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psicossociais e clínicas*
RESUMO ABSTRACT
*
Tradução de artigo publicado no Bulletin de Psychologie, volume 54, número 2, de março/abril
de 2001.
Endereço para correspondência: Av. Prof. Melo Moraes, 1721 – bloco F – Cidade Universitária
CEP 05508-900 – São Paulo, SP – tardivo@usp.br – j.barus@wanadoo.fr
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Jacqueline Barus-Michel
Professora emérita da universidade Paris 7
Tradução: Christiane Camps
Mestranda em Psicologia Clínica, IPUSP
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A preservação de uma concentração primitiva, assim que nossas identifica-
intelectual, de vínculos afetivos, de uma ções fundamentais ficam ameaçadas,
atenção voltada aos outros, pode atenuar, quando a confiança desaparece [...]”, o
apagar, anular o sofrimento. Mas, esse sofrimento emerge (Kaës, 1987).
domínio só é possível quando o ego já é O comportamento motor e o acesso à
forte, a relação objetal está garantida, o linguagem são determinados pela luta
narcisismo de base é suficiente para que contra as insuficiências e os desprazeres
o sujeito não se sinta nem roubado, nem que surgem. O sofrimento instala-se
atacado pelo que, novamente, evoca per- quando esses últimos são fortes demais
da, frustração, ausência de poder, culpa. em intensidade ou em duração e quando
O chefe descrito por Freud em Psicolo- o combate para dominá-los mostra-se em
gia das massas e análise do eu (1921), é vão. Esses são os primeiros lutos. Mas o
um ser insensível: “ele é dotado de uma jogo, a linguagem, a confiança e a se-
natureza de mestre, seu narcisismo é abso- gurança promovidos pelo ambiente ao
luto, ele é confiante e independente”, redor (desempenhando função de conti-
como o pai da horda primitiva cujo “ego nência) permitem um equilíbrio, uma
não era menos limitado em função dos construção de identidade, uma estabili-
vínculos libidinais [...] não se perdia, dade narcísica.
além da conta, face aos objetos”. Assim Portanto, uma outra dimensão e fon-
sendo, existem dois modos de resistir ao te de sofrimento logo aparece: a culpa.
sofrimento: ter um ego impermeável ou, As figuras amorosas e de autoridade dis-
ao contrário, um ideal de ego atrelado a tinguem-se e estruturaram-se como figu-
valores fortes, sob o auspício da subli- ras investidas. A criança sabe que ela
mação; talvez os dois não sejam tão con- pode perder o amor e atrair um castigo,
traditórios. que sua conduta e também sua experiên-
cia subjetiva, suas pulsões, desejos, in-
Sofrimento das origens tenções podem causar-lhe essa perda do
O sofrimento está certamente ligado amor e o castigo. A criança sabe que sua
aos acontecimentos e às situações que o exclusão ou promoção serão de sua
desencadeiam, mas, se ele é subjetivo e responsabilidade. Ela sabe também da
relativo, é porque ressuscita fragilidades destrutividade que carrega e se respon-
arcaicas. sabiliza efeitos fantasmáticos ou reais.
O sofrimento está aí, desde a origem Essa culpa sobrepuja os contragolpes de
da vida, e diante dele o humano encontra- seu próprio desejo e ancora um sofrimen-
se desarmado. Todo esforço de desenvol- to difuso sempre pronto a ressurgir ou
vimento será feito no sentido de transpor sempre presente.
e abafar essa vulnerabilidade primeira.
O princípio do prazer tem por rever- Sofrimento consciente, sofrimento
so tentar escapar ao sofrimento que, no inconsciente
início, é confuso, físico e psíquico, en- O sofrimento é ao mesmo tempo
dógeno e exógeno, experiência subjeti- consciente e inconsciente, a representa-
va e corporal sem distinção possível, ção dolorida ocupa, em geral, o campo
sofrimento decorrente da não-satisfação da consciência, mas um sofrimento
das necessidades, da perda do objeto, a desconhecido, ligado a incapacidades psí-
impotência de mantê-lo sob o controle quicas ou a maus tratos e a lapsos (bran-
inerente ao encontro da realidade e da cos do imaginário) na história subjetiva,
alteridade como obstáculos do desejo e não é necessariamente expresso como tal
do prazer. De acordo com Kaës “ [...] Tão pelo sujeito. Ele o ocupa, ele o captura
logo retomamos contato com a angústia desde o seu interior, diminui sua super-
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Sofrimento e morte ma de falar. O sofrimento é redobrado; o
O sofredor é excluído, abandonado, esquecimento por sua vez torna-se im-
“Por que você me abandonou?” Ele não possível, pois ele é impossível, diferen-
tem mais subjetividade apenas a violên- temente do que acontece em um
cia da infelicidade. Se ele tenta construir pesadelo, a expressão do que está além
representações de sua infelicidade, para da palavra. Embora sua escrita difícil,
além da constatação da devastação, es- “estudo sem paixão”, de sua obra basea-
sas só podem inscrever-se como arrepen- da na memória, tentativa de restituição
dimento do passado. O sujeito aguarda desde a base dos fatos, Primo Lévy
uma interrupção que, aos seus olhos, só (1958), tendo estado sujeito ao inomi-
pode ser a morte: “Deixem-me morrer! nável, acabou-se suicidando.
Que a morte me leve!” O sofrimento é
um morrer devagarinho; uma morte ex- Sofrimento e gozo
perimentada, sendo que a única esperan- Sofrimento e gozo podem transfor-
ça é que ela finalmente chegue. “Que a mar-se um no outro e também se com-
morte ponha um fim ao meu sofrimen- preender um ao outro. Podemos nos
to.” Tânatos, desejo de morte e de es- “comprazer na infelicidade”. Podemos
quecimento, é um recurso contra o que a encontrar um gozo narcísico na escolha
vida inflige. pela infelicidade (colocando em evidên-
Qualquer que seja o seu grau, o sofri- cia o sofrimento, bancando o mártir);
mento traz angústia, pânico, depressão, tira-se disso um benefício... secundário:
suspensão da alma, desmoronamento, ele exibir suas feridas, manter os outros ao
inaugura o medo difuso e violento que redor de seu sofrimento, culpá-los, in-
anuncia uma destruição, uma perda, uma teressá-los, fazê-los sofrer com você,
hemorragia narcísica em que o ego cor- tornar-se um “crucificado”, obter com-
re o risco de se dissolver. O sofrimento paixão. Pode-se transformar o sofrimento
apresenta a proximidade de uma ameaça em uma transferência de dor: sofrer pe-
mortal, real ou fantasmática. Se sofrer- los outros. O sofrimento torna-se reden-
mos em função do que nos escapa o sen- tor em um registro de culpa e de resgate:
tido e o controle, é mesmo, in fine, da o universo do pecado. O sofrimento tor-
morte que se trata, essa subtração de si na-se uma moeda de troca, de transação
mesmo. sagrada. “Oferecer seu sofrimento na
A Shoah, infelicidade absoluta, sofri- reparação de...” É a versão mística da
mento imposto sistematicamente com transferência, transferência de culpa,
objetivo de morte, aproximou novamen- gozo na confusão das dores, suas e dos
te a questão do sofrimento à questão do outros, confusão chamada Deus. A reli-
mal há tempos relacionadas pela religião, gião cristã aproxima de bom grado o sa-
mas, dessa vez, entendendo o mal como crifício e o gozo por meio da oferenda.
potencial inerente à natureza do homem Santa Teresa de Ávila descreve sua ex-
comum. É o que Hannah Arendt (1963) periência mística, a “transverberação”,
descreve como “a banalidade do mal”. efeito do amor de seu senhor, intolerá-
A Shoah foi um empreendimento de de- vel e suave, uma prova tanto quanto uma
sumanização do carrasco, assim como da graça.
vítima, por meio de um sistema que re- No erotismo, outra mística dos cor-
duz o homem ao sofrimento animal e pos, gozo e sofrimento estão emaranha-
que, por meio da reificação, despoja o dos ou trocados; o primeiro, muitas
carrasco de toda responsabilidade. À vezes, não se obtém sem o segundo. O
morte do pensamento corresponde o so- romantismo é uma cultura dos sofri-
frimento puro: impossibilidade da víti- mentos do coração (Os sofrimentos de
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de fazer os ‘outros’ participarem, adqui- de se explicar, de se representar, de sim-
riu em nós, tanto antes quanto depois da bolizar (sofrimento “indescritível, não
nossa liberação, a violência de um im- passível de ser traduzido, não dizível”,
pulso imediato, tão irresistível quanto as “os grandes sofrimentos são mudos”). O
outras necessidades elementares.” conflito torna-se crise, a discussão in-
O sofrimento nasce, para o sujeito, terior não tem saída, o sujeito sente-se
tanto da dificuldade de elaborar um sen- pesado, “a dor não pode ser comparti-
tido para a sua experiência (“Eu não sei lhada”.
mais em que ponto estou, eu não sei mais A queixa ou o sintoma seriam as mar-
o que me acontece, eu não sei mais o que cas de uma demanda não articulável, algo
eu quero.”), quanto da recusa de um ou- que tem dificuldade em se expressar, mas
tro em reconhecê-lo. Por meio de seu pro- que é dirigido ao outro. Essa queixa é
pósito, a proposição que ele faz de sua um pedido de sentido, de restaurar algo
unidade, que só pode acontecer se for que pode ser dito, a introdução novamen-
significativa, o sujeito coloca-se à prova te, no circuito da vida, das trocas, na coe-
do outro, ele pode ser reconhecido, en- rência que constitui cada um de nós em
tendido, como pode ser ou sentir-se re- nossa identidade, nosso vínculos. “O que
jeitado, não correspondido. tenho? O que me acontece? O que isto
O sentimento de ser compreendido quer dizer? Por que sou assim? Digam-
funda a confiança e a amizade, o prazer me, expliquem-me!” O pedido de alívio
de estar integrado. O amor é a crença na ou de ajuda passou o primeiro estágio
coincidência, o compartilhamento total do emplastro e pede explicação, compre-
do sentido tanto quanto dos sentidos. O ensão, devolução de sentido.
sofrimento vem ao se perceber, pouco a O trágico nos remetia à consciência
pouco, ou de forma abrupta, que o outro infeliz, a esse sofrimento existencial li-
“não vê as coisas do mesmo modo”, que gado à questão do ser no mundo, que á a
o que tinha sentido para um não tem para questão do sentido, o aparecimento da
o outro. O que, do outro, vem contradi- ausência de sentido: do absurdo. As re-
zer o sentido que o sujeito procura ela- ligiões, as ideologias são como esponjas
borar é uma forma de aniquilamento. de sofrimento face ao questionamento
“Eles não me compreendem, pior do que inquieto a respeito do sentido, elas tra-
isso, eles não querem me compreender” zem uma resposta: “Tem sentido, o sen-
equivalendo rapidamente a “eu não sou tido da história ou da vontade de Deus.”
nada para eles”. Se ele se voltar para o outro lado, o
O maior sofrimento vem dessa con- homem, face à necessidade de enfrentar
tradição, dessa recusa recebida como a morte, o outro, a perseguição das coi-
corte. Nessa perspectiva, o silêncio tor- sas, deve buscar um sentido ele mesmo,
na-se a única resposta possível ao sofri- elaborar seus valores, elaborar uma éti-
mento: o retraimento dos autistas, dos ca, sabendo que ele terá benefício ape-
idosos, das vítimas de traumatismos, bem nas em função de seu esforço, sem
como dos depressivos, encerra também qualquer garantia e com a certeza de re-
o sofrimento de não terem palavras a di- vés. Só existe sentido dado pelo homem
zer sobre si mesmos e de não terem uma e solução para o sofrimento no desafio.
escuta suficiente. De acordo com Camus (1942), Sisyphe
e Promethée oferecem a saída da digni-
Sofrimento e ausência de sentido dade e da revolta, conquista de si mesmo
O sofrimento é a perda de sentido, na consciência de sua finitude.
desordem das emoções, dos sintomas, a Os tóxicos calafetam o sofrimento
impossibilidade de colocar em palavras, reconstituindo uma unidade, embora não
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contram mais figuras fortes e estrutura- constante nas estruturas. Ch. Dejours
das, religiões e ideologias estão desacre- (1998) percebe uma retribuição simbó-
ditadas. Nesse contexto, a construção da lica ao lado da retribuição material,
identidade fica comprometida. Nas so- julgamento com uma dupla utilidade
ciedades modernas, apenas o sistema (econômica, social e técnica) e beleza (de
econômico é proposto como algo exter- acordo com as regras da arte e originali-
no que regula os vínculos sociais. O éti- dade). O reconhecimento garante o per-
co, o estético e o erótico são deixados para tencimento e a diferença necessária para
a elaboração de cada um. O que pode pa- a identidade. Sua ausência assinala uma
recer um imenso progresso enquanto li- morte social: sofrimento e exclusão.
berdade e responsabilidade permanece Em seu livro Souffrance en France,
inaccessível a muitos. Um sofrimento Dejours dedicou-se a analisar o que é o
cultural difuso, mas às vezes agudo, a dis- sofrimento no trabalho em condições
solução do ego, a angústia da identidade administrativas modernas: repressão, rei-
levando a novas patologias. Entendemos ficação, desumanização são exercidas
também a busca desesperada de refúgio por meio da tecnologia e da economia
ao abraçar propostas religiosas e étnicas que comanda as relações humanas, es-
de integração, que radicalizam a proble- vaziando-as de seu sentido. A tolerância
mática da identidade e fornecem de um à injustiça cresce, os novos métodos
modo extremista ou sectário um núcleo administrativos progressivamente reco-
firme de identificação. O mal localiza-se locam em pauta o direito ao trabalho e
no exterior, podemos atribuir-lhe nossa às aquisições sociais, uma verdadeira
raiva e agüentar um sofrimento, por sua guerra econômica esmaga o direito e a
vez impossível de ser expresso. subjetividade em prol de uma única uni-
dade que valha: a empresa.
Dimensão psicossocial Isso vem acompanhado de um retorno
Aquele que sofre se encontra na con- do sofrimento sobre si mesmo: “É por
fluência da subjetividade e da realidade meio da mediação do sofrimento no tra-
exterior, do individual e do social. O so- balho que se forma o consentimento a par-
frimento remete a uma invasão mútua, a ticipar do sistema [...] o sistema gera, em
um roubo de um pelo outro, a um confli- retorno, um sofrimento crescente [...] Ho-
to sem diálogo, é também ser esmagado, mens e mulheres levantam defesas [...] es-
sofrer o peso da infelicidade, da misé- tratégias de defesa [...] armadilha que
ria, da injustiça, da humilhação, da de- pode voltar-se sobre aqueles que, graças
sonra, dos anos, isto é, da incapacidade a elas, conseguem agüentar o sofrimento
e da rejeição, o que pode ser resumido sem se curvar [...] [elas] ajudam a fechar
por noções de exclusão e de solidão. os olhos.” Um imaginário de coragem e
A injustiça concentra o sofrimento virilidade, uma ideologia do realismo po-
social. É sofrer de falta de reconhecimen- lítico fazem das vítimas carcereiros de si
to, de exclusão, ser lesado em seus direi- mesmos e de outros, portanto que o aju-
tos, sua dignidade (em sua auto-estima), dem a suportar o sofrimento.
frustrado em suas necessidades vitais. O A racionalidade do mal desemboca
reconhecimento, bem como a injustiça, numa banalização do sofrimento pelo tra-
é uma noção psicossocial: necessidade balho.
vital do sujeito social, que permite estar
no olhar do outro, existindo, ao mesmo Sofrimento sociopolítico e sofrimento
tempo semelhante, admitido, e distinto, individual
recebido em sua singularidade. O não- O sofrimento pode passar de indivi-
reconhecimento é objeto de uma queixa dual a coletivo. O sofrimento social é ser
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e por muito tempo o sofrimento da partu- Hipótese básica: o sentido e
riente associado a uma herança de pecado a eficácia simbólica
original. “Tu terás teus filhos na dor” é uma O sujeito tem uma necessidade vital
fala inquestionável, definitiva. de uma unidade de identidade (coesão e
Portanto, o sofrimento como simples coerência), de se sentir ele mesmo em
sintoma, com valor se sinal, está simples- sua integridade e significação, como sin-
mente associado a uma desordem orgâni- gularidade operante e reconhecida. O
ca ou a um traumatismo moral, sofrimento provém do revés dessa pre-
interessando apenas no sentido de alertar tensão, seja em função de golpes recebi-
e orientar pesquisas. O vínculo, mesmo dos do exterior, seja da inaptidão e
que certo, permanece, freqüentemente, degradação interna, seja dos dois (ata-
obscuro. que dos outros, das coisas – humilhação,
O sujeito, que sofre em seu ser, sua violência, acidente, doença, luto – he-
identidade, seu porvir, que sofre tanto de morragia narcísica, autodesqualificação,
angústia e abandono quanto de dores fí- fraqueza do ego, impossibilidade de en-
sicas, foi por muito tempo excluído da frentar, de assumir, vindo de uma incer-
preocupação dos médicos. teza das identificações, mas também dos
Essa preocupação surgiu há um de- reveses repetidos ou provocados).
O sujeito funda-se no reconhecimen-
cênio e agora falamos de parto sem dor,
to de sua “mesmice” (é um semelhante)
de acompanhamento para os moribundos
e de sua singularidade (distinção, origi-
tanto quanto de cuidados paliativos; po-
nalidade), mas também em sua aptidão
demos ler publicações recentes que sali-
em retomar suas escolhas, seus atos, seus
entam o fato de que os bebês não são
pensamentos, seus projetos dentro de
simples pequenos que berram, mas tam-
uma intencionalidade e uma coerência.
bém sofrem. Ao aceitar a subjetividade
“Eu, o que eu quero, do que eu gosto, o
do doente (ao contrário da redução mé-
que eu fiz...” Mesmo os reveses ou as
dica que fala em leitos, órgãos, atos mais contradições, ele tenta explicá-los pela sua
voltados a designar a doença do que o evolução ou ambivalências que apenas lhe
doente), foi necessário encarar o sofri- pertencem, que ele assume como momen-
mento como uma expressão do mal-estar tos relacionados, propiciando sua rique-
do sujeito. Tratava-se de um apelo ende- za tanto quanto sua mobilidade. Se os
reçado ao outro, que precisava ser ouvi- reveses são devidos às circunstâncias, ele
do e escutado numa relação voltada a obtém a certeza da conservação de uma
ajudá-lo, a colocar em palavras sua infe- vontade intacta: a incoerência tendo vin-
licidade, palavras em suas angústias. Era do do exterior não revelaria nada dele.
recolocar o sujeito que sofre na relação, O sofrimento pode ser considerado
na continuidade de um discurso inaca- como uma perda do sentido ou da capa-
bado ou interrompido e, com certeza, cidade de elaborar relacionada a um rou-
devolver-lhe, dessa forma, a dor supor- bo ou uma submersão interna da pulsão.
tável, restaurando-lhe a palavra, envol- O tratamento do sofrimento vai ne-
vendo o sofrimento e reabsorvendo-o por cessariamente passar, para além de sua
meio do discurso, para além do efeito eliminação, graças aos meios técnicos,
anestesiante dos calmantes. por uma recolocação de sentido, resti-
Os cuidados paliativos, ao mesmo tuição de coerência, reinscrição numa
tempo, procuram a dose suficiente, o cadeia de linguagem que substitui sua
patamar, de morfina a ser administrada dinâmica ao caos da experiência.
e instauram novamente a relação. O so- No capítulo de Antropologia estrutu-
frimento pode ser elaborado. ral, Lévi-Strauss, analisando o processo
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mas pretendendo ligar os registros que força. Uma adequação encontrada res-
justamente o cliente clivou, conscientes, tabelece o equilíbrio, a harmonia e pro-
inconscientes, corporal, espiritual. A re- cura acalmar, até mesmo eliminar, o
tomada de responsabilidade, a liberda- sofrimento.
de, consiste em escolher, assumir esses Existem diversas categorias por de-
registros em suas contradições e nos jul- trás dessa concepção comum:
gamentos que o sujeito poderia ter a res- • A categoria que remete às ciências pa-
peito. Trazendo-os em seu campo de ralelas. As entidades são identificadas
inteligibilidade, e de escolha, o sujeito como energias, fluxo vital, por meio dos
poderá maneja-los, elaborar e operar quais o sujeito seria colocado fora do
transformações, correspondendo a mu- circuito. Práticas remetendo ao espíri-
danças do modo de sofrimento. Trata-se to e ao corpo trazem o indivíduo para o
de um outro nível de sentido, que eu di- circuito harmonioso. Entende-se o sen-
ria intencional, investido afetivamente, tido como uma dinâmica vital na qual
cujo sujeito atribui o enunciado a si mes- o sujeito se recoloca. Mesmo que ele
mo (“Eu sou isto, eu quis ou não quis tenha um sistema de representações
isto”). articulado em torno das energias, o
As psicoterapias de inspiração psica- sentido não remete a um sujeito que
nalítica e derivadas da psicanálise su- enuncia. Bioenergética, yoga, práticas
põem, em geral, que o sujeito é a chave chinesas...
do sentido, o fato, ou pode recuperá-lo • A escorregada em direção ao paranor-
em seu nome próprio. mal. Uma outra categoria é representa-
Mais tarde, nosso paciente buscará da pelas vidências, baseadas na
outros recursos, práticas em princípio cartomancia, numerologia, astrologia,
não congruentes com o seu meio, mas quiromancia... As entidades são de or-
solicitadas em desespero de causa (“nun- dem diversa (números, constelações...),
ca se sabe”), correspondendo, portanto, mas têm inscrito e determinam em uma
a sistemas tradicionais até mesmo arcai- ordem, a priori, oculta o destino do su-
cos de representações, mais ou menos jeito. Os videntes ou iniciados podem
abandonados, ou que ressurgiram, ou que esclarecer-lhe, “ler” o que, dele, está
sobreviveram em meio a uma certa clan- “escrito”, com, às vezes, algumas pos-
destinidade. sibilidades de manobra e espaço de
Mesmo sendo necessário distinguir movimentação quanto às escolhas, ofe-
varias categorias, essas práticas têm pri- recendo sempre, pelo menos, o benefí-
meiro por princípio comum atar de novo cio se saber. No mais freqüente, esse
o sentido, não ao sujeito, mas a entida- recurso tem eficácia, tem algum efeito,
des sobrenaturais, esotéricas, místicas deixando entrever uma possibilidade de
cujo acesso necessita de uma iniciação e saída em condições de condutas propi-
a mediação de iniciados. ciadoras. Encontramos até a idéia de
O pressuposto comum é que o pacien- destino, prescrição sobrenatural, de re-
te interferiu de modo contraditório ou gistro parafísico ou paranormal, que
transgrediu, ou ainda foi capturado em guardaria o código e o texto no qual se
encadeamentos significantes que ele pode entender o sentido do sofrimento.
ignorou, voluntariamente ou não, ou que • Uma outra categoria (mas chamemos a
o transcendem. atenção para o fato de que as categorias
As práticas vão revelar-lhe, mais ou não são estanques, existem influências
menos claramente, e ele poderá, se não e sobreposições constantes entre umas
agir, pelo menos, colocar-se de acordo, e outras): o religioso, a busca das reli-
restituir-se em relação a suas linhas de giões que oferecem um sentido espiri-
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social, revolta, portanto, a sustentar, se Vimos que existem múltiplas formas
não favorecer. Essa proposição procura de permitir, propor ou impor sentidos.
dar sentido ao sofrimento e permitir sua Esse último é procurado aqui ou acolá
superação por meio da suspensão de uma (no prórpio inconsciente do sujeito, nos
repressão na qual o sujeito tornar-se-ia astros, nos espíritos, na revolução, por
o objeto. meio de instituições ou fora delas). A
À intersecção do político e da psica- cultura, os costumes, a sociedade, as ten-
nálise, podemos nos ater a propostas da dências individuais favorecem uma tal
psicoterapia institucional que ganhou prática em vez de outra, em um dado
força na França depois da guerra, ainda momento. Essas práticas diferenciam-
aqui, sob uma dupla influência lacania- se essencialmente por sua capacidade
na e marxista. O sofrimento, em forma de enunciação concedida ao sujeito (de
de psicose, seria o efeito de uma exclu- criar seu sentido ou de recebê-lo de ou-
são da ordem simbólica, da prática da tro lugar).
linguagem entendida como capacidade De acordo com as culturas, os mo-
de articular os significantes entre si e mentos da história, os meios, alguns re-
com os outros. A instituição como arran- cursos são admitidos, outros não. Alguns
jo possível de elementos estruturantes são vergonhosos e clandestinos, outros
(locais, momentos, funções, instrumen- acompanham a moda e os costumes. O
tos...) é um equivalente da linguagem. Ela sentido pode ser imposto, construído,
deve ser colocada à disposição daquele emprestado, sugerido... Isso já nos reme-
que sofre para que ele a use, por meio de teu ao texto de Lévi-Strauss a respeito
seu “balbucio institucional”, e acabe fa- da eficácia simbólica. O que falta a essa
lando o que permanece escondido, não proposta, segundo a qual as estruturas
aproveitado, em si mesmo, por falta de teriam ressonância uma sobre as outras
acesso, e que afeta a ponto de levar ao nos diferentes estágios do viver, é uma
sofrimento e à loucura. Trata-se menos eficácia imaginária, as capacidades de
de um sentido antecipado do que de uma transmissões metafóricas. A estrutura
estrutura de linguagem aberta por meio não é suficiente, são necessários efeitos
da qual o doente é estimulado, levado a no plano das representações, imagens
reconstruir uma fala, significar-se. que comunicam, que substituem as car-
Não há escala de valores nessas cate- gas emocionais e afetivas. Não se trata
gorias e, mais uma vez, devemos enten- de um significado apenas estrutural ou
der que elas estão freqüentemente simbólico ou mesmo imaginário, mas
sobrepostas sem que as fronteiras entre igualmente de um investimento emocio-
elas sejam bem nítidas. nal e afetivo.
O sofrimento também é um excesso
Retomando a eficácia: do simbólico emocional que acompanha uma inter-
à relação rupção do sentido ou uma representação
O que pretendi sublinhar até aqui, é difícil de se entender. Qualquer que seja
que o sofrimento é uma falta de senti- o recurso a que recorremos ou a que nos
do, uma ruptura do sentido que o sujei- direcionamos, ele tem a função de rear-
to tende a criar para certificar-se de uma ticular.
coerência de identidade. O sofrimento A reinscrição em um contexto signi-
aparece como efeito de uma ruptura na ficativo permite assimilar novamente o
cadeia significante, ou perda de um signi- sofrimento e mesmo destituí-lo, devol-
ficante. Os recursos e tratamentos con- vendo os investimentos que ele drenou
sistem em reencontrar ou reatar uma ao serviço de uma dinâmica viva e coe-
cadeia significante (sentido). rente. O sujeito recupera-se mais ou
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