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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL


ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: CIÊNCIAS HUMANAS E SAÚDE

A BANALIDADE DO EU :
a experiência da solidão no sujeito contemporâneo

José Fernando Pontes Soares Neto

Dissertação apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do
Instituto de Medicina Social da
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, para obtenção do grau de
Mestre.

ORIENTAÇÃO: Jurandir Freire Costa

RIO DE JANEIRO - 1999


2

Aos meus clientes,


que dão sentido à reinvenção e ao recomeço.

A Fernando, meu pai,


a quem devo os sentidos de credibilidade e coerência.

A Amparo e Jurandir,
que me ensinaram a tolerância, o compromisso e a gratidão.
3

AGRADECIMENTOS

À Madalena, pelo amor de mãe. Por receber o que pude e perdoar o que não
pude.

À Gabi, pela atenção, tolerância, paciência. Meus dias no Rio não teriam sido os
mesmos...

A Jura, pela generosidade, incentivo e cumplicidade de uma amizade madura e


solidária. Alguém que definitivamente me ajuda a ser uma pessoa melhor. Nunca
terei as palavras certas para agradecer.

À Célia, pelos apoios e pelo exemplo de uma vida para além das teorias.

A João Alberto, por saber ficar perto e estar longe.

A Bernardo Trêspalácios e Fernando Coutinho, pelas chances de recomeçar.

À Susana e Carlinhos, meus companheiros de promessas e perdões. Impossível


expressar toda afeição.

A Antônio e Bruno, parceiros nos medos e na esperança por um mundo mais


acolhedor.

Aos amigos de Recife, tantos, pela solidez do nosso passado e pela saudade de
um futuro que não veio.

À minha família pernambucana, pela confiança inabalável.

Aos companheiros da residência médica do Instituto Philippe Pinel, em especial


Gui, Xande, Cláudia, Jairo e Nanda, pela lembrança viva do que partilhamos. E
também aos clientes, profissionais e mestres, pelo que pude dar e receber.

Aos membros da Casa Verde, colegas, estagiários, funcionários e clientes, pelo


cotidiano carinhoso e desafiante, pelo estímulo à reflexão permanente.

À Gabriela Soares e Alexandre Wanderley, pela assistência nestes últimos


tempos solitários de escrita e pelos comentários competentes e preciosos.

Aos companheiros dos grupos de estudo que animaram e encheram de


significados as noites de Quarta, as manhãs de Segunda, os almoços da Sexta...

A Leonardo Mendes, pela colaboração inestimável nas traduções.

Ao IMS, seus funcionários e professores, aos meus colegas mestrandos e


também ao CnPq, por viabilizarem e apoiarem esse projeto.
4

”...outrem assegura as margens e transições no


mundo. Ele é a doçura das contigüidades e das
semelhanças. [...] Povoa o mundo de um rumor
benevolente. Faz com que as coisas se inclinem umas
em direção às outras e de uma para outra encontrem
complementos naturais. Quando nos queixamos da
maldade de outrem, esquecemos esta outra maldade
mais temível ainda, aquela que teriam as coisas se não
houvesse outrem.”

Gilles Deleuze
5

RESUMO

O estudo trata da solidão no mundo contemporâneo, fonte freqüente de


mal-estar entre os indivíduos que procuram assistência na clínica de Saúde
Mental. Procura-se mostrar como os significados associados à solidão se
modificaram ao longo da história e como estiveram ligados às configurações
subjetivas de cada época. No presente, a solidão está vinculada ao sentimento de
insuficiência do eu, na qual tem origem as experiências de solidão angustiada e
esvaziada de sentido. As imagens dominantes do eu contemporâneo são
consideradas como herdeiras das características socio-histórico-filosóficas da
modernidade, especialmente o superinvestimento dos objetos de consumo na
esfera privada e o desinvestimento da participação na esfera pública. Sustenta-se
que a reflexão sobre as emoções e moralidades articuladas à essas imagens é
um meio possível de redescrever o sentimento de solidão. A solidão não só
poderia ser vivida como um estado psíquico estruturante, mas também poderia
ser pensada como prerrogativa das capacidades humanas de pensar e agir,
revalorizando o sentido da presença ativa do sujeito nos negócios do mundo
comum e do Bem comum.
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ABSTRACT

This is a study about loneliness in the contemporary world, a frequent


source of suffering among those who seek assistance at the Mental Health
services. It aims at showing how the meanings associated with loneliness have
changed throughout history and how they have been connected to the subjective
configurations of each epoch. Nowadays loneliness is linked to the feeling of
insufficiency of the self, source of the experiences of anguished and meaningless
loneliness. The dominant images of the contemporary self are considered to be
heirs of modernity’s socio-historical and philosophical characteristics, especially
the hiper investment in consuming in private sphere and, in the public sphere, the
lack of investment. The argument is that the exploration of emotions and moralities
pertaining to these images is a possible means of redescribing the feeling of
loneliness. Loneliness could not only be lived as a psychic structuring state, but
could also be thought as a prerrogative of human capacity for thinking and acting,
renewing the meaning of man’s active presence in the business of the common
world and the common Good.
7

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 08

n IMAGENS DA SOLIDÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18
1. Formas históricas de estar só.........................................................................19
1.1. A Solidão como retiro .................................................................... 20
1.2. A Solidão como experiência constitutiva do eu ............................. 24
1.3. A Solidão como desvio .................................................................. 30
2. A solidão do eu insuficiente ...........................................................................36

o IMAGENS DO EU . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42
1. A herança do eu moderno...............................................................................43
2.Tipologias do eu contemporâneo.....................................................................52
2.1.O Ego alterdirigido ............................................................................. 53
2.2.O Eu de troca .................................................................................... 60
3. Emoções e Moralidades do eu....................................................................... 69

p IMAGENS DA ÉTICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .78


1. A ética pós-moderna......................................................................................79
2. A ética solidária e o valor da promessa..........................................................86
3. A vontade de agir e o sentido da política........................................................91

q REDESCRIÇÕES DA SOLIDÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .97


1. A solidão do sujeito moral.............................................................................103
2. A solidão positiva: reconciliação com a existência.......................................109

CONSIDERAÇÕES FINAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .127

OBRAS CITADAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .132


8

__________________ INTRODUÇÃO

“ A maravilhosa alteridade do Outro tem sido


banalizada e reduzida a uma simples troca de
cortesias que se tornaram um ‘comércio
interpessoal’ de costumes.”

Emmanuel Lévinas
9

“ O que mais se alterou em minha vida foi o correr do tempo, a sua velocidade e até sua
orientação. Outrora cada dia, hora ou minuto estava inclinado, por assim dizer, para o dia
hora ou minuto seguinte, e todos juntos eram aspirados pela intenção do momento cuja
inexistência provisória criava como que um vácuo. Assim, o tempo passava depressa e
utilmente, tanto mais depressa quanto mais utilmente aproveitado, e deixava atrás de si um
monturo de monumentos e detritos que se chamava a minha história.[...] Talvez essa crônica,
na qual eu me embarcara, acabasse após milênios de peripécias, por ‘anular’ e voltar à sua
origem. Mas esta circularidade do tempo continuava a ser o segredo dos deuses, e a minha
curta vida era para mim, um segmento retilíneo [...] no futuro, o ciclo encolhe-se de tal modo
que se confunde com o instante. O movimento circular tornou-se tão rápido que já não se
distingue da imobilidade. Dir-se-ia, por conseguinte, que os meus dias se endireitaram. Já
não oscilam uns sobre os outros. Têm-se de pé, verticais, e afirmaram-se orgulhosamente no
seu valor intrínseco. E, como já não são diferenciados por etapas sucessivas de um plano em
vias de execução, assemelham-se tanto que se sobrepõem exatamente na minha memória,
afigurando-se-me sempre reviver o mesmo dia.” (Tournier, 1991, p. 190-1)

Michel Tournier assim descreve como a dimensão de futuro se encolheu para o seu
personagem, Robinson Crusoé. Na passagem, Robinson acabara de retomar o hábito da
escrita. Há pouco perdera, no incêndio da cabana onde morava, os volumes do diário que
havia escrito até então, narrando os dias de náufrago solitário na ilha deserta de Speranza.
Neste momento de retomada do registro de sua nova história, já contava com a companhia de
Sexta-feira, o nativo responsável pelo incêndio, e que, agora, começava a aparecer como uma
presença desconcertante em sua “mágica novidade”. Até então Robinson tratara Sexta-feira
como um selvagem a ser domado, da mesma maneira que buscara domar a ilha pela
exploração agrícola frenética. Enquanto vivia só, pelo trabalho, buscara se convencer de que a
presença de outrem, apesar de ser um elemento fundamental do indivíduo humano, não era
insubstituível; era “necessária, mas não indispensável”:

“Substituir algo dado por algo construído, problema geral, problema humano por excelência,
sendo verdade que tudo o que distingue o homem do animal é ele poder esperar só de seu
próprio esforço tudo o que a natureza dá gratuitamente ao animal – a veste, as armas, a
pitança. Isolado na minha ilha, eu podia afundar-me ao nível da animalidade não construindo
– e esse foi afinal, o meu começo – ou, pelo contrário, tornar-me uma espécie de super-
homem construindo tanto mais quanto a sociedade não o faz por mim.” (Tournier, 1991,
p.103)

Robinson buscou uma solução para o problema do futuro. Restaurando um calendário,


tentou aprisionar o tempo para recuperar a “posse” de si próprio. A necessidade de proceder à
agrimesura da ilha atendeu ao clamor interno de querer, na verdade exigir, que tudo à sua
volta passasse “a ser medido provado, certificado, matematizado, racionalizado”. Decidiu
obedecer à regra de que toda produção é criação, e consequentemente, boa. Maldizia a miséria
da solidão por não poder entesourar sua produção, transformá-la nos “benefícios do dinheiro”
e acumulá-lo. Acreditava que os bens convertidos em moeda se tornam acessíveis a todos os
homens e os conduzem no sentido de maior cooperação e mais solidariedade. Mas o projeto
10

inicial de não descansar enquanto a “ilha opaca, impenetrável, cheia de surdas fermentações e
maléficos redemoinhos” não se transformasse numa “construção abstrata, transparente,
inteligível”, caminhou para a falta de sentido, expondo a impossibilidade do trabalho
substituir o repovoamento do mundo com outros e manter os efeitos de sua presença.

“Construí, pois, e continuo a construir, mas na verdade a obra prossegue em dois planos
diferentes e em dois sentidos opostos. Porque se, à superfície da ilha, prossigo na minha obra
de civilização – culturas, criação de animais, edifícios, administração, leis, etc. – copiada da
sociedade humana, e portanto, a bem dizer, retrospectiva, sinto-me o teatro de uma evolução
mais radical que substitui as ruínas criadas pela solidão dentro de mim por soluções
originais, todas elas mais ou menos provisórias ou tateantes, mas cada vez menos
semelhantes ao modelo humano de onde partiram. Para acabar com a oposição destes dois
planos, não se me afigura possível que a sua freqüente divergência se agrave indefinidamente.
Há de vir fatalmente um tempo em que um Robinson mais e mais desumanizado já não poderá
ser o governador e o arquiteto de uma cidade mais e mais humanizada.” (Tournier, 1991,
p.103-4)

Aos poucos Robinson percebeu que fazer e conhecer não eram suficiente para garantir
um futuro significativo para si mesmo. O caminho de conhecer através de si e não “através de
outrem” não se configurou tão promissor. Voltava a amargar o afastamento brusco da
multidão de irmãos que o tinham sustentado dentro do humano, sem que ele se desse conta.
Redescobriu a corrosividade da solidão que o afastava do contato permanente com os
semelhantes, que formam e transformam a “frágil e complexa montagem de hábitos,
respostas, reflexos, mecanismos, preocupações, sonhos e implicações”. Percebeu novamente a
desnaturalização de suas relações pela solidão, privado da companhia dos outros personagens
que “dão a medida” e constituem “pontos de vista possíveis”. Outras medidas, outros ângulos
de visão, acrescentam virtualidades que o ponto de vista único, individual, não possui:

“Já surpreendo, na minha atividade exterior, algumas passagens no vácuo. Acontece-me


trabalhar sem realmente acreditar no que estou fazendo e a qualidade e quantidade do meu
trabalho nem sequer se ressentem. Há, pelo contrário, em certos esforços, uma embriaguez de
repetição que só se beneficia de uma deserção do espírito: trabalha-se por trabalhar, sem
pensar no objetivo a atingir. E, no entanto, não se pode indefinidamente cavar por dentro um
edifício sem que ele desmorone. É provável que, um dia qualquer, a ilha administrada e
cultivada cesse de me interessar. E nessa altura terá perdido seu único habitante... ”
(Tournier, 1991, p.103-4)

Introduzimos esse estudo com uma narrativa ficcional por acreditar na sua capacidade
de expor representações contemporâneas do tema ao qual nos dedicaremos: a solidão. Em sua
linguagem literária, o texto toca em dimensões da vivência solitária que nos são muito
familiares: a embriaguez da repetição, a perda do interesse pelo mundo, o encolhimento da
atividade do pensamento e da perspectiva de futuro contida na ação conjunta. Marca, de
maneira sublime, a absoluta necessidade da presença viva dos outros para constituir um
11

espaço acolhedor que traduza e interprete ações humanas em termos de objetivos e utilidades,
e que, ao mesmo tempo, seja uma fonte das novidades que nos intima a desejar e a construir
mundos melhores.1
A principal motivação do estudo da solidão é identificá-la como uma das principais
fontes de mal-estar contemporâneo. Grande parte das pessoas que atendemos cotidianamente
em nossos consultórios, tristes, deprimidas ou melancólicas, se queixam da solidão como
origem ou resultado de suas angústias. No discurso de muitas outras, a queixa não é explícita,
mas basta escutá-las com atenção para perceber os ecos de suas solidões. Uma grande parcela
procura incessantemente o que há de errado com seus corpos e mentes, sem nunca encontrar
respostas plausíveis para o que vivem. Não reconhecem em seu mal-estar diário, as marcas do
nosso tempo. Não desconfiam que emoções podem ser muito diferentes quando fora do
universo das prescrições técnico-instrumentais às quais nos habituamos. Nossa inserção
profissional na clínica de Saúde Mental, nos instiga a conhecer mais sobre as moralidades
escondidas por trás de sintomas e as histórias ocultas por trás dos estados de solidão.
Pode-se, facilmente, evidenciar uma escassez de estudos do tema da solidão na obra
dos autores de referência da psicanálise, como Freud, Ferenczi e Klein. Apenas nas últimas
cinco décadas, questões como a solidão, a drogadição e os comportamentos antisociais
começaram a ser problematizadas nesse campo de saber. Provavelmente porque apenas a
partir dessa época tais fenômenos passam a adquirir dimensões coletivas e a se tornarem
problemas com impacto social e econômico.
Fora da clínica psicanalítica, também não é raro perceber o modo como as pessoas se
referem ao sentido de estar no mundo. Elas fazem constantes referências, mais ou menos
diretas, à dificuldade de viver, de se relacionar e usufruir da companhia de outros. A ciência
psiquiátrica criou categorias para dar conta do fenômeno do crescimento vertiginoso das
depressões leves e duradouras, produzindo medicamentos para aliviar dores antes incluídas
nas vicissitudes da existência. A vida harmoniosa e satisfatória ao lado dos outros próximos
surge, especialmente nesse século, como uma carga pesada demais. Parece requerer uma
originalidade e disponibilidade que a tornam uma tarefa quase irrealizável. Cada vez mais,
não se sabe como superar as frustrações e as decepções, como ter confiança nos outros e em si
próprio, como não sucumbir às “companhias” sempre disponíveis e ilusórias das drogas, do

1
Deleuze interpreta o romance de Tournier, outra narrativa sobre a existência ficcional de Robinson Crusoé,
como sendo a expressão de “um mundo sem outrem.” Associa a existência de outrem à construção da categoria
do possível. “Outrem a priori é a existência do possível em geral.” (In Tournier, 1991, p.246) Analisa
filosoficamente o estatuto dessa noção e articula psicanaliticamente a ausência dela à idéia de perversidade
psicológica. Os sentidos que atribui ao relato ficcional são instigantes, lançando metáforas que parecem dar
continuidade à narrativa, porém, o fato de não estarmos particularmente interessados na consideração da
perversão, tornam sem sentido considerações mais detalhadas.
12

sexo fácil2 e até da violência. Vez por outra, as pessoas se dão conta de que não sabem mais
como se adaptar ao “jeito” do outro, como negociar uma relação, pois esperam, no fundo, que
apenas o outro se modifique. Enfim, nessa configuração relacional, o problema é encontrar
uma forma de ter parcerias para além do que o romance propagou como ideal de vida e que há
muito não funciona; como manter o ideal do outro como alguém significativo, fundamental,
em sua totalidade, para a experiência da boa vida. 3
A solidão tem sido uma das vivências atuais que mais conduz à paralisia e ao
desespero. Na forma de vida que escolhemos, cotidianamente, compartilhar, ela está quase
sempre associada à sensações violentas de carência, frustração e incapacidade. Pela força do
descontentamento que comumente produz, se torna um sentimento irrefletido e pouco
compreendido por parte daqueles que a experimentam. Não há interesse em aproveitá-la,
redefini-la ou reinventá-la. O sentimento de rejeição é a regra e sua evitação o método. A
tentativa de imunização contra ela é uma espécie de pressuposto irrefletido comum a todos.
Em um mundo que sonha e investe na abolição total de qualquer forma de dor, cabe apenas a
urgência em povoar esse deserto melancólico. Infelizmente, as saídas disponíveis, no mais das
vezes, conduzem a infortúnios maiores. Não trazem as respostas definitivas e universais que,
como veremos, caracterizam as aspirações modernas dos sujeitos na tentativa de resolução de
suas contradições.
Diante desse quadro, nos propomos a discutir o problema do sentido da solidão
contemporânea em duas de suas dimensões:
c A dimensão clínica, ou seja, o impacto da solidão como “causa” de conflito para os
indivíduos contemporâneos. Os profissionais da área de Saúde mental podem, facilmente,
atestar como o sentimento de solidão não se associa apenas a crises e rupturas, nem à
situações episódicas de privação de companhia. A importância, por assim dizer, “etiológica”
da solidão cresceu a medida que crescia e se expandia o vocabulário do sofrimento
sentimental. Cada vez mais pessoas são capazes de articular seus sofrimentos - derivados dos
mais diversos campos da vida - à gramática da solidão, solicitando terapêuticas reparadoras a
ela referidas.

2
Cabe aqui a ressalva de que não há intenção de hierarquizar práticas pessoais de nenhuma espécie. Apenas
desejo chamar atenção para aquelas que trazem aos indivíduos rigidez, paralisia, dependência, em suma,
impossibilitam-no de deliberar entre escolhas segundo os seus melhores propósitos e segundo os acordos
partilhados por ele na comunidade a que pertence.
3
Bauman (1995) apresenta formas típicas-ideais de togetherness na contemporaneidade para marcar certas
características com consequências morais decisivas, que tornam os encontros fragmentários e episódicos. São
formas de estar junto que seguem o modelo do being-aside, no qual as pessoas estão umas ao lado das outras
mas não são, de fato, objetos de atenção mútua. Ou seja, opõem-se às modalidades do being-with e,
especialmente do being-for, que serão discutidas nos dois últimos capítulos.
13

d Os sentidos socio-histórico-filosóficos. A solidão, como vivência subjetiva íntima,


nem sempre esteve presente como questão relevante na história do sujeito e das sociedades.
As próprias noções de subjetividade, de eu, de vida privada, interioridade e intimidade,
integrantes da gramática atual da solidão, podem ser historicamente datadas em sua gênese.
Apenas nas últimas quatro ou cinco décadas, falar de solidão se tornou algo comum ou
mesmo trivial, pois diz respeito ao próprio modo de vida cotidiano das populações urbanas.
Essa trivialidade é fruto dos mais diversos arranjos sociais e econômicos que se organizaram
de forma problemática desde o período dos Estados Absolutos.4
Centralizaremos o nosso estudo no segundo aspecto, pelas razões que apresentaremos
a seguir. Em primeiro lugar, a dupla abordagem do fenômeno exigiria um estudo mais amplo,
que ultrapassaria o escopo de uma dissertação de mestrado. Em decorrência disso, optamos
por investir em uma visão de conjunto, prodrômica ao tema da solidão psicológica, em sua
dimensão clínica. Em segundo lugar, discutindo os sentidos socio-historico-filosóficos da
solidão, pensamos em contribuir para o enriquecimento do vocabulário psicanalítico sobre o
tema. Ao tentar mostrar que a moderna solidão é indicativa de uma alteração nas
subjetividades, pensamos revalorizar sua importância clínica e contribuir para futuras
explorações teóricas no campo da metapsicologia. Acreditamos que o assunto permanece
precariamente tematizado na prática e teoria psicanalíticas. Ao que conhecemos, apenas
Winnicott enfatizou suficientemente o papel da solidão na dinâmica psíquica. Em terceiro
lugar, a discussão socio-histórico-filosófica nos permite sustentar o ponto de vista de que,
independente dos referenciais clínicos, a dimensão cultural da solidão é, por si só,
extremamente importante. Em outros termos, mesmo aprofundado o debate sobre a economia
subjetiva da solidão, pensamos que a crítica cultural do fenômeno é imperativa! Descrever os
efeitos clínicos da solidão atual não nos dispensa de analisá-lo criticamente por meio de um
panorama tão amplo quanto possível. Assim, adiaremos o aprofundamento de certas questões
pontuais que, naturalmente, vão surgindo. A solidão, da forma como vem sendo vivida e
percebida, a nosso ver, surge como um sintoma cultural responsável pela reprodução, no
nível individual, das contradições presentes na forma pela qual construímos nossas
identidades políticas, sociais, afetivas ou emocionais. Ela está, em suma, intimamente
associada ao desinvestimento do espaço público e à decadência da preocupação com o bem
comum.

4
Bauman (1998) se refere à oposição entre mundo pré-moderno e mundo moderno - que teve suas primeiras
expressões na crise do ancien régime - como o mais feroz dos conflitos históricos, que deixou como herança um
“medo agudo do vazio” e uma “ânsia nunca saciada por certeza e segurança.”
14

A experiência histórica desse século mostra a perda dos elos de ligação da vivência
solitária com situações circunscritas de voluntarismo ou marginalidade, contidas em universos
de significado socialmente reconhecidos. A crise das instituições tradicionais, tanto na esfera
pública - já esvaziada - quanto da esfera privada, trouxeram a solidão para o primeiro plano
das identidades pessoais. Os últimos refúgios no reino do desamparo humano – família,
Estado e religião - não se apresentam mais como instâncias provedoras de segurança. Parecem
estruturas agonizantes, cujos últimos estertores ainda são investidos de grandes expectativas,
diante do terror da ausência de pertencimento. Ao mesmo tempo, necessitamos de reflexão e
de atenção para com as alternativas de sociabilidade que venham oferecer novos horizontes
para a existência. Nosso propósito é sugerir que a solidão pode ser redescrita em termos de
sua participação na revalorização do espaço comum como propiciador de segurança e
proteção, embora continuando a ser uma das chaves das identidades pessoais. A solidão de
estar abandonado à ambivalência e ao sentimento de falta de âncoras pode ser um motor da
condição de estar junto e ser-para-o-outro, projetos políticos para o futuro, que, segundo
Bauman (1995), nos dão a chance de agir moralmente e de “até mesmo, algumas vezes,
sermos bons no presente.”

No entanto, a abordagem dos aspectos socio-históricos e políticos da solidão não


invalida nem exclui outras de caráter psicológico. O existente sentimental de maneira
nenhuma pode ser desconsiderado. Na medida do possível, procuraremos integrá-lo como
elemento constitutivo do ethos cultural investigado. Buscaremos mostrar como as emoções,
da mesma forma que as crenças políticas formadoras dos contratos sociais, são fundamentais
para o estabelecimento das fronteiras do eu. Apenas no contexto de vida de um eu - que está
entre outros eus - pode existir o sentimento de solidão. O fundamental é não permitir que o
interesse psicológico pela solidão apenas reproduza o modo de vida cultural que está em sua
origem. Acreditamos que todas as propostas transformadoras, terapêuticas ou outras, baseadas
exclusivamente no interesse pela intervenção nas formações psíquicas individuais, tendem a
fortalecer crenças responsáveis pelo surgimento da própria solidão como fenômeno cada vez
mais disseminado. Não que tais intervenções devam ser excluídas ou minimizadas no
repertório técnico e teórico do imaginário clínico. Pelo contrário, podem ser criativamente
integradas à dimensão societária do homem - inescapável - tanto na admissão de relações de
causalidade inconscientes, quanto na probabilidade de provocarem mudanças altamente
significativas nas vivências emocionais atuais do sujeito. Porém, sem as condições e
justificativas histórico-políticas e sem a análise dos ideais culturais, dificilmente se pode ser
bem sucedido na aproximação psicológica do fenômeno solitário.
15

Pelos motivos expostos, procuraremos observar a solidão de perto e à distância. De


perto, para não esquecermos o fundamental, isto é, a vivência pessoal dos que estão às voltas
com o problema, a maneira como falam dele, e o modo como são descritos pelas teorias da
subjetividade; à distância, na tentativa de não nos deixar hipnotizar pelo que estamos
querendo ver e analisar, ou seja, não perder de vista o contexto no qual o problema se insere.
Buscaremos, assim, combinar as visões gerais da história das mentalidades, da sociologia e da
teoria política, sem perder de vista a dimensão clínica da solidão, para alcançarmos maior
rendimento crítico. Por meio desses instrumentos, tentaremos encontrar matrizes histórico-
genealógicas do sentimento ou vivido da solidão contemporânea e buscar vocabulários a
partir dos quais possamos propor vias de redescrição da solidão. Estaremos atentos ao fato de
que nem sempre será fácil compatibilizar, num quadro teórico coerente, fatos históricos,
eventos político-sociais e fatos psicológicos. Muitas vezes, noções aparentemente próximas
do campo estudado, poderão se mostrar muito distintas quando se tratar de analisar o quadro
semântico ou a gramática em que se inscreve o termo solidão. Assim, por exemplo, as
descrições usuais do individualismo, da intimização e da privatização não possuem uma
relação de continuidade imediatamente auto-evidente com a solidão. E mais, essas correlações
de termos variam conforme cada época e a matriz teórica que as analisa5. Na medida do
possível, tentaremos preencher as lacunas, sugerindo interpretações que nos pareçam
aceitáveis, guardando a proposta de realizar um estudo prodrômico que busca uma visão de
conjunto.
Organizamos o estudo em quatro capítulos. No primeiro, chamado IMAGENS DA
SOLIDÃO, investigaremos sucintamente as formas históricas de estar só, desde as imagens
do cristianismo primitivo até a família oitocentista. Entretanto, a ênfase se dará no período de
formação do individualismo contemporâneo. Nesse intervalo, se organizam e estratificam as
características modernas sobre as quais repousarão os referentes contemporâneos de
insuficiência do eu, a nosso ver, responsáveis pela vivência progressivamente negativa da
solidão atual.
No segundo capítulo, IMAGENS DO EU, serão apresentados aspectos emocionais e
morais que compõem formas de organização do eu na contemporaneidade, com ênfase na
contradição moderna da abundância tecno-cultural que convive e determina uma precariedade
subjetivo-relacional. A construção das sociedade de consumo e de massas, alteraram
significativamente o perfil de pertencimento político e intersubjetivo da maioria dos
indivíduos. Apresentando tipos ideais de eu, buscaremos evidenciar, especialmente, a
diversidade inevitável de nossas experiências morais e emocionais, no sentido de sustentar

5
Ver Foucault, 1985; Dumont, 1993; Rorty, 1994.
16

alternativas não comprometidas com ideologias que já se provaram incompetentes, pois


criaram indivíduos, em sua maioria, desinteressados em éticas baseadas no compromisso
com os outros.

No terceiro capítulo, IMAGENS DA ÉTICA, detalharemos que ideais éticos nos


parecem atrativos para possíveis redescrições do sentimento de solidão. Questionaremos quais
formas de moralidade julgamos mais apropriadas à interpretação criativa da solidão. A prática
da promessa e do perdão, o compromisso com a solidariedade no universo da ação política,
terão papel de destaque na reorientação das reflexões em torno do tema, reposicionando
valores e oferecendo horizontes possíveis.

No quarto capítulo, REDESCRIÇÕES DA SOLIDÃO, retomaremos a questão


tradicional da responsabilidade moral de todo indivíduo - em sua solidão ontológica - como
via de ligação das éticas filosóficas com os novos vocabulários psicológicos e políticos. O eu
solitário, normalmente imerso em signos de insuficiência, poderia se utilizar de outros
referentes para validar sua trajetória vivencial. A experiência solitária pode ser ponto de
partida para um maior engajamento na realidade social, como também matriz de novos
processos de socialização, formas de estar junto não baseadas em cálculos racionais e
demandas explícitas e rigidamente codificadas.

Nas considerações finais, pensamos em propor a retomada do interesse psiquiátrico e


psicanalítico pela solidão, sugerindo um estudo que possa elucidar melhor a dimensão mais
especificamente psicológica da solidão. Constitui-se num desafio para a psicanálise, e outras
teorias da subjetividade que pressupõem intervenções terapêuticas, a tarefa de se adequarem
às configurações subjetivas contemporâneas, marcadas pelas rápida e imprevista mudança das
instituições sociais e dos arranjos de poder e violência do mundo em que vivemos. Nosso
estudo terá buscado, exatamente, um mapeamento inicial das configurações subjetivas que
possam apoiar esforços de melhoria das intervenções terapêuticas.

Vivemos em um cotidiano que “nos leva, sempre, a deparar com cínicos, delinqüentes,
homens violentos e lamentáveis narcisistas com a pose de homens de bem”, como opina
Castello (apud Costa, 1994, p.9). A figura do Outro, tornou-se, antes de tudo, sinônimo de
ameaça, uma presença a quem nos dirigimos com desconfiança. Como recuperar a
importância e a confiança nesse outro que dá colorido à vida com novos pontos de vista
possíveis? A atenção e a reflexão se tornam essenciais para a criação de novos contextos onde
possamos exercitar a fundamental característica política da ação conjunta, com vistas a fins
17

éticos e estéticos desejáveis, no mundo dos negócios humanos comuns6. Essa tarefa
não é exclusiva de filósofos e pensadores. A psiquiatria e a psicanálise existem também para
considerarem as realidades nas quais estão inseridas e dar suporte e conforto àqueles que
delas necessitam. Estar com o outro é característica fundamental dessas práticas, condição
para o seu sucesso; estar com o outro, marcou Lévinas (apud Bauman, 1998), é acima de tudo
responsabilidade e não obrigação contratual. Responsabilidade é, para ele, a “forma da
presença do outro para mim”, o modo pelo qual ele existe e, mais ainda, a minha própria
constituição como sujeito. Como disse Dostoiévski (ibid., p.210), “ somos todos responsáveis
por todos, por todos os homens perante todos, e eu mais que os outros.”

6
O mundo dos negócios humanos comuns seria a esfera da vida na qual nos orientamos e pensamos em termos
do senso comum. Marx, desafiando a tradição, imaginou que esta esfera - a filosofia, domínio “para os eleitos” -
poderia um dia ser acessível a todos os cidadãos, “a realidade do senso comum para todos”. (Arendt, 1979, p.51)
18

___________________ CAPÍTULO n

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“Todas as dores podem ser suportadas se


você as puser numa história ou contar uma
história sobre elas.”

Isak Dinensen
19

1.
FORMAS HISTÓRICAS DE ESTAR SÓ

Solidão deriva da palavra latina solitudinem, que quer dizer deserto, ermo, lugar
deserto e silencioso.(Bueno, 1968) Associa-se, portanto, à idéia de um lugar que pode ser
ocupado por alguém. O recolhimento, atitude de acesso a este lugar, se origina do latim
recolligere, recolher, reunir, juntar.(idem) Expressa, dessa maneira, um processo de
aproximação e não de afastamento. Recolher-se na solidão significava, nos primórdios da
civilização ocidental, se aproximar de um lugar desprovido de presenças físicas concretas, de
companhia humana objetiva, mas certamente povoado de ideais e desejos, repleto da
proximidade a uma outra dimensão.
Na língua portuguesa do Brasil atual, além da referência a um lugar ermo e
despovoado, pelo menos outros três sentidos são associados ao termo solidão: um estado de
alguém que vive ou se encontra só; um sentimento de alguém que vive em comunidade; e
uma falta de entendimento entre os que procuram compartilhar a mesma vida. É a história da
aquisição destes novos significados, bem como a situação atual deles, que iremos abordar
brevemente nesse primeiro capítulo.
A evolução histórica do conceito de solidão se apoia, sobretudo, na análise da vida
privada, outro conceito de origem complexa e delimitação incerta. A possibilidade de
observar os estados socio-emocionais ligados à ausência de companhia e ao sentimento de
isolamento começa a se delinear no final da Antigüidade, quando os registros históricos são
mais ricos e já permitem observações minuciosas sobre os costumes.7 Entretanto, a ausência
da categoria de eu como centro de uma esfera oposta à vida comum, fundamental para a
articulação com os sentidos mais estritos de solidão, nos levou a tratar do tema a partir da Era
Cristã.8 As formas de estar só, seus significados e repercussões, todavia, ganharam um sentido

7
Ver Veyne, 1989.
8
Ao falar de história da solidão, não postulamos a existência de nenhum tipo de identidade transhistórica
descritiva ou valorativa da noção. Nosso interesse é iluminar o campo de estudo do tema, recorrendo ao que, no
passado, tem semelhança de família com a experiência solitária de hoje. Muitos autores já se dedicaram à
discussão da existência ou não de referentes transhistóricos dos conceitos que determinariam a unicidade da
experiência. Nos desviaremos de tal percurso, adotando a perspectiva historicista e construtivista. (sobre a
discussão entre construtivistas e realistas ver Costa, 1995a e 1998)
20

mais próximo da experiência moderna apenas nos últimos quatro séculos. Somente quando as
pessoas começam a estar convencidas de possuir um mundo interior atraente e autônomo em
relação ao exterior, podem se definir “por contraste, ou mesmo por ruptura com os círculos de
vida social.” (Duby, 1990, p.529) Apenas a partir dessa virada histórica na concepção de
subjetividade, é possível atribuir à solidão um status de predicado constitutivo da natureza
humana, vivido pelo sujeito mesmo na companhia de outros. A solidão deixa de ser uma
situação excepcional experimentada no isolamento, como o era desde o final da Antigüidade.
Tornar-se-á associada à singularidade, como um contraponto da civilidade, numa época em
que a arte de representação de si visa mostrar a identidade que se deseja ser reconhecida no
espaço de convivência social. Assim, “a vida dos seres humanos fica cada vez mais dividida
entre uma esfera íntima e uma pública, entre comportamento secreto e público. E esta divisão
é aceita como tão natural, torna-se um hábito tão compulsivo, que mal é percebida pela
consciência.” (Elias, 1994, p.188) É a trajetória dessa aceitação irrefletida que procuraremos
traçar, sucintamente, adiante.

1.1. A Solidão como retiro

O isolamento na busca de Deus é o ponto inicial da experiência solitária ocidental.


É também considerado por nós o modelo para a descrição da solidão como retiro, que
pode incluir várias outras práticas ascéticas. Não desconhecemos as análises que buscam
demonstrar que há uma certa continuidade entre esses procedimentos e a tradicional atitude
dos cidadãos gregos de se retirarem do espaço público para exercitar o pensamento.
Entretanto, consideramos que a ênfase dos gregos no valor das identidades ligadas à vida
pública é um argumento suficiente para manter a importância da distinção. A experiência
teísta cristã, radicalmente nova, possui três aspectos que importa ressaltar: c o novo tipo
de experiência de si, baseada na crença do pecado original, se materializa na obrigação de
perseguir a própria salvação pelo exercício ascético individual.9 d o objetivo da ascese, o
encontro com um Deus que está além dos limites do mundo sensível, não pode ser
perfeitamente compreendido na perspectiva da existência terrena. e a busca de Deus é
indissociavelmente ligada à busca de si.
Essas características marcam o início de um processo de subjetivação no Ocidente
distinto das culturas orientais: a individualização e a valorização do eu. Nesse sentido,

9
Entre todas as questões individuais, a sexualidade assume o papel mais importante, e recebe, portanto, mais
atenção e mais controle no universo dos exercícios ascéticos.
21

Duarte (1995, p.79) afirma que a religião cristã teria “um papel axiador na formação de nossa
visão de mundo.” Em apoio de sua tese, o autor cita Mauss, que teria sugerido haver uma
notável continuidade no fio da tradição ocidental. Nela a “Pessoa cristã” teria deixado sua
marca decisiva, que se reflete mesmo em nossas modernas concepções filosóficas e
ideológicas.
No início do cristianismo, o recolhimento solitário fazia parte de um conjunto mais
amplo de éticas filosóficas e religiosas que se apresentavam como alternativas aos modelos de
conduta da Pessoa romana, integrada à civitas. Os pagãos, tanto nas colônias quanto nas
cidades, encontravam-se descontentes com os modos de vida correntes. Nessas circunstâncias,
a pregação cristã aparecia como uma resposta, por assim dizer, esperada. São Paulo e outros
missionários percorriam os povoados defendendo a fundação de uma comunidade que não
buscava diferenciar socialmente seus integrantes, todos considerados igualmente filhos de
Deus. O número de seus seguidores se tornou cada vez maior, consolidando e naturalizando,
aos poucos, a vocação cristã da “universalidade de um deus pessoal aliada à estranheza do
crente ao mundo e sua procura pela salvação no além.” (ibid., p.84) A mudança é radical em
relação ao paganismo greco-romano. A pessoa cristã é, ao mesmo tempo, um “indivíduo-em-
relação-a-Deus” e um “indivíduo-fora-do-mundo.”10 A idéia de alma individual, universal e
eterna, aliada ao monoteísmo transcendente, constitui a base da atitude cristã de
distanciamento do mundo comum.11 E a distância desse mundo é exatamente a contraface da
proximidade de um outro, que os primeiros solitários vão desejar alcançar.
Os monges do deserto ilustram bem o caráter dessa primeira experiência histórica de
solidão individual. Juntos, na solidão dos desertos do Egito, se isolavam do mundo e, ao
mesmo tempo, se isolavam entre si, na busca da obediência completa a Deus e da
transparência total ao outro. Nesse período de disseminação dos ideais e da doutrina cristãos,
a solidão possui uma aura de altivez, elevação espiritual e é signo de escolha ativa de vida.
Ela significa, sobretudo, aproximação de Deus, por meio de atos que buscam a concordância
da vontade humana com a vontade divina. O isolamento busca a santidade, a chegada ao lugar
eterno da glória divina, onde não havia submissão, dor ou morte. Para viver nele, não
importam os sacrifícios e os sofrimentos impostos a si mesmo na passageira vida terrena.
Costa (1998) sugere que essa atitude de distanciamento do mundo esteve baseada na idéia de
um amor ao próximo sem angústia, sereno. O amor caritas é voltado para o que não morre, e
não para os objetos do mundo, como a cupiditas. No amor caritas, “o homem renuncia à

10
Noções de Troeltsch e Dumont, respectivamente.
11
“É essa noção de pessoa que podemos ver se constituir no cerne da teologia agostiniana.” (Duarte, 1995, p.85)
22

escravidão do mundo, encontra Deus em seu interior e recupera, enfim, a liberdade.” (ibid.,
p.93) Devemos amar em nós e no outro o que de eterno existe em cada um.
Entretanto, embora altiva, a solidão cristã é ainda excepcional. Ela só é alcançada
por meio de uma ascese espiritual, que nem é considerada como diretamente constitutiva
da natureza humana original nem é recomendada para todos: “Ao próprio São Paulo não
agradava que todos os cristãos fossem continentes.” (Duarte, op.cit., p.87) Em geral, um
matrimônio ordeiro era preferível a um celibato inoportuno. A questão crucial era a
instituição da experiência interior, individual, como matriz de uma obediência auto-
imposta e, como tal, mais eficiente. Como destaca Duarte, “mesmo concebendo o ‘eu’
como algo negativo, essas práticas não procuram anulá-lo como uma ilusão (como é a
experiência da iluminação budista),” (ibid., p.96) mas afirmam sua realidade e investem na
necessidade de seu conhecimento pela confissão.
Além da busca de serenidade de espírito ou do contato com a graça divina, a solidão
monástica ou secular também buscava desenvolver a vontade dos crentes, na luta contra o
mal. Como assinala Arendt (1995), o “eu quero” individual que responde ao “tu deves” da lei
de Deus, só tem sentido pela crença na existência de uma contra-vontade também individual –
marca do pecado que habita em todos – que deve ser superada e vencida em sua
desobediência. A desobediência é considerada, nesse período, “o pecado mortal par
excellence.” (ibid., p.237) O isolamento penitencial é, assim, outro fator que impelia os
indivíduos à ascese solitária. O corpo é o lugar onde se alojam os impulsos sexuais
desobedientes que põem em risco a castidade. Na teologia agostiniana, que se tornou
dominante na cultura ocidental, isso pode ser claramente demonstrado. O movimento
autônomo dos órgãos sexuais - manifestação indesejável do corpo - era a marca da impotência
da vontade humana. O homem impotente - entregue à ereção involuntária - é resultado do
pecado original cometido por Adão de querer fazer da sua vontade algo autônomo e livre com
respeito à vontade de Deus. O indivíduo comprometido com Deus, transformaria seu corpo,
até fazer desaparecer nele as marcas da sexualidade. Na solidão periodicamente instituída, os
cristãos buscavam se purgar da marca indelével do pecado. A redenção era o verdadeiro
objetivo da solidão cristã.12
Com a ascensão da igreja à posição de religião oficial, a queda do Império Romano e
os demais desdobramentos sociais e políticos dos primeiros séculos da era cristã, os ascetas,

12
Costa (1998, p.95), retomando Hadot, esclarece que “os exercícios espirituais podem ser interpretados como
passos históricos rumo à intimização do sujeito ou à hermenêutica do desejo individual. Mas, em seus
fundamentos explícitos, eram pensados como etapas na ‘superação de si em direção da universalização’ e não
como fixação do homem a seu universo de sensações, sentimentos ou pensamentos, pecaminosos ou puros. Se a
ascese agostiniana culminou, portanto, no interesse pela individualização do desejo sexual do sujeito, isso não se
deve ao pensamento de Agostinho, mas a razões históricas ainda não elucidadas.”
23

celibatários de grupo e estetas da virgindade passaram a ser vistos de maneira diferente. Suas
atitudes de isolamento perdem muito em relevância e atratividade. Raramente as figuras
isoladas e solitárias da Idade Média eram tidas como admiráveis ou heróicas. No século V, o
projeto de solidificar a Igreja como a religião do Estado Romano, ressalta Duarte (op.cit,
p.91) acentua e fortalece a preocupação com o coletivo, visível na organização de
congregações em torno das basílicas cristãs.
A época feudal, como mostra Duby (1990), tem como característica a ausência de
espaço para a solidão individual. Tudo era feito pelo menos na companhia de um outro, e, de
preferência, fora da clausura doméstica. Predominavam os grupos, as associações, familiares
ou não, localizados em torno do lar ou se deslocando nos espaços públicos. Os segredos eram
partilhados por todos os membros e a independência era uma independência coletiva.
Qualquer um que tentasse se isolar do estreito e abundante convívio adquiria status de
contestador e era visto com suspeição, um estranho, que, por se afastar do grupo, se tornava
vulnerável aos ataques inimigos. Na medida do possível, deveria ser reintroduzido a uma
comunidade ordenada, mesmo que pelo uso de força. Dessa maneira, as modificações
instituídas pela ética cristã se acomodavam à sociedade medieval, ao princípio romano da
utilitas publica prefertur utilitati privatae.13 (Lukes, 1990, p. 597) Na Idade Média, o bem-
estar do todo era considerado mais importante que o bem-estar individual: “O indivíduo não
existe para sua própria causa, mas pela causa de toda a sociedade”14 (Ullmann apud Lukes,
idem).
O início do segundo milênio anuncia modificações relevantes na estrutura política e
social, decorrentes do fenecimento do sistema econômico medieval. Os homens passam a
poder circular pelos territórios sem maiores riscos, indo aonde desejavam, mesmo sem
companhia. Aos poucos, a nova ordem dispensa a necessidade de proteção. Não havia mais
razões para a permanência imperativa dentro dos muros dos feudos. Segundo Duby (1990),
nas últimas décadas do século XI, o Ocidente foi tomado pela condução da luta contra o
demônio, a sós. Destacaram-se as comunidades cistercienses, que pretendiam retornar às
recomendações de São Bento, afastando-se dos tumultuos do mundo, mantendo os princípios
da vida comunitária e defendendo a integridade de uma solidão rude em torno das abadias. No
século XII, novamente, era legítimo buscar a santidade no combate singular do isolamento
penitencial e na resistência às tentações. O silêncio, o retiro, o encerramento, a privação,
voltavam a fazer parte de um projeto valorizado de ascenção espiritual: “Atravessar,
voluntariamente ou não, o perigo, a tribulação maior que era a solidão, parecia, para os mais

13
Public utility is preferable to private utility; ‘A utilidade pública é preferível à utilidade privada.’
14
Individual did not exist for his own sake but for the sake of the whole society.
24

fortes, para os eleitos, a ocasião de caminhar para o melhor.” (ibid., p.505) Os monges
solitários, os eremitas15 e especialmente os cavaleiros errantes16, deram início ao movimento
civilizatório de liberação da pessoa do gregarismo medieval sufocante, centrado no domicílio.
O declínio da cultura da Alta Idade Média, também marca o crescimento da
experiência de auto-suficiência, em detrimento da obrigação tradicional de cuidar dos
fracos. No espaço da desordem afetiva e da angústia solitária, começaram a poder buscar
refúgio, além dos penitentes, criminosos e heréticos, aqueles que a paixão transportava fora
do senso, na desmedida. Tristão, por exemplo, arrastando Isolda sob efeito do veneno que os
enlouquecera, mergulha com ela na selvageria da floresta, numa demonstração de vigor da
solidão apaixonada. Os jogos amorosos da Sociedade de Cortesia, a vivência da solidão a dois
por parte dos amantes - oculta, silenciosa, discreta e recolhida - retomam as características de
uma experiência repleta de significados e objetivos. De forma geral, podemos considerar que
não houve deslocamentos substanciais nas representações da solidão entre o cristianismo
primitivo e a sociedade do amor cortês, apesar dos séculos de feudalismo que desvalorizavam
fortemente a experiência individual. A Sociedade de Cortesia, inclusive, reforça a antiga
tradição do “eu” cristão e produz, no vocabulário amoroso que criou, os primeiros sinais do
que vamos conhecer mais tarde como “intimidade”.17
Como foi dito, a experiência da solidão como retiro é o referente mais distante do mal-
estar solitário da atualidade. Nos próximos dois ítens, analisaremos diretamente o período dos
últimos quatro séculos, determinantes na construção dos significados atuais da solidão.

1.2. A Solidão como experiência constitutiva do eu

No período renascentista de ascenção da burguesia, ocorrem importantes


metamorfoses relacionadas ao tema da solidão. O movimento de intimização, cujas origens se
localizam no vocabulário amoroso da Sociedade de Cortesia do século XII, progride em sua
difusão. Culminará na introjeção absoluta de modos individuais, na valorização exacerbada do
particular, quando advir a crise da Sociedade de Corte do século XVIII.
No período imediatamente posterior ao fim do feudalismo, o citadino burguês
permanece ainda muito sensível à ideologia do bem comum, na qual a utilidade pública se

15
Esta experiência era contestada pela igreja oficial como uma maneira dos indivíduos, heréticos, amarem a
solidão não por desejar fazer uma boa obra e sim por desejar orgulhosamente ter liberdade de sua própria
vontade. O eremita está só, incontrolado, subtraído à constrição dos rituais.
16
A literatura cavaleiresca cumpriu uma função pedagógica, apelando à superação de si mesmo, em paralelo
com a mística cisterciense, convidando o indivíduo a provar-se, passo a passo, no silêncio e na solidão.
17
Duarte (1995) acredita que apenas no intervalo temporal entre o Renascimento e a Revolução Francesa
aparecem de fato as demonstrações de uma grande ruptura, com a consolidação de uma nova ordem que renega a
tradição anterior.
25

sobrepõe à comodidade privada. É honroso participar como protagonista da vida pública. A


atividade, a reflexão produtiva no interesse da ordem familiar e do grupo deixam pouco lugar
para a vida privada dos homens importantes, encarada como egoísta e fútil, pois não há
reputação a conquistar fora do público: Fama non est nisi publica.18 O início da expansão do
espaço privado, pelo estímulo à criação de um mundo interior dentro de cada cidadão, não se
constitui ainda como impedimento à manutenção dos ideais públicos e à preocupação
comunitária. O desinvestimento nessas esferas só será verificado posteriormente.
Na Idade Média, tarefas muito específicas não eram comuns nas comunidades de
vassalos feudais, especialmente no que não tinha relação com o trabalho. Na família burguesa
do início do século XV, ao contrário, cada membro já possui uma tarefa. Reúnem-se apenas
para comer e conversar. A diversificação progressiva das funções se manifesta no fato de que
os filhos começam a deixar o lar, momentaneamente, em busca de emprego nas cidades. Os
documentos da época mostram, simultaneamente, os sinais de um aumento no gosto pela
intimidade pessoal, no próprio seio da família, ou seja, sinais de “uma necessidade (nova?) de
se isolar no lar sem o deixar, servindo o privado familiar de moldura a um privado pessoal.”
(Roncière, 1990, p.216) O quarto passa a ter uma importância maior dentro das habitações e a
ser abrigo e retiro para homens e mulheres. É o lugar do segredo, onde marido e mulher
evitam se incomodar mutuamente. O privado materno é local de retiro, por vezes imposto, por
vezes escolhido. Serve de refúgio místico contra o mundo, espaço de recuperação da saúde e
também lugar dos sentimentos. O espaço privado paterno, o studiolo, é o lugar designado ao
recolhimento do pater familias. Ali se dá o reencontro com sua singularidade. Nos quartos
privados se encerram de bom grado poetas, humanistas e devotos. Mesmo no século XVI, o
“compartimento de fundos” ou “quarto dos pensamentos” é ainda o lugar do bom uso civil da
solidão, que supõe vontade e capacidade para recolhimento.
A expansão progressiva da economia amplia as oportunidades de enriquecimento
rápido no espaço da cidade, com mobilização e valorização progressivas da iniciativa
individual independente. Observam-se reflexos disso em várias dimensões da cultura, desde o
florescimento da literatura autobiográfica até a modificação da participação religiosa, que de
uma passividade submissa, passa a uma exploração mais ativa da própria consciência. A
noção de pecado, por exemplo, se desloca do ato para a intenção. Como assinalou Duby
(op.cit, p.508), os procedimentos de regulação moral se transportam definitivamente para o
interior do ser: “O eu reinvindica uma identidade no seio do grupo, o direito de deter um
segredo, distinto do segredo coletivo.” Define-se assim, progressivamente, o indivíduo e sua
vulnerável e complexa intimidade. Esse indivíduo rompe com os círculos da vida social e cria

18
‘Fama não é senão pública.’
26

um outro tipo de investimento político no espaço coletivo, baseado na vantagem e no


interesse pessoal.
Entretanto, abandonar a cidade e a vida pública em busca de solidão e afirmação
identitária continuava sendo considerado empobrecedor. Dizia-se que o retiro acarreta a
inquietude. “A consciência de si, nascida de um recuo, pode conduzir a um questionamento
radical da ordem: aqueles que se arriscam a abandonar seu lugar estão, nos caminhos e nas
solidões, fora de estatuto.” (Braunstein, 1990, p.529) O homem devia aprender a conviver e a
suportar a solidão em meio ao ruído. Nessa filosofia burguesa urbana, vemos os primeiros
indícios do atual “compromisso” do indivíduo solitário com a manutenção da máquina
econômica. O novo modelo de produção e distribuição de riqueza não devia ser ameaçado
pela falta de mão-de-obra. Assim como a Igreja, a classe burguesa quis garantir a coesão de
seu “rebanho” pela crença na idéia de que a verdadeira liberdade é o pequeno exercício da
privacidade, a leve alegria do contraste entre o íntimo e o mundo. O recolhimento em si
mesmo começa a dispensar inclusive o quarto isolado, que não deve ser procurado como lugar
ideal, pois “está em cada um de nós, se sabemos erguê-lo e ali nos retirar. Elevar-se em si
mesmo e fechar as portas ao mundo é criar esse ‘íntimo silêncio da alma’ [...] pode-se estar só
mesmo no meio dos outros, só com Cristo.” (ibid., p.606)
Esse novo senso de intimidade será uma das principais molas propulsoras da vivência
angustiada e estéril da solidão moderna, quando a ela se juntarem as características de uma
cultura em que os vínculos e os compromissos são pouco mais que utopias risíveis. Na
multidão das cidades, a proximidade terá um efeito paradoxalmente distanciador das pessoas,
aprisionadas à sua individualidade e iludidas sobre o seu valor na engrenagem da vida, que,
cada vez, é menor. No exercício cotidiano do contraste sutil entre o íntimo (privado) e o
mundo (público), instigado pela ideologia burguesa, está o embrião das preocupações que
mais tarde vão retirar definitivamente o homem comum da vida política, para encerrá-lo na
pequenez de sua vida radicalmente individual.19
No século XVII, surgem os elementos que estabilizarão, de uma vez por todas, as
mudanças subjetivas iniciadas no movimento de intimização da vida burguesa. Consolida-se o
deslocamento de uma sociedade ordenada em torno de solidariedades comunitárias, por força
dos vínculos de linhagem e vassalagem, para uma outra forma de sociedade, a da vasta
população anônima. No regime feudal, todos se conhecem e se vigiam, num espaço que, no

19
A medida que as individualidades se privatizam, abre-se mais e mais espaço para a massificação e a
progressiva substituição da identidade de cidadão - que participa - pela de consumidor - que sabe se movimentar
no mercado de produtos e selecionar os que são “adequados” à sua identidade massificada. A Sociedade de
Massas criará uma falsa sensação de pertencimento, através de prática de uma aparente democracia legítima, que
é , na verdade, um principado democrático, uma forma disfarçada de oligarquia.(ver Ortega, 1998b)
27

sentido moderno, não é público nem privado; na nova ordem burguesa, as pessoas não se
conhecem e procuram se proteger dos olhares dos outros no recolhimento familiar – núcleo
do privado - e na valorização de estilos de vida singulares.20 Esses elementos de mudança se
organizaram em estruturas estáveis que fizeram triunfar o individualismo dos costumes,
baseado na conquista da intimidade pessoal. Um exemplo desses novos costumes, paralelo ao
deslocamento da comunidade para a família, é a incitação ao prazer da solidão, geralmente
partilhada com um amigo em especial, “um outro eu”, por quem se nutre “um sentimento
mais polido, um relacionamento tranqüilo, uma prazerosa fidelidade, com toda uma gama de
variedade e de intensidade.”21 (Ariès, 1991, p.12) Essa solidão, na verdade, não costumava ser
repartida com alguém; o contato com o amigo, geralmente feito por carta, apenas simulava
um diálogo interno do sujeito consigo mesmo.
A força da noção de eu, de unidade indivisível, foi reforçada, posteriormente, pelas
idéias românticas de humanidade, beleza e autenticidade individual. Duarte (1995) destaca
o período do romantismo alemão como uma das máximas expressões da interioridade
ocidental. A teoria da absoluta singularidade do espírito individual, se tornou um dos pilares
mais sólidos do individualismo ideológico. A prática social do isolamento passa a ser
justificada como aquilo que realiza, na plenitude, a verdadeira natureza do sujeito. Deixa de
ser apenas um costume, um hábito de individuação com justificativa e objetivo. O eu
romântico do século XVIII começa a experimentar a idéia da liberdade de uma forma
diferente dos “eus” descritos até aqui. O esforço do trajeto pessoal é um objetivo que se
justifica em si mesmo. Nesse contexto, ocorreu um paulatino deslizamento do significado
original da solidão – participativo e construtivo – que modificou o impacto afetivo de sua
vivência. Tornou-se cada vez mais difícil a possibilidade de percebê-la como um sentimento
voluntário integrador, e, portanto, acessível à reflexão e à deliberação daqueles que o
experimentam. Veremos adiante o que se perde com a mitificação compensadora do eu como
ser cheio de mistérios e segredos, ao passo que, na verdade, se torna apenas mais uma
presença descartável a ser manobrada na multidão das cidades.
Alguns autores observaram que os pródromos do moderno individualismo
ideológico se encontram na Reforma protestante.22 Embora sem negar essa filiação, outros,

20
Ariès (1991) assinala que este fenômeno é bem mais específico da vida urbana das elites, já que, no início do
século XX, ainda existiam exemplos de sociabilidade coletiva e comunitária na zona rural e também nas classes
populares.
21
Ariès (1991) chama a atenção para o fato de que existiram também grupos de convivialidade que funcionavam
como um meio-termo entre a “solidão-terrível” e a “multidão-tumultuada”. Algumas pessoas eram escolhidas
para se reunir, ler cartas, conversar, escrever, numa comunicação que evitava o “tédio da solidão” e o “peso da
multidão”. Estes grupos ainda não são as famílias, núcleos totalmente estranhos a este primeiro momento de
privatização.
22
Ver Marcuse apud Costa, 1985.
28

entretanto, preferem situar o nascimento do individualismo no apogeu e declínio do Antigo


Regime. No século XVIII, Luís XIV obtém um enorme controle sobre a nobreza citadina,
mas sobretudo rural, reunindo-a no espaço delimitado da Corte. A pressão da observação
constante a qual os indivíduos passam a estar submetidos e a restrição implícita na
atividade de representar papéis, precipitaram a descoberta de um refúgio dentro de cada
um. Ariès (ibid.) apresenta a Sociedade de Corte como o lugar do apogeu da solidão
vinculada à descoberta atraente de um mundo privado interior. Aos poucos, esse mundo
interior passa, de consequência da força opressiva do controle externo, à prerrogativa
daqueles que desejavam alcançar reconhecimento social. Na solidão, as pessoas podiam
experimentar os sentimentos e emoções cuja intensidade eram incompatíveis com os
interesses do convívio da Corte, e podia por em risco a posição de cada um no jogo de
poder. A singularidade descoberta em si e nos outros, e que não podia ser abertamente
exposta, suscitava gestos inéditos e dependia do hábito do recolhimento solitário para se
exprimir. Manifestava-se nas “práticas da escritura, quer visavam à miúda contabilidade do
cotidiano ou ao autoconhecimento através do relato autobiográfico ou da confissão íntima,
quer visavam a confissão romanesca.” (Chartier, 1991, p.167) A esse respeito, Soares
(1997) sugere que na literatura da época, dotada de um grande “efeito de verdade”,
observa-se a delimitação do eu e da personalidade como traços distintivos das relações.

“Para tudo o que faltava na vida diária um substituto foi criado nos sonhos, nos livros, na
pintura. De modo que, evoluindo para se tornar cortesã, a nobreza leu novelas de cavalaria;
os burgueses assistem em filme à violência e à paixão erótica. Os choques físicos, as guerras
e as rixas diminuíram e tudo o que as lembrava, até mesmo o trinchamento de animais mortos
e o uso de faca à mesa, foi banido da vista ou pelo menos submetido a regras sociais cada vez
mais exatas. Mas, ao mesmo tempo, o campo de batalha foi, em certo sentido, transportado
para dentro do indivíduo. Parte das tensões e paixões que antes eram liberadas diretamente
na luta de um homem com outro terá agora que ser elaborada no interior do ser humano.”
(Elias, 1993, p.203, grifos nossos)

Elias mostrou, em detalhes, como ocorreu o processo de internalização dos


sentimentos. Na Corte, a singularidade e a solidão se tornam o contraponto da civilidade.
A civilidade é a arte de representação de si que visa exibir a identidade que se deseja
reconhecida, porquanto aceita pelo código da vida aristocrática. Costa (1998) acentua o
papel das práticas de autocontenção emocional no enorme desenvolvimento da intimização
e singularização, baseando-se nos estudos de Elias sobre a gênese e o funcionamento da
vida de corte:

“Para o autor, a vida em corte, com suas exigências de civilidade, obrigou os sujeitos a um
controle de si até então desconhecido. A civilização se deu a expensas de um expurgo de
29

expressões violentas de sentimentos agressivos e amorosos. A necessidade de permanecer


próximo do rei levou os nobres rurais, sobretudo, a abrirem mão, aos poucos, da
manifestação do que sentiam ou pensavam em favor de condutas taticamente mais adequadas
à obtenção dos favores reais e à manutenção da posição de prestígio entre os pares. O
processo civilizatório ou de curialização da nobreza, como o chamou Elias, produziu, assim,
um duplo movimento. De um lado, transformou os nobres em cortesãos, fazendo-os ver na
vida da corte o próprio sentido da vida; de outro, provocou uma reação à dureza das regras
desse mesmo modo de vida, que encontrou na literatura sua mais viva expressão.” (Costa,
1998, p.63)

A solidão é o resultado do aniquilamento da espontaneidade de expressão dos


pensamentos e sentimentos na Sociedade de Corte setecentista. Pela primeira vez na
história, a solidão deixa de ser concebida como um estado contrário à condição humana -
que só é buscado para o alcance de determinados fins - e passa a ser um fenômeno
socialmente reconhecido como natural e até desejável em certos contextos. Está justificada
ideologicamente por três processos distintos e complementares: a intimização, a
romantização e a hierarquização no esquadrinhamento social. Aparecem, nessa fase, as
primeiras pessoas solitárias, no sentido ao qual estamos familiarizados ainda hoje: pessoas
intimamente descontentes, feridas e ressentidas, independente de estarem rodeadas de
pessoas e de tarefas. Não escolheram a solidão para alcançar algo que considerassem bom.
Desde muito cedo aprendem a lidar com ela por considerá-la natural, constitutiva do eu.
Aceitam sua existência de forma não reflexiva. Independente de como se sentem “por
dentro”, independente do sucesso que tenham na superação dos sofrimentos interiores,
sabem que devem manter esses sofrimentos a parte do mundo comum, conservando a
aparência adequada a cada situação de convívio no espaço coletivo público:

“Em outras palavras, com o avanço da civilização, a vida dos seres humanos fica cada vez
mais dividida entre uma esfera íntima e uma pública, entre comportamento secreto e público.
E esta divisão é aceita como tão natural, torna-se um hábito tão compulsivo, que mal é
percebida pela consciência.” (Elias, 1994, p.188)

A solidão é, sem dúvida, uma das características essenciais para a compreensão das
transformações ocorridas entre os séculos XVI e XVIII23. No período referido, ocorreu um
processo de privatização nas sociedades ocidentais que criou expectativas e práticas novas
no que concerne à relação do sujeito consigo mesmo e com o outro. O segredo e a solidão
são categorias correlatas, cultivadas no espaço de sociabilidade restrita que se torna cada
vez mais presente no imaginário social. Mesmo quando a Revolução Francesa destitui o
sistema de Corte em seus maneirismos teatrais e sua hierarquização monárquica, a

23
Além da solidão, Ariès enumera outros fenômenos relevantes ao processo de transformação social entre os
séculos XVI e XVIII: a civilidade, o autoconhecimento, a amizade, o gosto e a comodidade. ( ver Chartier, 1991,
p. 165).
30

intimidade e a interioridade estão definitivamente absorvidas no modo com as pessoas


pensam sobre si mesmas. Algo, entretanto, tinha que regular essas dimensões subjetivas
numa sociedade subitamente posta sob a égide dos ideais de liberdade, igualdade e
fraternidade.24 Esse foi o trabalho de Rousseau, ao criar o ideal da vida familiar. O atraente
domínio da família, fruto da elaboração dos ideais ideológicos individualistas, será uma
das pedras de toque do individualismo sentimental, que está na raiz da solidão
contemporânea.

1.3. A Solidão como desvio

Rousseau foi o principal teórico da família como elemento fundamental do


contrato social, criando, desse modo, o dispositivo institucional necessário à continuidade
do processo de individualização burguesa. Em sua teoria, a família ocupava um lugar
nitidamente separado do espaço público e que veio a se expandir à custa da desvalorização
da sociabilidade anônima da rua.25 O público, completamente separado do privado, é
apenas o local de encontro de pessoas que não se conhecem e que convivem sem maiores
interesses comuns. O privado, tendo a família como centro, absorve todas as preocupações
do indivíduo que acolhe, defende e transforma em alvo de todos os investimentos. 26 Com
a família, não se está mais sozinho. Esse espaço de sociabilidade restrita, que mantém e
insufla a esfera privada, é mais pleno e prazeroso que a esfera privada na Corte. A família
é uma forma de se redimir, escapar da solidão.
Embora o fenômeno de sociabilidade absolutamente centrada na vida familiar ainda
seja restrito a certas classes sociais ou regiões urbanas ao longo da maior parte do século
XIX, a solidão, como sua negação, passa a ser percebida gradativa e definitivamente como
algo desaprovado. É um atributo dos marginais, desviantes e contestadores. Seu exotismo
não tem nada de heróico ou admirável. Os que não tem vida privada familiar, os solitários,
são excluídos e normatizados27, segregados pela sociedade e institucionalizados para
tratamento. Têm uma existência moral e material complicadas: “Os solteiros são

24
A fraternidade, segundo Ortega (1998c) não é um ideal original do Iluminismo, como liberdade e igualdade.
Foi introduzido na Constituição francesa apenas em 1848. O autor acredita que o discurso supostamente
universalista da fraternidade, ao contrário dos outros dois ideais, esconde uma lógica particularista, agressiva,
intolerante e normatizadora. Valorizaremos, adiante, apenas seu sentido “fraco”, relacionado à solidariedade.
25
Para um estudo detalhado das idéias de Rousseau, ver Soares, 1997.
26
As figuras sociais do pai e da mãe deixam de ser apenas elos na cadeia das linhagens ou das gerações para se
tornarem tipos morais e psicológicos autônomos.
27
Normatização refere-se aqui aos mecanismos de exclusão não regulados pelo Estado, ou seja, instituídos pela
família e especialmente pela ciência. Os solitários internados nos hospitais psiquiátricos, por exemplo, eram
praticamente destituídos de sua humanidade e não apenas privados do exercício de cidadania.
31

considerados frutos secos.” (Perrot, 1991a, p.291) Alguns movimentos de contestação da


vida privada burguesa familiar são considerados, no máximo, como esteticamente
inovadores. Eticamente, tem sempre consistência duvidosa. A Boêmia28 e o dandismo,29
por exemplo, não alcançam expressão, respeitabilidade e muito menos reconhecimento
social.
O modelo familiar normativo do século XIX cria definitivamente zonas de exclusão
nas quais a felicidade é incompleta e o direito à privacidade é incerto.30 Os solteiros, ou
seja, aqueles que não constituíram família, representam esses excluídos. Por volta de 1870,
o número deles é extremamente grande, e a maioria é formada pelas mulheres viúvas. Os
homens casam mais freqüentemente e mais tardiamente que as mulheres. Para eles, o
casamento é índice de respeitabilidade e possibilidade de uma vida cômoda. Os pais de
família se transformam numa espécie de herói moderno. Para as mulheres, casar é
condição fundamental de existência digna, sem o que se tornam “anormais”,
“desclassificadas”. “Celibatários: todos egoístas e depravados. Deviam ser obrigados a se
casar. Preparam para si uma velhice triste.” (Flaubert apud Perrot, idem).
Escapar das banalidades da vida burguesa familiar é ser sozinho, e essa solidão
nunca é tão sentida quanto aos domingos, quando as famílias ocupam todo o espaço
público. A condição de celibatário – aceitável enquanto temporária - é vivida de forma
muito diferente por rapazes e moças. Para essas, é tempo de esperar o casamento; para
aqueles, é um tempo pleno, valorizado, tempo para viajar, ter amores passageiros, exercitar
a camaradagem, um período de liberdade e aprendizagem, uma fase de educação
sentimental e carnal onde tudo é permitido. Só não pode durar muito. Mais difícil e sofrida
é a situação das mulheres sem parceiro. Para elas, a solidão duradoura, estar fora do lar e
do casamento, não viver sob a proteção da mãe ou do marido, é não ter salvação: “As

28
A Boêmia é um modelo diametralmente oposto à vida privada da burguesia. Dela participam os solteiros
temporários e os artistas. Eles não tem domicilio certo, não tem bens e sempre estão cheios de dívidas. A vida é
noturna, sem compromissos de horário e se dá nos salões, bares e avenidas. Conversar é a principal ocupação.
Amores múltiplos e partilhados com os companheiros são regra. Infidelidade é princípio. Apenas o amor requer
algum segredo e só ato sexual é inteiramente privado.
29
O dandismo britânico é antiigualitário e politicamente mais conservador que a Boêmia. É um movimento que
exacerba a diferença numa época de massificação social e tem a intenção de recriar uma aristocracia de
temperamento e estilo. Trata-se de uma ética de essência aristocrática, uma moral anticapitalista e eventualmente
ascética, que concebe uma vida de lazer e dispensa o trabalho e o dinheiro como objetivo, apesar do gosto pela
ostentação e pela toalete. Os dândis são pessoas preconceituosas, anti-semitas, que protegem sua individualidade
por trás da máscara da aparência e alimentam o gosto pela ilusão e pelo disfarce. O casamento é o pior dos
cativeiros. A procriação e os filhos são insuportáveis. As mulheres são desprezadas e representam para eles as
redes da escravidão. O prazer carnal com elas deve ser apenas comercial. “A mulher é o contrário do dândi: ela é
natural, ou seja, abominável.” (Flaubert apud Perrot, 1991a, p.298)
30
Estas prescrições tem talvez sua máxima representação nas construções moralizantes de Rousseau, que
influenciaram definitivamente a sociedade oitocentista. Soares (1997, p.41) esclarece que o homem, ao ser
considerado naturalmente imperfeito, “necessitaria do outro para sentir-se completo. A única maneira viável de
maximizar a felicidade humana seria, então, através do amor. O homem, ao optar por ficar sozinho, estaria
condenado a não ser feliz.”
32

mulheres são feitas para esconder sua vida.” (Simon apud Perrot, ibid., p.298) Quando
sozinha, uma mulher desperta reprovação, desconfiança e zombaria. O homem solteiro é
apenas risível; a solteirona é lastimável, alvo de todos os estereótipos. Entretanto, o
número de mulheres solteiras é imenso desde a Idade Média, devido a múltiplos fatores.31
Nos meios populares, a sorte delas é muito precária, sem nenhum amparo nem
reconhecimento legal de seu trabalho. Na velhice, estão sem aposentadoria e vivem
esquecidas nos asilos, pardieiros e casas de misericórdia.
Não é normal, a certa altura da vida, não ter uma parceria amorosa estável,
legalizada, fiel e fértil. Todo aquele que não sabe, não quer ou não pode constituir família
ou viver em seu seio, recebe da sociedade oitocentista o estigma de solitário, uma pessoa
deficiente, menor. Existe um código tácito que permite reconhecer quais os sinais de
solidão, vergonha e pobreza.32 Solteiros e solitários são enquadrados em instituições
reguladas por princípios de segregação sexual e que funcionam rigidamente como a igreja
e o exército. Nesses espaços deve-se garantir um olhar inquisitorial sobre os internos para
coibir as promiscuidades: “notemos que o isolamento no século XIX é uma terapia
generalizada, desde o asilo psiquiátrico (cf. Gaucher e Swain) ao sanatório (cf. P.
Guillaume). ‘O gênio da suspeita veio ao mundo’, diz Stendhal.” (Perrot, ibid., p.287) Os
solitários vagabundos e mendigos são os mais suspeitos entre todos, numa sociedade que
faz do domicílio a verdadeira condição de cidadania. O vagabundo ameaça a família e a
saúde, e deve ser controlado, inclusive por leis que protegem a comunidade. Ele morre
mais cedo, por esgotamento ou suicídio, fruto de sua não integração social.
A reclusão voluntária existente até meados do século XVIII, apresenta
diferençasundamentais em relação à reclusão imposta que surge como penitência e
remédio na lei francesa de 1875. O encarceramento individual promulgado por esta,
transforma a defesa da privacidade das relações dentro das instituições numa luta
constante. Os internos desenvolvem táticas destinadas a contornar os regulamentos que
mantêm a solidão pela regulação do convívio mútuo, especialmente quando incluem a
sexualidade. Os resultados destes tratamentos, controles e punições são outros transtornos
e distúrbios, como a morte do desejo e a perda de autonomia das pessoas submetidas à
normatização carcerária ou hospitalar. A diversidade dessas instituições totalitárias é
enorme e o modelo de vida privada do exterior inescapavelmente servem de parâmetro

31
Em 1880 elas são 55% das mulheres acima de 50 anos; juntamente com as mulheres sozinhas perfazem 73%,
em contraste com os 10% encontrados um século depois. (ver Perrot, 1991a)
32
Um bom exemplo é a mulher que dá a luz em um hospital. Nos costumes oitocentistas, o nascimento é algo
rigorosamente privado, no aposento do casal e rodeado só de presenças femininas, excetuando-se a do
médico, figura cada vez mais presente à cabeceira nas famílias abastadas. (ver Perrot, 1991a)
33

para a determinação dos limites internos de suas atuações. A criação oitocentista dessa
solidão como desvio, na verdade, não só prende os indivíduos nos muros das instituições,
mas também estimula a construção de mais muros. A força das imposições e regulações de
ordem moral acentuam o caráter negativo que já se anunciava, entre românticos e
cortesãos, na vivência sofrida e complexa da solidão como experiência constitutiva do
eu.
Soares (op.cit.) mostra como a contestação do Antigo Regime, realizada por Rousseau,
havia construído novos valores, naturalizando as idéias de “diferença complementar” entre os
sexos, reprodução da espécie e cuidado duradouro com a prole. Assim, por meio da família -
uma comunidade real formada pelo amor – se garantia a preocupação e o investimento nos
outros. Ao mesmo tempo, nela o homem exercitaria o controle da própria vida - um antigo
projeto burguês - por meio da grande liberdade e responsabilidade da escolha de um parceiro:
“O homem, enquanto pai, e a mulher, enquanto mãe, seriam o que de mais profundamente
humano poderia existir.” (ibid., p.43), Rousseau, entretanto, parecia estar bastante consciente
da fragilidade paradoxal de sua construção. Enfatizava o esforço educativo de preparar a
mulher e o homem um para o outro, necessário para remediar os males de uma cultura
desgarrada.
Em Rousseau, a família se constitui, ao mesmo tempo, como um lugar onde se
controla o corpo e a expressão emocional e como um lugar em que há uma troca de carinho
tolerada e até mesmo desejada entre pais e filhos. Assim, na medida em que o casamento não
mais se baseia na exploração de dois patrimônios reunidos, nem numa atividade profissional
em comum, seu fundamento passa a ser o sentimento. Ora, uma pessoa pode se comprometer
a administrar um negócio a vida toda, mas não pode garantir um desejo eterno. Quanto mais
se valoriza a experiência sensível da condição desejante e a liberdade da escolha amorosa e
sexual, mais se dissolve a crença na possibilidade de junção perene entre amor e sexo, que
havia garantido o contrato social em torno dos vínculos familiares ao longo de todo o século
33
XIX. No período de transição do século XIX para o XX, se observará uma contradição na
evolução da família, como esclarece Perrot (1991b).34

33
Com o novo lugar concedido a experiência sensível do sexo junto ao amor, “Rousseau altera o quadro
construído pelo cristianismo, pois retira o sexo do domínio do pecado. [...] O ataque de Rousseau a essa idéia do
pecado tinha como base a consideração de que todas as paixões são boas por natureza, mesmo a paixão sexual, e
que Deus jamais as condenaria. Seu intuito, com isso, era aliviar a culpa inculcada no homem a partir do
cristianismo e libertá-lo para livre expressão do amor, pois só assim ele seria capaz de desfrutar um amor
completo e desimpedido. Essa construção é inédita na história. Ninguém nunca havia colocado o sexo e o amor
juntos, enquanto elementos naturais e ligados à vida pública, ou seja, sendo a base do contrato social.” (Soares,
1997, p.41)
34
A contradição é a que passa a existir entre a noção de família como abrigo contra a solidão e a do casamento
baseado na livre escolha dos parceiros, justificado pela reciprocidade dos sentimentos.
34

Os esforços educativos preconizados por Rousseau não foram suficientes para manter
a coerência do casal a longo prazo. A tentativa da civilização ocidental em misturar dois
parâmetros dificilmente compatíveis entre si - o amor-paixão, que é efêmero, e as
preocupações matrimoniais, que não devem sê-lo - aos poucos naufragou. Solidão, além de
expressão de insuficiência - de um desvio da norma reconhecida como escrita na natureza
humana e aprovada pela conveniência política - passa também a ser uma marca do fracasso
desse projeto. A desconfiança ou a certeza de que a vida em comum, depois de um período de
encantamento, se transformará na monotonia cotidiana ou acabará na solidão da separação,
agem como motivos contrários à coesão conjugal. Paralelamente a esses elementos
contraditórios, presentes na relação entre justificação cultural do casamento e justificação
cultural da família, outros fatores como a exacerbação do individualismo, vieram enfraquecer
as parcerias conjugais e reforçar a crença na “inevitabilidade da solidão”. Sua existência é
banalizada pelo hábito da transformação do eu em centro dos próprios interesses.
O jornal, o rádio, a televisão, tornam as pessoas conscientes dos dramas do mundo
todo e, ao mesmo tempo, as fazem crer em soluções universais, implicitamente sugeridas, cuja
ênfase recai no desempenho individual. Vincent (1994) cita pesquisas realizadas na metade da
década de oitenta, em camadas socioculturais mais abastadas, nas quais observou-se que “o
indivíduo privilegia cada vez mais sua própria realização e seu livre-arbítrio, em detrimento
das ‘imposições, limites, constrangimentos e sacrifícios pressupostos por uma relação
multifuncional de longo prazo’ (F. de Singly).” (ibid., pp.295-6) Há um predomínio do eu
sobre o nós conjugal que, “desvalorizando a fidelidade e a constância em favor da auto-
realização das potencialidades pessoais, coloca a existência conjugal em novos tempos.”
(idem) Se valorizo o “eu” em detrimento do “nós”, se acredito que outros estão sendo
suficientemente resolutivos em suas vidas como devia estar na minha, interpreto os
desencontros e impossibilidades de realização afetiva e amorosa como retumbante fracasso
pessoal.
O século XX trouxe consigo tentativas de criar maneiras alternativas de encarar a
solidão, novas possibilidades de lidar com ela. Algumas mulheres, pelo desejo de autonomia
financeira e profissional, são conduzidas à vocação religiosa, ao trabalho altruísta e a carreiras
públicas, para as quais devem sacrificar suas vidas pessoais, obtendo promoção social. Surge
também um movimento equivalente ao dandismo, mulheres másculas que reivindicam viver
como homens. Não desejam mais se submeter aos salários baixos, tendo que se manter ligadas
a um “protetor” ou “amigo” que proporcione um complemento financeiro e até mesmo a
resolução da questão sexual e afetiva fora do casamento. Desejam uma vida no celibato,
livremente escolhida e vivida. São pessoas criadoras, de vanguarda, que começam a ser
35

reconhecidas pela sociedade, talvez pelas suas origens estrangeiras. Em torno delas se
organiza um grupo de “novas mulheres” que recusam papéis secundários e querem amar à sua
maneira, não obstante todas as dificuldades.
A coabitação juvenil, nas últimas décadas desse século, também é uma alternativa
nova para lidar com a solidão. Proporciona uma certa proteção, como no casamento antigo,
contra o isolamento e o tédio, com a diferença de que atribui ao entendimento sexual um peso
muito superior aos outros aspectos. A coabitação se instala num quadro mais amplo de novas
exigências e expectativas, condicionadas pela velocidade das mudanças sociais. Mas ainda
mantém a primazia do eu sobre o nós. A exigência de espaço para a individualidade,
independente da vida conjugal, nutre e também se alimenta de um mercado amplo, que
garante a satisfação de gostos singulares. Ao mesmo tempo, multiplica e demarca as
diferenças. Para cada gosto, cada característica, cada desejo, um produto, mercadoria ou
serviço.
Na época atual, observamos o enfraquecimento dos mecanismos oitocentistas de
normatização dos vínculos de convivência. As mudanças dos costumes provocaram uma
ampla desorganização da família nuclear. A primazia dos interesses do eu, tornada
economicamente relevante, multiplicou as famílias de um só genitor. Cresceu também o
número de pessoas que moram sozinhas, apoiadas por todo tipo de engenhocas tecnológicas
que facilitam a vida cotidiana e dispensam a presença de outros. Os processos de massificação
identitária e facilitação do consumo desfavorecem a manutenção dos laços que solicitam
esforço de cooperação e compromisso com outros diferentes. Todos desejam ser
absolutamente singulares nas suas vidas, plurais nas suas escolhas e livres nos seus
movimentos, embora demonstrem estar cada vez mais confusos e desiludidos sobre a
viabilidade desse projeto.
Os impactos culturais do novo século tornaram sem efeito as velhas ideologias. O
mundo passou a experimentar exclusões e segregações diferentes, maiores e mais brutais, que
ultrapassaram fronteiras e servem ao experimento das mais modernas máquinas de matar e
abrem feridas tão grandes que parecem incuráveis, imperdoáveis e inesquecíveis. A face da
solidão moderna, que no século XIX esteve mascarada pela luta contra os “inimigos” da
família, aparece e se expressa em sensações de impotência e imobilidade diante da vida.
Ninguém mais acredita nos valores transcendentes e suas garantias, nem tampouco na
proteção benevolente do Estado ou da família. Nenhum tipo de organização social, política ou
religiosa aparece como realmente atraente e segura. Aos poucos, desaparecem as utopias pelas
quais lutar. Os sujeitos, no máximo, se mobilizam por pequenos objetivos privados, da
vizinhança cultural e econômica, marcados por uma impossibilidade constitutiva de
36

satisfação. Espelham-se em modelos imediatistas, cuja volatilidade não permite inscrição e


articulação com instâncias ideais sólidas.
A aparência da solidão, nesse mini-mundo privado, é cada vez mais contundente e
impiedosa: uma vivência desiludida, desencantada e desesperançada, atributo de
fracassados e incapazes, que não conseguem ter e ser o que desejam e que não controlam o
mundo a seu redor. Também não conseguem deixar de querer cada vez mais aquilo que não
têm, pois os outros próximos parecem ter. E mesmo quando conseguem ter, já não mais se
interessam pelo produto da conquista; há um outro mais vistoso a desejar. Esse perfil se
difunde, prolifera em meio às multidões das cidades. Acrescentam populações enormes a já
não pequena legião dos desesperados por motivos de sobrevivência física ou social.35
No que se segue, sugerimos uma interpretação da imagem de solidão que, se não é a
mais comum, nos parece a mais incômoda na contemporaneidade. Essa imagem gira em torno
de crenças filosóficas e cenários ideológicos de épocas passadas, que criaram fronteiras
inéditas em torno do eu e de sua subjetividade. Consideramos que esses limites do eu são, em
geral, pouco flexíveis e em nada compatíveis com ideais morais que caminham no sentido da
inclusão. Dele fazem parte sentimentos, emoções, hábitos de pensamento e estilos de ação que
definem identidades dolorosas para as pessoas e regulam as interações sociais e as
intervenções sobre o mundo de forma estreita e excludente. Um cenário impiedoso, no qual se
insere o processo de banalização do eu, a experiência de uma solidão que transforma a
existência do sujeito numa insuficiência indigna e desprezível.

2.
A SOLIDÃO DO EU INSUFICIENTE

Pode-se descrever às formas de estar só de várias maneiras. Nos itens anteriores,


optamos por um modelo que preservou, em linhas gerais, o referencial didático da cronologia
histórica, desde o cristianismo primitivo até o início do século XX. Nesse modelo, a solidão
foi vista sobretudo, como um efeito da progressiva invasão da esfera privada sobre os
interesses da esfera pública.
No início da década de oitenta, Sennett e Foucault apresentaram uma descrição de três
tipos de solidão existentes na sociedade, seguindo outro modelo, o da autoconsciência em

35
Um estudo da Organização das Nações Unidas, amplamente divulgado pela imprensa na segunda semana de
outubro de 1998, calculou que a fortuna pessoal dos 225 homens mais ricos do mundo é equivalente à renda
anual dos 2 bilhões e meio de seres humanos mais pobres.
37

relação com a sexualidade.36 Sennett e Foucault perguntavam por que a sexualidade se tornou
tão importante como matéria-prima e ferramenta para a capacidade das pessoas se auto-
definirem. Sennett extrai, daí, interessantes considerações sobre a solidão, centrando a análise
nas subjetividades dos séculos XVIII e XIX. Foucault se ocupa mais dos primeiros séculos da
era cristã, mas, ao final, ambos procuram estabelecer uma linha de continuidade entre o
pensamento cristão e a cultura moderna, no que diz respeito a imagem do sujeito no Ocidente.
Sennett considera o entendimento das circunstâncias nas quais as pessoas se sentem sozinhas
consigo mesmas, nas condições familiares, de trabalho ou na vida política, fundamentais para
o entendimento do conceito de eu. A sensação de isolamento, em meio às multidões dos
aglomerados urbanos, seria uma idéia no mínimo estranha para um cidadão do século XVII e
por isso mereceria investigação. Sua compreensão dependeria da análise das “ferramentas
mentais” responsáveis pela sensação de estar só, apesar de acompanhado por muitos.
A solidão foi categorizada por Sennett em três grupos: c a solidão imposta pelo
poder, que resulta em isolamento. É a solidão da anomia, cuja melhor descrição seria feita
por Durkheim. d A solidão do homem revoltado ou sonhador, a solidão da rebelião, que
seria representada pela visão de Sartre. e A solidão em que a sensação predominante é de
estar sozinho no meio de muitos, de “ser um entre muitos”, de ter uma vida interior que
ultrapassa o que é refletido pela vida dos outros. É a solidão da diferença37, forjada pela
intimização e seus desdobramentos marcantes na esfera do sexual. Sennett procura
demonstrar que essa solidão é pouco abordada nos escritos sobre o tema, apesar do sentimento
de estar à parte dos outros ser uma experiência comum na sociedade moderna. Os nossos
ideais de sexualidade, sendo índices de autoconsciência - como aborda Foucault no mesmo
artigo - tornariam difícil a compreensão do por quê dessa sensação de separação e estranheza
em relação aos outros.
A alusão ao trabalho de Sennett visa tão somente apontar, uma vez mais, para a
função da ordem político-social no condicionamento das subjetividades que implicam o
sentimento compulsório de solidão. Assim como Sennett pôde ver nas modernas crenças

36
Não se trata de uma leitura que venha a se opor ao que foi dito. Simplesmente transfere o foco da análise para
outro aspecto da revolução individualista.
37
Percebemos uma relação entre esta concepção de “solidão da diferença” e a idéia de “solidão interior”. Para
Melanie Klein (1991), esse último sentimento é o resultado de uma “ânsia onipresente por um estado interno
perfeito, inalcançável”. Sente-se ausência de uma “figura gêmea”, completamente confiável, que representaria a
recuperação das partes excindidas do ego, encaradas como ideais, e, portanto, representantes da esperança de
alcançar inteireza e completa compreensão das próprias emoções, ansiedades e fantasias. Haveria a nostalgia da
vivência de uma “compreensão sem palavras”, fruto de uma relação inicial satisfatória com a mãe, e que seria
sentida de forma depressiva como uma perda irrecuperável. Tal como na “solidão da diferença”, a questão não
seria a situação objetiva de estar privado de companhia e sim um vivido dirigido à sensação de falta de
pertencimento. Ressaltamos a postulável coincidência da valorização das noções de diferença, percepção da
individualidade, separação do outro e dificuldade de integração, nas idéias de ambos os autores.
38

sobre sexualidade um fator decisivo na construção da solidão atual, é possível imaginar que
existam outras “ferramentas mentais”, não sexuais, capazes de levar os indivíduos a pensar
sobre si de certas maneiras e não de outras. É possível conceber outras redes de crenças que
transcendam o isolamento imposto pelos jogos de poder e pela diferença sexual, e que possam
levar o indivíduo a experimentar a solidão de maneira mais freqüente e marcante. E mais, a
experimentar um tipo de solidão pouco codificada, qualitativamente diferente dos sentidos
tradicionais.
Baseados na experiência clínica, nos modos de comportamento e de interação
cotidianos das pessoas e, ainda, na crítica cultural realizada por filósofos, sociólogos e
literatos contemporâneos, gostaríamos de sustentar a hipótese de que três situações atuais são
as bases de um sentido inédito para a vivência mental da solidão: a perda da crença no espaço
público como propiciador de segurança, satisfação e proteção; a ausência de ideais comuns; a
percepção desencantada e desiludida de que os encontros intersubjetivos não são mais que
acontecimentos passageiros, isolados, descontínuos e frustrantes. Acreditamos que esses três
conjuntos de fatores apontam para as dimensões constitutivas da solidão mais característica
da atualidade, quais sejam:
c solidão da indiferença: associada ao sentimento de ser objeto do desprezo ou da
violência - física e moral - do outro, produzidos pelas discriminações e exclusões cotidianas,
nos mais variados matizes e nos mais variados graus.
d solidão da desilusão : associada à inexistência ou escassez de projetos comuns, à
falta de convívio cooperativo autêntico e ao sentimento de futilidade e efemeridade de quase
tudo que se vive, faz ou diz.
e solidão da impotência : associada à descrença e à desconfiança na capacidade de
criar e manter laços afetivos de amizade ou amor que sejam significativos, leais e duradouros.

Juntos, esses três tipos de experiência fornecem a matriz do sentimento hegemônico e


generalizado de solidão por insuficiência. O sentimento de insuficiência do eu é produzido
pelo testemunho da ruína afetiva na família, no casamento e nas amizades; pela observação do
crescimento dos indicadores de criminalidade e injustiça social; e pela conscientização da
incapacidade política de administrar o espaço comum a todos e gerir projetos consistentes
para o futuro. Esse sentimento de insuficiência se manifesta, por exemplo, na presença de
traços de depressão e infelicidade crônicos numa parcela cada vez maior de pessoas.
Na prática clínica, identificamos quadros depressivos com uma tonalidade diferente
das que estão descritas nos manuais clássicos de saúde mental. Costumam ser mais leves e
menos incapacitantes do ponto de vista da produtividade, porém são mais longas e mais
39

associadas à angústias intensas e momentaneamente paralisantes38. Para esses sujeitos, a


ciência e a sociedade só possuem respostas igualmente impiedosas, pois seguem a mesma
lógica que as criou: a medicalização sem freios e o consumo descontrolado e fugaz de artigos
para distração. Os solitários de hoje são, em geral, os adictos de amanhã. Dificilmente
encontram uma alternativa mais atrativa que o álcool, os exercícios físicos compulsivos e a
drogadição, seja porque não se interessam em buscá-la ou porque ninguém é capaz de sugeri-
la ou oferecê-la.
A consideração dos quadros depressivos cada vez mais freqüentes nos parece útil para
o estudo à medida que acentua não só a idéia de uma solidão por insuficiência generalizada do
eu, mas também dá relevo à duas outras noções-chave. A primeira noção é da percepção
lúcida e desolada do mundo em que se vive. Nossos clientes, alguns surpreendentemente
jovens, apresentam muitos sintomas relacionados à consciência clara e aguda dos seus
impedimentos e dificuldades. Encaram a vida e o mundo desprovidos das fantasias que
sustentavam um modelo mais tradicional de conflito psíquico, onde a sintomatologia escondia
a verdadeira representação do inconsciente. Como Arendt frisou, a exposição da humanidade
à barbárie destrói sua capacidade de fantasiar.39 As guerras do nosso século, fruto da
cristalização de novas formas de governo e dominação perversos, baseadas no terror e na
ideologia, brotaram de “um caos de perplexidade de massa no palco político e de opiniões de
massa na esfera espiritual.” (ibid., pp.53-4) Os processos de massificação perderam o controle
de seu próprio produto. A solidão atual, em nossa opinião, teria um parentesco com esse
sentimento de desamparo diante do imprevisível, produzidos por novos fenômenos de
“perplexidade de massa no palco político e opiniões de massa na esfera espiritual”.
A segunda noção-chave é outro tipo de banalidade: a infelicidade duradoura ou a
falta persistente de apetite para a vida. As causas da insatisfação constante do eu são pouco
definidas ou muito pouco conscientes. Na expressão depressiva da banalidade solitária, os

38
Pinheiro faz uma descrição da melancolia na atualidade que é bem diferente, por exemplo, do estudo clássico
de Freud, tanto nas características sintomáticas quanto metapsicológicas (ver Luto e melancolia, 1915). O mundo
de Freud era um mundo diferente. A autora descreve um perfil de clientes sem dimensão de futuro, que não têm
fantasias nem fazem lapsos, não lembram do passado nem dos sonhos, e possuem uma relação de estranheza e ao
mesmo tempo de referência constante com o próprio corpo. “Dotados de extrema inteligência e lucidez quase
absurda, esses pacientes são geralmente portadores de um código moral bastante rígido, que não só servirá para
instrumentar a crítica mordaz que dirigem aos outros, mas também e sobretudo para si próprios.” (Pinheiro,
1993, p.51)
39
Arendt (1978) se refere a célebre frase David Rousset, “os homens normais não sabem que tudo é possível,”
para se referir às crenças dos homens amparados pela tradição, que ainda não tinham experienciado todo o
repertório da banalidade do mal. Para ela, antes do horror da guerra e do genocídio, ainda não havia se revelado
que não há limites à deformação da natureza humana. Coube à dominação totalitária fazer perceber a ruptura
com a tradição como um fato acabado, cujo teor inédito não se compreende “por meio das categorias usuais do
pensamento político, e cujos crimes não podem ser julgados por padrões morais tradicionais ou punidos dentro
do quadro de referências legal” da civilização ocidental, quebrando portanto, toda a continuidade de sua história.
(ibid., p.54)
40

indivíduos sequer sabem dizer como e quando começaram a sentir o desconforto de que se
queixam. A vida deles é “marcada minuto a minuto” (Pinheiro, 1993, p.51) e permeada pela
noção de ridículo, tanto no que se refere ao ser ridículo quanto ao próprio ridículo da vida.
Assim, a questão da morte não é somente teorizada do ângulo da questão existencial ou vista
como metáfora; é pensada no seu aspecto mais cru e brutal. “A morte faz parte do cardápio
deles tanto quanto o feijão com arroz.” (idem)

Mas o eu deprimido - sua lucidez e infelicidade - é apenas um exemplo da


insuficiência do eu solitário e não a totalidade de sua expressão. Postulamos a noção de
insuficiência como categoria genérica onde caberiam descrições das mais diferentes matrizes
teóricas, desde que compartilhem uma ou mais de uma das dimensões constitutivas da solidão
contemporânea: a indiferença, a desilusão e a impotência. A solidão atual carrega, além do
desencanto típico da nova sociedade que viveu duas grandes guerras e se prepara para a
globalização do terceiro milênio, vestígios da negatividade e da vergonha que lhe foram
atribuídas pela sociedade oitocentista. Como mostra Perrot, (1991a, p.303) no século XIX, a
“solidão é uma relação: consigo mesmo e com os outros. Ainda não é um direito do indivíduo.

Ela devolve, como um espelho, a imagem de uma sociedade que valoriza a ordem da casa e o
aconchego do lar.” No século XX, mesmo sendo um direito, uma condição que não é alvo de
normatização direta, a solidão apresenta as feições da banalidade e da indiferença presentes
nas relações econômicas e políticas. Ser um direito não trouxe, como poderia, conforto
emocional ao eu que experimenta o estado solitário. Pelo contrário, contribuiu para a
banalização do próprio eu.40

Acreditamos que a observação crítica da realidade cotidiana, com vistas a certos


interesses éticos, especialmente na clínica da saúde mental, demonstra facilmente que a
internalização da impotência, a assunção da identidade do eu como insuficiente – política e
afetivamente - acaba sempre por desabar sobre os que se deixaram iludir pelas promessas de
uma felicidade para todos, propagadas no cenário pouco promissor de um mundo impiedoso.
Como se o mundo atual não tivesse suas impossibilidades; como se o conforto tecnológico a
tudo respondesse; como se o sucesso fosse amplamente acessível, bastando que se viva com o
estilo adequado. E, o que é pior, como as promessas são veladas, a culpa pelo fracasso é
sempre de quem fracassou na tarefa de possuir os produtos necessários para a imunização
competente: “Tudo tende a nivelar-se pela lei do melhor proveito. Lealdade, fidelidade,

40
Há autores, no entanto, que discordam da possibilidade da solidão ser uma espécie de praga moderna. Não
percebemos que barreiras consistentes poderiam ser colocadas à idéia da solidão atual provocar um sofrimento
mais intenso e nocivo, mas só retomaremos esse problema no momento de oferecer redescrições possíveis da
solidão.
41

cortesia, cooperação, amizade e tantas outras formas de ligação simbólica, outrora cultuadas
como bens morais, passam a segundo plano.” (Costa, 1997, p.97, grifos nossos)
Será irresponsável, ignorante ou inútil imaginar que as características das sociedades
de consumo e de massa, suas formas de articulação moral e de constituição identitária, já
provaram suficientemente sua inabilidade para estruturar psíquica e socialmente melhores
formas de convivência entre pessoas e novas atitudes para lidar com a solidão? Observando as
imagens do eu contemporâneo, sua herança emocional e moral, procuraremos adquirir mais
respaldo para responder a essa questão. Identificaremos a ambivalência relacionada às formas
de constituição do eu e, consequentemente, aos sentidos de solidão na contemporaneidade.
Mesmo com a predominância da conotação negativa, a diversidade dos ideais de eu possíveis
fazem da solidão um sentimento que pode ser valorizado e admirado em visões de mundo
alternativas ao modelo hegemônico.
42

__________________________CAPÍTULO o

IMAGENS DO EU

“Cada pessoa, mergulhada em si mesma,


comporta-se como se fora estranha ao destino
de todas as demais. [...] Em suas transações
com seus concidadãos, pode misturar-se a eles,
sem no entanto vê-los; toca-os, mas não os
sente; existe apenas em si mesma e para si
mesma.”

Tocqueville
43

No capítulo anterior, percebemos como a solidão é um sentimento ligado a


determinadas identidades históricas. Apresentamos alguns aspectos necessários à
compreensão da vivência mental da solidão na história das sociedades centradas no eu
interiorizado, pontuando três grandes diferenças: a solidão como retiro, como experiência
constitutiva do eu e como desvio. A busca da comunhão do indivíduo interiorizado com
Deus, a emergência do sentido de intimidade e a noção de natureza humana se constituíram
em marcos históricos fundamentais para a compreensão das mudanças nas formas de estar só
ou de sentir solidão.
No entanto, toda solidão é solidão de um “eu”. Para saber sobre ela, é necessário, antes
de tudo, verificar como se formam as diversas imagens de “eu”. A crença na existência e
substancialidade de um eu singular, independente e autônomo, marcou profundamente as
maneiras como as pessoas se observam, se definem e se relacionam. Praticamente distingue as
formas humanas de vida em duas grandes tradições, as civilizações ocidentais - que em geral
se organizam em torno dos interesses do eu ou de grupos - e as orientais, cuja percepção do eu
como uma ilusão, põe a vida num ciclo que transcenderia os interesses pontuais.41 A
consideração do tema solidão numa sociedade, é praticamente indissociável da observação de
como estão constituídos os seus membros, em um determinado período, e de como suas
crenças estão relacionadas à força de crenças passadas que deixaram a sua herança emocional
e moral. Podemos dizer da solidão o que Solomon disse da emoção: “they are not just
phenomena to be analyzed and understood; they lie at the very heart of ethics, determining
our values, focusing our vision, influencing our everyday judgment, giving meaning to our
42
lives.” (Solomon In Marks, 1995, p.257) Parafraseando Wittgenstein, a solidão existe em
um eu solitário que vive em um mundo solitário. 43

1.
A HERANÇA DO EU MODERNO

Muitos autores se esforçaram por decifrar os enigmas dos novos tempos, considerando
a extrema velocidade das mudanças sociais, marcadas pela descrença nas garantias de valores
transcendentes, tais como o acolhimento afetivo da família ou a proteção material do Estado.

41
Solomon (In Marks, 1995, p.256), se referindo à possibilidade de comparação entre as emoções nas culturas
ocidental e oriental, sugere que a oposição entre características particulares gera problemas muitas vezes
insolúveis de interpretação. Para ele, trata-se muito mais de considerar as culturas de forma holista. O que tem
que se traduzido é a cultura como um todo, em suas visões sistemáticas de mundo, linguagem e forma de vida.
42
“Não são apenas fenômenos a serem analisados e compreendidos; estão no coração da ética, determinando
nossos valores, focando nossa visão, influenciando nosso julgamento cotidiano, dando sentido à nossas vidas.”
43
“The depressed man lives in a depressed world.” (citado por Solomon, ibid., p.257)
44

Religião e política não são mais sinônimos de segurança. Até mesmo a felicidade, antes ligada
a modos de vida perenes, requer uma produção rápida e constante de objetos de satisfação,
físicos e humanos. Tais objetos, numa sociedade centrada no consumo, já nascem marcados
pela obsolescência. A cada dia, novas “necessidades” são criadas, intimando todos à satisfazê-
las. As pessoas são convencidas, pelos meios de comunicação de massa, de que a fonte dos
seus problemas está em abstrações como “o social”.44 Usando o vocabulário de Arendt, é
como se os homens não percebessem que foram condenados a só se preocupar com o “reino
da necessidade”, perdendo a energia para o investimento no “mundo dos assuntos comuns”. A
sociedade do final do milênio, continua a prometer fórmulas para o alcance individual da
felicidade. Promete tanto que o fracasso da conquista só pode ser culpa dos sujeitos e dos
objetos, mas nunca da ciência que os planeja e da economia que os produz e comercializa.
Freud já postulava, em O mal-estar na cultura (1930), que o homem está disposto a
trocar a felicidade por segurança, abrir mão dos fortes gozos para evitar a dor. Talvez a
consciência do fracasso das promessas científicas e econômicas doa demais para quem já não
crê em todo o resto. Mas toda dor vem do desejo de não sentir dor. As possibilidades de
segurança caducaram e mesmo o controle tecnológico artificial da dor física não é suficiente
para assegurar tempos melhores, já que a dor moral se tornou um dos mais fortes ingredientes
do gosto amargo do cotidiano.
Uma das mais interessantes análises das origens e consequências da modernidade, em
contraponto com a noção de tradição, é realizada por Hannah Arendt. No prólogo de A
Condição Humana, ela sustenta que uma das finalidades de sua análise histórica é “pesquisar
as origens da alienação no mundo”, os percursos da Terra para o universo e do mundo para
dentro de si que o pensamento do homem realizou. Pensa, assim, chegar à compreensão de
como a sociedade evoluiu e como se apresentou no instante em que se percebeu imersa em
uma era nova e desconhecida.
Nesse trabalho, as maneiras contemporâneas de conceber o eu e o mundo, herdadas da
ideologia moderna, serão fundamentais para o estudo da solidão.45 Apresentando um modelo
interpretativo das origens do quadro atual, imaginamos empreender melhor o esforço
exaustivo de compreensão e ajuizamento, necessário para fundamentar o exercício de

44
“O político deve convencer ao povo de que todos os problemas são sociais, para poder escravizá-lo.” (Davila
apud Ortega, 1998b)
45
Não iremos retomar, entretanto, uma posição de diagnóstico e crítica da modernidade. Tampouco pleitearemos
como solução um retorno ao passado distante, com suas éticas próprias, crítica comumente feita a teóricos como
Arendt e Lasch.
45

recomeço.46 Começar de novo, refazer os significados que gravitam em torno do eu


insuficiente e solitário, pressupõe pelo menos dois esforços: a decisão de entender os hábitos
que construímos com a história e cristalizamos numa prática de vida datada e a
disponibilidade de perguntar se eles ainda servem para nos levar aos lugares que temos
vontade de ir.

A escolha do modelo interpretativo de Hannah Arendt é determinada por uma


característica principal, qual seja, a análise das influências da modernidade sobre o
descompromisso para com a esfera pública e sobre a perda da capacidade humana de agir.
Essa reflexão fornece subsídios à hipótese de que a solidão contemporânea possui, em suas
bases, falhas na rede de sustentação dos laços sociais e dos ideais coletivos, fundamentais
para o exercício da solidariedade humana. Arendt mostra como foi perdida a habilidade
humana de se retrair para pensar, julgar e cuidar de seus atributos privados e depois voltar ao
espaço público para dialogar e persuadir. Essa habilidade resguardaria as esferas pública e
privada de confusões nos papéis individuais e nas configurações coletivas.

“No mundo moderno, as duas esferas constantemente recaem uma sobre a outra, como
ondas no perene fluir do próprio processo da vida. O desaparecimento do abismo que os
antigos tinham que transpor diariamente a fim de transcender a estreita esfera da família
e ‘ascender’ à esfera política é fenômeno essencialmente moderno.”(Arendt, 1993a, pp.
42-3)

A ascensão da administração caseira à posição de destaque perante a luz da esfera


pública, para Arendt, não apenas diluiu a antiga divisão entre privado e o político, mas
também alterou o significado desses termos, a ponto de torná-los quase irreconhecíveis. Ela
realça a idéia de que aquilo que reconhecemos como privado, hoje, é apenas um círculo de
intimidade, enriquecido pelo moderno individualismo. Por outro lado, mostra como o
progresso das ciências naturais e o aumento cada vez mais célere da força e do conhecimento
humanos trouxe à tona uma profunda e desesperada consciência de nossas limitações, não
poupando nem os próprios cientistas de um sentimento niilista que toma conta de setores cada
vez maiores da população.
Arendt sustenta a hipótese de que um conjunto de eventos no início da era moderna foi
responsável tanto pela sensação de triunfo, quanto pela desesperança que a humanidade

46
O “novo início” é uma noção agostiniana, apresentada por Hannah Arendt no livro Love and Saint Augustine.
Diz respeito à libertação do homem do hábito, reabilitando a vontade decaída. “Agostinho tinha em mente a
condenação do hábito inscrito na alma pela conscupicência”, que era “um tenebroso impulso de controlar, tomar
para si e colocar a serviço dos próprios objetivos pessoais todas as coisas boas que tinham sido criadas por Deus
para serem aceitas com gratidão e compartilhadas com outrem”. (Costa, 1998, p.14)
46

passou a experimentar. Para ela, além da Reforma e da descoberta da América, a descoberta


do telescópio por Galileu comprovou cabalmente “que tanto o pior temor quanto a mais
presunçosa esperança da especulação humana só podiam realizar-se ao mesmo tempo”
(Arendt, ibid., p.274), como se o desejo só pudesse ser satisfeito na fuga da realidade e o
temor só pudesse ser consumado na aquisição compensatória de poderes supramundanos.
Martinho Lutero, os grandes navegadores e Galileu Galilei, entretanto, ainda possuíam
motivos e intenções fortemente arraigados na tradição. Só a partir deles observamos, nos
cientistas e filósofos, a veemente sensação de novidade, a estranheza de ver como jamais se
havia visto, pensar o que nunca havia sido pensado. Do século XVII em diante, a ciência
moderna passou a ter a característica de estar alienada da Terra. O ponto de referência para a
análise dos fenômenos muda radicalmente de posição. A criatura presa ao planeta descobre,
com perplexidade, o ponto de vista arquimediano que está fora dele. O homem passa a sentir
o poder de olhar o mundo pelo lado de fora e, por isso, interferir nele como nunca havia sido
possível. A rejeição de todas as tradições se torna imperiosa e o amor pela Terra e pelo
mundo, recém despertado pela Renascença, se transforma na primeira vítima dessa alienação
da era moderna, alienação que permanece, até hoje, se reproduzindo com novas feições e
cores.
A outra face da problemática moderna na obra da autora, o desespero, é representada
pela dúvida cartesiana, da qual nenhum pensamento ou experiência escapou a partir dos idos
de 1700. A perplexidade inerente à descoberta do novo ponto de vista arquimediano levou à
percepção do quanto os sentidos podem ser enganosos e trouxe como resposta o
arremessamento do homem, de maneira irremediável, ao reino da introspecção e da
preocupação consigo mesmo. O ponto arquimediano se deslocou também para dentro do
corpo de cada um. Os procedimentos de revelação da verdade foram ferozmente atacados pela
nova filosofia moderna, que se tornou avessa à tradição da confiança nos sentidos e no mundo
“objetivo”. As relações entre Ser e aparência deixaram de ser estáticas. O Ser agora é “ativo e
enérgico”, sabe criar e modificar a própria aparência, que reconhece como possível fonte de
equívocos. Os homens começam a admitir que só podem ter certeza e conhecimento daquilo
que eles próprios produzem. Não há como confiar na sua visão, no senso comum e nem
mesmo na Razão. Tudo o que se admite compartilhar, e que, a rigor, é impossível de se ter em
comum, é a estrutura da mente, a faculdade de raciocínio.
Os pesadelos embutidos na filosofia de Descartes se assemelham muito àqueles que
decorrem de outras concepções modernas de mundo. O mais assombroso deles, salientado por
Arendt, diz respeito à condição humana em geral e engendra a crença num espírito mau, que
trai o homem, deliberadamente, ao dotá-lo da noção de verdade que no fundo nunca será
47

alcançada. A questão da incerteza absoluta é extremamente importante para o


desenvolvimento de toda moralidade moderna. A verdade e a realidade não são dadas e nem
aparecem como são. O olho humano trai o homem e a metáfora dos olhos da mente não pode
mais ser confiável. As virtudes cardeais modernas, instituídas desde o primeiro século da nova
era acabam, forçosamente, coincidindo com as maiores virtudes da ciência moderna: a
industriosidade, a veracidade e o sucesso. O homem, no momento que deseja continuar
experimentando a realidade exterior, percebe que a natureza e o universo lhe escapam. É
impossível representar um universo construído segundo o comportamento da natureza em um
experimento cujos princípios o próprio homem definiu e traduziu tecnicamente em realidade
prática: “Com o desaparecimento do mundo tal como dado aos sentidos, desaparece também o
mundo transcendental, e com ele a possibilidade de transcender-se o mundo material em
conceito e pensamento.” (ibid., p.301) Marcaremos a seguir quais as principais características
modernas que herdamos, em dois pontos de vista distintos.
O primeiro diz respeito aos séculos XVII, XVIII e XIX. Está relacionado ao
desencantamento do mundo, à descrença nos próprios sentidos e à insegurança na
possibilidade de conhecer verdadeiramente. Essas percepções provocam a necessidade reativa
de modificar o mundo, interferir cada vez mais na natureza e, especialmente, estimulam
exageradamente a importância de conhecer a si mesmo e tudo o que se fabrica. Galileu, ao
confirmar suspeitas de Copérnico, Kepler, Giordano Bruno, Nicolau de Cusa, entre outros,
estabeleceu as “condições de um mundo inteiramente novo”, que não provocaram reações de
exultação na filosofia com as realidades astrofísicas que trouxe à tona e que questionaram
competentemente a capacidade dos sentidos perceberem a realidade. Arendt lembra que a
verdade como revelação era crença comum às antigüidades pagã e hebraica, à filosofia secular
e à filosofia cristã. Isso talvez justifique, para ela, a violência quase odiosa com a qual a nova
filosofia moderna se voltou contra a tradição, abolindo sumariamente a Renascença.

“Se compararmos o mundo moderno com o mundo do passado, veremos que a perda da
experiência humana acarretada por esta marcha de acontecimentos é extraordinariamente
marcante. Não foi apenas, e nem sequer basicamente, a contemplação que se tornou
destituída de significado. O próprio pensamento, ao tornar-se mera ‘previsão de
consequências’, passou a ser função do cérebro, com o resultado de que se descobriu que os
instrumentos exercem essa função muitíssimo melhor do que nós. A ação logo passou a ser, e
ainda é, concebida em termos de fazer e de fabricar, exceto que o fazer, dada a sua
mundanidade e inerente indiferença à vida, era agora visto como apenas outra forma de
labor, como função mais complicada mas não mais misteriosa do processo vital.” (Arendt,
1993a, p. 335)

O desabrigo espiritual do homem moderno, portanto, teria tido suas primeiras


expressões com a desconfiança na possibilidade das coisas aparecerem como realmente são.
48

Isso precipitou a dúvida quanto ao conceito de verdade como revelação, e, consequentemente,


quanto a fé no próprio Deus. A teoria científica moderna adquire um novo significado e, para
ser válido, depende do que faz funcionar, e não do que consegue revelar. Muda “conforme os
resultados que produz.” (Arendt, 1979, p.68) O sucesso da Revolução Industrial parece
demonstrar que os feitos e artefatos do homem, agora, prescrevem suas regras à razão, e que
os valores são, agora, determinados por uma sociedade com necessidades funcionais sempre
mutáveis. A mente só conhece o que ela própria produz e retêm dentro de si.

“ Ao perder a certeza de um mundo futuro, o homem moderno foi arremessado para dentro de
si mesmo, e não de encontro ao mundo que o rodeava; longe de crer que este mundo fosse
potencialmente imortal, ele não estava sequer seguro de que fosse real. [...] o homem
moderno não ganhou este mundo ao perder o outro, e tampouco, a rigor, ganhou a vida; foi
atirado de volta a ela, lançado à interioridade fechada da introspecção, na qual suas mais
elevadas experiências eram os processos vazios do cálculo da mente, o jogo da mente consigo
mesma. Os únicos conteúdos que sobraram foram os apetites e desejos, os impulsos
insensatos de seu corpo que ele confundia com a paixão e que considerava irrazoáveis, por
não, poder ‘arrazoar’ com eles, ou seja, prevê-los e medi-los.” (Arendt, 1993a, pp. 333-4)

O segundo ponto de vista relevante na visão de Arendt tem importância política maior
e está relacionado à percepção de que o Estado não é mais condição de garantia da vida. É
uma vivência contemporânea ao nosso século e marca uma diferença em relação aos outros
trezentos anos de modernidade.47 As experiências totalitárias, a perplexidade diante do fato de
que o homem é capaz de tudo, desacreditam completamente a manutenção do valor moderno
de conservar a vida e a liberdade a qualquer custo. Para Arendt, coube à dominação totalitária
fazer perceber a ruptura como um fato definitivo, como algo que não é resultado de escolhas
deliberadas, cujo teor inédito não se compreende por meio das categorias usuais do
pensamento político e cujos crimes não podem ser julgados por padrões morais tradicionais.
Sequer podem haver punições para tais crimes dentro do quadro de referências legal da nossa
civilização ocidental. As guerras do nosso século, frutos da cristalização de novas formas de
governo e de dominação, brotaram do caos provocado pela perplexidade de massa no palco
político e pela massificação de opiniões na esfera espiritual. No estudo sobre as origens do
totalitarismo, de 1951, Arendt se torna consciente desta “lacuna entre o passado e o futuro”:

“ ‘Os homens normais não sabem que tudo é possível’ observa David Rousset em frase que
serviu de epígrafe a este livro e que talvez sintetize uma de suas conclusões. De fato, o
fenômeno totalitário revelou que não existem limites às deformações da natureza humana e
que a organização burocrática de massas, baseada no terror e na ideologia, criou novas
formas de governo e dominação, cuja perversidade nem sequer tem grandeza, conforme nos

47
A autora, em A Condição Humana (1993), sustenta que a era moderna não coincide com o mundo moderno.
Aquela, cientificamente, se inicia no século XVII. Entretanto, o mundo moderno, politicamente, só surge com as
explosões atômicas.
49

aponta Hannah Arendt ao examinar a banalidade do mal no relato que fez do processo
Eichmann - Eichmann in Jerusalém - A report on the banality of Evil - (1963) .” (Lafer, 1979,
p. 58)

Por meio de uma breve análise da ação da resistência francesa durante a Segunda
Guerra Mundial, Arendt ilustra o que considera uma “quebra entre o passado e o futuro”.
Descreve os sentimentos que uma causa comum despertou entre os companheiros,
arrancando-os de suas vidas individuais irrelevantes. Fala de um “tesouro sem nome”, de uma
vida não centrada no particular, mas partilhada entre muitos num espaço público, que logo
perdeu o sentido pela derrota do inimigo comum. Em seu entender, toda uma geração teve
suas vidas visitadas, pela primeira vez, por uma visão de liberdade. Não exatamente por terem
reagido à tirania, mas por se terem tornado “contestadores”. Assumiram para si as iniciativas
necessárias a um projeto, criaram entre si um espaço público onde a liberdade poderia
aparecer, onde era desejada e nunca esquecida. No entanto, não estavam conscientes disso e
sequer o perceberam enquanto viviam. Ao fim da guerra, lhes restou apenas a perplexidade e
a insatisfação diante do retorno para suas vidas privadas e para as incansáveis, velhas e vazias
querelas ideológicas. Se por um lado o totalitarismo representava a insegurança absoluta a que
estamos submetidos por saber que somos capazes de tudo, a resistência fornecera,
temporariamente, a visão de que a vida é diferente quando temos pelo que lutar.

“Seja como for, é à ausência de nome para o tesouro perdido que alude o poeta48 ao dizer que
nossa herança foi deixada sem testamento algum. O testamento, dizendo ao herdeiro o que
será seu de direito, lega posses de um passado para um futuro. Sem testamento ou, resolvendo
a metáfora, sem tradição - que selecione e nomeie, que transmita e preserve, que indique onde
se encontram os tesouros e qual o seu valor - parece não haver nenhuma continuidade
consciente no tempo, e portanto, humanamente falando, nem passado nem futuro, mas tão-
somente a sempiterna mudança do mundo e o ciclo biológico das criaturas que nele vivem. O
tesouro foi assim perdido, não mercê de circunstâncias históricas e da adversidade da
realidade, mas por nenhuma tradição ter previsto o seu aparecimento ou sua realidade; por
nenhum testamento o haver legado para o futuro. A perda, talvez inevitável em termos de
realidade política, consumou-se quando de qualquer modo, pelo olvido, por um lapso de
memória que acometeu não apenas os herdeiros como, de certa forma, os atores, as
testemunhas, aqueles que por um fugaz momento retiveram o tesouro na palma de suas mãos;
em suma, os próprios vivos.” (Arendt, 1979, p.31)

Como vimos, para Arendt, duas características importantes marcam a modernidade: c


o desabrigo espiritual do homem no mundo moderno desencantado e d a consciência
assustadora de que tudo é possível, que nada pode impedir a irrupção do horror quando não
se é dotado de uma herança que garanta a compreensão e o julgamento dos fatos. A solidão
contemporânea, como vimos anteriormente, se alimenta da paralisia, da impossibilidade de

48
Alusão ao poeta René Char, autor da frase: “Nossa herança nos foi deixada sem nenhum testamento.”
50

pensar sobre si e sobre o outro, da incapacidade de agir no mundo comum. Toda ação tem um
curso, todo curso de ação tem uma história que o precede e outra que dele resulta. Todo
acontecimento vivido precisa de um acabamento na mente daqueles que contarão sua história.
A solidão poderia servir de ferramenta a este acabamento, ao invés de ser o resultado de sua
inexistência. Quando o pensamento se aparta da realidade vivida, ou a realidade se torna
opaca à luz do pensamento, nos sujeitamos a repisar velhas verdades que já não tem
relevância ou nos perdemos no vazio da ausência de significação. Aludindo a Hegel, Arendt
explora a função mental de compreender o acontecido, pois esta seria a maneira dos homens
se conciliarem com a realidade e estarem em paz com o mundo. No capítulo seguinte, nos
ocuparemos dessa noção. Valorizaremos a crença no fato de que, se a mente fracassa nas suas
prerrogativas, se não é capaz de fazer a paz e induzir a reconciliação, acaba por se ver
empenhada “no tipo de combate que lhe é próprio,” na esterilidade da repetição que nada cria.
Mesmo que a tarefa de compreensão seja árdua o bastante para se tornar cotidianamente
inviável, podemos invocar Santo Agostinho e reafirmar que: “Uma coisa é não se ter
conhecimento de si, outra coisa é não se pensar em si.” (Arendt, 1995, p.262)
Segundo Arendt, duas gerações diferentes, neste século, voltaram-se para a política
como maneira de solucionar as perplexidades e impasses filosóficos modernos, numa
tentativa de escapar do pensamento para a ação. A primeira delas foi o Existencialismo, que
buscou uma espécie de compromisso incondicional com a ação:

“E como, sob as circunstâncias do século XX, os chamados intelectuais - escritores,


pensadores, artistas, literatos etc. - só puderam ter acesso à vida pública em tempos de
revolução, a revolução veio a desempenhar, conforme Malraux observou certa vez (em A
Condição Humana), ‘o papel outrora desempenhado pela vida eterna’: ‘redimir os que a
fazem’. O Existencialismo, rebelião do filósofo contra a filosofia, não surge ao revelar-se a
Filosofia incapaz de aplicar suas próprias regras à esfera das questões políticas; [...] nem
mesmo ao evidenciar-se a Filosofia incapaz de realizar a tarefa que lhe destinaram Hegel e a
Filosofia da História, a saber, entender e apreender conceitualmente a realidade histórica e
os acontecimentos que fizeram do mundo moderno aquilo que ele é. A situação, porém,
tornou-se desesperadora quando se mostrou que as velhas questões metafísicas eram
desprovidas de sentido; isto é, quando o homem moderno começou a despertar para o fato de
ter chegado a viver em um mundo no qual sua mentalidade e sua tradição de pensamento não
eram sequer capazes de formular questões adequadas e significativas, e, menos ainda, dar
respostas às suas perplexidades. Neste momento crítico, a ação, com seu envolvimento e
compromisso, seu engajamento, parecia abrigar a esperança, não de resolver quaisquer
problemas, mas de fazer com que fosse possível conviver com eles sem se tornar, como disse
Sartre certa vez, um salaud, um hipócrita” (Arendt, 1979, pp. 34-5)

Num segundo momento, nos derradeiros meses da Resistência, em que a libertação


estava próxima, sobreveio novamente a descoberta de que por alguma razão misteriosa, a
mente humana deixara de funcionar adequadamente. A libertação do domínio totalitário,
51

nesse caso, colocava em cena uma “liberação do agir” muito mais explícita e provocava o
retorno da ação para o pensamento. Sobreveio, para Arendt, um período lacunar,
intermediário, estranho, onde os próprios vivos se tornam “conscientes de um intervalo de
tempo totalmente determinado por coisas que não são mais e por coisas que não são ainda.”
(Arendt, ibid., pp.35-6) Para ela, a questão reside na mudança da compreensão do processo de
pensamento, não como algo imerso numa esfera atemporal adequada à sua existência, mas
como algo que pode ser exercido sem saltar completamente para fora do tempo humano. Na
verdade, a autora suspeita que essa lacuna temporal entre passado e futuro seja concomitante à
existência do homem na terra e não um dado histórico exclusivamente moderno. O que
sugere, afinal, é que estamos despreparados e desequipados para pensar, para estar nessa
lacuna e poder transpô-la. A tradição foi a mínima condição de possibilidade dessa
transposição desde Roma; só que ela se desgastou com a progressão da época moderna:

“Quando afinal, rompeu-se o fio da tradição, a lacuna entre o passado e o futuro deixou de
ser uma condição peculiar unicamente à atividade do pensamento e adstrita, enquanto
experiência, aos poucos eleitos que fizeram do pensar sua ocupação primordial. Ela tornou-se
realidade tangível e perplexidade para todos, isto é, um fato de importância política”.
(Arendt, 1979, p.40)

Talvez a solidão contemporânea seja um subproduto indesejável da “inconsciência”


aguda dessa lacuna. Talvez as sensações de desorientação, futilidade e inutilidade que
povoam o universo solitário possam ser compreendidas a partir dessa leitura da condição
moderna. Talvez a prática de novos exercícios de pensamento político, que correspondam aos
incidentes da experiência viva possam ser marcos de novos sentidos de orientação. Não para
reatar o fio da tradição, nem dizer sobre o que se deve pensar e acreditar, mas apenas para
adquirir experiência de como pensar, e, pensando, ter a chance de se reconciliar com a
existência.

As sensações de falta de pertencimento, de estranheza, insegurança, descrença,


fracasso, e desesperança, mesmo em meio às multidões dos aglomerados urbanos; aos
abundantes meios de comunicação; à proliferação dos instrumentos de lazer; à liberdade de
expressão e de comportamento; aos progressos científicos e tecnológicos, se tornam uma idéia
no mínimo curiosa para um observador interessado, e, como tal, merece ser investigada com o
auxílio de múltiplos instrumentos analíticos. Talvez só por meio de um olhar que se detenha
em alguns desses fenômenos, possamos entender melhor o que significa hoje dizer “eu me
sinto só”, sem necessariamente recorrer, por exemplo, à ausência de satisfação pulsional -
stricto sensu – na dinâmica do sujeito amoroso .
52

Após ter exposto uma visão das características marcantes da herança moderna para as
sociedades centradas no eu, fruto do desenvolvimento dos últimos séculos em suas aspirações
arriscadas e contraditórias, imaginamos ser necessária a observação das formas de
constituição e dos arranjos político-emocionais dos “eus” contemporâneos. Tangenciando a
ampla temática da constituição subjetiva e seus respectivos contextos de significado,
pensamos abordar formas de viver a experiência do eu - herdeiro das realidades filosóficas e
ideológicas da modernidade - antes de continuar o estudo da solidão.

2.
TIPOLOGIAS DO EU CONTEMPORÂNEO

A modernidade é autora de uma herança de difícil interpretação. Apesar dos


instrumentos analíticos disponíveis, alguns mais criativos e verossímeis que outros, é
claramente impossível decifrar todas as mensagens herdadas, todos os padrões, vícios e
imagens deixados como legado. Não temos um testamento que paute nossas condutas, que
sirva de base para nossas aspirações e conforto para os nosso impasses. É impossível não
recorrer à algum tipo de sistematização didática que organize fatos, medos e esperanças em
um único percurso interpretativo, por mais flexível que seja. Por outro lado, manter a análise
crítica de uma herança sob curtas rédeas pode prorrogar indefinidamente uma partilha
urgente, alongar inutilmente sua execução, tal qual faria um inventariante burocrático.
Buscaremos, assim, descrever tipologias do eu contemporâneo, inelutavelmente marcado pelo
anseio incessante do progresso e pela consciência incômoda dos próprios limites, para aludir
às formas atuais de conceber e conviver com as moralidades modernas, e, consequentemente,
com as questões das ações e das emoções. Pensamos que tais representações - por vezes
forçosamente reduzidas a generalizações grosseiras - são inseparáveis da maneira como
percebemos a questão da solidão. Caminharemos na tensão entre descoberta de causalidades e
atribuição de indeterminação, com o objetivo exclusivo de aguçar a percepção, tantas vezes
refém de ingenuidades e exageros com máscara de evidência:

“ People to whom it seems self-evident that their own self (or their ego, or whatever else it
may be called) exists, as it were, “inside” them, isolated from all the other people and things
“outside,”... cannot easily take account of facts wich show that this kind of perception is itself
limited to particular societies, that it comes into being in conjunction with certain kinds of
interdependencies ... that it is a structural peculiarity of a specific stage in the development of
civilization, corresponding to a specific stage of differentiation of individualization of human
53

groups. If one grows up in the midst of such a group, one cannot easily imagine that could be
people who do not experience themselves in this way that is entirely self-sufficient individuals
cutt off from all other beings and things.” 49(Elias apud Margolis, 1998, p.5)

As definições do eu são múltiplas, nos vários domínios do saber que se ocupam de


descrevê-lo. Nossa análise limita-se à sociedade ocidental contemporânea, na visão de dois
sociólogos que constroem tipos ideais de eu, Riesman e Margolis. Ambos examinam formas
correntes de interação subjetiva na época em que realizaram os seus estudos - um na primeira
e o outro na segunda metade desse século – e procuram integrá-las numa tipologia coerente
das diversas orientações morais e éticas existentes. Daremos ênfase à observação das
categorias com características mais próximas do homem do final do milênio e suas questões
próprias. Cabe a ressalva de que as duas análises possuem não só qualidades descritivas
relevantes, mas também são atrativas por possuírem objetivos identificados com a proposta de
modificar as relações, contribuir para o fim da apatia social e política.

2.1. O Ego alterdirigido

Riesman, no livro A multidão solitária, escreve sobre o caráter social50 e sua variação
cultural. A sociedade americana do pós-guerra é o principal modelo e objeto de estudo. O
autor procura analisar os modos de conformidade51 introjetados pelos indivíduos, como forma
de atacar a passividade política e a melancolia pessoal que identificava nos espíritos de sua
época. A falta de esperança num futuro melhor, na opinião dele, era resultado da perda
considerável da inocência e do crescimento descontrolado da autocrítica. Riesman ressalta
que não procura acrescentar nada de novo à descrição da revolução que nos separou, nos

49
“Pessoas para quem parece autoevidente que os seus próprios eus (seus egos, ou o que quer que possa ser
chamado) existem como se estivessem dentro deles, isolados de todas as outras pessoas e coisas ‘fora’, ... não
podem se dar conta de fatos que mostram que este tipo de percepção é em si própria limitada a certas sociedades,
que se concretiza em conjunção com certos tipos de interdependência ... que isso é uma peculiaridade estrutural
de um estágio específico do desenvolvimento da civilização, correspondente a um estágio específico da
diferenciação da individualização dos grupos humanos. Se alguém cresce no seio deste grupo, não pode
facilmente imaginar que existem pessoas que não experimentam a si próprias desta maneira que é a de
indivíduos completamente auto-suficientes, separados de todas os outros seres e coisas.”
50
Riesman delimita seu conceito de caráter social, definido-o como “a organização mais ou menos permanente,
social e historicamente condicionada aos impulsos e satisfações do indivíduo - o tipo de ‘configuração’ com o
qual ele aborda o mundo e as pessoas. ‘Caráter social’ é a parte do ‘caráter’ que é compartilhada por grupos
significativos e que, como a maioria dos cientistas sociais contemporâneos o definem, é o produto da experiência
destes grupos.” (Riesman, 1995, p.68)
51
Riesman utiliza o termo “modo de conformidade” alternativamente ao termo “caráter social”. Ressalta,
entretanto, que a conformidade - processo responsável pela aquisição do caráter que faz com que os indivíduos
queiram agir da forma que têm de agir - não é o todo do caráter social. (ibid, p.70)
54

últimos quatrocentos anos, das formas tradicionais de vida orientadas para a família e para o
clã. Busca centrar-se na série de fatos sociais relacionados à mudança da era de produção para
a era de consumo.
A alterdireção seria o modo mais recente de conformidade,52 de acordo com o qual a
principal preocupação dos indivíduos seria a posição diante do outro. Os indivíduos
alterdirigidos teriam uma mentalidade sensível às expectativas e preferências das pessoas,
sendo, por isso, chamados people-minded. As mudanças radicais na estrutura de trabalho e
lazer nesse século seriam responsáveis pela modelação e remodelação do caráter dos adultos,
competindo com a influência dos pais e de outros agentes na formação do caráter precoce.
Riesman correlaciona o perfil social e subjetivo da pessoa alterdirigida (other-directed) com o
declínio incipiente da população, típico de sociedades que alcançaram um alto nível de bem-
estar econômico. A abundância econômica seria determinante para a valorização exacerbada
das reações observáveis das outras pessoas, tanto no trabalho quanto nas demais esferas da
vida. O tipo alterdirigido, sendo mais sensível ao desejo do outro, está também mais apto a
manipulá-lo de maneira eficiente. A habilidade para os negócios é, portanto, outra
característica importante dele.
Apesar do crescimento da tendência à conformidade, nas primeiras décadas desse
século ainda haviam posições profissionais muito voltadas ao trabalho técnico e à habilidade
de um ofício, típicas dos tipos introdirigidos (inner-directed) predominantes no período
histórico anterior. Esses são considerados como dirigidos ao trabalho (job-minded). Um dos
pontos freqüentemente retomados na obra é justamente a tensão psicológica existente em
muitos indivíduos como resultado da convivência estreita e contraditória de caracteres intro e
alterdirigidos. Os primeiros possuem modos de conformidade associados ao impulso de
mobilidade econômica e à uma orientação técnica, enquanto os segundos sofrem pressão no
sentido da mobilidade hierárquica e da competência social. Riesman não desconsidera
outras fontes possíveis de tensão, entretanto, enfatiza a relevância das características do novo
tipo de padrão alterdirigido, emergente na vida profissional americana: “se alguém tem êxito
em seu ofício, ele é obrigado a abandoná-lo.” (Riesman, 1995, p.196) Quer dizer com isso que
existe uma tendência à pressão por ascensão na hierarquia. Os indivíduos se distanciam dos
companheiros de mister e passam a trabalhar mais com pessoas do que com coisas. Mas isso
não quer dizer que não trate pessoas como coisas. O que está em jogo é que sua
personalidade, e não mais a sua habilidade, passa a ser objeto de especialização. Deve

52
O autor deixa claro que existem ainda representantes dos períodos históricos anteriores - os tipos
“traditivodirigidos” e “introdirigidos” - convivendo em paralelo nas formas de vida atuais. Não há intenção de
efetuar uma divisão rígida e cronologicamente precisa, e sim marcar as características mais pregnantes em cada
tipo social ideal.
55

aperfeiçoar seus atributos relacionais, ganhar em poder de convencimento para mudar sua
posição na empresa. Entretanto, não demorará a ser recordado pelos antigos colegas do que
deixou para trás, de que não mais pode se considerar um profissional competente entre seus
companheiros de profissão:

“ Na verdade, uma sociedade cada vez mais dependente da manipulação de pessoas é quase
tão destruidora do profissional e do negociante orientados no sentido do ofício, quanto a
sociedade, nos primeiros estágios da industrialização, o é em relação ao camponês ou ao
artífice orientados para o artesanato. O profissional do período mais recente é empurrado
para cima, para a classe diretorial, enquanto o artesão do período anterior era empurrado
para o proletariado; e isto atesta a profunda diferença entre as duas situações históricas.”
(Riesman, 1995, p.197)

No padrão alterdirigido de negócios, há uma progressiva desconsideração de


parâmetros como custos reais, substituindo-os pela necessidade de sintonizar com outros, de
saber a opinião corrente e a tendência que os líderes do segmento estão tomando. O comércio
é algo cada vez mais regulado e exige dos participantes uma sensibilidade psicológica para
não perseguir metas consideradas obsoletas diante dos novos estilos de vida. A inovação
fundamental do novo estilo de homem alterdirigido é um subproduto da expansão dos ideais
da sociedade de consumo: “Orientado como está para os outros e para a esfera do consumo,
visualiza seus próprios negócios como consumidor.” (ibid., p. 200) O que se procura é o
status, sendo o lucro apenas um símbolo, condição de possibilidade para a expansão do
reconhecimento desejado pela prática dos métodos da moda. Cria-se a figura do “bom homem
de contatos”, cuja principal característica é a maleabilidade e cuja principal habilidade é a
negociação suave. O homem de negócios bem sucedido pratica o mesmo conjunto de atitudes
veiculada e aprendida na esfera do consumo.
Assim, um outro tipo de educação é requerido pelo novo sistema. Fala-se do ideal do
“homem total”, treinado em humanidades e preparado para a democracia mesmo nas áreas
tradicionalmente técnicas. Obviamente, há dúvidas sobre a eficiência desses programas em
transformar os homens de negócios em melhores cidadãos, entretanto, há pouca dúvida
quanto à transformação deles em sujeitos mais suaves. Usarão sua eloqüência e o discurso
sobre relações humanas como armas. O autor utiliza a metáfora da “mão cordial” para aludir a
esse tipo de administração, em contraposição à “mão invisível”53 do período anterior
introdirigido, em que o temor da dependência pessoal era muito grande e o individualismo
desafiador se exibia pelo descaso com as formas de cortesia.
A “mão invisível” diz respeito à desconsideração da cooperação humana como

53
Expressão criada por Adam Smith para aludir ao planejamento econômico por meio do mercado livre.
56

aspecto importante para a produção. Relaciona-se aos caracteres introdirigidos, nos quais
processos intelectuais e tecnológicos seriam mais importantes e levados a cabo sob a gerência
de uma cooperação anônima e invisível. A economia de mercado dessa fase seria bem mais
frouxamente articulada e impessoal do que hoje em dia, favorecendo um certo tipo de
ambição expansionista encorajada por ideais puritanos e jansenistas. A perseverança e o zelo
dos negócios provocava o afastamento da família, dos amigos e até da humanidade:

“A conexão entre trabalho e propriedade, numa era de capitalismo competitivo privado [...]
reforçou as possibilidades de isolamento das pessoas. A propriedade, para o homem
introdirigido, veio a ser livremente transferível; o indivíduo não estava ligado a ela, como na
era anterior, por laços sentimentais e tradicionais, porém ele a ligava a si por suas próprias
escolhas e por suas ações enérgicas. Não sendo mais um problema da família extensa, a
propriedade tornou-se uma parte extensa, uma espécie de exosqueleto para o eu individual.”
(Riesman, 1995, p.180)

O distanciamento da tradição, fez o homem introdirigido consciente de seu poder de


decidir, por exemplo, como e quando se dedicará à diversão. Tentará combinar negócios e
prazer, planejando passar mais tempo no escritório, introduzindo mais descontração e
interação em sua rotina. Apesar de poder deliberar sobre isso, quase sempre não é capaz de
executar seus planos. Está submetido a longas e árduas jornadas de trabalho. Desse
anacronismo, emerge a figura do “negociante cansado”, que transfere aos curtos momentos
dedicados ao consumo o desejo de independência típico dos momentos de lazer. E, nesses
momentos, consome com o mesmo dinamismo que imprime aos processos de distribuição.
Põe em prática o desejo apaixonado de tornar as coisas “suas” e acaba por atribuir a elas a
mesma impessoalidade, as mesmas motivações e ideais com que conduz o processo
produtivo.
A mão de obra do início do século ainda era muito numerosa e a disposição pessoal
dos membros da força de trabalho não necessitava estar em questão. A atenção era
concentrada no produto e não nos produtores. A preocupação principal não era com
motivações e sim com a natureza física. Para fazer valer o empenho em alterá-la e adaptá-la, o
homem necessitava de confiança em si mesmo, de decisão e ambição. Ao nosso ver, essa
preocupação introdirigida é herdeira da modernidade, no sentido analisado no ítem anterior. O
zelo em alcançar o controle econômico e financeiro, bem como a ênfase nos empreendimento
científicos individualizados, destacados por Riesman, parecem ir ao encontro da percepção
arendtiana de que a humanidade moderna se tornou incapaz de ter segurança na veracidade do
conhecimento das coisas que ela própria não controla ou não fabrica. Parecem também
consonantes com o “projeto moderno” de adequar o mundo às necessidades e capacidades do
homem, a seu padrão de racionalidade, como ressalta Bauman (1998). A segurança no próprio
57

poder de produção é afirmativa, porém mantém aberta a ferida da impossibilidade de saber


como as coisas de fato são. Tal impossibilidade, ameaça constantemente a vontade humana de
reforçar seu sentido de domínio do que está fora, e condiciona o aprisionamento nas coisas de
dentro, em seus fantasmas e sombras insistentes:

“ Podemos resumir muito do que é significativo a respeito da introdireção, dizendo que, numa
sociedade onde ela domina, sua tendência é de proteger o indivíduo contra os outros, ao
preço de deixá-lo vulnerável a si mesmo. Uma prova disto está no medo largamente difundido
e no ataque à apatia que parece datar da era da introdireção. [...] Este ataque aos outros
como apáticos - como hoje, por exemplo, nas queixas constantes contra a apatia civil e
política - servia às vezes como meio de luta contra a própria apatia. De fato, a pessoa
introdirigida dá testemunho de saber inconscientemente que seu giroscópio não lhe é próprio,
porém foi instalado por outros, através de seu temor crônico e pânico de que o giroscópio
cesse de girar, de que ele próprio não é um arranque automático, de que a vida em si não é
um processo e uma renovação, porém uma proteção trabalhosa da morte psíquica.”
(Riesman, 1995, pp.189-90)

Riesman pondera que a impessoalidade da vida econômica introdirigida nunca foi tão
grave como parecia, já que tons de personalização traditivo-dirigidos sobreviviam em muitas
situações. Ainda na década de vinte, por exemplo, um menino não se preocupava com a
escolha da carreira, pois podia sonhar com metas a longo prazo; não lhe ocorria que pudesse
ficar muito tempo sem emprego. O jovem introdirigido, socializado em modelos ainda
fortemente influenciados pela tradição, podia se orientar pela identificação devaneadora com
os astros de seu tempo, sonhando alcançar o mesmo respeito a eles dedicado. É verdade que a
mão invisível da mudança tecnológica, contemporânea à introdireção, já se movia
incomensuravelmente mais depressa do que na fase do domínio tradicional; entretanto, seu
movimento era lento se comparado à velocidade da atualidade. O que quer dizer que, se o tipo
introdirigido competia com outros que estavam empenhados na conquista da mesma ambição,
o indivíduo alterdirigido, mais recente, se move numa massa muito maior de contemporâneos
com as mesmas aspirações. A incerteza da vida futura os faz muito mais incapazes de
compromisso com metas a longo prazo. São muitos os obstáculos ao planejamento de uma
carreira. As encruzilhadas no caminho profissional passam a ser cada vez mais precoces.

Não obstante as dificuldades do estabelecimento de metas a longo prazo e a falta de


confiança em conquistá-las, em tempos de alterdireção, Riesman considera que essas
características abrem espaço para escolhas mais individuais e satisfatórias. Permitiriam aos
indivíduos relaxar diante da pressão social de decidir prematuramente e, com isso, não sofrer
do pânico de não conseguir chegar a uma decisão. O indivíduo alterdirigido estaria consciente
58

de que brilhar sozinho é irrealizável e de que deve procurar, no grupo cômpar,54 as normas do
que se deve desejar. Na diversidade de papéis e de clientes, entretanto, “a pessoa alterdirigida
tende a converter-se simplesmente na sucessão de seus papéis e encontros, e, portanto, a
duvidar sobre quem ela própria seja ou para onde ela vai.” (ibid., p.206, grifos nossos)
Substitui-se uma política “unifacial” em favor de outra “multifacial” estabelecida em segredo
e vicariante conforme o tipo de encontro que tiver pela frente. Sua proteção social, econômica
e política será a do grupo, que decide quem são os intrusos, aqueles a quem não se precisa
estender a “mão cordial” e de quem se pode até exigir uma modificação para uma melhor
conformidade: “No entanto, a nenhuma porção de exclusividade, por mais que ela possa
facilitar a vida bastante para o de dentro (insiders), é dado garantir completamente a
continuação num lugar de visibilidade e aprovação na Via Láctea.” (ibid., p. 207) Ou seja,
Riesman crê numa consciência aperfeiçoada dos limites individuais e grupais que impede ou
desencoraja fortemente ambições de brilho individual e dominação grupal:

“Nunca é demais ressaltar, entretanto, que a alterdireção consiste num passo além da
preocupação conformista com a opinião favorável dos outros. [...] O que queremos dizer com
alterdireção (apesar do termo propriamente dito conotá-lo apenas em parte) envolve uma
redefinição do eu, afastada da ênfase dada por William James dos aspectos externos do nome,
roupas, posses, e no rumo das qualidades interiores e de interação. A pessoa alterdirigida
deseja ser amada mais que estimada; ela não quer burlar ou impressionar, muito menos
oprimir os outros, mas, em linguagem corrente, relacionar-se com eles; procura menos um
status esnobe aos olhos dos outros, do que a segurança de estar emocionalmente em
harmonia com eles.” (Riesman, 1995, p. 34)

Realizar uma análise mais extensa da obra certamente nos desviaria do objetivo desse
estudo. Reconhecendo sua qualidade, gostaríamos apenas de sublinhar uma ambigüidade que
parece relevante no que diz o autor. Ao analisar introdireção e alterdireção como caráteres
sociais em convívio, ele parece ambivalente quanto aos reais avanços éticos dessa perspectiva
em relação àquela. Em geral, parece acreditar que a alterdireção segue num sentido oposto à
herança individualista introdirigida do século dezenove, que valoriza a livre iniciativa e a
competitividade. Entretanto, o argumento de que uma parcela da juventude americana estaria
começando a experimentar modos de vida comunal, não significa, a nosso ver, como pensa o
autor, que tenham se tornado indivíduos menos competitivos, mais “francos”, “desinibidos”,
“interessados pelos outros” e “sempre dispostos a mudar”. Por outro lado, a disposição para a
mudança de metas conforme a orientação dos parceiros de grupo, bem como a própria
dependência dessa fonte internalizada, podem assumir características nefastas de volatilidade

54
Grupo cômpar é o grupo formado por crianças e especialmente adolescentes que andam juntos, possuem mais
ou menos os mesmos gostos e interesses, se protegem e se aceitam mutuamente.
59

de comportamentos, éticas e moralidades.55 Podem também estimular posições de relativismo


ético paroquial, cuja obsolescência discutiremos adiante.
Riesman acredita numa repressão da competitividade manifesta que decorre do
modelo alterdirigido da competição por aprovação. Mas, perguntamos, competição de quem
em relação a quem? Se os novos modos de vida estão ligados à um parâmetro de adequação a
um grupo cômpar que define regras e identidades, a questão da competitividade apenas se
desloca em dois caminhos: c tacitamente, se buscará definir aqueles mais “adequados” ao
ideário grupal - os líderes, e d explicitamente, se disputará espaço social competindo com
outros grupos ou indivíduos, de maneira até mais violenta e excludente que na
competitividade individual manifesta. Haverá algum tipo de vantagem nessa transformação
que faz os sujeitos “consumidores de si mesmos” ? A que progresso ético, perguntamos,
corresponde a consideração de pessoas e amizades “como os maiores dentre todos os artigos
consumíveis”? (ibid., p.148) O próprio autor ressalta, em outro trecho da obra, que a
preocupação da pessoa alterdirigida com a posição diante do outro pode mesmo exigir que
essa posição seja marcada na violência.
Não acreditamos que as exigências de adequação ao grupo cômpar sejam a priori
menos pesadas que as rígidas metas da introdireção. É verdade que o estudo é antigo o
suficiente para não ter podido observar o fracasso do ideal de vida comunitária hippie, a
violência das galeras de jovens perdidos e a miséria afetiva de certos guetos identitários
alimentados pela ganância do mercado, supostamente menos impessoal e mais sensível às
particularidades de cada ser. Não sabemos o quanto a situação de pós-guerra recente –
experiência de vencer o inimigo comum - pode ter interferido na esperança de Riesman
quanto ao estabelecimento da referência grupal como mantenedora de um processo de
melhoria ética. Mas duvidamos seriamente da possibilidade dos grupos cômpar atuais
poderem ter “um conjunto relativamente independente de critérios que o ajudam a manter,
não apenas a diferenciação marginal, com até uma certa margem em relação aos meios de
comunicação.” (ibid., p.174) Não nos parece que a história das últimas quatro décadas tenha
mostrado que tais grupos tendem a estabelecer seus próprios padrões de crítica dos meios de
comunicação. Tampouco nos parece provável que o indivíduo alterdirigido possa desenvolver

55
As noções de ética e moralidade tem sido utilizadas de várias maneiras pelos vários campos do saber. Para
Foulcault, segundo Ortega (1998a), a Moral inclui código moral, comportamento moral e constituição de si
mesmo como sujeito moral. A constituição de si trata das modalidades de auto-relacionamento, e são
denominadas “éticas” ou “ascese” – práticas de si. Nelas estaria o lugar de aparecimento do novo, permitindo a
“atividade de autoformação”. Bauman (1993) utiliza “Moralidade” para aludir ao campo mais geral dos
fenômenos morais e “Ética” para se referir aos códigos de conduta culturalmente determinados. Possui uma
visão “minimalista” que parece mais próxima da corrente wittgensteiniana, evitando delimitação de múltiplos
conceitos que se distanciem da linguagem ordinária. Acreditamos que, na linguagem corrente de nossa cultura,
em geral há uma mistura dos sentidos de moral e ética. Adotamos, portanto, a terminologia de Bauman.
60

áreas de privatividade criativa dentro do ajustamento grupal e da pressão dos meios de


comunicação de massa, sendo capaz de valorizar, como veremos adiante, a experiência
moralmente relevante de estar só, conversar consigo próprio, inventar coisas novas e ter
sonhos não “supervisionados”. O compartilhamento de um ideário comum, quando definido
unicamente em termos de adequação e aprovação grupal, não nos parece inclinado a
responder satisfatoriamente às aspirações de uma vida menos passiva, menos pessimista e
mais solidária.
A Obra de Riesman é referência dentro da sociologia na primeira metade desse século.
Seus estudos - A multidão solitária e Rostos na multidão - são marcos da solidão moderna, do
mesmo modo que boa parte dos trabalhos de Norbert Elias. Ou seja, criaram vocabulários
novos para análises originais do fenômeno solitário na vida urbana da classe média industrial
capitalista. Essa a principal razão de nosso interesse. Apesar de nossas críticas à visão
benevolente do caráter alterdirigido, essa noção é, em si, uma inovação que contribui para o
estudo das novas maneiras de organização subjetiva surgidas na segunda metade do século.
Sua descrição foi aproveitada por outros autores na elaboração de tipos sociais
contemporâneos, como no estudo de Margolis, que analisaremos a seguir.

2.2. O Eu de troca

O exchanger self56 é um dos tipos sociais avaliados por Diane Margolis. O objetivo da
autora é realizar um estudo que sirva como espelho para reflexões coletivas e que ajude a
reabilitar o crédito no espírito público e no altruísmo. Ela pretende dar visibilidade e
respeito analítico às visões alternativas à concepção hegemônica do eu como competitivo e
negociador racional, mostrando suas influências na vida contemporânea. A visão dominante
do eu como uma entidade de troca (cuja maior parte das características assemelha-se ao eu
introdirigido de Riesman) esmagaria a vida familiar, as tradições religiosas, a política local,
enfim, os “hábitos do coração”, diz Margolis, citando Tocqueville. Esse tipo de eu é
considerado como predominante nas sociedades americana e inglesa contemporâneas.

“It is so powerful a view in contemporary Western societies that it often appears to be the only
view. Its conceptualization of the self is intensely individualistic, possibly the most
individualistic moral system any culture has ever constructed. It projects an image of the self
as an exchanger, a rational calculator balancing the quid pro quos of life. The belief that

56
Utilizaremos em geral ‘eu de troca’ como tradução para a expressão exchanger self.
61

nobody gets or gives anything except in exchange for something else permeates this view of
human nature and human behavior.”57 (Margolis, 1998, p.2-3)

A autora compara a orientação moral do eu de troca e a orientação moral presente em


outras imagens do eu. Seu intuito é mostrar como o eu ideal dominante – o eu de troca –
convive e negocia seus interesses com outros padrões de atitude. A importância das
construções heurísticas para propósitos analíticos, segundo a autora, é realizar um esforço de
valorização da multiplicidade identitária que ela acredita já existir. Os tipos de eu estariam se
tornando cada vez menos “puros”, cada vez mais ambivalentes em suas orientações morais,
devido ao quadro social de nossa época.
Do ponto de vista teórico, Margolis se refere ao construtivismo social de Gagnon
afirmando que idéias de eu podem ser descritas como eventos na história, produtos culturais
inventados e modelados conforme particularidades da visão do que é o ser humano. Atribui a
Mead o sentido mais geral de self que utiliza, desdobrável em características particulares: o
self não é um objeto estável; é como “a process that occurs in human interaction [...] The self
is process.”58 (Margolis, 1998, p.6) Nesse processo, cada imagem de eu assume fronteiras
extremamente variáveis: “The boundary an image draws around the self that it constructs is
one of the most significant aspects of the image.”59 (idem) Para ela, imagens do homem, tão
díspares quanto as de Hobbes, Darwin e Spencer, Smith, e Freud60, quando simplificadas pelo
uso popular, se adaptam à visão do humano como um negociador.
Os dois principais contrapontos da descrição do eu de troca são o eu cósmico e o eu
da obrigação, que apareceram há mais tempo, em muitas culturas. O eu da obrigação está
relacionado à idéia de que existem alguns membros da sociedade que possuem, por natureza,
um status inferior, estando confinados numa rede de obrigações que não se orientam pelos
próprios interesses. É um eu que contribui para o terreno das necessidades humanas de
maneira que os eus de troca - apesar de dominarem o cenário e obscurecerem os outros - não
podem contribuir. Ou seja, o eu da obrigação é aquele que se responsabiliza pelo suprimento
de certas necessidades cotidianas de todo um grupo. Margolis enfatiza, em Rousseau, o
exemplo do eu feminino. Esse “eu feminino” é contemporâneo ao apogeu do eu de troca,
típico da figura masculina, porém se funda numa sensibilidade e moralidade da ordem das

57
“Uma certa visão das sociedades contemporâneas ocidentais é tão poderosa que parece ser a única. Sua
concepção de eu é intensamente individualista, provavelmente o sistema moral mais individualista que qualquer
cultura jamais construiu. Ele projeta uma imagem do eu como um negociador, um calculista racional
equilibrando os quid pro quos da vida. A crença de que ninguém recebe ou dá nada exceto em troca de alguma
outra coisa, permeia esta visão da natureza e comportamento humanos.”
58
“ um processo que ocorre na interação humana [...] o eu é processo.”
59
“A fronteira que uma imagem delimita em torno do eu que ela constrói é um dos mais significantes aspectos
da imagem.”
60
“Mechanical and reckoning man”, “competitive man”, “economic man” e “hedonic man”, respectivamente.
62

obrigações: “Women’s sphere did for market society what the lower orders had done for
61
feudal society: it provided for life’s necessities with obligatory daily toil.” (ibid., p.190) O
labor relacionado ao eu das obrigações é repetido incessantemente; não tem princípio nem
fim; não se fia na inconstância do capital nem nas flutuações do mercado.
O eu cósmico, por outro lado, se relaciona a uma existência espiritual, de início,
religiosa. Está incorporado ao universo orgânico, aspirando à diluição das fronteiras em
relação a ele. O eu cósmico vê a vida como uma busca sem fim por unidade com o universo.
Na cultura ocidental, se desvinculou de ancoragem no mundo suprasensível pelas
consequências do movimento romântico. Transformou-se, como vimos no primeiro capítulo,
numa visão do eu como qualidade essencial e interior de uma pessoa, centro dos
sentimentos e coração do ser, ao qual nos dirigimos com atitude de descoberta, pois ele clama
por expressão. A imagem de eu cósmico destoa completamente das duas visões anteriores,
porém as mantém intactas.
A imagem do eu como um cambista, naturalmente competitivo e dirigido aos próprios
interesses vem sendo elaborado pelo menos desde a Renascença. Margolis explica que quando
a Terra deixou de ser tão rica em recursos naturais não explorados, as relações de mercado,
antes impedidas pelas fronteiras físicas dos muros das comunidades feudais, transformaram a
economia, a política, a vida social e transportaram uma imagem emancipada do eu para o
centro. Os muros passam a ser invisíveis e fazem fronteiras ao redor de cada indivíduo, livre
dos elos com enredos familiares duradouros. Em sua origem histórica, como foi visto, o eu de
troca está ligado à idéia de liberação das obrigações familiares e dos arranjos sociais rígidos,
que visavam à sustentação da vida coletiva. Os membros da nova classe emergente
necessitavam tirar proveito de sua liberdade conquistada. Não careciam de proteção e
tampouco se sentiam obrigados a proteger.
A sociedade de mercado, baseada em abstrações impessoais como valores de troca,
ensinou aos burgueses a auto-suficiência dos fortes. Abriu espaço para a desobrigação com os
fracos, tendo como resultado o crescimento do número de desabrigados e pobres. Segundo
esse modelo, o homem é livre e apto a escolher e estabelecer contratos voluntários. Essa
orientação trata o próprio eu como mercadoria, com todas as propriedades de um objeto de
troca. Tal objeto está em constante relação com outros objetos, mas se quer separado deles.
Como o próprio mercado, a pessoa se tornou algo sem lugar fixo ou definido, sem vínculos
necessários à sua própria identidade. O eu de troca se apresenta como racional e auto-centrado
na luta por controle emocional e pela avaliação constante dos aspectos da vida.

61
“A esfera feminina fez pela sociedade de mercado o que os estratos inferiores fizeram pela sociedade feudal:
prover as necessidades da vida com suas tarefas diárias.”
63

Simmel (1976), no início do século, descreveu as tentativas dos indivíduos


preservarem sua individualidade e liberdade no meio das esmagadoras forças sociais da vida
na metrópole, cada vez mais agitada, engarrafada, misturada, saturada, mas acima de tudo,
interdependente. Localizou no século XVIII o surgimento da necessidade de especialização
funcional no trabalho, fazendo dos homens seres incomparáveis e indispensáveis, mas que,
mesmo resistindo ao nivelamento e à uniformização, são levados à uma acomodação forçada
de sua personalidade às forças externas da intricada rede urbana. Todas as exterioridades
mais banais da vida estão ligadas às decisões relativas ao significado e ao estilo de vida de
todos. A técnica da vida metropolitana necessita de uma integração das atividades e relações
mútuas em um calendário estável e impessoal.
A vida urbana, em contraposição à rural, por si só extrairia do homem uma quantidade
maior e mais sofisticada de consciência, obrigando-o a efetuar mais diferenciações em seu
universo de sentido. O intelecto, sendo a mais consciente das “forças interiores”, se torna, na
opinião de Simmel, a faculdade mais adaptável. Diferentemente das emoções e sentimentos –
consideradas estáveis, a intelectualidade é a força mais utilizada, se ramifica em muitas
direções e se integra com numerosos fenômenos discretos. A predominância da inteligência e
a valorização da consciência no homem metropolitano se destina a preservar a vida subjetiva
contra o poder avassalador da vida urbana.
Uma das vinculações mais freqüentes e importantes do intelecto é à economia
monetária. O lidar com homens e coisas se torna algo prosaico, resultando em um senso de
justiça apenas formal e numa dureza desprovida de consideração para com a individualidade
genuína. A individualidade e as reações emocionais íntimas que lhe são típicas acabam por ser
reduzidas aos princípios de “valor de troca”. Apenas a realização objetiva, mensurável, é de
interesse, adverte Simmel. A produção para o mercado torna todos participantes anônimos e
os interesses de cada parte - seus egoísmos calculistas - são impiedosamente guiados pela
atitude “prosaicista”.

“... ninguém pode dizer se foi a mentalidade intelectualística que primeiro promoveu a
economia do dinheiro ou se esta última determinou a primeira. [...] A exatidão calculista da
vida prática, que a economia do dinheiro criou, corresponde ao ideal da ciência natural:
transformar o mundo num problema aritmético, dispor todas as partes do mundo por meio de
fórmulas matemáticas.”(Simmel, 1976, p. 14)

Margolis cita o exemplo da ideologia veiculada pela revista americana Self como um
exemplo típico de orientação do eu de troca. Sugere que seus autores imaginam que nós
podemos possuir a nós mesmos “como um fabricante possui plástico”, já que oferecem
conselhos sobre como se moldar da mesma maneira que se manufatura uma matéria-prima
64

qualquer. O eu é, ao mesmo tempo, um negociador de bens e uma propriedade alienável,


fruto de sua própria criação, cuja responsabilidade pode ser transferida a outrem. Suas posses
incluem características e habilidades pessoais que devem ser competitivas num mercado em
que o importante é impressionar os outros. Suas atitudes de controle das coisas e situações são
mecânicas, desprovidas tanto quanto possível de conteúdo emocional.
A negação das emoções e a necessidade de auto-controle derivam de um tempo em
que o crescimento da multidão dos excluídos descontentes gerou violência e desordem.
Margolis ressalta que as idéias filosóficas mecanicistas do século XVII, em última instância,
se apresentaram como soluções para a incerteza, a instabilidade social e a irresponsabilidade
individual dessa época turbulenta. 62 A mecanização do cosmos e a automatização do homem
respondiam às aspirações correntes e perigosas por competição, dominação e glória pessoal.
A metáfora teatral do mundo, que dominava o imaginário desde os gregos até a Renanscença,
foi atualizada pela idéia de autonomia do ator em modificar o próprio papel. Buscava-se
incentivar a idéia de responsabilidade pela própria direção e estabilizar a noção do homem
como autor dos enredos de sua vida e proprietário de suas atitudes.
Além da atribuição da responsabilidade, antes delegada a Deus - motor e diretor do
teatro do mundo, outra importante idéia do século XVII é originária da orientação do eu de
troca: a noção do eu como passível de se separar de suas unidades componentes para ser
observador e criador de si mesmo. Essa propriedade, chamada de desacoplamento
(disengagement), requer grande capacidade para reflexão, habilidade instrumental de objetivar
e o poder de refazer a si mesmo, se distanciando de qualquer característica particular, vista
como objeto de modelagem. Derivam dela as crenças populares de que “tudo depende de si
mesmo” e que “você pode ser o que quiser.” (Margolis, 1998, p.30) Para estes puntual
selves63, roupas, corpos, talentos e mesmos paixões podem e devem ser estabelecidos
racionalmente pelo self, na medida em que são igualmente suas propriedades.64
Possuir-se e controlar-se são as virtudes prototípicas dos eus de troca. Alterações do
vocabulário da cultura acompanharam estas noções em paralelo, dando solidez narrativa às
atitudes subjetivas de frieza e à capacidade para recuperar o auto-controle diante de qualquer
situação. Entretanto, Margolis sugere que esse eu de troca não é tão livre dos tormentos

62
Bauman (1995) invoca Lyotard para aludir ao fato de que aprendemos historicamente a identificar a
maturidade humana com previsibilidade, realidade e regularidade, relegando as emoções à posição de
“infantilidade”: “We dub ‘emotional’ the act and thought that is not bound by the results of measurement and
evaluation. Emotion do not reason, let alone reason logically. They are not consistent and rarely happen to be
cohesive, free of inner contradictions. They evade or exploide any frame built of norms and rules.” (ibid.,p.63)
63
“Eus pontuais”, noção descrita por Charles Taylor.
64
Essa possibilidade de “refazer a si mesmo”, estabelecendo parâmetros próprios de conduta, podem evocar a
idéia foucaultiana da construção de novos estilos de existência. Adiante veremos que existe, por exemplo, uma
diferença fundamental entre a “liberdade” do eu de troca para se unir a quem lhe interessar e o ideal da amizade
como um estilo de vida.
65

emocionais quanto parece. Salienta que nas culturas européia e norte-americana, desde a
Renascença, tendências contrastantes de liberdade e constrangimento conviveram lado a lado
no desenvolvimento do conceito de eu de troca, mostrando outras faces dos mesmos
indivíduos e outras vicissitudes do mesmo processo:

“Individualistic moral orientation and a view of human nature as self-interested were


necessary for the development of market society. Nowadays, in a world transformed by market
- a world in wich racionalistic, individualistic moral precepts hold the strongest sway -
limitations of that view are becoming increasingly apparent.” 65(Margolis, 1998, p.6)

A primeira tendência contrastante, que mostra a coexistência de atitudes


ambivalentes num mesmo tipo de eu, é a aquisição de poder pelos objetos. Os objetos
passaram a possuir os sujeitos, dominar sua capacidade de se apropriar livremente de si e das
coisas. Duas posições escravizantes são geradas: o comprometimento total ou a completa
alienação.
A segunda tendência diz respeito à crise de identidade gerada pela possibilidade
múltipla e volátil de se autoconstituir: “If freedom from the feudal barriers that defined people
in terms of their social position meant that people could make something of themselves, it
also meant that they could make anything of themselves.”66 (ibid., p.32) Construir-se se torna
uma atividade assustadora e de sucesso imprevisível, já que, a princípio, o indivíduo acredita
ter liberdade de ser o que quiser ser.
O terceiro fator contrastante seria uma demanda por conformidade, engendrada pela
sociedade de mercado. Se o trabalho é comercializado e as pessoas tratadas como matérias-
prima, seu valor deverá ser julgado conforme a performance comparada à testes standard,
contradizendo os princípios de liberdade e expressão individual. Onde o árbitro é o mercado,
o valor do eu e da própria vida flutua conforme os ciclos de negócios. A tolerância à variação
é apenas uma falsa promessa.
A quarta contradição pode ser desmascarada por um raciocínio semelhante ao anterior:
se o homem é livre para escrever o roteiro de sua própria história entre várias alternativas
possíveis, por que é submetido aos limites de sanidade e adequação, impostos pela esfera
política e, novamente, pelos interesses do mercado? Assim, a ação conforme os próprios
interesses “was a virtue so long as individuals acted ‘with a rational, calculating spirit that

65
“ A orientação moral individualista e a visão da natureza humana como autointeressada foram necessárias ao
desenvolvimento da sociedade de mercado. Atualmente, num mundo modificado pelo mercado – um mundo no
qual os preceitos racionalistas e individualistas alcançam sua mais forte tendência - limitações desta visão estão
se tornando cada vez mais aparentes.”
66
“Se a liberação das barreira feudais que definiam as pessoas em termos de suas posições sociais significava
que as pessoas podiam fazer algo de si próprias, significava também que elas podiam fazer qualquer coisa de si
próprias.”
66

would often imply prudence and moderation.’ Under the guidance of the Invisible Hand,
interests would serve the general good.”67 (ibid., p.37) A adequação à racionalidade
permitirá ao homem livre o cálculo correto dos interesses, informará o limite - único - das
ações livres aceitáveis, se a ele forem dadas todas as informações necessárias. Só a maldade e
a estupidez o desviarão da verdade unitária.
Finalmente, a questão da mobilidade social aparece como a quinta tendência
contrastante. Para alcançar os estratos superiores, o homem de troca, uma unidade racional,
calculista, fria e com a posse de si mesma, não pode manter seus vínculos originais. Não pode
se ligar a ninguém. Deve se manter separado; a individuação e a privatividade são as
verdadeiras fundações de si. O isolamento se torna o aspecto mais limitante do modelo de
constituição subjetiva pelos valores de troca. A incapacidade de se ligar emocionalmente a
outros de forma profunda é a mais devastadora conseqüência das supostas livres
possibilidades de se associar a qualquer pessoa e ascender na escala social. Ao contrário do
esperado, o homem livre das barreiras da distinção social rígida não consegue estreitar laços
com os outros. “The exchanger is a solitary person.”68 (ibid., p.139)

“If interests relates men, it is never for more than some few moments. It can create only an
external link between them. In the fact of exchange, the various agents remain outside of each
other, and when the business has been completed, each one retires and is left entirely on his
own. Consciences are only superficially in contact; they neither penetrate each other, nor do
they adhere.” 69(Durkheim apud Margolis, 1998, p.139)

Retomando Simmel, lembramos que o homem moderno, cujo mundo é estruturado na


impessoalidade da exatidão e da precisão minuciosa e, ao mesmo tempo, na subjetividade
altamente pessoal, desenvolve uma atitude blasé perante tudo. A perseguição desregrada ao
prazer e o “embotamento do poder de discriminar” seriam responsáveis por tal atitude. O
significado e o valor diferencial das coisas, bem como as próprias coisas, são experimentados
como destituídos de substância. A autopreservação de certas personalidades é comprada ao
preço da desvalorização de todo mundo objetivo; a personalidade da própria pessoa acaba
sendo arrastada para uma sensação de inutilidade. A necessidade de se autopreservar gera
uma “atitude mental de reserva” e o aspecto interior dessa reserva exterior não é apenas a
indiferença, mas uma estranheza e repulsão mútua, facilmente transformável em ódio e luta.

67
“era uma virtude até onde os indivíduos agiam ‘com um espírito racional e de cálculo que implicariam
freqüentemente em prudência e moderação.’ Sob o domínio da mão invisível, os interesses serviriam ao bem
comum.”
68
“O negociador é uma pessoa solitária.”
69
“Se interesses unem os homens, nunca é por mais que alguns momentos. Podem criar apenas uma ligação
externa entre eles. No fato da troca, os agentes permanecem separados uns dos outros, e quando o negócio
termina, cada um se retira e é deixado completamente entregue a si. As consciências estão apenas
superficialmente em contato. Nunca penetram umas as outras, nem aderem a elas.”
67

Para se defender da indiferença que as próprias ações alimentam, se cria a antipatia, que
garante as distâncias e aversões necessárias a manutenção do modo de vida:

“Essa reserva, com seu tom exagerado de aversão oculta, aparece, por seu turno, sob a forma
ou a capa de um fenômeno mais geral da metrópole: confere ao indivíduo uma qualidade e
quantidade de liberdade pessoal que não tem qualquer analogia sob outras condições.”
(Simmel, 1976, p.18)

Para Simmel, o “sentido refinado” da liberdade metropolitana não se torna uma


vantagem, como pode parecer. O indivíduo livre e independente experimenta a reserva e a
indiferença dos outros de forma mais intensa. A proximidade física pela falta de espaço na
concentração da grande cidade torna a distância mental mais visível e faz a pessoa se sentir
solitária e perdida em meio a multidão que constantemente está a sua volta. Sob certas
circunstâncias, a pessoa em nenhum lugar se sente tão solitária e perdida quanto na multidão
metropolitana. O reverso de sua liberdade é a falta de reflexão em termos de conforto
emocional, como pensa Margolis. A metrópole têm uma espécie de independência essencial
de qualquer personalidade individual. Essa é a verdadeira contrapartida da liberdade
desfrutada pelos indivíduos, um “retrocesso da cultura” com relação a espiritualidade,
delicadeza e idealismo.
Observamos várias semelhanças descritivas entre as noções de eu de troca e de ego
introdirigido, o que era esperado pelo fato dos estudos se referirem às mesmas sociedades e à
heranças históricas semelhantes. Entretanto, chamaremos a atenção para uma importante
diferença entre as análises de Riesman e Margolis. Riesman parece sugerir que a alterdireção
substitui a introdireção como tendência dominante, uma espécie de padrão no qual se
incluiria, progressivamente, a grande maioria das pessoas. Margolis, por outro lado, dá mais
relevo à coexistência, em detrimento da idéia de substituição. Acredita que o
compartilhamento de características e atitudes entre os tipos de eu é justamente o que marca o
final do século. A impossibilidade de distinção absoluta entre eles se deve à natureza dos
processos emocionais frente à grande variação de contextos e situações. As reações de cada
tipo de eu, por mais claras que sejam suas fronteiras, se assemelham ou divergem de acordo
com cada universo contextual específico e imprevisível. O eu de troca, por exemplo,
apresenta certas reações que se confundem com reações dos outros tipos de eu descritos pela
autora. Apesar de corresponder mais ao tipo introdirigido de Riesman, também compartilha
características com seu tipo alterdirigido.
Acreditamos que o fundamental em Margolis é notar que as crenças, normas,
moralidades, modos de pensamento e maneiras de sentir podem ser constantemente
reformulados pelos tipos de eu na interação com o ambiente. A sua contribuição principal à
68

essa tradição de estudo, que recentemente tem passado a incorporar as emoções como
fenômenos dignos de consideração, é a suposição de que uma cultura pode simultaneamente
empregar muitos sistemas morais, cada um deles estabelecendo diferentes fronteiras em torno
do self. Não haveria uma única ordem moral organizada em papéis e status sociais, na qual
diferentes imagens de eu nos movem a sentir e agir de formas variadas. Existiriam alguns
sistemas morais operando simultaneamente, cada um com imagens de eu e concepções do que
é certo e errado que lhe são próprios. As emoções seriam aquilo que nos permitiria sentir o
que acontece nas fronteira de cada self que internalizamos. A racionalidade só pode ser
temperada com emoções. Esta é a principal razão pela qual a orientação do eu de troca não
pode ser única dentro de uma cultura:

“Because the exchanger orientation is designed for human relationships that can be more
fleeting than sand sculptures, market-dominated societies necessarily enjoy other moral
orientations. Members of these societies construct and reconstruct themselves from a full
palette of images as they move from one social context to another.” 70(Margolis op.cit., p.40)

Margolis busca descrever formas combinadas de imagens do eu para subsidiar a


abordagem do tema das emoções. Essas formas combinadas demonstram a diversidade de
orientações morais existentes nos contextos sociais. Os tipos descrito são os seguintes: c O
eu reativo (reactive self) combina características do eu de troca e orientações do eu da
obrigação. d O eu engajado (called self) combina características do eu cósmico e do eu da
obrigação, geralmente associadas a artistas e devotos religiosos. e O eu cívico (civic self)
combina orientações do eu cósmico e do eu de troca e corresponde ao eu inventado na antiga
Grécia e adaptado à democracia moderna para garantir comportamentos considerados
coerentes com a boa cidadania. A análise se baseia principalmente nas relações desses tipos
de eu com a dádiva. A autora justifica essa démarche pela referência a estudos clássicos.
Adverte, entretanto, que não tenciona manter as dicotomias tradicionais entre otimistas e
pessimistas na consideração do altruísmo.71 Busca evitar uma falha que considera comum aos

70
“Porque a orientação de troca é desenhada para relações humanas que podem ser mais instáveis do que
esculturas de areia, as sociedades de mercado necessariamente apreciam outras orientações morais. Membros
destas sociedades constroem e reconstroem a si próprios a partir de num conjunto completo de imagens na
mesma medida em que se movem de um contexto social a outro.”
71
Referência à divisão dos cientistas sociais efetuada por Hewitt. Durkheim seria o representante dos
pessimistas, que encaram a sociedade como algo em declínio e alimentam uma nostalgia por formas de
organização anteriores, mais estáveis. Para eles, o coletivo é o ponto de partida, o homem é um ser moral porque
vive em sociedade, que é a sua fonte de suporte e cuidado. Não é autosuficiente e deve ser protegido das
sociedades altamente diferenciadas que correm o risco de perder a solidariedade baseada na mútua dependência.
Nos termos de Margolis, favorecem as orientações do eu cósmico e do eu das obrigações. Comte seria o
representante dos otimistas, que encaram o individualismo como produto de uma nova forma de consciência que
faz o homem triunfar sobre as tentativas de dominação do social. A solidariedade com o grupo vai se fazendo
aos poucos, ou seja, os indivíduos vão alterando os limites de seu ego e ampliando sua orientação de troca no
sentido de incluir características do eu das obrigações e posteriormente de outros tipos. Acreditam que
69

estudos comparativos entre relações baseadas na dádiva e relações baseadas na troca, qual
seja, a de colocar a grande variedade daquelas como periféricas em relação à centralidade
destas. Coloca-se ao lado de teóricos como Riesman e Lasch, que acusam o Ocidente
moderno individualista de não cumprir a expectativa de conceder o devido respeito a uma
parcela maior de seres humanos, quase sempre estabelecendo fronteiras para o eu de forma
paroquialista: “That is why it must invent the idea of contracts to create community and also
the laws of right to protect individuals from the group with which they have no sense of
oneness.”72 (Margolis, 1998, p.113) Entretanto, não parece mostrar a ingenuidade de imaginar
uma separação completa entre moralidade e identidade individual.
A noção de moralidades não individuais é fundamental para os nossos propósitos.
Consideramos que ela é difícil de ser defendida. Acreditamos que o sentimento solidário é
uma habilidade desenvolvida a partir da identidade do eu que é inescapavelmente individual,
mas não necessariamente individualista – voltado apenas para os próprios interesses. Adiante,
abordaremos o tema das emoções, um dos aspectos da identidade subjetiva mais presentes na
interação do eu com os outros, como uma ferramenta para facilitar a compreensão das
múltiplas moralidades associadas ao surgimento de novas formas de eu.73 Dessas
moralidades poderemos extrair maneiras diferentes de lidar com a solidão.
Visões do eu e sistemas morais caminham lado a lado. Moralidades associadas a
visões do eu comandam nossos comportamentos. Na opinião de Margolis, convivemos na
verdade com visões contraditórias de nós mesmos, determinadas por circunstâncias sociais
diferentes. É impossível aderir a um único sistema moral no final desse século, embora ainda
haja uma tendência ideológica de unificar as opiniões em torno do modo de vida que se deve
levar e dos valores que se deve reter.

3.
EMOÇÕES E MORALIDADES DO EU

Os seres humanos estão constantemente referidos à questão de seu lugar no social.


Presentes, gestos, palavras e outros sinais sociais nos permitem saber quando vamos ocupar

orientações mais coletivas tendem a constranger os indivíduos.


72
“Por isso devem inventar a idéia de contratos para criar uma comunidade e também as leis para protegerem o
indivíduo do grupo com o qual eles tem nenhum senso de unidade.”
73
Acreditamos que as outras “ferramentas” - como processos cognitivos - não são relevantes aqui por não
estarem associados aos referentes correntes da solidão. Quando estão implicados, subordinam-se aos registros
emocionais e morais.
70

um lugar social valorizado ou desvalorizado. Por isso, construímos imagens de quem


devemos ser e como devemos agir. Emoções dizem respeito justamente à construções,
reparos e desconstruções de fronteiras entre imagens de eu. São marcadores que nos
capacitam a avaliar o mundo social, respondendo aos fenômenos de rejeição e aceitação.
Permitem-nos ainda lidar simultaneamente com vários sistemas morais e saber aquele que
está em uso corrente.
Emoções são tradicionalmente encaradas como habilidades inatas, involuntárias e
incapazes de influenciar a inteligência, a linguagem e a cultura, ou serem influenciadas por
elas. É absolutamente intuitivo pensar sobre emoções como algo espontâneo e fora do
controle social. Entretanto, cada vez mais são descobertas conexões entre emoções e outros
processos mentais, apesar dos estudos sociobiológicos que buscam conectá-las a parâmetros
genéticos. Quaisquer dos sentimento que temos hoje são “sentimentos que foram socialmente
encorajados a se desenvolver sob condições específicas.”74 (Elias, apud Margolis, 1998,
p.140) Do mesmo modo, sentimentos são constantemente reproduzidos e incentivados para
manter uma determinada estrutura relacional numa sociedade. Não se precisa ir muito longe
para perceber como certas emoções e sentimentos humanos variaram ao longo da história e,
por isso, não podem ser inatos, nem tampouco universais.75 O breve histórico do sentimento
de solidão, buscou ser um exemplo prático disso. Inspirou-se nas intuições de Wittgenstein
sobre a natureza da linguagem e nos desdobramentos pragmáticos que se seguiram.76 Diversas
outras matrizes teóricas aliam-se à pragmática lingüística na sustentação da idéia de que os
componentes afetivos, cognitivos e volitivos das identidades subjetivas são contextualmente
dependentes.
O interacionismo simbólico, por exemplo, é uma das correntes que veicularam a idéia
de que o sentido dos conceitos dependem de acordos lingüísticos entre os membros de uma
comunidade. G. H. Mead, seu maior representante, na opinião de Margolis, formulou uma
teoria das emoções em conjunto com J. Dewey. O interesse de Mead se centrou nos “atos
sociais”, cuja realização é valorizada. A cultura fornece ideais sobre o que é bom pensar, fazer
ou desejar e nossos sentimentos são modelados pela expectativa de sermos bem sucedidos na
conquista do bem. Certas imagens de eu fazem parte desses ideais culturais. Constituem o que
Mead chamou de “outro generalizado” (generalized other), o vocabulário de motivos,
emoções e papéis relacionais.

74
“feelings wich have been socially nurtured under quite specific conditions.”
75
Sobre a gramática do amor romântico, um exemplo de crença emocional historicamente datada, ver Costa,
1998, p.133-219.
76
Ver Arregui, 1986; Budd, 1991; Delgado, 1986; Stegmüller, 1976; Wittgenstein,1979; Rorty, 1991a e 1991b;
Costa, 1992 e 1995a.
71

O eu de Mead é um processo constante em que se alternam ação e reflexão. Na fase da


ação, sentimos e elaboramos, instantaneamente, respostas às interações sociais que
percebemos com as emoções; na fase da reflexão, as ações são interpretadas. A reflexão age
também sobre os sentimentos e os interpreta: “Reflection is internal conversation during
which the generalized other that contains our culture’s vocabulary of motives and emotions
provides us with tools we use to articulate what we feel.” 77 (Margolis, 1998, p.135) O “outro
generalizado” é pensado por Mills como um ponto de vista socialmente construído a partir do
qual aprovamos e desaprovamos argumentos como lógicos ou ilógicos. De forma semelhante,
pode ser pensado como um aparato emocional com o qual aprovamos e desaprovamos
sentimentos como apropriados ou doentios. Sentimentos estão relacionados à idéias, à formas
de conhecimento que governam o universo de discurso de uma época. Conceitos como o de
sanidade dependem tanto do acordo da comunidade quanto o conceito de lógica ou outros
congêneres.
A noção de “outro generalizado” foi refinada por Mills, no sentido de conter apenas
uma seleção de experiências sociais relacionadas à classe econômica e não um completo
universo de discurso. As normas a partir das quais avaliamos a insanidade, a falta de lógica e
todos os tipos de desvios, variam, então, conforme a classe, região, composição étnica, gênero
e outras divisões sociais estruturais. Margolis distingue, entretanto, os processos emocionais
dos processos cognitivos no que concerne ao desenvolvimento temporal. Os primeiros surgem
na fase primária do processo de socialização.78 Essa fase dura até que a criança tenha
absorvido os aspectos essenciais da cultura: linguagem, valores, e tudo que se relaciona à vida
cotidiana. São aquisições quase sempre indiretas, subliminares, imperceptíveis e mediadas
pelos “outros significativos” (significant others), pessoas por quem a criança nutre intensos
sentimentos. Essa precocidade temporal do aprendizado da cultura das emoções é a
responsável pela dificuldade que temos em sentir, perceber ou reconhecer algo que não
lembramos ter sido aprendido: “Thus, just as we are taught to speak a mother tongue, we are
taught to love, hate, feel awe, anger, disdain, respect, and all the other emotions that seem so
natural.” 79 (ibid., p.137)
Da mesma maneira que nossas capacidades cognitivas nos fazem inventar palavras,
idéias e significados, nossa capacidade emocional nos permite inventar identidades, ligações

77
“Reflexão é uma conversa interna durante a qual o eu generalizado que contém nosso vocabulário cultural de
motivos e emoções nos provê de ferramentas que usamos para articular o que sentimos.”
78
A fase correspondente aos processos cognitivos é predominantemente a secundária, mais associada a
conhecimentos técnicos e especializados ministrados por especialistas que não possuem intensa ligação afetiva
com a criança.
79
“Assim, do mesmo modo que somos ensinados a falar a língua materna, somos ensinados a amar, odiar, sentir
perplexidade, desdém, respeito, e todas as outras emoções que parecem tão naturais.”
72

humanas e estruturas sociais. É típico das culturas estreitarem os limites de mobilidade em


torno de algumas escolhas, sendo que cada uma delas gera diferentes concepções sobre
sentimentos e ligações sentimentais. Como as sociedades são organizadas com diferentes
aportes culturais, podem conter, simultaneamente, várias estruturas, com orientações morais
distintas para o eu. Nossa capacidade emocional - instalada nesse repertório de imagens em
competição - nos permite, então, sintonizar, simultaneamente, várias fronteiras do eu. Dentro
das fronteiras estão os “sentimentos bons”, de atração, semelhança e inclusão; fora delas, “os
maus”, de aversão, de diferença e exclusão. Quando esse repertório se amplia em demasia,
como neste final de milênio, as respostas dos indivíduos são, freqüentemente, interpretadas
como expressões de ambivalência.
Para dar sustentação à uma nova teoria das emoções ou à multiplicidade das
orientações morais em torno dos tipos de eu, Margolis focaliza, por exemplo, a existência de
sentimentos negativos como vergonha e culpa dentro dos limites da categoria de atração. Esta
categoria corresponde a todos os sentimentos que podem estar em pauta numa relação que se
dirige ao encontro de dois indivíduos. Enfatiza o fato de que, ocasionalmente, contrariamos
nossos interesses para sustentarmos uma identidade que outra imagem competitiva de nós está
inclinada a manter, por um outro motivo. O mesmo se dá com sentimentos considerados
opostos:

“Sometimes hate and love are spoken of as opposites; other times as having many similarities.
If we look at what is happening at the boundaries to the self in theses images, the similarities
between theses two apparently opposite emotions become evident. [...] We expect nothing from
person on the other side of a boundary beyond respect for the boundary. But from persons
within a boundary, persons who are included in an image we hold of ourselves, we may expect
very much indeed.” 80 (Margolis, 1998, pp.148-9)

Desde a Renascença, o eu foi progressivamente separado do que está fora por uma
parede invisível. Essa é a característica emocional central da moralidade do eu de troca,
orientação predominante no Ocidente. Os autocontroles civilizatórios são experienciados
como um muro que separa o mundo objetivo do subjetivo, o eu da sociedade. Conforme os
ideais da Reforma protestante, as pessoas deviam controlar suas emoções porque não
deveriam depender do suporte e da aprovação dos outros. As emoções deviam ser mantidas
longe das ações e relações sociais, porque significavam fraqueza, inferioridade e potencial de

80
“Às vezes ódio e amor são tomados como opostos; outras vezes tomados como tendo muitas semelhanças. Se
olharmos para o que acontece nas fronteiras do eu nessas imagens, as semelhanças entre essas duas emoções
aparentemente opostas tornam-se evidentes. Nós não esperamos nada de uma pessoa do outro lado da fronteira,
além do respeito que se tem à fronteira. Mas, de pessoas dentro da fronteira, pessoas que são incluídas numa
imagem que temos de nós mesmos, podemos de fato esperar muito.”
73

perigo. Nessa ideologia, o controle racional e a objetividade liberavam o self do caos do


desejo.
Outra maneira do eu de troca lidar com as emoções, é tratando-as como mais uma
mercadoria que se negocia, seja por meio da venda direta ou da aquisição indireta através do
consumo de outras coisas. As emoções devem então existir e ser cultivadas: “Positive
emotions become the promise of advertisers, who try like cupids to inveigle unwary
81
customers to fall in love with a car or a box of soap.” (ibid., p.141) Mas o controle
emocional pela boa distribuição é recomendado porque as fontes emocionais não são
inesgotáveis, da mesma forma que o dinheiro também não é.
Uma atitude mais relaxada diante das emoções é derivada da imagem do eu cósmico.
Apesar de desconfiar dos seus caprichos, as pessoas circunscritas nas fronteiras desse eu
também acreditam que é pelas emoções que obtemos os significados, a energia e até mesmo a
virtude da vida. Para a cultura oriental, por exemplo, emoções não devem ser avaliadas do
ponto de vista de sua propriedade ou impropriedade, devem apenas ser sinceramente
expressas. As pessoas acreditam que seus recursos emocionais são infinitos e podem estar em
perfeito acordo com o restante do cosmos.
Na imagem romântica do eu cósmico, que é uma espécie de tradução ocidental do
repertório emocional oriental, também está presente o desejo por uma experiência extática na
qual todas as fronteiras entre os seres, bem como o próprio tempo, se dissolveriam.
Entretanto, nessa imagem, já existe implicitamente algum tipo de barreira entre o indivíduo e
o mundo, que cerca a interioridade e guarda a “verdadeira” identidade do sujeito.
Emoções diferenciadas são critérios fundamentais para o estabelecimento das
fronteiras do eu da obrigação, já que são erguidas em torno de formas de ligação afetiva -
casais, famílias, grupos étnicos. A mobilização das fronteiras desse eu, que raramente
acontece, são marcadas por rituais de passagem com forte apelo emocional. Ou seja, cada fato
ou evento que modifica a configuração moral dos papéis sociais é carregado de forte teor
emotivo. Margolis acredita que, em geral, as emoções dos eus da obrigação aparentam estar
constantemente na quietude porque todos buscam agir conforme a posição social recomenda.
Dor física e até mesmo a morte podem não causar descontrole emocional ou dor moral, se a
causa delas for socialmente aceitável ou se forem produto de exclusões consideradas naturais,
parte da trajetória ou das obrigações inerentes do indivíduo. Ao contrário, os sentimentos
emergem excessivos e descontrolados quando fronteiras se modificam ou quando alguém
falha no cumprimento de seu papel em relação aos outros. Os sentimentos apropriados são

81
“As emoções positivas tornaram-se a promessa dos publicitários que tentam como cupidos persuadir clientes
desprevenidos a se apaixonarem por um carro ou uma caixa de sabão.”
74

tomados como um patrimônio natural de pessoas sadias e os argumentos que dão suporte a
essas crenças provém de explicações racionais, objetivas e científicas sobre o mundo.
O amor é um exemplo de emoção que varia conforme distintas orientações culturais.
Para todas elas é um sentimento da ordem da atração, do pertencimento, um sentimento
unificador. Entretanto, tem significado diferente para cada tipo de fronteira estabelecida do
eu. Para Margolis, o eu de troca vê o amor como um investimento e espera dele um bom
retorno. Amor é algo que pode ser objeto de barganha, alvo de contrato. O eu da obrigação
pensa no amor como algo naturalmente existente em certos tipos de ligação como pais e
filhos, maridos e esposas. Por isso é algo estável, inalienável e autoritativo. O eu cósmico e o
eu engajado entendem o amor como parte do domínio cósmico, baseado no sentimento de
unidade com ele. Só que o sentimento de unidade universal do eu engajado é diferente, dada a
existência de uma barreira ao redor dele que guarda saúde, riqueza e talento. Essa barreira
precisa ser superada pela prática da caridade, da devoção ao outro ou à arte, restabelecendo o
equilíbrio que deveria existir. O eu cósmico, ao contrário, não possui essa barreira, não
pressupõe atitudes devocionais de superação e nem espera nada em retorno da realização de
sua prática. O eu cívico ama a ordem e o país, aspira e investe na idéia de um paraíso na
Terra. O sentimento de cidadania produz um sentido de unidade com outros engajados na
mesma construção de um ambiente de bondade. Ele reúne racionalidade e amor apaixonado
pela ordem, pela segurança e pela paz, alcançadas no reino da legalidade. É uma combinação
particular de falta de fronteiras e unidade nacional ou universal. É inteiro e isolado como o eu
de troca. Ao mesmo tempo, tem dedicação ao estado e ao mundo, como o eu cósmico.82
Emoções, como vimos, são objetos de intervenção das ideologias culturais. As
culturas ocidentais contemporâneas transformaram, por exemplo, o amor romântico numa
ponte entre as orientações de troca e de obrigações. Visaram talvez manter a ideologia
individualista sem perder totalmente a performatividade emocional que certas mobilizações
das fronteiras do eu podem provocar. Como o amor verdadeiro é considerado prazeroso,
racionalmente é uma emoção desejável. Todavia, pode ser obsessivo e provocar a perda da
independência e do autocontrole dos indivíduos. Mesmo assim é um negócio que vale a pena,
porque o preço do descontrole é o prazer. Mesmo os indivíduos racionais devem experienciá-
lo, escapando periodicamente dos estreitos domínios da racionalidade. Isso não faz com que

82
O eu cívico não possui as mesmas fronteiras do eu nacionalista, como se poderia pensar. Margolis (1998)
esclarece que o eu nacionalista é um eu das obrigações que inclui todos os que compartilham uma nacionalidade.
A nação recria a sensação de segurança ligada às relações de subordinação e superioridade às quais o longo
período de dependência infantil nos habituou. A Nação, como a família, confere uma identidade única que é
compartilhada. Esse patriota/cidadão difere do fanático nacionalista porque sabe que suas ações são um bem em
si mesmas. Não desejam reconhecimento e ficam indignados com a injustiça. A ira nacionalista fanática é
violenta porque provem de humilhações e desamor sofridos, criando um desejo obsessivo por reconhecimento,
mesmo que custe o sofrimento dos outros.
75

perca a aura de característica intrinsecamente individual, pois “vem de dentro”. Os outros são
apenas ativadores de um poder inato.
A retomada de aspectos fortes do ideário romântico, junto à banalização da
sexualidade numa lógica instrumental de meios e fins, a nosso ver, reedita distorcidamente
processos nocivos de segregação do século dezenove, de forma sutil, inaparente, e como tal,
desonesta. Escondem-se por atrás da propaganda de liberalidade. São promessas de felicidade
e prazer explícitas ligadas a interdições, limitações e impossibilidades implícitas. Instigando-
se a insatisfação constante, a busca insaciável do objeto perfeito, produz-se a incapacidade de
contentamento com uma parceria estável. Ao mesmo tempo, condena-se a falta de parceria
afetiva, nomeando-a de solidão e prescrevendo terapêuticas reparadoras as mais diversas.

“Criticar o ideal do amor-paixão, num mundo desencantado, pode ser mais difícil do que
abrir mão do mito do ‘sexo-rei’. [...] Propor redes relacionais alternativas em que se possa
elaborar novos estilos de satisfação afetiva e tentar preservar, ao mesmo tempo, a aura do
amor-romântico, é pedir algo tão inviável quanto o que Agostinho pedia em matéria de
renúncia ao sexo.[...] A meu ver, é extremamente difícil aceitar um outro modo de auto-
realização pessoal, numa cultura em que o amor romântico foi levado a deter o monopólio
imaginário de praticamente tudo o que entendemos por segurança afetiva e felicidade
individual; parceria confiável; consideração pelo outro; disponibilidade para ajuda mútua;
solidariedade sem limites; partilha de ideais sentimentais fortemente aprovados e admirados,
como a constituição da família e a educação dos filhos, enfim, satisfação sexual
acompanhada de solicitude, ternura, carinho e compreensão.” (Costa, 1998, pp.100-1)

A cultura tradicional, sustentada pela tensão entre interdições e promessas de


felicidade, perdeu sua força normativa à medida que seus membros passaram a não mais
acreditar em limitações do seu poder de obter prazer. A regra é usar o progresso para abolir a
dor e obter fortes gozos, sem experimentar inconvenientes do desprazer. A sexualização das
mercadorias pela sociedade de consumo, por outro lado, reforça a crença na existência de
desejos naturais incontroláveis, que não podemos dominar. O mercado, para vender mais, não
pode prescindir da idéia desse impulso sexual devastador inscrito em nossos corpos. 83 O mal-
estar é criado pela não realização de desejos, que não sabemos de onde vem e que não
podemos controlar. Como se voltássemos à ser habitantes do theatre mundi, agora sob nova
direção. A batuta dos desejos rege a orquestra psíquica desejante. Tais desejos demarcam
nossas identidades, e os meios de comunicação, braço forte do liberalismo capitalista, se
encarregam de uniformizar as metas e aspirações conforme a conveniência do mercado,

83
Nos referimos aqui à todas as teorias que postulam a realidade corporal como algo que não requer a mediação
da linguagem, que acreditam na existência de instintos e pulsões desprovidas de sentido que estabelecem uma
relação de adequação a objetos e sensações. Wittgenstein, como mencionamos anteriormente, suprimiu a força
desta pretensão ao postular uma teoria da linguagem coerente e totalmente desvinculada de referentes fixos,
imutáveis, alheios às práticas e sentidos culturalmente determinados.
76

tornando quase impraticável o processo de autocriação individual com vistas a modos de


vida plurais.

Não acreditamos que a informação e a globalização sejam, por princípio,


incompatíveis com a criatividade e a pluralidade. Não defendemos nenhuma teoria de
natureza conspiratória sobre meios de comunicação. Eles não são entidades autônomas
reunidas pela intenção deliberada de dominar indefesos seres humanos. Da mesma forma, o
mercado é apenas uma abstração; sua ideologia, seus processos e métodos são obra de gente
como a gente. Só um tipo de comunicação, ou melhor, só um tipo de gente, com o eu
orientado para determinadas emoções, consegue a façanha de apresentar o mundo como quase
perfeito, evitando, acrobaticamente, o contato com a realidade dos despossuídos, e
transformando o grande lado podre em um pequeno grupo de bestialidades à serviço da
curiosidade sádica. Só um tipo de comunicação, que se vale de imagens midiáticas para
formar identidades fixas, uniformiza a cultura em hábitos estreitos, valorizando sentimentos,
emoções e ambições como dotados de maior adequação à felicidade e ao que se propõe ser a
verdadeira natureza humana. Derivam daí “o sentimento de impotência e falta de tenacidade
para perseguir objetivos outros que não os imediatos e a perene frustração de não ser o que se
‘deveria ser’, conforme manda a novidade ‘científica’ do momento.” (Costa, 1997, p.98)

Os meios de comunicação possibilitam um intercâmbio cultural sem precedentes,


muitas vezes causando perplexidade diante das diferenças e multiplicidades éticas que põem
em evidência. Os modernos meios de transporte aproximam as culturas deslocando multidões
de um lado para outro do planeta. As éticas se misturam como etnias no saguão de um grande
aeroporto. Algumas se enfraquecem no contato; outras lutam, nem sempre honesta e
pacificamente, para se impor. Como imaginar uma forma justa de exercer a atividade
judicante, separando o que é ou não viável, o que é ou não desejável, o que deve ou não ser
permitido? Que parâmetros utilizar, por exemplo, para recolocar a questão da positividade da
experiência solitária?

“ All kinds of things happen to humans – birth, growth, sickness, hunger, satiety, death – but
how a people will identify them, make meaning of them, and feel about them will depend on
culture. Our own culture has devised many sets of feelings and ideas about the nature of
things and ourselves. Its high degree of variety and complexity may be unique. Perhaps that is
why we have arrived at what has been called the postmodern moment of recognizing the
fluidity of all cultural beliefs. Some people despair at the lack of an anchor, the lack of what
77

Taylor calls hypergoods. If all beliefs, all moral systems, are viewed as humanly created, then
how can any of them have supreme authority? ” 84 (Margolis, 1998, p.152)

No capítulo seguinte, procuraremos abordar algumas imagens éticas necessárias para


justificar o sentido das redescrições da solidão que propomos. Em primeiro lugar,
apresentaremos uma proposta compatível com a teoria das emoções exposta e com uma ética
que aposta na contingência das crenças e atitudes morais, sem, no entanto abrir mão de
princípios éticos mínimos. Acreditamos numa ética principial que define uma moralidade
mínima, culturalmente determinada e aplicável à membros das outras culturas. Em segundo
lugar, buscaremos validar essa ética solidária junto à valorização da noção arendtiana da
promessa nas relações humanas. Em nosso entender, esses alicerces teóricos permitem a
redefinição do campo da solidão por meio da solidariedade, do respeito e do poder de
prometer. Pensamos ser possível conceber uma reestruturação do espaço público e da vida
política, capaz de acolher o desafiante processo de redescrição da solidão.

84
“Todo tipo de coisa acontece aos humanos – nascimento, crescimento, doença, fome, saciedade, morte – mas
como uma pessoa irá identificá-los, extrair sentido deles e senti-los depende da cultura. Nossa própria cultura
inventou muitos conjuntos de sentimentos e idéias sobre a natureza das coisas e de nós mesmos. Seu alto grau de
variedade e complexidade pode ser único. Talvez por isso tenhamos chegado ao momento que tem sido chamado
de momento pós-moderno de reconhecimento da fluidez de todas as crenças culturais. Algumas pessoas se
desesperam ante a falta de uma âncora, a falta do que Taylor chamou de bens supremos. Se todas as crenças,
todos os sistemas morais são vistos como humanamente criados, como pode algum ter autoridade suprema?”
78

_______________________ CAPÍTULO p

IMAGENS DA ÉTICA

“Que vantagens vês em persuadir os


homens a acreditar que uma força cega
preside seus destinos, lançando ao acaso o
crime e a virtude?”

Robespierre
79

No capítulo anterior, consideramos algumas imagens de eu prevalentes na sociedade


Ocidental desse século, na tentativa de oferecer uma espécie de panorama de quem fomos e
somos. Buscamos mostrar também os aspectos contraditórios dos tipos ideais de eu
contemporâneo, em suas emoções intercambiantes e nas confusas moralidades que delas
decorrem. O fato do eu e seus atributos caminharem ao lado de sistemas morais e seus
princípios, nos impele a refletir sobre que valores podem ser compatíveis com novas visões do
sentimento de solidão, nas circunstâncias atuais. Como pudemos observar, apesar da
tendência ideológica moderna estimular a uniformidade dos modo de vida, convivemos, cada
vez mais, com aspectos contraditórios de nós mesmos, determinados pelas novas realidades
culturais. A adesão a um único sistema moral é uma proposta tentadora, que um grupo teórico
bastante heterogêneo - estudiosos da pós-modernidade – tenta tornar sem efeito,
demonstrando que ela é desprovida de sentido. Antes de apresentar os princípios éticos que
inspiram a tentativa de redescrição da solidão, detalharemos o que, na proposta pós-moderna,
parece útil para aos nossos propósitos.

1.
A ÉTICA PÓS-MODERNA

Num estudo sobre a ética pós-moderna, Bauman sugere que a modernidade alcançou
um estágio autocrítico, frequentemente autodepreciativo e, em muitos sentidos,
85
autofragmentador. Como resultado, muitas vias antes seguidas pelas teorias começaram a se
parecer com caminhos cegos. Abre-se, portanto, uma possibilidade de entendimento
completamente novo dos fenômenos morais. Para ele, a ética está cada vez mais submetida à
depreciação, tende a ser ridicularizada como um dos típicos constrangimentos tradicionais
destinados à lixeira da história. A revolução pós-moderna, especialmente na mente de seus
defensores mais radicais, livraria as condutas dos últimos vestígios opressivos dos deveres

85
Bauman (1998) analisa a questão complexa do antisemitismo como um exemplo de “resistência
antimodernista”. Os judeus, que já possuíam um estatuto religioso historicamente complicado, “eram mais que
qualquer outra categoria vulneráveis ao impacto de novas tensões e contradições que as sublevações sociais da
revolução modernizadora não podiam deixar de gerar [...] A rápida e incompreensível ascensão e transformação
social dos judeus parecia resumir a devastação produzida pela promoção da modernidade a tudo que era habitual,
familiar e seguro.” (ibid.,p.66) A burguesia judaica foi uma das maiores propagadoras das idéias liberais,
ameaçando as elites estabelecidas. Encarnaram definitivamente o conceito de “estranho” de Simmel, ao estar
sempre fora, mesmo estando dentro: “Eles eram o lado opaco de um mundo que lutava pela claridade, a
ambigüidade de um mundo ansioso por certeza.” (ibid.,p.77)
80

infinitos, dos mandamentos e obrigações absolutas.

“ In our times the idea of self-sacrifice has been delegitimized; people are not goaded or
willing to stretch themselves to attain moral ideals and guard moral values; politicians have
put paid to utopias; and yesterdays idealists have become pragmatic. [...] The ‘after-duty’ era
can admit only a most vestigial, ‘minimalistic’ morality: a totally new situation according to
Lipovetsky – and he counsels us to applaud its advent and rejoice in the freedom it has
brought in its wake.” 86 (Bauman, 1993, p.2-3)

Lipovetsky é um dos teóricos pós-modernos que considera errada a maneira


sociológica tradicional de pensar. Descrever comportamentos prevalentes, a seu ver, não
significa fazer um statement moral. Nossa vida social seria tomada em demasia por
preocupações morais, o que acaba por influenciar o estudo dos comportamentos. Bauman
acredita que essa perspectiva é útil, mas apenas na medida em que oferece à sociologia
oportunidade de se reavaliar, de reconhecer certas pretensões como falsas e certos objetivos
como inalcançáveis ou indesejáveis. Acredita que, na cultura atual, as fontes de poder moral –
antes ocultas na ética filosófica moderna e na prática política - se tornam visíveis. As razões
da invisibilidade merecem ser melhor entendidas. Elas nos dão a chance de revalorizar as
morais sociais por um outro prisma, e, ao contrário dos teóricos pós-modernos, ver a pós-
modernidade como um renascimento da moralidade e não seu crepúsculo.

“Modernity has the uncanny capacity for thwarting self-examination; it wrapped the
mechanisms of self-reproduction with a veil of illusions without which those mechanisms,
being what they were, could not function properly; modernity has to set itself targets which
could not be reached, in order to reach what reach it could. [...] I suggest that the novelty of
the postmodern approach to ethics consists first and foremost not in the abandoning of
characteristically modern moral concerns, but in the rejection of the tipically modern ways of
going about its moral problems (that is, responding to moral challenges with coercive
normative regulation in political practice, and philosophical search for absolutes, universals
and foundations in theory). The great issues of ethics - like human rights, social justice,
balance between peaceful co-operation and personal self-assertion, synchronization of
individual condut and colective well-fare - have lost nothing of their topicality. They only need
to be seen, and dealt with, in a novel way.” 87 (Bauman, 1993, p.3-4)

86
“Em nossos tempos a idéia de auto-sacrifício está deslegitimizada; as pessoas não estão dirigidas ou desejando
se preparar para aderir à sistema morais e guardar valores morais; políticos abandonaram as utopias e os
idealistas de ontem se tornaram pragmáticos. A era do pós-dever pode admitir apenas uma moral minimalista,
muito vestigial: uma realidade totalmente nova segundo Lipovetsky – e ele nos aconselha a aplaudir seu advento
e se rejubilar com a liberdade que ela trouxe em seu despertar.”
87
“A modernidade tem a estranha capacidade de se opor ao auto-exame; ela ocultou os mecanismos de auto-
reprodução com um véu de ilusões sem o qual estes mecanismos, sendo o que são, não podem funcionar
adequadamente. A modernidade tem que se dar alvos que não podem ser alcançados, para alcançar o alcançável.
[...] Eu sugiro que a novidade da abordagem pós-moderna à ética consiste primeiro e principalmente não em
abandonar as questões morais caracteristicamente modernas, mas em rejeitar os modos tipicamente modernos de
se aproximar de seus problemas morais ( responder aos desafios morais com regulação normativa e coercitiva, na
prática política, e a procura filosófica por absolutos, universais e fundações, na teoria.) As questões da ética –
como direitos humanos, justiça social, equilíbrio entre cooperação pacífica e auto-afirmação individual,
sincronização da conduta individual com o bem-estar coletivo não perderam nada de seu interesse. Apenas
precisam ser vistos e gerenciados de novas maneiras.”
81

No pensamento tradicional, a questão era seguir o modo de vida habitual validado por
poderes divinos que o homem não podia mudar. Com a perda do domínio comunal difuso e o
crescimento da pluralidade e da autonomia, a construção de identidades ainda não existentes
passou a incluir, necessariamente, a prerrogativa das escolhas individuais. A escolha entre
ações baseadas em estimativas, avaliações e mensurações, necessita de critérios para ser
realizada. E, ao passo que a questão da proliferação das escolhas se coloca, as dimensões de
medida também se multiplicam, dividindo o caminho correto, antes unitário e indivisível, em
múltiplas esferas: “Actions may be right in one sense, wrong in another. Which action ought
to be measured by what criteria? And if a number of criteria apply, which is to be given
priority?” 88 (Bauman,1993, p.5)
Bauman mostra como Weber apontou para a contradição presente em duas
características fundamentais da moral na modernidade. De um lado, o ethos burguês e
democrático recomendava a separação entre família e negócios. Tal modelo, a princípio,
afastava o perigo da convivência contraditória entre eficiência e lucratividade - adequados aos
negócios - e os padrões morais de cumplicidade e cuidado - próprios à vida familiar. Por outro
lado, a ética protestante foi também pioneira da modernidade justamente por considerar toda a
vida como moralmente carregada. Essa ética se recusava a deixar de fora do universo moral
qualquer aspecto da vida. No presente, essa contradição se tornou insustentável. A convicção
de que pudesse haver uma única forma de dar sentido à pluralidade dos esforços relacionais
dos sujeitos se mostrou inviável aos membros da sociedade:

“a society which is ‘modern’ in as far as it constantly but vainly tries to ‘embrace the
unembraceable’, to replace diversity with uniformity and ambivalence with coherent and
transparent order - and while trying to do this turns out unstoppably more divisions, diversity
and ambivalence than it has managed to get rid of.” 89 (Bauman, 1993, p.5)

Bauman questiona a opinião de que a preocupação moderna com uniformidade seja


um produto da secularização, e portanto, possa ser reparada pela ressurreição das crenças
religiosas. Acredita que o próprio desenvolvimento moderno - empurrando os homens na
posição de indivíduos e os fragmentando em objetivos e funções pouco relacionados - forçou
a percepção da impropriedade da visão unitária da moral. Isso explica porque os
pensadores modernos tentaram compor e impor uma ética unitária. Diante da divisão real, a
moralidade passou a ser vista como algo a ser injetado na conduta humana e não como parte

88
“Ações podem estar corretas por um lado e erradas por outro. Qual ação deve ser medida por qual critério. E
se um número de critérios se aplica igualmente, a qual deles deve ser dada a prioridade?”
89
“Uma sociedade na qual se é moderno na medida em que se tenta abraçar o inalcançável, substituir diversidade
por uniformidade, ambivalência por ordem coerente e transparente – e enquanto tenta fazê-lo cria sem parar mais
divisões, diversidade e ambivalências do que está apto a se desvencilhar.”
82

de suas características inatas. A tentativa falhou. Regras racionais, intelectualmente


produzidas, não conseguiram preencher o vazio deixado pelo fim da supervisão moral da
igreja, baseada na fé. No fundo dessa preocupação, diz Bauman, estava a convicção de que
deixados livres, os indivíduos tenderiam a fazer a “escolha errada” :

“the old assumption - that free will expresses itself solely in wrong choices, that freedom, if
not monitored, always verges on licentiousness and so is, or may become, an enemy of good -
continued to dominate the minds of philosophers and practices of legislator. [...] Developing
individual powers of judgement (training individuals to see what is in their interests and to
follow their interests once they saw it) and managing the stakes in such a fashion that pursuit
of individual interest would prompt them to obey the order the legislator wished to install, had
to be seen as conditioning and complementing each other; they made sense only together.” 90
(Bauman, 1993, p.6-7)

Para Bauman, essa característica, talvez definidora da modernidade, se tornou uma


aporia que se expressa num conflito ainda não resolvido mas em princípio resolvível (not-yet-
resolved-but-in-principle-resolvable). A modernidade, que semeou a suspeita sobre a
moralidade religiosa, quis construir uma ética e uma prática legislativa novamente fundada
em princípios universais:

“ The right design and the final argument can be, must be and will be found. With such a faith,
singed fingers would not hurt too much, there would be no last straws and the failure of
yesterday’s hopes would only spur the explorers to a yet great effort today. [...] The moral
thought and practice of modernity was animated by the belief in the possibility of a non-
ambivalent, non-aporetic ethical code. Perhaps such a code has not been found yet. But it
surely waits round the next corner. Or the corner after next.” 91 (Bauman, 1993, p.9)

A pós-modernidade seria justamente a descrença em tal possibilidade. Não porque


pretenda substituí-la, mas por querer deflacionar a crença moderna numa ética válida para
todos os casos e todos os fatos humanos. Uma moralidade não ambivalente, uma ética
universal e objetivamente fundada é uma impossibilidade prática, um oxímoro, como
esclarece Bauman. Mas se a modernidade engendrou modos de interação social que são
considerados indesejáveis dentro de um determinado set de crenças, a pós-modernidade

90
“A velha tese – de que o livre arbítrio se expressa principalmente em escolhas erradas, de que a liberdade, se
não monitorada, sempre se converte em licenciosidade e então é, ou pode se tornar, uma inimiga do bem –
continua a dominar a mente dos filósofos e legisladores. [...] Desenvolver poderes individuais de julgamento
(treinando os indivíduos a ver quais os seus interesses e segui-los uma vez que os descubram) e gerenciar
investimentos de uma forma que a busca do interesse individual os levem a obedecer a ordem que os legisladores
desejam instalar, tinham que ser vistos como condicionando e complementando um ao outro; eles só fazem
sentido juntos.”
91
“A forma correta do argumento final pode, deve e será encontrada. Com essa fé, dedos queimados não
doeriam muito, não haveria mais ninharias e a falência dos anseios anteriores apenas estimularia os exploradores
a esforços atuais ainda maiores [...] O pensamento moral e a prática da modernidade, foram animadas pela
crença num código ético não ambivalente e não aporético. Talvez esse código ético ainda não tenha sido
encontrado. Mas certamente ronda a próxima esquina, ou a outra depois da próxima.”
83

poderia fazer o mesmo. Então, nos tópicos que se seguem, serão resumidos os marcos da
condição moral desejável no quadro da pós-modernidade, na visão de Bauman.

c Os homens são moralmente ambivalentes. O eu moral sente e age na incerteza e


se move entre impulsos contraditórios. Dada a forma de interação humana, uma moralidade
não ambivalente é uma impossibilidade existencial. Nenhum código ético pode harmonizar a
condição essencialmente ambivalente da moralidade; nenhuma racionalidade é capaz de
dominar a multiplicidade de formas assumidas pelo impulso moral. Temos que saber viver
com a consciência de que não teremos garantias transcendentais em matéria de moral e que
um mesmo impulso pode levar a consequências morais opostas.

d O fenômeno moral é inerentemente “não-racional”, por ser anterior ao processo


de cálculo racional e também por não se adequar à explicações em termos de utilidade.
Portanto, não podem ser esgotados num código ético que define o apropriado e o impróprio,
sem deixar espaço para áreas de ambivalência. As leis, no universalismo moral intelectualista,
substituem a responsabilidade. O conhecimento das regras como um aprendizado do eu moral
autônomo passa a ser um tutoriamento pelo poder. A consciência moral e a referência ao
Outro saem do espaço da autonomia para a heteronomia dos legisladores e guardiães de
códigos.

e A moralidade não é universalizável. Tampouco é algo simplesmente relativo,


acidental, contingente, temporário e impossível de se comparar. Não podemos escapar da
tarefa de explorar a moralidade num sentido mais geral, porém isto não significa unificar o
mundo numa igualdade. Trata-se de efetuar uma campanha árdua para eliminar todas as
fontes descontroladas de julgamento e coerção moral, impedindo que os códigos éticos só se
ampliem na direção de uma maioria ou minoria específicas. Esse esforço só pode ser realizado
substituindo as regras impostas de fora pela responsabilidade autônoma do eu moral.

f O manejo social da moralidade é uma operação complexa e delicada. Os


impulsos morais são recursos indispensáveis na administração de qualquer realidade existente.
São eles que nos fazem ter compromisso com os outros, mudar o mundo e modelar a nós
mesmos. Devem portanto ser domesticados, ornamentados, aproveitados e não condenados
por lei ao banimento. O eu moral ambivalente deve ser cultivado em sua viabilidade e
crescimento e não abandonado ao reino da liberdade desassistida ou cerceado pela tutela
legal.
84

g A primeira realidade do eu é ser-para-o-Outro, antes de ser-com-o-Outro.92 Isso


quer dizer que a responsabilidade moral, a referência ao Outro, é o ponto de partida e não um
produto da socialização. Estar entre outros é um segundo momento na ontologia do eu. Não
existe eu antes do eu moral. O eu moral não é fundado em nada, precede a emergência do
contexto social no qual são criadas justificações. É um ato de criação ex nihilo, se existiu um.

O vocabulário de Bauman pode ser facilmente aprisionado por interpretações


enganosas. Em primeiro lugar, sua concepção de eu moral pode se prestar à equívoco, e ser
lida como uma defesa da metafísica do “ser-para-o-Outro”. De fato, essa interpretação é
possível. Mas existe uma outra forma de entender o que Bauman sugere. O ato de criação ao
qual ele se refere pode ser perfeitamente entendido como o processo de formação do eu por
redes narrativas que constituem a progressiva aquisição de significados “do que se é” e “do
que se deve ser.” 93
Em segundo lugar, a defesa da relatividade contextual dos códigos morais pode ser
compreendida como defesa do relativismo ético, o que também será equivocado. Bauman não
é partidário de nenhuma indiferença ou neutralidade morais, nem, tampouco, advoga o vale-
tudo anômico de “qualquer coisa é igualmente boa ou ruim”. O fato de acreditar na
impossibilidade de uma unidade moral da humanidade e na inviabilidade de um código ético
final, não o torna um relativista ético. Seu pensamento, ao contrário, tenta superar o niilismo
relativista, apostando em normas morais politicamente formadas no consenso e na persuasão -
produtos de narrativas legitimadas - e não em leis institucionais que usurpam a autoridade
ética. Sua intenção é de criticar o projeto burocrático de reduzir a vida política às pretensões
legislativas, mesmo que isto custe a amplificação dos dilemas morais cotidianos: “The kind of
understanding of moral self’s condition which the postmodern vantage point allow is unlikely
94
to make moral life easier. The most it can dream of is making it a bit more moral.”
(Bauman, 1993, p.14-5)
Desse ângulo, a visão da pós-modernidade, apresentada por Bauman, aponta para
princípios valiosos, quando se trata de lutar contra o niilismo atual e a solidão vazia que o
acompanha. A busca de uma “razão” para essa “modernidade tardia”, permanece, portanto,

92
Bauman usa as expressões being-for e being-with, respectivamente.
93
Outro argumento contra a idéia de uma metafísica do ser-para-o-outro, e que poderia ser investigado
posteriormente em suas aproximações com a teoria psicanalítica, pensa o ato de criação do eu como um processo
que preenche “a impossibilidade de se ‘discernir de antemão’, os sinais, sintomas ou indicadores da
disponibilidade individual para o sacrifício ou para a covardia diante da adversidade, ou seja, de distinguir, fora
do contexto que lhes dá vida ou simplesmente os ‘desperta’, a probabilidade de sua manifestação posterior.”
(Bauman, 1998, p.25)
94
“O tipo de entendimento da condição moral do eu que o ponto de vista pós-moderno nos permite é improvável
que torne a vida moral mais fácil. O máximo que ele pode sonhar é torná-la mais moral.”
85

coroada de sentido. Bauman (1995), propõe a responsabilidade pelo outro como inevitável
diante de um mundo marcado por escolhas. Demonstra como são necessários, apesar da
solidão incurável da responsabilidade, ideais regulativos para os dilemas da ambivalência
existencial e da falta de certezas morais: “My responsibility for the other, Lévinas repeatedly
insists, includes also my responsibility for determining what needs to be done to exercise that
responsibility. Which means in turn that I am responsible for defining the needs of the Other;
for what is good, and what is evil for the Other.” 95 (Bauman, 1995, pp.64-5) A passagem que
Bauman propõe, da mera convenção ética para o compromisso moral, inclui um “engajamento
emocional” com o Outro, antes de qualquer comprometimento com um curso definido de
ação. Mas as emoções a que ele se refere não são definidas antecipadamente como simpatia
ou compaixão: “The sole requisite is that the Other is cast as a target for emotion [...] what
Martin Buber described as the resistance to objectification.”96 (ibid., p.63)
Tendo levantado a hipótese de que as formas de constituição emocional e moral do eu
moderno são responsáveis, entre outros, pela faceta negativa do sentimento de solidão,
sugerimos que a solidão, como vivência psicológica negativa, deriva igualmente da
“degradação de éticas tradicionais”; mas, nem tudo o que foi criado pela modernidade, em
assuntos morais, deve ser desprezado. Nem toda formulação ética moderna compartilha os
mesmos princípios e métodos.97 Não desejamos ignorar as velhas tensões existentes em torno
da questão estar junto ou estar sozinho. Embora partilhemos da crítica ao modo de vida
moderno que trouxe tanta dificuldade ao ideal do compromisso, vemos a problematização de
alguns dos seus princípios como ainda dotada de significado para o tipo de projeto moral no
qual apostamos.
No próximo ítem, buscaremos mostrar que alguns tópicos da “discussão moral
moderna” continuam dignos de ser preservados, sobretudo no que concerne ao fenômeno da
solidão. As redescrições do sentimento de solidão, que realizaremos no último capítulo, darão
ênfase a esses ideais coletivos herdados da tradição. A proposta de direcionamentos criativos

95
“Minha responsabilidade pelo outro, Lévinas repetidamente insiste, inclui também minha responsabilidade em
determinar o que necessita ser feito para exercitar essa responsabilidade. O que significa, por sua vez, que sou
responsável por definir as necessidades do Outro; o que é bom e o que é mau para o Outro.”
96
O único requisito é que o outro é um alvo para emoção [...] o que Martin Buber descreveu como resistência à
coisificação.”
97
A discussão em torno das artimanhas da modernidade é, sem dúvida um empreendimento complexo. Bauman
(1998) exemplifica essa dificuldade num estudo sobre o Holocausto, “executado em nossa sociedade moderna e
racional, em nosso alto estágio de civilização e no auge do desenvolvimento cultural humano, e por essa razão é
um problema dessa sociedade, dessa civilização e cultura.” (ibid., p.12) No entanto, apesar de ser possível
efetuar correlações entre ausência de solidariedade e indiferença moral (sugerido por Fein), explicar a doença de
um “eles” como causa, pode representar o conforto moral da absolvição do “nós”, com a ameaça do
desarmamento político e moral. “Uma vez que a atribuição de culpa for considerada equivalente à identificação
das causas, a inocência e a sanidade do modo de vida de que tanto nos orgulhamos não precisam ser colocados
em dúvida.” (ibid., p.14)
86

do estado de solidão estarão relacionadas à revalorização do espaço público de convivência e


ação. Apesar de não acreditarmos – assim como os “pós-modernos” - em códigos éticos
universais, tomamos ainda os ideais tradicionais da boa vida e do bem comum como
fundamentais para a reflexão sobre o sujeito moral e a vivência positiva da solidão.

2.
A ÉTICA SOLIDÁRIA E O VALOR DA PROMESSA

A noção de bem comum é antiga e extremamente complexa em sua definição. As


éticas que lhe dão sustentação são variadas, sendo, muitas vezes, tidas como ilusórias ou
utópicas pelos críticos do modo de vida moderno. Para alguns, elas são responsáveis
exclusivas pelos descaminhos da sociedade. Em outros autores, no entanto, pensamos que há
princípios tradicionais que merecem ser mostrados e incorporados às nossas visões atuais de
mundo.
Entre as propostas éticas que revalorizam a solidão no quadro das éticas tradicionais,
ressaltamos a de Goldenberg (1997). Esse autor, defende uma noção de Utopia na qual a
busca de “uma sociedade mais justa e de um futuro melhor” não implica o objetivo totalizador
da felicidade universal para todos. Apoiado nessa idéia, Naffah Neto (1997) procura mostrar
que podemos combater o niilismo, a desesperança ou a solidão sem recorrer à “Mestres que
nos guiem em tempos de incerteza e trevas.” (ibid.,p.95) Em linhas gerais, a interpretação de
Naffah Neto retoma algumas intuições de Nietzsche, para entender a realidade moral e
emocional dos indivíduos de hoje. O principal suporte de sua análise é o tema do
ressentimento. Ressentimento e niilismo seriam o resultado da decepção dos sujeitos frente
às promessas da máquina de consumo das sociedades atuais: não devemos procurar “bodes
expiatórios que possam ser responsabilizados e punidos pela grande ilusão de prazer e
felicidade vendida pela mídia e que continuamente cai por terra, seja pela impossibilidade de
consumo da maior parte da população, seja porque o próprio consumo revela-se um embuste
ante as promessas.” (ibid., p.107)
Fiel a Nietzsche, o autor busca as raízes do ressentimento atual, na crítica ao
platonismo e ao cristianismo:

“ Estamos nos contorcendo em mais uma forma de niilismo, a derradeira da longa cadeia
iniciada no Ocidente quando Platão primeiramente negou e suplantou o mundo real apoiado
em princípios transcendentes: as Idéias. Esta inversão metafísica ganharia, entretanto a sua
forma definitiva com base no cristianismo que, durante séculos, propiciou ao niilismo o seu
87

fundamento absoluto, através das promessas de uma Vida e de uma Justiça Eternas. Quando,
finalmente, Deus perdeu a sua força na Terra [...] quem poderia tolerar a quebra de uma
promessa veiculada e difundida por dois mil anos de cristianismo? Como aceitar a realidade
de um mundo injusto e desigual, relegado à pura sorte? [...] Para manter a ilusão do prazer e
da felicidade acessíveis, só mesmo o bombardeio diário da televisão.”(Naffah Neto, 1997, p.
108)

O desconforto causado pela impossibilidade do cumprimento da promessa cristã de


felicidade que implica o amor ao próximo, na opinião de Nietzsche, é responsável pela
formação do “ressentimento”. Por meio desse sentimento, seria possível compreender o
niilismo especificamente moderno. O ressentimento seria o resultado das frustrações de um
mundo imaginário que não se torna real e disponível. O sujeito ressentido seria dominado,
continuamente, pelos sentimento de impotência e dor vindas do passado.

“É importante, entretanto, ressaltar que a força maior que articula a produção do


ressentimento em nós jaz nos processos de idealização da realidade, ou seja, o solo do
ressentimento é o niilismo implicado na produção de ideais: é sempre mais fácil digerir uma
realidade acolhida na sua efetividade do que um mundo desmoronado, por um ideal que não
se consumou.” (Naffah Neto, 1997, p.110)

Naffah Neto não pretende traçar uma história linear e contínua do ressentimento
nietzscheano de Platão aos nossos dias. Essa hipótese seria, obviamente, sem sentido, dentro
das próprias referências genealógicas de Nietzsche. Com a metáfora do ressentimento, ele
pensa em criticar um modelo de conduta, atitude, desejo ou pensamento sempre possível de
ser despertado em situações difíceis, o niilismo. O niilismo é irmão gêmeo da desistência, da
submissão e do exílio da vontade. Ora, ao contrário do niilismo – idealizador passivo da
realidade – o amor fati nietzscheano é produtor, construtivo e ativo.
A noção nietzscheana de amor fati seria o primeiro tópico da “discussão moral
moderna,” a primeira imagem ética que valorizamos na tentativa de dar positividade à
vivência da solidão. Trata-se de um amor ao destino, “uma aceitação e valorização da vida,
em todos os seus aspectos.” (ibid, p.111) Consiste numa vida terrena que não é só
sobrevivência e adaptação, mas criatividade, “pequenos movimentos, reais, cotidianos, pelos
quais o mundo continuamente se desfaz e refaz, às vezes para reencontrar o velho sulco, mas
às vezes, também, para ensaiar novas formas.” (ibid, p.114) Mas, para que o amor fati não
corra o risco de se tornar algo cruel para com o próximo, é preciso que a cultura disponha de
elementos capazes de regular a criatividade ou a emergência do novo. Muitas afirmações
nietzscheanas - que inclusive estão na base de diversas perspectivas pós-modernas - podem
ser interpretadas como incentivadoras do individualismo, distanciando-se, portanto, do
exercício da política e da valorização do bem comum. Pensamos que a aceitação das
88

realidades da vida e do mundo não pode ser tomadas a qualquer preço. Imaginamos ser
imprescindível a concepção de algum ideal regulativo para as novas formas de vida, os novos
vocabulários. Dentre as possibilidades dessa “regulação”, aplicável também às redescrições
da solidão, escolhemos citar duas: c a ética da solidariedade de Rorty e d a ética da
promessa e do perdão de Arendt.98 Ao lado de Nietzsche, essas seriam, por conseguinte, os
dois outros mananciais éticos da modernidade que merecem ser reconsiderados no seu valor
para a vida moral contemporânea.
Rorty propõe a tese de que o sentido da solidariedade é uma obrigação moral dos
membros de uma comunidade. Ele parte da premissa “que as pessoas constituem uma
comunidade, um nós, em virtude de pensarem umas nas outras como sendo cada uma um de
nós, e por quererem o bem comum não sob a espécie da benevolência, mas sim por o
quererem enquanto um de nós, ou de um ponto de vista moral.” (Sellars apud Rorty, 1994,
p.236) O “nós” se contrapõe ao “eles” que é a forma de considerar outro ser humano como
estranho. A identificação imaginativa com o outro se daria por proximidade, por
semelhança.99 As diferenças culturais seriam destacáveis conforme o vocabulário histórico
contingente, mas não incompatíveis com a ampliação do conceito de nós. Dito de outra
maneira, a perspectiva etnocêntrica existe, mas o movimento da cultura é de aproximação, de
inclusão de outros universos e crenças possíveis:

“Na perspectiva que estou a apresentar, o progresso moral existe, e esse progresso vai
efetivamente na direção de uma maior solidariedade humana. Mas tal solidariedade não é
pensada como o reconhecimento de um eu central, da essência humana em todos os seres
humanos. É antes pensada como sendo a capacidade de ver cada vez mais diferenças
tradicionais (de tribo, religião, raça, costumes, etc.) como não importantes, em comparação
com semelhanças no que respeita à dor e à humilhação.”(Rorty, 1994, p.239)

Além disso, Rorty considera a possibilidade da transformação cultural interna à


própria comunidade. Nesses casos, o risco de crueldade é de outra natureza. As invenções
individuais podem ameaçar o equilíbrio da solidariedade coletiva, impondo os interesses de
uns aos interesses de todos. O autor tenta solucionar a eventualidade desse conflito propondo
um limite ético à criatividade pessoal. Como diz Costa, a propósito de Rorty100:

98
É importante salientar que este não é o vocabulário da autora, que propõe a promessa e o perdão como os
próprios fundamentos da ética.
99
A referência à “identificação por semelhança” pode evocar a “retórica fraternalista” criticada por Ortega
(1998c), em apoio à Derrida. Nas democracias, a fraternidade seria pensada de maneira “forte”, uma igualdade
que esconde o conflito, reproduz o modelo das relações familiares ou de parentesco e, assim, se presta às críticas
dos autores. Nesse estudo, utilizamos a idéia de fraternidade em um sentido “fraco”, sem pretensões
universalizantes, apenas para aludir à solidariedade enquanto respeito à diferença. Acreditamos que o “nós”
rortyano não culmina necessariamente na “ficção de fraternização.”
100
Para Rorty(1994), as figuras do poeta forte e do revolucionário utópico são as criadoras, por excelência, das
novas metáforas.
89

“A atividade metafórica do poeta forte e do revolucionário utópico deveria parar onde


começa a dor e a humilhação do outro. Desprezando a distinção formal entre ético e estético,
sugere uma divisão dos discursos entre os que visam a auto-perfeição e os que visam a justiça
e a decência. Os enunciados dirigidos a auto-realização buscam proteger e enriquecer as
experiências pessoais; os dirigidos ao bem comum, procuram atingir um justo equilíbrio entre
as aspirações à vida e à liberdade de todos. A democracia liberal é a forma de vida que
possibilitou e fez coexistir os dois jogos de linguagem, pela divisão do espaço social entre
uma esfera pública e uma esfera privada. As duas áreas da práxis do sujeito podem, desse
modo, expandir-se sem que uma venha a atropelar a outra. Podemos ser, diz Rorty, “tão
irracionalistas, esteticistas quanto nos agrade, desde que não venhamos a causar mal aos
outros”(Rorty, 1989, p.XIV). Inversamente, podemos criar tantas formas políticas de governo
quantas sejamos capazes de imaginar, contanto que não impeçam as aspirações à auto-
realização dos indivíduos. Essa é a posição do ironista liberal rortyano, diante das novas
metáforas.”(Costa, 1995, p. 127)

A posição do ironista liberal rortyano encontra-se obviamente comprometida com um


set de crenças que a legitima. Rorty é um defensor da democracia liberal; acredita que nela
podemos exercitar o que de melhor pode existir em termos de ética solidária. Seu pensamento,
se analisado no detalhe, está vinculado, entre outros pontos passíveis de crítica, à manutenção
da dicotomia entre público e privado, na forma que a conhecemos hoje. Apesar de
reconhecermos sua força imaginária na contemporaneidade, não concordamos que essa
divisão seja absolutamente necessária à sustentação da solidariedade como forma de vida. Ela
carrega consigo uma herança individualista que não precisamos preservar. Outros autores
compartilham o ideal de solidariedade sem o comprometimento com todos os princípios do
liberalismo. Arendt é um exemplo do aproveitamento de princípios tradicionais sem a
negação de suas ingenuidades e limites.

Arendt (1993a) nos fala da importância da promessa e do perdão como meio de lidar
com a imprevisibilidade do mundo e a irreversibilidade da ação humana. As faculdades de
prometer e de perdoar baseiam-se inteiramente na presença dos outros, mas são atributos de
indivíduos que raciocinam sozinhos e deliberam segundo o que o passado pôde legar de
melhor. Apesar disto, o modelo arendtiano parece manter a mesma dicotomia entre público e
privado. Entretanto, existe um deslocamento em relação à Rorty. Em Arendt, o bem pensar e
o bem agir nunca estão completamente desvinculados do coletivo. Para ela, é cumprindo
promessas e perdoando as impossibilidades de cumpri-las que os sujeitos mantêm suas
identidades de agentes que correm o risco de inovar, investindo em ilhas de segurança no
grande oceano das incertezas futuras. A durabilidade nas relações humanas dependeriam
exatamente da possibilidade dessa segurança, dessa continuidade de agir na descontinuidade
do mundo. No entanto, mesmo as promessas realizadas no reino do “privado” apontam para
identidades que só alcançam reconhecimento no coletivo. A auto-realização arendtiana, se é
que podemos utilizar vocabulários aos quais ela própria não se referiu, é uma auto-realização
90

no público. Afasta-se do processo de intimização que já mostramos estar na base do sentido


negativo de solidão. Transporta, por exemplo, a motivação de nossas ações dignas para o
sentimento de vergonha101 exteriorizada e não mais para a culpa interiorizada.
É importante notar que, para Arendt, as atitudes que permitem as relações humanas se
tornarem duráveis não são exatamente as que possuem maior “status moral” em nossa cultura.
Assim, desde o descobrimento do papel do perdão na esfera dos negócios humanos, feito por
Jesus de Nazaré, o poder de perdoar teria sido progressivamente atribuído ao amor. Nessa
visão, portanto, só o amor aparece como a virtude por excelência. No entanto, se o perdão
dependesse exclusivamente do amor, sua importância ética seria extremamente reduzida. O
perdão, segundo Arendt, exige algo além do amor, ou seja, o respeito. É o respeito, diz ela,
que permitia aos romanos poupar a vida dos guerreiros vencidos. Não se poupa o bom
perdedor por amor. O amor seria efêmero, um sentimento extramundano, “talvez a mais
poderosa das forças humanas anti-políticas.” (ibid., p.254) Ao contrário disso, o respeito,
além de não possuir o ônus da incondicionalidade, incluiria em sua órbita mesmo aqueles que
não amamos.
A noção de respeito é mais adequada ao tipo de descrição plural que procuramos
oferecer. Ter respeito não é um assunto privado, não descarta a natureza transgressora de
certos atos do ponto de vista da comunidade que partilha uma forma de vida. Para a
transgressão pode-se conceber e estabelecer uma punição. Perdoar não é o oposto de punir.
Ambos têm a intenção de pôr fim a algo que causaria danos se prosseguisse indefinidamente.
Perdão só é oposto à vingança, uma “re-ação” que alimenta a cadeia que deu origem à ofensa
inicial: “É, portanto, significativo – elemento estrutural na esfera dos negócios humanos – que
os homens não possam perdoar aquilo que não podem punir, nem punir o que é imperdoável.”
(ibid., p.253). Só o “mal-radical”, aquele que nem sequer compreendemos pelo absurdo de
suas consequências, que nem sabemos qual punição merece, é realmente imperdoável. As
outras coisas são perdoáveis e passíveis de punição num mundo que tenha as bases de sua
moralidade no sentimento de respeito a si, ao outro, à diferença.

“Como a philia politike aristotélica, o respeito é uma espécie de ‘amizade’ sem


intimidade ou proximidade: é uma consideração pela pessoa, nutrida à distância que o
espaço do mundo coloca entre nós, consideração que independe de qualidades que
possamos admirar ou de realizações que possamos ter em alta conta. Assim, a perda do
respeito nos tempos modernos, ou melhor, a convicção de que só se deve respeito ao que
se admira ou se preza, constitui claro sintoma da crescente despersonalização da vida
pública e social.” (Arendt, 1993 a, pp. 254-5)

101
Arendt esclarece que o padrão final de julgamento para os feitos e os crimes, nas Repúblicas, é a virtude.
(1995, p.337)
91

A categoria do respeito busca estabelecer as bases da moralidade longe da esfera


privada e das emoções que a sustentam, afastando a ética de sentimentos anti-políticos. Traz à
tona a idéia de formas de relação comprometidas com um ideal coletivo, como a amizade, que
abordaremos no último capítulo. Mas a dicotomia entre o público e o privado, sofisticada e
ampliada pela moral cristã e pela ideologia individualista moderna, não trouxe apenas
resultados amargos. Não podemos encarar o individuação moderna como absolutamente
desprovida de interesse. Sua existência no cenário político-filosófico mundial permitiu
avanços importantes, tanto do ponto de vista jurídico quanto na vida pessoal. O
desenvolvimento da interioridade fez com que outras faculdades humanas, a nosso ver
proveitosas, ocupassem mais espaço na realidade psíquica do sujeito moderno.
Para Arendt (1995), a “descoberta” da Vontade “coincide com a descoberta da
‘interioridade’ humana como uma região especial de nossa vida.” (p.161) A volição seria a
capacidade interna pela qual os homens decidem quem vão ser e como devem se mostrar. Está
referida ao tempo futuro e seu tema é sempre um projeto. A Era Moderna, que gerou a noção
de progresso e a protegeu como uma mãe cuidadosa, substituiu a antiga primazia do tempo
presente – lugar do pensamento – pela primazia do futuro. A vontade “cria a pessoa que pode
ser reprovada ou elogiada, ou, de qualquer modo, que pode ser responsabilizada não somente
por suas ações, mas por todo o seu ‘Ser’, o seu caráter.” (ibid, p.162) A ligação da vontade
com a responsabilidade pessoal, sua indissociabilidade da ação e da liberdade política, nos
levam à considerá-la como mais um elemento importante para a vida ética.

3.
A VONTADE DE AGIR E O SENTIDO DA POLÍTICA

A noção de uma vontade livre pode ser considerada como um postulado necessário em
toda ética e em todo sistema de leis de nossa tradição cultural.102 Não tencionamos apresentar
a história do conceito de vontade, nem tampouco, diferenciar vontade e livre arbítrio. Arendt
faz um estudo minucioso desses e de outros aspectos em seu livro O querer (1995). Apesar de
tomá-lo como base, não desejamos reforçar ou dirimir o “conflito básico” apontado pela
autora entre as experiências do “ego pensante” e do “ego volitivo”. Em nossas considerações,

102
Reconhecemos a inexistência da faculdade da vontade na sociedade grega antiga. Não abordaremos aqui as
dificuldades de conciliar os princípios desta faculdade, surgida no primeiro século da Era Cristã, (Arendt, 1995,
p.189) com as principais doutrinas filosóficas gregas. Consideramos importante apenas o fato de que, mesmo
sem a categoria e o vocabulário da volição, os gregos possuíam outras formas de garantir a responsabilidade
pelas ações individuais no seio de uma vida pública.
92

tanto o pensamento como a vontade serão valorizados enquanto atributos de um eu que pode
viver a solidão de maneira positiva e enriquecedora. Queremos apenas reforçar a importância
desse vocabulário para o tema do qual nos ocupamos. Faz parte das características do eu
insuficiente, que experimenta a solidão negativa, a absoluta incapacidade de deliberar
entre escolhas, participar de processos decisórios e projetos futuros. Os indivíduos presos na
solidão passiva se tornam incapazes de prometer, pela impossibilidade de se comprometer
em projetos tão simples quanto “eu quero”, “eu posso” e, especialmente, “eu faço”. A
propósito da promessa solidária, Arendt diz:

“ O que estará em jogo aqui é a Vontade como fonte da ação, isto é, como um ‘poder para
começar espontaneamente uma série de coisa ou estados sucessivos’ (Kant) Sem dúvida todo
homem, pelo fato de ter nascido, é um novo começo, e seu poder de começar pode muito bem
corresponder a esse fato de condição humana. [...] A questão é como essa faculdade de ser
capaz de ocasionar algo novo, e, assim, ‘mudar o mundo’, pode funcionar no mundo das
aparências, isto é, em um ambiente de factualidade que é velho por definição e que
transforma inexoravelmente toda espontaneidade de seus recém-chegados no ‘foi’ dos fatos –
fieri; factus sum.” (Arendt, 1995, p.192)

Mudar é exatamente a questão central do universo solitário do eu insuficiente.


Abandonar a solidão é freqüentemente o objetivo mais cobiçado. Porém, raramente se age em
direção a esse objetivo. E se não podemos sequer conceber a transformação de um de nossos
próprios estados, como desejar “mudar o mundo” ? Liberdade e independência autênticas não
são facilmente encontradas nas sociedades contemporâneas de massa e de consumo. Mas
podemos mostrar como idéias são “artefatos do espírito”, e, portanto, como a idéia da
insuficiência do eu solitário, privado da liberdade de agir, pode ser transformada:

“Há decerto, uma ‘história das idéias’, e seria bem fácil traçar a história da idéia de
Liberdade: como deixou de ser uma palavra indicativa de um status político – aquele do
cidadão livre e não o do escravo – e de uma circunstância física factual – aquela de um
homem saudável, cujo corpo não estivesse paralisado e fosse capaz de obedecer ao espírito –
e passou a ser uma palavra indicativa de uma disposição interior através da qual um homem
podia sentir-se livre quando era, na verdade, um escravo, ou quando não era capaz de mover
seus membros.” (Arendt, 1995, p.191)

Arendt (ibid.) nota uma diferença fundamental entre o ato livre e o simples desejo ou
apetite: a consciência de que “poderíamos ter deixado de fazer aquilo que, de fato, fizemos”.
A volição tem uma autonomia que o desejo não possui. Assim, sua noção de vontade
contribui para a reflexão sobre as vias de saída para o sentimento moderno de que somos
escravos de um desejo que não podemos modificar ou prisioneiros de uma solidão
irremediável. Muitas éticas terapêuticas estão vinculadas à essas crenças que, se tomadas ao
93

pé da letra, contribuem para a perpetuação do sentido de insuficiência das pessoas e para sua
adesão à cultura dos objetos de consumo.
Reafirmamos a opinião de que a noção de vontade, apesar das discordâncias em torno
de seu estatuto teórico, nos parece necessário a toda ética libertária e pluralista. Mas a
vontade, ressalta Arendt, ocasiona também uma individuação que gera problemas novos e
sérios para a noção de liberdade: o indivíduo amoldado por ela, que sabe poder ser diferente
do que é, tende a afirmar um “Eu-mesmo” contra um “Eles.” Arendt sugere que nada é mais
apavorante do que a noção de que o isolamento de todos os demais é responsabilidade
exclusivamente minha. Ela pergunta se a convicção de que tudo é o que “era para ser” não é
preferível à liberdade da contingência; se não é mais confortável aceitar o determinismo em
vez de assumir a indeterminação. A Vontade, como toda faculdade do espírito, é reflexiva, e
portanto, ao refletir sobre si mesma percebe dificuldades e cria ansiedades: “Aos pensadores
profissionais, filósofos ou cientistas, não lhes ‘aprouve a liberdade’ e seu caráter
inelutavelmente aleatório; não estiveram dispostos a pagar o preço da contingência pelo
Dom questionável da espontaneidade, pela capacidade de fazer o que se poderia também
deixar de ter feito.” (ibid, p.335, grifos nossos)
As crenças dos cidadãos comuns são herdeiras desses filósofos e cientistas, cuja
função social é inegável, mas cuja noção de liberdade é muito pouco útil para o reino da
política: “A liberdade política do cidadão é ‘aquela tranqüilidade de espírito que vem da
opinião de que todos têm segurança; e, para que se possa estar de posse dessa liberdade, o
governo deve ser tal que um cidadão não tenha medo do outro.” (ibid, p.335) Por isso, Arendt,
ao final do seu livro O querer, sugere que nossas atenções sejam concentradas nos “homens
de ação” e no reconhecimento de que ninguém pode agir sozinho, que a liberdade política só
é possível na pluralidade e não é uma simples extensão da dualidade “eu-e-eu-mesmo”.

“O único traço comum entre todos esses modos e formas de pluralidade humana é
simplesmente sua gênese, isto é, o fato de que, em algum momento no tempo e por alguma
razão, um grupo de pessoas tenha vindo a pensar sobre si como um ‘Nós’. Seja qual for o
modo como esse ‘Nós’ é inicialmente experimentado e expresso, parece que ele sempre
precisa de um começo, e nada parece mais oculto na escuridão e no mistério do que esse ‘No
princípio’, não só quanto à espécie humana em oposição a outros organismos vivos, como
também à enorme variedade de sociedades indubitavelmente humanas. (Arendt, 1995, p.337)

Tudo o que é real na natureza foi um dia uma grande improbabilidade. O começo
absoluto, a Liberdade que não é apenas liberação, é a quebra de toda cadeia causal. O
começo traz consigo um elemento de completa arbitrariedade. Para redimensionar problemas
tão complexos e tão desafiadores como a solidão no meio de muitos, o sofrimento pela
incapacidade de agir e a decadência do sentido de pertencimento, talvez tenhamos que investir
94

na esperança de um começo absoluto, que interrompa a monótona sequência do tempo


cronológico e funde novas comunidades, novas formas de convivência. Mas como lidar com
as perplexidades inerentes à tarefa da fundação? Como lidar com o fato de que mesmo os
“homens de ação” modernos, que se livraram da tutela da igreja, que fizeram nossas mais
importantes revoluções, acabaram retornando à Antigüidade e à noção romana de que todas as
fundações são de fato refundações, e não começos absolutos? Arendt diz só conhecer uma
alternativa para a conclusão frustrante de que o abismo da pura espontaneidade foi coberto
com o mecanismo tipicamente ocidental de “compreendermos o novo como uma reafirmação
melhorada do velho”. A seu ver, só Agostinho - em A cidade de Deus - menciona o que
poderia ter se tornado o germe de uma filosofia da política verdadeiramente comprometida
com a novidade da ação:

“Segundo ele, como sabemos, Deus criou o homem como uma criatura temporal, hommo
temporalis; o tempo e o homem foram criados juntos, e essa temporalidade foi afirmada
pelo fato de que cada homem devia sua vida não somente à multiplicação das espécies,
mas ao nascimento, à entrada de uma criatura nova que como algo inteiramente novo,
apearece em meio ao contíguo de tempo do mundo. O propósito da criação do homem
era tornar possível um começo [...] Estou bem consciente de que o argumento, mesmo na
versão agostiniana, é um tanto opaco, e não nos parece dizer nada além do que estamos
condenados a ser livres porque nascemos, não importando se apreciamos a liberdade ou
abominamos sua arbitrariedade, se ela nos ‘apraz’ ou se preferimos escapar à sua
terrível responsabilidade, elegendo alguma forma de fatalismo. (Arendt, 1995, p.348)

Arendt não viveu o suficiente para descrever uma outra faculdade do espírito, o juízo,
que poderia talvez desfazer esse impasse. Estamos conscientes que a condenação à liberdade
pode parecer um argumento estranho para justificar a redescrição da solidão. Percebemos seu
nível de generalidade frente a uma questão tão particular. Entretanto, o nascimento institui o
começo contingente e a liberdade inescapável da contingência. Na liberdade, os seres
humanos fazem escolhas, mesmo que seja a escolha de não fazer escolhas, de apoiar e
consentir com escolhas de outrem: a servidão.103 Escolhas, mesmo determinadas por emoções
como o medo – que nos obriga a considerar coisas que habitualmente desprezaríamos –
requerem o funcionamento do processo de responsabilização, fundamental à sobrevivência
de qualquer regularidade ética, mesmo opressora.
Quando ligamos nascimento-liberdade-responsabilidade, retomamos o fio das imagens
éticas que propusemos nesse capítulo. Essas imagens oferecem a adesão à vida em comum, na

103
A vontade de servir, ou a “servidão voluntária” é uma noção originária de La Boétie, que foi aproveitada por
Hannah Arendt (1994) para negar a possibilidade dos meios sutis de manipulação ideológica, numa sociedade
livre, serem os responsáveis pela obediência civil à tirania. Assim, a obediência seria uma manifestação de
consentimento. “...a ‘vontade de servir’ encobre o desejo de participação na tirania, o desejo de ser também
tirano.” (Unger, 1991, p.40)
95

direção do bem de todos, como as fontes de inspiração para redescrever o sofrimento de estar
isolado e o desespero de a ninguém se ligar, a nada pertencer. Sem a crença no recomeço, a
Liberdade e a Responsabilidade, as ações necessárias à sustentação da solidariedade e do
poder de prometer não seriam realizáveis. Agir no mundo é condição fundamental para
caminhar rumo ao Bem comum, sem condenar o novo à escuridão. Só o agir humano livre,
em pleno desempenho da volição, pode instaurar ou, pelo menos, incentivar
significativamente o processo de repolitização da vida comum que desejamos ver florescido.
Mas será mesmo que a política tem algum sentido na preparação dos nossos espíritos para o
enfrentamento diário da grande imprevisibilidade de viver? Será que a política ainda tem
sentido?
Arendt se propôs a responder a pergunta sobre o sentido da política. A ação política é,
para ela, sempre essencialmente o começo de algo novo. O conceito de começo tem
importância fundamental para a ação. Por isso, deve ser encarado como a própria essência da
liberdade humana. E se em um lado da ação política está a importância do começo, do outro
está a compreensão, pois só ela permite aos homens de ação lidar com o que
irremediavelmente se passou e se reconciliarem com o que inevitavelmente existe. Arendt nos
mostra a importância da faculdade da imaginação para nos garantir o “coração compreensivo”
que Salomão aspirou. A imaginação nos colocaria à distância do que está perto demais,
livrando nossa visão das tendências e preconceitos, e, ao mesmo tempo, permitiria superar o
abismo que nos separa do que é remoto, transformando o estranho em “assunto nosso”.

“ Sem esse tipo de imaginação, que na verdade é compreensão, jamais seríamos capazes de
nos orientar no mundo. Ela é a única bússola interna que possuímos. Somos contemporâneos
somente até o ponto em que chega nossa compreensão. Se desejamos nos sentir em casa nesta
Terra, mesmo sob o preço de estar-se em casa neste século, precisamos tentar tomar parte no
diálogo interminável com sua essência.” (Arendt, 1993b, p.53)

A ação política é o que está em questão. Vemos em sua descrição a expressão mais ou
menos fiel do que acreditamos ser a saída possível para os impasses da vida nesse “planeta”
do individual, do íntimo, do solitário. Basta olhar à volta, usar a imaginação de um coração
compreensivo e nos distanciar o bastante da nossa própria solidão, para ver nossa comunidade
e seus indivíduos mergulhados na profunda ambigüidade de ter que partilhar espaço, cooperar
em projetos que garantam a sobrevivência do coletivo e, ao mesmo tempo, não saber mais o
que é de fato estar próximo do outro, usufruir do conforto de sua companhia, cumplicidade e
confiança. Companhia, cumplicidade e confiança, efetivamente, têm sua mais digna
existência no reino de muitos, que se reconheçem ilimitadamente como “nós”, que sustentam
com satisfação as dificuldades da ação política conjunta, da convivência num projeto coletivo,
96

da vida vivida para o fora, do respeito cultivado pelo que se tem de público e não a obsessão
fútil pelo que se guarda no privado. Companhia, cumplicidade e confiança só podem ganhar
sentido quando os limites da nossa condição humana, ao menos aqueles que encaramos como
justos, são fruto de um acordo transparente de todos. Não estamos falando de unidade de
pensamento a respeito de todas as questões; pelo contrário, trata-se de ter tranqüilidade diante
da fértil diferença, e credibilidade na compreensão e na persuasão como métodos de
ajuizamento e decisão sobre o que interessa a todos.
Para Arendt, o sentido da política é a liberdade. A dúvida por ela colocada é se nas
condições modernas, há possibilidade de conciliação entre estas duas coisas. E, indo adiante,
ela também pergunta se nas condições modernas, política e preservação da vida são
conciliáveis, já que a política parece só nos ter trazido desastres. A impossibilidade aparente
de eliminar os males da política, a aparente insensatez contida na esperança da extinção de
todos os Estados e a aparente improbabilidade de controlar o efeito de coisas que inventamos,
nos coloca sempre face ao desespero e ao desencanto. Não há como pressupor a boa vontade
das partes envolvidas nas questões políticas, já que na esfera política a boa vontade de hoje
não garante a de amanhã. Foi assim que vimos acontecer. A política parece cair na falta de
sentido, à medida que se revela o “beco sem saída em que deságuam todas as questões
políticas particulares,” adverte Arendt.
Uma resposta definitiva para a questão da política, nas realidades atuais, é deixada
entre parênteses pela autora. Ela apenas nos diz que se a liberdade é o sentido da política,
temos o direito de esperar o milagre, não o religioso, mas aquele advindo da capacidade do
homem livre de realizar o improvável e o imprevisível, pensando, imaginando e
compreendendo os desdobramentos de suas ações. Pensar em saídas para a modernidade
geradora de exclusão - em seus processos nefastos de massificação e mercadologização da
solidão - é pensar que podemos operar verdadeiros “milagres” para modificar o mundo, se
estivermos juntos, engajados na vontade de pensar e compreender, se pudermos compartilhar
nossas ações políticas num espaço público de cumplicidade e confiança. Por hora é tudo que
pensamos aspirar. Não é muito, nem é fácil, mas seria um bom começo.
97

_______________________ CAPÍTULO q

REDESCRIÇÕES DA SOLIDÃO

“Linguagens mudam, mas mudam lentamente, e


assim também mudam os sistemas morais, e
com eles, as emoções. Nós inventamos todos,
mas não os inventamos em um dia. ”

Diane Margolis

Iniciamos esse estudo tentando articular imagens da solidão com imagens do eu.
Apresentamos, no primeiro capítulo, descrições históricas das formas de estar só, em que
destacamos duas características principais: c a escassez do fenômeno da solidão negativa nos
períodos anteriores à sociedade de Corte do século XVII; d a relação entre a multiplicação
98

das alusões à solidão, como fato psicossocial negativo, e as características do repertório das
crenças e emoções do eu moderno. Em seguida, levantamos a hipótese da existência de um
tipo de eu, particular da contemporaneidade - o eu insuficiente - que experimentaria a solidão
pela indiferença, desilusão e impotência. Interpretamos essas alterações no eu como correlatos
aos novos referenciais da solidão instituídos pela sociedade de Corte e pela sociedade
marcada pela normatização do século XIX.
Partindo da hipótese que a indiferença, desilusão e impotência são estados emocionais,
cognitivos e comportamentais ligados ao desenvolvimento das formas modernas de
subjetividade, iniciamos o segundo capítulo com a discussão das mudanças filosóficas e
políticas envolvidas na transição do mundo da tradição para o mundo moderno. Prosseguimos
a análise, considerando as características modernas ainda relevantes para as imagens de eu
contemporâneo. Trabalhamos com a hipótese de que tendo havido um crescimento e uma
diversificação nos referentes da solidão, é possível que outras alterações significativas das
subjetividades tivesse ocorrido. Nos deparamos, assim, com dois outros fatos: c A
convivência, numa mesma identidade pessoal, de muitos eus possíveis, cujos atributos se
interpenetram, produzindo ambivalências e ambigüidades nas ações e nas condutas. d a
conservação de imagens modernas estáveis convivendo com questionamentos típicos dos eus
da pós-modernidade, e criando novos problemas éticos e novas aspirações morais.
A coexistência de diversos tipos de eu, com emoções e orientações morais distintas,
trouxe à tona a questão de como lidar com a multiplicidade moral sem constranger as
liberdades tradicionais e sem cair na relativização ética temerária de certos projetos
futuristas. No terceiro capítulo, procuramos mostrar qual o solo ético que nos permite
redescrever a solidão, de modo a torná-la uma experiência positiva para a existência das
pessoas. A nosso ver, a solidariedade e a promessa, como as definem Rorty e Arendt,
respectivamente, são dois dos principais pilares desse solo. Por meio delas podemos pensar na
reconciliação do eu contemporâneo com sua existência, na construção de algo que ocupe o
lugar de um testamento que a modernidade não legou. Obviamente assentar a resposta à
negatividade da solidão na solidariedade e na promessa não é a única saída cultural possível.
A escolha dessa estratégia se deve ao caráter mais abrangente e mais aberto que ela possui,
diante de arranjos históricos particulares. Como procuraremos mostrar, em seguida, a
solidariedade e a promessa são categorias flexíveis; podem se exprimir em vários arranjos
relacionais; funcionam como uma espécie de bússola ou fronteira para os experimentos
morais, mas não dispõem de conteúdos normativos específicos.
Outros autores, entretanto, propõem táticas de enfrentamento da solidão baseadas em
atitudes morais que já foram historicamente experimentadas. Zeldin (1996), por exemplo,
99

descreve quatro “métodos de imunização” contra a solidão identificáveis na tradição e que


possuem a propriedade de usar a própria solidão “em doses calculadas, para evitar seu poder
destrutivo.” (ibid., p.60)
O primeiro método teria sido utilizado pelos eremitas cristãos primitivos, homens e
mulheres que se sentiam fora do eixo do mundo, abominavam seus valores e se consideravam
incompreendidos: “Em vez de se sentirem alienados na sociedade, abandonaram-na para se
tornarem alienados profissionais, almejando deliberadamente a situação de ‘estrangeiros’ ou
‘exilados’, e destas fazendo uma condição nobre. A recompensa que buscavam era a paz
interior.” (idem) No Oriente, esse método também foi utilizado por hindus e budistas. Entre os
ameríndios pré-colombianos eram comuns os momentos de isolamento, porém com um
sentido de preparação para a vida e não para a morte. Na verdade, ser eremita, em geral, não
significava estar completamente solitário, mas sim espiritualmente voltado para uma outra
forma de vida desse ou de outro mundo. Thomas Merton - eremita ocidental moderno, citado
por Zeldin - advogava que solidão não é separação, e, mesmo no voto de silêncio, se dizia
aberto para o mundo todo. Outros eremitas, que também impressionaram e estimularam muito
as pessoas comuns, permaneceram vinculados ao mundo, realizando retiros breves e
sucessivos. Essa forma de imunização corresponde, aproximadamente, ao que descrevemos
no ítem solidão como retiro. Não conseguimos perceber a intenção de imunização presente
nessas práticas, a não ser quando relacionadas aos ascetas modernos. Para que ela pudesse ser
demonstrada, teria que haver a comprovação de que as pessoas da Antigüidade sofriam de
uma solidão para a qual encontravam alívio no retiro espiritual, o que parece improvável pelas
fontes históricas que conhecemos.
A segunda maneira de se tornar imune consistia em se afastar da sociedade,
recolhendo-se para se tornar mais forte, porém sem a ajuda, proteção ou conforto de um Deus.
Nesse caso, a introspecção, a compreensão do próprio interior, a ênfase na própria
singularidade, eram a oportunidade de buscar um estilo independente e individual de vida. O
apogeu desse estilo de vida acontece no período renascentista, em que a idéia aterrorizante de
ser diferente dos outros aos poucos se dissolve. Os artistas começam a se mostrar insatisfeitos
com a vida de imitação: “No entanto exprimir idéias próprias era uma aventura tão cega que
eles precisaram do apoio do louvor constante” (ibid., p.63) A consciência de se estar sozinho,
de ser incapaz de se ajustar ao padrão humano normal, se acompanhava de diversos
sentimentos e exigências complexos: ser coerente consigo próprio, ser o que gostaria de ser,
ser feliz como se é. O movimento romântico estendeu o apelo dessa “solidão introspectiva”
para além do mundo artístico do período renascentista. Difundiu a experiência solitária entre
as pessoas comuns, transformando-a num aspecto definidor da condição humana.
100

Denominamos, anteriormente, esse tipo de solidão de solidão como experiência constitutiva


do eu. Sua principal característica era a de proclamar que todo indivíduo combina atributos de
maneira singular e deve buscar uma maneira de viver que seja adequada à sua própria
realidade e beleza. O afastamento do mundo, nessa acepção, afirmava a individualidade,
favorecia a criatividade e protegia o eu contra a falsificação de si pelo mundo. Só que
provocava um efeito indesejável, a cegueira em relação aos outros. O modelo de eu derivado
dessas crenças é o responsável pela transformação do outro e do próprio eu em objeto de
troca.
A terceira maneira de imunização, encontra-se na idéia do absurdo como forma de
tolerar a solidão. Consistia em criar estilos de vida e de conduta que servissem como escape
das situações de exclusão. Dito de outro modo, buscava redefinir positivamente uma
experiência vazia e negativa. A combinação que os britânicos efetuaram entre solidão e
humor, por exemplo, era uma forma de extrair coragem da excentricidade. “Para eles a
excentricidade era uma maneira de embaralhar as cartas da vida” (ibid., p.67). Sua função era
impedir a vivência do que denominamos solidão como desvio, a normatização da vivência
solitária como defeito a ser moralmente corrigido.
A quarta e última maneira de se imunizar contra a solidão seria a crença na existência
de uma ordem cósmica que ecoa em cada ser humano. O mundo sem Deus não seria
necessariamente um grande e assustador espaço vazio. Apesar de todo infortúnio da vida e de
sua solidão, uma centelha divina estala em cada existência. Essa centelha nem sempre é signo
de algo sobrenatural. Pode ser apenas o reconhecimento de um laço de generosidade entre os
seres, “conexões racionais e emocionais significando que eles fazem parte de um todo mais
amplo, muito embora incapazes de decifrar na plenitude seus enigmas e crueldades.” (ibid.,
p.67)
Não consideramos inconcebível, a priori, a existência de métodos de imunização
contra a solidão e nem a utilidade deles em certos casos e contextos específicos. Entretanto, a
generalização desse tipo de saída, pressupondo o seu sucesso em testemunhos indiretos de
períodos históricos anteriores, coloca duas questões:

c A solidão dos ascetas cristãos primitivos é igual à solidão dos homossexuais


oitocentistas internados para tratamento de seus desvios de caráter? A solidão suicida de
Werther, apaixonado por uma mulher que não pode possuir, é comparável à solidão do
corruptor desmascarado que se suicida com um tiro na boca em frente às câmeras de TV?
Estavam eles investidos das mesmas crenças diante do mundo e da vida? Sonhavam com a
mesma utopia? Sentiam a mesma dor moral?
101

d Mesmo que pudessem ser provadas semelhanças suficientes entre os estados de


solidão nas várias épocas históricas, ainda podemos perguntar: não se trata de um equívoco
retrospectivo atribuir a personagens históricos antigos, como renunciantes e eremitas, a
intenção de se imunizar contra a solidão? O que, nas descrições históricas, pode garantir que
isolamento voluntário corresponde à intenção de se imunizar contra a solidão? Como medir e
identificar algo tão sujeito à interpretação contextual como a intenção de eremitas e artistas
românticos?

Como pudemos mostrar, a idéia de solidão, desde que seus referentes passaram a fazer
parte da história das civilizações, é variável e sujeita à diferentes interpretações. Por isso,
insistimos na tarefa de propor uma grade ética suficientemente ampla, de modo a permitir
experimentos inéditos, feitos de pedaços de tradição ou invenções verdadeiramente inusitadas.
Assim, perguntamos: o recurso à imunização, hoje, é suficiente para que tenhamos uma
resposta satisfatória à solidão? Imunização já não é um termo obrigatoriamente associado à
cultura psicologizante, em parte responsável pela solidão que experimentamos? Além do
mais, o procedimento psicológico da “imunização” não seria supérfluo ou derrisório, diante
de uma solidão banalizada e cercada de indiferença? Finalmente, imunização não é parte
constitutiva do próprio jogo emocional da solidão, do qual um “imunizado” não se distancia?
Baseados na observação da crescente pluralidade moral e emocional da experiência
solitária, necessitamos talvez de crenças que possam ir além da simples prevenção
imunizante. Tendo revalorizado o exercício da política por meio da vontade livre de agir no
mundo, pensamos, então, buscar redescrições do sentimento de solidão que enriqueçam o
vocabulário cultural, bem como o imaginário da clínica de saúde mental, para que se abram
novas possibilidades de ajuda aos que se encontram paralisados pela insuficiência. Afinal,
como diz Margolis:

“Our hability to reshape moral systems and definitions of the self is part of our hability to
reshape societies. Once we had evolved into creatures who could use language, emotions and
imagination to create flexible social orders that could be passed from one generation to
another, we are also evolved into creatures who could be infinetely inventive about who we
are.” 104 (Margolis, 1998, p.6)
A observação crítica da realidade, somada à reflexão e à vontade de agir, pode
subsidiar novas maneiras de lidar com a solidão. A nosso ver, os procedimentos de

104
“Nossa habilidade de redefinir sistemas morais e definições do eu é parte de nossa habilidade de refazer
sociedades. Uma vez que nos tornamos criaturas que podem usar linguagem, emoções e imaginação para criar
ordens sociais flexíveis que podem ser passadas de uma geração a outra, também nos desenvolvemos como
criaturas que tem a capacidade de ser infinitamente inventivas em relação ao que são.”
102

imunização, ou outros de caráter exclusivamente psicológico, são exemplos do ressentimento


que busca energias para superar a finitude e a limitação. Duvidamos que apenas
procedimentos da ordem do “psicológico” possam ser suficientes para refazer um mundo tão
marcado pelas descrenças modernas e crenças pós-modernas que abordamos. Ora, o
ressentimento, como mostra Arendt, só tem como resultado “a profound and pervasive
alienation from the world.” (Villa, 1997, pp.180) Pensamos que as características do mundo
atual, entre elas a alienação ressentida, desfavorecem a possibilidade dos indivíduos se
sentirem “em casa.” Como disse Nietzsche, quem está sozinho não pode se sentir em casa.105
No seguimento desse capítulo, consideramos a experiência solitária do eu moral como
a primeira forma de redescrever a solidão. Entretanto, não se trata de uma proposta empírica,
voltada ao combate da “solidão psicologizada”. Trata-se, antes, de reafirmar uma sorte de
“ontologia do sujeito”106 compatível com as exigências da promessa e da solidariedade. A
noção de sujeito moral não é nova nem exclusiva da de cultura alguma. Ela está referida ao
indivíduo dotado da crença sobre a racionalidade de seus pensamentos e sobre a
responsabilidade por seus atos. Fez parte de inúmeras éticas e pressupõe que os indivíduos
são unidades separadas entre si, mas não inclui necessariamente a representação de
interioridade ou ênfase na vida privada. Não pretendemos realizar uma abordagem da gênese
ou evolução do conceito de sujeito moral. Enfatizaremos, apenas, a dimensão solitária que
está na origem da responsabilidade moral, embora sabendo que, em certas culturas,
responsabilidade moral não esteja compulsoriamente atrelada à valorização do eu moral.
Sabemos, por exemplo, que a noção de eu oriental não requer a importância da noção de
sujeito como na experiência cultural do Ocidente. Todavia, a consideração desses casos se
afastaria em demasia dos problemas gerados por nosso modo de vida. Buscaremos, assim, nos
ideais de nossa própria cultura, nos aspectos da tradição que podemos recuperar pela tarefa do
pensamento, as condições de uma nova vivência da solidão.

105
“ One is no longer at home anywhere; at last one longs back for that place in which alone one can be at home:
the Greek world!”(Villa, 1997, p.179)
106
Ontologia, aqui, não tem o sentido metafísico de investigação sobre a essência do sujeito. Empregamos
ontologia no sentido deflacionário, que lhe foi dado por Davidson e Rorty, ou seja, o de simples entidades-
suporte de certos termos. O sujeito moral é uma noção pragmática. Sua ontologização, por conseguinte, é uma
pura maneira de falar da experiência subjetiva que reputamos moralmente mais desejável.
103

1.

A SOLIDÃO DO SUJEITO MORAL

Como vimos no capítulo anterior, há uma maneira de interpretar os dilemas morais


típicos da pósmodernidade. De acordo com Bauman (1993), essa moralidade emancipa o
indivíduo do assujeitamento ético, propondo-lhe a responsabilidade pela tarefa de não escapar
da ambivalência incurável do destino. Os indivíduos não são essencialmente bons nem
essencialmente maus. Suas condutas morais não podem ser garantidas nem são previsíveis.
Um impulso moral pode, ao mesmo tempo, oprimir e proteger. Muito poucas escolhas são
inequivocamente boas e, por isso, um agente sempre tem que considerar seus limites, se
reportando ao Outro e à sua própria consciência. As crenças morais são sempre
contextualmente dependentes e sofrem interferência dos quadros institucionais, o que não
quer dizer que todas as morais locais sejam igualmente válidas. Ao mesmo tempo, não tratar
posturas individuais como abominações e distorções, passíveis apenas de banimento no reino
do silêncio, e não instituir visões éticas totalizantes do mundo, não significa semear o caos na
sociedade disciplinada e carente de ações coordenadas.
Identificamos nesse statement pósmoderno características fundamentais para a
formulação da moralidade que não negue os princípios baseados no direito à vida, à liberdade,
à diferença e à busca da felicidade pessoal. Agir moralmente não significa investir no futuro,
esperando algo em troca, como nas formas menos lapidadas do utilitarismo. Tampouco
significa a capacidade para o sacrifício, a capacidade de se contentar com o fato de ter feito a
sua parte e saber que está correto em fazê-lo. A moralidade do sujeito não é feita de regras.
Ao contrário, ela resiste à codificação e as exigências da reciprocidade e da contratualidade:

“If rules are missing, however, my plight is much harder, since I cannot gain reassurance by
faithfully following the standards I can observe in others, memorize and imitate. As a moral
person I am alone, though as a social person I am always with others; just as I am free though
entrapped in the dense web of prescriptions and prohibiitons (As Maurice Blanchot puts it,
‘everyone here has his own prison, but in that prison each person is free’). ‘Being with others’
can be regulated by codifiable rules. ‘Being for the Other’, conspicuously not.” 107 (Bauman,

107
“Se regras estão faltando, meu fardo é muito mais pesado, desde que eu não posso obter apoio seguindo com
fé os padrões que eu posso observar nos outros, memorizar e imitar. Como pessoa moral eu estou sozinho,
embora como pessoa social eu estou sempre com outros. Da mesma forma que sou livre embora preso na densa
rede de prescrições e proibições (como Maurice Blanchot sugere ‘todos aqui tem sua própria prisão, mas nesta
prisão cada pessoa é livre’). Estar com outros pode ser regulado por meio de regras codificáveis. Ser para o
outro, definitivamente não.”
104

1993, p.60)

As noções de “estar com os outros” e “ser para o outro”, emergem da análise de


Bauman sobre as formas de togetherness (estar junto). O autor considera que os estilos de
relação mais comuns na atualidade são fragmentários e/ou episódicos, o que é decisivo para
suas consequências morais. Os encontros seriam fragmentários por constituirem apenas uma
parte dos muitos desejos e interesses do eu, sem relação com o todo de sua vida,
temporariamente posta de lado ou protegida sob o rótulo de “assunto privado”; seriam
episódicos na medida em que não têm história passada nem futura, estão marcados para
morrer, se esgotam no momento próprio do acontecimento, sem nenhuma consequência.
Nessas formas de relação, que evocam os caracteres do eu de troca descrito anteriormente, as
pessoas auto-suficientes estão apenas umas ao lado das outras, solitariamente, numa espécie
de co-presença que segue o modelo do “Being-aside.” Bauman considera que no estar com o
outro (Being-with), uma mútua dependência, que precede a interação, garante que um seja
objeto de atenção verdadeira para o outro, melhorando a qualidade relacional. Porém, nele,
haveria ainda uma “intermitência entre revelação e segredo” que expõe sua característica de
encontro de “seres incompletos”, “eus deficientes”, que está longe do ideal:

“What is, however, that non-deficient meeting against which the deficiency of mis-meeting is
measured, that meeting-of-complete-selves, which serves as an imaginary horizon by which to
plot all other meetings, and redefines all other meetings as mis-meetings? [...] So to find it, one
needs to explore the possibility of another kind of togetherness; one that, hopefully, proves
hospitable and conducive to encounters other than of being-with kind.”108(Bauman, 1995, p.51)

A primeira proposta de redescrição da solidão poderia ser retirada de um novo modo


de conceber o estar junto, um ideal regulativo que se baseia na completude imaginária da
solidão original de cada um. O “Ser para o Outro” (Being-for) seria miticamente anterior a
“estar com outros”. Poderia basear novas formas de estar junto que quebrariam decisivamente
a separação endêmica para a qual os parceiros sempre retornam, nas outras modalidades de
encontro. Seria uma inclinação sem fundação, causas ou fator determinante, algo que não
nasce de um julgamento ou de uma escolha. Não estaria associado a nenhum contexto social
em particular, e sim à idéia de compromisso, de abertura ao Outro, de “explosão não
planejada da não-indiferença, que a Razão chama de sentimento, emoção.” (ibid., p.53)

108
“Qual é, portanto, esse encontro não deficiente a partir do qual a deficiência dos encontros deficientes é
medida, esse encontro de eus completos, o qual serve como horizonte imaginário por meio do qual se mapeia
todos os outros encontros e os redefine como enganosos? [...] Para encontrá-lo, é necessário explorar a
possibilidade de outra forma de estar junto; uma que se espera provar hospitalidade e direção aos encontros,
outros que não o do tipo estar-com-o-outro.”
105

A responsabilidade moral seria precisamente um “ato de criação do eu”, pensa


Bauman, um eu cuja solidão é responsável pelo desejo de estar aberto ao Outro. A
permanência de sua força persuasiva depende do empenho da vontade e do entusiasmo
emocional de mantê-la; seu sentido é aquele estabilizado pelas narrativas cotidianas,
transmitidas pelas experiência dos vivos. A linguagem é o solo sobre o qual edificamos
imagens do eu; a responsabilidade moral é a fundação desse edifício, aquilo que sustenta e dá
solidez aos pilares e vigas:

“What seems as much of a ‘fact’ as a tornado or hunger is the human need to create and
maintain boundaries around the self and to invent moral orientations that tell us what we may
and may not do and be. For that we have language and feelings. They give us flexibility, but
they give us solidity too.” 109 (Margolis, 1998, p.152)

A moralidade, impossível de ser garantida racionalmente, inverte as noções clássicas


de que o pensamento precede a ação e a justificativa precede o dever. Nesse ponto, Bauman
se aproxima da idéia arendtiana da ação como inauguradora, mas não para dizer que podemos
nos entregar à ação injustificável ou incompreensível. Como Arendt, ele sugere que, desde
muito cedo na vida, nos posicionamos dentro de situações carregadas de peso moral,
resultantes de ações já realizadas. Isso significa estar a sós para deliberar e somente na
reflexão é possível deliberar entre o correto e o incorreto banalizado110.
Bauman pressupõe um eu moral que é inicialmente sozinho, que apenas convive com
outros depois de ter estado referido ao Outro em sua solidão fundacional. A moralidade é,
pois, um mistério contrário à razão. Alguma “causa poderosa” faz com que, em nossa
constituição subjetiva, desistamos de satisfazer ou minimizemos outros componentes de nós

109
“O que parece tão concreto quanto um tornado é a necessidade humana de criar e manter fronteiras em torno
do eu e inventar orientações morais que nos diz o que devemos ou não devemos ser e fazer. Para isto nós temos
linguagem e sentimentos. Eles nos dão flexibilidade, mas também nos dão solidez.”
110
Uma extraordinária análise das consequências da ausência de pensamento é realizada por Arendt (1983) sobre
a personalidade do nazista Adolf Eichmann. Na apresentação do livro, Ferraz Júnior sintetiza o argumento
esclarecendo que “Arendt trabalha sobre fatos e traz a banalidade do mal ao nível do cotidiano: o Eichmann que
se apresenta não é um perverso, nem um tipo criminosos cínico e atrevido, não é um ambicioso, capaz de matar
ou de fechar os olhos para progredir, mas é apenas alguém que jamais teria imaginado o que estava fazendo.
Note-se que isto não parece à autora como sinônimo de obtusidade ingênua. Eichmann não era um simplório, um
tolo, sabia muito bem o que fazia. O que o caracterizava era um vazio de pensamento que não quer dizer ser tolo,
mas que o predispôs a tornar-se o grande criminoso que acabou sendo. Está aí toda a banalidade referida. [...] Era
um funcionário do governo. Um alto funcionário, que nunca pensou que aquilo em que se aplicava pudesse
realmente ser algo de tão monstruosos.” (ibid., p.9) Bauman (1995), valorizando os sentimentos como
precondições para a performance moral, apresenta o argumento de Vetlesen, contrário à interpretação de Arendt.
Eichmann, antes de estar incapacitado de pensar, estaria inapto a sentir, seria indiferente ao significado do
sofrimento, insensível em relação a dor inflingida ao outro. “Insofar as he adopt an objectifying attitude towards
his fellows, as opposed to a participatory-empathic one, Eichmann for all practical purposes prevents the domain
of moral phenomena from being disclosed to him. [...] There is no disinterested access to the phenomenon of
suffering; if one bars the capacity to feel from morality, one bars humanity from it.” (Vetlesen apud Bauman,
1995, p.57)
106

mesmos, como o interesse próprio.111 Dessa maneira, “what is assumed here is that being-for-
the-Other rather than for-itself is ‘contrary to nature’; and that two modalities of being are in
112
opposition.” (ibid, p.14) A primeira realidade do self seria a referência ao outro e a
responsabilidade moral pelo outro; um ponto de partida e não um produto do social:

“What follows is that if solitude marks the beginning of the moral act, togetherness and
communion emerge at its end – as the togetherness of the ‘moral party’, the achievement of
lonely moral persons reaching beyond their solitude in the act of self-sacrifice which is both
the hub and the expression of ‘being for’. We are not moral thanks to society (we are only
ethical or law-binding thanks to it); we live in society, we are society thanks to being moral.
At the heart of sociability is the loneliness of the moral person.”113 (Bauman, 1993, p.61)

Segundo Bauman, por conseguinte, a moralidade não tem, propriamente, uma gênese
evolutiva. Ela é dada de pronto; está lá, como condição sine qua non da sociabilidade. Sem
moralidade não existe sociabilidade; ou somos sujeitos morais, ou, simplesmente, não somos
sujeitos sociais. Entretanto, a defesa da moralidade como fato originário, não faz do autor um
“otimista quanto ao altruísmo”, na modalidade descrita no capítulo anterior. Bauman não faz a
apologia do individualismo e do interesse próprio, nem mesmo sob a forma do altruísmo. Ser
para o Outro não é uma escolha; é uma coerção, um limite do ser social, e não uma construção
da socialização. A solidão seria, então, o momento da tomada de consciência dessa
dependência ou articulação inevitável ao Outro. Podemos escolher a forma de nos
vincularmos ao Outro – essa, sim, contingente; não podemos evitá-la ou contorná-la! A
solidão decorrente de uma moralidade referida ao Outro é, portanto, diferente da solidão ética
artificial, que determina formas de estar junto codificadas por regras, encontros de pessoas
com convenções - direitos e deveres – e não com outros sujeitos.
A nosso ver, o momento de origem do eu moral solitário é um artifício ficcional que
visa ilustrar a cronologia que estamos habituados a conceber e preservar: nascimento-vida-
morte. Esse artefato conceitual não nos parece se referir à estruturas inatas do psiquismo ou à
teorias similares. Seu parentesco, por exemplo, com a idéia de solidão como constitutiva do

111
Não entraremos na discussão sobre o que seria essa “causa poderosa” e qual o seu estatuto filosófico
“correto”, e nem sobre o que Bauman considera “a verdadeira natureza”. Gostaríamos apenas de apontar para as
discussões atuais que buscam posicionar as emoções como índices de uma situação, ou seja, expressões “do
valor que ela tem para a existência do homem.” (Abagnano,1982, p.294) Assim, não apenas a racionalidade seria
responsável pelo relevo dado a certas crenças sobre o mundo. A moralidade, o sentido de responsabilidade pelos
outros, poderiam ser fruto de crenças emocionais.(Solomon In Marks,1996)
112
“o que é assumido aqui é que ser-para-o-Outro ao invés de para si-mesmo é contrário à natureza; e que as
duas modalidades de ser estão em oposição.”
113
“O que se segue é que se a solidão marca o início do ato moral, estar junto e em comunhão emergem no seu
final. Do mesmo modo como ocorre com o sentir-se junto da comunidade moral, as conquistas de pessoas morais
sozinhas indo além de sua solidão no ato do sacrifício é tanto o eixo quanto a expressão de ser-para. Nós não
somos morais graças a sociedade (nós somos apenas éticos ou cumprimos a lei graças a ela); Nós vivemos em
sociedade, nós somos sociedade porque somos morais. No coração da sociabilidade está a solidão da pessoa
moral.”
107

sujeito, descrita no primeiro capítulo, é nulo. Nessa última, a solidão é um subproduto dos
ideais civilizatórios da sociedade do século XVIII e da necessidade política de controle dos
súditos em uma nova realidade social e econômica. Essa “solidão histórica” diz respeito à
consciência do isolamento social e emocional; à desconfiança quanto ao próprio valor pela
instabilidade do pertencimento ao grupo no qual se deseja ser aceito. Bauman evoca Arendt
para questionar a idéia de bases pressociais do comportamento moral. Realça a questão
arendtiana da “responsabilidade moral de resistir à socialização”, reassegurando que a
distinção entre bem e mal não pode estar entregue à legitimação de poderes sociais:

“O que exigimos nesses julgamentos, onde os réus cometeram crimes ‘legais’ é que os seres
humanos sejam capazes de distinguir o certo do errado, mesmo quando todos eles têm a guiá-
los apenas seu próprio julgamento, o qual, além disso pode estar em completa discordância
com aquilo que eles devem encarar como opinião unânime de todos aqueles a sua volta. E
essa questão é das mais sérias, por sabermos que os poucos que foram tão ‘arrogantes’ a
ponto de só confiar no seu julgamento, não eram de forma alguma idênticos àquelas pessoas
que continuavam a se prender a velhos valores, ou que eram orientadas por alguma crença
religiosa [...]Aqueles poucos, que ainda eram capazes de discernir o certo do errado, seguiam
apenas seu próprio julgamento e eles o faziam espontaneamente.” (Arendt, 1983, p.302)

As pessoas que não se subordinaram ao desaparecimento súbito das máximas morais


que guiavam a consciência contra a desumanidade e o genocídio eram solitárias; resistiram à
“manipulação da capacidade moral” pelo processo de socialização. Bauman deseja uma
capacidade humana de distinguir o bem do mal que seja dada, tal como os componentes da
constituição biológica, as necessidades fisiológicas e os impulsos psicológicos.
A solidão de Bauman é a “solidão ontológica” do sujeito moral. As crenças pós-
modernas, simplesmente, parecem criar condições para que seu significado se torne mais
visível e operante. Consideramos que essa descrição nos permite pensar em outras formas de
nos referir a nós próprios e às situações de solidão que sentimos e vivemos. O processo de
constituição subjetiva se dá entre outros e dura toda a vida. As tristezas, alegrias, dores e
amores se iniciam com o nascimento e terminam com o fim da existência de cada indivíduo.
Ao longo da história, muitos autores postularam a perspectiva da morte como determinante
das escolhas e tendências da vida. Outros, como Arendt, deram ênfase ao significado do
nascer, símbolo eloqüente da capacidade humana de recomeçar, de inventar e reinventar a
própria existência. Procuraremos mostrar de que modo pensamos na ligação entre solidão e a
valor da inventividade humana. Tentaremos perceber que encaminhamentos são possíveis
para essa solidão do recomeço, do novo início simbolizado no nascimento, na reconciliação
com uma nova existência.
108

Até o momento, a imagem pós-moderna de sujeito moral, nos deu a possibilidade de


conceber uma “solidão originária mítica”, sem o peso normativo da universalidade. A solidão
originária seria parte de uma ontologia do indivíduo referido ao Outro, ou seja, um começo
que já é um valor para a política, posto que referido à vida em comum. No que se segue,
pensamos esboçar uma idéia de solidão positiva que guarde certa continuidade lógica com a
“solidão moral do princípio.” Essa solidão positiva deve ser percebida como o estado que
reedita a responsabilidade ontológica particular de ser-para-o-outro (being-for) e provoca
modificações na forma de viver e estar junto.
É importante ressaltar que, apesar de sugerida uma complementaridade entre as
concepções de solidão do sujeito moral e solidão positiva, estamos tratando de descrições
com estatutos lógicos distintos. A solidão do sujeito moral está referida a uma ontologia que,
embora sem ambições universalizantes, pretende ressaltar o caráter inelutável da relação ao
Outro. Desse ângulo, o sujeito moral é a premissa que exige a idéia de solidão como momento
compulsório das decisões ou ações éticas. Se quisermos viver eticamente, temos que admitir a
contingência dos nossos atos e a liberdade de nossas escolhas. E, nesse estado originário de
possibilidades indefinidas, está a reflexão solitária do sujeito em sua referência ao Outro. A
solidão positiva se inscreve na dimensão do psicológico. Ela versa sobre os atributos
emocionais e intelectuais mais claramente construídos por práticas culturais e,
consequentemente, mais susceptíveis e flexíveis à redefinições. Assim, a solidão positiva,
como expressão da dimensão psicológica – alvo da nossa intervenção na clínica de saúde
mental – reencontra e se contrapõe à solidão negativa do eu insuficiente.
Nessa perspectiva, a solidão positiva se assemelha ao conceito de “apelo retórico”,
que Ortega utiliza para designar a posição antinormativa defendida por Arendt: “Trata-se de
uma maneira muito sutil de fugir do normativismo que implicariam suas posições políticas.
Esse apelo caracteriza-se, sobretudo, pela renúncia a qualquer pretensão de prescritividade e
de universalidade, elementos que, em regra geral, definem as exigências morais.” (Ortega,
1998b, p.9). No que diz Ortega, se pode ver uma espécie de conciliação entre a imagem da
solidão moral de Bauman e os objetivos práticos da redescrição empírica das solidões
individuais, no universo das psicologias intimistas. Assim como Bauman, Ortega se nega a
“prescrever universalmente” o que pode advir de seu “apelo retórico”. Mas, diferente do
primeiro, o último quer formular vias de saída para os impasses concretos dos sujeitos e se
arrisca a propor regras mínimas para as eventuais alternativas. Essas regras mínimas não se
baseiam em fundamentos argumentativos – no sentido tradicional do discurso filosófico – mas
na persuasão retórica. Em vez de argumentar racionalmente em favor de certa forma de vida,
buscando os fundamentos últimos de sua verdade, se prefere estratégias dos exemplos
109

históricos, experimentos de pensamento e outros, que podem apontar para a experiência de


“positivar a solidão”.
Dessa maneira, a solidão positiva não seria um código de normas e atitudes que
visassem a acomodar o sujeito à sua situação de isolamento insuficiente. Busca ocupar uma
posição aberta à flexibilidade da psicologia humana, porém convertida à necessidade da
persuasão de princípios normativos mínimos. Ou seja, não se trata apenas de transformar o
espaço da solidão individual em algo significativo e produtor de satisfação pessoal.
Duas formas de persuasão retórica, que buscam efetividade prática, dizem respeito à
experiência da solidão positiva como parte da ética:

c A primeira enfatiza o processo no qual o indivíduo é levado a deliberar e agir


eticamente. Oferece alternativas de encaminhamento para os impulsos morais ambivalentes. É
o caso da discussão encontrada em Benjamim e Arendt sobre o valor da experiência na
transformação da contingência em destino.

d A segunda, enfatiza a possibilidade de que o indivíduo possa correr o risco de


escolher sem por em cheque as imagens centrais da solidariedade e da promessa. É o caso da
tematização da noção de amizade em Murphy, Ortega e Foucault.

2.
A SOLIDÃO POSITIVA: RECONCILIAÇÃO COM A EXISTÊNCIA

Com relação à primeira forma retórica, buscaremos respostas às seguintes perguntas:


como realizo uma escolha ética? Estando convertido à crença da indeterminação da
moralidade, como escolho entre alternativas? Benjamim e Arendt dão subsídios para que
possamos conceber a implicação da solidão positiva no processo de decisão ética. Melhor
dito, sugerimos que a maneira como Benjamim e Arendt recomendam a tomada de decisão
ética pressupõe um estado do sujeito semelhante ao que consideramos a vivência psicológica
da solidão positiva.114

114
Na obra dos dois autores não encontramos o projeto claro de valorização ou redescrição da solidão. As
referências mais diretas a esse sentimento são, em geral, associadas ao que denominamos como conotação
“negativa”. Benjamim (1994), por exemplo, considera a solidão como um estado no qual não podemos dar ou
110

Os conceitos de experiência e de conselho, de Benjamim, assumem importância na


descrição da solidão como experiência de mundo partilhado com os outros e na consideração
do solitário como o eu que se faz na relação. A faculdade de trocar experiências, por meio de
narrativas, seria aquilo que mantém os laços entre as pessoas e sustenta a relação de partilha.
Mas, para narrar, há que se fazer a experiência solitária da escuta, ser capaz de refletir
individualmente sobre um conselho, e, assim, contribuir para a continuação de uma história.
Benjamim (1994) considera que a arte de narrar está em vias de extinção, como resultado da
“evolução secular das forças produtivas” (ibid.,p.201) O homem moderno perdeu a
comunicabilidade de suas experiências, pela configuração da sociedade capitalista. Interessa-
se apenas pela vizinhança cultural e dramatiza sua intimidade por meio da informação, que se
difunde com grande velocidade. No entanto, para Benjamim, os homens são cada vez mais
pobres em histórias surpreendentes. A narrativa suscita reflexão, gera surpresa e dúvida. Sua
sóbria concisão, as mantém a salvo da análise psicológica explicativa, facilitando sua
memorização e a inclinação para recontá-la. A informação, por outro lado, segue o modelo da
racionalidade e do progresso: só tem valor no momento que é nova e que se explica. O
rompimento da tradição e da memória, selado pelas consequências do totalitarismo e da
guerra, enfraqueceram definitivamente a experiência comum, experiência de travessia
inacabada, na qual o destino nunca está dado a priori. No lugar, surgiu a simples vivência,
vivência do desamparo, da perplexidade, do embaraço, da falta de sentido para a ação:

“ Benjamim fala de uma nova barbárie que é esta da humanidade privada da experiência.
Experiência coletiva, ligada a um trabalho e a um tempo compartilhados em um mesmo
universo de prática e linguagem, garantidos pela tradição e a memória comuns cujo declínio
acarreta, inevitavelmente, o declínio da arte de narrar. O homem, que antes escutava para em
seguida narrar os relatos intermináveis de uma experiência comum, de repente se vê
desacompanhado, lendo romances. A origem do romance é o indivíduo isolado, que se
encontra impossibilitado de narrar exemplarmente a sua própria história: ele já não recebe
conselhos e nem os pode dar. O romance é em si mesmo um sintoma do declínio da
experiência: o sentido da vida, antes imediatamente dado pela experiência compartilhada,
está agora isolado da própria vida, tornando-se uma resposta à necessidade de se concluir
uma história. [...] o homem moderno, privado do conselho trazido pela experiência, tem, em
seu isolamento, necessidade de uma explicação: ele deve aprender de uma só vez o sentido da
vida de seu herói. O que lhe importa não é um ensinamento qualquer prodigado pela vida de
seu herói, mas o destino, o fim que lhe coube. Segundo Benjamim, o leitor do romance nutre-
se sempre de uma matéria ressecada e sem vida sobre a qual um fim está dado desde o
início.” (Fares, 1996, p.50-1)

Benjamim expõe a distorção das formas narrativas, que reduziram a “moral da


história” – aberta à interpretação - à uma mera reflexão sobre o sentido de uma vida. Sugere

receber conselhos que, tecidos na substância viva da existência, dão origem à sabedoria. Remete-se, assim, ao
estado de solidão como isolamento. Arendt, por sua vez, relaciona solidão à ausência do outro na esfera pública,
o que também desemboca no isolamento: “na solidão e no isolamento, o perdão e a promessa não chegam a ter
111

que isto não é um fenômeno especificamente moderno, porém, os romances representaram o


início de seu apogeu. Decretando um “fim”, o limite do destino alheio que dá calor ao
“destino gelado” do leitor, o romance é expressão da refratariedade ao conselho. Não precede
a tradição oral nem a alimenta. Não é capaz, como o provérbio - ruína de uma antiga narrativa
– de dar significado vivo ao relato; somente “a moral da história abraça o acontecimento,
como a hera abraça um muro.” (ibid., p.221) Para ele, o romancista segregado não pode mais
falar exemplarmente de suas preocupações, não sabe retirar o que conta da sua experiência ou
da experiência dos outros. O leitor, por outro lado, não pode mais incorporar a coisa narrada à
experiência de sua vida:

“Quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa
companhia. Mas o leitor de um romance é solitário. Mais solitário do que qualquer outro
leitor (pois mesmo quem lê um poema está disposto a declamá-lo em voz alta para um ouvinte
ocasional). Nessa solidão, o leitor do romance se apodera ciosamente da matéria de sua
leitura, quer transformá-la em coisa sua, devorá-la, de certo modo.” (Benjamim, 1994, p.213)

No romance, a sobreposição do fim sobre o trajeto, a determinação de um fim desde o


início, é uma marca das práticas culturais reguladoras de uma época histórica cuja crise
banalizou a solidão, transformando os indivíduos em proprietários ciosos de sua interioridade,
ocupados na busca do sentido singular e específico de sua própria vida íntima, “ocupados de
si”. Desapareceram nessa época as comunidades de ouvintes, que fiavam e teciam enquanto
escutavam histórias, esquecidos de si mesmos: “Quanto mais o ouvinte se esquece de si
mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido.” (ibid., p.205) A narrativa
transformava a matéria-prima da experiência em um produto “sólido, útil e único” para todo o
grupo. O narrador sabia dar conselhos para muitos casos, porque podia recorrer ao acervo de
toda uma vida; se baseava, como queria Leskov, muito mais “numa concepção prática de vida
do que na filosofia abstrata ou numa moral elevada.” (ibid., p.219)
Consideramos a narrativa, o “senso prático” do narrador, como uma das condições que
possibilitam a transformação da solidão do sujeito moral, ambivalente desde o nascimento,
em experiência da solidão positiva. Por meio dela é possível escutar a experiência,
compreendê-la e transmiti-la de maneira articulada; não apenas repeti-la. A mobilidade do
narrador em torno de sua experiência, é a imagem de uma experiência coletiva “para a qual
mesmo o mais profundo choque da experiência individual, a morte, não representa nem um
escândalo nem um impedimento.”115 (ibid., p.215) Para que a travessia imprevisível da vida

realidade: são, no máximo, um papel que a pessoa encena para si mesma.” (1993a, p.249)
115
Benjamim (1994) ressalta que a sociedade oitocentista permitiu aos homens evitar o espetáculo da morte,
fazendo com que sua idéia perdesse a força de evocação e o caráter exemplar e público, num atrofiamento da
noção de eternidade. Cita Valery, na constatação de que o homem atual não sabe cultivar o que não pode ser
112

não se reduza à banalidade do imobilismo e da incapacidade para a ação, o sujeito terá que
refletir sobre conselhos, saber julgá-los e querer garantir continuidade à narrativa que os
gerou. E para fazê-lo, deverá contar com as próprias faculdades de pensar e agir no sentido da
transformação. O recomeço cotidiano da experiência de vida, que adiciona criatividade à
narrativa, é muito mais instigante que qualquer enredo narrativo pré-definido, para o sujeito
fundado na responsabilidade ético-moral de ser solidário e de cumprir suas promessas.
De modo similar, Arendt também faz da sua obra um espaço de valorização da
narratividade aberta para a vida. Realça o quanto os sofrimentos humanos podem ser mais
brandos quando podemos contar uma história sobre eles, repartindo sentidos para o inusitado.
Na amizade com Benjamim, compartilhava da percepção de que a faculdade de trocar
experiências, através da narrativa, mantém os laços entre os homens. Escutar e depois narrar
contribuem para a continuação de uma história, de uma tradição. E é somente numa história
que se ocupa um lugar. Na reflexão solitária é que se elaboram as histórias coletivas; é
sozinho que se faz “de sua contingência um destino”, como sugere Heller (1988, p.17). A
partir daí, o homem está preparado para participar do processo coletivo de escolha das
melhores e mais importantes histórias a serem transmitidas.
Mas Arendt enfatiza um outro ponto no universo da tradição narrativa: o pensamento -
faculdade discursiva por excelência. É por meio dele que efetuamos a justaposição de
experiências numa sucessão de palavras, numa linha onde “desensorializamos” e
“desespacializamos” as experiências originais. Esses procedimentos garantem o sucesso da
atividade reflexiva. Para a autora, o pensamento se dá caracteristicamente no intervalo de
tempo do presente, do agora. Nele, o passado e o futuro estão igualmente presentes, porquanto
ausentes da percepção: “Assim, o não-mais do passado é transformado, graças à metáfora
espacial, em algo que se encontra atrás de nós, e o ainda-não do futuro em algo que se
aproxima pela frente.” (Arendt, 1995, p.153) No presente do pensamento é que se organiza a
capacidade narrativa:

“ O homem vive nesse intervalo, e o que ele chama de ‘presente’ é uma luta que dura toda a
vida contra o peso morto do passado, que o impulsiona com a esperança, e contra o medo do
futuro (cuja única certeza é a morte) que o empurra para trás, para ‘a serenidade do
passado’, com a nostalgia e a lembrança da única realidade de que o homem pode ter certeza.
[...] A reflexão traz essas ‘regiões’ ausentes à presença do espírito; dessa perspectiva, a
atividade de pensar pode ser entendida como uma luta contra o próprio tempo. É apenas
porque ‘ele’ pensa, e, portanto, deixa de ser levado pela continuidade da vida cotidiana em
um mundo de aparências, que passado e futuro se manifestam como meros entes de tal forma

abreviado e controlado, dada sua ânsia pelo progresso econômico e tecnológico. Nesse contexto, o “saber que
vem de longe”, contido na narrativa, perde sua autoridade e é substituído pela informação de acontecimentos
próximos, que pode ser submetida à verificação imediata e é compreensível “em si e para si”, apesar de muitas
vezes não ser mais exata que os antigos relatos.
113

que ‘ele’ pode tomar consciência de um não-mais que o empurra para frente e de um ainda-
não que o empurra para trás.” (Arendt, 1995, p. 154-5)

O pensamento sempre lida com ausências, interrompendo e sendo interrompido pelas


atividades ordinárias da vida. Nesse “retiro das aparências”, nossas atividades espirituais se
voltam sobre si mesmas. A melhor ilustração desse movimento, para a autora, seria “o hábito
socrático de, subitamente, ‘voltar seu espírito para si mesmo’, deixando de lado toda
companhia.” (ibid., p.149) Na atividade do pensamento, no estar-só do pensador, cria-se a
dualidade do dois-em-um, separação reflexiva entre o eu e o outro, que só se interrompe
quando o chamado do mundo exterior reposiciona o indivíduo numa unidade com os
semelhantes.
Habitar a esfera da solidão é se posicionar nesse momento incômodo em que
convivem passado e futuro, esperança e medo. Em seu livro O pensar, Arendt detalha
imagens antigas da experiência do ego pensante, especialmente em relação aos objetivos
filosóficos. Analisa as “falácias metafísicas” que contêm indicações importantes sobre a
atividade do pensamento. Mas o que nos importa, na verdade, é o posicionamento de Arendt
entre os que tentam desmontar a metafísica e a filosofia, sugerindo que o fio da tradição está
rompido e que não podemos reatar a continuidade de suas categorias com a matriz grega. A
autora descreve uma imagem da região do pensamento diferente da “trindade romana”, que
por séculos uniu religião, autoridade e tradição. Essa nova imagem possuiria a vantagem de
não ter que se situar “além e acima do mundo e do tempo humano”. O pensamento é direito e
dever de todos e o interesse fundamental em sua consideração é a síntese arendtiana
preocupada com a reabilitação da política nas práticas de vida: o pensamento não é mais
um fim em si mesmo.
Na imagem arendtiana da região do pensamento, está uma “presença combativa” que
impede o simples aniquilamento das forças oponentes - passado e futuro. O presente cria uma
espécie de terceiro termo, um espaço mediador: “o lutador não teria mais que pular da linha
de combate para encontrar a calmaria e a quietude necessárias para o pensamento.” (ibid,
p.157) Essa “força combativa” do pensamento no presente, a nosso ver, possui estatuto
comparável à solidão em Cícero, uma presença disposta a qualquer travessia que se apresente
na direção do progresso moral e da boa vida.116 Dizendo de outra maneira, Arendt procura

116
A concepção da solidão como “um trajeto”, um imenso deserto a ser percorrido entre o indivíduo e o outro,
segundo Fares (1996), origina-se em Cícero. A idéia central em Cícero é a de destino incerto e desconhecido. O
tempo seria o meio que permitiria ao homem realizar sua solidão, ou seja, constituir-se gradativamente como
sujeito moral. Retomando as reflexões de Elias sobre a sociologia do fato solitário, marcado pela “rede de
relações humanas da qual ele é um dos nós e no seio da qual ele vive e tem acesso à sua individualidade” (Elias
apud Fares, ibid., p.45), a autora acredita reencontrar o modo como Cícero definiu a solidão, um vasto deserto a
ser percorrido: “O solitário, é assim, aquele que está, todo o tempo, instado a empreender uma Odisséia.” (ibid.,
114

propor uma imagem do ego pensante que não seja absolutamente ausente da realidade do
mundo dos assuntos comuns, que não corra o risco de perder seus pensamentos no vazio da
“quietude imóvel”. O pensamento seria uma “força diagonal”, cuja direção é determinada
pelo passado e pelo futuro, mas que tem sua raiz no presente humano e a ele permanece
ligado. Tentando esclarecer sua própria idéia de força diagonal, Arendt diz:

“Para mudar a metáfora, ela é a calmaria que reina no centro do furacão, que ainda pertence
a ele, embora dele seja totalmente diferente. Nessa lacuna entre o passado e o futuro,
encontramos o nosso lugar no tempo quando pensamos, isto é, quando estamos distantes o
suficiente do passado e do futuro. Estamos aí em posição de descobrir o seu significado, de
assumir o lugar do ‘árbitro’ das múltiplas e incessantes ocupações da existência humana no
mundo, do juiz que nunca encontra uma solução definitiva para esses enigmas, mas respostas
sempre novas à pergunta que está realmente em questão. [...] Esse pequeno espaço não-
temporal no âmago do tempo, ao contrário do mundo e da cultura em que nascemos, não
pode ser herdado nem transmitido pela tradição, embora cada grande livro de pensamento
deixe-o entrever e como que o decifra – como diz Heráclito a respeito do Oráculo de Delfos,
notoriamente críptico e indigno de confiança: ‘onte legei, oute krytei alla semanei’ (‘ele não
diz nem oculta, ele insinua’). Cada nova geração, cada novo ser humano, quando se torna
consciente de estar inserido entre um passado infinito e um futuro infinito, tem que descobrir
e traçar diligentemente, desde o começo, a trilha do pensamento.” (Arendt, 1995, p.158)

A calmaria no centro do furacão, a força diagonal do pensamento, cuja origem é o


presente, seria também condição de possibilidade para a reconciliação do homem com sua
existência. A modernidade, enquanto apogeu da alienação do mundo e dos esforços
extremistas de produção, seria responsável pelo divórcio do homem com sua existência.
Reconciliar-se, para Arendt, é recuperar a capacidade do agir político, retomar a ação política
que faz o homem se sentir em casa no mundo.117
Arendt valoriza a tarefa de pensar como parte da vida de cada um de nós, não como
prerrogativas de poucos, dotados de mais inteligência ou capacidade. O fato do pensamento
usualmente comprimir os particulares em generalizações e abstrações, o que o diferencia da
ação, não o faz uma atividade para a qual seja necessário qualquer espécie de talento
privilegiado. Mas, pensar sem o auxílio da tradição pode trazer consequências indesejáveis.
Eliminando o passado, decreta-se a inexistência do presente e sem o presente, falta
compartilhamento, falta a atividade ininterrupta que siga um curso antecedente e imprevisível:
“Na falta de tudo, só lhe resta habitar um afastamento, o que nomeia este presente

p.62) Sua única certeza é o destino de errância, o “inelutável abandono a uma marcha sem objetivos
preestabelecidos.” (ibid., p.61) Fares define, assim, a solidão como “uma relação móvel e imprevisível entre os
homens.”
117
Villa (1997) apresenta duas correntes interpretativas dessas postulações de Arendt. Na primeira, a autora seria
vista como uma “modernista relutante”, que nutre a esperança da humanidade encontrar uma maneira certa de se
sentir em casa no mundo. Assim, mostraria adesão à concepção deliberativa de democracia e direitos humanos.
Na segunda, Arendt seria uma “anti-modernista”, cuja crítica ao individualismo, seriamente comprometida com
a ação política, bloquearia a própria possibilidade do sentimento de “estar em casa no mundo”.
115

‘esquartejado entre o passado desaparecido e o futuro que tarda’.” (ibid., p.57) No vocabulário
arendtiano, faltando presente, não há pensamento, a atividade reflexiva que impede a
banalização de qualquer tipo de mal. Sem pensamento, a lacuna entre passado e futuro é
abissal, impossível de ser preenchida.
Acreditamos que a solidão negativa evoca toda a banalização do eu alienado e
dirigido à fabricação e ao consumo. Nela percebemos os efeitos do desamparo humano, da
destruição das condições necessárias à capacidade de agir que justifica a existência do
sujeito:

“É, de fato, uma coisa estranha que a solidão tenha se tornado uma das características da
sociedade ocidental cristã, que é fundada sobre o amor de Deus e a fraternidade humana.
Somos o único povo no qual se incute desde criança esse mandamento impossível: ‘Ama teu
próximo como a ti mesmo’, e, não obstante, quantos de nós carrega uma existência infeliz,
átomos mal-amados e incapazes de amar – indivíduos livres em uma sociedade aberta,
condenados a fazer parte da grande subcultura cinzenta dos solitários. [...] Conseguimos nos
convencer de que é bom estar só, que temos necessidade de intimidade para nossa
tranqüilidade de espírito [...] Chegamos mesmo a convencer-nos que a vida abominável que
uma pessoa sozinha leva em uma quitinete, “com sua ‘independência’ e sua ‘liberdade’, é a
coisa mais bela do mundo.” ( Brain in Costa, 1998, p.156)

Como diz Brain, a vida solitária abominável se esconde por trás de cortinas
ideológicas e imagens midiáticas que apartam o homem de sua vocação existencial.
Insistimos, portanto, em sugerir que uma outra face da solidão, vista positivamente, pode
funcionar como alavanca para a reconciliação do homem com o mundo. Essa visão pode se
impor às armadilhas ideológicas da “independência” e da “liberdade” especificamente
“modernas”. Prefigura-se, assim, a resposta para a primeira pergunta que sugerimos: como
escolher? Com Benjamim e Arendt, podemos dizer que, participando da tradição narrativa e
não nos esquivando da tarefa do pensamento, usaremos nossa liberdade em favor de processos
de escolha não aleatórios, escolhas com a marca da responsabilidade do sujeito moral que
almeja mais que os próprios interesses.
A banalidade do eu moderno e a negatividade da solidão atual podem ser combatidas
com a disposição de atender ao “apelo retórico” de reconhecer o valor de uma posição
existencial não normativa, aberta à criação de novas “estratégias” existenciais. Desse modo,
a solidão positiva, portadora da responsabilidade moral para com o outro e nutrida pela
experiência do pensamento no presente de sua existência, pode atuar como uma ferramenta na
reconciliação do eu insuficiente com a sua existência. A reconciliação é função da
repolitização que faz da solidão positiva meio de resgate da “atividade prazerosa do agir
político”, como descreve Ortega (1998b): “O amor mundi arendtiano representa precisamente
o deleite que se sente na ação política, essa vontade de agir como ‘o prazer que
116

irresistivelmente produz a faculdade humana de começar de novo, a alegria que deve


acompanhar todo o novo quando brota para a prosperidade’.” (ibid., p.11) A disponibilidade
do indivíduo na solidão positiva favorece a mesma “hospitalidade radical” e incondicional
que o “amor ao mundo” proporciona. Essa hospitalidade seria a “experiência fundamental da
comunidade”, segundo Derrida. (in Ortega, ibid.) A posição solitária positiva não acarreta o
reforço do isolamento; habilita os indivíduos não só a lidar com ele, mas também a utilizá-lo
para se reconciliar consigo mesmo e com todos que participam de sua existência. A solidão,
assim, não é confinamento, nem privação, mas a prática radical da partilha ininterrupta e
imprevisível que sempre nos conduz a dizer “nós”.
A descrição da reconciliação do eu com sua existência, na perspectiva da solidão
positiva, como vimos, pressupôs três tarefas: a responsabilidade moral para com o outro, a
capacidade reflexivo-narrativa e a disposição para a hospitalidade que brota no agir
político. A solidão é um estado que pode contê-las e viabilizá-las, pois, sendo multifacetada,
possui articulações valiosas com o mundo dos negócios comuns. Entretanto, uma segunda
pergunta se coloca em sua consideração: por que preferir a responsabilidade do pensamento à
escolha aleatória? O que me faz estar envolvido no risco da contingência e mesmo assim,
manter os ideais da solidariedade e da promessa? Essa é a pergunta sugerida pela segunda
forma de persuasão retórica, e que procuraremos tematizar a partir da idéia de amizade.
A amizade pode assumir o papel de ideal que inspire a opção pelo pensamento num
mundo banalizado pela morte súbita de seus ideais. Consideramos a amizade como outra
forma de “apelo retórico” correlata à solidão positiva. Pensamos, então, encerrar esse estudo
ampliando a visibilidade de uma forma de vida que foi desqualificada teoricamente durante o
processo moderno de ênfase amorosa, que ainda domina o cenário da literatura, do cinema e
das preocupações cotidianas das pessoas.118 Autores como Murphy (1998), pensam que há
uma retomada do interesse pela amizade devido ao declínio na eficácia do institucionalismo
de estilo moderno. Sua tematização na cultura de massa, inclusive a TV, seria uma reação à
dinâmica peculiarmente etérea do capitalismo burocrático.119
Uma característica da amizade é importante na sustentação dos ideais da solidariedade
e da promessa: a existência de um terceiro termo entre o eu e o outro imprevisível. Esse
terceiro é responsável pela ligação entre as subjetividades constituídas na solidão, ou seja,

118
A amizade perdeu - ao longo da história do Ocidente - sua relevância histórica e sua posição privilegiada no
imaginário humano. Ortega (1998a, p.78), chama atenção para o fato da sociologia, até muito recentemente,
“desqualificar a amizade como objeto de análise, acusando-a de ser um assunto privado.” Para Murphy (1998), a
amizade não foi um tema caro à modernidade porque seus psicólogos elevaram o desejo, pensado como uma
força radical primordial, ao trono das emoções. Da mesma forma, os românticos elevaram o amor à posição de
ligação humana inata.
119
A burocracia é a forma de governo em que, nas palavras de Arendt, “ninguém governa.” (Ortega, 1998b)
117

funciona como cimento das relações.120 Ao contrário do amor, não pretende ser uma relação
entre dois que se vêem como “iguais”, como duas metades de algo – o que Arendt chamou de
característica “anti-política” da ética amorosa. A amizade é uma relação entre “três” que não
se preenchem e nem buscam formar um todo. Dois amigos sempre estão referidos à uma
terceira parte da amizade - uma forma, idéia ou causa – que exerce uma mediação e
proporciona uma igualdade na diferença. Murphy chama esse terceiro de “the Good”, o Bem.
Por causa do envolvimento partilhado e da relação comum a uma Grande Idéia, os amigos não
precisam ser iguais, podem conviver com afetos conflitantes e idiossincrasias pessoais, sem
que o Bem seja desviado do centro. Os amigos compartilham a mesma causa, se sentem
confortáveis com ela na solidão e, portanto, têm interesse em explorá-la juntos.
Em oposição à amizade, os “contatos amigáveis” estão direcionados à promoção
mútua de bens individuais. A amizade genuína é mais que uma relação de utilidade mútua;
também é mais do que a mutualidade desinteressada. Os amigos verdadeiros (perfect, true or
prime friends) também se ajudam na obtenção de bens - fortuna, saúde, sucesso – mas vão
além; preferem estar juntos porque apreciam a companhia recíproca, divertem-se com ela.
Mas não precisam estar sempre juntos, pois a Grande Idéia que compartilham pode sustentar a
separação. Este é o “aspecto sério” sem o qual a amizade não sobrevive. Entretanto, há
também a necessidade do olhar, do abraço: “It is a relationship of the Idea, but not of the Pure
Idea.”121 (ibid., p.172)
Para Murphy, o niilismo caracteristicamente moderno confundiu a amizade porque
retirou dos amigos a coisa maior que os unia, a crença séria em algo, uma espécie de
“seriedade ontológica que funda o prazer de compartilhar”. Esse prazer de compartilhar, como
vimos, é um resultado da prática da solidão positiva, da receptividade como disposição de
vida. Como acentua Beck, o solteiro é o arquiteto mais capacitado para cultivar uma rede de
amizade; pode ser “o iniciador de suas relações sociais, em um universo construído por ele
mesmo.” (Ortega, 1998a, p.78) No entanto, se esse solteiro é uma figura derivada da
dissolução da segurança social, carrega a crença niilista de que só pode contar consigo
próprio, pensa a amizade como uma “função compensadora”. Ao se preocupar apenas com os
próprios interesses, não possui a “seriedade ontológica” que funda a beleza da amizade
enquanto alternativa relacional. Não conserva os ideais solidários; não pode prometer.
Na sociedade forjada pela Reforma protestante, pela Nação-estado monárquica e pela
revolução industrial, um amigo pode ser um conhecido, um colega, um vizinho, um patrão,

120
Acreditamos que Benjamim (1994, p.210), do mesmo modo, considera “o interesse em conservar o que foi
narrado” com um “terceiro” na relação entre o ouvinte e o narrador.
121
“É uma relação de Idéia, mas não de pura Idéia.”
118

um interesse amoroso. Mas nenhuma dessas relações aspira a vida em comunhão ou investe
no compromisso exteriorizado da amizade verdadeira:

“True friendship have been made notoriously difficult by the modern age’s suffusion with the
values of the Calvinist North – the values of work and of inwardness and privacy. Under these
conditions, friendship is invariably marginalized. When the demands of work and those of true
friendship collide, work takes place. Friendship ‘takes time’, and time is costly. Friends
should always be ready to come together with, and listen to each other, but there is ‘no time’
in modern life.” 122(Murphy, 1998, p.181)

A psicologia da vida moderna é reflexiva, autoexaminadora, privilegia o olhar para


dentro. Os modernos se voltam para o espaço da intimidade123, onde acumulam vantagens e
poupam gastos. Trazem os amigos para casa, pois não diferenciam o terreno da amizade da
vida privada doméstica. Não são capazes de conceber as amizades como companhias para
explorar o mundo público, pois sequer compreendem que interesse há nele. Os modernos só
se sentem confortáveis em contextos institucionais - onde trabalham - ou no privado. A idéia
de público, para Allman, assumiu a conotação do oficial, clerical ou inquisitorial. Os séculos
de deturpação da noção de público fazem com que ele seja associado apenas ao que é “para
todos verem.” 124 Os imperativos da modernização, quais sejam, a informatização, a regulação
da comunicação, os shopping centers, a televisão, dominaram a vida e condenaram ao ocaso
as práticas do discurso público, da retórica, dos mercados abertos e das praças públicas. O
calor humano passou a ser amplamente presumido de ser encontrado apenas nos santuários
atópicos da vida privada. Sem os passeios e a socialização nos cafés, amizade não pode florir:
“As Arendt remarked in a 1968 letter to McCarthy, friendship is not claustrophobic intimacy,
but rather activity: ‘doing a piece of the road together’.”125 (Murphy, 1998, p.184)
A amizade requer disposição para o fora, “does not belong to the place-less or space-
less realm of interiority. It envolves and requires a certain semipublic exchange and mutuality.
[...] Moderns understand the intimacy of love but not the amity of friendship.”126 (ibid.,

122
“ A Amizade verdadeira tem sido difícil pela mistura da era moderna com os valores do norte calvinista – os
valores do trabalho, da interiorização e da privacidade. Sob essas condições a amizade é invariavelmente
marginalizada. Quando as demandas do trabalho e da amizade verdadeira colidem, o trabalho ganha terreno.
Amizade toma tempo e tempo é dinheiro. Os amigos devem sempre estar prontos a estar juntos, e escutar um ao
outro, mas não há tempo para estar juntos na vida moderna.”
123
Sobre a sociedade intimista, ver Sennett, 1995.
124
Allman (In Murphy, 1998) acredita que a vida pública se tornou um meio rentável para os meios de
comunicação; revelam os segredos picantes dos políticos e oferece aos exibicionistas espaço para confessarem
seus segredos sexuais conjugais. A promoção do escândalo não é uma coisa nova e os antigos não tinham menos
apetite para ele. O que é mesmo novo é a forma com que ele consumiu nosso senso do que é público, pela ação
de uma publicidade que é parasitária da vida privada. Esta revelação pública de escândalos seria coerente com a
visão Calvinista de mundo público.
125
“Como Arendt assinalou em carta de 1968 para MacCarthy, a amizade não é intimidade claustrofóbica, mas
atividade, trilhando um pedaço da estrada juntos.”
126
“não pertence ao reino da interioridade sem lugar e sem espaço. Envolve e requer uma certa mutualidade e
troca semipúblicas. A modernidade entende a intimidade do amor, mas não a amabilidade da amizade.”
119

pp.181-2) Para Murphy, o uso da palavra semipúblico é necessário para que não se perca o
sentido confidencial e íntimo da amizade. Mas insiste na importância da referência ao sentido
público. Enfim, propõe a amizade como um conceito que se coloca na intersecção entre
ética e política, entre erotismo e companheirismo e entre o pessoal e o coletivo. Essa
interseção impõe obrigações morais, mas também nos concede grandes prazeres. A
experiência de amizade mistura sacrifício e regozijo, necessidade e escolha, corpo e espírito.
Amizade é uma ligação deliberada de seres singulares que vão, no espaço público, buscar se
unir a outros que participem de seus ideais morais. Murphy (ibid., p.3) propõe a amizade
como o equivalente pessoal do comum, do público. Nesse sentido, a amizade é mantenedora
dos ideais de solidariedade e do valor de prometer na privacidade dos indivíduos. Oferece
suporte ao projeto de positivação da solidão, que necessita de pontos de intersecção entre
moralidade privada e políticas pública para manter sua força. A noção de solidão positiva,
como meio de reconciliação com a existência, quer estender os ideais da prática de vida
comum para a moralidade privada, se opondo às inversões dos valores operados hoje. Se a
vocação existencial é a capacidade de agir conjuntamente, utilizando as prerrogativas de seres
solitários, a amizade oferece um modelo relacional potente para garantir a solidariedade e
prefigurar a justiça nas relações políticas pela promessa de que todos serão tratados como
amigos:

“The eu-topia of politics is a projection of friendship into the wider space of public life. The
relationships – the mathematics and the justice – of politics are prefigured in friendship. And
when the dreams of politics are crushed, the ‘political ones’ retreat into ‘circles’ of friendship,
which become a refuge from the failed public eu-topia of politics.”127 (Murphy, 1998, p.170)

Os momentos de política, infelizmente, são raros e facilmente absorvidos pela rotina


burocrática do cotidiano. Murphy concorda com Arendt sobre a raridade da ação legítima.
Por isso, sugere que o caráter político sobrevive na prática da amizade, dada sua natureza
gregária que prefigura as comunidades politicamente fundadas. Concordamos com o
diagnóstico de descrença política forjada pelo Estado burocrático moderno, que se restringe a
medir obsessivamente desigualdades que todos sabem existir. Limita-se a alimentar falsas
esperanças de igualdade, reduzindo a criatividade das aspirações à ambição estéril da
equiparação econômica: “Such modern moral are a consolation for the ineffectualism of the
modern state, for its inability to do what it promisses: to make us equal.”128 (ibid., p.173) Para

127
“A eu-topia da política é uma projeção da amizade no amplo espaço da vida pública. As relações –
matemáticas ou de justiça social – da política são prefiguradas na amizade. E quando os sonhos dos políticos são
esmagados, os ‘políticos’ se reconciliam em ‘círculos’ de amizade, os quais se tornam um refúgio da falência
pública da eu-topia do político.”
128
“Tal moral moderna é um consolo para a inefetividade do estado moderno, para sua inabilidade de fazer o que
120

Murphy, nenhum Estado, sob nenhum regime, mesmo a democracia social mais bem
regulada, pode transformar uns indivíduos em tão inteligentes quanto outros, tão astutos,
sortudos e econômicos quanto outros. O autor dá razão à Aristóteles: legisladores deveriam
encorajar mais amizades e promulgar menos leis. Quando os cidadãos se preocupam mais
com regras do que com a atividade de forjar relações modeladas por ligações de amizade, a
política torna-se nada mais que uma máquina estatal. Mesmo a utopia comunista, buscando
uma igualdade baseada em valores mundanos, desembocou no regime totalitário, permitindo
que os “dois que são três” das relações amistosas renunciassem em favor do “grande Um”.
Mas perguntamos: “Do we do better under liberalism? No friendships, certainly no great
friendships, are possible under the sign of liberalism, of what we might call the state of
multiplicity without cause. Without a cause, there can be no friendship.”129 (Murphy, 1998,
p.177)
O Bem, a Causa, a seriedade do compromisso com um ideal comum são a Beleza sem
a qual não pode haver amizade. Todavia, Murphy acentua que Beleza que não é sinônimo
nem de unidade nem de singularidade - como foi entendida pelos modernos - nem dualidade,
como é para os liberais. A Beleza é triádica, a tríade paradoxal que faz a união de múltiplos, a
união de uma unidade que dividiu a si própria. É o nome geral para aquilo que une a
diversidade sem apagar as diferenças. Não é necessária nenhuma pretensão de
universalidade ou transcendência. O Bem, para nós, é o interesse no agir coletivo que está
encarnado no mundo. A Beleza, é o adjetivo para uma forma de utopia, uma causa que possa
atrair sujeitos isolados em direção à idéia de transformar suas solidões em projetos conjuntos:
“Friends have each other and their binding cause. [...] Without their political eu-topia, there
would have been no friendship. It is in friendship, the most political of all close human
relationship, that the city of citizens is prefigured.” 130 (Murphy, 1998, p.177)
Sem dúvida o modelo antigo de amizade grega está na base de toda consideração
teórica sobre amizade. Costa, citando Hadot, lembra que o “amor-philia” esteve sempre “a
serviço de algo que o transcendia e, para realizar-se, tinha como pressuposto a ‘vida em
comum’ dos praticantes em busca de uma nova forma de vida. Assim, philia e ‘comunidade
de vida’, em todas as escolas filosóficas gregas, eram termos indissociáveis.” (Costa, 1998,
p.42) Murphy reforça que a philia não é o agape cristão nem o amor moderno; pertence ao
reino da peregrinação, das longas caminhadas juntos falando de assuntos sérios, diz o autor,

promete: nos tornar iguais.”


129
“ Estamos melhor sob o liberalismo? Nenhuma amizade, certamente nenhuma grande amizade pode
sobreviver sob o signo do liberalismo, do que nós devemos chamar multiplicidade sem causa. Sem uma causa,
não pode haver amizade.”
130
“Amigos tem um ao outro e a causa que os liga. [...] Sem sua eu-topia política, não haveria amizade. É na
amizade, a relação mais política de todas as relações humanas próximas, que a polis dos cidadãos se prefigura.”
121

aludindo às amizades intelectualizadas. Allman esclarece que, na República, Sócrates aponta


para a idéia do Bem como uma orientação na qual os homens distintos compreendem e
dirigem a si mesmos. Estabelece uma inescapável tensão entre a prática filosófica, a philia
regida pela prioridade do Bem e a ordem cívica, institucional, que presume definir um modelo
da boa vida:

“Political life thus always entails an answer, if not a contest of answers, to the question of
how life ought to be lived. [...] The idea of the regime (politeia) - the notion that every polis
represents a configuration of collective power around a certain conception of how life is
better lived - thereby grounds Aristotle’s examination of politics.”131(Allman in Murphy, 1998,
p. 114)

Na sociedade Grega antiga, a procura dos requisitos necessários ao estabelecimento


de um regime justo, encontra-se no seio de uma comunidade de interlocutores cujos
envolvimentos e obrigações entre si não podem ser reduzidas por uma equação de justiça. Ou
seja, paralelamente à rigidez das relações que definem uma cidade justa, estão os círculos de
amizade, engajados principalmente em possuir a sabedoria à respeito de suas condutas
individuais. Para Allman, na Republica, a amizade aparece sempre ao fundo, como o mais
elevado modo de ligação humana. Possui ramificações vitais para a prática política,
transcendendo e dificultando os ditames da justiça que marcam as fronteiras do regime. Em
Platão, a própria vida filosófica repousa, ao menos em parte, na amizade filosófica, com sua
promessa de ser a mais elevada forma de acordo entre indivíduos e a que absorve toda a
energia e atenção de alguém. A amizade filosófica está fortemente baseada na capacidade
individual de pensar solitariamente e agir no mundo dos assuntos comuns de maneira
autônoma e responsável. A amizade filosófica, poderíamos dizer, pressupõe uma capacidade
de estar só para se realizar. Sócrates, ao final de A República, mostra que a definição da
melhor vida não pode ser uma formulação política. A idéia socrática de vida justa se relaciona
à vida filosófica exercida na solidão do pensamento, e não à crença de que cada cidade deve
definir sua própria boa vida:

131
“ A vida política portanto sempre requer uma resposta, se não um conjunto de respostas sobre como a vida
deve ser vivida [...] a idéia do regime – noção de que cada polis representa uma configuração de poder coletivo
em torno de uma certa concepção de como a vida é melhor vivida – portanto baseia o exame da política de
Aristóteles.”
122

“He gently prods his interlocutors toward an appreciation of life that he knows to be its own
reward, hence one that is not predicated on altruism on saintly self-sacrifice, but that renders
its practioners effectively desinterested in those finite and mundane goods that tempt men with
political injustice.”132 (Allman in Murphy, 1998, p.123)
O ideal socrático de amizade, estava relacionado à uma idéia de Bem transcendente e
universalizável, que garantiria a justiça política. Nietzsche, muitos séculos depois, anunciou
um mundo pós-socrático onde haveriam novas ordens e ideais para a civilização. Mas seu
personagem Zaratustra, na opinião de Allman, não escapa da questão socrática sobre a mais
válida forma de viver. Assim falou Zaratustra tem o aspecto de uma tentativa radicalmente
nova de responder a mesma pergunta de A República. Como a vida deve ser vivida continua
ser a maior preocupação humana.
Zaratustra anuncia a crise espiritual da civilização, que é da própria modernidade, no
anúncio da morte de Deus. A precedência dada tanto na bíblia quanto no idealismo grego à
busca da verdade foi insidiosamente minada pela ciência moderna que se tornou prioritária na
sociedade secularizada. A morte de Deus é um sinal da desconsideração ou evitação do reino
socrático pela ordem espiritual do ocidente civilizado. Essa “calamidade sem precedentes”,
para Nietzsche, é uma oportunidade para novos modos de vida, novos valores que organizem
e governem as relações e ligações.
Nietzsche constrói seu projeto contra a tradição inspirada por Sócrates.133 Allman
acredita que ele considerou necessário assumir várias “anti-posturas” para responder à crise
da metafísica, ou seja, se opor a todos os conjuntos de crenças que ele considerava presentes
na modernidade. Mas isso não funcionou como esperado. Os ensinamentos de Zaratustra, por
exemplo, iam contra o discurso cristão de amor ao próximo, mas anunciavam que “algo está
para acontecer”; tomavam, assim, a forma de um ideal rival da própria teologia que pensavam
desbancar. O ideal do “Superhomem” acaba parecendo outra forma de consolo, de esperança
de redenção do presente e do passado no futuro, parecendo sofrer de um “platonismo
vestigial” que Nietzsche não reconhece. Não vamos detalhar aqui esse ponto, optando por
observar às conclusões do autor sobre a imagem ambígua de amizade deixada por Nietzsche.
Allman considera que, na verdade, Zaratustra se afasta das origens socráticas da
sociedade moderna para estabelecer uma relação agonista com a tradição filosófica

132
“Ele gentilmente conduz seus interlocutores a uma apreciação da vida que ele sabe ser sua própria
gratificação, sendo alguém que não é versado no altruísmo e no auto-sacrifício santo, mas que deixa seus
praticantes efetivamente desinteressados naqueles bens finitos e mundanos que tentam o homem com injustiça
política.”
133
Allman (In Murphy, 1998) descreve como Nietzsche reutilizou alegorias centrais do texto de Platão,
modificando seus significados. Em contraste com as associações platônicas entre comunidade e política, a
imagem da caverna, por exemplo, para Nietzsche, é um símbolo de recolhimento espiritual e da solidão imposta
pelo trabalho filosófico de pensar nas questões que confrontam o mundo moderno.
123

inaugurada por Sócrates. Trazer nova luz ao domínio da existência humana, num mundo
secularizado sob a égide da ciência, é reconsiderar o empreendimento filosófico. E isto
envolve repensar o mais elevado modo humano de associação, a amizade, na qual Sócrates
baseou a vida filosófica:

“Zaratustra speaks of the friend as a ‘third’ between ‘I and me,’ hence as one who serves to
marshal and unify the divisions in competition within the self, which Nietzsche consistently
represent as a multiplicity in perpetual internecine conflict. The friends’s ability to act like a
‘cork’ that keeps the exchange between I and me ‘from sinking into the depths’ derives not
from a solicitous regard for the other’s psychic well-being, however, but from the contentious
bases of their relationship.” 134 (Allman In Murphy, 1988, pp.125-6)

Allman chama atenção para o fato de que uma dimensão nietzscheana mais ampla de
amizade emerge quando Assim falou Zaratustra é considerado no seu todo dramático e não
apenas a partir do discurso Do amigo (On the friend). Essa dimensão ampla, guarda estreitas
relações com a solidão. No início do livro, o “Superhomem” se relaciona com o mundo na
base da afirmação pronta, de sã consciência, da história recorrente e irremediável do mundo.
Guarda um registro de consciência niilista. No final, a vida comunica uma nova sabedoria,
ensinando-o a condição fundamental da existência, a Vontade de Potência. Zaratustra retira-se
do mundo dos homens para uma existência solitária em que é autosuficiente e contente com
sua ligação singular com a eternidade. Não deseja ou necessita de humanidade, mas também
não desdenha dela. O autor pensa que, uma forma de amizade completamente afirmativa da
vida, para Nietzsche, permanece como algo não completamente imaginável. Parece criar um
conflito que liquida qualquer chance de reconciliação com pluralidade e diferença,
individualidade e parcialidade. Em sua avaliação, a amizade parece radicalmente contingente
nas circunstâncias da história e aí parece sublinhar a inquebrável solidão que cerca o
individualismo nietzscheano: “only with a kindred self, wich means in the final analysis
only with what derives from oneself, is communion really thinkable. In his self-creation, the
Nietzschean individual necessarily stands apart, grounded solely in his own originality.”135
(Allman In Murphy, 1998, p.130).
Esse retrato do indivíduo solitário se aproxima da noção de responsabilidade moral do
pensamento que valorizamos inicialmente na redescrição da solidão. Entretanto, a

134
“Zaratustra fala da amizade como um terceiro entre o eu e o mim, também como aquilo unifica as
competições dentro do self, o qual Nietzsche representa como uma multiplicidade em perpétuo conflito
intercambiante. A habilidade dos amigos em agir como uma cortiça que sustenta a troca entre eu e mim evitando
que ela afunde nas profundezas deriva não de uma preocupação com o bem-estar psíquico do outro, mas com a
conscienciosa base de suas relações.”
135
“Apenas com um eu, o que significa em última análise, apenas com o que derive de si próprio, uma
comunhão é realmente pensável. Em sua auto-criação, o indivíduo nietzscheano necessariamente permanece
fora, baseado apenas em sua própria originalidade.”
124

interpretação que ressalta apenas a autosuficiência da existência solitária não se aproxima


suficientemente da solidão redescrita nos termos do interesse coletivo. Deriva daí uma tensão:
se Nietzsche valoriza a solidão no caminho da autosuperação e recoloca o indivíduo na
posição de agente de sua própria história, Platão, apesar de referido ao Idealismo metafísico,
propõe uma união fundada na permanência daquilo que transcende os limites da
individualidade. Para Platão, no topo da experiência filosófica, na solidão do pensamento,
estaria a mais completa companhia disponível aos seres humanos finitos, duas mentes unidas
na contemplação de algo fora da finitude e da temporalidade.
Parte das idéias dos dois autores são criticáveis à luz dos referenciais teóricos com os
quais trabalhamos, embora ambos tenham deixado heranças fundamentais a esses mesmos
referenciais. A noção de “algo” que une duas mentes “fora da finitude” pode ser redescrita em
termos não metafísicos e representar, por exemplo, a solidariedade. As noções de boa vida e
bem comum necessitam ser redefinidas nos termos de uma política possível para o mundo do
fim do milênio, marcado por três enfermidades: “a crescente incomunicabilidade, uma
revolução tecnológica que não temos tempo de assimilar nem sabemos aonde nos leva, e uma
concepção de vida que passa unicamente pelo triunfo pessoal.”136 Que teoria da amizade
poderia conservar o que há de melhor em Nietzsche e Platão, para se opor à “amizade casual”
prevalente na modernidade?
Dentre os autores que combinaram a filosofia clássica e as teorias modernas na
tematização da amizade contemporânea, Foucault é, sem dúvida, um exemplo fundamental.
Seu projeto é reabilitar a amizade através da idéia de “estética da existência”. A retomada da
filosofia como ascese é parte desse “programa ético-político” que pensa a autotransformação
como produto do exercício de si, no pensamento. Mas isso não implica copiar o modelo
greco-romano. A amizade, na Antigüidade, teria um aspecto de normatização social e, como
tal, deve ser vista com restrições: “Foucault não procura um princípio esquecido que a
filosofia deve redescobrir; sublinha, porém, a importância do contato com a filosofia antiga e
acentua o valor exemplar de semelhantes experiências éticas.”(Ortega, 1998a, p.77) As
práticas de si, que geram autonomia, estão ligadas a um objetivo político de fomentar novas
subjetividades.
O conceito de amizade, pensado como uma “forma de existência alcançável por meio
de um certo trabalho sobre si mesmo”, oferece espaço para a consideração da solidão. As
idéias de ascese e de transformação podem ser rebatidas, novamente, sobre os princípios da
responsabilidade moral, exercício do pensamento e disposição para hospitalidade. Mais ainda,
Foucault, aproveitando os aspectos positivos da crítica nietzscheana e a força retórica da

136
Entrevista com José Saramago. Jornal do Brasil, 09/10/98, caderno B, p.2.
125

imagem platônica de philia, alcança uma formulação importante referida ao conceito de


amizade como intermediário entre público e privado. Ortega (1998a) esclarece que a noção de
“programa vazio” é central na ética “negativa” de Foucault. Sua ética da amizade, cujo
programa é “vazio”, é vista como uma “cavidade”, que pode ser preenchida segundo cada
indivíduo. Para não coibir a experimentação, o programa vazio prepara o caminho para
novas formas de vida, sem prescrever modos corretos de existência. Coloca-se, assim, como
forma retórica a meio caminho entre a moralidade e a política. Não nos deteremos na idéia
de “programa vazio”, que é complexa. As sutilezas da ética liberal foucaultiana fogem ao
escopo desse estudo.
O ponto fundamental, aqui, é utilizar a noção de Foucault como coroamento da idéia
de amizade enquanto ideal flexível que pode atrelar a escolha ética, feita na solidão, à
solidariedade e ao compromisso com a promessa. Assim, acentuamos a profunda diferença
entre os exercícios espirituais que visam um Bem - para além do sujeito mas sem estar fora do
mundo - e os “mecanismos defensivos” necessários à superação das novas condições de
existência, numa sociedade perplexa diante da “tripla individualização” que forjou. (Beck
apud Ortega, ibid.) Ou seja, uma coisa é a amizade como alternativa relacional; outra é
amizade como compensação. A amizade foucaultiana está relacionada à formas de existência
não institucionalizáveis e não à projetos de adesão à estilos codificados e modelos
identitários:

“O projeto foucaultiano de uma ética da amizade no contexto de uma possível atualização da


estética da existência permite transcender o marco da autoelaboração individual para se
colocar numa dimensão coletiva. A amizade supera a tensão existente entre o indivíduo e a
sociedade mediante a criação de um espaço intersticial (uma subjetivação coletiva)
susceptível de considerar tanto necessidades individuais quanto objetivos coletivos e de
sublinhar sua interação. Processos de subjetivação dão conta da produção de formas de vida
e de sociedade. Nem todas as subjetivações tem um tipo de sujeito como objetivo; existem
subjetivações sem sujeito (de tipo acontecimento) e subjetivações coletivas, às quais a
amizade pertence.” (Ortega, 1998a, p.87-8)

A amizade foucaultiana se situa no contexto de novas formas de existência produtoras


de intensidade e prazer que podem manter os direitos individuais sem limitar seus
relacionamentos. Permite conceber comunidades baseadas em relações livres sem desprezar
as conquistas do estatuto de individualidade. O pensamento de Foucault não culmina no
individualismo, como muitos afirmam; busca introduzir movimento e fantasia nas
deterioradas e rígidas relações sociais. Embora sua noção de amizade não partilhe a
propriedade de estar-voltado-para-o-outro, que valorizamos no dinâmica do sujeito moral,
propõe uma ética relacional “intensa e móbil,” plenamente realizável no contexto da solidão
positiva, sem destino dado a priori, cuja “forma vazia” é estar referida à dimensão relacional.
126

A teoria de Foucault é de fundamental interesse no terreno das éticas da amizade, mas


não iremos retomar aqui a análise de Ortega sobre as especificidades dessa construção. Como
foi dito, a amizade é um modelo relacional no qual acreditamos ver premiados os princípios
da solidariedade, da promessa e do perdão. Mas, especialmente em Foucault, esse “programa”
preserva elementos de períodos históricos diferentes e concepções filosóficas distintas. A sua
abertura é mais uma característica que o torna valioso e consonante com nosso objetivo:
redescrever a solidão sem perder ou hiperdimensionar as crenças culturais atuais que nos dão
orientação, por menor que seja. No mundo contemporâneo, a possibilidade de redescrição é,
talvez, função da tensão criativa entre isolamento e pertencimento, individual e coletivo.
Numa era de sofrimento e dor moral, a construção política coletiva de um mundo diferente,
que reconcilia o homem com sua existência, pode ser sempre enriquecida pela flexibilidade
alternante de nossos interesses, intenções e projetos. A amizade, bem como a solidão
positiva, podem ocupar posições intermediárias entre a solidão individualista e o
comunitarismo dogmático:

“ In na age so encaptured with Nietzsche, one feels tempted (by Nietzsche’s own Dionysian
perhaps) to take sides with Plato in an effort to preserve a tension that might continue to
energize our civilizational tradition. In vivid contrast to the image of solitude – and loneliness
– by which Nietzsche frequently represent his own life, stands Plato’s portrait of Socrates
ending his days in a prision cell crowded with friends and companions, united with them in the
quest for a wisdom beyond mortality.” 137(Allman, 1998, p.131)

137
“Numa época tão identificada com Nietzsche, nos sentimos tentados (talvez pelo próprio Dionísio de
Nietzsche) a tomar o lado de Platão num esforço de manter uma tensão que deve continuar a energizar nossa
tradição civilizada. Em vívido contraste com a imagem de solidão – e de estar só – pela qual Nietzsche
freqüentemente representa sua própria vida, está o retrato platônico de Sócrates terminando sua vida numa cela
de prisão cheia de amigos e companheiros, unidos a ele na questão da sabedoria para além da mortalidade.”
127

___________ CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Uma solidão produtiva, a solidão na qual


aquilo que jamais poderia ser visto aparece,
está vinculada à qualidade da atenção. [...]
não seria o caso do paciente vir à análise a
fim de reconstituir sua solidão por meio do
outro, a solidão que só ele pode conhecer?”

Adam Phillips
128

Esse estudo diz respeito ao tema da solidão, tanto na clínica como na vida cotidiana.
Levantamos a hipótese de que o indivíduo contemporâneo vem construindo sua identidade
pessoal como a de um eu insuficiente. O eu insuficiente é a condição identitária do sujeito
que experimenta a solidão como perda das fundamentais capacidades humanas de pensar, agir
e julgar, para transformar a si mesmo ou transformar o mundo. Na verdade, tal sujeito é
membro de uma sociedade desinteressada ou despreparada para essas faculdades, que carece
da compreensão de seus próprios descaminhos. O eu banalizado pela insuficiência é, ao
mesmo tempo, produtor e produto dos juízos de valor e das práticas de vida
descomprometidas com a ética humana solidária. Postulamos a noção de insuficiência como
um dos dilemas típicos de nosso tempo, uma espécie de matriz interpretativa das sensações
dos solitários contemporâneos: fracasso, no passado; falta de perspectivas, no presente;
desesperança, no futuro.

A habilidade de retrair-se para pensar, julgar e cuidar de seus assuntos privados e


depois voltar ao espaço público para dialogar e persuadir, foi, historicamente, um meio de
proteger a autonomia das esferas pública e privada. O fio dessa tradição se perdeu. Não só
porque somos reféns do tempo, mas também porque cremos na primazia do privado sobre o
público, considerando esse último como superficial e coercitivo. Na trajetória milenar de
Roma à Sociedade Ocidental, no entanto, o que vemos é a multiplicação de dispositivos
disciplinares produtores do privado, não menos coercitivos. Os ocidentais aprenderam a tomar
a si próprios como objeto de conhecimento e de ação normatizadora. O resultado, entre
outros, foi a criação de uma privacidade hiperinflacionada e incapaz de dar suporte a
identidades pessoais mais ou menos estáveis e seguras. A obsessão de si não nos tornou mais
satisfeitos ou plenos com o que somos. Ao contrário, encerrou-nos no terreno sombrio da
solidão, que revela o estranho paradoxo do sujeito atual: quanto mais se preocupa consigo,
menos se suporta; quanto mais se sente dependente do outro, mais intolerante ou indiferente
se torna a esse outro.

Denominamos esse quadro psicológico de solidão negativa. A solidão negativa é a


marca do divórcio entre o indivíduo e sua própria existência. A impotência diante dos
próprios desejos - elevados culturalmente ao trono das obrigações - e a incapacidade de se
transformar conduziu os indivíduos à perpetuação da armadilha moderna: acreditar que a
privacidade é um direito natural, sem que se saiba bem o que fazer dela. Quando surgem as
frustrações inevitáveis no preenchimento de tantas exigências de satisfação, emerge o
sentimento de solidão como expressão de insuficiência. Assim, na crua realidade da vida,
privacidade, é, no mais das vezes, o inferno dos solitários. Perdemos os significados que nos
129

protegiam de viver a frustração como descrença, e, no vazio das crenças, surgiu o vazio da
solidão.

Para o eu insuficiente, a redescrição dos estilos de vida hegemônicos é quase


intolerável. É solicitar demais de quem se sente com tão pouco. Afirmar o poder da vontade
pode soar como uma cobrança ofensiva, quando não uma tarefa quixotesca. A retomada da
confiança no valor da própria existência ou é caricaturada pela noção de auto-ajuda ou
desprezada pelas éticas que desconsideram a solidariedade e o compromisso. Carecemos de
crenças que funcionem a meia distância entre a tradição conservadora e a indeterminação
futura. Nesse ponto, nos voltamos para certos autores que parecem fornecer os meios
necessários à formulação de um projeto dessa ordem. Em Zygmunt Bauman, encontramos a
idéia chave de sujeito moral como “ser-para-o-Outro.” Essa idéia funciona como uma
espécie de princípio geral, capaz de fazer a ponte entre decisões individuais e compromissos
coletivos, sem postular, necessariamente, a existência do eu utilitarista ou de Bem universal.

Em seguida, procuramos aproximar essa ontologia do sujeito das condições históricas


ou empíricas de sua possível concretização. Richard Rorty e Hannah Arendt aparecem, aqui,
como os autores de escolha. Rorty, com a noção de solidariedade, aponta para soluções de
compromisso entre inovações da vida privada e da vida pública que respeitem os limites
dessas duas esferas de expressão do sujeito. Hannah Arendt, com a idéia de promessa, fala
das condições culturais imprescindíveis ao agir. Ou seja, para que possam agir politicamente,
dando início a novas práticas de subjetivação articuladas ao amor ao mundo, é preciso dispor
de um ambiente acolhedor das novas iniciativas. A promessa e o perdão são as balizas desse
ambiente. A liberdade e seu correlato, a vontade de agir, só se manifestam sem restrições,
quando contamos com a possibilidade da promessa face à imprevisibilidade do que somos e o
perdão face à irreversibilidade do que fazemos e dizemos.

Finalmente, retomamos as noções de “experiência” e “narrativa”, de Walter


Benjamim e Hannah Arendt, para mostrar como a tradição pode e deve ser utilizada para
finalidades criativas, e a noção de amizade, segundo Murphy, Foucault e Ortega, para mostrar
como a singularidade do sujeito e suas decisões éticas não significam, obrigatoriamente,
opção pelo modo individualista de vida burguês.

Dispondo desse quadro de elementos, acreditamos poder ressaltar, na solidão positiva,


o caráter de elemento fundamental no exercício da vontade, da liberdade e da ação inovadora.
O investimento em novas formas de pensamento político que dêem conta da experiência viva
de nossa era, talvez possam ser para adquirir experiência de como pensar e para que agir. É na
ação dirigida ao espaço público que estaria o conforto possível contra a profecia russelliana de
130

que a “morada da alma”, na vida moderna, “só pode ser construída com firmeza na sólida
fundação do mais completo desespero.”
O mundo contemporâneo, inspirado em certas intuições da pósmodernidade e em
certas lembranças da história, pode se modificar, sem necessariamente ter que mudar todas as
suas feições. As vidas individuais se tornaram experiências de trajetórias atormentadas em
direção a lugar nenhum. Somos cada vez mais ricos em informação e cada vez mais pobres de
narrativas surpreendentes. A solidão é fruto, entre outras coisas, da extrema falta de iniciativa
em acreditar e investir na transformação de contingência em destino. Muitos desconhecem
o significado de “ser ator” na construção de algo humanamente relevante. A insatisfação
decorrente da falta de projetos que ultrapassem os limites do interesse do eu é muito maior do
que aparenta. O abismo desesperançado das vidas que não se refletem na vida de outros tem
um poder de destruir qualquer alento trazido pela diversão ou pelo consumo de coisas e
pessoas.
Como profissionais da área de cuidado psicológico, temos o compromisso de
contribuir para a resignificação da solidão. Do mesmo modo, somos intimados a refletir sobre
as características dos procedimentos terapêuticos que favorecem a capacidade das pessoas
efetuarem essa resignificação. A psicanálise e a psiquiatria, repetimos, existem para estar a
serviço das demandas nas quais estão inseridas. Cabe a elas a elucidação da dimensão mais
especificamente psicológica da solidão. A capacidade do indivíduo ficar só é um dos mais
importantes sinais de amadurecimento emocional. Seus aspectos positivos foram pouco
explorados na literatura psiquiátrico-psicanalítica, embora Winnicott, em Da Pediatria à
Psicanálise, tenha realizado uma abordagem que serve de referência importante para qualquer
tentativa de retomar o tema, o que esperamos poder realizar no futuro. O ponto principal é o
fato da habilidade de estar realmente só depender da experiência de ficar só na presença do
outro, sem ser invadido por ele. A capacidade de estar só é alcançada sob o testemunho
benevolente de um Outro, que permite a construção de uma realidade psíquica favorável ao
respeito pelo mundo. A ausência do Outro ou sua presença opressiva, produzem a
incapacidade de estabilizar um senso adequado de suficiência psíquica para lidar com o
desafio constante de viver.
Ter a capacidade de estar sozinho, refletir e deliberar sozinho, é inevitável e necessário
para nos mantermos como seres singulares, como sujeitos morais, e, em última instância
sujeitos políticos. Mantendo nossas singularidades, temos a chance de contribuir
diferencialmente para a construção de uma área de convivência comum com o outro,
dividindo a condição humana de habitar um mundo imprevisível, irreversível e incompleto.
Vivemos em um tempo semelhante a qualquer outro, determinado pelo que passou e pelo que
131

está por vir, por coisas que não são mais e por outras que não são ainda. O presente está
aberto ao acaso e à contingência. Buscamos, com a solidão positiva, estimular a atenção e a
sensibilidade para identificar a silhueta de uma boa metáfora, uma nova forma de estar junto,
quando ela surgir, aparentemente, como mais um rosto na multidão solitária.
132

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