sozinha.
- Tango? O que é isso? - perguntou Stanley.
- Uma dança sexy - respondeu a mãe bruscamente.
Uma resposta que, por alguma razão inexplicável para Stanley, pôs o pai a rir às
gargalhadas.
- Cala-te! - resmungou Paola. - Cala-te, Walt!
Ele limpou os olhos, pôs mais um pedaço de lasanha no prato de Stanley e
reabasteceu também o seu.

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- Vou para a cabana na sexta-feira à noite, Paola, e só volto segunda-feira de


madrugada. Tenho uma tonelada de coisas para ler e Deus sabe que não consigo ler
nada
nesta casa!
- Se pelo menos largasses essa investigação estúpida e arranjasses lugar num bom
consultório particular, Walt, poderíamos viver numa casa suficientemente grande
para doze crianças sem destruir a tua paz! - Tinha os olhos grandes e castanhos
húmidos com lágrimas de irritação. - Conseguiste uma reputação fantástica por
lidares
com todas essas doenças estranhas e maravilhosas com nomes de pessoas... Wilson,
Huntington, não me peças que me lembre de todos!... e eu sei que recebeste ofertas
de consultórios privados em sítios muito melhores do que Holloman... Atlanta,
Miami, Houston... sítios quentes. Sítios onde as empregadas domésticas são baratas.
As crianças podiam ter aulas de música, eu podia voltar à universidade...
Ele deu uma palmada violenta na mesa. As crianças ficaram em silêncio, trémulas.
- E como é que sabes que eu tive ofertas, Paola? - perguntou em tom ameaçador.
Ela empalideceu, mas enfrentou-o.
- Deixas as cartas por aí, estou sempre a encontrá-las em todo o lado.
- E pelos vistos a lê-las. E ainda te admiras de eu ter de sair daqui? A minha
correspondência é particular, percebes? Particular]
Walt atirou com o garfo, empurrou a cadeira para trás e saiu intempestivamente da
cozinha. A mulher e os filhos seguiram-no com os olhos, depois Paola limpou a cara
suja de Mikey e levantou-se para ir buscar o gelado e a gelatina.
Havia um velho espelho na parede ao lado do frigorífico; Paola apanhou um vislumbre
do seu reflexo e sentiu as lágrimas transbordarem. Oito anos tinham sido
suficientes
para transformar uma jovem cheia de vida e muito bonita, com um corpo fantástico,
numa mulher magra e vulgar que parecia mais velha do que realmente era.

65

Oh, a alegria de conhecer Walt, de cativar Walt, de caçar Walt! Um médico


extraordinariamente competente, tão brilhante que em pouco tempo seria rico. Não
contara
fora com o facto de Walt não ter a mínima intenção de abandonar a medicina
académica - até um canalizador ganhava mais do que ele! E os filhos continuavam a
aparecer.
A única forma que tinha de impedir um quinto filho era pecar - Paola estava a tomar
A Pílula.
Sabia que estas discussões eram totalmente destrutivas. Perturbavam as crianças,
perturbavam-na a ela, e estavam a fazer com que Walt procurasse cada vez mais
frequentemente
a cabana - ela nunca a vira, sequer! Nem veria. Walt recusava-se a dizer-lhe onde
era.
- Uau, gelado de caramelo! - gritou Stanley.
- Gelado de caramelo não combina com gelatina - disse Bella, que era a mais
esquisita.
Pelos seus próprios padrões, Paola era uma boa mãe.
- Preferes a gelatina e o gelado em taças separadas, querida?

O Dr. Hideki Satsuma entrou no seu apartamento, na cobertura do edifício mais alto
de Holloman, e sentiu o stress do dia deslizar-lhe dos ombros.
Eido viera para casa mais cedo do que ele, arranjara tudo tal como o seu mestre
gostava, e depois descera dez andares até ao apartamento muito menos elegante onde
vivia com a mulher.
A decoração era enganadoramente simples: paredes revestidas a cobre martelado;
portas aos quadrados, de madeira preta e papel delicado; um biombo muito antigo,
com
desenhos de mulheres inexpressivas, de olhos rasgados, com penteados armados e
sombrinhas delicadas; um simples pedestal de pedra negra polida, sobre o qual
estava
uma flor perfeita numa jarra Steuben; soalhos brilhantes de madeira negra.

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O jantar, sushi frio, estava posto na mesa laçada a preto colocada num vão
rebaixado e, quando se dirigiu ao quarto, encontrou o seu quimono aberto sobre a
cama,
vapor a erguer-se do jacuzzi e
ofuton aberto.
Limpo, alimentado e relaxado, aproximou-se então da parede de vidro que dava para o
pátio e ficou parado a absorver a sua perfeição. Construí-lo representara uma
grande despesa, mas o dinheiro era um bem com o qual Hideki não tinha de se
preocupar. Era tão belo, dentro do apartamento, onde em tempos fora uma área aberta
de
jardim no telhado. Do lado do pátio, as paredes eram transparentes. O conteúdo do
mesmo era escasso, ao ponto de ser austero. Alguns bonsai de coníferas, um alto
cipreste de Hollywood crescendo numa espiral dupla, um bonsai de ácer japonês
incrivelmente antigo, talvez duas dúzias de rochas de vários tamanhos e feitios e
seixos
multicolores dispostos num padrão complexo que não se destinava a ser pisado. Aqui
as forças do seu universo privado uniam-se da forma mais apropriada ao seu bem-
estar.
Mas, esta noite, com as pontas dos dedos ainda a cheirarem levemente a xileno ao
seu nariz extraordinariamente sensível, Hideki Satsuma olhou para o pátio com a
certeza de que o seu universo privado fora abalado nas fundações; tinha de alterar
a posição dos vasos, das pedras, dos seixos, para neutralizar este desenvolvimento
profundamente perturbante. Um desenvolvimento que estava fora do seu controlo, dele
que tinha uma necessidade de controlar tudo. Ali... ali, onde aquele regato cor-de-
rosa
serpenteava entre os seixos de jade cintilantes... E ali, onde a pedra cinzenta
aguda se erguia como a lâmina de uma espada em frente da curva terna e vulvar da
pedra vermelha fendida... E ali, onde a dupla espiral do cipreste de Hollywood se
afunilava em direcção ao céu... De súbito estava tudo errado, tinha de começar
de novo.
Pensou melancolicamente na sua casa de praia na ponta de Cape Cod, mas o que lá
acontecera recentemente exigia um período de recuperação. Além disso, a viagem era
demasiado longa, mesmo

67

no seu Ferrari cor-de-vinho, pelos ermos nocturnos. Não, essa casa tinha um
objectivo diferente e, embora estivesse ligada à deslocação do seu universo, o
epicentro
da perturbação estava no seu pátio de Holloman.
Poderia esperar até ao fim-de-semana? Não, não podia. Hideki Satsuma pressionou a
campainha que chamava Eido.

Desdemona irrompeu pelo seu apartamento, no segundo andar de um prédio de três


apartamentos em Sycamore Street, perto do Buraco. A sua primeira paragem foi na
casa
de banho, onde preparou um banho quente e se livrou dos vestígios da caminhada de
três quilómetros até casa. Depois entrou na cozinha, abriu uma lata de guisado
irlandês e outra de arroz-doce; Desdemona não era boa cozinheira. Os olhos, que
surpreenderam Carmine por achá-los bonitos, não repararam no linóleo picado nem no
papel de parede a descolar aos cantos; Desdemona não vivia para confortos
materiais.
Finalmente, vestida com um roupão de flanela axadrezada, de homem, dirigiu-se à
sala, onde o seu adorado trabalho se encontrava num grande cesto de verga em cima
de uma mesinha ao lado da sua poltrona preferida, em cujas molas partidas nem
reparou. Franziu a testa, enfiou a mão no cesto e procurou o longo pedaço de seda
onde
estava a bordar um pano de aparador para Charles Ponsonby - deixara-o logo em cima,
não deixara? Sim, deixara, tinha a certeza disso! Não havia caos na vida de
Desdemona
Dupre; tudo tinha o seu lugar e residia nele. Mas o bordado não estava ali. Em vez
disso, encontrou uma pequena bola de cabelos pretos, curtos e frisados. Pegou-lhe
e estudou-a. Nesse momento viu o seu pano, com os vermelhos quentes, caído no chão
por trás da poltrona.
Largou os cabelos, apanhou o bordado e abriu-o para ver se sofrera algum dano, mas,
embora um pouco amarrotado, estava intacto. Que estranho!

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Depois, ao ocorrer-lhe a resposta, pressionou os lábios. Aquele senhorio


bisbilhoteiro que vivia no apartamento de baixo andara a meter o nariz onde não era
chamado.
Mas que podia fazer em relação a isso? A mulher dele era tão simpática; e ele
também, à sua maneira. E em que outro local encontraria um apartamento
completamente
mobilado por setenta dólares por mês, num bairro seguro? Os cabelos foram para o
caixote do lixo na cozinha e Desdemona instalou-se, com os pés debaixo do corpo,
na grande poltrona, para continuar aquilo que, secretamente, considerava ser o
melhor bordado que alguma vez fizera. Um padrão curvo e complicado de vários tons
de vermelho, do rosado ao quase negro, num fundo de seda cor-de-rosa claro.
Mas que se lixasse o senhorio! Merecia que lhe montasse uma armadilha.

Tâmara estava cansada do quadro, a sua imaginação incapaz, pela primeira vez, de
imaginar um rosto suficientemente feio, suficientemente aterrorizador. Surgiria,
mas não esta noite. Não tão pouco tempo depois do desastre desse dia. Aquele
polícia insolente, Delmo-nico, o seu passo impetuoso, os ombros tão largos que
faziam
com que parecesse muito mais baixo do que era, o pescoço tão largo que, noutra
pessoa qualquer, a cabeça pareceria mirrada - mas não a dele. Era enorme. E
contudo,
por mais que tentasse, de olhos fechados e dentes cerrados, não conseguia imaginar
o rosto dele com uma fisionomia porcina. E, depois de ele a ter feito faltar ao
seu compromisso, queria muito pintá-lo como o porco mais feio de toda a Criação.
Não conseguia adormecer, e que mais lhe restava para fazer? Ler um dos seus
policiais pela milionésima vez? Deixou-se cair numa grande poltrona de cabedal
magenta
e estendeu a mão para o telefone.
- Querido? - perguntou, quando uma voz ensonada atendeu.

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- Já te disse para nunca me ligares para aqui! Clique. A linha voltou ao sinal de
chamada.
Cecil estava deitado na cama, com a face apoiada no belo seio de Albertia, tentando
esquecer o terror de Jimmy.
Otis escutava o bip-bip ritmado do seu próprio coração, com as lágrimas a
escorrerem pelo rosto enrugado. Não podia voltar a pegar em tijolos de chumbo, a
enfiar
cilindros de gás num carrinho de mão, a empurrar gaiolas para dentro do elevador.
De quanto seria a sua pensão?
Wesley estava demasiado excitado e feliz para conseguir dormir. Como Mohammed se
endireitara ao ouvir a notícia! De súbito, o aspirante pacóvio da Luisiana ganhara
importância; ele, Wesley le Clerc, recebera a incumbência de manter Mohammed el
Nesr informado sobre o homicídio de uma mulher negra no Hug. Estava a caminho do
topo.
Nur Chandra exilara-se na sua vivenda, onde apenas ele e o seu criado, Misrarthur,
alguma vez entravam. Estava sentado, de pernas cruzadas, mãos nos joelhos com
as palmas voltadas para cima, cada dedo posicionado de modo preciso. Não dormia,
mas também não estava acordado. Estava num local diferente, num plano diferente.
Havia monstros para banir, monstros terríveis.

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Maurice e Catherine Finch estavam sentados na cozinha, a estudarem as contas.


- Cogumelos uma ova! - disse Catherine. - Custam mais do que aquilo que vais ganhar
com eles, Maurie, e as minhas galinhas não
os vão comer.
- Mas é uma coisa diferente para fazermos, querida! Tu própria disseste que escavar
o túnel tinha sido um bom exercício e, agora que está feito, o que temos a perder
se tentarmos? Variedades exóticas, para algumas lojas exclusivas de Nova Iorque.
- Vai custar uma data de dinheiro - disse ela teimosamente.
- Cathy, não estamos assim tão apertados! Não temos filhos... por que havemos de
nos preocupar com o dinheiro? O que é que as tuas sobrinhas e os meus sobrinhos
vão fazer com esta propriedade, hã? Vendê-la, Cathy, vendê-la! Por isso vamos
divertir-nos com ela ao máximo enquanto podemos.
- Está bem, está bem, planta lá os teus cogumelos! Mas depois não digas que eu não
te avisei!
Ele sorriu e apertou-lhe a mão áspera. ! - Prometo que não me queixarei se falhar,
mas não acredito que
isso vá acontecer!

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Capítulo Dois

O dia de Carmine começou no gabinete do comissário John Silvestri, onde se sentou


no centro de um semicírculo de cadeiras voltadas para a secretária. A sua esquerda
estavam o capitão Danny Marciano e o sargento Abe Goldberg, à sua direita o doutor
Patrick O'Donnell e o sargento Corey Marshall.
Carmine agradeceu às suas estrelas da sorte, e não pela primeira vez, pelos dois
homens que eram seus superiores na hierarquia.
Moreno e atraente, John Silvestri era um polícia de secretária, sempre fora um
polícia de secretária, e esperava com toda a confiança poder dizer quando se
reformasse,
daí a cinco anos, que nunca puxara da pistola de serviço numa desordem, muito menos
disparara uma espingarda ou uma caçadeira. O que era estranho, uma vez que se
alistara no Exército dos Estados Unidos em 1941, como tenente, e saíra em 1945
coberto de condecorações, incluindo a Medalha de Honra. O seu hábito mais irritante
tinha a ver com os charutos, que chupava mais do que fumava, deixando um rasto de
beatas pegajosas que emanavam um odor que Carmine achava que devia ser semelhante
ao emitido por um escarrador num saloon de 1890 em Dodge City.
Perfeitamente consciente de que Danny Marciano era quem mais odiava as beatas dos
seus charutos, Silvestri adorava empurrar

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o cinzeiro para debaixo do nariz arrebitado de Marciano; o sangue de italiano do


Norte dera a Marciano uma tez clara e sardenta e olhos azuis, e o facto de estar
sentado atrás de uma secretária dera-lhe uns quilos a mais. Era um bom segundo
comandante, a quem faltava a paciência astuciosa para chegar a comissário.
Ambos deixavam a Carmine e aos seus dois tenentes o verdadeiro trabalho de polícia,
ignoravam as pressões políticas dos professores, dos estudantes e da capital
do estado, e os seus homens podiam contar com eles para sair sempre em sua defesa.
Que Carmine era o preferido de ambos, toda a gente o sabia; esse facto praticamente
não gerava qualquer ressentimento, porque o que significava, na prática, era que
Carmine ficava sempre com os casos mais sensíveis, aqueles que requeriam diplomacia
ou colaboração com outras agências da autoridade. Ele era também o homem principal
do departamento para os casos de homicídio.
Carmine tinha acabado o primeiro ano na Universidade Chubb quando Pearl Harbor fora
atacada, pelo que adiara a sua educação para se alistar. Por puro acaso, fora
destacado para a polícia militar e, depois de passar pelo serviço de guarda e pelas
detenções de soldados embriagados, descobrira que adorava o trabalho; havia tantos
crimes violentos ou astuciosos no fervilhante exército em tempo de guerra como nas
ruas de qualquer cidade. Depois da Guerra e de um breve período de ocupação no
Japão terem acabado, já era major, elegível para terminar a sua licenciatura na
Chubb ao abrigo de um programa acelerado. Depois, com um diploma na mão que lhe
permitia
dar aulas de Literatura Inglesa ou de Matemática, decidiu que gostava mais do
trabalho policial. Em 1949 juntou-se à polícia de Holloman. Silvestri, na altura um
tenente em serviço de secretária, rapidamente se apercebeu do seu potencial e
colocou-o nos detectives, onde era agora o tenente mais antigo. Holloman não era
suficientemente
grande para ter um esquadrão de homicídios, ou qualquer outra das subdivisões que
as forças policiais das cidades maiores tinham, pelo que Carmine podia dar por
si a trabalhar em

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todo e qualquer tipo de crimes. No entanto, os homicídios eram a sua especialidade


e tinha uma taxa de sucesso formidável: praticamente cem por cento, embora nem
todos os criminosos tivessem sido condenados, claro.
Aguardou, relaxado mas ansioso; isto ia ser interessante.
- Você primeiro, Patsy - disse Silvestri, que já não estava a gostar do caso do Hug
porque teria certamente grande visibilidade. Esta manhã havia apenas um pequeno
parágrafo no Holloman Post, mas, assim que os detalhes começassem a vir a público,
tornar-se-ia notícia de primeira página.
- Posso dizer-vos - disse Patrick -, que quem quer que tenha colocado aquele torso
no frigorífico dos animais não deixou para trás quaisquer impressões digitais,
fibras ou outros vestígios. A vítima é uma adolescente, com algum sangue mestiço. É
de pequena estatura e parece muito bem tratada - inclinou-se para a frente na
cadeira, os olhos a brilhar. - Na nádega direita tem uma crosta em forma de
coração. Um sinal, removido há cerca de dez dias. No entanto, não era um sinal de
nascença
pigmentado, mas sim um hemangioma: um tumor constituído por vasos sanguíneos. O
assassino usou um par de fórceps diatérmicos para decepar todos os vasos que
alimentavam
o tumor, coagulando-os. Deve ter demorado horas. Depois encheu-o de espuma
cicatrizante para ajudar a coagulação e deixou a ferida ganhar crosta e ficar bem
seca.
Encontrei vestígios daquilo que pensei ser uma pomada à base de óleo, mas não era.
- Respirou fundo. -Era maquilhagem, exactamente da mesma cor que a pele dela.
Carmine sentiu um arrepio percorrer a sua própria pele e estremeceu.
- Ela ainda não estava perfeita, mesmo depois de lhe ter tirado o sinal, por isso
cobriu-o com maquilhagem para a tornar perfeita. Oh, Patsy, temos um tipo muito
estranho entre mãos!
- Sim - concordou Patrick.
- Então ele é cirurgião? - perguntou Marciano, empurrando o cinzeiro de Silvestri e
o seu conteúdo para longe do nariz.

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- Não necessariamente - respondeu Carmine. - Ontem falei com uma senhora que faz
microcirurgia nos animais do Hug. Ela não é licenciada em Medicina. Existem
provavelmente
dezenas de técnicos em qualquer grande centro de investigação, como a Faculdade de
Medicina da Chubb, que são capazes de operar tão bem como qualquer cirurgião.
Na verdade, até o Patsy acabar de nos dizer como o tipo coagulou o sangramento do
sinal, eu estava a pensar também em talhantes e trabalhadores de matadouros. Agora,
seguramente, acho que os posso excluir.
- Mas continua a pensar que o Hug está envolvido - disse Silvestri, pegando no
charuto nojento e chupando-o.
- Continuo.
- O que se segue?
Carmine levantou-se, apontando para Corey e Abe.
- Pessoas Desaparecidas. Provavelmente a nível estadual. Holloman não tem ninguém
nos arquivos, a menos que o assassino a tenha mantido presa muito mais tempo do
que seria necessário para lhe fazer o que lhe fez. Uma vez que não sabemos como ela
era, vamos concentrar-nos no sinal.
Patrick saiu com ele.
- Não vais resolver este caso tão depressa - disse. - O maldito não te deixou nada
a que te possas agarrar.
- A quem o dizes. Se aquele macaco não tivesse acordado numa geleira, nem sequer
saberíamos que tinha sido cometido um crime.
O arquivo de Pessoas Desaparecidas de Holloman não produzira qualquer resultado,
portanto Carmine começou a telefonar para os outros departamentos policiais do
estado.
A polícia estadual tinha encontrado o corpo de uma menina de dez anos nos bosques,
junto do Trilho Apalache -, uma criança bem desenvolvida, mestiça, cujo
desaparecimento,
participado pelos pais, ocorrera durante um acampamento.

75

Mas ela morrera de paragem cardíaca e não havia circunstâncias suspeitas.


A polícia de Norwalk informou-o do desaparecimento de uma rapariga de dezasseis
anos, de origem dominicana, chamada Mercedes Alvarez, que desaparecera dez dias
antes.
- Um metro e meio de altura, cabelo escuro encaracolado mas não frisado, olhos
castanhos-escuros... uma cara muito bonita... uma figura madura - disse alguém que
se apresentara como tenente Joe Brown. - Oh, e um grande sinal em forma de coração
na nádega direita.
- Não saia daí, Joe, estarei aí dentro de meia hora.
Pôs a luz intermitente no tejadilho do Ford e acelerou ao longo da 1-95, com a
sirene aos gritos; percorreu os sessenta e quatro quilómetros em pouco mais de
vinte
minutos.
O tenente Joe Brown era mais ou menos da sua idade, quarenta e poucos anos, e
estava mais excitado do que Carmine esperara. Brown estava nervoso, bem como todos
os outros polícias nas proximidades. Carmine examinou a fotografia a cores do
arquivo e procurou a referência ao sinal, que uma mão pouco treinada tentara
desenhar.
- É a nossa rapariga, sem dúvida - disse. - Céus, como é bonita! Conte-me os
detalhes, Joe.
- É estudante no liceu de St. Martha. Tem boas notas, não se mete em sarilhos, não
tem namorados. Pertence a uma família dominicana que está em Norwalk há vinte
anos... o pai é portageiro, a mãe é doméstica. Seis filhos: dois rapazes e quatro
raparigas. A Mercedes é... ou era... a mais velha. O mais novo é um rapaz com três
anos. Vivem num bairro antigo e sossegado, não se metem na vida de ninguém.
- Alguém viu a Mercedes ser raptada? - perguntou Carmine.
- Ninguém. Trabalhámos noite e dia para tentar encontrá-la, porque - fez uma pausa,
com ar preocupado - foi a segunda rapariga desse tipo a desaparecer em dois meses.
Ambas estudantes em St. Martha, da mesma turma, amigas mas não as melhores amigas.
Mercedes tinha

76

lições de piano depois das aulas, devia ter chegado a casa às quatro e meia. Quando
às seis ainda não tinha aparecido e as freiras disseram ter a certeza de que
ela saíra à hora normal, Mr. Alvarez telefonou-nos. Já estavam preocupados, por
causa da Verina.
- A Verina foi a primeira rapariga?
- Sim. Verina Gascon. Uma família crioula de Guadalupe, também cá há muito tempo.
Desapareceu a caminho da escola. Ambas as famílias vivem perto do liceu, a apenas
um quarteirão de distância, mas em direcções opostas. Voltámos Norwalk às avessas à
procura da Verina, mas ela tinha desaparecido sem deixar rasto. E agora esta,
a mesma coisa.
- Alguma possibilidade de uma ou as duas terem fugido com um namorado secreto?
- Não - disse Brown enfaticamente. - Talvez seja melhor conhecer as duas famílias,
depois compreenderá melhor. São latinos católicos à moda antiga, educam os filhos
de forma rígida mas com muito amor.
- Hei-de falar com eles, mas não para já - disse Carmine, encolhendo-se por dentro.
- Pode pedir a Mr. Alvarez que identifique a Mercedes com base no sinal de
nascença?
Não podemos mostrar-lhe mais do que uma pequena porção de pele, mas ele terá de
saber antecipadamente que...
- Sim, sim, e eu é que tenho de dizer ao pobre coitado que alguém cortou a sua
linda filha aos pedaços - disse Brown. - Meu Deus, às vezes este é um trabalho de
merda!
- Talvez o padre deles esteja disposto a acompanhá-lo.
- Vou tratar disso. E talvez uma freira ou duas para apoio extra. Alguém entrou com
café e donuts de geleia; ambos os homens
devoraram um ou dois e beberam avidamente. Enquanto esperava por cópias dos
ficheiros de ambas as raparigas, Carmine telefonou para Holloman.
Abe disse-lhe que Corey já estava no Hug e que ele próprio ia sair para falar com o
reitor Wilbur Dowling e tentar descobrir

77

quantos frigoríficos para animais mortos existiam na Faculdade de Medicina.


- Temos mais alguma pessoa desaparecida que possa encaixar na descrição da nossa
rapariga? - perguntou Carmine, sentindo-se melhor depois de ter comido.
- Sim, três. Uma de Bridgeport, uma de New Britain e outra de Hartford. Mas quando
verificámos que nenhuma delas tinha um sinal de nascença, não demos seguimento.
Aconteceram todos há já vários meses - disse Abe.
-As coisas deram uma volta inesperada, Abe. Telefona para Bridgeport, Hartford e
New Britain e pede que nos enviem cópias desses ficheiros o mais depressa que
conseguirem
pôr um carro na estrada.
Quando Carmine entrou, Abe e Corey levantaram-se das suas secretárias e seguiram-no
até ao gabinete dele, onde o esperavam três pastas. Carmine largou em cima da
secretária as duas que trazia consigo; retirou as cinco fotografias, todas a cores,
e arrumou-as em fila. Pareciam irmãs.
Nina Gomez era uma rapariga guatemalteca de Hartford, com dezasseis anos, e
desaparecera há quatro meses. Rachel Simpson era uma rapariga negra de pele clara
de
Bridgeport, com dezasseis anos, desaparecida há seis meses. Vanessa Olivaro era uma
rapariga de dezasseis anos de New Britain, com mistura de sangue chinês, negro
e branco, cujos pais eram originários da Jamaica; desaparecera oito meses antes.
- O nosso assassino gosta de cabelo encaracolado mas não frisado, de rostos que
sejam extraordinariamente bonitos de uma determinada maneira... com lábios cheios
mas bem delineados, olhos escuros grandes e afastados, um sorriso com covinhas...
altura não superior a um metro e meio, figura madura e pele clara mas não branca
-disse Carmine, observando as fotos.
- Acreditas mesmo que foi o mesmo tipo que as raptou a todas? - perguntou Abe, sem
querer acreditar.
- Oh, claro. Olha para os antecedentes delas. Famílias respeitáveis e tementes a
Deus, todas católicas excepto Rachel Simpson, cujo pai é pastor episcopal. Simpson
e Olivaro frequentavam os liceus locais, as outras três liceus católicos, duas
delas o mesmo, o liceu de St. Martha em Norwalk. Depois temos a moldura temporal.
Uma de dois em dois meses. Corey, pega no telefone e pergunta por pessoas
desaparecidas que encaixem nesta descrição desde... de há dez anos para cá,
digamos. Os
antecedentes são tão importantes como o critério físico, portanto estou disposto a
acreditar que todas estas raparigas eram conhecidas pela sua... bom, talvez
castidade
seja uma palavra demasiado antiquada, mas pelo menos pela sua bondade.
Provavelmente ofereciam-se para coisas como sopas dos pobres ou faziam voluntariado
em algum
hospital. Nunca faltavam à missa, faziam os trabalhos de casa, mantinham as bainhas
das saias ao nível dos joelhos, talvez usassem um pouco de batom mas nunca se
maquilhavam muito.
78

- As raparigas que estás a descrever não são muito vulgares, Carmine - disse Corey,
com uma expressão séria no rosto moreno, de nariz adunco. - Se ele tiver apanhado
uma de dois em dois meses, deve perder muito tempo a procurá-las. Repara até onde
foi procurá-las. Norwalk, Bridgeport, Hartford, New Britain... porquê nenhuma de
Holloman? A Mercedes, pelo menos, foi largada em Holloman.
- Foram todas largadas em Holloman. Só temos cinco raparigas até agora, Corey. Só
perceberemos o padrão dele depois de termos conseguido descobrir quando é que
começou.
Pelo menos quando é que começou no Connecticut.
Abe engoliu em seco, audivelmente, pálido e com uma expressão enjoada no rosto
claro, de nariz torto.
- Mas não vamos encontrar corpos anteriores à Mercedes, pois não? Ele cortou-os e
pôs os pedaços em pelo menos um frigorífico de animais mortos, de onde foram para
a incineradora da escola médica.

79

- Deves ter razão, Abe - disse Carmine que, aos olhos dos seus leais e mais
constantes companheiros, parecia invulgarmente abatido. Normalmente, fosse qual
fosse
o caso, Carmine atravessava-o e ultrapassava-o com a força e a graciosidade pesada
de um carro de combate. Sentia, sangrava, compreendia, sentia compaixão, mas,
até este caso, nunca permitira que nada o atingisse no seu núcleo mais íntimo.
- Que mais é que tudo isto te diz, Carmine? - perguntou Corey.
- Que ele tem em mente uma imagem de perfeição e que estas raparigas se assemelham
a ela, mas que há sempre qualquer coisa errada com cada uma delas. Como o sinal
de nascença da Mercedes. Talvez uma delas o tenha mandado foder... ele odiaria
ouvir esse tipo de linguagem vinda de um par de lábios virginais. Mas aquilo que o
excita, como a qualquer violador, é o sofrimento delas. É por isso que não sei,
honestamente, se devíamos catalogá-lo como assassino ou como violador. Oh, ele é
ambas as coisas, mas como é que a sua mente funciona? Qual é para ele o verdadeiro
significado daquilo que faz?
Carmine fez uma careta.
- Sabemos de que tipo de vítima gosta, e sabemos que são relativamente caras, mas
até um fantasma é mais visível do que ele. Em Norwalk, com dois raptos em mãos,
os polícias deram cabo do canastro à procura de vagabundos, mirones, desconhecidos
nas ruas perto da escola, desconhecidos que tivessem contactado a escola ou as
famílias. Investigaram toda a gente, desde cobradores da United Way, a homens do
lixo, carteiros, vendedores de enciclopédias, pessoas afirmando serem mórmones,
testemunhas de Jeová ou membros de qualquer outro grupo religioso evangelizador.
Leitores de contadores, trabalhadores municipais, jardineiros, funcionários das
companhias eléctrica e telefónica. Chegaram a reunir-se para tentarem perceber como
é que ele teria conseguido aproximar-se o suficiente para raptar as raparigas,
mas, até agora, não conseguiram absolutamente nada. Ninguém se recorda de nada que
possa ajudar.

80

Corey levantou-se.
- Vou começar a fazer telefonemas - disse.
- Muito bem. Abe, põe-me a par do que descobriste no Hug -
pediu Carmine.
Abe puxou do bloco de notas.
- O pessoal do Hug é composto por trinta pessoas, se contarmos com o professor
Smith num extremo da hierarquia e com Allodice Miller, o lavador de garrafas, no
extremo
oposto. - Tirou duas folhas de papel de uma pasta que tinha debaixo do cotovelo e
entregou-as a Carmine. - Aqui tem uma cópia com nomes, idades, cargos, há quanto
tempo trabalham lá, e tudo o mais que achei que pudesse ser útil. A única que, à
partida, tem experiência cirúrgica efectiva é Sônia Liebman, da sala de operações.
Os dois estrangeiros nem sequer têm habilitações médicas, e o doutor Forbes afirma
que desmaiou a assistir a uma circuncisão.
Pigarreou e virou a página.
- Há várias pessoas que entram e saem mais ou menos à vontade, mas as suas caras
são bem conhecidas... pessoal dos cuidados animais, vendedores, médicos da
Faculdade
de Medicina. A empresa Limpezas Científicas Mitey Brite tem um contrato para a
limpeza do Hug, que é feita de segunda a sexta-feira, entre a meia-noite e as três
da manhã, mas não lidam com os resíduos perigosos. É o Otis Green quem trata disso.
Ao que parece, é preciso ter formação específica, o que acrescenta alguns dólares
extras ao salário do Otis. Duvido que a Mitey Brite tenha alguma coisa a ver com o
crime, porque o Cecil Potter volta ao Hug todos os dias às nove da noite e fecha
a ala de cuidados animais a sete chaves, para o caso de algum empregado de limpeza
resolver lá meter o nariz. Os macacos são os bebés dele. Se ouvirem o mínimo ruído
durante a noite fazem um rebuliço terrível.
- Obrigado, Abe. Não me tinha lembrado da Mitey Brite - Carmine olhou
afectuosamente para Abe. - Alguma impressão sobre os funcionários residentes que
valha a pena
mencionar?

81

- Fazem um café horrível - disse Abe -, e um espertinho qualquer na neuroquímica


encheu um frasco com uns rebuçados de aspecto delicioso... cor-de-rosa, amarelos,
verdes. Mas não são rebuçados, são bolinhas de esferovite.
- E tu caíste. -Caí.
- Mais alguma coisa?
- Apenas informação negativa. Podemos excluir Allodice, o lavador de garrafas. É
estúpido demais. Duvido que os sacos tenham sido colocados no frigorífico enquanto
o Cecil e o Otis estavam de serviço. O meu palpite é que tenha sido mais ao final
do dia.
- E quanto ao número de possíveis locais semelhantes?
- Acabei por encontrar sete frigoríficos para animais mortos, para além do
existente no Hug. O reitor Dowling não gostou muito de ter de falar com um polícia
sobre
algo tão inferior às capacidades do seu cargo, e parece que ninguém tem uma lista.
Depois de os verificar, cheguei à conclusão de que nenhum deles seria tão fácil
de usar como o do Hug, nem de longe. São todos mais públicos e movimentados. Meu
Deus, esta gente deve dar conta de milhões de ratos! Detesto-os quando estão vivos,
mas, depois do dia de hoje, ainda os detesto mais quando estão mortos. O meu
palpite vai para o Hug.
- Também o meu, Abe, também o meu.
Carmine passou o resto do dia atrás da secretária, a estudar os processos dos cinco
casos até ser capaz de os recitar de cor. Eram todos bastante volumosos, devido
à condição das vítimas. Era evidente que a polícia de todas as cidades envolvidas
tinha trabalhado mais arduamente do que era costume nas suas investigações; regra
geral, quando uma rapariga de dezasseis anos desaparecia, tinha uma reputação (e
por vezes um cadastro) que encaixava com o desaparecimento. Mas estas raparigas
não. "O lamentável em tudo isto",

82

pensou Carmine, "é que não trocamos informações com tanta frequência como devíamos.
Se o fizéssemos, talvez tivéssemos topado este tipo mais cedo." No entanto, não
havia corpos nem evidências de homicídio. Fossem quantos fossem os corpos até agora
- e não o saberia tão cedo - sabia que tinham acabado todos na incineradora da
Faculdade de Medicina. Era muito mais seguro do que, por exemplo, enterrá-los no
bosque. O Connecticut tinha muitas florestas, mas estas eram usadas, não vedadas
como as florestas do estado de Washington.
O seu instinto dizia-lhe que o criminoso estava a guardar as cabeças como
recordação. Ou então, caso se tivesse livrado também das cabeças, tinha filmado as
raparigas.
Talvez em Super-8, a cores, talvez com várias câmaras para apanhar todos os ângulos
do sofrimento delas, do seu próprio poder. Carmine sabia que este era um homem
que gostava de guardar souvenirs. "Esta é a sua fantasia privada, sentir-se-á
compelido a registá-la. Portanto, ou as está a filmar, ou a guardar as cabeças num
congelador ou em frascos, mergulhadas em formalina. Quantos casos já investiguei
que envolvessem souvenirs? Cinco. Mas nunca um assassino em série. São tão raros!
E os outros deixaram-me pistas. Este tipo não. Quando olha para os seus filmes ou
para as suas cabeças, o que sentirá? Exultação? Desapontamento? Excitação?
Remorsos?
Quem me dera saber, mas não sei."
Quando entrou no Malvolio's para jantar, sentou-se na mesa do costume, consciente
de que não tinha fome, apesar de saber que tinha de comer. Eram os primeiros dias
do caso e, para este, precisava de manter as forças.
A empregada era uma rapariga nova, pelo que teve de esperar que ela tomasse nota do
pedido, desde o assado ao arroz doce. Era uma rapariga bonita, mas não fazia
o tipo do seu assassino; a forma como olhava Carmine da cabeça aos pés era um
convite descarado

83

que ele ignorou. "Desculpa, querida", disse para si próprio, "esses dias já lá
vão." Apesar de ela lhe recordar um pouco Sandra: uma brasa, a marcar passo
enquanto
esperava por um emprego melhor como actriz ou modelo. Nova Iorque ficava logo ao
virar da esquina. Como as coisas tinham mudado desde 1950! Na altura ele acabara
de ser promovido a detective; o Hug fora construído; o Hospital de Holloman fora
construído; e Sandra Tolley viera para o Malvo-lio's como empregada de mesa.
Deixara-o
de cabeça perdida ao primeiro olhar. Alta, bem fornecida como Jane Russell, com
umas pernas que nunca mais acabavam, uma juba de cabelo dourado e olhos grandes e
míopes num rosto deslumbrante. Cheia de confiança em si própria e na carreira que
sabia que ia ter como modelo; entregara o seu portfólio em todas as agências de
Nova Iorque, mas não podia dar-se ao luxo de viver na cidade. Assim, mudara-se para
o Connec-ticut, a duas horas de distância de comboio, onde podia arrendar uma
casa por menos de trinta dólares por mês e comer de graça se fosse empregada num
restaurante.
E depois todas as suas ambições foram lançadas aos sete ventos porque Carmine
Delmonico também a deixara de cabeça perdida. Não que ele fosse bonito ou
extraordinariamente
alto, com o seu metro e oitenta, mas tinha aquele tipo de rosto rude que as
mulheres adoravam e um corpo naturalmente musculado. Conheceram-se no Ano Novo;
estavam
casados um mês depois; e três meses depois ela estava grávida. Sophia, a filha de
ambos, nascera mesmo no final de 1950. Naqueles dias, ele arrendara uma bonita
casa em East Holloman, o bairro italiano da cidade, pensando que, se rodeasse
Sandra com a horda dos seus familiares e amigos, ela não se sentiria tão sozinha
quando
o trabalho o obrigasse a ficar fora até tarde. Mas ela era de uma família de
rancheiros de Montana e não compreendia nem gostava do modo de vida que se vivia em
East Holloman. Quando a mãe de Carmine a ia visitar, Sandra pensava que a sogra a
estava a controlar e, por arrastamento, via todas as visitas e convites simpáticos
da família e dos amigos dele como prova de que não confiavam nela.
84

Nunca houvera uma discussão a sério, nem sequer muito descontentamento. A bebé era
a cara da mãe, o que agradava a toda a gente; ninguém sabe melhor do que os
italianos
que os anjos se pintam louros.
Na altura, Carmine estava numa lista para bilhetes grátis sempre que uma peça ou um
espectáculo de audição para a Broadway fazia a sua exibição final no Schumann
Theater; em finais de 1951, quando Sophia tinha um ano, chegou a sua vez. A
atracção era uma peça importante, que já recebera boas críticas de audições em
Boston
e Filadélfia, pelo que toda a nata de Nova Iorque estaria presente. Sandra ficou
extasiada, desencantou o seu vestido mais deslumbrante, sem alças, de cetim
ciclâmen,
que lhe assentava como uma segunda pele e alargava nos joelhos, com uma estola de
marta branca para a proteger do frio de um Inverno que estava a ser rigoroso.
Engomou
o fato de cerimónia de Carmine, a sua camisa de folhos e a faixa, e comprou-lhe uma
gardénia para a lapela. Oh, como ela estava excitada! Parecia uma criança que
ia à Disneylândia.
Depois surgiu um caso e ele não pôde ir. Agora, olhando para trás, dava graças por
não ter visto a cara dela quando lho disse; tinha-lhe telefonado. "Desculpa,
querida,
tenho de trabalhar esta noite." Mas ela foi, de qualquer maneira, sozinha com o
vestido de cetim ciclâmen sem alças e o agasalho de marta branca. Quando lhe contou
que tinha ido, nessa noite, ele não se importara nada. Mas o que ela não lhe disse
foi que tinha conhecido Myron Mendel Mandelbaum, o realizador de cinema, no
vestíbulo
do Schumann, e que Mandelbaum se apoderara do lugar de Carmine, apesar de o seu ser
num camarote muito mais perto do palco.
Uma semana depois, Carmine chegou a casa e Sandra e Sophia tinham desaparecido,
deixando um curto bilhete sobre a lareira que explicava que Sandra se apaixonara
por Myron e ia apanhar o comboio para Reno; Myron já se divorciara e estava
desesperado para casar com ela. Sophia era a cereja no cimo do bolo, pois Myron não
podia
ter filhos.

85

Para Carmine foi um balde de água fria, pois não se apercebera sequer de como a
mulher era infeliz. Não fez nenhuma das coisas que seria normal um marido enganado
fazer. Não tentou raptar a filha, espancar Myron Mendel Mandelbaum, afogar as
mágoas na bebida, ou começar a falhar no trabalho. Não por falta de encorajamento;
a sua família, ultrajada, teria de boa vontade tratado das duas primeiras opções em
seu lugar, e não compreendia por que diabo ele não o permitia. Simplesmente admitiu
para si próprio que a aliança entre ambos fora um erro, baseada apenas em atracção
física e nada mais. Sandra queria glamour, luxo, viagens, uma vida que ele nunca
lhe daria. O seu ordenado era bom, mas não principesco, e gostava demasiado do seu
emprego para poder cobrir a mulher de atenções. Em muitos aspectos, decidiu, Sandra
e Sophia estariam melhor na Califórnia. Oh, mas doera! Uma dor que nunca mencionou
a ninguém, nem mesmo a Patrick (que no entanto tinha uma boa ideia), limitando-se
a enterrá-la mais fundo do que as memórias.
Todos os anos, em Agosto, ia a Los Angeles para visitar Sophia, pois amava
profundamente a filha. Mas a visita deste ano revelara-lhe uma cópia em
desenvolvimento
de Sandra: a filha era transportada todos os dias de limusina para uma escola onde
o álcool, a erva, a cocaína e o LSD eram mais fáceis de comprar do que rebuçados,
e estava entediada pela fartura. A pobre Sandra tornara-se uma viciada em cocaína
no circuito de festas de Hollywood; era Myron quem tentava dar uma boa vida à
criança,
por mais inúteis que fossem os seus esforços. Felizmente, Sophia herdara alguma da
curiosidade do pai, era brilhante em termos intelectuais e adquirira alguma
sabedoria
ao assistir à deterioração da mãe. Entre os dois, Carmine e Myron tinham passado
três semanas a tentar persuadir Sophia de que, se se mantivesse afastada do álcool,
da erva, da cocaína e do LSD, e trabalhasse na sua educação, não acabaria como
Sandra. Ao longo dos anos, Carmine fora ganhando uma simpatia cada vez mais forte
pelo segundo marido de Sandra; a última viagem cimentara um forte elo de ligação
entre ambos, na origem do qual estava Sophia.

86

- Devias casar de novo, Carmine - dissera-lhe Myron -, e levar a nossa menina para
um lugar mais saudável do que este. Sentiria imenso a falta dela, mas amo-a o
suficiente para saber que seria o
melhor.
Mas, depois de Sandra, Carmine jurara para nunca mais, e continuava fiel a essa
jura até hoje. Para alívio sexual tinha Antonia, uma prima afastada e viúva que
residia
em Lyme; ela oferecera-se para isso com grande franqueza e sem amor.
- Podemos divertir-nos mutuamente sem darmos cabo da cabeça um do outro - dissera.
- Tu não precisas dos joguinhos de uma Sandra e eu nunca poderei substituir o
Conway. Assim, quando precisares, ou quando eu precisar, podemos telefonar um para
o outro.
Um acordo admirável que já durava há seis anos.
Patrick entrou no Malvolio's precisamente quando Carmine estava a acabar o arroz
doce, um creme suculento e doce, liberalmente polvilhado com noz-moscada e canela.
- Como correram as coisas com Mr. Alvarez? - perguntou Carmine.
Um estremecimento, uma careta.
- Foi terrível. Ele sabia por que razão não podíamos deixá-lo ver mais do que o
sinal, mas implorou e implorou, chorou tanto que tive de disfarçar as minhas
próprias
lágrimas. O padre e as duas freiras que o acompanhavam foram uma bênção. Levaram-no
dali num estado de prostração.
- Bebe um whisky, pago eu.
- Estava com esperança que dissesses isso.
Carmine pediu dois whiskies irlandeses duplos à empregada que lhe estava a fazer
olhinhos e não disse mais nada até Patrick ter bebido metade e a cor começar a
regressar
ao seu rosto.

87

- Sabes tão bem como eu que o nosso tipo de trabalho endurece um homem - disse
Patrick então, revirando o copo nas mãos -, mas, pelo menos, na maioria das vezes
os crimes são sórdidos e as vítimas, mesmo que sejam lamentáveis, não têm o poder
de nos assombrar os sonhos. Oh, mas este! Uma autêntica perseguição aos inocentes.
A morte da Mercedes vai destruir aquela família.
- É pior do que julgas, Patsy - disse Carmine, olhando em volta rapidamente para se
certificar de que ninguém os podia ouvir, e contou-lhe sobre as outras quatro
raparigas.
- É um assassino múltiplo?
- Apostaria a minha vida nisso.
- Então está a colher entre as pessoas que menos merecem ser perseguidas na nossa
sociedade. Pessoas que não causam problemas a ninguém, que não custam dinheiro
ao governo, que não aborrecem os vizinhos por causa dos cães, da festa duas portas
mais abaixo, que não são inspectores fiscais mal-educados. Pessoas a quem o meu
avô irlandês teria chamado o sal da terra - disse Patrick, acabando a bebida de um
trago.
- Concordaria contigo, à excepção de uma coisa. Até agora as vítimas são todas
mestiças e há pessoas que se sentem ofendidas com isso, como bem sabes. Apesar de
residirem há muito tempo no Connecticut, as suas raízes são caribenhas. Até a
Rache] Simpson, de Bridgeport, parece ter tido raízes em Barbados. Por isso começa
a parecer-me que há envolvida uma espécie qualquer de vingança racial.
Patrick pousou o copo vazio e levantou-se.
- Vou para casa, Carmine. Se não, acabo por ficar aqui a beber.
Carmine não se demorou muito mais do que o primo. Pagou a conta, deu uma gorjeta de
dois dólares à empregada, pela recordação de Sandra que lhe despertara, e percorreu
o meio quarteirão até ao seu apartamento, oito andares por baixo da cobertura do
Dr. Hideki Satsuma, no edifício Nutmeg Insurance.

88

Capítulo Três

Na sexta-feira, as primeiras páginas do Holloman Post e dos outros jornais do


Connecticut estavam cobertas com o homicídio de Mercedes Alvarez e o
desaparecimento
de Verina Gascon, que se temia estar também morta, mas nenhum repórter mais esperto
apanhara ainda as suspeitas policiais de que estavam a lidar com um
violador/assassino
em série, de adolescentes cuidadosamente educadas e protegidas - ou de que as
origens caribenhas podiam ter um papel na história.
Carmine tinha uma mensagem na secretária, a dizer que Otis Green saíra do hospital,
estava em casa e ansioso por falar com ele. Outra informava-o de que Patrick
também o queria ver. Abe estava em Bridgeport a fazer investigações sobre Rachel
Simpson e Corey ficara com o trabalho duplo de Nina Gomez em Hartford e Vanessa
Olivaro em New Britain. Uma vez que a Guatemala tinha uma costa voltada para as
Caraíbas, a nova ênfase do caso era decididamente caribenha.
Como Patrick estava apenas a uma viagem de elevador de distância, Carmine foi falar
com ele primeiro. Patrick estava no seu gabinete, com a secretária coberta de
sacos de papel castanhos.
- Sei que já viste muitos sacos destes, mas não sabes tanto sobre eles como eu -
disse Patrick, esperando enquanto o primo se servia do café acabado de fazer.

89

- Então diz-me - pediu Carmine, sentando-se.


- Como vês, existem de facto em todos os tamanhos e feitios. -Patrick ergueu um
exemplar com trinta centímetros por quinze. - Este leva seis ratos de cem gramas,
este maior leva quatro ratos de duzentos e cinquenta gramas. Um investigador
raramente usa ratos com mais de duzentos e cinquenta gramas, mas, como os ratos
continuam
a crescer enquanto vivem, podem atingir o tamanho de um gato ou de um temer
pequeno. No entanto, ninguém no Hug usa ratos tão grandes. - Ergueu um saco de
sessenta
por quarenta e cinco centímetros. -Por razões que me ultrapassam, os gatos do Hug
são todos machos grandes, tal como os ratos são todos machos. E os macacos. Este
é um saco para gatos. Fui ao Hug hoje, logo de manhã, e consegui ter uma breve
troca de palavras - Carmine tinha a certeza de que essa era uma descrição muito
precisa
do encontro - com Miss Dupre, que trata de todas as compras e inventários. Os sacos
são feitos por encomenda por uma empresa do Oregon. Consistem em duas camadas
de papel castanho muito resistente, separadas por um enchimento de fibras feitas de
bagaço de cana-de-açúcar, com três milímetros. Podes ver que há dois discos de
plástico no exterior do saco. Se dobrarmos a parte de cima do saco duas vezes, os
discos ficam próximos um do outro. O arame no disco de cima é enrolado, em oito,
à volta do disco de baixo, para o saco não se abrir. Da mesma forma que fechamos um
envelope de memorando interdepartamental, excepto que nesse caso se usa um fio.
O corpo de um animal aguenta dentro de um destes sacos, sem fuga de fluidos, até
setenta e duas horas, mas as carcaças nunca são conservadas nem metade desse tempo
dentro do saco. Os animais que morrem durante o fim-de-semana só são encontrados na
segunda-feira de manhã, a menos que o investigador passe por lá durante o fim-de-
semana.
Ele coloca a carcaça num saco, mas depois atira-o para dentro de um dos
frigoríficos no seu andar. É o respectivo técnico que o leva para os cuidados
animais na
segunda-feira de manhã, apesar de só ir para a incineradora na terça-feira de
manhã.
Carmine levou um saco ao nariz e cheirou-o.

90

- Vejo que são tratados com um desodorizante.


- Correcto, como diria Miss Dupre. Que mulher tão presumida!
- É demais! - gritou o professor a Carmine quando se encontraram no vestíbulo do
Hug. - Leu o que aquele anti-vivisseccionista idiota escreveu no Holloman Post!
Diz que nós, os investigadores médicos, somos sádicos puros, imagine! A culpa é
sua, não tinha nada que anunciar o homicídio aos quatro ventos!
Carmine tinha mau génio, geralmente controlado, mas isto era mais do que conseguia
aguentar.
- Tendo em conta - disse, em tom cortante - que só estou aqui porque várias
raparigas inocentes sofreram como tenho a certeza que nenhum animal alguma vez
sofreu
no Hug, o senhor faria melhor se pensasse em violação e homicídio e não no
vivisseccionismo, professor! Onde raios está a sua noção de prioridades?
Smith ficou abalado.
- Várias! Quer dizer, mais do que uma?
"Engole essa raiva, Carmine, não deixes que este espécime introvertido de
isolamento absoluto te afecte!"
- Sim, quero dizer várias! Sim, quero dizer mais do que uma... muitas mais! O
senhor tem de ser informado, professor, mas esta informação é rigorosamente
confidencial.
Está mais do que na altura de começar a levar isto a sério, porque a sua
singularidade é tudo menos uma singularidade! É múltiplo! Está a ouvir? Múltiplo!
- Deve estar enganado!
- Não estou - rosnou Carmine. - Cresça! O vivisseccionismo é a menor das suas
preocupações, portanto não me venha com lamúrias!

91

Havia no Buraco casas de três andares em muito piores condições do que a de Otis.
Na zona de Fifteenth Street, onde viviam Mo-hammed el Nesr e a sua Brigada Negra,
as casas tinham sido esventradas, as janelas entaipadas com contraplacado e as
paredes forradas com colchões no interior. Aqui, na Eleventh Street, havia casas
mal
cuidadas, com tinta a descascar, evidências de que os senhorios ausentes não se
preocupavam com a manutenção, mas quando Carmine, ainda a ferver de raiva, subiu
as escadas até ao apartamento de Green no primeiro andar, encontrou o que esperava
encontrar: uma casa limpa, bonitos cortinados e protectores de poeira feitos à
mão em cima da mobília, madeiras polidas, tapetes no chão.
Otis estava deitado no sofá, um homem de cerca de cinquenta e cinco anos, bastante
magro mas com pregas de pele que sugeriam que em tempos carregara mais vinte quilos
do que agora. A mulher, Celeste, rondava-o de forma agressiva. Era mais nova do que
Otis e vestia com um certo brilho elegante que Carmine compreendeu depois de
saber que ela era do Luisiana. Afrancesada. Uma terceira pessoa ocupava a sala, um
jovem muito negro com os mesmos maneirismos de Celeste, apesar de lhe faltar a
beleza dela ou o seu gosto a vestir; foi-lhe apresentado como sendo Wesley le
Clerc, sobrinho de Celeste e hóspede dos Green. A expressão dos seus olhos disse a
Carmine que o rapaz carregava um grande ressentimento racial.
Nem a mulher nem o sobrinho mostravam vontade de sair da sala, mas Carmine não
precisou de exercer a sua autoridade: Otis exerceu a dele.
- Saiam e deixem-nos - disse secamente.
Ambos saíram de imediato, Celeste lançando avisos a Carmine sobre o que lhe
aconteceria se perturbasse o marido.
- Tem uma família muito leal - disse Carmine enquanto se sentava num grande divã
coberto por um plástico com rosas encarnadas.:,
- Tenho uma mulher leal - retorquiu Otis com uma fungadela desdenhosa. - Aquele
rapaz é uma ameaça. Quer ganhar nome na Brigada Negra, diz que encontrou o profeta
Maomé e que vai passar

92

a chamar-se Ali ou coisa parecida. É essa história das raízes, como acontece com
qualquer povo que tenha sido sequestrado aos milhões, mas, tanto quanto sei, os
le Clerc vêm de uma parte de África que venerava o King Kong, não Alá. Sou um homem
à moda antiga, tenente, não acho bem querer ser aquilo que não sou. Frequento
a Igreja Baptista e Celeste a Católica. Fui um homem negro num exército de brancos,
mas, na minha maneira de ver, se os alemães e os japoneses tivessem vencido,
estaria muito pior do que estou. Tenho um dinheirinho no banco e, quando me
reformar, vou voltar para a Georgia e dedicar-me à agricultura. Estou por aqui
-levou
a mão à garganta - dos Invernos do Connecticut. De qualquer maneira, não era por
isso que queria falar consigo.
- Por que queria falar comigo, Mr. Green?
- Otis. Para despachar o assunto. Quantas pessoas sabem o que eu encontrei no
frigorífico?
- Muito poucas, e estamos a tentar manter esse estado de coisas.
- Era uma menina, não era?
- Não. Pelo menos, não era uma criança. Sabemos que era de uma família dominicana e
sabemos que tinha dezasseis anos.
- Então não era branca, era negra.
- Prefiro dizer que não era nem uma coisa nem outra, Otis. Uma mistura.
- Tenente, o que lhe fizeram foi um pecado terrível!
- Pois foi.
Carmine esperou enquanto Otis resmungava entre dentes, deixou-o acalmar-se, depois
abordou a questão dos sacos.
- Há algum padrão habitual quanto ao número e ao tamanho dos sacos no frigorífico,
Otis?
- Suponho que sim - disse Otis, depois de reflectir um pouco. - Quer dizer, eu sei
quando Mrs. Liebman está a fazer descerebrações, porque nessas alturas há entre
quatro e seis sacos de gatos. Tirando isso, geralmente são só sacos de ratos.
Quando morre um macaco, como pensámos que tivesse acontecido ao Jimmy, então
aparece
um

93

saco mesmo grande, mas eu sei sempre o que ele contém porque o Cecil fica a chorar
baba e ranho.
- Então, quando há quatro a seis sacos de gatos no frigorífico, sabem que Mrs.
Liebman esteve a fazer descerebrações.
- Isso mesmo, tenente.
- Lembra-se de alguma altura em que tenham aparecido quatro a seis sacos de gatos
no frigorífico sem que Mrs. Liebman tenha tido alguma coisa a ver com isso?
Otis pareceu surpreendido e tentou levantar-se.
- Quer ver a sua mulher atrás das grades por me assassinar, Otis? Deite-se, homem!
- Há cerca de seis meses. Seis sacos de gatos quando Mrs. Liebman estava de férias.
Lembro-me de ter perguntado a mim próprio quem estaria a substituí-la, mas depois
chamaram-me, por isso atirei os sacos para dentro do balde e levei-os para a
incineradora.
Carmine levantou-se.
- Deu-me uma grande ajuda. Obrigado, Otis.
Ainda o visitante ia nas escadas quando Celeste e Wesley voltaram.
- Estás bem? - inquiriu Celeste.
- Melhor do que antes de ele vir - respondeu Otis firmemente.
- De que cor era o corpo? - perguntou Wesley. - O polícia disse?
- Não era branco, mas também não era negro.
- Uma mulata?
- Ele não disse isso. Essa é uma palavra da Luisiana, Wes.
- Os mulatos são negros, não são brancos - disse Wesley com satisfação.
- Não comeces a fazer uma tempestade num copo de água! -exclamou Otis.
- Tenho de ir falar com o Mohammed - foi a resposta de Wesley. Enfiou o blusão de
imitação de cabedal, com um punho branco pintado nas costas.
- Não vais nada falar com o Mohammed, rapaz, vais trabalhar imediatamente! Não tens
direito a subsídio de desemprego

94

e eu não estou para te sustentar! - interveio Celeste. - Vá, desaparece!


Com um suspiro, Wesley despiu o passaporte para o quartel-general de Mohammed el
Nesr, no número dezoito de Fifteenth Street, enfiou em vez disso um blusão de penas
e acelerou no seu maltratado De Soto de 1953 para a Parson Surgical Instruments.
Onde, se ele se tivesse dado ao trabalho de perguntar, coisa que não fez, podia
ter descoberto que a sua destreza a fazer pequenas pinças tinha, mais do que uma
vez, feito a diferença entre um emprego certo e uma carta de despedimento.

Para Carmine, o dia foi deprimente e amargo; os ficheiros de pessoas desaparecidas


que encaixavam na descrição de Mercedes estavam a começar a chegar à sua
secretária.
Mais seis, para ser exacto, uma de dois em dois meses ao longo de 1964: Waterbury,
Holloman, Middletown, Danbury, Meriden e Torrington. O único local em que ele
se repetira, em quase dois anos, fora Norwalk. Todas as raparigas tinham dezasseis
anos e eram de sangue mestiço, com raízes nas Caraíbas, embora nunca pertencessem
a uma família de emigrantes recentes. Porto Rico, Jamaica, Bahamas, Trinidade,
Martinica, Cuba. Um metro e meio de altura, extraordinariamente bonitas, de figura
madura, muito bem-educadas. Todas as recém-chegadas à sua secretária eram
católicas, embora nem todas frequentassem escolas católicas. Nenhuma tinha
namorado, todas
eram excelentes alunas e populares entre os colegas. Mais importante ainda, nenhuma
contara a alguma amiga ou familiar ter feito um novo amigo, ou ter arranjado
uma nova boa acção para praticar, ou mesmo ter conhecido alguém recentemente.
Às três da tarde entrou sozinho para o Ford e começou a percorrer a 1-95 até
Norwalk, onde o tenente Joe Brown lhe arranjara uma visita à casa da família
Alvarez.
O tenente acrescentara rapidamente

95

que não podia acompanhá-lo; Carmine sabia porquê. Joe não conseguia enfrentar outro
encontro com os Alvarez.
A casa ficava num edifício de três apartamentos, propriedade de José Alvarez; ele
vivia no apartamento do rés-do-chão com a mulher e os filhos, e os apartamentos
do primeiro e do segundo andar estavam arrendados. Era assim que todas as pessoas
da classe trabalhadora aspiravam a poder viver: praticamente livres de uma renda
de casa, com o apartamento do meio a pagar a hipoteca e as contas e o de cima a
proporcionar algum dinheiro extra para arranjos e para guardar para um dia de
chuva.
Como viviam no andar de baixo, tinham o quintal, metade da garagem para quatro
carros e a cave para uso próprio. E um senhorio que vivia no edifício podia manter
os inquilinos debaixo de olho.
Tal como todas as casas da vizinhança, esta estava pintada de cinzento-escuro,
tinha janelas duplas cujas portadas exteriores eram substituídas no Verão por redes
mosquiteiras, um alpendre que dava directamente para o passeio e um grande quintal,
nas traseiras, rodeado por uma cerca de rede; a garagem ficava ao fundo do quintal
e de um caminho de acesso que passava ao lado da casa. Enquanto Carmine observava,
do passeio obscurecido pela sombra dos carvalhos, ouviu um cão grande a ladrar;
se havia um cão de guarda, dificilmente alguém conseguiria entrar pelo alpendre das
traseiras.
Foi o padre que abriu a porta da frente, a qual era independente da que levava aos
dois apartamentos dos andares de cima. Carmine sorriu ao clérigo e despiu o
sobretudo.
- Lamento ter de fazer isto, padre - disse. - O meu nome é Carmine Delmonico. Será
melhor ser tenente ou Carmine, lá dentro?
Depois de pensar um pouco, o padre disse: i
- Penso que tenente seria melhor. Eu sou Bart Tesoriero.
- Precisa de falar espanhol na sua paróquia?
O padre Tesoriero abriu a porta interior.

96

- Não, apesar de ter um bom número de paroquianos hispânicos. É uma parte antiga da
cidade, todos eles já cá estão há muito tempo. Não é nenhum Hell's Kitchen(1),
pode ter a certeza.
A sala, que era bastante grande neste apartamento do rés-do-chão, estava cheia de
pessoas e de silêncio. Sendo ele próprio de origem latina, Carmine sabia que os
familiares deviam ter vindo de todo o lado para estarem com os Alvarez nesta hora
de necessidade. Isto significava também que sabia como lidar com eles, mas não
foi preciso. O padre mandou todos para a cozinha, excepto os familiares directos,
conduzidos por uma mulher que parecia a avó, de mão dada com um menino ainda
pequeno.
Isso deixou na sala José Alvarez, a mulher, Concita, o filho mais velho, Luís, e
três filhas - Maria, Dolores e Teresa. O padre Tesoriero instalou Carmine na melhor
poltrona e sentou-se entre o marido e a mulher.
Era uma casa de naperons de renda, cortinas de renda sob reposteiros de veludo
sintético, mobílias respeitáveis e muito usadas e chão de tijoleira por baixo de
tapetes
farfalhudos. Nas paredes havia imagens da Última Ceia, do Sagrado Coração de Jesus,
de Maria com o Menino ao colo, e muitas fotografias emolduradas da família. Por
todo o lado viam-se jarras de flores, cada uma ostentando um cartão; o perfume de
frésias e junquilhos era tão forte que Carmine sentiu que lhe faltava o ar. Onde
é que as floristas as arranjavam nesta altura do ano? No centro da prateleira do
fogão estava uma fotografia de Mercedes, numa moldura de prata, por trás de uma
vela acesa numa taça de vidro encarnado.
A primeira coisa que Carmine fazia quando entrava numa casa de luto era imaginar
como seriam os enlutados antes de a tragédia os atingir. Aqui era quase impossível,
mas nada podia alterar a estrutura óssea. Eram todos muito atraentes e todos
daquela cor de café com leite. Um pouco de negro, um pouco de indo-caribenho, muito
de espanhol. Os pais estariam provavelmente no final da casa dos trinta, mas
pareciam uma década mais velhos, sentados como duas
*1. Zona de Manhattan conhecida no passado pela sua má reputação (N. daT.)

97

bonecas de trapos num mundo privado e sinistro. Nenhum deles parecia vê-lo.
- Luís, não é? - perguntou ao rapaz, que tinha os olhos vermelhos e inchados de
chorar.
-Sim.
- Quantos anos tens?
- Catorze.
- E as tuas irmãs? Quantos anos têm?
- A Maria tem doze, a Dolores dez e a Teresa oito.
- E o teu maninho?
- O Francisco tem três.
Nesta altura o rapaz já estava outra vez a chorar, aquelas lágrimas desoladoras e
desesperadas que só podem cair depois de muitas terem sido derramadas antes delas.
As irmãs levantaram por um instante os rostos dos lenços ensopados, com os joelhos
ossudos unidos sob as bainhas das saias de xadrez pregueadas, como pares de crânios
de marfim. Permaneceram sentadas, sacudidas por grandes soluços, profundamente
feridas pela dor, pelo choque terrível que estava agora a transformar-se em
exaustão,
depois de dias de preocupação até chegar por fim a notícia de que Mercedes estava
morta, cortada aos pedaços. Claro que ninguém tencionara que elas descobrissem
esse pormenor, mas tinham-no descoberto de qualquer maneira.
- Luís, podes levar as tuas irmãs para a cozinha e depois voltar por um minuto?
Carmine viu que o pai focara finalmente o olhar nele, fitando-o com uma expressão
perplexa e confusa.
- Mr. Alvarez, prefere que adiemos esta conversa por alguns dias? - perguntou
Carmine suavemente.
- Não - murmurou o pai, de olhos secos. - Nós aguentamos. Sim, mas aguentarei eu!
Luís voltou, já sem lágrimas no rosto.
- São apenas as mesmas velhas perguntas, Luís. Sei que já lhes respondeste um
milhão de vezes, mas as recordações podem esconder-se

98

e depois vir de novo à superfície sem razão aparente, e é por isso que as vou fazer
de novo. Sei que tu e a Mercedes frequentavam escolas diferentes, mas disseram-me
que eram muito amigos. As raparigas tão bonitas como a Mercedes chamam a atenção, é
natural. Ela alguma vez se queixou disso? De ser seguida? Observada de um carro
ou por alguém do outro lado da rua?
- Não, tenente, sinceramente. Os rapazes assobiavam-lhe, mas ela ignorava-os.
- E quando trabalhou como voluntária no hospital, no Verão passado?
- Nunca me disse nada que não fosse sobre os pacientes e como as irmãs eram
simpáticas com ela. Só a deixavam entrar na maternidade. Ela adorava.
Começou a chorar outra vez. Estava na altura de parar. Carmine sorriu e indicou a
cozinha com um aceno.
- Peço desculpa - disse a Mr. Alvarez depois de o rapaz sair.
- Compreendemos que tem de perguntar e voltar a perguntar, tenente.
- A Mercedes era uma rapariga confiante? Discutia os seus assuntos com a mãe ou
consigo?
- Ela sempre confiou em nós os dois. Gostava da sua vida e adorava falar sobre ela.
- Um grande espasmo percorreu-o e teve de se agarrar aos braços da poltrona para
o controlar. Os olhos que fixavam os de Carmine estavam desfigurados pela dor,
enquanto os da mãe pareciam fitar as profundezas do Inferno. - Tenente, disseram-
nos
o que fizeram à Mercedes, mas é quase impossível acreditar. Disseram-nos que o caso
da Mercedes é agora seu, que sabe mais sobre o que lhe aconteceu do que a polícia
de Norwalk. - A sua voz adquiriu um tom agudo e urgente. - Por favor, suplico-lhe,
diga-me! Ela... a minha menina sofreu?
Carmine engoliu em seco, trespassado por aquele olhar.
- Só Deus sabe a resposta a essa pergunta, mas não acredito que Deus pudesse ser
tão cruel. Um homicídio deste tipo não tem forçosamente

99

de ter a ver com o sofrimento das vítimas. O assassino pode muito bem ter dado
drogas à Mercedes para a pôr a dormir. De uma coisa podem ter a certeza: o
objectivo
de Deus não era fazê-la sofrer. Se acreditam em Deus, então acreditem que ela não
sofreu.
"E Deus me perdoe por esta mentira, mas como podia dizer a verdade a este pai
destroçado? Ali está ele, morto de espírito, morto de mente, dezasseis anos de
amor,
carinho, preocupação, alegria e pequenos aborrecimentos perdidos na nuvem de fumo
de uma incineradora. Por que havia de partilhar com ele a minha opinião sobre Deus
e agravar ainda mais a sua perda? Ele tem de apanhar os cacos e seguir em frente;
tem mais cinco filhos que precisam dele e uma mulher cujo coração não está apenas
partido - está esmagado e desfeito."
- Obrigado - disse Mr. Alvarez subitamente.
- Obrigado pela vossa paciência - disse Carmine.
- Confortou-os muito - disse o padre Tesoriero enquanto o acompanhava à porta. -
Mas a Mercedes sofreu, não é verdade?
- O meu palpite é que sofreu mais do que conseguimos sequer imaginar. É difícil
acreditar em Deus quando se tem o meu trabalho, padre.
Dois jornalistas tinham aparecido na rua, um deles com um microfone, o outro com um
bloco de notas. Quando Carmine saiu, correram para ele, mas foram rudemente
empurrados.
- Vão à merda, seus abutres! - rosnou ele, entrando para o Ford e desaparecendo
rapidamente.
Vários quarteirões mais à frente, certo de que nenhum repórter o seguia, encostou à
beira da estrada e deixou-se dominar pelos seus sentimentos. "Se tinha sofrido?
Sim, sim, sim, sofreu! Sofreu terrivelmente e o assassino certificou-se de que ela
estava bem acordada o tempo todo. A última coisa que Mercedes vislumbrou na vida
deve ter sido o seu próprio sangue a escorrer para um ralo, mas a família nunca
pode saber disso. Eu já estou muito para além da descrença em Deus. Acredito que
o mundo pertence ao Diabo. Acredito que o Diabo é infinitamente mais poderoso do
que Deus. E os soldados do bem, se não de Deus, estão a perder a guerra."

100

Capítulo Quatro

Uma vez que o Dia de Colombo não era um feriado público, nada impedia a reunião do
conselho directivo do Centro de Investigação Neurológica Hughlings Jackson às
onze da manhã, na sala de reuniões do terceiro andar. Apesar de bem consciente de
que não tinha sido convidado, Carmine tinha toda a intenção de assistir. Assim,
chegou cedo, foi ao corredor encher uma delicada chávena de porcelana com café,
colocou dois donuts com doce num delicado prato de porcelana e teve o descaramento
de se sentar na cadeira da ponta da mesa, que virou para a janela.
Pelo menos "descaramento" foi o que Miss Desdemona Dupre lhe chamou quando entrou e
o viu a lamber sensualmente as guloseimas do conselho.
- Tem sorte, sabe - foi a resposta de Carmine. - Se os arquitectos do Hospital de
Holloman não tivessem decidido pôr o parque de estacionamento em frente do
edifício,
não teria vista nenhuma. Assim, é possível ver até Long Island. Não está um dia
maravilhoso? O Outono está na fase melhor e, embora me custe ver os ulmeiros a
morrerem,
não há como os áceres em termos de cor. As suas folhas inventaram tonalidades
novas, no extremo mais quente do espectro.
- Não me tinha apercebido de que o senhor tinha palavras ou arte para se exprimir!
- disparou ela com um olhar gelado.

101

- Está sentado na cadeira do director-geral e a servir-se de alimentos aos quais


não tem direito! Por favor, pegue nas suas coisas e saia!
Nesse momento entrou o professor, que se endireitou ao ver o tenente Delmonico e
suspirou profundamente.
- Oh, céus, não me tinha lembrado de si - disse a Carmine.
- Quer goste ou não, professor, tenho de estar presente.
O presidente da Universidade Chubb, Mawson Macintosh, chegou antes que o professor
pudesse responder, sorriu a Carmine e apertou-lhe calorosamente a mão.
- Carmine! Eu devia ter calculado que o Silvestri o colocaria neste caso - disse M.
M., como era conhecido por todos. - Estou tremendamente animado. Venha, sente-se
aqui ao meu lado. E - acrescentou num murmúrio conspirador -, não desperdice as
suas papilas gustativas com os donuts. Experimente o folhado de maçã.
Miss Desdemona Dupre emitiu um som de fúria contida e saiu da sala
intempestivamente, colidindo com o reitor Dowling e o seu professor de Neurologia,
Frank Watson,
aquele que fora responsável pelo diminutivo "Hug" e pelo seu pessoal de "Huggers".
M. M., que Carmine conhecia bem de vários casos internos da Chubb, delicados e
embaraçosos, parecia mais imponente do que o outro presidente, o dos Estados Unidos
da América. M. M. era alto, vestia na perfeição, tinha a cintura estreita e o rosto
atraente coroado por um cabelo luxuriante, cujo ruivo original se transformara
num amarelo alaranjado maravilhoso. Um aristocrata americano da cabeça aos pés.
Apesar da sua altura, L. B. J.(1) era reduzido à insignificância sempre que os dois
homens estavam lado a lado, coisa que acontecia ocasionalmente. Mas as pessoas de
linhagem augusta como M. M. preferiam de longe presidir sobre uma grande
universidade
do que sobre um bando de arruaceiros indisciplinados como era o Congresso.

*1. Lyndon Baine Johnson, 36° presidente norte-americano, que sucedeu a Kennedy (N.
da T.)

102

Por outro lado, o reitor Wilbur Dowling parecia o psiquiatra que era:
descuidadamente vestido, com uma mistura de tweed, flanela e uma gravata cor-de-
rosa às pintinhas
encarnadas, exibia uma barba hirsuta para compensar a cabeça lisa como um ovo, e
olhava para o mundo através de lentes bifocais em armações de massa.
E Frank Watson, das poucas vezes que Carmine o vira, sempre lhe recordara Boris, o
vilão de Rocky e Bullwinkle. Watson vestia-se de preto e tinha um rosto comprido
e fino, com o lábio superior coberto por um bigode preto à matador; o cabelo preto
e liso e um esgar desdenhoso permanente completavam as semelhanças com Boris.
Sim, Frank Watson era decididamente o tipo de pessoa que bebia regularmente de uma
taça de vitríolo. Mas com certeza que não fazia parte do conselho directivo do
Hug?
Não, não fazia. Watson terminou a sua conversa com o reitor e deslizou para fora da
sala com um floreado metafórico da capa negra que não trazia. "Um tipo
interessante",
pensou Carmine. "Terei de o estudar melhor."
Os cinco directores Parson entraram em grupo e tiveram o bom senso suficiente para
não questionar a presença de Carmine quando M. M. os apresentou de forma
subtilmente
efusiva.
- Se há alguém que pode esclarecer esta questão indescritível, essa pessoa é
Carmine Delmonico - terminou M. M..
- Nesse caso - disse Roger Parson Júnior, apoderando-se da cadeira à cabeceira da
mesa -, sugiro que nos coloquemos à disposição do tenente Delmonico. Depois, claro
está, de ele nos contar precisamente o que se passou e o que tenciona fazer no
futuro.
Os membros do contingente Parson eram tão parecidos entre si que qualquer pessoa
teria percebido que eram parentes próximos; mesmo os trinta anos de diferença entre
os três membros mais velhos e os dois mais jovens do clã não faziam grande
diferença. Tinham uma altura um pouco acima da média, eram magros e de ombros
curvados,
com pescoços compridos, narizes pontiagudos, maçãs do rosto proeminentes, cantos da
boca voltados para baixo e cabelo ralo,

103

escorrido e de um castanho indeterminado. Os seus olhos, do primeiro ao último,


eram azuis-acinzentados. M. M. parecia um magnata imponente, enquanto os Parson
pareciam
académicos indigentes.
Carmine gastara algum tempo do seu fim-de-semana a pesquisar sobre eles e sobre o
grupo de empresas Parson. William Parson, o fundador (e tio do actual director-
geral)
começara com peças para máquinas e investira nos seus domínios até estes se
estenderem de motores a turbinas e instrumentos cirúrgicos, passando por máquinas
de
escrever e artilharia. O Banco Parson surgira na altura exacta para aumentar ainda
mais o seu poder. William Parson deixara-o bastante tarde, para casar. A sua mulher
dera-lhe apenas um filho, William Júnior, que se revelara atrasado mental e
epiléptico. O filho morrera em 1945, com dezassete anos de idade, e a mãe seguira-
se
em 1946, deixando William Parson sozinho. A sua irmã, Eugénia, casara e tivera
também apenas um filho, Richard Spaight, que se encontrava agora à frente do Banco
Parson e era um dos directores do Hug.
O irmão de William Parson, Roger, dedicara-se à bebida desde muito cedo e fugira
para a Califórnia em 1943, com uma considerável fatia dos lucros da empresa,
abandonando
a mulher e dois filhos. O caso fora abafado, os prejuízos absorvidos e ambos os
filhos de Roger se tinham revelado herdeiros leais, dedicados e extremamente
competentes
para William; os filhos deles eram da mesma cepa e, em consequência, neste ano de
1965, as acções da Parson Products eram há décadas um investimento seguro.
Depressões?
Ração para galinhas! As pessoas continuavam a conduzir carros que precisavam de
motores, e a Parson Turbines produzia turbinas e geradores a diesel muito antes de
existirem aviões a jacto; as dactilógrafas continuavam a usar máquinas de escrever,
as operações cirúrgicas continuavam a aumentar e os países estavam sempre a
disparar
uns contra os outros com armas, obuses e morteiros Parson, pequenos, médios e
grandes.

104

Num à parte interessante, Carmine descobrira que a ovelha negra da família, Roger,
depois de deixar o álcool na Califórnia, fundara a cadeia de restaurantes Roger's
Ribs, casara com uma estrela de cinema, conseguira ficar bem na vida e morrera em
cima de uma prostituta num motel ranhoso.
O Hug nascera do desejo de William Parson de fazer algo em memória do filho morto,
mas o seu parto não fora fácil. Naturalmente, a Universidade Chubb esperava chefiá-
lo
e geri-lo, mas não era essa a intenção de Parson. Ele queria a afiliação com a
Chubb, mas recusava ceder a gestão à universidade. No fim, a Chubb cedera, depois
de se ver confrontada com um ultimato de proporções terríveis. William Parson
afirmara que o seu centro de pesquisa, se necessário fosse, ficaria ligado a uma
qualquer
instituição de ensino fora do estado, sórdida e não prestigiada. Quando um Chubber
como William Parson disse isso, a Chubb soube que estava vencida. Não que não
tivessem conseguido uma fatia do bolo: vinte e cinco por cento do orçamento anual
era pago à universidade, pelos direitos de afiliação.
Carmine sabia também que o conselho directivo se reunia de três em três meses. Os
quatro Parsons e o primo Spaight vinham de limusina dos seus apartamentos em Nova
Iorque e ficavam instalados em suites no Hotel Cleveland, em frente ao Schumman
Theater, na noite após a reunião. Isto era necessário porque M. M. oferecia-lhes
sempre um jantar, na esperança de conseguir persuadir os Parsons a financiarem o
edifício que, um dia, albergaria a colecção de arte de William Parson. Esta
colecção,
a mais importante existente em mãos americanas, fora legada à Chubb pelo testamento
de William Parson, mas a data de entrega da mesma fora deixada ao critério dos
seus herdeiros que, até agora, tinham preferido agarrar-se com unhas e dentes até
ao mais pequeno esboço de Leonardo.

105

Quando o professor ergueu a mão para ligar o gravador de bobinas, Carmine ergueu
também a sua.
- Desculpe, professor, mas esta reunião é absolutamente confidencial.
- Mas... mas... as actas! Pensei que, já que Miss Vilich está excluída, poderia
dactilografar as actas a partir da gravação.
- Não há actas - disse Carmine com firmeza. - Tenciono ser tão franco como
pormenorizado, o que significa que nada do que eu disser sai desta sala.
- Compreendido - disse Roger Parson Júnior abruptamente. -Prossiga, tenente
Delmonico.
Quando Carmine acabou de falar, o silêncio era tão profundo que uma súbita rajada
de vento lá fora pareceu um rugido; os presentes estavam todos, sem excepção,
pálidos,
trémulos e de boca aberta. Em todas as vezes que estivera com M. M., Carmine nunca
o vira perder a compostura, mas, após este relato, até o seu cabelo parecia ter
perdido o brilho. Embora talvez apenas o reitor Dowling, um psiquiatra famoso pelo
seu interesse em psicoses orgânicas, compreendesse completamente as implicações.
- Não pode ser ninguém do Hug - disse Roger Parson Júnior, limpando os lábios a um
guardanapo.
- Isso ainda está por determinar - disse Carmine. - Não temos nenhum suspeito em
particular, o que significa que todos os membros do Hug estão sob suspeita. Na
verdade,
não podemos excluir ninguém da Faculdade de Medicina.
- Carmine, acredita mesmo que pelo menos dez destas raparigas desaparecidas tenham
sido incineradas! - perguntou M. M..
- Sim, senhor, acredito.
- Mas não nos facultou qualquer evidência concreta nesse sentido.
- Pois não. É tudo puramente circunstancial, mas encaixa com aquilo que sabemos...
que, se não fossem os caprichos do acaso, a Mercedes Alvarez estaria completamente
incinerada na quarta-feira passada.

106
- É repugnante - murmurou Richard Spaight.
- É o Schiller! - gritou Roger Parson III. - Tem idade suficiente para ter sido um
nazi. - Virou-se para o professor com expressão feroz. - Eu disse-lhe para não
contratar alemães! Roger Parson Júnior deu uma palmada na mesa.
- Jovem Roger, basta! O Dr. Schiller não é suficientemente velho para ter sido nazi
e não cabe a este conselho especular. Insisto que o professor Smith seja apoiado,
não repreendido. - Ainda com expressão aborrecida pela explosão do filho, olhou
para Carmine. -Tenente Delmonico, agradeço-lhe muito a sua franqueza, por mais
indesejada
que seja, e peço-vos a todos que mantenham o silêncio sobre todos os aspectos desta
tragédia. Embora - acrescentou em tom bastante patético -, suponho que seja de
esperar que pelo menos parte chegue aos ouvidos da imprensa?
- É inevitável, Mr. Parson, mais cedo ou mais tarde. Esta investigação tornou-se
estadual. De dia para dia há mais pessoas a par dos acontecimentos.
- O fbi? - perguntou Henry Parson Júnior.
- Até agora não, senhor. A linha divisória entre uma pessoa desaparecida e uma
vítima de rapto é muito fina, mas nenhuma das famílias destas raparigas recebeu
qualquer
pedido de resgate e, de momento, o assunto permanece confinado ao Connecticut. Mas
podem ter a certeza de que consultaremos qualquer agência que possa ajudar-nos
- garantiu Carmine.
- Quem está à frente da investigação? - perguntou M. M..
- De momento, e à falta de melhor, sou eu, mas isso pode mudar. Há muitos
departamentos policiais diferentes envolvidos, como compreende.
- E você quer esse trabalho, Carmine?
- Sim, senhor.
- Nesse caso, vou telefonar ao governador - disse M. M., seguro do seu poder; e por
que não havia de estar?

107

- Acha que ajudaria se a Parson Products oferecesse uma recompensa vultuosa? -


perguntou Richard Spaight. - Meio milhão? Um milhão?
Carmine empalideceu.
- Não, Mr. Spaight, tudo menos isso! Para já, uma coisa dessas chamaria a atenção
da imprensa para o Hug e, por outro lado, as recompensas vultuosas só dificultam
o trabalho da polícia. Fazem sair dos seus buracos todos os malucos e fanáticos, e,
embora não possa garantir-vos que uma recompensa não poderia produzir uma boa
pista, as hipóteses são muito remotas, e seguir milhares e milhares de pistas
esticaria para além do limite as nossas reservas policiais, provavelmente para
nada.
Se continuarmos sem avanços, então talvez possa ser oferecida uma recompensa de
vinte e cinco mil dólares. Acredite na minha palavra, é mais do que suficiente.
- Nesse caso - disse Roger Parson Júnior, levantando-se e dirigindo-se ao café -,
sugiro que adiemos até que o tenente Delmonico possa comunicar-nos novos
desenvolvimentos.
Professor Smith, o senhor e o seu pessoal têm de colaborar plenamente com o
tenente. -Pegou na cafeteira para se servir e parou, horrorizado. - O café não está
feito!
Preciso de um café!
Enquanto o professor se desculpava e explicava que era Miss Vilich quem normalmente
tratava do café no final da reunião, Carmine ligou as diversas máquinas de café
e mordeu um folhado de maçã. M. M. tinha razão. Delicioso.
Antes de Carmine ir para casa nessa tarde, o comissário John Silvestri irrompeu
pelo seu gabinete para lhe dizer que recebera ordens de Hartford para que uma força
especial operasse a partir de Holloman, uma vez que Holloman tinha os melhores
laboratórios policiais do estado. O tenente Carmine Delmonico estava nomeado para
dirigir essa força especial.
108

- Orçamento: ilimitado - disse Silvestri, parecendo-se ainda mais do que o habitual


com um grande gato preto -, e peça os polícias de que precisar, de qualquer ponto
do estado.
"Obrigado, M. M.", pensou Carmine. Tenho praticamente carta branca, mas estou
disposto a apostar o meu distintivo em como a imprensa saberá de tudo antes mesmo
de
eu sair deste escritório. Assim que os funcionários públicos se metem no assunto, é
inevitável que as línguas comecem a falar. Quanto ao governador - homicídios
múltiplos, especialmente de cidadãos modelo, significam reprovação política."
Disse a Silvestri:
- Visitarei pessoalmente cada departamento policial do estado para os pôr a par do
assunto, mas, por enquanto, prefiro limitar essa força especial a mim, ao Patrick,
ao Abe e ao Corey.

109

Capítulo Cinco

Tinham-se passado duas semanas desde a descoberta de Mercedes Alvarez no


frigorífico para animais mortos do Hug, e a maré de artigos e reportagens nos
jornais e
na televisão começara a recuar para um vácuo informativo. Não escapara nem um
murmúrio sobre a incineração, o que deixou a força especial estupefacta. Ao que
parecia,
a pressão de todo o tipo de pessoas influentes e políticas em posições elevadas
suprimira este facto como sendo demasiado sensível, demasiado perturbador e matéria
para pesadelos. Claro que o factor caribenho fora repisado sem piedade. O número de
vítimas tinha sido fixado em onze; não viera à luz do dia nenhum caso anterior
a Rosita Esperanza, em Janeiro de 1964, incluindo nos outros estados da União.
Claro que a imprensa teve de dar uma alcunha ao assassino: era o Monstro do
Connecticut.
A vida no Hug já não era apenas uma questão de pequenos triunfos no comportamento
dos iões de potássio através da membrana neuronial cerebral, ou de grandes triunfos
como quando Eus-tace sofreu uma convulsão do lobo temporal sob estimulação
eléctrica do nervo ulnar. Agora, a vida no Hug era plena de tensões,

110

que se revelavam em olhares de esguelha, frases suspensas a meio, uma fuga


apreensiva ao assunto que nunca estava longe da mente de qualquer Hugger. Havia
apenas
um pequeno consolo: parecia que os polícias tinham acabado com as visitas, até
mesmo as do tenente Delmonico, que durante oito dias assombrara todos os pisos.
As fendas que estavam a aparecer na estrutura social do Hug irradiavam
principalmente da figura do Dr. Kurt Schiller.
- Não se aproxime de mim, seu nazi cobarde! - gritou o Dr. Maurice Finch a Schiller
quando este veio à procura de uma amostra de tecidos.
- Sim, você pode chamar-me nomes - respondeu Schiller, ultrajado -, mas eu não me
atrevo a retaliar, aqui no meio dos judeus americanos!
- Se dependesse de mim, você seria deportado! - disse Finch rispidamente.
- Não pode culpar uma nação inteira pelos crimes de alguns -insistiu Schiller,
pálido e de punhos cerrados.
- Quem disse que não posso? Foram todos culpados! Charles Ponsonby interveio, pegou
no braço de Schiller e escoltou-o até aos seus domínios.
- Eu não fiz nada... nada - gritou Schiller. - Como é que sabemos... como é que
temos a certeza... que o corpo foi cortado para ser incinerado? São apenas
mexericos,
mexericos perversos! Eu não fiz nada!
- Meu caro Kurt, a reacção do Maurice é compreensível - disse Charles. - Ele tinha
primos que foram para os fornos em Auschwitz, pelo que a mera ideia de incineração
é... bom, é profundamente perturbadora para ele. Também compreendo que não é fácil
ser o alvo das suas emoções. O melhor que tem a fazer é não se aproximar muito
dele até as coisas acalmarem. E é o que vai acontecer, é o que acontece sempre.
Pois tem toda a razão... são apenas mexericos. A polícia não nos disse nada. Queixo
para cima, Kurt... porte-se como

111

um homem! - A última frase foi pronunciada com uma inflexão que fez Schiller
esconder o rosto nas mãos e soluçar amargamente.
- Os mexericos - disse Ponsonby para si próprio enquanto regressava ao laboratório
-, são como os alhos. Um bom servo, mas um péssimo mestre.
Finch não era o único que usava Schiller como bode expiatório das suas frustrações.
Sônia Liebman afastava-se ostensivamente dele sempre que o encontrava; Hilda
Silverman começou subitamente a extraviar os seus jornais e artigos; Marvin, Betty
e Hank perdiam as suas amostras e pintavam suásticas nos ratos cujos cérebros
eram destinados à patologia.
Finalmente, Schiller dirigiu-se ao professor para lhe apresentar a sua demissão,
que a recusou.
- Não posso aceitar de maneira nenhuma, Kurt - disse Smith, cujo cabelo parecia
estar mais branco de dia para dia. - Estamos sob observação policial, não podemos
mudar de funcionários. Além disso, se saísse agora, sairia no meio de uma nuvem de
suspeita. Cerre os dentes e aguente a situação, tal como todos nós.
- Mas eu estou mais do que farto de cerrar os dentes - disse o professor a Tâmara
depois de Schiller sair, arrasado. - Oh, Tâmara, por que diabo isto tinha de nos
acontecer?
- Se eu soubesse, Bob, tentaria resolver o problema - disse ela, instalando-se o
mais confortavelmente na cadeira e entregando-lhe um rascunho do relatório do Dr.
Nur Chandra para ler, o relatório que detalhava de forma fria e clínica os
pormenores da extraordinária convulsão de Eustace.
Quando regressou ao seu gabinete, Tâmara encontrou Desdemona Dupre à sua espera,
mas não onde qualquer outra pessoa estaria. A cabra inglesa estava a remexer
descaradamente
nos papéis que se encontravam em cima da secretária apinhada de Tâmara!

112

- Viu a minha folha de ordenado, Vilich?


O canto de uma comunicação manuscrita altamente confidencial espreitava por baixo
de um molho de rascunhos de notas que estava a transcrever para o professor; Tâmara
precipitou-se para a secretária e empurrou Desdemona.
- Não se atreva a vasculhar nos meus papéis, Dupre!
- Estava apenas fascinada pelo caos em que trabalha - disse Desdemona. - Não admira
que não conseguisse organizar esta instituição. Não conseguiria organizar sequer
uma sessão de copos numa cervejaria.
- Por que é que não se vai foder? Uma coisa é certa, é demasiado feia para que um
homem trate disso!
Desdemona ergueu as sobrancelhas quase invisíveis.
- Há destinos piores do que morrer sem saber o que isso é -disse, com um sorriso -,
mas felizmente há homens que gostam de escalar o Monte Evereste. - Os seus olhos
seguiram as unhas pintadas de vermelho de Tâmara enquanto esta arrumava os papéis,
escondendo a folha confidencial. - Uma carta de amor? - perguntou.
* - Desapareça! A sua folha de ordenado não está aqui! • Desdemona saiu, ainda a
sorrir; através da porta aberta conseguia ouvir o seu telefone a tocar, à
distância.
- Miss Dupre - disse, sentando-se.
- Oh, óptimo, fico contente por saber que foi trabalhar - disse a voz da sua outra
bete noire.
- Venho sempre trabalhar, tenente Delmonico - respondeu secamente. - A que devo
esta honra?
- Que me diz a jantar comigo uma destas noites?
O convite foi um choque, mas Desdemona não cometeu o erro de pensar que ele estava
a cortejá-la. Com que então, o Alto Carrasco do Rei estava desesperado, não era?
- Isso depende - disse, em tom prudente.
- De quê?
- De quais serão as suas segundas intenções, tenente.

113

- Bom, enquanto pensa nisso, que tal se me tratasse por Carmine e eu a tratasse por
Desdemona?
- Os primeiros nomes são para os amigos, e encaro o seu convite mais à luz de um
interrogatório.
- Isso quer dizer que posso tratá-la por Desdemona?
- Já que tanto insiste.
- Óptimo! Então... jantar, Desdemona?
Ela recostou-se na cadeira e fechou os olhos, recordando o seu impressionante ar de
calma autoridade.
- Muito bem, jantar.
- Quando?
- Hoje, se estiver livre, Carmine.
- Fantástico. Que tipo de comida prefere?
- Geralmente, comida chinesa tradicional de Xangai.
- Por mim, óptimo. Passo em sua casa para a apanhar às sete.
Claro que o maldito tinha as moradas de toda a gente! Provavelmente passava por lá
regularmente para ver se havia algum rosto jovem e bonito a espreitar pela janela.
- Não, obrigada. Prefiro encontrar-me consigo no restaurante. Qual é?
- O Faisão Azul em Cedar Street. Conhece?
- Oh, sim. Encontramo-nos lá, às sete.
Ele desligou sem dizer mais nada, deixando Desdemona a maquinar e a planear, não um
jogo de sedução, mas sim um combate de esgrima. Oh, sim, uma sessão de estocadas
e defesas com o florete verbal seria muito bem-vinda! Como sentia falta desse
aspecto da vida! Aqui em Holloman estava no exílio, amealhando o seu salário
generoso
o mais depressa que podia, para poder sair deste país vasto e estranho, regressar à
pátria e retomar uma vida social estimulante, O dinheiro não era tudo, mas, quando
não se tinha nenhum, a vida era sempre deprimente. Desdemona queria um pequeno
apartamento em Strand-on-the-Green, voltado para o Tamisa, dar consultas em
clínicas
particulares e ter a cidade de Londres à porta. Era verdade

114

que Londres era tão desconhecida para ela como Holloman fora, ao princípio, mas
Holloman era um exílio e Londres era o eixo do universo. Cinco anos já estavam,
faltavam
outros cinco; depois, seria o adeus ao Hug e à América. "Podem tirar os ingleses da
Inglaterra", pensou, "mas não podem tirar a Inglaterra dos ingleses."
Desdemona ia e vinha sempre a pé para o trabalho, uma forma de exercício adequada à
sua mente de caminhante. Embora esta actividade espantasse alguns dos seus colegas,
Desdemona não se considerava em perigo pelo facto de o seu trajecto a levar mesmo
pelo meio do Buraco. A sua altura, o passo atlético, o ar de confiança e ausência
de mala de mão tornavam pouco provável que alguém a confundisse com uma vítima.
Além disso, ao fim de cinco anos, conhecia todos os rostos com que se cruzava e
recebia
apenas acenos amigáveis em resposta aos seus.
As folhas dos carvalhos já estavam a cair; quando Desdemona virou para a Twentieth
Street, para percorrer o quarteirão até à Sycamore, pisou grandes montes delas,
pois os camiões da câmara ainda não tinham passado por aqui. Ah, ali estava ele! O
gato siamês que estava sempre em cima de um poste para a cumprimentar quando
passava;
parou para retribuir. Atrás dela, ouviu o som de passos, que continuaram alguns
segundos depois de os dela terem parado. Foi isso que a fez virar-se, surpreendida,
com os cabelos da nuca arrepiados. Oh, com certeza que não seria agora, ao fim de
cinco anos! Mas não havia ninguém à vista, a menos que a pessoa se tivesse
escondido
por trás de um carvalho. Continuou, de orelhas arrebitadas, e voltou a parar vinte
passos mais à frente. O restolhar das folhas secas atrás de si parou também, meio
segundo depois. Sentiu o suor brotar-lhe da testa, mas continuou como se não
tivesse reparado em nada, virou para a Sycamore e, espantando-se a si própria,
correu
ao longo do último quarteirão até casa.
"Ridículo, Desdemona Dupre! Que parvoíce da tua parte. Era o vento, era um rato, um
pássaro, alguma criatura pequena que não viste."

115

Depois de subir os trinta e dois degraus até ao seu apartamento no segundo andar,
estava mais ofegante do que seria de esperar, apesar da corrida e das escadas.
Involuntariamente, olhou para o cesto do trabalho, mas estava intacto. O bordado
estava exactamente onde devia estar.
Eliza Smith fizera o jantar preferido de Bob, entrecosto com salada e pão quente. O
estado de espírito do marido preocupava-a extraordinariamente. Desde o homicídio,
tinha vindo sempre a piorar; mal-humorado, criticando coisas em que normalmente nem
reparava, muitas vezes tão distante que não via nem ouvia nada. Ela sempre soubera
que havia este lado na natureza de Bob, mas, entre uma carreira brilhante e a sua
mania na cave - também um bom casamento, apressou-se a acrescentar - ela sempre
estivera segura de que este aspecto da personalidade do marido nunca dominaria os
seus pensamentos, o seu mundo. Afinal de contas, ele ultrapassara o caso de Nancy
- oh, fora um pouco complicado durante algum tempo, mas recuperara - e o que podia
ser pior do que isso?
Apesar de os jornais e os noticiários da televisão terem parado de repisar o
assunto do "Monstro do Connecticut", Bobby e Sam não tinham percebido a indirecta.
Todos
os dias, na Escola Dormer Day, eles gozavam a glória de terem um pai intimamente
envolvido nos homicídios, e não percebiam por que haviam de se calar com o assunto
depois de chegarem a casa. Por favor, cortadas aos pedaços
- Qual deles é que achas que é, pai? - perguntou Bobby mais uma vez.
- Bobby, por favor - advertiu a mãe.
- Eu acho que é o Schiller - disse Sam, roendo um osso de entrecosto. -Aposto que
ele era nazi. Tem ar de nazi.
- Cala-te, Sam! Chega de falar nesse assunto - disse Eliza.
- Oiçam o que a vossa mãe vos diz, rapazes. Estou farto da conversa - disse o
professor, que mal tocara no prato.
A conversa cessou enquanto os rapazes comiam mais entrecosto, mastigavam o pão
estaladiço e olhavam para o pai especulativamente.

116

- Ah, vá lá, pai, por favor, por favor diz-nos quem achas que é -
disse Bobby em tom adulador.
- O Schiller é o assassino, o Schiller é o assassino! - cantarolou Sam. - Achtung!
Sieg Heil! Ich habe ein tiger in mein tank!
Robert Mordent Smith apoiou ambas as mãos na mesa, levantou-se e apontou para um
espaço vazio ao canto da sala. Bobby engoliu em seco, Sam gemeu, mas ambos os
rapazes
se levantaram e dirigiram ao local para onde o pai apontara, baixando as calças até
aos joelhos. Smith tirou uma longa chibata com a ponta esgarçada do seu local
habitual em cima do aparador, dirigiu-se aos rapazes e golpeou a barriga da perna
de Bobby com o instrumento. Batia sempre primeiro em Bobby, porque Sam tinha
tamanho
terror da chibata que ter de assistir ao castigo de Bobby duplicava o seu próprio
sofrimento. O primeiro golpe deixou vergões vermelhos, mas seguiram-se outros cinco
enquanto Bobby permanecia imóvel e corajosamente silencioso; Sam já estava a
chorar. Mais seis golpes na outra perna de Bobby e depois foi a vez de Sam levar
seis
na barriga de cada perna, aplicados com tanta força e rancor como os de Bobby,
apesar dos gritos. Sam era um cobarde, na opinião do pai. Uma menina.
- Vão para a cama e pensem nos prazeres de estarem vivos. Nem todos têm essa sorte,
lembram-se? Não quero que me importunem mais com essa história, perceberam?
- O Sam, talvez - disse Eliza depois de os rapazes saírem. -Tem só doze anos. Mas
não devias usar a chibata num rapaz de catorze anos, Bob. Ele já é maior do que
tu. Um dia vira-se contra ti. 3 Em resposta, Smith dirigiu-se à porta da cave, com
as chaves dos cadeados na mão.

117

- E não há necessidade para essa obsessão com fechaduras! -gritou Eliza da sala de
estar, enquanto ele desaparecia. - E se acontecer alguma coisa e eu precisar de
ti rapidamente?
- Grita!
- Oh, claro - murmurou ela, começando a levantar a mesa. -Nem me ouvirias, por cima
dessa barulheira infernal. E ouve bem o que te digo, Bob Smith, um dia os nossos
filhos vão voltar-se contra ti!
Os acordes de um concerto de Saint-Saens para piano brotavam de um par de colunas
gigantescas colocadas na divisória que dava para a cozinha. Enquanto Claire
Ponsonby
descascava camarões crus no antigo lava-loiça de pedra e lhes tirava a tripa, o
irmão abriu o forno "lento" do fogão Aga, com as mãos protegidas por luvas, e
retirou
uma caçarola de terracota. A tampa estava colada com uma massa feita de farinha e
água, para não deixar passar nem uma gota dos preciosos sucos; Charles pousou a
caçarola na extremidade da bancada de mármore com trezentos anos e deu início à
entediante tarefa de libertar a tampa da caçarola do seu selante de massa.
- Hoje inventei um aforismo excelente - disse, enquanto trabalhava. - Os mexericos
são como os alhos... um bom servo mas um péssimo mestre.
- Apropriado, tendo em conta a nossa ementa, mas os mexericos no Hug são mesmo
assim tão maus, Charles? Afinal de contas, ninguém sabe.
- É verdade que ninguém sabe se as partes do corpo foram parar à incineradora, mas
a especulação abunda. - Soltou uma pequena risada. - O principal alvo dos mexericos
é o Kurt Schiller, que veio chorar para o meu ombro... bah! Um teutão ornamental,
um impotente disfarçado... tive de morder a língua.

118

- Isso cheira divinamente - disse Claire, voltando-se para ele com um sorriso. -
Nem sei há quanto tempo não fazíamos um estufado de carne.
- Mas, primeiro, camarão com manteiga de alho - disse Charles. - Já acabaste?
- Estou a tratar do último. E esta é a música perfeita, para uma refeição perfeita.
Saint-Saens é tão sensual. Queres que derreta a manteiga, ou tratas tu disso?
Os alhos estão esmagados e prontos. Naquela molheira.
- Eu trato disso enquanto tu pões a mesa - disse Charles, colocando um pedaço de
manteiga na frigideira, com os camarões prontos para a sua breve imersão assim que
a manteiga fervesse e o alho estivesse castanho. - Limão! Esqueceste-te do sumo de
limão?
- Sinceramente, Charles, estás cego? Ao teu lado.
Sempre que Claire falava, com a sua voz rouca, a grande cadela deitada a um canto,
com o focinho apoiado nas patas, levantava a cabeça e batia com a cauda no chão,
erguendo e baixando expressivamente o sobrolho castanho claro na cabeça preta, como
se fosse um acompanhamento à música da voz de Claire.
Com os camarões entregues às mãos capazes de Charles e a mesa posta, Claire
dirigiu-se ao balcão de mármore manchado e pegou numa grande tigela de comida de
cão
enlatada.
- Toma, Biddy, meu amor, o teu jantar também está pronto -disse, cruzando a divisão
até junto do animal e colocando a tigela em frente dele. Biddy levantou-se num
ápice e atacou avidamente a comida. - É o teu sangue de labrador que te faz tão
glutona - disse Claire. - É uma pena que o sangue de pastor não seja forte o
suficiente
para te controlares. Os prazeres - continuou, em tom quase ronro-nante -, são
infinitamente mais doces quando gozados lentamente.
- Não podia estar mais de acordo - disse Charles. - Temos de demorar pelo menos uma
hora com a nossa refeição!
Os dois Ponsonby sentaram-se cada um do seu lado da mesa de madeira para comer, um
processo lento que só foi interrompido

119

quando o disco no gira-discos precisou de ser substituído. Esta noite era Saint-
Saens, mas amanhã podia ser Mozart ou Satie, dependendo da ementa. Escolher a
música
certa era tão importante como escolher o vinho certo.
- Presumo que vais à exposição de Bosch, Charles?
- Não a perderia por nada. Mal posso esperar por ver os quadros ao vivo! Por
melhores que sejam as fotografias a cores num livro, não se comparam com os
originais.
Tão macabros, tão cheios de um humor que não sei se é consciente ou inconsciente.
Não sei porquê, mas nunca consigo colocar-me dentro da mente de Bosch. Seria
esquizofrénico?
Teria uma fonte de cogumelos mágicos? Ou seria apenas a forma como ele foi criado
para ver, não apenas este mundo, mas também o outro? Na época, eles pensavam de
maneira diferente na vida e na morte, na recompensa e no castigo, disso tenho a
certeza. Os demónios dele escorrem júbilo enquanto torturam as suas infelizes
vítimas
humanas - riu-se. - Quer dizer, no Inferno, não se espera que ninguém esteja feliz.
Oh, Claire, Bosch é um autêntico génio! O seu trabalho, o seu trabalho!...
- É o que estás sempre a dizer-me - respondeu ela com alguma secura.
Biddy, a cadela, aproximou-se e pousou a cabeça no colo de Claire. Ela acariciou-
lhe as orelhas ritmicamente com as mãos compridas e magras, até o animal fechar
os olhos e gemer de felicidade.
- Faremos um menu Bosch para celebrar, quando voltares -disse Claire com um
sorriso. - Guacamole com muito chili, galinha tandoori, bolo do diabo...
Shostakovitch
e Stravinsky, um pouco de Moussorgsky à mistura... Um vinho Chambertin antigo...
- Por falar em música, o disco está riscado. Trata do estufado, está bem? - pediu,
dirigindo-se à sala de jantar, que nunca usavam para comer.
Claire deslocou-se pela cozinha de forma eficiente enquanto Charles, de volta ao
seu lugar, a observava. Primeiro, tirou as pequenas batatas da chapa eléctrica do
fogão, escorreu-as no lava-loiça,
120

deitou-lhes um pedaço de manteiga por cima e trouxe a tigela para a mesa. Dividiu o
estufado em dois pedaços, que colocou em dois antigos pratos Spode, e pousou-os
na mesa, entre cada conjunto de faca e garfo. Por fim foi buscar uma tigela de
feijões verdes escaldados. Nenhuma tigela ou prato embateu acidentalmente contra
outro;
Claire Ponsonby pousou tudo na mesa no seu exacto lugar. Entretanto, a cadela,
percebendo que não fazia falta na cozinha, voltou para o seu tapete e apoiou
novamente
o focinho nas patas.
- O que tencionas fazer amanhã? - perguntou Charles, depois de o estufado ser
substituído pelas pequenas chávenas de café forte e doce, e enquanto ambos
saboreavam
o aroma e o sabor de um charuto suave.
- De manhã, vou levar a Biddy para um longo passeio. Depois a Biddy e eu vamos
ouvir aquela palestra sobre partículas subatómicas... é no anfiteatro Susskind. Já
reservei um táxi para ir e para vir.
- Não devia ser necessário reservar um táxi! - exclamou Charles, com um brilho
colérico nos olhos. - Esses cretinos insensíveis que conduzem os táxis deviam saber
a diferença entre um cão-guia e outro cão qualquer! Um cão-guia urinar num táxi?
Que disparate!
" Ela estendeu o braço e pousou a mão directamente na dele; sem
ihesitações, sem falhas.
- Não custa nada reservar - disse, em tom apaziguador.
A ementa do jantar em casa dos Forbes era muito diferente.
Robin Forbes tentara fazer um pão de nozes que não se desfizesse assim que a faca
lhe tocasse, e salpicara-o com molho de arando pouco espesso para, tal como disse
a Addison, "lhe dar mais um gostinho, querido".
. Ele provou o resultado com ar desconfiado e recuou com ar horrorizado. ; - Está
doce! -guinchou. -Doce

121

- Oh, querido, um bocadinho de açúcar não te vai causar outro ataque cardíaco! -
gritou ela, unindo as mãos com exasperação. - Tu é que és médico, eu sou apenas
uma humilde enfermeira à antiga, sem nenhum curso superior, mas até as enfermeiras
sabem que o açúcar é o melhor combustível! Quer dizer, tudo o que comes e que
não se transforma em tecidos, transforma-se em glucose para uso imediato ou em
reservas de glicogénio. Estás a matar-te com esses exageros, Addison! Nem um
jogador
de futebol com vinte anos é tão duro consigo próprio!
- Obrigado pelo sermão - disse ele em tom cortante, raspando ostensivamente o molho
de arando do seu pão de nozes e enchendo o prato de alface, tomate, pepino, aipo
e pimento. Sem tempero, nem sequer vinagre.
- Esta manhã tive a minha conversa semanal com a Roberta e a Robina - disse ela em
tom animado, aterrorizada com a possibilidade de ele reparar que o rolo de carne
que ela estava a comer fora comprado já feito e que havia molho italiano para
saladas a espreitar por baixo das poucas folhas de alface que tinha no prato.
- A Roberta foi aceite em neurocirurgia? - perguntou ele, sem grande interesse.
A expressão de Robin perdeu a animação.
- Não, querido, rejeitaram-na; ela diz que foi por ser uma mulher.
- E com razão. É preciso ter o vigor de um homem para ser neu-rocirurgião.
Não valia a pena ir por esse caminho; Robin mudou de assunto.
- Mas - disse com alegria -, o marido da Robina teve uma grande promoção. Agora
podem comprar aquela casa que eles adoram em Worchester.
- Que bom para o... lá como é que ele se chama - disse Addison distraidamente; o
seu trabalho chamava-o, do alto da torre.
- Oh, Addison, ele é teu genro! Chama-se Callum Christie. -Suspirou e tentou mais
uma vez. - Esta tarde vi uma reposição de

122

Quo Vadis... meu Deus, fizeram os pobres cristãos passar um mau bocado, não foi?
Leões a arrastarem braços humanos de um lado
para o outro... brrrr!
- Conheço montes de cristãos que atiraria com todo o prazer aos leões. Roubam-nos
descaradamente seis dias da semana, depois vão à igreja no domingo e resolvem tudo
com Deus. Bah! Eu orgulho-me de assumir os meus pecados, por mais horríveis que
sejam -disse ele entre dentes.
Ela riu-se.
- Oh, Addison, sinceramente! Os disparates que tu dizes!
* A salada desaparecera; Addison Forbes pousou os talheres e perguntou a si
próprio, pela milionésima vez, por que diabo casara com uma enfermeira de cabeça
oca
a meio da faculdade. Se bem que soubesse a resposta, embora não gostasse de a
admitir; ele não tinha dinheiro para acabar o curso, ela estava louca por ele, e o
rendimento de uma enfermeira era o suficiente. Naturalmente que planeara fazer o
estágio antes de pensar em constituir família, mas a estúpida da mulher engravidara
antes de ele acabar o curso. E agora aqui estava, a debater-se com um internato e
duas filhas gémeas que ela insistira em baptizar com os nomes Roberta e Robina.
Apesar de serem homozigóticas, Roberta herdara a sua inclinação para a medicina,
enquanto Robina, a cabeça de vento, se tornara uma modelo adolescente de sucesso
antes de casar com um corretor da Bolsa em ascensão na sua carreira.
A repugnância que sentia pela mulher não se dissipara com os anos; pelo contrário,
crescera até ao ponto de praticamente não suportar olhar para ela e ter fantasias
secretas em que a matava lentamente.
- Farias melhor, Robin - disse, enquanto se levantava da mesa -, se te inscrevesses
nalgum curso na Universidade Estadual de West Holloman, em vez de enfardares
pipocas no cinema. Ou podias dedicar-te à cerâmica; parece que é o que as mulheres
de meia-idade sem talento fazem. Não podias fazer um curso de actualização de
enfermagem,

123

pois nunca darias conta da matemática. Agora que as nossas filhas deixaram a
segurança do rio maternal e o trocaram por uma vida no oceano, o teu rio
transformou-se
num lago estagnado.
O mesmo fim de todas as refeições; Addison subiu com passos pesados as escadas em
espiral até ao seu ninho fechado a sete chaves, enquanto Robin gritava atrás dele:
- Preferia morrer a passar o aspirador nessa tua torre estúpida. Deixa a porta
aberta, por amor de Deus!
A voz dele chegou-lhe do cimo das escadas.
- És muito bisbilhoteira, minha querida. Não, obrigado. Limpando os olhos com um
lenço de papel, Robin ensopou a
salada com molho italiano e cobriu o rolo de carne com molho de arando. Depois
levantou-se de um salto, correu para o frigorífico e desencantou uma caixa de
salada
de batata que escondera atrás das latas de gasosa. Não era justo que Addison lhe
impusesse o seu regime implacável, mas Robin sabia exactamente por que razão ele
o fazia: tinha um medo de morte de fraquejar se visse comida a sério.

Carmine Delmonico estava encostado ao faisão azul e dourado pintado na montra do


restaurante, com um grande saco castanho debaixo do braço. Seguiu distraidamente
com os olhos o Corvette vermelho-vivo, depois arregalou-os quando o viu estacionar
habilmente junto ao passeio e a porta abrir-se para deixar sair agilmente a
estatura
impressionante de Miss Desdemona Dupre.
- Uau! - exclamou, endireitando-se. - Não é o tipo de carro que eu teria escolhido
para si.
- Está a valorizar-se e não a desvalorizar-se, por isso quando o vender não
perderei dinheiro - disse ela. - Entramos? Estou esfomeada.
- Pensei que seria melhor comermos em minha casa - disse ele, começando a andar. -
O restaurante está apinhado de estudantes da

124

Chubb e o meu rosto é muito conhecido nos dias que correm, graças ao Holloman Post.
Era uma pena ter de obrigar os pobres coitados a correrem para a casa de banho
sempre que quisessem beber um trago das garrafas de álcool que trazem escondidas em
sacos de
papel.
- As leis do Connecticut em relação ao álcool são arcaicas -disse ela, caminhando
ao lado dele. - Os rapazes podem ir para a guerra e morrer, mas não podem beber
um copo.
- Não sou eu que vou discutir isso, mas estava à espera que você discutisse, quando
sugeri que jantássemos em minha casa.
- Meu caro Carmine, aos trinta e dois anos já sou um bocadinho velha demais para me
ofender como uma virgem com a ideia de jantar no apartamento de um homem... ou
é uma casa? Temos de andar
muito?
- Não, é já ao virar da esquina. Vivo no décimo segundo andar do edifício Nutmeg
Insurance. Dez andares de escritórios, dez andares de apartamentos. O doutor
Satsuma
tem a cobertura, mas eu não sou tão rico. Apenas modestamente remediado.
- A modéstia - disse ela, entrando à frente dele no vestíbulo de mármore -, não é
uma qualidade que eu associe a si.
- O que mais gosto em si, Desdemona - disse ele enquanto subiam no elevador -, é a
sua maneira de dizer as coisas. Ao princípio pensei que estivesse a fazer pouco
de mim, mas agora percebo que é natural para si ser tão... pomposa.
- Se evitar falar em calão é ser pomposa, então sou pomposa. Ele conduziu-a para
fora do elevador, tirou uma chave do bolso
e abriu a porta do apartamento, acendendo a luz.
Desdemona entrou numa sala que lhe tirou o fôlego. As paredes e o tecto eram de um
vermelho chinês baço, o chão estava coberto por uma carpete da mesma cor e
percebia-se
que fora dedicada muita atenção à iluminação. À volta da sala havia luzes
fluorescentes ocultas por uma sanefa, iluminando alguma da mais bonita arte
oriental que
ela alguma vez vira: um biombo de tigres sobre quadrados dourados,

125

uma pintura engraçada e ternurenta de um homem velho e gordo a dormir com a cabeça
apoiada num tigre, um grupo de tigres jovens e velhos, uma tigresa mamã a dar
de mamar a um tigre bebé, e, para desenjoar de tantos tigres, alguns painéis de
montanhas etéreas, pintadas sobre pedra branca, com molduras pretas intrincadamente
trabalhadas. Havia quatro cadeiras de braços chinesas, com estofos encarnados, em
volta de uma mesa Lalique, com penas de avestruz sob um vidro grosso e
transparente;
por cima estava aceso um pequeno candelabro Lalique a condizer. A mesa estava
impecavelmente posta para dois, com cristal e porcelana. À volta de uma mesinha,
composta
por um grande cão de cerâmica com um vidro sobre a cabeça, estavam dispostas quatro
poltronas chinesas vermelhas. Encostados às paredes, alguns armários de verniz
preto quebravam o encarnado predominante. Era interessante que este tom de vermelho
não se tornava discordante ou irritante. Era apenas intensamente sumptuoso.
- Meu Deus! - exclamou ela em voz baixa. - A seguir vai dizer-me que escreve poesia
intelectual e alberga mil desgostos secretos.
Isso fê-lo rir, enquanto levava o saco para uma cozinha tão branca como a sala de
estar era vermelha, imaculadamente limpa e tão arrumada que se tornava quase
intimidante.
Este homem era um perfeccionista.
- Longe disso - disse ele, enquanto despejava a comida fume-gante para tigelas. -
Sou apenas um polícia italiano de Holloman que gosta de estar rodeado por coisas
bonitas quando chega a casa. Vinho tinto ou branco?
- Cerveja, se tiver. Gosto de beber cerveja com comida chinesa.
Pegando em duas das tigelas, enquanto ele equilibrava as restantes nos braços como
um empregado de mesa profissional, ela comentou:
- Esta casa não é nada daquilo que eu estava à espera.
Ele puxou-lhe a cadeira, esperou que ela se sentasse e fez o mesmo.

126

- Coma - disse. - Trouxe um bocadinho de tudo o que havia na


ementa.
Uma vez que estavam os dois com fome, limparam as tigelas,
ambos manejando habilmente os pauzinhos.
"Eu sou uma snobe", pensou ela enquanto comia, "mas nós, ingleses, temos tendência
a ser snobes, a menos que sejamos naturais de Coronation Street. Por que raio
nos esquecemos de que os italianos já governavam o mundo antes de nós, e o
governaram durante mais tempo e com muito mais sucesso? Foram eles que deram à luz
a Renascença,
foram eles que adornaram o mundo com arte, literatura e o arco. E este polícia
italiano de Holloman tem o ar de um imperador romano, por que diabo não havia de
ter
sensibilidade estética?"
- Chá verde, chá preto ou café? - perguntou ele na cozinha enquanto arrumava a
loiça na máquina de lavar.
- Outra cerveja, por favor.
- Do que estava à espera, Desdemona? - perguntou ele das profundezas da sua
poltrona, com a chávena de chá verde pousada na mesa do cão chinês.
- Se tivesse havido uma Mrs. Delmonico... afinal de contas, podia haver... esperava
bom cabedal italiano e um esquema de cores conservador. Se fossem os aposentos
de um polícia solteirão... talvez peças desirmanadas compradas em lojas de artigos
em segunda mão. Não é casado? Pergunto apenas por delicadeza.
- Já fui, há muito tempo. Tenho uma filha com quase quinze anos.
- Sendo a pensão de alimentos americana aquilo que é, surpreende-me que possa
comprar Lalique e peças chinesas.
- Não pago pensão de alimentos - disse ele com um sorriso. - A minha "ex" deixou-me
para casar com um tipo que podia comprar e vender a Universidade Chubb. Ela e
a minha filha vivem numa mansão em Los Angeles que parece o Palácio de Hampton
Court.
- É viajado, pelo que vejo.
- Viajo de vez em quando, até em serviço. Fico sempre com os casos mais chatos e,
uma vez que a Chubb é uma comunidade internacional,

127

alguns deles estendem-se à Europa, ao Médio Oriente, à Ásia. Vi a mesa e o


candelabro numa montra em Paris e empenhei tudo o que tinha para os comprar. As
coisas
chinesas foram compradas em Hong Kong e em Macau, quando estive no Japão logo
depois da Guerra. Forças de ocupação. Os chineses eram tão pobres que me custaram
uma
bagatela. *
- Mas não teve problemas em se aproveitar da pobreza deles.
- Os tigres pintados não enchem a barriga. Eles conseguiram o que queriam e eu
também. - Não o disse em tom cortante, mas a sua voz tinha um toque de censura. -
Teriam ido para a fogueira no primeiro Inverno mais frio. Detesto pensar na
quantidade de coisas que foram queimadas durante os anos em que os japoneses
trataram
os chineses como ovelhas para o matadouro. Assim, cuido e aprecio aquilo que tenho.
Não é nada, em comparação com o que os britânicos tiraram da Grécia e os franceses
da Itália - acrescentou maliciosamente.
- Touché - ela pousou a cerveja. - Muito bem, está na altura de pôr as cartas na
mesa, tenente. O que pensava conseguir arrancar-me em troca de me dar de jantar?
- Provavelmente nada, mas, quem sabe? Não vou começar por lhe perguntar,qualquer
coisa que não possa descobrir sozinho, embora, se estivesse disposta a falar, isso
talvez me impedisse de espalhar algumas irritações pelo Hug. Você parece
permanentemente irritada e, como é tão alta, sei exactamente em que posição estou
consigo...
uns bons dez centímetros mais abaixo.
- Orgulho-me da minha altura - disse ela de lábios comprimidos.
- E com toda a razão. Há muitos tipos que gostam de escalar o Monte Evereste.
Ela desatou a rir.
- Foi exactamente isso que eu disse a Miss Tâmara Vilich ainda hoje! - depois ficou
séria e olhou directamente para ele. - Mas você não é um deles, pois não?

128

- Faça as suas perguntas, então.


- Qual é o orçamento anual do Hug?
- Três milhões de dólares. Um milhão para salários e pagamentos, um milhão para
custos de manutenção e fornecedores, três quartos de milhão para a Universidade
Chubb
e um quarto de milhão para reservas.
Ele soltou um assobio.
- Céus! Como é que os Parsons conseguem financiá-lo?
- A partir de um fundo com um capital de cento e cinquenta milhões. Isto significa
que nunca gastamos o que ele rende de juros. O Wilbur Dowling quer duplicar o
tamanho do Hug e incluir uma divisão psiquiátrica dedicada às psicoses orgânicas.
Embora isto não esteja dentro dos parâmetros do Hug, esses parâmetros podem ser
alterados de forma bastante legítima para satisfazer os seus desejos.
- Por que diabo é que o William Parson pôs tanto dinheiro de lado?
- Creio que por ser um céptico em termos empresariais, um homem que acreditava que
o dinheiro perderia inevitavelmente o valor com o passar do tempo. Ele era um
homem muito solitário, compreende, e para o final da vida o Hug tornou-se toda a
sua razão de viver.
- E duplicar o tamanho do Hug para acomodar as ambições do reitor levantaria alguns
problemas, para além dos monetários?
- Com certeza. Os Parsons não gostam do Dowling enquanto pessoa, e o M. M. é um
Chubber tão inveterado que considera a ciência e a medicina coisas bastante
sórdidas
cujo lugar, pela ordem natural, devia ser nas universidades de fundos públicos. Só
as tolera porque o governo federal investe muito dinheiro em investigação médica
e científica, e a Chubb lucra com isso. A percentagem do Hug não é a única que a
Chubb recebe.
- Então o M. M. e os Parsons são os obstáculos. Resume-se sempre a personalidades,
não é? - perguntou Carmine, reabastecendo

129

a chávena de um bule colocado dentro de um cesto almofadado para se manter quente.


- Trata-se de seres humanos, portanto a resposta é sim.
- Quanto é que o Hug gasta no equipamento mais caro?
- Este ano, gastou mais do que o habitual. O doutor Schiller vai ter um microscópio
electrónico que custará um milhão.
- Ah, sim, o doutor Schiller - disse Carmine, esticando as pernas. - Ouvi dizer que
alguns dos Huggers estão a fazer-lhe a vida tão difícil que ele tentou demitir-se
esta tarde.
- Como sabe disso? - inquiriu ela, endireitando-se na cadeira.
- Foi um passarinho que me disse.
Desdemona pousou o copo de cerveja com estrondo e levantou-se atabalhoadamente.
- Então vá dar de comer ao seu passarinho, e não a mim! - disparou.
Ele não se mexeu.
- Acalme-se, Desdemona, e sente-se.
Ela ficou de pé, efectuando o seu número habitual de olhar de cima para baixo, de
olhos fixos nos dele que eram, reparou com um canto da mente, não castanhos-
escuros,
mas mais cor de âmbar, uma tonalidade que a sala tornava ainda mais viva. O cérebro
por trás desses olhos sabia exactamente o que ela estava a sentir e não se
incomodava
com a indignação dela. O que, teve de admitir, era natural: a única coisa que
interessava a Carmine era descobrir o Monstro do Connecticut. Desdemona Dupre era
um
peão que ele podia facilmente dar-se ao luxo de perder. Sentou-se de novo.
- Assim é melhor - disse ele com um sorriso. - O que pensa do doutor Kurt Schiller?
- Como pessoa, ou como investigador?
- As duas coisas, suponho.
- Como investigador, é uma autoridade mundialmente reconhecida na estrutura do
sistema límbico, e foi por isso que o professor o foi buscar a Frankfurt. - Sorriu,
algo que não fazia tanto como devia;

130

o sorriso tornava muito atraente o seu rosto bastante vulgar. - Como pessoa, gosto
dele. O pobre coitado debate-se com desvantagens terríveis, para além da
nacionalidade.
- Como a homossexualidade?
- Outra vez o tal passarinho?
- A maior parte dos homens não precisa de um passarinho para perceber essas coisas,
Desdemona.
- É verdade. As mulheres são mais fáceis de enganar, porque têm tendência para
considerar os homens gentis e amáveis como boa matéria-prima para maridos. Muitos
deles preferem o seu próprio sexo, coisa que as mulheres só descobrem depois de
alguns filhos. Aconteceu a duas amigas minhas. No entanto, o Kurt é gentil e amável
mas não anda atrás das mulheres para poder reproduzir-se. Tal como todos os
investigadores, vive para o seu trabalho, portanto não creio que os seus casos
homossexuais
sejam duradouros. Ou então, se tem um namorado regular, imagino que ele não o deve
ver muitas
vezes.
- Você é muito fria - disse Carmine.
- Isso é porque não estou verdadeiramente envolvida. Honestamente, penso que o Kurt
veio para a América para começar de novo, para se colocar numa posição geográfica
que lhe possibilita visitar Nova Iorque e o meio homossexual sempre que lhe
apetece. Só se esqueceu... ou talvez não soubesse... é que, na América, muitas
pessoas
nas profissões médicas são de origens judaicas. Passaram apenas vinte anos desde o
fim da guerra, com todas aquelas revelações horríveis sobre os campos de
concentração,
e as recordações ainda estão muito vivas.
- Em si também, imagino - disse ele.
- Oh, para mim resumem-se essencialmente aos horrores do racionamento de roupas e
de comida... insignificâncias, podemos dizer. Bombas e V-2s, mas não onde eu vivia,
nas imediações de Lincoln. - Encolheu os ombros. - Enfim, de uma maneira geral eu
gosto do Kurt Schiller e,

131

até esta história terrível acontecer, o mesmo era verdade em relação a toda a
gente, incluindo o Maurie Finch, a Sônia Liebman, a Hilda Silverman e os técnicos.
Lembro-me de o Maurie dizer, na altura em que soube que o Kurt conseguira o emprego
na patologia, que tinha travado uma batalha com a sua consciência e que a sua
consciência lhe dissera que não devia ser ele o primeiro a atirar uma pedra a um
alemão que era suficientemente jovem para não ter participado no Holocausto. -
Olhou
de relance para o relógio, o Timex mais barato que conseguira encontrar. - Tenho de
ir, mas obrigada, Carmine. A comida era mesmo o que me apetecia, o ambiente é
verdadeiramente maravilhoso e a companhia... ora, bastante tolerável.
- Tolerável o suficiente para repetirmos na próxima quarta-feira? - perguntou ele,
ajudando-a a levantar-se como se ela pesasse metade dos seus setenta quilos.
- Se quiser.
Desceu com ela no elevador e insistiu em acompanhá-la ao Cor-vette.
"Uma mulher interessante", pensou, enquanto via o carro desaparecer. "Há mais nela
para além de um complexo pela altura. Quando começa a falar, esquece-se de olhar
de cima para baixo. Veste porcarias baratas, corta ela própria o cabelo, não usa
jóias. Isso quererá dizer que é sovina, ou simplesmente indiferente às aparências?
Acho que não se trata nem de uma coisa nem de outra. Não me espantou descobrir que
é uma adepta fanática de caminhadas. Consigo imaginá-la a marchar pelo Trilho
Apalache de botas grossas - um Tom Bombadil feminino. Nenhuma faísca de atracção
entre nós, o que foi um alívio. Uma vez que era capaz de apostar tudo o que possuo
em como não é ela o Monstro do Connecticut, Miss Desdemona Dupre é a escolha lógica
no Hug para cultivar uma boa relação.
Ah! Uma noite de trabalho produtiva!"

132

Capítulo Seis

- Não estamos a chegar a lado nenhum - disse Carmine a Silvestri, Marciano e


Patrick. - Já lá vão quase dois meses desde que a Mercedes foi raptada, e passámos
o
Connecticut a pente fino. Acho que não há nenhuma casa, celeiro ou barracão
abandonados em todo o estado que não tenhamos virado do avesso, nem uma floresta em
que
tenhamos deixado pedra sobre pedra. Se ele mantiver o seu padrão, já deve ter a
próxima vítima marcada, mas continuamos sem saber mais sobre ele ou sobre a
identidade
da próxima vítima do que sabíamos no primeiro dia.
- Talvez devêssemos procurar em casas, celeiros e barracões que não estejam
abandonados - disse Marciano, sempre o mais impaciente com as restrições oficiais.
- Sim, de acordo - disse Silvestri -, mas sabe muito bem, Danny, que nenhum juiz
emitiria um mandato de busca com aquilo que temos neste momento. Precisamos de
evidências.
- Pode acontecer que tenhamos assustado o assassino - disse Patrick. - Talvez ele
não rapte mais nenhuma vítima. Ou, se o fizer, talvez o faça noutro estado. O
Connecticut
não é assim tão grande. Ele podia viver aqui e ir apanhar raparigas em Nova Iorque,
no Massachussets ou em Rhode Island.

133

- Ele vai raptar outra rapariga, Patsy, e será dentro do Connecti-cut. E porquê no
Connecticut? Porque é o território dele. Sente-se como se o possuísse. Aqui ele
não é um forasteiro, este é o seu lar, doce lar. Penso que já cá vive há tempo
suficiente para conhecer cada cidade e aldeia.
- Quanto tempo seria preciso para isso? - perguntou Patsy, intrigado.
- Depende se é ou não um homem viajado. Mas eu diria no mínimo cinco anos... se ele
viajar bastante.
- Isso não exclui muitos dos Huggers.
- Pois não, Patsy. O Finch, o Forbes, o Ponsonby, o Smith, Mrs. Liebman, a Hilda
Silverman e a Tâmara Vilich são todos nascidos e criados no Connecticut. O
Polonowsky
está cá há quinze anos, o Chandra há oito e o Satsuma há cinco. - Carmine franziu a
testa. -Mudemos de assunto. John, a imprensa está a colaborar?
- Muito bem - respondeu Silvestri. - Vai ser muito mais difícil para ele raptar
outra rapariga dentro deste género. Daqui a uma semana os avisos vão começar a
sair...
jornais, rádio, televisão... com boas fotografias das raparigas e ênfase nas
origens católicas e cari-benhas.
- E se ele mudar de tipo de rapariga? - perguntou Marciano.
- Todos os malditos psiquiatras que consultei garantem-me que isso não acontecerá,
Danny. Na opinião deles, ele raptou onze raparigas que podiam ser irmãs, portanto
está fixo num conjunto de características que consiste de cor da pele, rosto,
tamanho, idade, geografia e religião - disse Carmine. - O problema é que tudo o que
os psiquiatras têm para se basear são pacientes que ainda não mataram, apesar de
alguns serem violadores múltiplos.
- Carmine, todos os presentes nesta sala sabem que a maior parte dos assassinos são
bastante estúpidos - disse Patrick, com ar pensativo -, e que, mesmo quando são
espertos, não são brilhantes. Podem ser astutos como ratos, ou terem sorte, ou
mesmo serem competentes. Mas este tipo está muito à frente dos outros... incluindo

134

de nós. O que estou a pensar é, será que ele obedecerá às regras estabelecidas
pelos psiquiatras? E se ele próprio for psiquiatra? Como o professor Smith? Ou o
Polonowski?
O Ponsonby? O Finch? O Forbes? Estive a ver o livro da Chubb e todos eles têm DMPs:
Diplomas em Medicina Psiquiátrica. Não são apenas neurologistas, têm a
escola toda.
- Merda - disse Carmine. - Eu vi DMP e nem pensei no que significava. Não mereço
estar à frente desta força especial.
- As forças especiais funcionam à base de cooperação - tranquilizou-o Silvestri. -
Agora que já sabemos, que diferença é que isso faz?
- Poderá ser uma mulher? - perguntou Marciano, de testa franzida.
- Segundo os psiquiatras, não, e neste ponto concordo com eles - disse Carmine com
convicção. - Este tipo de assassino ataca mulheres mas não é mulher. Talvez
gostasse
de ser, uma mulher parecida com as nossas raparigas... quem pode saber? Estamos aos
apalpões no escuro.
Desdemona deixara de ir e vir a pé para o trabalho, dizendo a si própria que era
uma tola, mas incapaz de vencer a sensação que acompanhava todos os seus passos
entre as folhas caídas - alguém estava a segui-la, alguém demasiado esperto para se
deixar apanhar. A mera ideia de deixar o seu adorado Corvette num parque de
estacionamento
aberto à beira de um gueto deixava-a aflita, mas não conseguia evitar. Se o carro
fosse roubado, teria de rezar para que o encontrassem inteiro. Mesmo assim, não
conseguiu forçar-se a contar a Carmine o que acontecera, apesar de saber que ele
não se riria dela. E, uma vez que não tinha origens nas Caraíbas nem media apenas
um metro e meio de altura, não lhe ocorreu nem por um momento que o seu perseguidor
tivesse alguma coisa a ver com o assassino que atormentava Carmine.

135

Enquanto comiam uma piza no apartamento dele, Desdemona pensou que ele parecia tão
tenso como um gato cujo território tivesse sido usurpado por um cão; não que ele
estivesse a ser seco, parecia apenas... agitado.
Bom, ela própria estava também agitada, e despejou as novidades sem preâmbulos.
- O Kurt Schiller tentou suicidar-se hoje.
- E ninguém me disse? - inquiriu ele.
- Tenho a certeza de que o professor lhe falará nisso amanhã -disse ela, limpando
molho de tomate do queixo com os dedos ligeiramente trémulos. - Aconteceu pouco
antes de eu sair.
- Merda! Como?
- Ele é médico, Carmine. Ingeriu um cocktail de morfina, feno-tiazina e seconal,
para causar paragem cardíaca e respiratória, com proclorperazina para se certificar
de que não vomitava.
- Quer dizer que morreu?
- Não. O Maurie Finch encontrou-o pouco depois de ele ter tomado o veneno e
manteve-o vivo até conseguirem transferi-lo para as urgências do Hospital de
Holloman.
Muitos antídotos e uma lavagem de estômago depois, ele ultrapassou a crise. O pobre
Maurie ficou de rastos e está a culpar-se a si próprio. - Pousou a piza meio
comida. - Falar nisso tira-me o apetite.
- Eu já estou habituado - disse ele, pegando noutra fatia. - O Schiller é a única
baixa?
- Não, apenas a mais dramática. Embora eu preveja que, depois de recuperar o
suficiente para poder voltar ao trabalho, aqueles que lhe fizeram a vida negra o
deixarão
agora em paz. Vão acabar as suásticas pintadas nos ratos dele... achei isso tão
revoltante e mesquinho! As emoções podem ser... oh, terrivelmente destrutivas.
- Claro. As emoções interferem com o senso comum.
- Este assassino é emocional?

136

- Frio como o vácuo do espaço, quente como o centro do Sol -disse Carmine. - É um
caldeirão de emoções que julga conseguir controlar.
- Mas você não acredita que ele as controle?
- Não. São as emoções que o controlam a ele. O que o torna um assassino tão bem
sucedido é o equilíbrio entre o vácuo do espaço e o centro do Sol. - Tirou o resto
de piza do prato dela e substituiu-o por uma fatia nova. - Tome, esta está mais
quente.
Ela tentou comer, mas engasgou-se. Carmine estendeu-lhe um balão com conhaque XO,
franzindo a testa.
- A minha mãe aconselharia grappa, mas o conhaque é muito melhor. Beba, Desdemona.
E depois diga-me quem são as outras baixas no Hug.
Desdemona sentiu o calor percorrer-lhe o corpo, seguido por uma maravilhosa
sensação de bem-estar.
- O professor - disse então. - Todos nós achamos que ele está à beira de um
esgotamento nervoso. Dá ordens, depois esquece-se de que as deu, cancela coisas que
não
devia, deixa a Tâmara Vilich safar-se com os seus crimes... - levou a mão à boca. -
Não estava a falar literalmente. A Tâmara é uma autêntica cabra, mas acho que
os crimes dela são morais, não homicidas. Anda metida com alguém e está
aterrorizada com a possibilidade de ser descoberta. Conhecendo-a como conheço, acho
que é
mais do que a atracção pelo fruto proibido. Ela está apaixonada, mas o seu amante
impôs-lhe uma condição: segredo, ou então...
- Isso quer dizer que ele é importante, ou que tem medo da mulher. Quem mais, para
além do professor?
Os olhos dela encheram-se de lágrimas.
- Oh, Carmine, sinceramente! Todos nós estamos a ser afectados pela tensão! Todos
esperamos e rezamos para que se este... este monstro atacar de novo, não implique
o Hug. O moral está tão em baixo que a pesquisa está a sofrer terrivelmente com
isso. O Chandra e o Satsuma andam a falar pelos cantos em ir-se embora, e o
Chandra,

137

em particular, é a nossa esperança mais brilhante. O Eustace teve outra convulsão


focal... até o professor ficou mais animado. É material para o Prémio Nobel.
- Ainda bem para o Hug - disse Carmine secamente. A sua expressão mudou, ajoelhou-
se em frente da cadeira dela e pegou-lhe nas mãos. - Está a esconder-me qualquer
coisa, e é sobre si. Conte-me.
Ela soltou-se.
- Por que diz isso?
- Porque tem ido de carro para o trabalho. Vejo o Corvette no parque de
estacionamento do Hug... ultimamente tenho passado por lá muitas vezes.
- Oh, isso! Está a ficar muito frio para andar a pé.
- Não é o que o meu passarinho me diz. Ela levantou-se e aproximou-se da janela.
- É uma parvoíce. Imaginite.
- O que é imaginite? - perguntou ele, colocando-se ao lado dela.
Carmine irradiava calor; Desdemona já reparara nisso antes e achava-o curiosamente
reconfortante.
- Oh, enfim... - hesitou, fez uma pausa e depois falou rapidamente, como se
quisesse pôr as palavras para fora antes de se arrepender. - Estava a ser seguida
todas
as noites até casa.
Ele não se riu, mas também não ficou tenso.
- Como sabe? Viu alguém?
- Não, ninguém. Essa é a parte mais assustadora. Ouvia o restolhar de passos atrás
de mim, nas folhas secas, e ouvia-os parar quando eu parava, mas nunca
suficientemente
depressa para eu não perceber. E contudo... ninguém!
- Assustador, hã? -Sim.
Ele suspirou, passou-lhe o braço pela cintura e conduziu-a a uma poltrona, dando-
lhe outro conhaque.

138

- Você não é o tipo de pessoa que entra facilmente em pânico, e duvido que seja
imaginite. No entanto, não creio que seja o Monstro. Guarde o seu carrinho
roncador.
A minha mãe tem um velho Merc que nunca usa, pode ficar com ele. Não é uma tentação
para os bandidos e talvez o seu perseguidor perceba a mensagem.
- Não quero dar esse trabalho.
- Não dá trabalho nenhum. Venha, eu sigo-a até casa e acompanho-a à porta. O Merc
estará lá pela manhã.
- Em Inglaterra - disse ela enquanto caminhavam até ao Corvette -, um Merc seria um
Mercedes Benz.
- Aqui - disse ele abrindo-lhe a porta -, é um Mercury. Já bebeu dois conhaques e
tem um tenente da polícia atrás de si, portanto conduza com cuidado.
Ele era tão simpático, tão generoso. Desdemona arrancou com o carro desportivo
assim que Carmine entrou no seu Ford, e conduziu até casa consciente de que o seu
medo se evaporara. Bastaria isto? Um homem forte ao seu lado?
Ele aguardou enquanto ela trancava o Corvette e escoltou-a até à porta do prédio.
- A partir daqui já não deve haver problema. . - Oh, não, vou consigo até lá acima.
- Está tudo desarrumado - disse ela, começando a subir as escadas.
Mas a desarrumação que a recebeu quando abriu a porta não era a que ela estava à
espera. A sua caixa de costura estava no chão, o conteúdo espalhado por todo o
lado,
e o seu novo bordado, uma casula de padre, estava em cima da cadeira, cortado em
tiras.
Desdemona cambaleou e Carmine amparou-a.
- O meu trabalho, o meu lindo bordado! - murmurou. - Ele nunca tinha ido tão longe.
- Quer dizer que já aqui esteve antes?
- Sim, pelo menos duas vezes. Mexeu no meu trabalho, mas nunca o estragou. Oh,
Carmine!

139

- Sente-se aqui. - Empurrou-a para outra cadeira e dirigiu-se ao telefone. - Mike?


- disse. - Fala Delmonico. Preciso de dois homens para vigiarem uma testemunha.
Para ontem, compreendeste?
A sua calma estava intacta, mas contornou a poltrona sem tocar em nada e depois
sentou-se no braço da cadeira dela.
- É um passatempo invulgar - disse, em tom casual.
- Eu adoro-o.
- Imagino que seja um grande desgosto ver isto. Estava a trabalhar na mesma peça
quando ele a visitou antes?
- Não, estava a fazer um pano de aparador para o Chuck Pon-sonby. Muito elegante,
mas não era o mesmo tipo de trabalho. Dei-lho há uma semana. Ele ficou encantado.
Carmine não disse mais nada até as luzes de um carro-patrulha se reflectirem pelas
janelas da frente, depois deu-lhe uma palmadinha no ombro e saiu, aparentemente
para dar instruções aos seus homens.
- Fica um homem aqui em cima, do lado de fora da porta, e outro no cimo das escadas
das traseiras. Estará em segurança - disse, quando voltou. - Eu deixo aqui o
Merc logo de manhã, mas não pode seguir de imediato para o trabalho. Deixe tudo
exactamente como está até os meus técnicos chegarem, de manhã, para verificar se
o nosso amigo destrutivo deixou alguma pista.
- Da primeira vez, deixou - disse ela.
- O quê? - perguntou ele em tom cortante, e Desdemona percebeu que ele estava a
perguntar o que o intruso tinha deixado, não simplesmente a soltar uma exclamação
de espanto. Carmine, quando estava a trabalhar, não perdia tempo.
- Um pequeno novelo de cabelos pretos curtos. A expressão de Carmine era ilegível.
- Compreendo - disse, e depois desapareceu, como se não soubesse o que dizer para
se despedir dela.
Desdemona foi para a cama, mas não dormiu.

140

Parte Dois

Dezembro de 1965

Capítulo Sete

Os estudantes saíram do Liceu Travis às centenas, alguns para percorrerem a pé as


curtas distâncias até às suas casas no Buraco, outros para embarcarem nas dezenas
de autocarros escolares alinhados ao longo da Twentieth e até à Paine. Nos velhos
tempos, os estudantes ter-se-iam simplesmente dirigido a qualquer autocarro que
passasse pelo seu destino, mas, desde o aparecimento do Monstro do Connecticut,
cada aluno estava atribuído a um autocarro em particular, identificado por um
número.
O motorista recebia uma lista de nomes e tinha ordens para não arrancar enquanto
todos os estudantes não estivessem a bordo. A administração do Liceu Travis
tornara-se
tão cuidadosa que, se algum aluno faltava às aulas, o respectivo nome era apagado
da lista antes de esta ser entregue ao motorista. Ir para a escola não era
problema;
o que todos temiam era o regresso a casa.
O Travis era o maior liceu público de Holloman, e abrangia uma área que ia desde o
Buraco aos limites norte da cidade, do lado ocidental. Os alunos negros estavam
em maioria, mas não por muitos, e, embora houvesse ocasionalmente problemas
raciais, a maior parte dos estudantes misturava-se e convivia segundo as suas
afinidades
pessoais. Assim, se a Brigada Negra tinha os seus apoiantes no Liceu Travis, o
mesmo era verdade em relação a várias igrejas e associações,

143

para além daqueles indivíduos que se equilibravam na fronteira entre um extremo e


outro, tirando notas razoáveis e sem arranjarem sarilhos. Qualquer professor do
corpo docente teria dito que as hormonas causavam mais problemas do que a raça.
Embora a polícia estivesse a dedicar uma atenção mais rigorosa aos liceus
católicos, o Travis não fora negligenciado. Quando Francine Murray, uma aluna de
dezasseis
anos que vivia no Valley, não apareceu no seu autocarro, a motorista saiu e correu
para o carro-patrulha da polícia de Holloman estacionado perto do portão. Momentos
depois reinava um caos controlado; os autocarros foram mandados parar, enquanto
polícias uniformizados verificavam se Francine Murray era um dos passageiros,
outros
pediam aos amigos de Francine que se identificassem e Carmine Delmonico dirigiu-se
a toda a velocidade para o Liceu Travis, com Corey e Abe.
Não que se tivesse esquecido do Hug. Antes de o Ford arrancar, deu instruções a
Marciano para se certificar de que todos os Huggers estavam presentes.
- Sei que não temos carros suficientes para enviar um para lá, portanto telefona a
Miss Dupre e diz que eu lhe pedi para identificar os passos de cada pessoa,
incluindo
as idas à casa de banho. Podes confiar nela, Danny, mas não lhe digas mais do que o
necessário.
Depois de terem revistado a vasta escola, desde os sótãos aos ginásios, os
professores reuniram-se no pátio enquanto o director da escola, Derek Daiman, um
negro
altamente respeitado, caminhava nervosamente de um lado para o outro. Continuavam a
chegar carros-patrulha, à medida que se verificava a ausência de desaparecimentos
nas outras escolas, e os polícias começaram a dispersar para interrogar todas as
pessoas que viam, revistar novamente o liceu e organizar os estudantes que se
amontoavam
no pátio, mortos de curiosidade.
- O nome dela é Francine Murray - disse Mr. Daiman a Carmine. - Devia ter entrado
naquele autocarro ali - apontou - mas não apareceu. Esteve na última aula, Química,
e tanto quanto consegui

144

perceber saiu da sala com um grupo de amigas. Quando chegam ao pátio dispersam-se,
conforme o autocarro onde estão ou se vão a pé... tenente Delmonico, isto é
terrível,
terrível!
- Ficar perturbado não a ajudará a ela nem a nós, Mr. Daiman -disse Carmine. - O
mais importante é saber, como é a Francine?
- Como as outras raparigas desaparecidas - disse Daiman, começando a chorar. - Tão
bonita! Tão popular! Boas notas, nunca se mete em problemas, um excelente exemplo
para os colegas.
- É de origem caribenha?
- Que eu saiba, não - disse o director, limpando os olhos. -Suponho que foi por
isso que não reparámos... as notícias diziam todas "parte hispânica" e ela não é.
Pertence a uma daquelas famílias negras muito antigas no Connecticut, com mistura
de sangue branco. Acontece, tenente, por mais que as pessoas se oponham a isso.
Oh, meu Deus, meu Deus, o que é que eu vou fazer? *
- Mr. Daiman, está a tentar dizer-me que um dos pais de Francine é negro e o outro
é branco? - perguntou Carmine.
- Creio que sim, creio que sim.
Abe e Corey tinham ido falar com os polícias uniformizados* dizendo-lhes que
revistassem todos os autocarros e depois seguissem caminho, mas que mantivessem os
amigos
de Francine num grupo até poderem ser questionados.
- Têm a certeza de que ela não está em lado nenhum da escola? - perguntou Carmine
ao sargento O'Brien, quando este saiu do edifício enorme com os seus homens e os
professores que lhes tinham servido de guias.
- Tenente, juro-lhe que ela não está lá dentro. Abrimos todos os armários, olhámos
para debaixo de todas as secretárias, procurámos em todas as casas de banho, na
cantina, nos ginásios, nas salas de aula, no salão de festas, nas salas de
arrumações, na sala da fornalha, nos sótãos, nos laboratórios de ciências, na sala
do
porteiro... em todos os malditos cantinhos - disse O'Brien, que estava a suar.

145

- Quem foi a última pessoa a vê-la? - perguntou Carmine aos professores, alguns a
chorar, todos a tremer de choque.
- Ela saiu da minha sala com as amigas - disse Miss Corwyn, a professora de
Química. - Eu fiquei a arrumar as coisas, não saí logo atrás delas. Oh, quem me
dera
não ter ficado!
- Não se recrimine, minha senhora. Não tinha maneira de adivinhar - disse Carmine,
estudando os outros. - Mais alguém a viu?
Não, ninguém a tinha visto. E não, ninguém vira qualquer desconhecido.
Ele conseguiu de novo, pensou Carmine, dirigindo-se ao grupinho de jovens
assustadas que tinham afirmado serem amigas de Francine Murray. Ele raptara-a sem
que ninguém
visse nada. Passaram sessenta e dois dias desde o desaparecimento de Mercedes
Alvarez, temos andado atentos, avisámos as pessoas, mostrámos fotografias do tipo
de
rapariga que ele escolhe como alvo, apertámos a segurança nas escolas, deslocámos
todos os nossos recursos para este caso. Devíamos tê-lo apanhado! E o que é que
ele faz? Convence-nos de que as origens caribenhas são parte obrigatória da sua
obsessão e muda para um grupo étnico diferente. E eu que contrariei Danny Marciano
quando ele o sugeriu. Oh, o Liceu Travis, de todos os locais possíveis! Um
autêntico formigueiro! Mil e quinhentos alunos! Metade desta cidade considera o
Travis
um campo de treino para bandidos, vadios e inúteis, esquecendo que é também um
local onde muitos miúdos decentes, negros e brancos, recebem uma boa educação.
A melhor amiga de Francine era uma rapariga negra chamada Kimmy Wilson.
- Ela estava connosco quando saímos de Química, senhor -disse Kimmy entre
fungadelas.
- Vocês têm todos Química?
- Sim, senhor, estamos a pensar seguir Medicina.
- Continua, Kimmy.
- Eu pensei que ela tinha ido à casa de banho. A Francine tem uma bexiga fraca,
está sempre a ir à casa de banho. Não estranhei

146

porque sei como ela é. Nem pensei! - As lágrimas jorraram. - Oh, por que é que eu
não fui com ela?
- Vão as duas no mesmo autocarro, Kimmy?
- Sim, senhor, - Kimmy fez um esforço enorme para controlar os sentimentos. -
Vivemos ambas na Whitney, no Valley. - Apontou para duas raparigas brancas e
chorosas.
- A Charlene e a Roxanne também. Nenhuma de nós se lembrou dela até a motorista do
autocarro fazer a chamada e ela não responder.
- Conhecem a motorista do vosso autocarro?
- Não sei como ela se chama, senhor. Mas conheço a cara dela.
Às cinco da tarde, o Liceu Travis estava deserto. Depois de ter
passado a escola e as imediações a pente fino, o cordão policial
estava a espalhar-se para o exterior, enquanto corria pelo Buraco a
notícia de que o Monstro do Connecticut atacara de novo. E desta
vez não era uma latina, mas sim uma rapariga genuinamente negra.
Enquanto Carmine se dirigia à residência dos Murray, Mohammed
el Nesr, informado por Wesley le Clerc, estava a convocar as tropas.
A meio caminho do Valley, o Ford parou junto de uma cabina
telefónica para Carmine poder falar com Danny Marciano sem os
inconvenientes de um rádio; a imprensa podia sintonizar a mesma
frequência e, ainda por cima, havia muita estática.
- Não faltava ninguém no Hug, Danny?
- Só o Cecil Potter e o Otis Green, que já tinham saído. Estavam ambos em casa
quando Miss Dupre lhes telefonou. Ela diz que todos os outros estavam presentes e
os seus passos eram conhecidos.
- O que podes dizer-me sobre os Murrays? Só consegui descobrir que um deles é negro
e o outro é branco.
- São como as outras famílias todas, Carmine... o sal da terra -disse Marciano com
um suspiro. - A única diferença é que não existe qualquer ligação às Caraíbas,
tanto quanto se saiba. São frequentadores

147

regulares da Igreja Baptista local, por isso tomei a liberdade de telefonar ao


pastor, Leon Williams, e pedir-lhe que fosse lá a casa dar a notícia. Está a
espalhar-se
à velocidade da luz, e não queria que um vizinho qualquer chegasse primeiro.
- Obrigado, Danny. Que mais?
- A metade negra do casal é o pai. É investigador associado de engenharia eléctrica
na Torre de Ciências Susskind, o que significa que pertence à faculdade e tem
um vencimento razoável. A mãe é branca. Trabalha no turno dos almoços na cantina da
Susskind, pelo que está em casa quando os filhos saem para a escola e regressa
a casa antes deles. Têm dois rapazes, ambos mais novos do que a Francine, que
frequentam a escola intermédia Higgins. O reverendo Williams disse-me que os
Murrays
causaram algum falatório quando se mudaram para a Whitney, há nove anos, mas a
novidade passou e agora fazem parte do cenário. As pessoas gostam muito deles, têm
amigos de ambas as cores.
- Obrigado, Danny. Até logo.
O Valley era uma zona de população mista, não propriamente abastada, mas também não
miserável. As tensões raciais rebentavam de tempos a tempos, geralmente quando
chegava uma nova família branca, mas os preços das casas não eram tão altos que o
facto de se ser negro fosse um contra significativo. Não era uma área conhecida
por abundância de cartas de ódio, animais de estimação assassinados, latas de lixo
entornadas ou graffitis insultuosos nas paredes.
Quando o Ford virou para a Whitney, composta por quarteirões de casas modestas,
Carmine sentiu Abe e Corey ficarem tensos.
- Meu Deus, Carmine, como é que deixámos isto acontecer? -disse Abe.
- Ele mudou de método, Abe. Foi mais esperto do que nós. Pararam em frente de uma
casa pintada de amarelo e Carmine
pôs a mão no ombro de Corey.
- Vocês ficam aqui. Se eu precisar, chamo-vos, ok?

148

O reverendo Leon Williams abriu a porta e deixou-o entrar em casa dos Murrays.
"Isto está a tornar-se um hábito", pensou Carmine.
Os dois filhos estavam noutra parte da casa; ouviam-se vagamente os sons de uma
televisão. Os pais, sentados lado a lado no sofá, estavam a esforçar-se
corajosamente
por manter a compostura; ela apertou a mão de Carmine como se fosse uma corda de
salvação.
- Não é caribenho, Mr. Murray? - perguntou Carmine.
- Não, definitivamente. Os Murrays estão no Connecticut desde antes da Guerra
Civil, lutaram pelo Norte. E a minha mulher é de Wilkes Barre.
- Têm alguma fotografia recente da Francine? Era como uma irmã das outras onze.
E assim se repetiu tudo, as mesmas perguntas que já fizera a onze famílias: quem
Francine costumava ver, que boas acções fazia, se tinha mencionado algum namorado
ou conhecido novo, se reparara em alguém a observá-la, a segui-la. Como sempre,
todas as respostas eram negativas.
Carmine não ficou nem um instante a mais do que era necessário. "O pastor é um
conforto muito maior para eles neste momento de dor do que eu. Eu sou o arauto da
desgraça, talvez do castigo, e é assim que me vêem. Estão a rezar para que a sua
menina esteja bem, mas mortos de medo de que não esteja. A espera que eu, o arauto
da desgraça, regresse e lhes diga que não está."
O comissário John Silvestri apareceu na estação de televisão local antes do final
do noticiário das seis, apelando às pessoas de Holloman e do Connecticut para que
ajudassem a procurar Francine, contactando a polícia se achassem ter visto alguma
coisa fora do normal. Um polícia de secretária tinha as suas utilidades, e uma
das melhores de Silvestri era a sua imagem pública - aquela cabeça de leão, o
perfil soberbo, a dignidade calma, o ar de franqueza.

149

Não tentou fugir às perguntas da jornalista, como um político tentaria, pois era um
político demasiado astuto para isso. As observações contundentes da jornalista,
sobre o facto de o Monstro do Connecticut ainda andar a monte e continuar a raptar
jovens inocentes, não afectaram de forma alguma a compostura de Silvestri; de
alguma forma, conseguiu fazer com que ela parecesse um lobo com pele de cordeiro.
- Ele é inteligente - respondeu Silvestri simplesmente. - Muito inteligente.
- Deve ser - disse Surina Chandra ao marido, ambos sentados em frente da televisão
gigantesca. Tinham pago uma fortuna por uma ligação especial desde Nova Iorque,
de modo a poderem ter televisão por cabo até às oito, altura em que se sentavam
para jantar. O que esperavam ver era qualquer coisa sobre a índia, mas isso era de
facto uma ocorrência rara. Os Estados Unidos, tinham descoberto, não tinham o
mínimo interesse na índia; estavam demasiado envolvidos nos seus próprios
problemas.
- Sim, deve ser - disse Nur Chandra distraidamente, com a mente ocupada por um
triunfo tão grandioso que a sua vontade era gritá-lo aos sete ventos. Mas não se
atrevia,
não se atrevia a correr esse risco. O segredo tinha de continuar só seu. - Vou
dormir na cabana nos próximos dias - acrescentou. Um sorriso curvou-lhe os lábios
perfeitos. - Tenho trabalho importante para fazer.
- Como é que alguém pode chamar inteligente àquele Monstro? - inquiriu Robin. - Não
é nenhuma inteligência assassinar crianças, é... é estúpido e desumano!
"Qual seria a definição dela de "inteligente"", pensou Addison Forbes, "se eu
insistisse para que me explicasse?"

150

- Eu concordo com o comissário da polícia - disse, descobrindo um caju esmagado


escondido por baixo de uma folha de alface. - Um tipo muito inteligente. O que o
Monstro faz é repugnante, mas tenho de admirar a sua competência. Ridicularizou a
polícia. - O caju derreteu-se na sua língua como néctar. - Quem - disse com azedume
- é que terá tido a ousadia de mandar a Desdemona Dupre caçar-nos como animais e
perguntar-nos onde tínhamos estado? Temos um espião entre nós e eu, pelo menos,
não me esquecerei disso. Por causa das idiotices dela, estou atrasado nas minhas
notas clínicas. Não esperes por mim a pé. E deita fora aquela caixa de gelado que
está no congelador, ouviste?
- Sim, ele é inteligente - disse Catherine Finch. Olhou ansiosamente para Maurie;
ele nunca mais fora o mesmo desde que aquele nazi idiota tentara suicidar-se.
Catherine,
que tinha uma natureza muito mais dura do que Maurie, achava uma pena que o nazi
idiota não tivesse sido bem sucedido, mas Maurie tinha uma grande consciência, que
lhe estava a dizer que ele é que era o idiota. Nada que ela pudesse dizer impediria
o pobre Maurie de se sentir culpado.
Ele não se deu ao trabalho de responder, limitando-se a afastar o
prato de carne e a levantar-se da mesa.
- Acho que vou trabalhar um bocado nos meus cogumelos -disse, pegando numa lanterna
que estava pendurada no alpendre, ao
passar.
- Maurie, não precisas de ir para o meio do escuro esta noite! -
gritou ela.
- Estou sempre no escuro, Cathy. Sempre.

151

Os Ponsonbys não viram o comissário Silvestri na televisão, porque não tinham


televisão. Seria inútil para Claire e Charles referia-se a ela como "o ópio dos
rebanhos
incultos".
Esta noite a música era o Concerto para Orquestra de Hinde-mith, um som agressivo e
ventoso que costumavam apreciar quando Charles encontrara uma garrafa
particularmente
boa de Pouilly Fume. Estavam a comer uma refeição ligeira, uma omeleta de ervas
finas, seguida por filetes de solha cozidos em água liberalmente cortada com
vermute
branco muito seco; nada de amidos, apenas alface romana com tempero de óleo de
avelãs e um sorvete de champanhe para terminar. Não era uma refeição que exigisse
café e charutos.
- Como eles insultam por vezes a minha inteligência - disse Charles a Claire quando
Hindemith entrou numa fase mais calma. -A Desdemona Dupre andou à procura de
toda a gente com a desculpa de precisar das nossas assinaturas num documento que o
Bob certamente desconhecia por completo e, uma hora depois, apareceram polícias
aos milhares. Precisamente quando eu estava a meio de uma linha de pensamento que
não precisava do barulho de botas a bater pelos corredores. Onde é que eu tinha
estado a tarde toda? Bah! Senti-me tentado a mandá-los para o diabo, mas não o fiz.
Tenho de admitir que o Delmonico tem ali uma operação bem gerida. Não se dignou
a conceder-nos a graça da sua presença, mas os lacaios dele traem bem o estilo do
chefe.
- Meu Deus - disse ela placidamente, com os dedos em volta do pé do copo de vinho.
- Achas que vão perseguir as pessoas do Hug sempre que for raptada uma rapariga?
- Imagino que sim. Tu não achas?
- Oh, sim. O mundo tornou-se um lugar tão triste. Às vezes, Charles, fico muito
contente por passar por ele sem o ver.
- Ainda hoje passaste por ele sem o ver, como fazes sempre. Mas gostava que
tivesses mais cuidado. Correm rumores de que

152

a Desdemona Dupre está a ser seguida. Apesar de ser um mistério o que ela poderá
ter a ver com a outra história - riu-se. - Que criatura tão grande e desprovida
de atractivos!
- Os fios tecem padrões previsíveis, Charles.
- Isso - disse ele -, depende de quem está a fazer as previsões.
Os Ponsonbys riram-se, a cadela ladrou e Hindemith continuou
a tocar.
Para grande surpresa de Carmine, o carro da sua mãe estava estacionado em frente do
Malvolio's quando lá chegou, pouco depois das sete da tarde, após ter entregue
Corey e Abe às respectivas esposas sofredoras.
- O que está a fazer aqui? - perguntou-lhe, ajudando-a a sair do carro. - Mais
problemas?
- Pensei que talvez quisesse companhia. Que tal é a comida aqui? Fazem hambúrgueres
para fora?
- Não, mas podemos comer aqui. Está quentinho.
- Fiz o melhor que pude para satisfazer o pedido do capitão Marciano esta manhã -
disse ela, comendo uma batata frita com os dedos -, mas demorei meia hora a
localizá-los
a todos. Não encontrava nenhum dos investigadores, até me aperceber de que podia
ser dia um de Dezembro, mas o telhado estava quente e abrigado do vento. Estavam
lá em cima a ter uma mesa redonda para discutirem o Eustace. Todos, e com ar de
quem não se mexia há eões.
- Eões?
- Há muito tempo.
- Peço desculpa por a ter usado desta maneira, mas não podia prescindir de nenhum
polícia enquanto houvesse esperança de encontrar a Francine.

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- Não faz mal, eu pus as culpas em cima de si. Muito causticamente. - Pegou noutra
batata frita. - Desde que correu a notícia de que estou a ser guardada pela
polícia,
sou encarada de forma diferente. A maior parte deles pensa que estou a armar-me.
- A armar-se?
- A inventar. A Tâmara diz que ando a tentar caçá-lo a si. Ele sorriu.
- Um esquema muito tortuoso, Desdemona.
- É uma pena que o meu bordado arruinado não tenha produzido nenhuma pista.
- Oh, ele é demasiado esperto, deixou uma pista apenas da primeira vez porque sabia
que você não ia fazer queixa.
Ela estremeceu.
- Por que é que tenho a sensação de que você pensa que foi o Monstro?
- Porque é uma pista falsa.
- Quer dizer que não corro perigo?
- Não foi isso que eu disse. Os polícias vão ficar lá.
- Será possível que ele pense que eu sei alguma coisa?
- Talvez sim, talvez não. As pistas falsas não precisam de uma razão específica,
para além de pretenderem criar ilusões.
- Vamos voltar ao seu apartamento para vermos o comissário no noticiário da noite -
sugeriu ela.
Depois, mais tarde, Desdemona sorriu.
- O comissário parece ser um querido. Não acha que ele lidou muito bem com a
espertalhona da jornalista?
Carmine ergueu as sobrancelhas.
- Da próxima vez que o vir, digo-lhe que você o acha um querido. É uma palavra
engraçada, mas posso dizer-lhe que o seu querido uma vez limpou, sozinho, um ninho
de metralhadoras alemãs com doze homens lá dentro, salvando uma companhia inteira.
Entre outras coisas.

154

- Sim, também consigo ver esse lado dele. Mas você não vai falar em mim. Quando se
encontrar com ele será uma reunião muito séria, porque a situação é muito séria.
O Monstro é verdadeiramente esperto, e chamar-lhe esperto talvez seja subestimá-lo.
- Ele é muitas coisas, Desdemona. Inteligente... esperto... louco... talvez um
génio. O que eu sei é que a fachada que apresenta ao resto do mundo é totalmente
credível.
Nunca baixa as defesas. Caso contrário, alguém já teria reparado. Acho que pode ser
um homem casado cuja mulher não desconfia dele. Oh, sim, é um tipo muito esperto.
- Você também é bastante esperto, Carmine, mas tem mais do que isso a seu favor. É
um buldogue. Assim que ferra os dentes em alguma coisa, nunca mais a larga.
Eventualmente,
o peso extra de ter de o arrastar com ele para todo o lado acabará por esgotar o
nosso
assassino.
Carmine sentiu uma vaga de calor percorrê-lo, sem saber bem se era por causa do
conhaque ou do elogio; inchou um bocadinho por dentro, com cuidado para não deixar
transparecer nada exteriormente.

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Capítulo Oito

Francine Murray ainda não tinha aparecido no dia seguinte, nem havia quem
duvidasse, à excepção dos seus pais, de que o Monstro a apanhara. Oh, os pais
também o
sabiam, mas como pode o coração humano existir num tal mar de dor arrasadora
enquanto existir outra alternativa? Uma vez, ela fora a uma festa de pijama sem
lhes
dizer nada - simplesmente esquecera-se, mas acontecera. Assim, aguardaram e
rezaram, esperando contra todas as possibilidades que tudo não passasse de um erro
e
que Francine entrasse a qualquer momento pela porta.
Quando Carmine voltou ao seu gabinete, às quatro da tarde, não tinha nada de
concreto para mostrar após um dia inteiro a falar com pessoas, incluindo no Hug.
Dois
meses num caso e nada. O seu telefone tocou.
- Delmonico.
- Tenente, fala Derek Daiman do Liceu Travis. Pode passar imediatamente por cá?
- Estarei aí dentro de cinco minutos.

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Derek Daiman, pensou Carmine, era provavelmente sempre o último professor a deixar
a escola; o seu gigantesco e poliglota bebé devia ser o diabo para gerir, mas
ele conseguia geri-lo bem.
Estava do lado de dentro da porta do edifício principal da escola, mas, assim que o
Ford entrou pelos portões, desceu os degraus a correr e dirigiu-se ao carro.
- Não disse nada a ninguém, tenente, só pedi ao rapaz que o encontrou que ficasse
onde estava.
Carmine seguiu-o e contornaram o bloco principal pelo lado esquerdo, até ao local
onde uma estrutura pouco graciosa, uma espécie de barracão, fora erigida adjacente
à parede lateral de tijolo, deixando uma passagem estreita que dava às janelas
laterais do edifício cerca de dois metros e meio de luz e ar, bem como uma vista
para
a parede de metal pintada de bege.
A educação era uma responsabilidade municipal; cidades como Holloman,
sobrecarregadas com populações crescentes nas zonas mais pobres, lutavam arduamente
para poderem
proporcionar instalações adequadas. E assim surgira este barracão, um hangar que
continha um campo de basquetebol, bancadas para os espectadores e, no extremo
oposto,
equipamento de ginástica - cavalos de saltos, argolas suspensas do tecto, barras
paralelas e aquilo que parecia ser dois postes e uma trave para salto em altura
ou salto à vara. Do lado direito do edifício havia outro ginásio semelhante, com
uma piscina e bancadas em vez do campo de basquetebol, e uma zona dedicada ao boxe,
à luta livre e a treinos. As raparigas deste lado, executando saltos graciosos, os
rapazes do outro lado, esmurrando violentamente sacos de boxe.
Apesar de terem entrado no ginásio pelo pátio, podiam tê-lo feito pelo edifício; a
curta passagem permitia aos estudantes o acesso directo, obrigatório quando estava
mau tempo, mas também tinha uma porta.
Derek Daiman conduziu Carmine através do campo de basquetebol, por entre as
bancadas, até à área de ginástica, onde aquilo que

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parecia grandes malões de madeira servia de assentos de ambos os lados. Este termo
era seu, recuperado dos tempos de exército; parecia-lhe recordar que, no liceu,
se chamavam apenas caixas. Ao lado da última caixa, na fila encostada à parede da
passagem, estava um jovem negro, alto e atlético, com o rosto molhado de lágrimas.
- Tenente, este é o Winslow Searle. Winslow, diz ao tenente Delmonico o que
encontraste.
- Isto - disse o rapaz, erguendo um casaco cor-de-rosa. - Pertence à Francine. Tem
o nome dela, vê?
Carmine leu, francine murray, bordado à máquina na fita grossa que servia para
pendurar o casaco no cabide.
- Onde estava, Winslow?
- Aqui dentro, enfiado dentro de um dos colchões, com a ponta da manga de fora. -
Winslow levantou a tampa da caixa, mostrando dois colchões de ginástica, um
enrolado,
o outro apenas dobrado.
- Como é que o encontraste?
- Eu pratico salto em altura, tenente, mas tenho um queixo de vidro. Se aterrar com
muita força, faço logo uma contusão - disse Winslow com um sotaque típico de
Holloman, a construção da frase indicando que tinha boas notas em Inglês e não
andava com nenhum gang.
- Potencial olímpico, muitas ofertas de várias universidades -murmurou Daiman ao
ouvido de Carmine. - Ele está a pensar em ir para Howard.
- Continua, Winslow, estás a explicar-te muito bem - disse Carmine.
- Há um colchão super espesso, que é o que eu uso sempre. O treinador Martin
guarda-o sempre na mesma caixa para mim, mas hoje não estava lá quando eu vim
treinar
um pouco depois das aulas. Fui procurá-lo e encontrei-o no fundo desta caixa. É
estranho, senhor.
- Estranho como?
- A caixa devia estar cheia, com os colchões empilhados como chouriços. Algumas das
outras caixas tinham demasiados colchões...
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pareciam latas de sardinhas. E o meu colchão super espesso nem sequer estava
enrolado. Estava dobrado, de um lado ao outro da caixa. O que tinha a manga do
casaco
de Francine de fora estava por cima dele. Tive um pressentimento, puxei a manga e o
casaco saiu logo. O chão em torno da caixa estava coberto por cinco colchões
semi-enrolados. Carmine inspeccionou-os com desânimo.
- Suponho que não te lembras qual era o colchão onde estava o
casaco?
- Oh, sim, senhor. Aquele que ainda está na caixa, em cima do
meu.
- Winslow, meu rapaz - disse Carmine, apertando calorosamente a mão do jovem -,
estou a torcer por ti para a medalha de ouro em mil novecentos e sessenta e oito!
Obrigado pela tua atenção e bom senso. Agora podes ir para casa, mas não fales
sobre isto com ninguém, está bem?
- Claro - disse Winslow, limpando a cara e saindo, com passos que faziam lembrar um
grande felino.
- Toda a escola está desolada - disse o director.
- E com razão. Posso ligar daquele telefone? Obrigado. Perguntou por Patrick, que
ainda não saíra.
- Vem tu próprio se puderes, mas, se não puderes, manda o Paul, o Abe, o Corey e
todo o teu equipamento, Patsy. Talvez consigamos encontrar alguma coisa útil.
- Importa-se de esperar comigo, Mr. Daiman? - perguntou quando voltou para junto da
caixa, agora com a tampa fechada e o casaco de Francine em cima.
- Não, claro que não - Daiman pigarreou, transferiu o peso de um pé para o outro e
respirou fundo. - Tenente, não estaria a cumprir o meu dever se não o informasse
de que vêm aí sarilhos.
- Sarilhos?
- Sarilhos raciais. A Brigada Negra está a fazer uma campanha agressiva em busca de
apoio, usando o desaparecimento da Francine como plataforma. Ela não é hispânica
e, nos formulários que preenche,

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identifica-se como negra. Eu nunca discuto com os meus alunos de pele clara a forma
como se consideram em termos de raça, tenente... para mim, isso seria negar-lhes
os seus direitos. Tal como os novos conceitos sobre indígenas, em que só a própria
pessoa indígena pode decidir se o é ou não. - Estremeceu, com ar irónico. - Estou
a divagar. A questão é que alguns dos meus alunos mais irascíveis têm andado a
dizer que isto é obra de um branco assassino de raparigas negras, e que a polícia
não se está a esforçar para o apanhar porque ele é um membro importante do Hug com
muita influência política. Uma vez que a minha escola é cinquenta e dois por cento
negra e quarenta e oito por cento branca, a menos que eu consiga controlar os
miúdos da Brigada Negra, podemos ter grandes problemas.
- Céus, era só o que faltava! Mr. Daiman, nós estamos a dar tudo por tudo para
apanhar este assassino, tem a minha palavra de honra a esse respeito. Simplesmente
não sabemos nada sobre ele, muito menos se é membro do Hug... e ninguém no Hug tem
qualquer poder político! Mas agradeço-lhe pelo aviso e vou certificar-me de que
o Liceu Travis recebe alguma protecção. - Olhou da caixa para a porta do corredor
que dava para o edifício principal. - Importa-se que dê uma vista de olhos? Como
se vai daqui para a sala de Química? É um laboratório ou uma sala de aula normal?
- Fica logo ao fundo do corredor, quando se vem do ginásio, e é uma sala. O
laboratório fica na zona geral de laboratórios. Esteja à vontade, tenente, ande por
onde
quiser - disse Daiman, dirigindo-se a uma cadeira e sentando-se com a cabeça
apoiada nas mãos.
A porta do corredor estava fechada no trinco, não com uma volta da chave: alguma
vez estaria trancada? Do lado do túnel, não podia ser aberta sem chave - ou um
cartão
de crédito, se não estivesse trancada. Carmine entrou num pequeno túnel de três
metros e, quando emergiu no edifício, deu por si a olhar directamente para uma casa
de banho de raparigas do outro lado do corredor.
"Este assassino sabe tudo!", pensou, estupefacto. "Apanhou-a quando ela entrou na
casa de banho - ela era conhecida por isso

160

- arrastou-a ao longo de três metros de corredor, depois três metros de túnel, até
um ginásio deserto. Muito provavelmente abriu a porta antes de a agarrar. E sabia
que o ginásio estaria deserto! É o que acontece todas as quartas-feiras depois das
aulas, porque é nesse dia que os empreiteiros vêm tratar do chão. Mas não o fizeram
ontem, porque Francine desaparecera e não tiveram autorização para entrar. Depois
de estar no ginásio, redistribuiu os colchões, enfiou-a no fundo da caixa mais
próxima e certificou-se de que o colchão super espesso de Winslow a cobria
completamente. Tê-la-ia amordaçado e amarrado, ou dado uma injecção de qualquer
coisa
para a adormecer durante algumas horas?
Nós revistámos cada centímetro quadrado desta escola, duas vezes, mas não a
encontrámos. E, quando não a encontrámos, percebemos que ela era a décima segunda
vítima
e pensámos que tinha sido levada do Travis antes que o carro-patrulha lá fora
pudesse comunicar com a base. De ambas as vezes, algum polícia deve ter aberto
aquela
caixa e visto a mesma coisa que estava nas outras todas: colchões de ginástica
enrolados. Talvez a pessoa que espreitara para a caixa tivesse remexido no seu
interior,
mas Francine não se mexeu nem emitiu qualquer som. Depois, quando nos certificámos
de que Francine desaparecera - quando o liceu perdeu o interesse para nós - ele
voltou para a vir buscar. Vou pôr Corey a tratar da fechadura, ele é o melhor que
há nessa área.
Talvez continuemos a falhar quando subestimamos a meticulosidade, o esforço que ele
coloca nos seus planos. É como se não tivesse mais nada para fazer entre cada
rapto senão passar todos os minutos de cada dia a maquinar como há-de apanhar a
rapariga seguinte. Com que antecedência saberá a identidade da próxima vítima? Tê-
las-á
escolhido há anos, quando estavam apenas a entrar na puberdade? Tê-las-á todas
listadas num quadro na parede, cuidadosamente organizado por colunas - nome, data
de nascimento, morada, escola, religião, raça, hábitos? Ele tem de as observar,
tinha de saber que Francine tinha uma bexiga fraca. Será um professor

161

substituto, saltando de escola em escola com referências brilhantes e uma reputação


fantástica? Temos de investigar essa possibilidade imediatamente."
- Achas que ele deixou o casaco para trás só para nos provocar, ou foi a Francine
que conseguiu escondê-lo no colchão? - perguntou a Patrick enquanto via Paul enfiar
cuidadosamente o casaco num saco de plástico.
- Eu diria que foi a Francine que o escondeu - respondeu Patrick. - Ele é
arrogante, mas deixar-nos o casaco trairia um dos seus truques mais astuciosos. Até
agora,
estávamos convencidos de que as raparigas eram raptadas e levadas imediatamente.
Por que havia de nos dizer que nem sempre faz isso? Acho que ele quer que
continuemos
a olhar para o mesmo túnel, para o mesmo raio de luz. O que significa, Carmine, que
este novo desenvolvimento não pode de forma alguma chegar aos ouvidos da imprensa.
Confias no rapaz que o encontrou? No director?
- Sim, confio. Como é que ele a manteve quieta e calada na caixa, Patsy?
- Drogou-a. Uma pessoa tão meticulosa não cometeria o erro de a amordaçar antes de
a enfiar num armário de artigos desportivos, relativamente abafado e mal cheiroso.
Não há indícios de que ela tenha vomitado, mas os seres humanos variam e nem todos
têm tendência para vomitar. Não, ele não correria esse risco. Ela é demasiado
valiosa, ele passou pelo menos dois meses a fazer planos em relação a ela.
- Se encontrarmos o corpo dela...
- Não achas que a encontraremos viva?
Carmine olhou para o primo com aquilo a que Patrick chamava o seu "olhar
desdenhosamente severo".
- Não, não vamos encontrá-la viva. Não sabemos onde procurar e não podemos procurar
nos lugares que gostaríamos. Assim, quando encontrarmos o corpo dela - prosseguiu
-, acho melhor que examines a pele dela com um microscópio. Há uma picadinha,
algures,

162

porque ele não teria tempo de a injectar num local onde um bom patologista não
conseguisse encontrar a marca. O mais provável é que tenha usado uma agulha muito
fina e, desta vez, as partes do corpo podem não estar em tão bom estado.
- Talvez - disse Patrick ironicamente - eu possa pedir emprestado o microscópio de
operações Zeiss do Hug. O meu é uma merda, em comparação.
- Uma vez que nos deram orçamento ilimitado, não vejo por que razão não hás-de
encomendar um. Talvez não chegue a tempo de servir para a Francine, mas, depois de
o teres, tenho a certeza de que encontrarás muitas utilidades para ele.
- Aquilo de que mais gosto em ti, Carmine, é do teu descaramento. Eles vão
crucificar-te, porque te garanto que não vou pôr o meu nome na requisição.
- Eles que vão à merda - disse Carmine. - Não são eles que têm de falar com todas
estas pobres famílias. Eu é que tenho pesadelos com as cabeças das raparigas.

163

Capítulo Nove

Os dias passaram, sem sinais de Francine Murray, embora Ruth Kyneton não estivesse
a pensar em Francine Murray naquela manhã.
Mesmo no pino do Inverno, Ruth Kyneton preferia usar a corda da roupa exterior do
que enfiar os lençóis acabados de lavar num daqueles secadores de roupa eléctricos.
Não havia nada melhor do que o cheiro da roupa seca ao ar puro e fresco. Além
disso, desconfiava fortemente de que os amaciadores anti-estática perfumados que a
televisão anunciava eram, na verdade, um plano do governo para impregnar a pele dos
cidadãos americanos leais e respeitadores da lei com substâncias concebidas para
os transformar em zombies. Para onde quer que uma pessoa se voltasse, o Congresso
estava sempre a espezinhar os direitos de alguém, a favor de bêbados, canalhas
e vadios, logo, por que não nos amaciadores, desodorizantes e flúor? Ruth pendurava
a roupa lavada como devia ser: dobrava um canto por cima da peça anterior para
ficar mais espesso, punha a mola, depois enfiava o canto oposto por baixo da peça
seguinte e punha a mola, trabalhando com a boca cheia de molas, e mais nos bolsos
do avental. Sim, o seu método significava metade das molas e uma corda tão cheia
que não se via um centímetro livre; depois de acabar, colocava um pau bifurcado
por baixo da corda para esta não descair. O que o dia de hoje tinha de bom, era que
não estava suficientemente frio

164

para congelar as peças enquanto estavam molhadas. Apesar de ser uma purista, Ruth
não gostava de se debater com roupa congelada.
Durante este exercício, apercebera-se de que três rafeiros de Griswold Lane estavam
a lutar ao fundo do seu quintal; iam acabar por se aproximar, porque era o que
os rafeiros faziam sempre, e ela não estava disposta a deixar que eles sujassem a
sua roupa branca, tão branca que encadeava, nem a sua roupa de cores vivas e
brilhantes.
Assim, entrou em casa para ir buscar uma vassoura e marchou resolutamente ao longo
do quintal até ao local, no extremo oposto, onde corria um pequeno regato. O regato
era um aborrecimento -era verdade que impedia que o solo gelasse rapidamente, mas
criava lama. Os rafeiros iam ficar cobertos de lama negra e viscosa.
- Xô! - gritou, precipitando-se sobre eles como uma bruxa acabada de desmontar da
sua vassoura, agitando-a energicamente. - Xô, bichos sarnentos, xô! Vá, desandem!
Os cães estavam envolvidos mais numa rixa amigável do que propriamente numa luta,
disputando entre os três um osso comprido e sujo de lama, com fragmentos de carne
ainda agarrados, e não pareciam dispostos a desistir do prémio, até que a vassoura
de Ruth acertou em dois deles com tanta força que fugiram, a ganir, e pararam
a alguma distância à espera que ela desistisse. O terceiro cão, o líder da matilha,
agachou-se e inclinou as orelhas para trás, rosnando e arreganhando os dentes.
Mas Ruth perdera o interesse nos rafeiros; o osso era duplo, e tinha um pé humano
na ponta.
Ruth não gritou nem desmaiou. Ainda com a vassoura nas mãos, regressou a casa para
chamar a polícia de Holloman. Depois de o fazer, posicionou-se à beira da lama
para ficar de guarda até chegar ajuda, enquanto os cães, frustrados mas não
derrotados, a circundavam.

165

Patrick isolou a área do regato e concentrou-se primeiro na sepultura, a apenas dez


metros do local onde os cães estavam a lutar pela sua descoberta.
- O meu palpite é que os guaxinins foram os primeiros a chegar - disse a Carmine -,
mas estou certo de que ela... sim, só pode ser a Francine... foi deliberadamente
enterrada com o intuito de ficar à vista pouco tempo depois. A profundidade é de
apenas trinta centímetros. Oito dos dez pedaços ainda estão no local. O Paul
encontrou
o úmero direito nuns arbustos... guaxinins. A tíbia e o perónio e pé esquerdos
foram o que chamou a atenção de Mrs. Kyneton. Tenho homens de confiança à procura,
mas não me parece que a cabeça esteja aqui.
- Nem a mim - disse Carmine. - E estamos de volta ao Hug.
- Assim parece. O meu palpite é que este assassino guarda um rancor qualquer.
Carmine deixou Patrick com o seu trabalho e dirigiu-se à casa, onde encontrou Ruth
Kyneton disposta a falar e capaz de o fazer, apesar de não ser de modo nenhum
indiferente ao destino de Francine Murray.
- Pobre menina! Ele é que devia ter sido carne para os cães, e mesmo assim era bom
demais. Se fosse eu, fervia-o em óleo... sentava-o dentro do óleo e acendia o
fogo com as minhas próprias mãos, e depois ficava a vê-lo fritar bem devagarinho -
disse, com uma mão encostada ao estômago. - Importa-se que eu beba um chá, tenente?
Acalma-me o estômago.
- Se eu puder fazer-lhe companhia, minha senhora.
- Porquê nós? - perguntou ela. - Era isso que eu gostava de saber.
- Também eu, Mrs. Kyneton. Mas, mais importante ainda, viu ou ouviu alguma coisa a
noite passada?
- Tem a certeza de que foi a noite passada?
- Quase absoluta, mas conte-me tudo o que tenha acontecido de invulgar em qualquer
noite das últimas nove.

166

- Nada - disse ela, colocando uma saqueta de chá em cada caneca. - Não ouvi barulho
nenhum. Oh, os cães ladraram, mas estão sempre a ladrar. Os Desmonds tiveram
uma discussão... gritos e choro, coisas a partirem-se... anteontem à noite. Isso
também acontece regularmente. Ele é alcoólico. - Reflectiu por um instante. - E
ela também.
- Ouviria alguma coisa se estivesse a dormir?
- Não durmo muito, e nunca antes de o meu filho chegar a casa - disse Ruth,
enchendo o peito de orgulho. - Ele é cirurgião cerebral na Chubb, trata aquelas
bolhinhas
nas veias que rebentam como uma conduta de água.
- Artérias - corrigiu Carmine automaticamente; a educação no Hug estava a começar a
fazer-se notar.
- Isso, artérias. O Keith é o melhor que eles têm a tratar dessas bolhas. Eu penso
sempre nisso como remendar a câmara-de-ar de uma bicicleta velha. Fiz isso muitas
vezes, quando era miúda. Talvez tenha sido aí que o Keith foi buscar o gosto. Não
sei onde mais poderia ter sido.
"Se não estivesse tão irritado e preocupado", pensou Carmine, "era capaz de me
apaixonar por esta mulher. É um artigo original."
- Keith? É o marido de Miss Silverman?
- Sim. Estão casados vai para três anos.
- Presumo que o Dr. Kyneton chega frequentemente tarde a casa?
- Constantemente. As operações demoram horas e horas. Trabalha como um louco, o meu
Keith. Não é nada parecido com o pai. Esse não trabalhava nem que o obrigassem.
Sim, fico sempre à espera que o Keith chegue, para ver se ele come. Não consigo
dormir enquanto ele não chega.
- E ontem à noite, ele chegou tarde? E anteontem?
- Duas e meia ontem à noite, uma e meia anteontem.
- E costuma fazer muito barulho quando entra?
- Não, é silencioso como um morto. Mas é indiferente... eu oiço-o na mesma. Ele
desliga o carro e desliza pelo caminho de acesso,

167

mas eu oiço-o - disse Ruth Kyneton em tom convicto. -Estou à escuta.


- Houve algum momento a noite passada em que lhe parecesse tê-lo ouvido mas fosse
falso alarme? Ou na noite anterior?
- Não. A única coisa que ouvi foi o Keith a chegar a casa. Carmine bebeu o seu chá,
agradeceu-lhe e decidiu partir.
- Agradecia-lhe muito se não comentasse isto com ninguém, excepto com a sua
família, Mrs. Kyneton - pediu antes de sair. - Eu voltarei para falar com eles
assim
que puder.
Patrick tinha acabado de lavar as partes do corpo e estava a montá-las em cima da
mesa quando Carmine entrou.
- Estavam tão cobertas de lama, terra e folhas, que será um milagre se conseguir
encontrar alguma coisa útil - disse Patrick. -Guardei todo o fluido que usei para
os lavar... água destilada... e tirei uma amostra da água do ribeiro. Desta vez
tenho mais para trabalhar - prosseguiu, em tom satisfeito. - O padrão de violação
é o mesmo: uma sucessão de vibradores ou pénis ocos cada vez maiores, penetração
anal e vaginal. Mas estás a ver aquela linha recta de nódoas negras na parte
superior
dos braços, logo abaixo dos ombros, e aquela outra linha recta de nódoas negras por
baixo dos cotovelos? Ela foi amarrada com qualquer coisa com cerca de trinta
centímetros de largura, um tecido forte, como lona. As contusões foram causadas
quando se debateu, mas não conseguiu libertar-se. Isso também nos diz que este
assassino
não está interessado em seios. Prendeu-os, achatados, por baixo de uma faixa de
lona que os escondia. Isso significa que ela estava deitada numa mesa. Quanto à
razão
pela qual não se limitou a prender-lhe os pulsos ou a amarrar-lhe as mãos, não sei.
Manter-lhe as pernas livres já faz sentido, ele precisava de as afastar.
- Quanto tempo esteve ela viva depois de ser apanhada, Patsy?
168

- Cerca de uma semana, mas acho que ele não lhe deu de comer. O aparelho digestivo
estava vazio. A Mercedes tinha comido cereais e leite. Apesar de só termos o tronco
da Mercedes, acho que ele alterou alguns dos seus hábitos com a Francine. Ou talvez
cada vítima seja um pouco diferente. Sem os corpos, nunca saberemos.
- Há quanto tempo está morta? - perguntou Carmine.
- Há trinta horas, no máximo. Provavelmente menos. Foi enterrada a noite passada,
não na anterior, mas eu diria antes da meia-noite. Ele não a manteve escondida
muito tempo depois de ela ter morrido, mas posso dizer-te que morreu de perda de
sangue. Olha para os tornozelos - Patrick apontou.
Carmine ainda não tinha chegado a esse ponto; ficou rígido.
- Vergões - murmurou.
- Não faz parte do seu método. O que quer que tenha usado para a prender, não
esteve colocado mais de uma hora. Oh, mas ele é esperto! Sei, com toda a certeza,
que
não vou encontrar quaisquer fibras ou lascas nesses vergões. O meu palpite é que a
pendurou com um arame, certificando-se de que as uniões nunca estavam em contacto
com a pele. O arame cravou-se mas não rompeu a pele, ou seja, não roçou nem ficou
preso em nenhum sítio. Estas raparigas são pequenas e leves. Tal como fez com a
Mercedes, primeiro cortou-lhe a garganta para a sangrar e depois decapitou-a, mais
tarde... e não esperou muito entre uma coisa e outra na Francine, em comparação
com a Mercedes.
- Diz-me que há sémen.
- Duvido.
- Vais testar também a presença de sémen na água com que a lavaste?
- Carmine! Achas que é preciso perguntar?
- Espero que tenhas sorte - disse Carmine, apertando o braço do primo.

169

Dali seguiu para o escritório de Silvestri, seguido por Marciano; Abe e Corey ainda
estavam em Griswold Lane, perguntando aos habitantes se tinham visto ou ouvido
alguma coisa invulgar.
Carmine pôs Silvestri e Marciano a par dos acontecimentos.
- Será possível - perguntou Marciano depois - que este tipo não pertença ao Hug mas
tenha algum ressentimento contra o local ou alguma das pessoas?
- Isso começa a parecer cada vez mais provável, Danny. Embora eu gostasse muito de
ter a certeza de que todos os Huggers estavam onde deviam estar na quarta-feira
da semana passada, quando a Francine foi raptada. Demoraria uns bons vinte minutos
a ir do Hug ao Travis e voltar... a correr. Por outro lado, Miss Dupre demorou
trinta minutos a localizar os Huggers mais importantes. No entanto, parece que
estavam todos juntos no telhado e, como são apenas seis, tenho a certeza de que uma
ausência de vinte minutos seguida por um regresso ofegante teria despertado
comentários. Embora o doutor Addison Forbes talvez não reaparecesse ofegante,
também
tenho de levar isso em consideração. Mas, pondo esse aspecto de lado, é evidente
que o assassino quer que acreditemos que os homicídios estão relacionados com o
Hug. Caso contrário, porquê escolher a casa dos Kynetons para largar o corpo? Ele
queria que ela fosse descoberta rapidamente, de tal forma que mal se deu ao
trabalho
de a tapar com uma fina camada de lama. Todos os animais selvagens no raio de um
quilómetro devem ter vindo a correr. Ele tem alguém ou alguma coisa como alvo, mas
não sei quem ou o quê.
- Não achas que os Kynetons tenham alguma coisa a ver com o assunto? - perguntou
Silvestri.
- Ainda não verifiquei o Keith ou a Hilda, mas a Ruth Kyneton é uma mulher sem
artifícios.
- E agora?
- Vou falar com o Keith e a Hilda ainda hoje, mas vou adiar os outros Huggers até
segunda-feira. Quero que eles fermentem durante

170

o fim-de-semana, ouvindo os noticiários e todos os locutores de televisão armados


em polícias.
- Ele vai continuar a matar, não vai? - perguntou Marciano.
- Não consegue parar, Danny. Temos de ser nós a pará-lo.
- E aqueles psiquiatras novos que o fbi e a polícia de Nova Iorque consultam? Não
podem ajudar? - inquiriu Silvestri.
- A mesma velha história, John. Ninguém sabe muito sobre os assassinos em série. Os
psiquiatras despejam meia dúzia de frases feitas sobre ritual e obsessão, mas
não contribuem com nada útil. Não podem dizer-me qual é o aspecto deste tipo, nem
que idade tem, nem que tipo de emprego tem, nada sobre a sua infância, sobre o
seu nível de escolaridade... ele é um enigma, uma merda de um mistério total... -
Carmine parou, engoliu em seco e fechou os olhos. - Peço desculpa. Isto está a
afectar-me.
- Está a afectar-nos a todos. O problema é que talvez existam mais destes
assassinos múltiplos por aí do que julgamos - disse Silvestri. - Muitos mais como o
nosso
assassino, e alguém tem de fazer alguma coisa para ajudar a apanhá-los. O nosso
homem cometeu dez homicídios antes de nós sabermos sequer que ele existia. - Tirou
um charuto novo para mastigar. - Não abrandes,
Carmine.
- É o que tenciono fazer - disse Carmine, levantando-se. - Mais tarde ou mais cedo
o filho da mãe vai escorregar e, quando isso acontecer, eu estarei lá para o
apanhar.
- Oh, isto pode arruinar o Keith! - gritou Hilda Silverman, mortalmente pálida. -
Precisamente quando ele acaba de receber uma oferta fantástica... não é justo!
- Oferta de quê? - perguntou Carmine.
- Uma sociedade numa clínica particular. Terá de comprar a sua , claro, mas
conseguimos poupar o suficiente para isso.
"O que explica o porquê de viverem nesta semi-espelunca", pensou Carmine, olhando
de Hilda para Ruth, que parecia igualmente preocupada com Keith. As Mulheres Unidas
de Keith.

171

- A que horas chegou a casa ontem, Miss Silverman?


- Pouco depois das seis.
- E a que horas se deitou?
- Às dez. Deito-me sempre a essa hora.
- Então não espera pelo seu marido a pé?
- Não há necessidade. A Ruth espera por ele. Neste momento eu sou a principal fonte
de rendimentos da casa, compreende.
O som de um carro a entrar no caminho de acesso à casa galvanizou ambas as
mulheres; levantaram-se de um salto, correram para a porta da frente e saltitaram
como
dois jogadores de basquetebol a competirem pela melhor posição.
Uau! foi a reacção de Carmine quando Keith Kyneton entrou. Decididamente, o sapo de
Dayton, Ohio, transformara-se num príncipe. Como é que a transformação ocorrera,
e onde? O seu bom aspecto físico era inegável, mas o que fascinou Carmine foram as
roupas. Tudo do bom e do melhor, desde as calças de bom corte à camisola de
caxemira
castanha. O neurocirurgião bem vestido, depois de um dia cansativo na sala de
operações, enquanto a mulher e a mãe compravam nas prateleiras do Barato & Feio.
Depois de se libertar das mulheres, Keith olhou para Carmine com olhos cinzentos e
duros, os lábios grossos comprimidos.
- Foi o senhor que me arrancou à sala de operações? - inquiriu bruscamente.
- Eu mesmo. Tenente Carmine Delmonico. Peço desculpa, mas presumo que a Chubb deve
ter outro neurocirurgião que possa substituí-lo, não?
- Sim, claro que sim! - retorquiu ele. - Por que razão me mandou chamar?
Quando soube a razão, Keith deixou-se cair numa cadeira.
- No nosso quintal? - murmurou. - No nosso?

172

- No vosso, doutor Kyneton. A que horas chegou ontem à noite?


- Por volta das duas e meia, penso eu.
- Reparou em alguma coisa diferente no local onde estacionou? Estaciona sempre à
frente, ou costuma arrumar o carro na garagem?
- No pino do Inverno arrumo na garagem mas, por enquanto, ainda o deixo lá fora -
disse, olhando não para Ruth, mas para Hilda. - É um Cadillac com apenas um ano,
pega que é uma maravilha, mesmo quando as manhãs estão frias. - Estava a recuperar
a elevada opinião que tinha de si próprio. - A verdade é que, quando chego a casa,
estou exausto, verdadeiramente exausto.
Um Caddy novo quando a sua mulher e a sua mãe conduzem calhambeques com quinze
anos. "Que grande monte de merda que você é", doutor Kyneton.
- Não respondeu à minha pergunta, doutor. Reparou em alguma coisa fora do vulgar
quando chegou a casa ontem à noite?
- Não, nada.
- Reparou que a noite passada estava bastante húmida?
- Não posso dizer que tenha reparado.
- O caminho de acesso à casa não está alcatroado. Havia algumas marcas de pneus
estranhas?
- Já lhe disse que não reparei em nada! - exclamou ele com irritação.
- Com que frequência costuma trabalhar até tarde, doutor Kyneton? Quero dizer,
Holloman está assim tão sobrecarregada com pacientes que requeiram as suas
habilitações
em particular?
- Uma vez que a nossa é a única unidade do estado com o equipamento necessário para
efectuar cirurgia cerebrovascular, geralmente estamos sobrecarregados.
- Então chegar a casa às duas ou três da manhã é a regra? Kyneton mordeu o lábio,
desviando subitamente os olhos da
mãe, da mulher, do interrogador. Estava a esconder alguma coisa.
- Nem sempre fico na sala de operações - disse, em tom amuado.

173

- Se não fica na sala de operações, fica a fazer o quê?


- Estou a fazer um pós-doutoramento, tenente. Dou palestras que têm de ser
preparadas, tenho de escrever notas extremamente pormenorizadas sobre os casos,
tenho
de fazer as rondas de ensino no hospital, e ainda de treinar os residentes de
neurocirurgia - explicou, continuando a desviar o olhar.
- A sua mulher disse-me que vai comprar uma sociedade numa clínica de neurocirurgia
particular.
- É verdade. Pertence a um grupo em Nova Iorque.
- Obrigado, Miss Silverman, doutor Kyneton. Talvez tenha mais perguntas para vos
fazer mais tarde, mas por enquanto é tudo.
- Eu acompanho-o - ofereceu-se Ruth Kyneton.
- Na verdade, não precisava de me acompanhar - disse Carmine gentilmente quando
chegaram ao alpendre e a porta se fechou atrás deles.
- Fico contente por ver que pelo menos dois de nós não somos parvos.
- É essa a opinião que tem deles, Mrs. Kyneton? Parvos?
Ela suspirou e deu um pontapé numa pedrinha, que desapareceu na noite.
- Acho que foram as fadas que trouxeram o Keith... sempre foi diferente, já antes
de ir para o jardim-de-infância era todo ares e graças. Mas tenho de lhe dar
crédito
por uma coisa: trabalhou como um louco para conseguir ter uma boa educação,
evoluir. E amo-o terrivelmente por isso. A Hilda é a pessoa certa para ele, sabe.
Suponho
que pode não parecer, mas é.
- Se esta história da clínica particular for para a frente, o que lhe acontecerá a
si? - perguntou ele, em tom abrupto.
- Oh, eu não vou com eles! - disse ela alegremente. - Vou ficar aqui mesmo em
Griswold Lane. Eles cuidarão de mim.
Havia muitas coisas que Carmine queria dizer, mas limitou-se a dizer:
- Boa noite, Mrs. Kyneton. A senhora é uma mulher de fibra.

174

Pelo caminho até Cedar Street, Carmine debateu-se com a descoberta inesperada de
que o assassino por vezes escondia as raparigas no local do rapto para as remover
mais tarde. Esse facto assombrava-o mais do que a mudança de etnia.
- Ele não está a pedir-nos que o apanhemos - disse a Silvestri -, nem está a puxar
pelos nossos cordelinhos só para nos mostrar como é inteligente. Não acredito
que o ego dele precise desse tipo de estímulo. Se nos puxar os cordelinhos é porque
tem de o fazer, mais por fazer parte dos seus planos do que como um à parte com
piada. Tal como enterrar a Francine no quintal dos Kynetons. Na minha maneira de
ver, isso é um mecanismo de defesa. E diz-me que o assassino está ligado ao Hug,
que alberga algum ressentimento contra alguém de lá... e que não está minimamente
preocupado com a possibilidade
de o descobrirmos.
- Acho que temos de fazer uma busca no Hug - disse Silvestri.
- Sim e, mais especificamente, temos de a fazer amanhã, que é sábado. Mas não
conseguiremos que o juiz Douglas Thwaites nos passa um mandato de busca.
- A quem o diz - resmungou Silvestri. - Que horas são?
- Seis - disse Carmine, olhando para o antigo relógio de estação de caminhos-de-
ferro atrás da cabeça de Silvestri.
- Vou ligar para o M. M. e ver se ele consegue persuadir a direcção do Hug a dar-
nos autorização para a busca. Claro que podem ter quantos Huggers quiserem a
assistir
ao nosso trabalho, mas quem é que preferia, Carmine?
- O professor Smith e Miss Dupre - respondeu Carmine sem
hesitar.

175

- Ele deu-lhe uma injecção de Demerol - disse Patrick quando Carmine entrou. - Não
podia procurar uma veia com a rapariga a debater-se nos seus braços, mas precisava
que a droga fizesse efeito o mais depressa possível. Assim, procurei primeiro no
abdómen e lá estava. Para não correr o risco de perfurar o intestino ou o fígado,
teve de usar uma seringa hipodérmica de grande diâmetro... uma seringa fina de
calibre vinte e cinco teria perfurado o que lhe aparecesse à frente, em vez de
afastar
as coisas. E foi essa a nossa sorte. Uma picadela de uma calibre vinte e cinco
teria sarado completa-mente nos sete dias em que ele a manteve viva. A de calibre
dezoito fez um buraco.
- Por que é que no abdómen faz efeito mais depressa do que no músculo?
- Chama-se uma injecção parenteral, mistura a droga com os fluidos da cavidade
abdominal. É a melhor coisa, a seguir à veia. Eu já tinha calculado que ele devia
ter usado Demerol, é um opiáceo de acção rápida. Nome genérico, meperidina, e mais
viciante ainda do que a heroína, por isso conseguir uma receita mesmo para a versão
oral não é fácil. Só pessoal médico teria acesso a ampolas. Seja como for, eu
estava certo. Encontrámos vestígios de meperidina.
- Alguma ideia da quantidade?
- Não. Encontrei os vestígios nas células dérmicas onde a agulha penetrou. Mas ele
deve ter calculado mal a dosagem, ou então a Francine tinha uma maior resistência
à droga do que é normal. Se ela conseguiu esconder o casaco, é porque acordou muito
mais cedo do que ele contava.
- Não estava amordaçada, mas os sons eram abafados por um colchão super espesso.
Presa talvez com fita adesiva, por cima das calças e da blusa. Talvez tenha sido
ele próprio a tirar-lhe o casaco para a prender - disse Carmine. - Quando ela
acordou, não conseguiria mexer-se muito, mas é possível que tenha conseguido
libertar
parcialmente as mãos. Acho que a Francine era uma jovem formidável. O tipo de jovem
que não podemos dar-nos ao luxo de perder.

176

- Eram todas assim - Patrick franziu a testa. - Seja como for, ele devia ter visto
a manga cor-de-rosa a espreitar debaixo do colchão preto.
- Estava escuro e ele estava com pressa. É possível que a Francine se tenha
deslocado o suficiente para esconder o que tinha feito, ou talvez tenha saído da
caixa
a lutar quando ele a abriu.
- Talvez - disse Patrick.
- Já jantaste, Patsy?
- A Nessie foi a um concerto na Chubb, por isso vou comer ao
Malvolio's.
- Eu também. Encontramo-nos lá, vou só dizer ao Silvestri onde vou - Carmine
sorriu. - Ele vai estar ao telefone pelo menos uma hora.
- Os santos me protejam dos magnatas - resmungou Silvestri quando se juntou a eles.
- Pelo menos já não estou em horário de trabalho, por isso posso beber um copo.
Café e um whisky duplo com gelo - pediu à empregada que Carmine achava fazer
lembrar Sandra.
- Foi assim tão mau? - perguntou Patrick em tom compreensivo.
- O M. M. foi fácil. Ele compreende a situação. Mas convencer o Roger Parson Júnior
foi como tirar sangue a um calhau. Ele recusa-se a ver qualquer ligação com o
seu precioso Hug.
- Como é que lhe deu a volta, John? - perguntou Carmine.
O whisky chegou; Silvestri bebeu um trago e assumiu uma expressão diabólica.
- Disse-lhe para provar o que diz. Se não há ligação nenhuma com o Hug, então,
quanto mais depressa virarmos o local do avesso, mais forte é o argumento dele. Mas
- acrescentou, ainda com a mesma expressão diabólica -, tive de pagar um preço pela
autorização.

177

- E por que será - disse Carmine com ar desconfiado -, que acho que será outra
pessoa a pagar esse preço?
- Porque é inteligente, Carmine. Na próxima quinta-feira, ao meio-dia, tem uma
reunião no escritório do Parson em Nova Iorque. Ele quer saber tudo o que nós
sabemos.
- Preciso tanto disso como de um tiro nos miolos.
- Tudo tem um preço, Carmine.

178

Capítulo Dez
Até os esquemas mais bem planeados podem correr mal, reflectiu Carmine nesse sábado
de manhã. Houvera um assalto à mão armada numa bomba de gasolina, após o qual
os ladrões tinham assaltado ainda duas lojas de bebidas, uma joalharia e outra
bomba de gasolina, o que reduziu de tal maneira a sua reserva de homens que soube
que a busca no Hug ia demorar o dia inteiro. Tinha apenas Corey, Abe e quatro
outros detectives, todos novatos que precisavam de supervisão. Fantástico. Dois
grupos
de três, Abe à frente de um, Corey do outro, enquanto Carmine se deslocava entre
ambos. Paul estava de plantão, caso surgissem evidências que precisassem do seu
toque pessoal.
Chegaram ao Hug às nove da manhã, onde foram recebidos no átrio pelo professor e
por Desdemona, nenhum deles satisfeito, mas com instruções do conselho para
colaborarem.
- Miss Dupre, fique com o sargento Marshall e os homens dele neste piso. Presumo
que tem chaves para tudo o que esteja trancado? Professor, suba um piso com o
sargento
Goldberg. Tem chaves? -
perguntou Carmine.
- Sim - murmurou o professor, que parecia prestes a desmaiar.
- O Cecil está cá - disse Desdemona a Carmine enquanto percorriam o corredor norte.

179

- Por causa desta busca?


- Não, por causa dos bebés dele. Vem sempre cá aos fins-de-semana de manhã. Eu
espero aqui fora, para o caso de ele ter um dos macacos na sala principal. Eles
abominam
mulheres - disse ela.
- Foi o que ele me disse. Pode ir com o Corey à oficina e ao laboratório de
electrónica. A última coisa que quero é o Roger Parson Júnior a acusar-nos de
roubar
alguma coisa. Eu trato dos cuidados animais.
- Agradeço muito, tenente - disse Cecil, que não parecia incomodado com esta
invasão. - Quer ver onde os meus bebés vivem? Hoje estão muito bem dispostos.
"Eu também estaria bem disposto se vivesse assim", disse Carmine a si próprio,
entrando num pequeno vestíbulo, separado da sala principal dos macacos por pesadas
grades de ferro. Os animais eram tão fortes, explicou Cecil, que, se estivessem
furiosos, eram capazes de romper uma rede de aço como se fosse papel. A área,
bastante
espaçosa tendo em conta a população reduzida, imitava uma savana rochosa - uma
parede de pedregulhos irregulares e esburacados, arbustos, tufos de relva, troncos,
estruturas de betão a imitar árvores, uma luz quente que parecia o Sol. Reóstatos
ligados a temporizadores garantiam que houvesse um crepúsculo e um amanhecer.
- Não é cruel privá-los de fêmeas? - perguntou Carmine. Cecil riu-se.
- Eles orientam-se, tenente, tal e qual como os homens na prisão. Saltam para cima
uns dos outros. Mas há uma hierarquia, e o Eustace é o líder. Se chega um tipo
novo, o Eustace agarra nele, salta-lhe para cima, depois passa-o ao Clyde, e o
velho Clyde passa o novato a outro, e por aí fora. O Jimmy é o último da cadeia.
Não
tem direito a nada e não tem outro remédio senão tratar do serviço sozinho.
- Bom, obrigado por me mostrar, Cecil, mas duvido que alguma das raparigas tenha
sido escondida aqui.
- Pode ter a certeza que não, tenente.

180

- Do que estão à procura, exactamente? - perguntou Desdemona quando Carmine se


juntou ao grupo de Corey, numa oficina que era o sonho de qualquer maquinista.
- De um cabelo humano dentro de um armário, um farrapo de roupa, uma unha partida,
um pedacinho de fita adesiva, uma mancha de sangue... Qualquer coisa que não deva
estar aqui.
- Ah, daí as lupas e as luzes fortes. Pensava que esse tipo de coisa tinha passado
de moda com o Sherlock Holmes.
- São os instrumentos de eleição numa busca destas. Todos estes homens são
especialistas em procurar evidências.
- Mr. Roger Parson Júnior não está a achar graça nenhuma.
- Parece que não, mas pergunte-me se estou preocupado. A resposta é não.
Sala a sala, armário a armário, estante a estante, a busca prosseguiu; convencidos
de que o rés-do-chão não tinha nada para oferecer, Corey e a sua equipa subiram
para o segundo andar, acompanhados por Desdemona e Carmine.
Durante esta inspecção mais demorada do segundo andar, Carmine percebeu que, em
circunstâncias normais, a vida no Hug era muito agradável; a maioria dos técnicos
tinha tentado transformar a frieza da ciência numa familiaridade acolhedora. As
paredes e portas estavam cobertas de desenhos que só alguém dentro deste meio
acharia
engraçados; havia também fotografias de pessoas e paisagens e posters de coisas
vivamente coloridas cuja natureza Carmine não conseguia sequer imaginar, apesar de
apreciar a sua
beleza.
- Cristais sob luz polarizada - explicou Desdemona -, ou pólen,
partículas de pó, vírus, sob um microscópio electrónico.
- Algumas destas áreas de trabalho parecem a casa da Mary Poppins.

181

- Refere-se à do Marvin? - perguntou ela, apontando para uma área onde tudo,
gavetas, caixas e livros, fora forrado com papel autocolante com borboletas
amarelas
e cor-de-rosa. - Pense nisso, Carmine. As pessoas como o Marvin passam o maior
número de horas seguidas do seu dia no mesmo sítio. Por que há-de esse sítio ser
cinzento
e monótono? Os patrões nunca se lembram de que, se os espaços de trabalho de cada
pessoa fossem mais individuais e harmoniosos, a qualidade do trabalho produzido
talvez fosse superior. O Marvin é um poeta, mais nada.
- É o técnico do Ponsonby, não é?
- Correcto.
- E o Ponsonby não coloca objecções? Não me parece ser um homem que goste de
borboletas amarelas e cor-de-rosa, tendo em conta que tem reproduções de Bosch e
Goya
nas paredes.
- O Chuck gostaria de poder colocar objecções, mas o professor nunca o apoiaria.
Têm uma relação interessante, que remonta à infância, e desconfio que já na altura
era o professor quem mandava, tal como agora. - Viu Corey prestes a deslocar um
instrumento constituído por finas colunas de vidro sobre um suporte nivelado e
soltou
um grito. - Não se atreva a tocar no Natelson! Se o estragar, acabará como soprano,
no Coro dos Rapazinhos de Viena.
- Não me parece que isso seja suficientemente grande para esconder alguma coisa -
disse Carmine em tom solene. - Procura naquele armário.
Procuraram em todos os armários, do rés-do-chão ao telhado, mas não encontraram
nada. Paul apareceu mais tarde, para inspeccionar a sala de operações, recolhendo
amostras de todas as superfícies que pudessem eventualmente conter fluidos.
- Duvido que haja alguma coisa para encontrar - disse Paul, no entanto. - Esta Mrs.
Liebman é imaculada, nunca se esquece de limpar os cantos nem as partes de baixo.
- A minha opinião - disse Abe, contribuindo com a sua opinião para o desânimo geral
-, é que o Hug pode ter recebido partes de

182
corpos, mas elas foram ensacadas antes de chegarem e seguiram directamente do
porta-bagagens de algum carro para o frigorífico dos animais mortos.
- Este foi um exercício negativo, rapazes, mas que nos disse alguma coisa - disse
Carmine. - Seja qual for o papel que o Hug desempenha nesta história, não é um
curral nem um matadouro.

183

Capítulo Onze

O problema de um caso que se prolongava durante tanto tempo como o do Monstro, era
que a quantidade de trabalho a fazer ia diminuindo gradualmente; para alguns,
o domingo fora um dia passado a tentar ler, a percorrer os canais da televisão, a
andar de um lado para o outro em casa. Assim, foi com alívio que Carmine chegou
ao Hug na segunda-feira às nove da manhã. Onde encontrou uma multidão de homens
negros, em frente do edifício, com cartazes que diziam assassinos de crianças e
racistas.
A maioria dos manifestantes usava blusões da Brigada Negra e calças de combate.
Dois carros-patrulha estavam estacionados nas imediações, mas os manifestantes eram
ordeiros, dando-se por satisfeitos apenas em gritar e erguer os punhos no gesto que
Mohammed el Nesr criara pessoalmente. Não estavam presentes quaisquer líderes
da Brigada Negra, reparou Carmine; era apenas a arraia-miúda, na esperança de
apanhar um ou dois jornalistas de televisão na sua rede. Quando Carmine percorreu o
caminho até à entrada, à excepção de alguns gritos de "Porco!", foi ignorado pela
multidão.
Claro que os noticiários do fim-de-semana não tinham falado de outra coisa que não
sobre o caso de Francine Murray. Carmine tinha transmitido a Silvestri o aviso
de Derek Daiman e, embora nada tivesse acontecido até hoje, qualquer polícia com os
sentidos apurados

184

teria percebido que estavam a preparar-se sarilhos. Holloman não era a única cidade
envolvida, mas parecia ter-se tornado o foco de toda a indignação, em geral e
em particular. O papel do Hug nos acontecimentos garantira-o e uma coisa era certa,
os jornais não estavam a coroar as fotografias de John Silvestri e Carmine Delmo-
nico
com louvores; os editoriais do fim-de-semana tinham sido diatribes contra a
incompetência policial.
- Viu-os? - balbuciou o professor quando Carmine entrou no seu gabinete. - Viu-os?
Manifestantes, aqui?
- Seria difícil não os ver, professor - disse Carmine secamente. - Acalme-se e
ouça. Lembra-se de alguém que possa ter alguma coisa contra o Hug? Um paciente, por
exemplo?
O professor não lavara a cabeleira magnífica e a lâmina da barba deixara escapar
tantos pêlos como os que cortara. Evidências de um ego ou uma personalidade em
colapso,
ou o que quer que os psiquiatras lhe chamassem.
- Não sei - disse ele, como se Carmine tivesse dito algo demasiado ridículo sequer
para imaginar.
- O senhor costuma atender pacientes pessoalmente?
- Não, já há anos que não o faço, à excepção de uma ou outra consulta em casos que
deixam toda a gente perplexa. Desde que o Hug abriu, a minha função é estar
presente
para os meus investigadores, discutir os seus problemas com eles se têm algum
dilema ou se as coisas não estão a correr como esperavam. Dou-lhes conselhos, por
vezes
sugiro novos rumos a explorar. Isso, as aulas, o plano de palestras e a minha
leitura deixam-me pouco tempo para ver pacientes.
- Quem é que vê os pacientes? Refresque-me a memória.
- O Addison Forbes mais do que qualquer outro, uma vez que a pesquisa dele é
inteiramente clínica. O doutor Ponsonby e o doutor Finch vêem alguns pacientes, e o
Dr. Polonowski também dá muitas consultas. É muito bom em sindromas de malabsorção.
Carmine teve vontade de lhe perguntar por que raio não podiam falar inglês. Mas
disse:

185

- Então sugere que eu fale primeiro como doutor Forbes?


- Pela ordem que entender - respondeu o professor, pressionando um botão para
chamar Tâmara.
"Aqui está outra Hugger que não parece muito bem", reparou Carmine. "O que será que
se passa com ela? É uma mulher bonita e sexy, mas sabe que já não lhe restam
muitos anos bons."
Addison Forbes parecia não estar a compreender.
- Se vejo pacientes? - perguntou. - Com certeza que sim, tenente! Chego a ver mais
de trinta por semana. Nunca menos de vinte. Sou tão conhecido que o meu leque
de clientes não é apenas nacional, mas também internacional.
- Será possível que um deles guarde algum ressentimento contra si ou contra o Hug,
doutor?
- Meu caro tenente - disse Forbes com ar superior -, são raros os pacientes que
compreendem a sua doença! Quando um tratamento não faz os milagres que o paciente
se convenceu de que faria, a culpa é sempre do médico. Mas eu, em particular, tenho
o cuidado de dizer a todos os meus pacientes que sou apenas um médico, não um
curandeiro, e que as melhorias, por si só, já são um avanço.
Na opinião de Carmine, que guardou para si, Forbes era insolente, intolerante e
arrogante, para além de neurótico. Perguntou calmamente:
- Alguma vez foi ameaçado por um paciente? Forbes pareceu chocado.
- Não, nunca! Se anda à procura de pacientes que fazem ameaças, devia começar por
falar com os cirurgiões, não com os clínicos.
- O Hug não tem cirurgiões.
- Nem ameaças da parte dos pacientes - foi a resposta seca de Forbes.

186

Com o Dr. Walter Polonowski, Carmine descobriu que um sindroma de malabsorção era
quando um paciente não conseguia tolerar aquilo que a natureza criara como alimento
para todos, ou então desenvolvera um apetite por substâncias que a natureza não
criara como alimento para ninguém.
- Aminoácidos, frutas ou vegetais, chumbo, cobre, glúten, todo o tipo de gorduras -
explicou Polonowski, com pena dele. - Depois de ver um número razoável de
pacientes,
a lista de substâncias é quase interminável. O mel, por exemplo, pode causar um
choque anafiláctico. Mas aquilo em que estou essencialmente interessado é no grupo
de substâncias que causa danos cerebrais.
- Tem algum paciente com ressentimentos contra si?
- Suponho que todos os médicos os têm, tenente, mas pessoalmente não me recordo de
nenhum caso específico. Com os meus pacientes, o mal já está feito quando me
procuram.
"Mais um Hugger com ar abatido", pensou Carmine.
O Dr. Maurice Finch parecia muito pior.
- Culpo-me a mim próprio pela tentativa de suicídio do doutor Schiller - disse
Finch, desolado.
- O que está feito, feito está, e não pode dizer que foi o senhor a causa, doutor
Finch, honestamente. O doutor Schiller tem muitos problemas, como certamente sabe.
Além disso o senhor salvou-lhe a vida - disse Carmine. - Culpe a pessoa que deixou
a Mercedes Alvarez no Hug. Agora esqueça o doutor Schiller por um momento e tente
recordar se algum dos seus pacientes alguma vez o ameaçou. Ou seja ouviu um
paciente proferir ameaças contra o Hug.
- Não - disse Finch, parecendo espantado. - Não, nunca.
Foi a mesma resposta que recebeu do Dr. Charles Ponsonby, embora a expressão de
Ponsonby tenha ficado alerta, interessada.
- É uma possibilidade, sem dúvida - disse, franzindo a testa. -Uma pessoa até se
esquece de que esse tipo de coisas acontece, mas claro que deve acontecer. Vou
pensar
melhor, tenente, e tentar lembrar-me de algo relacionado com os meus colegas ou
comigo.

187

Embora esteja quase cem por cento certo de que nunca me aconteceu nada do género.
Sou demasiado inofensivo.
Do Hug, Carmine desceu a Oak Street, caminhando contra um vento gelado, até à
Faculdade de Medicina da Chubb, onde percorreu o habitual labirinto de corredores e
túneis em que esse tipo de instituições é especialista, até encontrar o
Departamento de Neurologia. Aí, pediu para falar com o professor Frank Watson.
Este recebeu-o de imediato, regozijando-se claramente com os azares do Hug, embora
se tenha lembrado de condenar os homicídios.
- Ouvi dizer que foi o senhor quem deu ao Centro Hughlings Jackson a sua alcunha,
professor - disse Carmine, com um pequeno sorriso.
Watson inchou como um sapo, acariciou o bigode negro e fino e ergueu uma
sobrancelha negra e volúvel.
- Sim, é verdade. Eles detestam, não é? Simplesmente detestam. Principalmente o Bob
Smith.
"Como gostas de desempenhar o papel de Mefistófeles", pensou Carmine.
- E o senhor detesta o Hug?
-Apaixonadamente - respondeu o professor de Neurologia com franqueza. - Aqui estou
eu, com uma série de pessoas igualmente brilhantes na minha equipa, e tenho de
lutar por cada cêntimo do dinheiro que consigo para investigação. Sabe quantos
vencedores do Prémio Nobel existem nesta faculdade, tenente? Nove! Imagine... novel
E nenhum deles é um Hugger. Estão no meu campo, sobrevivendo de subsídios
miseráveis. O Bob Smith pode dar-se ao luxo de comprar equipamento que usa uma vez
por
ano, se tanto, enquanto eu tenho de controlar quantas compressas gastamos! Aquele
dinheiro todo foi a desgraça do Bob Smith, que, noutras circunstâncias,

188

talvez tivesse descoberto algo de significativo em termos neurológicos. Ele não


trabalha, vegeta. Um exibicionista.
- É uma mágoa assim tão grande? - perguntou Carmine.
- Não é uma mágoa - respondeu Frank Watson furiosamente. -É uma agonia pura e
simples!
Uma viagem até Cedar Street revelou que o casaco de Francine Murray não produzira
quaisquer pistas para além da sua presença na caixa, o que também não ajudava
muito.
Carmine soube por Silvestri que o Liceu Travis sobrevivera a este dia, até ao
momento; na verdade, tinha havido mais problemas no Liceu Taft, cuja área
geográfica
abrangia os estudantes do gueto de Argyle Avenue. "O que eles precisam", pensou
Carmine, "é de orientação política razoável, mas pelo menos Mohammed el Nesr e a
sua Brigada Negra tinham uma coisa boa: quem se metesse em drogas, mesmo algo tão
inócuo como erva, era corrido da organização. Ele queria os seus soldados com mente
sã e objectivos firmes. E isso é bom, independentemente dos objectivos. Graças a
Deus por Silvestri e pelo presidente da Câmara: desde que a Brigada Negra não
fizesse
mais nada do que marchar pela Fifteenth Street com paus aos ombros a fazer as vezes
de armas, não eram molestados. Mas que tipo e quantidade de armamento existiria
por trás daqueles colchões? Um dia alguém vai dar com a língua nos dentes e nós
vamos conseguir o mandato de que precisamos para ir dar uma vista de olhos.
Dia um de Dezembro... o nosso homem voltará a atacar em finais de Janeiro,
princípios de Fevereiro, e estamos tão longe de o apanhar como Mohammed el Nesr
está de
convencer a maioria da população negra de Holloman de que a revolução é o melhor
caminho a seguir."
Pegou no telefone e marcou um número.

189

- Sei que não é quarta-feira, mas há alguma possibilidade de ir buscá-la e levá-la


a comer, comida chinesa ou outra coisa qualquer? - perguntou a Desdemona.
Ele parecia, pensou Desdemona, extremamente preocupado, apesar de ter sorrido
quando ela entrara no Ford e de ter tentado fazer conversa de circunstância até
sair
do carro, entrar no Faisão Azul e regressar com os braços cheios de recipientes de
cartão.
De seguida o silêncio instalara-se, mesmo depois de ele acabar de transferir a
comida para tigelas brancas e de se terem sentado à mesa.
- Escusava de ter tanto trabalho - disse ela, enchendo o prato de comida e inalando
o aroma com satisfação. - Eu não me importava de comer directamente das caixas.
- Isso seria um insulto - disse ele, mas distraidamente. Como estava com fome,
Desdemona não disse mais nada até a
refeição acabar. Depois afastou o prato e, quando ele estendeu a mão para o
levantar, segurou-lhe no braço com firmeza.
- Não, sente-se, Carmine, e diga-me o que se passa.
Ele olhou para a mão dela como se estivesse surpreendido, depois suspirou e sentou-
se. Antes que ela conseguisse tirar a mão, pousou a sua sobre a dela e manteve-a
onde estava.
- Receio ter de ir retirar os seus guardas.
- E só isso! Carmine, já passaram semanas desde que aconteceu alguma coisa. Tenho a
certeza de que, quem quer que fosse, se fartou há que tempos. Nunca lhe ocorreu
que talvez isto fosse apenas porque, às vezes, faço bordados para a Igreja
Católica? Afinal de contas, a única coisa que foi destruída foi uma casula de
padre...
pode ser que a pessoa tenha achado o trabalho para o Charles Ponsonby suspeito mas
não propriamente religioso... era comprido e estreito, podia fazer lembrar um
altar. Os panos de aparador geralmente são assim.

190

- Isso passou-me pela cabeça - admitiu ele.


- Aí tem, então. Agora só aceito encomendas de têxteis domésticos... toalhas de
mesa e guardanapos.
- Encomendas?
- Sim, eu cobro pelo meu trabalho. E bastante, na verdade. As pessoas de posses
fartam-se depressa dessas coisas em ponto cruz ou ilhoses que chegam às toneladas
de países com indústrias familiares. Aquilo que eu faço é único. As pessoas adoram
e o meu saldo bancário cresce consideravelmente. - Fez uma expressão culpada.
- Não declaro esses rendimentos... por que hei-de declarar, quando pago os impostos
por inteiro mas não posso votar? Como polícia, isso não o incomoda, pois não?
Ele estava a acariciar-lhe o antebraço como se gostasse da sensação da pele dela,
mas agora parou.
- Às vezes - disse com ar sério -, tenho ataques de surdez. O que foi que disse?
Qualquer coisa sobre não poder votar?
- Não importa. - Desdemona retirou a mão, com ar embaraçado. - Já resolvemos a
questão principal, que era a retirada dos meus guardas. Estou aliviada,
honestamente.
Embora tenha portas sólidas entre mim e eles, nunca me sinto em total privacidade.
Boa viagem para eles - hesitou. - Quando?
- Não tenho a certeza. O tempo é capaz de ser o seu melhor aliado. Caso não tenha
reparado, o vento está a levantar e o factor de arrefecimento amanhã já deve estar
abaixo de zero. Isso põe toda a gente dentro de casa. - Levantou-se da mesa. -
Venha sentar-se aqui, ponha-se à vontade, beba um conhaque e fale comigo.
- Falo consigo?
- Sim, fale comigo. Preciso de saber certas coisas e você é a única pessoa a quem
posso perguntá-las.
- Perguntar o quê?
- Sobre o Hug.
Ela fez uma careta mas aceitou o conhaque, o que ele entendeu como uma
aquiescência.

191

- Muito bem, pergunte.


- Compreendo o estado de espírito do professor, e também do doutor Finch, mas por
que raio está o Polonowsky tão nervoso? Pergunto, Desdemona, porque quero que me
dê as respostas que não têm a ver com homicídio. Quando eu não sei por que razão um
Hug-ger está a agir de forma suspeita, tenho tendência a pensar em homicídio,
e talvez acabe por perder muito tempo precioso dessa maneira. Tive esperança de que
o caso da Francine vos ilibasse a todos, mas isso não aconteceu. Este tipo é
astuto como uma ratazana de esgoto, e arranjou maneira de parecer estar em dois
sítios ao mesmo tempo. Fale-me sobre o Polonowski.
- O Walt está apaixonado pela sua técnica, a Marian, mas também está preso de pés e
mãos a um casamento do qual se arrependeu há anos, creio eu - disse ela, agitando
o balão de brandy. - Têm quatro filhos... são muito católicos, daí não usarem
contracepção.
- Não percas a tampa do teu odre antes de chegares a Atenas -citou Carmine.
- Bem dito! - exclamou ela em tom apreciativo. - Suponho que o pobre Walt é um
daqueles tipos cujo odre tem mente própria, quando se deita na cama ao lado da taça
de vinho da mulher. Ela chama-se Paola e é uma mulher muito simpática que se
transformou numa megera. É muito mais nova do que ele e culpa-o por ter perdido a
juventude
e a beleza.
- Ele tem um caso efectivo com a Marian?
- Sim, há meses.
- Onde é que se encontram? No Major Minor's a meio da tarde? - perguntou,
referindo-se ao motel da estrada 133, muito procurado para fornicações ilícitas.
- Não. Ele tem uma cabana algures a norte do estado. "Merda", pensou Carmine. "O
tipo tem uma cabana que nós desconhecíamos. Que conveniente."
- Sabe onde fica?
- Não, infelizmente. Ele nem sequer diz à Paola.

192

- O caso entre os dois é do conhecimento comum?


- Não, eles são muito discretos.
- Então como é que você sabe?
- Porque um dia encontrei a Marian na casa de banho do terceiro andar, a chorar
baba e ranho. Pensava que estava grávida. Quando a aconselhei a pôr um diafragma,
se tinha algumas hesitações em relação à pílula, e me mostrei compreensiva,
despejou a história toda.
- E estava grávida?
- Não. Foi falso alarme.
- Ok, passemos ao Ponsonby. Ele tem umas obras de arte muito estranhas nas paredes
do gabinete, para não falar nas cabeças encolhidas e nas máscaras de demónio.
Tortura, monstros a engolirem os filhos, pessoas a gritar.
A gargalhada dela era tão contagiante que Carmine se sentiu mais quente por dentro.
- Oh, Carmine! O Chuck é mesmo assim! A arte é apenas mais uma faceta do seu
pedantismo insuportável. Tenho pena dele.
- Porquê?
, - Ainda ninguém lhe disse que ele tem uma irmã cega?
- Eu faço os meus trabalhos de casa, Desdemona, sei disso. Presumo que ela seja a
razão pela qual ele ficou em Holloman. Mas porquê ter pena dele? Dela, seria
compreensível.
- Porque ele construiu toda a sua vida à volta da irmã. Nunca casou, não tem
família chegada, apesar de conhecerem os Smiths desde a infância. Vivem os dois
sozinhos
numa casa pré-Revolução em Ponsonby Lane. Em tempos possuíram todas as propriedades
num raio de um quilómetro e meio, mas a educação da Claire foi cara, bem como
a do Chuck, e parece que passaram algumas dificuldades no tempo dos pais. Pelo
menos venderam todas as propriedades. O Chuck adora arte surrealista e música
clássica.
A Claire não consegue ver a arte, mas também é fã de música. São ambos gastrónomos
e apreciadores de vinho. Tenho pena dele porque, quando

193

fala da vida de ambos, é só para cantar louvores, o que é... bom, estranho. Ela é
sua irmã, não sua mulher, apesar de alguns dos funcionários mais cruéis fazerem
piadas sobre eles. Penso que, no fundo, o Chuck deve ressentir-se pelo menos de
alguns dos aspectos de estar preso à Claire, mas é demasiado leal para o admitir,
até para si próprio. Não pode certamente ser o Monstro, não tem tempo nem liberdade
para isso.
- É só porque acho a arte dele esquisita - disse Carmine em tom constrangido.
- Eu gosto. É daquelas coisas que se ama ou se odeia.
- Muito bem, passemos à Sônia Liebman.
- Uma mulher muito simpática, muito boa naquilo que faz. É casada com um agente
funerário, Benjamin Liebman. Têm um filho numa universidade perto de Tucson, a
estudar
Medicina. Quer ser cirurgião geral.
"Um cangalheiro. Merda, afinal não fiz os trabalhos de casa todos."
- O Benjamin trabalha para alguém ou está aposentado?
- Céus, não! Tem a sua própria agência, algures para os lados de Bridgepoit -
Desdemona fechou os olhos com força. - Ah... Casa Funerária Conforto, acho eu.
"Merda a dobrar. O sítio ideal para um assassinato e dissecção. Amanhã tenho de
fazer uma visita à Casa Funerária Conforto."
- Satsuma e Chandra?
- À procura de empregos noutro lado. Dizem os rumores que o Nur Chandra já recebeu
uma oferta de Harvard, eles estão ansiosos por equilibrarem a contagem de Prémios
Nobel. O Hideki ainda não tem a certeza. A sua decisão depende, de alguma maneira,
das harmonias do seu jardim.
Carmine suspirou.
- Quem é o seu palpite, Desdemona? Ela pestanejou.
- Ninguém do Hug, sinceramente. Estou lá há cinco anos, o que faz de mim uma recém-
chegada. Quase todos os investigadores são

194

um pouco alucinados, de uma maneira ou de outra, mas isso é natural. São tão...
inofensivos. O doutor Finch fala com os gatos como se eles pudessem responder-lhe,
o doutor Chandra trata os macacos como realeza indiana... até o doutor Ponsonby,
que gosta menos dos ratos do que alguns dos outros, mostra interesse neles. Nenhum
dos investigadores é psicótico, seria capaz de o jurar.
- O Ponsonby não gosta dos seus ratos?
- Carmine, com franqueza! O doutor Ponsonby não gosta de ratos, simplesmente.
Muitas pessoas não gostam de ratos, incluindo eu. A maioria dos investigadores
habitua-se
a eles e consegue até desenvolver um grande afecto pelas criaturas, mas nem todos.
O Marvin é capaz de pegar num rato com as mãos nuas para lhe dar uma injecção
na barriga, e o rato faz-lhe cócegas com os bigodes para pedir atenção. Por outro
lado, o doutor Ponsonby usa uma luva de forno se tiver mesmo de pegar num rato.
Os incisivos deles conseguem furar as luvas mais finas... raios, eles conseguem
roer betão!
- Não está a ajudar, Desdemona.
Pequenas batidas na janela fizeram Desdemona levantar-se.
- Bolas, granizo! Uma chatice para conduzir. Leve-me a casa, Carmine.
"E assim", pensou ele com um suspiro interior, "lá se vão quaisquer tentativas de
tentar segurar-lhe na mão outra vez. Não é que ela me excite, é mais porque
algures,
por baixo de toda aquela independência competente, há uma mulher fantástica a
esforçar-se por sair."

195

Capítulo Doze

Uma vez que não nevava desde o dia de Acção de Graças e a primeira metade de
Dezembro não fora mais fria do que o habitual, a maior parte das pessoas do
Connecticut
achava que o Natal este ano podia ser verde e não branco. Depois, caiu um forte
nevão na véspera da viagem de Carmine a Nova Iorque, onde ia encontrar-se com os
Parsons. Uma vez que odiava comboios e não estava disposto a fazer a viagem enfiado
numa carruagem apinhada a tresandar a lã molhada, mau hálito e cigarros, Carmine
arrancou cedo, no seu Ford, e encontrou a 1-95 com apenas duas das três faixas
abertas, mas transitável. Quando chegou a Manhattan, apenas as avenidas tinham sido
limpas, principalmente porque era impossível tirar os carros das estradas o tempo
necessário para as conseguir limpar. Enquanto descia lentamente Park Lane até poder
virar para a Madi-son, lembrou-se de que não fazia a mínima ideia de onde
estacionaria o carro, mas Roger Parson Júnior pensara nisso. Quando parou, em
frente de
um edifício que não era nem o maior nem o mais pequeno do quarteirão, um porteiro
de uniforme correu para receber as chaves, que atirou a um arrumador. Conduziu
então Carmine através de um vestíbulo principesco de mármore do Levante, passando
pelas portas dos elevadores gerais até um outro mais isolado, ao fundo.

196

Era o elevador executivo, com uma fechadura no painel de comandos e decorado de


forma adequada aos executivos.
Roger Parson Júnior recebeu-o quando as portas se abriram no quadragésimo terceiro
andar, com Richard Spaight ao seu lado, mas subtilmente mais atrás.
- Tenente, estou muito satisfeito por ter enfrentado o mau tempo para vir. Apanhou
o comboio?
- Não, vim de carro. É mais difícil conduzir em Manhattan do que toda a viagem
desde o Connecticut - disse Carmine, entregando o casaco, cachecol e chapéu de
caçador
de veados.
Parson olhou fascinado para o chapéu.
-Ah... um lembrete consciente de Sherlock Holmes?
- Se quer saber se é uma piada, senhor, acho que sim. Comprei-o em Londres há
alguns anos, quando os chapéus russos não eram muito populares, no tempo do Joe
McCarthy.
É bom para aquecer as orelhas.
Uma secretária de meia-idade desapareceu com os agasalhos enquanto Parson
introduzia Carmine numa sala de reuniões pequena, equipada com seis poltronas em
torno
de uma mesa de café e seis cadeiras de espaldar em torno de uma mesa mais alta. O
chão era de parquê, coberto de tapetes persas, a mobília era de madeira de ácer
e as estantes tinham portas de vidro trabalhado. Luxuoso mas profissional, à
excepção dos quadros nas paredes.
- Parte da colecção de arte do tio William - disse Spaight, indicando uma das
poltronas a Carmine. - Rubens, Velasquez, Poussin, Vermeer, Canaletto, Ticiano.
Rigorosamente
falando, a colecção pertence à Universidade Chubb, mas temos liberdade para adiar a
doação e, honestamente, gostamos de olhar para eles.
- Não posso culpar-vos - disse Carmine, perguntando a si próprio, enquanto apoiava
o traseiro no cabedal castanho da sua poltrona, se algum tecido tão barato como
o das suas calças alguma vez a teria conspurcado.

197

- Chegou-me aos ouvidos - disse Roger Parson Júnior, cruzando as pernas magras e
elegantemente vestidas -, que o Hug é agora palco de manifestações raciais.
- Sim, senhor, quando o tempo o permite.
- Por que razão não estão a fazer qualquer coisa a esse respeito?
- Da última vez que olhei para a Constituição, Mr. Parson, ela permitia
manifestações pacíficas de qualquer tipo, incluindo raciais
- disse Carmine em tom neutro. - Se houver motins, podemos agir, mas apenas nesse
caso. Nem consideramos que seja sensato usar tácticas de intimidação que possam
provocar motins. É embaraçoso para o Hug, mas os funcionários não estão a ser
molestados nas suas idas e vindas.
- Tem de admitir, tenente, que do nosso ponto de vista a polícia de Holloman não
tem exactamente brilhado nos últimos dois meses e meio - disse Spaight, de lábios
contraídos. - Este assassino parece estar a levar a melhor sobre toda a gente.
Talvez seja a altura de chamar o fbi.
- Estamos em contacto regular com o fbi, senhor, posso garantir-lhe, mas o fbi tem
tão poucas pistas como nós. Procurámos em todos os estados da União indícios de
crimes de natureza semelhante, sem quaisquer resultados. Nas últimas duas semanas,
por exemplo, verificámos as credenciais e colocações de várias centenas de
professores
substitutos, sem resultados positivos. Nada que possa oferecer uma solução foi
ignorado.
- O que eu não compreendo - disse Parson com impertinência -, é como é que ele
continua a monte! Têm de ter alguma ideia sobre quem é a pessoa responsável!
- A metodologia policial depende de uma rede de ligações -disse Carmine, que
pensara no que ia dizer durante a longa viagem.
- Em circunstâncias normais, existe uma série de suspeitos prováveis, quer
estejamos a falar de homicídio, de assalto à mão armada ou de tráfico de droga.
Todos
nos conhecemos uns aos outros, os criminosos e a polícia. Nós, do lado dos
polícias, conduzimos as nossas

198

investigações ao longo de um trilho bem batido, porque é assim que obtemos melhores
resultados. Os homens da minha patente estão neste trabalho há tempo suficiente
para terem desenvolvido instintos bastante apurados sobre quem está do lado oposto,
no lado dos criminosos. Os homicídios seguem padrões, têm assinaturas. Os roubos
seguem padrões e têm assinaturas. Conduzem-nos àqueles que os cometeram.
- Este assassino também tem um padrão e uma assinatura -disse Spaight.
- Não é disso que estou a falar, Mr. Spaight. Este assassino é um fantasma. Rapta
uma rapariga mas não deixa para trás qualquer indício de si próprio. Nunca ninguém
o viu, nem o ouviu sequer. Nenhuma das raparigas parecia conhecê-lo. Assim que
percebemos que ele procurava vítimas de origens caribenhas e tivemos oportunidade
de proteger todas as raparigas desse tipo, ele mudou para uma negra do Connecticut,
com sangue branco. O mesmo tipo físico, mas com antecedentes étnicos diferentes.
Apanhada num liceu no centro da cidade, com mil e quinhentos alunos. Variou também
a sua técnica noutros aspectos que não tenho liberdade para vos dizer. O que posso
dizer-vos, meus senhores, é que não estamos mais avançados do que estávamos há dois
meses e meio. Porque a rede de ligações não está presente. Ele não é um criminoso
profissional, é uma não entidade anónima. Um fantasma.
- Não poderá ter cadastro por algum outro crime? Violação?
- Também já fomos por aí, Mr. Parson, já estudámos meticulosamente essa
possibilidade. A minha opinião é que ele é tanto um violador como um assassino,
talvez a
violação seja até mais importante para ele do que o homicídio, talvez mate apenas
para se certificar de que a vítima não pode falar. Esquadrinhei, pessoalmente,
centenas de ficheiros, à procura de qualquer coisa que pudesse sugerir um violador
que tivesse avançado para o nível seguinte. Quando não encontrei correspondência
com nenhum dos violadores acusados

199

ou condenados, estudei os casos em que a rapariga ou mulher desistiu de apresentar


queixa... acontece muitas vezes. Olhei para fotografias de raparigas, li as
descrições
das violações, mas os meus instintos de polícia nunca se agitaram. Se fosse um
deles, tenho a certeza de que se teriam agitado.
- Então ele deve ser jovem - disse Spaight.
- E o que o leva a dizer isso, senhor?
- A história dele tem dois anos. Crimes tão chocantes certamente que teriam
manifestado alguns sintomas antes disso, se ele já fosse um homem de certa idade.
- É um bom argumento, senhor, mas não penso que este assassino seja muito novo,
não. É frio, calculista, engenhoso, sem consciência nem sombra de dúvida. Tudo isso
sugere maturidade, não juventude.
- Talvez ele tenha as mesmas origens étnicas das vítimas?
- Também pensámos nessa possibilidade, Mr. Parson, até ele cruzar a fronteira
étnica. Um dos psiquiatras do fbi pensou que ele poderia ser parecido com as
vítimas...
da mesma cor, digamos... mas, se existe algum homem assim, ainda não o localizámos
e ele não tem cadastro.
- Então o que está a dizer, tenente, é que se... ou quando... este assassino for
apanhado, não será por nenhum dos métodos tradicionais.
- Sim - respondeu Carmine sem entoação -, é exactamente isso que estou a dizer. Tal
como muitos outros, ele cairá por um acaso ou um acidente.
- Não é uma opinião que inspire muita confiança - disse Parson secamente.
- Oh, nós vamos apanhá-lo, senhor. Já o forçámos a fazer alterações e continuaremos
a pressionar. Não acredito que ele esteja com um espírito tão sereno como estava.
- Sereno! - perguntou Spaight, estupefacto. - Com certeza que não!

200

- Por que não? - contrapôs Carmine. - Ele não tem sentimentos, Mr. Spaight, da
maneira que o senhor e eu compreendemos os sentimentos. É louco mas são, ao mesmo
tempo.
- Quantas mais raparigas têm de morrer uma morte agonizante?
- perguntou Parson, em tom cortante.
A expressão de Carmine era sombria.
- Se eu soubesse responder a essa pergunta, saberia a identidade do assassino.
Uma criada uniformizada entrou com um carrinho e começou a pôr a mesa.
- Espero que fique para almoçar, tenente - disse Roger Parson Júnior, levantando-
se.
- Obrigado, senhor.
- Sente-se, por favor.
Carmine sentou-se à mesa, posta com loiça Lenox. - Somos patriotas - disse Spaight,
sentando-se à direita de Carmine enquanto Parson se sentava à sua esquerda.
Cercado.
- Como assim, Mr. Spaight?
- Loiça americana, toalha americana. Tudo americano, na verdade. Era o tio William
que gostava de coisas estrangeiras.
"Coisas estrangeiras. Não a frase que eu usaria para descrever o tapete", pensou
Carmine. "Ou o Velasquez."
A mesa foi servida pela criada e por um mordomo: salmão da Nova Escócia fumado, com
pão escuro e manteiga, vitela assada nos seus próprios sucos, com batatas Lyonnaise
e espinafres cozidos ao vapor, uma travessa de queijos e um café soberbo. Nada de
álcool.
- O almoço de martinis é uma maldição - disse Richard Spaight.
- Se sei que um cliente esteve num almoço desses, não o recebo. É preciso ter a
cabeça limpa para os negócios.
- Bem como para o trabalho de polícia - disse Carmine. - Nesse aspecto, o
comissário Silvestri gere-nos com mão firme. Álcool, só fora de serviço, e nada de
bêbados
na força. - Estava voltado para o Poussin,

201

extraordinariamente belo. - É maravilhoso - disse ao seu anfitrião.


- Sim, escolhemos obras tranquilas para esta sala. Os Goyas do tempo de guerra
estão no meu gabinete. À saída, no entanto, não perca o nosso único Greco. Está
numa
vitrina blindada ao fundo do corredor - disse Roger Parson Júnior.
- Nunca vos foi roubada nenhuma peça? - O polícia que havia nele tinha de
perguntar.
- Não, é muito difícil entrar. Ou talvez seja por haver tantos alvos mais fáceis.
Esta é uma cidade repleta de arte maravilhosa. Muitas vezes entretenho-me a
maquinar
como roubaria um bom Rembrandt do Metropolitan ou um Picasso do negociante
particular na Fifty-third. Se fosse essa a minha intenção, acredito que nenhum dos
dois
seria impossível.
- Talvez o seu tio William também conhecesse os truques. Richard Spaight riu-se.
- Sem dúvida! No seu tempo era muito mais fácil, claro. Se uma pessoa estivesse em
Pompeia ou em Florença, bastava dar uma gorjeta de dez dólares ao guia. Devia
ver o chão de mosaicos romanos na estufa da velha casa em Litchfield... magnífico.
"Feliz Natal, ha-ha", pensou Carmine enquanto entrava para o Ford já aquecido para
começar a viagem até casa. "O assassino não é nenhum deles, mas, se desaparecer
algum Rembrandt do Metropolitan, posso dar uma dica à polícia de Nova Iorque sobre
o melhor local para começar a procurar. O M. M. estará morto e enterrado antes
que este grupo abra mão da colecção do tio William, apesar de se tratar de meras
coisas estrangeiras."

202

Capítulo Treze
- Oh, que chatice! - disse Desdemona, franzindo o nariz. - A maldita saída do
esgoto está outra vez encravada. - Por um momento, debateu-se com a possibilidade
de
bater à porta do senhorio quando descesse as escadas, mas decidiu não o fazer. Ele
não estava muito satisfeito com a presença de polícias na sua propriedade, e já
sugerira algumas vezes que talvez fosse melhor Desdemona procurar outro lugar para
morar. Portanto era melhor tratar da saída do esgoto sem procurar outro confronto.
Quando abriu a porta do apartamento, o cheiro a fezes atingiu-a violentamente, mas
nem reparou. Tudo o que viu foi o rosto enegrecido e congestionado de Charlie,
o polícia que geralmente fazia o turno de vigia da noite às quintas-feiras. Estava
caído como se tivesse lutado desesperadamente, de braços e pernas torcidos, mas
era o rosto, o rosto... Inchado, com a língua de fora, os olhos esbugalhados. Parte
de Desdemona queria gritar, mas isso teria feito dela uma mulher típica, e
Desdemona
passara metade da vida a provar que era igual a qualquer homem. Apoiada na ombreira
da porta, forçou-se a ficar imóvel o tempo necessário até ter a certeza de que
não cairia. Os seus olhos encheram-se de lágrimas que deslizaram pelas faces. Oh,
Charlie! Um trabalho tão aborrecido, dissera-lhe ele uma vez, pedindo-lhe um livro.
Já lera tudo o que lhe interessava na biblioteca municipal,

203

que não tinha muita coisa. Talvez algo de Raymond Chandler ou Mic-key Spillane? Mas
o melhor que ela pudera oferecer-lhe fora um livro de Agatha Christie, de que
ele não gostara nem compreendera.
Pronto, isso ajudara. Desdemona largou a ombreira e começou a voltar-se para se
dirigir ao telefone. Depois reparou na grande folha de papel colada à janela que
deixava entrar luz para o patamar. Letras negras num papel muito branco,
perfeitamente desenhadas.

ÉS UMA TRAIÇOEIRA,
UMA ANORMAL!
ESSE TEU DAGO(1)
NÃO É NENHUM OTELO,
MAS AINDA TE APANHAREI!
ATÉ ESSE DIA - PODES SUAR!

- Carmine - disse calmamente quando ele atendeu -, preciso de si. O Charlie está
morto. Assassinado. - Engoliu em seco e respirou fundo. - Mesmo em frente à minha
porta. Por favor, venha!
- A porta ainda está aberta? - perguntou ele, igualmente calmo.
- Sim.
- Então feche-a, Desdemona, imediatamente.
Praticamente nenhum sargento de serviço vira alguma vez Carmine Delmonico passar a
correr, mas desta vez ele voou, com Abe e Corey a correrem atrás dele com o seu
casaco, o seu cachecol, o seu chapéu. Menos de um minuto depois, Patrick O'Donnell
seguiu-os.
- Uau! - disse o sargento Larry D'Aglio ao seu auxiliar. - Deve haver merda
espalhada em todas as direcções.
- Não num dia como hoje - disse o auxiliar. - Está frio demais.

*1. "Dago" é uma expressão ofensiva para designar, entre outros, os


italoamericanos. (N. da T.)

204

- Estrangulado com uma corda de piano - disse Patrick. - Pobre desgraçado! Debateu-
se, mas por reflexo. A corda foi-lhe enrolada ao pescoço e enfiada no laço antes
que ele se apercebesse do que estava a acontecer.
- Laço? - perguntou Carmine, afastando os olhos do papel na janela.
- Nunca vi uma coisa assim. Um laço numa ponta do fio, uma pega de madeira na
outra. Enfia-se a pega no laço, dá-se um passo atrás e puxa-se com toda a força. O
Charlie não conseguiu sequer tocar-lhe.
- E depois afixou o bilhete, frio como gelo... olha para isto, Patsy! Absolutamente
direito, mesmo no meio do vidro... como é que ele o fixou aqui?
Patrick ergueu os olhos e pareceu espantado. -Céus!
- Bom, o Paul pode dizer-nos quando o tirar. - Carmine endireitou os ombros. - Está
na altura de bater à porta dela.
- Como é que ela estava quando telefonou?
- Não estava fora de si, pelo menos. - Bateu e chamou em voz alta: - Desdemona, é o
Carmine! Deixe-me entrar.
O rosto dela estava tenso e pálido, as mãos tremiam, mas estava controlada. Não
tinha desculpa para a abraçar e tentar consolar.
- Com que então eu era apenas para desviar as atenções? -disse ela.
- Sim, parece que ele subiu a parada. O que tem que se beba?
- Chá. Sou inglesa, não ligamos muito a conhaque. Apenas chá. Feito como deve ser,
com folhas, não em saquetas. Holloman é uma cidade bastante civilizada, sabe.
Há uma loja de chás e cafés onde consigo comprar Darjeeling. - Conduziu-o à
cozinha. - Fi-lo quando ouvi as sirenes.

205

Nada de canecas; chávenas e pires, delicados, pintados à mão. O bule estava tapado
com o que parecia ser uma boneca Dolly Varden, com o bico e a asa a espreitarem
de lados opostos de uma crinolina almofadada com folhos. Leite, açúcar, até
biscoitos. Bom, talvez uma atenção escrupulosa aos rituais domésticos seja a
maneira
que ela encontrou para manter a força. Para lidar com a situação.
- Primeiro põe-se o leite - disse ela, levantando a boneca do bule.
Ele não conseguiu dizer-lhe que gostava do chá à americana, fraco, sem leite,
apenas com uma rodela de limão. Assim, beberricou delicadamente o líquido
escaldante
e esperou.
- Viu o bilhete? - perguntou ela, parecendo melhor depois de beber o chá.
- Sim. Não pode continuar aqui, claro.
- Duvido que me deixassem! O meu senhorio não ficou nada satisfeito com os meus
guardas. Agora deve estar a espumar de raiva. Mas para onde hei-de ir?
- Custódia preventiva. Temos um apartamento no meu prédio para pessoas como você.
- Não posso pagar uma renda tão alta.
- Custódia preventiva significa que não tem de pagar renda, Desdemona.
Por que diabo seria ela tão sovina?
- Compreendo. Nesse caso, é melhor começar a fazer as malas. Não tenho muita coisa.
- Primeiro beba mais um chá e responda-me a algumas perguntas. Ouviu alguma coisa
invulgar durante a noite? Viu o Charlie?
- Não, não ouvi nada. Tenho o sono pesado. O Charlie disse-me olá quando chegou...
ouvi-o entrar, apesar de ser mais tarde do que a hora a que normalmente me deito.
Geralmente ele vem pedir-me um livro, apesar de não gostar muito da minha selecção
de autores.

206

- Deu-lhe algum livro ontem à noite? - Não havia necessidade de lhe dizer que
Charlie não podia ler quando estava de serviço.
- Sim, um de Ngaio Marsh. O nome intrigou-o, não sabia pronunciá-lo. Pensei que
talvez gostasse mais do que da Agatha Christie... as vítimas do Marsh geralmente
morrem numa confusão terrível de vómito e excrementos. - Estremeceu. - Tal como o
Charlie.
- Algum sinal de que o assassino tenha efectivamente entrado neste apartamento?
- Não, e acredite que procurei. Não há um alfinete fora do sítio.
- Mas podia ter entrado. Isto é algo com que eu não estava a contar.
- Não se culpe, Carmine, por favor. Ele levantou-se.
- Há alguma coisa que a faça gritar, Desdemona?
- Oh, sim - disse ela muito séria. - Aranhas e baratas.

- Nada, como de costume - disse Patrick no gabinete de Silvestri. - Nem impressões


digitais, nem fibras, nem qualquer espécie de detrito. Ele deve ter usado uma
régua na janela, porque o aviso... é demasiado grande para podermos chamar-lhe um
bilhete... estava perfeitamente posicionado. Equidistante, ao milímetro. Fixou-o
com quatro bolinhas de plasticina, pressionou os quatro cantos, até ajustou o lado
esquerdo para o levantar um pouco. E é original! Foi escrito em letra Times Bold
Letraset, tamanho quarenta e oito. Em papel suficientemente fino para poder ter
colocado uma folha quadriculada por trás... as letras estão todas exactamente do
mesmo tamanho. Um molde de desenho barato, do tipo que os miúdos compram em
qualquer grande armazém. Pressionou-o com algo metálico e arredondado... o cabo de
uma
faca, ou talvez de um bisturi. Mas não um estilete, o instrumento que ele usou era
rombo.

207

- Fazes alguma ideia do tamanho das mãos dele pela força com que pressionou o papel
na plasticina? - perguntou Marciano.
- Não. Acho que usou um trapo entre os dedos e o papel.
- O que te fez dizer que o garrote é invulgar, Patsy? - perguntou Carmine, com um
suspiro. - Um laço e uma pega não é assim tão único.
- Este é. A pega não é de madeira. É feita de um fémur humano esculpido. Mas não
foi ele que o esculpiu. Parece incrivelmente antigo, por isso mandei fazer datação
por carbono. O fio é uma corda de piano.
- Apertou o suficiente para cortar a pele? - perguntou Silvestri.
- Não, apenas o suficiente para fechar as vias respiratórias e as carótidas.
- Já tinha usado um antes.
- Oh, sim, teve muita prática.
- Mas deixou o garrote para trás. Isso significará que acabou de brincar com este
brinquedo? - perguntou Abe.
- Eu diria que sim.
- Ainda achas que a Desdemona Dupre é apenas um isco? - perguntou Corey, mais
perturbado do que os outros; a mulher de Charlie, o polícia morto, era uma grande
amiga
da sua mulher.
- Não acredito que possa ser outra coisa! - exclamou Carmine, erguendo as mãos. -
Ela não é parva nenhuma... se soubesse alguma coisa, já me teria dito.
- Qual é a sua teoria em relação a ela, Carmine? - perguntou Silvestri.
- Acho que ele a escolheu por várias razões. Primeira, é uma solitária. Mais fácil
de alcançar. Outra, está o mais distante possível do tipo físico das suas vítimas.
E, talvez mais importante do que tudo o resto, ele viu-me com ela nalgum
restaurante. Antes de começar a persegui-la. O bilhete... o aviso... chama-lhe
traiçoeira.
- E em relação ao aviso? - insistiu Silvestri.
- Oh, é uma maravilha! Quer dizer, a fraseologia é mais um inglês internacional do
que americano. Ele pôs pontuação. Usa "Dago", mas essa expressão é antiquada.
Hoje em dia somos "Wops"(1). Indica o seu grau de educação ao referir-se a mim como
Otelo, cuja mulher era Desdemona. - apanhou a expressão no rosto de Corey e
explicou.
- Um tipo perverso, chamado Iago, aproveitou-se da possessividade de Otelo, da sua
paixão por Desdemona. Levou Otelo a pensar que ela era infiel. Então Otelo
estrangulou-a.
Dadas as circunstâncias, um garrote foi provavelmente o mais perto do
estrangulamento que ele conseguiu chegar.
- Estará a montar-te uma armadilha? - perguntou Patrick.
- Duvido. Apanhou-a a ela. O que estava realmente a fazer era a mostrar-nos que não
há nada que possamos fazer para a proteger se ele decidir agir.
- Um assassino de polícias! - exclamou Corey selvaticamente.
- Um assassino de crianças - disse Marciano. - Temos de o deter, Carmine!
- E é o que faremos. Não vou abrandar, Danny, aconteça o que acontecer.
A única forma de entrar no apartamento de Desdemona, no décimo andar do edifício
Nutmeg Insurance, era falando através de um intercomunicador e depois introduzindo
um código de dez dígitos numa fechadura especial. O código seria alterado todos os
dias e ninguém tinha autorização para o escrever, nem mesmo Desdemona.
Esta não se queixou quando Carmine entrou nessa tarde, carregado com sacos de
mercearias.
- Chá Darjeeling do Scrivener's... café colombiano do mesmo sítio... pão escuro...
manteiga... presunto fatiado... algumas refeições

*1. "Wop" é também uma expressão ofensiva para designar os imigrantes italianos.
(N. da T.)

208 - 209

congeladas... pãezinhos com passas frescos... maionese... pickles... bolachas de


chocolate... tudo o que achei que podia gostar - disse ele, pousando os sacos no
balcão da cozinha.
- Estou sitiada? - perguntou ela. - Não posso sair para trabalhar nem para as
minhas caminhadas de fim-de-semana?
- As caminhadas estão fora de questão, claro, mas podemos comer no Malvolio's esta
noite, ou onde quiser. Nunca pode sair sem dois polícias, e estes não vão estar
distraídos a ler livros - disse. - A porta de segurança significa que não preciso
de desperdiçar homens bons em trabalho de vigilância, mas, assim que passar para
o lado de fora, é considerada propriedade governamental.
- Vou odiar isto - disse ela, tirando o casaco do cabide.
- Nesse caso, esperemos que não seja durante muito tempo.

210

Parte Três

Janeiro de 1966

Capítulo Catorze

O telefone acordou Carmine de um sono profundo, pouco antes das oito horas da manhã
do dia de Ano Novo, uma das poucas alturas em quase três meses em que decidira
deixar o corpo e o cérebro dormirem à vontade. Não por ter estado a celebrar a
passagem do ano velho; embora tivesse sido o mais difícil da sua vida, tinha muitas
razões para acreditar que o novo podia vir a ser ainda pior. Assim, passara a
véspera de Ano Novo sozinho no seu apartamento, a ver pela televisão a multidão em
Times Square. Pensara em convidar Desdemona, que estava apenas dois andares mais
abaixo, mas decidira não o fazer pois preocupava-o que ela estivesse farta da sua
companhia. Se ela ia comer fora, era ele que a acompanhava e que lhe pagava o
jantar, por mais que ela reclamasse daquilo que, para ele, era apenas cortesia. Em
consequência, fora para a cama muito antes da meia-noite, tivera uma noite de sono
fantástica e estava pronto para acordar quando o telefone tocou.
- Delmonico - disse.
- É o Danny - disse a voz de Marciano. - Carmine, vem imediatamente a New London.
Houve outro rapto. Dublin Road, do lado de Groton. O Abe e o Corey vão a caminho
e o Patrick também. A polícia de New London está à vossa espera.

213

Levantou-se imediatamente, consciente de estar a transpirar, uma transpiração que


não era causada pelo aquecimento a dez graus centígrados; gostava do frio quando
dormia, impedia-o de se destapar.
- Mas não pode ser - disse, a tremer. - Só passaram trinta dias desde a Francine, o
tipo só devia voltar a atacar no fim do mês.
- Não temos a certeza se é o mesmo... para já, o rapto aconteceu durante a noite, e
esta é uma experiência nova para os polícias de New London. Vai até lá e diz-lhes
o que têm entre mãos.
Com Abe a conduzir, voaram ao longo dos sessenta e cinco quilómetros até New
London, seguidos por Paul e Patrick na carrinha.
- Trinta dias, só passaram trinta dias! - disse Abe quando a 1-95 se aproximou de
New London; não dissera uma palavra até então.
- Sai na saída de Groton, a seguir à ponte - disse Corey, com um mapa aberto sobre
os joelhos. - Não pode ser o mesmo tipo, Carmine.
- Saberemos dentro de poucos minutos, tenham calma.
O local não era difícil de encontrar; todos os carros-patrulha do condado de New
London pareciam estar estacionados ao longo de uma rua de casas modestas, em
quarteirões
de oitocentos metros quadrados; Dublin Road, Groton.
A casa que um polícia lhes indicou estava pintada de cinzento, uma vivenda de piso
térreo, demasiado pequena para se poder considerar de estilo rancheiro. Nitidamente
o lar de um trabalhador que se orgulhava de si próprio e da sua propriedade. Bastou
um olhar e Carmine soube, com um aperto no coração, que as pessoas que viviam
dentro desta casa eram tão respeitadas como respeitáveis. Uma família perfeita para
os objectivos do assassino.
- Tony Dimaggio - apresentou-se um homem com o uniforme de capitão, estendendo a
mão a Carmine. - Uma rapariga negra de dezasseis anos chamada Margaretta Bewlee
foi raptada durante a noite.

214

Mr. Bewlee parece achar que foi pela janela do quarto, mas não deixei nenhum dos
meus homens aproximar-se, com receio de destruir evidências... se foi o Monstro
que a apanhou, isto é areia demais para a nossa camioneta. Entre - disse, entrando
à frente de Carmine. - A mãe está fora de si, mas Mr. Bewlee está a aguentar-se.
- Vou assim que conduzir o doutor O'Donnell ao lado de fora da janela. Obrigado
pelo seu cuidado, Tony.
A família era negra como o carvão: pai, mãe, uma rapariga adolescente e dois
rapazes quase na adolescência.
- Mr. Bewlee? Tenente Delmonico. Conte-me o que aconteceu. O rosto do homem estava
daquele tom acinzentado que indicava
sofrimento extremo em pessoas de pele escura, mas conseguiu controlar os
sentimentos; perder o controlo podia fazer toda a diferença para Margaretta, e ele
sabia-o.
A mulher, ainda de roupão e chinelos, estava sentada, imóvel como uma estátua, de
olhos vidrados. Mr. Bewlee respirou fundo.
- Brindámos ao Ano Novo, depois fomos para a cama, tenente. Todos nós... aqui não
há aves nocturnas, mal conseguíamos ter os olhos abertos.
- Beberam alguma coisa alcoólica, como vinho espumante?
- Não, apenas ponche de fruta. Nesta casa não se bebe.
Uma sombra estava a apoderar-se do seu rosto; quando viu que não conseguia
continuar, olhou para Carmine com expressão suplicante. Ajude-me, ajude-me!
- Onde trabalha, Mr. Bewlee?
- Sou soldador de precisão na Electric Boat, vou ser aumentado nas próximas
semanas. Temos estado à espera do aumento para mudar de casa, para outra maior. -
As
lágrimas deslizaram-lhe pelo rosto e calou-se.
- Apresente-me os seus filhos, Mr. Bewlee.
O pai recompôs-se, certo de conseguir fazer pelo menos isso.
- Esta é a Linda, tem catorze anos. O Hank tem onze, o Ray tem dez. Temos um
pequenino, o Terence. Tem dois anos e dorme no

215

nosso quarto. A Linda levou-o para casa da vizinha do lado, Mrs. Spinoza. Pensámos
que ele não tinha... não precisava de... - interrompeu-se, escondeu o rosto nas
mãos e lutou para se recompor. - Desculpe, não consigo...
- Demore o tempo que for preciso, Mr. Bewlee.
- A Etta... é como lhe chamamos... e a Linda partilham um quarto.
- Partilham'?
- Exacto, tenente. Dormem lá as duas. Não nos levantámos muito cedo, mas, quando a
minha mulher começou a tratar do pequeno-almoço, chamou as miúdas. A Linda disse
que a Etta estava na casa de banho, mas afinal eram os rapazes que lá estavam, não
a Etta. Assim, começámos à procura dela e não a encontrámos. Foi então que chamei
a polícia. Só conseguia pensar no Monstro. Mas não pode ser ele, pois não? Ainda
não está na altura e a Etta é como todos nós... negra. Quer dizer, nós somos muito
escuros. Ele não havia de querer a nossa menina, tenente.
Como podia responder àquilo? Carmine virou-se para a irmã de Etta.
- Linda, não é? - perguntou, com um sorriso.
- Sim, senhor. - Conseguiu ela responder entre os soluços.
- Não te vou pedir que não chores, Linda, mas a melhor maneira de ajudares a tua
irmã é tentares responder às minhas perguntas, está bem?
- Está bem. - Ela limpou o rosto.
- Tu e a Etta foram para a cama ao mesmo tempo, certo?
- Sim, senhor. À meia-noite e meia.
- O teu pai diz que estavam todos com sono. É verdade?
- A cair de sono - respondeu Linda.
- Então foram as duas logo para a cama.
- Sim, senhor, assim que acabámos as nossas orações.
- A Etta aborrece-se de ter de rezar?
Os olhos de Linda secaram e a sua expressão era chocada. - Não, senhor, não!

216

- Conversaram depois de se deitarem?


- Não, senhor, pelo menos eu não. Adormeci assim que me deitei.
- Ouviste algum barulho durante a noite? Acordaste para ir à casa de banho?
- Não, senhor, dormi até a mamã nos chamar. Mas achei estranho que a Etta se
tivesse levantado antes de mim. Ela adora dormir até tarde. Depois pensei que se
tivesse
levantado mais cedo para ir à casa de banho primeiro do que eu, mas, quando bati à
porta, foi o Hank que respondeu.
A criança tinha um rosto muito bonito, olhos escuros e cristalinos, pele perfeita,
lábios muito cheios que levariam um monge dedicado a quebrar os seus votos, com
os contornos bem definidos e uma curva que Carmine associava sempre a tragédia.
Lábios de rapariga negra, de um tom castanho-escuro que se transformava em rosa
onde
se uniam naquela fenda comovente. Teria Margaretta este mesmo rosto?
- Não achas que a Etta possa ter saído à socapa, Linda? Os grandes olhos abriram-se
mais.
- Por que razão o faria? - perguntou Linda, como se isso em si mesmo fosse uma
resposta.
"Sim, por que o faria? É tão doce e dócil e encantadora como todas as outras. Ainda
reza antes de se deitar."
- De que altura é a Etta?
- Um metro e setenta e cinco, senhor.
- É bem constituída?
- Não, é magra. Isso entristece-a, porque quer ser uma estrela como a Dionne
Warwick - disse Linda, que mostrava todos os indícios de, também ela, vir a ser
alta
e magra. Alta e magra. Negra.
- Obrigado, Linda. Alguém ouviu algum barulho a noite passada? Ninguém ouvira nada.
Depois Mr. Bewlee entregou-lhe uma fotografia; Carmine deu por si a olhar para uma
rapariga igual a Linda. E igual a todas as outras.

217

Patrick entrou, com a mala na mão.


- Qual das portas do corredor, Linda?
- A segunda à direita, senhor. A minha cama é a da direita.
- Viste alguma coisa que indique que ele tenha entrado pela janela, Patsy?
- Absolutamente nada, excepto que tanto por dentro como por fora as janelas têm
fechos vulgares, que não estavam corridos. O solo lá fora está gelado, duro como
pedra. É relvado no Verão mas, neste momento, está árido. Não parece que o
parapeito tenha sido mexido desde que instalaram as portadas exteriores em Outubro,
ou
quando quer que tenham tirado as redes mosquiteiras. Deixei o Paul lá fora para se
certificar de que eu não deixei passar nada, mas não me parece.
Entraram num quarto quase pequeno demais para duas jovens em desenvolvimento, mas
extremamente arrumado e cuidado; paredes pintadas de cor-de-rosa, um tapete
entrançado
cor-de-rosa entre as duas camas de solteiro, uma à esquerda e outra à direita da
janela. Cada uma das raparigas tinha um armário aos pés da cama. Um póster grande
de Dionne Warwick e outro mais pequeno de Mary Bell estavam presos na parede por
cima da cama de Margaretta; por cima da cama de Linda havia uma prateleira que
continha
meia dúzia de ursos de peluche.
- Dormem profundamente e tranquilas - disse Patrick. - A roupa da cama quase não
está remexida. - Aproximou-se da cama de Margaretta e inclinou-se, até ter as
narinas
a um milímetro da almofada. - Éter - disse. - Éter, não clorofórmio.
- Tens a certeza? Evapora-se em poucos segundos.
- Tenho a certeza. Tenho um nariz tão bom que podia entrar no negócio dos perfumes.
Ficou preso nesta dobra, estás a ver? Já desapareceu. O nosso homem colocou-lhe
um pano ensopado em éter no

218

rosto, pegou-lhe e levou-a pela janela. - Patrick aproximou-se da janela e


levantou-a com a mão enluvada, depois abriu as portadas. -Ouviste? Nem um rangido.
Mr.
Bewlee cuida bem da sua casa.
- A menos que tenha sido o nosso homem a lubrificá-las.
- Não, aposto em Mr. Bewlee.
- Meu Deus, Patsy, ele é mesmo frio! Uma rapariga que mede um metro e setenta e
cinco, descalça, não pesa tão pouco como isso, e com a irmã a dormir ao lado... se
a Linda tivesse acordado...
- Os miúdos dormem como pedras, Carmine. A Margaretta provavelmente nem chegou a
acordar, pelo aspecto da roupa da cama... não há sinais de luta. A Linda continuou
a dormir durante o rapto, inconsciente do que se estava a passar. Todo o processo
não deve ter demorado mais do que dois minutos, no máximo.
- Nesse caso a pergunta é; quem deixou as janelas destrancadas? Mr. Bewlee não as
verificaria regularmente, ou o nosso homem fez uma visita antecipadamente para
isso?
- Ele esteve aqui antes. Calculo que Mr. Bewlee tranque as janelas no começo do
tempo frio e depois só volte a abri-las no primeiro degelo. A casa tem um
aquecimento
bastante bom e está demasiado frio para as raparigas abrirem a janela. O Inverno
aqui é mais rigoroso do que em Holloman.
Paul entrou, abanando a cabeça.
- Então vamos começar por olhar para cada centímetro aqui dentro. Vamos embalar
todas as roupas da cama da Margaretta, com um cuidado especial com a fronha.
Carmine
- disse Patrick quando o primo fez menção de sair do quarto -, se esta rapariga é
magra e alta, e muito negra, ele mudou todos os seus parâmetros. Talvez não seja
o mesmo homem.
- Queres apostar?
- Trinta dias... uma técnica de sequestro completamente diferente... um tipo de
rapariga diferente... é nisso que me estás a pedir que acredite?

219

- Sim. O factor mais importante não mudou. Esta rapariga é tão pura e imaculada
como as outras. As alterações que há dizem-me que não conseguimos assustá-lo muito.
Ele tem um plano mestre, e isto faz parte dele. Doze raparigas em vinte e quatro
meses. Talvez agora sejam doze raparigas em doze meses. É dia de Ano Novo. Talvez
o tamanho e a cor da pele sejam irrelevantes para a segunda dúzia, ou então a
Margaretta é o novo tipo de rapariga dele.
Patrick prendeu a respiração.
- Achas que ele vai mudar também o que lhes faz, não achas?
- É isso que os meus instintos me dizem, sim. Mas de uma coisa podes ter a certeza,
Patsy. É o nosso homem. Não é outra pessoa.
Carmine deixou Abe e Corey para regressarem com Patrick; cabia-lhes a eles bater de
porta em porta em Dublin Road, perguntando se alguém vira ou ouvira alguma coisa.
Pouco provável na noite de Ano Novo, com as festas e o álcool.

Eram dez e meia da manhã quando o Ford entrou no caminho de acesso à casa dos
Smith, um caminho longo e sinuoso que terminava numa casa grande e tradicional de
ripas
brancas, numa elevação, com janelas jorgianas de portadas verdes escuras. Não era
pré-Revolução, mas também não era nova. Dois hectares de terreno, naturalmente
florestado, à excepção do local onde se erguia a casa; não havia jardineiros na
família Smith.
Foi uma mulher bonita, com cerca de quarenta anos, que abriu a porta; a mulher do
professor, sem dúvida. Quando Carmine se apresentou, ela abriu a porta e mandou-o
entrar para uma casa mobilada de forma tão tradicional como o exterior sugeria:
coisas boas, sem poupar despesas, mas com uma decoração que não fora ditada por um
gosto aventureiro. Era evidente que os Smith tinham dinheiro para comprar aquilo
que quisessem.

220

- O Bob está por aqui algures - disse Eliza vagamente. - Posso oferecer-lhe um
café?
- Aceito, muito obrigado. - Carmine seguiu-a até uma cozinha habilmente decorada
para parecer uma centena de anos mais antiga do que era, desde os buraquinhos na
madeira à tinta desbotada.
Dois rapazes adolescentes entraram quando Eliza estava a servir o café. A
vivacidade natural em rapazes daquela idade estava ausente; Carmine estava
habituado a
rapazes que o bombardeavam de perguntas, uma vez que consideravam invariavelmente a
sua vocação muito glamorosa, e um homicídio melhor do que qualquer coisa que
pudessem ver na televisão. No entanto, os filhos de Smith, apresentados como Bobby
e Sam, pareciam mais assustados do que curiosos. Assim que a mãe lhes deu
autorização,
saíram, com instruções para procurarem o pai.
- O Bob não anda bem - disse Eliza com um suspiro.
- A tensão deve ser considerável.
- Não, na verdade não é isso. O problema é que ele não está habituado a que as
coisas corram mal, tenente. O Bob tem tido uma vida privilegiada. Antepassados
dignos,
muito dinheiro na família, o primeiro da turma onde quer que fosse, sempre
conseguiu tudo aquilo que queria, incluindo a regência da cadeira William Parson.
Quer
dizer, ele tem apenas quarenta e cinco anos... já pensou que ainda não tinha feito
trinta quando lhe deram a regência? E tem corrido como um sonho! Louvores a torto
e a direito.
- Até agora - disse Carmine, mexendo o café, que cheirava demasiado requentado para
ser bom. Provou e viu que o seu nariz não se enganara.
- Até agora. - concordou ela.
- Da última vez que o vi, achei que ele parecia deprimido.
- Muito deprimido - disse Eliza. - Só se anima quando vai para a cave. E é o que
fará hoje. E amanhã.
O professor Smith entrou, com ar atormentado.
- Tenente, que visita inesperada. Feliz Ano Novo.

221

- Não, senhor, não é feliz. Acabo de chegar de Groton e houve outro sequestro, um
mês antes da data prevista.
Smith deixou-se cair na cadeira mais próxima, branco como a cal da parede.
- Não pode ter sido no Hug - disse. - No Hug não.
- Em Groton, professor. Groton.
Eliza levantou-se com vivacidade e abriu um sorriso artificial.
- Bob, mostra ao tenente a tua mania - disse.
"És uma mulher brilhante", Mrs. Smith, pensou Carmine. "Sabes que eu não vim
visitá-los para lhes desejar um Feliz Ano Novo e que estou prestes a perguntar se
posso
dar uma vista de olhos por aqui, de forma não oficial. Mas não queres que o teu
marido recuse um pedido delicado, por isso pegaste no touro pelos cornos e forçaste
o professor a uma cooperação que ele não devia ter grande vontade de oferecer."
- A minha mania? Oh, a minha mania! - disse Smith, parecendo animar-se. - A minha
mania, claro! Gostaria de a ver, tenente?
- Sim, claro - disse Carmine, abandonando o café sem qualquer pesar.
A porta para a cave estava equipada com várias fechaduras, instaladas por um
profissional, e Bob Smith demorou algum tempo a abri-las. A escada de madeira
estava
fracamente iluminada; ao fundo, o professor ligou um interruptor que iluminou toda
a divisão com uma luz forte e sem sombras. De boca aberta, Carmine olhou para
aquilo a que Eliza Smith chamava uma mania.
Uma mesa quadrada, com mais ou menos quinze metros de lado, enchia a cave. A sua
superfície ostentava uma paisagem realista de colinas onduladas, vales, uma
cordilheira
de montanhas, várias planícies, florestas de árvores minúsculas e perfeitas; havia
rios a correr, um lago sob o flanco de um cone vulcânico, água a cair de

222

um penhasco. Aqui e ali espreitavam casas de quintas, numa planície havia uma
cidade, outra aninhada entre duas colinas. E, por todo o lado, cintilavam as linhas
prateadas de um caminho-de-ferro em miniatura. Sobre os rios passavam pontes de
vigas de aço, exactas até ao pormenor dos rebites, um ferry atravessava o lago, um
viaduto com um arco maravilhoso conduzia a linha através das montanhas. Nos
arredores das cidades havia estações ferroviárias.
E que comboios! O aerodinâmico Super Chief acelerava entre as árvores de uma
floresta, ultrapassando sem hesitar uma alta ponte suspensa. Duas locomotivas a
diesel
puxavam um comboio de mercadorias com vagões de carvão; outro consistia de tanques
de petróleo e produtos químicos, e um terceiro de carruagens de madeira. Numa
das estações estava parado um comboio suburbano.
No total, Carmine contou onze comboios, todos em movimento excepto o humilde
suburbano na sua estação, com velocidades que variavam entre o rápido Super Chief e
o vagar de um dos comboios de mercadorias, que puxava tantos tanques de petróleo
que tinha pares de locomotivas a diesel inseridas ao longo do seu extraordinário
comprimento. E tudo em miniatura! Para Carmine, era uma das maravilhas do mundo, um
brinquedo pelo qual se podia morrer.
- Nunca vi nada assim em toda a minha vida - disse em voz rouca. - Não há palavras
que o descrevam.
- Tenho vindo a construí-lo desde que nos mudámos para aqui, há dezasseis anos -
disse o professor, que estava a ficar rapidamente mais animado. - São todos movidos
a electricidade, mas ainda hoje vou passar para vapor.
- Vapor? Quer dizer locomotivas alimentadas a lenha? A carvão?
- Na verdade, gero o vapor queimando álcool, mas o princípio é o mesmo. É muito
mais divertido do que simplesmente fazê-las andar com a electricidade doméstica.
- Aposto que o senhor e os seus filhos passam momentos maravilhosos aqui em baixo.

223

O professor ficou rígido, com uma expressão no olhar que arrepiou Carmine: ele
podia ter tido uma vida privilegiada mas, por baixo da depressão e da
autocomplacência,
havia pelo menos algum aço.
- Os meus filhos não vêm cá abaixo, estão proibidos - disse. -Quando eram mais
pequenos e a porta não tinha fechaduras, desfizeram tudo. Desfizeram! Demorei
quatro
anos a reparar os danos. Partiram-me o coração.
Carmine estava prestes a dizer que, com certeza, os rapazes tinham agora idade
suficiente para respeitar os comboios, mas decidiu não se intrometer nas questões
domésticas de Smith.
- Como é que consegue chegar às partes do meio? - perguntou em vez disso,
semicerrando os olhos por causa das luzes fortes. - Um guincho?
- Não, vou por baixo. É montado em secções, e cada secção é relativamente pequena.
Mandei um engenheiro hidráulico instalar um sistema que me permite erguer uma
secção tanto quanto seja necessário e afastá-la para o lado, pelo que posso fazer
as alterações estando de pé. Embora seja mais para limpeza do que para outra coisa.
Se quero mudar de diesel para vapor, basta-me conduzir um dos comboios até à beira,
vê?
O Super Chief abandonou o seu trajecto, atravessou vários entroncamentos enquanto
outros comboios eram detidos ou desviados, e aproximou-se da beira da mesa. Carmine
quase imaginou conseguir ouvi-lo a ranger e a assobiar.
- Importa-se que dê uma vista de olhos ao seu sistema hidráulico, professor?
- Não, de todo. Tome, vai precisar disto, está escuro lá em baixo. - O professor
estendeu-lhe uma grande lanterna.
Havia muitos êmbolos, cilindros e engrenagens, mas, apesar de ter rastejado por
baixo de cada parte da mesa, Carmine não encontrou alçapões nem compartimentos
ocultos;
o chão era de betão, muito limpo, e, por alguma razão, uma aliança entre comboios e
jovens adolescentes parecia-lhe pouco provável.
224

A criança dentro dele teria adorado passar o resto do dia a brincar com os comboios
do professor, mas, depois de estar convencido de que não havia mais nada na cave
de Smith a não ser comboios, comboios e mais comboios, Carmine voltou a subir.
Eliza conduziu-o pela casa quando ele lhe perguntou se podia inspeccioná-la. A
única
coisa que a deixou ansiosa foi quando passaram por uma chibata de ponta esgaçada,
colocada em cima do aparador da sala de jantar. "Então o professor espancava os
filhos, e não era com meiguice. Bom, o meu pai também me bateu até eu ser maior do
que ele, o maldito filho da mãe. Depois dele, aguentar os instrutores do Exército
dos EUA foi canja."
De casa dos Smith, seguiu para casa dos Ponsonby, que não era muito longe, mas o
local estava deserto. As portas da garagem, abertas, deixavam ver um Mustang
encarnado,
mas não a carrinha que Carmine vira estacionada no parque do Hug. Estranho, a
quantidade de pessoas que conduziam descapotáveis V8! Desdemona, e agora Charles
Ponsonby.
Hoje devia ter saído com a irmã na carrinha; irmã e cão-guia provavelmente ocupavam
bastante espaço.
Decidiu não visitar os Polonowski; em vez disso, parou numa cabina telefónica e
ligou para Marciano.
- Danny, manda alguém ao norte do estado procurar a cabana de Walter Polonowski. Se
ele estiver lá com a Marian, não o incomodem, mas se estiver sozinho ou não estiver
lá, os nossos homens que dêem uma vista de olhos ao local, sempre com a delicadeza
necessária para que o Polonowski não se lembre de coisas como mandatos de busca.
- Qual é o teu veredicto sobre o rapto de Groton, Carmine?
- Oh, foi o nosso homem, mas prová-lo será complicado. Ele mudou o padrão, entrou
no ano novo ao som de uma música diferente. Assim que o Patrick voltar, fala com
ele. Eu vou dar uma volta

225

pelas casas dos Huggers. Não, não, não entres em pânico! Só para dar uma olhadela.
Mas, se encontrar alguém em casa, vou pedir para inspeccionar locais como caves
e sótãos. Danny, devias ver o que o professor tem na cave! Que loucura!
Já que estava na cabina, experimentou ligar para os Finch, cujo telefone tocou sem
ser atendido. Os Forbes, descobriu, usavam um serviço de mensagens, provavelmente
devido ao facto de Forbes tratar de muitos pacientes humanos. A operadora do
serviço informou Carmine de que o Dr. Forbes estava a passar o fim-de-semana em
Boston
e deu-lhe um número nessa cidade. Quando o marcou, o Dr. Addison Forbes atendeu-o
num tom irritado.
-Acabo de ouvir que foi raptada mais uma rapariga - disse Forbes -, mas não olhe
para mim, tenente. A minha mulher e eu viemos passar o fim-de-semana com a nossa
filha Roberta. Ela acaba de ser aceite em obstetrícia.
"Estou a ficar sem suspeitos", pensou Carmine, desligando e voltando ao Ford.
Entrando em Holloman pela Sycamore, decidiu ver o que Tâmara Vilich estaria a fazer
neste fim-de-semana festivo.
Depois de ver quem era pelo painel de vidro, ela abriu-lhe a porta vestida de forma
muito pouco típica para um Hugger: uma peça flutuante de seda escarlate quase
transparente, com rachas de ambos os lados até às ancas, muito sexy, deixando pouco
à imaginação. Esta é uma daquelas mulheres, pensou ele, que nunca usa cuecas.
Uma exibicionista feminina.
- Está com cara de quem precisa de um bom café. Entre - disse ela com um sorriso, o
escarlate do seu traje emprestando um brilho avermelhado e diabólico aos olhos
de camaleão.
- Tem uma bela casa - disse ele, olhando em volta.
- Isso - disse ela -, é um lugar comum tão grande que soa a falso.
- Estava apenas a fazer conversa de circunstância.
- Então fale sozinho durante um minuto enquanto eu trato do café.

226

Desapareceu na direcção da cozinha, deixando-o a observar a decoração à vontade. O


gosto dela era ultra moderno: cores vivas, bons assentos de cabedal, metal e vidro
em vez de madeira. Mas Carmine mal reparou nisso, totalmente concentrado nos
quadros que atacavam as paredes indefesas. No local de honra estava um tríptico. O
painel
da esquerda mostrava uma mulher nua, enrubescida, com um rosto feio e grotesco,
ajoelhada a adorar uma estátua de Jesus Cristo com aspecto fálico; o painel central
mostrava a mesma mulher deitada de costas, com as pernas abertas e a estátua na mão
esquerda; o painel da direita mostrava-a com a estátua enfiada na vagina e o
rosto a voar em pedaços, como se tivesse sido atingido por uma bala com ponta de
mercúrio.
Depois de apreender a mensagem da pintura, Carmine escolheu um assento de onde não
conseguisse ver aquela imagem revoltante.
Os outros quadros mostravam mais violência e raiva do que obscenidade, mas ele não
poria nenhum nas suas paredes. Um leve aroma a tinta de óleo e aguarrás disse-lhe
que a artista era provavelmente a própria Tâmara, mas o que a levaria a escolher
estes temas? Um cadáver masculino em decomposição pendurado de cabeça para baixo
no patíbulo, um rosto quase humano a rosnar e a babar-se, um punho fechado a
escorrer sangue por entre os dedos. Charles Ponsonby talvez aprovasse, mas os olhos
de Carmine eram suficientemente perspicazes para perceber que a técnica dela não
era brilhante; não, estes quadros não eram suficientemente bons para interessar
a um entendido perfeccionista como Chuck. Tudo o que tinham era a capacidade de
ofender.
"Ou ela é uma pessoa doente, ou é mais cínica do que eu suspeitava", pensou.
- Gosta do meu trabalho? - perguntou Tâmara, regressando à sala.
- Não. Acho que é doentio.
Ela atirou a bonita cabeça para trás e riu com gosto.

227

- Confunde os meus motivos, tenente. Pinto aquilo que um certo mercado procura
tanto que nunca é suficiente. O problema é que a minha técnica não é tão boa como
a dos mestres nesta área, pelo que só consigo vender o meu trabalho devido aos seus
temas.
- A implicação, por meia dúzia de tostões. Certo?
- Sim. Embora, um dia, talvez consiga ganhar a vida com isto. O dinheiro a sério
está em edições limitadas de gravuras, mas não sou litógrafa. Preciso de aulas que
não posso pagar.
- Ainda está a repor o dinheiro daquele desfalque no Hug, não? Ela levantou-se da
cadeira como uma mola e voltou para a cozinha sem responder.
O café era muito bom; Carmine bebeu avidamente e serviu-se de um folhado de maçã
acabado de sair do frigorífico.
- A casa é sua, segundo sei - disse, sentindo-se melhor.
- Tem andado a investigar-nos?
- Claro. Faz parte do meu trabalho.
- E contudo tem a ousadia de julgar o meu. Sim - continuou, acariciando a garganta
com a mão comprida e bonita -, a casa é minha.. O primeiro andar está arrendado
a um residente de neurologia e à mulher, que é enfermeira, e o segundo a um casal
de lésbicas ornitólogas que trabalham na Torre de Biologia Burke. As rendas têm-me
salvado a pele desde o meu... ah... pequeno
deslize.
"Isso mesmo, Tâmara, deite-o cá para fora, fica-lhe melhor do
que a indignação."
- O professor Smith deu a entender que foi o seu marido, na
altura, que a levou a isso.
Ela inclinou-se para a frente, sentada com os pés debaixo do corpo, e fez um esgar
desdenhoso com os lábios.
- Dizem que ninguém faz o que não quer fazer. O que acha?
- Acho que você o amava muito.
- Que perspicaz da sua parte, tenente! Suponho que devia amá-lo, mas parece ter
sido há uma eternidade.

- Deixa os seus inquilinos usarem a cave? - perguntou ele.


Ela semicerrou as pálpebras pálidas e os seus lábios curvaram-se ligeiramente.
- Não, não deixo. A cave é minha.
- Não tenho nenhum mandato, mas importa-se que eu dê uma vista de olhos?
Os mamilos dela espetaram-se como se tivesse sentido subitamente frio.
- Porquê? O que aconteceu? - perguntou abruptamente.
- Outro rapto. A noite passada, em Groton.
- E pensa, porque eu pinto aquilo que pinto, que sou uma psicopata com a cave
alagada de sangue. Pode ver o que quiser, tanto me faz - disse ela, e entrou
naquilo
que Carmine percebeu ter sido em tempos um segundo quarto, mas que era agora o seu
estúdio.
Carmine não se fez rogado e inspeccionou a cave, sem encontrar nada pior do que um
rato morto numa ratoeira; se gostasse de Tâmara, teria retirado o animal, mas,
como não gostava, não o fez.
O quarto dela era muito interessante; cabedal preto, lençóis de cetim pretos numa
cama com uma cabeceira suficientemente robusta para aguentar algemas, uma pele
de zebra sobre a carpete preta, com a cabeça intacta e dois olhos brilhantes de
vidro encarnado. "Aposto", pensou ele, deslocando-se silenciosamente, "que não é
ela que está do outro lado do chicote. Tâmara é uma dominadora. Quem será o
fustigado?"
Na mesa-de-cabeceira, no lado que calculou ser o dela, havia uma fotografia numa
moldura de prata trabalhada; uma mulher idosa de aspecto severo, suficientemente
parecida com Tâmara para poder ser a sua mãe. Pegou-lhe com um gesto que, se Tâmara
entrasse no quarto, pareceria pouco interessado, depois fez deslizar rapidamente
a parte de trás. Bingo! Em cheio. Atrás da fotografia da mamã estava uma fotografia
de corpo inteiro de Keith Kyneton; nu em pêlo, com a constituição de um Mr.
Universo
e a erecção de um rapaz de quinze anos.

228 - 229

Trinta segundos depois a mamã estava de novo no sítio. "Será que esta gente não
percebe que esconder uma fotografia atrás de outra é o truque mais antigo do Livro
dos Enganos? Agora sei tudo a seu respeito, Miss Tâmara Vilich. Pode andar a
fustigar outros, mas não este - o trabalho dele ressentir-se-ia. Então, fazem
joguinhos
juntos? Veste-o como um bebé e dá-lhe "tautau" no rabiosque? Faz de enfermeira a
dar-lhe um clister? Ou de professora rigorosa a distribuir humilhações? De
prostituta
que o engatou num bar? Quem diria!"
Sem ter outro sítio onde ir, voltou para casa, mas saiu do elevador no décimo andar
e tocou à campainha de Desdemona. A voz dela soou no intercomunicador, apática
- não por desagrado, mas devido à tecnologia.
- Houve outro - disse ele ousadamente, depois de entrar, enquanto despia o casaco.
- Carmine, não! Só passou um mês!
Ele olhou em volta e localizou o cesto do trabalho dela, com uma toalha de mesa que
estava a avançar mais rapidamente do que teria avançado nos dias em que Desdemona
ainda podia dar as suas caminhadas.
- Por que raio é tão sovina, Desdemona? - inquiriu, com o estado de espírito
sombrio e desencorajado e a necessitar de descarregar em alguém. - Por que não
gasta
algum dinheiro consigo? Porquê esta vida frugal? Não pode comprar um vestido bonito
de vez em quando?
Ela ficou absolutamente imóvel, com os lábios comprimidos numa linha fina, uma dor
nos olhos que ele nunca vira, nem mesmo quando Charlie fora assassinado.
- Sou uma solteirona, poupo para a velhice - disse ela calmamente -, mas é mais do
que isso. Dentro de cinco anos vou voltar

230

para casa... para um local onde não há violência, nem polícias armados, nem Monstro
do Connecticut. É por isso.
- Peço desculpa, não tinha o direito de perguntar. Perdoe-me.
- Hoje não, e talvez nunca. - disse ela, abrindo a porta. O casaco seguiu o dono,
arremessado para o chão do corredor. - Adeus, tenente Delmonico.

231

Capítulo Quinze

O primeiro dia de trabalho do ano novo estava ventoso e nevava, mas o tempo não
impedira alguém de pintar graffitis nas paredes do Hug - assassinos, racistas,
porcos,
fascistas, suásticas e, mesmo na fachada frontal, ku klux klan de holloman.
Quando o professor chegou e viu o que fora feito ao edifício que era a luz dos seus
olhos, foi-se abaixo. Não com um ataque cardíaco; a crise de Robert Mordent Smith
era espiritual. Foi levado por uma ambulância, cuja equipa estava bem consciente de
que, quando chegassem ao edifício das Urgências, estariam a gritar não por
cardiologistas
mas por psiquiatras. Ele chorava, ele gemia, ele gritava, ele balbuciava,
pronunciando palavras completamente ininteligíveis.
Carmine veio ver o Hug com os seus próprios olhos, tão grato como John Silvestri
por o Inverno estar, afinal de contas, a revelar-se rigoroso; o verdadeiro
turbilhão
racial só rebentaria na Primavera. Apenas dois homens negros tinham desafiado os
elementos para brandirem cartazes que o vento já reduzira a farrapos. O rosto de
um deles era familiar; Carmine parou à entrada e estudou-o. Pertencia a um homem
pequeno, magro, insignificante, de pele muito escura, nem atraente nem sexy. Então
de onde, de onde, de onde! As memórias soterradas tendiam a vir ao de cima
subitamente,

232

como aconteceu com esta; quando as coisas entravam na mente de Carmine, ficavam lá,
ressuscitando quando os eventos lhes davam um empurrãozinho. Era o sobrinho da
mulher de Otis Green. Wesley le Clerc.
Dirigiu-se a le Clerc e ao seu companheiro, outro pretenso valentão que parecia
menos determinado do que Wesley.
- Vão para casa, rapazes - disse em tom agradável -, senão teremos de os
desenterrar de baixo da neve. Mas quero dar-lhe uma palavrinha primeiro, Mr. le
Clerc. Vamos
entrar, está muito frio. Não vou prendê- lo, só quero conversar, palavra de
escuteiro.
Um pouco surpreendido consigo próprio, Wesley seguiu-o docilmente enquanto o seu
companheiro desaparecia a toda a velocidade, como uma criança a quem tivessem
deixado
sair da escola mais cedo.
- Chama-se Wesley le Clerc, não é? - perguntou Carmine depois de entrarem, enquanto
batiam os pés para sacudir a neve das botas.
- E se for?
- O sobrinho de Mrs. Green, do Luisiana.
- Sim, e tenho cadastro, poupo-lhe já o tempo de me ir investigar. Sou um conhecido
agitador. Por outras palavras, um preto que causa aborrecimentos.
- Quanto tempo esteve preso, Wes?
- No total, cinco anos. Mas não por roubar tampões de pneus nem por assaltos à mão
armada. Apenas por dar porrada a pacóvios racistas.
- E o que faz em Holloman, para além de se manifestar de forma pacífica e de usar
um blusão da Brigada Negra?
- Faço instrumentos na Parson Surgical Supplies.
- É um bom emprego, requer alguma perícia manual e intelectual. Wesley cresceu para
Carmine, que era muito maior do que ele,
como uma galinha-da-índia para um galo de combate.
- Que lhe interessa aquilo que eu faço, hã? Acha que fui eu que pintei aquelas
coisas lá fora?

233

- Oh, cresça e apareça, Wes! - disse Carmine em tom fatigado. - Os graffitis não
são da Brigada Negra, são dos miúdos do Liceu Travis, pensa que eu não sei disso?
O que quero saber é por que raio está ali fora a congelar quando o tempo está
demasiado mau para atrair espectadores.
- Estou ali para dizer aos brancos que está na altura de começarem a preocupar-se,
Sr. Polícia Espertalhão. Não apanham este assassino porque não querem. Tanto quanto
sei, Sr. Polícia Espertalhão, até pode ser você que anda a matar as raparigas
negras.
- Não, Wes, não sou eu. - Carmine encostou-se à parede e olhou para Wesley com uma
expressão inconfundível de compreensão. -Deixe os métodos de Mohammed! São os
métodos errados. Uma vida melhor para as pessoas negras não vai acontecer através
da violência, independentemente do que Lenine disse sobre o terror. Afinal de
contas,
muitos brancos aterrorizaram os negros americanos ao longo de duzentos anos, mas
será que isso destruiu o espírito negro? Volte para a escola, Wes, tire um curso
de Direito. Isso ajudará a causa negra mais do que Mohammed el Nesr alguma vez
conseguirá.
- Oh, claro! E onde é que vou arranjar o dinheiro para isso?
- A fazer instrumentos na Parson Surgical Supplies. Holloman tem boas escolas
nocturnas e há montes de pessoas em Holloman com vontade de ajudar.
- Os brancos podem enfiar a sua generosidade arrogante no traseiro!
- Quem disse que estou a falar dos brancos? Muitas dessas pessoas são negras.
Homens de negócios, profissionais. Não sei se já existem no Luisiana, mas existem
sem
dúvida no Connecticut, e nenhum deles é um Tio Tom. Estão a trabalhar para o seu
povo.
Wesley le Clerc deu meia volta e saiu, brandindo o punho direito no ar.
- Pelo menos, Wes - disse Carmine, sorrindo -, não me fez um gesto feio.

234

Mas Wesley le Clerc não estava a pensar em gestos rudes enquanto caminhava pela
neve que caía agora com mais intensidade. Estava a pensar no tenente Carmine
Delmonico
de forma diferente. Esperto, muito esperto. Demasiado frio e confiante para dar a
alguém uma desculpa para se queixar de perseguição ou mesmo de discriminação; o
seu método era a resposta suave que rechaçava a ira. "Mas não desta vez. Não a
minha ira. Através de Otis, tenho os meios para dar a Mohammed informação de que
ele
precisará quando chegar a Primavera. Ultimamente, Mohammed olha para mim com mais
respeito, e o que irá ele dizer quando eu lhe contar que os porcos de Holloman
ainda andam a meter o nariz no Hug? A resposta está dentro do Hug. Delmonico sabe
disso tão bem como eu. Os brancos, ricos e privilegiados. Quando todos os negros
da América forem discípulos de Mohammed el Nesr, as coisas vão mudar."
- O caminho é difícil - disse Mohammed el Nesr a Ali el Kadi. - Demasiados dos
nossos irmãos negros sofreram lavagens ao cérebro, e muitos mais foram seduzidos
pelas
maiores armas dos brancos: o álcool e as drogas. Mesmo agora, que o Monstro apanhou
uma genuína rapariga negra, o nosso nível de recrutamento não é o suficiente.
- O nosso povo precisa de mais provocação - respondeu Ali el Kadi; era esse o nome
que Wesley le Clerc escolhera quando abraçara o Islão.
- Não - disse Mohammed com convicção. - O nosso povo não precisa, a Brigada Negra
sim. E não é de provocação. Precisamos de um mártir, Ali. Um exemplo que nos traga
homens às dezenas de milhares. - Deu uma palmadinha no braço de Wesley Ali. -
Entretanto, vai trabalhar e faz um bom trabalho. Inscreve-te na escola à noite.
Insinua-te
junto daquele porco infiel, o Delmonico. E descobre tudo o que puderes.

235

Os Forbes ainda estavam em Boston, onde ficariam até as estradas estarem mais
seguras, e os Finch estavam isolados pela neve. Walt Polonowski passara o fim-de-
semana
na sua cabana, mas com uma rapariga viva, Marian. Os homens que Danny Marciano
enviara para investigar não tinham denunciado a sua presença; Carmine não tinha
intenções
de tornar qualquer Hugger mais infeliz do que o necessário, e isso significava
ajudar Polonowski a manter o seu segredo - por enquanto.
Patrick não descobrira nada na casa de Dublin Road que confirmasse ou desmentisse
que o raptor de Margaretta era o mesmo homem, embora tivesse confirmado que o
método
seleccionado fora o éter.
- Ele usa um fato protector de algum tipo - disse Patrick ao primo. - É feito de um
tecido que não larga quaisquer fibras, e usa calçado com solas macias que não
deixam pegadas, a menos que pise lama, coisa que ele não faz. O fato deve ter um
gorro ou capuz justo que lhe tapa completamente o cabelo, e usa luvas. Com este
rapto nocturno, tornou-se evidente que tudo o que usa é preto. Talvez escureça
também o rosto. Calculo que o fato seja de borracha e justo, como um fato de
mergulho.
- Não dão muito jeito em terra, Patsy.
- Hoje em dia já os há muito práticos, se tiveres dinheiro para comprar o melhor.
- E ele pode comprar o melhor, porque cheira-me que tem dinheiro.
As investigações de Corey e Abe em Groton não tinham resultado em nada; a noite de
Ano Novo era sempre uma noite barulhenta.
- Obrigado, rapazes. - Agradeceu-lhes Carmine.
Ninguém disse o óbvio: que saberiam mais quando o corpo de Margaretta aparecesse.

236

Na noite anterior, Carmine subira no elevador do Edifício Nut-meg Insurance até ao


último andar, onde procurara o Dr. Hideki Satsuma, que se mostrara disposto a
deixá-lo entrar.
- Oh, que bonito - disse Carmine, olhando em volta. - Procurei-o ontem à noite,
doutor, mas não estava em casa.
- Não, estive na minha casa de Cape Cod. Em Chathams. Quando ouvi a previsão
meteorológica, decidi voltar hoje para casa.
Então Satsuma tinha uma casa em Chathams? Uma viagem de três horas no Ferrari
castanho. Mas seria mais curta, se tivesse começado em Groton.
- O seu pátio é maravilhoso - disse Carmine, aproximando-se do vidro para o
observar.
- Costumava ser, mas há desequilíbrios que estou a tentar corrigir. Ainda não
consegui, tenente. Talvez seja o cipreste de Hollywood... não é uma árvore
japonesa.
Coloquei-o ali porque pensei que seria necessário um exemplar da América, mas
talvez esteja enganado.
- Para mim, doutor, é ele que faz o jardim... é o mais alto, enrolado sobre si
próprio como uma espiral dupla. Sem ele, não teria nada suficientemente alto para
chegar ao cimo das paredes, e nada simétrico.
- Estou a ver o que quer dizer.
"Uma ova é que está", pensou Carmine. "O que é que um gaijin como eu sabe sobre a
jardinagem do universo?"
- Doutor, dá-me autorização para dar uma vista de olhos à sua casa de Cape Cod?
- Não, tenente Delmonico, não dou. Se tentar, processo-o.
e assim terminara o domingo, sem resultados palpáveis.
Às seis da tarde de segunda-feira, Carmine chegou ao número seis de Ponsonby Lane,
para enfrentar os Ponsonby no seu covil.

237

O seu carro foi recebido pelos latidos profundos de um cão grande e, quando Charles
Ponsonby abriu a porta da frente, segurava a coleira de - talvez o cão-guia da
irmã?
- Uma raça estranha - disse Carmine a Ponsonby enquanto despia os agasalhos no
vestíbulo.
- Metade golden labrador, metade pastor alemão - disse Charles, pendurando os
agasalhos. - Chamamos-lhe "labrapastora", e chama-se Biddy. Não há problema, minha
querida, o tenente Delmo-nico é amigo.
A cadela não tinha tanta certeza. Decidiu deixá-lo entrar, mas continuou a mirá-lo
com desconfiança.
- Estamos na cozinha, íamos começar a fazer um jantar Beethoven. Números três,
cinco e sete... sempre preferimos as sinfonias com números ímpares às de números
pares.
Entre. Espero que não se importe se nos sentarmos na cozinha?
- Fico bem em qualquer lado, doutor Ponsonby.
- Trate-me por Chuck, embora eu, por uma questão de aparências, tenha de usar o seu
título oficial. A Claire chama-me sempre Charles.
Conduziu Carmine através de uma casa que tinha genuinamente duzentos e cinquenta
anos de idade, com vigas abauladas e soalhos cheios de ondulações e altos e baixos,
até uma sala de jantar mais moderna, pegada a uma cozinha que era decididamente a
original da casa. Aqui, os buracos na madeira, a tinta desbotada e as madeiras
a lascar eram autênticas: "roa-se de inveja, Mrs. Eliza Smith."
- Esta parte da casa devia ser separada, originalmente - disse Carmine, enquanto
apertava a mão de uma mulher, no final da casa dos trinta, que era a cara chapada
do irmão, até ao pormenor dos olhos pálidos.
- Sente-se ali, tenente - disse ela numa voz de Lauren Bacall, indicando com a mão
uma cadeira Windsor. - Sim, era separada. Na altura as cozinhas tinham de o ser,
em caso de fogo. Caso contrário toda a casa arderia. O Charles e eu unimos a casa
com uma sala de

238

jantar, mas nem imagina a dor de cabeça que foi o processo de construção!
- Porquê? - perguntou ele, aceitando um copo de xerez amontillado oferecido por
Charles.
- Os regulamentos exigem que construamos com madeira da mesma idade da casa - disse
Charles, sentando-se em frente de Carmine. - Finalmente encontrei dois celeiros,
no norte do estado de Nova Iorque, e comprei-os a ambos. Ficámos com madeira em
excesso, mas está guardada para eventuais futuras reparações. Carvalho bom e
sólido.
Claire estava de lado para Carmine, manejando uma faca leve de lâmina fina que
usava para preparar dois pedaços grossos de carne do lombo. Assombrado, Carmine
observou
os dedos hábeis enfiarem a faca debaixo de um tendão e arrancá-lo sem desperdiçar
qualquer carne; ela desempenhara a tarefa melhor do que ele alguma vez conseguiria.
- Gosta de Beethoven? - perguntou ela.
- Sim, muito.
- Nesse caso, por que não janta connosco? Garanto-lhe que a comida chega e sobra,
tenente - disse, lavando a faca numa torneira por cima de um lavatório de pedra.
- Primeiro um souflé de queijo e espinafres, um sorvete de limão para limpar o
paladar, depois lombo com molho Bearnaise, batatas novas fervidas em caldo de carne
caseiro e ervilhas.
- Parece delicioso, mas não posso demorar-me muito - beberricou o xerez e achou-o
muito bom.
- Charles disse-me que desapareceu outra rapariga - disse ela.
- É verdade, Miss Ponsonby.
- Trate-me por Claire - ela suspirou, arrumou a faca e juntou-se a eles à mesa,
aceitando um copo de xerez como se conseguisse vê-lo.
A cozinha era muito parecida com o que sempre devia ter sido, excepto que na grande
chaminé, onde no século dezoito teria havido espetos,

239

ganchos e o forno do pão, erguia-se agora um fogão de combustão enorme. A sala


estava demasiado quente para o gosto de Carmine.
- Um fogão Aga? Não conheço - disse, esvaziando o copo de xerez.
- Comprámo-lo em Inglaterra, na nossa única aventura no estrangeiro, há vários anos
- disse Charles. - Tem um forno muito lento para os assados normais, e um forno
rápido para fazer justiça aos bolos ou ao pão francês. Muitos bicos. Também nos
fornece água quente no Inverno.
- Funciona a óleo?
- Não, a lenha.
- Não é caro? Quer dizer, o óleo de aquecimento custa apenas nove cêntimos por
galão. A lenha deve ser muito mais cara.
- Seria, se eu tivesse de a comprar, tenente, mas não é o caso. Temos oito hectares
de floresta para além de Sleeping Giant. São as últimas terras que possuímos,
para além destes dois hectares. Todas as Primaveras corto aquilo de que preciso e
replanto as árvores que abati.
"Céus, aqui vamos nós outra vez!", pensou Carmine. "Quantos Huggers têm retiros
secretos como este? Abe e Corey terão de ir às montanhas e passar a pente fino oito
hectares de floresta - vão adorar a ideia, com o chão coberto de neve como está!
Benjamin Liebman, o cangalheiro, tem uma agência funerária tão limpa que teríamos
de o apanhar em flagrante, e o professor tem uma cave cheia de comboios... mas uma
maldita floresta inteira!"
Um segundo copo do xerez dos Ponsonbys fez com que Carmine se lembrasse de que não
tomara pequeno-almoço nem almoço: estava na altura de ir.
- Espero que não considere a minha pergunta impertinente, Claire, mas sempre foi
cega? - perguntou.
- Oh, sim - disse ela em tom animado. - Sou um daqueles bebés de incubadora a quem
deram oxigénio puro. Culpe a ignorância da época.

240

A vaga de piedade que sentiu fê-lo desviar os olhos para um grupo de fotografias
emolduradas numa das paredes, algumas das quais tão antigas que eram apenas
daguerreótipos
de tom sépia. Uma forte semelhança familiar era comum a todos os rostos: feições
rectas e duras, sobrancelhas muito marcadas e cabelo escuro e espesso. A única
diferente
era evidentemente a mais recente: uma mulher idosa, cujo rosto recordava muito mais
os de Charles e Claire, desde o cabelo fino aos olhos claros e húmidos e às feições
longas e lúgubres. A mãe? Se assim fosse, então eles não tinham saído aos Ponsonby,
mas sim a ela.
- A minha mãe - disse Claire com uma capacidade inquietante de perceber o que se
passava no mundo dos que vêem. - Não deixe que a minha presciência o incomode,
tenente.
Em certa medida, é apenas um truque.
- Vejo que é a vossa mãe, e que se parecem ambos mais com ela do que com a linhagem
Ponsonby.
- Ela era uma Sunnington de Cleveland, e é verdade que nós saímos mais aos
Sunnington. A mamã morreu há três anos, uma morte misericordiosa. Sofria de
demência muito
severa. Mas não se pode pôr uma Filha da Revolução Americana num lar de velhotas
senis, portanto fui eu que cuidei dela até ao amargo final. Com alguma ajuda
excelente
das autoridades do condado, tenho de o dizer.
"Então é a casa de uma FRA, pensou Carmine. "Ponsonby e a irmã provavelmente não
votam em ninguém à esquerda de Genghis Khan."
Levantou-se, ligeiramente tonto; os Ponsonby serviam o seu xerez em copos de vinho,
não em cálices.
- Obrigado pela hospitalidade, agradeço muito - olhou para a cadela, deitada de
olhos postos nele. - Adeus, Biddy. Foi um prazer conhecer-te.
- O que pensas do bom tenente Delmonico? - perguntou Charles Ponsonby à irmã quando
voltou para a cozinha.

241

- Que não deixa passar muita coisa - disse ela, misturando claras em castelo no
molho de queijo e espinafres.
- É verdade. Amanhã vão andar a espezinhar a nossa floresta.
- Importas-te?
- Nem um pouco - disse Charles, despejando o souflé na caçarola e colocando-a no
forno quente. - Mas tenho pena dele. As buscas em vão devem ser exasperantes.

242

Capítulo Dezasseis

- O Carmine parece em baixo - murmurou Marciano a Patrick.


- Ele e a Desdemona não se falam. O comissário Silvestri pigarreou.
- Então quantos é que se recusaram a deixar-nos dar uma vista de olhos sem mandato?
- De uma maneira geral, foram bastante cooperativos - disse Carmine, que parecia de
facto em baixo. - Consegui ver tudo o que pedi para ver, embora tenha tido o
cuidado de ter sempre pelo menos um deles comigo. Não pedi autorização a Charles
Ponsonby para inspeccionar a floresta porque achei que não valia a pena. Se o Corey
e o Abe encontrarem algum rasto recente no meio desta neve toda, ou evidências de
rastos recentes que tenham sido cobertos, então pedirei. Mas aposto que os oito
hectares estão intactos, porquê aborrecer o Chuck e a Claire antes do tempo?
- Gosta da Claire Ponsonby - disse Silvestri, fazendo uma afirmação.
- Sim, gosto. É uma mulher fantástica, não guarda qualquer ressentimento. -
Afastou-a da mente. - Para responder à sua pergunta original, até agora ouvi
recusas
do Satsuma, do Chandra e do Schiller, os três estrangeiros. Aposto que o Satsuma
enviou o seu peão particular, Eido, para a casa de Cape Cod, dez segundos depois
de eu

243

ter saído do apartamento dele. O Chandra é um filho da mãe arrogante, mas isso é
provavelmente compreensível, sendo o primeiro filho de um marajá. Mesmo que
conseguíssemos
um mandato, ele queixar-se-ia à Embaixada da índia, e essa é uma nação muito
sensível e agressiva. O Schiller é um caso mais patético. Não suspeito que seja
capaz
de nada mais estranho do que ter muitas fotografias de rapazes nus nas paredes, mas
não insisti por causa da tentativa de suicídio. Foi a sério, não apenas uma
encenação.
Carmine sorriu.
- Por falar em fotografias de homens nus, encontrei uma extraordinária no quarto da
Tâmara Vilich, no meio das correntes e do cabedal. Nem mais nem menos do que
o ambicioso neurocirurgião, Keith Kyneton, que, despido, fica melhor do que o Mr.
Universo. Dizem que estes tipos do culturismo o fazem para compensar um pénis
pequeno,
mas não posso dizer que seja o caso dele. Tem um instrumento digno de uma estrela
pornográfica.
- Vejam só, quem diria? - disse Marciano, recostando-se na cadeira para evitar o
fumo do charuto de Silvestri; por que diabo tinha de estar sempre debaixo do nariz
dele? - Isso elimina os Kyneton? Ou a Tâmara Vilich?
- Não completamente, Danny, apesar de nunca terem estado em lugar de destaque na
minha lista. Ela pinta quadros muito doentios e é uma dominadora.
- Então o Keith gosta de levar porrada.
- É o que parece. No entanto, a Tâmara não lhe pode deixar marcas, senão a esposa
devotada repararia. É da mãe dele que tenho mais pena.
- Mais uma de quem gosta - disse Silvestri.
- Bom, seria preocupante se não gostasse de ninguém.
- Quais são os teus planos agora? - perguntou Marciano.
- Confrontar a Tâmara com a história dos Kyneton.
- Isso não te custará nada. Já percebi que dela não gostas.

244

Apanhou-a no gabinete dela.


- Vi a fotografia do Keith Kyneton por baixo da da sua mãe -disse, sem rodeios,
admirando o espírito dela; os seus olhos, mais esverdeados sob esta luz, ergueram-
se
para o rosto dele sem sinais de medo.
- O sexo não é um homicídio, tenente - disse ela. - Nem sequer é um crime, entre
adultos responsáveis.
- Não estou interessado no sexo, Miss Vilich. Quero saber onde se encontram para o
fazer.
- Na minha casa, no meu apartamento.
- Com metade da vizinhança a trabalhar algures na Faculdade de Medicina da Chubb ou
na Colina da Ciência? Com certeza que, mais cedo ou mais tarde, alguém que
conhecesse
Kyneton ou o seu carro o veria. Acho que têm um esconderijo noutro sítio qualquer.
- Está enganado, não temos. Sou solteira, vivo sozinha e o Keith certifica-se de
que não há ninguém à vista se chegar antes de escurecer. Mas nunca chega antes de
escurecer. É por isso que eu adoro o Inverno.
- E os vizinhos que possam estar a espreitar por trás das cortinas? O seu caso com
o doutor Kyneton dá-lhe uma dupla ligação ao Hug. A mulher e a amante trabalham
aqui. A mulher dele sabe?
- Vive na ignorância total, mas suponho que você vai dar com a língua nos dentes -
disse Tâmara com ar amuado.
- Eu não dou com a língua nos dentes, Miss Vilich, mas tenho de falar com o Keith
Kyneton para me certificar de que não existe um esconderijo algures. A vossa
relação
cheira-me a violência, e a violência geralmente implica um esconderijo seguro.
- Onde os gritos não possam ser ouvidos. Nunca chegamos tão longe, tenente, é mais
uma questão de representar determinados cenários - disse ela. - A professora severa
com o aluno mal comportado, a polícia com as suas algemas e bastão... sabe como é.
- A sua

245

expressão alterou-se e Tâmara estremeceu. - Ele vai deixar-me. Oh, meu Deus, que
hei-de fazer? Que hei-de fazer depois de ele me deixar?
"O que só mostra", pensou Carmine depois de sair, "como as ideias feitas podem
estar erradas. Eu pensava que ela não amava ninguém para além de si própria, mas
afinal
é louca por um imbecil como Keith Kyneton, o que talvez explique os seus quadros.
Eles representam como ela se sente em relação ao amor - que tristeza, odiar o amor!
Porque sabe que o Keith só lá vai pelo sexo. É Hilda quem ele ama - se for capaz de
amar alguém."
Tâmara apanhou-o no elevador.
- Se se apressar, tenente, encontrará o doutor Kyneton entre operações - disse ela.
- Hospital de Holloman, décimo andar. O melhor caminho é pelo túnel.
O túnel era tão sinistro como todos os túneis; depois de explorar o labirinto de
túneis em que os japoneses viviam em algumas ilhas do Pacífico, durante a Guerra,
Carmine temia-os. Em Londres, tivera de fazer um esforço para descer às profundezas
da terra para atravessar os túneis do metropolitano. Nos túneis havia uma espécie
de ronco, uma raiva transmitida pela terra ultrajada e invadida. Por mais vazios ou
vivamente iluminados que fossem, os túneis sugeriam sempre terrores escondidos.
Percorreu os cem metros do túnel do Hug, virou para o corredor da direita e saiu na
cave do hospital, perto da lavandaria.
Todas as salas de operações eram no décimo andar, mas o Dr. Keith Kyneton estava à
espera dele junto dos elevadores, com uma bata verde e um par de máscaras de
algodão
ao pescoço.
- Privado, tenho de insistir para que mantenhamos isto privado - disse o
neurocirurgião num murmúrio. - Aqui, depressa!
"Aqui" era uma sala de armazenamento atafulhada de caixas de material, sem cadeiras
ou qualquer atmosfera que Carmine pudesse utilizar para causar efeito.
- Miss Vilich contou-lhe, não foi? - perguntou o doutor. -Nunca quis que ela
tirasse aquela maldita fotografia!

246

- Devia tê-la rasgado.


- Oh, céus, será que não compreende, tenente? Ela queria-a! A Tâmara é... é
fantástica.
- Acredito, para quem tenha gostos bizarros. A Enfermeira Cateter e o seu estojo de
clisteres. Quem começou, ela ou o senhor?
- Honestamente, não me lembro. Estávamos ambos bêbados, numa festa do hospital a
que a Hilda não pôde ir.
- Há quanto tempo foi isso?
- Há dois anos. No Natal de mil novecentos e sessenta e três.
- Onde é que se encontram?
- Em casa da Tâmara. Tenho sempre muito cuidado a entrar e a sair.
- Em mais lado nenhum? Não têm nenhum esconderijozinho secreto no campo?
- Não, só em casa dela.
De súbito Kyneton virou-se, segurou nos braços de Carmine,
trémulo, com as lágrimas a deslizarem-lhe pelas faces.
- Tenente! Por favor, suplico-lhe, não conte a ninguém! A minha sociedade em Nova
Iorque está quase concretizada mas, se descobrirem uma coisa destas, perderei a
minha oportunidade! -exclamou.
Com a mente repleta de imagens de Ruth e Hilda, dos seus constantes sacrifícios por
este bebé grande e mimado, Carmine libertou-se violentamente.
- Não me toque, seu maldito egoísta! Estou-me borrifando para a sua preciosa
clínica em Nova Iorque, mas por acaso gosto da sua mãe e da sua mulher. Não merece
nenhuma
delas! Eu não falarei nisto a ninguém, mas não pode ser estúpido ao ponto de pensar
que Miss Tâmara Vilich será igualmente caridosa, com certeza! Você acabará por
deixá-la, por mais fantástico que seja o sexo bizarro, e ela retaliará como
qualquer outra mulher desprezada. Amanhã, todas as pessoas que são importantes para
si
saberão. O seu professor, a sua mãe, a sua mulher e os médicos de Nova Iorque.

247

Os ombros de Kyneton abateram-se. Procurou em vão uma cadeira e encostou-se a um


caixote de compressas.
- Oh, meu Deus, meu Deus, estou arruinado*.
- Recomponha-se, Kyneton, por amor de Deus! - exclamou Carmine. - Não está
arruinado... ainda. Encontre alguém que o substitua na próxima operação, mande a
sua mulher
para casa e siga-a. Quando estiver sozinho com ela e com a sua mãe, confesse.
Ponha-se de joelhos e implore o perdão delas. Jure nunca mais o fazer. E não
esconda
nada. Tem lábia suficiente para as conquistar. Mas Deus o ajude se não tratar bem
aquelas duas mulheres daqui para a frente, está a ouvir? Para já não vou acusá-lo
de nada, mas não pense que não consigo encontrar qualquer coisa de que o acusar, se
quiser, e vou estar de olho em si enquanto for polícia. Mais uma coisa. Da próxima
vez que fizer compras no Borks Brothers, compre qualquer coisa bonita para a sua
mãe e para a sua mulher no Bonwit's.
"Teria o filho da mãe prestado atenção? Sim, mas só àquilo que achou que poderia
servir para o salvar."
- Nada disso me ajuda em relação à sociedade.
- Claro que sim! Desde que a sua mãe e a sua mulher estejam do seu lado. Entre os
três, podem fazer com que a Tâmara Vilich pareça uma mulher frustrada a dizer uma
carrada de mentiras.
As engrenagens estavam a girar; Kyneton animou-se visivelmente.
- Sim, sim, estou a ver o que quer dizer! É a melhor maneira!
Um instante depois, Carmine estava só. Keith Kyneton desaparecera para tapar os
seus buracos, sem uma palavra de agradecimento.
- O que é que o senhor julga que está aqui a fazer? - inquiriu uma voz feminina
irada.
Carmine mostrou o impressionante distintivo dourado à enfermeira, que parecia
prestes a chamar a segurança do hospital.
- Estou a fazer penitência, minha senhora - disse ele. - Uma penitência terrível.

248

O mundo, quando estava coberto de neve fresca, era tão bonito; assim que despiu os
abafos, Carmine virou uma das poltronas para a janela enorme que dava para o porto
e apagou todas as luzes interiores. O amarelo vivo das luzes da auto-estrada
ofendia-o, mas, quando reflectido pelos mantos de neve, era mais suave, mais
dourado.
O gelo estava a começar a aproximar-se, vindo da costa leste, apesar de os molhes
ainda serem um vazio escuro, salpicado de centelhas; estava demasiado vento para
reflexos longos e ondulantes. Os ferrys estavam parados até Maio.
O que havia de fazer em relação a Desdemona? Todas as suas tentativas de abordagem
tinham sido rejeitadas, todos os seus bilhetes com pedidos de desculpa devolvidos
por abrir, enfiados por baixo da sua porta. Até este momento não compreendia
honestamente o porquê de ela ter ficado tão mortalmente ofendida, de estar a ser
tão
inflexível - sim, ele ultrapassara os limites, mas não era natural que todas as
pessoas discutissem de vez em quando, discordassem em alguma coisa? Isto tinha algo
a ver com o orgulho dela, mas Carmine não conseguia perceber exactamente o quê.
Aquela barreira entre nacionalidades erguera-se, demasiado alta para conseguir
espreitar
por cima. Teria sido a sua observação sobre comprar um vestido de vez em quando, ou
simplesmente o facto de se ter atrevido a questionar o comportamento dela? Teria
feito com que ela se sentisse menos feminina, ou grotesca, ou... ou...
- Desisto - disse, apoiando o queixo na mão, e tentou pensar no Fantasma. Era o seu
novo nome para o Monstro, que não tinha nada em comum com a concepção popular
dos monstros. Ele era um fantasma.

249

Capítulo Dezassete

- Vou dar um passeio, querida - disse Maurice Finch a Catherine quando se levantou
da mesa do pequeno-almoço. - Não me apetece muito ir trabalhar hoje, mas vou pensar
nisso enquanto passeio.
- Claro, fazes bem - disse a mulher, olhando pela janela para o termómetro do
exterior. - Está muito frio, por isso agasalha-te... e, se decidires ir trabalhar,
põe o carro a aquecer quando voltares. - Catherine achava que ele parecia
consideravelmente mais animado ultimamente, e sabia porquê. Kurt Schiller voltara
ao Hug
e falara com Maurice para lhe garantir que não fora a discussão entre ambos a causa
da tentativa de suicídio. Segundo parecia, o amor da vida dele trocara-o por
outra pessoa. O imbecil do nazi (a opinião de Catherine sobre Schiller não se
alterara um milímetro) não entrara em pormenores, mas ela calculava que os homens
que
gostavam de homens eram tão vulneráveis como os homens que gostavam de mulheres;
alguma lambisgóia - que importava o sexo da lambisgóia em questão? - fartara-se
de ser adorada e sentira necessidade de alguém com uma abordagem diferente e,
talvez, uma conta bancária mais choruda.
Viu Maurie da janela enquanto ele se afastava pelo caminho gelado que levava ao
pomar de macieiras, o seu local preferido. Eram árvores velhas, nunca tinham sido
podadas para manter a produção

250

de frutos a um nível relativamente baixo, mas na Primavera isso transformava-as num


mar de flores brancas que deixava uma pessoa de boca aberta, e no Outono ficavam
carregadas de frutos vermelhos e brilhantes que pareciam decorações de árvore de
Natal. Vários anos antes, Maurie decidira orientar alguns dos ramos de forma a
formar
arcos; a velha madeira rangera em protesto, mas Maurie fizera-o de forma tão gentil
e lenta que agora os carreiros entre as árvores eram como as naves de uma catedral.
Maurice desapareceu e ela virou-se para lavar a loiça.
Depois ouviu um grito agudo e horripilante. Um dos pratos caiu e desfez-se em
cacos, enquanto Catherine pegava num casaco e saía a correr. Os chinelos
escorregaram
e deslizaram no gelo, mas conseguiu manter o equilíbrio. Outro grito! Sem sentir
sequer a temperatura negativa, correu mais depressa.
Maurie estava de pé junto do maravilhoso muro de pedra que circundava o pomar,
olhando por cima dele para algo que cintilava em cima do monte de neve, dura como
pedra, que se acumulara junto do muro durante o último nevão.
Catherine olhou também e depois puxou-o com ela, de volta para o calor da cozinha,
para a sanidade. Para onde podia chamar a polícia.
Carmine e Patrick estavam de pé onde Maurice Finch estivera" uma vez que os pés
dele tinham eliminado quaisquer outras pegadas que pudessem ter existido antes -
altamente improvável, de qualquer maneira, na opinião de ambos os homens.
Margaretta Bewlee estava inteira, à excepção da cabeça, que não se via em lado
nenhum. Contra a brancura estonteante, a sua pele cor de chocolate parecia ainda
mais
escura, o cor-de-rosa das palmas das mãos e das solas dos pés condizendo com a cor
do vestido que trazia: uma peça de renda cor-de-rosa, bordado com pedras

251

brilhantes. Era suficientemente curto para deixar ver um par de cuecas de seda cor-
de-rosa, manchadas de forma sinistra.
- Meu Deus, é tudo diferente! - disse Patrick.
- Vemo-nos na morgue - disse Carmine, dando meia volta. - Se ficar aqui, vou
atrasar-te.
Entrou, encontrando os Finch sentados muito juntos à mesa do pequeno-almoço, com
uma garrafa de vinho Manischewitz entre os dois.
- Porquê eu? - perguntou Finch, lívido.
- Beba mais um pouco de vinho, doutor Finch. E, se soubéssemos a resposta a essa
pergunta, talvez tivéssemos uma boa oportunidade de apanhar este filho da mãe.
Posso
sentar-me?
- Sente-se, sente-se! - exclamou Catherine, indicando um copo limpo. - Beba um
pouco, também deve estar a precisar.
Apesar de não gostar muito de vinho doce, o Manischewitz ajudou; Carmine pousou o
copo e olhou para Catherine.
- Ouviu alguma coisa durante a noite, Mrs. Finch? Está tanto frio que tudo faz
barulho.
-Absolutamente nada, tenente. Depois de chegar a casa, o Maurie esteve algum tempo
a pôr turfa e adubo no seu túnel dos cogumelos, mas às dez horas estávamos na
cama e dormimos até às seis da manhã de hoje.
- Túnel de cogumelos?
- Pensei em ver se conseguia cultivar algumas das variedades de gourmet - disse
Finch, parecendo um pouco melhor. - Os cogumelos são um produto muito fino, mas não
compreendo porquê, depois de ver como crescem num campo.
- Importa-se que revistemos a sua propriedade, doutor? Receio que a descoberta de
Margaretta aqui o torne necessário.
- Faça o que quiser, faça o que for preciso para apanhar esse monstro! - Finch
levantou-se, como um velho. - No entanto, acho que sei por que razão não ouvimos
nada,
tenente. Quer ver?
- Claro.

252

Com cuidado para não pisar nenhuma zona de terreno que parecesse ter sido remexida,
Maurice Finch conduziu Carmine através da área das estufas, depois entre os dois
grandes telheiros aquecidos onde estavam as galinhas de Catherine. Finalmente, a
uns bons quinhentos metros da casa, Finch parou e apontou.
- Está a ver aquele caminho? Vem desde um portão na estrada cento e trinta e três e
termina ao fundo do pomar. Limpamo-lo com
o tractor por causa do regato... quando o regato transborda, corta o acesso da
nossa casa à cento e trinta e três. Se o Monstro soubesse da existência deste
caminho,
podia usá-lo e nós nunca o ouviríamos.
- Muito obrigado, doutor Finch. Volte para junto da sua mulher.
Finch obedeceu sem protestar, enquanto Carmine ia à procura de Abe e Corey para
lhes explicar onde deviam procurar sinais do fantasma. "Ele é um fantasma, entrou
e saiu como um fantasma, mas é um fantasma muito bem informado, este fantasma. A
propriedade de Maurice Finch está cruzada pelos seus rastos, mas o fantasma sabe
onde está cada um. E fez uma boa pergunta, doutor Finch: "Porquê eu?" De facto,
porquê?"
Carmine fez os possíveis por estar de volta ao edifício dos Serviços Municipais
antes de Patrick trazer o corpo de Margaretta; esta era uma autópsia que queria ver
do princípio ao fim.
- Ela foi colocada em cima de um monte de neve gelada, gelo sólido, mas desconfio
que já estava congelada quando ele a largou ali - disse Patrick, enquanto ele e
Paul tiravam cuidadosamente o corpo do saco. - O solo está gelado em todo o lado,
nada mais pequeno do que uma retroescavadora conseguiria escavar para a enterrar,
mas desta vez ele não estava a tentar escondê-la, nem mesmo por pouco tempo.
Largou-a bem à vista, com um vestido cintilante.
Os três homens olharam para Margaretta e para o seu vestido peculiar.

253

- Não vi muitas vezes a Sophia com vestidos de festa - disse Carmine -, mas tu, com
tantas raparigas, Patsy, deves ter visto dezenas de vestidos de festa. Isto não
é o vestido de uma adolescente, pois não? Ela foi enfiada num vestido de criança.
- Sim. Quando a levantámos vimos que não estava abotoado nas costas. Os ombros da
Margaretta são demasiado largos, mas os seus braços são finos, por isso, de frente,
ele conseguiu fazer com que parecesse bem.
O vestido tinha mangas de balão, com punhos estreitos, e cintura própria para um
corpo de criança - larga e um pouco baixa. Numa criança de dez anos chegaria
provavelmente
aos joelhos; nesta jovem mal tapava o cimo das coxas. A renda rosa-coral era
francesa, calculou Carmine; renda cara, bordada numa base de tule fino mas forte.
Depois
alguém cosera o que pareciam ser várias centenas de pedras brilhantes transparentes
em todo o vestido, num padrão semelhante ao da renda; cada pedra estava perfurada
na ponta para deixar passar a linha. Um trabalho manual minucioso, que devia ter
adicionado muitos dólares ao preço. Teria de mostrar isto a Desdemona para ter uma
estimativa mais exacta da qualidade e do valor.
Viu Patrick e Paul despirem o estranho vestido a Margaretta, com o cuidado de o
preservarem intacto. Uma das razões pelas quais gostava tanto do primo, era o
respeito
de Patrick pelos mortos. Por mais repugnantes que fossem alguns dos corpos que
encontrava - matéria fecal, vómito, mucos inimagináveis - Patrick lidava com eles
como se fossem a obra de Deus, e uma obra feita com amor.
Por baixo do vestido, Margaretta vestia apenas um par de cuecas de seda cor-de-rosa
que lhe chegavam à cintura e às coxas: cuecas modestas. Estavam manchadas de
sangue entre as pernas, mas não excessivamente. Quando as despiram, viram que ela
tinha os órgãos genitais depilados.
- É o nosso homem, não há dúvida - disse Carmine. - Alguma ideia de como morreu,
antes de começares?

254

- Não foi de perda de sangue, isso é certo. A pele está da cor devida e tem apenas
uma incisão no pescoço, onde foi decapitada. Não tem marcas de cordas nos
tornozelos,
embora eu ache que foi presa com a habitual faixa de lona sobre o peito. Talvez ele
tenha usado outra na parte inferior das pernas, entre as violações, mas tenho
de ver melhor para o verificar. - Comprimiu os lábios. - Acho que desta vez ele a
violou até a matar. Não há muito sangue externamente, mas tem o abdómen muito
inchado
para alguém que ainda não entrou no processo de decomposição. Depois de morrer, foi
colocada num congelador até ele entender que era altura de se livrar do corpo.
- Então - disse Carmine, afastando-se da mesa -, espero por ti no teu gabinete,
Patsy. Tencionava assistir a esta autópsia, mas acho que não consigo.
Marciano veio ter com ele no exterior.
- Estás um bocado pálido, Carmine. Já tomaste o pequeno-almoço?
- Não, nem quero.
- Claro que queres. - Cheirou o hálito de Carmine. - O problema é que estiveste a
beber.
- Chamas bebida a um copo de Manischewitz?
- Não. Até o Silvestri o classificaria como sumo de uvas. Anda daí, podes pôr-me a
par das novidades no Malvolio's.
Não conseguira comer muito da torrada com xarope de ácer, mas voltou ao escritório
a sentir-se um pouco melhor por ter tentado comer. Este dia ia trazer um sofrimento
mental maior do que qualquer outro; tinha um pressentimento de que Mr. Bewlee
insistiria em ver os restos mortais da filha, independentemente do que dissesse o
sacerdote
da sua religião ou de quem se oferecesse para o substituir nesta tarefa terrível.
Não poderiam deixá-lo ver algumas partes, mas

255

ele devia conhecer cada linha nas palmas das mãos dela, talvez alguma pequena
cicatriz num pé, onde lhe tirara em tempos uma farpa, a forma das unhas... as doces
e encantadoras intimidades da paternidade que Carmine nunca vivera. Como é
estranho, ter um filho que não se conhece verdadeiramente, que sempre viveu longe
de nós
e em cuja companhia nos sentimos como um estranho.
Agora que se habituara a chamar fantasma ao assassino, alguns cantos e recessos da
sua mente tinham-se deslocado, permitindo que fracos raios de luz incidissem nas
suas profundezas; desde a noite em que olhara para o porto de Holloman, sob a neve,
Carmine dera por si a pensar em novas linhas, e ver Margaretta Bewlee com o seu
vestido de festa, naquela neve gelada, abrira outra porta que o chamava
sedutoramente, fora do seu alcance, como um fantasma de uma ideia. Um fantasma...
Depois percebeu. Não era um fantasma. Dois fantasmas.
Como seria mais fácil se fossem dois! A velocidade e o silêncio, a invisibilidade.
Dois: um para lançar o isco, outro para puxar a presa. Tinha de haver um isco,
algo que uma rapariga de dezasseis anos, tão pura como a neve, engolisse tão
avidamente como um salmão engolia a mosca certa. Um gatinho abandonado, um
cachorrinho
sujo e maltratado?
Éter... éter! Um deles agitava o isco, o outro aproximava-se por trás, como um
relâmpago, e colocava um pano ensopado em éter sobre o rosto da rapariga - não lhe
dando hipótese de emitir qualquer som, sem correr o risco de levar uma dentada, sem
o perigo de a mão lhe escorregar momentaneamente, permitindo um grito. A rapariga
ficaria inconsciente em segundos, aspirando o éter para os pulmões enquanto se
debatia. Depois duas pessoas para a transportarem, para lhe darem uma injecção,
para
a enfiarem num veículo ou num esconderijo temporário. Éter... o Hug.

256

Sônia Liebman estava na sala de operações do Hug, a arrumar as coisas depois de uma
sopa de cérebro de ratos. Quando viu Carmine a sua expressão ensombrou-se - mas
não por causa dele.
- Oh, tenente, já soube! O pobre Maurie está bem?
- Está. Nem podia não estar, com aquela mulher.
- Então o Hug continua metido nisto, certo?
- Ou alguém quer fazer com que assim pareça, Mrs. Liebman -Fez uma pausa, mas não
viu qualquer interesse em ser dissimulado. - Tem algum éter na sala de operações?
- perguntou.
- Claro, mas não éter anestésico, apenas éter anídrico vulgar. Aqui está - disse,
conduzindo-o à antecâmara, onde apontou para uma fila de latas numa prateleira
alta.
- Funcionaria como anestésico? - perguntou ele, tirando uma lata da prateleira para
a examinar. Era mais ou menos do tamanho de uma lata de pêssegos grande, mas
com um gargalo curto e estreito encimado por uma tampa metálica. Não uma tampa, mas
um selo! O material devia ser tão volátil, pensou, que nem a tampa mais estanque
o impediria de se evaporar.
- Eu uso-o como anestésico quando estou a descerebrar gatos.
- Quer dizer quando lhes remove o cérebro?
- Está a aprender, tenente. Sim, é isso.
- Como é que os eteriza?
Em resposta, ela pegou num recipiente feito de plexiglass transparente que se
encontrava a um canto; tinha cerca de oitenta centímetros quadrados, setenta e
cinco
de altura, e uma tampa estanque presa por grampos.
- É uma antiga câmara de cromatografia - disse ela. - Ponho uma toalha grossa no
fundo, esvazio uma lata de éter para cima da toalha, enfio o gato lá dentro e fecho
a tampa. Na verdade, faço-o lá fora, nas escadas de incêndio, onde a ventilação é
melhor. O animal fica inconsciente bastante depressa, mas não se magoa antes de
adormecer porque as paredes são lisas.

257

- E tem alguma importância que se magoe, quando está prestes a perder o cérebro sem
sequer voltar a acordar? - perguntou Carmine.
Ela encolheu-se como uma cobra prestes a atacar.
- Sim, seu idiota, claro que tem importância! - disse entre dentes. - Nenhum animal
é sujeito a dor ou sofrimento na minha sala de operações! O que pensa que isto
é, a indústria de cosméticos? Conheço veterinários que não tratam os animais tão
bem como nós!
- Desculpe, Mrs. Liebman, não quis ofendê-la. Perdoe a minha ignorância - disse
Carmine, em tom humilde. - Como é que abre a lata? - perguntou, para mudar de
assunto.
- Provavelmente há um instrumento próprio - disse ela, mais calma -, mas eu não o
tenho, por isso uso um par de tenazes velhas.
Parecia um alicate grande, excepto que as duas pontas côncavas eram oponíveis e
mordiam o que fosse colocado entre elas. Por exemplo a macia tampa metálica de uma
lata de éter, como Sônia Liebman demonstrou em seguida. Carmine recuou perante o
cheiro que pareceu saltar da lata mais depressa do que um génio de uma garrafa.
- Não gosta? - perguntou ela, surpreendida. - Eu adoro.
- Sabe que quantidade de éter tem em armazém?
- Não com exactidão... não é um produto valioso nem importante. Quando vejo que a
prateleira está a ficar vazia, simplesmente encomendo mais. Uso-o para
descerebrações,
mas também é usado para limpar os instrumentos de vidro, se um investigador
pretende fazer um teste que exija a ausência completa de qualquer tipo de resíduos.
- Porquê éter?
- Porque temos muito, mas alguns investigadores preferem clorofórmio. - Franziu a
testa e, subitamente, pareceu compreender. - Oh, estou a ver onde quer chegar!
O éter não dura muito no corpo, tenente, tal como não se agarra ao vidro. Bastam
algumas inalações para o dissipar, eliminando-o dos pulmões e da corrente
sanguínea.
258

Não posso usar pentotal ou nembutal para anestesiar um animal para descerebração,
porque permanecem no cérebro durante horas. O éter desaparece... puf.
- Não podia usar um gás anestésico?
Sônia Liebman pestanejou, como se estivesse espantada com a estupidez dele.
- Claro que podia, mas porquê? Os humanos colaboram e não têm garras nem presas.
Com os animais, é uma injecção de nembutal parentérico ou a câmara de éter.
- A câmara de éter é comum nos laboratórios de investigação? Foi a gota de água.
Ela virou-se e começou a arrumar uma série
de instrumentos cirúrgicos.
- Não faço ideia - respondeu, numa voz tão fria como o ar lá fora. - Inventei a
técnica sozinha e, para mim, isso é tudo o que interessa.
Sentindo-se como se devesse deixar a presença dela às arrecuas e fazendo vénias,
Carmine deixou Mrs. Liebman em brasa com a perfeita estupidez dos polícias.
-A Mercedes e a Francine foram brutalmente violadas com uma série de instrumentos,
e calculo que ele tenha feito o mesmo com a Margaretta, de início - disse Patrick
a Carmine, Silvestri, Marciano, Corey e Abe. - Depois passou a um instrumento novo
que deve estar incrustado com farpas e bicos, talvez com uma lâmina na ponta.
Desfez-lhe tudo por dentro... intestinos, bexiga, rins, chegou mesmo ao fígado.
Lacerações maciças e múltiplas. Ela morreu de choque antes de poder morrer de
hemorragia
interna. Havia um pouco de Demerol no seu sangue, portanto, para onde quer que ele
tenha levado a Margaretta depois de a raptar, era demasiado longe de Groton para
poder contar apenas com o éter depois dos primeiros minutos. A propósito, não
encontrei quaisquer vestígios de éter na fronha.

259

- Esperavas encontrar? - perguntou Marciano.


- Não, mas, quando chegámos a casa dos Bewlee, consegui sentir o cheiro a éter numa
pequena prega da fronha.
- Ela perdeu sangue quando foi decapitada? - perguntou Abe.
- Muito pouco. Já estava morta há várias horas quando ele o fez. Uma vez que era
muito alta, parece que ele usou uma faixa em cada perna para a prender, para além
da faixa do peito.
- Se ela morreu logo, porquê esperar treze dias para se livrar do corpo? O que é
que lhe fez? - perguntou Corey.
- Pô-la num congelador suficientemente grande para ela caber deitada.
- Já foi identificada? - perguntou Carmine. O rosto de Patrick contraiu-se.
- Sim, pelo pai. Ele estava tão calmo! Ela tem uma pequena cicatriz na mão
esquerda... uma dentada de cão. Assim que a viu, ele disse logo que era a filha,
agradeceu-nos
e saiu.
A sala ficou em silêncio. "Como é que eu lidaria com a situação se fosse Sophia?",
pensou Carmine. Sem dúvida que os outros homens prementes o sentiam ainda mais
intensamente, pois todos eles tinham filhas que não tinham partido para a
Califórnia antes de os laços estarem devidamente forjados. "O Inferno é bom demais
para
este animal."
- Patsy - disse Carmine, quebrando o silêncio -, será possível que sejam dois?
- Dois? - repetiu Patrick, sem compreender. - Queres dizer dois assassinos?
- Sim.
Silvestri mordeu o charuto, fez uma careta e atirou-o para o cesto dos papéis.
- Dois como ele? Está a brincar, com certeza!
- Não, John, não estou. Quanto mais penso nesta série de raptos, mais fico
convencido de que seriam precisas duas pessoas para os levar a cabo. Daí a pensar
em dois
assassinos é um passo lógico.

260

- Um passo de mil metros, Carmine - disse Silvestri. - Dois monstros? Como é que se
teriam encontrado um ao outro?
- Não sei, mas talvez através de algo tão comum como um anúncio nos classificados
pessoais do National Enquirer. Discreto, mas claro como água para alguém com os
mesmos gostos. Ou talvez se conheçam há anos, talvez tenham até crescido juntos. Ou
talvez se tenham conhecido por acaso numa festa.
Abe olhou para Corey e revirou os olhos; estavam a imaginar terem de passar vários
dias nos arquivos do National Enquirer à procura de um anúncio com pelo menos
dois anos.
- Estás a especular, Carmine - disse Marciano.
- Eu sei, eu sei! Mas esqueçam por um momento como eles se terão conhecido e
concentrem-se no que acontece à vítima. Percebi que tem de haver um isco. Estas
raparigas
não são do género de se deixarem atrair por um convite de um homem qualquer, nem de
cair na oferta de uma audição para o cinema, nenhum dos ardis que funcionariam
em raparigas educadas com menos cuidado. Mas pensem como seria difícil um homem só
apanhá-las sem um isco!
Carmine inclinou-se para a frente, entusiasmado com o seu raciocínio.
- Por exemplo, a Mercedes, que fechou a tampa do piano, despediu-se da Irmã Theresa
e saiu pela porta do anexo de música. E, em algum sítio isolado, sem ninguém
por perto, a Mercedes vê algo tão irresistível que tem de se aproximar. Algo que
lhe fala ao coração, como um gatinho esfomeado ou um cachorrinho. Mas, como o isco
tem de estar no sítio exacto, há mais alguém junto do animal. Enquanto a Mercedes
está envolvida, o outro homem ataca. Um para lançar o isco, outro para a apanhar.
Ou pensem na Francine, algures perto das casas de banho, ou mesmo dentro delas. Viu
o isco, comoveu-se, foi apanhada. Ainda havia demasiadas pessoas dentro da escola
para correrem o risco de a tirar das instalações, portanto colocaram-na dentro do
armário dos colchões. Seria muito mais fácil fazer uma coisa dessas à pressa se
fossem dois! Era quarta-feira,

261

os ginásios estavam desertos e a sala de química é mesmo ao lado das casas de


banho. No caso da Margaretta, a irmã estava a dormir mesmo ao lado. Não usaram
isco,
mas acham que o assassino correria o risco de a Linda acordar, quando todos os seus
planos são tão meticulosos? A segunda pessoa tinha um novo papel, vigiar Linda
e agir se ela desse sinais de acordar. Como isso não aconteceu, dois homens não
teriam dificuldade em retirar uma rapariga tão alta pela janela, um do lado de
dentro,
outro do lado de fora.
- Por que raio estás a complicar tanto as coisas? - perguntou Patrick.
- As coisas são tão complicadas como têm de ser, Patsy. Se um assassino não é
suficiente, então temos de pensar que são dois.
- Concordo - disse Silvestri subitamente -, mas não vamos dizer uma palavra sobre
esta teoria do Carmine a ninguém fora desta sala.
- Mais uma coisa, John. O vestido de festa. Gostava de o mostrar a Desdemona Dupre.
- Porquê?
- Porque ela faz uns bordados incríveis. O vestido não tem etiqueta, nunca ninguém
viu outro parecido, e quero tentar descobrir onde começar a procurar a pessoa
que o fez. Isso significa que preciso de saber quanto custaria se fosse comprado
numa loja, ou quanto é que alguém como a Desdemona levaria por o fazer. Ela aceita
encomendas, saberá dar-me uma ideia.
- Muito bem, assim que o Paul já não precisar dele... e se acha que ela não falará
nisso a ninguém.
- Confio nela.

262

Capítulo Dezoito

O jornal mais lógico para procurar alguém que tivesse colocado um anúncio à procura
de um parceiro fosse para o que fosse, desde negócios a sexo ou homicídio, era
o National Enquirer, que era lido em todo o país e estava disponível em qualquer
supermercado, junto das caixas, entre as pastilhas elásticas e as revistas. Depois
de falar com três psiquiatras que se tinham especializado em homicídio, Carmine
pôde fornecer a Corey e Abe algumas palavras-chave, antes de os mandar ler os
classificados
entre Janeiro de 1963 e Junho de 1964. O Fantasma podia ter estabelecido a sua
macabra colaboração antes do desaparecimento da primeira rapariga, ou podia ter
percebido
como a tarefa seria mais fácil com um ajudante depois de dar início à carreira de
assassino.
A natureza do isco utilizado era bastante clara para Carmine: um objecto de
piedade, de apelo irresistível a uma jovem sensível e de bom coração. Assim,
abandonou
essa linha de pensamento para se dedicar a perceber que tipo de instalações
serviriam para prender as raparigas enquanto eram violadas, mortas e armazenadas. A
sensação
generalizada entre a polícia era de que as instalações seriam improvisadas; apenas
Patrick compreendia o que Carmine queria dizer quando afirmava que as instalações
eram tudo menos improvisadas. Uma pessoa suficientemente obsessiva para

263

alinhar um bilhete à esquadria, havia de querer que o seu "laboratório" fosse


perfeito.
Depois da descoberta do corpo de Margaretta Bewlee na propriedade de um Hugger, os
Huggers atropelaram-se para oferecer permissão à polícia para inspeccionar o que
quisesse. Até Satsuma, Chandra e Schiller cederam. O túnel de cogumelos de Maurice
Finch era apenas isso; outra busca na casa mortuária de Benjamin Liebman não
resultou
em nada; o "ninho" de Addison Forbes consistia de duas divisões, uma por cima da
outra, atafulhadas de material de leitura profissional em prateleiras ou empilhado;
a cave dos Smith era apenas o paraíso dos comboios; a cabana de Walter Polonowski
era um ninho de amor, com fotografias de Marian em poses decorosas por todo o lado,
uma cama grande e uma pequena cozinha. Paola Polonowski aproveitara a oportunidade
e seguira a polícia até à cabana, e, em resultado dessa visita, Polonowski vivia
agora com Marian e parecia muito mais feliz. O retiro de Hideki Satsuma era perto
da curva de Cape Cod em Orleans, um local desenhado por um arquitecto para um homem
solteiro, que não continha nada mais censurável do que uma quantidade imensa de
pornografia com tendências violentas, mas não homicidas. O que não surpreendera
muito
Carmine, cuja estada no Japão lhe dera a conhecer a tendência japonesa para
pornografia ilustrada. O Dr. Nur Chandra estava apenas a ser "teimoso", como diria
Desdemona;
a sua actividade secreta na casa de campo era um computador de nova geração que ele
estava a tentar programar sem recorrer a um dos brilhantes estudantes de Medicina
da Chubb, que financiavam o seu curso criando programas para fins científicos
específicos. Chandra estava tão certo do seu Prémio Nobel que não falaria do seu
trabalho
a ninguém, muito menos a um jovem estudante super-inteligente e ambicioso. A
floresta dos Ponsonbys era uma floresta; sem quaisquer cabanas, barracões, celeiros
ou abrigos subterrâneos. E o pior segredo de Kurt Schiller era uma fotografia de si
próprio, com o pai e Adolf Hitler. O pai fora um capitão de submarino condecorado,
convidado a

264

conhecer o Fiihrer e que levara consigo o filho louro; Hitler adorava rapazinhos
louros com pais corajosos. Schiller Sénior fora ao fundo com o seu submarino quando
encontrara uma carga de profundidade em 1944; Kurt tinha, na altura, dez anos.
Assim, segundo Silvestri, Marciano e os restantes membros da hierarquia superior da
polícia do Connecticut, as instalações do assassino deviam ser improvisadas.
Caso contrário, alguém teria reparado.
"Mas não são improvisadas", disse Carmine a si próprio. "Se eu fosse o fantasma, o
que quereria? Um ambiente imaculado, claro. Superfícies que pudessem ser lavadas
à mangueirada, escrupulosamente limpas. Isso significava azulejos e não cimento,
metal e não madeira ou pedra. Quereria uma sala de operações. Dois Fantasmas podiam
construir uma, se fossem hábeis de mãos; até podiam fazer uma instalação eléctrica.
O que provavelmente não conseguiriam fazer era canalizações, mas o local tinha
de estar canalizado. Precisava de um abastecimento de água de alta pressão, um
escoamento funcional e ligação a um sistema de esgotos ou a uma fossa séptica. Os
Fantasmas deviam querer também uma casa de banho, para si próprios, se não para as
vítimas. Essas usariam provavelmente arras-tadeiras e seriam lavadas com uma
esponja."
Assim, enquanto Abe e Corey esquadrinhavam os classificados pessoais do National
Enquirer, Carmine verificou as propriedades de todos os Huggers, em busca de contas
de água ou electricidade acima do que seria de esperar. Infelizmente, os Huggers
mais prósperos viviam em locais onde podiam usar água de um furo e não canalizada,
e ninguém tinha uma conta de electricidade excessiva. Um gerador? Era possível, se
conseguissem abafar o ruído. Depois dessa busca infrutífera, investigou todas
as empresas de canalizações e canalizadores independentes, de uma ponta à outra do
Connecticut. Procurava um trabalho lucrativo que tivesse envolvido a instalação
de algo talvez descrito como um ginásio privado, ou uma instalação recreativa
luxuosa, ou mesmo uma piscina. Os que encontrou

265

revelaram-se genuínos, todos nos condados de Fairfield e Litchfield. Sabia que


aquilo que procurava apontava para alguém com dinheiro, mas sempre achara que o
Fantasma
tinha muito dinheiro. Para onde quer que se virasse, o resultado era sempre o
mesmo: nada. Isso queria dizer uma de três coisas: primeira, que os dois Fantasmas
eram capazes de fazer as suas próprias canalizações; ou, segunda, que tinham
contratado um canalizador, a quem tinham pago generosamente em dinheiro vivo para
ser
discreto e fugir aos impostos; ou, terceira, que os Fantasmas tinham arrendado ou
comprado instalações já adequadas aos seus objectivos, como uma clínica veterinária
ou um consultório de cirurgia. Fez alguns telefonemas para tentar saber quantas
clínicas veterinárias ou consultórios tinham mudado de mãos em finais de 1963, mas
as que tinham sido vendidas pertenciam a negócios legítimos. O habitual: nada,
nada, nada.
Como o vestido de renda cor-de-rosa estava adornado com duzentas e sessenta e cinco
pedras brilhantes, e cada uma destas tinha de ser examinada para confirmar que
ostentava apenas um conjunto de impressões digitais, presumivelmente da costureira,
só seis dias depois Carmine pôde mostrar a peça de vestuário a Desdemona.
Tocou à campainha, sentindo-se mais desastrado e ansioso do que no liceu, quando a
rapariga dos seus sonhos aceitara o seu convite para a levar ao baile de
finalistas.
Boca seca, coração na garganta - só lhe faltavam as flores.
- Desdemona, é o Carmine. Venho em trabalho. Não abra a porta, eu introduzo a
combinação.
- Como está? - perguntou ele, despindo os abafos e pousando a caixa do vestido
(merda, o que havia ela de pensar?) em cima da mesa.
Desdemona não parecia contente nem aborrecida de o ver.
- Estou bem, mas a morrer de tédio - disse. Depois apontou para a caixa do vestido.
- O que é isso?

266

- Algo que tive de garantir ao comissário que você não discutiria com ninguém. Eu
sei que não o fará, mas ele não. Talvez não saiba que a última vítima, Margaretta
Bewlee, foi encontrada com um vestido de festa de criança. Não conseguimos
localizar a sua origem, mas pensei que, com o seu olho para este tipo de trabalhos,
pudesse
dizer-nos qualquer coisa sobre ele.
Em menos de um segundo ela abrira a caixa e retirara o vestido. Ergueu-o, virou-o
e, finalmente, estendeu-o sobre a mesa. - Presumo que esta rapariga não foi cortada
aos pedaços?
- Não, faltava-lhe apenas a cabeça.
- Os jornais dizem que ela era alta. Isto não lhe devia servir.
" - E não servia, mas enfiaram-na nele, de qualquer maneira. Ela tinha os ombros
demasiado largos para que o assassino conseguisse abotoá-lo nas costas, o que leva
à minha primeira pergunta... porquê botões? Hoje em dia é tudo com fecho éclair.
Paul tinha abotoado os botões, que cintilavam como jóias verdadeiras sob a luz do
candeeiro de mesa.
- Por isto - disse ela, tocando num dos botões. - Um fecho éclair teria estragado o
efeito. Estes brilham.
- Alguma vez viu um vestido assim?
- Apenas numa peça de teatro, quando era pequena, mas esse foi improvisado devido
ao racionamento de roupa. Este é muito pretensioso.
- É feito à mão?
- Até certo ponto, mas provavelmente não tanto como pensa. As pedras foram cosidas
à mão, sim, mas por um especialista que é capaz de o fazer mais depressa do que
você almoça. A pessoa deve trabalhar à peça. Enfia a agulha no buraco, dá uma volta
à pedra com a linha, depois passa a agulha pela renda até à próxima pedra...
está a ver?
Carmine estava a ver.
- Faltam algumas pedras, porque não foram bem cosidas, e as outras saem numa fiada
tão longa como a linha enfiada na agulha... vê?

267

- Pensei que tivesse sido o Paul, no laboratório, a fazer isso.


- Não, o mais provável é que tenha sido resultado de maus-tratos, e não acredito
que isso tenha acontecido num laboratório de patologia.
- Então o que está a dizer é que este vestido é acessível?
- Para quem tenha mais de cem dólares para dar por um vestido que a criança
provavelmente usará apenas uma ou duas vezes, sim. Tem tudo a ver com lucro,
Carmine.
Quem faz e vende estes vestidos sabe que o vestido será usado poucas vezes, por
isso corta em tudo o que pode para poupar despesas. O forro é sintético, não de
seda,
e o saiote é um tule barato enrijecido com goma espessa.
- E a renda?
- Francesa, mas não de primeira categoria. Feita à máquina.
- Dentro desses preços, acha que devíamos procurar na secção de crianças de locais
como o Saks e o Bloomingdale's em Nova Iorque? Ou talvez o Alexander's no
Connecticut?
- Numa loja ou armazém relativamente caro, com certeza. Eu classificaria este
vestido de vistoso, não elegante.
- Como o cavalo de estimação de Astor - disse ele distraidamente.
- Desculpe?
- É apenas um ditado - inspirou profundamente. - Estou perdoado?
O olhar dela suavizou-se, chegando mesmo a brilhar.
- Suponho que sim, seu idiota mal-educado. Carmine Delmonico a menos é pior do que
Carmine Delmonico a mais.
- Malvolio's?
- Sim, por favor!
- Mudando de assunto - disse ele mais tarde, enquanto bebiam café. - É tarde,
podemos conversar aqui. Perícia de mãos.
- Quem a tem e quem não a tem, no Hug?
- Exacto.
- Começando pelo professor?

268

- Como está ele, já agora?


- Fechado num manicómio de luxo algures para os lados de Bridgeport, em Trumbull.
Imagino que devem estar a adorá-lo como paciente. A maioria da clientela consiste
de alcoólicos ou toxicode-pendentes em recuperação, para além de carradas de
neuroses ansiosas. Já o pobre professor teve um grave esgotamento... ilusão,
alucinações,
delírios, perda de contacto com a realidade. Quanto à sua perícia manual, é
considerável.
- Acha que seria capaz de fazer a instalação eléctrica e a canalização de uma casa?
- Não lhe passaria pela cabeça fazê-lo, Carmine. Qualquer coisa que exija trabalho
manual duro seria considerada abaixo da sua categoria. O professor não gosta de
sujar as mãos.
- Ponsonby?
- Era incapaz de mudar a anilha de uma torneira.
- Polonowski?
- É bastante dotado para pequenos trabalhos domésticos. Não tem dinheiro para
contratar um carpinteiro sempre que as crianças estragam uma porta, ou um
canalizador
quando os miúdos enfiam um boneco de peluche na sanita.
- Satsuma?
Ela revirou os olhos.
- Tenente, francamente] Para que acha que serve o Eido? E há também a mulher do
Eido, ela mata-se a trabalhar. E o Chandra tem um exército de lacaios de turbante.
- Forbes?
- Diria que é competente com as mãos. Sei que faz alguns trabalhos em casa. Tiveram
tanta sorte, os Forbes! Quando a compraram, a taxa de juro era de dois por cento,
e têm trinta anos para a pagar. Agora vale uma fortuna, claro... virada para a
água, oito mil metros quadrados, sem tanques de petróleo por perto.
- A transferência daqueles tanques para o fundo de Oak Street beneficiou todos os
que moram na margem leste. Finch?

269

- Constrói as suas próprias estufas e viveiros... parece que há uma grande


diferença, segundo ele me disse. Não se esquiva a escavar um túnel para cogumelos.
Mas
eu diria que a Catherine é ainda mais competente. Tem milhares de galinhas.
- Hunter e Ho, os engenheiros?
- Esses eram capazes de construir o Empire State Building com melhoramentos.
- Cecil?
- Isso não é uma acusação terrível? - perguntou ela, franzindo a testa. - Não sei
dizer, Carmine. Ele tem capacidades, mas na nossa mente temos tendência a encará-lo
não só como um subalterno, mas como um subalterno negro. Não admira que nos odeiem.
Merecemos ser odiados.
- Otis?
- De momento, o Otis não pode levantar pesos. Parece que tem um princípio de
insuficiência cardíaca, por isso estou a tentar conseguir-lhe uma boa pensão junto
dos
Parsons. Pessoalmente, duvido que os seus problemas tenham a ver com o trabalho. O
seu pesadelo é o sobrinho da Celeste, o Wesley. O Otis morre de medo de que o
rapaz cause algum problema à Celeste. O Buraco e a Argyle Avenue são um barril de
pólvora.
- Espere pela Primavera - disse Carmine com expressão sombria. - Conseguimos ganhar
algum tempo, graças às condições meteorológicas, mas quando melhorarem isto vai
explodir em todas as direcções.
- O marido da Anna Donato é canalizador.
- Anna Donato... refresque-me a memória.
- Cuida de todo o equipamento avariado, é muito boa.
- O lar Kyneton?
- Oh, céus! Nos dias que correm, o terceiro piso é um autêntico circo. A Hilda e a
Tâmara desembainharam as espadas. Essencialmente gritos, mas já houve uma ocasião
em que se atiraram uma à outra, aos pontapés e às dentadas. Foram precisos os
quatro funcionários

270

administrativos e eu para as separar. Estamos profundamente gratos por o professor


não estar presente para ver as mulheres no seu pior. No entanto, a Hilda estará
fora do Hug antes do regresso do professor. O seu querido, adorado Keith conseguiu
a sociedade que queria em Nova Iorque.
- E o Schiller?
- Não tem jeito nenhum com as mãos. Nem sequer consegue afiar a lâmina de um
micrótomo. Atenção, também não precisa. Para isso é que servem os técnicos.
- E se fôssemos até minha casa beber um conhaque? Desdemona levantou-se.
- Estava a ver que nunca mais me convidava.
Carmine caminhou ao lado dela, novamente naquela neblina de êxtase que sentira no
liceu, quando o seu par do baile de finalistas lhe dissera que adorara a noite
e lhe oferecera os lábios. Não que Desdemona estivesse prestes a oferecer-lhe os
lábios. Uma pena. Eram cheios e não estavam pintados. Começou a rir-se ao recordar
o trabalho que tivera para limpar o batom vermelho vivo dos lábios.
- Qual é a piada?
- Nada, nada.

271

Capítulo Dezanove

Na segunda-feira, dia vinte e quatro de Janeiro, o comissário Silvestri organizou


uma conferência discreta, para a qual convidou os vários líderes das investigações
sobre o Fantasma em todo o Connecticut.
- Dentro de uma semana terão passado trinta dias - disse, perante uma sala cheia de
homens silenciosos -, e não fazemos a mínima ideia se o Fantasma ou Fantasmas
alteraram o padrão para uma vítima por mês, ou se ainda continuam no padrão de uma
vítima de dois em dois meses, tendo-se limitado a celebrar a entrada no Ano Novo
com um ataque especial.
Apesar de a imprensa ainda se referir ao assassino como Monstro, a maior parte dos
polícias envolvidos aludia agora a ele como fantasma ou fantasmas. As ideias de
Carmine tinham pegado, porque homens como o tenente Joe Brown de Norwalk percebiam
que faziam sentido.
- Entre esta quinta-feira, dia vinte e sete, e a quinta-feira seguinte, três de
Fevereiro, todos os departamentos terão uma equipa de vigilância a controlar
qualquer
suspeito que possam ter, vinte e quatro horas por dia. Se não obtivermos qualquer
resultado, pelo menos haverá um processo de eliminação. Se soubermos que um
suspeito

272

foi vigiado e que não teve hipótese de iludir essa vigilância, podemos excluir esse
suspeito se desaparecer alguma rapariga.
- E se não desaparecer nenhuma rapariga? - perguntou um polícia de Stamford.
- Nesse caso, repetiremos o processo no final de Fevereiro. Concordo com o Carmine
quando diz que tudo o que sabemos aponta para muitas alterações... o intervalo
temporal, um rapto nocturno, o vestido de festa, apenas decapitação... mas não
podemos ter a certeza se ele entrou permanentemente num novo padrão. Seja uma
pessoa
ou duas, o assassino está muito à nossa frente. Temos de continuar a trabalhar, o
melhor que sabemos.
- E se desaparecer uma rapariga e nenhum dos suspeitos estiver envolvido? -
perguntou um polícia de Hartford.
- Voltaremos a rever as nossas opções, mas de forma diferente. Alargamos o cerco de
modo a abranger novos suspeitos, mas não abandonamos os antigos. Passo a palavra
ao Carmine.
Que tinha pouco mais a dizer, excepto em relação aos suspeitos actuais.
- Holloman encontra-se na posição singular de ter muito mais do que um suspeito -
disse. - Os restantes departamentos vigiarão violadores conhecidos com historial
de violência, enquanto Holloman tem um grupo de suspeitos sem qualquer historial
conhecido de violação ou violência. Os funcionários do Hug e duas outras pessoas.
No total, trinta e dois suspeitos. Não conseguimos manter tanta gente sob
vigilância vinte e quatro horas por dia, e é por isso que estou a pedir voluntários
dos
outros departamentos para nos darem uma ajuda. As nossas equipas têm de ser
compostas por homens experientes, que não adormeçam no serviço nem se distraiam com
os
seus pensamentos. Se algum de vocês puder dispensar homens de confiança,
agradeceríamos muito a ajuda.

273

E assim foi. Vinte e nove Huggers, mais o professor Frank Watson, Wesley le Clerc e
o professor Robert Mordent Smith, seriam vigiados dia e noite por homens cuja
atenção não vacilaria. Uma tarefa formidável, mesmo em termos logísticos.
Um número surpreendente dos suspeitos de Holloman vivia na estrada 133 ou perto
dela, e a 133 era uma típica estrada estadual: uma faixa em cada sentido, sinuosa,
com poucos abrigos; nem bermas largas, nem centros comerciais e respectivos parques
de estacionamento, nem áreas de descanso. Tudo o que havia na Boston Post Road,
enquanto a estrada 133 deambulava de aldeia em aldeia, era uma ou outra rua lateral
de habitações. Tâmara Vilich e Marvin Schilman, ambos em Sycamore, perto do centro
de Holloman, eram fáceis de vigiar, bem como Cecil e Otis, na Eleventh Street. Mas
os Smiths, os Ponsonbys, os Finches, Mrs. Polonowski, os Watsons, os Chandras
e os Kynetons estavam todos, de alguma forma, ligados à estrada 133.
O motel duvidoso que ostentava o nome de Major Minor ficava adjacente a Ponsonby
Lane, na 133, e há muitos anos que não tinha tanta actividade nocturna como
prometia
ter na próxima semana.
Carmine, Corey e Abe dividiram a vigilância à residência dos Ponsonby em três
turnos de oito horas; Carmine escolhera os Ponsonby simplesmente por achar que
nenhum
dos suspeitos produziria qualquer resultado e, até aqui, os Ponsonby tinham
recebido menos atenções do que, por exemplo, os Smith ou os Finch. Encontraram um
local
para se esconderem, num maciço de loureiros a cinquenta metros do caminho de acesso
à residência Ponsonby, do lado da estrada 133, depois de estabelecerem que Ponsonby
Lane era um beco sem saída e que a casa dos Ponsonby não tinha qualquer outro
acesso para veículos à excepção deste caminho.
Ele próprio estudara tudo antecipadamente, tendo chegado à conclusão de que os
Forbes seriam os mais difíceis de observar, devido à fachada voltada para a água e
à encosta íngreme e com

274

vegetação cerrada que levava de East Circle, a estrada da frente, até à água; a
casa ficava numa espécie de plataforma a meio. Os Smiths também não eram fáceis,
tendo em conta a colina onde ficava a casa, os bosques densos e aquele caminho de
acesso sinuoso. No entanto, o professor estava decididamente encarcerado no
hospício
de Marsh Manor, em Bridgeport, do lado de Trumbull, guardado pela polícia de
Bridgeport. Quanto aos Finches - ainda bem que praticamente os eliminara da sua
lista.
Tinham nada mais, nada menos, do que quatro portões para a estrada 133, e em nenhum
deles um carro podia esconder-se sem ser detectado por olhos atentos. Norwalk
estava a tratar de Kurt Schiller e Torrington vigiava Walter Polonowski e a sua
amante na cabana a norte do estado.
Então por que razão Carmine achava que este imenso exercício de vigilância seria
infrutífero? Não sabia dizer porquê, honesta-mente, excepto que os Fantasmas eram
fantasmas, e os fantasmas só se deixavam ver quando queriam ser vistos.

275

Capítulo Vinte

Tinham caído cinquenta e cinco centímetros de neve na quarta-feira anterior, sem


qualquer degelo em seguida, o que não era invulgar em Janeiro. Em vez disso, a
temperatura
caíra para seis graus negativos, ainda menos à noite. A vigilância tornou-se um
pesadelo, com os homens enrolados em todos os casacos de peles que esposas ou mães
podiam doar, tapetes de pêlo, peles de urso, cobertores, várias camadas de lã,
roupa interior térmica, cobertores eléctricos que podiam ser ligados a uma bateria
DC, botijas do século dezanove cheias de carvão de churrasco, tudo o que pudesse
afastar o frio. Pois, naturalmente, assim que o mercúrio caía abaixo dos dois graus
negativos, nenhum motor podia continuar a trabalhar, porque o espesso vapor branco
que saía do tubo de escape trairia a presença de um carro ocupado. Os homens com
mais sorte estavam encolhidos dentro de peles de caça do Alasca.
Carmine fazia o turno da meia-noite às oito da manhã, todas as noites, no seu Buick
de interiores de veludo pelos quais agradecia a todos os santos.
A noite de domingo para segunda-feira foi a mais fria de todas, com dezassete graus
negativos. Encolhido dentro de dois cobertores de caxemira, vigiou com as janelas
abertas apenas o suficiente para impedir que os vidros embaciassem e os dentes a
baterem como castanholas.

276

Os loureiros escondiam-no bem mas, na quinta-feira, a primeira noite da sua


vigília, estivera preocupado com Biddy - a cadela poderia sentir a sua presença e
ladrar.
Mas tal não acontecera, nem então nem nesta noite. Apenas um homem descerebrado se
aventuraria a sair de casa, pensou; era a estação das lareiras, do calor
maravilhoso
dos aquecedores, de arranjar coisas para fazer em casa. Se os Fantasmas tinham
planeado um rapto, com certeza que este frio terrível os deteria.
A propriedade dos Ponsonby tinha sido uma dor de cabeça. Um bloco de dois hectares
de área, mais comprido do que largo, que descia numa inclinação íngreme a partir
de uma crista que constituía também os limites na parte de trás; a antiga casa
ficava perto da estrada, rodeada por floresta pouco densa. A crista que se estendia
por trás de todos os quarteirões desse lado de Ponsonby Lane era, na verdade, o
começo de uma reserva florestal de oito hectares, doada, não ao estado, mas ao
Conselho
do Condado de Holloman, por Isaac Ponsonby, avô de Charles e Claire. Isaac era um
apreciador de veados que odiava a caça; "estes oito hectares", dizia o seu
testamento,
"seriam reservados para um parque de veados dentro do condado, perto da cidade."
Para além de pregar alguns sinais de proibido caçar, o conselho não prestara
qualquer
atenção ao legado. Hoje continuava mais ou menos igual ao que fora no tempo de
Isaac, uma floresta relativamente densa, abundantemente povoada por veados.
Começava
na crista e descia por uma encosta até Deer Lane, uma curta viela com quatro casas
no lado oposto; o parque de veados continuava do outro lado do largo existente
ao fundo de Deer Lane e impedira que a construção se estendesse mais. Embora
Carmine tivesse a certeza de que Charles Ponsonby não era atlético o suficiente
para
empreender uma caminhada dessas com dezassete graus abaixo de zero, tivera de
posicionar outros carros nas imediações: em Deer Lane, nas suas esquinas e na
estrada
133. Estes observadores informaram-no de que não havia mais nenhum carro
estacionado em Deer Lane.

277

A noite estava típica de condições tão árcticas: céu não propriamente negro, mas de
um azul profundo, salpicado de estrelas brilhantes, nem uma nuvem à vista. Lindo!
Não se ouvia qualquer som, para além do bater dos seus dentes, não se viam
movimentos nem lanternas lá fora, não se ouvia o ranger dos pneus de um carro num
caminho
gelado.
E, como a inércia era desconhecida para Carmine, começou a brincar com uma ideia
que lhe viera à cabeça, exactamente no mesmo segundo em que uma estrela cadente
traçara o seu caminho ardente pela abóbada celeste.
"Olha para o lado religioso das coisas, Carmine. Pensa nas treze raparigas, desde
Rosita Esperanza, a primeira a ser raptada... dez delas eram católicas. Rachel
Simpson era filha de um sacerdote episcopal. Francine Murray e Margaretta Bewlee
eram baptistas. Mas nenhuma das raparigas protestantes era de uma Igreja branca.
Então por que não juntar o catolicismo ao protestantismo negro? O que é que isso te
diz, Carmine? Que estamos a lidar com um fanático protestante branco, é o que
isto me diz. Não demos a devida importância à enorme preponderância de raparigas
católicas, talvez porque os Fantasmas pareceram desviar-se desse caminho com
Francine
e Margaretta. Mais de setenta e cinco por cento de raparigas católicas, a filha de
um sacerdote protestante negro, a filha de um casamento racialmente misto e...
Margaretta. Margaretta, a única que não encaixa. Haverá algo sobre a família Bewlee
que não saibamos?"
Esquecido do frio, desejou impacientemente que a manhã chegasse, para o libertar
deste trabalho infrutífero e improdutivo e lhe permitir que fosse falar com Mr.
Bewlee.
O seu rádio emitiu um som baixo e breve, o sinal de que um polícia estava a
aproximar-se do carro. Carmine olhou para o relógio e viu que eram cinco da manhã,
demasiado
tarde para acontecer qualquer coisa se o plano fosse um rapto nocturno. Uma coisa
era certa, os Ponsonbys não se tinham mexido.

278

Patrick entrou para o lugar do passageiro e estendeu-lhe uma garrafa-termo, com um


sorriso.
- O melhor do Malvolio's. Obriguei o Luigi a fazer uma cafeteira de café fresco e
os pãezinhos de passas tinham acabado de chegar.
- Patsy, adoro-te.
Beberam e comeram em silêncio durante cinco minutos, e depois Carmine contou ao
primo a sua nova teoria. Para sua desilusão, Patrick não lhe deu muito valor.
- O problema é que já estás envolvido neste caso há tanto tempo que esgotaste todas
as probabilidades e não te resta mais nada senão as improbabilidades.
- Mas há um preconceito religioso, e está relacionado com a raça!
- Concordo, mas não é a religião que interessa aos Fantasmas. O que lhes interessa
é o facto de as famílias tementes a Deus produzirem o tipo de raparigas que eles
procuram.
- Os Bewlees estão a esconder alguma coisa, têm de estar -murmurou Carmine. - Se
assim não for, a Margaretta não encaixa.
- Ela não encaixa - disse Patrick em tom paciente -, porque a tua hipótese é de
loucos. Volta ao básico! Se pensares nos Fantasmas primeiro como violadores e só
depois como assassinos, então não verás um fanático religioso de qualquer cor ou
denominação, cristã ou não. Verás um ou dois homens que odeiam todas as mulheres,
umas mais do que outras. Os Fantasmas odeiam a virtude, aliada à cor da pele,
aliada a um rosto, aliado a outras coisas que desconhecemos. Mas conhecemos a parte
da virtude, da cor da pele, do rosto, da juventude. Nenhuma delas era completamente
branca e nenhuma delas será completamente branca, tenho a certeza disso.
Simplesmente
a melhor fonte de vítimas para eles está entre as latinas e católicas. As crianças
são educadas como se fossem mais novas do que realmente são, rigorosamente vigiadas
e muito amadas. Tu sabes disso, Carmine! Mas as famílias não são recém-chegadas à
América,

279

e penso que um fanático religioso escolheria imigrantes recentes como alvo... para
reduzir a afluência, espalhar a notícia entre quem quiser imigrar para cá de que
as suas filhas serão violadas e chacinadas. A resposta está nos aspectos mais
básicos do caso.
- Mesmo assim, vou falar com Mr. Bewlee - disse Carmine obstinadamente.
- Se tens mesmo de ir, vai. Mas ela não vai encaixar porque o padrão que estás a
ver é fruto da tua imaginação. Estás a ser vítima de uma batalha contra o cansaço.
Ficaram em silêncio; dentro de menos de três horas, o turno terminaria.
Pouco antes das sete da manhã o rádio emitiu um som diferente: aquele que queria
dizer "saiam discretamente de onde estão e vão para o ponto de encontro, porque
foi raptada uma rapariga".
O ponto de encontro de Carmine era o motel Major Minor, onde ele e Patrick
requisitaram o telefone da recepção. Era o próprio major que estava de serviço,
ansioso
por saber o que estava a acontecer. Todos os quartos tinham sido reservados pela
polícia de Holloman por uma soma que eles - e ele - sabiam ser exorbitante,
especialmente
uma vez que ninguém os usava. O letreiro de esgotado era mais uma camuflagem para
os carros estacionados, e o major não o colocaria a menos que fosse verdade.
Enquanto Carmine falava, Patrick observava o major Minor pensando distraidamente
se, tal como tantas pessoas de nomes sugestivos, o jovem F. Sharp Minor teria ido
para West Point decidido a alcançar o posto que tornaria o seu nome uma contradição
em termos(1). Agora na casa dos cinquenta, com o nariz abatatado

*1. Trocadilho com a expressão "Major Minor" que, à letra, pode ser traduzido como
"Maior Menor", sendo que "Major" é também um posto militar e "Minor" é o apelido
da personagem. (N. da T.)

280

e vermelho de alguém que gostava demasiado da pinga, tinha a atitude de um


guerreiro de secretária: se os formulários estiverem correctamente preenchidos e a
papelada
estiver certa, façam o que quiserem, seja espancar um soldado ou roubar armas. Este
aspecto da natureza do major Minor ajudava num negócio onde os clientes vinham
passar uma hora a meio da tarde; o parque de estacionamento principal era nas
traseiras, para que nenhuma esposa que fosse a passar na estrada 133 pudesse ver o
carro do marido. A dada altura, Carmine estivera suficientemente desesperado para
considerar o major F. Sharp Minor como um suspeito, por nenhuma outra razão senão
o facto de saber que todos os quartos tinham orifícios para espiar. O velho vilão
livrara-se das câmaras depois de um detective particular o ter apanhado a filmar
o director de uma empresa com a secretária, mas o major Minor ainda podia olhar.
- Norwich - disse Carmine. - O Corey, o Abe e o Paul estarão aqui dentro de um
minuto - afastou-se mais do major. - Ela é de origem libanesa mas a família está em
Norwich desde mil novecentos e trinta e sete. Chama-se Faith Khouri.
- São muçulmanos? - perguntou Patrick, incrédulo.
- Não, católicos da facção maronita. Duvido que exista uma Igreja Maronita, por
isso frequentam a Igreja Católica normal.
- Norwich é uma cidade bastante grande.
- Sim, mas eles vivem num local relativamente isolado. Mr. Khouri tem uma loja de
conveniência em Norwich. Mora a norte, a meio caminho de Willimantic.
Abe estacionou o Ford, seguido por Paul na carrinha preta de Patrick.
- Nem sei por que raio nos vamos dar ao trabalho de ir até lá -disse Corey enquanto
o Ford arrancava a uma velocidade normal; não ligariam a sirene nem as luzes
até estarem bem longe de Ponsonby Lane.
"Esta", pensou Carmine com um suspiro, "é a observação de um homem desesperado. Não
sou o único com um caso sério de fadiga

281

de combate. Estamos a começar a acreditar que nunca apanharemos os Fantasmas. Esta


é a quarta rapariga, desde que sabemos da existência deles, e não estamos mais
perto de os apanhar. Corey já chegou ao limite das suas forças e eu não sei quanto
tempo me faltará para chegar ao limite das minhas."
- Vamos lá, Cor - disse, como se a observação de Corey fosse normal -, porque temos
de ver com os nossos próprios olhos o local do rapto. Abe, se seguirmos para
norte pela 1-91 até Hartford, e depois virarmos para leste, a estrada será melhor
do que se formos pela 1-95 até New London.
- Não podemos - disse Abe brevemente. - Cinco camiões despistaram-se.
- Pelo menos - disse Carmine, instalando-se confortavelmente no seu adorado assento
-, o aquecimento está ligado. Vou dormir um bocadinho.
A residência dos Khouri ficava numa rua sinuosa, não muito longe do rio Shetucket,
e era tão encantadora como o cenário que a rodeava. A casa em si mesma era
tradicional,
mas construída em várias fases, o que conferia ângulos engraçados aos três pisos.
Entre a casa e a estrada havia um lago enorme, completamente gelado nesta altura
do ano, bem como o regato que levava do lago ao rio gelado; fora limpo de neve para
ser usado como ringue de patinagem, mas um pequeno pontão de madeira sugeria
também canoas no Verão. Alguns juncos chocavam uns contra os outros com um som oco
e, à distância, o Sol lançava um brilho dourado sobre os campos brancos e lisos.
À volta da casa viam-se os esqueletos de Inverno de bétulas e salgueiros, e havia
um velho carvalho, enorme, no cimo de um pequeno monte do outro lado do lago. Este
sugeria piqueniques à sombra, no Verão. Que ambiente podia ser melhor para uma
criança do que este perfeito sonho americano?

282

Carmine ficou a saber que havia sete filhos; apenas um rapaz de dezanove anos,
Anthony, não vivia em casa. O seu irmão Mark tinha dezassete, depois vinha Faith,
com dezasseis, Nora com catorze, Emily com doze e Matthew, com dez; Philippa, de
oito anos, era a mais nova.
A intensidade do sofrimento da família impossibilitava falar com qualquer um deles,
incluindo o pai. Quase trinta anos de América não tinham eliminado a reacção
levantina à perda de um filho. Quando Carmine conseguiu encontrar uma fotografia de
Faith, percebeu o que Patrick estivera a tentar fazê-lo ver em Ponsonby Lane.
Faith parecia irmã das outras vítimas, desde os caracóis negros aos olhos grandes e
aos lábios sensuais. Em termos de cor de pele, era a mais clara; morena como
uma rapariga mediterrânica, do Sul de Itália ou da Sicília.
Patrick parecia derrotado quando encontrou Carmine cá fora, no alpendre frio.
- A neve está tão dura que eles conseguiram estender uma faixa de palha desde a
estrada ao alpendre das traseiras... parece um tapete barato - disse. - Limparam
e salgaram a estrada onde estacionaram, portanto não há marcas de pneus que não
tenham sido destruídas pela polícia local. Abriram a porta das traseiras com uma
chave ou uma gazua, e eu diria que eles sabiam exactamente onde era o quarto de
Faith. Tinha o seu próprio quarto... todos os filhos têm um quarto só para si...
O dela era no primeiro andar, que é onde todos dormem. Devem tê-la encontrado a
dormir. Os únicos sinais de luta são os lençóis ligeiramente agitados aos pés da
cama, talvez ela tenha esperneado um pouco. Depois levaram-na por onde tinham
entrado, por cima da palha, até à estrada e ao veículo deles. Por aquilo que
conseguimos
perceber, ninguém ouviu nada. Deram pela falta dela quando não apareceu para o
pequeno-almoço, que a mãe serve cedo nesta altura do ano.
a viagem de carro até Norwich demora uma hora nestas estradas mal limpas. Os miúdos
vão com o pai e ficam na loja até à hora das aulas. A escola fica perto.

283

- Estás a fazer o meu trabalho, Patsy. Alguma ideia da altura dela? Peso?
- Só quando o padre Hannigan e as suas freiras chegarem. O sofrimento lá dentro
está descontrolado e ninguém me deixa dar um tranquilizante a ninguém. Estão a
arrancar
os cabelos aos punhados.
- E há sangue pelo ar, Mrs. Khouri insiste em arranhar o rosto. É por isso que
estou aqui fora, não lá dentro - disse Carmine com um suspiro. - Não que o sangue
e os cabelos importem. Os Fantasmas não deixaram qualquer vestígio de uma coisa ou
outra.
- A família já está a dar a Faith como morta.
- E podes culpá-los, Patsy, honestamente? Nós temos sido tão úteis como tetas num
boi, e isto está a começar a afectar o Abe e o Corey. Estão a sofrer muito,
simplesmente
não o demonstram.
Patrick semicerrou os olhos e soltou um suspiro de alívio.
-Ali vem o padre e as freiras. Talvez eles saibam como acalmar estas pessoas.
Se não o conseguissem, pelo menos o padre Hannigan e as três freiras que o
acompanhavam puderam dar a Carmine as informações de que necessitava. Faith media
um metro
e cinquenta e cinco e pesava cerca de quarenta quilos. Esguia, ainda não muito
desenvolvida. Uma rapariga adorável, devota, com média excelente em todas as
disciplinas,
mais voltada para as ciências; a sua ambição era seguir Medicina. Estava previsto
que se juntasse às voluntárias do Hospital St. Stan no Verão, mas até agora os
pais tinham-na mantido em casa; não queriam que ela se dedicasse às boas obras
demasiado cedo. Anthony, o irmão ausente, estava a estudar Medicina na Universidade
Brown; parecia que todos os filhos tinham interesse pelas ciências humanas. A
família era muito unida e altamente respeitada. A loja ficava numa parte boa de
Norwich
e nunca fora assaltada, a casa nunca fora roubada, nenhum deles fora alguma vez
atacado ou molestado.

284

- Voltamos sempre à inocência irrepreensível, ao rosto, à idade, possivelmente à


religião - disse Carmine a Silvestri quando regressou a Holloman. - Ultimamente,
nem a cor da pele nem o tamanho têm preocupado os Fantasmas, mas temos sempre os
três primeiros aspectos e, na maioria dos casos, o quarto. O presente que a mãe
de Margaretta Bewlee lhe deu pelo seu décimo sexto aniversário foi uma ida a um
salão de beleza, para esticar o cabelo e o pentear como a Dionne Warwick... ela ia
cantar uma das músicas da Dionne num concerto da escola. Essa notícia fez-me
pensar, mas depois de verificar percebi que não evidenciava qualquer... como
dizer?...
qualquer declínio de virtude. Embora a Margaretta seja a que me faz mais confusão,
John. É a única pérola negra numa colecção de pérolas cremes. Demasiado alta,
demasiado escura, demasiado ina-propriada.
- Talvez os fantasmas se estejam a aproveitar da onda racial. Não resta dúvida de
que as suas actividades não estão a ajudar em nada a situação.
- Então por que não outra vítima igualmente negra, agora? As palavras cruzadas do
Times tinham um problema há pouco tempo, a pista era "voltar atrás". A solução
era "rejeitar". Quando a vi ri até às lágrimas. Para onde quer que me vire, sou
rejeitado.
Silvestrí não disse o que estava a pensar: "precisas de umas longas férias no
Hawai, Carmine. Mas ainda não. Não posso dar-me ao luxo de o retirar deste caso. Se
ele não conseguir resolvê-lo, ninguém conseguirá."
- Está na altura de eu dar uma conferência de imprensa - disse, - Não tenho nada
para dizer aos malditos, mas tenho de me penitenciar por isso em público. -
Pigarreou
e roeu a ponta de um charuto muito maltratado. - O governador concorda que eu devo
penitenciar-me em público.
- Como um favor a Hartford?

285

- Não, ainda não. Como julga que eu passo a maior parte dos dias? Ao telefone com
Hartford.
- Nenhum dos Huggers pôs um pé fora de casa a noite passada. Embora isso não
signifique que eu não tenciono vigiá-los dentro de trinta dias, John. Ainda tenho a
sensação de que o Hug está muito envolvido nisto, e não apenas como objecto de
vingança - disse Carmine. - Que percentagem da verdade vai dizer à imprensa?
- Um pouco disto, um bocadinho daquilo. Nada sobre o vestido de festa de
Margaretta. E nada sobre a possibilidade de serem dois assassinos.

286

Capítulo Vinte e Um
O salão da Câmara Municipal de Holloman era famoso pela sua acústica e, desde que
os deveres administrativos do presidente tinham sido transferidos para os Serviços
Municipais, uma década antes, o salão da Câmara de Holloman fora deixado para
aquilo em que era melhor: receber os maiores virtuosos e orquestras sinfónicas do
mundo.
Por trás do auditório havia uma sala de ensaios concebida para os artistas gravarem
e ensaiarem; os suportes para pautas e cadeiras, dispostos em filas semicirculares,
não sugeriam o assassinato de nada mais horrível do que a música. John Silvestri
subiu ao pódio do maestro, no seu melhor uniforme, com a Medalha de Honra ao
pescoço.
Isto, mais as condecorações ao peito, dizia que ele não era um homem qualquer.
Apareceram cerca de cinquenta jornalistas, na sua maioria de jornais e revistas,
uma equipa de televisão da estação local de Holloman e um repórter da rádio whmn.
Os maiores jornais diários nacionais enviaram correspondentes; embora o Monstro do
Connecticut fosse notícia, um editor astuto compreendia que este exercício policial
não ia resultar em quaisquer desenvolvimentos sensacionais. O resultado da
conferência de imprensa seria apenas uma oportunidade para escrever editoriais
contundentes
sobre a incompetência policial.

287

Mas Silvestri tinha muito jeito para falar em público, principalmente quando se
estava a penitenciar. Ninguém, pensou Carmine enquanto o ouvia, se penitenciava de
forma mais graciosa, com maior prazer aparente em fazê-lo.
- Apesar das temperaturas glaciais, vários departamentos policiais em todo o estado
mantiveram um total de noventa e seis suspeitos sob vigilância, vinte e quatro
horas por dia, desde a passada quinta-feira até ao rapto de Faith Khouri. Trinta e
duas destas pessoas em Holloman ou nos arredores. Nenhuma delas poderia ter estado
envolvida no rapto, o que significa que não estamos mais perto de conhecer a
identidade do homem a quem vocês chamam o Monstro do Connecticut, mas a quem nós
agora
chamamos o Fantasma.
- Bom nome - disse a jornalista criminal do Holloman Post. -Têm alguma evidência
que implique alguém? Seja quem for?
- Acabei de responder a essa pergunta, Mrs. Longford.
- Este assassino... o Fantasma, gosto do nome... deve ter um local especial para
onde leva as suas vítimas. Não está na altura de começarem a procurá-lo melhor?
Revistando instalações, por exemplo?
- Não podemos revistar qualquer local habitado sem um mandato, minha senhora, como
sabe. E mais, a senhora seria a primeira a cair-nos em cima se o fizéssemos.
- Sob circunstâncias normais, sim. Mas isto é diferente.
- Diferente como? Por causa da natureza horrível dos crimes? Concordo, enquanto
pessoa, mas como autoridade não posso concordar. Uma força policial pode ser um
braço
vital da lei, mas, numa sociedade livre como a nossa, é também limitada pela
própria lei que existe para servir. O povo americano tem direitos constitucionais
que
nós, a polícia, somos obrigados a respeitar. Uma suspeita sem provas não nos dá o
poder de entrar pela casa de uma pessoa à procura de evidências que não conseguimos
encontrar noutro lado. As evidências têm de surgir primeiro. Temos de apresentar um
caso comprovativo ao braço judicial da lei, de modo a obtermos permissão

288

para investigar. As meras palavras não podem persuadir nenhum juiz a emitir um
mandato sem factos concretos. E nós não temos factos concretos, Mrs. Longford.
Os restantes jornalistas davam-se por satisfeitos de ser Mrs. Diane Longford a ter
o trabalho todo; as perguntas dela não resultariam em nada, de qualquer modo,
e todos sentiam o cheiro a café e donuts proveniente da mesa ao fundo do salão.
- E por que razão não têm factos concretos, senhor comissário? Quer dizer, é
difícil perceber como é que tantos homens experientes estão a investigar estes
homicídios
desde princípios de Outubro sem conseguirem encontrar um único facto concreto! Ou
está a dizer que o assassino é um fantasma a sério!
A ironia não afectava Silvestri mais do que a agressividade ou o charme;
prosseguiu, impassível.
- Não, não é um fantasma a sério, minha senhora, mas sim alguém muito mais
perigoso, muito mais mortífero. Pense no nosso -assassino como um felino selvagem
muito
forte... um leopardo, por exemplo. Está confortavelmente instalado numa árvore, na
orla da floresta, perfeitamente camuflado, observando uma manada de veados a pastar
que se vai aproximando da floresta e da sua árvore. Para um pássaro nessa mesma
árvore, os veados são todos iguais. Mas o leopardo vê cada veado de maneira
diferente
e selecciona um, em particular, como o seu alvo. Para ele, aquele veado é mais
apetitoso, mais suculento do que os outros. Oh, o leopardo é muito paciente! Os
veados
passam por baixo da árvore mas ele não se mexe, e os veados não o conseguem ver nem
cheirar em cima do ramo... e depois o seu veado passa debaixo da árvore. O ataque
é tão rápido que os restantes veados mal têm tempo de começar a correr antes de o
leopardo voltar a subir à árvore com a sua presa, agora impotente, de pescoço
partido.
Silvestri respirou fundo; qaptara a atenção da audiência. - Admito que a metáfora
não é brilhante, mas uso-a para ilustrar a magnitude daquilo que enfrentamos com
o Fantasma. De onde nos

289

encontramos, ele é invisível. Tal como os veados não pensam em olhar para cima, tal
como os cheiros que o vento leva até aos veados têm origem apenas ao nível deles
e não no alto de uma árvore, o mesmo se passa connosco. Ainda não nos ocorreu
procurá-lo no sítio certo porque não fazemos ideia de qual será esse sítio, não
sabemos
que tipo de local ele utiliza. Podemos passar por ele na rua todos os dias... a
senhora pode passar por ele na rua todos os dias, Mrs. Longford. Mas o rosto dele
é vulgar, o seu passo é normal... tudo nele é normal. À superfície, é apenas um
gato, não um leopardo. Por baixo, é Dorian Gray, Mr. Hyde, os rostos de Eva, a
encarnação
de Satã.
- Nesse caso, que protecção pode a comunidade ter contra ele?
- Eu diria vigilância, mas essa vigilância não o impediu de raptar raparigas de um
tipo específico mesmo depois de termos inundado o Connecticut de boletins e avisos.
No entanto, parece-me evidente que o assustámos, que o forçámos a pôr de lado os
raptos em plena luz do dia, que o obrigámos a agir agora a coberto da noite. Não
é nada de que possamos vangloriar-nos, porque não conseguimos impedi-lo de agir.
Nem sequer abrandar. Mas é um raio de esperança. Se ele está mais assustado do que
antes, e se mantivermos a pressão, acabará por cometer erros. E, senhoras e
senhores da imprensa, têm a minha palavra de que não desperdiçaremos esses erros.
Eles
farão de nós o leopardo em cima da árvore, e dele um veado em particular.
- Ele saiu-se bem - disse Carmine a Desdemona nessa noite. - O correspondente da
Associated Press perguntou-lhe se tencionava concorrer ao cargo de governador nas
próximas eleições. "Não, Mr. Dalby" respondeu ele, com um sorriso de orelha a
orelha. "Em comparação com os cargos governamentais, a sina de um polícia é muito
melhor,
mesmo com fantasmas."
290

- As pessoas reagem-lhe bem. Quando o vi no noticiário das seis, fez-me lembrar um


ursinho de peluche velho e gasto.
- Mais importante ainda, o governador gosta dele. Não se pode tratar heróis de
guerra como idiotas incompetentes.
- Ele deve ter sido um herói de guerra já de idade avançada.
- É verdade.
- Pareces um pouco fanhoso, Carmine. Estás a ficar constipado?
- perguntou ela, pegando noutra fatia de piza. Oh, era muito bom estar novamente de
boas relações com ele!
- Depois de passarmos horas em carros sem aquecimento, com a temperatura abaixo de
zero, estamos todos a ficar constipados.
- Pelo menos não precisaram de me vigiar a mim.
- Mas vigiámos, Desdemona.
- Oh, a quantidade de homens necessária! - murmurou ela, o seu lado de gestora
assombrado pela magnitude da tarefa, como sempre. - Noventa e seis pessoas?
-Sim.
- Com quem é que ficaste?
- É informação confidencial, não posso responder. O que se tem passado no Hug desde
que a Faith desapareceu?
- O professor continua no manicómio. Quando descobrir que o Nur Chandra aceitou uma
colocação em Harvard, vai ter outro esgotamento. É pior do que perder a sua estrela
mais brilhante, porque o contrato do Nur diz que os macacos vão com ele. Acho que o
Nur convidou o Cecil para se mudar também para o Massachusetts... o Cecil está
doido de alegria. Acabou-se a vida no gueto. Os Chandras compraram uma propriedade
luxuosa e o Cecil terá direito a uma casinha encantadora. Estou contente por ele,
mas tenho muita pena do professor.
- Parece-me estranho. Um contrato que o deixa levar coisas que foram pagas por
outras pessoas? Isso é como um congressista levar a espingarda Remington da parede
do seu gabinete quando não é reeleito.

291

- Quando o Nur veio para o Hug, o professor tinha todas as razões do mundo para
ignorar essa estipulação. Sabia que o Nur nunca encontraria outro local tão
perfeito
como o Hug para as suas pesquisas. E isso foi verdade, até este maldito assassino
monstruoso aparecer.
- Sim, quem podia ter previsto uma coisa destas? Estou a ficar tão paranóico que
isso me parece um motivo. Afinal de contas, há um Prémio Nobel em jogo.
- Sabes - disse ela com ar pensativo -, sempre tive o estranho pressentimento de
que o Nur Chandra não ganhará o Prémio Nobel. De alguma maneira, tem sido tudo
demasiado
fácil. O único macaco que mostrou qualquer sinal de um estado epiléptico
condicionado foi o Eustace, e, em ciência, é muito perigoso depositar todas as
esperanças
numa única estrela. E se o Eustace sempre tivesse tido tendências epilépticas, e
tenha sido algo completamente distinto dos estímulos aplicados pelo Nur a trazer
essas tendências ao de cima? Já aconteceram coisas mais estranhas.
- És muito mais inteligente do que eles todos juntos - disse Carmine, em tom
apreciativo.
- Suficientemente inteligente para saber que eu não vou ganhar Prémio Nobel nenhum!
Mudaram-se para as grandes poltronas. Geralmente Carmine sentava-se ao lado de
Desdemona, mas esta noite sentou-se em frente dela, pensando que olhar para o seu
rosto razoável e sensato poderia animá-lo um pouco.
No dia anterior fora a Groton falar com Edward Bewlee, um homem tão razoável e
sensato como Desdemona. Mas a conversa não resolvera mistério nenhum.
- A Etta estava decidida a ser uma estrela de rock famosa - dissera Mr. Bewlee. -
Tinha uma voz maravilhosa e dançava bem.
E dançava bem. Teria sido isso que apelara aos Fantasmas? De volta ao presente - ao
rosto razoável e sensato de Desdemona.

292

- Mais alguma notícia da Frente Hug? - perguntou.


- O Chuck Ponsonby está a substituir o professor. Não é uma das minhas pessoas
preferidas, mas pelo menos é comigo que vem falar quando tem problemas, não com a
Tâmara. Segundo parece, ela tentou falar com o Keith Kyneton e ele bateu-lhe com a
porta do gabinete na cara. Portanto é decididamente a Hilda que ostenta a coroa
de louros do vencedor. A aparência dela melhorou incomensuravelmente... um fato
preto de bom corte, blusa de seda encarnada, sapatos italianos, penteado novo,
maquilhagem
como deve ser... e, acredites ou não, lentes de contacto em vez de óculos! Parece a
esposa perfeita de um proeminente neurocirurgião.
- Pronta para se exibir em Nova Iorque - disse Carmine com um sorriso. - É bom
saber que alguma coisa do que eu disse ao Kyneton penetrou naquela cabeça oca. -
Agitou-se
na poltrona. -Corre um rumor pelo prédio de que o Satsuma não vai renovar o
contrato de arrendamento da cobertura nem do apartamento do Eido.
- Pode muito bem ser verdade. Ele está a hesitar entre as ofertas das universidades
de Stanford, estado de Washington e Georgia. O que provavelmente quer dizer que
acabará em Columbia.
- Como é que chegas a essa conclusão?
- O Hideki é um homem urbano e, se ficar em Nova Iorque, não precisa de abrir mão
do seu refúgio de fim-de-semana em Cape Cod. É uma viagem longa, sim, mas
praticável.
Teria ido para Boston, se o Nur Chandra não se tivesse antecipado a ele com a ida
para o Massachusetts. Outra universidade que não fosse Harvard seria andar para
trás. E contudo, para mim, o Hideki é uma melhor aposta para o Prémio Nobel. Os
investigadores que dão nas vistas podem fascinar a imprensa científica, mas
raramente
estão à altura da publicidade -levantou-se agilmente. - Obrigada pela piza,
Carmine.
Sem encontrar uma resposta adequada, ele acompanhou-a até à porta de aço, dois
andares mais abaixo, com a sua fechadura e combinação, certificou-se de que ela
estava
devidamente fechada em casa e voltou aos seus domínios sentindo-se curiosamente
deprimido.

293

Estivera quase a perguntar-lhe se haveria alguma hipótese de avançarem com a


relação para um nível mais íntimo, mas as palavras tinham sido silenciadas pela
saída
apressada e decidida de Desdemona.
A verdade era que as intenções de Carmine não tinham sido suficientemente óbvias
para que Desdemona sonhasse sequer que existiam, e, uma vez que também ela nutria
fortes sentimentos por ele, não se atrevia a demorar-se muito na sua presença
depois de terem dito tudo o que havia a dizer sobre o Hug e de terem esgotado os
tópicos
de conversação inocentes. O que ela temia era um silêncio prolongado, pois não
tinha a certeza de o conseguir aguentar.
Além disso, estava muito cansada. Depois de uma série de discussões acaloradas,
conquistara o privilégio de retomar as suas caminhadas de fim-de-semana - na
condição
de ser conduzida até ao ponto de partida, num carro-patrulha cujos polícias se
certificavam de não estarem a ser seguidos, e depois apanhada pelo mesmo carro num
ponto que ela designasse como a sua meta. Assim, caminhara no canto noroeste do
estado no sábado e no domingo, e estava dorida devido ao que se tornara entretanto
um exercício pouco habitual. O Trilho Apalache tinha os seus encantos, mesmo no
Inverno, mas houvera alturas em que se arrependera de não ter levado os sapatos de
neve.
Assim, depois de um longo banho de imersão, limpou-se e vestiu a sua indumentária
habitual para dormir- um pijama de homem de flanela e um par de meias grossas de
lã. Um termostato a produzir ar quente não era para Desdemona! Nesse aspecto,
embora não o soubesse, era muito parecida com Carmine Delmonico.
Adormeceu assim que se deitou, sonhando sonhos que não recordava quando acordou,
sabendo apenas que algum barulho estranho a despertara quando o despertador marcava
as quatro da manhã. Um raspar, com um leve guincho.

294

Sentou-se muito direita e começou a pensar que não fora o barulho que a acordara,
mas sim algum pressentimento primitivo de perigo iminente. A porta do quarto estava
aberta, deixando ver a sala de estar do pequeno apartamento, mergulhada na
escuridão. Tal como o quarto. O sono de Desdemona não era assombrado por qualquer
terror
que lhe causasse medo do escuro. No entanto, uma faixa de luz proveniente do
corredor exterior tremeluziu brevemente com uma sombra no meio, da altura e do
formato
de uma pessoa, desaparecendo quase de imediato quando a porta da rua se fechou. Não
estou sozinha. Ele está aqui dentro, veio matar-me.
Numa cadeira perto da cama estavam as peças pequenas para lavar - cuecas, soutien,
meias, um par de luvas de lã. Desdemona saiu da cama sem um ruído e aproximou-se
da cadeira, procurando as luvas. Quando as encontrou, calçou-as e, com cuidado para
se manter fora do alcance de qualquer reflexo de luz, dirigiu-se à porta de correr
da varanda, fechada e trancada com uma barra de ferro encaixada na calha. Baixou-
se, retirou a barra, abriu o trinco e correu a porta apenas o suficiente para sair
para a varanda, uma prateleira de betão com um corrimão e barras de ferro com pouco
mais de um metro de altura.
Carmine morava dois andares mais acima, no lado do Edifício Nutmeg Insurance virado
para nordeste, quase exactamente oposto ao local onde Desdemona se encontrava.
Isso significava que, para chegar até ele, tinha de subir dois andares e contornar
uma dúzia de apartamentos. Devia subir primeiro os dois andares, ou passar entre
as varandas do seu piso até estar directamente por baixo da dele? "Não, primeiro
para cima, Desdemona! Sai deste piso o mais depressa possível. Mas como?"
Cada piso ocupava três metros de espaço vertical: dois metros e setenta e cinco da
altura dos tectos, mais vinte e cinco centímetros da placa de betão que formava
o chão do andar de cima, com os respectivos canos de água e esgotos e condutas
eléctricas. Era demasiado alto para lá chegar...

295

O vento assobiava, mas, depois de fechar a porta de correr, os vidros duplos não
deixariam passar nada para o interior. O frio cortante penetrava-lhe no pijama como
se este fosse feito de gaze. Só tinha uma coisa a fazer. Pôs-se de pé em cima do
corrimão da varanda, parou por um instante, vacilando dez andares acima do solo
enquanto o vento soprava contra ela, depois esticou os braços para agarrar a parte
inferior da balaustrada do andar de cima. Pronto! Apenas a sua altura e uma
tendência
que possuía desde adolescente para a ginástica faziam com que fosse possível, mas
ela tinha essa altura, essa tendência. Segurando com ambas as mãos a parte de baixo
da balaustrada superior, tirou os pés do corrimão, contorceu-se no ar até ter o
corpo na perpendicular e girou as pernas de modo a segurar-se ao corrimão com os
joelhos. Mais um impulso e estava na varanda por cima da sua.
Um já estava, faltava mais um. Tinha os dentes a bater e sentia o corpo gelado por
baixo do calor gerado pelo exercício; sem parar para descansar, subiu para o
corrimão
e estendeu as mãos para a parte de baixo da balaustrada no piso de Carmine. "Força,
Desdemona, tens de o fazer enquanto consegues!" Novamente para cima, para a
segurança
da varanda dois pisos acima do seu.
Agora tudo o que tinha de fazer era passar de varanda para varanda no mesmo piso -
o que era mais fácil de dizer do que de fazer, pois o intervalo entre uma e outra
era de quase três metros. Decidiu ultrapassar a distância equilibrando-se em cima
do corrimão e saltando com impulso para a varanda seguinte. Quantos saltos seriam
precisos? Doze. E os seus pés estavam a ficar dormentes, as mãos dentro das luvas
de lã começavam a perder a sensibilidade. Mas era possível - tinha de ser, tendo
em conta o que a esperava lá em baixo se hesitasse. Como podia ter a certeza de que
ele não era pelo menos tão ágil como ela?
Finalmente chegou; estava na varanda de Carmine e começou a dar murros na porta de
correr que dava para o quarto dele.
- Carmine, Carmine, deixa-me entrar! - gritou.

296

A porta abriu-se de rompante; Carmine, vestido apenas com boxers, apreendeu num
milissegundo a presença dela e puxou-a para dentro.
Num instante tinha tirado o edredão da cama e enrolara-o à volta dela.
- Ele está no meu apartamento - conseguiu ela dizer.
- Fica aqui e concentra-te em aquecer - disse ele, levantando o termostato e
desaparecendo, ainda a puxar as calças para cima.
- Olhem para isto - disse Carmine a Abe e Corey vinte minutos depois, apontando
para a porta aberta do apartamento de Desdemona.
A fechadura de aço temperado fora cortada; uma pequena pilha de aparas de ferro
jazia no chão, por baixo do local onde a fechadura estaria se a porta estivesse
fechada.
- Céus! - murmurou Abe.
- Temos de aprender tudo de novo - disse Carmine com expressão sombria. - Se isto
prova alguma coisa, é que as nossas noções de segurança não prestam para nada.
Para o manter de fora, teríamos de ter sobreposto o metal no exterior da porta, mas
não o fizemos. Oh, ele desapareceu... desapareceu assim que viu que Desdemona
não estava, penso eu. Esfumou-se como um fantasma.
- Como diabo é que ela conseguiu passar por ele? - perguntou Corey.
- Saiu para a varanda, escalou dois andares e depois passou de varanda para varanda
até ao meu apartamento. Ouvi-a a bater na minha porta.
- Deve estar maltratada, com este tempo... corrimões de metal, o vento...
- Nem pensar! - disse Carmine, com algum orgulho na voz. -Calçou luvas e tinha
meias de lã.

297

- Uma mulher e pêras - disse Abe em tom reverente.


- Tenho de voltar para junto dela. Façam o que é preciso fazer, rapazes. Rebusquem
o prédio, desde a cave à cobertura. Mas ele já cá não está.
Desdemona ainda estava enrolada no edredão e Carmine desenrolou-a.
- Sentes-te melhor?
- Como se me tivessem arrancado os braços das articulações, mas... oh, Carmine,
consegui fugir! Ele estava lá, não estava? Não foi apenas a minha imaginação?
- Esteve lá, sim, mas já desapareceu. Cortou a fechadura com algo como uma serra de
relojoeiro com ponta de diamante... fina, estreita, pode cortar tudo, se for
usada por um especialista. Portanto sabemos que ele é especialista. Não se
apressou, para não correr o risco de a partir. O filho da mãe! Riu-se da nossa
segurança.
- Carmine ajoelhou-se para lhe descalçar as meias e examinar a pele dos pés. -
Deste lado sobreviveste. Agora vamos ver as mãos
- também tinham sobrevivido. - És uma mulher extraordinária, Desdemona.
Sentindo-se aquecer, ela sorriu.
- Esse é um elogio que vou guardar para sempre, Carmine. -Ddepois estremeceu. - Oh,
mas estava tão aterrorizada! Vi apenas a sombra dele quando abriu a porta da
rua, mas tive a certeza de que viera para me matar. Mas porquê? Porquê eu?
- Talvez para me atingir a mim. Para atingir a polícia. Para provar que se, e
quando, decidir agir, ninguém o pode deter. O problema é que estamos habituados a
criminosos
vulgares, homens que não teriam inteligência nem paciência para tentar uma proeza
como serrar uma fechadura de cinco centímetros. Com dentes de diamante ou não,
deve ter demorado várias horas.

298

De súbito, agarrou-a e puxou-a para si num abraço quase desesperado.


- Desdemona, Desdemona, quase te perdi! Tiveste de te salvar a ti própria enquanto
eu ressonava! Oh, meu Deus, morria se te perdesse!
- Não vais perder-me, Carmine - disse ela com um suspiro, aninhando a cabeça no
ombro dele, beijando-o no pescoço. - Estava aterrorizada, sim, mas não me passou
pela cabeça outra coisa senão vir para junto de ti. Sabia que estaria em segurança
contigo.
- Amo-te.
- E eu a ti. Mas sentir-me-ia ainda mais segura se me levasses para a cama - disse
Desdemona, afastando o rosto do pescoço dele. - Há partes de mim que não
descongelam
há anos.

299

Capítulo Vinte e Dois

Em meados de Fevereiro surgiu o primeiro degelo. Começou a chover intensamente numa


sexta-feira e só parou já a noite de domingo ia adiantada. Todas as partes baixas
do Connecticut estavam submersas em água gelada que tentava, em vão, escoar. A casa
dos Finch ficou isolada da estrada 133 exactamente como Maurice Finch descrevera
a Carmine; o ribeiro de Ruth Kyneton subira tanto que ela tinha de estender a roupa
de galochas; e o Dr. Charles Ponsonby entrou no Hug a queixar-se amargamente
de uma adega inundada.
Frustrado pela intensidade do dilúvio e atormentado pelos músculos das pernas
perros, na segunda-feira de madrugada Addison Forbes decidiu dar uma pequena
corrida
pela zona de East Holloman, e depois ir até ao seu pontão à beira de água. Aí
construíra uma casa de barco para o seu pequeno barco, embora fossem poucas as
vezes
em que o seu estado de espírito o levava a lançá-lo para um passeio de lazer no
porto de Holloman. Nos últimos três anos, o lazer tornara-se para Addison Forbes
um pecado, se não mesmo um crime.
Um carro-patrulha suspeito estava estacionado perto do íngreme caminho de acesso à
casa dos Forbes, e os seus ocupantes fizeram-lhe um aceno com expressões admiradas
quando passou por eles,

300

decidido a concluir a sua corrida. Estava banhado em suor quando começou a descer a
encosta por entre a vegetação; três dias de chuva tinham derretido a neve
congelada,
daí as inundações por todo o estado, e o solo debaixo dos pés de Forbes estava
saturado, escorregadio. Anos antes, plantara uma fileira de forsítias ao fundo da
encosta - como era maravilhoso quando aquelas percursoras da Primavera rebentavam
em botões amarelos!
Mas em Fevereiro a sebe de forsítias era apenas um conjunto de paus rígidos e
castanhos e, quando Forbes reparou numa mancha lilás no solo por baixo da sebe,
estacou.
Uma fracção de segundo depois viu os braços e pernas que emergiam da mancha lilás e
ouviu o seu coração traiçoeiro a bater-lhe acelerado nos ouvidos. Agarrou-se
ao peito, abriu a boca seca para gritar, mas não conseguiu. Oh, Deus do céu, o
choque! Ia ter outro ataque, isto tinha de lhe provocar outro ataque! Apoiado às
costas
de um velho banco de jardim que Robin ali colocara para "sonhar", contornou-o
lentamente até conseguir sentar-se à espera que a dor surgisse, com um instinto
antigo
e impossível de erradicar fazendo com que abrisse e fechasse constantemente a mão
esquerda enquanto aguardava que a dor disparasse pelo braço. De olhos esbugalhados,
boca entreaberta, Addison Forbes esperou. "Vou morrer, vou morrer..."
Dez minutos depois a dor não surgira e já não conseguia ouvir o coração. O pulso
abrandara, precisamente como acontecia sempre depois das suas corridas, e não se
sentia diferente do que se costumava sentir depois de correr. Levantou-se
bruscamente e isso também não lhe causou qualquer dor; virou-se para olhar para a
mancha
lilás, com os seus braços e pernas, depois começou a subir a encosta até casa com
passos longos e ritmados, a alegria a crescer dentro de si. - O corpo dela está
ao pé da água - disse quando entrou na cozinha. - Chama a polícia, Robin.
Ela guinchou e correu de um lado para o outro como uma barata tonta, mas fez o
telefonema e depois aproximou-se dele, procurando-lhe o pulso.

301

- Estou bem - disse ele, irritado. - Larga-me, mulher, estou bem! Acabo de sofrer
um choque terrível, mas o meu coração não falhou. - Uum sorriso sonhador surgiu-lhe
nos lábios. - Tenho fome, quero um bom pequeno-almoço. Ovos estrelados e bacon,
torradas de pão de passas com muita manteiga, e natas no café. Vá, Robin, mexe-te!
- Eles enganaram-nos - disse Carmine, de pé à beira da água com Abe e Corey. - Como
pudemos ser tão estúpidos? A observar as estradas, sem sequer pensarmos no porto.
Ela foi largada aqui por um barco.
- Toda a costa leste esteve congelada até sábado à noite - disse Abe. - Isto teve
de ser uma decisão de última hora, não pode ser onde tinham planeado deixá-la.
- Uma ova é que não pode - disse Carmine com convicção. - O degelo tornou-o mais
fácil, apenas isso. Se a água tivesse continuado gelada, eles teriam caminhado
sobre
o gelo desde uma rua que nós não estivéssemos a patrulhar. Assim, puderam usar um
barco a remos e aproximá-lo o suficiente para a atirar sobre a borda. Nunca puseram
os pés em terra.
- Ela está completamente congelada - disse Patrick, juntando-se a eles. - Tem um
vestido de festa lilás com pérolas cosidas em vez de brilhantes, de um tecido
rendado
que nunca vi antes... não é mesmo renda. O vestido serve-lhe melhor do que o da
Margaretta, pelo menos em comprimento. Ainda não a virei para ver se está abotoado.
Não tem marcas de cordas, nem vergões no pescoço. Para além de algumas folhas
molhadas, está muito limpa.
- Uma vez que eles não chegaram a desembarcar, não vamos encontrar nada aqui. Deixo
o resto contigo, Patsy. Venham, rapazes - disse a Abe e Corey. - Temos de perguntar
a todas as pessoas com casas viradas para a água se viram ou ouviram alguma coisa
ontem à

302
noite. Mas, Corey, tu vais alargar mais a nossa rede. Leva a lancha da polícia e
contorna os barcos cisterna e de carga ancorados no porto. Talvez alguém tenha
vindo
ao convés apanhar ar, depois de dias enfiado no porão, e tenha visto um barco a
remos. É o tipo de coisa em que um marinheiro repararia.
- É uma repetição da Margaretta - disse Patrick a Silvestri, Marciano, Carmine e
Abe; Corey andava na água, na lancha da polícia. - Os ombros da Faith são mais
estreitos
e os seios mais pequenos, por isso eles conseguiram abotoar o vestido. Não tem uma
única marca, o que significa que ela devia vir em qualquer coisa à prova de água
durante a viagem de barco. Qualquer coisa mais fina e lisa do que um oleado vulgar.
Os barcos têm sempre alguns centímetros de água no fundo, mas o vestido estava
seco, sem manchas.
- Como é que morreu? - perguntou Marciano.
- Violada até à morte, como a Margaretta. O que não sei é se esta nova ferramenta
que eles utilizam foi deliberadamente concebida para matar ou se eles preferiam
que fizesse o seu trabalho mais lentamente... ao longo de vários ataques. Assim que
a Faith morreu foi colocada num congelador, mas não uma arca doméstica. Mais
do género que se pode encontrar num supermercado. Tem de ser suficientemente
comprido para a Margaretta lá caber deitada, e bastante largo, porque ambas as
raparigas
foram colocadas de braços afastados do corpo e pernas ligeiramente abertas. Foram
ambas vestidas depois de estarem duras como pedra. As cuecas da Faith também eram
modestas, mas lilases em vez de cor-de-rosa. Mãos e pés nus. A Faith tem dois dedos
tortos no pé esquerdo, de uma fractura antiga. Isso facilitará à família a tarefa
de a identificar, se alguma vez saírem do seu histerismo.
- Acha que foi a mesma pessoa que fez ambos os vestidos? -perguntou Silvestri. -
Quer dizer, são diferentes, e contudo iguais.

303

- Não sou especialista em vestidos de festa. Acho que a namorada do Carmine devia
observá-los e dizer-nos o que pensa - disse Patrick, piscando o olho.
Carmine corou. "Então é assim tão óbvio? E se for? Estamos num país livre e só
tenho de rezar para que nunca venhamos a precisar do testemunho de Desdemona para
apanhar estes filhos da puta. Um advogado da polícia dir-me-ia que Desdemona é o
maior erro que cometi neste caso, mas estou disposto a seguir os instintos que me
dizem que ela é irrelevante, apesar do atentado contra a sua vida. O amor não me
faria perder os instintos de polícia. Céus, e como a amo! Quando ela me apareceu
na varanda, percebi num segundo que a amava mais do que a mim próprio. É a luz da
minha vida."
- Tiveste alguma sorte com o vestido cor-de-rosa, Carmine? -perguntou Danny
Marciano.
- Não, nada. Mandei alguém verificar todas as lojas que vendem vestidos de criança,
de uma ponta à outra do estado, mas vestidos de festa de mais de cem dólares
parecem ser demasiado finos para os gostos do Connecticut. O que é estranho, tendo
em conta que no Connecticut existem algumas das zonas mais ricas do país.
- As mães ricas passam a vida a conduzir os seus Cadillacs de um centro comercial
para o outro - disse Silvestri. - Vão ao Filene's em Boston, por amor de Deus!
E a Manhattan.
- Bem visto - disse Carmine com um sorriso. - Estamos a examinar as Páginas
Amarelas, desde o Maine a Washington. Quem quer atacar uma pilha de panquecas com
bacon
e xarope na porta do lado?
"Pelo menos recuperou o apetite", pensou Patrick, acenando em sinal de
assentimento. "Só Deus sabe o que ele vê naquela inglesa, mas não é nada parecida
com a ex-mulher.
Pelo menos não se embeiçou outra vez por uma brasa, embora, quanto mais eu a vejo,
menos a considero propriamente feia. Uma coisa é certa, tem miolos e sabe usá-los.
Isso deve ser atraente para um homem como Carmine."

304

- Oh, o Addison foi ao Hug - disse Robin Forbes a Carmine, em tom animado, quando
ele apareceu em sua casa.
- Parece estar feliz - observou ele.
- Tenente, há três anos que vivo no inferno - disse ela, caminhando com passo
enérgico. - Depois daquele ataque cardíaco, o Addison convenceu-se de que a morte
não
tardaria. Tinha tanto medo! As corridas, não comia nada senão fruta e legumes...
tenho de ir a Rhode Island para encontrar uma posta de peixe que ele não rejeite.
Estava convencido de que um choque o mataria, por isso esforçava-se ao máximo para
evitar qualquer choque. Depois, esta manhã, encontrou aquela pobre rapariga e
apanhou um choque... um choque tremendo. Mas nem sequer se sentiu mal, e obviamente
que não morreu. - De olhos a brilhar, deu um passo de dança. - Voltámos a ter
uma vida normal.
Sem fazer a mínima ideia de que Addison Forbes tinha fantasias homicidas sobre a
mulher, Carmine partiu depois de dar mais uma volta à propriedade, pensando que
realmente havia sempre um lado bom em todas as coisas más. O Dr. Addison Forbes
seria agora um homem muito mais feliz - pelo menos até os advogados de Roger Parson
Júnior encontrarem uma cláusula no testamento do tio William que pudessem
contestar. Faria parte do esquema do Fantasma destruir o Hug, para além de acabar
com a
vida destas bonitas jovens? E se assim fosse, porquê? Seria possível que, ao
destruírem o Hug, quisessem realmente destruir o professor Robert Mordent Smith? Se
assim era, estavam no bom caminho para o sucesso. E onde é que Desdemona encaixava?
Passara o pequeno-almoço a interrogá-la, à boa maneira implacável da polícia:
teria visto alguma coisa que estivesse de alguma forma sepultada sob as suas
memórias conscientes? Estaria a passar por alguma rua quando uma das raparigas fora
raptada? Alguém no Hug lhe teria dito alguma coisa inapropriada?

305

Alguma coisa invulgar se intrometera no decorrer normal dos seus dias? A todas
estas perguntas, que ela suportou pacientemente, perdendo mesmo algum tempo a
reflectir
sobre elas, a resposta tinha sido uma negativa convicta.
Depois de uma passagem infrutífera pelo Hug, Carmine entrou de novo no Ford e
conduziu em direcção a Merrit Parkway, a estrada para Nova Iorque que passava por
Trumbull.
Embora não esperasse conseguir autorização para ver o professor, não via razão para
não inspeccionar tanto quanto pudesse das instalações de Marsh Manor, para
confirmar
por si próprio o que a polícia de Bridgeport lhe dissera: era fácil um paciente
escapulir-se das instalações.
Sim, decidiu, passando pelos imponentes portões, a agorafobia manteria mais
pacientes dentro de Marsh Manor do que os seguranças. Não havia seguranças.
Muito bem. E agora? Os Chandras. A sua propriedade ficava perto de Wilbur Cross,
onde o curso aparentemente aleatório da estrada 133 a levava por uma zona de
quintas
e celeiros, no meio de campos agradáveis e pomares de macieiras. Era demasiado
tarde para ter outra conversa com Chandra no Hug - sexta-feira fora o seu último
dia
de trabalho, tanto dele como de Cecil.
A casa não estava à escala do manicómio de Marsh Manor, mas a propriedade recordava
a Carmine um complexo de Cape Cod, com meia dúzia de residências espalhadas pelos
terrenos; embora esta, com quatro hectares, fosse muito maior. Se Carmine ficou
impressionado, foi ao ver quanta organização era necessária para criar uma vida de
luxo para duas pessoas e algumas crianças com dinheiro de sobra. Sem dúvida que os
Chandras teriam um gestor, um vice-gestor

306

e um gestor especializado, para além do exército de lacaios de turbante. Estava


tudo estruturado de modo a que os Chandras não tivessem sequer de se aperceber do
esforço envolvido. Um estalar de dedos, metaforicamente, e o que desejavam aparecia
de imediato.
- É muito inconveniente - disse o doutor Nur Chandra, falando com Carmine na
imponente biblioteca -, mas necessário, tenente. O Hug era perfeito para as minhas
necessidades,
incluindo no que diz respeito ao Cecil.
- Então porquê partir? - perguntou Carmine. Chandra fez uma expressão desdenhosa.
- Oh, por favor, meu bom homem, certamente que vê que o Hug acabou? O Robert Smith
não voltará, e disseram-me que os directores Parson estão à procura de uma maneira
para deixarem de financiar o Hug. Portanto prefiro sair já, enquanto as coisas
estão em curso, do que esperar e ter de passar por cima de mais cadáveres. Preciso
de partir enquanto este monstro ainda está em acção, para poder eliminar qualquer
suspeita a meu respeito. Pois não conseguirão apanhá-lo, tenente.
- Isso parece-me tudo muito bem e lógico, doutor Chandra, mas suspeito que a
verdadeira razão pela qual está tão ansioso por partir tem a ver com os seus
macacos.
As suas hipóteses de os levar consigo, no meio do caos actual, são muito maiores do
que quando os Parsons estiverem a prestar mais atenção à situação do Hug do que
a um testamento. Na verdade, o senhor está a escapulir-se com perto de um milhão de
dólares em propriedade do Hug, diga o que disser o seu contrato.
- Oh, muito perspicaz, tenente! - disse Chandra em tom apre-ciativo. - É
precisamente por isso que quero partir já. Depois de eu me ter ido embora e levado
os macacos
comigo, será um facto consumado. Resolver a situação, em termos legais e
logísticos, será um pesadelo.
- Os macacos ainda estão no Hug?
- Não, estão aqui, em instalações temporárias. Com o Cecil Potter.

307

- E quando tenciona partir para o Massachusetts?


- As coisas já estão em andamento. Eu, a minha mulher e os meus filhos partiremos
na sexta-feira. O Cecil e os macacos vão amanhã.
- Ouvi dizer que comprou uma bela casa perto de Boston.
- Sim. Muito parecida com esta, na verdade.
Surina Chandra entrou nesse momento, vestindo um sari escarlate bordado com fio
dourado, os braços, pescoço e cabelo a cintilarem com o brilho das jóias. Atrás
dela
vinham duas meninas com aproximadamente sete anos de idade - gémeas, pensou
Carmine, estupefacto com a sua beleza. Mas a emoção desapareceu num segundo, assim
que
olhou para as roupas delas. Vestidos iguais, de renda coberta de pedras brilhantes,
com saias rodadas e rígidas e mangas de balão. Ambos de um verde-claro etéreo.
De alguma forma, conseguiu disfarçar os seus sentimentos durante as apresentações.
As meninas, Leela e Nuru, eram de facto gémeas; crianças recatadas, com enormes
olhos negros e cabelo preto preso em tranças tão grossas como cordas de amarração,
caídas sobre os seus ombros. Tal como a mãe, cheiravam a algum perfume oriental
de que Carmine não conseguia gostar - almiscarado, pesado, tropical. Tinham
diamantes nas orelhas que faziam as pedras dos vestidos parecerem de plástico.
- Gosto muito dos vossos vestidos - disse às gémeas, agachando-se para ficar ao
nível delas mas sem se aproximar muito.
- Sim, são bonitos - disse a mãe. - É difícil encontrar este tipo de indumentária
para crianças na América. Claro que mandamos vir muitos da índia, mas quando elas
viram estes ficaram encantadas.
- Se não é indiscrição, Mrs. Chandra, onde é que encontrou os vestidos?
- Num centro comercial, não muito longe de onde vamos viver. Uma loja para meninas
encantadora, melhor do que qualquer uma que vi no Connecticut.
- Pode dizer-me onde fica o centro comercial?

308

- Oh, céus, receio que não. Parecem-me todos iguais e ainda Dão conheço bem a zona.
- Suponho que não se lembra do nome da loja, então? Ela riu-se, mostrando os dentes
brancos e brilhantes.
- Uma vez que cresci com as obras de J. M. Barrie e Kenneth Grahame, claro que sim!
Chamava-se Sininho.
E saíram as três, as gémeas acenando-lhe timidamente.
- As minhas filhas gostaram de si - disse Chandra.
Simpático, mas pouco importante.
- Posso usar o seu telefone, doutor?
- Com certeza, tenente. Vou dar-lhe alguma privacidade.
"Pelo menos ninguém os pode acusar de falta de maneiras, mesmo que a ética deles
seja diferente", pensou Carmine enquanto marcava o número de Marciano, com os dedos
a tremer.
- Sei de onde vieram os vestidos - disse, sem preâmbulos. -Sininho. Sininho, como
na história. Há uma loja num centro comercial nos arredores de Boston, mas pode
haver outras. Começa a procurar.
- Duas lojas - disse Marciano quando Carmine entrou. - Em Boston e em White Plains,
ambas em centros comerciais finos. Tens a certeza disto?
- Absoluta. Duas das filhas do Chandra traziam vestidos idênticos ao da Margaretta,
excepto na cor. Estes eram verdes. A questão agora é saber qual das duas Sininhos
colheu a preferência dos nossos Fantasmas.
- A de White Plains. É mais perto, a menos que eles vivam perto da fronteira do
Massachusetts. O que também é possível, claro.
- Nesse caso, o Abe pode ir a Boston amanhã, e eu fico com a de White Plains. Meu
Deus, Danny, finalmente temos uma pista!

309

Capítulo Vinte e Três

A loja Sininho, em White Plains, ficava num centro comercial de roupas elegantes e
lojas de mobílias, intercaladas com as inevitáveis mercearias de luxo, restaurantes
de comida rápida, lojas de tapetes e lavandarias. Havia também vários restaurantes
que serviam mais almoços do que jantares. O edifício era novo e tinha dois pisos,
mas os proprietários da Sininho eram demasiado astutos para a colocarem no piso de
cima. Ficava no piso térreo, junto à entrada.
Era, reparou Carmine enquanto inspeccionava a loja do exterior, um estabelecimento
bastante grande, inteiramente dedicado a roupas para crianças do sexo feminino.
Estava a decorrer um saldo de sobretudos e roupa de Inverno; aqui não havia
material feito de nylon barato, era tudo de fibras naturais. Havia até, viu, uma
secção
dedicada a peles verdadeiras, do outro lado de um arco que dizia Kiddiminx. Várias
dezenas de clientes vasculhavam as prateleiras, apesar de ser cedo, algumas com
crianças pela mão, outras sozinhas. Nenhum dos clientes era homem. O polícia que
havia nele perguntou-se se haveria muitos roubos numa loja como esta.
Entrou com tanta confiança quanta conseguiu reunir, parecendo - e sentindo-se -
completamente deslocado. Pelos vistos devia ter um letreiro de néon na testa a
piscar
com a palavra polícia, pois

310

as mulheres afastavam-se rapidamente dele e as empregadas da loja começaram a


juntar-se.
- Posso falar com a gerente, por favor? - pediu a uma pobre rapariga que não
conseguira integrar-se no grupinho a tempo.
Oh, óptimo, podiam tirá-lo dali! A rapariga conduziu-o imediatamente para a parte
de trás da loja e bateu a uma porta.
Mrs. Giselle Dobchik mandou-o entrar para um cubículo minúsculo, atafulhado de
caixas de cartão e armários de arquivo; de um lado da mesa, que servia de
secretária
a Mrs. Dobchik, havia um cofre, mas não sobrava espaço para uma segunda cadeira. A
reacção dela ao ver o distintivo de Carmine foi de interesse imperturbável; mas,
por outro lado, Mrs. Dobchik parecia o tipo de pessoa a quem pouca coisa conseguia
perturbar. Quarenta e poucos anos, muito bem vestida, cabelo louro, unhas pintadas
de vermelho e não demasiado compridas, para não se prenderem na mercadoria.
- Reconhece isto, minha senhora? - perguntou, tirando da pasta o vestido de renda
que Margaretta vestira e, de seguida, o vestido lilás de Faith. - Ou isto?
- São quase de certeza da Sininho - disse ela, começando a apalpar as costuras, de
testa franzida. - As nossas etiquetas foram removidas, mas sim, posso garantir-lhe
que são genuínos vestidos Sininho. Temos truques especiais com as pedras.
- Suponho que não se lembra de quem os comprou?
- Podem ter sido várias pessoas, tenente. Os vestidos são ambos tamanho dez... ou
seja, para crianças entre os dez e os doze anos. Depois dos doze, as raparigas
têm tendência a parecerem-se mais com mulherzinhas do que com fadas. Temos sempre
em armazém um vestido de cada modelo e cor para cada tamanho, mas dois era
complicado.
Venha comigo.
Carmine seguiu-a para fora do gabinete, até uma grande área repleta de vestidos
brilhantes e pregueados, arrumados em dezenas de cabides compridos, e compreendeu
o que ela quisera dizer com "dois era complicado"; devia haver para cima de dois
mil vestidos,

311

em tons que iam do branco ao vermelho escuro, todos cobertos de pedras brilhantes,
pérolas ou contas opalescentes.
- Seis tamanhos, dos três aos doze anos, vinte modelos diferentes e vinte cores
diferentes - disse ela. - Somos famosos por estes vestidos, compreende... vendem-se
assim que chegam às prateleiras. - Soltou uma risada. - Afinal de contas, não pode
haver duas meninas com o mesmo modelo e a mesma cor na mesma festa! Vestir um
vestido Sininho é um sinal de posição social. Pergunte a qualquer mãe ou criança no
condado de Westchester. A marca estende-se ao Connecticut... muitos dos nossos
clientes vêm dos condados de Fairfield e Litchfield.
- Depois de ir buscar os meus vestidos e a minha pasta, posso convidá-la para
almoçar, Mrs. Dobchik? Ou talvez para um café? Sinto-me como um touro numa loja de
porcelana, e de certeza que a minha presença não é boa para o negócio.
- Obrigada, um intervalo vai saber-me bem - disse Mrs. Dobchik.
- Aquilo que disse, sobre duas raparigas não poderem aparecer com vestidos Sininho
iguais na mesma festa, leva-me a crer que a loja deve ter registos bastante
detalhados
- disse ele pouco tempo depois, bebendo um leite com chocolate por uma palhinha;
influências de estar no meio de tanta coisa infantil.
- Oh, sim, tem de ser. Simplesmente os dois modelos que me mostrou existem há já
alguns anos, pelo que vendemos muitos exemplares. A renda cor-de-rosa já existe
há cinco anos, a lilás há quatro. Os seus exemplares estão tão maltratados que não
é possível dizer exactamente quando foram feitos.
- Onde é que são fabricados?
Ela mordiscou um biscoito, apreciando claramente o seu papel de especialista.
- Temos uma pequena fábrica em Worcester, Massachusetts. A minha irmã gere a loja
de Boston, eu a de White Plains, o nosso irmão gere a fábrica. É um negócio de
família... somos os únicos proprietários.

312

- Costumam aparecer homens a fazer compras?


- Às vezes, tenente, mas regra geral os clientes da Sininho são mulheres. Os homens
podem comprar lingerie para as esposas, mas geralmente evitam comprar vestidos
de festa para as filhas.
- Alguma vez vendeu dois vestidos do mesmo tamanho e cor ao mesmo comprador, no
mesmo dia? Para gémeas, por exemplo?
- Sim, acontece, mas envolve uma espera de um dia para mandarmos vir o segundo
vestido. As senhoras com gémeas encomendam antecipadamente.
- E se alguém comprasse, por exemplo, o meu de renda cor-de-rosa e o lilás de seja
lá o que for...
- Bordado inglês - interrompeu ela.
- Obrigado, vou tomar nota. Alguém compraria dois modelos de cores diferentes e do
mesmo tamanho no mesmo dia?
- Só aconteceu uma vez - disse, e suspirou de prazer com a recordação. - Oh, que
venda! Doze vestidos de tamanho dez-doze, todos de cores e modelos diferentes.
Carmine sentiu os cabelos da nuca arrepiarem-se.
- Quando?
ei - Perto de finais de mil novecentos e sessenta e três, julgo eu. Posso
verificar.
- Antes de voltarmos e de me fazer esse favor, Mrs. Dobchik, lembra-se de quem era
essa compradora? Como é que ela era?
- Lembro-me muito bem - disse a testemunha perfeita. - Não sei o nome dela... pagou
em dinheiro. Mas estava na faixa etária das avós. Cerca de cinquenta e cinco
anos. Vestia um casaco de pele de marta e um elegante chapéu do mesmo material,
tinha cabelo pintado, estava bem maquilhada, mas sem exageros, tinha nariz grande,
olhos azuis, óculos bifocais muito elegantes e uma voz agradável. A mala e os
sapatos eram Charles Jourdan, a condizer, e calçava luvas de pelica castanhas, como
os sapatos e a mala. Um motorista uniformizado levou as caixas para a limusina. A
viatura era um Lincoln preto.
- Não parece ser uma pessoa que precisasse de descontos.

313

- Valha-me Deus, claro que não! Até hoje, é a maior venda de vestidos de festa que
alguma vez fizemos. Cento e cinquenta dólares cada, mil e oitocentos dólares.
Ela pagou com notas de cem que tirou de um maço com cinco centímetros de altura.
- Por acaso perguntou-lhe por que razão estava a comprar tantos vestidos de festa
do mesmo tamanho?
- Claro que sim... quem não perguntaria? Ela sorriu e disse-me que era a
representante local de uma organização de caridade que ia mandar os vestidos para
um orfanato
em Buffalo, como prendas de Natal.
- E acreditou? Giselle Dobchik sorriu.
- É tão credível como comprar doze vestidos do mesmo tamanho, não é?
- Suponho que sim.
Voltaram à loja, onde Mrs. Dobchik procurou o registo da venda. Não tinha o nome.
- Tirou os números de série das notas - observou Carmine. -Porquê?
- Na altura andava a circular dinheiro falso, por isso liguei para o banco enquanto
as empregadas embalavam os vestidos.
- E as notas não eram falsas?
- Não, eram genuínas, mas o banco ficou interessado nelas porque tinham sido
emitidas em mil novecentos e trinta e três, pouco depois de termos abandonado o
padrão
ouro, e estavam como novas - Mrs. Dobchik encolheu os ombros. - Como se eu me
importasse. Eram moeda legal. O gerente do meu banco pensou que tivessem estado
amealhadas
em casa.
Carmine estudou a lista de dezoito números.
- Concordo. Os números são consecutivos. Muito invulgar, mas não me ajuda em nada.
- Isto está relacionado com algum caso grande e excitante? -perguntou Mrs. Dobchik
enquanto o acompanhava à porta.

314

- Receio que não, minha senhora. Apenas mais um caso de falsificação.


- Sabemos que os Fantasmas planearam a segunda série de homicídios antes de
começarem a primeira - disse Carmine a uma assistência fascinada. - A venda foi
feita
em Dezembro de mil novecentos e sessenta e três, muito antes de a primeira vítima,
Rosita Esperanza, ter sido raptada. Eles assassinaram doze raparigas, uma de dois
em dois meses, ao longo de dois anos, com doze vestidos Sininho empacotados em
naftalina para o dia em que seriam usados. Quem quer que eles sejam, não estão a
seguir
o ciclo da Lua, que é o que os psiquiatras querem pensar, agora que reduziram o
intervalo para trinta dias. A Lua não tem nada a ver com os Fantasmas. Eles estão
a seguir o ciclo do Sol... doze, doze, doze.
- A descoberta da origem dos vestidos ajuda? - perguntou Silvestri.
- Não, enquanto não houver um julgamento.
- Mas primeiro, temos de encontrar os Fantasmas - disse Marciano. - Quem achas que
será essa avozinha, Carmine?
- Um dos Fantasmas.
- Mas disseste que não eram crimes de mulheres.
- E continuo a pensar o mesmo, Danny. No entanto, é muito mais fácil um homem
disfarçar-se de uma senhora de idade do que de uma mulher jovem. A pele áspera e as
rugas não chamam tanto a atenção.
- Adoro os adereços - disse Silvestri secamente. - Casacos de pele de marta,
motorista e limusina. Podemos seguir a pista da limusina?
- Vou pôr o Corey a tratar disso amanhã, John, mas não tenho muita esperança. O
motorista era o outro Fantasma, calculo. É engraçado, Mrs. Dobchik lembrava-se de
todos os detalhes sobre a

315

compradora, até ao pormenor dos óculos bifocais, mas não se recorda de


absolutamente nada sobre o motorista, para além do fato preto, boné e luvas de
cabedal.
- Não, isso é lógico - disse Patrick. - A tua Mrs. Dobchik está no negócio do
vestuário. As suas clientes são mulheres ricas, não homens trabalhadores. Ela
arquiva
as mulheres na memória e conhece todo o tipo de peles, todas as marcas de malas e
sapatos franceses. Aposto que a avozinha não tirou as luvas de pelica nem por um
segundo, mesmo quando tirou as notas do maço.
- Tens razão, Patsy. Esteve sempre de luvas. Silvestri gemeu.
- Então não estamos mais perto dos Fantasmas.
- De certa forma não, John, mas fizemos progressos. Uma vez que eles não deixam
quaisquer evidências e ninguém conseguiu dar-nos uma descrição, estamos à procura
de uma agulha num palheiro. Quantas pessoas há no Connecticut, três milhões? E é um
estado bastante pequeno... não tem grandes metrópoles, apenas uma dúzia de cidades
maiores, cem mais pequenas. Bom, esse é o nosso palheiro. Mas pouco tempo depois de
estar metido neste caso, percebi que procurar a agulha não é o melhor caminho
a seguir. Os vestidos da Sini-nho podem parecer mais um beco sem saída, mas não
acredito que seja bem assim. Temos mais um prego no caixão, um novo fragmento de
evidência. Tudo o que nos dê a conhecer um facto novo sobre os Fantasmas deixa-nos
mais próximo deles. O que temos aqui é um puzzle só com peças de céu azul, mas
os vestidos da Sininho preencheram um espaço vazio. A quantidade de céu preenchido
está a aumentar.
Carmine inclinou-se para a frente, entusiasmado com a ideia.
- Primeiro, um Fantasma transformou-se em dois Fantasmas. Segundo, os dois
Fantasmas são muito chegados, como irmãos. Não sei de que cor é a pele deles, mas o
que
vêm na sua mente é um rosto. Mais do que qualquer outra coisa, um rosto. O tipo de
rosto que não se encontra em raparigas brancas, nem muito frequentemente em
raparigas
negras. Os Fantasmas trabalham como uma

316

equipa no verdadeiro sentido da palavra... cada um tem tarefas específicas, áreas


de especialização. Isso provavelmente alarga-se ao que fazem com as vítimas depois
de elas serem capturadas. A violação excita-os, mas a vítima tem de ser virgem em
todos os sentidos... não estão interessados em namoradeiras com o hímen intacto.
Um dos Fantasmas dá à vítima o seu primeiro beijo, portanto talvez seja o outro a
desflorá-la. Vejo uma continuação do trabalho de equipa... tu fazes isto, eu faço
aquilo. Quanto à morte propriamente dita, não tenho a certeza, mas suspeito que
será o Fantasma subserviente a tratar disso. É ele que trata da limpeza. A única
razão pela qual guardam as cabeças, é o rosto, o que significa que, quando os
encontrarmos, vamos encontrar todas as cabeças, desde a Rosita Esperanza. Enquanto
as suas actividades não eram conhecidas pela polícia, divertiam-se com os raptos em
plena luz do dia, mas, depois da Francine Murray, começaram a ficar apertados.
Estou a começar a pensar que mudaram para a noite devido à maior atenção policial,
e não como parte de um novo método conscientemente concebido. Os raptos nocturnos
são menos arriscados, pura e simplesmente.
Patrick semicerrou os olhos como se estivesse a focar uma coisa muito pequena.
- O rosto - disse. - É a primeira vez que te oiço pôr de lado os outros critérios,
Carmine. O que te faz pensar que seja apenas o rosto? Por que razão puseste de
lado a cor da pele, o credo, a raça, o tamanho, a inocência?
- Oh, Patsy, sabes muito bem quantas vezes estive fixado em todos e em cada um
desses aspectos, mas finalmente decidi-me pelo rosto. Ocorreu-me no caminho... bam!
- Deu um murro na palma da mão. - Foi a Margaretta Bewlee que mo disse. A minha
pérola negra, depois de uma dúzia de pérolas claras. O que é que ela tinha em comum
com as outras raparigas? E a resposta é, o rosto. Nada excepto o rosto. Feição a
feição, o rosto dela é igual ao das outras todas. Distraí-me com as diferenças,
ao ponto de não me aperceber da única semelhança... o rosto.

317

- E a inocência? - perguntou Marciano. - Ela também tinha esse ponto em comum com
as outras.
- Sim, é um facto. Mas a inocência não é o que leva os nossos dois Fantasmas a
raptarem estas raparigas. É o rosto. Se uma rapariga não tivesse o rosto, mesmo que
fosse a menina mais inocente do mundo, isso não levaria os Fantasmas a
interessarem-se nela. - Fez uma pausa, de testa franzida.
- Continue, Carmine - disse Silvestri.
- Os Fantasmas... ou talvez um deles... conheceram alguém com aquele rosto. Alguém
a quem odeiam mais do que ao resto da humanidade toda junta.
Escondeu o rosto nas mãos e enfiou os dedos no cabelo.
- Um deles, ou ambos? O dominante, com certeza, enquanto o submisso pode estar
metido nisto apenas para participar de uma viagem fantástica... é o servo, odeia
quem
o dominante odeia. Quando me disseste que os Fantasmas não estavam interessados em
seios, Patsy, preencheste mais algumas peças de céu. O peito liso, os órgãos
genitais
depilados. Isso sugere que a possuidora desse rosto que eles odeiam era pré-
adolescente, e contudo... se assim é, por que raio não raptam raparigas pré-
adolescentes?
Não lhes falta a coragem nem a inteligência para isso. Então, será a possuidora
desse rosto alguém que pelo menos um dos Fantasmas conheceu desde a infância à
adolescência?
Que odiou mais enquanto mulher do que enquanto criança? É para este enigma que não
tenho resposta.
Silvestri tirou o charuto da boca, excitado.
- Mas eles estão a ir mais longe com o aspecto de criança nesta segunda fase,
Carmine. Vestidos de festa de criança.
- Se soubéssemos quem possuía originalmente o rosto que eles odeiam, saberíamos
quem são os Fantasmas. Passei toda a viagem, desde White Plains, a rever
mentalmente
as casas de cada Hugger, à procura daquele rosto na parede de alguém, mas não está
nas paredes de nenhum dos Huggers.

318

- Ainda acreditas que tem a ver com o Hug? - perguntou Marciano.


- Um dos Fantasmas é, decididamente, um Hugger. O outro não. Este último é o que
faz as perseguições, talvez alguns dos raptos sozinho. Sempre soubemos que tinha
de ser um Hugger, Danny. Sim, podemos argumentar que os corpos podiam ter sido
postos em qualquer um dos frigoríficos para animais mortos da Faculdade de
Medicina,
mas onde, para além do Hug, é possível levar dois a dez sacos volumosos de um carro
para o frigorífico sem ser visto? Isso implica várias viagens. Há pessoas a entrar
e a sair dos parques de estacionamento vinte e quatro horas por dia, enquanto o
parque do Hug tem um portão fechado e está completamente deserto, por exemplo, às
cinco da manhã. Reparei que há um grande carrinho de compras acorrentado à parede
das traseiras do Hug, para ajudar os investigadores a levarem os seus livros e
papéis para dentro. Não estou a dizer que os Fantasmas não podiam ter utilizado
outros frigoríficos, estou simplesmente a dizer que usar o do Hug é mais fácil e
mais simples.
- Fácil e simples é sempre melhor - disse Silvestri. - Estamos de acordo em relação
ao Hug, então.
- Bem podes rezar para que não seja a Desdemona, Carmine -disse Patrick.
- Oh, tenho a certeza de que não é a Desdemona.
- Ah! - exclamou Patrick, ficando tenso. - Suspeitas de alguém! Carmine respirou
fundo.
- Não suspeito de ninguém, e é isso que mais me preocupa. Devia suspeitar de
alguém, então por que não suspeito? O que tenho é a sensação de que estou a deixar
passar
qualquer coisa que está mesmo debaixo do meu nariz. Nos meus sonhos é claro como
água, mas quando acordo desapareceu. Só me resta continuar a pensar.

319

- Fala com a Eliza Smith - disse Desdemona, com a cabeça apoiada no ombro de
Carmine; ele transferira-a para o seu apartamento no dia após o seu visitante
nocturno.
- Sei que não me dizes nada de verdadeiramente importante, mas estou convencida de
que tu acreditas que o Fantasma é um Hugger. A Eliza faz parte do Hug desde o
início e, apesar de ela nunca meter o nariz onde não é chamada, sabe muita coisa
que as outras pessoas não sabem. O professor fala com ela, às vezes, como quando
está aborrecido por causa do pessoal... a Tâmara é bastante difícil, o Walt
Polonowski tem os seus momentos, bem como o Kurt Schiller. A Eliza licenciou-se em
psicologia
na Smith e fez o mestrado na Chubb. Não sou grande fã de psicólogos, mas o
professor respeita muito as opiniões dela. Vai falar com ela.
- O professor alguma vez precisou de falar com a Eliza sobre ti?
- Com certeza que não! Em certa medida, eu movo-me numa órbita exterior,
dessincronizada com todas as outras órbitas... um pouco como música desafinada. Sou
encarada
como uma contabilista, não uma cientista, e isso faz com que não tenha qualquer
importância para o professor - aconchegou-se mais a ele. - Estou a falar a sério,
Carmine. Fala com a Eliza Smith. Sabes perfeitamente que será a falar que este caso
se resolverá.

320

Parte Quatro

Fevereiro e Março de 1966

Capítulo Vinte e Quatro

No seguimento do degelo, Carmine andou demasiado ocupado para ir visitar Mrs. Eliza
Smith, até quase uma semana depois da conversa com Desdemona. Além disso, não
estava a ver o que Mrs. Smith poderia trazer de novo à sua investigação.
Principalmente agora, que já se sabia que o professor não ia regressar ao Hug.
As temperaturas subiram e o vento decidiu abrandar; de um gelo terrível, o tempo
tornou-se quase ideal para manifestações, suficientemente fresco para usar roupas
quentes, mas não desagradável. A tampa gelada sobre a agitação racial a nível
estadual derreteu; a violência rebentou por todo o lado.
Em Holloman, Mohammed el Nesr proibiu severamente os motins, pois não fazia parte
dos seus planos, nesta fase, arriscar uma detenção ou mandatos de busca. De todos
os grupos de pessoas negras descontentes que estavam a causar distúrbios, apenas a
Brigada Negra possuía um arsenal formidável, muito além das pistolas que podiam
ser roubadas de lojas de armamento ou casas particulares. E ainda não era altura de
revelar a presença desse arsenal. Apesar disso, Mohammed organizava manifestações
implacavelmente. E, apesar de ele esperar uma maior afluência, o número de pessoas
que se tinham reunido era suficiente para colocar grupos de gente aos gritos e
a agitar os punhos em frente da Câmara, do edifício

323

dos Serviços Municipais, da Administração da Chubb, da estação de caminhos de


ferro, da estação de autocarros, da residência oficial de M. M., e, claro, do Hug.
Todos os cartazes tinham a ver com a brancura, inviolabilidade e vítimas
racialmente seleccionadas do Monstro do Connecticut.
- Afinal de contas - disse Wesley Ali ansiosamente a Mohammed -, o que queremos é
sublinhar a discriminação racial. As adolescentes brancas estão em segurança, mas
são as únicas... e esse é um facto que nem o governador, na sua torre de marfim,
pode negar. Cada cidade industrial do Connecticut tem uma população pelo menos
oitenta
por cento negra, o que nos coloca numa posição vantajosa.
Mohammed el Nesr parecia a águia em homenagem à qual fora baptizado, um homem
magnífico, orgulhoso, de nariz adunco, altura e constituição imponentes, com o
cabelo
escondido dentro de um gorro que ele próprio desenhara, uma espécie de turbante com
o topo mais achatado. Ao princípio usara barba, mas depois decidira que a barba
escondia demasiado um rosto que câmara nenhuma conseguia fazer parecer bestial,
cruel ou feio. O punho branco no seu blusão da Brigada Negra era bordado e não
estampado,
e usava-o por cima de calças de combate, movendo-se como o ex-militar que era. Com
o nome de Peter Scheinberg, alcançara o posto de coronel no Exército dos EUA,
portanto era de facto uma águia. Uma águia com dois cursos de Direito.
Por trás do forro de colchões, o quartel-general no número dezoito de Fifteenth
Street estava cheio de livros, pois ele lia insaciavelmente sobre lei, política e
história, estudava o Corão com fervor e sabia que era um líder de homens. No
entanto, ainda estava à procura da melhor forma para fazer a sua revolução; as
cidades
industriais talvez gozassem das suas grandes maiorias negras, mas o homem branco
possuía toda a nação, e esta, de uma maneira geral, não era maioritariamente
urbana.
A sua primeira inspiração fora recrutar membros para a Brigada Negra entre a
abundância

324

de homens negros nas forças armadas, apenas para descobrir que muito poucos
soldados negros, independentemente do que sentiam a título particular pelo homem
branco,
estavam dispostos a alistar-se. Assim, após a passagem à disponibilidade - com
louvores - migrara para Holloman, pensando que uma cidade pequena era o melhor
local
para começar a cortejar as massas inquietas dos guetos. Acreditara que a ondulação
causada pela pedra que ia atirar para o lago de Holloman se espalharia até abarcar
sítios muito maiores. Sendo um excelente orador, chegara a receber convites para
falar em comícios em Nova Iorque, Chicago, Los Angeles. Mas os líderes locais em
todo o lado invejavam o seu poder e não davam a importância devida a Mohammed el
Nesr. Com cinquenta e dois anos de idade, ele sabia que lhe faltava o dinheiro e
a organização a nível nacional para unir o seu povo como este precisava de ser
unido. Tal como acontecia com outros autocratas, as pessoas diziam-lhe que se
recusavam
a ser conduzidas para onde ele as queria conduzir. Preferiam claramente seguir
Martin Luther King, um pacifista e um cristão.
E agora aqui estava este sanscullote magricela do Luisiana a dar-lhe conselhos.
Como é que deixara as coisas chegarem a este ponto?
- Tenho andado também a pensar - disse Wesley Ali -, sobre o que me disseste há
alguns meses... lembras-te? Disseste que o nosso movimento precisava de um mártir.
Pois bem, estou a tratar disso.
- Óptimo, Ali, trata disso. Entretanto, volta à tua ideia original, o Hug. E à
Eleventh Street.
- Como está a andar o comício de domingo?
- Muito bem. Parece que conseguiremos ter cinquenta mil negros no parque ao meio-
dia. Agora desaparece, Ali, deixa-me continuar a escrever o meu discurso.
Obedecendo às suas ordens, Wesley Ali desapareceu em direcção a Eleventh Street,
onde ia espalhar a palavra de que Mohammed el Nesr falaria no próximo domingo no
parque de Holloman. Não só todos eles tinham de estar presentes, como tinham também
de persuadir

325

os amigos e vizinhos a irem. Mohammed era um orador brilhante e carismático,


elogiou o seu discípulo, e valia muito a pena ouvi-lo. "Venham e fiquem a perceber
como
é que os brancos estão a lixar os negros." Nenhuma criança negra estava segura, mas
Mohammed el Nesr tinha as respostas.
Era uma pena, pensou Wesley Ali com uma parte da mente perpetuamente ocupada, que
nenhum branco pensasse em alvejar Mohammed el Nesr. Que grande mártir ele daria!
Mas estavam no velho e sereno Connecticut, não no Sul ou no Oeste: não havia neo-
nazis, membros do Ku Klux Klan, nem sequer provincianos típicos. Este era um dos
treze estados originais, um paraíso da liberdade de expressão.
Apesar do que Wesley Ali pensava, Carmine sabia que o Connecticut tinha a sua
quota-parte de neo-nazis, membros do Ku Klux Klan e provincianos; sabia também que,
na sua maioria, só tinham conversa, e falar era fácil. Apesar disso, todos os
fanáticos racistas estavam a ser vigiados, pois Carmine estava decidido a que
ninguém
intentasse nada contra Mohammed el Nesr no domingo à tarde. Enquanto Mohammed
planeava o seu comício, Carmine planeava a melhor forma de o proteger: onde
ficariam
os atiradores da polícia, quantos polícias à civil colocaria a patrulhar a
periferia da multidão anti-brancos. Nem por sombras permitiria que Mohammed el Nesr
levasse
um tiro e se transformasse num mártir.
Depois, no sábado à noite, a neve voltou, um nevão de Fevereiro que deixou quarenta
e cinco centímetros no chão, da noite para o dia; um vento cortante, abaixo de
zero, garantiu que não haveria qualquer comício no parque de Holloman. Mais uma
vez, salvo pelo Inverno.

326

Assim, hoje, Carmine tinha tempo para se meter à estrada 133 e ver se Mrs. Eliza
Smith estava em casa. E estava.
- Os rapazes foram para a escola, muito desiludidos. Se o nevão tivesse esperado
pela noite de ontem, hoje não haveria aulas.
- Lamento por eles, mas estou muito contente por mim, Mrs. Smith.
- Por causa do comício negro no parque de Holloman?
- Exactamente.
- Deus ama a paz - foi a única resposta dela.
- Nesse caso, por que é que não a utiliza mais? - perguntou o veterano da guerra
militar e civil.
- Porque, depois de nos ter criado, Ele avançou para outro lugar qualquer num
universo muito grande. Talvez, quando nos criou, tenha colocado uma engrenagem
especial
no nosso maquinismo para nos fazer amar a paz. Depois a engrenagem gastou-se e
pronto! Tarde demais para Deus voltar.
- É uma teoria interessante - disse ele.
- Estive a fazer bolinhos borboleta - disse Eliza, conduzindo-o para a cozinha
artificialmente antiga. - E se eu fizesse um café e os provássemos?
Os bolinhos borboleta, descobriu Carmine, eram pequenos bolos amarelos aos quais
Eliza retirara a parte de cima e recheara com natas batidas, cortando depois a
parte
de cima ao meio e voltando a colocá-la sobre o creme, virada ao contrário; pareciam
de facto asas de borboleta. E eram deliciosos.
- Por favor, tire-mos da frente - pediu ele depois de devorar quatro. - Caso
contrário, sou capaz de os comer todos.
- Está bem - disse ela, levando-os para cima do balcão e voltando a sentar-se. -
Então o que o traz por cá, tenente?
- A Desdemona Dupre. Ela diz que é consigo que eu devo falar sobre as pessoas do
Hug, porque é a senhora quem melhor as conhece. Está disposta a isso, ou quer
mandar-me
dar uma volta?

327

- Há três meses, ter-lhe-ia dito que fosse dar uma volta, mas agora as coisas são
diferentes. - Brincou com a colher de café. - Sabe que o Bob não vai voltar ao
Hug?
- Sim. Parece que toda a gente no Hug sabe disso.
- É uma tragédia, tenente. Ele é um homem destroçado. Sempre houve nele um lado
mais sombrio e, uma vez que o conheço desde sempre, conheço também essa sua faceta.
- O que quer dizer com isso, Mrs. Smith?
- Depressão, um vazio dentro dele, um nada. É como ele lhe chama, uma coisa ou
outra, conforme. O primeiro ataque a sério aconteceu depois da morte da nossa
filha,
Nancy. Leucemia.
- Lamento muito.
- Foi um grande sofrimento para nós - disse ela, pestanejando para afastar as
lágrimas. - A Nancy era a mais velha, morreu aos sete anos. Teria hoje dezasseis.
- Tem algum retrato dela?
- Centenas, mas escondo-os por causa da tendência do Bob para a depressão. Espere
um minuto. - Saiu e regressou pouco depois com uma fotografia a cores de uma
criança
adorável, obviamente tirada antes de a doença a destruir. Cabelo louro
encaracolado. Grandes olhos azuis, os lábios finos da mãe.
- Obrigado - disse ele, pousando a fotografia na mesa, voltada para baixo. -
Presumo que ele recuperou da depressão?
- Sim, graças ao Hug. Ter de cuidar do Hug salvou-o. Mas desta vez não. Vai
refugiar-se nos comboios para sempre.
- Como é que conseguirão viver, em termos financeiros? - perguntou, sem se
aperceber da cobiça com que estava a olhar para os bolos borboleta.
Ela levantou-se para servir mais café e colocou-lhe dois bolos
no prato.
- Aqui tem, coma-os. É uma ordem. - Parecia ter os lábios secos; humedeceu-os com a
língua. - Financeiramente, não temos motivo para preocupações. Ambas as nossas
famílias nos deixaram dinheiro,

328

o que significa que não precisamos de trabalhar para viver. Que perspectiva
horrível para um par de ianques! A ética de trabalho é impossível de erradicar. . -
E
os seus filhos?
- Os nossos fundos passam para eles. São bons rapazes.
- Por que é que o professor lhes bate? Ela não tentou negar.
- O tal lado sombrio. Mas não acontece com muita frequência, honestamente. Apenas
quando eles o aborrecem, como é natural nos rapazes... quando insistem num tema
sensível, ou quando não aceitam um não como resposta. São rapazes normais.
- Estava a pensar se os rapazes se juntariam ao pai para brincar com os comboios.
- Acho - disse Eliza com firmeza -, que ambos os meus filhos preferiam morrer a
entrar naquela cave. O Bob é... egoísta.
- Já tinha reparado - disse Carmine em tom gentil.
- Detesta partilhar os seus comboios. Na verdade, foi por isso que os rapazes
tentaram destruí-los... ele disse-lhe que os danos foram desastrosos?
- Sim, e que tinha demorado quatro anos a reconstruí-los.
- Isso não é verdade. Um rapazinho de sete anos e outro de cinco? Uma tempestade
num copo de água, tenente! Foi mais o trabalho de apanhar as coisas do chão do que
outra coisa. Depois espancou-os impiedosamente... tive de lhe tirar a chibata da
mão à força. E disse-lhe que, se ele alguma vez voltasse a magoar os rapazes
daquela
maneira, iria à polícia. E ele sabia que eu estava a falar a sério. Apesar de ainda
lhes bater, de tempos a tempos. Mas nunca fora de si de fúria, como estava por
causa dos comboios. Não houve mais castigos sádicos. Ele gosta de os criticar por
não estarem à altura da santa da irmã. - Sorriu, um sorriso que não mostrava
qualquer
divertimento. - Mas posso garantir-lhe, tenente, que a Nancy não era mais santa do
que o Bobby ou o Sam.
• - A sua vida não tem sido fácil, Mrs. Smith.

329

- Talvez não, mas não é nada que eu não aguente. Desde que consiga aguentar, está
tudo bem.
Ele comeu os bolos.
- Soberbos - disse com um suspiro. - Fale-me sobre Walter Polonowski e a mulher.
- Estão irremediavelmente enredados numa teia religiosa -disse Eliza, abanando a
cabeça como se isso fosse uma estupidez incrível. - Ela achava que ele desaprovaria
o uso de métodos anticoncepcionais, ele pensava que ela nunca consentiria em usá-
los. Assim, tiveram quatro filhos quando nenhum deles queria tê-los, pelo menos
antes de estarem casados há tempo suficiente para se conhecerem um ao outro. A
adaptação à vida com uma pessoa estranha é difícil, mas muito mais difícil quando
essa pessoa muda perante os nossos próprios olhos no espaço de poucos meses...
vómitos, inchaço, queixas, enfim, o habitual. A Paola é muitos anos mais nova do
que
o Walt... oh, ela era uma rapariga tão bonita! Muito parecida com a Marian, a nova.
Quando a Paola descobriu sobre a Marian, devia ter fechado a boca e conservado
o Walt como meio de subsistência. Assim, vai ter de criar quatro filhos com meia
dúzia de tostões, porque com certeza que não pode trabalhar. O Walt não lhe vai
dar um cêntimo a mais do que é obrigado. Vão vender a casa, mas, uma vez que está
hipotecada, a parte da Paola será pouco ou nada. Para piorar os problemas do Walt,
a Marian está grávida. Isso significa que terá de sustentar duas famílias. Terá de
passar para a clínica geral, o que é verdadeiramente uma pena. Ele é um
investigador
muito bom.
- A senhora é muito pragmática, Mrs. Smith.
- Alguém nesta família tem de o ser.
- Ouvi um rumor da boca de várias pessoas - disse ele lentamente, sem olhar para
ela -, de que o Hug terá chegado ao fim, pelo menos na sua forma actual.
- Tenho a certeza de que os rumores são verdadeiros, o que tornará as decisões mais
fáceis para alguns dos Huggers. O Walt Polonowski,

330

por exemplo. Ou o Maurie Finch. Entre a tentativa de suicídio do Kurt Schiller e a


descoberta do corpo daquela pobre rapariga, o Maurie Finch é outro homem
destroçado.
Não da mesma forma que o Bob, mas destroçado, ainda assim. - Suspirou. - No
entanto, de quem tenho mais pena é do Chuck Ponsonby.
- Porquê? - perguntou ele, surpreendido com esta nova visão de Ponsonby, o homem
que ele simplesmente presumira que seria o herdeiro do professor. Por mais que o
Hug mudasse, Ponsonby certamente que sobreviveria aos melhores.
- O Chuck não é um investigador brilhante - disse Eliza Smith numa voz
cuidadosamente neutra. - O Bob tem-no trazido ao colo desde que o Hug abriu. É a
mente do
Bob que orienta o trabalho do Chuck, e ambos sabem disso. É uma conspiração entre
eles. Para além de mim, acho que mais ninguém tem a mínima ideia.
- Por que razão o professor faria uma coisa dessas, Mrs. Smith?
- Velhos laços, tenente... extremamente antigos. Somos da mesma linhagem ianque, os
Ponsonby, os Smith e os Courtenay, a minha família. As amizades remontam a várias
gerações, e eu e o Bob vimos os caprichos do destino destruírem os Ponsonby.
- Caprichos do destino?
- O Len Ponsonby, o pai do Chuck e da Claire, era tremendamente rico, tal como os
seus antepassados. A Ida, a mãe deles, vinha de uma família endinheirada do Ohio.
Depois o Len Ponsonby foi assassinado. Deve ter sido em mil novecentos e trinta,
pouco depois da queda da Bolsa. Foi espancado até à morte, em frente da estação
ferroviária de Holloman, por um bando de trabalhadores itinerantes descontrolados.
Mataram também duas outras pessoas. Oh, pôs-se as culpas na Depressão, no álcool
de contrabando, esse tipo de coisas! Nunca apanharam ninguém. Mas o dinheiro do Len
tinha desaparecido na queda da Bolsa, o que deixou a pobre Ida praticamente na
miséria. Sobreviveu com a venda das terras dos Ponsonby. Uma mulher corajosa!

331

- Como é que conheceu o Chuck e a Claire? - perguntou Carmine, fascinado com o que
se podia esconder por trás das fachadas públicas.
- Andámos todos juntos na Escola Dormer Day. O Chuck e o Bob estavam quatro anos à
frente de mim e da Claire.
- Da Claire? Mas ela é cega!
- Isso aconteceu quando ela tinha catorze anos. Em mil novecentos e trinta e nove,
pouco depois de a guerra rebentar na Europa. A visão dela sempre fora má, mas
nessa altura sofreu um descolamento de retina em ambos os olhos ao mesmo tempo,
devido a retinite pigmentosa. Ficou completamente cega de um dia para o outro,
literalmente.
Oh, foi terrível. Como se aquela pobre mulher e os seus três filhos não tivessem já
sofrido o suficiente!
- Três filhos?
- Sim, os dois rapazes e a Claire. O Chuck é o mais velho, depois havia o Morton e
finalmente a Claire. O Morton era louco, não falava nem parecia perceber que havia
mais pessoas no mundo. A luz dele não se apagou, tenente. Simplesmente nunca chegou
a estar acesa. E tinha ataques de violência. O Bob diz que hoje em dia ele seria
diagnosticado como autista. Por isso o Morton nunca foi à escola.
- Chegou a vê-lo?
- De vez em quando, embora a Ida Ponsonby, com medo de que ele tivesse um dos seus
ataques de fúria, costumasse fechá-lo quando nós íamos brincar lá para casa. Mas
não íamos muitas vezes. O Chuck e a Claire vinham para minha casa ou íamos para
casa do Bob.
Com a mente num turbilhão, Carmine tentou manter a calma, manter os fios desta
história incrível separados como deviam estar - um irmão louco! Por que é que não
se tinha apercebido de que havia alguma coisa errada no lar dos Ponsonby? Porque à
superfície não havia nada errado, absolutamente nada! E contudo, assim que Eliza
Smith falou em três crianças, ele soube. Tudo começou a fazer sentido.

332

O Chuck no Hug e o irmão louco noutro lado qualquer... Consciente de que Eliza
Smith o olhava fixamente, Carmine forçou-se a fazer uma pergunta razoável.
- Como é o Morton? Onde é que ele está agora?
- Como era, tenente, no passado. Parece que aconteceu tudo de uma vez, embora eu
suponha que passou algum tempo entre uma coisa e outra. Dias, uma semana. A Claire
cegou e a Ida Ponsonby mandou-a para uma escola para cegos em Cleveland, onde ainda
tinham família. Havia uma ligação qualquer à escola para cegos... uma doação,
julgo eu. Nesse tempo, era difícil conseguir lugar numa escola dessas. Seja como
for, a Claire tinha acabado de partir para Cleveland quando o Morton morreu, creio
que com uma hemorragia cerebral. Fomos ao funeral, claro. As coisas por que
obrigavam as crianças a passar nesse tempo! Tivemos de nos aproximar do caixão
aberto
e dar um beijo no rosto do Morton. Estava frio e oleoso. -Estremeceu. - Foi a
primeira vez na vida que senti o cheiro da morte. Pobrezinho, finalmente estava em
paz. Como era? Era parecido com o Chuck e a Claire. Está sepultado no talhão da
família, no velho cemitério do Valley.
A hipótese de Carmine caiu por terra. Era impossível que Eliza Smith estivesse a
inventar tudo isto. A história dos Ponsonby era verdadeira e resumia-se a um facto
bem comprovado: algumas famílias, por nenhuma razão lógica, sofriam uma sucessão de
desastres. Não tinham tendência para acidentes, tinham tendência para a tragédia.
- Parece que há uma fraqueza na família - disse.
- Oh, sim. O Bob percebeu isso na Faculdade de Medicina, assim que estudou
Genética. Havia loucura e cegueira no lado da família da Ida, mas não nos Ponsonby.
A
Ida também enlouqueceu, pouco tempo depois. Acho que a última vez que a vi foi no
funeral do Morton. Com a Claire em Cleveland, deixei de visitar a casa dos
Ponsonbys.
- Quando é que a Claire voltou?

333

- Depois de a Ida enlouquecer completamente... pouco depois de Pearl Harbor. O


Chuck e o Bob nunca foram recrutados, passaram os anos da guerra na faculdade. A
Claire
esteve dois anos no Ohio, o tempo suficiente para aprender Braille e a deslocar-se
com uma bengala branca, como as pessoas cegas fazem. Ela foi uma das primeiras
a ter um cão-guia. A Biddy já é a quarta.
Carmine levantou-se, devastado pela magnitude da sua desilusão. Por um momento,
acreditara de facto que terminara tudo; que fizera o impossível e descobrira os
Fantasmas.
Mas, afinal, estava tão longe da resposta como sempre.
- Muito obrigado por me ter informado tão bem, Mrs. Smith. Há mais alguma coisa
sobre outro Hugger que pense que eu devo saber? A Tâmara? - Respirou fundo. - A
Desdemona?
- Não são assassinas, tenente, tal como o Chuck e o Walt não o são. A Tâmara é uma
daquelas mulheres infelizes que não consegue escolher um bom homem e a Desdemona...
- riu-se - ... é inglesa.
- Isso diz tudo sobre ela, é?
- Para mim, sim. Quando ela era pequena, mergulharam-na em goma.
Carmine deixou Eliza à porta e dirigiu-se ao seu Ford.
No entanto, havia uma coisa que ele podia e devia fazer: falar com Claire Ponsonby
e perceber por que razão ela lhe mentira em relação à data da sua cegueira. E
talvez quisesse apenas vê-la - ver uma tragédia em carne e osso. Ela perdera o pai
e a fortuna da família aos cinco anos, a visão aos catorze, toda a liberdade
quando,
aos dezasseis, voltara para casa para cuidar de uma mãe louca. Um trabalho que
durara cerca de vinte e um anos. E contudo nunca sentira emanar dela a mínima
vibração
de auto-comiseração. Que mulher, Claire Ponsonby! Mas por que lhe mentira?

334

Biddy começou a ladrar assim que o Ford entrou no caminho de acesso ao número seis
de Ponsonby Lane; sinal de que Claire estava em casa.
- Tenente Delmonico - disse ela quando abriu a porta, segurando na coleira da
cadela.
- Como sabia que era eu? - perguntou ele, entrando.
- Pelo som do seu carro. Deve ter um motor muito potente, porque ronca mesmo em
ponto morto. Venha para a cozinha.
Ela atravessou a casa sem sequer roçar numa peça de mobiliário, até à cozinha
demasiado quente.
Biddy deitou-se ao canto, de olhos postos em Carmine.
- Ela não gosta de mim - disse ele.
- Há poucas pessoas de quem goste. O que posso fazer por si?
- Pode dizer-me a verdade. Acabo de estar com Mrs. Eliza Smith, que me informou de
que não é cega de nascença. Por que me mentiu?
Claire suspirou e bateu com as mãos nas coxas.
- Bom, dizem que os nossos pecados nos encontram sempre. Menti porque odeio com
todas as minhas forças as perguntas que se seguem inevitavelmente quando digo a
verdade.
Por exemplo, como se sentiu depois de deixar de ver? Foi um sofrimento muito
grande? Foi a coisa mais terrível que alguma vez lhe aconteceu? É mais difícil ser
cega
depois de saber o que é ver? E por aí fora. Bom, posso dizer-lhe que me pareceu uma
sentença de morte, que foi um grande sofrimento, que é de facto a coisa mais
terrível que me aconteceu. Acaba de reabrir as minhas feridas, tenente, e estou a
sangrar. Espero que esteja satisfeito. - Virou-lhe costas.
- Lamento, mas tinha de perguntar.
- Sim, eu vejo isso! - De súbito virou-se e sorriu-lhe. - É a minha vez de pedir
desculpa. Vamos recomeçar.
- Mrs. Smith disse-me também que vocês tinham um irmão, Morton, que morreu
subitamente mais ou menos na altura em que ficou cega.

335

- Meu Deus, a Eliza hoje estava muito tagarela! O senhor deve ser muito atraente...
ela sempre gostou de um homem bonito. Perdoe se pareço maldosa, mas a Eliza
conseguiu
tudo aquilo que queria. Eu não.
- Posso perdoar essa maldade, Miss Ponsonby.
- Já não sou Claire?
- Acho que a magoei demasiado para a tratar por Claire.
- Perguntou-me pelo Morton. Ele morreu pouco depois de eu ser enviada para
Cleveland. Não se deram ao trabalho de me mandar vir para o funeral, apesar de eu
ter
gostado de poder despedir-me. Ele morreu tão de repente que teve de ser autopsiado,
portanto havia tempo para eu regressar antes do enterro. Apesar da loucura, ele
era um rapazinho muito querido. Triste, triste, triste...
Sai daqui, Carmine! Já ultrapassaste as tuas boas vindas.
- Obrigado, Miss Ponsonby. Muito obrigado, e lamento tê-la perturbado.
Teve de ser autopsiado... Isso significava que o relatório da morte de Morton
Ponsonby estaria arquivado em Caterby Street; mandaria um polícia procurá-lo.
No regresso a Holloman, passou pelo antigo cemitério do Valley, um cemitério que
ficara sem lugares para recém-chegados noventa anos antes. Continha sepulturas de
Ponsonbys às dezenas, algumas muito mais antigas do que a fotografia mais antiga na
parede da cozinha dos Ponsonby. A lápide mais recente pertencia a Ida Ponsonby,
morta em Novembro de 1963. Antes dela, Morton Ponsonby, morto em Outubro de 1939. E
antes dele, Leonard Ponsonby, morto em Janeiro de 1930. Um trio de tragédias
que um arqueólogo de túmulos nunca conheceria pelos epitáfios secos e pouco
informativos. Os Ponsonby não ostentavam as suas desgraças. Nem os Smith, pensou,
quando
encontrou a sepultura de Nancy. Seco e curto, sem mencionar qualquer causa de
morte.

336

O que faria Chuck Ponsonby sem o Hug? pensou, ao regressar ao carro. E sem as
orientações de pesquisa do professor? Virar-se-ia para a clínica geral? Não,
Charles
Ponsonby não tinha jeito para isso. Demasiado distante, demasiado austero,
demasiado elitista. Era mesmo possível que Chuck não conseguisse encontrar outro
emprego
na profissão médica, e, se assim fosse, não tinha qualquer interesse em destruir o
Hug.
Entrou no gabinete de Patrick com um gemido e atirou-se para a poltrona ao canto.
- Como vai isso? - perguntou Patrick.
- Nem perguntes. Sabes o que me apetecia agora, Patsy?
- Não, o quê?
- Um belo tiroteio no parque de estacionamento do Chubb Bowl, de preferência com
metralhadoras. Ou um passeio no meio de dez bandidos que estivessem a assaltar o
Banco de Holloman. Qualquer coisa refrescante.
- Essa é a observação de um polícia inactivo e com o rabo dorido.
- Podes ter a certeza! Este caso é só conversa, conversa interminável. Nem tiros,
nem roubos.
- Presumo que o esboço que a Jill Menzies fez a partir da descrição feita pela dona
da loja não deu em nada?
- Absolutamente nada - Carmine endireitou-se, parecendo mais alerta. - Patsy, tu
que andas há mais dez anos do que eu neste mundo complicado, recordas-te de um
homicídio
na estação ferroviária em mil novecentos e trinta? Três pessoas espancadas até à
morte por um bando de vagabundos, ou coisa do género. Pergunto apenas porque um
deles era o pai do Charles e da Claire Ponsonby. E, como se isso não bastasse, ele
tinha perdido o dinheiro todo da família na queda da Bolsa.

337

Patrick pensou e depois abanou a cabeça. "*


- Não, não me lembro... a minha mãe censurava tudo o que me chegava aos ouvidos,
quando eu era miúdo. Mas deve haver um relatório do caso enterrado nos arquivos.
Sabes como é o Silvestri... não deitaria fora nem um lenço de papel usado, e os
seus antecessores eram iguais.
- Ia mandar alguém a Caterby Street para procurar outro caso, mas, já que não tenho
nada melhor para fazer, acho que posso ir eu mesmo até lá e dar uma vista de
olhos. Estou curioso em relação às tragédias dos Ponsonby. Será que também são
vítimas dos Fantasmas?
Faltava pouco mais de uma semana para o ataque seguinte dos Fantasmas; Fevereiro
era um mês curto, portanto talvez a data marcada para o próximo rapto fosse
princípios
de Março. Possuído por um temor crescente, Carmine teria ido ao Maine, mesmo nesta
altura do ano, se achasse que lá encontraria alguma coisa prometedora nos arquivos,
mas Caterby Street era muito mais perto do que o Maine. O armazenamento de papel
era o pesadelo de qualquer funcionário público, quer se tratasse de relatórios
policiais,
fichas médicas, registos de pensões, valores e impostos sobre terras, taxas de
água, qualquer uma da centena de diferentes categorias. Quando o Hospital de
Holloman
fora reconstruído, em 1950, tinham reservado toda uma sub-cave para arquivos,
portanto não tinham problemas de espaço. Ao assumir o cargo de comissário, em 1960,
John Silvestri lutara ferozmente para manter cada folha de papel que a polícia
tinha guardado, até aos tempos em que Holloman tinha apenas um guarda e o roubo de
um cavalo era um crime punido com enforcamento. Depois, uma empresa de cimento
local abrira falência e Silvestri atormentara todas as autoridades oficiais para
obter
o dinheiro e a autoridade necessários para comprar as instalações, mais de um
hectare em

338

Caterby Street, uma área de indústrias conhecidas pelo pó e pelo barulho, logo não
propriamente propriedade muito valiosa. Os terrenos e todo o seu conteúdo tinham
sido vendidos em leilão por doze mil dólares, e fora a polícia de Holloman o
licitador bem sucedido.
Nos terrenos havia um grande armazém, onde a empresa de cimento costumava guardar
os camiões e todo o tipo de equipamentos. E, depois de o pó ser limpo e o resto
do lote arrumado, todos os arquivos da polícia tinham sido colocados no armazém, em
prateleiras metálicas. O tecto não deixava passar água - uma consideração essencial
- e duas grandes ventoinhas, uma em cada ponta, garantiam a circulação de ar
necessária para impedir que o bolor se instalasse no Verão.
Os dois arquivistas tinham uma vida confortável, numa caravana separada,
estacionada junto da entrada do armazém; o subalterno passava uma vassoura pelo
chão do
armazém de vez em quando e ia ao café mais próximo buscar café e comida, enquanto o
membro qualificado da parelha trabalhava na sua tese de doutoramento sobre o
desenvolvimento das tendências criminosas em Holloman desde 1650. Nenhum deles
estava minimamente interessado neste tenente estranho o suficiente para vir a
Caterby
Street em pessoa. A arquivista qualificada limitou-se a dizer-lhe onde procurar e
voltou à sua tese, e o subalterno desapareceu numa carrinha da polícia.
Os registos de 1930 ocupavam dezanove caixas grandes, e os relatórios do médico-
legista de 1939 ocupavam quase o mesmo espaço: o crime aumentara muito nesse
intervalo
de nove anos. Carmine encontrou o caso de Morton Ponsonby em Outubro de 1939,
depois procurou Leonard Ponsonby na primeira caixa de 1930. O formato dos
relatórios
não mudara muito desde então. Apenas folhas de tamanho oficial dentro de uma capa
de cartolina, algumas agrafadas, outras soltas. Em 1930 ainda não tinham um sistema
que prendesse as folhas à capa - nem, provavelmente, pessoal administrativo para
tratar dos ficheiros dos casos encerrados depois de serem removidos das gavetas
"em curso".

339

Mas ali estava, onde devia estar: ponsonby, Leonard Sinclair, empresário, 6
Ponsonby Lane, Holloman, Connecticut, idade 35, casado, três filhos.
Alguém colocara uma mesa e uma cadeira por baixo de uma clarabóia de plástico
transparente; Carmine levou as duas pastas dos Ponsonby para lá, bem como outra
pasta
mais fina que continha os detalhes dos dois outros homicídios na estação de
caminhos-de-ferro.
Abriu primeiro a pasta de Morton Ponsonby. Uma vez que a morte fora tão súbita e
inesperada, o médico dos Ponsonby recusara-se a assinar a certidão de óbito. Isto
não sugeria que ele suspeitasse de algum crime; simplesmente queria uma autópsia,
para ver se lhe escapara alguma coisa durante os anos em que fora quase impossível
abordar Morton Ponsonby, muito menos tratá-lo. O relatório de patologia era típico
e começava com a frase batida pelo tempo: "Este é o corpo de um adolescente do
sexo masculino, bem nutrido e aparentemente saudável." Mas a causa da morte não
fora uma hemorragia cerebral, como Eliza Smith dissera. A autópsia não revelara a
causa da morte, o que significava que o patologista a atribuíra a falha cardíaca,
possivelmente em consequência de inibição vagal. O médico estava muito longe da
categoria de Patsy, mas fizera a gama de testes habituais em busca de venenos, sem
encontrar nada, e reparara na presença de psicose no historial médico. Não havia
alterações no cérebro que indicassem a causa da psicose. O pénis do rapaz,
observara ele, não estava circuncidado e era muito grande, enquanto os testículos
tinham
descido apenas parcialmente. Para 1939, era um trabalho minucioso. Carmine ficou
sem quaisquer dúvidas de que Morton Ponsonby fora apenas mais uma infeliz vítima
da tendência para a tragédia da sua família. Ou talvez isso indicasse apenas que a
contribuição genética de Ida Ponsonby aos filhos fora insatisfatória.
Muito bem, passemos a Leonard Ponsonby. O crime acontecera em meados de Janeiro de
1930, no meio de sessenta centímetros de neve

340

um dos Invernos mais frios, causando nevões em Janeiro. O comboio, que partira de
Washington, chegara da Penn Station em Nova Iorque, duas horas atrasado devido
a agulhas congeladas e a um deslizamento de neve para a linha. Em vez de ficarem
sentados à espera, os passageiros tinham decidido limpar eles próprios a linha.
Uma das carruagens trazia cerca de vinte bêbados que viajavam juntos, homens
desempregados com esperança de encontrar trabalho em Boston, o destino final do
comboio;
tinham sido eles os mais relutantes a pegar nas pás, embriagados, zangados,
agressivos, trabalhando apenas para se manterem quentes. Quando o comboio chegou a
Holloman,
parou durante um quarto de hora, permitindo aos passageiros comprarem algo para
comer no café da estação, uma alternativa mais barata do que a carruagem-
restaurante
quase vazia do comboio.
Ah, aqui estava a parte mais interessante! Leonard Ponsonby não ia a desembarcar!
Ia embarcar para viajar até Boston, pois era o que dizia o seu bilhete. Preferira
esperar cá fora ao frio e, segundo um passageiro observador, parecia furtivo.
Furtivo! Ponsonby não exibira qualquer vontade de se mostrar no calor da sala de
espera
da estação, nem subira a bordo assim que o comboio chegara. Não, ficara lá fora, na
neve.
Eram nove horas da noite e este comboio para Boston era o último do dia. A
composição partiu na sua viagem enquanto os funcionários da estação davam a volta à
mesma,
trancando as salas de espera e as casas de banho ao exército de vagabundos que
percorriam a nação em busca de trabalho ou de esmolas, apesar de os vinte bêbados
não terem deixado o comboio em Holloman. Algures entre Hartford e a fronteira do
Massachusetts, eles saltaram do comboio a coberto da escuridão, e foi por esse
motivo
que se tornaram suspeitos e foi por esse motivo que, depois de investigações
infrutíferas, acabaram por arcar com as culpas.
Leonard Ponsonby fora encontrado deitado na neve, com a cabeça praticamente
destruída à pancada; ao seu lado estavam uma

341

mulher e uma menina, também com as cabeças esmagadas. O conteúdo da carteira de


Ponsonby identificava-o, mas a mulher e a criança não traziam nada que dissesse
quem
eram. A carteira velha e barata da mulher continha apenas um dólar e noventa
cêntimos em moedas, um lenço amarrotado e duas bolachas. Um saco de pano continha
roupa
interior lavada mas muito barata, de mulher e de criança, meias, dois cachecóis e
um vestido de menina. A mulher era bastante jovem, a criança tinha cerca de seis
anos. Ponsonby era descrito como bem vestido e próspero, com dois mil dólares em
notas na carteira, um alfinete de diamante na gravata e quatro valiosos diamantes
em cada um dos botões de punho de platina. A mulher e a criança, por outro lado,
tinham sido resumidas numa única frase, fortemente sugestiva: "sopa dos pobres".
Para o nariz sensível de Carmine, eram três homicídios suspeitos. Um homem
próspero, sozinho, mais uma mulher e uma criança pobres, não relacionadas com ele.
O roubo
não fora o motivo. Os três lá fora, à neve, quando deviam estar no interior da
estação a aquecerem as mãos no radiador a vapor. De uma coisa ele tinha a certeza:
o bando do comboio não tivera nada a ver com os homicídios.
A verdadeira questão era, qual dos três seria a vítima desejada? Os outros dois
eram meras testemunhas, mortos porque tinham visto quem empunhava o instrumento
contundente
que os matara aos três, com um grau de selvajaria posteriormente comentado num
relatório policial que, tirando isso, era seco e incompleto. Cara, a vítima
original
era Leonard Ponsonby. Coroa, era a mulher. Se a moeda ficasse de pé, era a criança.
Não havia quaisquer fotografias. A informação sobre a mulher e a presumida filha,
ou outro grau de parentesco, estava numa pasta fina, ao lado da relativa a
Ponsonby,
na segunda caixa dos arquivos de Janeiro. Tinham morrido os três por meio de um
instrumento contundente aplicado apenas contra os crânios, esmagados, mas o
detective
não fora suficientemente inteligente para perceber que Ponsonby

342

teria de ter sido a primeira vítima; a mulher e a criança tinham assistido,


paralisadas de medo, até chegar a vez da mulher e depois da criança. Se Ponsonby
não
tivesse sido o primeiro, teria resistido. Assim, quem quer que brandira o
instrumento contundente - Carmine apostava num bastão de basebol - aproximara-se
sorrateiramente
sobre a neve e atacara Ponsonby antes que este se apercebesse da presença de
alguém. Outro fantasma, que extraordinário.
Quando saiu à procura dos arquivistas, eles já tinham fechado a caravana e ido para
casa - meia hora mais cedo. Estava na altura de John Silvestri virar o foco intenso
dos seus supervisores para os arquivos da polícia em Caterby Street. Com as três
pastas na mão esquerda, Carmine partiu também: estes desleixados nem dariam pela
falta das pastas enquanto ele não as devolvesse. Um par de bandidos burocráticos,
seguros no conhecimento de que, desde que os arquivos não ardessem, ninguém estaria
suficientemente interessado na sua existência para se preocupar com eles. Errado,
errado, errado.
No regresso ao edifício dos Serviços Municipais, passou pelos arquivos do Holloman
Post, onde descobriu que a morte estranha e horrível de Leonard Ponsonby aparecera
na primeira página. A violência sem sentido, para além dos crimes domésticos, era
quase inédita em 1930; era o tipo de coisa que punha os jornais aos gritos sobre
loucos fugidos do manicómio. Assassinatos por gangs houvera muitos, durante os
longos anos da Lei Seca, mas não caíam na categoria de violência sem sentido. Na
verdade,
mesmo depois de se ter verificado que nenhum louco fugira de um asilo, o Holloman
Post mantivera-se firme e continuara a insistir que o assassino era um louco fugido
de alguma instituição fora do estado.
Com uma coisa e outra, chegou atrasado ao seu encontro com Desdemona no Malvolio's.

343

- Desculpa - disse, sentando-se em frente dela. - Tens agora uma ideia de como é a
vida quando namoras com um polícia. Montes de compromissos falhados, muitos
jantares
frios. Ainda bem que não és muito de cozinhar. Comer fora é a melhor alternativa, e
não há melhor do que o Malvolio's, um restaurante de polícias. Embalam tudo para
levar, desde uma refeição inteira a uma colher de tarte de maçã, assim que alguém
bate na montra.
- Gosto de ter um namorado polícia - disse ela com um sorriso. - Já pedi, mas disse
ao Luigi que esperasse um pouco. És demasiado generoso, devias deixar-me pagar
pelo menos a minha parte da conta.
- Na minha família, um homem que deixasse a mulher pagar seria linchado.
- Pela tua cara, parece que tiveste um dia bom, para variar.
- Sim, descobri montes de coisas. O problema é que acho que são todas irrelevantes.
Mesmo assim, é divertido descobrir. - Estendeu o braço por cima da mesa e pegou-lhe
na mão. - Também é bom descobrir coisas sobre ti.
Ela apertou-lhe a mão.
- Digo o mesmo, Carmine.
- Apesar deste caso terrível, Desdemona, a minha vida melhorou muito nos últimos
dias. E em grande parte graças a ti, linda.
Nunca ninguém lhe chamara linda antes; Desdemona sentiu uma onda de gratificação e
confusão, ficou vermelha como um tomate e sem saber para onde olhar.
Seis anos antes, em Lincoln, julgara-se apaixonada por um homem maravilhoso, um
médico; até que, ao passar pela porta do gabinete dele, ouvira a sua voz:
- Quem, a Desdemona Desesperada? Meu caro amigo, as feias ficam sempre tão
agradecidas que vale bem a pena cortejá-las. Dão boas mães e nunca precisamos de
nos preocupar
com o leiteiro, pois não? Afinal de contas, ninguém olha para a lareira quando está
a atiçar o fogo, por isso vou casar com a Desdemona. Ainda por cima, teremos
filhos inteligentes.

344

No dia seguinte, começara a fazer planos para emigrar, jurando a si própria que
nunca mais se abriria a este tipo de crueldade pragmática.
Agora, graças a um monstro sem rosto, aqui estava ela, a viver com Carmine no
apartamento dele, talvez tomando como garantido que ele a amava tanto como ela o
amava.
Falar era fácil - não o provara o médico de Lincoln? Até que ponto as coisas que
ele lhe dissera não derivavam do seu profissionalismo, do seu instinto protector,
do seu choque perante o que quase lhe acontecera? "Oh, Carmine, por favor, não me
desiludas!"

345

Capítulo Vinte e Cinco

Faltava uma semana para o trigésimo dia após o rapto de Faith Khouri e ninguém,
incluindo Carmine, tinha razões para acreditar que as hipóteses de prevenir outro
crime fossem agora melhores do que quatro meses antes. Quando é que algum caso
demorara tanto tempo a ser resolvido, com tantos homens, tantas precauções e
avisos,
tanta publicidade a nível estadual?
Tinham acordado que o procedimento geral devia ser o mesmo: todos os suspeitos do
estado seriam vigiados, vinte e quatro horas por dia, entre segunda-feira, dia
vinte e oito de Fevereiro, e sexta-feira, dia quatro de Março. Isso incluía os
trinta e dois suspeitos de Holloman. O método de actuação da polícia tornara-se
mais
seguro, mais coerente; no caso do professor Bob Smith, por exemplo, a segurança
deplorável de Marsh Manor seria compensada por quatro equipas de vigilantes da
polícia
de Bridgeport. A menos que o seu alvo fosse uma vítima em Bridgeport, o professor
teria de atravessar a nado o rio Housatonic, se quisesse dirigir-se a leste, ou
passar por seis bloqueios nas estradas se se dirigisse a oeste. Essa era a maior
diferença entre o plano do mês anterior e o novo: havia carros-patrulha e polícias
uniformizados, bem como carros não identificados e polícias à civil, e bloqueios
nas estradas em todo o lado. Tinham concordado, numa reunião a nível estadual, que
se os Fantasmas

346

fossem apanhados num desses bloqueios antes de terem oportunidade de raptar alguém,
paciência. Qualquer suspeito conhecido apanhado numa situação dessas ficaria
com uma enorme marca vermelha no cadastro e seria alvo de vigilância concentrada.
Se isso significasse que Fevereiro/Março seria um fiasco em relação aos Fantasmas,
então em Março/Abril haveria novos métodos policiais e novos possíveis suspeitos.
Carmine decidira não participar na vigilância; era pouco provável que no princípio
de Março ainda houvesse temperaturas negativas, portanto estaria melhor noutro
lado, em contacto por rádio com toda a gente, e com um mapa gigante do Connecticut
numa parede ao seu lado. Dois ataques consecutivos dos Fantasmas a leste sugeriam
que desta vez eles se dirigiriam a norte, oeste ou sudoeste. As polícias estaduais
de Massachusetts, Nova Iorque e Rhode Island tinham concordado em patrulhar as
fronteiras com o Connecticut, com mais homens do que moscas numa carcaça. Era
guerra aberta.
Pensando mais na noite com Desdemona do que num caso tão parado que se tornara
enfadonho, nessa tarde Carmine foi devolver os ficheiros dos casos Ponsonby a
Caterby
Street.
- Ainda têm alguns bens pessoais não reclamados de mil novecentos e trinta? -
perguntou à metade mais educada do duo de arquivistas; o outro não estava em lado
nenhum
que ele visse. Nem a carrinha da polícia. E, raios, esquecera-se de dizer a
Silvestri o que se passava por aqui.
- Devemos ter bens pessoais desde o chapéu de Paul Revere -disse ela em tom
sarcástico, nada satisfeita por ele ter surripiado os seus ficheiros, mas pouco
preocupada
por ter estado ausente na segunda-feira anterior.
- Estas duas vítimas de homicídio - disse, acenando a pasta mais fina debaixo do
nariz dela. - Quero ver os seus bens pessoais.

347

Ela bocejou, examinou as unhas e olhou para o relógio.


- Receio que tenha deixado isso para muito tarde, tenente. São cinco horas e já
fechámos. Volte amanhã.
Amanhã Silvestri ia ter um relatório completo, mas por que não dar a esta cabra
arrogante uma noite sem dormir antes da machadada final?
- Nesse caso sugiro - disse ele em tom agradável -, que logo de manhã mande o seu
colega usar a carrinha da polícia de forma legal, para variar, entregando a caixa
que estou a pedir-lhe ao tenente Carmine Delmonico no edifício dos Serviços
Municipais. Se a caixa em questão não for entregue, a minha sobrinha Gina acabará
sentada
na sua secretária. Ela está morta por arranjar um emprego público num canto
escondido, porque precisa de estudar. Quer entrar para o fbi, mas o exame de
entrada
é muito difícil para as mulheres.

348

Capítulo Vinte e Seis

Às onze da manhã, no domingo antes do início da vigilância, Carmine entrou na parte


do edifício dos Serviços Municipais reservada à polícia sentindo-se sozinho,
irrequieto e tenso.
Sozinho, porque na sexta-feira à noite Desdemona anunciara que, se o tempo no fim-
de-semana estivesse minimamente tolerável, tencionava percorrer o Trilho Apalache
até à fronteira do Massachusetts. Uma vez que adorava a presença dela na sua cama,
isto apanhara-o de surpresa; e ela recusara-se a dar ouvidos aos seus protestos
por ter de desperdiçar um carro-patrulha para a levar e trazer. Carmine estava
preocupado porque as suas expectativas quanto a esta relação eram muito diferentes
do que sentira com Sandra. Apesar de deslocada em ambos os papéis, Sandra fora
mulher e mãe, vivendo aninhada num compartimento especial da sua mente que ele
nunca
abria enquanto estava no trabalho. Desdemona, por outro lado, estava sempre
presente na sua mente, e isso não tinha nada a ver com o papel que ela desempenhava
no
caso. Simplesmente ansiava pelo tempo que passava com ela. Talvez tivesse a ver com
a idade: estava ainda na casa dos vinte quando conhecera Sandra, tinha quarenta
e poucos quando conhecera Desdemona. Como pai, não se saíra muito bem, mas como
marido fora muito pior. E contudo sabia que esta relação de amantes com Desdemona
não tinha futuro. Casamento,

349

tinha de ser casamento. Mas estaria ela interessada em casar? Pura e simplesmente
não sabia. Percorrer o Trilho Apalache parecia indicar que ela não precisava tanto
dele como ele dela. No entanto, era tão carinhosa quando estavam juntos, e nem por
uma vez o repreendera por a negligenciar por causa do trabalho. "Oh, Desdemona,
não me deixes ficar mal! Fica comigo, une-te a mim!"
Irrequieto, porque a deserção de Desdemona o deixara com dois dias para preencher e
sem ninguém com quem os preencher; Silvestri proibira-o de meter o nariz noutro
caso que não fosse o dos Fantasmas, exceptuando unicamente a situação racial, caso
esta rebentasse. E neste momento, com um domingo razoavelmente agradável, com
temperaturas acima de zero, estaria Mohammed el Nesr ocupado? Não em manifestações
ou comícios, pelo menos. A sua imobilidade não era nenhum mistério. Tal como
Carmine,
Mohammed estava à espera que os Fantasmas raptassem outra vítima esta semana, para
renovar a dor e a indignação. O grande comício seria sem dúvida no domingo
seguinte.
Obrigando a polícia a afastar do caso dos Fantasmas homens desesperadamente
necessários. Uma chatice, mas boa estratégia da parte de Mohammed.
Tenso, porque o Trigésimo Dia estava quase a chegar.
- Tenente Delmonico? - perguntou o sargento de serviço.
- Era eu, a última vez que me vi ao espelho - disse Carmine com um sorriso.
- Encontrei uma caixa de evidências antiga atrás daqueles pacotes quando cheguei
esta manhã. Não tem qualquer nome, provavelmente foi por isso que não chegou a
recebê-la.
Depois encontrei uma etiqueta com o seu nome a metros da caixa. - Baixou-se,
remexeu debaixo do balcão e reapareceu com uma grande caixa quadrada, muito
parecida
com as que se encontravam actualmente em uso.

350

Os pertences da mulher e da criança espancadas até à morte em 1930! Tinha-se


esquecido completamente disso, tão absorvido estivera no planeamento da operação de
vigilância. No entanto, não se esquecera de pedir a Silvestri que desse um apertão
à idiota dos arquivos e ao seu lacaio.
- Obrigado, Larry, fico a dever-te uma - disse, pegando na caixa e levando-a para o
seu gabinete.
Aqui estava algo para fazer num domingo de manhã, enquanto a sua amada caminhava
pelo meio das folhas molhadas.
Não foram relíquias fétidas de um crime com trinta e seis anos que se ergueram da
caixa quando tirou a tampa; a polícia da altura não se dera ao trabalho de guardar
as roupas que as duas vítimas vestiam, o que significava que deviam estar todas
ensanguentadas, incluindo o calçado. Uma vez que ninguém pensara em registar a
distância
exacta que "perto" de Leonard Ponsonby significava, parte do sangue podia até ser
dele, tanto quanto Carmine sabia. Ninguém fizera sequer um esboço das posições
dos corpos em relação uns aos outros. "Perto" era tudo o que tinha para se basear.
A mala estava lá, contudo. Por uma questão de hábito, Carmine calçou luvas antes de
a retirar cuidadosamente da caixa para a examinar com os seus olhos modernos
e mais sofisticados. Feita à mão. Tricotada, como faziam as mulheres naquele tempo
de pouco dinheiro, com duas pegas de cana e um forro de algodão grosseiro. Sem
fecho. Esta mulher não podia pagar nem sequer o mais barato couro de vaca, muito
menos cabedal. A mala continha uma pequena carteira na qual havia um dólar de
prata,
três moedas de vinte e cinco cêntimos, uma de dez cêntimos e outra de cinco
cêntimos. Carmine pousou a carteira na secretária. Um lenço de homem, limpo mas não
engomado;
de algodão, não de linho. E, no fundo, fragmentos e migalhas do que presumiu que
fossem as duas bolachas. A mãe provavelmente roubara-as do café da estação para
a criança ter qualquer coisa que comer no comboio, e talvez fosse por essa razão
que ambas estavam escondidas lá fora, ao frio. As autópsias tinham revelado

351

que os estômagos de ambas estavam vazios. Sim, ela roubara as bolachas.


O saco não era grande, apesar de ser suficientemente antigo para poder ser um
daqueles que os predadores do Norte tinham trazido para o Sul depois da Guerra
Civil.
Desbotado, puído em certos sítios, nunca fora elegante, nem mesmo em novo. Abriu-o
com reverência; aqui residira quase tudo o que a pobre mulher possuíra, e nada
era mais comovente do que evidências de vidas há muito perdidas.
Por cima estavam dois cachecóis de lã compridos, tricotados à mão, com riscas de
várias cores, como se quem os fizera estivesse a aproveitar restos. Mas por que
estavam os cachecóis no saco se o tempo estava tão horrível? Reservas? Por baixo
havia dois pares de cuecas de mulher, lavadas, feitas de pano-cru, e dois pares
muito mais pequenos, obviamente pertencentes à criança. Um par de meias pelo joelho
e um par de meias de senhora, ambos tricotados. No fundo, cuidadosamente dobrado
e enrolado em papel, um vestido de criança.
Carmine susteve a respiração. Um vestido de menina. Feito de renda francesa azul-
clara, requintadamente bordado com pequenas pérolas. Mangas de balão com punhos
delicados, botões de madrepérola nas costas, forro de seda, e por baixo disso um
saiote de entretela para erguer a saia como o tutu de uma bailarina. O percursor
em 1930 dos vestidos da Sininho, excepto que este fora completamente feito à mão,
cada pérola cosida separadamente e com pontos firmes, todas as costuras feitas
à mão. Oh, as coisas que os polícias de 1930 tinham deixado passar! No bolso
esquerdo viu a palavra emma desenhada com pérolas escuras de tom púrpura.
Com a cabeça a rodopiar, Carmine estendeu o vestido sobre a secretária e depois
limitou-se a olhar para ele durante um período que podia ter sido cinco minutos ou
uma hora; não sabia, não olhara para o relógio.
Por fim sentou-se e pôs o saco no colo, abrindo-o tanto quanto as dobradiças
enferrujadas permitiam. O forro estava gasto,

352

descosido de um dos lados; enfiou ambas as mãos dentro do saco e apalpou-o, de


olhos fechados. Ali! Qualquer coisa!
Uma fotografia, e não tirada por uma Brownie. Era um retrato feito em estúdio,
ainda montado numa capa de cartolina creme com o nome do fotógrafo. Mayhew Studios,
Windsor Locks. Alguém escrevera o que parecia ser "1928" por baixo da fotografia,
mas a lápis, e os números estavam tão desvanecidos que era apenas um palpite.
A mulher estava sentada numa cadeira, com a criança - com cerca de quatro anos -
sobre os joelhos. Nesta fotografia a mulher estava muito mais bem vestida, com um
colar de pérolas verdadeiras ao pescoço e brincos também de pérolas nas orelhas. A
menina usava um vestido semelhante ao que se encontrava no saco, e via-se
claramente
a palavra emma. E ambas tinham rosto. Mesmo a preto e branco, a pele de ambas tinha
uma sugestão de café com leite; o cabelo era fortemente encaracolado e preto,
os olhos muito escuros, os lábios cheios. Para Carmine, que as observava através de
um véu de lágrimas, elas eram perfeitas. Destruídas em toda a sua juventude e
beleza, ambas reduzidas a uma massa sanguinolenta.
Um crime de ódio. Por que raio ninguém se apercebera disso? Nenhum assassino
desperdiçaria a sua essência numa catadupa de golpes violentos se o motivo não
fosse
o ódio. Principalmente quando o crânio por baixo da arma pertencia a uma criança.
Um crime de ódio, e nem pensar que estas duas criaturas não estavam ligadas a
Leonard
Ponsonby. Elas estavam ali por causa dele, ele estava ali por causa delas.
Então, afinal de contas, sempre é Charles Ponsonby, apesar de não ter idade
suficiente para ter sido ele a cometer este primeiro crime. Nem Morton, nem Claire.
Isto
fora obra de Ida, a louca, mais de uma década antes de enlouquecer. O que significa
que Leonard

353

e a mãe de Emma eram... amantes? Familiares? Uma coisa era tão provável como a
outra; Ida era ultra-conservadora, qualquer contacto com os mais escuros estaria
fora
de questão para ela! Tantas perguntas por fazer! Por que razão seriam Emma e a mãe
tão miseráveis em Janeiro de 1930, quando Leonard estava ao lado delas com dois
mil dólares no bolso e ostentando jóias com diamantes? O que acontecera a Emma e à
mãe entre a prosperidade da fotografia de 1928 e a sua miséria em Janeiro de 1930?
"Basta, Carmine, basta! 1930 pode esperar, 1966 não. Chuc Ponsonby é um dos
Fantasmas - ou será o único Fantasma, fazendo tudo isto sozinho? Até que ponto
Claire
o ajudará? Até que ponto pode ajudá-lo? Poderá um dos Ponsonbys ser um Fantasma e o
outro não? Sim, por causa da cegueira de Claire. Eu sei que ela é cega! Chuck
podia fazer o que tinha a fazer numa cave secreta, à prova de som, e ela nunca o
saberia. Tenho a certeza de que é à prova de som. Os gritos têm de ser contidos,
e os gritos fazem muito barulho.
Charles Ponsonby... Um solteirão caseiro, incapaz de fazer qualquer pesquisa
original. Sempre à sombra de outra pessoa - a mãe louca, o irmão louco, a irmã
cega,
amigos mais bem sucedidos. Não se dá ao trabalho de usar meias a combinar, de
pentear o cabelo, de comprar um casaco novo. O típico professor distraído,
demasiado
tímido para pegar num rato sem usar luvas grossas, indefinido de uma forma que
sugere um fracasso radical do ego, apesar do verniz da arrogância intelectual.
Mas poderá este Charles Ponsonby ser o retrato de um assassino/violador em série,
tão brilhante que nos tem atirado areia para os olhos desde que descobrimos a sua
existência? Parece impossível de acreditar. O problema é que ninguém tem um retrato
de um assassino em série, excepto no aspecto de que o sexo parece estar sempre
envolvido. Assim, sempre que desenterramos um espécime, temos de o dissecar
minuciosamente. A idade, a raça, o credo, a aparência, o tipo de vítima que
escolhe,
a personalidade que apresenta ao mundo, e a infância, antecedentes, gostos e
antipatias - um milhar de factores.

354

Sobre Charles Ponsonby, podemos sem dúvida dizer que, do lado da mãe, a família tem
um historial de loucura e de cegueira."
Carmine voltou a arrumar o conteúdo da caixa exactamente como o encontrara e levou-
a para a recepção.
- Larry, põe isto no armazém de segurança imediatamente -disse, quando a entregou
ao sargento de serviço. - Ninguém pode aproximar-se dela.
Depois, antes que Larry conseguisse responder, Carmine saiu porta fora. Estava na
altura de dar mais uma vista de olhos ao número seis de Ponsonby Lane.
As questões rodopiavam na sua cabeça, como enxames de vespas em busca de um ninho
chamado respostas: por exemplo, como é que Charles Ponsonby conseguira ir do Hug
ao Liceu Travis, e voltar, deixando toda a gente convencida de que estivera
presente na conferência no telhado? Desdemona tinha demorado trinta preciosos
minutos
a encontrá-los, e contudo os seis tinham jurado que ninguém se ausentara sequer o
tempo necessário para ir à casa de banho. Até que ponto seria fiável a atenção
de um investigador distraído? E como é que Ponsonby saíra de casa na noite do rapto
de Faith Khouri, quando esta estivera sempre tão vigiada? O conteúdo da caixa
de evidências de 1930 seria suficiente para arrancar um mandato de busca ao juiz
Douglas Thwaites? As questões não tinham fim.
Desceu a estrada 133 vindo de nordeste, o que o levou a passar primeiro por Deer
Lane. Do ponto de vista do concelho, as quatro casas existentes de um dos lados
da rua não eram suficientes para justificar o alcatroamento; os quinhentos metros
de Deer Lane estavam cobertos por gravilha. Ao fundo, a rua alargava num largo
circular com espaço suficiente para estacionar seis ou sete carros. A floresta
chegava mesmo até à estrada de todos os lados - vegetação

355

secundária, claro. Duzentos anos atrás, esta terra teria sido limpa e cultivada,
mas, à medida que os solos mais férteis do Ohio e do Oeste chamavam, a agricultura
deixara de ser tão lucrativa para os ianques do Connecticut como as indústrias de
precisão com linha de montagem fundadas por Eli Whitney. Assim os bosques tinham
crescido profusamente - carvalhos, bordos, faias, bétulas, sicómoros, alguns
pinheiros. Cornizos e loureiros que se cobriam de flores na Primavera. Macieiras
silvestres.
E os veados também tinham voltado.
Os seus pneus rangeram audivelmente sobre a gravilha, o que reforçou a sua opinião
de que os carros que vigiavam Deer Lane, na junção com a estrada 133, na noite
em que Faith Khouri desaparecera, teriam ouvido qualquer veículo, bem como teriam
visto o fumo branco do escape. E os únicos carros estacionados em Deer Lane nessa
noite eram carros da polícia não identificados. Assim, embora fosse possível que
Chuck Ponsonby tivesse subido a ladeira por trás da sua casa sem uma lanterna, para
onde teria ido depois? Não podia ter deixado um carro mais perto do que na estrada
133, a uma boa distância dali, e mesmo que a viatura pertencesse a um parceiro,
ele não podia tê-lo apanhado mais perto do que isso. Uma caminhada tão longa com
temperaturas abaixo de zero? Pouco provável. Um congelador era quente, em
comparação
com essa noite. Então como é que o fizera?
Carmine tinha uma máxima: se fosse forçado a dar um passeio num dia bonito, o
melhor era fazê-lo perto de um suspeito; e se o passeio envolvesse uma floresta,
valia
a pena levar um par de binóculos para observar os passarinhos. De binóculos ao
pescoço, Carmine subiu a ladeira, entre as árvores, em direcção à crista que se
erguia
sobre o número seis de Ponsonby Lane. O chão estava coberto por uma espessa camada
de folhas molhadas. A neve derretera, excepto por baixo de um ou outro pedregulho
e em fendas onde o calor não penetrara. Vários veados fugiram do seu caminho, mas
não assustados; os animais sabiam sempre quando estavam numa

356

reserva. Era um sítio bonito, reflectiu Carmine, muito tranquilo nesta época do
ano. No Verão, o zumbido agudo dos cortadores de relva e as gargalhadas dos
churrascos
ao ar livre estragariam esta paz. Sabia, pelas investigações anteriores da polícia,
que ninguém se aventurava mais além do parque de estacionamento, nem mesmo para
encontros sexuais ilícitos; nos oito hectares da reserva não havia latas de
cerveja, caricas, garrafas, detritos plásticos ou preservativos usados.
Quando se chegava ao cimo da crista, era surpreendentemente fácil ver a casa dos
Ponsonby. As árvores nesta parte da encosta tinham sido drasticamente reduzidas,
para criar uma aparência de ordenação florestal: um maciço de bétulas americanas de
troncos bifurcados, um bonito ulmeiro com ar saudável, dez bordos plantados de
maneira a que as folhas de Outono proporcionassem um espectáculo maravilhoso, e
cornizos de estufa que transformariam o terreno num sonho de branco e cor-de-rosa
na Primavera. O desbaste devia ter sido feito há muito tempo, pois os cotos das
árvores cortadas já tinham desaparecido.
Levantando os binóculos, inspeccionou a casa como se estivesse a quinze metros
dela. Ali estava Chuck em cima de um escadote, com um escopro e um maçarico,
removendo
a tinta antiga da maneira correcta. Claire estava recostada numa cadeira de madeira
perto do alpendre da lavandaria, com Biddy aos seus pés; a leve brisa beijava-lhe
o rosto, por isso a cadela não farejara a presença dele. Depois Chuck chamou-a.
Claire levantou-se e contornou a esquina da casa com tanta segurança que Carmine
ficou espantado. E contudo ele sabia que Claire era cega.
Como é que o sabia com tanta certeza? Porque Carmine não deixava pedra sobre pedra,
e a cegueira de Claire era uma pedra no seu caminho. Por vezes utilizava os
serviços
de uma carcereira de uma prisão de mulheres, chamada Carrie Tallboys, uma mulher
que lutava para sustentar um filho prometedor e portanto estava disponível para
trabalhos fora do seu horário normal. Carrie tinha um talento curioso, que envolvia
representar um papel de forma tão convincente

357

que as pessoas lhe diziam sempre muito mais do que deviam. Assim, Carmine mandara
Carrie falar com o oftalmologista de Claire, o eminente Cárter Holt. A história
que Carrie lhe contou foi que estava a pensar doar algum dinheiro para a
investigação da retinite pigmentosa, uma vez que a sua querida amiga Claire
Ponsonby sofrera
dessa doença antes de ficar completamente cega. Ah, que bem que o doutor se
lembrava do dia em que Claire lhe aparecera com um descolamento de retina bilateral
-
era tão raro acontecer nos dois olhos ao mesmo tempo! O seu primeiro grande caso, e
logo um caso que estava para além das suas capacidades de cura. Mas, protestou
Carrie, certamente que hoje em dia já tinha cura? De forma alguma, dissera o Dr.
Holt. Claire Ponsonby estava irremediavelmente cega, para o resto da vida. Ele
próprio
lhe observara os olhos e vira os danos. Muito triste!
Carmine viu a cega Claire falar animadamente com Chuck, que desceu do escadote, deu
o braço à irmã e a levou para dentro pelo alpendre da lavandaria. A cadela seguiu-
os;
depois ouviram-se os acordes distantes de uma sinfonia de Brahms. E pronto, os
Ponsonbys pelos vistos já tinham apanhado ar suficiente. Mas -espera, espera! Oh,
sim, claro. Chuck voltou a aparecer, pegou nas ferramentas e no escadote e levou
tudo para a garagem antes de voltar a entrar em casa. Ele tinha um lado da sua
personalidade
que exigia cada coisa no seu lugar, mas seria uma pessoa obsessiva?
Baixando os binóculos, Carmine deu meia volta para regressar a Deer Lane. Era mais
difícil o caminho descendente, no meio de montes de folhas viscosas e apodrecidas;
nem mesmo os veados tinham feito ainda os seus trilhos, embora no Verão eles
cruzassem o bosque. Imerso em pensamentos sobre Charles Ponsonby e as suas
contradições,
Carmine começou a caminhar mais depressa,

358

agora ansioso por voltar ao escritório onde poderia mastigar tranquilamente o


enigma. E também mastigar qualquer coisa no Malvo-lio's.
De repente, os seus pés escorregaram nas folhas e deu por si a cair para a frente,
com ambas as mãos estendidas para amparar a queda. As folhas mortas voaram em
montes ensopados quando aterrou sobre as palmas das mãos com um baque surdo e oco.
Deslizou pela encosta, procurando um apoio, até que por fim o impulso da queda
abrandou e conseguiu parar. Dois sulcos profundamente escavados no solo assinalavam
o movimento das suas mãos. Praguejando entre dentes, virou-se e levantou-se,
sentindo a pele raspada a arder mas aliviado por não se ter magoado seriamente.
"Estúpido, Carmine, estúpido! Ias demasiado distraído com os teus pensamentos para
veres onde punhas os pés, seu palerma."
Mas, porquê um som oco? Curioso, porque era essa a sua natureza, agachou-se e
escavou num dos canais feitos pelas suas mãos; a uma profundidade de quinze
centímetros
encontrou uma tábua. Escavando agora freneticamente, afastou as folhas até
conseguir ver parte do que ali se encontrava: a superfície do que podia ser o
alçapão
de uma antiga cave.
Oh, meu Deus, meu Deus! Subitamente galvanizado, voltou a puxar as folhas para onde
estavam, espalhando-as, compactando-as, com a testa banhada em suor, a respiração
ofegante. Quando achou que conseguira eliminar todas as evidências da queda,
levantou-se para examinar o seu trabalho. Não, não estava suficientemente bom. Se
alguém
examinasse a área com atenção, perceberia. Tirou o casaco e usou-o para recolher
mais folhas a cerca de cem metros. Transportou-as para o local da queda e
distribuiu-as,
depois pegou no casaco e usou-o como uma vassoura para eliminar todos os traços da
sua intrusão. Finalmente, quase sem fôlego, achou que ninguém desconfiaria do
que acontecera. "Agora sai daqui, Carmine!" E fê-lo de gatas, às arrecuas,
espalhando as folhas no seu rasto; estava quase no parque de estacionamento quando
se
levantou. Com um pouco de sorte,

359

os veados fariam desaparecer o seu rasto enquanto procurassem forragem de Inverno.


Depois de entrar no Ford, rezou para que a audição apurada de Claire não fosse boa
ao ponto de ouvir um motor potente em Deer Lane. Pisou suavemente o acelerador
e deslizou até à esquina em primeira. Parte dele mal podia esperar por transmitir
as novidades a Silvestri, Marciano e Patrick, mas decidiu não lhes telefonar do
ninho de amor do motel, que estava a ter um bom domingo de negócios. Era melhor
virar para nordeste e voltar por onde tinha vindo. Não morreria por esperar mais
um pouco.
Afinal de contas, o nosso Chuckie não tivera de fazer uma caminhada assim tão longa
em temperaturas negativas! E não precisara de usar uma lanterna, porque tinha
um túnel que só vinha à superfície já bem na encosta da reserva. Alguém - ele, ou
muito antes dele? - escavara profundamente sob a crista, encurtando a distância.
No Connecti-cut, a centenas de quilómetros da linha Mason-Dixon, certamente que o
túnel não fora aberto para os escravos fugitivos. "Aposto que foste tu que o
escavaste,
Chuckie. Na noite em que raptaste Faith Khouri, tudo o que tiveste de fazer foi
sair; quando voltaste com ela, nós já tínhamos abandonado a zona. Esse foi um dos
nossos erros. Devíamos ter mantido a vigilância. Embora, para ser justo, nunca o
teríamos apanhado a regressar: estávamos a vigiar Ponsonby Lane e a casa, não
sabíamos
da existência do túnel. Portanto dessa vez a sorte esteve do teu lado, Chuckie. Mas
agora está do nosso. Já sabemos onde está o túnel."
Uma vez que estava esfomeado e queria mais algum tempo para pensar, Carmine almoçou
no Malvolio's antes de convocar os outros para uma reunião.
- Compreendo agora o significado de uma velha expressão -disse quando Patrick, o
último a chegar, abriu a porta do gabinete de Silvestri.
- Que expressão? - perguntou Patrick, sentando-se.

360

- Prenhe com novidades.


- Aqui tens três parteiras especialistas, portanto dá à luz.
Com palavras claras, numa sequência de eventos lógica e correcta, Carmine conduziu
a sua assistência, passo a passo, ao longo de tudo o que acontecera depois de
falar com Eliza Smith.
- Partiu tudo dela... do que ela disse, da forma como o disse. Foi o meu
catalizador. Que culminou numa queda pela colina... Isso é que foi sorte! Tenho
tido tanta
sorte neste caso - disse, quando acabou de contar a sua história e os seus ouvintes
conseguiram fechar a boca.
- Não, sorte não - objectou Patrick, de olhos a brilhar. - Determinação, teimosia e
casmurrice, Carmine. Quem mais se lembraria de voltar a investigar a morte de
Leonard Ponsonby? E quem mais se daria ao trabalho de abrir uma caixa de evidências
com trinta e seis anos? Reabriste um crime considerado encerrado, apenas porque
és uma das poucas pessoas que eu conheço que, quando um raio cai duas vezes no
mesmo sítio, sabem que é porque algo o está a atrair.
- Tudo isso é muito bonito, Patsy, mas não era o suficiente para levar ao juiz
Thwaites. As verdadeiras evidências, encontrei-as por acaso... uma queda numa
encosta
escorregadia.
- Não, Carmine. A queda pode ter sido um acidente, mas o que encontraste não foi
nenhum acaso. Outra pessoa ter-se-ia levantado, sacudido a roupa - Patrick tirou
folhas secas do casaco arruinado de Carmine - e saído dali a coxear. Tu encontraste
a porta porque o teu cérebro registou um ruído estranho, não porque a queda a
tenha deixado à vista. Seja como for, nem sequer estarias na encosta se não
tivesses encontrado uma fotografia tirada em mil novecentos e vinte e oito. Vamos,
aceita
algum crédito!

361

- Está bem, está bem - exclamou Carmine, erguendo as mãos. -O mais importante é
decidir o que fazemos a partir daqui.
A atmosfera no gabinete de Silvestri vibrava quase visivelmente com exaltação,
alívio, a alegria maravilhosa e inimitável que surge quando um caso é resolvido. Em
especial o caso dos Fantasmas, tão sombrio, tão perturbador, tão penosamente longo
e demorado a resolver. Fossem quais fossem as dificuldades que ainda viriam a
surgir - todos eles eram experientes o suficiente para saberem que isso aconteceria
- tinham respostas bastantes para avançarem, para sentirem que o fim estava
próximo.
- Primeiro, não podemos partir do princípio de que o sistema jurídico está do nosso
lado - disse Silvestri por trás do charuto. -Não quero que isto vá por água abaixo
por causa de um aspecto técnico errado qualquer... principalmente se a defesa dele
puder imputar esse erro à polícia. Admitamos, geralmente somos nós os bodes
expiatórios.
Este será um grande julgamento, com cobertura nacional. Isso significa que a defesa
do Ponsonby não estará nas mãos de advogadozinhos de meia tigela, mesmo que ele
não tenha muito dinheiro. Todos os vermes que conheçam as leis do Connecticut e as
leis federais vão andar à bulha para entrar na equipa de defesa do Ponsonby. E
para fazer de nós os bodes expiatórios. Não podemos dar-nos ao luxo de cometer um
único erro.
- O que está a dizer, John, é que, se arranjarmos um mandato agora e invadirmos o
túnel do Ponsonby, a única coisa concreta que teremos é algo parecido com uma sala
de operações, montada na casa de um médico - disse Patrick. - Tal como o Carmine,
eu sempre achei que este assassino não tem um matadouro imundo e sujo de sangue...
tem uma sala de operações. E, se for tão cuidadoso com os vestígios que deixa na
sua sala de operações como tem sido com os que deixa nas vítimas, somos bem capazes
de sair de lá de mãos a abanar. É nisso que está a pensar?
- Exacto - confirmou Silvestri.
- Nada de erros - disse Marciano. - Nem um.

362

- E já cometemos carradas deles - acrescentou Carmine.


O silêncio instalou-se; a exaltação desaparecera completamente. Por fim, Marciano
soltou uma exclamação exasperada e começou a falar:
- Já que ninguém quer dizê-lo, digo-o eu. Temos de apanhar o Ponsonby em flagrante.
E se é isso que temos de fazer, então é isso que temos de fazer.
- Oh, Danny, por amor de Deus! - gritou Carmine. - Pôr a vida de outra rapariga em
perigo? Fazê-la passar pelos horrores de ser raptada por aquele homem? Não o farei!
Recuso-me a fazê-lo!
- Ela apanhará um susto, sim, mas nada que não possa superar. Sabemos quem ele é,
certo? Por isso podemos segui-lo... não precisamos de seguir mais ninguém...
- Não podemos fazer isso, Danny - interveio Silvestri. - Temos de vigiar toda a
gente, tal como fizemos o mês passado. Caso contrário ele reparará. Não podemos
fazer
nada sem uma operação completa.
- Está bem, compreendo. Mas sabemos que é ele, portanto podemos dar-lhe uma atenção
especial. Quando ele se mover, nós estaremos lá. Seguimo-lo até casa da vítima
e deixamo-lo agarrá-la antes de o agarrarmos a ele. Com o rapto em flagrante, o
túnel e a sala de operações, é impossível que ele saia do tribunal em liberdade
- disse Marciano.
- O problema é que é tudo circunstancial - resmungou Silvestri.
- O Ponsonby cometeu pelo menos catorze homicídios, mas temos apenas quatro
cadáveres. Sabemos que as primeiras dez vítimas foram incineradas, mas como havemos
de
o provar? Acham que o Ponsonby tem cara de quem vai confessar? Eu não acredito
nisso. Uma vez que há raparigas de dezasseis anos a fugirem de casa todos os dias,
temos dez homicídios pelos quais nunca conseguiremos condená-lo. Está tudo
dependente da Mercedes, da Francine, da Margaretta e da Faith, mas não há nada que
o ligue
a nenhuma delas para além de uma suspeita frágil como cristal. O Danny tem razão.

363

A nossa única esperança é apanhá-lo com a mão na massa. Se invadirmos o covil


agora, ele não será condenado. Os advogados dele serão suficientemente bons para
persuadirem
um júri a declarar a inocência de Hitler ou Estaline.
Olharam uns para os outros, com expressões perplexas e furiosas.
- Temos outro problema - disse Carmine. - A Claire Ponsonby. O comissário Silvestri
não era um homem profano, mas neste
dia - ainda por cima um domingo! - quebrou as suas próprias regras.
- Merda! Porra! - exclamou entre dentes. E depois cuspiu: -Foda-se!
- Até que ponto achas que ela está a par, Carmine? - perguntou Patrick.
- Não tenho a mínima ideia, Patsy, para dizer a verdade. Sei que a cegueira dela é
genuína, o oftalmologista garante-o. E trata-se do doutor Cárter Holt, actualmente
professor de Oftalmologia na Chubb. No entanto, nunca vi uma pessoa cega tão apta
como ela. Se é ela o isco que eles usam para atrair adolescentes inocentes, cheias
de vontade de fazer o bem, nesse caso ela é cúmplice de violação e homicídio, mesmo
que nunca tenha entrado na sala de operações do irmão. Que melhor isco do que
uma mulher cega? No entanto, uma mulher cega dá muito nas vistas, e é por isso que
estou tentado a pôr essa teoria de lado. Ela estaria a agir em locais que não
conhece tão bem como a casa de Ponsonby Lane, portanto não conseguiria mover-se
muito depressa. E como reconheceria o alvo, a menos que o Chuck estivesse ao seu
lado? Oh, passei muito tempo esta manhã a pensar na Claire! Estou constantemente a
imaginá-la em frente da escola de St. Martha em Norwalk... sabiam que esse passeio
está em mau estado há mais de um ano, devido a reparações nos canos? Com duas
raparigas desaparecidas no mesmo sítio, alguém teria reparado nela. Para mim, a
Claire
teria precisado de passar muitas vezes naquele passeio esburacado, para treinar.
Acabei por chegar à conclusão de que ela seria mais um entrave do que um trunfo
para o Chuck. Suponho que poderia ter alguma utilidade no carro que

364

transporta as vítimas até à sala de operações, mas parece-me um argumento um pouco


rebuscado. No entanto, ele tem de ter um cúmplice.
- Então excluímos a Claire como cúmplice? - perguntou Silvestri.
- Não completamente, John. Apenas como improvável.
- Talvez ela não seja a cúmplice, mas saberá o que o irmão anda a fazer? -
perguntou Patrick.
- Tudo o que posso dizer-vos é que existe uma ligação extremamente forte entre
ambos. Agora que sabemos como foi a infância deles, essa ligação faz mais sentido.
Foi a mãe deles que assassinou o pai, apostaria a minha vida nisso. O que significa
que a Ida Ponsonby já era mentalmente instável muito antes de piorar ao ponto
de a Claire ter de voltar para casa para tomar conta dela. Segundo parece,
aconteceu tão subitamente como tudo o resto.
- Os filhos saberiam do homicídio, Carmine?
- Mais uma vez, não faço ideia, Patsy. Como é que a Ida teria voltado para casa no
meio daquele nevão em mil novecentos e trinta? Presumo que no carro de Leonard,
mas será que as estradas já eram limpas nessa altura? Não me lembro.
- As principais sim, claro - disse Silvestri.
- Ela devia estar suja de sangue. Talvez os filhos tenham visto.
- Especulações! - exclamou Marciano. - Vamos limitar-nos aos factos.
- O Danny tem razão, como sempre - disse Silvestri, recompensando-o com o charuto
debaixo do nariz. - Começamos a vigilância amanhã à noite, portanto temos de
definir
as alterações agora.
- A alteração mais importante - disse Carmine -, é que o Corey, o Abe e eu vamos
vigiar a entrada do túnel na reserva.
- E o cão? - perguntou Patrick.
-A cadela, sim... isso é uma complicação. Duvido que aceitasse carne com drogas, os
cães-guia são treinados a não aceitar comida de estranhos e a não comer nada
que encontrem no chão. E, uma vez que é uma cadela esterilizada, não se afastará em
busca de companhia canina.

365

Se nos ouvir, ladrará. E não tenho a certeza se o Chuck não levará a Biddy com ele,
para ficar de guarda à entrada do túnel na sua ausência. Se assim for, o animal
com certeza que nos farejará. Patrick riu-se.
- Não se estiverem a usar eau de doninha! Os restantes olharam para ele,
horrorizados.
- Credo, Patsy, não!
- Bom, pelo menos o Abe e o Corey - cedeu Patrick com expressão maliciosa. -
Bastaria até um de vós.
- Um de nós de certeza que não usará eau de doninha, e esse sou eu - disse Carmine
de testa franzida. - Tem de haver outra maneira.
- Não há, pelo menos sem nos denunciarmos ao Ponsonby. Não podemos raptar a cadela,
naturalmente. Não estamos a falar de um simplório qualquer com um plano mal
alinhavado,
estamos a falar de um médico que tem estado sempre à nossa frente, desde o
princípio. Se a cadela desaparecer, ele saberá que o descobrimos e será o fim dos
raptos
- disse Patrick. - O trunfo que ele tem na manga é a porta do túnel na reserva, e
temos de o fazer acreditar que essa continua a ser um segredo só dele. Talvez a
proteja, com arames, sinetas ou campainhas que vocês possam pisar como uma mina, ou
uma luz numa árvore... antes de se aproximarem, por amor de Deus procurem bem.
Da mesma forma, de certeza que ele usará a cadela. Não sei como, mas tenho a
certeza disso. Se eu fosse a ele, deitaria um comprimido para dormir na última
bebida
da Claire nessa noite.
- Patsy, que mente tortuosa! - disse Silvestri com um sorriso.
- Não tanto como a do Carmine, John. Admitam, tudo o que eu disse é lógico.
- Sim, eu sei. Mas onde é que havemos de encontrar perfume de doninha?
- Eu tenho uma garrafa dele - disse Patrick docemente. Carmine olhou para Silvestri
com ar ameaçador.
- Nesse caso, o orçamento da polícia de Holloman tem de incluir literalmente litros
de sumo de tomate. Não posso pedir ao Abe e ao Corey

366

que ponham perfume de doninha atrás das orelhas sem lhes oferecer um banho de sumo
de tomate pela manhã. - Franziu a testa, frustrado. - Temos alguma banheira nas
celas, ou apenas duches?
- Há uma grande banheira de ferro numa sala das traseiras, na parte velha do
edifício. Mais ou menos na mesma época em que o Leonard Ponsonby foi morto à
pancada,
era usada para acalmar os malucos antes de os mandar para o manicómio - disse
Marciano.
- Muito bem, mandem alguém lavá-la e desinfectá-la. Depois quero essa banheira
cheia até acima com sumo de tomate, porque acho melhor que tanto o Abe como o Corey
usem o perfume. Assim, se formos obrigados a separar-nos, a cadela não farejará
ninguém.
- De acordo - disse Silvestri, com uma expressão que indicava o final da reunião.
- Alto aí! Ainda não acabámos - disse Carmine. - Ainda temos de discutir
possibilidades. Por exemplo, o Ponsonby está a trabalhar sozinho, ou tem um
cúmplice que
desconhecemos? Partindo do princípio de que a Claire não está envolvida, por que
raio pusemos de lado a probabilidade de haver dois Fantasmas? O Ponsonby tem uma
vida fora do Hug e de sua casa. Sabemos que costuma frequentar exposições de arte,
mesmo quando isso implica faltar um ou dois dias ao trabalho. A partir de agora,
seguimo-lo para onde quer que ele vá. As nossas melhores pessoas, Danny, as
melhores. Os mais discretos, sejam homens ou mulheres... e nada de comunicação por
rádio!
Usem os novos microfones de lapela para a mudança de turnos, o que significa que
nenhum destacamento de rendição pode sair do alcance do rádio... aqueles aparelhos
são muito fracos. As nossas engenhocas estão a melhorar, mas ainda precisávamos de
um Billy Ho e de um Don Hunter. Se o Hug acabar mesmo, John, talvez seja boa ideia
trazê-los para o nosso lado. Ponham-nos no departamento do Patsy, que talvez deva
incorporar a palavra "forense" no nome. E nem diga o que está a pensar, John!
Arranje
o dinheiro, raios!
- Se o Morton Ponsonby fosse vivo, saberíamos a identidade do segundo Fantasma -
disse Marciano.

367

- Danny, o Morton Ponsonby não está vivo - disse Carmine pacientemente. - Vi a


campa dele e vi também o relatório da autópsia. Não, ele não foi assassinado,
simplesmente
morreu de repente. Não foram detectados venenos, embora não tenha sido encontrada
uma causa concreta para a morte.
- A Ida podia ter atacado de novo.
- Duvido, Danny. Parece que ela era uma mulher franzina e o Morton Ponsonby era um
adolescente saudável. Seria difícil sufocá-lo com uma almofada. Além disso, não
tinha nada nas vias respiratórias.
- Talvez haja um quarto filho - insistiu Marciano. - A Ida podia não o ter
registado.
- Oh, não vamos deixar-nos levar pela imaginação - exclamou Carmine, erguendo as
mãos. - Primeiro, com o Leonard morto, quem teria gerado essa misteriosa quarta
criança? O Chuck? Põe os pés na terra, Danny! A presença de uma criança sabe-se...
não estamos a falar de recém-chegados a Ponsonby Lane, estas pessoas eram donas
de Ponsonby Lane! Estavam na zona praticamente desde a chegada do Mayflower. Olha o
caso do Morton. Vivia noutro mundo, mas as pessoas sabiam da existência dele.
Houve gente no seu funeral.
- Então, se houver um segundo Fantasma, é um desconhecido.
- Por enquanto, sim - disse Carmine.

368

Capítulo Vinte e Sete

As noites de segunda e terça-feira passaram sem incidentes, à excepção das queixas


ininterruptas de Abe e Corey. Existir num miasma de doninha era um tormento
equivalente
a tortura, pois nenhum cérebro em toda a criação alguma vez conseguira fazer com
este cheiro o que os cérebros faziam com os cheiros, horríveis ou não: eliminá-los
após algum tempo. As doninhas tresandavam, eram o ponto mais baixo em termos
olfactivos. Apenas o afecto que sentiam por Carmine os persuadira a consentir, mas,
depois de o aroma ser aplicado, arrependeram-se amargamente. Felizmente a velha
banheira na parte antiga do edifício dos Serviços Municipais era suficientemente
grande para acomodar dois homens ao mesmo tempo, caso contrário uma amizade muito
antiga podia ter azedado.
O tempo continuava bom, com temperaturas amenas; perfeito para raptos. Sem chuva e
sem vento.
Carmine tentara pensar em todas as contingências. Para além de Abe, Corey e ele
próprio, escondidos num local onde tinham uma visão desimpedida da entrada do
túnel,
havia carros não identificados em cada esquina de Deer Lane, em cada esquina de
Ponsonby Lane, um em frente da recepção do motel Major Minor, outro no local onde
Carmine se escondera no mês anterior e mais alguns na estrada 133. Estes veículos
eram apenas para as aparências; Ponsonby estaria

369

à espera deles, pois devia tê-los visto em Deer Lane no mês anterior. Os
verdadeiros vigilantes estavam escondidos nos caminhos de acesso às quatro casas de
Deer
Lane. Não havia nenhum carro estacionado em frente às casas; Carmine presumia que a
viatura usada por Ponsonby estaria certamente na estrada 133, num ponto bastante
mais à frente. Não era no entanto nenhum dos carros estacionados na sua garagem,
nem a carrinha nem o Mustang descapotável; esses tinham permanecido na garagem no
mês anterior e era onde se encontravam agora. Talvez fosse o cúmplice a fornecer o
meio de transporte? Nesse caso, Ponsonby iria a pé até ao ponto de encontro.
- Pelo menos vocês podem usar tampões no nariz - consolou-os Carmine enquanto os
três homens subiam a encosta, sabendo que Ponsonby saíra há pouco do Hug e ainda
vinha no caminho. - Eu posso não usar o mesmo perfume, mas tenho de suportar o
vosso cheiro. Bolas, que fedor!
- Respirar pela boca não ajuda muito - queixou-se Corey. -Consigo sentir o sabor
desta porcaria! E finalmente percebi por que é que os cães ficam malucos com o
cheiro.
Recorrendo aos talentos de Pete Evans, o observador de pássaros do departamento,
tinham construído um bom esconderijo a seis metros da porta, sem uma única árvore
entre eles e a entrada do túnel. Estavam os três deitados de barriga para baixo,
embora de vez em quando se virassem de lado, à vez, para impedir que os músculos
ficassem rígidos; um homem era suficiente para manter a vigilância desde que os
outros dois estivessem alerta.
Não tinham encontrado quaisquer armadilhas ou dispositivos de alerta, nem mesmo um
arame esticado; mas Carmine sempre achara que era improvável que os houvesse.
Ponsonby estava convencido de que o seu túnel era secreto. A sua presunção neste
aspecto era interessante, como se residisse numa parte diferente da psique do Dr.
Charles Ponsonby, investigador e bon vivant. Na verdade, Ponsonby era um poço de
contradições - tinha medo de pegar num rato, mas não de ser apanhado pela polícia.

370

Enquanto as horas intermináveis iam passando, Carmine reflectia sobre o túnel. Quem
o construíra? Quantos anos tinha? Apesar de eliminar parte da distância para
quem quisesse subir e descer a colina, tinha de ter pelo menos trezentos metros de
comprimento, talvez mais. Mesmo que tivesse apenas o diâmetro necessário para
um homem a rastejar, o que acontecera à terra e às pedras retiradas? O Connecticut
era uma zona de muros de pedra, porque os agricultores tinham removido as pedras
dos seus campos à medida que os aravam. Quantas toneladas de terra e pedras? Cem?
Duzentas? Como seria ventilado, pois tinha de o ser? Teriam aqueles dois velhos
celeiros a norte de Nova Iorque fornecido a madeira para o escorar?
Às duas da madrugada dessa noite nublada ouviu-se um leve ruído, um ranger que
aumentou gradualmente de intensidade, até se transformar no suave chiar de
dobradiças
bem oleadas obstruídas por partículas de terra. A cobertura de folhas mortas, agora
mais secas do que quando Carmine caíra, deslizou para trás quando a porta se
abriu de frente para os três homens no seu esconderijo. A silhueta que se ergueu da
cavidade negra era igualmente negra; parou, agachada, e soltou um leve gemido
de repugnância quando o odor a doninha lhe chegou às narinas. A cadela pôs a cabeça
de fora e desapareceu imediatamente. Biddy não ia ficar de guarda esta noite.
Ouviram Ponsonby a tentar persuadir o animal a sair, mas sem sucesso. Doninha.
O combinado era que Carmine seguiria Ponsonby enquanto Corey e Abe permaneciam
junto da entrada do túnel; esperou com a respiração suspensa enquanto a silhueta se
endireitava, até ficar da altura de um homem, tão negra que era praticamente
invisível na escuridão quase total desta noite sem Lua e sem estrelas. "O que é que
ele tem vestido?", pensou Carmine. Até o rosto era invisível.

371

E quando a silhueta começou a mover-se, fê-lo silenciosamente, sem que os seus pés
causassem praticamente o mínimo sussurro no chão da floresta. Carmine também estava
vestido de preto, escurecera o rosto e calçava ténis, mas não se atreveu a
aproximar-se demasiado - seis metros no mínimo, rezando para que o capuz que cobria
a
cabeça de Ponsonby lhe dificultasse um pouco a audição.
Ponsonby desceu ligeiramente a encosta em direcção ao largo circular no fim de Deer
Lane. Pouco antes da área de estacionamento, virou em direcção à estrada 133,
ainda oculto pelos bosques que, deste lado, se estendiam até à estrada. Agora que o
terreno era mais nivelado, Carmine sentia grandes dificuldades em ver a sua presa;
sentiu-se tentado em percorrer a curta distância até à estrada, na qual conseguiria
progredir melhor, mas a avareza do concelho de Holloman negava-lhe essa
possibilidade.
Gravilha.
O suor escorria-lhe pelo rosto, cegando-o; limpou rapidamente os olhos, mas, quando
olhou para o local onde a silhueta se encontrava antes desse gesto, já não a
viu. Não porque Ponsonby se tivesse apercebido de que estava a ser seguido, Carmine
tinha a certeza disso. Um capricho do acaso. Deixara a porta do túnel aberta;
assim que tivesse a mais pequena suspeita de que estava a ser seguido, voltaria
nessa direcção e Carmine tinha a certeza de que isso não acontecera. Ele ainda
estava
a dirigir-se para a estrada 133, perdido no meio da escuridão.
Carmine escolheu a opção mais sensata, passou para a gravilha e correu o mais
silenciosamente que conseguiu em direcção ao Chrysler de aparência vulgar
estacionado
na esquina de Deer Lane.
- Ele saiu, mas perdi-o - disse a Marciano, depois de entrar e fechar
silenciosamente a porta. - Fantasma é a palavra certa para ele. Está vestido de
preto dos pés
à cabeça, não faz qualquer ruído e deve ter uma visão melhor do que uma ave
nocturna. Também deve conhecer cada centímetro desta floresta. Não há mais nada a
fazer,
por enquanto, temos de esperar que ele regresse com alguma pobre

372

rapariguinha aterrorizada. Céus, não queria nada que as coisas tivessem chegado a
este ponto!
- Passamos a palavra pelo rádio? - perguntou Marciano.
- Não, uma vez que não fazemos a mínima ideia do tipo de veículo que ele vai Usar.
Pode ter um receptor suficientemente potente para sintonizar todas as nossas
bandas.
Esperem aqui até eu vos avisar de que ele está de volta ao túnel, dêem-me dez
minutos e depois cerquem a casa. Ainda é a melhor solução.
Carmine saiu do carro e penetrou de novo na floresta, regressando à zona de
estacionamento e depois subindo até ao esconderijo.
- Perdi-o, portanto temos de esperar.
- Ele não pode ter ido longe - disse Corey em voz baixa. - A estas horas, não tem
tempo de sair do condado de Holloman.
Quando Ponsonby regressou, por volta das cinco da manhã, era um pouco mais fácil de
ver, apesar de o corpo que trazia aos ombros estar também envolvido em algo negro;
no entanto, dava-lhe mais corpulência, adicionava mais peso aos seus passos. Em vez
de subir vindo de Deer Lane, aproximou-se da porta aberta pelo lado, largou a
sua carga no solo em frente do buraco e entrou primeiro antes de puxar o fardo
atrás de si. A porta fechou-se, aparentemente operada por uma alavanca, e a noite
voltou aos seus habituais sons florestais. Carmine já tinha o dedo no botão do
emissor, para enviar o sinal a Marciano, quando ouviu qualquer coisa; ficou imóvel
e fez sinal aos companheiros para continuarem silenciosos e imóveis. Uma figura
surgiu na crista acima deles e começou a descer em direcção à porta, conduzida pela
cadela que gania, ofegante e relutante, dividida entre os seus deveres de guia e o
fedor insuportável de uma doninha. Claire Ponsonby. Trazia um grande balde e um
ancinho. Desesperada por se afastar, Biddy não parava de ganir e de puxar a trela
segurada por Claire, obrigando-a a trabalhar apenas com uma mão,

373

enquanto tentava persuadir a cadela a sossegar. Primeiro usou o ancinho para cobrir
a porta com as folhas empilhadas ao seu lado, depois despejou o balde de folhas
que trouxera por cima das outras e espalhou-as de novo. Finalmente desistiu de se
debater com a cadela, encolheu os ombros e deixou Biddy conduzi-la pela subida.
- O que fazemos agora? - perguntou Abe quando o som dos seus passos desapareceu
completamente.
- Damos-lhe tempo de chegar a casa, depois chamamos as tropas, conforme planeado.
- Como é que ela sabia onde tinha de tapar? - perguntou Corey.
- Vamos ver se descobrimos - disse Carmine, levantando-se e aproximando-se da porta
camuflada. - Por isto, suponho. - Tocou com o pé num pedaço de cano, aparentemente
pintado de castanho, embora fosse difícil perceber ao certo na fraca claridade. - A
cadela sabe o caminho até à porta mas não pode dizer-lhe quando a alcançam. Quando
ela sente o cano, sabe que está na orla superior da porta. Depois disso é fácil. Ou
seria, noutras circunstâncias. Esta noite tinha de se debater com uma cadela
assustada e viu-se que isso a desorientou.
- Então é ela o segundo Fantasma - disse Abe.
- É o que parece - Carmine enviou o sinal a Marciano. - Muito bem, estamos prontos
para uma viagem ao Inferno? Temos nove minutos antes de Marciano avançar.
- Detesto ter de estragar o trabalhinho todo da Claire - disse Corey com um
sorriso, afastando as folhas.
O túnel era suficientemente largo para ser percorrido de gatas, e era quadrado;
Carmine calculou que este feitio tornaria mais fácil escorá-lo com as tábuas que
cobriam paredes e tecto. Aproximadamente de cinco em cinco metros havia um pequeno
poço de ventilação que parecia ser feito com tubos de dez centímetros. Sem dúvida
que o tubo subia até à superfície, onde era tapado por uma rede, e destapado apenas
quando fosse altura de usar o túnel. Quem pisasse uma das saídas do tubo nem
se aperceberia de que o tinha feito. Oh,

374

o tempo investido! O esforço! Este era um trabalho de muitos anos. Escavado à mão,
escorado à mão, as pedras e a terra transportadas à mão. Na sua vida relativamente
ocupada, Charles Ponsonby não teria tido tempo suficiente para esta obra. Outra
pessoa o fizera.
O túnel parecia estender-se interminavelmente; pelo menos ao longo de trezentos
metros, era o palpite de Carmine. Um percurso de cinco minutos, a boa velocidade.
Depois terminava numa porta, não uma coisa frágil de madeira, mas de aço maciço,
com um disco de combinação e uma fechadura de roda, como a porta estanque de um
submarino.
- Credo, é um cofre! - exclamou Abe.
- Cala-te e deixa-me pensar! - Carmine olhou para o foco de luz da sua lanterna,
onde dançavam partículas de pó, pensando que devia ter calculado que seria
necessário
este tipo de porta para impedir a contaminação. - Muito bem, o mais lógico é
presumir que ele está lá dentro e não sabe o que se passa cá fora. Merda, merda,
merda.
Se a Claire é o segundo Fantasma e não usou o túnel, tem de haver outra entrada
para o matadouro. É dentro da casa e temos de a encontrar. Mexe-te, Corey! Mexe-te!
Voltaram para trás tão depressa quanto conseguiram e Carmine desceu a correr a
encosta até à casa dos Ponsonbys. As luzes estavam a acender-se à medida que as
pessoas
acordavam com o uivo das sirenes; a rua estava entupida de carros, com uma
ambulância de prontidão. Biddy debatia-se, rosnando, numa rede do canil, enquanto
Claire
bloqueava o caminho de Marciano.
- Algema-a e lê-lhe os seus direitos, Danny - disse Carmine, ofegante, apoiando-se
num pilar. - Ela tapou a entrada secreta com folhas, o que faz dela cúmplice.
Mas não conseguimos entrar pelo túnel, ele tem uma porta de cofre a bloquear a
entrada. Deixei o Abe e o Corey de guarda ao túnel... manda alguns homens lá para
cima

375

para os renderem, para os desgraçados poderem ir tomar o seu banho de sumo de


tomate. - aproximou-se de Claire, que parecia fascinada pelas algemas, apalpando-as
tanto quanto conseguia com os dedos finos. - Miss Ponsonby, por favor não seja mais
do que cúmplice de homicídio. Diga-nos onde é a entrada para a câmara de horrores
do seu irmão. Temos provas incontestáveis de que é ele o Monstro do Connecticut.
Ela soltou um soluço e abanou a cabeça.
- Não, não, isso é impossível! Não acredito, recuso-me a acreditar!
- Levem-na para a esquadra - disse Marciano aos dois detectives -, mas deixem-na
ficar com a cadela. É melhor deixar que seja ela a libertá-la da rede, o raio da
cadela está furiosa connosco. E certifiquem-se de que ela é bem tratada.
- Danny, tu e o Patrick venham comigo - disse Carmine, recuperando finalmente o
fôlego. - Mais ninguém. Não queremos a casa cheia de polícias antes que o Paul e
o Luke possam examiná-la, mas temos de encontrar a outra porta antes que o Chuck
possa fazer alguma coisa à pobre rapariga. Quem é ela?
- Ainda não sabemos - disse Marciano com ar infeliz enquanto seguia Carmine para
dentro da casa. - Provavelmente ainda ninguém acordou na casa dela, não são sequer
seis horas. - Tentou parecer animado. - Quem sabe, talvez consigamos levá-la de
volta aos pais antes de darem pela sua falta.
Por que é que achava que a entrada seria na cozinha? Porque era essa a divisão onde
os Ponsonbys pareciam viver, o eixo do seu universo. A antiga casa era como um
museu, e a sala de jantar não passava de um local para colocar as colunas da
aparelhagem, o sistema de som e a colecção de discos.
- Muito bem - disse, conduzindo Marciano e Patrick até à antiga cozinha -, vamos
começar por aqui. Foi construída em mil setecentos e vinte e cinco, portanto as
paredes devem ter um som frágil. Excepto onde houver aço por trás.

376

Nada, nada, nada. A não ser o facto de a cozinha estar gelada, pois o fogão Aga
estava apagado. Porquê? A descoberta de um fogão a gás e de um cilindro de água
quente,
por trás de uma porta apaine-lada, mostravam que os Ponsonbys não precisavam de
morrer assados no Verão, mas ainda faltava muito para o Verão. Então por que estava
o Aga apagado?
- A resposta tem qualquer coisa a ver com o Aga - disse Carmine. - Vamos
concentrar-nos nele.
Por trás havia um reservatório de água, ainda quente. Patrick apalpou e descobriu
uma alavanca.
- É aqui! Encontrei!
De olhos fechados, murmurando uma oração, Patrick puxou. O fogão deslizou
silenciosamente para o lado sobre o seu eixo. E ali, na alcova da chaminé, estava
uma porta
de aço. Quando Carmine, de .38 na mão, girou a maçaneta, a porta abriu-se
silenciosamente, com facilidade. De súbito, hesitou e voltou a guardar a pistola no
coldre.
- Patsy, dá-me a tua máquina fotográfica - disse. - Esta não é uma situação para
tiroteio, mas o Danny pode cobrir-me. Espera aqui.
- Carmine, esse é um risco desnecessário! - gritou Patrick.
- Dá-me a tua máquina, é a melhor arma nestas circunstâncias. Ao fundo de um lance
de escadas de pedra encontraram uma
porta de madeira vulgar. Sem fechadura, apenas uma maçaneta.
Carmine abriu-a e entrou na sala de operações. Os seus olhos não viram mais nada
senão Charles Ponsonby, debruçado sobre uma cama, na qual jazia uma rapariga semi-
inconsciente,
a gemer, já completamente nua e presa por uma larga faixa de lona que lhe segurava
os braços desde os ombros aos pulsos. Ponsonby despira o que quer que utilizava
para as suas incursões nocturnas em casas adormecidas e estava também nu, com a
pele ainda húmida de um duche rápido. Cantarolava entre dentes enquanto as suas
mãos
experientes avaliavam o nível de consciência da sua presa. Morto por que ela
despertasse.

377

A câmara disparou.
-Apanhado! - disse Carmine.
Charles Ponsonby rodopiou sobre si próprio, de boca aberta, encandeado pelo clarão
do flash, sem esboçar qualquer reacção de defesa.
- Charles Ponsonby, está preso por suspeita de homicídio. De acordo com as práticas
da polícia da cidade de Holloman, condado de Holloman, tem direito a manter o
silêncio e a requisitar um advogado. Compreendeu? - perguntou Carmine.
Enquanto Carmine falava, Danny Marciano abriu outra porta e reapareceu com uma
gabardina preta e brilhante na mão.
- Ele está sozinho - disse, guardando a arma -, e isto é tudo o que encontrei.
Estica os braços, meu monte de merda.
Depois de terem enfiado a gabardina a Ponsonby, Marciano pegou nas algemas e
fechou-as sobre os seus pulsos, tão apertadas quanto conseguiu.
- Podes descer, Patsy! - chamou Carmine.
- Meu Deus! - foi tudo o que Patrick conseguiu dizer quando os seus olhos abarcaram
a cena; depois foi ajudar Carmine a enrolar a rapariga no lençol e a levá-la
para cima, seguidos por Marciano e Ponsonby.
Quando o puseram na parte de trás de um carro da polícia, Ponsonby pareceu
regressar ao mundo real por um momento. Arregalou os olhos azuis, atirou a cabeça
para
trás e começou a rir, uma gargalhada aguda de júbilo monumental. Os polícias na
parte da frente do carro continuaram a olhar em frente, de rostos inexpressivos.
A vítima, de identidade ainda desconhecida, foi colocada na ambulância; enquanto
esta se afastava, chegou a carrinha de Luke e Paul, dispersando os residentes de
Ponsonby Lane que se tinham reunido em grupos, estupefactos, trocando murmúrios e
observando
o circo no número seis. Até o major Minor lá estava, falando avidamente.

378

- Podes devolver-me a máquina fotográfica? - pediu Patrick a Carmine quando


entraram na câmara da morte, seguidos por Paul e Luke.
Tudo o que viam era branco ou de aço inoxidável prateado. As paredes eram cobertas
de aço, o chão parecia de mosaicos cinzentos, a uniformidade do tecto metálico
era interrompida apenas por várias lâmpadas fluorescentes. Nenhum pó do túnel podia
penetrar neste local desinfectado e brilhante, pois a porta era estanque, para
além de ter trinta centímetros de espessura. As entradas de ar e um leve zumbido
revelavam a existência de um bom ar condicionado e a sala tinha um cheiro clínico
e limpo. A cama estava apoiada em quatro pernas metálicas redondas e era uma
plataforma de aço inoxidável, com um colchão de espuma enfiado numa cobertura de
borracha,
sobre o qual estava aberto um lençol branco, não apenas limpo, mas engomado. As
extremidades das correias estavam enfiadas em sulcos ao longo da plataforma e
presas
por varas ligeiramente mais estreitas do que as ranhuras. Havia também uma mesa de
operações metálica, fria e vazia. E, mais horrivelmente explícito, um gancho de
talhante e um guincho suspensos do tecto, por cima de um declive no chão ao fundo
do qual havia uma grande grelha de escoamento. Havia armários de portas de vidro
com instrumentos cirúrgicos, drogas, material para injecções, latas de éter,
compressas, fita adesiva, ligaduras. Num armário havia uma série de pénis ocos,
incluindo
o pesadelo que matara Margaretta e Faith. Em cima de um armário havia uma máquina
de jactos de água e outra de limpeza a vapor, noutro capas de borracha para o
colchão,
lençóis e cobertores de algodão. Encostada a uma das paredes estava uma grande arca
frigorífica industrial; Carmine abriu-a, revelando um interior imaculado.
- Ele livrou-se dos lençóis e das capas depois de cada vítima -disse Patrick, de
lábios comprimidos.
- Olha para isto, Patsy - disse Carmine, abrindo uma cortina.

379

Alguém gritou lá de cima:


- Tenente, já sabemos quem é a vítima! Delice Martin, aluna interna em Stella
Maris.
- Então ele não precisou de um carro - disse Carmine a Patrick. - Stella Maris fica
a menos de um quilómetro. Trouxe a rapariga às costas até aqui.
- Sujeitou-se a atrair as atenções sobre si próprio, ao raptar uma rapariga tão
perto de Ponsonby Lane. - Foi o comentário de Patrick.
- De certa forma, sim, mas por outro lado, não. Ele sabia que tínhamos todos os
Huggers sob vigilância, por que havia de ser ele? Até ao fim, esteve convencido de
que o seu túnel era secreto. Agora queres vir ver isto, Patsy? Olha!
Carmine afastou uma cortina de seda branca, revelando uma alcova forrada a mármore
branco cintilante. Numa mesa, como se fosse um altar, havia dois candelabros de
prata com velas brancas por acender, como se aguardassem que algo fosse depositado
numa bandeja de prata em cima de um pano delicadamente bordado. Um sacrifício.
Na parede por cima da mesa havia quatro prateleiras. Nas duas de cima viram seis
cabeças em cada uma; na terceira havia mais duas cabeças e a quarta estava vazia.
As cabeças não estavam congeladas. Não estavam em frascos de formalina. Tinham sido
mergulhadas em plástico transparente, como as lojas de recordações faziam às
borboletas.
- Ele teve problemas com o cabelo - disse Patrick, cerrando os punhos para parar o
tremor das mãos. - Percebe-se que melhorou muito com a prática. Penosamente lentas,
aquelas primeiras seis cabeças! Um gancho de ferro para segurar a cabeça virada ao
contrário dentro do molde, enquanto ele despejava um pouco de plástico, o deixava
assentar, depois despejava mais um pouco. Fez um grande avanço na sétima cabeça...
provavelmente arranjou maneira de fixar o cabelo. Assim já podia encher o molde
uma só vez. Gostava de saber como é que resolveu o problema da decomposição
anaeróbia,

380

mas aposto que retirou os cérebros e encheu a cavidade craniana com um gel de
formalina, talvez. Por baixo daquele delicado folho de papel de alumínio, os
pescoços
estão selados. - Patrick combateu os vómitos que o acometeram subitamente. - Estou
agoniado.
- Sei que o plástico líquido é terrivelmente caro, mas pensava que não resultaria
em espécimes tão grandes - disse Carmine. - Mas a cabeça da Rosita Esperanza parece
estar em boas condições.
- Não importa muito o que os manuais ou os fabricantes dizem. Estas catorze
contradições dizem-nos que o Charles Ponsonby era um mestre da técnica. Além disso,
o
molde é justo, pouco maior do que a cabeça. Um litro de plástico seria mais do que
suficiente.
- Transformou os seus talismãs em borboletas.
Os dois técnicos tinham vindo ver, mas não se demoraram muito; seria trabalho deles
retirar cada cabeça e embalá-la como evidência. Mas apenas depois de cada
centímetro
da divisão ser fotografado, desenhado e catalogado.
- Vamos ver a casa de banho - sugeriu Patrick.
- Ele trouxe a Delice Martin - disse Carmine depois de olhar -, atirou-a para a
cama e veio tomar um duche. Isto era o que vestia quando a raptou.
Era um fato de mergulho de borracha preta, do tipo usado pelos mergulhadores de
pouca profundidade - fino e leve. Ponsonby retirara as faixas e fitas coloridas e
eliminara o brilho. Ao lado do fato, no chão, estava um par de botas de borracha de
sola lisa, muito bem arrumadas, e um par de finas luvas de borracha preta dobradas
em cima de um banco.
- Flexíveis - disse Carmine, flectindo uma das botas entre as mãos enluvadas. -
Este tipo pode ser um investigador falhado, mas como assassino é fenomenal. -
Voltou
a colocar a bota exactamente no mesmo sítio.
Regressaram à divisão principal, onde Paul e Luke já tinham começado a sessão
fotográfica; estariam dias e dias ocupados com as muitas tarefas de que Patrick os
incumbiria.

381

- As cabeças são toda a evidência de que precisamos para o acusar de catorze


homicídios - disse Carmine, fechando a cortina. - De certa forma é engraçado, como
ele
as manteve expostas com este destaque, parece não lhe ter sequer ocorrido que
alguém podia descobrir este local. Se neste estado houvesse pena de morte, o
Ponsonby
não se safava. Assim, apanhará catorze sentenças perpétuas consecutivas. O nosso
fantasma morrerá na prisão, agredido todos os dias pelos outros reclusos. Como o
vão odiar!
- É uma boa imagem, mas sabes tão bem como eu que o director o manterá isolado.
- Sim, é pena mas é verdade. Só quero que ele sofra, Patsy. O que é a morte, senão
um sono eterno? E o que é o isolamento numa prisão, senão uma oportunidade de
ler muitos livros?

382

Capítulo Vinte e Oito

Por razões que não queria explorar, Wesley le Clerc nunca conseguia pensar em si
próprio como Ali el Kadi quando estava em casa da tia. Assim, foi Wesley le Clerc
que se arrastou para fora da cama às seis da manhã; a tia Celeste insistia nisso.
Depois de abrir o tapete para as suas orações matinais, dirigiu-se à casa de banho
para aquilo a que chamava os quatro Cs - champô, chuveiro, cortar a barba e cagar.
O comício de Mohammed estava organizado e, além disso, Mohammed dizia que ele devia
continuar a ser um empregado modelo na Parson Surgical Supplies, para além de
seu espião no Hug. No seu local de trabalho, Wesley fora transferido dos pinças-
mosquito Halstead para instrumentos de microcirurgia, e o seu supervisor andava a
falar em dar-lhe uma formação especial que lhe permitiria melhorar ou mesmo
inventar instrumentos. Com o governo federal a pressionar as empresas por igualdade
de
oportunidades na atribuição de emprego, um trabalhador negro dotado era precioso,
por outras razões para além da sua qualidade; ele ou ela contribuíam para as
estatísticas
que mantinham o Congresso satisfeito. Nada disso importava para o frustrado Wesley,
que ardia por desferir um golpe pelo seu povo agora, não num futuro remoto quando
tivesse a merda do canudo da Ordem dos Advogados do Connecticut.

383

Otis estava a sair para o Hug quando Wesley entrou na cozinha. A tia Celeste estava
a arranjar as unhas, que usava compridas, pintadas de encarnado e bastante bicudas
para realçar os dedos longos e afunilados. O rádio estava ligado; ela desligou-o e
levantou-se para servir a Wesley o seu pequeno-almoço de sumo de laranja, cereais
e torradas de pão integral.
- Apanharam o Monstro do Connecticut - comentou, enquanto punha margarina na
torrada.
Wesley deixou cair a colher na tigela de cereais, salpicando a mesa.
- O quê? - perguntou, limpando o leite antes que ela visse o que tinha feito.
- Apanharam o Monstro do Connecticut há cerca de quinze minutos. As notícias não
falam de outra coisa, ainda não passaram uma única música.
- Quem é ele, um Hugger?
- Não disseram. Wesley ligou o rádio.
- Então devem estar a falar nisso agora, não?
- Suponho que sim - disse Celeste, voltando à sua manicura. Wesley ouviu o boletim
noticioso com a respiração suspensa,
mal podendo acreditar nos seus ouvidos. Apesar de a identidade do Monstro não ser
revelada, a whmn estava em condições de poder informar que era um profissional
bastante importante da área da medicina e que havia uma cúmplice do sexo feminino.
Os dois compareceriam às nove da manhã perante o juiz Douglas Thwaites, no tribunal
do distrito de Holloman, para formalizar a acusação e fixar a fiança. - Wes?Wes?
Wes!
- Hã? Sim, tia?
- Sentes-te bem? Não vais desmaiar, pois não? Já basta uma pessoa de coração fraco
na família.
- Não, não, tia, eu estou bem, a sério. - Beijou-a na face e voltou ao quarto para
vestir o seu casaco mais largo, luvas e um gorro

384

de lã. Apesar de estar um dia de sol, a temperatura ainda estava bastante baixa.
Quando chegou ao número dezoito de Fifteenth Street, encontrou Mohammed e os seus
seis amigos mais íntimos reunidos num grupinho assustado; tinham apenas três dias
para reorganizar o tema do comício, para tentar capitalizar de alguma forma este
desenvolvimento inesperado. Quem poderia sonhar que aqueles porcos incompetentes
fariam uma detenção?
Com um sorriso tímido e apologético, Wesley passou por eles e entrou naquilo a que
Mohammed se referia como a sua "sala de meditação". Para Wesley, parecia-se mais
com um arsenal, com as paredes cobertas de prateleiras com caçadeiras,
metralhadoras e espingardas automáticas; os revólveres estavam guardados em vários
armários
metálicos, que em tempos tinham pertencido a uma loja de armamento, com gavetas
especificamente desenhadas para esse tipo de material. Em pilhas no chão, onde quer
que houvesse espaço livre, havia caixas de munições.
Apesar dos armamentos, ou talvez por causa deles, este era sempre o local mais
sossegado da casa, e tinha aquilo de que Wesley precisava neste momento: uma mesa
e uma cadeira, cartolina branca, tintas, pincéis, canetas, réguas, tesouras e uma
guilhotina. Wesley pegou numa folha de cartolina de quarenta e cinco por setenta
e cinco centímetros e marcou uma secção com vinte centímetros de largura, que
depois cortou com um x-acto encostado a uma régua. Não ficava com muito espaço para
uma mensagem, mas a que ele tinha em mente não era longa. Letras pretas, fundo
branco. E onde é que estava o equipamento de hóquei do filho de Mohammed, aquele
fedelho
mimado? Vira-o caído num lado qualquer, agora que o miúdo chegara à conclusão que
afinal Alá não queria que ele fosse uma estrela do hóquei. A sua mania mais recente
era o salto em altura, por causa de um campeão qualquer do Liceu Travis.
- Olá, Ali! Estás ocupado? - perguntou Mohammed, entrando.
- Sim. Estou ocupado a arranjar-te um mártir, Mohammed.

385

- A transformar-me num mártir, é isso que queres dizer?


- Não, a fabricar-te um mártir a partir de alguém menos importante.
- Estás a brincar?
- Não. Onde é que está o equipamento de hóquei do Abdullah?
- Duas salas mais para dentro. Conta-me mais, Ali.
- Agora não tenho tempo, tenho muito que fazer. Vê se tens a televisão ligada no
Channel Six às nove da manhã. - Wesley pegou num pincel mas não o mergulhou na
tinta
preta. - Preciso de privacidade, Mohammed. Assim nunca poderão provar que tu
estavas a par dos meus planos.
- Claro, claro! - Com um sorriso, Mohammed fingiu uma vénia e saiu da sala de
meditação, deixando Wesley sozinho.
Quando Carmine entrou na esquadra, parecia que estavam cem polícias à sua espera
para lhe apertar a mão, lhe dar palmadas nas costas, lhe sorrir com expressão
idiota.
Para a imprensa, Charles Ponsonby ainda era o Monstro do Connecticut, mas para
todos os polícias ele era um Fantasma.
Silvestri estava tão feliz que apareceu à porta e deu um beijo repenicado na
bochecha de Carmine, abraçando-o.
- O meu rapaz, o meu rapaz! - Trauteou, com os olhos brilhantes das lágrimas. -
Salvou-nos a todos.
- Oh, vá lá, John! Deixe-se de dramatismos, este caso já durava há tanto tempo que
morreu de velhice - disse Carmine, embaraçado.
- Vou recomendá-lo para uma medalha, nem que o governador tenha de inventar uma.
- Onde estão o Ponsonby e a Claire?
- Ele está numa cela com dois polícias a fazerem-lhe companhia... este palhaço que
nem sonhe em enforcar-se! Também não tem nenhuma cápsula de cianeto enfiada no
recto, já nos certificámos

386

disso. A irmã está num gabinete vago neste piso, com duas agentes. E a cadela. Na
pior das hipóteses, é cúmplice. Não temos qualquer evidência que sugira que ela
é o segundo Fantasma, pelo menos evidências capazes de impressionar o céptico do
Thwaites, aquele velho pedante. As nossas celas são limpas, Carmine, mas não foram
concebidas para acomodar uma senhora, muito menos uma senhora cega. Achei que seria
boa política tratá-la de uma forma que os seus advogados não possam criticar
quando ela for a julgamento... se for a julgamento. Neste momento, é duvidoso.
- Ele falou?
- Nem uma palavra. De tempos a tempos dá uma grande gargalhada, mas não disse nada.
Olha para o vazio, cantarola entre dentes, ri-se.
- Vai alegar insanidade.
- Não tenho a menor dúvida. Mas os loucos, segundo as regras M'Naghten, não
conseguem planear a construção de uma câmara de horrores como aquela até ao mais
ínfimo
pormenor.
- E a Claire?
- Continua a dizer que se recusa a acreditar que o irmão seja um assassino em série
e que ela não fez nada errado.
- A menos que o Patsy e a sua equipa consigam encontrar algum vestígio dela na sala
de morte ou no túnel, de certeza que ela se safa. Quer dizer, uma cega e a sua
cadela guia esvaziam um balde de folhas mortas na reserva dos veados e espalham-
nas? Um advogado minimamente competente seria capaz de provar que ela estava a
levar
comida aos veados e despejara o balde no local onde o irmão Chuck lhes construíra
um comedouro. Claro que podemos sempre ter a esperança de obter uma confissão.
- Vá sonhando! - disse Silvestri com uma fungadela desdenhosa. - Nenhum destes dois
me parece muito dado a confissões. -Fechou um olho e fixou Carmine com o outro.
-Acredita que ela é o segundo Fantasma?
- Honestamente não sei, John. Não conseguiremos prová-lo.
387

- Bom, seja como for, eles vão ser formalmente acusados no tribunal do juiz
Thwaites, às nove horas. Eu queria que fosse num local menos público e de forma
mais
discreta, mas o Doug Thwaites não cedeu. Que confusão. O Ponsonby tem apenas uma
gabardina vestida e recusa-se a vestir seja o que for. Se o obrigarmos e lhe
fizermos
a mais pequena nódoa negra ou cortezinho, vão acusar-nos de brutalidade policial,
portanto vai comparecer no tribunal de gabardina. O Danny apertou-lhe demasiado
as algemas, já nos basta isso. O maldito tem os pulsos em carne viva.
- Suponho que todos os jornalistas que conseguirem chegar a Holloman a tempo vão
estar em frente do tribunal, incluindo os apresentadores das notícias do Channel
Six - disse Carmine com um suspiro.
- Naturalmente. Isto é uma grande notícia para uma cidade tão pequena.
- Não podemos acusar a Claire separadamente?
- Podíamos, se o Thwaites fosse nisso, mas não vai. Quer ter os dois à sua frente
ao mesmo tempo. Por curiosidade, acho eu.
- Não, ele quer uma antevisão que o ajude a decidir-se sobre a cumplicidade da
Claire.
- Já comeu alguma coisa, Carmine? -Não.
- Então vamos ver se apanhamos uma mesa no Malvolio's antes da hora de ponta.
- Como estão o Abe e o Corey? Já se livraram do fedor a doninha?
- Sim, e estão muito mal-humorados. Queriam ter estado consigo naquela cave.
- Tenho muita pena, mas eles tinham de se lavar. Sugiro que aperte com o governador
para arranjar mais duas medalhas, John. E uma grande cerimónia.

388

O tribunal de Holloman ficava em Cedar Street, no parque, a uma curta caminhada do


edifício dos Serviços Municipais. Contudo era uma caminhada que os Ponsonbys não
podiam fazer. Alguns jornalistas mais empreendedores, com os respectivos
fotógrafos, estavam à porta da esquadra quando Ponsonby foi retirado da mesma, com
uma toalha
por cima da cabeça e a gabardina abotoada do pescoço aos joelhos, onde alguém a
prendera com um alfinete-de-ama para ter a certeza de que não se abriria de
repente.
Assim que Ponsonby pisou o passeio, começou a lutar com os polícias que o
escoltavam, não para fugir, mas para se livrar da toalha. Por fim foi enfiado no
carro-patrulha
de rosto à mostra, no meio de um clarão azul de flashes; ninguém estava disposto a
correr riscos com a luz. O carro já tinha arrancado quando Biddy saiu do edifício,
conduzindo Claire. Tal como o irmão, não permitiu que ninguém lhe cobrisse a
cabeça. Os guardas que a escoltavam foram manifestamente gentis com ela e a viatura
que a transportou ao longo do quarteirão, até ao tribunal, foi o carro oficial de
Silvestri, um grande Lincoln.
A multidão em frente ao tribunal era tão grande que Cedar Street tivera de ser
completamente cortada ao tráfego; uma fila de polícias, de braços dados, avançava
e recuava ao ritmo dos empurrões da multidão que estavam a tentar controlar. Talvez
apenas metade das pessoas fossem negras, mas ambas as metades estavam muito
zangadas.
A imprensa estava por trás do cordão policial: operadores de câmara com as câmaras
ao ombro, repórteres fotográficos com as máquinas em automático, locutores de
rádio a falarem para os microfones, o apresentador das notícias do Channel Six a
fazer o mesmo. Um dos jornalistas era um negro baixo e magro com um casaco
volumoso;
foi abrindo caminho aos poucos, sorrindo e pedindo licença em voz baixa, com as
mãos enfiadas nos bolsos para as aquecer.
Quando Charles Ponsonby foi retirado do carro-patrulha, os jornalistas
precipitaram-se para ele, com o homenzinho magro na linha

389

da frente. Este retirou uma mão negra e magra de dentro do casaco e levou-a à
cabeça, na qual enfiou um chapéu estranho, um chapéu com uma tira de cartolina
branca
que dizia em letras pretas e bem desenhadas nós sofremos. Todos os olhares se
tinham voltado para o chapéu, incluindo o de Charles Ponsonby; ninguém viu a outra
mão de Wesley le Clerc sair do bolso com uma pistola preta. Antes que os polícias
conseguissem sacar das armas, ele já colocara quatro balas no peito e no abdómen
de Ponsonby. Mas não foi liquidado por nenhuma descarga de artilharia. Carmine
saltara para a sua frente para o proteger, berrando a plenos pulmões:
- Não disparem!
E estava tudo na televisão, cada milissegundo dos eventos, desde o chapéu nós
sofremos, à expressão espantada de Charles Ponsonby, ao salto suicida de Carmine.
Mohammed
el Nesr e os seus amigos assistiram ao desenrolar da acção, tensos com o choque.
Depois Mohammed afundou-se na sua cadeira e ergueu os braços, exultante.
- Wesley, conseguiste, deste-nos o nosso mártir! E aquele estúpido do Pelmonico
salvou-te para o julgamento. Raios, e que julgamento vai ser!
- Ali, queres tu dizer - corrigiu Hassan, sem compreender.
- Não, a partir de agora ele é o Wesley le Clerc. Tem de parecer que agiu em nome
de todo o povo negro, não apenas da Brigada Negra. É assim que vamos trabalhar
isto.
Aconteceu tudo dois minutos antes da chegada do carro de Claire Ponsonby, pelo que
ela não chegou a testemunhar o destino do irmão. Primeiro, o carro ficou preso
numa massa de corpos em movimento. Por fim a polícia conseguiu abrir espaço
suficiente para o Lincoln inverter a marcha e voltar a descer Cedar Street até ao
edifício
dos Serviços Municipais.

390

- Meu Deus, Carmine, estás louco? - inquiriu Danny Marciano, branco como a cal, com
o corpo a tremer. - Os meus homens estavam em piloto automático, teriam abatido
o próprio Papa!
- Bom, felizmente não dispararam contra mim. Mais importante ainda, Danny, não
houve balas perdidas que pudessem acertar num operador de câmara ou matar a Di
Jones...
como é que Holloman poderia sobreviver sem a coluna de mexericos dela ao domingo?
- Sim, eu sei por que razão o fizeste... e eles também, há que lhes dar esse
crédito. Tenho de dispersar esta multidão.
Patrick estava ajoelhado junto da cabeça de Charles Ponsonby, inclinada para trás,
com uma expressão ultrajada no rosto magro e fino; um lago de sangue espalhava-se
sob o corpo, cada vez mais lentamente à medida que se expandia.
- Morto? - perguntou Carmine, curvando-se.
- E bem morto. - Patrick passou a mão sobre os olhos fixos e incrédulos de
Ponsonby, para os fechar. - Pelo menos não falará e, na minha opinião, tem um
inferno
à espera dele.
Wesley le Clerc estava de pé no meio de dois polícias uniformizados, parecendo
inofensivo e insignificante; todas as câmaras continuavam apontadas a ele, ao homem
que executara o Monstro do Connecticut. Justiça violenta, mas justiça, de certa
forma. Não ocorreu a ninguém que Ponsonby ainda não fora julgado e poderia,
eventualmente,
ser inocente.
Silvestri desceu as escadas do tribunal, limpando a testa.
- O juiz não achou graça nenhuma - disse a Carmine. - Meu Deus, que grande fiasco!
Tirem-no daqui! - gritou aos homens que seguravam Wesley. - Vá, levem-no e prendam-
no!
Carmine seguiu Wesley até ao carro-patrulha e sentou-se ao lado dele, no banco
manchado e mal cheiroso, com a cabeça virada para o lado. Wesley ainda tinha aquele
chapéu idiota com a sua mensagem dilacerante: nós sofremos. Mas a primeira coisa
que Carmine fez foi informar Wesley da sua situação, em voz suficientemente alta
para que os polícias no banco da frente o pudessem ouvir.

391

Depois tirou-lhe o chapéu e revirou-o entre as mãos. Um capacete de hóquei de


plástico, que fora atacado com um alicate de forma a encaixar por cima das orelhas.
Depois de colocado, ficaria no sítio o tempo suficiente para ser visto.
- Suponho que pensaste que cairia, no meio da chuva de balas que esperavas que te
acertassem, e contudo aqui está ele, na tua cabeça até ao fim. Mesmo depois de
teres sido enfiado neste carro. És melhor artífice do que pensas, Wesley.
- Fiz uma coisa grandiosa - disse Wesley em tom vibrante -, e farei outras ainda
mais grandiosas!
- Não te esqueças de que tudo o que disseres pode ser usado como evidência contra
ti.
- O que é que isso me interessa, tenente Delmonico? Sou o vingador do meu povo,
matei o homem que violou e matou as nossas raparigas. Sou um herói e é assim que
serei encarado.
- Oh, Wes, estragaste a tua vida, não vês? O que te deu esta ideia, o Jack Ruby?
Não pensaste que eu te deixaria morrer como ele, pois não? Tens uma mente tão boa!
E é uma pena, porque, se tivesses feito o que eu te disse, podias ter feito uma
diferença importante para o teu povo. Mas não, não quiseste esperar. Matar é fácil,
Wes. Qualquer pessoa pode matar. Para mim, isso indica um Q.I. para aí quatro
pontos acima de um vegetal. O Charles Ponsonby teria passado o resto dos seus dias
na prisão. Tudo o que tu fizeste foi libertá-lo.
- Era ele? O doutor Chuck Ponsonby? Ora vejam! Sempre era um Hugger, então. O
senhor não consegue compreender, tenente. Ele foi apenas um meio para eu atingir o
meu fim. Deu-me a oportunidade de me tornar um mártir. Acha que me interessa se ele
está morto ou vivo? Estou-me borrifando! Eu é que tenho de sofrer, e sofrerei.
Enquanto Wesley le Clerc era conduzido para as celas, Silvestri apareceu como um
furacão, mastigando violentamente o seu charuto.
- Lá vai outro que teremos de vigiar a cada segundo - resmungou. - Se o deixarmos
cometer suicídio, estamos metidos em grandes sarilhos.
- Ele também é um tipo muito inteligente e com grande perícia manual, portanto
tirar-lhe o cinto e tudo o que ele possa rasgar em tiras não o impedirá de tentar,
se for essa a sua intenção. Pessoalmente, não acredito que seja. O Wesley quer ver
tudo exibido em público.
Entraram no elevador.
- O que fazemos com Miss Claire Ponsonby? - perguntou Carmine.
- Desistimos das acusações e libertamo-la imediatamente. É o que o procurador
público diz. Um balde de folhas secas não chega para a deter, quanto mais para a
condenar.
A única coisa que podemos fazer é proibi-la de sair do condado de Holloman... por
enquanto. - O rosto papudo franziu-se como o de um bebé com cólicas. - Oh, que
caso filho da mãe que este tem sido, do princípio ao fim! Todas aquelas raparigas
bonitas e virtuosas mortas, e ninguém que lhes faça justiça a sério. E como diabo
hei-de lidar com as famílias em relação às cabeças?
- Pelo menos as cabeças representam o fechar de uma porta para as famílias, John.
Não saber é pior do que saber - disse Carmine enquanto saíam do elevador. - Onde
está a Claire?
- No mesmo gabinete.
- Importa-se que seja eu a tratar do assunto?
- Se me importo! Esteja à vontade. Não quero sequer ver aquela cabra!
Ela estava sentada numa cadeira confortável, com Biddy deitada aos seus pés,
ignorando as duas jovens polícias de ar pouco à vontade que tinham recebido ordens
para
não tirar os olhos dela. Uma vez que Claire não via, isso parecia, de alguma forma,
uma invasão imperdoável da sua privacidade.
- Ora, tenente Delmonico! - exclamou ela, endireitando-se quando ele entrou.

392 - 393

- Desta vez não foi o motor V8 do meu carro que me denunciou. Como é que o faz,
Miss Ponsonby?
Ela abriu um sorriso afectado que a fez parecer velha, manhosa, azeda, desprezível;
algo na sua expressão causou em Carmine um daqueles clarões de compreensão fugazes,
tão vitais na carreira policial. Algo que lhe disse que ela era, decididamente, o
segundo Fantasma. "Oh, Patsy, Patsy, arranja-me algo que a coloque na câmara da
morte! Encontra-me uma fotografia ou um filme dela e de Chuck no meio de um
homicídio ou violação. Cresce, Carmine! Não vais encontrar nada. As únicas
recordações
que eles guardaram foram as cabeças. De que serve uma imagem, instantâneo ou filme,
a uma pessoa cega? Na verdade, de que serve uma cabeça?"
- Tenente - disse ela num sussurro -, o senhor leva o seu V8 para onde quer que
vai. O motor não está no seu carro, está em si.
- Já a informaram de que o seu irmão, o Charles, está morto?
- Sim, já. Sei também que ele não fez nenhuma das coisas que dizem que ele fez. O
meu irmão era um homem intelectual, exigente e terrivelmente bondoso. Esse pacóvio
do Marciano acusou-me de ser amante dele... bah! Ainda bem que eu não tenho uma
mente tão suja.
- Temos de levar todas as possibilidades em conta. Mas é livre de partir, Miss
Ponsonby. Todas as acusações foram retiradas.
- Bem me parecia - disse ela, puxando a pega da trela de Biddy.
- Onde vai ficar? A sua casa ainda é uma cena de crime sob investigação e assim
continuará durante algum tempo. Quer que telefone a Mrs. Eliza Smith?
- Com certeza que não! - exclamou ela. - Se não fosse a língua comprida daquela
mulher, nada disto teria acontecido. Espero que ela morra com um cancro na língua!
- Nesse caso, para onde vai?
- Ficarei no motel até poder voltar para minha casa, mas aviso desde já que
tenciono contratar advogados para cuidarem dos meus interesses no número seis de
Ponsonby
Lane, portanto sugiro que não danifiquem nada. A casa não cometeu qualquer crime.

394

E com isto saiu. "O vencedor leva tudo, Carmine. Fantasma ou não, ali vai uma
mulher formidável."
Carmine voltou para a casa que não cometera qualquer crime, apesar de não se ter
oferecido para levar Claire ao motel Major Minor's. Silvestri doara o seu Lincoln
para isso. Estavam agora a entrar na fase mais triste de qualquer caso - o monótono
e pouco ins-pirador rescaldo.
Quando chegaram todos ao Hug, as notícias de que o Monstro do Connecticut já fora
apanhado eram, em termos noticiosos, bastante antigas. Todos os rostos pareciam
mais lisos, mais jovens, e cada par de olhos brilhava. Oh, o alívio! Talvez agora o
Hug pudesse voltar ao normal, pois evidentemente o Monstro não era um Hugger.
Desdemona não vira Carmine desde que regressara da sua caminhada, nem estava à
espera disso, já que sabia que ele estava ocupado com a vigilância do Fantasma.
Mas,
quando estava prestes a sair para o carro-patrulha para se dirigir ao Hug, nesta
quarta-feira de manhã, o telefone tocou: era Carmine, e parecia curiosamente pouco
emotivo.
- Há uma televisão na sala de reuniões do Hug, se bem me lembro - disse. - Acende-a
no Channel Six, está bem? - E desligou.
Arrastando os pés, esmagada pelo tom impessoal dele, Desdemona abriu a sala de
reuniões e acendeu a televisão precisamente quando o relógio de parede marcava as
nove horas da manhã. Oh, como não queria ver isto! Mal passara a porta do Hug,
ouvira toda a gente aos gritos de que o Monstro fora apanhado. Como se os polícias
no carro que a trouxera conseguissem falar de outra coisa! Agora teria de ver o que
Carmine andara a fazer nas suas incursões nocturnas, e temia-o. Ele estava bem,
em princípio, mas durante três noites ela estivera consumida pela preocupação, até
mesmo pelo terror. O que faria se ele nunca mais voltasse para casa? Oh, que diabo

395

lhe passara pela cabeça para decidir declarar a sua independência com uma caminhada
no fím-de-semana anterior à vigilância do Fantasma? Por que diabo não percebera
que ele não viria para casa no domingo à noite? Todas as suas esperanças estavam
centradas nisso enquanto percorria a magia dos bosques: como o abraçaria e lhe
diria
que não podia viver sem ele. Mas... nada de Carmine. Apenas os ecos do seu
apartamento vermelho.
A televisão tremeluziu e ganhou vida. Sim, ali estava o tribunal, rodeado por uma
multidão de centenas de pessoas, jornalistas por todo o lado, polícia por todo
o lado. Um operador de câmara do Channel Six conseguira, pelos vistos, empoleirar-
se no tejadilho de uma carrinha para abarcar toda a cena; outro estava entre a
multidão e um terceiro no passeio, perto de um carro-patrulha que se aproximava.
Viu Carmine de pé ao lado de um grande capitão de uniforme que reconheceu como
sendo
Danny Marciano. O comissário Silvestri estava no alto da escadaria do tribunal,
muito elegante num uniforme com cordões prateados cintilantes. Depois, da porta de
trás do carro-patrulha, surgiu o Dr. Charles Ponsonby. Com um aperto no coração,
Desdemona abriu a boca. Deus do céu, Charles Ponsonby! Um Hugger. O melhor e mais
antigo amigo de Bob Smith. "Estou a testemunhar", pensou ela, "a extinção do Hug.
Estarão os directores Parson a assistir a isto em Nova Iorque? Sim, claro que
estão!
O canal é afiliado da rede. Terão os directores Parson encontrado já aquela
cláusula de fuga? Se não encontraram, redobrarão os seus esforços depois desta
bomba."
O que aconteceu a seguir foi tão rápido que parecia ter acabado antes mesmo de
começar: o homenzinho negro, o chapéu a dizer nós sofremos, o som dos quatro tiros,
Charles Ponsonby a cair, e Carmine a colocar-se deliberadamente em frente do
homenzinho negro ainda com a feia pistola na mão. Quando Carmine fez aquilo e todos
os polícias levaram a mão aos coldres, Desdemona sentiu-se morrer, aguardando
paralisada no tempo que o som de uma dezena de armas o cortasse ao meio. O seu
rugido
de "Não disparem!"

396

ecoou claramente nas ondas sonoras. Carmine estava incólume, miraculosamente, os


polícias estavam a guardar as armas e a avançar para agarrar o homenzinho negro,
que não fez qualquer tentativa de fugir. Desdemona sentou-se, trémula, com as mãos
sobre a boca, os olhos quase a saltarem das órbitas. Carmine, seu louco! Seu
idiota!
Seu soldado imbecil! Não morreste - desta vez. Mas estou condenada ao destino de
uma mulher de soldado, para sempre.
A quem dizer primeiro? Não, era melhor dizer-lhes a todos ao mesmo tempo,
imediatamente. O Hug tinha um sistema de altifalantes: Desdemona usou-o para chamar
todos
os Huggers ao anfiteatro.
Depois dirigiu-se ao gabinete de Tâmara; alguém teria de ficar a cuidar dos
telefones. Pobre Tâmara! Era uma sombra do que fora, desde que Keith Kyneton lhe
batera
com a porta na cara. Até o cabelo parecia estar mais fino, mais baço e desleixado.
Ela nem sequer reagiu, limitou-se a acenar e continuou sentada a fitar o vazio.
* A notícia das actividades secretas de Charles Ponsonby caiu como uma bomba sobre
as pessoas reunidas no anfiteatro, causando exclamações, arquejos e incredulidade.
Para Addison Forbes, era uma graça divina: sem Ponsonby nem Smith no caminho, o Hug
seria seu. Por que havia o conselho directivo de procurar noutro lado quando
ele era tão adequado? Tinha a experiência clínica que levava os investigadores a
produzir e a sua reputação era internacional. O conselho directivo gostava dele.
Sem Smith nem Ponsonby, o Hug sob a liderança do professor Addison Forbes avançaria
para coisas maiores e melhores! E quem precisava do arrogante Grande Marajá da
índia? O mundo estava cheio de potenciais vencedores do Prémio Nobel.
Walter Polonowski mal ouviu o sucinto resumo dos eventos feito por Desdemona;
estava demasiado deprimido. Quatro filhos com Paola e um quinto a caminho, com
Marian.
Ao ver a aliança de casamento

397

no horizonte, Marian começara a livrar-se da pele de amante para revelar uma nova
epiderme tingida de cores matrimoniais. Elas são serpentes, e nós somos as suas
vítimas.
Para Maurice Finch, a notícia trouxe pesar, mas um pesar tranquilo. Sempre pensara
que desistir da medicina seria equivalente a uma sentença de morte, mas os eventos
dos passados meses tinham-lhe mostrado que não era bem assim. As suas plantas
também eram pacientes; as suas mãos carinhosas e hábeis podiam tratar delas, curá-
las,
ajudá-las a multiplicarem-se. Sim, a perspectiva de uma vida com Cathy numa quinta
com galinhas soava-lhe muito bem. E ainda ia conseguir dominar aqueles malditos
cogumelos.
Kurt Schiller não ficou surpreendido. Nunca gostara de Charles Ponsonby, de quem
sempre suspeitara ser um homossexual encapotado; a atitude de Chuck era cúmplice
de forma demasiado subtil, e a sua arte falava em segredo de um mundo de pesadelo
por trás daquele exterior anónimo. Não era o tema, antes algo que emanava de Chuck.
Na opinião de Kurt, ele era um dos rapazes cabedal-e-correntes, com preferência
pela dor, embora Schiller sempre tivesse presumido que seria Chuck o objecto da
dor.
Um homem do tipo passivo, servindo algum mestre aterrorizador. Bom, era evidente
que se enganara. Charles era um verdadeiro sádico - tinha de ser, para ter feito
o que fizera àquelas pobres crianças. Quanto a si próprio, Kurt não esperava nada.
As suas credenciais garantiam-lhe um lugar, acontecesse o que acontecesse ao Hug,
e tinha a semente de uma ideia sobre a transmissão de doenças entre a barreira das
espécies, que sabia que seria excitante para o chefe de qualquer unidade de
investigação.
Agora que a fotografia do papá com Adolf Hitler não passava de cinzas na lareira e
a sua homossexualidade era pública, sentia-se pronto para a nova vida que
tencionava
levar. Não em Holloman. Em Nova Iorque, entre os seus pares.
- Otis - gritou Tâmara da porta -, precisam de ti em casa, despacha-te! Não
consegui perceber nada do que a Celeste disse, mas é uma emergência.

398

Don Hunter e Billy Ho colocaram-se ao lado de Otis, ajudando-o a sair.


- Nós levamo-lo, Desdemona - disse Don. - Não podemos correr o risco de ele ter
outro ataque de coração quando a mulher precisa dele.
Cecil Potter viu a reportagem do Channel Six na CBS em Massachusetts, com Jimmy
sentado no joelho.
- Ora vejam só, já viste isto? - perguntou ao macaco. - Eh! Uh-! Estou mesmo
contente por me ter pirado de lá!
Quando Carmine abriu a porta, nessa tarde, Desdemona precipitou-se para ele,
soluçando ruidosamente enquanto lhe dava murros furiosos no peito. Tinha o nariz a
pingar
e os olhos cheios de lágrimas.
Imensamente gratificado, ele conduziu-a ternamente ao novo sofá que adquirira,
porque as poltronas estavam muito bem para conversar, mas não havia nada melhor do
que um sofá para duas pessoas se aninharem juntas. Deixou acalmar a tempestade de
lágrimas e de fúria, embalando-a e murmurando palavras tranquilizadoras, e depois
usou o seu lenço para lhe limpar o rosto.
- O que foi isso? - perguntou, sabendo de antemão a resposta.
- Tu! - disse, soluçando. - Maldito heró-ó-ó-iii!
- Nem maldito nem herói.
- Maldito herói! E pores-te à frente dele para levares com as ba-a-a-laaas! Oh,
estava capaz de te matar!
- Também estou contente por te ver - disse ele, rindo. - Agora põe os pés para cima
que eu vou buscar dois balões de conhaque.

399

- Eu sabia que te amava - disse ela mais tarde, já calma -, mas que raio de maneira
de perceber o quanto te amo! Carmine, não quero viver num mundo onde tu não
estejas.
- Isso quer dizer que preferias ser Mrs. Carmine Delmonico do que viver em Londres?
- Sim, quer.
Ele beijou-a com amor, gratidão, humildade.
- Vou tentar ser um bom marido, Desdemona, mas já tiveste uma previsão televisiva
de como é a vida de um polícia. O futuro não será diferente... horários
complicados,
ausências, balas perdidas. No entanto, suponho que tenho alguém lá em cima do meu
lado. Até agora, estou inteiro.
- Desde que estejas consciente de que, sempre que fizeres coisas disparatadas, tens
de me aturar.
- Tenho fome - foi a resposta dele. - Que tal comida chinesa? Ela deu um enorme
suspiro de satisfação.
- Acabo de me aperceber de que já não corro qualquer perigo -uma nota de ansiedade
surgiu-lhe na voz. - Pois não?
- O perigo acabou, apostaria a minha carreira nisso. Mas não vale a pena procurares
outro apartamento. Não te vou deixar sair daqui. O pecado está na moda.
- O problema - disse-lhe ele mais tarde, na cama -, é que ainda há tanto
mistério... Duvido que o Ponsonby falasse, mas, quando morreu, toda a esperança de
que isso
acontecesse morreu também. Wesley le Clerc! O nosso problema para amanhã.
- Referes-te ao homicídio do Leonard Ponsonby? À identidade da mulher e da criança?
- Ele contara-lhe tudo o que sabia.
- Sim. E quem escavou o túnel, e como é que o Ponsonby conseguiu pôr todo aquele
material na câmara da morte, desde um gerador a uma porta de cofre. Quem fez as
canalizações? Um trabalho
em grande! O chão da cave está dez metros abaixo da superfície. A maior parte das
caves a três, cinco metros, já são húmidas, mas esta está seca como um osso velho.
Os engenheiros da câmara estão fascinados, ansiosos por seguirem as condutas.
- E achas que a Claire era o segundo fantasma?
- "Achar" não é a palavra certa. O meu instinto diz-me que sim, a minha cabeça diz-
me que não pode ser. - Suspirou. - Se ela é o segundo Fantasma, conseguiu safar-se
sem sujar as mãos.
- Não te preocupes - disse ela, acariciando-lhe o cabelo. - Pelo menos os
homicídios chegaram ao fim. Não vai haver mais raparigas raptadas. A Claire não
poderia
fazê-lo sozinha, é uma mulher e altamente incapacitada. Portanto podes dar graças,
Carmine.
- Pela minha estupidez, queres tu dizer. Confundi este caso do princípio ao fim.
- Apenas porque é um tipo de crime novo, cometido por uma espécie nova de
criminoso, meu amor. És um polícia extremamente competente e muito inteligente.
Considera
o caso Ponsonby como uma nova experiência de aprendizagem. Da próxima vez, as
coisas correrão melhor.
Ele estremeceu.
- Se depender de mim, Desdemona, não haverá próxima vez. Os Fantasmas são algo que
só acontece uma vez.
Ela não disse nada, mas ficou a pensar.

400 - 401

Capítulo Vinte e Nove

Patrick, Paul e Luke demoraram pouco mais de uma semana a esquadrinhar tudo o que a
câmara da morte dos Ponsonbys tinha para oferecer, desde a mesa de operações
à casa de banho. O relatório final de Patrick e da sua equipa forense deixava bem
claro que fora uma sorte Charles Ponsonby ter sido apanhado em flagrante, nu,
debruçado
sobre uma rapariga raptada, também nua e presa a uma cama artilhada com
instrumentos de tortura.
- O local estava mais limpo do que a Lady Macbeth. As impressões digitais dele
estão por todo o lado, sim, mas é a cave dele, por baixo da casa dele, portanto é
natural. Mas de sangue, fluidos corporais, fragmentos de pele ou cabelos humanos...
nem uma partícula, nem um vestígio, nem qualquer outra coisa microscopicamente
pequena. Quanto à Claire, nem uma impressão digital, nem mesmo na alavanca por trás
do fogão.
Tinham reconstruído as técnicas de limpeza de Ponsonby, assombrados com a
quantidade de trabalho envolvida, a obsessividade. Sendo um homem da profissão
médica,
ele sabia que o calor fixava o sangue e os tecidos, e assim, tanto a mangueira que
usava primeiro como a pistola de água que usava a seguir eram alimentadas por
água fria; a alcova dos talismãs estava selada por uma porta corrediça de aço.
Quando todas as superfícies estavam secas,

402

ele limpava-as de novo com um jacto de vapor. Finalmente, limpava tudo com éter. Os
instrumentos cirúrgicos, o gancho de talhante, o seu guincho e os pénis ocos
eram mergulhados numa solução que dissolvia o sangue, antes de serem sujeitos ao
mesmo tratamento. Eram também esterilizados.
Depois de convencidos de que a sala de operações não lhes daria nada, começaram a
trabalhar nos canos, com um aspirador de compressão, que sugou apenas água sem
qualquer matéria orgânica. O refluxo não funcionou, deixando os engenheiros
municipais a pensar que os efluentes não eram depositados numa fossa séptica. As
canalizações
de Ponsonby descarregavam para uma corrente de água subterrânea, como havia muitas
na zona. A única esperança que restava aos investigadores era desenterrar os canos
e segui-los.
Assim que os engenheiros começaram a escavar o jardim, numa tentativa com poucas
probabilidades de sucesso de obter alguma evidência, Claire Ponsonby impôs um
embargo
contra a destruição premeditada da sua propriedade e pediu respeitosamente ao
tribunal que concedesse a uma mulher cega permissão para viver na dita propriedade
sem a perseguição perpétua e extremamente perturbadora da polícia de Holloman e dos
seus aliados. Uma vez que Charles Ponsonby fora positivamente identificado como
o Monstro do Connecticut, e nada do que estava a acontecer no número seis de
Ponsonby Lane era necessário para obter mais evidências desse facto, Miss Ponsonby
achava
que já bastava.
- O poço não tem fundo e a bomba funciona a três cavalos -disse o engenheiro chefe,
frustrado e irritado. - Uma vez que há um parque de veados de oito hectares,
bem como dois hectares de lotes residenciais, o nível de água é elevado e o consumo
local reduzido: Não conseguimos obter qualquer matéria orgânica porque o filho
da mãe devia despejar milhares e milhares de litros depois de cada homicídio. Os
resíduos estão no fundo do estreito de Long Island. E, merda, que importância tem?
Ele está morto. Encerre o caso,

403

tenente, antes que aquela cabra horrorosa comece a instaurar processos contra si
pessoalmente.
- É um mistério total, Patsy - disse Carmine ao seu primo.
- Diz-me qualquer coisa que eu ainda não saiba.
- Obviamente que o Chuck era resistente e forte, mas nunca me pareceu um atleta, e
os seus colegas do Hug estavam convencidos de que ele não sabia mudar a anilha
de uma torneira. E contudo aquilo que encontrámos está maravilhosamente bem
construído, com materiais caros. Quem diabo pôs um chão de mosaicos e não o admite,
agora
que o segredo veio a público? E o mesmo em relação às canalizações. Desde a Guerra
que ninguém participa o desaparecimento de nenhum canalizador ou assentador de
mosaicos! - Carmine rangeu os dentes. - A família não tem dinheiro, sabemos disso.
A Claire e o Chuck viviam tão bem que deviam gastar cada cêntimo do salário dele.
E no entanto há duzentos mil dólares em materiais e mão-de-obra debaixo do chão da
casa deles. Raios, ninguém admite sequer ter-lhes vendido os lençóis ou o plástico
líquido para as cabeças!
- Citando o engenheiro, que importância tem, Carmine? O Pon-sonby está morto e é
altura de encerrar o caso - disse Patrick, dando uma palmada no ombro de Carmine.
- Porquê arriscar um ataque de coração por causa de um morto? Pensa na Desdemona.
Quando é o casamento?
- Não gostas dela, Patsy, pois não?
O brilho dos olhos azuis diminuiu mas Patrick não os desviou.
- Talvez o tempo verbal no passado seja mais correcto. Não gostava dela, ao
princípio... demasiado estranha, demasiado estrangeira, demasiado distante. Mas
actualmente
ela está diferente. Espero conseguir vir a amá-la, mais do que gostar dela.
- Não és o único. A tua mãe e a minha estão a tremer como varas verdes. Oh, parecem
entusiasmadas, mas não é em vão que eu sou detective. É apenas uma fachada para
disfarçar a apreensão.
- Intensificada pelo facto de ela ser bem mais alta do que tu -disse Patrick, com
uma gargalhada. - Mães, tias e irmãs odeiam isso.

404

Estavam à espera que a segunda Mrs. Delmonico fosse uma boa rapariga italiana de
East Holloman. Mas tu não te sentes atraído por boas raparigas, italianas ou não.
E sem dúvida que prefiro a Desdemona à Sandra. A Desdemona pelo menos tem miolos.
- Sempre duram mais do que uma cara ou um corpo bonito.
O caso foi oficialmente encerrado nessa tarde. Depois de o relatório do médico-
legista ser arquivado, o Departamento da Polícia de Holloman foi obrigado a admitir
que não conseguia encontrar qualquer evidência que implicasse Claire Ponsonby nos
homicídios. Se Carmine tivesse tempo, talvez tivesse procurado Silvestri e lhe
tivesse pedido para reabrir o caso do homicídio de Leonard Ponsonby e da mulher e
criança desconhecidas, em 1930, mas o crime não espera por ninguém, muito menos
por um detective. Duas semanas depois da morte de Charles Ponsonby, um caso
relacionado com droga ocupava toda a atenção de Carmine. Novamente em terreno
familiar!
Criminosos que ele sabia serem culpados, o cérebro ocupado em reunir as evidências
necessárias para os levar perante a justiça.

405

Capítulo Trinta

O machado caiu sobre o Centro de Investigação Neurológica Hughlings Jackson no


final de Março.
Quando o conselho directivo se reuniu na sala de reuniões do Hug, às dez da manhã,
todos os directores estavam presentes excepto o professor Robert Mordent Smith,
que tivera alta de Marsh Manor duas semanas antes mas que se recusava a deixar a
sua cave e os seus comboios. Um embaraço para Roger Parson Júnior, que odiava
pensar
que se pudera enganar tanto no juízo que fizera de Bob Smith.
- Como gestora de operações, Miss Dupre, por favor sente-se -disse Parson com
vivacidade, e depois olhou para Tâmara com expressão interrogativa. - Miss Vilich,
está em condições de fazer as actas?
Uma pergunta legítima, uma vez que esta Miss Vilich não se parecia nada com a
mulher que os directores Parson tinham conhecido antes. A sua luz extinguira-se,
pensou
Richard Spaight.
- Sim, Mr. Parson - respondeu Tâmara em tom inexpressivo.
O presidente Mawson Macintosh já sabia aquilo de que o reitor Wilbur Downing apenas
suspeitava; no entanto, a certeza de um e a forte suspeita do outro deixavam-nos
com rostos satisfeitos e corpos relaxados. A Universidade Chubb ia herdar o Hug,
isso era garantido,

406

juntamente com uma soma enorme, que não seria dedicada à investigação neurológica.
Com os óculos em meia-lua empoleirados no nariz fino, Roger Parson Júnior começou a
ler o parecer jurídico que declarava completamente nulo o testamento do seu
falecido
e saudoso tio, no que dizia respeito ao fundo monetário que financiava o Hug.
Demorou quarenta e cinco minutos a ler um documento mais árido do que o deserto do
Saara, mas as pessoas forçadas a ouvi-lo fizeram-no com expressões alerta e
interessadas, excepto Richard Spaight, sobre quem recairiam os aspectos mais
aborrecidos
da questão. Virou a cadeira para a janela e viu dois rebocadores escoltarem um
grande petroleiro até ao seu ancoradouro no novo complexo de reservatórios de
hidrocarbonetos
ao fundo de Oak Street.
- Podíamos, claro, absorver simplesmente os cento e cinquenta milhões de capital do
fundo, mais os juros vencidos, nas nossas hol-dings - disse Parson, em conclusão
do seu discurso -, mas esse não seria o desejo de William Parson... todos nós, seus
sobrinhos e sobrinhos-netos, temos a certeza disso.
"Ha-ha-ha", pensou M. M., "uma ova é que não gostariam de absorver a massa! Mas
desistiram da ideia depois de eu vos ter dito que a Chubb os levaria para tribunal.
O melhor que podem fazer é deitar a mão aos juros vencidos, que só por si darão uma
bela e rechonchuda adição à Parson Products."
-Assim, propomos que metade do capital seja transferido para a Faculdade de
Medicina da Chubb, de forma a financiar a carreira em curso do Centro Hughlings
Jackson,
seja qual for a forma que esta venha a assumir. O edifício e os terrenos serão
transferidos para a Universidade Chubb. E a outra metade do capital irá para a
Universidade
Chubb, para financiar grandes infra-estruturas ou qualquer outro tipo de construção
que o conselho directivo da universidade decidir. Desde que cada infra-estrutura
ostente o nome de William Parson.
A expressão do reitor Dowling era gulosa, enquanto M. M. manteve um ar complacente
e impassível. O reitor Dowling estava a

407

pensar transformar o Hug num centro de investigação de psicoses orgânicas. Tentara


persuadir Miss Claire Ponsonby a doar o cérebro do seu falecido irmão para
investigação,
pedido que ela recusara educadamente. Esse, sim, era um cérebro psicótico! Não que
esperasse ver qualquer alteração anatómica evidente, mas tivera esperança de
conseguir
identificar atrofia localizada no córtex pré-frontal, ou alguma aberração no corpo
estriado. Até mesmo um pequeno astrocitoma.
Os pensamentos de Mawson Macintosh giravam em torno da natureza dos edifícios que
ostentariam o nome de William Parson. Um deles tinha de ser uma galeria de arte,
mesmo que ficasse vazia até o último dos Parsons morrer. Que esse dia chegasse em
breve!
- Miss Dupre - estava Roger Parson a dizer -, o seu dever será fazer circular esta
carta oficial - empurrou-a sobre a mesa - entre todos os membros do Centro
Hughlings
Jackson, pessoal e clínicos. A data de encerramento é o dia vinte e nove de Abril,
sexta-feira. Todo o equipamento e mobiliário será distribuído de acordo com os
desejos do reitor de Medicina. Excepto, claro está, alguns artigos seleccionados
que serão doados aos laboratórios do Médico Legista do Condado de Holloman, em
sinal
do nosso agradecimento. Um desses artigos será o novo microscópio electrónico. Tive
uma conversa com o governador do Connecticut, que me falou sobre a crescente
importância da ciência da Medicina Forense, e sobre os seus problemas de
financiamento.
"Não, não, não!", pensou o reitor Dowling. "Esse microscópio é meu!"
- O presidente Macintosh garantiu-me - continuou Roger Parson Júnior em tom
monótono -, que todos os membros que desejarem ficar podem fazê-lo. No entanto,
salários
e vencimentos serão reavaliados, de acordo com a política fiscal da Faculdade de
Medicina. Os clínicos e investigadores que desejarem ficar serão colocados sob a
direcção do professor Frank Watson. Para aqueles que não desejem ficar, Miss Dupre,
serão preparados pacotes de compensação

408

com um ano de salários, mais todas as contribuições para pensões. Pigarreou e


ajeitou os óculos.
- Há duas excepções a esta regra. Uma é o professor Bob Smith que, infelizmente,
não se encontra suficientemente bem para retomar qualquer tipo de actividade
médica.
Uma vez que a sua contribuição ao longo dos dezasseis anos da sua administração foi
formidável, decidimos que a sua indemnização será a discriminada aqui. - Estendeu
outra folha de papel a Desdemona. - A segunda excepção é a senhora, Miss Dupre.
Infelizmente, o cargo de gestora de operações deixará de existir. E o professor
Macintosh
informou-me de que será impossível encontrar-lhe uma posição equivalente dentro da
universidade. Assim, concordámos que o seu pacote de compensação consistirá do
que se encontra discriminado aqui.- Uma terceira folha de papel.
Desdemona espreitou. Dois anos de salários mais todas as contribuições para
pensões. Se casasse, deixasse completamente de trabalhar e investisse o dinheiro,
ficaria
bastante bem.
- Tâmara, desligue as máquinas de café - disse ela.
- Dou-te dois anos para o Dowling dar cabo daquilo - disse ela a Carmine nessa
noite. - Ele é demasiado psiquiatra e muito pouco neurologista para conseguir tirar
o melhor partido de uma unidade de investigação bem gerida. Todas as espécies de
investigadores alucinados o enganarão. Diz ao Patrick que não tenha vergonha em
relação à oferta de equipamento, Carmine. Ele que lhe deite a mão enquanto pode.
- Ele vai beijar-te as mãos e os pés, Desdemona.
- Não sei porquê, eu não fiz nada - suspirou com satisfação. -Seja como for, a tua
noiva traz um dote. Se puderes sustentar-me, a mim e aos filhos que considerares
suficientes, então o meu dote deve

409

dar para nos comprar uma casa bastante boa. Adoro este apartamento, mas não é
indicado para criar uma família.
- Não - disse ele, pegando-lhe nas mãos. - Guarda o teu dinheiro. Se mudares de
ideias, terás o suficiente para voltar para Londres. Não tenho falta de dinheiro,
a sério.
- Bom - disse ela -, então pensa nisto, Carmine. O Addison Forbes, quando leu a
circular do Roger Parson Júnior, perdeu a cabeça. Trabalhar sob a direcção do Frank
Watson? Preferia morrer de sífilis terciária! Anunciou que vai trabalhar com o Nur
Chandra em Harvard, mas eu acho que Harvard já tem a sua quota-parte de
neurologistas
clínicos, portanto o Addison bem pode esperar sentado. A questão é que eu adoro a
casa dele. Se os Forbes se mudarem, suponho que a porão à venda por uma pipa de
massa, mas achas que temos alguma hipótese de a comprar? Este apartamento é
arrendado ou comprado?
- É um condomínio, comprado. Acho que talvez consigamos ficar com a casa do Forbes,
se gostas tanto dela. A localização é ideal... East Holloman, a zona onde mora
a minha família. Tenta gostar da minha família, Desdemona - implorou. - A minha
primeira mulher achava que eles a espiavam porque a minha mãe, a mãe do Patsy ou
uma das nossas irmãs estavam sempre a aparecer. Mas não era por isso. As famílias
italianas são muito chegadas.
Apesar de a aparência dela não ter realmente mudado, de alguma forma, para Carmine,
Desdemona já não parecia tão vulgar como antes. Não era o amor a cegá-lo; o amor
a abrir-lhe os olhos seria uma melhor maneira de o explicar.
- Eu sou bastante tímida - confessou ela, apertando-lhe a mão -, e isso faz com que
pareça snobe. Acho que não vou ter problemas em gostar da tua família, Carmine.
E uma das razões por que estou tão interessada na casa dos Forbes é a torre. Se a
Sophia alguma vez quiser voltar para casa, talvez para acabar o liceu na Dormer
Day e depois na prometida Chubb mista, a torre daria um quarto fantástico para ela.
Por aquilo que me disseste, acho que a Sophia precisa de

410

uma casa a sério, não de um Palácio de Hampton Court. Se não lhe deitares a mão
agora, daqui a um ano ela acabará por ir para Haight-Ashbury.
Carmine sentiu os olhos húmidos.
- Não te mereço - disse.
- Que disparate! As pessoas têm sempre aquilo que merecem.

411

Parte Cinco
Primavera e Verão de 1966

Capítulo Trinta e Um

Na semana que se seguiu à acusação de Wesley le Clerc pelo homicídio de Charles


Ponsonby, houve uma alteração no estado de espírito a nível estadual, ardentemente
alimentada pela televisão. A indignação pública pela existência do Monstro do
Connecticut aumentou, em vez de diminuir; ele era visto como uma prova da
impiedade,
da decadência moral, da ausência de ética, num mundo enlouquecido sob a pressão da
modernidade, sob a avalanche da tecnologia. A comunidade tolerava estes desportos
genéricos, permitindo-lhes que amadurecessem e criassem um novo tipo de assassino;
no entanto, ninguém parecia compreender o facto de eles se apresentarem como
cidadãos
normais e cumpridores da lei. Ou de, na verdade, eles estarem a multiplicar-se.
Wesley conseguiu o que queria: tornara-se um herói. Apesar de uma grande
percentagem dos seus admiradores ser negra, muitos não eram, e todos estavam
convencidos
de que Wesley le Clerc fizera justiça, uma justiça que estava para além da
capacidade da Lei. Se a tendência pró-brancos da Lei já estava morta em alguns
estados
e moribunda noutros, isso era por vezes difícil de ver. Era muito mais fácil ver as
famílias de algumas das vítimas do Monstro aparecerem num programa de televisão
e responderem a perguntas desprovidas de moral, ética ou simples boas maneiras:
qual foi a

415

sensação de ver a cabeça da sua filha envolvida em plástico transparente? Choraram?


Desmaiaram? O que pensam de Wesley le Clerc?
Wesley fora acusado de homicídio em primeiro grau, aquele que era premeditado, e a
única dúvida legal podia incidir apenas sobre essa premeditação. Depois de estar
sob as luzes da ribalta, Wesley sabia muito bem que, para aí permanecer, tinha de
ir a julgamento. Se se declarasse culpado, isso significava que compareceria em
tribunal apenas para ouvir a sentença. Assim, declarou-se inocente e foi
reencarcerado a aguardar julgamento, sem que lhe fosse concedida fiança. À porta do
tribunal,
depois desta audição, Wesley fora abordado por um advogado branco de grande
visibilidade que se apresentou como o líder da nova equipa de defensores de Wesley.
Era
seguido por um grupo de outros advogados brancos e gordos que constituía o resto da
equipa. Para seu horror, Wesley rejeitou-os.
- Vão à merda e digam a Mohammed el Nesr que eu vi a verdadeira luz - disse Wesley.
- Passarei por isto como todos os negros pobres, com um advogado oficioso nomeado
pelo gabinete do ministério público. - Apontou para um jovem negro com uma pasta na
mão. Uma breve sombra passou-lhe pelo rosto, e suspirou. - Este podia ser eu,
daqui a dez anos, mas escolhi outro caminho.
Depois de acalmada a exaltação da viagem até às celas na companhia de Carmine
Delmonico, Wesley passara por uma mudança que talvez tivesse um pouco a ver com o
que
Carmine lhe dissera, mas que tinha muito mais a ver com o facto de ter visto, de
uma distância de um metro, a vida a extinguir-se de um par de olhos. Tudo o que
restava de Charles Ponsonby era uma casca, e o que aterrorizava Wesley era o facto
de ter libertado aquele espírito indizivelmente perverso para procurar abrigo
nalgum outro corpo. Alá lutava dentro dele com Cristo e Buda, e Wesley começou a
rezar aos três.
No entanto, a força também o invadiu, uma espécie diferente de força. De alguma
forma, conseguiria transformar este erro cardinal numa vitória.

416

Os primeiros sinais de vitória surgiram quando foi enviado para a Prisão do Condado
de Holloman para passar os meses entre o seu crime e o seu julgamento. Quando
chegou, os outros reclusos aplaudiram-no entusiasticamente. A sua tarimba, numa
cela para quatro, estava coberta de presentes: cigarros e charutos, isqueiros,
revistas,
doces, acessórios de moda, um relógio Rolex de ouro, sete pulseiras de ouro, nove
fios de ouro, um anel para o dedo mindinho com um grande diamante. Não precisava
de ter medo de ser violado nos duches! Também não foi atormentado pelos guardas;
todos o cumprimentavam com acenos respeitosos, sorriam, levantavam-lhe os
polegares.
Quando pediu um tapete de orações, apareceu um belo Shiraz, e sempre que entrava no
refeitório ou no pátio era novamente aplaudido. Negros ou brancos, os prisioneiros
e os guardas adoravam-no.
Uma quantidade imensa de pessoas de todas as raças e cores achava que Wesley le
Clerc não devia ser condenado. Houve uma inundação de cartas ao editor nos jornais
de toda a nação. As linhas telefónicas dos programas de rádio estavam entupidas. Os
telegramas empilhavam-se na secretária do governador. O procurador público de
Holloman tentou convencer Wesley a declarar-se culpado de homicídio involuntário
para obter uma sentença muito mais reduzida, mas o novo herói não queria ter nada
a ver com essas desculpas. Iria a julgamento, e assim foi.
Um julgamento que começou no início de Junho, meses antes do que seria normal; os
poderes judiciais estabelecidos decidiram que adiá-lo mais só tornaria as coisas
ainda piores. Isto não era um prodígio de nove dias que as pessoas esqueceriam.
Vamos julgá-lo já, despachar isto de uma vez por todas!
Nunca um júri fora seleccionado com maior cuidado. Oito dos jurados eram negros e
quatro brancos, seis mulheres e seis homens, alguns abastados, outros simples
trabalhadores,
dois desempregados, embora não por culpa própria.

417

A história de Wesley, em tribunal, era que não planeara nada para além do chapéu -
que tinham sido os empurrões da multidão que o tinham colocado onde estava, e
que não se lembrava de disparar qualquer arma, nem sequer se lembrava de ter uma
arma consigo. O facto de a sua acção estar imortalizada em vídeo era irrelevante;
tudo o que ele tencionara fazer era um protesto contra a forma como o seu povo era
tratado.
O júri optou por homicídio não premeditado e acrescentou uma forte recomendação de
clemência. O juiz Douglas Thwaites, que não era um homem clemente, proferiu uma
sentença de vinte anos de prisão, doze dos quais sem possibilidade de liberdade
condicional. Mais ou menos o veredicto esperado.
O julgamento demorou cinco dias e terminou numa sexta-feira, assinalando o clímax
de uma Primavera que o governador, pelo menos, nunca mais queria ver repetida.
As manifestações tinham-se transformado em motins, havia casas incendiadas, lojas
saqueadas, trocas de tiros. Apesar de o seu discípulo Ali el Kadi se ter voltado
contra ele, Mohammed el Nesr aproveitou a oportunidade e conduziu a Brigada Negra
numa pequena guerra, que terminou quando uma rusga ao número dezoito de Fifteenth
Street encontrou mais de mil armas de fogo. O que nenhum polícia conseguia perceber
era o porquê de Mohammed não ter transferido o seu arsenal para outro local muito
antes da rusga. Excepto Carmine, que achava que Mohammed estava a perder o pé e
sabia-o; até os seus próprios homens estavam a começar a admirar cada vez mais
Wesley
le Clerc.
Independentemente do destino da Brigada Negra, tornou-se bem claro, uma semana
antes do início do julgamento de Wesley, que este se ia transformar numa
manifestação
de massas gigantesca de apoio ao exterminador do Monstro, e que nem todos os que
planeavam

418

marchar sobre Holloman tinham intenções pacíficas. Espiões e informadores relataram


que cem mil manifestantes negros e setenta e cinco mil manifestantes brancos
pretendiam invadir o parque de Holloman, ao nascer do dia, na segunda-feira marcada
para o início do julgamento de Wesley. Vinham de tão longe como Los •Angeles,
Chicago, Baton Rouge (a cidade natal de Wesley) e Atlanta, apesar de a maioria
viver em Nova Iorque, Connecticut ou Massachusetts. O ponto de encontro destinado
era Maltravers Park, um jardim botânico a quinze quilómetros de Holloman. E aí, a
partir de sábado, as pessoas foram-se reunindo aos milhares. A marcha até ao parque
de Holloman estava marcada para as cinco da manhã de segunda-feira e era uma marcha
muito bem organizada. Os habitantes de Holloman, aterrorizados, pregaram tábuas
nas montras das lojas, nas portas e nas janelas baixas, temendo a guerra urbana que
certamente se aproximava.
No domingo de manhã o governador chamou a Guarda Nacional, que entrou
ostensivamente em Holloman na madrugada de segunda-feira para ocupar o parque antes
dos manifestantes;
transportes de tropas, veículos blindados e camiões enormes abalaram as fundações
dos edifícios, enquanto toda a cidade de Holloman os via passar, de olhos
arregalados
e corpos trémulos.
Mas os manifestantes não apareceram. Ninguém sabia bem porquê. Talvez tivesse sido
a perspectiva de um confronto com tropas experientes a detê-los, ou talvez
Maltravers
Park fosse o único destino que a maioria deles tinha em mente desde o início. Ao
meio-dia de segunda-feira Maltravers Park estava vazio, e foi tudo. O julgamento
de Wesley le Clerc prosseguiu com menos de quinhentos manifestantes no parque de
Holloman, rodeados por um mar de guardas nacionais, e quando o veredicto foi
anunciado,
na sexta-feira à tarde, esses quinhentos foram para casa, dóceis como cordeiros.
Teria sido a exibição oficial de força? Ou o mero acto de se reunirem satisfizera
aqueles que tinham ido a Maltravers Park?

419

Wesley le Clerc não perdeu tempo a preocupar-se ou a pensar nos seus apoiantes.
Transferido na sexta-feira à noite para uma prisão de segurança máxima no norte do
estado, na segunda-feira seguinte Wesley pediu ao director da prisão autorização
para estudar para os exames de admissão no curso de Direito; este inteligente
funcionário
público ficou contente por poder satisfazer o seu pedido. Afinal de contas, Wesley
le Clerc tinha apenas vinte e cinco anos. Se conseguisse a liberdade condicional
na primeira tentativa, teria trinta e sete e provavelmente estaria na posse de um
doutoramento em jurisprudência. O seu cadastro criminal impedi-lo-ia de ser
admitido
na Ordem, mas os conhecimentos adquiridos seriam muito mais importantes. A sua
especialidade seria o Supremo Tribunal dos Estados Unidos. Afinal de contas, ele
era
o Exterminador do Monstro, o Homem Santo de Holloman. "Rói-te de inveja, Mohammed
el Nesr, os teus dias acabaram. Eu é que sou o maior."

420

Capítulo Trinta e Dois


Carmine e Desdemona casaram no princípio de Maio e decidiram passar a lua-de-mel em
Los Angeles, como hóspedes de Myron Mendel Mandelbaum; a reprodução do Palácio
de Hampton Court era tão enorme que a sua presença não causava qualquer embaraço a
Myron ou a Sandra. Myron estava sempre à disposição deles, enquanto Sandra flutuava
nas nuvens do esquecimento. Com alguma surpresa por parte de Carmine e Myron,
Sophia decidiu gostar de Desdemona, cuja teoria era a de que a sua nova enteada
aprovava
a forma pouco efusiva e prática como a nova madrasta a tratava. Desdemona tratava-a
como se ela fosse uma adulta sensata e responsável. Os augúrios eram auspiciosos.
Em Holloman, nem tudo corria tão bem. Como se o Hug não tivesse já sofrido comoções
e escândalos suficientes nos últimos meses, nos estertores da morte ainda produziu
mais um, quando Mrs. Robin Forbes se queixou à polícia de Holloman de que o marido
a estava a envenenar. Interrogado pelos recentemente condecorados sargentos-
detectives
Abe Goldberg e Corey Marshall, o Dr. Addison Forbes rejeitara essa acusação com
escárnio e desdém, convidara-os a retirar amostras de todos os alimentos e bebidas
da casa e retirara-se para o seu ninho na torre. Depois de os resultados das
análises (incluindo de vómito, fezes e urina) darem negativo,

421

Forbes embalara os seus livros e papéis, fizera duas malas e partira para Fort
Lauderdale. Aí entrara para uma clínica muito lucrativa de neurologia geriátrica;
coisas como avcs e demência senil nunca lhe tinham interessado, mas eram
infinitamente preferíveis ao professor Frank Watson e a Mrs. Robin Forbes, de quem
pediu
o divórcio. Quando os advogados de Carmine o contactaram para propor a compra da
casa em East Circle, vendeu-a por menos do que ela valia para se vingar de Robin,
que estava a exigir metade. Depois de um debate lancinante consigo própria para
decidir qual das duas filhas precisava mais dela, Robin mudou-se para Boston, para
junto de Roberta, a prometedora ginecologista. Robina mandou um cartão à irmã a
solidarizar-se com a sorte dela, mas na verdade Roberta estava encantada por ter
arranjado uma governanta.
Tudo isto significava que Desdemona podia oferecer a torre a Sophia.
- É divina - disse em tom casual, sem querer parecer demasiado entusiasmada. - A
sala de cima tem uma varanda... podias usá-la como sala de estar... e a de baixo
daria um pequeno quarto, se a dividíssemos para fazer uma casa de banho e uma
kitchnette. O Carmine e eu pensámos que talvez quisesses ir acabar o liceu na
Dormer,
depois pensar numa boa universidade. Quem sabe, talvez a Chubb se torne mista antes
de teres idade para entrar. Estarias interessada?
A sofisticada adolescente guinchou de alegria; Sophia pôs os braços à volta do
pescoço de Desdemona e abraçou-a.
- Oh, sim, por favor!
Julho estava prestes a dar lugar a Agosto quando Claire Ponsonby mandou uma
mensagem a Carmine, dizendo que gostaria de o ver. O seu pedido foi uma surpresa,
mas
nem mesmo ela tinha a capacidade de arruinar a boa disposição de Carmine, neste
lindo dia de flores em botão e pássaros a cantar. Sophia chegara de Los Angeles

420

duas semanas antes e ainda estava a tentar decidir se queria pintar ou usar papel
de parede no interior da sua torre. Carmine ficava espantado com a quantidade de
coisas que ela e Desdemona encontravam para conversar, tal como o espantava a sua
em tempos empertigada esposa. Como ela se devia ter sentido sozinha, poupando cada
tostão para comprar uma vida que, a julgar pela forma como se adaptara ao
casamento, nunca a teria satisfeito. Embora, em parte, talvez isso se devesse à
gravidez,
um pouco anterior ao dia do casamento; o bebé nasceria em Novembro e Sophia mal
podia esperar. Não admirava, portanto, que nem mesmo Claire Ponsonby tivesse o
poder
de arruinar a sua sensação de bem-estar, de uma realização bastante tardia.
Claire e a cadela estavam à sua espera no alpendre. Ela tinha colocado duas
cadeiras de ambos os lados de uma pequena mesa de verga branca, em cima da qual
havia
um jarro de limonada, dois copos e um prato de bolachas.
- Tenente - disse ela, enquanto ele subia os degraus.
- Capitão, hoje em dia - corrigiu ele.
- Meu Deus! Capitão Delmonico. Soa bem. Sente-se e beba um copo de limonada. É uma
antiga receita de família.
- Obrigado, posso sentar-me mas não quero limonada.
- Seria incapaz de comer ou beber qualquer coisa preparada pelas minhas mãos, é
isso, capitão? - perguntou ela docemente.
- Francamente, é isso mesmo.
- Eu perdoo-lhe. Vamos apenas sentar-nos, então.
- Por que pediu para me ver, Miss Ponsonby?
- Por duas razões. A primeira é que me vou embora e, apesar de os meus advogados me
terem dito que ninguém me pode impedir de o fazer, achei que seria prudente
informá-lo
desse facto. A carrinha do Charles está carregada com as coisas que quero levar
comigo

423

e contratei um estudante da Chubb para me levar a Nova Iorque, a mim e à Biddy,


ainda hoje. Vendi o Mustang.
- Pensava que o número seis de Ponsonby Lane seria o seu lar até à morte.
- Descobri que não terei um lar em lado nenhum sem o meu querido Charles. Depois
recebi uma oferta por esta propriedade que simplesmente não podia recusar. Seria
compreensível pensar que ninguém a quereria comprar, mas não é esse o caso. O major
F. Sharp Minor pagou-me uma soma muito generosa por aquilo que, segundo creio,
tenciona transformar num museu de horrores. Várias agências de viagens de Nova
Iorque concordaram em organizar excursões de dois dias. Primeiro dia: viagem de
autocarro
pelos campos encantadores do Connecticut, jantar e estada no motel Major Minor's...
ele vai redecorá-lo em grande estilo. Segundo dia: uma visita guiada à casa do
Monstro do Connecticut, incluindo rastejar pelo famoso túnel. Alimentar os veados
que garantidamente estarão à espera junto da entrada do túnel. Voltar ao covil
do Monstro para ver catorze cabeças de imitação colocadas no seu local original.
Naturalmente, ao som de uma banda sonora de gritos e uivos. O major vai esvaziar
a velha sala de estar e transformá-la numa sala de jantar para trinta pessoas, e
tenciona transformar a nossa velha sala de jantar numa cozinha. Afinal de contas,
não pode pôr um cozinheiro a fazer o almoço no fogão Aga enquanto as pessoas o vêem
rodar sobre si próprio para revelar a entrada. Depois, regresso a Nova Iorque
de autocarro - disse Claire sem expressão.
Céus, o sarcasmo! Carmine escutou-a, fascinado, feliz por ela não poder ver que ele
estava de boca aberta.
- Pensei que não acreditava em nada disso.
- E não acredito. No entanto, garantiram-me que estas coisas existem de facto. Se
assim é, então eu mereço ganhar alguma coisa com elas. Vão proporcionar-me a
oportunidade
de começar de novo noutro lugar, longe do Connecticut. Estou a pensar no Arizona ou
no Novo México.

424
- Desejo-lhe sorte. Qual é a segunda razão?
- Uma explicação - disse ela, parecendo mais suave, mais parecida com a Claire com
quem ele simpatizara, de quem gostara. -Não o tenho na conta do estereótipo do
polícia abrutalhado, capitão. Sempre me pareceu um homem dedicado ao seu
trabalho... sincero, até mesmo altruísta. Compreendo o porquê de eu ter estado sob
suspeita
desses crimes horrorosos, uma vez que continuam a insistir que o assassino era o
meu irmão. A minha teoria é que eu e o Charles fomos enganados, que foi outra
pessoa
qualquer que fez todas as... ah... renovações nas nossas caves. - Suspirou. - Seja
como for, decidi que o senhor é suficientemente cavalheiro para me fazer algumas
perguntas como um cavalheiro faria... com cortesia e discrição.
Vitória, por fim! Carmine inclinou-se para a frente, de mãos cruzadas.
- Obrigado, Miss Ponsonby. Gostava de começar por lhe perguntar o que sabe sobre a
morte do seu pai?
- Calculei que me fizesse essa pergunta. - Ela esticou as pernas compridas e fortes
e cruzou os tornozelos, um dos pés brincando com o pêlo de Biddy. - Antes da
Depressão, éramos muito ricos e vivíamos bem. Os Ponsonby sempre gostaram de viver
bem... boa música, boa comida, bom vinho, rodeados por coisas boas. A minha mãe
vinha de um ambiente semelhante... Shaker Heights, sabe. Mas o casamento não foi
por amor. Os meus pais foram obrigados a casar porque o Charles vinha a caminho.
A mamã estava disposta a tudo para caçar o meu pai que, na realidade, não a
desejava. Mas, na hora da verdade, ele cumpriu o seu dever. O Charles nasceu três
meses
depois. Dois anos depois disso nasceu o Morton, e dois anos depois, eu.
O pé parou; Biddy ganiu até as carícias recomeçarem, depois deitou-se e apoiou o
focinho nas patas da frente. Claire continuou.
- Sempre tivemos uma governanta, bem como uma empregada de limpeza. A governanta
era uma criada que vivia connosco e fazia todos os trabalhos domésticos mais leves,
excepto cozinhar. A mamã gostava de cozinhar, mas detestava lavar a loiça ou
descascar as batatas.

425

Não acho que ela fosse particularmente tirânica, mas um dia a governanta despediu-
se. E o papá trouxe para casa Mrs. Catone... Louisa Catone. A mamã ficou lívida.
Lívida! Como se atrevia ele a usurpar as prerrogativas dela, e por aí fora. Mas o
papá gostava de ter a última palavra, tanto como a mamã, e portanto Mrs. Catone
ficou. Ela era uma pérola, o que acabou por acalmar a mamã. Imagino que ela devia
saber desde o princípio que Mrs. Catone era amante do meu pai, mas as coisas
correram
bem durante muito tempo. Depois houve uma discussão terrível... oh, terrível! A
mamã insistiu que Mrs. Catone tinha de partir, o papá insistiu para que ela
ficasse.
- Mrs. Catone tinha filhos? - perguntou Carmine.
- Sim, uma menina chamada Emma, poucos meses mais velha do que eu - disse Claire
com ar sonhador, sorrindo. - Costumávamos brincar juntas, comíamos juntas. A minha
visão não era muito boa, já na altura, e a Emma era um pouco como um cão-guia para
mim. O Charles e o Morton odiavam-na. Compreende, a discussão aconteceu porque
a mamã descobriu que a Emma era filha do meu pai... nossa meia-irmã. O Charles
encontrou a certidão de nascimento.
Calou-se, ainda acariciando o pêlo de Biddy com o pé.
- Qual foi o resultado da discussão? - perguntou Carmine.
- Surpreendente, e ao mesmo tempo não. O papá teve de se ausentar por causa de um
negócio urgente no dia seguinte e Mrs. Catone partiu, com a Emma.
- Quando foi isso, em relação à morte do seu pai?
- Deixe-me ver... eu tinha quase seis anos quando ele morreu... um ano antes. No
Inverno anterior.
- Há quanto tempo estava Mrs. Catone convosco quando partiu?
- Dezoito meses. Ela era uma mulher extraordinariamente bela... a Emma era a cara
dela. Morena. Sangue mestiço, embora maioritariamente branco. A sua voz era
encantadora...
melodiosa, doce como mel. Era uma pena que as suas palavras fossem sempre tão
banais.

426

- Então a sua mãe despediu-a enquanto o seu pai estava fora.


- Sim, mas acho que houve mais do que isso. Se nós fôssemos um pouco mais velhos,
talvez pudesse contar-lhe mais, ou se fosse eu a mais velha, a rapariga... os
rapazes
não são muito observadores quando se trata de emoções. A mamã conseguia assustar as
pessoas. Tinha um certo poder. Conversei muitas vezes com o Charles sobre isso
e chegámos à conclusão de que a mamã ameaçara matar a Emma, a menos que elas
desaparecessem as duas para sempre. E Mrs. Catone acreditou nela.
- Como é que o seu pai reagiu quando voltou para casa?
- Houve uma grande discussão, muitos gritos. O papá bateu na mamã, depois saiu de
casa a correr. Não voltou durante dias... talvez semanas. Muito tempo. Lembro-me
que a minha mãe passava o tempo a caminhar de um lado para o outro dentro de casa.
Depois ele voltou. Lívido, não falava com a minha mãe e, se ela tentava tocar-lhe,
batia-lhe ou empurrava-a. O ódio! E... e ele chorava. Constante-mente, ou pelo
menos era o que nos parecia. Acho que voltou por nossa causa, mas arrastava-se pela
casa como um morto-vivo.
- Acha que o seu pai foi à procura de Mrs. Catone mas não conseguiu encontrá-la?
Os olhos azuis-claros fitaram o infinito da sua cegueira.
- Bom, é a explicação mais lógica, não é? O divórcio era relativamente aceitável,
mesmo na altura, e contudo o papá preferiu ter Mrs. Catone como criada em sua casa.
A mamã para manter as aparências, Mrs. Catone para o prazer carnal. Se tivesse
casado com uma mulata das Caraíbas isso tê-lo-ia arruinado socialmente, e o papá
preocupava-se
muito com a sua posição social. Afinal de contas, era um Ponsonby de Holloman.
Como ela é fria, pensou Carmine.
- A sua mãe sabia que o dinheiro tinha desaparecido na queda de Wall Street?
- Só soube depois de o papá morrer.
- Foi ela que o matou?

427

- Oh, sim. Tiveram a pior discussão de todas nessa tarde... nós conseguíamos ouvi-
los no andar de cima. Não conseguimos perceber tudo o que gritaram um ao outro,
mas ouvimos o bastante para perceber que o papá encontrara Mrs. Catone e a filha.
Que tencionava deixar a mamã. Ele vestiu o seu melhor fato e saiu de casa no seu
carro. A mamã trancou-nos aos três no quarto do Charles e saiu no outro carro.
Estava a começar a nevar. - A voz dela parecia infantil, como se a pura força das
recordações a estivesse a fazer recuar no tempo. - Os flocos de neve rodopiavam
pelo ar, como dentro de um globo de cristal. Esperámos tanto tempo! Depois ouvimos
o carro da mamã e começámos a bater na porta. A mamã abriu-a, nós precipitámo-nos
para fora... oh, estávamos tão aflitos para ir à casa de banho! Os rapazes
deixaram-me
ir primeiro. Quando saí, a minha mãe estava de pé no corredor, com um bastão de
basebol na mão direita. O bastão estava coberto de sangue e ela também. Depois o
Charles e o Morton saíram da casa de banho, viram-na e levaram-na. Despiram-na e
deram-lhe banho, mas eu tinha tanta fome que desci para a cozinha. O Charles e o
Morton acenderam o fogo na velha lareira, onde está agora o Aga, e queimaram o
bastão de basebol e as roupas dela. Tão triste! O Morton nunca mais foi o mesmo.
- Quer dizer que até aí ele era... bom, normal?
- Perfeitamente normal, capitão, apesar de ainda não ter começado a escola. A minha
mãe só nos deixou ir para a escola aos oito anos. Mas, depois desse dia, o Morton
nunca mais disse uma palavra. Deixou de reconhecer a existência do mundo à sua
volta. Oh, os ataques de fúria! A mamã não tinha medo de nada nem de ninguém,
excepto
do Morton quando tinha um dos seus ataques de fúria. Violentos, incontroláveis.
- A polícia apareceu?
- Claro. Nós dissemos que a mamã tinha estado em casa connosco, na cama, com uma
enxaqueca. Quando lhe disseram que o papá estava morto, ela ficou histérica. A mãe
do Bob Smith veio a nossa casa, deu-nos de comer e ficou a fazer companhia à mamã.

428

Alguns dias depois, descobrimos que o nosso dinheiro tinha desaparecido na queda da
Bolsa.
Carmine sentia os joelhos doridos; a cadeira era demasiado baixa. Levantou-se e deu
uma volta pelo alpendre, vendo pelo canto do olho que Claire Ponsonby estava
de facto pronta para partir. A caixa da carrinha, estacionada em frente à casa,
estava cheia com malas, caixas, e um par de pequenas arcas iguais, que remontavam
a uma época de viagens mais demoradas e com mais estilo. Sem querer voltar a
sentar-se, encostou-se ao corrimão.
- Sabia que Mrs. Catone e a Emma também morreram nessa noite? - perguntou. - A sua
mãe usou o bastão de basebol nos três.
Claire fez uma expressão de absoluto e genuíno choque; o pé com que estava a
acariciar a cadela deu um solavanco involuntário, como um movimento reflexo.
Carmine
serviu-lhe de um copo de limonada, pensando se não devia tentar encontrar qualquer
coisa mais forte. Mas ela esvaziou avidamente o copo e recuperou a compostura.
- Então foi isso que lhes aconteceu - disse lentamente -, e durante este tempo todo
eu e o Charles sempre nos questionámos. Nunca ninguém nos disse quem eram as
outras duas vítimas, falou-se apenas de um bando de vagabundos que matara várias
pessoas. Presumimos que a mamã aproveitara isso para ocultar a sua acção, que os
outros dois seriam membros do bando.
De súbito inclinou-se para a frente e estendeu a mão a Carmine, num gesto
suplicante.
- Conte-me tudo, capitão! Como?
- Penso que estava certa ao pensar que o seu pai disse à sua mãe que a ia deixar
para começar uma vida nova. Com certeza que tinha localizado Mrs. Catone e a filha,
mas, quando se foi encontrar com elas na estação de comboios, foi pela primeira
vez, porque mãe e filha estavam na miséria. Sem dinheiro, sem comida. Os dois mil
dólares que ele levava consigo eram provavelmente tudo o que conseguira reunir para
esse novo começo - disse Carmine. - Estavam os três

429

escondidos no exterior, à neve, o que me faz pensar que a sua mãe tinha de facto a
capacidade de assustar muito as pessoas. Pobre homem. Disse demasiado à sua mãe
e três pessoas morreram.
- Todos estes anos e eu nunca, nunca soube... Nunca suspeitei sequer... - Virou os
olhos húmidos de emoção para Carmine, como se o conseguisse ver. - A vida não
é irónica?
- Quer que eu lhe vá buscar alguma coisa mais forte para beber?
- Não, obrigada, eu estou bem. - Dobrou as pernas e enfiou-as debaixo da cadeira.
- Pode falar-me um pouco sobre a sua vida depois disso? Claire encolheu um ombro e
franziu os lábios.
- O que quer saber? A minha mãe também nunca mais foi a mesma.
- Não houve ninguém de fora que vos tentasse ajudar?
- Refere-se a pessoas como os Smith e os Courtenay? A mamã dizia que eles só
queriam meter o nariz onde não eram chamados. Algumas doses da rudeza da minha mãe
resultavam
melhor do que óleo de rícino. Desistiram de tentar, deixaram-nos em paz. Nós
sobrevivemos, capitão. Sim, sobrevivemos. Tínhamos um pequeno rendimento, que a
mamã
complementou com a venda das terras. A família dela ajudou, penso eu. O Charles foi
para a Escola Dormer Day, eu também, e ela pagava regularmente as mensalidades.
- E o Morton?
- Um assistente social veio visitar-nos, olhou para ele e nunca mais voltou. Mais
tarde, o Charles disse a toda a gente que ele era autista, mas'isso foi apenas
por causa dos bisbilhoteiros. O autismo não aparece de repente, no dia em que a
nossa mãe assassina o nosso pai. Aquele era um problema psicológico profundamente
diferente. Mas nós gostávamos dele, sabe. As suas fúrias nunca se voltavam contra
mim ou contra o Charles, apenas contra a mamã e os desconhecidos que nos
visitassem.
- Ficou surpreendida quando ele morreu de forma tão inesperada?

430

- Diga antes que fiquei absolutamente chocada. Até ao corrente ano, mil novecentos
e trinta e nove tinha sido o pior ano da minha vida. Eu estava sentada com os
meus livros, a estudar, e apareceu-me à frente uma parede cinzenta... bam! Cega
para toda a vida. Uma visita ao oftalmologista e meteram-me num comboio para
Cleveland.
Mal tinha chegado à escola para cegos quando o Charles me telefonou a dizer que o
Morton morrera. Simplesmente... caíra morto! -Estremeceu.
- Parece estar a implicar que a sua mãe já não era completamente estável, a nível
mental, antes de mil novecentos e trinta, mas é evidente que o escondia bem. Então
o que aconteceu em finais de mil novecentos e quarenta e um para desencadear uma
autêntica demência?
O rosto de Claire contorceu-se.
- O que aconteceu logo depois de Pearl Harbor? O Charles anunciou que ia casar-se.
Tinha vinte anos, estava a aproximar-se da maioridade. Entrara para Medicina,
para a Chubb. Conheceu uma rapariga qualquer da Universidade Smith, num baile, e
foi amor à primeira vista. A única forma que a minha mãe tinha de os separar era
usar todos os seus recursos. Ficou louca, com uma loucura total e furiosa. A
rapariga fugiu. Eu ofereci-me para voltar para casa e
tomar conta da mamã... o que acabou por durar quase vinte e dois anos. Não que eu
não estivesse disposta a fazer muito mais do que isso pelo Charles. Não pense que
eu era escrava da minha mãe... aprendi a controlá-la. Mas, enquanto ela foi viva, o
Charles e eu não podíamos apreciar completamente o nosso amor por comida, vinho
e música. Entre os dois, capitão, o senhor e a minha mãe arruinaram-me a vida. Três
preciosos anos em que tive o Charles só para mim, essa é a soma total das minhas
memórias. Três preciosos anos...
Fascinado, Carmine deu por si a pensar se Danny Marciano não teria razão, afinal de
contas. Seriam irmão e irmã também amantes?
- Não gostava muito da sua mãe, pelo que vejo - disse.

431

- Odiava-a! Odiava-a! Sabia - continuou, com súbita ferocidade -, que entre os


treze e os dezoito anos o Charles viveu no armário debaixo das escadas? - A raiva
evaporou-se; uma faísca de medo iluminou-lhe os olhos e desapareceu enquanto levava
as mãos à boca. - Oh, não queria dizer isto. Não, isto era algo que eu não tinha
intenções de dizer. Escapou-me. Escapou-me!
- Mais vale deitar tudo cá para fora - disse Carmine em tom descontraído. - Agora
que já começou, mais vale ir até ao fim.
- Anos mais tarde, o Charles contou-me que ela o apanhara a masturbar-se. Ficou
doida. Guinchou e berrou e cuspiu e mordeu-o e bateu-lhe... ele nunca sonharia em
lutar contra a mamã. Eu lutava com ela o tempo todo, mas o Charles era como um
coelho sob o feitiço de uma cobra. Ela nunca mais falou com ele, o que partiu o
coração
do meu pobre irmão. Quando voltava para casa, depois de vir da escola ou de casa do
Bob Smith, lá ia ele para o armário. Era um armário grande, com uma lâmpada.
Oh, a mamã era muito atenciosa! Ele tinha um colchão no chão e uma cadeira dura...
e uma prateleira que usava como mesa. Mandava-lhe um tabuleiro com as refeições
e vinha buscá-lo depois de ele acabar. Ele fazia as suas necessidades num balde,
que tinha de esvaziar e lavar todas as manhãs. Até eu partir para Cleveland, cabia-
me
a mim levar-lhe as refeições, mas não tinha autorização para falar com ele.
Carmine estava a ouvi-la de boca aberta.
- Mas isso é ridículo! - exclamou. - Ele frequentava uma escola muito boa... tinha
conselheiros, um director, tudo o que tinha de fazer era contar a alguém! As
pessoas
teriam agido imediatamente.
- Não estava na natureza do Charles - disse Claire, erguendo o queixo. - Ele
adorava a mamã e culpava o nosso pai por tudo. Bastava-lhe tê-la desafiado, mas
seria
incapaz de o fazer. O armário era o seu castigo por ter cometido um pecado
terrível, e ele decidiu suportar o seu castigo. No dia em que fez dezoito anos ela
deixou-o
sair. Mas nunca mais falou com ele. - Encolheu os ombros. - O Charles era assim.
Talvez isso o ajude a compreender por que razão

432

continuo a recusar-me a acreditar que ele tenha feito essas coisas terríveis. O
Charles seria incapaz de violar ou torturar, era demasiado passivo.
Carmine endireitou-se, flectiu os dedos, um pouco entorpecidos devido à força com
que estivera a apertar o corrimão.
- Deus sabe que não tenho qualquer desejo de aumentar o seu sofrimento, Miss
Ponsonby, mas posso garantir-lhe que o Charles era o Monstro do Connecticut. Se
assim
não fosse, o major F. Sharp Minor não estaria a patrocinar o seu novo começo de
vida no Arizona. - Dirigiu-se aos degraus. - Tenho de ir. Não, não se levante.
Agradeço-lhe
muito por tudo isto, era um enigma por resolver que me andava a atormentar há
meses. Os nomes delas eram Louisa e Emma Catone? Óptimo. Sei onde estão sepultadas.
Agora posso dar-lhes uma lápide. Sabe se Mrs. Catone tinha alguma crença religiosa?
- Falou como um verdadeiro polícia, capitão. Sim, ela era católica. Suponho que
devia contribuir para a lápide, já que a Emma era minha meia-irmã, mas estou certa
de que compreenderá se não o fizer. Arrividerci.

433

Capítulo Trinta e Três

Claire Ponsonby ficou sentada no alpendre durante muito tempo depois de o capitão
Carmine Delmonico partir.
Os seus olhos vaguearam pelas árvores que rodeavam a casa, recordando como Morton
passara as horas e horas intermináveis dos seus dias desocupados. Escavara um túnel
porque sabia que, um dia, um túnel seria útil. Enquanto trabalhava ia pensando, e o
seu corpo desenvolveu a resistência e a magreza de alguém que trabalhava mais
duramente do que comia bem. Oh, Charles adorava-o! Amava-o ainda mais do que amava
a mãe. Ensinara-o a ler e a escrever, dera-lhe uma genuína erudição. Charles,
um irmão que compreendia a plenitude inelutável dos laços fraternais. Partilhando
os livros, tentando corajosamente partilhar o trabalho. Mas Charles tinha tanto
medo do túnel que não conseguia passar muito tempo nele. Morton, por outro lado,
nunca se sentia mais vivo do que enquanto trabalhava no túnel, escavando,
arrancando,
furando, arrastando para o exterior a terra e as pedras, que Charles espalhava
depois entre as árvores.
E assim começara a partilha. Charles pensava na Sala Catone como o paraíso de um
cirurgião, muitos metros acima da terra. Morton, por outro lado, sabia que a Sala
Catone era o florescer orgásmico do túnel, sob o peso silencioso da terra. Morton,
Morton, ligar,
desligar. Minhoca cega, toupeira cega na escuridão, escavando com um botão mágico
na mão com o qual podia ligar e desligar os seus olhos. Ligar, desligar, acender,
apagar, ligar, desligar. Escavar e escavar, ligar, desligar.

434

"Ora vejamos... Aquele carvalho foi onde ele enterrou o italiano de Chicago depois
de ele assentar o chão de mosaicos. E as raízes daquele ácer produzem xarope a
partir dos restos mortais do canalizador; contratámo-lo em São Francisco. O
carpinteiro de Duluth está a apodrecer perto daquele que deve ser o último ulmeiro
saudável
do Connecticut. Não me lembro onde enterrámos os outros, mas não são importantes.
Que servo maravilhoso é a ganância! Um trabalho secreto, pago com dinheiro vivo,
e toda a gente fica feliz. Ninguém mais feliz do que Charles, quando distribuía o
dinheiro. Ninguém mais feliz do que eu, enquanto brandia a marreta para recuperar
o dinheiro. Ninguém mais feliz do que nós os dois, enquanto remexíamos e
esquadrinhávamos nos orifícios, canais, tubos, cavidades. Não que precisássemos de
recuperar
o dinheiro. O que gastámos na Sala Catone ao longo de anos sem fim, enquanto
esperávamos que a mamã morresse, foi uma insignificância, em comparação com a
quantidade
de dinheiro que a mamã trouxe da estação de comboios em duas pequenas arcas
elegantes, naquele mês de Janeiro de 1930. Alguma vez o papá seria suficientemente
idiota
para perder todo o seu dinheiro na bolsa? Nem por sombras. Tinha convertido os seus
investimentos em dinheiro muito antes disso. Instalara um pequeno cofre (cuja
porta dera muito jeito mais tarde) na adega, e nele guardara o dinheiro até o
detective que contratara ter encontrado Mrs. Catone. Obrigado, caro capitão
Delmonico,
por ter preenchido as lacunas! Agora sei por que razão ele esvaziou o cofre, pôs o
seu conteúdo naquelas duas arcas e as colocou no carro antes de partir para a
estação.

435

Depois de o matar, a mamã transferira as arcas para o seu carro; nós abrimo-las,
espreitámos lá para dentro e roubámo-las enquanto as roupas dela e o bastão de
basebol
ardiam alegremente. Enquanto eu as escondia no meu pequeno túnel, Charles começou a
fazer um túnel mais do seu agrado, perfurando a mente da mamã. Uma e outra vez
lhe murmurou aos ouvidos que a história de Catone não passava de um fragmento da
sua imaginação, que ela não matara o papá, que imaginara Catone para se justificar
e que Emma era apenas um livro de Jane Austen. Quando ela precisava de dinheiro,
nós dávamos-lhe algum, mas nunca lhe dissemos onde estavam as arcas. Depois, após
esse traidor do Roosevelt ter abolido o padrão ouro em 1933, levámos a mamã e as
arcas até ao Banco Sunnington, em Cleveland, onde, uma vez que o banco era
propriedade
da família dela, não tivemos dificuldades em trocar as notas velhas por novas.
Naqueles dias da Depressão, muitas pessoas preferiam guardar as suas economias em
dinheiro vivo. E, nessa altura, ela não passava de uma marioneta impotente nas mãos
de dois rapazes recatados, mal acabados de entrar na adolescência.
Trazer o dinheiro de novo para casa não fora fácil, ligar, desligar. Alguém no
banco dera com a língua nos dentes. Mas Charles organizou a nossa estratégia, com
a sua inteligência extraordinária. Quando se tratava de logística e concepção,
Charles era um génio. Como é que hei-de substituí-lo? Quem poderá compreender,
excepto
um irmão?
Novamente em casa, o túnel de Charles na mente da mamã concentrara-se no dinheiro,
dizendo-lhe que Roosevelt o roubara para financiar a sua trama contra tudo o que
a América representava, a liberdade, em vez de deixar a Europa ter aquilo que
merecia. Sim, ambos os nossos túneis cresceram, e quem pode dizer qual deles era
mais
belo? Um túnel para a loucura, um túnel para a Sala Catone, ligar, desligar.
Espero que o capitão Delmonico tenha ficado satisfeito com a minha história de amor
e paranóia descontrolada com um final triste. É uma pena que aquela mulher dele
se tenha revelado tão desembaraçada. Estava tão ansiosa por uma sessão especial com
ela, esfolando-a nas suas alturas olímpicas, enquanto ela o via acontecer num
espelho. Não podes ter sempre os olhos fechados, Desdemona, abrir, fechar. E no
entanto, quem sabe? Talvez um dia, outro dia, possa acontecer. Nunca me teria
virado
para ela se não fosse o meu fascínio por Carmine, o Curioso. Mas uma vez que,
apesar de toda a sua curiosidade, ele não é adivinho, ligar, desligar, nunca fez as
perguntas que poderiam ter feito girar a chave no seu cérebro obstinado.
Perguntas como, por que razão elas tinham todas dezasseis anos? A resposta é
simples aritmética, ligar, desligar. Mrs. Catone tinha vinte e seis anos e a Emma
tinha
seis, o que perfaz trinta e dois, mas nós só queríamos uma Catone, portando divide-
se por dois e o resultado é... dezasseis! Perguntas como, o que poderia atrair
uma jovem de bom coração ao seu delicioso destino? A resposta a essa pergunta está
na qualidade da misericórdia. Uma mulher cega a chorar sobre a pata partida do
seu cão-guia. Biddy é maravilhosa a fingir uma pata partida. Perguntas como, qual o
significado de uma dúzia? Ciclos solares, ciclos lunares, ciclos motores... a
resposta é estúpida. Mrs. Catone costumava dizer "À dúzia é mais barato!", como se
isso fosse uma luz pelo menos tão cegante como a de Deus. Perguntas como, por
que esperámos tanto tempo para começar? Uma resposta presa nas teias de Édipo, de
Orestes. Matar Catones pode ser mais barato à dúzia, mas ninguém consegue matar
a própria mãe. Perguntas como, como podia Claire fazer parte disto? E contudo não
havia mais ninguém senão Claire... A resposta está nas aparências. As aparências
são tudo; está tudo nos olhos do espectador, abrir, fechar.
A mamã nunca teve uma menina. Apenas três rapazes. Ligar, desligar, acender,
apagar. Mas ela desejava uma menina e, o que a mamã queria,

436 - 437

a mamã tinha. Assim, vestiu o mais novo de nós como uma menina desde o dia do
nascimento. As pessoas acreditam no que os seus olhos lhes dizem, abrir, fechar.
Até
você, capitão Delmo-nico, incluindo você. Nós, os rapazes Ponsonby, somos todos
parecidos com a mamã: passamos bem por mulheres, mas somos homens desenxabidos. Não
temos nada da masculinidade dinâmica do nosso pai. Oh, como ele costumava dá-la a
Mrs. Catone! O Charles e eu víamo-los por um buraco da parede, ligar, desligar,
acender, apagar. Querido Charles, sempre a pensar em formas de satisfazer as minhas
necessidades. Teria sido tudo tão mais difícil depois de a Claire ficar cega,
se ele não tivesse tido a inspiração de me vestir com as roupas de Claire e de me
mandar para Cleveland, ligar, desligar. Assim que lá cheguei, ele pôs uma almofada
sobre o rosto de Claire e Morton, a Toupeira, transformou-se em Claire, a Cega.
Ligar, desligar, acender, apagar, abrir, fechar."
Escuridão, por fim. O meu verdadeiro meio ambiente, ligar, desligar. Está na altura
de Morton, a Toupeira, encontrar novos terrenos para os seus túneis.
Colleen McCullough

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"A força de Colleen está nas histórias


que escreve. Em Um Passo à Frente,
isso fica evidente na espantosa rede
de intrigas montada pela autora ."

The Sunday Telegraph

"Coileen continua a ser uma formidável contadora de histórias. Um Passo à Frente é


mais um marco na sua já longa carreira."

The Sidney Morning Herald

Data da Digitalização
amadora, Fevereiro de 2008

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