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A BANALIDADE DO EU :
a experiência da solidão no sujeito contemporâneo
A Amparo e Jurandir,
que me ensinaram a tolerância, o compromisso e a gratidão.
3
AGRADECIMENTOS
À Madalena, pelo amor de mãe. Por receber o que pude e perdoar o que não
pude.
À Gabi, pela atenção, tolerância, paciência. Meus dias no Rio não teriam sido os
mesmos...
À Célia, pelos apoios e pelo exemplo de uma vida para além das teorias.
Aos amigos de Recife, tantos, pela solidez do nosso passado e pela saudade de
um futuro que não veio.
Gilles Deleuze
5
RESUMO
ABSTRACT
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 08
n IMAGENS DA SOLIDÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18
1. Formas históricas de estar só.........................................................................19
1.1. A Solidão como retiro .................................................................... 20
1.2. A Solidão como experiência constitutiva do eu ............................. 24
1.3. A Solidão como desvio .................................................................. 30
2. A solidão do eu insuficiente ...........................................................................36
o IMAGENS DO EU . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42
1. A herança do eu moderno...............................................................................43
2.Tipologias do eu contemporâneo.....................................................................52
2.1.O Ego alterdirigido ............................................................................. 53
2.2.O Eu de troca .................................................................................... 60
3. Emoções e Moralidades do eu....................................................................... 69
__________________ INTRODUÇÃO
Emmanuel Lévinas
9
“ O que mais se alterou em minha vida foi o correr do tempo, a sua velocidade e até sua
orientação. Outrora cada dia, hora ou minuto estava inclinado, por assim dizer, para o dia
hora ou minuto seguinte, e todos juntos eram aspirados pela intenção do momento cuja
inexistência provisória criava como que um vácuo. Assim, o tempo passava depressa e
utilmente, tanto mais depressa quanto mais utilmente aproveitado, e deixava atrás de si um
monturo de monumentos e detritos que se chamava a minha história.[...] Talvez essa crônica,
na qual eu me embarcara, acabasse após milênios de peripécias, por ‘anular’ e voltar à sua
origem. Mas esta circularidade do tempo continuava a ser o segredo dos deuses, e a minha
curta vida era para mim, um segmento retilíneo [...] no futuro, o ciclo encolhe-se de tal modo
que se confunde com o instante. O movimento circular tornou-se tão rápido que já não se
distingue da imobilidade. Dir-se-ia, por conseguinte, que os meus dias se endireitaram. Já
não oscilam uns sobre os outros. Têm-se de pé, verticais, e afirmaram-se orgulhosamente no
seu valor intrínseco. E, como já não são diferenciados por etapas sucessivas de um plano em
vias de execução, assemelham-se tanto que se sobrepõem exatamente na minha memória,
afigurando-se-me sempre reviver o mesmo dia.” (Tournier, 1991, p. 190-1)
Michel Tournier assim descreve como a dimensão de futuro se encolheu para o seu
personagem, Robinson Crusoé. Na passagem, Robinson acabara de retomar o hábito da
escrita. Há pouco perdera, no incêndio da cabana onde morava, os volumes do diário que
havia escrito até então, narrando os dias de náufrago solitário na ilha deserta de Speranza.
Neste momento de retomada do registro de sua nova história, já contava com a companhia de
Sexta-feira, o nativo responsável pelo incêndio, e que, agora, começava a aparecer como uma
presença desconcertante em sua “mágica novidade”. Até então Robinson tratara Sexta-feira
como um selvagem a ser domado, da mesma maneira que buscara domar a ilha pela
exploração agrícola frenética. Enquanto vivia só, pelo trabalho, buscara se convencer de que a
presença de outrem, apesar de ser um elemento fundamental do indivíduo humano, não era
insubstituível; era “necessária, mas não indispensável”:
“Substituir algo dado por algo construído, problema geral, problema humano por excelência,
sendo verdade que tudo o que distingue o homem do animal é ele poder esperar só de seu
próprio esforço tudo o que a natureza dá gratuitamente ao animal – a veste, as armas, a
pitança. Isolado na minha ilha, eu podia afundar-me ao nível da animalidade não construindo
– e esse foi afinal, o meu começo – ou, pelo contrário, tornar-me uma espécie de super-
homem construindo tanto mais quanto a sociedade não o faz por mim.” (Tournier, 1991,
p.103)
inicial de não descansar enquanto a “ilha opaca, impenetrável, cheia de surdas fermentações e
maléficos redemoinhos” não se transformasse numa “construção abstrata, transparente,
inteligível”, caminhou para a falta de sentido, expondo a impossibilidade do trabalho
substituir o repovoamento do mundo com outros e manter os efeitos de sua presença.
“Construí, pois, e continuo a construir, mas na verdade a obra prossegue em dois planos
diferentes e em dois sentidos opostos. Porque se, à superfície da ilha, prossigo na minha obra
de civilização – culturas, criação de animais, edifícios, administração, leis, etc. – copiada da
sociedade humana, e portanto, a bem dizer, retrospectiva, sinto-me o teatro de uma evolução
mais radical que substitui as ruínas criadas pela solidão dentro de mim por soluções
originais, todas elas mais ou menos provisórias ou tateantes, mas cada vez menos
semelhantes ao modelo humano de onde partiram. Para acabar com a oposição destes dois
planos, não se me afigura possível que a sua freqüente divergência se agrave indefinidamente.
Há de vir fatalmente um tempo em que um Robinson mais e mais desumanizado já não poderá
ser o governador e o arquiteto de uma cidade mais e mais humanizada.” (Tournier, 1991,
p.103-4)
Aos poucos Robinson percebeu que fazer e conhecer não eram suficiente para garantir
um futuro significativo para si mesmo. O caminho de conhecer através de si e não “através de
outrem” não se configurou tão promissor. Voltava a amargar o afastamento brusco da
multidão de irmãos que o tinham sustentado dentro do humano, sem que ele se desse conta.
Redescobriu a corrosividade da solidão que o afastava do contato permanente com os
semelhantes, que formam e transformam a “frágil e complexa montagem de hábitos,
respostas, reflexos, mecanismos, preocupações, sonhos e implicações”. Percebeu novamente a
desnaturalização de suas relações pela solidão, privado da companhia dos outros personagens
que “dão a medida” e constituem “pontos de vista possíveis”. Outras medidas, outros ângulos
de visão, acrescentam virtualidades que o ponto de vista único, individual, não possui:
Introduzimos esse estudo com uma narrativa ficcional por acreditar na sua capacidade
de expor representações contemporâneas do tema ao qual nos dedicaremos: a solidão. Em sua
linguagem literária, o texto toca em dimensões da vivência solitária que nos são muito
familiares: a embriaguez da repetição, a perda do interesse pelo mundo, o encolhimento da
atividade do pensamento e da perspectiva de futuro contida na ação conjunta. Marca, de
maneira sublime, a absoluta necessidade da presença viva dos outros para constituir um
11
espaço acolhedor que traduza e interprete ações humanas em termos de objetivos e utilidades,
e que, ao mesmo tempo, seja uma fonte das novidades que nos intima a desejar e a construir
mundos melhores.1
A principal motivação do estudo da solidão é identificá-la como uma das principais
fontes de mal-estar contemporâneo. Grande parte das pessoas que atendemos cotidianamente
em nossos consultórios, tristes, deprimidas ou melancólicas, se queixam da solidão como
origem ou resultado de suas angústias. No discurso de muitas outras, a queixa não é explícita,
mas basta escutá-las com atenção para perceber os ecos de suas solidões. Uma grande parcela
procura incessantemente o que há de errado com seus corpos e mentes, sem nunca encontrar
respostas plausíveis para o que vivem. Não reconhecem em seu mal-estar diário, as marcas do
nosso tempo. Não desconfiam que emoções podem ser muito diferentes quando fora do
universo das prescrições técnico-instrumentais às quais nos habituamos. Nossa inserção
profissional na clínica de Saúde Mental, nos instiga a conhecer mais sobre as moralidades
escondidas por trás de sintomas e as histórias ocultas por trás dos estados de solidão.
Pode-se, facilmente, evidenciar uma escassez de estudos do tema da solidão na obra
dos autores de referência da psicanálise, como Freud, Ferenczi e Klein. Apenas nas últimas
cinco décadas, questões como a solidão, a drogadição e os comportamentos antisociais
começaram a ser problematizadas nesse campo de saber. Provavelmente porque apenas a
partir dessa época tais fenômenos passam a adquirir dimensões coletivas e a se tornarem
problemas com impacto social e econômico.
Fora da clínica psicanalítica, também não é raro perceber o modo como as pessoas se
referem ao sentido de estar no mundo. Elas fazem constantes referências, mais ou menos
diretas, à dificuldade de viver, de se relacionar e usufruir da companhia de outros. A ciência
psiquiátrica criou categorias para dar conta do fenômeno do crescimento vertiginoso das
depressões leves e duradouras, produzindo medicamentos para aliviar dores antes incluídas
nas vicissitudes da existência. A vida harmoniosa e satisfatória ao lado dos outros próximos
surge, especialmente nesse século, como uma carga pesada demais. Parece requerer uma
originalidade e disponibilidade que a tornam uma tarefa quase irrealizável. Cada vez mais,
não se sabe como superar as frustrações e as decepções, como ter confiança nos outros e em si
próprio, como não sucumbir às “companhias” sempre disponíveis e ilusórias das drogas, do
1
Deleuze interpreta o romance de Tournier, outra narrativa sobre a existência ficcional de Robinson Crusoé,
como sendo a expressão de “um mundo sem outrem.” Associa a existência de outrem à construção da categoria
do possível. “Outrem a priori é a existência do possível em geral.” (In Tournier, 1991, p.246) Analisa
filosoficamente o estatuto dessa noção e articula psicanaliticamente a ausência dela à idéia de perversidade
psicológica. Os sentidos que atribui ao relato ficcional são instigantes, lançando metáforas que parecem dar
continuidade à narrativa, porém, o fato de não estarmos particularmente interessados na consideração da
perversão, tornam sem sentido considerações mais detalhadas.
12
sexo fácil2 e até da violência. Vez por outra, as pessoas se dão conta de que não sabem mais
como se adaptar ao “jeito” do outro, como negociar uma relação, pois esperam, no fundo, que
apenas o outro se modifique. Enfim, nessa configuração relacional, o problema é encontrar
uma forma de ter parcerias para além do que o romance propagou como ideal de vida e que há
muito não funciona; como manter o ideal do outro como alguém significativo, fundamental,
em sua totalidade, para a experiência da boa vida. 3
A solidão tem sido uma das vivências atuais que mais conduz à paralisia e ao
desespero. Na forma de vida que escolhemos, cotidianamente, compartilhar, ela está quase
sempre associada à sensações violentas de carência, frustração e incapacidade. Pela força do
descontentamento que comumente produz, se torna um sentimento irrefletido e pouco
compreendido por parte daqueles que a experimentam. Não há interesse em aproveitá-la,
redefini-la ou reinventá-la. O sentimento de rejeição é a regra e sua evitação o método. A
tentativa de imunização contra ela é uma espécie de pressuposto irrefletido comum a todos.
Em um mundo que sonha e investe na abolição total de qualquer forma de dor, cabe apenas a
urgência em povoar esse deserto melancólico. Infelizmente, as saídas disponíveis, no mais das
vezes, conduzem a infortúnios maiores. Não trazem as respostas definitivas e universais que,
como veremos, caracterizam as aspirações modernas dos sujeitos na tentativa de resolução de
suas contradições.
Diante desse quadro, nos propomos a discutir o problema do sentido da solidão
contemporânea em duas de suas dimensões:
c A dimensão clínica, ou seja, o impacto da solidão como “causa” de conflito para os
indivíduos contemporâneos. Os profissionais da área de Saúde mental podem, facilmente,
atestar como o sentimento de solidão não se associa apenas a crises e rupturas, nem à
situações episódicas de privação de companhia. A importância, por assim dizer, “etiológica”
da solidão cresceu a medida que crescia e se expandia o vocabulário do sofrimento
sentimental. Cada vez mais pessoas são capazes de articular seus sofrimentos - derivados dos
mais diversos campos da vida - à gramática da solidão, solicitando terapêuticas reparadoras a
ela referidas.
2
Cabe aqui a ressalva de que não há intenção de hierarquizar práticas pessoais de nenhuma espécie. Apenas
desejo chamar atenção para aquelas que trazem aos indivíduos rigidez, paralisia, dependência, em suma,
impossibilitam-no de deliberar entre escolhas segundo os seus melhores propósitos e segundo os acordos
partilhados por ele na comunidade a que pertence.
3
Bauman (1995) apresenta formas típicas-ideais de togetherness na contemporaneidade para marcar certas
características com consequências morais decisivas, que tornam os encontros fragmentários e episódicos. São
formas de estar junto que seguem o modelo do being-aside, no qual as pessoas estão umas ao lado das outras
mas não são, de fato, objetos de atenção mútua. Ou seja, opõem-se às modalidades do being-with e,
especialmente do being-for, que serão discutidas nos dois últimos capítulos.
13
4
Bauman (1998) se refere à oposição entre mundo pré-moderno e mundo moderno - que teve suas primeiras
expressões na crise do ancien régime - como o mais feroz dos conflitos históricos, que deixou como herança um
“medo agudo do vazio” e uma “ânsia nunca saciada por certeza e segurança.”
14
A experiência histórica desse século mostra a perda dos elos de ligação da vivência
solitária com situações circunscritas de voluntarismo ou marginalidade, contidas em universos
de significado socialmente reconhecidos. A crise das instituições tradicionais, tanto na esfera
pública - já esvaziada - quanto da esfera privada, trouxeram a solidão para o primeiro plano
das identidades pessoais. Os últimos refúgios no reino do desamparo humano – família,
Estado e religião - não se apresentam mais como instâncias provedoras de segurança. Parecem
estruturas agonizantes, cujos últimos estertores ainda são investidos de grandes expectativas,
diante do terror da ausência de pertencimento. Ao mesmo tempo, necessitamos de reflexão e
de atenção para com as alternativas de sociabilidade que venham oferecer novos horizontes
para a existência. Nosso propósito é sugerir que a solidão pode ser redescrita em termos de
sua participação na revalorização do espaço comum como propiciador de segurança e
proteção, embora continuando a ser uma das chaves das identidades pessoais. A solidão de
estar abandonado à ambivalência e ao sentimento de falta de âncoras pode ser um motor da
condição de estar junto e ser-para-o-outro, projetos políticos para o futuro, que, segundo
Bauman (1995), nos dão a chance de agir moralmente e de “até mesmo, algumas vezes,
sermos bons no presente.”
5
Ver Foucault, 1985; Dumont, 1993; Rorty, 1994.
16
Vivemos em um cotidiano que “nos leva, sempre, a deparar com cínicos, delinqüentes,
homens violentos e lamentáveis narcisistas com a pose de homens de bem”, como opina
Castello (apud Costa, 1994, p.9). A figura do Outro, tornou-se, antes de tudo, sinônimo de
ameaça, uma presença a quem nos dirigimos com desconfiança. Como recuperar a
importância e a confiança nesse outro que dá colorido à vida com novos pontos de vista
possíveis? A atenção e a reflexão se tornam essenciais para a criação de novos contextos onde
possamos exercitar a fundamental característica política da ação conjunta, com vistas a fins
17
éticos e estéticos desejáveis, no mundo dos negócios humanos comuns6. Essa tarefa
não é exclusiva de filósofos e pensadores. A psiquiatria e a psicanálise existem também para
considerarem as realidades nas quais estão inseridas e dar suporte e conforto àqueles que
delas necessitam. Estar com o outro é característica fundamental dessas práticas, condição
para o seu sucesso; estar com o outro, marcou Lévinas (apud Bauman, 1998), é acima de tudo
responsabilidade e não obrigação contratual. Responsabilidade é, para ele, a “forma da
presença do outro para mim”, o modo pelo qual ele existe e, mais ainda, a minha própria
constituição como sujeito. Como disse Dostoiévski (ibid., p.210), “ somos todos responsáveis
por todos, por todos os homens perante todos, e eu mais que os outros.”
6
O mundo dos negócios humanos comuns seria a esfera da vida na qual nos orientamos e pensamos em termos
do senso comum. Marx, desafiando a tradição, imaginou que esta esfera - a filosofia, domínio “para os eleitos” -
poderia um dia ser acessível a todos os cidadãos, “a realidade do senso comum para todos”. (Arendt, 1979, p.51)
18
___________________ CAPÍTULO n
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Isak Dinensen
19
1.
FORMAS HISTÓRICAS DE ESTAR SÓ
Solidão deriva da palavra latina solitudinem, que quer dizer deserto, ermo, lugar
deserto e silencioso.(Bueno, 1968) Associa-se, portanto, à idéia de um lugar que pode ser
ocupado por alguém. O recolhimento, atitude de acesso a este lugar, se origina do latim
recolligere, recolher, reunir, juntar.(idem) Expressa, dessa maneira, um processo de
aproximação e não de afastamento. Recolher-se na solidão significava, nos primórdios da
civilização ocidental, se aproximar de um lugar desprovido de presenças físicas concretas, de
companhia humana objetiva, mas certamente povoado de ideais e desejos, repleto da
proximidade a uma outra dimensão.
Na língua portuguesa do Brasil atual, além da referência a um lugar ermo e
despovoado, pelo menos outros três sentidos são associados ao termo solidão: um estado de
alguém que vive ou se encontra só; um sentimento de alguém que vive em comunidade; e
uma falta de entendimento entre os que procuram compartilhar a mesma vida. É a história da
aquisição destes novos significados, bem como a situação atual deles, que iremos abordar
brevemente nesse primeiro capítulo.
A evolução histórica do conceito de solidão se apoia, sobretudo, na análise da vida
privada, outro conceito de origem complexa e delimitação incerta. A possibilidade de
observar os estados socio-emocionais ligados à ausência de companhia e ao sentimento de
isolamento começa a se delinear no final da Antigüidade, quando os registros históricos são
mais ricos e já permitem observações minuciosas sobre os costumes.7 Entretanto, a ausência
da categoria de eu como centro de uma esfera oposta à vida comum, fundamental para a
articulação com os sentidos mais estritos de solidão, nos levou a tratar do tema a partir da Era
Cristã.8 As formas de estar só, seus significados e repercussões, todavia, ganharam um sentido
7
Ver Veyne, 1989.
8
Ao falar de história da solidão, não postulamos a existência de nenhum tipo de identidade transhistórica
descritiva ou valorativa da noção. Nosso interesse é iluminar o campo de estudo do tema, recorrendo ao que, no
passado, tem semelhança de família com a experiência solitária de hoje. Muitos autores já se dedicaram à
discussão da existência ou não de referentes transhistóricos dos conceitos que determinariam a unicidade da
experiência. Nos desviaremos de tal percurso, adotando a perspectiva historicista e construtivista. (sobre a
discussão entre construtivistas e realistas ver Costa, 1995a e 1998)
20
mais próximo da experiência moderna apenas nos últimos quatro séculos. Somente quando as
pessoas começam a estar convencidas de possuir um mundo interior atraente e autônomo em
relação ao exterior, podem se definir “por contraste, ou mesmo por ruptura com os círculos de
vida social.” (Duby, 1990, p.529) Apenas a partir dessa virada histórica na concepção de
subjetividade, é possível atribuir à solidão um status de predicado constitutivo da natureza
humana, vivido pelo sujeito mesmo na companhia de outros. A solidão deixa de ser uma
situação excepcional experimentada no isolamento, como o era desde o final da Antigüidade.
Tornar-se-á associada à singularidade, como um contraponto da civilidade, numa época em
que a arte de representação de si visa mostrar a identidade que se deseja ser reconhecida no
espaço de convivência social. Assim, “a vida dos seres humanos fica cada vez mais dividida
entre uma esfera íntima e uma pública, entre comportamento secreto e público. E esta divisão
é aceita como tão natural, torna-se um hábito tão compulsivo, que mal é percebida pela
consciência.” (Elias, 1994, p.188) É a trajetória dessa aceitação irrefletida que procuraremos
traçar, sucintamente, adiante.
9
Entre todas as questões individuais, a sexualidade assume o papel mais importante, e recebe, portanto, mais
atenção e mais controle no universo dos exercícios ascéticos.
21
Duarte (1995, p.79) afirma que a religião cristã teria “um papel axiador na formação de nossa
visão de mundo.” Em apoio de sua tese, o autor cita Mauss, que teria sugerido haver uma
notável continuidade no fio da tradição ocidental. Nela a “Pessoa cristã” teria deixado sua
marca decisiva, que se reflete mesmo em nossas modernas concepções filosóficas e
ideológicas.
No início do cristianismo, o recolhimento solitário fazia parte de um conjunto mais
amplo de éticas filosóficas e religiosas que se apresentavam como alternativas aos modelos de
conduta da Pessoa romana, integrada à civitas. Os pagãos, tanto nas colônias quanto nas
cidades, encontravam-se descontentes com os modos de vida correntes. Nessas circunstâncias,
a pregação cristã aparecia como uma resposta, por assim dizer, esperada. São Paulo e outros
missionários percorriam os povoados defendendo a fundação de uma comunidade que não
buscava diferenciar socialmente seus integrantes, todos considerados igualmente filhos de
Deus. O número de seus seguidores se tornou cada vez maior, consolidando e naturalizando,
aos poucos, a vocação cristã da “universalidade de um deus pessoal aliada à estranheza do
crente ao mundo e sua procura pela salvação no além.” (ibid., p.84) A mudança é radical em
relação ao paganismo greco-romano. A pessoa cristã é, ao mesmo tempo, um “indivíduo-em-
relação-a-Deus” e um “indivíduo-fora-do-mundo.”10 A idéia de alma individual, universal e
eterna, aliada ao monoteísmo transcendente, constitui a base da atitude cristã de
distanciamento do mundo comum.11 E a distância desse mundo é exatamente a contraface da
proximidade de um outro, que os primeiros solitários vão desejar alcançar.
Os monges do deserto ilustram bem o caráter dessa primeira experiência histórica de
solidão individual. Juntos, na solidão dos desertos do Egito, se isolavam do mundo e, ao
mesmo tempo, se isolavam entre si, na busca da obediência completa a Deus e da
transparência total ao outro. Nesse período de disseminação dos ideais e da doutrina cristãos,
a solidão possui uma aura de altivez, elevação espiritual e é signo de escolha ativa de vida.
Ela significa, sobretudo, aproximação de Deus, por meio de atos que buscam a concordância
da vontade humana com a vontade divina. O isolamento busca a santidade, a chegada ao lugar
eterno da glória divina, onde não havia submissão, dor ou morte. Para viver nele, não
importam os sacrifícios e os sofrimentos impostos a si mesmo na passageira vida terrena.
Costa (1998) sugere que essa atitude de distanciamento do mundo esteve baseada na idéia de
um amor ao próximo sem angústia, sereno. O amor caritas é voltado para o que não morre, e
não para os objetos do mundo, como a cupiditas. No amor caritas, “o homem renuncia à
10
Noções de Troeltsch e Dumont, respectivamente.
11
“É essa noção de pessoa que podemos ver se constituir no cerne da teologia agostiniana.” (Duarte, 1995, p.85)
22
escravidão do mundo, encontra Deus em seu interior e recupera, enfim, a liberdade.” (ibid.,
p.93) Devemos amar em nós e no outro o que de eterno existe em cada um.
Entretanto, embora altiva, a solidão cristã é ainda excepcional. Ela só é alcançada
por meio de uma ascese espiritual, que nem é considerada como diretamente constitutiva
da natureza humana original nem é recomendada para todos: “Ao próprio São Paulo não
agradava que todos os cristãos fossem continentes.” (Duarte, op.cit., p.87) Em geral, um
matrimônio ordeiro era preferível a um celibato inoportuno. A questão crucial era a
instituição da experiência interior, individual, como matriz de uma obediência auto-
imposta e, como tal, mais eficiente. Como destaca Duarte, “mesmo concebendo o ‘eu’
como algo negativo, essas práticas não procuram anulá-lo como uma ilusão (como é a
experiência da iluminação budista),” (ibid., p.96) mas afirmam sua realidade e investem na
necessidade de seu conhecimento pela confissão.
Além da busca de serenidade de espírito ou do contato com a graça divina, a solidão
monástica ou secular também buscava desenvolver a vontade dos crentes, na luta contra o
mal. Como assinala Arendt (1995), o “eu quero” individual que responde ao “tu deves” da lei
de Deus, só tem sentido pela crença na existência de uma contra-vontade também individual –
marca do pecado que habita em todos – que deve ser superada e vencida em sua
desobediência. A desobediência é considerada, nesse período, “o pecado mortal par
excellence.” (ibid., p.237) O isolamento penitencial é, assim, outro fator que impelia os
indivíduos à ascese solitária. O corpo é o lugar onde se alojam os impulsos sexuais
desobedientes que põem em risco a castidade. Na teologia agostiniana, que se tornou
dominante na cultura ocidental, isso pode ser claramente demonstrado. O movimento
autônomo dos órgãos sexuais - manifestação indesejável do corpo - era a marca da impotência
da vontade humana. O homem impotente - entregue à ereção involuntária - é resultado do
pecado original cometido por Adão de querer fazer da sua vontade algo autônomo e livre com
respeito à vontade de Deus. O indivíduo comprometido com Deus, transformaria seu corpo,
até fazer desaparecer nele as marcas da sexualidade. Na solidão periodicamente instituída, os
cristãos buscavam se purgar da marca indelével do pecado. A redenção era o verdadeiro
objetivo da solidão cristã.12
Com a ascensão da igreja à posição de religião oficial, a queda do Império Romano e
os demais desdobramentos sociais e políticos dos primeiros séculos da era cristã, os ascetas,
12
Costa (1998, p.95), retomando Hadot, esclarece que “os exercícios espirituais podem ser interpretados como
passos históricos rumo à intimização do sujeito ou à hermenêutica do desejo individual. Mas, em seus
fundamentos explícitos, eram pensados como etapas na ‘superação de si em direção da universalização’ e não
como fixação do homem a seu universo de sensações, sentimentos ou pensamentos, pecaminosos ou puros. Se a
ascese agostiniana culminou, portanto, no interesse pela individualização do desejo sexual do sujeito, isso não se
deve ao pensamento de Agostinho, mas a razões históricas ainda não elucidadas.”
23
celibatários de grupo e estetas da virgindade passaram a ser vistos de maneira diferente. Suas
atitudes de isolamento perdem muito em relevância e atratividade. Raramente as figuras
isoladas e solitárias da Idade Média eram tidas como admiráveis ou heróicas. No século V, o
projeto de solidificar a Igreja como a religião do Estado Romano, ressalta Duarte (op.cit,
p.91) acentua e fortalece a preocupação com o coletivo, visível na organização de
congregações em torno das basílicas cristãs.
A época feudal, como mostra Duby (1990), tem como característica a ausência de
espaço para a solidão individual. Tudo era feito pelo menos na companhia de um outro, e, de
preferência, fora da clausura doméstica. Predominavam os grupos, as associações, familiares
ou não, localizados em torno do lar ou se deslocando nos espaços públicos. Os segredos eram
partilhados por todos os membros e a independência era uma independência coletiva.
Qualquer um que tentasse se isolar do estreito e abundante convívio adquiria status de
contestador e era visto com suspeição, um estranho, que, por se afastar do grupo, se tornava
vulnerável aos ataques inimigos. Na medida do possível, deveria ser reintroduzido a uma
comunidade ordenada, mesmo que pelo uso de força. Dessa maneira, as modificações
instituídas pela ética cristã se acomodavam à sociedade medieval, ao princípio romano da
utilitas publica prefertur utilitati privatae.13 (Lukes, 1990, p. 597) Na Idade Média, o bem-
estar do todo era considerado mais importante que o bem-estar individual: “O indivíduo não
existe para sua própria causa, mas pela causa de toda a sociedade”14 (Ullmann apud Lukes,
idem).
O início do segundo milênio anuncia modificações relevantes na estrutura política e
social, decorrentes do fenecimento do sistema econômico medieval. Os homens passam a
poder circular pelos territórios sem maiores riscos, indo aonde desejavam, mesmo sem
companhia. Aos poucos, a nova ordem dispensa a necessidade de proteção. Não havia mais
razões para a permanência imperativa dentro dos muros dos feudos. Segundo Duby (1990),
nas últimas décadas do século XI, o Ocidente foi tomado pela condução da luta contra o
demônio, a sós. Destacaram-se as comunidades cistercienses, que pretendiam retornar às
recomendações de São Bento, afastando-se dos tumultuos do mundo, mantendo os princípios
da vida comunitária e defendendo a integridade de uma solidão rude em torno das abadias. No
século XII, novamente, era legítimo buscar a santidade no combate singular do isolamento
penitencial e na resistência às tentações. O silêncio, o retiro, o encerramento, a privação,
voltavam a fazer parte de um projeto valorizado de ascenção espiritual: “Atravessar,
voluntariamente ou não, o perigo, a tribulação maior que era a solidão, parecia, para os mais
13
Public utility is preferable to private utility; ‘A utilidade pública é preferível à utilidade privada.’
14
Individual did not exist for his own sake but for the sake of the whole society.
24
fortes, para os eleitos, a ocasião de caminhar para o melhor.” (ibid., p.505) Os monges
solitários, os eremitas15 e especialmente os cavaleiros errantes16, deram início ao movimento
civilizatório de liberação da pessoa do gregarismo medieval sufocante, centrado no domicílio.
O declínio da cultura da Alta Idade Média, também marca o crescimento da
experiência de auto-suficiência, em detrimento da obrigação tradicional de cuidar dos
fracos. No espaço da desordem afetiva e da angústia solitária, começaram a poder buscar
refúgio, além dos penitentes, criminosos e heréticos, aqueles que a paixão transportava fora
do senso, na desmedida. Tristão, por exemplo, arrastando Isolda sob efeito do veneno que os
enlouquecera, mergulha com ela na selvageria da floresta, numa demonstração de vigor da
solidão apaixonada. Os jogos amorosos da Sociedade de Cortesia, a vivência da solidão a dois
por parte dos amantes - oculta, silenciosa, discreta e recolhida - retomam as características de
uma experiência repleta de significados e objetivos. De forma geral, podemos considerar que
não houve deslocamentos substanciais nas representações da solidão entre o cristianismo
primitivo e a sociedade do amor cortês, apesar dos séculos de feudalismo que desvalorizavam
fortemente a experiência individual. A Sociedade de Cortesia, inclusive, reforça a antiga
tradição do “eu” cristão e produz, no vocabulário amoroso que criou, os primeiros sinais do
que vamos conhecer mais tarde como “intimidade”.17
Como foi dito, a experiência da solidão como retiro é o referente mais distante do mal-
estar solitário da atualidade. Nos próximos dois ítens, analisaremos diretamente o período dos
últimos quatro séculos, determinantes na construção dos significados atuais da solidão.
15
Esta experiência era contestada pela igreja oficial como uma maneira dos indivíduos, heréticos, amarem a
solidão não por desejar fazer uma boa obra e sim por desejar orgulhosamente ter liberdade de sua própria
vontade. O eremita está só, incontrolado, subtraído à constrição dos rituais.
16
A literatura cavaleiresca cumpriu uma função pedagógica, apelando à superação de si mesmo, em paralelo
com a mística cisterciense, convidando o indivíduo a provar-se, passo a passo, no silêncio e na solidão.
17
Duarte (1995) acredita que apenas no intervalo temporal entre o Renascimento e a Revolução Francesa
aparecem de fato as demonstrações de uma grande ruptura, com a consolidação de uma nova ordem que renega a
tradição anterior.
25
18
‘Fama não é senão pública.’
26
19
A medida que as individualidades se privatizam, abre-se mais e mais espaço para a massificação e a
progressiva substituição da identidade de cidadão - que participa - pela de consumidor - que sabe se movimentar
no mercado de produtos e selecionar os que são “adequados” à sua identidade massificada. A Sociedade de
Massas criará uma falsa sensação de pertencimento, através de prática de uma aparente democracia legítima, que
é , na verdade, um principado democrático, uma forma disfarçada de oligarquia.(ver Ortega, 1998b)
27
sentido moderno, não é público nem privado; na nova ordem burguesa, as pessoas não se
conhecem e procuram se proteger dos olhares dos outros no recolhimento familiar – núcleo
do privado - e na valorização de estilos de vida singulares.20 Esses elementos de mudança se
organizaram em estruturas estáveis que fizeram triunfar o individualismo dos costumes,
baseado na conquista da intimidade pessoal. Um exemplo desses novos costumes, paralelo ao
deslocamento da comunidade para a família, é a incitação ao prazer da solidão, geralmente
partilhada com um amigo em especial, “um outro eu”, por quem se nutre “um sentimento
mais polido, um relacionamento tranqüilo, uma prazerosa fidelidade, com toda uma gama de
variedade e de intensidade.”21 (Ariès, 1991, p.12) Essa solidão, na verdade, não costumava ser
repartida com alguém; o contato com o amigo, geralmente feito por carta, apenas simulava
um diálogo interno do sujeito consigo mesmo.
A força da noção de eu, de unidade indivisível, foi reforçada, posteriormente, pelas
idéias românticas de humanidade, beleza e autenticidade individual. Duarte (1995) destaca
o período do romantismo alemão como uma das máximas expressões da interioridade
ocidental. A teoria da absoluta singularidade do espírito individual, se tornou um dos pilares
mais sólidos do individualismo ideológico. A prática social do isolamento passa a ser
justificada como aquilo que realiza, na plenitude, a verdadeira natureza do sujeito. Deixa de
ser apenas um costume, um hábito de individuação com justificativa e objetivo. O eu
romântico do século XVIII começa a experimentar a idéia da liberdade de uma forma
diferente dos “eus” descritos até aqui. O esforço do trajeto pessoal é um objetivo que se
justifica em si mesmo. Nesse contexto, ocorreu um paulatino deslizamento do significado
original da solidão – participativo e construtivo – que modificou o impacto afetivo de sua
vivência. Tornou-se cada vez mais difícil a possibilidade de percebê-la como um sentimento
voluntário integrador, e, portanto, acessível à reflexão e à deliberação daqueles que o
experimentam. Veremos adiante o que se perde com a mitificação compensadora do eu como
ser cheio de mistérios e segredos, ao passo que, na verdade, se torna apenas mais uma
presença descartável a ser manobrada na multidão das cidades.
Alguns autores observaram que os pródromos do moderno individualismo
ideológico se encontram na Reforma protestante.22 Embora sem negar essa filiação, outros,
20
Ariès (1991) assinala que este fenômeno é bem mais específico da vida urbana das elites, já que, no início do
século XX, ainda existiam exemplos de sociabilidade coletiva e comunitária na zona rural e também nas classes
populares.
21
Ariès (1991) chama a atenção para o fato de que existiram também grupos de convivialidade que funcionavam
como um meio-termo entre a “solidão-terrível” e a “multidão-tumultuada”. Algumas pessoas eram escolhidas
para se reunir, ler cartas, conversar, escrever, numa comunicação que evitava o “tédio da solidão” e o “peso da
multidão”. Estes grupos ainda não são as famílias, núcleos totalmente estranhos a este primeiro momento de
privatização.
22
Ver Marcuse apud Costa, 1985.
28
“Para tudo o que faltava na vida diária um substituto foi criado nos sonhos, nos livros, na
pintura. De modo que, evoluindo para se tornar cortesã, a nobreza leu novelas de cavalaria;
os burgueses assistem em filme à violência e à paixão erótica. Os choques físicos, as guerras
e as rixas diminuíram e tudo o que as lembrava, até mesmo o trinchamento de animais mortos
e o uso de faca à mesa, foi banido da vista ou pelo menos submetido a regras sociais cada vez
mais exatas. Mas, ao mesmo tempo, o campo de batalha foi, em certo sentido, transportado
para dentro do indivíduo. Parte das tensões e paixões que antes eram liberadas diretamente
na luta de um homem com outro terá agora que ser elaborada no interior do ser humano.”
(Elias, 1993, p.203, grifos nossos)
“Para o autor, a vida em corte, com suas exigências de civilidade, obrigou os sujeitos a um
controle de si até então desconhecido. A civilização se deu a expensas de um expurgo de
29
“Em outras palavras, com o avanço da civilização, a vida dos seres humanos fica cada vez
mais dividida entre uma esfera íntima e uma pública, entre comportamento secreto e público.
E esta divisão é aceita como tão natural, torna-se um hábito tão compulsivo, que mal é
percebida pela consciência.” (Elias, 1994, p.188)
A solidão é, sem dúvida, uma das características essenciais para a compreensão das
transformações ocorridas entre os séculos XVI e XVIII23. No período referido, ocorreu um
processo de privatização nas sociedades ocidentais que criou expectativas e práticas novas
no que concerne à relação do sujeito consigo mesmo e com o outro. O segredo e a solidão
são categorias correlatas, cultivadas no espaço de sociabilidade restrita que se torna cada
vez mais presente no imaginário social. Mesmo quando a Revolução Francesa destitui o
sistema de Corte em seus maneirismos teatrais e sua hierarquização monárquica, a
23
Além da solidão, Ariès enumera outros fenômenos relevantes ao processo de transformação social entre os
séculos XVI e XVIII: a civilidade, o autoconhecimento, a amizade, o gosto e a comodidade. ( ver Chartier, 1991,
p. 165).
30
24
A fraternidade, segundo Ortega (1998c) não é um ideal original do Iluminismo, como liberdade e igualdade.
Foi introduzido na Constituição francesa apenas em 1848. O autor acredita que o discurso supostamente
universalista da fraternidade, ao contrário dos outros dois ideais, esconde uma lógica particularista, agressiva,
intolerante e normatizadora. Valorizaremos, adiante, apenas seu sentido “fraco”, relacionado à solidariedade.
25
Para um estudo detalhado das idéias de Rousseau, ver Soares, 1997.
26
As figuras sociais do pai e da mãe deixam de ser apenas elos na cadeia das linhagens ou das gerações para se
tornarem tipos morais e psicológicos autônomos.
27
Normatização refere-se aqui aos mecanismos de exclusão não regulados pelo Estado, ou seja, instituídos pela
família e especialmente pela ciência. Os solitários internados nos hospitais psiquiátricos, por exemplo, eram
praticamente destituídos de sua humanidade e não apenas privados do exercício de cidadania.
31
28
A Boêmia é um modelo diametralmente oposto à vida privada da burguesia. Dela participam os solteiros
temporários e os artistas. Eles não tem domicilio certo, não tem bens e sempre estão cheios de dívidas. A vida é
noturna, sem compromissos de horário e se dá nos salões, bares e avenidas. Conversar é a principal ocupação.
Amores múltiplos e partilhados com os companheiros são regra. Infidelidade é princípio. Apenas o amor requer
algum segredo e só ato sexual é inteiramente privado.
29
O dandismo britânico é antiigualitário e politicamente mais conservador que a Boêmia. É um movimento que
exacerba a diferença numa época de massificação social e tem a intenção de recriar uma aristocracia de
temperamento e estilo. Trata-se de uma ética de essência aristocrática, uma moral anticapitalista e eventualmente
ascética, que concebe uma vida de lazer e dispensa o trabalho e o dinheiro como objetivo, apesar do gosto pela
ostentação e pela toalete. Os dândis são pessoas preconceituosas, anti-semitas, que protegem sua individualidade
por trás da máscara da aparência e alimentam o gosto pela ilusão e pelo disfarce. O casamento é o pior dos
cativeiros. A procriação e os filhos são insuportáveis. As mulheres são desprezadas e representam para eles as
redes da escravidão. O prazer carnal com elas deve ser apenas comercial. “A mulher é o contrário do dândi: ela é
natural, ou seja, abominável.” (Flaubert apud Perrot, 1991a, p.298)
30
Estas prescrições tem talvez sua máxima representação nas construções moralizantes de Rousseau, que
influenciaram definitivamente a sociedade oitocentista. Soares (1997, p.41) esclarece que o homem, ao ser
considerado naturalmente imperfeito, “necessitaria do outro para sentir-se completo. A única maneira viável de
maximizar a felicidade humana seria, então, através do amor. O homem, ao optar por ficar sozinho, estaria
condenado a não ser feliz.”
32
mulheres são feitas para esconder sua vida.” (Simon apud Perrot, ibid., p.298) Quando
sozinha, uma mulher desperta reprovação, desconfiança e zombaria. O homem solteiro é
apenas risível; a solteirona é lastimável, alvo de todos os estereótipos. Entretanto, o
número de mulheres solteiras é imenso desde a Idade Média, devido a múltiplos fatores.31
Nos meios populares, a sorte delas é muito precária, sem nenhum amparo nem
reconhecimento legal de seu trabalho. Na velhice, estão sem aposentadoria e vivem
esquecidas nos asilos, pardieiros e casas de misericórdia.
Não é normal, a certa altura da vida, não ter uma parceria amorosa estável,
legalizada, fiel e fértil. Todo aquele que não sabe, não quer ou não pode constituir família
ou viver em seu seio, recebe da sociedade oitocentista o estigma de solitário, uma pessoa
deficiente, menor. Existe um código tácito que permite reconhecer quais os sinais de
solidão, vergonha e pobreza.32 Solteiros e solitários são enquadrados em instituições
reguladas por princípios de segregação sexual e que funcionam rigidamente como a igreja
e o exército. Nesses espaços deve-se garantir um olhar inquisitorial sobre os internos para
coibir as promiscuidades: “notemos que o isolamento no século XIX é uma terapia
generalizada, desde o asilo psiquiátrico (cf. Gaucher e Swain) ao sanatório (cf. P.
Guillaume). ‘O gênio da suspeita veio ao mundo’, diz Stendhal.” (Perrot, ibid., p.287) Os
solitários vagabundos e mendigos são os mais suspeitos entre todos, numa sociedade que
faz do domicílio a verdadeira condição de cidadania. O vagabundo ameaça a família e a
saúde, e deve ser controlado, inclusive por leis que protegem a comunidade. Ele morre
mais cedo, por esgotamento ou suicídio, fruto de sua não integração social.
A reclusão voluntária existente até meados do século XVIII, apresenta
diferençasundamentais em relação à reclusão imposta que surge como penitência e
remédio na lei francesa de 1875. O encarceramento individual promulgado por esta,
transforma a defesa da privacidade das relações dentro das instituições numa luta
constante. Os internos desenvolvem táticas destinadas a contornar os regulamentos que
mantêm a solidão pela regulação do convívio mútuo, especialmente quando incluem a
sexualidade. Os resultados destes tratamentos, controles e punições são outros transtornos
e distúrbios, como a morte do desejo e a perda de autonomia das pessoas submetidas à
normatização carcerária ou hospitalar. A diversidade dessas instituições totalitárias é
enorme e o modelo de vida privada do exterior inescapavelmente servem de parâmetro
31
Em 1880 elas são 55% das mulheres acima de 50 anos; juntamente com as mulheres sozinhas perfazem 73%,
em contraste com os 10% encontrados um século depois. (ver Perrot, 1991a)
32
Um bom exemplo é a mulher que dá a luz em um hospital. Nos costumes oitocentistas, o nascimento é algo
rigorosamente privado, no aposento do casal e rodeado só de presenças femininas, excetuando-se a do
médico, figura cada vez mais presente à cabeceira nas famílias abastadas. (ver Perrot, 1991a)
33
para a determinação dos limites internos de suas atuações. A criação oitocentista dessa
solidão como desvio, na verdade, não só prende os indivíduos nos muros das instituições,
mas também estimula a construção de mais muros. A força das imposições e regulações de
ordem moral acentuam o caráter negativo que já se anunciava, entre românticos e
cortesãos, na vivência sofrida e complexa da solidão como experiência constitutiva do
eu.
Soares (op.cit.) mostra como a contestação do Antigo Regime, realizada por Rousseau,
havia construído novos valores, naturalizando as idéias de “diferença complementar” entre os
sexos, reprodução da espécie e cuidado duradouro com a prole. Assim, por meio da família -
uma comunidade real formada pelo amor – se garantia a preocupação e o investimento nos
outros. Ao mesmo tempo, nela o homem exercitaria o controle da própria vida - um antigo
projeto burguês - por meio da grande liberdade e responsabilidade da escolha de um parceiro:
“O homem, enquanto pai, e a mulher, enquanto mãe, seriam o que de mais profundamente
humano poderia existir.” (ibid., p.43), Rousseau, entretanto, parecia estar bastante consciente
da fragilidade paradoxal de sua construção. Enfatizava o esforço educativo de preparar a
mulher e o homem um para o outro, necessário para remediar os males de uma cultura
desgarrada.
Em Rousseau, a família se constitui, ao mesmo tempo, como um lugar onde se
controla o corpo e a expressão emocional e como um lugar em que há uma troca de carinho
tolerada e até mesmo desejada entre pais e filhos. Assim, na medida em que o casamento não
mais se baseia na exploração de dois patrimônios reunidos, nem numa atividade profissional
em comum, seu fundamento passa a ser o sentimento. Ora, uma pessoa pode se comprometer
a administrar um negócio a vida toda, mas não pode garantir um desejo eterno. Quanto mais
se valoriza a experiência sensível da condição desejante e a liberdade da escolha amorosa e
sexual, mais se dissolve a crença na possibilidade de junção perene entre amor e sexo, que
havia garantido o contrato social em torno dos vínculos familiares ao longo de todo o século
33
XIX. No período de transição do século XIX para o XX, se observará uma contradição na
evolução da família, como esclarece Perrot (1991b).34
33
Com o novo lugar concedido a experiência sensível do sexo junto ao amor, “Rousseau altera o quadro
construído pelo cristianismo, pois retira o sexo do domínio do pecado. [...] O ataque de Rousseau a essa idéia do
pecado tinha como base a consideração de que todas as paixões são boas por natureza, mesmo a paixão sexual, e
que Deus jamais as condenaria. Seu intuito, com isso, era aliviar a culpa inculcada no homem a partir do
cristianismo e libertá-lo para livre expressão do amor, pois só assim ele seria capaz de desfrutar um amor
completo e desimpedido. Essa construção é inédita na história. Ninguém nunca havia colocado o sexo e o amor
juntos, enquanto elementos naturais e ligados à vida pública, ou seja, sendo a base do contrato social.” (Soares,
1997, p.41)
34
A contradição é a que passa a existir entre a noção de família como abrigo contra a solidão e a do casamento
baseado na livre escolha dos parceiros, justificado pela reciprocidade dos sentimentos.
34
Os esforços educativos preconizados por Rousseau não foram suficientes para manter
a coerência do casal a longo prazo. A tentativa da civilização ocidental em misturar dois
parâmetros dificilmente compatíveis entre si - o amor-paixão, que é efêmero, e as
preocupações matrimoniais, que não devem sê-lo - aos poucos naufragou. Solidão, além de
expressão de insuficiência - de um desvio da norma reconhecida como escrita na natureza
humana e aprovada pela conveniência política - passa também a ser uma marca do fracasso
desse projeto. A desconfiança ou a certeza de que a vida em comum, depois de um período de
encantamento, se transformará na monotonia cotidiana ou acabará na solidão da separação,
agem como motivos contrários à coesão conjugal. Paralelamente a esses elementos
contraditórios, presentes na relação entre justificação cultural do casamento e justificação
cultural da família, outros fatores como a exacerbação do individualismo, vieram enfraquecer
as parcerias conjugais e reforçar a crença na “inevitabilidade da solidão”. Sua existência é
banalizada pelo hábito da transformação do eu em centro dos próprios interesses.
O jornal, o rádio, a televisão, tornam as pessoas conscientes dos dramas do mundo
todo e, ao mesmo tempo, as fazem crer em soluções universais, implicitamente sugeridas, cuja
ênfase recai no desempenho individual. Vincent (1994) cita pesquisas realizadas na metade da
década de oitenta, em camadas socioculturais mais abastadas, nas quais observou-se que “o
indivíduo privilegia cada vez mais sua própria realização e seu livre-arbítrio, em detrimento
das ‘imposições, limites, constrangimentos e sacrifícios pressupostos por uma relação
multifuncional de longo prazo’ (F. de Singly).” (ibid., pp.295-6) Há um predomínio do eu
sobre o nós conjugal que, “desvalorizando a fidelidade e a constância em favor da auto-
realização das potencialidades pessoais, coloca a existência conjugal em novos tempos.”
(idem) Se valorizo o “eu” em detrimento do “nós”, se acredito que outros estão sendo
suficientemente resolutivos em suas vidas como devia estar na minha, interpreto os
desencontros e impossibilidades de realização afetiva e amorosa como retumbante fracasso
pessoal.
O século XX trouxe consigo tentativas de criar maneiras alternativas de encarar a
solidão, novas possibilidades de lidar com ela. Algumas mulheres, pelo desejo de autonomia
financeira e profissional, são conduzidas à vocação religiosa, ao trabalho altruísta e a carreiras
públicas, para as quais devem sacrificar suas vidas pessoais, obtendo promoção social. Surge
também um movimento equivalente ao dandismo, mulheres másculas que reivindicam viver
como homens. Não desejam mais se submeter aos salários baixos, tendo que se manter ligadas
a um “protetor” ou “amigo” que proporcione um complemento financeiro e até mesmo a
resolução da questão sexual e afetiva fora do casamento. Desejam uma vida no celibato,
livremente escolhida e vivida. São pessoas criadoras, de vanguarda, que começam a ser
35
reconhecidas pela sociedade, talvez pelas suas origens estrangeiras. Em torno delas se
organiza um grupo de “novas mulheres” que recusam papéis secundários e querem amar à sua
maneira, não obstante todas as dificuldades.
A coabitação juvenil, nas últimas décadas desse século, também é uma alternativa
nova para lidar com a solidão. Proporciona uma certa proteção, como no casamento antigo,
contra o isolamento e o tédio, com a diferença de que atribui ao entendimento sexual um peso
muito superior aos outros aspectos. A coabitação se instala num quadro mais amplo de novas
exigências e expectativas, condicionadas pela velocidade das mudanças sociais. Mas ainda
mantém a primazia do eu sobre o nós. A exigência de espaço para a individualidade,
independente da vida conjugal, nutre e também se alimenta de um mercado amplo, que
garante a satisfação de gostos singulares. Ao mesmo tempo, multiplica e demarca as
diferenças. Para cada gosto, cada característica, cada desejo, um produto, mercadoria ou
serviço.
Na época atual, observamos o enfraquecimento dos mecanismos oitocentistas de
normatização dos vínculos de convivência. As mudanças dos costumes provocaram uma
ampla desorganização da família nuclear. A primazia dos interesses do eu, tornada
economicamente relevante, multiplicou as famílias de um só genitor. Cresceu também o
número de pessoas que moram sozinhas, apoiadas por todo tipo de engenhocas tecnológicas
que facilitam a vida cotidiana e dispensam a presença de outros. Os processos de massificação
identitária e facilitação do consumo desfavorecem a manutenção dos laços que solicitam
esforço de cooperação e compromisso com outros diferentes. Todos desejam ser
absolutamente singulares nas suas vidas, plurais nas suas escolhas e livres nos seus
movimentos, embora demonstrem estar cada vez mais confusos e desiludidos sobre a
viabilidade desse projeto.
Os impactos culturais do novo século tornaram sem efeito as velhas ideologias. O
mundo passou a experimentar exclusões e segregações diferentes, maiores e mais brutais, que
ultrapassaram fronteiras e servem ao experimento das mais modernas máquinas de matar e
abrem feridas tão grandes que parecem incuráveis, imperdoáveis e inesquecíveis. A face da
solidão moderna, que no século XIX esteve mascarada pela luta contra os “inimigos” da
família, aparece e se expressa em sensações de impotência e imobilidade diante da vida.
Ninguém mais acredita nos valores transcendentes e suas garantias, nem tampouco na
proteção benevolente do Estado ou da família. Nenhum tipo de organização social, política ou
religiosa aparece como realmente atraente e segura. Aos poucos, desaparecem as utopias pelas
quais lutar. Os sujeitos, no máximo, se mobilizam por pequenos objetivos privados, da
vizinhança cultural e econômica, marcados por uma impossibilidade constitutiva de
36
2.
A SOLIDÃO DO EU INSUFICIENTE
35
Um estudo da Organização das Nações Unidas, amplamente divulgado pela imprensa na segunda semana de
outubro de 1998, calculou que a fortuna pessoal dos 225 homens mais ricos do mundo é equivalente à renda
anual dos 2 bilhões e meio de seres humanos mais pobres.
37
relação com a sexualidade.36 Sennett e Foucault perguntavam por que a sexualidade se tornou
tão importante como matéria-prima e ferramenta para a capacidade das pessoas se auto-
definirem. Sennett extrai, daí, interessantes considerações sobre a solidão, centrando a análise
nas subjetividades dos séculos XVIII e XIX. Foucault se ocupa mais dos primeiros séculos da
era cristã, mas, ao final, ambos procuram estabelecer uma linha de continuidade entre o
pensamento cristão e a cultura moderna, no que diz respeito a imagem do sujeito no Ocidente.
Sennett considera o entendimento das circunstâncias nas quais as pessoas se sentem sozinhas
consigo mesmas, nas condições familiares, de trabalho ou na vida política, fundamentais para
o entendimento do conceito de eu. A sensação de isolamento, em meio às multidões dos
aglomerados urbanos, seria uma idéia no mínimo estranha para um cidadão do século XVII e
por isso mereceria investigação. Sua compreensão dependeria da análise das “ferramentas
mentais” responsáveis pela sensação de estar só, apesar de acompanhado por muitos.
A solidão foi categorizada por Sennett em três grupos: c a solidão imposta pelo
poder, que resulta em isolamento. É a solidão da anomia, cuja melhor descrição seria feita
por Durkheim. d A solidão do homem revoltado ou sonhador, a solidão da rebelião, que
seria representada pela visão de Sartre. e A solidão em que a sensação predominante é de
estar sozinho no meio de muitos, de “ser um entre muitos”, de ter uma vida interior que
ultrapassa o que é refletido pela vida dos outros. É a solidão da diferença37, forjada pela
intimização e seus desdobramentos marcantes na esfera do sexual. Sennett procura
demonstrar que essa solidão é pouco abordada nos escritos sobre o tema, apesar do sentimento
de estar à parte dos outros ser uma experiência comum na sociedade moderna. Os nossos
ideais de sexualidade, sendo índices de autoconsciência - como aborda Foucault no mesmo
artigo - tornariam difícil a compreensão do por quê dessa sensação de separação e estranheza
em relação aos outros.
A alusão ao trabalho de Sennett visa tão somente apontar, uma vez mais, para a
função da ordem político-social no condicionamento das subjetividades que implicam o
sentimento compulsório de solidão. Assim como Sennett pôde ver nas modernas crenças
36
Não se trata de uma leitura que venha a se opor ao que foi dito. Simplesmente transfere o foco da análise para
outro aspecto da revolução individualista.
37
Percebemos uma relação entre esta concepção de “solidão da diferença” e a idéia de “solidão interior”. Para
Melanie Klein (1991), esse último sentimento é o resultado de uma “ânsia onipresente por um estado interno
perfeito, inalcançável”. Sente-se ausência de uma “figura gêmea”, completamente confiável, que representaria a
recuperação das partes excindidas do ego, encaradas como ideais, e, portanto, representantes da esperança de
alcançar inteireza e completa compreensão das próprias emoções, ansiedades e fantasias. Haveria a nostalgia da
vivência de uma “compreensão sem palavras”, fruto de uma relação inicial satisfatória com a mãe, e que seria
sentida de forma depressiva como uma perda irrecuperável. Tal como na “solidão da diferença”, a questão não
seria a situação objetiva de estar privado de companhia e sim um vivido dirigido à sensação de falta de
pertencimento. Ressaltamos a postulável coincidência da valorização das noções de diferença, percepção da
individualidade, separação do outro e dificuldade de integração, nas idéias de ambos os autores.
38
sobre sexualidade um fator decisivo na construção da solidão atual, é possível imaginar que
existam outras “ferramentas mentais”, não sexuais, capazes de levar os indivíduos a pensar
sobre si de certas maneiras e não de outras. É possível conceber outras redes de crenças que
transcendam o isolamento imposto pelos jogos de poder e pela diferença sexual, e que possam
levar o indivíduo a experimentar a solidão de maneira mais freqüente e marcante. E mais, a
experimentar um tipo de solidão pouco codificada, qualitativamente diferente dos sentidos
tradicionais.
Baseados na experiência clínica, nos modos de comportamento e de interação
cotidianos das pessoas e, ainda, na crítica cultural realizada por filósofos, sociólogos e
literatos contemporâneos, gostaríamos de sustentar a hipótese de que três situações atuais são
as bases de um sentido inédito para a vivência mental da solidão: a perda da crença no espaço
público como propiciador de segurança, satisfação e proteção; a ausência de ideais comuns; a
percepção desencantada e desiludida de que os encontros intersubjetivos não são mais que
acontecimentos passageiros, isolados, descontínuos e frustrantes. Acreditamos que esses três
conjuntos de fatores apontam para as dimensões constitutivas da solidão mais característica
da atualidade, quais sejam:
c solidão da indiferença: associada ao sentimento de ser objeto do desprezo ou da
violência - física e moral - do outro, produzidos pelas discriminações e exclusões cotidianas,
nos mais variados matizes e nos mais variados graus.
d solidão da desilusão : associada à inexistência ou escassez de projetos comuns, à
falta de convívio cooperativo autêntico e ao sentimento de futilidade e efemeridade de quase
tudo que se vive, faz ou diz.
e solidão da impotência : associada à descrença e à desconfiança na capacidade de
criar e manter laços afetivos de amizade ou amor que sejam significativos, leais e duradouros.
38
Pinheiro faz uma descrição da melancolia na atualidade que é bem diferente, por exemplo, do estudo clássico
de Freud, tanto nas características sintomáticas quanto metapsicológicas (ver Luto e melancolia, 1915). O mundo
de Freud era um mundo diferente. A autora descreve um perfil de clientes sem dimensão de futuro, que não têm
fantasias nem fazem lapsos, não lembram do passado nem dos sonhos, e possuem uma relação de estranheza e ao
mesmo tempo de referência constante com o próprio corpo. “Dotados de extrema inteligência e lucidez quase
absurda, esses pacientes são geralmente portadores de um código moral bastante rígido, que não só servirá para
instrumentar a crítica mordaz que dirigem aos outros, mas também e sobretudo para si próprios.” (Pinheiro,
1993, p.51)
39
Arendt (1978) se refere a célebre frase David Rousset, “os homens normais não sabem que tudo é possível,”
para se referir às crenças dos homens amparados pela tradição, que ainda não tinham experienciado todo o
repertório da banalidade do mal. Para ela, antes do horror da guerra e do genocídio, ainda não havia se revelado
que não há limites à deformação da natureza humana. Coube à dominação totalitária fazer perceber a ruptura
com a tradição como um fato acabado, cujo teor inédito não se compreende “por meio das categorias usuais do
pensamento político, e cujos crimes não podem ser julgados por padrões morais tradicionais ou punidos dentro
do quadro de referências legal” da civilização ocidental, quebrando portanto, toda a continuidade de sua história.
(ibid., p.54)
40
indivíduos sequer sabem dizer como e quando começaram a sentir o desconforto de que se
queixam. A vida deles é “marcada minuto a minuto” (Pinheiro, 1993, p.51) e permeada pela
noção de ridículo, tanto no que se refere ao ser ridículo quanto ao próprio ridículo da vida.
Assim, a questão da morte não é somente teorizada do ângulo da questão existencial ou vista
como metáfora; é pensada no seu aspecto mais cru e brutal. “A morte faz parte do cardápio
deles tanto quanto o feijão com arroz.” (idem)
Ela devolve, como um espelho, a imagem de uma sociedade que valoriza a ordem da casa e o
aconchego do lar.” No século XX, mesmo sendo um direito, uma condição que não é alvo de
normatização direta, a solidão apresenta as feições da banalidade e da indiferença presentes
nas relações econômicas e políticas. Ser um direito não trouxe, como poderia, conforto
emocional ao eu que experimenta o estado solitário. Pelo contrário, contribuiu para a
banalização do próprio eu.40
40
Há autores, no entanto, que discordam da possibilidade da solidão ser uma espécie de praga moderna. Não
percebemos que barreiras consistentes poderiam ser colocadas à idéia da solidão atual provocar um sofrimento
mais intenso e nocivo, mas só retomaremos esse problema no momento de oferecer redescrições possíveis da
solidão.
41
cortesia, cooperação, amizade e tantas outras formas de ligação simbólica, outrora cultuadas
como bens morais, passam a segundo plano.” (Costa, 1997, p.97, grifos nossos)
Será irresponsável, ignorante ou inútil imaginar que as características das sociedades
de consumo e de massa, suas formas de articulação moral e de constituição identitária, já
provaram suficientemente sua inabilidade para estruturar psíquica e socialmente melhores
formas de convivência entre pessoas e novas atitudes para lidar com a solidão? Observando as
imagens do eu contemporâneo, sua herança emocional e moral, procuraremos adquirir mais
respaldo para responder a essa questão. Identificaremos a ambivalência relacionada às formas
de constituição do eu e, consequentemente, aos sentidos de solidão na contemporaneidade.
Mesmo com a predominância da conotação negativa, a diversidade dos ideais de eu possíveis
fazem da solidão um sentimento que pode ser valorizado e admirado em visões de mundo
alternativas ao modelo hegemônico.
42
__________________________CAPÍTULO o
IMAGENS DO EU
Tocqueville
43
1.
A HERANÇA DO EU MODERNO
Muitos autores se esforçaram por decifrar os enigmas dos novos tempos, considerando
a extrema velocidade das mudanças sociais, marcadas pela descrença nas garantias de valores
transcendentes, tais como o acolhimento afetivo da família ou a proteção material do Estado.
41
Solomon (In Marks, 1995, p.256), se referindo à possibilidade de comparação entre as emoções nas culturas
ocidental e oriental, sugere que a oposição entre características particulares gera problemas muitas vezes
insolúveis de interpretação. Para ele, trata-se muito mais de considerar as culturas de forma holista. O que tem
que se traduzido é a cultura como um todo, em suas visões sistemáticas de mundo, linguagem e forma de vida.
42
“Não são apenas fenômenos a serem analisados e compreendidos; estão no coração da ética, determinando
nossos valores, focando nossa visão, influenciando nosso julgamento cotidiano, dando sentido à nossas vidas.”
43
“The depressed man lives in a depressed world.” (citado por Solomon, ibid., p.257)
44
Religião e política não são mais sinônimos de segurança. Até mesmo a felicidade, antes ligada
a modos de vida perenes, requer uma produção rápida e constante de objetos de satisfação,
físicos e humanos. Tais objetos, numa sociedade centrada no consumo, já nascem marcados
pela obsolescência. A cada dia, novas “necessidades” são criadas, intimando todos à satisfazê-
las. As pessoas são convencidas, pelos meios de comunicação de massa, de que a fonte dos
seus problemas está em abstrações como “o social”.44 Usando o vocabulário de Arendt, é
como se os homens não percebessem que foram condenados a só se preocupar com o “reino
da necessidade”, perdendo a energia para o investimento no “mundo dos assuntos comuns”. A
sociedade do final do milênio, continua a prometer fórmulas para o alcance individual da
felicidade. Promete tanto que o fracasso da conquista só pode ser culpa dos sujeitos e dos
objetos, mas nunca da ciência que os planeja e da economia que os produz e comercializa.
Freud já postulava, em O mal-estar na cultura (1930), que o homem está disposto a
trocar a felicidade por segurança, abrir mão dos fortes gozos para evitar a dor. Talvez a
consciência do fracasso das promessas científicas e econômicas doa demais para quem já não
crê em todo o resto. Mas toda dor vem do desejo de não sentir dor. As possibilidades de
segurança caducaram e mesmo o controle tecnológico artificial da dor física não é suficiente
para assegurar tempos melhores, já que a dor moral se tornou um dos mais fortes ingredientes
do gosto amargo do cotidiano.
Uma das mais interessantes análises das origens e consequências da modernidade, em
contraponto com a noção de tradição, é realizada por Hannah Arendt. No prólogo de A
Condição Humana, ela sustenta que uma das finalidades de sua análise histórica é “pesquisar
as origens da alienação no mundo”, os percursos da Terra para o universo e do mundo para
dentro de si que o pensamento do homem realizou. Pensa, assim, chegar à compreensão de
como a sociedade evoluiu e como se apresentou no instante em que se percebeu imersa em
uma era nova e desconhecida.
Nesse trabalho, as maneiras contemporâneas de conceber o eu e o mundo, herdadas da
ideologia moderna, serão fundamentais para o estudo da solidão.45 Apresentando um modelo
interpretativo das origens do quadro atual, imaginamos empreender melhor o esforço
exaustivo de compreensão e ajuizamento, necessário para fundamentar o exercício de
44
“O político deve convencer ao povo de que todos os problemas são sociais, para poder escravizá-lo.” (Davila
apud Ortega, 1998b)
45
Não iremos retomar, entretanto, uma posição de diagnóstico e crítica da modernidade. Tampouco pleitearemos
como solução um retorno ao passado distante, com suas éticas próprias, crítica comumente feita a teóricos como
Arendt e Lasch.
45
“No mundo moderno, as duas esferas constantemente recaem uma sobre a outra, como
ondas no perene fluir do próprio processo da vida. O desaparecimento do abismo que os
antigos tinham que transpor diariamente a fim de transcender a estreita esfera da família
e ‘ascender’ à esfera política é fenômeno essencialmente moderno.”(Arendt, 1993a, pp.
42-3)
46
O “novo início” é uma noção agostiniana, apresentada por Hannah Arendt no livro Love and Saint Augustine.
Diz respeito à libertação do homem do hábito, reabilitando a vontade decaída. “Agostinho tinha em mente a
condenação do hábito inscrito na alma pela conscupicência”, que era “um tenebroso impulso de controlar, tomar
para si e colocar a serviço dos próprios objetivos pessoais todas as coisas boas que tinham sido criadas por Deus
para serem aceitas com gratidão e compartilhadas com outrem”. (Costa, 1998, p.14)
46
“Se compararmos o mundo moderno com o mundo do passado, veremos que a perda da
experiência humana acarretada por esta marcha de acontecimentos é extraordinariamente
marcante. Não foi apenas, e nem sequer basicamente, a contemplação que se tornou
destituída de significado. O próprio pensamento, ao tornar-se mera ‘previsão de
consequências’, passou a ser função do cérebro, com o resultado de que se descobriu que os
instrumentos exercem essa função muitíssimo melhor do que nós. A ação logo passou a ser, e
ainda é, concebida em termos de fazer e de fabricar, exceto que o fazer, dada a sua
mundanidade e inerente indiferença à vida, era agora visto como apenas outra forma de
labor, como função mais complicada mas não mais misteriosa do processo vital.” (Arendt,
1993a, p. 335)
“ Ao perder a certeza de um mundo futuro, o homem moderno foi arremessado para dentro de
si mesmo, e não de encontro ao mundo que o rodeava; longe de crer que este mundo fosse
potencialmente imortal, ele não estava sequer seguro de que fosse real. [...] o homem
moderno não ganhou este mundo ao perder o outro, e tampouco, a rigor, ganhou a vida; foi
atirado de volta a ela, lançado à interioridade fechada da introspecção, na qual suas mais
elevadas experiências eram os processos vazios do cálculo da mente, o jogo da mente consigo
mesma. Os únicos conteúdos que sobraram foram os apetites e desejos, os impulsos
insensatos de seu corpo que ele confundia com a paixão e que considerava irrazoáveis, por
não, poder ‘arrazoar’ com eles, ou seja, prevê-los e medi-los.” (Arendt, 1993a, pp. 333-4)
O segundo ponto de vista relevante na visão de Arendt tem importância política maior
e está relacionado à percepção de que o Estado não é mais condição de garantia da vida. É
uma vivência contemporânea ao nosso século e marca uma diferença em relação aos outros
trezentos anos de modernidade.47 As experiências totalitárias, a perplexidade diante do fato de
que o homem é capaz de tudo, desacreditam completamente a manutenção do valor moderno
de conservar a vida e a liberdade a qualquer custo. Para Arendt, coube à dominação totalitária
fazer perceber a ruptura como um fato definitivo, como algo que não é resultado de escolhas
deliberadas, cujo teor inédito não se compreende por meio das categorias usuais do
pensamento político e cujos crimes não podem ser julgados por padrões morais tradicionais.
Sequer podem haver punições para tais crimes dentro do quadro de referências legal da nossa
civilização ocidental. As guerras do nosso século, frutos da cristalização de novas formas de
governo e de dominação, brotaram do caos provocado pela perplexidade de massa no palco
político e pela massificação de opiniões na esfera espiritual. No estudo sobre as origens do
totalitarismo, de 1951, Arendt se torna consciente desta “lacuna entre o passado e o futuro”:
“ ‘Os homens normais não sabem que tudo é possível’ observa David Rousset em frase que
serviu de epígrafe a este livro e que talvez sintetize uma de suas conclusões. De fato, o
fenômeno totalitário revelou que não existem limites às deformações da natureza humana e
que a organização burocrática de massas, baseada no terror e na ideologia, criou novas
formas de governo e dominação, cuja perversidade nem sequer tem grandeza, conforme nos
47
A autora, em A Condição Humana (1993), sustenta que a era moderna não coincide com o mundo moderno.
Aquela, cientificamente, se inicia no século XVII. Entretanto, o mundo moderno, politicamente, só surge com as
explosões atômicas.
49
aponta Hannah Arendt ao examinar a banalidade do mal no relato que fez do processo
Eichmann - Eichmann in Jerusalém - A report on the banality of Evil - (1963) .” (Lafer, 1979,
p. 58)
Por meio de uma breve análise da ação da resistência francesa durante a Segunda
Guerra Mundial, Arendt ilustra o que considera uma “quebra entre o passado e o futuro”.
Descreve os sentimentos que uma causa comum despertou entre os companheiros,
arrancando-os de suas vidas individuais irrelevantes. Fala de um “tesouro sem nome”, de uma
vida não centrada no particular, mas partilhada entre muitos num espaço público, que logo
perdeu o sentido pela derrota do inimigo comum. Em seu entender, toda uma geração teve
suas vidas visitadas, pela primeira vez, por uma visão de liberdade. Não exatamente por terem
reagido à tirania, mas por se terem tornado “contestadores”. Assumiram para si as iniciativas
necessárias a um projeto, criaram entre si um espaço público onde a liberdade poderia
aparecer, onde era desejada e nunca esquecida. No entanto, não estavam conscientes disso e
sequer o perceberam enquanto viviam. Ao fim da guerra, lhes restou apenas a perplexidade e
a insatisfação diante do retorno para suas vidas privadas e para as incansáveis, velhas e vazias
querelas ideológicas. Se por um lado o totalitarismo representava a insegurança absoluta a que
estamos submetidos por saber que somos capazes de tudo, a resistência fornecera,
temporariamente, a visão de que a vida é diferente quando temos pelo que lutar.
“Seja como for, é à ausência de nome para o tesouro perdido que alude o poeta48 ao dizer que
nossa herança foi deixada sem testamento algum. O testamento, dizendo ao herdeiro o que
será seu de direito, lega posses de um passado para um futuro. Sem testamento ou, resolvendo
a metáfora, sem tradição - que selecione e nomeie, que transmita e preserve, que indique onde
se encontram os tesouros e qual o seu valor - parece não haver nenhuma continuidade
consciente no tempo, e portanto, humanamente falando, nem passado nem futuro, mas tão-
somente a sempiterna mudança do mundo e o ciclo biológico das criaturas que nele vivem. O
tesouro foi assim perdido, não mercê de circunstâncias históricas e da adversidade da
realidade, mas por nenhuma tradição ter previsto o seu aparecimento ou sua realidade; por
nenhum testamento o haver legado para o futuro. A perda, talvez inevitável em termos de
realidade política, consumou-se quando de qualquer modo, pelo olvido, por um lapso de
memória que acometeu não apenas os herdeiros como, de certa forma, os atores, as
testemunhas, aqueles que por um fugaz momento retiveram o tesouro na palma de suas mãos;
em suma, os próprios vivos.” (Arendt, 1979, p.31)
48
Alusão ao poeta René Char, autor da frase: “Nossa herança nos foi deixada sem nenhum testamento.”
50
pensar sobre si e sobre o outro, da incapacidade de agir no mundo comum. Toda ação tem um
curso, todo curso de ação tem uma história que o precede e outra que dele resulta. Todo
acontecimento vivido precisa de um acabamento na mente daqueles que contarão sua história.
A solidão poderia servir de ferramenta a este acabamento, ao invés de ser o resultado de sua
inexistência. Quando o pensamento se aparta da realidade vivida, ou a realidade se torna
opaca à luz do pensamento, nos sujeitamos a repisar velhas verdades que já não tem
relevância ou nos perdemos no vazio da ausência de significação. Aludindo a Hegel, Arendt
explora a função mental de compreender o acontecido, pois esta seria a maneira dos homens
se conciliarem com a realidade e estarem em paz com o mundo. No capítulo seguinte, nos
ocuparemos dessa noção. Valorizaremos a crença no fato de que, se a mente fracassa nas suas
prerrogativas, se não é capaz de fazer a paz e induzir a reconciliação, acaba por se ver
empenhada “no tipo de combate que lhe é próprio,” na esterilidade da repetição que nada cria.
Mesmo que a tarefa de compreensão seja árdua o bastante para se tornar cotidianamente
inviável, podemos invocar Santo Agostinho e reafirmar que: “Uma coisa é não se ter
conhecimento de si, outra coisa é não se pensar em si.” (Arendt, 1995, p.262)
Segundo Arendt, duas gerações diferentes, neste século, voltaram-se para a política
como maneira de solucionar as perplexidades e impasses filosóficos modernos, numa
tentativa de escapar do pensamento para a ação. A primeira delas foi o Existencialismo, que
buscou uma espécie de compromisso incondicional com a ação:
nesse caso, colocava em cena uma “liberação do agir” muito mais explícita e provocava o
retorno da ação para o pensamento. Sobreveio, para Arendt, um período lacunar,
intermediário, estranho, onde os próprios vivos se tornam “conscientes de um intervalo de
tempo totalmente determinado por coisas que não são mais e por coisas que não são ainda.”
(Arendt, ibid., pp.35-6) Para ela, a questão reside na mudança da compreensão do processo de
pensamento, não como algo imerso numa esfera atemporal adequada à sua existência, mas
como algo que pode ser exercido sem saltar completamente para fora do tempo humano. Na
verdade, a autora suspeita que essa lacuna temporal entre passado e futuro seja concomitante à
existência do homem na terra e não um dado histórico exclusivamente moderno. O que
sugere, afinal, é que estamos despreparados e desequipados para pensar, para estar nessa
lacuna e poder transpô-la. A tradição foi a mínima condição de possibilidade dessa
transposição desde Roma; só que ela se desgastou com a progressão da época moderna:
“Quando afinal, rompeu-se o fio da tradição, a lacuna entre o passado e o futuro deixou de
ser uma condição peculiar unicamente à atividade do pensamento e adstrita, enquanto
experiência, aos poucos eleitos que fizeram do pensar sua ocupação primordial. Ela tornou-se
realidade tangível e perplexidade para todos, isto é, um fato de importância política”.
(Arendt, 1979, p.40)
Após ter exposto uma visão das características marcantes da herança moderna para as
sociedades centradas no eu, fruto do desenvolvimento dos últimos séculos em suas aspirações
arriscadas e contraditórias, imaginamos ser necessária a observação das formas de
constituição e dos arranjos político-emocionais dos “eus” contemporâneos. Tangenciando a
ampla temática da constituição subjetiva e seus respectivos contextos de significado,
pensamos abordar formas de viver a experiência do eu - herdeiro das realidades filosóficas e
ideológicas da modernidade - antes de continuar o estudo da solidão.
2.
TIPOLOGIAS DO EU CONTEMPORÂNEO
“ People to whom it seems self-evident that their own self (or their ego, or whatever else it
may be called) exists, as it were, “inside” them, isolated from all the other people and things
“outside,”... cannot easily take account of facts wich show that this kind of perception is itself
limited to particular societies, that it comes into being in conjunction with certain kinds of
interdependencies ... that it is a structural peculiarity of a specific stage in the development of
civilization, corresponding to a specific stage of differentiation of individualization of human
53
groups. If one grows up in the midst of such a group, one cannot easily imagine that could be
people who do not experience themselves in this way that is entirely self-sufficient individuals
cutt off from all other beings and things.” 49(Elias apud Margolis, 1998, p.5)
Riesman, no livro A multidão solitária, escreve sobre o caráter social50 e sua variação
cultural. A sociedade americana do pós-guerra é o principal modelo e objeto de estudo. O
autor procura analisar os modos de conformidade51 introjetados pelos indivíduos, como forma
de atacar a passividade política e a melancolia pessoal que identificava nos espíritos de sua
época. A falta de esperança num futuro melhor, na opinião dele, era resultado da perda
considerável da inocência e do crescimento descontrolado da autocrítica. Riesman ressalta
que não procura acrescentar nada de novo à descrição da revolução que nos separou, nos
49
“Pessoas para quem parece autoevidente que os seus próprios eus (seus egos, ou o que quer que possa ser
chamado) existem como se estivessem dentro deles, isolados de todas as outras pessoas e coisas ‘fora’, ... não
podem se dar conta de fatos que mostram que este tipo de percepção é em si própria limitada a certas sociedades,
que se concretiza em conjunção com certos tipos de interdependência ... que isso é uma peculiaridade estrutural
de um estágio específico do desenvolvimento da civilização, correspondente a um estágio específico da
diferenciação da individualização dos grupos humanos. Se alguém cresce no seio deste grupo, não pode
facilmente imaginar que existem pessoas que não experimentam a si próprias desta maneira que é a de
indivíduos completamente auto-suficientes, separados de todas os outros seres e coisas.”
50
Riesman delimita seu conceito de caráter social, definido-o como “a organização mais ou menos permanente,
social e historicamente condicionada aos impulsos e satisfações do indivíduo - o tipo de ‘configuração’ com o
qual ele aborda o mundo e as pessoas. ‘Caráter social’ é a parte do ‘caráter’ que é compartilhada por grupos
significativos e que, como a maioria dos cientistas sociais contemporâneos o definem, é o produto da experiência
destes grupos.” (Riesman, 1995, p.68)
51
Riesman utiliza o termo “modo de conformidade” alternativamente ao termo “caráter social”. Ressalta,
entretanto, que a conformidade - processo responsável pela aquisição do caráter que faz com que os indivíduos
queiram agir da forma que têm de agir - não é o todo do caráter social. (ibid, p.70)
54
últimos quatrocentos anos, das formas tradicionais de vida orientadas para a família e para o
clã. Busca centrar-se na série de fatos sociais relacionados à mudança da era de produção para
a era de consumo.
A alterdireção seria o modo mais recente de conformidade,52 de acordo com o qual a
principal preocupação dos indivíduos seria a posição diante do outro. Os indivíduos
alterdirigidos teriam uma mentalidade sensível às expectativas e preferências das pessoas,
sendo, por isso, chamados people-minded. As mudanças radicais na estrutura de trabalho e
lazer nesse século seriam responsáveis pela modelação e remodelação do caráter dos adultos,
competindo com a influência dos pais e de outros agentes na formação do caráter precoce.
Riesman correlaciona o perfil social e subjetivo da pessoa alterdirigida (other-directed) com o
declínio incipiente da população, típico de sociedades que alcançaram um alto nível de bem-
estar econômico. A abundância econômica seria determinante para a valorização exacerbada
das reações observáveis das outras pessoas, tanto no trabalho quanto nas demais esferas da
vida. O tipo alterdirigido, sendo mais sensível ao desejo do outro, está também mais apto a
manipulá-lo de maneira eficiente. A habilidade para os negócios é, portanto, outra
característica importante dele.
Apesar do crescimento da tendência à conformidade, nas primeiras décadas desse
século ainda haviam posições profissionais muito voltadas ao trabalho técnico e à habilidade
de um ofício, típicas dos tipos introdirigidos (inner-directed) predominantes no período
histórico anterior. Esses são considerados como dirigidos ao trabalho (job-minded). Um dos
pontos freqüentemente retomados na obra é justamente a tensão psicológica existente em
muitos indivíduos como resultado da convivência estreita e contraditória de caracteres intro e
alterdirigidos. Os primeiros possuem modos de conformidade associados ao impulso de
mobilidade econômica e à uma orientação técnica, enquanto os segundos sofrem pressão no
sentido da mobilidade hierárquica e da competência social. Riesman não desconsidera
outras fontes possíveis de tensão, entretanto, enfatiza a relevância das características do novo
tipo de padrão alterdirigido, emergente na vida profissional americana: “se alguém tem êxito
em seu ofício, ele é obrigado a abandoná-lo.” (Riesman, 1995, p.196) Quer dizer com isso que
existe uma tendência à pressão por ascensão na hierarquia. Os indivíduos se distanciam dos
companheiros de mister e passam a trabalhar mais com pessoas do que com coisas. Mas isso
não quer dizer que não trate pessoas como coisas. O que está em jogo é que sua
personalidade, e não mais a sua habilidade, passa a ser objeto de especialização. Deve
52
O autor deixa claro que existem ainda representantes dos períodos históricos anteriores - os tipos
“traditivodirigidos” e “introdirigidos” - convivendo em paralelo nas formas de vida atuais. Não há intenção de
efetuar uma divisão rígida e cronologicamente precisa, e sim marcar as características mais pregnantes em cada
tipo social ideal.
55
aperfeiçoar seus atributos relacionais, ganhar em poder de convencimento para mudar sua
posição na empresa. Entretanto, não demorará a ser recordado pelos antigos colegas do que
deixou para trás, de que não mais pode se considerar um profissional competente entre seus
companheiros de profissão:
“ Na verdade, uma sociedade cada vez mais dependente da manipulação de pessoas é quase
tão destruidora do profissional e do negociante orientados no sentido do ofício, quanto a
sociedade, nos primeiros estágios da industrialização, o é em relação ao camponês ou ao
artífice orientados para o artesanato. O profissional do período mais recente é empurrado
para cima, para a classe diretorial, enquanto o artesão do período anterior era empurrado
para o proletariado; e isto atesta a profunda diferença entre as duas situações históricas.”
(Riesman, 1995, p.197)
53
Expressão criada por Adam Smith para aludir ao planejamento econômico por meio do mercado livre.
56
aspecto importante para a produção. Relaciona-se aos caracteres introdirigidos, nos quais
processos intelectuais e tecnológicos seriam mais importantes e levados a cabo sob a gerência
de uma cooperação anônima e invisível. A economia de mercado dessa fase seria bem mais
frouxamente articulada e impessoal do que hoje em dia, favorecendo um certo tipo de
ambição expansionista encorajada por ideais puritanos e jansenistas. A perseverança e o zelo
dos negócios provocava o afastamento da família, dos amigos e até da humanidade:
“A conexão entre trabalho e propriedade, numa era de capitalismo competitivo privado [...]
reforçou as possibilidades de isolamento das pessoas. A propriedade, para o homem
introdirigido, veio a ser livremente transferível; o indivíduo não estava ligado a ela, como na
era anterior, por laços sentimentais e tradicionais, porém ele a ligava a si por suas próprias
escolhas e por suas ações enérgicas. Não sendo mais um problema da família extensa, a
propriedade tornou-se uma parte extensa, uma espécie de exosqueleto para o eu individual.”
(Riesman, 1995, p.180)
“ Podemos resumir muito do que é significativo a respeito da introdireção, dizendo que, numa
sociedade onde ela domina, sua tendência é de proteger o indivíduo contra os outros, ao
preço de deixá-lo vulnerável a si mesmo. Uma prova disto está no medo largamente difundido
e no ataque à apatia que parece datar da era da introdireção. [...] Este ataque aos outros
como apáticos - como hoje, por exemplo, nas queixas constantes contra a apatia civil e
política - servia às vezes como meio de luta contra a própria apatia. De fato, a pessoa
introdirigida dá testemunho de saber inconscientemente que seu giroscópio não lhe é próprio,
porém foi instalado por outros, através de seu temor crônico e pânico de que o giroscópio
cesse de girar, de que ele próprio não é um arranque automático, de que a vida em si não é
um processo e uma renovação, porém uma proteção trabalhosa da morte psíquica.”
(Riesman, 1995, pp.189-90)
Riesman pondera que a impessoalidade da vida econômica introdirigida nunca foi tão
grave como parecia, já que tons de personalização traditivo-dirigidos sobreviviam em muitas
situações. Ainda na década de vinte, por exemplo, um menino não se preocupava com a
escolha da carreira, pois podia sonhar com metas a longo prazo; não lhe ocorria que pudesse
ficar muito tempo sem emprego. O jovem introdirigido, socializado em modelos ainda
fortemente influenciados pela tradição, podia se orientar pela identificação devaneadora com
os astros de seu tempo, sonhando alcançar o mesmo respeito a eles dedicado. É verdade que a
mão invisível da mudança tecnológica, contemporânea à introdireção, já se movia
incomensuravelmente mais depressa do que na fase do domínio tradicional; entretanto, seu
movimento era lento se comparado à velocidade da atualidade. O que quer dizer que, se o tipo
introdirigido competia com outros que estavam empenhados na conquista da mesma ambição,
o indivíduo alterdirigido, mais recente, se move numa massa muito maior de contemporâneos
com as mesmas aspirações. A incerteza da vida futura os faz muito mais incapazes de
compromisso com metas a longo prazo. São muitos os obstáculos ao planejamento de uma
carreira. As encruzilhadas no caminho profissional passam a ser cada vez mais precoces.
de que brilhar sozinho é irrealizável e de que deve procurar, no grupo cômpar,54 as normas do
que se deve desejar. Na diversidade de papéis e de clientes, entretanto, “a pessoa alterdirigida
tende a converter-se simplesmente na sucessão de seus papéis e encontros, e, portanto, a
duvidar sobre quem ela própria seja ou para onde ela vai.” (ibid., p.206, grifos nossos)
Substitui-se uma política “unifacial” em favor de outra “multifacial” estabelecida em segredo
e vicariante conforme o tipo de encontro que tiver pela frente. Sua proteção social, econômica
e política será a do grupo, que decide quem são os intrusos, aqueles a quem não se precisa
estender a “mão cordial” e de quem se pode até exigir uma modificação para uma melhor
conformidade: “No entanto, a nenhuma porção de exclusividade, por mais que ela possa
facilitar a vida bastante para o de dentro (insiders), é dado garantir completamente a
continuação num lugar de visibilidade e aprovação na Via Láctea.” (ibid., p. 207) Ou seja,
Riesman crê numa consciência aperfeiçoada dos limites individuais e grupais que impede ou
desencoraja fortemente ambições de brilho individual e dominação grupal:
“Nunca é demais ressaltar, entretanto, que a alterdireção consiste num passo além da
preocupação conformista com a opinião favorável dos outros. [...] O que queremos dizer com
alterdireção (apesar do termo propriamente dito conotá-lo apenas em parte) envolve uma
redefinição do eu, afastada da ênfase dada por William James dos aspectos externos do nome,
roupas, posses, e no rumo das qualidades interiores e de interação. A pessoa alterdirigida
deseja ser amada mais que estimada; ela não quer burlar ou impressionar, muito menos
oprimir os outros, mas, em linguagem corrente, relacionar-se com eles; procura menos um
status esnobe aos olhos dos outros, do que a segurança de estar emocionalmente em
harmonia com eles.” (Riesman, 1995, p. 34)
Realizar uma análise mais extensa da obra certamente nos desviaria do objetivo desse
estudo. Reconhecendo sua qualidade, gostaríamos apenas de sublinhar uma ambigüidade que
parece relevante no que diz o autor. Ao analisar introdireção e alterdireção como caráteres
sociais em convívio, ele parece ambivalente quanto aos reais avanços éticos dessa perspectiva
em relação àquela. Em geral, parece acreditar que a alterdireção segue num sentido oposto à
herança individualista introdirigida do século dezenove, que valoriza a livre iniciativa e a
competitividade. Entretanto, o argumento de que uma parcela da juventude americana estaria
começando a experimentar modos de vida comunal, não significa, a nosso ver, como pensa o
autor, que tenham se tornado indivíduos menos competitivos, mais “francos”, “desinibidos”,
“interessados pelos outros” e “sempre dispostos a mudar”. Por outro lado, a disposição para a
mudança de metas conforme a orientação dos parceiros de grupo, bem como a própria
dependência dessa fonte internalizada, podem assumir características nefastas de volatilidade
54
Grupo cômpar é o grupo formado por crianças e especialmente adolescentes que andam juntos, possuem mais
ou menos os mesmos gostos e interesses, se protegem e se aceitam mutuamente.
59
55
As noções de ética e moralidade tem sido utilizadas de várias maneiras pelos vários campos do saber. Para
Foulcault, segundo Ortega (1998a), a Moral inclui código moral, comportamento moral e constituição de si
mesmo como sujeito moral. A constituição de si trata das modalidades de auto-relacionamento, e são
denominadas “éticas” ou “ascese” – práticas de si. Nelas estaria o lugar de aparecimento do novo, permitindo a
“atividade de autoformação”. Bauman (1993) utiliza “Moralidade” para aludir ao campo mais geral dos
fenômenos morais e “Ética” para se referir aos códigos de conduta culturalmente determinados. Possui uma
visão “minimalista” que parece mais próxima da corrente wittgensteiniana, evitando delimitação de múltiplos
conceitos que se distanciem da linguagem ordinária. Acreditamos que, na linguagem corrente de nossa cultura,
em geral há uma mistura dos sentidos de moral e ética. Adotamos, portanto, a terminologia de Bauman.
60
2.2. O Eu de troca
O exchanger self56 é um dos tipos sociais avaliados por Diane Margolis. O objetivo da
autora é realizar um estudo que sirva como espelho para reflexões coletivas e que ajude a
reabilitar o crédito no espírito público e no altruísmo. Ela pretende dar visibilidade e
respeito analítico às visões alternativas à concepção hegemônica do eu como competitivo e
negociador racional, mostrando suas influências na vida contemporânea. A visão dominante
do eu como uma entidade de troca (cuja maior parte das características assemelha-se ao eu
introdirigido de Riesman) esmagaria a vida familiar, as tradições religiosas, a política local,
enfim, os “hábitos do coração”, diz Margolis, citando Tocqueville. Esse tipo de eu é
considerado como predominante nas sociedades americana e inglesa contemporâneas.
“It is so powerful a view in contemporary Western societies that it often appears to be the only
view. Its conceptualization of the self is intensely individualistic, possibly the most
individualistic moral system any culture has ever constructed. It projects an image of the self
as an exchanger, a rational calculator balancing the quid pro quos of life. The belief that
56
Utilizaremos em geral ‘eu de troca’ como tradução para a expressão exchanger self.
61
nobody gets or gives anything except in exchange for something else permeates this view of
human nature and human behavior.”57 (Margolis, 1998, p.2-3)
57
“Uma certa visão das sociedades contemporâneas ocidentais é tão poderosa que parece ser a única. Sua
concepção de eu é intensamente individualista, provavelmente o sistema moral mais individualista que qualquer
cultura jamais construiu. Ele projeta uma imagem do eu como um negociador, um calculista racional
equilibrando os quid pro quos da vida. A crença de que ninguém recebe ou dá nada exceto em troca de alguma
outra coisa, permeia esta visão da natureza e comportamento humanos.”
58
“ um processo que ocorre na interação humana [...] o eu é processo.”
59
“A fronteira que uma imagem delimita em torno do eu que ela constrói é um dos mais significantes aspectos
da imagem.”
60
“Mechanical and reckoning man”, “competitive man”, “economic man” e “hedonic man”, respectivamente.
62
obrigações: “Women’s sphere did for market society what the lower orders had done for
61
feudal society: it provided for life’s necessities with obligatory daily toil.” (ibid., p.190) O
labor relacionado ao eu das obrigações é repetido incessantemente; não tem princípio nem
fim; não se fia na inconstância do capital nem nas flutuações do mercado.
O eu cósmico, por outro lado, se relaciona a uma existência espiritual, de início,
religiosa. Está incorporado ao universo orgânico, aspirando à diluição das fronteiras em
relação a ele. O eu cósmico vê a vida como uma busca sem fim por unidade com o universo.
Na cultura ocidental, se desvinculou de ancoragem no mundo suprasensível pelas
consequências do movimento romântico. Transformou-se, como vimos no primeiro capítulo,
numa visão do eu como qualidade essencial e interior de uma pessoa, centro dos
sentimentos e coração do ser, ao qual nos dirigimos com atitude de descoberta, pois ele clama
por expressão. A imagem de eu cósmico destoa completamente das duas visões anteriores,
porém as mantém intactas.
A imagem do eu como um cambista, naturalmente competitivo e dirigido aos próprios
interesses vem sendo elaborado pelo menos desde a Renascença. Margolis explica que quando
a Terra deixou de ser tão rica em recursos naturais não explorados, as relações de mercado,
antes impedidas pelas fronteiras físicas dos muros das comunidades feudais, transformaram a
economia, a política, a vida social e transportaram uma imagem emancipada do eu para o
centro. Os muros passam a ser invisíveis e fazem fronteiras ao redor de cada indivíduo, livre
dos elos com enredos familiares duradouros. Em sua origem histórica, como foi visto, o eu de
troca está ligado à idéia de liberação das obrigações familiares e dos arranjos sociais rígidos,
que visavam à sustentação da vida coletiva. Os membros da nova classe emergente
necessitavam tirar proveito de sua liberdade conquistada. Não careciam de proteção e
tampouco se sentiam obrigados a proteger.
A sociedade de mercado, baseada em abstrações impessoais como valores de troca,
ensinou aos burgueses a auto-suficiência dos fortes. Abriu espaço para a desobrigação com os
fracos, tendo como resultado o crescimento do número de desabrigados e pobres. Segundo
esse modelo, o homem é livre e apto a escolher e estabelecer contratos voluntários. Essa
orientação trata o próprio eu como mercadoria, com todas as propriedades de um objeto de
troca. Tal objeto está em constante relação com outros objetos, mas se quer separado deles.
Como o próprio mercado, a pessoa se tornou algo sem lugar fixo ou definido, sem vínculos
necessários à sua própria identidade. O eu de troca se apresenta como racional e auto-centrado
na luta por controle emocional e pela avaliação constante dos aspectos da vida.
61
“A esfera feminina fez pela sociedade de mercado o que os estratos inferiores fizeram pela sociedade feudal:
prover as necessidades da vida com suas tarefas diárias.”
63
“... ninguém pode dizer se foi a mentalidade intelectualística que primeiro promoveu a
economia do dinheiro ou se esta última determinou a primeira. [...] A exatidão calculista da
vida prática, que a economia do dinheiro criou, corresponde ao ideal da ciência natural:
transformar o mundo num problema aritmético, dispor todas as partes do mundo por meio de
fórmulas matemáticas.”(Simmel, 1976, p. 14)
Margolis cita o exemplo da ideologia veiculada pela revista americana Self como um
exemplo típico de orientação do eu de troca. Sugere que seus autores imaginam que nós
podemos possuir a nós mesmos “como um fabricante possui plástico”, já que oferecem
conselhos sobre como se moldar da mesma maneira que se manufatura uma matéria-prima
64
62
Bauman (1995) invoca Lyotard para aludir ao fato de que aprendemos historicamente a identificar a
maturidade humana com previsibilidade, realidade e regularidade, relegando as emoções à posição de
“infantilidade”: “We dub ‘emotional’ the act and thought that is not bound by the results of measurement and
evaluation. Emotion do not reason, let alone reason logically. They are not consistent and rarely happen to be
cohesive, free of inner contradictions. They evade or exploide any frame built of norms and rules.” (ibid.,p.63)
63
“Eus pontuais”, noção descrita por Charles Taylor.
64
Essa possibilidade de “refazer a si mesmo”, estabelecendo parâmetros próprios de conduta, podem evocar a
idéia foucaultiana da construção de novos estilos de existência. Adiante veremos que existe, por exemplo, uma
diferença fundamental entre a “liberdade” do eu de troca para se unir a quem lhe interessar e o ideal da amizade
como um estilo de vida.
65
emocionais quanto parece. Salienta que nas culturas européia e norte-americana, desde a
Renascença, tendências contrastantes de liberdade e constrangimento conviveram lado a lado
no desenvolvimento do conceito de eu de troca, mostrando outras faces dos mesmos
indivíduos e outras vicissitudes do mesmo processo:
65
“ A orientação moral individualista e a visão da natureza humana como autointeressada foram necessárias ao
desenvolvimento da sociedade de mercado. Atualmente, num mundo modificado pelo mercado – um mundo no
qual os preceitos racionalistas e individualistas alcançam sua mais forte tendência - limitações desta visão estão
se tornando cada vez mais aparentes.”
66
“Se a liberação das barreira feudais que definiam as pessoas em termos de suas posições sociais significava
que as pessoas podiam fazer algo de si próprias, significava também que elas podiam fazer qualquer coisa de si
próprias.”
66
would often imply prudence and moderation.’ Under the guidance of the Invisible Hand,
interests would serve the general good.”67 (ibid., p.37) A adequação à racionalidade
permitirá ao homem livre o cálculo correto dos interesses, informará o limite - único - das
ações livres aceitáveis, se a ele forem dadas todas as informações necessárias. Só a maldade e
a estupidez o desviarão da verdade unitária.
Finalmente, a questão da mobilidade social aparece como a quinta tendência
contrastante. Para alcançar os estratos superiores, o homem de troca, uma unidade racional,
calculista, fria e com a posse de si mesma, não pode manter seus vínculos originais. Não pode
se ligar a ninguém. Deve se manter separado; a individuação e a privatividade são as
verdadeiras fundações de si. O isolamento se torna o aspecto mais limitante do modelo de
constituição subjetiva pelos valores de troca. A incapacidade de se ligar emocionalmente a
outros de forma profunda é a mais devastadora conseqüência das supostas livres
possibilidades de se associar a qualquer pessoa e ascender na escala social. Ao contrário do
esperado, o homem livre das barreiras da distinção social rígida não consegue estreitar laços
com os outros. “The exchanger is a solitary person.”68 (ibid., p.139)
“If interests relates men, it is never for more than some few moments. It can create only an
external link between them. In the fact of exchange, the various agents remain outside of each
other, and when the business has been completed, each one retires and is left entirely on his
own. Consciences are only superficially in contact; they neither penetrate each other, nor do
they adhere.” 69(Durkheim apud Margolis, 1998, p.139)
67
“era uma virtude até onde os indivíduos agiam ‘com um espírito racional e de cálculo que implicariam
freqüentemente em prudência e moderação.’ Sob o domínio da mão invisível, os interesses serviriam ao bem
comum.”
68
“O negociador é uma pessoa solitária.”
69
“Se interesses unem os homens, nunca é por mais que alguns momentos. Podem criar apenas uma ligação
externa entre eles. No fato da troca, os agentes permanecem separados uns dos outros, e quando o negócio
termina, cada um se retira e é deixado completamente entregue a si. As consciências estão apenas
superficialmente em contato. Nunca penetram umas as outras, nem aderem a elas.”
67
Para se defender da indiferença que as próprias ações alimentam, se cria a antipatia, que
garante as distâncias e aversões necessárias a manutenção do modo de vida:
“Essa reserva, com seu tom exagerado de aversão oculta, aparece, por seu turno, sob a forma
ou a capa de um fenômeno mais geral da metrópole: confere ao indivíduo uma qualidade e
quantidade de liberdade pessoal que não tem qualquer analogia sob outras condições.”
(Simmel, 1976, p.18)
essa tradição de estudo, que recentemente tem passado a incorporar as emoções como
fenômenos dignos de consideração, é a suposição de que uma cultura pode simultaneamente
empregar muitos sistemas morais, cada um deles estabelecendo diferentes fronteiras em torno
do self. Não haveria uma única ordem moral organizada em papéis e status sociais, na qual
diferentes imagens de eu nos movem a sentir e agir de formas variadas. Existiriam alguns
sistemas morais operando simultaneamente, cada um com imagens de eu e concepções do que
é certo e errado que lhe são próprios. As emoções seriam aquilo que nos permitiria sentir o
que acontece nas fronteira de cada self que internalizamos. A racionalidade só pode ser
temperada com emoções. Esta é a principal razão pela qual a orientação do eu de troca não
pode ser única dentro de uma cultura:
“Because the exchanger orientation is designed for human relationships that can be more
fleeting than sand sculptures, market-dominated societies necessarily enjoy other moral
orientations. Members of these societies construct and reconstruct themselves from a full
palette of images as they move from one social context to another.” 70(Margolis op.cit., p.40)
70
“Porque a orientação de troca é desenhada para relações humanas que podem ser mais instáveis do que
esculturas de areia, as sociedades de mercado necessariamente apreciam outras orientações morais. Membros
destas sociedades constroem e reconstroem a si próprios a partir de num conjunto completo de imagens na
mesma medida em que se movem de um contexto social a outro.”
71
Referência à divisão dos cientistas sociais efetuada por Hewitt. Durkheim seria o representante dos
pessimistas, que encaram a sociedade como algo em declínio e alimentam uma nostalgia por formas de
organização anteriores, mais estáveis. Para eles, o coletivo é o ponto de partida, o homem é um ser moral porque
vive em sociedade, que é a sua fonte de suporte e cuidado. Não é autosuficiente e deve ser protegido das
sociedades altamente diferenciadas que correm o risco de perder a solidariedade baseada na mútua dependência.
Nos termos de Margolis, favorecem as orientações do eu cósmico e do eu das obrigações. Comte seria o
representante dos otimistas, que encaram o individualismo como produto de uma nova forma de consciência que
faz o homem triunfar sobre as tentativas de dominação do social. A solidariedade com o grupo vai se fazendo
aos poucos, ou seja, os indivíduos vão alterando os limites de seu ego e ampliando sua orientação de troca no
sentido de incluir características do eu das obrigações e posteriormente de outros tipos. Acreditam que
69
estudos comparativos entre relações baseadas na dádiva e relações baseadas na troca, qual
seja, a de colocar a grande variedade daquelas como periféricas em relação à centralidade
destas. Coloca-se ao lado de teóricos como Riesman e Lasch, que acusam o Ocidente
moderno individualista de não cumprir a expectativa de conceder o devido respeito a uma
parcela maior de seres humanos, quase sempre estabelecendo fronteiras para o eu de forma
paroquialista: “That is why it must invent the idea of contracts to create community and also
the laws of right to protect individuals from the group with which they have no sense of
oneness.”72 (Margolis, 1998, p.113) Entretanto, não parece mostrar a ingenuidade de imaginar
uma separação completa entre moralidade e identidade individual.
A noção de moralidades não individuais é fundamental para os nossos propósitos.
Consideramos que ela é difícil de ser defendida. Acreditamos que o sentimento solidário é
uma habilidade desenvolvida a partir da identidade do eu que é inescapavelmente individual,
mas não necessariamente individualista – voltado apenas para os próprios interesses. Adiante,
abordaremos o tema das emoções, um dos aspectos da identidade subjetiva mais presentes na
interação do eu com os outros, como uma ferramenta para facilitar a compreensão das
múltiplas moralidades associadas ao surgimento de novas formas de eu.73 Dessas
moralidades poderemos extrair maneiras diferentes de lidar com a solidão.
Visões do eu e sistemas morais caminham lado a lado. Moralidades associadas a
visões do eu comandam nossos comportamentos. Na opinião de Margolis, convivemos na
verdade com visões contraditórias de nós mesmos, determinadas por circunstâncias sociais
diferentes. É impossível aderir a um único sistema moral no final desse século, embora ainda
haja uma tendência ideológica de unificar as opiniões em torno do modo de vida que se deve
levar e dos valores que se deve reter.
3.
EMOÇÕES E MORALIDADES DO EU
74
“feelings wich have been socially nurtured under quite specific conditions.”
75
Sobre a gramática do amor romântico, um exemplo de crença emocional historicamente datada, ver Costa,
1998, p.133-219.
76
Ver Arregui, 1986; Budd, 1991; Delgado, 1986; Stegmüller, 1976; Wittgenstein,1979; Rorty, 1991a e 1991b;
Costa, 1992 e 1995a.
71
77
“Reflexão é uma conversa interna durante a qual o eu generalizado que contém nosso vocabulário cultural de
motivos e emoções nos provê de ferramentas que usamos para articular o que sentimos.”
78
A fase correspondente aos processos cognitivos é predominantemente a secundária, mais associada a
conhecimentos técnicos e especializados ministrados por especialistas que não possuem intensa ligação afetiva
com a criança.
79
“Assim, do mesmo modo que somos ensinados a falar a língua materna, somos ensinados a amar, odiar, sentir
perplexidade, desdém, respeito, e todas as outras emoções que parecem tão naturais.”
72
“Sometimes hate and love are spoken of as opposites; other times as having many similarities.
If we look at what is happening at the boundaries to the self in theses images, the similarities
between theses two apparently opposite emotions become evident. [...] We expect nothing from
person on the other side of a boundary beyond respect for the boundary. But from persons
within a boundary, persons who are included in an image we hold of ourselves, we may expect
very much indeed.” 80 (Margolis, 1998, pp.148-9)
Desde a Renascença, o eu foi progressivamente separado do que está fora por uma
parede invisível. Essa é a característica emocional central da moralidade do eu de troca,
orientação predominante no Ocidente. Os autocontroles civilizatórios são experienciados
como um muro que separa o mundo objetivo do subjetivo, o eu da sociedade. Conforme os
ideais da Reforma protestante, as pessoas deviam controlar suas emoções porque não
deveriam depender do suporte e da aprovação dos outros. As emoções deviam ser mantidas
longe das ações e relações sociais, porque significavam fraqueza, inferioridade e potencial de
80
“Às vezes ódio e amor são tomados como opostos; outras vezes tomados como tendo muitas semelhanças. Se
olharmos para o que acontece nas fronteiras do eu nessas imagens, as semelhanças entre essas duas emoções
aparentemente opostas tornam-se evidentes. Nós não esperamos nada de uma pessoa do outro lado da fronteira,
além do respeito que se tem à fronteira. Mas, de pessoas dentro da fronteira, pessoas que são incluídas numa
imagem que temos de nós mesmos, podemos de fato esperar muito.”
73
81
“As emoções positivas tornaram-se a promessa dos publicitários que tentam como cupidos persuadir clientes
desprevenidos a se apaixonarem por um carro ou uma caixa de sabão.”
74
tomados como um patrimônio natural de pessoas sadias e os argumentos que dão suporte a
essas crenças provém de explicações racionais, objetivas e científicas sobre o mundo.
O amor é um exemplo de emoção que varia conforme distintas orientações culturais.
Para todas elas é um sentimento da ordem da atração, do pertencimento, um sentimento
unificador. Entretanto, tem significado diferente para cada tipo de fronteira estabelecida do
eu. Para Margolis, o eu de troca vê o amor como um investimento e espera dele um bom
retorno. Amor é algo que pode ser objeto de barganha, alvo de contrato. O eu da obrigação
pensa no amor como algo naturalmente existente em certos tipos de ligação como pais e
filhos, maridos e esposas. Por isso é algo estável, inalienável e autoritativo. O eu cósmico e o
eu engajado entendem o amor como parte do domínio cósmico, baseado no sentimento de
unidade com ele. Só que o sentimento de unidade universal do eu engajado é diferente, dada a
existência de uma barreira ao redor dele que guarda saúde, riqueza e talento. Essa barreira
precisa ser superada pela prática da caridade, da devoção ao outro ou à arte, restabelecendo o
equilíbrio que deveria existir. O eu cósmico, ao contrário, não possui essa barreira, não
pressupõe atitudes devocionais de superação e nem espera nada em retorno da realização de
sua prática. O eu cívico ama a ordem e o país, aspira e investe na idéia de um paraíso na
Terra. O sentimento de cidadania produz um sentido de unidade com outros engajados na
mesma construção de um ambiente de bondade. Ele reúne racionalidade e amor apaixonado
pela ordem, pela segurança e pela paz, alcançadas no reino da legalidade. É uma combinação
particular de falta de fronteiras e unidade nacional ou universal. É inteiro e isolado como o eu
de troca. Ao mesmo tempo, tem dedicação ao estado e ao mundo, como o eu cósmico.82
Emoções, como vimos, são objetos de intervenção das ideologias culturais. As
culturas ocidentais contemporâneas transformaram, por exemplo, o amor romântico numa
ponte entre as orientações de troca e de obrigações. Visaram talvez manter a ideologia
individualista sem perder totalmente a performatividade emocional que certas mobilizações
das fronteiras do eu podem provocar. Como o amor verdadeiro é considerado prazeroso,
racionalmente é uma emoção desejável. Todavia, pode ser obsessivo e provocar a perda da
independência e do autocontrole dos indivíduos. Mesmo assim é um negócio que vale a pena,
porque o preço do descontrole é o prazer. Mesmo os indivíduos racionais devem experienciá-
lo, escapando periodicamente dos estreitos domínios da racionalidade. Isso não faz com que
82
O eu cívico não possui as mesmas fronteiras do eu nacionalista, como se poderia pensar. Margolis (1998)
esclarece que o eu nacionalista é um eu das obrigações que inclui todos os que compartilham uma nacionalidade.
A nação recria a sensação de segurança ligada às relações de subordinação e superioridade às quais o longo
período de dependência infantil nos habituou. A Nação, como a família, confere uma identidade única que é
compartilhada. Esse patriota/cidadão difere do fanático nacionalista porque sabe que suas ações são um bem em
si mesmas. Não desejam reconhecimento e ficam indignados com a injustiça. A ira nacionalista fanática é
violenta porque provem de humilhações e desamor sofridos, criando um desejo obsessivo por reconhecimento,
mesmo que custe o sofrimento dos outros.
75
perca a aura de característica intrinsecamente individual, pois “vem de dentro”. Os outros são
apenas ativadores de um poder inato.
A retomada de aspectos fortes do ideário romântico, junto à banalização da
sexualidade numa lógica instrumental de meios e fins, a nosso ver, reedita distorcidamente
processos nocivos de segregação do século dezenove, de forma sutil, inaparente, e como tal,
desonesta. Escondem-se por atrás da propaganda de liberalidade. São promessas de felicidade
e prazer explícitas ligadas a interdições, limitações e impossibilidades implícitas. Instigando-
se a insatisfação constante, a busca insaciável do objeto perfeito, produz-se a incapacidade de
contentamento com uma parceria estável. Ao mesmo tempo, condena-se a falta de parceria
afetiva, nomeando-a de solidão e prescrevendo terapêuticas reparadoras as mais diversas.
“Criticar o ideal do amor-paixão, num mundo desencantado, pode ser mais difícil do que
abrir mão do mito do ‘sexo-rei’. [...] Propor redes relacionais alternativas em que se possa
elaborar novos estilos de satisfação afetiva e tentar preservar, ao mesmo tempo, a aura do
amor-romântico, é pedir algo tão inviável quanto o que Agostinho pedia em matéria de
renúncia ao sexo.[...] A meu ver, é extremamente difícil aceitar um outro modo de auto-
realização pessoal, numa cultura em que o amor romântico foi levado a deter o monopólio
imaginário de praticamente tudo o que entendemos por segurança afetiva e felicidade
individual; parceria confiável; consideração pelo outro; disponibilidade para ajuda mútua;
solidariedade sem limites; partilha de ideais sentimentais fortemente aprovados e admirados,
como a constituição da família e a educação dos filhos, enfim, satisfação sexual
acompanhada de solicitude, ternura, carinho e compreensão.” (Costa, 1998, pp.100-1)
83
Nos referimos aqui à todas as teorias que postulam a realidade corporal como algo que não requer a mediação
da linguagem, que acreditam na existência de instintos e pulsões desprovidas de sentido que estabelecem uma
relação de adequação a objetos e sensações. Wittgenstein, como mencionamos anteriormente, suprimiu a força
desta pretensão ao postular uma teoria da linguagem coerente e totalmente desvinculada de referentes fixos,
imutáveis, alheios às práticas e sentidos culturalmente determinados.
76
“ All kinds of things happen to humans – birth, growth, sickness, hunger, satiety, death – but
how a people will identify them, make meaning of them, and feel about them will depend on
culture. Our own culture has devised many sets of feelings and ideas about the nature of
things and ourselves. Its high degree of variety and complexity may be unique. Perhaps that is
why we have arrived at what has been called the postmodern moment of recognizing the
fluidity of all cultural beliefs. Some people despair at the lack of an anchor, the lack of what
77
Taylor calls hypergoods. If all beliefs, all moral systems, are viewed as humanly created, then
how can any of them have supreme authority? ” 84 (Margolis, 1998, p.152)
84
“Todo tipo de coisa acontece aos humanos – nascimento, crescimento, doença, fome, saciedade, morte – mas
como uma pessoa irá identificá-los, extrair sentido deles e senti-los depende da cultura. Nossa própria cultura
inventou muitos conjuntos de sentimentos e idéias sobre a natureza das coisas e de nós mesmos. Seu alto grau de
variedade e complexidade pode ser único. Talvez por isso tenhamos chegado ao momento que tem sido chamado
de momento pós-moderno de reconhecimento da fluidez de todas as crenças culturais. Algumas pessoas se
desesperam ante a falta de uma âncora, a falta do que Taylor chamou de bens supremos. Se todas as crenças,
todos os sistemas morais são vistos como humanamente criados, como pode algum ter autoridade suprema?”
78
_______________________ CAPÍTULO p
IMAGENS DA ÉTICA
Robespierre
79
1.
A ÉTICA PÓS-MODERNA
Num estudo sobre a ética pós-moderna, Bauman sugere que a modernidade alcançou
um estágio autocrítico, frequentemente autodepreciativo e, em muitos sentidos,
85
autofragmentador. Como resultado, muitas vias antes seguidas pelas teorias começaram a se
parecer com caminhos cegos. Abre-se, portanto, uma possibilidade de entendimento
completamente novo dos fenômenos morais. Para ele, a ética está cada vez mais submetida à
depreciação, tende a ser ridicularizada como um dos típicos constrangimentos tradicionais
destinados à lixeira da história. A revolução pós-moderna, especialmente na mente de seus
defensores mais radicais, livraria as condutas dos últimos vestígios opressivos dos deveres
85
Bauman (1998) analisa a questão complexa do antisemitismo como um exemplo de “resistência
antimodernista”. Os judeus, que já possuíam um estatuto religioso historicamente complicado, “eram mais que
qualquer outra categoria vulneráveis ao impacto de novas tensões e contradições que as sublevações sociais da
revolução modernizadora não podiam deixar de gerar [...] A rápida e incompreensível ascensão e transformação
social dos judeus parecia resumir a devastação produzida pela promoção da modernidade a tudo que era habitual,
familiar e seguro.” (ibid.,p.66) A burguesia judaica foi uma das maiores propagadoras das idéias liberais,
ameaçando as elites estabelecidas. Encarnaram definitivamente o conceito de “estranho” de Simmel, ao estar
sempre fora, mesmo estando dentro: “Eles eram o lado opaco de um mundo que lutava pela claridade, a
ambigüidade de um mundo ansioso por certeza.” (ibid.,p.77)
80
“ In our times the idea of self-sacrifice has been delegitimized; people are not goaded or
willing to stretch themselves to attain moral ideals and guard moral values; politicians have
put paid to utopias; and yesterdays idealists have become pragmatic. [...] The ‘after-duty’ era
can admit only a most vestigial, ‘minimalistic’ morality: a totally new situation according to
Lipovetsky – and he counsels us to applaud its advent and rejoice in the freedom it has
brought in its wake.” 86 (Bauman, 1993, p.2-3)
“Modernity has the uncanny capacity for thwarting self-examination; it wrapped the
mechanisms of self-reproduction with a veil of illusions without which those mechanisms,
being what they were, could not function properly; modernity has to set itself targets which
could not be reached, in order to reach what reach it could. [...] I suggest that the novelty of
the postmodern approach to ethics consists first and foremost not in the abandoning of
characteristically modern moral concerns, but in the rejection of the tipically modern ways of
going about its moral problems (that is, responding to moral challenges with coercive
normative regulation in political practice, and philosophical search for absolutes, universals
and foundations in theory). The great issues of ethics - like human rights, social justice,
balance between peaceful co-operation and personal self-assertion, synchronization of
individual condut and colective well-fare - have lost nothing of their topicality. They only need
to be seen, and dealt with, in a novel way.” 87 (Bauman, 1993, p.3-4)
86
“Em nossos tempos a idéia de auto-sacrifício está deslegitimizada; as pessoas não estão dirigidas ou desejando
se preparar para aderir à sistema morais e guardar valores morais; políticos abandonaram as utopias e os
idealistas de ontem se tornaram pragmáticos. A era do pós-dever pode admitir apenas uma moral minimalista,
muito vestigial: uma realidade totalmente nova segundo Lipovetsky – e ele nos aconselha a aplaudir seu advento
e se rejubilar com a liberdade que ela trouxe em seu despertar.”
87
“A modernidade tem a estranha capacidade de se opor ao auto-exame; ela ocultou os mecanismos de auto-
reprodução com um véu de ilusões sem o qual estes mecanismos, sendo o que são, não podem funcionar
adequadamente. A modernidade tem que se dar alvos que não podem ser alcançados, para alcançar o alcançável.
[...] Eu sugiro que a novidade da abordagem pós-moderna à ética consiste primeiro e principalmente não em
abandonar as questões morais caracteristicamente modernas, mas em rejeitar os modos tipicamente modernos de
se aproximar de seus problemas morais ( responder aos desafios morais com regulação normativa e coercitiva, na
prática política, e a procura filosófica por absolutos, universais e fundações, na teoria.) As questões da ética –
como direitos humanos, justiça social, equilíbrio entre cooperação pacífica e auto-afirmação individual,
sincronização da conduta individual com o bem-estar coletivo não perderam nada de seu interesse. Apenas
precisam ser vistos e gerenciados de novas maneiras.”
81
No pensamento tradicional, a questão era seguir o modo de vida habitual validado por
poderes divinos que o homem não podia mudar. Com a perda do domínio comunal difuso e o
crescimento da pluralidade e da autonomia, a construção de identidades ainda não existentes
passou a incluir, necessariamente, a prerrogativa das escolhas individuais. A escolha entre
ações baseadas em estimativas, avaliações e mensurações, necessita de critérios para ser
realizada. E, ao passo que a questão da proliferação das escolhas se coloca, as dimensões de
medida também se multiplicam, dividindo o caminho correto, antes unitário e indivisível, em
múltiplas esferas: “Actions may be right in one sense, wrong in another. Which action ought
to be measured by what criteria? And if a number of criteria apply, which is to be given
priority?” 88 (Bauman,1993, p.5)
Bauman mostra como Weber apontou para a contradição presente em duas
características fundamentais da moral na modernidade. De um lado, o ethos burguês e
democrático recomendava a separação entre família e negócios. Tal modelo, a princípio,
afastava o perigo da convivência contraditória entre eficiência e lucratividade - adequados aos
negócios - e os padrões morais de cumplicidade e cuidado - próprios à vida familiar. Por outro
lado, a ética protestante foi também pioneira da modernidade justamente por considerar toda a
vida como moralmente carregada. Essa ética se recusava a deixar de fora do universo moral
qualquer aspecto da vida. No presente, essa contradição se tornou insustentável. A convicção
de que pudesse haver uma única forma de dar sentido à pluralidade dos esforços relacionais
dos sujeitos se mostrou inviável aos membros da sociedade:
“a society which is ‘modern’ in as far as it constantly but vainly tries to ‘embrace the
unembraceable’, to replace diversity with uniformity and ambivalence with coherent and
transparent order - and while trying to do this turns out unstoppably more divisions, diversity
and ambivalence than it has managed to get rid of.” 89 (Bauman, 1993, p.5)
88
“Ações podem estar corretas por um lado e erradas por outro. Qual ação deve ser medida por qual critério. E
se um número de critérios se aplica igualmente, a qual deles deve ser dada a prioridade?”
89
“Uma sociedade na qual se é moderno na medida em que se tenta abraçar o inalcançável, substituir diversidade
por uniformidade, ambivalência por ordem coerente e transparente – e enquanto tenta fazê-lo cria sem parar mais
divisões, diversidade e ambivalências do que está apto a se desvencilhar.”
82
“the old assumption - that free will expresses itself solely in wrong choices, that freedom, if
not monitored, always verges on licentiousness and so is, or may become, an enemy of good -
continued to dominate the minds of philosophers and practices of legislator. [...] Developing
individual powers of judgement (training individuals to see what is in their interests and to
follow their interests once they saw it) and managing the stakes in such a fashion that pursuit
of individual interest would prompt them to obey the order the legislator wished to install, had
to be seen as conditioning and complementing each other; they made sense only together.” 90
(Bauman, 1993, p.6-7)
“ The right design and the final argument can be, must be and will be found. With such a faith,
singed fingers would not hurt too much, there would be no last straws and the failure of
yesterday’s hopes would only spur the explorers to a yet great effort today. [...] The moral
thought and practice of modernity was animated by the belief in the possibility of a non-
ambivalent, non-aporetic ethical code. Perhaps such a code has not been found yet. But it
surely waits round the next corner. Or the corner after next.” 91 (Bauman, 1993, p.9)
90
“A velha tese – de que o livre arbítrio se expressa principalmente em escolhas erradas, de que a liberdade, se
não monitorada, sempre se converte em licenciosidade e então é, ou pode se tornar, uma inimiga do bem –
continua a dominar a mente dos filósofos e legisladores. [...] Desenvolver poderes individuais de julgamento
(treinando os indivíduos a ver quais os seus interesses e segui-los uma vez que os descubram) e gerenciar
investimentos de uma forma que a busca do interesse individual os levem a obedecer a ordem que os legisladores
desejam instalar, tinham que ser vistos como condicionando e complementando um ao outro; eles só fazem
sentido juntos.”
91
“A forma correta do argumento final pode, deve e será encontrada. Com essa fé, dedos queimados não
doeriam muito, não haveria mais ninharias e a falência dos anseios anteriores apenas estimularia os exploradores
a esforços atuais ainda maiores [...] O pensamento moral e a prática da modernidade, foram animadas pela
crença num código ético não ambivalente e não aporético. Talvez esse código ético ainda não tenha sido
encontrado. Mas certamente ronda a próxima esquina, ou a outra depois da próxima.”
83
poderia fazer o mesmo. Então, nos tópicos que se seguem, serão resumidos os marcos da
condição moral desejável no quadro da pós-modernidade, na visão de Bauman.
92
Bauman usa as expressões being-for e being-with, respectivamente.
93
Outro argumento contra a idéia de uma metafísica do ser-para-o-outro, e que poderia ser investigado
posteriormente em suas aproximações com a teoria psicanalítica, pensa o ato de criação do eu como um processo
que preenche “a impossibilidade de se ‘discernir de antemão’, os sinais, sintomas ou indicadores da
disponibilidade individual para o sacrifício ou para a covardia diante da adversidade, ou seja, de distinguir, fora
do contexto que lhes dá vida ou simplesmente os ‘desperta’, a probabilidade de sua manifestação posterior.”
(Bauman, 1998, p.25)
94
“O tipo de entendimento da condição moral do eu que o ponto de vista pós-moderno nos permite é improvável
que torne a vida moral mais fácil. O máximo que ele pode sonhar é torná-la mais moral.”
85
coroada de sentido. Bauman (1995), propõe a responsabilidade pelo outro como inevitável
diante de um mundo marcado por escolhas. Demonstra como são necessários, apesar da
solidão incurável da responsabilidade, ideais regulativos para os dilemas da ambivalência
existencial e da falta de certezas morais: “My responsibility for the other, Lévinas repeatedly
insists, includes also my responsibility for determining what needs to be done to exercise that
responsibility. Which means in turn that I am responsible for defining the needs of the Other;
for what is good, and what is evil for the Other.” 95 (Bauman, 1995, pp.64-5) A passagem que
Bauman propõe, da mera convenção ética para o compromisso moral, inclui um “engajamento
emocional” com o Outro, antes de qualquer comprometimento com um curso definido de
ação. Mas as emoções a que ele se refere não são definidas antecipadamente como simpatia
ou compaixão: “The sole requisite is that the Other is cast as a target for emotion [...] what
Martin Buber described as the resistance to objectification.”96 (ibid., p.63)
Tendo levantado a hipótese de que as formas de constituição emocional e moral do eu
moderno são responsáveis, entre outros, pela faceta negativa do sentimento de solidão,
sugerimos que a solidão, como vivência psicológica negativa, deriva igualmente da
“degradação de éticas tradicionais”; mas, nem tudo o que foi criado pela modernidade, em
assuntos morais, deve ser desprezado. Nem toda formulação ética moderna compartilha os
mesmos princípios e métodos.97 Não desejamos ignorar as velhas tensões existentes em torno
da questão estar junto ou estar sozinho. Embora partilhemos da crítica ao modo de vida
moderno que trouxe tanta dificuldade ao ideal do compromisso, vemos a problematização de
alguns dos seus princípios como ainda dotada de significado para o tipo de projeto moral no
qual apostamos.
No próximo ítem, buscaremos mostrar que alguns tópicos da “discussão moral
moderna” continuam dignos de ser preservados, sobretudo no que concerne ao fenômeno da
solidão. As redescrições do sentimento de solidão, que realizaremos no último capítulo, darão
ênfase a esses ideais coletivos herdados da tradição. A proposta de direcionamentos criativos
95
“Minha responsabilidade pelo outro, Lévinas repetidamente insiste, inclui também minha responsabilidade em
determinar o que necessita ser feito para exercitar essa responsabilidade. O que significa, por sua vez, que sou
responsável por definir as necessidades do Outro; o que é bom e o que é mau para o Outro.”
96
O único requisito é que o outro é um alvo para emoção [...] o que Martin Buber descreveu como resistência à
coisificação.”
97
A discussão em torno das artimanhas da modernidade é, sem dúvida um empreendimento complexo. Bauman
(1998) exemplifica essa dificuldade num estudo sobre o Holocausto, “executado em nossa sociedade moderna e
racional, em nosso alto estágio de civilização e no auge do desenvolvimento cultural humano, e por essa razão é
um problema dessa sociedade, dessa civilização e cultura.” (ibid., p.12) No entanto, apesar de ser possível
efetuar correlações entre ausência de solidariedade e indiferença moral (sugerido por Fein), explicar a doença de
um “eles” como causa, pode representar o conforto moral da absolvição do “nós”, com a ameaça do
desarmamento político e moral. “Uma vez que a atribuição de culpa for considerada equivalente à identificação
das causas, a inocência e a sanidade do modo de vida de que tanto nos orgulhamos não precisam ser colocados
em dúvida.” (ibid., p.14)
86
2.
A ÉTICA SOLIDÁRIA E O VALOR DA PROMESSA
“ Estamos nos contorcendo em mais uma forma de niilismo, a derradeira da longa cadeia
iniciada no Ocidente quando Platão primeiramente negou e suplantou o mundo real apoiado
em princípios transcendentes: as Idéias. Esta inversão metafísica ganharia, entretanto a sua
forma definitiva com base no cristianismo que, durante séculos, propiciou ao niilismo o seu
87
fundamento absoluto, através das promessas de uma Vida e de uma Justiça Eternas. Quando,
finalmente, Deus perdeu a sua força na Terra [...] quem poderia tolerar a quebra de uma
promessa veiculada e difundida por dois mil anos de cristianismo? Como aceitar a realidade
de um mundo injusto e desigual, relegado à pura sorte? [...] Para manter a ilusão do prazer e
da felicidade acessíveis, só mesmo o bombardeio diário da televisão.”(Naffah Neto, 1997, p.
108)
Naffah Neto não pretende traçar uma história linear e contínua do ressentimento
nietzscheano de Platão aos nossos dias. Essa hipótese seria, obviamente, sem sentido, dentro
das próprias referências genealógicas de Nietzsche. Com a metáfora do ressentimento, ele
pensa em criticar um modelo de conduta, atitude, desejo ou pensamento sempre possível de
ser despertado em situações difíceis, o niilismo. O niilismo é irmão gêmeo da desistência, da
submissão e do exílio da vontade. Ora, ao contrário do niilismo – idealizador passivo da
realidade – o amor fati nietzscheano é produtor, construtivo e ativo.
A noção nietzscheana de amor fati seria o primeiro tópico da “discussão moral
moderna,” a primeira imagem ética que valorizamos na tentativa de dar positividade à
vivência da solidão. Trata-se de um amor ao destino, “uma aceitação e valorização da vida,
em todos os seus aspectos.” (ibid, p.111) Consiste numa vida terrena que não é só
sobrevivência e adaptação, mas criatividade, “pequenos movimentos, reais, cotidianos, pelos
quais o mundo continuamente se desfaz e refaz, às vezes para reencontrar o velho sulco, mas
às vezes, também, para ensaiar novas formas.” (ibid, p.114) Mas, para que o amor fati não
corra o risco de se tornar algo cruel para com o próximo, é preciso que a cultura disponha de
elementos capazes de regular a criatividade ou a emergência do novo. Muitas afirmações
nietzscheanas - que inclusive estão na base de diversas perspectivas pós-modernas - podem
ser interpretadas como incentivadoras do individualismo, distanciando-se, portanto, do
exercício da política e da valorização do bem comum. Pensamos que a aceitação das
88
realidades da vida e do mundo não pode ser tomadas a qualquer preço. Imaginamos ser
imprescindível a concepção de algum ideal regulativo para as novas formas de vida, os novos
vocabulários. Dentre as possibilidades dessa “regulação”, aplicável também às redescrições
da solidão, escolhemos citar duas: c a ética da solidariedade de Rorty e d a ética da
promessa e do perdão de Arendt.98 Ao lado de Nietzsche, essas seriam, por conseguinte, os
dois outros mananciais éticos da modernidade que merecem ser reconsiderados no seu valor
para a vida moral contemporânea.
Rorty propõe a tese de que o sentido da solidariedade é uma obrigação moral dos
membros de uma comunidade. Ele parte da premissa “que as pessoas constituem uma
comunidade, um nós, em virtude de pensarem umas nas outras como sendo cada uma um de
nós, e por quererem o bem comum não sob a espécie da benevolência, mas sim por o
quererem enquanto um de nós, ou de um ponto de vista moral.” (Sellars apud Rorty, 1994,
p.236) O “nós” se contrapõe ao “eles” que é a forma de considerar outro ser humano como
estranho. A identificação imaginativa com o outro se daria por proximidade, por
semelhança.99 As diferenças culturais seriam destacáveis conforme o vocabulário histórico
contingente, mas não incompatíveis com a ampliação do conceito de nós. Dito de outra
maneira, a perspectiva etnocêntrica existe, mas o movimento da cultura é de aproximação, de
inclusão de outros universos e crenças possíveis:
“Na perspectiva que estou a apresentar, o progresso moral existe, e esse progresso vai
efetivamente na direção de uma maior solidariedade humana. Mas tal solidariedade não é
pensada como o reconhecimento de um eu central, da essência humana em todos os seres
humanos. É antes pensada como sendo a capacidade de ver cada vez mais diferenças
tradicionais (de tribo, religião, raça, costumes, etc.) como não importantes, em comparação
com semelhanças no que respeita à dor e à humilhação.”(Rorty, 1994, p.239)
98
É importante salientar que este não é o vocabulário da autora, que propõe a promessa e o perdão como os
próprios fundamentos da ética.
99
A referência à “identificação por semelhança” pode evocar a “retórica fraternalista” criticada por Ortega
(1998c), em apoio à Derrida. Nas democracias, a fraternidade seria pensada de maneira “forte”, uma igualdade
que esconde o conflito, reproduz o modelo das relações familiares ou de parentesco e, assim, se presta às críticas
dos autores. Nesse estudo, utilizamos a idéia de fraternidade em um sentido “fraco”, sem pretensões
universalizantes, apenas para aludir à solidariedade enquanto respeito à diferença. Acreditamos que o “nós”
rortyano não culmina necessariamente na “ficção de fraternização.”
100
Para Rorty(1994), as figuras do poeta forte e do revolucionário utópico são as criadoras, por excelência, das
novas metáforas.
89
Arendt (1993a) nos fala da importância da promessa e do perdão como meio de lidar
com a imprevisibilidade do mundo e a irreversibilidade da ação humana. As faculdades de
prometer e de perdoar baseiam-se inteiramente na presença dos outros, mas são atributos de
indivíduos que raciocinam sozinhos e deliberam segundo o que o passado pôde legar de
melhor. Apesar disto, o modelo arendtiano parece manter a mesma dicotomia entre público e
privado. Entretanto, existe um deslocamento em relação à Rorty. Em Arendt, o bem pensar e
o bem agir nunca estão completamente desvinculados do coletivo. Para ela, é cumprindo
promessas e perdoando as impossibilidades de cumpri-las que os sujeitos mantêm suas
identidades de agentes que correm o risco de inovar, investindo em ilhas de segurança no
grande oceano das incertezas futuras. A durabilidade nas relações humanas dependeriam
exatamente da possibilidade dessa segurança, dessa continuidade de agir na descontinuidade
do mundo. No entanto, mesmo as promessas realizadas no reino do “privado” apontam para
identidades que só alcançam reconhecimento no coletivo. A auto-realização arendtiana, se é
que podemos utilizar vocabulários aos quais ela própria não se referiu, é uma auto-realização
90
101
Arendt esclarece que o padrão final de julgamento para os feitos e os crimes, nas Repúblicas, é a virtude.
(1995, p.337)
91
3.
A VONTADE DE AGIR E O SENTIDO DA POLÍTICA
A noção de uma vontade livre pode ser considerada como um postulado necessário em
toda ética e em todo sistema de leis de nossa tradição cultural.102 Não tencionamos apresentar
a história do conceito de vontade, nem tampouco, diferenciar vontade e livre arbítrio. Arendt
faz um estudo minucioso desses e de outros aspectos em seu livro O querer (1995). Apesar de
tomá-lo como base, não desejamos reforçar ou dirimir o “conflito básico” apontado pela
autora entre as experiências do “ego pensante” e do “ego volitivo”. Em nossas considerações,
102
Reconhecemos a inexistência da faculdade da vontade na sociedade grega antiga. Não abordaremos aqui as
dificuldades de conciliar os princípios desta faculdade, surgida no primeiro século da Era Cristã, (Arendt, 1995,
p.189) com as principais doutrinas filosóficas gregas. Consideramos importante apenas o fato de que, mesmo
sem a categoria e o vocabulário da volição, os gregos possuíam outras formas de garantir a responsabilidade
pelas ações individuais no seio de uma vida pública.
92
tanto o pensamento como a vontade serão valorizados enquanto atributos de um eu que pode
viver a solidão de maneira positiva e enriquecedora. Queremos apenas reforçar a importância
desse vocabulário para o tema do qual nos ocupamos. Faz parte das características do eu
insuficiente, que experimenta a solidão negativa, a absoluta incapacidade de deliberar
entre escolhas, participar de processos decisórios e projetos futuros. Os indivíduos presos na
solidão passiva se tornam incapazes de prometer, pela impossibilidade de se comprometer
em projetos tão simples quanto “eu quero”, “eu posso” e, especialmente, “eu faço”. A
propósito da promessa solidária, Arendt diz:
“ O que estará em jogo aqui é a Vontade como fonte da ação, isto é, como um ‘poder para
começar espontaneamente uma série de coisa ou estados sucessivos’ (Kant) Sem dúvida todo
homem, pelo fato de ter nascido, é um novo começo, e seu poder de começar pode muito bem
corresponder a esse fato de condição humana. [...] A questão é como essa faculdade de ser
capaz de ocasionar algo novo, e, assim, ‘mudar o mundo’, pode funcionar no mundo das
aparências, isto é, em um ambiente de factualidade que é velho por definição e que
transforma inexoravelmente toda espontaneidade de seus recém-chegados no ‘foi’ dos fatos –
fieri; factus sum.” (Arendt, 1995, p.192)
“Há decerto, uma ‘história das idéias’, e seria bem fácil traçar a história da idéia de
Liberdade: como deixou de ser uma palavra indicativa de um status político – aquele do
cidadão livre e não o do escravo – e de uma circunstância física factual – aquela de um
homem saudável, cujo corpo não estivesse paralisado e fosse capaz de obedecer ao espírito –
e passou a ser uma palavra indicativa de uma disposição interior através da qual um homem
podia sentir-se livre quando era, na verdade, um escravo, ou quando não era capaz de mover
seus membros.” (Arendt, 1995, p.191)
Arendt (ibid.) nota uma diferença fundamental entre o ato livre e o simples desejo ou
apetite: a consciência de que “poderíamos ter deixado de fazer aquilo que, de fato, fizemos”.
A volição tem uma autonomia que o desejo não possui. Assim, sua noção de vontade
contribui para a reflexão sobre as vias de saída para o sentimento moderno de que somos
escravos de um desejo que não podemos modificar ou prisioneiros de uma solidão
irremediável. Muitas éticas terapêuticas estão vinculadas à essas crenças que, se tomadas ao
93
pé da letra, contribuem para a perpetuação do sentido de insuficiência das pessoas e para sua
adesão à cultura dos objetos de consumo.
Reafirmamos a opinião de que a noção de vontade, apesar das discordâncias em torno
de seu estatuto teórico, nos parece necessário a toda ética libertária e pluralista. Mas a
vontade, ressalta Arendt, ocasiona também uma individuação que gera problemas novos e
sérios para a noção de liberdade: o indivíduo amoldado por ela, que sabe poder ser diferente
do que é, tende a afirmar um “Eu-mesmo” contra um “Eles.” Arendt sugere que nada é mais
apavorante do que a noção de que o isolamento de todos os demais é responsabilidade
exclusivamente minha. Ela pergunta se a convicção de que tudo é o que “era para ser” não é
preferível à liberdade da contingência; se não é mais confortável aceitar o determinismo em
vez de assumir a indeterminação. A Vontade, como toda faculdade do espírito, é reflexiva, e
portanto, ao refletir sobre si mesma percebe dificuldades e cria ansiedades: “Aos pensadores
profissionais, filósofos ou cientistas, não lhes ‘aprouve a liberdade’ e seu caráter
inelutavelmente aleatório; não estiveram dispostos a pagar o preço da contingência pelo
Dom questionável da espontaneidade, pela capacidade de fazer o que se poderia também
deixar de ter feito.” (ibid, p.335, grifos nossos)
As crenças dos cidadãos comuns são herdeiras desses filósofos e cientistas, cuja
função social é inegável, mas cuja noção de liberdade é muito pouco útil para o reino da
política: “A liberdade política do cidadão é ‘aquela tranqüilidade de espírito que vem da
opinião de que todos têm segurança; e, para que se possa estar de posse dessa liberdade, o
governo deve ser tal que um cidadão não tenha medo do outro.” (ibid, p.335) Por isso, Arendt,
ao final do seu livro O querer, sugere que nossas atenções sejam concentradas nos “homens
de ação” e no reconhecimento de que ninguém pode agir sozinho, que a liberdade política só
é possível na pluralidade e não é uma simples extensão da dualidade “eu-e-eu-mesmo”.
“O único traço comum entre todos esses modos e formas de pluralidade humana é
simplesmente sua gênese, isto é, o fato de que, em algum momento no tempo e por alguma
razão, um grupo de pessoas tenha vindo a pensar sobre si como um ‘Nós’. Seja qual for o
modo como esse ‘Nós’ é inicialmente experimentado e expresso, parece que ele sempre
precisa de um começo, e nada parece mais oculto na escuridão e no mistério do que esse ‘No
princípio’, não só quanto à espécie humana em oposição a outros organismos vivos, como
também à enorme variedade de sociedades indubitavelmente humanas. (Arendt, 1995, p.337)
Tudo o que é real na natureza foi um dia uma grande improbabilidade. O começo
absoluto, a Liberdade que não é apenas liberação, é a quebra de toda cadeia causal. O
começo traz consigo um elemento de completa arbitrariedade. Para redimensionar problemas
tão complexos e tão desafiadores como a solidão no meio de muitos, o sofrimento pela
incapacidade de agir e a decadência do sentido de pertencimento, talvez tenhamos que investir
94
“Segundo ele, como sabemos, Deus criou o homem como uma criatura temporal, hommo
temporalis; o tempo e o homem foram criados juntos, e essa temporalidade foi afirmada
pelo fato de que cada homem devia sua vida não somente à multiplicação das espécies,
mas ao nascimento, à entrada de uma criatura nova que como algo inteiramente novo,
apearece em meio ao contíguo de tempo do mundo. O propósito da criação do homem
era tornar possível um começo [...] Estou bem consciente de que o argumento, mesmo na
versão agostiniana, é um tanto opaco, e não nos parece dizer nada além do que estamos
condenados a ser livres porque nascemos, não importando se apreciamos a liberdade ou
abominamos sua arbitrariedade, se ela nos ‘apraz’ ou se preferimos escapar à sua
terrível responsabilidade, elegendo alguma forma de fatalismo. (Arendt, 1995, p.348)
Arendt não viveu o suficiente para descrever uma outra faculdade do espírito, o juízo,
que poderia talvez desfazer esse impasse. Estamos conscientes que a condenação à liberdade
pode parecer um argumento estranho para justificar a redescrição da solidão. Percebemos seu
nível de generalidade frente a uma questão tão particular. Entretanto, o nascimento institui o
começo contingente e a liberdade inescapável da contingência. Na liberdade, os seres
humanos fazem escolhas, mesmo que seja a escolha de não fazer escolhas, de apoiar e
consentir com escolhas de outrem: a servidão.103 Escolhas, mesmo determinadas por emoções
como o medo – que nos obriga a considerar coisas que habitualmente desprezaríamos –
requerem o funcionamento do processo de responsabilização, fundamental à sobrevivência
de qualquer regularidade ética, mesmo opressora.
Quando ligamos nascimento-liberdade-responsabilidade, retomamos o fio das imagens
éticas que propusemos nesse capítulo. Essas imagens oferecem a adesão à vida em comum, na
103
A vontade de servir, ou a “servidão voluntária” é uma noção originária de La Boétie, que foi aproveitada por
Hannah Arendt (1994) para negar a possibilidade dos meios sutis de manipulação ideológica, numa sociedade
livre, serem os responsáveis pela obediência civil à tirania. Assim, a obediência seria uma manifestação de
consentimento. “...a ‘vontade de servir’ encobre o desejo de participação na tirania, o desejo de ser também
tirano.” (Unger, 1991, p.40)
95
direção do bem de todos, como as fontes de inspiração para redescrever o sofrimento de estar
isolado e o desespero de a ninguém se ligar, a nada pertencer. Sem a crença no recomeço, a
Liberdade e a Responsabilidade, as ações necessárias à sustentação da solidariedade e do
poder de prometer não seriam realizáveis. Agir no mundo é condição fundamental para
caminhar rumo ao Bem comum, sem condenar o novo à escuridão. Só o agir humano livre,
em pleno desempenho da volição, pode instaurar ou, pelo menos, incentivar
significativamente o processo de repolitização da vida comum que desejamos ver florescido.
Mas será mesmo que a política tem algum sentido na preparação dos nossos espíritos para o
enfrentamento diário da grande imprevisibilidade de viver? Será que a política ainda tem
sentido?
Arendt se propôs a responder a pergunta sobre o sentido da política. A ação política é,
para ela, sempre essencialmente o começo de algo novo. O conceito de começo tem
importância fundamental para a ação. Por isso, deve ser encarado como a própria essência da
liberdade humana. E se em um lado da ação política está a importância do começo, do outro
está a compreensão, pois só ela permite aos homens de ação lidar com o que
irremediavelmente se passou e se reconciliarem com o que inevitavelmente existe. Arendt nos
mostra a importância da faculdade da imaginação para nos garantir o “coração compreensivo”
que Salomão aspirou. A imaginação nos colocaria à distância do que está perto demais,
livrando nossa visão das tendências e preconceitos, e, ao mesmo tempo, permitiria superar o
abismo que nos separa do que é remoto, transformando o estranho em “assunto nosso”.
“ Sem esse tipo de imaginação, que na verdade é compreensão, jamais seríamos capazes de
nos orientar no mundo. Ela é a única bússola interna que possuímos. Somos contemporâneos
somente até o ponto em que chega nossa compreensão. Se desejamos nos sentir em casa nesta
Terra, mesmo sob o preço de estar-se em casa neste século, precisamos tentar tomar parte no
diálogo interminável com sua essência.” (Arendt, 1993b, p.53)
A ação política é o que está em questão. Vemos em sua descrição a expressão mais ou
menos fiel do que acreditamos ser a saída possível para os impasses da vida nesse “planeta”
do individual, do íntimo, do solitário. Basta olhar à volta, usar a imaginação de um coração
compreensivo e nos distanciar o bastante da nossa própria solidão, para ver nossa comunidade
e seus indivíduos mergulhados na profunda ambigüidade de ter que partilhar espaço, cooperar
em projetos que garantam a sobrevivência do coletivo e, ao mesmo tempo, não saber mais o
que é de fato estar próximo do outro, usufruir do conforto de sua companhia, cumplicidade e
confiança. Companhia, cumplicidade e confiança, efetivamente, têm sua mais digna
existência no reino de muitos, que se reconheçem ilimitadamente como “nós”, que sustentam
com satisfação as dificuldades da ação política conjunta, da convivência num projeto coletivo,
96
da vida vivida para o fora, do respeito cultivado pelo que se tem de público e não a obsessão
fútil pelo que se guarda no privado. Companhia, cumplicidade e confiança só podem ganhar
sentido quando os limites da nossa condição humana, ao menos aqueles que encaramos como
justos, são fruto de um acordo transparente de todos. Não estamos falando de unidade de
pensamento a respeito de todas as questões; pelo contrário, trata-se de ter tranqüilidade diante
da fértil diferença, e credibilidade na compreensão e na persuasão como métodos de
ajuizamento e decisão sobre o que interessa a todos.
Para Arendt, o sentido da política é a liberdade. A dúvida por ela colocada é se nas
condições modernas, há possibilidade de conciliação entre estas duas coisas. E, indo adiante,
ela também pergunta se nas condições modernas, política e preservação da vida são
conciliáveis, já que a política parece só nos ter trazido desastres. A impossibilidade aparente
de eliminar os males da política, a aparente insensatez contida na esperança da extinção de
todos os Estados e a aparente improbabilidade de controlar o efeito de coisas que inventamos,
nos coloca sempre face ao desespero e ao desencanto. Não há como pressupor a boa vontade
das partes envolvidas nas questões políticas, já que na esfera política a boa vontade de hoje
não garante a de amanhã. Foi assim que vimos acontecer. A política parece cair na falta de
sentido, à medida que se revela o “beco sem saída em que deságuam todas as questões
políticas particulares,” adverte Arendt.
Uma resposta definitiva para a questão da política, nas realidades atuais, é deixada
entre parênteses pela autora. Ela apenas nos diz que se a liberdade é o sentido da política,
temos o direito de esperar o milagre, não o religioso, mas aquele advindo da capacidade do
homem livre de realizar o improvável e o imprevisível, pensando, imaginando e
compreendendo os desdobramentos de suas ações. Pensar em saídas para a modernidade
geradora de exclusão - em seus processos nefastos de massificação e mercadologização da
solidão - é pensar que podemos operar verdadeiros “milagres” para modificar o mundo, se
estivermos juntos, engajados na vontade de pensar e compreender, se pudermos compartilhar
nossas ações políticas num espaço público de cumplicidade e confiança. Por hora é tudo que
pensamos aspirar. Não é muito, nem é fácil, mas seria um bom começo.
97
_______________________ CAPÍTULO q
REDESCRIÇÕES DA SOLIDÃO
Diane Margolis
Iniciamos esse estudo tentando articular imagens da solidão com imagens do eu.
Apresentamos, no primeiro capítulo, descrições históricas das formas de estar só, em que
destacamos duas características principais: c a escassez do fenômeno da solidão negativa nos
períodos anteriores à sociedade de Corte do século XVII; d a relação entre a multiplicação
98
das alusões à solidão, como fato psicossocial negativo, e as características do repertório das
crenças e emoções do eu moderno. Em seguida, levantamos a hipótese da existência de um
tipo de eu, particular da contemporaneidade - o eu insuficiente - que experimentaria a solidão
pela indiferença, desilusão e impotência. Interpretamos essas alterações no eu como correlatos
aos novos referenciais da solidão instituídos pela sociedade de Corte e pela sociedade
marcada pela normatização do século XIX.
Partindo da hipótese que a indiferença, desilusão e impotência são estados emocionais,
cognitivos e comportamentais ligados ao desenvolvimento das formas modernas de
subjetividade, iniciamos o segundo capítulo com a discussão das mudanças filosóficas e
políticas envolvidas na transição do mundo da tradição para o mundo moderno. Prosseguimos
a análise, considerando as características modernas ainda relevantes para as imagens de eu
contemporâneo. Trabalhamos com a hipótese de que tendo havido um crescimento e uma
diversificação nos referentes da solidão, é possível que outras alterações significativas das
subjetividades tivesse ocorrido. Nos deparamos, assim, com dois outros fatos: c A
convivência, numa mesma identidade pessoal, de muitos eus possíveis, cujos atributos se
interpenetram, produzindo ambivalências e ambigüidades nas ações e nas condutas. d a
conservação de imagens modernas estáveis convivendo com questionamentos típicos dos eus
da pós-modernidade, e criando novos problemas éticos e novas aspirações morais.
A coexistência de diversos tipos de eu, com emoções e orientações morais distintas,
trouxe à tona a questão de como lidar com a multiplicidade moral sem constranger as
liberdades tradicionais e sem cair na relativização ética temerária de certos projetos
futuristas. No terceiro capítulo, procuramos mostrar qual o solo ético que nos permite
redescrever a solidão, de modo a torná-la uma experiência positiva para a existência das
pessoas. A nosso ver, a solidariedade e a promessa, como as definem Rorty e Arendt,
respectivamente, são dois dos principais pilares desse solo. Por meio delas podemos pensar na
reconciliação do eu contemporâneo com sua existência, na construção de algo que ocupe o
lugar de um testamento que a modernidade não legou. Obviamente assentar a resposta à
negatividade da solidão na solidariedade e na promessa não é a única saída cultural possível.
A escolha dessa estratégia se deve ao caráter mais abrangente e mais aberto que ela possui,
diante de arranjos históricos particulares. Como procuraremos mostrar, em seguida, a
solidariedade e a promessa são categorias flexíveis; podem se exprimir em vários arranjos
relacionais; funcionam como uma espécie de bússola ou fronteira para os experimentos
morais, mas não dispõem de conteúdos normativos específicos.
Outros autores, entretanto, propõem táticas de enfrentamento da solidão baseadas em
atitudes morais que já foram historicamente experimentadas. Zeldin (1996), por exemplo,
99
Como pudemos mostrar, a idéia de solidão, desde que seus referentes passaram a fazer
parte da história das civilizações, é variável e sujeita à diferentes interpretações. Por isso,
insistimos na tarefa de propor uma grade ética suficientemente ampla, de modo a permitir
experimentos inéditos, feitos de pedaços de tradição ou invenções verdadeiramente inusitadas.
Assim, perguntamos: o recurso à imunização, hoje, é suficiente para que tenhamos uma
resposta satisfatória à solidão? Imunização já não é um termo obrigatoriamente associado à
cultura psicologizante, em parte responsável pela solidão que experimentamos? Além do
mais, o procedimento psicológico da “imunização” não seria supérfluo ou derrisório, diante
de uma solidão banalizada e cercada de indiferença? Finalmente, imunização não é parte
constitutiva do próprio jogo emocional da solidão, do qual um “imunizado” não se distancia?
Baseados na observação da crescente pluralidade moral e emocional da experiência
solitária, necessitamos talvez de crenças que possam ir além da simples prevenção
imunizante. Tendo revalorizado o exercício da política por meio da vontade livre de agir no
mundo, pensamos, então, buscar redescrições do sentimento de solidão que enriqueçam o
vocabulário cultural, bem como o imaginário da clínica de saúde mental, para que se abram
novas possibilidades de ajuda aos que se encontram paralisados pela insuficiência. Afinal,
como diz Margolis:
“Our hability to reshape moral systems and definitions of the self is part of our hability to
reshape societies. Once we had evolved into creatures who could use language, emotions and
imagination to create flexible social orders that could be passed from one generation to
another, we are also evolved into creatures who could be infinetely inventive about who we
are.” 104 (Margolis, 1998, p.6)
A observação crítica da realidade, somada à reflexão e à vontade de agir, pode
subsidiar novas maneiras de lidar com a solidão. A nosso ver, os procedimentos de
104
“Nossa habilidade de redefinir sistemas morais e definições do eu é parte de nossa habilidade de refazer
sociedades. Uma vez que nos tornamos criaturas que podem usar linguagem, emoções e imaginação para criar
ordens sociais flexíveis que podem ser passadas de uma geração a outra, também nos desenvolvemos como
criaturas que tem a capacidade de ser infinitamente inventivas em relação ao que são.”
102
105
“ One is no longer at home anywhere; at last one longs back for that place in which alone one can be at home:
the Greek world!”(Villa, 1997, p.179)
106
Ontologia, aqui, não tem o sentido metafísico de investigação sobre a essência do sujeito. Empregamos
ontologia no sentido deflacionário, que lhe foi dado por Davidson e Rorty, ou seja, o de simples entidades-
suporte de certos termos. O sujeito moral é uma noção pragmática. Sua ontologização, por conseguinte, é uma
pura maneira de falar da experiência subjetiva que reputamos moralmente mais desejável.
103
1.
“If rules are missing, however, my plight is much harder, since I cannot gain reassurance by
faithfully following the standards I can observe in others, memorize and imitate. As a moral
person I am alone, though as a social person I am always with others; just as I am free though
entrapped in the dense web of prescriptions and prohibiitons (As Maurice Blanchot puts it,
‘everyone here has his own prison, but in that prison each person is free’). ‘Being with others’
can be regulated by codifiable rules. ‘Being for the Other’, conspicuously not.” 107 (Bauman,
107
“Se regras estão faltando, meu fardo é muito mais pesado, desde que eu não posso obter apoio seguindo com
fé os padrões que eu posso observar nos outros, memorizar e imitar. Como pessoa moral eu estou sozinho,
embora como pessoa social eu estou sempre com outros. Da mesma forma que sou livre embora preso na densa
rede de prescrições e proibições (como Maurice Blanchot sugere ‘todos aqui tem sua própria prisão, mas nesta
prisão cada pessoa é livre’). Estar com outros pode ser regulado por meio de regras codificáveis. Ser para o
outro, definitivamente não.”
104
1993, p.60)
“What is, however, that non-deficient meeting against which the deficiency of mis-meeting is
measured, that meeting-of-complete-selves, which serves as an imaginary horizon by which to
plot all other meetings, and redefines all other meetings as mis-meetings? [...] So to find it, one
needs to explore the possibility of another kind of togetherness; one that, hopefully, proves
hospitable and conducive to encounters other than of being-with kind.”108(Bauman, 1995, p.51)
108
“Qual é, portanto, esse encontro não deficiente a partir do qual a deficiência dos encontros deficientes é
medida, esse encontro de eus completos, o qual serve como horizonte imaginário por meio do qual se mapeia
todos os outros encontros e os redefine como enganosos? [...] Para encontrá-lo, é necessário explorar a
possibilidade de outra forma de estar junto; uma que se espera provar hospitalidade e direção aos encontros,
outros que não o do tipo estar-com-o-outro.”
105
“What seems as much of a ‘fact’ as a tornado or hunger is the human need to create and
maintain boundaries around the self and to invent moral orientations that tell us what we may
and may not do and be. For that we have language and feelings. They give us flexibility, but
they give us solidity too.” 109 (Margolis, 1998, p.152)
109
“O que parece tão concreto quanto um tornado é a necessidade humana de criar e manter fronteiras em torno
do eu e inventar orientações morais que nos diz o que devemos ou não devemos ser e fazer. Para isto nós temos
linguagem e sentimentos. Eles nos dão flexibilidade, mas também nos dão solidez.”
110
Uma extraordinária análise das consequências da ausência de pensamento é realizada por Arendt (1983) sobre
a personalidade do nazista Adolf Eichmann. Na apresentação do livro, Ferraz Júnior sintetiza o argumento
esclarecendo que “Arendt trabalha sobre fatos e traz a banalidade do mal ao nível do cotidiano: o Eichmann que
se apresenta não é um perverso, nem um tipo criminosos cínico e atrevido, não é um ambicioso, capaz de matar
ou de fechar os olhos para progredir, mas é apenas alguém que jamais teria imaginado o que estava fazendo.
Note-se que isto não parece à autora como sinônimo de obtusidade ingênua. Eichmann não era um simplório, um
tolo, sabia muito bem o que fazia. O que o caracterizava era um vazio de pensamento que não quer dizer ser tolo,
mas que o predispôs a tornar-se o grande criminoso que acabou sendo. Está aí toda a banalidade referida. [...] Era
um funcionário do governo. Um alto funcionário, que nunca pensou que aquilo em que se aplicava pudesse
realmente ser algo de tão monstruosos.” (ibid., p.9) Bauman (1995), valorizando os sentimentos como
precondições para a performance moral, apresenta o argumento de Vetlesen, contrário à interpretação de Arendt.
Eichmann, antes de estar incapacitado de pensar, estaria inapto a sentir, seria indiferente ao significado do
sofrimento, insensível em relação a dor inflingida ao outro. “Insofar as he adopt an objectifying attitude towards
his fellows, as opposed to a participatory-empathic one, Eichmann for all practical purposes prevents the domain
of moral phenomena from being disclosed to him. [...] There is no disinterested access to the phenomenon of
suffering; if one bars the capacity to feel from morality, one bars humanity from it.” (Vetlesen apud Bauman,
1995, p.57)
106
mesmos, como o interesse próprio.111 Dessa maneira, “what is assumed here is that being-for-
the-Other rather than for-itself is ‘contrary to nature’; and that two modalities of being are in
112
opposition.” (ibid, p.14) A primeira realidade do self seria a referência ao outro e a
responsabilidade moral pelo outro; um ponto de partida e não um produto do social:
“What follows is that if solitude marks the beginning of the moral act, togetherness and
communion emerge at its end – as the togetherness of the ‘moral party’, the achievement of
lonely moral persons reaching beyond their solitude in the act of self-sacrifice which is both
the hub and the expression of ‘being for’. We are not moral thanks to society (we are only
ethical or law-binding thanks to it); we live in society, we are society thanks to being moral.
At the heart of sociability is the loneliness of the moral person.”113 (Bauman, 1993, p.61)
Segundo Bauman, por conseguinte, a moralidade não tem, propriamente, uma gênese
evolutiva. Ela é dada de pronto; está lá, como condição sine qua non da sociabilidade. Sem
moralidade não existe sociabilidade; ou somos sujeitos morais, ou, simplesmente, não somos
sujeitos sociais. Entretanto, a defesa da moralidade como fato originário, não faz do autor um
“otimista quanto ao altruísmo”, na modalidade descrita no capítulo anterior. Bauman não faz a
apologia do individualismo e do interesse próprio, nem mesmo sob a forma do altruísmo. Ser
para o Outro não é uma escolha; é uma coerção, um limite do ser social, e não uma construção
da socialização. A solidão seria, então, o momento da tomada de consciência dessa
dependência ou articulação inevitável ao Outro. Podemos escolher a forma de nos
vincularmos ao Outro – essa, sim, contingente; não podemos evitá-la ou contorná-la! A
solidão decorrente de uma moralidade referida ao Outro é, portanto, diferente da solidão ética
artificial, que determina formas de estar junto codificadas por regras, encontros de pessoas
com convenções - direitos e deveres – e não com outros sujeitos.
A nosso ver, o momento de origem do eu moral solitário é um artifício ficcional que
visa ilustrar a cronologia que estamos habituados a conceber e preservar: nascimento-vida-
morte. Esse artefato conceitual não nos parece se referir à estruturas inatas do psiquismo ou à
teorias similares. Seu parentesco, por exemplo, com a idéia de solidão como constitutiva do
111
Não entraremos na discussão sobre o que seria essa “causa poderosa” e qual o seu estatuto filosófico
“correto”, e nem sobre o que Bauman considera “a verdadeira natureza”. Gostaríamos apenas de apontar para as
discussões atuais que buscam posicionar as emoções como índices de uma situação, ou seja, expressões “do
valor que ela tem para a existência do homem.” (Abagnano,1982, p.294) Assim, não apenas a racionalidade seria
responsável pelo relevo dado a certas crenças sobre o mundo. A moralidade, o sentido de responsabilidade pelos
outros, poderiam ser fruto de crenças emocionais.(Solomon In Marks,1996)
112
“o que é assumido aqui é que ser-para-o-Outro ao invés de para si-mesmo é contrário à natureza; e que as
duas modalidades de ser estão em oposição.”
113
“O que se segue é que se a solidão marca o início do ato moral, estar junto e em comunhão emergem no seu
final. Do mesmo modo como ocorre com o sentir-se junto da comunidade moral, as conquistas de pessoas morais
sozinhas indo além de sua solidão no ato do sacrifício é tanto o eixo quanto a expressão de ser-para. Nós não
somos morais graças a sociedade (nós somos apenas éticos ou cumprimos a lei graças a ela); Nós vivemos em
sociedade, nós somos sociedade porque somos morais. No coração da sociabilidade está a solidão da pessoa
moral.”
107
sujeito, descrita no primeiro capítulo, é nulo. Nessa última, a solidão é um subproduto dos
ideais civilizatórios da sociedade do século XVIII e da necessidade política de controle dos
súditos em uma nova realidade social e econômica. Essa “solidão histórica” diz respeito à
consciência do isolamento social e emocional; à desconfiança quanto ao próprio valor pela
instabilidade do pertencimento ao grupo no qual se deseja ser aceito. Bauman evoca Arendt
para questionar a idéia de bases pressociais do comportamento moral. Realça a questão
arendtiana da “responsabilidade moral de resistir à socialização”, reassegurando que a
distinção entre bem e mal não pode estar entregue à legitimação de poderes sociais:
“O que exigimos nesses julgamentos, onde os réus cometeram crimes ‘legais’ é que os seres
humanos sejam capazes de distinguir o certo do errado, mesmo quando todos eles têm a guiá-
los apenas seu próprio julgamento, o qual, além disso pode estar em completa discordância
com aquilo que eles devem encarar como opinião unânime de todos aqueles a sua volta. E
essa questão é das mais sérias, por sabermos que os poucos que foram tão ‘arrogantes’ a
ponto de só confiar no seu julgamento, não eram de forma alguma idênticos àquelas pessoas
que continuavam a se prender a velhos valores, ou que eram orientadas por alguma crença
religiosa [...]Aqueles poucos, que ainda eram capazes de discernir o certo do errado, seguiam
apenas seu próprio julgamento e eles o faziam espontaneamente.” (Arendt, 1983, p.302)
2.
A SOLIDÃO POSITIVA: RECONCILIAÇÃO COM A EXISTÊNCIA
114
Na obra dos dois autores não encontramos o projeto claro de valorização ou redescrição da solidão. As
referências mais diretas a esse sentimento são, em geral, associadas ao que denominamos como conotação
“negativa”. Benjamim (1994), por exemplo, considera a solidão como um estado no qual não podemos dar ou
110
“ Benjamim fala de uma nova barbárie que é esta da humanidade privada da experiência.
Experiência coletiva, ligada a um trabalho e a um tempo compartilhados em um mesmo
universo de prática e linguagem, garantidos pela tradição e a memória comuns cujo declínio
acarreta, inevitavelmente, o declínio da arte de narrar. O homem, que antes escutava para em
seguida narrar os relatos intermináveis de uma experiência comum, de repente se vê
desacompanhado, lendo romances. A origem do romance é o indivíduo isolado, que se
encontra impossibilitado de narrar exemplarmente a sua própria história: ele já não recebe
conselhos e nem os pode dar. O romance é em si mesmo um sintoma do declínio da
experiência: o sentido da vida, antes imediatamente dado pela experiência compartilhada,
está agora isolado da própria vida, tornando-se uma resposta à necessidade de se concluir
uma história. [...] o homem moderno, privado do conselho trazido pela experiência, tem, em
seu isolamento, necessidade de uma explicação: ele deve aprender de uma só vez o sentido da
vida de seu herói. O que lhe importa não é um ensinamento qualquer prodigado pela vida de
seu herói, mas o destino, o fim que lhe coube. Segundo Benjamim, o leitor do romance nutre-
se sempre de uma matéria ressecada e sem vida sobre a qual um fim está dado desde o
início.” (Fares, 1996, p.50-1)
receber conselhos que, tecidos na substância viva da existência, dão origem à sabedoria. Remete-se, assim, ao
estado de solidão como isolamento. Arendt, por sua vez, relaciona solidão à ausência do outro na esfera pública,
o que também desemboca no isolamento: “na solidão e no isolamento, o perdão e a promessa não chegam a ter
111
“Quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa
companhia. Mas o leitor de um romance é solitário. Mais solitário do que qualquer outro
leitor (pois mesmo quem lê um poema está disposto a declamá-lo em voz alta para um ouvinte
ocasional). Nessa solidão, o leitor do romance se apodera ciosamente da matéria de sua
leitura, quer transformá-la em coisa sua, devorá-la, de certo modo.” (Benjamim, 1994, p.213)
realidade: são, no máximo, um papel que a pessoa encena para si mesma.” (1993a, p.249)
115
Benjamim (1994) ressalta que a sociedade oitocentista permitiu aos homens evitar o espetáculo da morte,
fazendo com que sua idéia perdesse a força de evocação e o caráter exemplar e público, num atrofiamento da
noção de eternidade. Cita Valery, na constatação de que o homem atual não sabe cultivar o que não pode ser
112
não se reduza à banalidade do imobilismo e da incapacidade para a ação, o sujeito terá que
refletir sobre conselhos, saber julgá-los e querer garantir continuidade à narrativa que os
gerou. E para fazê-lo, deverá contar com as próprias faculdades de pensar e agir no sentido da
transformação. O recomeço cotidiano da experiência de vida, que adiciona criatividade à
narrativa, é muito mais instigante que qualquer enredo narrativo pré-definido, para o sujeito
fundado na responsabilidade ético-moral de ser solidário e de cumprir suas promessas.
De modo similar, Arendt também faz da sua obra um espaço de valorização da
narratividade aberta para a vida. Realça o quanto os sofrimentos humanos podem ser mais
brandos quando podemos contar uma história sobre eles, repartindo sentidos para o inusitado.
Na amizade com Benjamim, compartilhava da percepção de que a faculdade de trocar
experiências, através da narrativa, mantém os laços entre os homens. Escutar e depois narrar
contribuem para a continuação de uma história, de uma tradição. E é somente numa história
que se ocupa um lugar. Na reflexão solitária é que se elaboram as histórias coletivas; é
sozinho que se faz “de sua contingência um destino”, como sugere Heller (1988, p.17). A
partir daí, o homem está preparado para participar do processo coletivo de escolha das
melhores e mais importantes histórias a serem transmitidas.
Mas Arendt enfatiza um outro ponto no universo da tradição narrativa: o pensamento -
faculdade discursiva por excelência. É por meio dele que efetuamos a justaposição de
experiências numa sucessão de palavras, numa linha onde “desensorializamos” e
“desespacializamos” as experiências originais. Esses procedimentos garantem o sucesso da
atividade reflexiva. Para a autora, o pensamento se dá caracteristicamente no intervalo de
tempo do presente, do agora. Nele, o passado e o futuro estão igualmente presentes, porquanto
ausentes da percepção: “Assim, o não-mais do passado é transformado, graças à metáfora
espacial, em algo que se encontra atrás de nós, e o ainda-não do futuro em algo que se
aproxima pela frente.” (Arendt, 1995, p.153) No presente do pensamento é que se organiza a
capacidade narrativa:
“ O homem vive nesse intervalo, e o que ele chama de ‘presente’ é uma luta que dura toda a
vida contra o peso morto do passado, que o impulsiona com a esperança, e contra o medo do
futuro (cuja única certeza é a morte) que o empurra para trás, para ‘a serenidade do
passado’, com a nostalgia e a lembrança da única realidade de que o homem pode ter certeza.
[...] A reflexão traz essas ‘regiões’ ausentes à presença do espírito; dessa perspectiva, a
atividade de pensar pode ser entendida como uma luta contra o próprio tempo. É apenas
porque ‘ele’ pensa, e, portanto, deixa de ser levado pela continuidade da vida cotidiana em
um mundo de aparências, que passado e futuro se manifestam como meros entes de tal forma
abreviado e controlado, dada sua ânsia pelo progresso econômico e tecnológico. Nesse contexto, o “saber que
vem de longe”, contido na narrativa, perde sua autoridade e é substituído pela informação de acontecimentos
próximos, que pode ser submetida à verificação imediata e é compreensível “em si e para si”, apesar de muitas
vezes não ser mais exata que os antigos relatos.
113
que ‘ele’ pode tomar consciência de um não-mais que o empurra para frente e de um ainda-
não que o empurra para trás.” (Arendt, 1995, p. 154-5)
116
A concepção da solidão como “um trajeto”, um imenso deserto a ser percorrido entre o indivíduo e o outro,
segundo Fares (1996), origina-se em Cícero. A idéia central em Cícero é a de destino incerto e desconhecido. O
tempo seria o meio que permitiria ao homem realizar sua solidão, ou seja, constituir-se gradativamente como
sujeito moral. Retomando as reflexões de Elias sobre a sociologia do fato solitário, marcado pela “rede de
relações humanas da qual ele é um dos nós e no seio da qual ele vive e tem acesso à sua individualidade” (Elias
apud Fares, ibid., p.45), a autora acredita reencontrar o modo como Cícero definiu a solidão, um vasto deserto a
ser percorrido: “O solitário, é assim, aquele que está, todo o tempo, instado a empreender uma Odisséia.” (ibid.,
114
propor uma imagem do ego pensante que não seja absolutamente ausente da realidade do
mundo dos assuntos comuns, que não corra o risco de perder seus pensamentos no vazio da
“quietude imóvel”. O pensamento seria uma “força diagonal”, cuja direção é determinada
pelo passado e pelo futuro, mas que tem sua raiz no presente humano e a ele permanece
ligado. Tentando esclarecer sua própria idéia de força diagonal, Arendt diz:
“Para mudar a metáfora, ela é a calmaria que reina no centro do furacão, que ainda pertence
a ele, embora dele seja totalmente diferente. Nessa lacuna entre o passado e o futuro,
encontramos o nosso lugar no tempo quando pensamos, isto é, quando estamos distantes o
suficiente do passado e do futuro. Estamos aí em posição de descobrir o seu significado, de
assumir o lugar do ‘árbitro’ das múltiplas e incessantes ocupações da existência humana no
mundo, do juiz que nunca encontra uma solução definitiva para esses enigmas, mas respostas
sempre novas à pergunta que está realmente em questão. [...] Esse pequeno espaço não-
temporal no âmago do tempo, ao contrário do mundo e da cultura em que nascemos, não
pode ser herdado nem transmitido pela tradição, embora cada grande livro de pensamento
deixe-o entrever e como que o decifra – como diz Heráclito a respeito do Oráculo de Delfos,
notoriamente críptico e indigno de confiança: ‘onte legei, oute krytei alla semanei’ (‘ele não
diz nem oculta, ele insinua’). Cada nova geração, cada novo ser humano, quando se torna
consciente de estar inserido entre um passado infinito e um futuro infinito, tem que descobrir
e traçar diligentemente, desde o começo, a trilha do pensamento.” (Arendt, 1995, p.158)
p.62) Sua única certeza é o destino de errância, o “inelutável abandono a uma marcha sem objetivos
preestabelecidos.” (ibid., p.61) Fares define, assim, a solidão como “uma relação móvel e imprevisível entre os
homens.”
117
Villa (1997) apresenta duas correntes interpretativas dessas postulações de Arendt. Na primeira, a autora seria
vista como uma “modernista relutante”, que nutre a esperança da humanidade encontrar uma maneira certa de se
sentir em casa no mundo. Assim, mostraria adesão à concepção deliberativa de democracia e direitos humanos.
Na segunda, Arendt seria uma “anti-modernista”, cuja crítica ao individualismo, seriamente comprometida com
a ação política, bloquearia a própria possibilidade do sentimento de “estar em casa no mundo”.
115
‘esquartejado entre o passado desaparecido e o futuro que tarda’.” (ibid., p.57) No vocabulário
arendtiano, faltando presente, não há pensamento, a atividade reflexiva que impede a
banalização de qualquer tipo de mal. Sem pensamento, a lacuna entre passado e futuro é
abissal, impossível de ser preenchida.
Acreditamos que a solidão negativa evoca toda a banalização do eu alienado e
dirigido à fabricação e ao consumo. Nela percebemos os efeitos do desamparo humano, da
destruição das condições necessárias à capacidade de agir que justifica a existência do
sujeito:
“É, de fato, uma coisa estranha que a solidão tenha se tornado uma das características da
sociedade ocidental cristã, que é fundada sobre o amor de Deus e a fraternidade humana.
Somos o único povo no qual se incute desde criança esse mandamento impossível: ‘Ama teu
próximo como a ti mesmo’, e, não obstante, quantos de nós carrega uma existência infeliz,
átomos mal-amados e incapazes de amar – indivíduos livres em uma sociedade aberta,
condenados a fazer parte da grande subcultura cinzenta dos solitários. [...] Conseguimos nos
convencer de que é bom estar só, que temos necessidade de intimidade para nossa
tranqüilidade de espírito [...] Chegamos mesmo a convencer-nos que a vida abominável que
uma pessoa sozinha leva em uma quitinete, “com sua ‘independência’ e sua ‘liberdade’, é a
coisa mais bela do mundo.” ( Brain in Costa, 1998, p.156)
Como diz Brain, a vida solitária abominável se esconde por trás de cortinas
ideológicas e imagens midiáticas que apartam o homem de sua vocação existencial.
Insistimos, portanto, em sugerir que uma outra face da solidão, vista positivamente, pode
funcionar como alavanca para a reconciliação do homem com o mundo. Essa visão pode se
impor às armadilhas ideológicas da “independência” e da “liberdade” especificamente
“modernas”. Prefigura-se, assim, a resposta para a primeira pergunta que sugerimos: como
escolher? Com Benjamim e Arendt, podemos dizer que, participando da tradição narrativa e
não nos esquivando da tarefa do pensamento, usaremos nossa liberdade em favor de processos
de escolha não aleatórios, escolhas com a marca da responsabilidade do sujeito moral que
almeja mais que os próprios interesses.
A banalidade do eu moderno e a negatividade da solidão atual podem ser combatidas
com a disposição de atender ao “apelo retórico” de reconhecer o valor de uma posição
existencial não normativa, aberta à criação de novas “estratégias” existenciais. Desse modo,
a solidão positiva, portadora da responsabilidade moral para com o outro e nutrida pela
experiência do pensamento no presente de sua existência, pode atuar como uma ferramenta na
reconciliação do eu insuficiente com a sua existência. A reconciliação é função da
repolitização que faz da solidão positiva meio de resgate da “atividade prazerosa do agir
político”, como descreve Ortega (1998b): “O amor mundi arendtiano representa precisamente
o deleite que se sente na ação política, essa vontade de agir como ‘o prazer que
116
118
A amizade perdeu - ao longo da história do Ocidente - sua relevância histórica e sua posição privilegiada no
imaginário humano. Ortega (1998a, p.78), chama atenção para o fato da sociologia, até muito recentemente,
“desqualificar a amizade como objeto de análise, acusando-a de ser um assunto privado.” Para Murphy (1998), a
amizade não foi um tema caro à modernidade porque seus psicólogos elevaram o desejo, pensado como uma
força radical primordial, ao trono das emoções. Da mesma forma, os românticos elevaram o amor à posição de
ligação humana inata.
119
A burocracia é a forma de governo em que, nas palavras de Arendt, “ninguém governa.” (Ortega, 1998b)
117
funciona como cimento das relações.120 Ao contrário do amor, não pretende ser uma relação
entre dois que se vêem como “iguais”, como duas metades de algo – o que Arendt chamou de
característica “anti-política” da ética amorosa. A amizade é uma relação entre “três” que não
se preenchem e nem buscam formar um todo. Dois amigos sempre estão referidos à uma
terceira parte da amizade - uma forma, idéia ou causa – que exerce uma mediação e
proporciona uma igualdade na diferença. Murphy chama esse terceiro de “the Good”, o Bem.
Por causa do envolvimento partilhado e da relação comum a uma Grande Idéia, os amigos não
precisam ser iguais, podem conviver com afetos conflitantes e idiossincrasias pessoais, sem
que o Bem seja desviado do centro. Os amigos compartilham a mesma causa, se sentem
confortáveis com ela na solidão e, portanto, têm interesse em explorá-la juntos.
Em oposição à amizade, os “contatos amigáveis” estão direcionados à promoção
mútua de bens individuais. A amizade genuína é mais que uma relação de utilidade mútua;
também é mais do que a mutualidade desinteressada. Os amigos verdadeiros (perfect, true or
prime friends) também se ajudam na obtenção de bens - fortuna, saúde, sucesso – mas vão
além; preferem estar juntos porque apreciam a companhia recíproca, divertem-se com ela.
Mas não precisam estar sempre juntos, pois a Grande Idéia que compartilham pode sustentar a
separação. Este é o “aspecto sério” sem o qual a amizade não sobrevive. Entretanto, há
também a necessidade do olhar, do abraço: “It is a relationship of the Idea, but not of the Pure
Idea.”121 (ibid., p.172)
Para Murphy, o niilismo caracteristicamente moderno confundiu a amizade porque
retirou dos amigos a coisa maior que os unia, a crença séria em algo, uma espécie de
“seriedade ontológica que funda o prazer de compartilhar”. Esse prazer de compartilhar, como
vimos, é um resultado da prática da solidão positiva, da receptividade como disposição de
vida. Como acentua Beck, o solteiro é o arquiteto mais capacitado para cultivar uma rede de
amizade; pode ser “o iniciador de suas relações sociais, em um universo construído por ele
mesmo.” (Ortega, 1998a, p.78) No entanto, se esse solteiro é uma figura derivada da
dissolução da segurança social, carrega a crença niilista de que só pode contar consigo
próprio, pensa a amizade como uma “função compensadora”. Ao se preocupar apenas com os
próprios interesses, não possui a “seriedade ontológica” que funda a beleza da amizade
enquanto alternativa relacional. Não conserva os ideais solidários; não pode prometer.
Na sociedade forjada pela Reforma protestante, pela Nação-estado monárquica e pela
revolução industrial, um amigo pode ser um conhecido, um colega, um vizinho, um patrão,
120
Acreditamos que Benjamim (1994, p.210), do mesmo modo, considera “o interesse em conservar o que foi
narrado” com um “terceiro” na relação entre o ouvinte e o narrador.
121
“É uma relação de Idéia, mas não de pura Idéia.”
118
um interesse amoroso. Mas nenhuma dessas relações aspira a vida em comunhão ou investe
no compromisso exteriorizado da amizade verdadeira:
“True friendship have been made notoriously difficult by the modern age’s suffusion with the
values of the Calvinist North – the values of work and of inwardness and privacy. Under these
conditions, friendship is invariably marginalized. When the demands of work and those of true
friendship collide, work takes place. Friendship ‘takes time’, and time is costly. Friends
should always be ready to come together with, and listen to each other, but there is ‘no time’
in modern life.” 122(Murphy, 1998, p.181)
122
“ A Amizade verdadeira tem sido difícil pela mistura da era moderna com os valores do norte calvinista – os
valores do trabalho, da interiorização e da privacidade. Sob essas condições a amizade é invariavelmente
marginalizada. Quando as demandas do trabalho e da amizade verdadeira colidem, o trabalho ganha terreno.
Amizade toma tempo e tempo é dinheiro. Os amigos devem sempre estar prontos a estar juntos, e escutar um ao
outro, mas não há tempo para estar juntos na vida moderna.”
123
Sobre a sociedade intimista, ver Sennett, 1995.
124
Allman (In Murphy, 1998) acredita que a vida pública se tornou um meio rentável para os meios de
comunicação; revelam os segredos picantes dos políticos e oferece aos exibicionistas espaço para confessarem
seus segredos sexuais conjugais. A promoção do escândalo não é uma coisa nova e os antigos não tinham menos
apetite para ele. O que é mesmo novo é a forma com que ele consumiu nosso senso do que é público, pela ação
de uma publicidade que é parasitária da vida privada. Esta revelação pública de escândalos seria coerente com a
visão Calvinista de mundo público.
125
“Como Arendt assinalou em carta de 1968 para MacCarthy, a amizade não é intimidade claustrofóbica, mas
atividade, trilhando um pedaço da estrada juntos.”
126
“não pertence ao reino da interioridade sem lugar e sem espaço. Envolve e requer uma certa mutualidade e
troca semipúblicas. A modernidade entende a intimidade do amor, mas não a amabilidade da amizade.”
119
pp.181-2) Para Murphy, o uso da palavra semipúblico é necessário para que não se perca o
sentido confidencial e íntimo da amizade. Mas insiste na importância da referência ao sentido
público. Enfim, propõe a amizade como um conceito que se coloca na intersecção entre
ética e política, entre erotismo e companheirismo e entre o pessoal e o coletivo. Essa
interseção impõe obrigações morais, mas também nos concede grandes prazeres. A
experiência de amizade mistura sacrifício e regozijo, necessidade e escolha, corpo e espírito.
Amizade é uma ligação deliberada de seres singulares que vão, no espaço público, buscar se
unir a outros que participem de seus ideais morais. Murphy (ibid., p.3) propõe a amizade
como o equivalente pessoal do comum, do público. Nesse sentido, a amizade é mantenedora
dos ideais de solidariedade e do valor de prometer na privacidade dos indivíduos. Oferece
suporte ao projeto de positivação da solidão, que necessita de pontos de intersecção entre
moralidade privada e políticas pública para manter sua força. A noção de solidão positiva,
como meio de reconciliação com a existência, quer estender os ideais da prática de vida
comum para a moralidade privada, se opondo às inversões dos valores operados hoje. Se a
vocação existencial é a capacidade de agir conjuntamente, utilizando as prerrogativas de seres
solitários, a amizade oferece um modelo relacional potente para garantir a solidariedade e
prefigurar a justiça nas relações políticas pela promessa de que todos serão tratados como
amigos:
“The eu-topia of politics is a projection of friendship into the wider space of public life. The
relationships – the mathematics and the justice – of politics are prefigured in friendship. And
when the dreams of politics are crushed, the ‘political ones’ retreat into ‘circles’ of friendship,
which become a refuge from the failed public eu-topia of politics.”127 (Murphy, 1998, p.170)
127
“A eu-topia da política é uma projeção da amizade no amplo espaço da vida pública. As relações –
matemáticas ou de justiça social – da política são prefiguradas na amizade. E quando os sonhos dos políticos são
esmagados, os ‘políticos’ se reconciliam em ‘círculos’ de amizade, os quais se tornam um refúgio da falência
pública da eu-topia do político.”
128
“Tal moral moderna é um consolo para a inefetividade do estado moderno, para sua inabilidade de fazer o que
120
Murphy, nenhum Estado, sob nenhum regime, mesmo a democracia social mais bem
regulada, pode transformar uns indivíduos em tão inteligentes quanto outros, tão astutos,
sortudos e econômicos quanto outros. O autor dá razão à Aristóteles: legisladores deveriam
encorajar mais amizades e promulgar menos leis. Quando os cidadãos se preocupam mais
com regras do que com a atividade de forjar relações modeladas por ligações de amizade, a
política torna-se nada mais que uma máquina estatal. Mesmo a utopia comunista, buscando
uma igualdade baseada em valores mundanos, desembocou no regime totalitário, permitindo
que os “dois que são três” das relações amistosas renunciassem em favor do “grande Um”.
Mas perguntamos: “Do we do better under liberalism? No friendships, certainly no great
friendships, are possible under the sign of liberalism, of what we might call the state of
multiplicity without cause. Without a cause, there can be no friendship.”129 (Murphy, 1998,
p.177)
O Bem, a Causa, a seriedade do compromisso com um ideal comum são a Beleza sem
a qual não pode haver amizade. Todavia, Murphy acentua que Beleza que não é sinônimo
nem de unidade nem de singularidade - como foi entendida pelos modernos - nem dualidade,
como é para os liberais. A Beleza é triádica, a tríade paradoxal que faz a união de múltiplos, a
união de uma unidade que dividiu a si própria. É o nome geral para aquilo que une a
diversidade sem apagar as diferenças. Não é necessária nenhuma pretensão de
universalidade ou transcendência. O Bem, para nós, é o interesse no agir coletivo que está
encarnado no mundo. A Beleza, é o adjetivo para uma forma de utopia, uma causa que possa
atrair sujeitos isolados em direção à idéia de transformar suas solidões em projetos conjuntos:
“Friends have each other and their binding cause. [...] Without their political eu-topia, there
would have been no friendship. It is in friendship, the most political of all close human
relationship, that the city of citizens is prefigured.” 130 (Murphy, 1998, p.177)
Sem dúvida o modelo antigo de amizade grega está na base de toda consideração
teórica sobre amizade. Costa, citando Hadot, lembra que o “amor-philia” esteve sempre “a
serviço de algo que o transcendia e, para realizar-se, tinha como pressuposto a ‘vida em
comum’ dos praticantes em busca de uma nova forma de vida. Assim, philia e ‘comunidade
de vida’, em todas as escolas filosóficas gregas, eram termos indissociáveis.” (Costa, 1998,
p.42) Murphy reforça que a philia não é o agape cristão nem o amor moderno; pertence ao
reino da peregrinação, das longas caminhadas juntos falando de assuntos sérios, diz o autor,
“Political life thus always entails an answer, if not a contest of answers, to the question of
how life ought to be lived. [...] The idea of the regime (politeia) - the notion that every polis
represents a configuration of collective power around a certain conception of how life is
better lived - thereby grounds Aristotle’s examination of politics.”131(Allman in Murphy, 1998,
p. 114)
131
“ A vida política portanto sempre requer uma resposta, se não um conjunto de respostas sobre como a vida
deve ser vivida [...] a idéia do regime – noção de que cada polis representa uma configuração de poder coletivo
em torno de uma certa concepção de como a vida é melhor vivida – portanto baseia o exame da política de
Aristóteles.”
122
“He gently prods his interlocutors toward an appreciation of life that he knows to be its own
reward, hence one that is not predicated on altruism on saintly self-sacrifice, but that renders
its practioners effectively desinterested in those finite and mundane goods that tempt men with
political injustice.”132 (Allman in Murphy, 1998, p.123)
O ideal socrático de amizade, estava relacionado à uma idéia de Bem transcendente e
universalizável, que garantiria a justiça política. Nietzsche, muitos séculos depois, anunciou
um mundo pós-socrático onde haveriam novas ordens e ideais para a civilização. Mas seu
personagem Zaratustra, na opinião de Allman, não escapa da questão socrática sobre a mais
válida forma de viver. Assim falou Zaratustra tem o aspecto de uma tentativa radicalmente
nova de responder a mesma pergunta de A República. Como a vida deve ser vivida continua
ser a maior preocupação humana.
Zaratustra anuncia a crise espiritual da civilização, que é da própria modernidade, no
anúncio da morte de Deus. A precedência dada tanto na bíblia quanto no idealismo grego à
busca da verdade foi insidiosamente minada pela ciência moderna que se tornou prioritária na
sociedade secularizada. A morte de Deus é um sinal da desconsideração ou evitação do reino
socrático pela ordem espiritual do ocidente civilizado. Essa “calamidade sem precedentes”,
para Nietzsche, é uma oportunidade para novos modos de vida, novos valores que organizem
e governem as relações e ligações.
Nietzsche constrói seu projeto contra a tradição inspirada por Sócrates.133 Allman
acredita que ele considerou necessário assumir várias “anti-posturas” para responder à crise
da metafísica, ou seja, se opor a todos os conjuntos de crenças que ele considerava presentes
na modernidade. Mas isso não funcionou como esperado. Os ensinamentos de Zaratustra, por
exemplo, iam contra o discurso cristão de amor ao próximo, mas anunciavam que “algo está
para acontecer”; tomavam, assim, a forma de um ideal rival da própria teologia que pensavam
desbancar. O ideal do “Superhomem” acaba parecendo outra forma de consolo, de esperança
de redenção do presente e do passado no futuro, parecendo sofrer de um “platonismo
vestigial” que Nietzsche não reconhece. Não vamos detalhar aqui esse ponto, optando por
observar às conclusões do autor sobre a imagem ambígua de amizade deixada por Nietzsche.
Allman considera que, na verdade, Zaratustra se afasta das origens socráticas da
sociedade moderna para estabelecer uma relação agonista com a tradição filosófica
132
“Ele gentilmente conduz seus interlocutores a uma apreciação da vida que ele sabe ser sua própria
gratificação, sendo alguém que não é versado no altruísmo e no auto-sacrifício santo, mas que deixa seus
praticantes efetivamente desinteressados naqueles bens finitos e mundanos que tentam o homem com injustiça
política.”
133
Allman (In Murphy, 1998) descreve como Nietzsche reutilizou alegorias centrais do texto de Platão,
modificando seus significados. Em contraste com as associações platônicas entre comunidade e política, a
imagem da caverna, por exemplo, para Nietzsche, é um símbolo de recolhimento espiritual e da solidão imposta
pelo trabalho filosófico de pensar nas questões que confrontam o mundo moderno.
123
inaugurada por Sócrates. Trazer nova luz ao domínio da existência humana, num mundo
secularizado sob a égide da ciência, é reconsiderar o empreendimento filosófico. E isto
envolve repensar o mais elevado modo humano de associação, a amizade, na qual Sócrates
baseou a vida filosófica:
“Zaratustra speaks of the friend as a ‘third’ between ‘I and me,’ hence as one who serves to
marshal and unify the divisions in competition within the self, which Nietzsche consistently
represent as a multiplicity in perpetual internecine conflict. The friends’s ability to act like a
‘cork’ that keeps the exchange between I and me ‘from sinking into the depths’ derives not
from a solicitous regard for the other’s psychic well-being, however, but from the contentious
bases of their relationship.” 134 (Allman In Murphy, 1988, pp.125-6)
Allman chama atenção para o fato de que uma dimensão nietzscheana mais ampla de
amizade emerge quando Assim falou Zaratustra é considerado no seu todo dramático e não
apenas a partir do discurso Do amigo (On the friend). Essa dimensão ampla, guarda estreitas
relações com a solidão. No início do livro, o “Superhomem” se relaciona com o mundo na
base da afirmação pronta, de sã consciência, da história recorrente e irremediável do mundo.
Guarda um registro de consciência niilista. No final, a vida comunica uma nova sabedoria,
ensinando-o a condição fundamental da existência, a Vontade de Potência. Zaratustra retira-se
do mundo dos homens para uma existência solitária em que é autosuficiente e contente com
sua ligação singular com a eternidade. Não deseja ou necessita de humanidade, mas também
não desdenha dela. O autor pensa que, uma forma de amizade completamente afirmativa da
vida, para Nietzsche, permanece como algo não completamente imaginável. Parece criar um
conflito que liquida qualquer chance de reconciliação com pluralidade e diferença,
individualidade e parcialidade. Em sua avaliação, a amizade parece radicalmente contingente
nas circunstâncias da história e aí parece sublinhar a inquebrável solidão que cerca o
individualismo nietzscheano: “only with a kindred self, wich means in the final analysis
only with what derives from oneself, is communion really thinkable. In his self-creation, the
Nietzschean individual necessarily stands apart, grounded solely in his own originality.”135
(Allman In Murphy, 1998, p.130).
Esse retrato do indivíduo solitário se aproxima da noção de responsabilidade moral do
pensamento que valorizamos inicialmente na redescrição da solidão. Entretanto, a
134
“Zaratustra fala da amizade como um terceiro entre o eu e o mim, também como aquilo unifica as
competições dentro do self, o qual Nietzsche representa como uma multiplicidade em perpétuo conflito
intercambiante. A habilidade dos amigos em agir como uma cortiça que sustenta a troca entre eu e mim evitando
que ela afunde nas profundezas deriva não de uma preocupação com o bem-estar psíquico do outro, mas com a
conscienciosa base de suas relações.”
135
“Apenas com um eu, o que significa em última análise, apenas com o que derive de si próprio, uma
comunhão é realmente pensável. Em sua auto-criação, o indivíduo nietzscheano necessariamente permanece
fora, baseado apenas em sua própria originalidade.”
124
136
Entrevista com José Saramago. Jornal do Brasil, 09/10/98, caderno B, p.2.
125
“ In na age so encaptured with Nietzsche, one feels tempted (by Nietzsche’s own Dionysian
perhaps) to take sides with Plato in an effort to preserve a tension that might continue to
energize our civilizational tradition. In vivid contrast to the image of solitude – and loneliness
– by which Nietzsche frequently represent his own life, stands Plato’s portrait of Socrates
ending his days in a prision cell crowded with friends and companions, united with them in the
quest for a wisdom beyond mortality.” 137(Allman, 1998, p.131)
137
“Numa época tão identificada com Nietzsche, nos sentimos tentados (talvez pelo próprio Dionísio de
Nietzsche) a tomar o lado de Platão num esforço de manter uma tensão que deve continuar a energizar nossa
tradição civilizada. Em vívido contraste com a imagem de solidão – e de estar só – pela qual Nietzsche
freqüentemente representa sua própria vida, está o retrato platônico de Sócrates terminando sua vida numa cela
de prisão cheia de amigos e companheiros, unidos a ele na questão da sabedoria para além da mortalidade.”
127
Adam Phillips
128
Esse estudo diz respeito ao tema da solidão, tanto na clínica como na vida cotidiana.
Levantamos a hipótese de que o indivíduo contemporâneo vem construindo sua identidade
pessoal como a de um eu insuficiente. O eu insuficiente é a condição identitária do sujeito
que experimenta a solidão como perda das fundamentais capacidades humanas de pensar, agir
e julgar, para transformar a si mesmo ou transformar o mundo. Na verdade, tal sujeito é
membro de uma sociedade desinteressada ou despreparada para essas faculdades, que carece
da compreensão de seus próprios descaminhos. O eu banalizado pela insuficiência é, ao
mesmo tempo, produtor e produto dos juízos de valor e das práticas de vida
descomprometidas com a ética humana solidária. Postulamos a noção de insuficiência como
um dos dilemas típicos de nosso tempo, uma espécie de matriz interpretativa das sensações
dos solitários contemporâneos: fracasso, no passado; falta de perspectivas, no presente;
desesperança, no futuro.
protegiam de viver a frustração como descrença, e, no vazio das crenças, surgiu o vazio da
solidão.
que a “morada da alma”, na vida moderna, “só pode ser construída com firmeza na sólida
fundação do mais completo desespero.”
O mundo contemporâneo, inspirado em certas intuições da pósmodernidade e em
certas lembranças da história, pode se modificar, sem necessariamente ter que mudar todas as
suas feições. As vidas individuais se tornaram experiências de trajetórias atormentadas em
direção a lugar nenhum. Somos cada vez mais ricos em informação e cada vez mais pobres de
narrativas surpreendentes. A solidão é fruto, entre outras coisas, da extrema falta de iniciativa
em acreditar e investir na transformação de contingência em destino. Muitos desconhecem
o significado de “ser ator” na construção de algo humanamente relevante. A insatisfação
decorrente da falta de projetos que ultrapassem os limites do interesse do eu é muito maior do
que aparenta. O abismo desesperançado das vidas que não se refletem na vida de outros tem
um poder de destruir qualquer alento trazido pela diversão ou pelo consumo de coisas e
pessoas.
Como profissionais da área de cuidado psicológico, temos o compromisso de
contribuir para a resignificação da solidão. Do mesmo modo, somos intimados a refletir sobre
as características dos procedimentos terapêuticos que favorecem a capacidade das pessoas
efetuarem essa resignificação. A psicanálise e a psiquiatria, repetimos, existem para estar a
serviço das demandas nas quais estão inseridas. Cabe a elas a elucidação da dimensão mais
especificamente psicológica da solidão. A capacidade do indivíduo ficar só é um dos mais
importantes sinais de amadurecimento emocional. Seus aspectos positivos foram pouco
explorados na literatura psiquiátrico-psicanalítica, embora Winnicott, em Da Pediatria à
Psicanálise, tenha realizado uma abordagem que serve de referência importante para qualquer
tentativa de retomar o tema, o que esperamos poder realizar no futuro. O ponto principal é o
fato da habilidade de estar realmente só depender da experiência de ficar só na presença do
outro, sem ser invadido por ele. A capacidade de estar só é alcançada sob o testemunho
benevolente de um Outro, que permite a construção de uma realidade psíquica favorável ao
respeito pelo mundo. A ausência do Outro ou sua presença opressiva, produzem a
incapacidade de estabilizar um senso adequado de suficiência psíquica para lidar com o
desafio constante de viver.
Ter a capacidade de estar sozinho, refletir e deliberar sozinho, é inevitável e necessário
para nos mantermos como seres singulares, como sujeitos morais, e, em última instância
sujeitos políticos. Mantendo nossas singularidades, temos a chance de contribuir
diferencialmente para a construção de uma área de convivência comum com o outro,
dividindo a condição humana de habitar um mundo imprevisível, irreversível e incompleto.
Vivemos em um tempo semelhante a qualquer outro, determinado pelo que passou e pelo que
131
está por vir, por coisas que não são mais e por outras que não são ainda. O presente está
aberto ao acaso e à contingência. Buscamos, com a solidão positiva, estimular a atenção e a
sensibilidade para identificar a silhueta de uma boa metáfora, uma nova forma de estar junto,
quando ela surgir, aparentemente, como mais um rosto na multidão solitária.
132
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135
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