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Sofrimento e perda de sentido: considerações

psicossociais e clínicas*

RESUMO ABSTRACT

Jacqueline Barus-Michel apresenta nes- In this article, Jacqueline Barus-Michel


te artigo considerações a respeito do sofri- examines suffering, which she considers as
mento, que é por ela considerado como sendo being both moral and physical. She discuss
tanto físico quanto moral. Discute distintas the different relationship between this
relações entre esse conceito e outros. Inicia concept and others. She begins by
abordando as relações entre sofrimento, trau- approaching the relationships among
ma e violência, depois fala de sofrimento e suffering, trauma and violence and later she
gozo. Enfatiza o sofrimento existencial, da discusses suffering and pleasure. The
questão do ser no mundo, estabelecendo a author emphasizes the existential suffering
noção de que as religiões e as ideologias são of the question of ‘being’ in the world,
como esponjas de sofrimento face ao questio- establishing the notion that religions and
namento inquieto a respeito do sentido. São ideologies act as sponges of suffering: when
também discutidas as relações entre esse facing the questioning regarding sense,
tema e a cultura, sendo que o sofrimento é ideologies and religions are able to give
sentido como infelicidade, mal-estar, desor- people an answer. It is also discussed the
dem, injustiça, dependente do meio social e relationship between this issue and culture.
cultural, do sistema de representações e da Suffering is experienced as unhappiness,
simbolização, de sua solidez, força e rique- indisposition, disorder and injustice. It depends
za. A autora aborda dimensão psicossocial, on the social and cultural environment, as
mostrando que aquele que sofre se encontra well as on its strength, richness and solidity.
na confluência da subjetividade e da reali- The author approaches the psychosocial
dade exterior, do individual e do social, e a dimension, pointing out that the one who
injustiça concentra o sofrimento social. Daí suffers in the confluence of the exterior reality
temos as comparações entre o sofrimento and the subjectivity, of the individual and the
sociopolítico e o individual, sendo que o so- social; injustice concentrates the social
frimento pode passar de individual a coleti- suffering. All this enables us to compare the
vo. Finalmente a autora aborda as alternativas social-political, individual and collective
ao sofrimento, afirmando que é necessário suffering. Finally, the author discusses
encarar o sofrimento como uma expressão alternatives to suffering, concluding that it is
do mal-estar do sujeito. necessary to face it as an expression of the
individual’s indisposition.

*
Tradução de artigo publicado no Bulletin de Psychologie, volume 54, número 2, de março/abril
de 2001.

Palavras-chave: sofrimento, mal-estar, subjetividade, dimensão individual, dimensão social.

Key-words: suffering, indisposition, subjectivity, individual dimension, social dimension.

Endereço para correspondência: Av. Prof. Melo Moraes, 1721 – bloco F – Cidade Universitária
CEP 05508-900 – São Paulo, SP – tardivo@usp.br – j.barus@wanadoo.fr

54 – PSIC - Revista de Psicologia da Vetor Editora, Vol. 4, nº.1, 2003, pp. 54-71
Jacqueline Barus-Michel
Professora emérita da universidade Paris 7
Tradução: Christiane Camps
Mestranda em Psicologia Clínica, IPUSP

Etimologia e semântica tivos emocionais, relacionados a fluidos


Encontramos nas origens: pherein, no internos. Depois, já no século XVIII,
grego, e no latim, ferre, carregar, suffere, pensou-se em “faculdades mentais” que
carregar por debaixo, que também signi- parecem relacionar-se mais ao pensar do
fica oferecer, suportar, permitir, tolerar. que ao experimentar. Nos dias de hoje,
No século XV, sofrimento, em francês, e nas ciências humanas, privilegiamos o
queria dizer dor e carregava a idéia de “psíquico” que remete à subjetividade
resignação e tolerância possível ou não. em suas dimensões intelectual e afetiva
Desde o século XVI, sofrer remete a expe- – psíquico: conjunto de fenômenos men-
rimentar uma dor. Contudo, nos dicioná- tais formando a unidade subjetiva (inte-
rios, a palavra dor é, ela mesma, definida rioridade do sujeito), intelectual e afetiva,
como sofrimento ou sensação penosa, a ideação e os aspectos qualitativos (mo-
uma definição remetendo à outra, como ção, emoções e sentimentos). Deixemos
se as palavras estivessem sempre tentan- de lado qualquer referência à “alma” em
do captar o real. função de seus antecedentes religiosos
As qualidades atribuídas ao sofrimen- que a concebem como um elemento se-
to são diversas e esclarecedoras: ele pode parado do corpo, imortal, postulado não
ser, como a dor, agudo, vivo, dilaceran- passível de verificação, levando as ciên-
te, fulgurante, lancinante, surdo, atroz, cias humanas a abandoná-lo. Do mesmo
intolerável, extremo... Os sinônimos modo, “espírito” ora remete ao pensa-
apresentam toda a infelicidade do mun- mento apenas consciente, à sua agilidade,
do: aflições, pesar, dilaceramento, luto, ora a um sopro divino que atravessaria o
tormento, desgosto, tristeza, angústia, sujeito (espiritualidade), retornando ao
infelicidade, dilaceração, abandono, mal- postulado acima. Psíquico tem o mérito
estar, miséria, feridas... Nós retornare- de definir um objeto de observação e de
mos sobre o que revelam os verbos que estudo sem emitir qualquer julgamento
manifestam sofrimento tais como: ber- sobre sua natureza original, o que permi-
rar, gemer, gritar, queixar-se, lamentar- tiu introduzir a psicologia nas ciências
se, expor seu sofrimento, ser esmagado, humanas.
aniquilado pelo sofrimento...
O sofrimento é, usualmente, tanto fí- Esboço de uma definição dinâmica
sico quanto moral. No entanto, nós aqui O sofrimento (moral): sensação pe-
deixaremos a palavra dor para o que re- nosa, emoção desagradável, sentimento
mete à dimensão física, entendendo es- de infelicidade num grau mais ou menos
sencialmente por sofrimento aquilo que intenso, com uma certa duração, ligado
diz respeito ao “moral”. Torna-se ainda a uma representação difícil ou impossí-
necessário explicar o que entendemos vel de suportar. Mesmo sendo obscuro,
por moral, categoria que logo cedo esteve indefinido, ou até ignorado, supõe-se
atrelada ao termo sofrimento. Pensou-se sempre que o sofrimento tenha uma cau-
primeiro em “humor”, que corresponde- sa, esteja ligado a uma experiência, a um
ria razoavelmente bem a estados subje- acontecimento que feriu, abalando o

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equilíbrio psíquico, afetando-o negativa- “dispersões fantasmáticas” (acessos de-
mente. Mas é mesmo a representação do lirantes).
acontecimento que é o fator de sofrimen- O sofrimento inibe as capacidades e
to o acontecimento apontado pode não destitui a linguagem: “eu não posso mais
ser forçosamente a causa desse sofrimen- pensar”; ele paralisa a atividade simbó-
to. Pode haver um outro fator do qual lica: o grito e a queixa substituem a pala-
nem se falou (acontecimento: a morte de vra e a troca. A queixa torna-se monótona
um pai; representação: “a perda trágica e repetitiva, ela acompanha de modo li-
do meu pai”). near o mal-estar, testemunhando do que
O sofrimento afeta o sujeito (a subje- o sujeito está isolado, exilado no tempo
tividade) em sua unidade e integridade, e no espaço, “pregado”, destinado a um
sua coesão e coerência. Corresponde ao aqui impossível de ser transposto, preso
que a Psicanálise atribui ao ego, instân- no presente indefinido do sofrimento:
cia reguladora, preservando, nas ambi- “Isto não vai acabar jamais?”
valências e contradições (a divisão do
sujeito) e sob a pressão da realidade e Relatividade do sofrimento
das outras instâncias (id e superego), uma O sofrimento é qualitativo, subjetivo,
unidade de identidade e uma estabilida- relacionado à incapacidade de ser senhor
de emocional. “O sofrimento surge as- de si (força do eu), portanto variável de
sim que as nossas capacidades de manter acordo com os indivíduos, as circunstân-
a continuidade e a integridade de nosso cias, as culturas. Quanto mais sólida a
eu tornam-se deficitárias [...]” (Kaës, capacidade imaginativa e simbólica (tra-
1987). mas e elos ideológicos muito interiori-
O mal-estar, a doença, o patológico, zados) mais forte será a tolerância: “Eu
literalmente o que é sofrido, é uma ruptu- não sinto mais a dor”, “Aprendi a não
ra ou desestabilização dessa unidade e sofrer mais”, “Meu sofrimento não é
desse equilíbrio. Essa ruptura é experi- nada ao lado daquele dos outros, eu não
mentada como difícil de suportar, causan- tenho nada a dizer”, “Eu tenho o suporte
do sensações desagradáveis, equivalentes, de Deus, ele sempre me carregou duran-
no plano psíquico, à dor física, podendo te as provações”, “Eu cuido dos outros,
a dor psíquica e a dor física converte- eu não tenho tempo para pensar em
rem-se uma na outra ou se sobreporem mim”, “ Eu desvio meu espírito do so-
uma à outra. frimento...” Dos testemunhos existentes,
Existe sofrimento quando a capacidade parece que aqueles que melhor resisti-
de controle e de elaboração das sensações ram, do ponto de vista moral, nos cam-
e das representações fica ultrapassada, pos de concentração, foram os que
quando as capacidades intelectuais se es- estavam imbuídos de um forte ideal, co-
gotam, a repercussão emocional atravan- locado fora deles mesmos e motivando
ca o psiquismo, abafando a atividade uma ação de empenho. Primo Lévy
intelectual, a capacidade imaginativa (1958) escrevera: “Talvez também tenha
(aquela de formar novas representações). eu encontrado um apoio em meu inte-
Se a repercussão emocional é excessiva resse jamais desmentido pelo espírito hu-
as pulsões podem, por sua vez, sufocar o mano [...] a vontade que tenazmente
sujeito e desencadear violência: somati- conservei, mesmo nas horas mais som-
zação (degradação física localizada ou brias, de sempre ver, em meus colegas e
generalizada – dessa vez, efeito e não cau- em mim mesmo, homens e não coisas,
sa), exteriorizações (agitações, atuações), evitando assim essa humilhação, essa
revolta contra si mesmo (suicídios, de- desmoralização total que para muitos le-
pressão, melancolia), interiorização em vava ao naufrágio espiritual.”

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A preservação de uma concentração primitiva, assim que nossas identifica-
intelectual, de vínculos afetivos, de uma ções fundamentais ficam ameaçadas,
atenção voltada aos outros, pode atenuar, quando a confiança desaparece [...]”, o
apagar, anular o sofrimento. Mas, esse sofrimento emerge (Kaës, 1987).
domínio só é possível quando o ego já é O comportamento motor e o acesso à
forte, a relação objetal está garantida, o linguagem são determinados pela luta
narcisismo de base é suficiente para que contra as insuficiências e os desprazeres
o sujeito não se sinta nem roubado, nem que surgem. O sofrimento instala-se
atacado pelo que, novamente, evoca per- quando esses últimos são fortes demais
da, frustração, ausência de poder, culpa. em intensidade ou em duração e quando
O chefe descrito por Freud em Psicolo- o combate para dominá-los mostra-se em
gia das massas e análise do eu (1921), é vão. Esses são os primeiros lutos. Mas o
um ser insensível: “ele é dotado de uma jogo, a linguagem, a confiança e a se-
natureza de mestre, seu narcisismo é abso- gurança promovidos pelo ambiente ao
luto, ele é confiante e independente”, redor (desempenhando função de conti-
como o pai da horda primitiva cujo “ego nência) permitem um equilíbrio, uma
não era menos limitado em função dos construção de identidade, uma estabili-
vínculos libidinais [...] não se perdia, dade narcísica.
além da conta, face aos objetos”. Assim Portanto, uma outra dimensão e fon-
sendo, existem dois modos de resistir ao te de sofrimento logo aparece: a culpa.
sofrimento: ter um ego impermeável ou, As figuras amorosas e de autoridade dis-
ao contrário, um ideal de ego atrelado a tinguem-se e estruturaram-se como figu-
valores fortes, sob o auspício da subli- ras investidas. A criança sabe que ela
mação; talvez os dois não sejam tão con- pode perder o amor e atrair um castigo,
traditórios. que sua conduta e também sua experiên-
cia subjetiva, suas pulsões, desejos, in-
Sofrimento das origens tenções podem causar-lhe essa perda do
O sofrimento está certamente ligado amor e o castigo. A criança sabe que sua
aos acontecimentos e às situações que o exclusão ou promoção serão de sua
desencadeiam, mas, se ele é subjetivo e responsabilidade. Ela sabe também da
relativo, é porque ressuscita fragilidades destrutividade que carrega e se respon-
arcaicas. sabiliza efeitos fantasmáticos ou reais.
O sofrimento está aí, desde a origem Essa culpa sobrepuja os contragolpes de
da vida, e diante dele o humano encontra- seu próprio desejo e ancora um sofrimen-
se desarmado. Todo esforço de desenvol- to difuso sempre pronto a ressurgir ou
vimento será feito no sentido de transpor sempre presente.
e abafar essa vulnerabilidade primeira.
O princípio do prazer tem por rever- Sofrimento consciente, sofrimento
so tentar escapar ao sofrimento que, no inconsciente
início, é confuso, físico e psíquico, en- O sofrimento é ao mesmo tempo
dógeno e exógeno, experiência subjeti- consciente e inconsciente, a representa-
va e corporal sem distinção possível, ção dolorida ocupa, em geral, o campo
sofrimento decorrente da não-satisfação da consciência, mas um sofrimento
das necessidades, da perda do objeto, a desconhecido, ligado a incapacidades psí-
impotência de mantê-lo sob o controle quicas ou a maus tratos e a lapsos (bran-
inerente ao encontro da realidade e da cos do imaginário) na história subjetiva,
alteridade como obstáculos do desejo e não é necessariamente expresso como tal
do prazer. De acordo com Kaës “ [...] Tão pelo sujeito. Ele o ocupa, ele o captura
logo retomamos contato com a angústia desde o seu interior, diminui sua super-

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fície de expressão, sua mobilidade, en- violência extrema provocando um flu-
cobre seu humor, ele ata profundamente xo excessivo de excitações, não domi-
os fantasmas destruidores e angustian- náveis.
tes que se revelam por meio dos sonhos, O trauma suscita defesas patológicas,
dos atos falhos, das inibições, dos desa- desordenadas, não defesas “normais” do
fios à repetição, às vezes por acessos de- ego, organizadas e adaptadas: o ego fica
pressivos ou ainda de condutas de adição. desordenado pelo sofrimento.
Dito de outra forma, o sofrimento O fluxo de excitações intoleráveis
pode não ser “consciência sofredora”, demanda a ser liquidado. Diversas vias
mas permanecer difuso, como um esta- são possíveis: a expulsão da excitação
do não nomeado, não nomeável, uma em sua corporeidade faz literalmente o
suspensão do ser no mundo, nos outros trauma ir embora roubando o externo, no
ou em si mesmo. Sob o efeito de um cho- instante mesmo, de um modo atemporal:
que muito forte, ele mesmo e sua ocor- “O ato de violência externaliza, então, a
rência permanecem fora do campo da angústia de um ego que corre o risco de
consciência, selados. indiferenciação.” (Avron, 1985). O invó-
As realidades, os acontecimentos e as lucro da unidade egóica, estando fratu-
situações, que reacendem essas dores rado, pode causar uma explosão ou
antigas, são, de fato, da mesma ordem,
fechamento. O fechamento explica a re-
mas atuais, eles as reforçam e reavivam,
petição, reprodução. Há incorporação da
fazendo estourar em representações do-
agressão sem resolução, uma verdadeira
loridas conscientes, o que permanecia em
identificação corporal, não diferenciação
estado latente. Frustrações, vergonhas,
entre o agressor e o agredido levando à
lutos (em outras palavras, falta, culpa,
reprodução em situações comparáveis,
perda), feridas que cortam ou rasgam os
mas invertidas: o agredido é agressor, o
vínculos e a identidade, contínuos ou bru-
violado, o violador. Pode também haver
tais, comprometendo “o sentido da vida”,
indo inscrever-se como sofrimento (“A implosão, destruição interna, loucura,
vida para mim perdeu seu sentido”), de- suicídio. A violência não tem outra saí-
volvendo o sujeito ao estado de coisa, da senão retornar. A violência que rom-
“pobre coisa”, gemente, boba; isso quer peu a integridade física e psíquica deixa
dizer que não fala mais, não mexe mais, marcas, imprime de modo traumático o
não troca mais, não projeta mais: na sua corpo e o psiquismo que só pode, então,
ausência de desejo, o avesso do desejo... reproduzir em vez de transpor, de dar
“Que isto não seja mais!”. uma resposta.
O violento sofre, sofreu e faz sofrer.
Sofrimento, trauma, violência Os violados tornam-se freqüentemen-
O sofrimento tem algo a ver com o te violadores, os maltratados aqueles
trauma. Esse último rompe o elo sim- que maltratam. Os bruscos, ladrões, de-
bólico, a trama da linguagem capaz de alers, são também aqueles que foram
segurar a pulsão. O trauma pode defi- excluídos dos sistemas de simboliza-
nir-se como violência sofrida, arrom- ção por uma sociedade que não reco-
bamento: o externo perdendo-se no nhece mais o valor das trocas, que não
interno, destruindo o equilíbrio, levan- sabe mais se simbolizar a si mesma. A
do o sujeito, ou os sujeitos, à desordem exclusão é um trauma contínuo e algu-
e ao sofrimento. Se recorrermos à eti- mas delinqüências são o sintoma social
mologia do trauma, encontraremos a decorrente. Por sua vez, a violência é
idéia de ferir, de perfurar: é mesmo uma freqüentemente a expressão de um so-
ferida com invasão, uma lesão de uma frimento não expresso.

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Sofrimento e morte ma de falar. O sofrimento é redobrado; o
O sofredor é excluído, abandonado, esquecimento por sua vez torna-se im-
“Por que você me abandonou?” Ele não possível, pois ele é impossível, diferen-
tem mais subjetividade apenas a violên- temente do que acontece em um
cia da infelicidade. Se ele tenta construir pesadelo, a expressão do que está além
representações de sua infelicidade, para da palavra. Embora sua escrita difícil,
além da constatação da devastação, es- “estudo sem paixão”, de sua obra basea-
sas só podem inscrever-se como arrepen- da na memória, tentativa de restituição
dimento do passado. O sujeito aguarda desde a base dos fatos, Primo Lévy
uma interrupção que, aos seus olhos, só (1958), tendo estado sujeito ao inomi-
pode ser a morte: “Deixem-me morrer! nável, acabou-se suicidando.
Que a morte me leve!” O sofrimento é
um morrer devagarinho; uma morte ex- Sofrimento e gozo
perimentada, sendo que a única esperan- Sofrimento e gozo podem transfor-
ça é que ela finalmente chegue. “Que a mar-se um no outro e também se com-
morte ponha um fim ao meu sofrimen- preender um ao outro. Podemos nos
to.” Tânatos, desejo de morte e de es- “comprazer na infelicidade”. Podemos
quecimento, é um recurso contra o que a encontrar um gozo narcísico na escolha
vida inflige. pela infelicidade (colocando em evidên-
Qualquer que seja o seu grau, o sofri- cia o sofrimento, bancando o mártir);
mento traz angústia, pânico, depressão, tira-se disso um benefício... secundário:
suspensão da alma, desmoronamento, ele exibir suas feridas, manter os outros ao
inaugura o medo difuso e violento que redor de seu sofrimento, culpá-los, in-
anuncia uma destruição, uma perda, uma teressá-los, fazê-los sofrer com você,
hemorragia narcísica em que o ego cor- tornar-se um “crucificado”, obter com-
re o risco de se dissolver. O sofrimento paixão. Pode-se transformar o sofrimento
apresenta a proximidade de uma ameaça em uma transferência de dor: sofrer pe-
mortal, real ou fantasmática. Se sofrer- los outros. O sofrimento torna-se reden-
mos em função do que nos escapa o sen- tor em um registro de culpa e de resgate:
tido e o controle, é mesmo, in fine, da o universo do pecado. O sofrimento tor-
morte que se trata, essa subtração de si na-se uma moeda de troca, de transação
mesmo. sagrada. “Oferecer seu sofrimento na
A Shoah, infelicidade absoluta, sofri- reparação de...” É a versão mística da
mento imposto sistematicamente com transferência, transferência de culpa,
objetivo de morte, aproximou novamen- gozo na confusão das dores, suas e dos
te a questão do sofrimento à questão do outros, confusão chamada Deus. A reli-
mal há tempos relacionadas pela religião, gião cristã aproxima de bom grado o sa-
mas, dessa vez, entendendo o mal como crifício e o gozo por meio da oferenda.
potencial inerente à natureza do homem Santa Teresa de Ávila descreve sua ex-
comum. É o que Hannah Arendt (1963) periência mística, a “transverberação”,
descreve como “a banalidade do mal”. efeito do amor de seu senhor, intolerá-
A Shoah foi um empreendimento de de- vel e suave, uma prova tanto quanto uma
sumanização do carrasco, assim como da graça.
vítima, por meio de um sistema que re- No erotismo, outra mística dos cor-
duz o homem ao sofrimento animal e pos, gozo e sofrimento estão emaranha-
que, por meio da reificação, despoja o dos ou trocados; o primeiro, muitas
carrasco de toda responsabilidade. À vezes, não se obtém sem o segundo. O
morte do pensamento corresponde o so- romantismo é uma cultura dos sofri-
frimento puro: impossibilidade da víti- mentos do coração (Os sofrimentos de

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Werther, A flor de lis no vale, etc.) que tino trágico, ameaça à integridade: o que
tenta sobrepor-se ao corpo; as lágrimas anuncia a morte do sujeito, mas também
são, portanto, experimentadas com de- o destino humano.
leite. Não foi necessário esperar o mar- Nascido para morrer, nascido para
quês de Sade para que ficasse marcado sofrer, esse é o destino de que apenas o
no corpo essa furiosa aliança. Os aman- homem entre os vivos tem consciência e
tes podem dizer: “Meu sofrimento é cujos teólogos e filósofos aproximam-se
gozo”, “Teu sofrimento é meu gozo” sem a cada dia. O sofrimento, quase mais que
por isso serem perversos. Procura-se a a morte, é um enigma metafísico que se
fusão com o outro entre gozo e sofrimen- aproxima do absurdo.
to. As fantasias, bem como o ato amoro-
so, integram violência e doçura. Sem Sofrimento e contradição
dúvida, no extremo da sensação, sofri- O sujeito constitui-se numa tensão em
mento e gozo confundem-se, a diferen- busca de sentido: dar sentido ao que ele
ça é que, no gozo, a excitação nos limites é, ao que faz, à sua experiência, às suas
do suportável encontra uma via de des- relações com os outros. Essa tensão ori-
carga e o sujeito sabe que pode atingi-la. gina-se na demanda, que por sua vez tam-
Ele consente em perder-se, deixar-se le- bém sofre a tensão do desejo sempre
var, sem de fato perder o sentido. O gozo insaciado, e encontra o outro a quem ela
permanece em seus planos. O sofrimen- se endereça e que também constrange.
to pode, então, tornar-se um meio de A realidade em si apresenta-se sob for-
acesso, cientemente empregado, para se ma de obstáculos, sempre a serem con-
obter o gozo. trolados, e nos quais o desejo tropeça. O
sujeito segue buscando a continuidade
Sofrimento e trágico de seu desejo e o contorno das angústias
O sofrimento desenrola-se em torno e frustrações, organizando-se de modo
do drama humano, da condição de ho- significativo: tratando de dar uma coe-
mem sujeito às suas paixões – pulsões, a rência ao caos das excitações e às exi-
seus deveres e constrangimentos morais, gências que o agitaram. Ele tenta, com
às prescrições e interdições de sua cul- perseverança, falar. Ser de linguagem,
tura, a despeito dos outros. nascido no meio de linguagem, ele en-
Fruto do trágico, encontramos sofri- contra sua unidade e continuidade ape-
mento na contradição, no conflito, injun- nas na construção da linguagem: poder
ção paradoxal entre desejo e dever, amor reunir os elementos disparatados e con-
e poder, segurança pessoal e exigência traditórios de sua experiência, para co-
coletiva, honra e interesse. O herói trá- locar para si, em palavras, para contar a
gico assume o desfecho, e a tragédia co- si mesmo, na temporalidade (seu passa-
loca em cena o sofrimento e o amplia; do, seu presente, seu porvir), na sua re-
permite ver e lastimar as situações paté- lação com os outros. O sentido é apenas
ticas nas quais se debatem os heróis tão possível na relação que temos com o
infelizes quanto admiráveis. Vemos o outro, seja essa relação acolhedora ou
conflito lançá-los em uma incoerência não por parte do outro. O discurso que
próxima da loucura, até o ápice, o mo- temos sobre nós mesmos tem sempre este
mento trágico por excelência, que eles outro em nós mesmos representando um
atravessam geralmente com a morte, o interlocutor privilegiado mais ou menos
suicídio ou o assassinato. dissimulado.
A morte é sempre o que se apresenta Primo Lévy (1958) escreve no prefá-
no horizonte do sofrimento. O que esca- cio de seu livro Si c´est un homme: “A
pa ao domínio, hemorragia libidinal, des- necessidade de contar para os ‘outros’,

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de fazer os ‘outros’ participarem, adqui- de se explicar, de se representar, de sim-
riu em nós, tanto antes quanto depois da bolizar (sofrimento “indescritível, não
nossa liberação, a violência de um im- passível de ser traduzido, não dizível”,
pulso imediato, tão irresistível quanto as “os grandes sofrimentos são mudos”). O
outras necessidades elementares.” conflito torna-se crise, a discussão in-
O sofrimento nasce, para o sujeito, terior não tem saída, o sujeito sente-se
tanto da dificuldade de elaborar um sen- pesado, “a dor não pode ser comparti-
tido para a sua experiência (“Eu não sei lhada”.
mais em que ponto estou, eu não sei mais A queixa ou o sintoma seriam as mar-
o que me acontece, eu não sei mais o que cas de uma demanda não articulável, algo
eu quero.”), quanto da recusa de um ou- que tem dificuldade em se expressar, mas
tro em reconhecê-lo. Por meio de seu pro- que é dirigido ao outro. Essa queixa é
pósito, a proposição que ele faz de sua um pedido de sentido, de restaurar algo
unidade, que só pode acontecer se for que pode ser dito, a introdução novamen-
significativa, o sujeito coloca-se à prova te, no circuito da vida, das trocas, na coe-
do outro, ele pode ser reconhecido, en- rência que constitui cada um de nós em
tendido, como pode ser ou sentir-se re- nossa identidade, nosso vínculos. “O que
jeitado, não correspondido. tenho? O que me acontece? O que isto
O sentimento de ser compreendido quer dizer? Por que sou assim? Digam-
funda a confiança e a amizade, o prazer me, expliquem-me!” O pedido de alívio
de estar integrado. O amor é a crença na ou de ajuda passou o primeiro estágio
coincidência, o compartilhamento total do emplastro e pede explicação, compre-
do sentido tanto quanto dos sentidos. O ensão, devolução de sentido.
sofrimento vem ao se perceber, pouco a O trágico nos remetia à consciência
pouco, ou de forma abrupta, que o outro infeliz, a esse sofrimento existencial li-
“não vê as coisas do mesmo modo”, que gado à questão do ser no mundo, que á a
o que tinha sentido para um não tem para questão do sentido, o aparecimento da
o outro. O que, do outro, vem contradi- ausência de sentido: do absurdo. As re-
zer o sentido que o sujeito procura ela- ligiões, as ideologias são como esponjas
borar é uma forma de aniquilamento. de sofrimento face ao questionamento
“Eles não me compreendem, pior do que inquieto a respeito do sentido, elas tra-
isso, eles não querem me compreender” zem uma resposta: “Tem sentido, o sen-
equivalendo rapidamente a “eu não sou tido da história ou da vontade de Deus.”
nada para eles”. Se ele se voltar para o outro lado, o
O maior sofrimento vem dessa con- homem, face à necessidade de enfrentar
tradição, dessa recusa recebida como a morte, o outro, a perseguição das coi-
corte. Nessa perspectiva, o silêncio tor- sas, deve buscar um sentido ele mesmo,
na-se a única resposta possível ao sofri- elaborar seus valores, elaborar uma éti-
mento: o retraimento dos autistas, dos ca, sabendo que ele terá benefício ape-
idosos, das vítimas de traumatismos, bem nas em função de seu esforço, sem
como dos depressivos, encerra também qualquer garantia e com a certeza de re-
o sofrimento de não terem palavras a di- vés. Só existe sentido dado pelo homem
zer sobre si mesmos e de não terem uma e solução para o sofrimento no desafio.
escuta suficiente. De acordo com Camus (1942), Sisyphe
e Promethée oferecem a saída da digni-
Sofrimento e ausência de sentido dade e da revolta, conquista de si mesmo
O sofrimento é a perda de sentido, na consciência de sua finitude.
desordem das emoções, dos sintomas, a Os tóxicos calafetam o sofrimento
impossibilidade de colocar em palavras, reconstituindo uma unidade, embora não

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significativa, uma homogeneidade não aceito como benefício, como um modo
articulável: dos estados eufóricos ou que de se comprar de volta ou de se adquirir
causam espanto, um amálgama tendo uma felicidade futura. “Bem-aventurados
como avesso o buraco, o vazio. Repleto/ aqueles que sofrem.” Sofrer na fé, sofrer
vazio, alternâncias que carregam numa como mártir, abre as portas do paraíso.
espiral sem fim onde uma pseudocoesão Algumas épocas dão valor ao sofri-
só pode ser obtida em detrimento da res- mento: para os românticos era doce so-
ponsabilidade e da coerência (domínio frer de amor e de uma paixão infeliz.
do sentido), como um anestésico que Existem também sofrimentos ridículos:
calafeta de modo provisório a brecha, as comédias do início do século trans-
esconde o rasgo e deixa o paciente ador- formavam o traído pela esposa, o ciu-
mecido. mento, aquele que sofre por não ter o seu
objeto de amor, em personagens cômicas.
Sofrimento e cultura Os ferimentos decorrentes da deson-
O sofrimento, sentido como infelici- ra, da humilhação, esse sofrimento rela-
dade, mal-estar, desordem, injustiça, de- cionado à auto-estima e à degradação de
pende do meio social e cultural, do sua própria imagem encontram pretex-
sistema de representações e simboliza- tos muito diferentes de acordo com o
ção, de sua solidez, força e riqueza. sexo, a idade, o status social, a época, a
Em primeiro lugar é o que a socie- sociedade.
dade oferece enquanto solidariedade, Nas sociedades chamadas moder-
satisfação, explicações (mitos, ritos, nas, vemos eclodir o que chamamos de
vias de acesso e suportes religiosos, éti- novas patologias: estado limítrofe (bor-
cos, ideológicos, políticos, econômicos). derline) sem estrutura, depressões, in-
O sofrimento desaparece, acalma-se ou constâncias, violências, condutas de
se exacerba-se. adição, surgiram num contexto social de
Os sofrimentos assumem as formas maior fluidez dos costumes. Elas substi-
propostas ou autorizadas pela cultura. A tuíram os quadros nosológicos clássicos
sensibilidade ao sofrimento varia de em sociedades paradoxais, que freqüen-
acordo com as épocas e as sociedades. temente roubam, dificultam, os meios de
A capacidade de resistir à dor física é, se chegar à liberdade e à responsabilida-
ela mesma, sujeita a variações. O sofri- de às quais somos convidados (desem-
mento moral depende dos objetos de ape- prego). Cada um deve construir suas
go propostos numa dada cultura. Pode referências e definir seus limites, buscar
acontecer que a proximidade da morte, suas identificações; aqueles que se en-
ou a perda de um ente querido, seja con- contram no centro dos paradoxos não
siderada como um evento natural ou conseguem criar suas referências, fogem
mesmo feliz, pode acontecer da filoso- na dependência, na depressão ou violên-
fia ou da religião aprenderem a conside- cia. O sofrimento psíquico, ele mesmo,
rará-la calmamente. No centro de um parece não encontrar mais seus mode-
mesmo grupo, o status social é o que vai los, mostrando por aí que a sintomatolo-
determinar a expressão do sofrimento, gia acompanha sua época e seu meio.
mas também o seu ressentimento. À exceção de alguns que ocupam
Na antiguidade, os estóicos elabora- posições proeminentes na atualidade e
ram uma filosofia do sofrimento que pro- que não servem de modelo, o anonimato
punha a seus seguidores afrontá-lo sem em que muitos estão mergulhados con-
medo. O cristianismo é uma religião, que, fina à exclusão, pois eles são, ao mesmo
como outras, foi constituída em torno do tempo, continuamente solicitados a con-
sofrimento, um sofrimento por sua vez sumir e participar; na família, não se en-

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contram mais figuras fortes e estrutura- constante nas estruturas. Ch. Dejours
das, religiões e ideologias estão desacre- (1998) percebe uma retribuição simbó-
ditadas. Nesse contexto, a construção da lica ao lado da retribuição material,
identidade fica comprometida. Nas so- julgamento com uma dupla utilidade
ciedades modernas, apenas o sistema (econômica, social e técnica) e beleza (de
econômico é proposto como algo exter- acordo com as regras da arte e originali-
no que regula os vínculos sociais. O éti- dade). O reconhecimento garante o per-
co, o estético e o erótico são deixados para tencimento e a diferença necessária para
a elaboração de cada um. O que pode pa- a identidade. Sua ausência assinala uma
recer um imenso progresso enquanto li- morte social: sofrimento e exclusão.
berdade e responsabilidade permanece Em seu livro Souffrance en France,
inaccessível a muitos. Um sofrimento Dejours dedicou-se a analisar o que é o
cultural difuso, mas às vezes agudo, a dis- sofrimento no trabalho em condições
solução do ego, a angústia da identidade administrativas modernas: repressão, rei-
levando a novas patologias. Entendemos ficação, desumanização são exercidas
também a busca desesperada de refúgio por meio da tecnologia e da economia
ao abraçar propostas religiosas e étnicas que comanda as relações humanas, es-
de integração, que radicalizam a proble- vaziando-as de seu sentido. A tolerância
mática da identidade e fornecem de um à injustiça cresce, os novos métodos
modo extremista ou sectário um núcleo administrativos progressivamente reco-
firme de identificação. O mal localiza-se locam em pauta o direito ao trabalho e
no exterior, podemos atribuir-lhe nossa às aquisições sociais, uma verdadeira
raiva e agüentar um sofrimento, por sua guerra econômica esmaga o direito e a
vez impossível de ser expresso. subjetividade em prol de uma única uni-
dade que valha: a empresa.
Dimensão psicossocial Isso vem acompanhado de um retorno
Aquele que sofre se encontra na con- do sofrimento sobre si mesmo: “É por
fluência da subjetividade e da realidade meio da mediação do sofrimento no tra-
exterior, do individual e do social. O so- balho que se forma o consentimento a par-
frimento remete a uma invasão mútua, a ticipar do sistema [...] o sistema gera, em
um roubo de um pelo outro, a um confli- retorno, um sofrimento crescente [...] Ho-
to sem diálogo, é também ser esmagado, mens e mulheres levantam defesas [...] es-
sofrer o peso da infelicidade, da misé- tratégias de defesa [...] armadilha que
ria, da injustiça, da humilhação, da de- pode voltar-se sobre aqueles que, graças
sonra, dos anos, isto é, da incapacidade a elas, conseguem agüentar o sofrimento
e da rejeição, o que pode ser resumido sem se curvar [...] [elas] ajudam a fechar
por noções de exclusão e de solidão. os olhos.” Um imaginário de coragem e
A injustiça concentra o sofrimento virilidade, uma ideologia do realismo po-
social. É sofrer de falta de reconhecimen- lítico fazem das vítimas carcereiros de si
to, de exclusão, ser lesado em seus direi- mesmos e de outros, portanto que o aju-
tos, sua dignidade (em sua auto-estima), dem a suportar o sofrimento.
frustrado em suas necessidades vitais. O A racionalidade do mal desemboca
reconhecimento, bem como a injustiça, numa banalização do sofrimento pelo tra-
é uma noção psicossocial: necessidade balho.
vital do sujeito social, que permite estar
no olhar do outro, existindo, ao mesmo Sofrimento sociopolítico e sofrimento
tempo semelhante, admitido, e distinto, individual
recebido em sua singularidade. O não- O sofrimento pode passar de indivi-
reconhecimento é objeto de uma queixa dual a coletivo. O sofrimento social é ser

O sofrimento e a perda de sentido: considerações psicossociais e clínicas – 63


abandonado, excluído, perseguido em mo por desapercebido. O sofredor-sacri-
suas crenças, opções, seus vínculos, seus ficado torna-se o beneficiário da opera-
bens, ser humilhado. Um regime auto- ção. Sabemos do sucesso do sacrifício
ritário pode acalmar as angústias indi- em todas as religiões, as quantidades de
viduais, obrigando a seguir vias já sangue derramado é fenomenal e fre-
delineadas, sem escolha, sem empolga- qüente. Testemunhando essa afirmação,
ção (os “normopatas” evocados por podemos relembrar a largura dos esgo-
Dejours), mas o sofrimento pode trans- tos subterrâneos sob o templo de Jeru-
formar-se em sofrimento coletivo, uma salém, os relatos relativos à abundância
exasperação do sentido de constrangi- de sangue banhando as esplanadas de Te-
mento que levará a revoltas ou mesmo otihuacan na época das cerimônias As-
revoluções. O regime autoritário ofere- tecas...
ce uma unidade, contudo, à custa de O sofrimento, o seu, mas principal-
opressão e em meio a uma grande po- mente o dos outros, serve como uma
breza de sentido e a impossibilidade de moeda de troca para obter favores do
elaboração pessoal. Sofrimento dos po- sobrenatural. Economia letal, como cha-
vos: tirania, ditadura, repressão, nas so- mou S. Duverger (1979): morte para
ciedades monolíticas onde a unidade comprar a vida, sofrimento para comprar
imposta acontece no pensamento único, o bem-estar e a saúde, riqueza e segu-
na ordem e conformismo absolutos. A rança. Uma troca para a qual foi neces-
diferença é erradicada (limpeza étnica), sário procurar um mediador, padre, guru,
as perseguições raciais ou ideológicas a feiticeiro, médium, que se apresenta
condenam. Categorias inteiras de popu- como intérprete e organizador das enti-
lações são destinadas ao silêncio ou à dades que permanecem escondidas ou
morte. enigmáticas. São eles que conferem ao
O sofrimento manifesta-se sempre e sofrimento o estatuto de sinal que as
em primeiro lugar, como impossibilida- entidades esperam ou reclamam, inscre-
de de falar, como destituição de sentido. vendo-o numa dialética significante de
transformação.
Em contrapartida, o sofrimento, tra-
ALTERNATIVAS AO SOFRIMENTO tado como sintoma pela medicina, remete
HISTÓRIA DA EFICÁCIA sem nenhuma operação transcendental à
unilateralidade de uma causalidade tal-
Do religioso ao medicinal, do sinal vez pouco visível, mas achatada (natu-
ao sintoma ral). O sofrimento fica circunscrito num
O sacrifício é o tratamento mais anti- campo de uma racionalidade científica,
go para o sofrimento: ele permite liber- um sentido mecanicista, de primeiro
tar-se de um sofrimento transmutando-o grau, em que o significado junta-se ao
em oferenda, de si e dos outros, vivos ou significante. Nesse nível, o sofrimento
objetos, que se tornam veículos numa não quer dizer nada, ele manifesta ape-
transação entre aquele que sofre e uma nas, ele não é significante, mas sinal, um
entidade espiritual. O sacrifício recolo- índice, que apenas remete a fatos. As-
ca o sofrimento numa trajetória signifi- sim sendo, o sofrimento, tendo preenchi-
cativa, em que ele é reencontrado, do do o seu papel de sinal ou de signo
outro lado da corrente, transcendido. O associado, acabou sendo negligenciado.
sacrifício substitui, para aquele que faz Certamente, há bastante tempo, existe uma
o pedido, um outro ser vivo (o carneiro) preocupação em anestesiar, em calar a dor,
cujo sofrimento fica comodamente rele- contudo, a dor dos bebês foi escandalosa-
gado a segundo plano, passando até mes- mente negada, a dos idosos negligenciada,

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e por muito tempo o sofrimento da partu- Hipótese básica: o sentido e
riente associado a uma herança de pecado a eficácia simbólica
original. “Tu terás teus filhos na dor” é uma O sujeito tem uma necessidade vital
fala inquestionável, definitiva. de uma unidade de identidade (coesão e
Portanto, o sofrimento como simples coerência), de se sentir ele mesmo em
sintoma, com valor se sinal, está simples- sua integridade e significação, como sin-
mente associado a uma desordem orgâni- gularidade operante e reconhecida. O
ca ou a um traumatismo moral, sofrimento provém do revés dessa pre-
interessando apenas no sentido de alertar tensão, seja em função de golpes recebi-
e orientar pesquisas. O vínculo, mesmo dos do exterior, seja da inaptidão e
que certo, permanece, freqüentemente, degradação interna, seja dos dois (ata-
obscuro. que dos outros, das coisas – humilhação,
O sujeito, que sofre em seu ser, sua violência, acidente, doença, luto – he-
identidade, seu porvir, que sofre tanto de morragia narcísica, autodesqualificação,
angústia e abandono quanto de dores fí- fraqueza do ego, impossibilidade de en-
sicas, foi por muito tempo excluído da frentar, de assumir, vindo de uma incer-
preocupação dos médicos. teza das identificações, mas também dos
Essa preocupação surgiu há um de- reveses repetidos ou provocados).
O sujeito funda-se no reconhecimen-
cênio e agora falamos de parto sem dor,
to de sua “mesmice” (é um semelhante)
de acompanhamento para os moribundos
e de sua singularidade (distinção, origi-
tanto quanto de cuidados paliativos; po-
nalidade), mas também em sua aptidão
demos ler publicações recentes que sali-
em retomar suas escolhas, seus atos, seus
entam o fato de que os bebês não são
pensamentos, seus projetos dentro de
simples pequenos que berram, mas tam-
uma intencionalidade e uma coerência.
bém sofrem. Ao aceitar a subjetividade
“Eu, o que eu quero, do que eu gosto, o
do doente (ao contrário da redução mé-
que eu fiz...” Mesmo os reveses ou as
dica que fala em leitos, órgãos, atos mais contradições, ele tenta explicá-los pela sua
voltados a designar a doença do que o evolução ou ambivalências que apenas lhe
doente), foi necessário encarar o sofri- pertencem, que ele assume como momen-
mento como uma expressão do mal-estar tos relacionados, propiciando sua rique-
do sujeito. Tratava-se de um apelo ende- za tanto quanto sua mobilidade. Se os
reçado ao outro, que precisava ser ouvi- reveses são devidos às circunstâncias, ele
do e escutado numa relação voltada a obtém a certeza da conservação de uma
ajudá-lo, a colocar em palavras sua infe- vontade intacta: a incoerência tendo vin-
licidade, palavras em suas angústias. Era do do exterior não revelaria nada dele.
recolocar o sujeito que sofre na relação, O sofrimento pode ser considerado
na continuidade de um discurso inaca- como uma perda do sentido ou da capa-
bado ou interrompido e, com certeza, cidade de elaborar relacionada a um rou-
devolver-lhe, dessa forma, a dor supor- bo ou uma submersão interna da pulsão.
tável, restaurando-lhe a palavra, envol- O tratamento do sofrimento vai ne-
vendo o sofrimento e reabsorvendo-o por cessariamente passar, para além de sua
meio do discurso, para além do efeito eliminação, graças aos meios técnicos,
anestesiante dos calmantes. por uma recolocação de sentido, resti-
Os cuidados paliativos, ao mesmo tuição de coerência, reinscrição numa
tempo, procuram a dose suficiente, o cadeia de linguagem que substitui sua
patamar, de morfina a ser administrada dinâmica ao caos da experiência.
e instauram novamente a relação. O so- No capítulo de Antropologia estrutu-
frimento pode ser elaborado. ral, Lévi-Strauss, analisando o processo

O sofrimento e a perda de sentido: considerações psicossociais e clínicas – 65


de cura do xamã, chegou à “eficácia sim- Esses recursos são, por exemplo, no
bólica”. O sofrimento sendo o caos de caso que estudamos (Michel Robert
elementos incontroláveis e não comuni- [1998], homem com curso superior, an-
cáveis, perda de sentido, a restituição da gustiado por um golpe desconhecido que
linguagem (declamação de um mito pelo o atinge e o limita progressivamente, ver,
feiticeiro) permite uma reorganização e nesse mesmo fascículo, o artigo de F. Giust-
a transposição, a saída do caos (curar). Desprairies): a medicina especializada, e
Uma estrutura de linguagem e imaginá- também as equipes médicas nos hospitais
ria retomou o que, num estágio do vivo, que inscrevem novamente o sofrimento
social, psíquico, somático, tinha desor- psíquico (angústia face à estranheza de
ganizado-se. Lévi-Strauss percebe nisso golpes que atingem o físico e face ao
um efeito estrutural no nível imaginário desconhecido do destino) num corpo
e simbólico, efeito sobre o real somático médico e científico.
e psíquico. Trataria-se de uma recoloca- A busca de um diagnóstico e de um
ção em forma psíquica agindo sobre o prognóstico, e depois, de um tratamento
soma, graças aos sistemas fornecidos com médicos especialistas, deve ser en-
pelo social (mitos, códigos, rituais, confi- tendida como a tentativa de reinscrever
gurações instituídas), servindo de grade o sofrimento em uma seqüência que for-
intelectual e afetiva, reinvestindo o psí- neça uma dinâmica operatória do senti-
quico e o somático para transformá-los. do (direção da ação, objetivos). Mas isso,
O efeito que se obtém é o alívio e a sem, no entanto, atribuir ao sofrimento
cura. O sentido reapareceu. Pode ser por um outro sentido que puramente meca-
meio de um insight repentino ou de uma nicista, quase material e prático.
compreensão difusa, mas que permita ao Paralelamente, o paciente, que já se
doente reinvestir. “Eu sei o que eu te- interessou pelo campo teórico e clínico
nho, eu vou poder agir. Eu sei o que quer da psicologia e que mesmo tendo em
dizer, de onde vem, eu vou sair dessa, eu anos anteriores empreendido uma psica-
farei o necessário para...” nálise, vai se voltar para psicoterapias de
O tratamento consiste em recolocar diversas tendências para inscrever seu
o sofrimento em uma cadeia discursiva sofrimento e os sintomas a ele relacio-
associativa ou lógica na qual se pode in- nados em um contexto (contexto de re-
serir novamente a experiência louca, a presentação e de idéias) que lhe dê um
representação aberrante. sentido mecanicista, tal causa tal efeito,
mas um sentido remetendo a intencio-
Os recursos ou alternativas nalidades ocultas. À inteligibilidade
Aquele que sofre se volta primeiro puramente racional acrescenta-se a pos-
para os recursos oferecidos e permitidos sibilidade de juízo de valor, a questão da
em seu meio cultural e em função de seu escolha ou da liberdade e responsabili-
status socioeconômico: tratamentos, te- dade do sujeito que, em um determina-
rapias mais bem-conceituadas e mais do momento, não saberia, não teria
acessíveis em seu meio. podido, não iria querer assumir uma coe-
O recurso apresenta-se em dois regis- rência interna e teria deixado escapar o
tros: primeiro fazer diminuir ou elimi- significante, tornando-se louco, estou-
nar a dor, abafando, de modo imediato, rando em sofrimento e sintoma, desan-
apagando o sinal, a representação aber- corado da continuidade e realidade
rante, segundo entender o sinal e rein- psíquica e mesmo física.
tegrá-lo num sistema que permitirá As diferentes formas de psicoterapia,
deslocá-lo, transformá-lo, domá-lo, recu- que os sujeitos que sofrem procuram, são
perar o domínio sobre o que, até então, é do mesmo modo contextos significantes,
aberrante. teorizações mais ou menos estruturadas,

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mas pretendendo ligar os registros que força. Uma adequação encontrada res-
justamente o cliente clivou, conscientes, tabelece o equilíbrio, a harmonia e pro-
inconscientes, corporal, espiritual. A re- cura acalmar, até mesmo eliminar, o
tomada de responsabilidade, a liberda- sofrimento.
de, consiste em escolher, assumir esses Existem diversas categorias por de-
registros em suas contradições e nos jul- trás dessa concepção comum:
gamentos que o sujeito poderia ter a res- • A categoria que remete às ciências pa-
peito. Trazendo-os em seu campo de ralelas. As entidades são identificadas
inteligibilidade, e de escolha, o sujeito como energias, fluxo vital, por meio dos
poderá maneja-los, elaborar e operar quais o sujeito seria colocado fora do
transformações, correspondendo a mu- circuito. Práticas remetendo ao espíri-
danças do modo de sofrimento. Trata-se to e ao corpo trazem o indivíduo para o
de um outro nível de sentido, que eu di- circuito harmonioso. Entende-se o sen-
ria intencional, investido afetivamente, tido como uma dinâmica vital na qual
cujo sujeito atribui o enunciado a si mes- o sujeito se recoloca. Mesmo que ele
mo (“Eu sou isto, eu quis ou não quis tenha um sistema de representações
isto”). articulado em torno das energias, o
As psicoterapias de inspiração psica- sentido não remete a um sujeito que
nalítica e derivadas da psicanálise su- enuncia. Bioenergética, yoga, práticas
põem, em geral, que o sujeito é a chave chinesas...
do sentido, o fato, ou pode recuperá-lo • A escorregada em direção ao paranor-
em seu nome próprio. mal. Uma outra categoria é representa-
Mais tarde, nosso paciente buscará da pelas vidências, baseadas na
outros recursos, práticas em princípio cartomancia, numerologia, astrologia,
não congruentes com o seu meio, mas quiromancia... As entidades são de or-
solicitadas em desespero de causa (“nun- dem diversa (números, constelações...),
ca se sabe”), correspondendo, portanto, mas têm inscrito e determinam em uma
a sistemas tradicionais até mesmo arcai- ordem, a priori, oculta o destino do su-
cos de representações, mais ou menos jeito. Os videntes ou iniciados podem
abandonados, ou que ressurgiram, ou que esclarecer-lhe, “ler” o que, dele, está
sobreviveram em meio a uma certa clan- “escrito”, com, às vezes, algumas pos-
destinidade. sibilidades de manobra e espaço de
Mesmo sendo necessário distinguir movimentação quanto às escolhas, ofe-
varias categorias, essas práticas têm pri- recendo sempre, pelo menos, o benefí-
meiro por princípio comum atar de novo cio se saber. No mais freqüente, esse
o sentido, não ao sujeito, mas a entida- recurso tem eficácia, tem algum efeito,
des sobrenaturais, esotéricas, místicas deixando entrever uma possibilidade de
cujo acesso necessita de uma iniciação e saída em condições de condutas propi-
a mediação de iniciados. ciadoras. Encontramos até a idéia de
O pressuposto comum é que o pacien- destino, prescrição sobrenatural, de re-
te interferiu de modo contraditório ou gistro parafísico ou paranormal, que
transgrediu, ou ainda foi capturado em guardaria o código e o texto no qual se
encadeamentos significantes que ele pode entender o sentido do sofrimento.
ignorou, voluntariamente ou não, ou que • Uma outra categoria (mas chamemos a
o transcendem. atenção para o fato de que as categorias
As práticas vão revelar-lhe, mais ou não são estanques, existem influências
menos claramente, e ele poderá, se não e sobreposições constantes entre umas
agir, pelo menos, colocar-se de acordo, e outras): o religioso, a busca das reli-
restituir-se em relação a suas linhas de giões que oferecem um sentido espiri-

O sofrimento e a perda de sentido: considerações psicossociais e clínicas – 67


tual. Nesse caso, as entidades são espí- história que seria revelado pelos histo-
ritos, divindades (anjos, santos, deuses, riadores, filósofos, políticos, que deve-
demônios...) dotados de vontade pró- ria ser entendido como uma evolução
pria e de poder, que decidem, intervêm, progressiva, na qual os membros de
julgam (significantes morais) ao longo uma sociedade estão inseridos pela
da vida do sujeito (castigam, protegem, participação coletiva em movimentos
favorecem, amaldiçoam...). O sofri- sociais (o mais comumente revolucio-
mento, entendido como infligido por nários). O engajamento no sentido his-
essas entidades (avisos, provas ou cas- tórico oferece literalmente sentido à
tigos) pode ser atenuado, transforma- vida do sujeito e o alivia, de certo modo,
do em algo de bom ou desaparecer, com de seus males individuais.
a condição do sujeito seguir a vontade • A revolução se inscreve na perspectiva
dessas entidades. Ele tem a tarefa de de uma abolição do sofrimento social.
conhecê-las. A responsabilidade é de É certo, que a política não é uma pro-
certa forma partilhada. O paciente er- posta de tratamento de sofrimentos
rou ao ignorar o código divino ou espi- individuais. Trata-se de um comprome-
ritual. As entidades podem decidir timento mais do que um recurso, mas
quanto a reintegrar o paciente de acor- os efeitos são freqüentemente inegavel-
do com os bons preceitos do texto mente curativos (maio de 68 esvaziou
místico. O sujeito, por meio de rituais os divãs dos psicanalistas). O discurso
reparadores e propiciadores, deixa-se e a ação política desviam as preocupa-
guiar para interiorizar (colocar-se no ções pessoais.
sentido de) o caminho diretor (a vonta-
de) divino. Ele coloca-se de acordo com As políticas institucionais
o sentido sagrado que os padres sabem Basaglia, na Itália, propôs uma desins-
decodificar. Nos casos estudados, o titucionalização do sofrimento mental, de
sujeito recorre, sucessivamente e de inspiração marxista, que pretendia pen-
modo freqüentemente concomitante, a sar a loucura como uma alienação social.
todas as categorias evocadas, com su- Esse pensamento esteve na origem do fe-
cessos diversos, mas nunca definitivos. chamento dos hospitais psiquiátricos. O
No final, ele abandona sua busca, des- doente reinserido e acompanhado no cir-
cobrindo que a infelicidade e o sofri- cuito das trocas e vínculos sociais deve-
mento que ele produz pode não ter ria retomar o curso da vida de forma
sentido, pode ser apenas o resultado do menos prejudicial.
acaso e da necessidade. Essa lucidez A antipsiquiatria pretendeu, por sua
estóica permitiu-lhe afrontar seu sofri- vez, ver no sofrimento mental os efeitos
mento e escolher viver ou morrer, con- de separações relacionais (double bind),
siderando, ao contrário, as mínimas a alienação microssocial servindo de mo-
oportunidades de prazer que lhe so- delo para dar sentido ao sofrimento, ou
bram. De algum modo, ele entendeu melhor, para denunciar a ausência de
que de nada serviu tentar buscar o sen- sentido imposta ao sujeito.
tido em outro lugar, até mesmo em seu Deleuze e Guattari tornaram célebre
inconsciente. Ele entendeu que apenas uma tese afim com seu Anti-Édipo. Re-
ele pode construir esse sentido, como visitando Lacan com a ajuda de Marx,
uma espécie de filosofia pessoal. sustentaram que, em particular, a esqui-
• Com o mundo moderno, uma outra ca- zofrenia deveria ser entendida como uma
tegoria surgiu, pelo menos como estra- revolta contra a “Edipanização”, repres-
tégia, e poderíamos chamá-la política são do desejo, homóloga, no plano psí-
ou ideológica. Haveria um sentido da quico, à repressão capitalista no plano

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social, revolta, portanto, a sustentar, se Vimos que existem múltiplas formas
não favorecer. Essa proposição procura de permitir, propor ou impor sentidos.
dar sentido ao sofrimento e permitir sua Esse último é procurado aqui ou acolá
superação por meio da suspensão de uma (no prórpio inconsciente do sujeito, nos
repressão na qual o sujeito tornar-se-ia astros, nos espíritos, na revolução, por
o objeto. meio de instituições ou fora delas). A
À intersecção do político e da psica- cultura, os costumes, a sociedade, as ten-
nálise, podemos nos ater a propostas da dências individuais favorecem uma tal
psicoterapia institucional que ganhou prática em vez de outra, em um dado
força na França depois da guerra, ainda momento. Essas práticas diferenciam-
aqui, sob uma dupla influência lacania- se essencialmente por sua capacidade
na e marxista. O sofrimento, em forma de enunciação concedida ao sujeito (de
de psicose, seria o efeito de uma exclu- criar seu sentido ou de recebê-lo de ou-
são da ordem simbólica, da prática da tro lugar).
linguagem entendida como capacidade De acordo com as culturas, os mo-
de articular os significantes entre si e mentos da história, os meios, alguns re-
com os outros. A instituição como arran- cursos são admitidos, outros não. Alguns
jo possível de elementos estruturantes são vergonhosos e clandestinos, outros
(locais, momentos, funções, instrumen- acompanham a moda e os costumes. O
tos...) é um equivalente da linguagem. Ela sentido pode ser imposto, construído,
deve ser colocada à disposição daquele emprestado, sugerido... Isso já nos reme-
que sofre para que ele a use, por meio de teu ao texto de Lévi-Strauss a respeito
seu “balbucio institucional”, e acabe fa- da eficácia simbólica. O que falta a essa
lando o que permanece escondido, não proposta, segundo a qual as estruturas
aproveitado, em si mesmo, por falta de teriam ressonância uma sobre as outras
acesso, e que afeta a ponto de levar ao nos diferentes estágios do viver, é uma
sofrimento e à loucura. Trata-se menos eficácia imaginária, as capacidades de
de um sentido antecipado do que de uma transmissões metafóricas. A estrutura
estrutura de linguagem aberta por meio não é suficiente, são necessários efeitos
da qual o doente é estimulado, levado a no plano das representações, imagens
reconstruir uma fala, significar-se. que comunicam, que substituem as car-
Não há escala de valores nessas cate- gas emocionais e afetivas. Não se trata
gorias e, mais uma vez, devemos enten- de um significado apenas estrutural ou
der que elas estão freqüentemente simbólico ou mesmo imaginário, mas
sobrepostas sem que as fronteiras entre igualmente de um investimento emocio-
elas sejam bem nítidas. nal e afetivo.
O sofrimento também é um excesso
Retomando a eficácia: do simbólico emocional que acompanha uma inter-
à relação rupção do sentido ou uma representação
O que pretendi sublinhar até aqui, é difícil de se entender. Qualquer que seja
que o sofrimento é uma falta de senti- o recurso a que recorremos ou a que nos
do, uma ruptura do sentido que o sujei- direcionamos, ele tem a função de rear-
to tende a criar para certificar-se de uma ticular.
coerência de identidade. O sofrimento A reinscrição em um contexto signi-
aparece como efeito de uma ruptura na ficativo permite assimilar novamente o
cadeia significante, ou perda de um signi- sofrimento e mesmo destituí-lo, devol-
ficante. Os recursos e tratamentos con- vendo os investimentos que ele drenou
sistem em reencontrar ou reatar uma ao serviço de uma dinâmica viva e coe-
cadeia significante (sentido). rente. O sujeito recupera-se mais ou

O sofrimento e a perda de sentido: considerações psicossociais e clínicas – 69


menos de acordo com o grau de interio- ele entendeu que o sentido não estava
rização e adesão. A eficácia depende do previamente escrito em algum lugar.
grau de adesão: Aceitando com lucidez que o homem está
• impacto emocional (fascínio, hipnose, sujeito ao acaso e à necessidade, ele tam-
transparência...) que desloca o investi- bém entendeu que o sentido não pode ser
mento psico-afetivo; descoberto, mas construído por meio do
• compreensão, inteligência já relaciona- esforço renovado de juntar os elementos
da ao efeito da reestruturação simbóli- heterogêneos da vida. Nisso, ele encon-
ca e imaginária. tra felicidade suficiente, malgrado as
condições de sua doença que se torna-
Certamente, o sofrimento pode sem- ram extremas.
pre ser parcialmente reduzido por uma Qualquer que seja o recurso, parece
modificação do suporte neurofisiológi- que a simples esperança que o sujeito
co; é aqui que a medicina pura opera. guarda de obter por aí o meio de reorde-
Mas, o homem é um ser de linguagem, nar a confusão interna, é suficiente para,
palavra e desejo estão estreitamente li- em pouco tempo trazer alívio. Isso está
gados, palavra do desejo, desejo de enun- bem próximo dos efeitos de crenças ou
ciar, o sofrimento também é sempre a ainda do que chamamos de efeito place-
impossibilidade disso. bo. Dito de outra forma, uma organiza-
O impacto emocional é fortemente ção mental, simbólica e imaginária pode
garantido pela relação transferência sempre reparar essa desorganização emo-
percebida como relação de amor, reencon- cional e intelectual que chamamos de
tro com alguém de benevolente, compre- sofrimento: o sentido é retomado, seja
ensivo, disponível que se oferece numa ele proposto pelo meio ou elaborado com
relação dual. Essa pessoa permite que se um esforço pessoal. É necessário ainda
instaure uma comunicação; isso quer di- uma carga emocional que a relação ou a
zer que, graças a essa comunicação, o intensidade da expectativa podem susci-
paciente se vê envolvido novamente em tar. Infelizmente, a porte fica aberta a
uma relação de troca, ele pode perceber- todos os charlatanismos e dependências
se entendido, e ele mesmo, recuperado, que possam, eventualmente, decorrer.
tendo reinventado uma fala. O amor aqui Seria fácil, ou mesmo possível, aceitar a
é o representante ou significante, elemen- idéia de que, qualquer que seja nossa
to central que recoloca o paciente em um exigência de encontrar um sentindo, tra-
vínculo, que o retira da dificuldade de ta-se sempre de uma construção, cons-
compreensão e do isolamento (o sofri- trução que nos traz à vida, que exprime
mento é também um estado de abando- nosso esforço de viver, “o trabalho de
no e de solidão moral completa). existir” (Pagès, 1998), mas que não nos
O sujeito a que me referi recorreu curará do sofrimento da morte, da ausên-
sucessivamente ou simultaneamente a cia de sentido que o homem apenas trans-
todas as categorias evocadas mais aci- põe por meio da lucidez.
ma, ele encontrou aptidões, crenças, aco-
lhimentos, sentiu afetos recebidos dos Encaminhado em 30/06/03
alívios, contudo, no final da caminhada, Aceito em 08/07/03

70 – PSIC - Revista de Psicologia da Vetor Editora, Vol. 4, nº.1, 2003, pp. 54-71
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Arendt, H. (1963). Eichmann à Jerusalém. Rapport sur la banalité du mal. Paris: Gallimard.
Avron, O. (1985, Novembre). L´acte de violence. Cahiers de l´I.P.C., 2.
Camus, A. (1942). Le mythe de Sisyphe. Paris, Gallimard.
Camus, A. (1947). La peste. Paris, Gallimard.
Dejours, C. (1998). Souffrance en France. Paris: Seuil.
Freud, S. (1981). Psychologie des masses et analyse du moi. In: S. Freud, Essais de
psychanalyse. Paris: Payot.
Kaës, R. et al. (1987). L´institution et les institutions. Paris: Dunod.
Lévy, P. (1958). Si c´est un homme. Paris: Julliard.
Pagès, M. (1996). Le travail d´exister. Paris: Desclée de Brouwer.
Riccoeur, P. (1994). La souffrance n´est pas la douleur. Autrement, 142.
Robert, M. (1998) ... et les bras m´en sont tombés... Barret-le Bas, France: Le souffle d´or.

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