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AS RELAÇÕES ENTRE OS
PODERES
VI FÓRUM DE GRUPOS DE
PESQUISA EM DIREITO
CONSTITUCIONAL E TEORIA DO
DIREITO
ORGANIZADORES
José Ribas Vieira
Margarida Maria Lacombe Camargo
Vanice Regina Lírio do Valle
Carina Barbosa Gouvêa
Fabiana de Almeida Maia Santos
Siddharta Legale
2016
Conselho Editorial Conselho Científico
Antonio Celso Alves Pereira Adriano Moura da Fonseca Pinto
Antônio Pereira Gaio Júnior Alexandre de Castro Catharina
Cleyson de Moraes Mello Bruno Amaro Lacerda
Germana Parente Neiva Belchior (FA7) – Ceará Carlos Eduardo Japiassú
Guilherme Sandoval Góes Claudia Ribeiro Pereira Nunes
Gustavo Silveira Siqueira Célia Barbosa Abreu
João Eduardo de Alves Pereira Daniel Nunes Pereira
José Maria Pinheiro Madeira Elena de Carvalho Gomes
Martha Asunción Enriquez Prado (UEL) – Paraná Jorge Bercholc
Maurício Jorge Pereira da Mota Leonardo Rabelo
Nuria Belloso Martín Marcelo Pereira Almeida
Rafael Mário Iorio Filho Nuno Manuel Morgadinho dos Santos Coelho
Ricardo Lodi Ribeiro Sebastião Trogo
Sidney Guerra Theresa Calvet de Magalhães
Valfredo de Andrade Aguiar Filho (UFPB) – Paraíba Thiago Jordace
Vanderlei Martins
Vânia Siciliano Aieta
ORGANIZAÇÃO
ATENÇÃO
Todos os direitos desta edição estão reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida por
qualquer processo eletrônico ou mecânico, fotocopiada ou gravada sem autorização expressos do autor.
Edição: Freitas Bastos Editora
Capa e produção do ebook: Jair Domingos de Sousa
Fórum de Grupos de Pesquisa em Direito Constitucional e Teoria do Direito (6:2015, Rio de Janeiro, RJ)
Diálogos Constitucionais e as Relações entre os Poderes/ José Ribas Vieira, Margarida Maria Lacombe
Camargo, Vanice Regina Lírio do Valle, Carina Barbosa Gouvêa, Fabiana de Almeida Maia Santos e
Siddharta Legale. (organizadores). – Rio de Janeiro (RJ): Freitas Bastos Editora, 2016.
Xp.
ISBN 978-85-7987-269-3
1. Direito Constitucional. I. Vieira, José Ribas. II. Camargo, Margarida Maria Lacombe. III. Valle,
Vanice Regina Lírio do. IV. Gouvêa, Carina Barbosa. V. Santos, Fabiana de Almeida Maia.VI. Legale,
Siddharta. VII. Título.
CDU X
LISTA DE AUTORES
PESQUISA EMPÍRICA NO DIREITO1 2
Marcelo Tadeu Baumann Burgos3
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Carlos Bolonha6
Henrique Rangel7
Igor de Lazari8
Wanny Fernandes9
Gustavo Costa10
RESUMO
O presente artigo parte de um dos problemas recorrentes no direito constitucional brasileiro: a referência a
categorias genéricas e abstratas, como “ordem constitucional” sem o necessário embasamento teórico.
Um paradigma sistêmico permite análises em objetos de elevado nível de agregação e, por isso,
investigam-se as propostas da denominada teoria geral dos sistemas. Neste fórum transdisciplinar,
destacam-se o reducionismo, o holismo e, mais recentemente, a teoria dos sistemas complexos.
Sustentando que a ordem constitucional deva ser observada enquanto sistema, o objetivo do presente
trabalho é demonstrar como a vertente complexa representa o paradigma mais apropriado para embasar
tais análises.
PALAVRAS-CHAVE
Desenhos Constitucionais; sistema constitucional; sistemas complexos.
ABSTRACT
This article starts from a current problem in the Brazilian constitutional law: the reference to general and
abstract categories, such as “constitutional order” without the necessary theoretical background. A
systemic paradigm allows research on objects within a high level of aggregation. Thus, we investigate
proposals in the general systems theory. In this interdisciplinary forum, reductionism, holism, and more
recently, the theory of complex systems stand out. Supporting the hypothesis that the constitutional order
should be observed as a system, our objective is to demonstrate how the theory of complex systems is the
most appropriate scientific paradigm to support such analyzes.
KEYWORDS
Constitutional Design; constitutional system; complex systems.
INTRODUÇÃO
A ordem constitucional democrática parece se revestir de um caráter
dinâmico na atividade mantida pelas instituições e pelos indivíduos que atuam
neste cenário. Muitos estudos e pesquisas em direito constitucional,
especialmente no meio acadêmico brasileiro, desconsideram este caráter
dinâmico existente, capaz de associar particularidades da Constituição ou de
outras instituições singularmente analisadas a propriedades que podem ser
extraídas somente de elementos externos a tais objetos científicos. Em outras
palavras, estudos específicos são utilizados como base para extrair conclusões
abrangentes, dirigidas a objetos como a “ordem constitucional”. Desse modo,
quando o objeto das pesquisas, considerado de modo genérico, é a “ordem
constitucional”, um comum – mas também grave – problema costuma se
apresentar: a desconsideração do caráter dinâmico da ordem constitucional.
Este problema observado na pesquisa em direito constitucional, e
particularmente em seu correspondente brasileiro, tem natureza eminentemente
científica e, evidentemente, pode refletir nos resultados e nas conclusões
supostamente obtidas. Considerando esta questão, a hipótese sustentada pelo
presente trabalho é a seguinte: existe caráter dinâmico na ordem constitucional
porque este deve ser apreciado enquanto um sistema.
O sistema constitucional seria, genericamente, um objeto científico em que
a Constituição e as instituições que desempenham funções constitucionais
estão interconectadas. O problema apontado, pois, é a não observância de um
caráter sistêmico ao redor da ordem constitucional. Para que uma pesquisa
aprecie a ordem constitucional enquanto um sistema constitucional, no entanto,
é preciso adotar um paradigma científico que ofereça recursos a uma análise
de natureza sistêmica. Sem o necessário embasamento científico, as pesquisas
em direito constitucional podem conduzir suas análises a resultados e a
conclusões falaciosos ou, ao menos, pouco compatíveis com a presente
realidade institucional.
Um referencial científico necessário para empreender uma análise
sistêmica pode ser encontrado na chamada teoria geral dos sistemas11. Trata-
se, basicamente, de um fórum científico transdisciplinar que não encontra
barreiras entre áreas do conhecimento. Por suas perspectivas concorrentes
servirem de paradigma genérico para distintas áreas e disciplinas do
conhecimento, há autores que entendem ser este campo de discussões o
“esqueleto da ciência” (BOULDING, 1956). As principais teorias sistêmicas
oferecidas por esta teoria geral são (i) o reducionismo, (ii) o holismo e (iii) a
teoria dos sistemas complexos. Estes três paradigmas científicos, apesar de
convergirem enquanto teorias sistêmicas, possuem perspectivas muito distintas
e podem ser avaliados a partir de três critérios que se observarão ao longo do
presente trabalho. Em síntese, cada paradigma sistêmico será apreciado a
partir de três referenciais mais restritos: (i) o ontológico; (ii) o
epistemológico; e (iii) o metodológico.
Estes três referenciais mais restritos, quando associados, reproduzem um
paradigma científico da teoria sistêmica, permitindo uma diferenciação mais
clara e precisa dos referenciais reducionista, holista e complexista. Na
verdade, tais referenciais recebem grandes contribuições de diversas áreas do
conhecimento, sobretudo da filosofia da ciência. Também nas disciplinas
jurídicas e políticas termos como ontologia, epistemologia e metodologia
receberão acepções controversas e díspares, mas é possível assumir algumas
definições estritamente para os propósitos da presente pesquisa. O referencial
ontológico está diretamente relacionado ao objeto científico. Os referenciais
ontológicos serão diversos nos paradigmas científicos concorrentes à medida
que houver diferentes regras definindo quais objetos científicos podem ou
devem ser adotados para o sucesso de determinada pesquisa. Este primeiro
referencial não determina, diretamente, qual objeto pode ou deve ser adotado,
mas firma parâmetros genéricos para que as pesquisas encontrem, em suas
especificidades, aqueles objetos que podem ou devem ser adotados. O
referencial epistemológico, por sua vez, associa-se ao conhecimento daquele
objeto científico adotado. Neste particular ponto-de-vista, conhecimento do
objeto, dependendo da área ou da disciplina do conhecimento, o que será
determinado pelo referencial epistemológico são as leis, as regras ou os
princípios que regem o funcionamento, o comportamento e as características
daquele objeto. Este segundo referencial não identifica, diretamente, as leis, as
regras ou os princípios determinantes àquele objeto. Ao contrário, instrui
como alcançar corretamente leis, regras ou princípios necessários ao estudo
daquele objeto. O referencial metodológico, por fim, guarda conexão com os
instrumentos hábeis a analisar aquele objeto segundo suas diretrizes
epistemológicas. Da mesma maneira, este terceiro referencial não
estabelecerá, diretamente, que instrumentos e métodos são adequados para
avaliar o objeto científico eleito, mas estabelece parâmetros gerais para que
tais instrumentos e métodos sejam selecionados. Em regra, a forma com que o
referencial epistemológico se define é de central relevância para firmar o
referencial metodológico, ao mesmo tempo em que o ontológico será
determinante para ambos.
Através de tais considerações, o objetivo geral do presente trabalho é
esclarecer como a pesquisa em direito constitucional deve partir de um
paradigma sistêmico e, mais especificamente, que o paradigma científico dos
sistemas complexos se apresenta como o mais apropriado para empreender
esta análise.
1 CIÊNCIAS SISTÊMICAS
Uma maneira muito tradicional e reconhecida de desenvolver pesquisas
científicas, em geral, é partir de referenciais usualmente reputados como
sistêmicos. Atualmente, a comunidade científica tem aprofundado um debate
conhecido como a teoria dos sistemas e este tem recebido contribuições de
autores afiliados a diversas áreas do conhecimento. A teoria dos sistemas tem
servido de base para disciplinas como a ciência da computação, a biologia, a
química e ciências médicas da saúde em geral, também observando intensos
estímulos para trabalhos na matemática, administração, farmacêutica e em
ciências sociais, política e econômica. O direito, particularmente, apresentou-
se alheio a tais discussões até o início do século XX e este referencial
costumava ser visto de modo pontual e superficial.
O desenvolvimento e a execução de pesquisas científicas avaliadas como
sistêmicas – ou mesmo que se intitulam como tal – podem carregar um sério
problema de natureza terminológica: a indefinição. A simples afirmativa desse
suposto caráter sistêmico não é suficientemente precisa e requer certo
esclarecimento quanto à definição de sistema que se pretende adotar. A
explicação para esse problema deriva das divergências que a própria teoria
dos sistemas apresenta internamente. Não há consenso acerca de seu
significado, nem mesmo acerca das implicações científicas de sua definição.
O que pode ser declarado, com maior rigor e segurança, é que o debate sobre
as teorias sistêmicas permitiu a concepção de três referenciais de essencial
importância para o progresso da ciência: (i) o reducionismo, também
conhecido como individualismo, (ii) o holismo, e (iii) a teoria dos sistemas
complexos12. A importância destas três teorias sistêmicas que têm se
aprimorado ao longo de décadas permite considerá-las verdadeiros
paradigmas científicos, cada qual com suas contribuições históricas, mas
oferecendo formas de pensamento, ferramentas de investigação e expectativas
que devem ser cuidadosamente dissociadas.
Para demonstrar o problema terminológico da teoria dos sistemas, basta
tentar responder ao seguinte questionamento: como é possível compreender um
sistema? Em princípio, parece ser este questionamento muito simples e
ingênuo, mas é necessário considerar que uma resposta adequada deveria
oferecer dados acerca de sua composição, dos aspectos que regem seu
funcionamento e de que métodos podem ser sobre ele empregados. Este
questionamento, na verdade, parece ser o mais desafiador e problemático que
se impõe perante a teoria dos sistemas. A dificuldade em lhe apresentar
respostas adequadas ilustra como o termo sistema pode ser entendido a partir
de referenciais distintos.
Para esclarecer o problema terminológico que enfrenta a teoria dos
sistemas, é possível alocar seus três principais paradigmas científicos de
modo concorrente. Em outras palavras, é possível simular três padrões de
resposta para o questionamento “como compreender um sistema”. Cada
padrão seria, provavelmente, adotado por um reducionista, por um holista e
por um complexista respectivamente.
1.1 Reducionismo
Perguntando-se para um cientista reducionista “o que é um sistema”, a
resposta mais provável que se obteria é a seguinte: “um sistema não é nada,
senão a soma de suas partes”. Esta resposta implica diretamente na forma
como o reducionismo prescreve “como é possível compreender um sistema”:
por meio da redução. O reducionismo é caracterizado por enfrentar complexos
e densos problemas pela estratégia denominada divide and conquer13.
Grandes questões poderiam ser reduzidas em unidades mais simples como
forma de combatê-lo. Muitas áreas do conhecimento foram profundamente
estruturadas a partir da premissa reducionista, especialmente aquelas ciências
associadas à saúde, como a medicina14.
Em sua origem, a ciência reducionista comparava sistema a uma máquina15.
Bastaria, assim, conhecer a função de cada peça para entender o
funcionamento daquele sistema. Posteriormente, a visão reducionista passou
também a provocar cientistas para uma discriminação hierárquica entre
determinadas subáreas do conhecimento, especialmente no plano das ciências
da natureza. O fato de o reducionismo ter sido concebido há séculos e, desde
então, difundido exaustivamente na ciência pode ensejar dúvidas acerca de
uma única e fidedigna definição – quanto ao próprio reducionismo. Essa
dificuldade pode ser superada considerando-se uma das passagens
representantes desse paradigma sistêmico mais características – e também uma
das mais duramente criticadas. Trata-se da proposta classificatória de Victor
Weisskopf, “na ausência de uma terminologia mais adequada” entre ciências
intensivas e extensivas: “intensive research goes for the fundamental laws,
extensive goes for the explanation of phenomena in terms of known
fundamental laws.”16 Reduzindo-se o máximo possível, poucas ciências seriam
dignas do título “intensivo” – como a astrofísica, a física nuclear, a lógica e a
matemática –, oferecendo leis fundamentais que serviriam para uma
“reconstrução do universo” por parte das ciências reputadas como
extensivas17.
Tendo em vista esse particular posicionamento no plano sistêmico,
compreender um sistema sob a ótica reducionista se resume a conhecer suas
partes, seus componentes. Enfim, para o reducionismo, sistema se limita à
soma de suas partes, seu funcionamento é a exata reprodução das funções
exercidas por tais componentes e os métodos de investigação que podem ser
empregados para entendê-lo são, unicamente, os empregáveis para analisar
suas partes.
1.2 Holismo
Perguntando-se para um cientista holista “o que é um sistema”, o mais
provável é que se obtenha uma resposta com conteúdo de negação: “um
sistema não se confunde com suas partes”. Esta resposta, da mesma forma que
a compreensão reducionista, implica diretamente na visão de “como é
possível compreender um sistema”: pelo sistema, autonomamente. Para o
holismo, o sistema tende a transcender suas partes e pode ser adotado como
objeto de análises por si só. Não se parte dos componentes para entendê-lo.
Simplesmente, o sistema é um objeto em si mesmo, dispensando divisões e
comparações com suas partes. Certos argumentos holistas podem partir de uma
perspectiva personificada e induzir ao pensamento de que um sistema pratica
atos ou possui intenções.
Muitos autores que estudam formas coletivas de organização humana se
envolvem com este paradigma científico. Para o holismo, fenômenos de
natureza sistêmica partiriam de entidades abstratas e fictícias. Assim, estes
fenômenos não vislumbram uma causa relacionada a seus componentes –
geralmente, indivíduos. Embora haja perspectivas holistas que admitem uma
relação reflexiva entre componentes e sistema, o tradicional modelo científico
holista trabalha com fenômenos e comandos que partem do todo para as
partes18. Assim como no caso do reducionismo, existem diversos autores que
partem das premissas de que o sistema somente pode ser compreendido por si
mesmo.
Há algumas proposições, contudo, cujo caráter holista pode ser mais
facilmente reconhecido. Quando Emile Durkheim estabelece as regras de seu
método sociológico, especificamente na defesa da externalidade como um de
seus elementos, há um clássico modelo holista de raciocínio. No momento em
que Durkheim sustenta que “(…) the states of the collective consciousness are
of a different nature from the states of the individual consciousness; they are
representations of another kind”, a concepção de sistema ganha autonomia
ontológica de seus componentes (DURKHEIM, 1982, p. 40). De modo similar,
quando defende que “[t]he mentality of groups is not that of individuals: it has
its own laws”, a concepção de sistemas passa a atender a regras distintas e
próprias de funcionamento (DURKHEIM, 1982, p. 40).
Tal compreensão de sistema não parece ser muito distante da teoria dos
sistemas sociais de Niklas Luhmann19. O sistema social, para este teórico,
“produz e reproduz seus próprios elementos pela interação de seus
elementos”. Esta ideia denominada “autopoieses” permite compreender como
Luhmann entende os elementos a partir do sistema – não o contrário – e como
seu funcionamento parece não exigir a participação de seus componentes –
exceto que sob o comando produtivo e reprodutivo do próprio sistema20.
Ao contrário do paradigma reducionista, compreender um sistema sob a
ótica holista requer conhecer o todo enquanto objeto autônomo e orientador
dos fenômenos observados no interior de sua dinâmica. Em síntese, para o
holismo, sistema, como um todo, não se confunde com as partes, seu
funcionamento não depende, ao menos em grandes proporções, das ações
oriundas de seus componentes e os métodos de investigação idôneos para
compreendê-lo recaem diretamente sobre a essência do sistema em termos
universais, desconsiderando a influência de suas partes.
1.3 A Teoria dos Sistemas Complexos
Após dirigir a mesma pergunta a um cientista adepto à teoria dos sistemas
complexos – “o que é um sistema” –, entre as principais respostas que se
podem aguardar, nenhuma é tão provável como a seguinte: “o todo é mais do
que a soma de suas partes”. Essa assertiva tão recorrente entre os autores
afiliados ao paradigma complexo conduz diretamente a uma resposta ao
questionamento “como compreender um sistema”: um sistema somente pode
ser entendido a partir de seus componentes e das interações mantidas entre
eles. Segundo a teoria complexa dos sistemas, o todo não seria responsável
por determinar as atividades e funções presentes em seu interior. Da mesma
maneira, a análise limitada de suas partes isoladamente não é capaz ilustrá-lo
por completo. Holismo e reducionismo representam paradigmas, na ciência e
na teoria sistêmica, antagônicos e que, para fins unicamente didáticos, seriam
intermediados pela perspectiva complexa.
Com isso, o sistema se torna mais do que a soma de seus componentes
porque as diferentes formas de interação desses elementos devem ser
consideradas. De um lado, para a teoria complexa, a estratégica de divide and
conquer, em razão de o problema ser reduzido a unidades, impede que a
interação entre elas seja analisada e tais interações sejam responsáveis por
qualificar tal agregação em um sistema. De outro lado, só é possível adotar um
sistema como objeto científico a partir dos elementos que o constituem e das
interações que o caracterizam. O sistema é o resultado, não o início das
análises.
Uma análise sistêmica e complexa requer a aplicação de variáveis idôneas
acerca da dinâmica existente entre as partes que compõem o todo. Por isso, o
primeiro desafio em uma análise complexa é reconhecer o correto nível de
agregação para abordar determinado objeto científico. Reduzir às unidades,
por um lado, impede a verificação de como aquelas unidades são capazes de
se relacionar e o que pode resultar desta interação. A excessiva abstração, por
outro lado, resulta na adoção de um objeto cujos fenômenos e propriedades
têm causa, origens e explicações indeterminadas e desconhecidas. Por não
admitir a análise daqueles objetos capazes de se agregar e firmar uma
dinâmica propriamente sistêmica, o holismo oferece razões frequentemente
obscuras e ocultas ao sustentar a obediência a “suas próprias leis” ou mesmo a
produção e a reprodução de seus elementos de modo autopoiético.
O segundo desafio da perspectiva complexa é admitir seu caráter
contraintuitivo. Em muitos momentos, situações emergem no interior de um
sistema sem que possam ser diretamente extraídas das partes que o compõe.
Do mesmo modo, tais situações podem também não ser esperadas ou
antevistas, assim como ser de difícil cognição por não se associar a um
componente especificamente. A origem dos fenômenos e das propriedades que
emergem em um sistema não terá seu esclarecimento pelo todo sob uma ótica
holista. A explicação precisa destas questões será encontrada de acordo com
as relações mantidas entre os elementos do sistema.
Em paralelo aos dois paradigmas já apreciados anteriormente, a
alternativa complexa de sistemas exige a avaliação dos componentes que se
agregam e se relacionam; possui uma dinâmica é própria, mas associada a
seus componentes e ao resultado de suas interações; além de métodos que
podem ser empregados contra as partes sob uma postura dialógica e não
isolada.
1.4 A Escolha de um Paradigma Sistêmico
Diante da dificuldade terminológica observada na teoria dos sistemas, uma
pesquisa que pretenda partir deste enfoque precisa se posicionar claramente
em relação a um dos paradigmas científicos desenvolvidos no interior de seus
debates. Para os propósitos da presente pesquisa, o paradigma complexo de
sistemas parece ser o mais apropriado, embora não dispense a necessidades
de justificativas para tal posicionamento.
Ambas as correntes reducionista e holista possuem o mérito no meio
acadêmico de suscitar paradigmas científicos que partem de análises
sistêmicas, mas não se eximem de problemas estruturais. O histórico dos
debates na teoria geral dos sistemas ficou marcado pelo surgimento de críticas
severas a estes dois paradigmas, de modo a contribuir para a elaboração de
um terceiro, mais recente, que se difundiu como teoria dos sistemas
complexos. Cada área do conhecimento identificou problemas naqueles
paradigmas e apresentou suas críticas e considerações que, em muitos
momentos, poderiam ser estendidos a uma discussão científica mais genérica.
Para a presente pesquisa, em especial, os pontos centrais do reducionismo e
do holismo estão, de alguma maneira, associados a um problema mais
abrangente de cada um.
O problema central do reducionismo, de um lado, parece ser a
pressuposição de uma perfeita simetria no sistema. O pensamento reducionista
parte do pressuposto de que análises puras e simples das menores unidades do
sistema permitiriam solucionar problemas de maior complexidade. A
estratégia do divide and conquer, inclusive, retrata este pressuposto
científico. Há, no entanto, uma grave falha neste pressuposto, uma vez que
apreciar as unidades isoladamente impede a identificação de questões que
podem emergir da interação mantida entre as partes de um sistema. O
argumento mais poderoso contrário ao reducionismo, no plano científico, é a
existência de propriedades emergentes no sistema, que, embora não possam
ser inferidas das partes singularmente, surgem da interação desenvolvida entre
os componentes agregados. O surgimento de propriedades emergentes em um
sistema é uma grande evidência de que não há uma necessária simetria entre as
partes e o todo. Um importante resultado de tal problema é a compreensão
incompleta do sistema, induzindo ao pensamento de que este se resume à soma
de suas partes. Este problema central do reducionismo, particularmente, foi
enfrentado com rigor e profundidade pelo teórico do direito Adrian Vermeule,
com uma nítida preocupação de aproximar tal discussão das ciências sociais,
política e jurídica (VERMEULE, 2011).
O problema central do holismo, por outro lado, parece ser a
pressuposição de que o sistema é autossuficiente. O pensamento holista parte
do pressuposto de que o sistema possuem leis próprias que não se comunicam
com as partes que o compõem. A falha do pressuposto holista é que observar o
sistema por ele próprio descarta a possibilidade de seus componentes se
relacionarem entre si e, com isso, refletir significativamente no agregado como
um todo. Embora haja menor debate entre complexistas e holistas no plano
científico, talvez o argumento mais severo que possa ser dispensado contra
este último paradigma é que nem todos os fenômenos e as propriedades
identificadas e atribuídas ao sistema, de fato, com ele se relacionam. As partes
desconsideradas da análise holista possuem propriedades e fenômenos
específicos e a interação por elas mantida também permite a emergência de
outros. Ao contrário do reducionismo, a dificuldade holista não é a
identificação de propriedades e fenômenos que emergem da interação dos
componentes do sistema. A dificuldade decorrente do pressuposto da
autossuficiência holista parece estar mais relacionada à explicação da
emergência e a discriminação entre o que emerge e o que se extrai diretamente
das partes de um sistema. Essa dificuldade implica em um resultado
expressivo, qual seja, a recorrente criação de ficções sociais, políticas ou
jurídicas, caracterizadas pela concepção de entes abstratos e personificados
bem como de argumentos falaciosos que descrevem o sistema como a causa e
culpado por todas as ocorrências. Quando propriedades e fenômenos
emergentes são identificados sob a perspectiva holista, a dificuldade em lhe
conferir explicações, pois estruturadas sobre o pressuposto da
autossuficiência, pode ser ilustrada por conceitos como a autopoiesis.
Uma dos referenciais mais inovadores, na ciência em geral, e responsável
por estimular o contínuo processo de construção da teoria dos sistemas
complexos representou uma crítica direta ao reducionismo. Sob o argumento
de que “mais é diferente”, Philip Warren Anderson promoveu um novo
conceito que, dentro do recorte científico dos sistemas complexos, ficou
conhecido como a quebra da simetria21. A quebra da simetria pode ser
compreendida, na ciência, como a possibilidade de cada nível de agregação
ter suas próprias leis fundamentais. Havia o pensamento de que as regras
aplicáveis às partes do sistema isoladamente também se aplicariam,
necessariamente, ao resultado de sua agregação – e a cada nível de agregação,
tais regras seriam mantidas como verdade. Anderson foi um dos pensadores
mais influentes em contra argumentar esta posição, sustentando que, a cada
nível de agregação possível, novas regras poderiam emergir como resultado
da agregação22. A partir da quebra da simetria estabelecida por Anderson,
tornou-se mais claro porque um sistema não se resume à soma de suas partes23.
O terceiro paradigma científico observado na teoria geral dos sistemas
parece ser o mais apropriado por superar um problema de identificação que
assola o reducionismo e outro concernente à atribuição de origens mais
precisas, característica do holismo. O diferencial da teoria dos sistemas
complexos é admitir que uma análise sistêmica deve considerar desde os
componentes até o agregado, sobretudo destacando a interação entre os
elementos, pois seriam capazes de provocar a emergência de propriedades e
fenômenos que, em princípio, não podem ser extraídos de suas partes
isoladamente, nem mesmo ser atribuídos precisamente ao sistema como um
todo. Em síntese, os problemas aqui tratados como centrais em cada um dos
paradigmas sistêmicos se comunicam pelo fato de não adotar a interação entre
componentes como objeto científico, não assumindo, portanto, uma postura
dialógica de análise.
CONCLUSÃO
Analisar a ordem constitucional torna-se, cada vez mais, uma necessidade
em democracias constitucionais. Esta tarefa, no entanto, não parece ser
perfeitamente viável se a ordem constitucional não for compreendida enquanto
um sistema. A ordem constitucional, de um lado, pressupõe a existência,
prevista formal e materialmente na Constituição, de instituições coordenadas e
interagindo entre si para sua formação. As instituições que fazem parte deste
sistema, de outro lado, também se caracterizam pela interação de componentes
próprios, quais sejam, os indivíduos incumbidos de prerrogativas e
atribuições públicas. Em ambos os casos, há agregação e, no particular caso
da ordem constitucional, esta se observa em um duplo nível. O duplo nível de
agregações, que representa o sistema constitucional, portanto, somente
assevera a necessidade de se adotar um paradigma sistêmico.
Assim, analisar a ordem constitucional por um viés não-sistêmico significa
promover análises impróprias do real contexto existente e das relações
empreendidas no seu interior. A ordem constitucional investigada por uma
perspectiva que não considere questões de natureza sistêmica conduz a
falácias da composição ou da divisão no sistema constitucional. Do mesmo
modo, impede que os efeitos de caráter sistêmico sejam considerados na
compreensão da configuração desta ordem constitucional e da forma por que
as principais instituições desempenham suas atividades. As propriedades
características de um sistema, emergentes da agregação de seus componentes,
tornam-se de difícil constatação ou de origem misteriosa ou desconhecida. A
avaliação da ordem constitucional somente pode ser feita adequadamente
partindo-se de um paradigma científico complexo que reconheça fenômenos
relacionados às agregações tipicamente sistêmicas e os respectivos efeitos que
decorrem da interação se seus elementos. Este é um entendimento que, ao
menos em princípio, parece ser negligenciado na pesquisa em direito
constitucional, sobretudo no Brasil.
Em síntese, este artigo buscou sustentar como termos genéricos e
abrangentes presentes no direito constitucional – tais como “ordem
constitucional” – requerem uma abordagem sistêmica e, após considerar os
principais paradigmas definidos na denominada teoria geral dos sistemas,
defende-se ser a teoria dos sistemas complexos a mais apropriada para
embasar tais análises.
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5 Trabalho apresentado pelo Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das
Instituições (LETACI), vinculado à Faculdade Nacional de Direito (FND) e ao Programa de Pós-
graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD/UFRJ) coordenado pelo
professor Carlos Bolonha.
6 Professor Adjunto e Vice-Diretor da Faculdade Nacional de Direito e Professor Permanente do
Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Diretor do Centro de
Pesquisa e Documentação da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Rio de Janeiro. E-mail:
bolonhacarlos@gmail.com.
7 Mestrando em Teorias Jurídicas Contemporâneas pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Técnico Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da Primeira
Região. E-mail: henriquerangelc@gmail.com.
8 Graduando em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Técnico Judiciário do Tribunal Regional Federal da Segunda Região. E-mail: rogi.242006@hotmail.com.
9 Graduanda em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Bolsista em Iniciação Científica pelo Programa Institucional de Bolsas em Iniciação Científica. E-mail:
wanny.fernandes@gmail.com.
10 Graduando em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Bolsista em Iniciação Científica pela Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro. E-mail:
gsallesdacosta@gmail.com.
11 Alguns autores atribuem o crédito pelo termo “teoria geral dos sistemas”, cunhado para se designar a
este fórum transdisciplinar, a Ludwig von Bertalanffy (VON BERTALANFFY, 1951). Cf. (BOULDING,
1956) e (KAST & ROSENZWEIG, 1972).
12 Em relação ao reducionismo, o termo individualismo costuma ser usado como seu correspondente no
plano das ciências humanas, tendo em vista a impossibilidade de reduzir, nestas áreas, mais do que o
próprio indivíduo. Nas ciências naturais, em geral, também é comum o emprego do termo fragmentalismo,
porém de modo pejorativo, da mesma forma com que o holismo é designado como organicismo. Neste
sentido, em relação ao reducionismo: “[p]hiloshophically, the movement has called for the necessity to
develop the ethics of the whole and modes of being in the world that build on interdependency, relatedness
and connectivity, as opposed to fragmentarism, separatism and isolationism” (HÄMÄLÄINEN &
SAARINEN, 2007, p. 295). Em relação ao holismo: “[t]he invalidity of attempts to reduce to their
components gives rise to flabby talk about ‘reductionist Western science’, and praise for ‘organicism’ and
‘holism’” (VERMEULE, 2011).
13 “Now, just as a state is much better governed when it has only a few laws that are strictly obeyed than
when it has a great many laws that can provide an excuse for vices, so I thought that in place of the large
number of rules that make up logic I would find the following four to be sufficient, provided that I made
and kept to a strong resolution always to obey them. (…) The second was to divide each of the difficulties
I examined into as many parts as possible and as might be required in order to resolve them better”
(DESCARTES, 2007, p. 8-9).
14 “Since Descartes and the Renaissance, science, including medicine, has taken a distinct path in its
analytical evaluation of the natural world. This approach can be described as one of ‘divide and conquer,’
and it is rooted in the assumption that complex problems are solvable by dividing them into smaller, simpler,
and thus more tractable units. Because the processes are ‘reduced’ into more basic units, this approach
has been termed ‘reductionism’ and has been the predominant paradigm of science over the past two
centuries” (AHN, TEWARI, POON, & PHILLIPS, 2006, p. 1). O texto afirma estar a medicina
estruturada sob uma visão reducionista por quatro motivos: (i) foco em um fator singular; (ii) ênfase na
homeostase; (iii) inexata modificação do risco; e (iv) tratamentos aditivos.
15 “You won’t find that at all strange if you know how many kinds of automata or moving machines the
skill of man can construct with the use of very few parts, in comparison with the great multitude of bones,
muscles, nerves, arteries, veins and all the other parts that are in the body of any animal, and if this
knowledge leads you to regard an animal body as a machine. Having been made by the hands of God, it is
incomparably better organized – and capable of movements that are much more wonderful – than any that
can be devised by man, but still it is just a machine” (DESCARTES, 2007, p. 9).
16 No texto crítico ao reducionismo de Philip Warren Anderson, o paradigma reducionista fica
compreendido a partir de uma transcrição de autoria de Victor Weisskopf: “[l]ooking at the development of
the science in the Twentieth Century one can distinguish two trends, which I will call ‘intensive’ and
‘extensive’ research, lacking a better terminology. In short: intensive research goes for the fundamental
laws, extensive research goes for the explanation of phenomena in terms of known fundamental laws. As
always, distinctions of this kind are not unambiguous, but they are clear in most cases. Solid states physics,
plasma physics, and perhaps also biology are extensive. High energy physics and a good part of nuclear
physics are intensive. There is always much less intensive research going on than extensive. Once new
fundamental laws are discovered, a large and ever increasing activity begins in order to apply the
discoveries to hitherto unexplained phenomena. Thus, there are two dimensions to basic research. The
frontier of science extends all along a long line from the newest and most modern intensive research, over
the extensive research recently spawned by the intensive research of yesterday, to the broad and well
developed web of extensive research activities based on intensive research of past decades”
(ANDERSON, 1972, p. 393).
17 “It seems inevitable to go on uncritically to what appears at first sight to be an obvious corollary of
reductionism: that if everything obeys to same fundamental laws, than the only scientists who studying
anything really fundamental are those who are working on those laws. In practice, that amounts to some
astrophysics, some elementary particles physicists, some logicians, and some other mathematicians, and
few others. (…) The main fallacy in this kind of thinking is that reductionist hypothesis does not by any
means imply a ‘constructionism’ one: [t]he ability to reduce everything to simple fundamental laws does
not imply the ability to start from those laws and reconstruct the universe. In fact, the more elementary
particle physicist tell us about the nature of the fundamental laws, the less relevance they seem to have to
the very real problems of the rest of science, much less to those of society” (ANDERSON, 1972, p. 393).
18 Como exemplo de um teórico holista mais sofisticado, pois reconhece também uma dimensão passiva
do sistema social em relação a seus indivíduos, a teoria do estruturalismo sociológico de Anthony Giddens
admite uma dinâmica reflexiva em sua tensão entre sociedade e knowledgeables human actors. Com
isso, determinados humanos participam da construção da estrutura social, que, por sua vez, influencia
severamente o comportamento humano (GIDDENS, 1984). No mesmo sentido, reputando Giddens um
holista em razão de sua teoria estruturalista, (GILBERT, 1996).
19 Também alocando Luhmann sob o paradigma holista: “I guess theirs is a defensive strategy: they do not
wish to be taken for holists, and they are diffident of the writers who call themselves system theorists
although actually they are holists. (Talcott Parsons, Niklas Luhmann, and Erwin Laszlo come to mind.)
Their opaque and long-winded utterances has given systemism a bad name. I guess this is why most social
scientists shun the word ‘system’ even while studying social systems” (BUNGE, 2000, p. 149).
20 Para entender como Luhmann relaciona o sistema jurídico com o sistema social, é possível recorrer à
passagem a seguir: “legal system is a differentiated functional system within society. Thus in its own
operations, the legal system is continually engaged in carrying out the self-reproduction (autopoiesis) of the
overall social system as well as its own” (LUHMANN, 2009, p. 183).
21 Na obra (ANDERSON, 1972), é sustentado o argumento da symmetry breaking, estruturado a partir
das propriedades que emergem dos diversos níveis de agregação sistêmica.
22 “The constructionist hypothesis breaks down when confronted with the twin difficulties of scale and
complexity. The behavior of large and complex aggregates of elementary particles, it turn outs, it is not to
be understood in terms of a simple exploration of the properties of a few particles. Instead, at each level of
complexity entirely new properties appears, and the understanding of the new behaviors requires
researches which I think is fundamental in its nature as any other” (ANDERSON, 1972, p. 393). É de
suma relevância destacar que a existência de supostas “leis fundamentais”, como tratou Anderson, a cada
nível de agregação não deve se confundir com o argumento holista de que o sistema possui leis próprias,
pois, neste último caso, a origem de tais leis não se comunica com os componentes do sistema, nem
mesmo a interação mantida entre eles.
23 “[i]n this case we can see how the whole becomes not only more than but very different form the sum
of its parts” (ANDERSON, 1972, p. 395).
24 A ideia de sistema de sistemas também está presente na obra de Luhmann, embora sob uma
perspectiva holista. Para este teórico, sistemas como o social e o direito são capazes de provocar reflexos
uns aos outros. Em Luhmann, há sistemas que, de algum modo, comunicam-se, persistindo, neste ponto, a
visão personificada dos sistemas. A diferença existente entre esta perspectiva e o sistema de sistemas de
Vermeule acaba sendo sutil. Neste último modelo são considerados os componentes com maior destaque,
de forma que sua interação permite uma agregação em segundo nível – algo não tratado em Luhmann. A
ênfase conferida por Vermeule aos componentes que interagem entre si permite compreender com maior
precisão a origem da interação em segundo nível de agregação, correspondente ao sistema constitucional.
Cf. (LUHMANN, 2009) e (VERMEULE, 2011).
25 O paradigma científico dos sistemas complexos já se tentou implementar em áreas do conhecimento de
direito público, notadamente, no direito constitucional, mas não com o mesmo mérito científico que
Vermeule e seu sistema constitucional (RUHL, 1996).
26 Complementando este trecho: “It is rather as if the professional community had been suddenly
transported to another planet where familiar objects are seen in a different light and are joined by
unfamiliar ones as well” (KUHN, 2012, p. 111).
27 O presente trabalho, reconhecendo a dificuldade e a complexidade desta tarefa, pretende meramente
contribuir com as discussões, não havendo a intenção de afirmar categoricamente os aspectos ontológicos,
epistemológicos e metodológicos da teoria sistêmica e complexa aplicada ao direito constitucional.
28 Há uma comum tendência, no holismo, em partir do pressuposto de que o sistema, enquanto
autossuficiente, é capaz de determinar seu próprio funcionamento. Na teoria complexa, entretanto, Stuart
Kauffman apresenta ideias que tentam esclarecer como tal funcionamento se determina sem que haja a
presença de uma entidade fictícia. O movimento liderado por Kauffman, systems biology, recebe críticas,
por exemplo, que o associam à filosofia de Henri Bergson. Isso ocorre porque Kauffman formula uma
expressão na ciência evolucionista interpretada como anti-darwiniana, o que é comparado com o élan vital
bergsoniano e até referido como “determinismo cego e mecânico”, por Michael Ruse: a ordem a partir da
ausência de ordem (order for free). Cf. (BASTOS, 2009). De uma forma muito próxima, Friedrich
Hayek elabora uma perspectiva sistêmica da economia em que “the market coordinates the decentralized
information and tacit knowledge distributed throughout society, coordinating individual plans better than
could any central planner” (VERMEULE, 2011, p. 67).
CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO:
SOBRE COMO RESIDE NO PODER A APTIDÃO
PARA LIMITAR A SI MESMO29
DEMOCRATIC CONSTITUCIONALISM:
ABOUT POWER AND ITS ABILITY TO LIMIT
ITSELF
RESUMO
Depois de 25 anos de implementação constitucional no Brasil, é tempo de reexaminar a compatibilidade
entre os propósitos transformadores originais, e a leitura atual do Texto Fundamental. Iniciando pelo
esclarecimento quanto aos conceitos de constitucionalismo e constituição, o texto desconstrói uma suposta
relação de precedência entre o primeiro e o último, afirmando que uma mesma Carta Constitucional pode
ser construída a partir de uma determinada perspectiva, e evoluir para outro modelo, respondendo às
necessidades percebidas na sociedade por ela disciplinada. Entre as várias novas categorias de
constitucionalismo, a proposta de Post e Siegel de constitucionalismo democrático, onde a revelação do
sentido constitucional se dá através de um processo contínuo, baseado em contestação, persuasão e a
formação de novos consensos, se apresenta como uma alternativa útil, onde a jurisdição constitucional se
vê reconciliada com a democracia. O texto finalizar com uma primeira aproximação sobre como o
conceito pode se revelar útil à compreensão e aperfeiçoamento do entendimento no Brasil, acerca da
jurisdição constitucional e do papel do Judiciário nessa mesma função.
PALAVRAS-CHAVE
Constitucionalismo democrático; jurisdição constitucional; sentido constitucional; função jurisdicional.
ABSTRACT
After 25 years of constitutional implementation in Brazil, it is time to reexamine the compatibility among
the original transformational proposals, and the present reading of the Fundamental Text. Starting with a
clarification between the concepts of constitutionalism and constitution, the text deconstruct a supposed
precedency relationship among the first and the latter, asserting that a same Fundamental Chart can be
built in a certain perspective, and evolve to another model, answering to new needs perceived in the ruled
society. Among the various new categories of constitutionalism, Post and Siegel’s proposal of a democratic
constitutionalism, in which asserting constitutional’s meaning is taken as an ongoing process, based on
challenge, persuasion an new consensus, present itself as an useful alternative, in which judicial review is
reconciled with democracy. The text end with a first glance of how that concept can be helpful to
understand and perfect the Brazilian understanding of judicial review and the Judiciary’s role in that same
activity.
KEYWORDS
Democratic constitutionalism; judicial review; constitutional meaning; jurisdictional meaning.
4 ELEMENTOS CONCEITUAIS DO
CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO
Já se apontou no subitem acima, que uma das problemáticas que se
pretendia enfrentar com a construção do ideário do constitucionalismo
democrático, é o reforço do signo de legitimidade do Texto Fundante, que se
vê desafio neste particular aspecto, seja pelo transcurso em si do tempo, seja
pelo caráter sempre cambiante do ambiente sobre o qual ele incide. Essa
cogitação, no cenário americano, tem particular relevância pela tensão
inerente naquele corpo social, entre o reconhecimento do ideário de self
government, e ao mesmo tempo, o respeito pela rule of law. Nesse conflito
interno, a rule of law – fundada na constituição – há de se reconhecer como
harmônica, e não violadora do auto-governo, o que decerto suscita os desafios
relacionados à preservação da sua legitimidade.
Primeiro elemento portanto que se tinha em conta na proposição, era a
necessária garantia da autoridade da constituição pelo caminho de sua
renovada legitimação; o que estaria a envolver, na proposta do
constitucionalismo democrático, o reconhecimento do sujeito constitucional
no texto, e o seu papel da compreensão do sentido das regras que por ele e a
ele se destinavam.
4.1 Autoridade Constitucional e Reconhecimento: o problema da
identidade constitucional
Apresenta-se como verdadeiro truísmo a assertiva de que a constituição
contenha em seu corpo cláusulas cuja determinação de sentido revele
diferentes graus. Afinal, é inerente ao processo de negociação que antecede à
sua cunhagem, os igualmente distintos níveis de consenso e teorização em
relação a cada qual dos grandes temas que nela se regulam
(SUNSTEIN,2000). A textura abertura das normas constitucionais apresenta-se
como elemento inegável, mas estruturante do sistema, à medida em que
permitirá exatamente a recepção daquele espectro de sentido latente no
conjunto social que Cover (1983) denominou nomos. De outro lado, a
aproximação entre constituição e a narrativa do universo normativo que rege
uma determinada coletividade (COVER, 1983, p. 4) expressará outro vetor
igualmente relevante, que é aquele da identidade constitucional.
É de Rosenfeld (2003, p. 22-23) a advertência sobre o caráter
verdadeiramente constitutivo na organização da coletividade, daquilo que
chamou de identidade constitucional – uma síntese de laços e elementos de
identificação originários de uma nacionalidade ou cultura partilhada. Afinal, é
essa identidade constitucional que conferirá forma e conteúdo aos
compromissos que no texto se manifestem, mesmo aqueles associados aos
direitos fundamentais53. De outro lado, é ainda Rosenfeld (2000, p. 22) quem
aponta um paradoxo posto à identidade constitucional – que sendo síntese da
coletividade, é distinta de outras identidades relevantes, mas é
“inevitavelmente forçada a incorpora-las parcialmente para que possa adquirir
sentido suficientemente determinado ou determinável”. Sensível ao tema da
identidade constitucional, Post e Siegel (2009, p. 26) vão apontar que quanto
mais estreito o laço de reconhecimento do sujeito constitucional pelo texto;
maior a legitimidade da constituição, e portanto, mais intenso o grau de sua
efetividade.
Duas distintas dimensões se contêm nessa afirmação: de um lado, é preciso
que o sujeito constitucional se identifique com o texto e suas proposições; de
outro lado, esse mesmo sujeito há de ter confiança na responsividade dessa
mesma ordem para preservar essa identidade, incorporando aqueles elementos
externos a ela que venham a refletir mudanças havidas no nomos; no espectro
de sentido acerca dos pilares de construção do convívio coletivo. Afinal, a
identificação entre sujeito e constituição – que pode existir originariamente,
forjada ou refletida no momento fundante daquele Estado-Nação – admite a
possibilidade de quebra em decorrência do inevitável transcurso do tempo, e
das transformações que ele possa trazer.
O acatamento a uma decisão quanto ao sentido da constituição divergente
do posicionamento de seus destinatários (ainda que parte deles) decorrente de
uma nova recepção de identidades relevantes que competem pelo
reconhecimento54, só será possível se existir a confiança de que esse
equacionamento possa ser contrastado mediante um exercício racional de
crítica e reformatação. Assim, uma mudança social, traduzida como aspiração
política, é de ser passível de incorporação ao sistema do direito, promovendo
neste último uma atualização de sentido à sua normatividade, que é
determinada pela primeira55. De outro lado, essa mesma imagem da identidade
constitucional, novamente forjada pelas interferências do processo político e
social de reformulação, há de admitir como possibilidade, à sua vez, o seu
afastamento ou reconfiguração futura; preservando a todas as identidades que
competem entre si, a possibilidade de se verem em algum momento,
recepcionadas na identidade constitucional.
Esse elemento fiduciário relacionado à possibilidade de mudança e
interferências estará no eixo central do conceito de constitucionalismo
democrático como proposto. Isso porque, dadas as dificuldades próprias do
sistema norte-americano para o desenvolvimento do processo formal de
emenda constitucional; a responsividade do texto, e a confiança do “We the
People” de que a Carta se revele capaz de atualizar-se, é de se materializar
por outros caminhos, que não a interferência direta e literal no texto.
A construção é sutil. Se a constituição espelha a coletividade em que o
sujeito constitucional se insere, seu reconhecimento nela permitirá o
reconhecimento da sua legitimidade, e da autoridade das decisões (judiciais
ou não)56 que nela se fundem e traduzam a sua aplicação. De outro lado, essa
mesma constituição é de ser apta a conferir resposta institucional, nos moldes
por ela mesma traçados, aos estímulos externos que sobre ela incidam:
ameaças, infidelidade, inefetividade material. A um só tempo, o texto mantém
o diálogo com seus múltiplos sujeitos, e protege sua identidade; síntese das
muitas identidades representadas na coletividade sobre a qual ela incide. Na
legitimidade dessa construção coletiva, repousará a autoridade da constituição
como norma fundante e das instituições que a aplicam; na responsividade para
com o querer da coletividade que é ao mesmo tempo, seu artífice e sujeito,
repousará seu signo de democrática, seja na sua origem, seja na sua aplicação
prática por qualquer de muitos de seus artífices.
Identificada a relevância teórica da resposividade – como veículo da
legitimação do texto, e portanto, garantia de sua autoridade; segue-se a
indagação de como se assegura que esse mesmo atributo inicial se tenha
presente no viver a Constituição. Esso o problema que suscita o segundo eixo
de elementos integrantes da proposta do constitucionalismo democrático,
envolvendo a incorporação do dissenso, da divergência interpretativa como
uma condição normal para o desenvolvimento do constituional law (POST e
SIEGEL, 2007, p. 2).
4.2 Visão Constitucional”, Contestação, Persuasão e Consenso:
ferramentas para a responsividade
É certo que a atualização de sentido do texto constitucional é resultado que
em princípio se pode por ter associado à sua própria interpretação,
qualificada nessa hipótese específica, de evolutiva (BARROSO, 2003, p.
146), onde se tem a “...atribuição de novos conteúdos à norma constitucional,
sem modificação de seu teor literal, em razão de mudanças históricas ou
fatores políticos e sociais...”. Também o chamado costume constitucional
(FERRAZ, 1986, p. 197) pode se apresentar como estratégia à promoção da
adaptação da norma superior “...às necessidades e aspirações da comunidade,
sejam de natureza política, econômica ou social”. A questão proposta, todavia,
no argumento do constitucionalismo democrático, está em saber se o debate
em torno de critérios de interpretação constitucional pode ser suficiente para
promover o desenvolvimento funcional do texto, alinhado com as expectativas
próprias de um constitucionalismo de transformação.
Mais do que isso, o constitucionalismo democrático, firmado na ideia da
relevância do equilíbrio a se promover entre rule of law e auto-governo,
acolhe a divergência de interpretação como um caminho possível para um
engajamento político e jurídico, que conduza a ordem constitucional a uma
condição de fidelidade para com o nomos (POST e SIEGEL, 2007, p. 67), o já
referido espectro de sentido latente no conjunto social relacionado a uma
determinada cláusula constitucional.
Para entender o argumento, é preciso incorporar um pressuposto que
integra construção teórica de Post e Siegel (2009, p. 25-34), a saber, aquele da
“visão constitucional”; elemento capaz de mobilizar às pessoas em torno desse
mesmo projeto, que orienta as deliberações que se dão na esfera da política, e
se revela constitutivo do sentido do Texto Fundamental57. A “visão
constitucional” expressaria ideais fundamentais que definem a coletividade – e
estes teriam, na visão dos autores, o condão de mobilizar a sociedade. “Visão
constitucional” é algo portanto que antecede à judicialização – e não envolve
propriamente uma teoria de interpretação (POST, 2009, p. 31), mas sim uma
percepção difusa no corpo social, de quais sejam os valores essenciais
regedores daquela coletividade, e como eles se traduzam. A autoridade
constitucional decorreria da aptidão que o sistema expressa (ou desenvolve)
de alinhar constitutional law (o sentido do direito constitucional) à “visão
constitucional” – e a dissintonia entre a decisão autoritativa e essa mesma
visão estaria também na raiz da reação violenta da sociedade contra eventual
proclamação da Corte, no fenômeno denominado backlash (POST e SIEGEL,
2007, p. 5).
Há portanto uma inversão no iter de (re)atualização de sentido da Carta de
Base; esta não se dá no Judiciário para incidir sobre a coletividade, mas nasce
da coletividade para ser traduzida em law pelo Judiciário; num processo que
há de ser dialógico e contínuo, deflagrado de novo e novamente, a cada
mudança no nomos que se venha a identificar.
O desafio está em que se essa “visão constitucional”, que antecede a
judicialização, e se origina no campo da sociedade – e não da técnica –; em
algum momento há se ser capaz de se traduzir como compromissos axiológicos
na linguagem que é própria do direito (POST, 2009, p. 31); e essa é uma
atividade que pode resultar na afirmação da inadequação do que se tinha
assentado como a visão jurídica de uma realidade. Em última análise, a visão
constitucional, uma vez traduzida no código do direito, pode se revelar
contrária a uma concepção vigente, assentada em lei ou mesmo em
jurisprudência constitucional, com a autoridade que e própria a cada qual
dessas manifestações formais do poder político. Tem-se então uma relação de
contraposição, que propõe o segundo elemento integrante do conceito sob
análise: a contestação enquanto possibilidade no curso de um processo de
determinação de conteúdo das cláusulas constitucionais.
A contestação, objeção ou desafio em relação à concepção vigente acerca
do conteúdo de cláusulas constitucionais é elemento verdadeiramente
constitutivo do constitucionalismo democrático – eis que é a partir dessa
contestação de sentido; dessa oposição ao que se tenha por assentado como
significado da Carta, que se poderá empreender à sua ressintonia com a visão
constitucional. Nesse sentido, especial lugar terá no projeto de Post e Siegel, a
participação dos movimentos sociais, que por sua própria articulação,
revelar-se-ão aptos a promover essa contestação de forma mais estruturada,
seja no plano do debate anterior à judicialização, seja no domínio do
contencioso judicial, através daquilo que os americanos denominam litígio
estratégico. Vocalizada a reformulação da visão constitucional, e estruturada
como compreensão por movimentos sociais, tem-se facilitado o processo de
sua transposição para o código do direito – por isso a relevância desses
mesmos movimentos.
Importante destacar que no modelo do constitucionalismo democrático, o
litígio não expressa uma ameaça à autoridade da constituição ou da Corte
Constitucional que por ela zela; a contestação constitucional integra a
dinâmica de atualização de seu sentido, e é bem vinda como elemento
indispensável à sua sintonia com a tanto mencionada constituição que se vive.
Naturalmente, a divergência quanto ao senso comum anteriormente
formado quanto a determinada cláusula fundante não será por si só suficiente a
promover a identificação de que nisso se tenha a expressão de uma nova visão
constitucional. À contestação quanto à posição dominante, é de se somar o
exercício de persuasão, do convencimento em favor de uma nova leitura do
texto. Importante sublinhar que no campo da argumentação persuasiva, dois
distintos elementos hão de encontrar aferição: primeiro deles, o alcance da
percepção de sentido da Carta de Base que o exercício de contestação oferece
– e esse é um elemento útil à aferição da relevante temática acerca do eventual
papel contramajoritário a se desenvolver na jurisdição constitucional.
Segundo elemento que será avaliado no exercício da persuasão – este mais
óbvio – diz respeito à autoridade mesmo do argumento; sujeita todavia a um
debate inclusivo e ampliado, como é característico (já se mencionou antes)
das teorias dialógicas.
Assim, para que o diálogo fomentador da deliberação democrática
efetivamente aconteça, é preciso primeiro, conhecer os termos em que o
dissenso se apresenta no que toca à compreensão constitucional se tem por
assentada. Qual o objeto da divergência? Qual o novo sentido que se pretende
ver firmado? Quais as razões para o afastamento da leitura mais tradicional?
Todos esses são questionamentos próprios ao momento da formulação da
contestação em si. Já no plano da persuasão, tem-se o espaço por excelência
para o exercício argumentativo em favor da nova posição preconizada por
aquele que suscita a divergência – e também, eventualmente, para as
contribuições de outros interlocutores, que ainda que não se tenham
apresentado na primeira discussão, possam manifestar interesse em participar
do debate constitucional.
O mecanismo em verdade é de contemplar a divergência como alternativa,
e a persuasão como estratégia possível de câmbio da compreensão vigente. Se
o exercício suasório se revelar suficiente, o resultado será a formação de
(novo) consenso em torno da proposta veiculada pela objeção – e com isso
restaura-se a harmonia entre visão constitucional e a constitutional law. Um
destaque mais do que relevante formular todavia, está em que enquanto em
teorias afinadas com o diálogo social, a abertura a esse exercício discursivo
se tem por possível; na proposta do constitucionalismo democrático, o
exercício dialógico é constitutivo do processo; é o único mecanismo apto a
conferir a desejada legitimidade à nova configuração de sentido. Essa
afirmação – de que abertura ao diálogo não seja uma prerrogativa ofertada ao
julgador, mas um dever para a formular de um novo consenso num ambiente
democrático – se harmoniza com a afirmação de que nesta proposta teórica, o
Judiciário não tem uma proeminência subjetiva no processo, mas conduz o
diálogo, funcionando como seu agente articulador.
O exercício identificado no constitucionalismo democrático (contestação,
persuasão e formação de novo consenso) é atributo cíclico, nos dois sentidos
da palavra – observa uma determinada ordem, e se repete. Assim, a objeção
ao estabelecido é de se desdobrar na oportunidade para o exercício
persuasivo, e resultará em novo consenso: de manter-se o estabelecido, de
mudança parcial, ou de mudança total. A preservação dos três momentos do
ciclo revela-se particularmente importante para que se tenha caracterizada
uma verdadeira responsividade da ordem constitucional (POST, 2009, p. 27);
uma abertura ao questionamento e uma orientação à oferta de respostas.
De outro lado, o resultado das duas primeiras etapas – objeção e
persuasão – pode ter como resultado possível, qualquer das também três
alternativas acima apresentadas: a preservação do status quo, a mudança
parcial e o câmbio radical. Isso porque, o exercício é de responsividade para
com as demandas sociais, que podem não se ter por plenamente
caracterizadas, ou podem ainda se revelar divididas nos resultados
pretendidos – o que certamente recomendará uma posição mais cautelosa no
que toca à alteração de compreensões já estabelecidas.
Importante sublinhar, por fidelidade intelectual para com o pensamento de
Post e Siegel (2007, p. 32-35), que a alusão à modificação parcial como
alternativa, não se confunde com uma inclinação em favor do minimalismo –
que prefere o grau diminuto de alteração como estratégia de decisão. Isso
porque na proposta de Sunstein (2005), a decisão auto-contida no alcance e na
profundidade prefere àquela de maior alcance e profundidade sempre, como
opção de modelo em abstrato, tendo em conta a tensão inerente entre
jurisdição constitucional e democracia. Já na proposta de Post e Siegel (2007,
p. 32-35), a incorporação do viés democrático à formação da decisão judicial
permite superar essa tensão, viabilizando uma decisão judicial não
necessariamente minimalista, desde que uma análise de contexto assim o
recomende.
Profundidade e abrangência da decisão judicial, na proposta do
constitucionalismo democrático é algo que há de guardar indissociável relação
entre o grau de modificação das posições originais quanto ao sentido do texto,
e a nova proposta, é pautada diretamente pela responsividade. Significa dizer;
a uma clara indicação de consenso social mais amplo em torno de uma nova
formulação, há de corresponder a modificação de sentido com toda a
amplitude externada pela sociedade; o espectro mais restrito do conteúdo da
decisão se porá como alternativa em hipóteses onde não se tenha claramente
delimitado o grau de objeção.
29 Trabalho apresentado pelo Grupo de Pesquisa Novas Perspectivas em Jurisdição Constitucional (NP
JURIS) vinculado à Universidade Estácio de Sá (UNESA).
30 Professora Permanente do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá,
vinculada à linha de pesquisa Direitos Fundamentais e Novos Direitos. Pós-doutorado em Administração
pela EBAPE/FGV-Rio; Doutorado em Direito pela Universidade Gama Filho. Procuradora do Município
do Rio de Janeiro.
31 A contenção dos abusos do poder é prática que envolverá sempre e necessariamente um diálogo com
as particularidades de uma determinada coletividade sobre a qual ele incide. Assim, os modos de
instalação e exercício do poder são distintos – donde os meios para a sua reconfiguração igualmente não
se manifestarão da mesma forma.
32 Do total de 188 constituições vigente em todo o mundo (COMPARATIVE CONSTITUTIONS
PROJECT, 2014); 88 delas são anteriores à brasileira – o que significa que elas têm pelo menos mais de
25 anos de promulgação. É de se ter em conta ainda a localização temporal desse quarto de século,
inserido totalmente na aceleração de conhecimento e comunicação que nos trouxe o final do século XX e
a primeira década do século XXI. Atualização de sentido portanto do projeto de vida coletiva é tema
sensível
33 Desde o primeiro impacto de reconhecimento de um novo modelo, trazido pela incorporação ao cenário
jurídico nacional do neoconstitucionalismo, já se viu aportar a este mesmo ambiente ideias como as do
constitucionalismo popular (KRAMER, 2004; TUSHNET, 2006), de transição (YEH e CHANG, 2009;
KHATIWADA, 2007), de transformação (CHRISTIANSEN, 2001; KLARE, 1998 e LANGA, 2006),
teocrático (BACKER, 2008 e HIRSCHL, 2008), até mais recentemente o constitucionalismo proclamado
latino-americano (GARGARELLA, 2010; OLIVEIRA e STRECK, 2012).
34 No tema, apontando os riscos do desenvolvimento de maior densidade teórica em relação a cada qual
dos modelos, e da perda de conhecimento já formado por agregação – tudo em favor da busca de um
singularismo que não guarda propriamente relação direta com a efetividade do modelo, consulte-se Valle
(2012).
35 A expressão não é estranha à produção acadêmica norte-americana, mas por vezes se tem presente
em sentido distinto daquele explorado por Post e Siegel (2007); esse caráter polissêmico não é em nada
incomum na ciência do Direito, mas deve ser tido em conta no eventual percurso à literatura, mesmo a
norte-americana: nem todo texto que contenha essa mesma interlocução estará se referindo ao mesmo
conjunto de atributos amealhados por Post e Siegel.
36Essa concepção que vê a perenização de interpretação como um atributo da estabilidade, já se vê
37 No particular, esse texto é sensível à advertência de Sartori (2004, p. 160) de que democracia é
sobretudo um sistema de governo, o que reclama uma especial atenção não só à crítica (a expressão do
autor é “garrotazos”), mas também aos mecanismos através dos quais possamos compor ou melhorar a
velha maquinaria da política: “...quando se descuida da função de governo, pioramos a ela, ou pomos em
perigo o seu funcionamento...”.
38 Não se vai aqui adentrar na discussão que avalia a possibilidade de se conferir a alcunha de
constituição (no sentido formal) a documentos não revestidos desse mesmo atributo, mas revestidos de
conteúdo estruturante do convívio. Para a ampliação desse debate, consulte-se Queiroz (2009, p. 113-117),
afirmando remontar o conceito à Antiguidade Clássica; no outro extremo, Sarlet (2012, p. 36-51) e Sartori
(2004, p. 211-218) fixando no final do sec. XVIII o surgimento do conceito no sentido ainda hoje
conhecido.
39 Não se constitui elemento central do presente texto a discussão acerca da inclusão de direitos
fundamentais como elemento essencial da afirmação da existência em si de constituição. Vale todavia
assinalar a visão de Sartori (2004, p. 212), que externa posição distinta àquela do mainstream, que
identifica a presença pelo menos dos direitos de primeira dimensão como constitutiva da constituição, Para
o autor italiano, é de se ter por claro quando menos que “uma constituição cujo núcleo e parte mais
importante não seja a estrutura de governo, não é uma constituição).
40 A própria inclusão de direitos fundamentais como mecanismos de limitação do poder expressou à sua
época, uma nova técnica – ou quando menos, uma nova utilização de uma categoria jurídica que já se via
aplicada com menos eficácia, ao tempo em que se tinha esse tipo de preceituação por revestido de caráter
meramente programático.
41 É de Bobbio (2000, p. 386) a identificação entre democracia (ideia central que pode se ver
instrumentalizada por um determinado tipo de constitucionalismo) e governo em público
42 É de Andrade ([s/d]) o destaque de que o poder que se contém por intermédio de direitos fundamentais
não se resume àquele politicamente institucionalizado, sendo possível antever a formação de barreiras
contra o abuso do poder econômico, ou da imprensa, a partir desses mesmo direitos, especialmente com a
recepção da ideia de que estejam eles sujeitos, a partir de sua força irradiante, também à incidência na
dimensão horizontal.
43 O argumento de Hirschl (2004) – que por sua sofisticação, não pode ser integralmente reproduzido nos
limites deste trabalho – é de que a constitucionalização, combinada com a expansão da judicial review
pode favorecer a inclusão na zona protegida pela estabilidade constitucional, de cláusulas e garantias que
protejam os interesses de grupos hegemônicos, seja no momento em que eles estejam no poder, seja
naqueles (se não especialmente nestes) em que a alternância na titularidade desse mesmo poder se
prenuncie.
44 Explorando a alternativa de um constitucionalismo dissociado de uma ideia de Estado soberano ao qual
aquela teoria de limitação se aplique, consulte-se Preuss (2010) e Canotilho (2006, p. 286). Registre-se
ainda a cogitação quanto a um constitucionalismo societal, onde se tem o reconhecimento de que também
fora do Estado (se não predominantemente aí) se pode ter manifesto poderes que mereçam igualmente o
desenvolvimento de teorias constritiva (TEUBNER, 2010).
45 Já se tem em Miranda (2002, p. 323) a advertência de que em qualquer Estado, em qualquer época e
lugar se encontrará sempre um conjunto de regras atinentes quando menos à “...expressão jurídica do
enlace entre poder e comunidade política ou entre sujeitos e destinatários do poder.”
46 Nesse conjunto de constitucionalismos cunhados a partir de peculiaridades locais e/ou históricas – já
gizado na nota de rodapé nº 3, soma-se a pretensa categoria do constitutionalism of the Global South
(MALDONADO, 2013), que congregaria experiências de países que manifestam um cariz ativista das
respectivas Cortes Constitucionais.
47 Consulte-se aplicações no conceito também na sua interface com a ideia de backlash (POST e
SIEGEL, 2007).
48 No grande espectro de modalidades dialógicas de constitucionalismo, tem-se na experiência brasileira e
presença na prática do STF, quando menos, do modelo de diálogos institucionais, como se verifica
facilmente nas decisões em ADIO e MI, onde a Corte afirma a existência de um dever de legislar (e
portanto, a necessidade da recondução do Legislativo à sua trilha de funcionamento regular), e aponta
vetores aplicáveis ao futuro critério jurídico de solução a ser aprovado pelo Parlamento. É de se apontar
ainda a aproximação com a lógica dos diálogos sociais, na clara ampliação do uso do instituto das
audiências públicas, seja no controle concentrado de constitucionalidade, seja naquele de caráter difuso
onde se tenha a análise de Recursos Extraordinários aos quais se tenha conferido o signo de repercussão
geral.
49 Na visão de Post e Siegel (2007, p. 33-34), não se pode imaginar a jurisdição constitucional e a
democracia como forças divergentes, concorrendo num jogo que se pretenda de soma zero; em verdade,
embora o jurídico possa em alguma medida constringir o político, esse mesmo exercício de identificação
dos limites da contenção retroalimenta o político. A relação portanto é de interdependência recíproca –
mas não de oposição absoluta, onde o avanço de um implique no retrocesso do outro.
50 Escapa aos limites da abordagem possível neste texto, o detalhamento das proposições do
constitucionalismo popular, bastando ter-se por registrada a desconfiança para com o Judiciário como o
intérprete do sentido do Texto a detentor da supremacia na referida decisão. Para um olhar um pouco
mais ampliado no tema, consulte-se Cardoso (2014).
51 Registre-se que no cerne do debate se tem, mais uma vez, a suposta segregação entre direito e política
– resultando inaceitável para os que apostam nessa ideia, uma proposição que reforça o viés político do
exercício da judicial review.
52 Registre-se por absoluta fidelidade intelectual para com a proposta norte-americana, que as referências
naqueles textos a direitos fundamentais envolverão sempre aqueles de liberdade – até pela circunstância
de que a constituição daquele país não contempla direitos sociais em seu texto. A transposição de
argumentos segue possível, todavia – se não reforçada – em modelos como o brasileiro, com intensa
presença de direitos socioeconômicos, pela circunstância mesmo de que esses (mais do que aqueles de
liberdade) envolvem necessariamente escolhas alocativas de recursos escassos, que por implicarem
necessariamente em exclusões, hão de se revestir de especial signo de legitimidade democrática.
53 A percepção do limite do inaceitável, da restrição inautorizada a direitos fundamentais, dos critérios
possíveis de solução de conflitos entre estes mesmo direitos; tudo isso guardará intrínseca relação com a
referida identidade constitucional.
54 O reconhecimento de sujeitos constitucionais distintos, e a correspondente identificação em favor
desses mesmo grupos de direitos próprios é o processo que Bobbio (1992, p. 62) denomina
“especificação”, e “consiste na passagem gradual, porém cada vez mais acentuada, para uma ulterior
determinação dos sujeitos de direitos”.
55 Ilustração já francamente utilizada, mas nem por isso menos relevante, diz respeito à integração ao
ordenamento normativo, da admissibilidade do reconhecimento de efeitos jurídicos diversos às uniões
homoafetivas – possibilidade que em décadas passadas seria peremptoriamente negada pelos valores
comunitários, mas que na segunda década do século XXI, já foi acolhida em vários países do mundo, em
alguns deles pela via da jurisdição constitucional, eis que textos constitucionais empregavam uma
linguagem que não permitia essa mesma conclusão a partir de sua literalidade. Este foi o fenômeno que se
verificou no Brasil, com a conhecida decisão na APF 132, mas também da África do Sul, no caso
identificado como Minister of Home Affairs and Another v Fourie and Another.
56 A percepção de que a construção do sentido constitucional não é atividade limitada à Corte
Constitucional é uma constante na literatura norteamericana, desde Thayer (1893) com o
departamentalismo, até os dias de hoje.
57 Inequívoca a relação igualmente entre “visão constitucional” e aquilo que Siegel (2006) vai denominar
“cultura constitucional” – uma compreensão do papel e das práticas argumentativas que a cidadania e os
agentes públicos encarregados de aplicação da Carta de Base empregam para negociar a distinção entre o
que se passe no plano da política e do direito, quando se busca empreender à mudança constitucional (a
expressão aqui se utiliza no sentido mais amplo possível, compreendendo especialmente aquelas alterações
que se dão pela via interpretativa, e não formal).
58 Desde o leading case em matéria de controle da omissão pela via da injunção, no conhecido MI 107
QO, até a viragem compreensiva externada nos não menos conhecidos MI’s 670 e 708 – onde se
reconheceu a possibilidade da enunciação pelo Supremo Tribunal Federal do critério jurídico de solução
para a violação a direito subjetivo decorrente da inércia legislativa constitucionalmente relevante, muito se
escreveu e decidiu na matéria.
59 O espectro de alternativas ofertado à reclamação constitucional – no que toca aos legitimados ativos e
às possibilidades de decisão – é matéria ainda intensamente controversa na Corte, valendo o registro
recente da decisão havida no bojo da Reclamação 4374, em que se empreendeu à reconfiguração do juízo
em abstrato de constitucionalidade da Lei Orgânica da Previdência Social antes formulado na ADI 1232.
A proclamação, pela via da Reclamação constitucional, do vício de raiz de lei antes reputada constitucional
no controle abstrato foi uma inovação no que toca ao alcance deste mesmo instituto. Para uma
sistematização do tratamento anteriormente conferido pelo STF à Reclamação, consulte-se VALLE
(2009).
60 O debate era aceso, a partir da introdução do instituto da ação declaratório da constitucionalidade pela
Emenda Constitucional nº 3, quanto à fungibilidade entre ela e a ação declaratória de inconstitucionalidade;
bem como no que toca à vinculatividade dos efeitos dos dois institutos. A matéria só se pacificou com a
edição da Lei 9868/99, que afirmou um e outro atributo às duas ações de controle abstrato.
61 Sistematizando o papel do amicus curiae no sistema brasileiro, consulte-se Medina (2010).
62 Examinando o desenho legislativo e a prática institucional das audiências públicas no Supremo Tribunal
Federal, consulte-se Ajouz et. ali (2012) e Ajouz e Silva (2013).
63 Representando o debate em torno dessa nova temática, consulte-se Hübner (2013) e Silva (2013), onde
se explora a hipótese de que as decisões forjadas no STF não se revelem aptas a expressar deliberação no
sentido estrito da palavra.
AS CATEGORIAS JURÍDICAS E A REALIDADE
EXTERNA 64
LEGAL CATEGORIES AND THE EXTERNAL
WORLD
Andre Wendriner65
Pedro Aurélio de Pessôa Filho66
Rachel Herdy67
Janaina Matida68
Alexandre De Luca69
RESUMO
O objetivo deste trabalho é investigar o problema da categorização dos fatos no Direito. A categorização é
um exercício intelectual do julgador que consiste em qualificar um fato concreto como estando ou não
incluído no predicado fático de uma norma. Toda regra possui um predicado fático (também chamado de
protasis), o qual se refere a uma classe específica de coisas ou eventos e designa o campo de cobertura
da regra. A categorização é um tipo de raciocínio prévio que se configura como condição necessária à
aplicação do Direito. Com efeito, a categorização precede a aplicação de regras e precedentes, a
construção de analogias e a determinação dos fatos. A escolha da categoria a ser empregada reflete o
modo pelo qual o Direito relaciona-se com o mundo real – ora recorrendo a categorias do mundo jurídico,
ora referindo-se a categorias extrajurídicas. A presente pesquisa conceitua a categorização, explora a sua
relevância em diversas formas de raciocínio jurídico e levanta algumas hipóteses interessantes a respeito
das implicações decorrentes do tipo de categorização que o Direito decide empregar.
PALAVRAS-CHAVE
Categorização; raciocínio jurídico; epistemologia aplicada.
ABSTRACT
The aim of this paper is to investigate the problem concerning the categorization of facts in the Law.
Categorization consists of an intellectual exercise performed by the trier of fact, who qualifies the inclusion
or exclusion of a fact under the rule’s factual predicate. Every rule contains a factual predicate (also
called protasis), which refers to a specific class of things or events, and designates the boundaries of
applicability of the rule. Categorization is a type of previous reasoning that figures as a necessary condition
to the application of the Law. Accordingly, categorization is prior to the application of rules and precedents,
to the construction of analogies and to the process of fact-finding. The choice of a category reflects the
way in which the Law deals with the external world – sometimes making use of exclusive law-created
categories, while at others referring to non-legal categories. This research theorizes categorization,
explores its relevance in different forms of legal reasoning, and formulates some interesting hypothesis
concerning the implications arising from the type of categorization that the Law chooses to apply.
KEYWORDS
Categorization; legal reasoning; applied epistemology.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho investiga o problema da categorização dos fatos no
Direito. Na medida em que a categorização é uma operação intelectual que
precede toda forma de raciocínio jurídico, é necessário aprofundar a
compreensão de diversos modos de raciocínio jurídico. Analisaremos o
raciocínio com base em regras, a construção de analogias, a aplicação de
precedentes e a determinação dos fatos no contexto judicial70. Cada raciocínio
será analisado, em momento posterior, através de sua significação no contexto
extrajurídico vis-à-vis sua aplicação no contexto judicial. A justificativa da
presente pesquisa reside no fato de que a categorização desempenha uma
função que está mais no centro do raciocínio jurídico que costumamos
reconhecer71. Todo raciocínio jurídico pressupõe a categorização72; no entanto,
pouco se fala a respeito da categorização como um processo de raciocínio no
direito.
O conceito de “categorização” tem acepções diferentes a depender do
contexto em que aparece73. No mundo extrajurídico, a categorização é definida
como a atividade de organização empreendida pelo homem sobre sua própria
experiência. Esta organização opera com a classificação da experiência em
conceitos, associando-lhes rótulos linguísticos. A categorização é um
procedimento necessário no raciocínio sobre a realidade em geral, pois a
atribuição de significação aos fatos do mundo só ocorre mediante o uso de
categorias. Os fatos percebidos74 são assim organizados em grupos, classes ou
modelos75.
No contexto judicial, a categorização é uma atividade intelectual do
julgador que consiste em qualificar um fato do caso concreto como estando
incluído ou não no predicado fático de uma regra. Esta atividade também é
frequentemente chamada de “qualificação” ou “fixação”. Além de sua
importância para o raciocínio jurídico, vale ressaltar que o próprio predicado
fático de uma regra constitui uma categorização. É fácil entender o papel da
categorização na formulação das regras quando constatamos que o predicado
fático de uma regra é sempre uma generalização. Se há uma placa fixada na
parede de uma restaurante que diz “Cães não são permitidos”, o predicado
fático se refere a “qualquer tipo de cachorro neste restaurante, em qualquer
tempo”, e não a um cachorro em particular. Se a política de uma companhia
aérea diz que “Não serão permitidos, como bagagem, cães braquicefálicos”,76
ainda que tenha sido formulada de maneira mais específica, a política continua
operando através de uma generalização, uma vez em que ela proíbe todas as
raças que são afetadas pela síndrome branquicefálica de serem verificadas
como bagagem, e não a um bulldog em particular. “Não há regras para
particulares”, escreve Frederick Schauer77.
O problema que se vislumbra é que a escolha da categoria reflete o modo
pelo qual o Direito se relaciona com o mundo real78, ora operando com
categorias do mundo extrajurídico, ora com categorias eminentemente
jurídicas. Deve-se ter em mente que a escolha da categoria para qualificar
certos fatos é um ato de decisão do julgador, sendo que, em determinadas
situações, o Direito norteia-se por categorias extrajurídicas, como “feto”, e,
em outros momentos, por categorias estritamente jurídicas, como “bens” ou
“nascituro”. Por categorias extrajurídicas ou pré-jurídicas entendem-se
aqueles conceitos presentes em domínios externos ao Direito, como a Biologia
e a Política. Nesse sentido, é de se imaginar que o conceito de “feto” tenha um
sentido fora da realidade jurídica. Por outro lado, há de se notar que conceitos
como “bens” não possuem sentido senão no Direito. Perceba-se, ademais, que
a categorização, independentemente de operar com categorias jurídicas ou
extrajurídicas, associa o Direito a fatos do mundo, o que faz com que este
processo seja indispensável para a submissão do mundo ao governo de
regras79.
Este trabalho está estruturado em cinco partes, dedicadas a analisar quatro
diferentes tipos de raciocínio jurídico. Em cada parte, após uma análise da
estrutura do raciocínio em questão, buscaremos situar o problema da
categorização. Assim, nas seções que se seguem, analisaremos (I) o raciocínio
com base em regras, tendo como foco os casos difíceis; (II) a construção de
analogias; (III) a utilização de precedentes, muito semelhante à aplicação de
regras; e (IV) a determinação dos fatos. Por fim, na seção V, levantaremos
algumas hipóteses a serem investigadas no futuro.
1 REGRAS
A depender de seu contexto, extrajurídico ou judicial, um tipo de
raciocínio pode sofrer interpretações diversas, evidenciando o caráter
polissêmico do termo, ou apresentar maior ou menor especificidade. As
regras, no contexto extrajurídico, podem ser definidas como um
direcionamento do comportamento humano, que preceitua uma forma
apropriada de falar80, por exemplo. No contexto judicial, a este raciocínio é
atribuído uma especificidade maior, sendo ele caracterizado por prescrições
dotadas de um antecedente – chamado de predicado fático – e de um
consequente. Contudo, o elemento mais importante no raciocínio com base em
regras é a ideia de generalização.
Imaginemos o exemplo hipotético de Mário, um excelente motorista, que
estava dirigindo seu carro novo em um dia ensolarado de domingo a 80km/h,
limite para aquela rodovia. Ao conduzir seu carro em direção a saída, ele
entra em uma rua cujo limite de velocidade é 40 km/h, devido a presença de
uma escola pública a poucos metros. Mário, no entanto, continua a 80 km/h,
velocidade esta que possui total controle de seu carro, somado ao fato de que
não havia aula naquele dia. Um agente policial, por conseguinte, ao presenciar
o fato, solicitar o encostamento do carro e entrega a multa a Mário dizendo:
“A questão é que 40km/h é 40km/h, senhor, independente da circunstância”.
Toda regra, portanto, contém uma generalização81, pois é criada para abranger
vários casos e não atender às especificidades de apenas um caso concreto.
Além disso, toda regra também possui um texto82 – “é proibido conduzir acima
de 40 km/h” – e um propósito subjacente – devido à presença de uma escola a
poucos metros.
Por serem generalizações, as regras podem ser, quando aplicadas,
sobreinclusivas ou subinclusivas83. No primeiro caso, as regras incluem
eventos que não deveriam incluir tendo em vista o seu propósito subjacente;
no segundo caso, as regras não incluem eventos que deveriam incluir tendo em
vista o seu propósito subjacente. O caso de Mário configura um exemplo de
sobreinclusão uma vez que ele não violou o propósito subjacente da regra. Um
caso de subinclusão seria o de Felipe, por exemplo, um péssimo motorista.
Mesmo dirigindo a 30 km/h, em um dia de semana, Felipe oferece riscos
graves à segurança das crianças. Ele não seria, contudo, incluído na hipótese
da regra referida. A ideia de generalização, e o consequente fenômeno da
sobre- e subinclusão permitem-nos compreender a afirmação de que as regras
são regras porque oferecem razões de autoridade84. Isso significa que o
julgador deve aplicar a regra independentemente da sua concordância com o
conteúdo – não importa se ele acha ou não que Felipe é um péssimo condutor,
a regra não será aplicada a ele85. É nisso que consiste o raciocínio com base
em regras. Percebemos essa característica das regras quando internamente o
julgador discorda do conteúdo da regra, mas mesmo assim deve aplicar suas
consequências.
Passemos à análise da categorização no raciocínio com base em regras.
Para ilustrar como a categorização incide sobre o raciocínio com base em
regras, podemos pensar no caso enunciado pelas seguintes proposições:
“Aline estava grávida”, “Aline envolveu-se em um acidente de carro”, “O
acidente resultou no aborto” e “Aline pede indenização com base no artigo 3º,
I da Lei 6.194/74 da Lei do Seguro DPVAT”. Com efeito, diz o referido
dispositivo da Lei 6.194/74:
Os danos pessoais cobertos pelo seguro [DPVAT] compreendem as
indenizações por morte, invalidez permanente, total ou parcial, e por
despesas de assistência medica e suplementares, nos valores e
conforme as regras que se seguem, por pessoa vitimada:
I. R$ 13.500,00 no caso de morte;
II. Até R$ 13.500,00 no caso de invalidez permanente;
III. Até R$ 2.700,00 como reembolso à vítima no caso de assistência
médica.
Há de se perceber que o dispositivo acima descreve situações de “morte,
invalidez permanente, total ou imparcial” e fala em “pessoa vitimada”. É
tendo em mente essas categorias que se deve responder aos seguintes
questionamentos: “pode o feto ser categorizado como pessoa?”, “pode o feto
ser categorizado como pessoa vitimada para efeitos de seguro DPVAT?”,
“pode o feto ser categorizado como titular do direito de indenização por
morte?” e “pode o ser que não nasceu morrer?”. Em suma, como classificar o
caso do feto? Somente por meio da categorização do bebê da Aline é que
poderemos saber se a lei incide ou não sobre o seu caso86.
Trata-se este exemplo de uma ilustração do caso presente no RESP n.
1.415.727 – SC. No julgamento deste recurso indicou que uma interpretação
literal do artigo 2º do Código Civil não condiria com uma interpretação
sistemática do ordenamento jurídico. Aquela interpretação levaria à crença de
que a personalidade jurídica dá-se apenas quando do nascimento com vida,
porém esta última revela que o conceito de pessoa não está vinculado
necessariamente à ocorrência daquela situação fática. Assim, o rótulo de
“pessoa”, neste último caso, poderia ser flexibilizado quanto às situações
fáticas que por ele são contempladas. É neste sentido que se observa o
nascituro enquanto “pessoa”, como estaria presente na interpretação
sistemática dos artigos 1º, 2º, 6º e 45, caput, do Código Civil. O julgado traz
também a presença do “crime de aborto” enquanto “crime contra a pessoa” e
“crime contra a vida”, o que se levaria a crer que o nascituro teria a condição
de pessoa viva. Outro argumento trazido está em se afirmar que as teorias
natalista e da personalidade condicional foram erigidas sob a órbita
patrimonial – contra a qual foram positivadas a Constituição de 1988 e o
Código Civil de 2002, atualmente em vigor. Afirma-se ainda que tais teorias
só fazem sentido se reconhecido o direito à vida, sendo este necessário para
que se possa pensar em garantia de expectativas de direitos ou direitos
condicionados ao nascimento.
O caso consiste em um acidente automobilístico que resultou no aborto de
um nascituro de aproximadamente quatro meses, conforme noticiado por
Graciane Muller Selbman, que ajuizou, então, a ação em face da Seguradora
Líder dos Consórcios do Seguro DPVAT. Requereu-se a indenização por morte
com base no disposto do art. 3º, caput e inciso I, da Lei n. 6.194/1974. Na
primeira instância, o caso foi julgado procedente. É de se notar que, neste
momento, o Juízo de Direito categorizou o feto enquanto pessoa, pois imputou
consequências que só fazem sentido quando da constatação de que o fato pode
consistir da premissa fática de um silogismo cuja premissa normativa continha
a categoria de “pessoa”, implícita ou explicitamente. Da mesma forma, exigir-
se-ia a categoria de “pessoa viva” no predicado fático desta norma,
respondendo-se, pois, quando da aceitação da referida premissa fática
enquanto componente deste silogismo, afirmativamente quanto à questão
outrora suscitada “pode o ser que não nasceu morrer?”.
Em grau de apelação, porém, o julgado foi alterado, sendo negada a
indenização. Discutiu-se a natureza jurídica do nascituro, chegando-se à
impossibilidade de recebimento de direitos patrimoniais, a qual estaria sujeita
à condição do nascimento com vida. Afirmou-se a teoria condicionalista
presente no art. 2º do Código Civil, cuja interpretação não-sistêmica, como
mencionado mais acima, levaria ao não reconhecimento da aquisição da
personalidade pelo nascituro. Outro argumento que se pode notar consiste em
que apenas direitos personalíssimos poderiam ser garantidos aos nascituros,
como o direito à vida, porém não direitos patrimoniais, de forma que não se
receberia o a indenização requerida – havendo, apenas, pois, uma mera
expectativa de direitos patrimoniais.
No julgamento do recurso especial fundado materialmente neste caso,
porém, contra-argumentou-se que a autora não buscaria direitos patrimoniais
do nascituro, porém requereria indenização pela produção do resultado morte,
sendo que, no caso de norte, a pessoa do beneficiário do seguro não
coincidiria com a da vítima do sinistro.
A decisão explora ainda as três teorias que poderiam ser aplicáveis ao
caso, devendo-se observar que cada teoria realizaria uma categorização
distinta. A teoria natalista não rotularia o nascituro como pessoa, pois a
personalidade jurídica só se iniciaria com o nascimento. Fala-se aqui em
expectativas de direitos, não em direitos. A teoria concepcionista, por seu
turno, qualificaria o nascituro como pessoa, visto que a personalidade jurídica
só se iniciaria com a concepção. Assim, o nascituro seria sujeito de direitos.
Seria, pois, possível, para esta teoria a subsunção no silogismo jurídico de
uma norma que, em seu predicado fático, se remetesse à categoria de “pessoa”
e uma premissa fática que apresentasse a categoria de “nascituro”, pois este
não seria que “pessoa”. Há ainda a teoria da personalidade condicional, em
que o nascituro titularizaria direitos submetidos a condição suspensiva, porém
a personalidade começaria apenas com nascimento. Para esta teoria, não seria
ainda, o nascituro pessoa.
Ainda sobre categorização, a decisão aponta que a categoria de “pessoa” e
a de “sujeito de direitos” não esgotam seus conteúdos mutuamente, pois entes
outros que não pessoas podem ser sujeitos de direitos, não sendo, pois, todo
sujeito de direitos, pessoa. Assim, seria mais fácil se entender o nascituro
como sujeito de direitos do que como pessoa, visto a maior quantidade de
eventos que podem ser qualificados por aquele conceito. Afirma a decisão,
ainda, que os conceitos de “pessoa” e “personalidade jurídica” não são
tampouco sinônimos, sendo esta mais restrita que aquela, o que se observa
pela construção presente no artigo 2º do Código Civil “a personalidade civil
da pessoa começa”. É ainda se pautando nesta distinção que se poderá dizer
que a lei é silente quanto ao início da existência da pessoa natural, o que se
infere a partir da constatação dos termos expressos no artigo 6º, em que se
afirma “[a] existência da pessoa natural termina com a morte”, como bem
aponta o juiz deste recurso, o Ministro Luis Felipe Salomão. Aponta, assim, o
Ministro: “Portanto, extraem-se conclusões que afastam a ideia de que só
pessoas titularizam direitos e de que a existência de pessoa natural só se inicia
com o nascimento”; e continua “Porém, segundo penso, a principal conclusão é
a de que, se a existência da pessoa natural tem início antes do nascimento,
nascituro deve mesmo ser considerado pessoa, e, portanto, sujeito de direito,
uma vez que, por força do art. 1º, “[t]oda pessoa é capaz de direitos e deveres
na ordem civil”. Aqui, observa-se, uma vez mais a categorização do nascituro
enquanto pessoa, e, em virtude do fenômeno “pessoa” estar contido,
juridicamente, no de “sujeito de direitos”, haveria de se entender “nascituro”
enquanto contemplado por “sujeito de direitos”. Assim, nota-se um atributo
básico da categorização, ela opera com níveis de generalização; uma categoria
genérica poderia abarcar mais situações fáticas que uma categoria não-
genérica – e, principalmente, quando se puder falar de generalização, se pode
falar de categorias, pois, ser mais ou menos genérico é prerrogativa da
categoria, não da situação fática tampouco na porção essencialmente
normativa de uma norma.
2 ANALOGIA
Entendido no meio extrajurídico com uma “relação de semelhança entre
coisas ou fatos”87, a analogia, no contexto judicial, fundamenta-se na
identificação de propriedades relevantes semelhantes. A mera semelhança de
atributos entre duas situações não é suficiente para a construção de um
raciocínio analógico para o Direito. É preciso que os atributos identificados
sejam juridicamente relevantes.
Um exemplo claro de raciocínio analógico pode ser identificado em um
dos debates mais polêmicos das eleições presidenciais de 201488. Ao afirmar
que o discurso do candidato Lévy Fidelix contra a comunidade LGBT era o
mesmo que Hitler empregava contra os judeus, a candidata Luciana Genro
construiu um raciocínio analógico baseado em relações de semelhança de
atributos e propósitos. Alguém poderia indagar, no entanto, o motivo pelo qual
a mesma construção analógica não poderia ser fundamentada com Charlie
Chaplin, por exemplo, uma vez em que os três sujeitos possuíam atributos
semelhantes, como o fato de serem homens e de possuírem bigodes. Há de ser
ver, porém, com o processo de categorização, que uma regra ou princípio
jurídico incidirá sobre as situações fáticas diferentes materializando as
propriedades relevantes para esta regra ou princípio, podendo restar, pois,
irrelevante o fato de ambos serem homens e possuírem bigodes. Assim, a
analogia não se fundamentaria sobre esses dois atributos.
Passemos à análise da categorização no raciocínio analógico. Pense-se em
duas situações fáticas que não se confundem. Uma primeira apresentando
certos atributos e uma segunda também com determinados atributos. Ao se
determinar que uma categoria abrange atributos de ambas as situações,
justifica-se a analogia entre elas. Há de se questionar, porém, como se
determina esta categoria. É ela determinada quando da incidência de uma
regra ou princípio jurídico sobre as situações fáticas, o que ocasionará a
materialização de certas propriedades que, se forem tidas como relevantes,
justificarão o raciocínio analógico. Neste sentido, de um conjunto de n
propriedades apresentados pela primeira situação fática, determinada regra ou
princípio ressaltará x, y e z, que, se presentes também na segunda situação
fática como propriedades relevantes, levarão à analogia. Há de se pensar,
neste ponto, que a categorização pode ser feita com base em atributos ou
propósitos. Os primeiros dizem respeito a propriedades pré-existentes ao que
o homem possa pensar sobre elas; enquanto os segundos são eminentemente
humanos ou institucionais89. Quando da analogia entre situações fáticas,
verificou-se que foram materializados atributos – e não propósitos – mas é
necessário que se pense que os propósitos criam propriedades que são
equiparáveis a atributos e podem ser materializadas por um princípio ou regra.
Pensar que “a criança deve ser protegida” implica afastar facas e pedófilos,
que não são semelhantes quando de uma concepção unicamente natural ou pré-
humana, visto que não há atributos prévios semelhantes. Os propósitos, por
isso, têm o condão de indicar propriedades equivalentes aos atributos e que
poderão justificar uma possível analogia que equipare pedófilos a facas e
cigarros, todos, de alguma forma, perigosos a crianças.
3 PRECEDENTES
A utilização do termo precedente em outros contextos não jurídicos se
diferencia em grau de intensidade normativa, e pode ser confundido com o
termo analogia90. No mundo externo ao Direito, refere-se a precedente para
designar uma “decisão ou modo de agir que serve de referência para um caso
parecido”91. No contexto judicial, porém, trata-se de uma decisão passada que
opera como prescrição para a resolução de casos futuros92. Dessa forma, nota-
se que o precedente não oferece tão somente uma referência ou argumentação
persuasiva – como a analogia – mas também evidencia a existência pré-
determinada de uma resposta do Direito para a hipótese fática em questão.
Consiste, por conseguinte, em um raciocínio com base em regras, uma vez que
sua aplicabilidade não está condicionada à discricionariedade do julgador. De
modo a justificar sua aplicação, MacCormick elenca três motivos: (1) justiça;
(2) imparcialidade; e (3) economia de tempo e esforço. No que concerne à
razão de justiça, sustenta-se que casos iguais devem ser tratados igualmente,
de modo a garantir a segurança jurídica. A imparcialidade, por sua vez,
possibilita a manutenção de um sistema constante, que promove a mesma
justiça a todos, pois a fidelidade ao Estado de Direito requer que se evite
qualquer variação frívola no padrão decisório de um juiz ou corte para outro.
Já o ultimo motivo permite que juízes e advogados não precisem realizar novo
esforço argumentativo sobre as mesmas circunstâncias. Como exemplo, tem-se
a Resolução nº 175 do Conselho Nacional de Justiça – que proíbe as
autoridades competentes de se recusarem a habilitar, celebrar casamento civil
ou de converter união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo -
que utilizou a ADPF 132 e a ADI 4277, ações estas que tratavam da União
estável homoafetiva, como precedente.
A categorização no raciocínio sobre precedentes opera de forma bastante
similar à categorização no raciocínio analógico. Pode-se pensar na ADPF 132
e na ADI 4277, ambas de 2011, sendo seu resultado o da equiparação de
cônjuge aos companheiros de mesmo sexo. Imagine-se um caso, em 2014, em
que Caio, companheiro de Tício, morre; pergunta-se: Tício poderia herdar de
Caio tal como ocorre quando da morte de um dos cônjuges? Tendo-se como
base os precedentes supracitados, a resposta seria afirmativa. Percebe-se, com
isso, que os casos das ADPF 132 e ADI 4277 devem ser relevantemente
semelhantes (tal como as propriedades na analogia) a este caso recente de
Caio e Tício para que se justifique sua utilização enquanto precedentes.
4 DETERMINAÇÃO DOS FATOS
Um tipo importante de tomada de decisão em procedimentos legais
consiste na determinação dos fatos. Não há no mundo externo ao Direito,
contudo, um termo que seja precisamente fidedigno ao significado da
expressão “determinação dos fatos”. Ainda assim, é possível traçar uma
relação entre este tipo de raciocínio com o ato de investigar, que consiste em
fazer diligências para achar, pesquisar, indagar, inquirir93. Nessa etapa do
processo legal, determina-se os fatos que são relevantes e que constituirão a
premissa fática do silogismo jurídico. Os fatos, nesse contexto, estão sempre
mediados pela linguagem, de maneira que o objeto da prova no processo legal
consiste em enunciados sobre alegações de certos fatos, e não nos fatos em si.
Essa ideia de representação se materializa no quadro La trahison des
images, em que René Magritte apresenta um cachimbo junto a seguinte
afirmação: “Ceci n’est pas une pipe” (“Isto não é um cachimbo”). Trata-se de
uma representação de um cachimbo, assim como os fatos no processo legal
são representações, alegações, enunciados sobre fatos, mas não os fatos de per
si.
O raciocínio probatório constitui-se de fatos a provar e fatos probatórios94.
Neste raciocínio, há um importante procedimento: o de passagem dos fatos
probatórios, ou seja, as próprias provas, aos fatos que se almeja provar. Este
procedimento exige a categorização a partir do momento que se deseja
representar um fato que possa ser premissa fática de uma regra jurídica.
Tomemos um exemplo. “Tício impediu Caio de respirar ocasionando-lhe
inatividade cerebral” se trata do fato probatório. Entretanto, determinada
premissa normativa “Quem mata deve ser punido” não se remete à inatividade
cerebral, porém à morte. O que faria, então, com que Tício fosse punido? Que
“inatividade cerebral” valesse como “morte”, predicado fático da norma.
Deste modo, o fato probatório passa a contar como o fato a provar, sendo este
procedimento de categorização necessário para a constituição da premissa
fática, o que tornará possível a decisão judicial.
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SCHAUER, Frederick F. Playing by the Rules: A Philosophical Examination
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SCHAUER, Frederick F. Thinking Like a Lawyer: A New Introduction to
Legal Reasoning. USA: President and Fellows of Harvard College, 2009.
SCHAUER, Frederick F. La categorización, en el Derecho y en Mundo.
Doxa, Cuardernos de Filosofia del Derecho, 2005.
SPELLMAN, Barbara A.; SCHAUER, Frederick. Legal Reasoning. Virginia
Public Law and Legal Theory Research Paper No. 2012-09.
64 Este artigo é resultado de pesquisa realizada no âmbito no Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia
Jurídica Aplicada aos Tribunais (GREAT/Faculdade Nacional de Direito–FND/Universidade Federal do
Rio de Janeiro–UFRJ) sob orientação das professoras Rachel Herdy e Janaína Matida.
65 Graduando em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de janeiro;
monitor de Filosofia Geral; e pesquisador do Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos
Tribunais (GREAT). E-mail: andre_wend@hotmail.com.
66 Graduando em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro;
bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC, 2014-2016); e pesquisador do
Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais (GREAT). E-mail: pedrodepessoa@ufrj.br.
67 Professora Adjunta da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro;
Professora Permanente do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de
Janeiro; e pesquisadora-líder do Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais (GREAT).
E-mail: rachelherdy@direito.ufrj.br.
68 Professora Substituta da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro;
Doutoranda na Universidad de Girona; e pesquisadora-líder do Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia
Aplicada aos Tribunais (GREAT). E-mail: janamatida@gmail.com.
69 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e
pesquisador do Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais (GREAT).
70 SPELLMAN, Barbara A.; SCHAUER, Frederick. Legal Reasoning. Virginia Public Law and Legal
Theory Research Paper No. 2012-09, p. 3.
71 Idem, p. 17.
72 SCHAUER, Frederick F. La categorización, en el Derecho y en Mundo. Doxa, Cuardernos de
Filosofia del Derecho, 2005, p. 308.
73 Define o Dicionário Houaiss “categorização” como “1. ato ou efeito de classificar por ou em
categorias. 2. organização da experiência humana em conceitos, tendo rótulos linguísticos a eles
associados”. Trata-se este do sentido pré-jurídico do termo, isto é, o modo como é compreendido fora da
realidade do Direito.
74 GONZÁLEZ LAGIER, Daniel. Hechos y Argumentos I. Jueces para la Democracia. Información y
Debate, nº 46, 2003 p. 19.
75 SCHAUER, 2005, op. cit., p.309.
76 Esta regra aparece na política de bordo da American Airlines.
77 SCHAUER, Frederick F. Playing by the Rules: A Philosophical Examination of Rule-Based
Decision-Making in Law and in Life. New York: Oxford University Press, 1991, p. 17
78 Ibid., p.308.
79 SCHAUER, 2005, op. cit., p.309
80 Dicionário Houaiss: “re.gra sf. 1. Aquilo que regula, dirige, rege. 2. Norma, fórmula que indica o modo
apropriado de falar, pensar, agir em determinados casos”.
81 SCHAUER, Frederick F. Thinking Like a Lawyer: A New Introduction to Legal Reasoning.
USA: President and Fellows of Harvard College, 2009, pp. 24-9.
82 Ibid., pp.29-35.
83 SCHAUER, 1991, op. cit. pp. 31-4.
84 SCHAUER, 2009, op. cit., pp.61-7.
85 SCHAUER, 1991, op. cit., pp.3-6.
86 O exemplo refere-se a uma recente decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, no RESP n.
1.415.727 de Santa Catarina, relatado pelo Ministro Luiz Felipe Salomão.
87 Dicionário Houaiss: “a.na.lo.gi.a sf. 1. relação de semelhança entre coisas ou fatos distintos. 4. na
filosofia moderna, processo efetuado através da passagem de asserções facilmente verificáveis para
outras de difícil constatação, realizando uma extensão ou generalização probabilística do conhecimento.”
88 Debate presidencial das eleições de 2014 no Brasil, promovido pela Rede Globo no dia 02 de outubro.
Disponível em: http://youtu.be/jQbj3Pe81JE?t=1m10s.
89 SCHAUER, 2005, op. cit., p. 310.
90 SCHAUER, 2009, op. cit., pp. 85-91.
91 Dicionário Houaiss: “pre.ce.den.te sm. 3. fato que permite entender um outro fato análogo e posterior;
decisão ou modo de agir que serve de referência para um caso parecido. 4. fato ou ato anterior invocado
como justificação ou pretexto para se agir da mesma forma”.
92 SCHAUER, 2009, op. cit., p. 37.
93 Dicionário Houaiss: “in.ves.ti.gar. v.t.d. 1. seguir os vestígios, as pistas de 2. fazer diligências para
descobrir <i. os motivos de um crime> 3. procurar descobrir (algo), com exame e observação minuciosos;
pesquisar (i. a causa de uma doença).
94 GONZÁLEZ, D. Hechos y Argumentos II: Racionalidad epistemológica y prueba de los hechos
en el proceso penal. Jueces para la Democracia, nº 47, 2003, p.35.
95 SCHAUER, 2005, op. cit., p.307.
96 Ibid, p.320.
A BUSCA PELOS FATOS NO DIREITO: A
COERÊNCIA É UMA BOA DETETIVE?
FACT FINDING AT LAW: IS COHERENCE A
GOOD DETECTIVE? 97
RESUMO
Na década de 1960, uma teoria bastante peculiar ganhou força nos países da common law. Impulsionado
pelo caso People v. Collins, o probabilismo jurídico, como ficou conhecido na literatura, conquistou
diversos juristas e filósofos americanos. Sua premissa básica consiste na ideia de que é possível aplicar a
teoria da probabilidade matemática ao direito de forma a se avaliar as provas disponíveis e, a partir disso,
chegar a conclusões acerca das alegações sustentadas pelas partes. Para que se realize essa aplicação, o
teorema de Bayes, uma fórmula matemática, é de extrema importância, na medida em que nos permite
recalcular a probabilidade de uma alegação sempre que uma nova prova surgir. Apesar do grande apoio
conquistado no século passado, o probabilismo jurídico está equivocado. É a probabilidade epistêmica, e
não a matemática, que nos permite avaliar as provas disponíveis e chegar a conclusões sobre o caso
concreto. Mas no que consiste a probabilidade epistêmica? Para alguns autores, ela está relacionada à
noção de coerência, o que nos leva a uma segunda questão: qual o papel desempenhado pela coerência na
busca pelos fatos no direito? Há duas abordagens interessantes que se debruçam sobre essa pergunta. A
primeira, de Amalia Amaya, confere à coerência um papel central e trabalha com a noção de
responsabilidade epistêmica. A segunda, de Susan Haack, conjuga o coerentismo com a sua teoria rival na
epistemologia, qual seja, o fundacionalismo, além de trabalhar com a noção de garantia e suas dimensões.
Resta saber qual dessas duas abordagens é a mais adequada para a justificação de hipóteses ou alegações
no contexto jurídico da busca pelos fatos. Em que devemos confiar, afinal, na responsabilidade epistêmica
ou nas dimensões da garantia?
PALAVRAS-CHAVE
Coerência; inferência à melhor explicação; fundacoerentismo.
ABSTRACT
In the 1960 decade, a very peculiar theory became strong in the common law countries. Driven by the
People v. Collins case, legal probabilism, as it became known in literature, attracted many american
jurists and philosophers. Its basic premisse is that it is possible to apply the mathematical probability theory
in law in order to evaluate the available evidence and then reach conclusions about the litigants’ claims.
Bayes’ theorem, a mathematical formula, is an essential part for that work, as it allows us to recalculate
the probability of a claim whenever we discover new evidence. Despite the support conquered in the last
century, legal probabilism is mistaken. The probability that allows us to evaluate evidence and reach a
conclusion about the case is the epistemic one. But what epistemic probability is? For some authors, it’s
related to the notion of coherence, what takes us to another question: what’s the role of coherence in law
fact finding? There are two interesting approaches that answer this question. The first one, developed by
Amalia Amaya, gives coherence a central role and works with the notion of epistemic responsability. The
second one, developed by Susan Haack, unites coherentism with its rival theory in epistemology, that is,
foundationalism, and works with dimensions of warrant. The question is: what of these two approaches is
more adequate to justify hypotheses or claims in law fact finding? In which one should we trust: epistemic
responsability or dimensions of warrant?
KEYWORDS
Coherence; inference to the best explanation; foundherentism.
INTRODUÇÃO
Tradicionalmente, as discussões acerca da justificação das decisões
judiciais se debruçam sobre a premissa normativa, questionando, por exemplo,
como as normas devem ser interpretadas e aplicadas aos casos concretos. No
entanto, outra questão igualmente importante começa a reivindicar seu espaço
na literatura. Não apenas as premissas normativas carecem de justificação,
mas também as premissas fáticas. Afinal, não pode o julgador decidir sem que
antes as partes tentem provar as alegações sobre fatos por elas sustentadas.
Dessa forma, surge a pergunta: existem critérios para que o julgador possa
acreditar que determinada premissa fática é verdadeira de forma justificada?
Uma resposta que se tornou bastante popular na década de 1960 busca
amparo na probabilidade matemática. O então chamado probabilismo jurídico
afirmava ser possível avaliar as alegações e provas disponíveis por meio de
axiomas e fórmulas matemáticos, como, por exemplo, o teorema de Bayes.
Nos últimos anos, porém, surgiu um forte movimento contrário ao
probabilismo jurídico, argumentando que a probabilidade aplicável ao direito
não é a matemática, mas sim a epistêmica, pois é a epistemologia que nos
permite raciocinar diante de provas complexas.
É justamente sobre essa discussão que se debruça o presente artigo, o qual
foi dividido em duas partes. A primeira se dedica ao estudo do probabilismo
jurídico, enquanto a segunda se dedica ao estudo da probabilidade epistêmica
3. Cada uma dessas partes foi dividida em seções diferentes. A seção um
expõe de forma breve a história do probabilismo jurídico, apontando alguns
de seus principais autores. A seção dois traz algumas explicações acerca da
teoria e da aplicação do teorema de Bayes, bem como os principais
argumentos a seu desfavor. A seção três aborda uma proposta alternativa que,
contudo, ainda não abandona totalmente o cálculo matemático. A seção quatro
dá início ao estudo da noção de probabilidade epistêmica, trazendo noções
importantes sobre teorias da verdade e teorias da justificação. Nas seções
cinco e seis, por fim, adentramos as abordagens de duas autoras específicas,
Amalia Amaya e Susan Haack, trabalhando suas principais ideias.
Enquanto Amaya sustenta uma abordagem centrada na ideia de coerência,
Haack conjuga o coerentismo com sua teoria rival de justificação epistêmica,
o fundacionalismo. Ambas as autoras, porém, trabalham com a noção de
verdade como correspondência. Outra diferença diz respeito aos métodos de
justificação adotados por cada uma. Enquanto a primeira se foca no sujeito
julgador e na noção de responsabilidade epistêmica, a segunda se foca no
objeto (as evidências) e na noção de garantia.
97 Trabalho investigado no âmbito do Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais
(GREAT/Faculdade Nacional de Direito–FND/Universidade Federal do Rio de Janeiro–UFRJ) sob
orientação da professora Rachel Herdy.
98 Aluna de Graduação da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais (GREAT),
orientado pela Prof.ª Rachel Herdy. E-mail: mimikachan12@hotmail.com.
99 Professora Adjunta do Departamento de Teoria do Direito da Faculdade Nacional de Direito da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Professora Colaboradora do Mestrado em Teorias
Jurídicas Contemporâneas da UFRJ; Doutora em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: rherdy@ufrj.br.
PRIMEIRA PARTE
1 TRIAL BY MATHEMATICS
Na década de 1960, um caso a princípio simples causou grande comoção
entre os juristas americanos. O casal Collins, acusado de roubar uma senhora
em um beco de Los Angeles, Califórnia, foi condenado com base em um
cálculo probabilístico. Tal episódio, no mínimo curioso, envolvia um júri
dominado pelo fascínio, mas iletrado nos conceitos matemáticos que a
acusação lhes apresentou. O grande argumento em desfavor dos Collins era de
que as chances de se encontrar um casal exatamente como eles eram muito
baixas, o que implicaria a sua culpa.
Talvez soe estranho para aqueles inseridos na tradição da civil law que
uma decisão possa ser pautada em números, mas decisões nesse sentido
ocupam um lugar interessante nos Estados Unidos. Tanto no âmbito civil como
no criminal, encontramos casos em que a probabilidade desempenha um papel
fundamental, seja para condenar o réu, seja para negar ao autor a indenização
por um determinado dano, dentre outras hipóteses. Existem, inclusive, vários
estudos sobre o assunto, alguns sob um ponto de vista moral100, outros sob um
ponto de vista epistêmico101.
Não se tratam, em geral, de casos que causem clamor por conta de
aspectos políticos ou morais. Como disse a epistemóloga Susan Haack, eles só
poderiam ser realmente amados por estudiosos interessados em direito
probatório (2014b). No entanto, não deixam de ser importantes, justamente por
sua premissa básica ser questionável: afinal, como pode o cálculo
probabilístico, pertencente à lógica formal, ser aplicável ao direito, no qual
temos situações únicas que não podem ser repetidas, além de princípios e
juízos de valor que influenciam a tomada de decisões?
Voltemos ao caso do assalto no beco. A história tem início em junho de
1964, quando uma senhora volta para sua casa após fazer compras. Ela é
surpreendida por uma jovem loira que tenta derrubá-la para roubar sua bolsa.
Em meio ao susto, tudo o que consegue registrar é que a agressora veste
roupas escuras e prende os cabelos em um rabo de cavalo. Não muito longe
dali, um homem que cuida de seu jardim vê a referida jovem fugir do beco e
saltar para dentro de um carro amarelo dirigido por um homem negro com
barba e bigode.
Alguns dias depois, o casal Janet e Malcolm Collins é acusado do roubo e
levado a julgamento. As provas contra ambos são no mínimo confusas, com
testemunhos conflitantes e antecedentes desfavoráveis a Malcolm. É nesse
momento delicado que a acusação faz a jogada que mudaria não só a vida do
casal, mas também grande parte da literatura jurídica norte americana. Edward
Thorp, matemático contratado pela acusação, realiza um cálculo que nenhum
dos jurados é capaz de entender. Aplicando a regra do produto às descrições
fornecidas pela vítima e pelo homem do jardim, Thorp chega à conclusão de
que havia apenas uma chance em 12 milhões de se encontrar um casal com as
características dos Collins, o que significaria que a probabilidade de Janet e
Malcolm terem sido vítimas de uma terrível coincidência era mínima102. O
casal é condenado.
Quatro anos depois, o caso chega à Suprema Corte da Califórnia e é
denominado People v. Collins. Janet havia desistido, mas Malcolm recorrera,
exigindo um novo julgamento. A Corte entende que os cálculos realizados por
Thorp estão equivocados, não apenas em termos estatísticos, mas também em
termos teóricos. Afinal, o matemático se utilizara de dados inventados por ele,
desprovidos de qualquer base empírica, e ignorara um dos requisitos para a
correta aplicação da regra do produto, qual seja, a independência entre os
fatores. Alguns deles não eram realmente independentes entre si, o que por si
só derrubaria o argumento de Thorp103.
Seis características foram retiradas dos relatos da senhora e da testemunha
no jardim: mulher loira, mulher com rabo de cavalo, homem negro com barba,
homem com bigode, carro amarelo e casal inter-racial. Uma análise cuidadosa
deixa claro que as características “homem com bigode” e “homem negro com
barba” na verdade constituem uma só, qual seja, “homem negro com barba e
bigode”. Além disso, quando falamos em mulher loira e homem negro, já está
implícita a ideia de casal inter-racial, o que torna esta categoria inútil104.
Assim, para que pudéssemos falar em fatores independentes entre si, teríamos
de nos ater às seguintes categorias: “homem negro com barba e bigode”,
“mulher loira” e “carro amarelo”. Isso não eliminaria, contudo, o problema
das estatísticas inventadas.
Características Probabilidade de sua ocorrência
Carro amarelo 1/ 10
Homem com bigode 1/4
Mulher com rabo de cavalo 1/10
Mulher loira 1/3
Homem negro com barba 1/10
Casal inter-racial 1/1000
Tabela 1: Caso Collins
2 O TEOREMA DE BAYES
Todo estudo precisa de um ponto de partida, e, no caso da probabilidade
matemática, esse ponto são os chamados axiomas de Kolmogorov. Eles
definem a base da probabilidade como a conhecemos atualmente, abarcando,
também, o teorema de Bayes. São três axiomas ao todo: (1) a probabilidade
será sempre um valor de zero a um; (2) a probabilidade de um evento certo é
igual a um e (3) para dois ou mais eventos mutuamente excludentes, ou seja,
que não podem ocorrer em conjunto, a probabilidade de um ou outro ocorrer é
igual à soma de suas probabilidades separadas110. Neles estão implícitas três
ideias importantes: a) não existem probabilidades negativas; b) a
probabilidade de um evento impossível é igual a zero e c) a probabilidade da
ocorrência de um evento qualquer somada à probabilidade de sua não
ocorrência é sempre igual a um, ou, em termos matemáticos, P(X) + P(¬X) =
1.
Em algumas situações, é possível que os eventos, em vez de excluírem uns
aos outros, sejam independentes entre si. Isso quer dizer que a ocorrência de
um deles não influenciará a probabilidade de ocorrência do outro. Nesses
casos, a probabilidade de todos ocorrerem é igual ao produto de suas
probabilidades separadas. Eis a regra do produto, a qual foi utilizada
equivocadamente por Thorp no julgamento do casal Collins. Para ilustrar o
uso correto dessa regra, podemos citar o exemplo das caixas com bolas
coloridas. Imaginem-se duas caixas (A1 e A2) contendo quantidades
diferentes de bolas vermelhas e azuis. Pergunta-se qual a probabilidade de
retirarmos uma bola vermelha de A1 e uma bola azul de A2. Para chegar ao
resultado, basta multiplicar as probabilidades em separado de cada um dos
eventos. Um aspecto importante dessa regra é que o produto será sempre
inferior à menor probabilidade dentre as probabilidades separadas dos
eventos em questão111.
Também é possível que os eventos influenciem uns aos outros, de forma
que a ocorrência de um altere a probabilidade do outro. Nessa situação, temos
a chamada probabilidade condicional, que pode ser assim problematizada:
qual é a probabilidade de um evento A ocorrer uma vez que o evento B tenha
ocorrido? Por exemplo, a probabilidade de retirarmos, aleatoriamente, o ás de
ouro de um baralho não viciado será, não havendo nenhuma condição, de 1/52.
Se, porém, nós soubermos que a carta retirada é vermelha (nossa condição), a
probabilidade será alterada, tornando-se 1/26.
O teorema de Bayes está inserido no estudo das probabilidades
condicionais. O que o diferencia é a existência de eventos mutuamente
excludentes que podem influenciar um outro evento que deles depende. Em
outras palavras, nós temos um evento B que pode ser influenciado por um
evento do tipo A, sendo que os eventos do tipo A (A1, A2, A3, A4, ..., An) não
podem ocorrer em conjunto. Imagine-se, a título ilustrativo, três caixas (A1,
A2 e A3) contendo bolas vermelhas e azuis. Retira-se uma bola vermelha de
uma delas aleatoriamente (evento B). Pergunta-se qual a probabilidade de essa
bola ter sido retirada da caixa A1.
Esse teorema, perfeito na matemática, foi adaptado para a valoração das
provas no direito. Em vez de caixas e bolas coloridas, ou qualquer que seja o
objeto que a imaginação escolher, trabalha-se com alegações fáticas que se
contrapõem. Para cada alegação p que possa ser sustentada, é possível
levantar uma alegação negativa, de não-p. No âmbito criminal, por exemplo,
podemos trabalhar com as hipóteses de culpa (o réu cometeu o crime) e
inocência (o réu não cometeu o crime). A probabilidade dessas alegações será
calculada com base nas provas disponíveis, podendo ser recalculada sempre
que se descobrir algo novo:
Suponha que nós queiramos reacessar a probabilidade de um
probandum à luz de uma nova prova. Essa probabilidade é chamada
de probabilidade posterior, pois é relativa à probabilidade dessa
alegação depois que obtivemos essa nova prova. A fim de determinar
essa probabilidade posterior, nós precisamos de dois ingredientes. O
primeiro, chamado de probabilidade anterior, expressa quão seguros
nós estávamos de que a alegação é verdadeira antes de obtermos a
nova prova. O segundo, chamado de possibilidade, permite-nos
expressar quão forte é essa nova prova para transformar nossa
probabilidade anterior em uma probabilidade posterior (SCHUM,
2005: 251 – tradução livre).
Para ilustrar a aplicação do teorema, utilizaremos um exemplo inicialmente
proposto por TRIBE (1971), em uma forma simplificada. Imagine-se o
seguinte: um jovem assassinou uma senhora de idade e fugiu da cidade assim
que possível. Apesar de seus esforços, foi pego e levado a julgamento pelo
júri. Um dos jurados, sem saber que o réu tentara fugir, atribui à probabilidade
de ele ser culpado um valor inicial x. Ao saber da tentativa de fuga, o jurado
estima a probabilidade de um réu, sendo culpado, tentar fugir e alcança o
valor y. Com base nisso, aplica o teorema e chega à conclusão de que a
probabilidade final de o réu ser culpado é igual a w.
Esse raciocínio pode parecer sedutor à primeira vista, mas apresenta
sérias falhas. O contexto jurídico é complexo demais para se sujeitar à lógica
matemática. Não raro, as provas disponíveis não nos permitem chegar a
conclusões satisfatórias, porque são imperfeitas e incompletas. Às vezes,
sequer há provas. Diz-se que a probabilidade de ocorrência de um evento x
somada à probabilidade de sua não ocorrência é igual a 1, mas, se não existem
provas ou elas são muito fracas, nenhuma probabilidade pode ser estabelecida
(HAACK, 2014b).
Um dos problemas do teorema de Bayes é que ele não abre espaço para a
dúvida. Uma vez que nem sempre haverá uma base empírica confiável para o
estabelecimento das probabilidades, como ocorre na estimativa da
probabilidade de um réu culpado tentar fugir, há o risco de o julgador se
utilizar de valores inventados e pautados em suas próprias experiências e
preconceitos. Isso faz do teorema um cálculo altamente subjetivo e, por isso
mesmo, indesejável. Afinal, se não é possível estabelecer uma probabilidade
de forma objetiva, mas esta deve ser estabelecida, até para que se possa
aplicar o teorema, não é de se estranhar que o julgador faça suas próprias
estimativas.
Além disso, o teorema é uma afronta a um dos princípios mais caros do
processo penal, pois inverte toda a sistemática da prova, jogando sobre o réu
o ônus de provar sua inocência. Ao estabelecer a probabilidade de culpa logo
no início do processo, o que deve ser feito, já que não se pode recalcular a
probabilidade onde esta não existe, o julgador está, na verdade, presumindo
que o réu é culpado. Presunção esta que dificilmente será derrubada, já que o
teorema, por sua própria natureza, tende a aumentar a probabilidade da
alegação de culpa sempre que uma nova prova desfavorável ao réu for trazida.
Portanto, o teorema de Bayes, como método para avaliar as provas
disponíveis e as alegações que nelas se baseiam, é incompatível com o
raciocínio jurídico. Os cálculos realizados são demasiado complexos, não
abrem espaço para a dúvida e podem nos levar a decisões equivocadas e
injustas. Além disso, não oferecem respostas adequadas às situações, tão
comuns no direito, em que as provas são mínimas e pouco confiáveis. Tudo
isso acaba por criar um aparente paradoxo:
o mistério que envolve os argumentos matemáticos – a relativa
obscuridade que os torna ao mesmo tempo impenetráveis e
impressionantes para o homem leigo – cria o risco contínuo de que
esse homem dará a tais argumentos credenciais que eles não merecem
e um peso que aquele não consegue explicar logicamente (TRIBE,
1971: 1334 – tradução livre).
3 A PROPOSTA DE SHAFER
Na seção anterior, fizemos um breve estudo da teoria da probabilidade, a
fim de se demonstrar em quais bases se sustenta o teorema de Bayes. Também
foram levantados argumentos que rechaçam a aplicação de referido teorema ao
raciocínio jurídico, não apenas do ponto de vista teórico, mas também do
ponto de vista político. O cálculo bayesiano, justamente por seu teor subjetivo,
torna-se demasiado perigoso e indesejável.
Além disso, o raciocínio matemático como um todo não nos permite
avaliar alegações sobre fatos, pois esses fatos não são como o experimento
das caixas com bolas coloridas, em que se podem retirar as bolas das caixas e
colocá-las de volta até a exaustão. Afinal, esse experimento tende ao infinito,
podendo ser repetido várias e várias vezes, bastando que as bolas sejam
devolvidas. Com o direito é diferente. Neste, os casos são sempre únicos,
cada qual com suas próprias peculiaridades e incertezas. Como, então, aplicar
nele fórmulas e axiomas desenvolvidos para eventos que podem ser
enumerados, contados e repetidos112?
Nesse contexto, uma contraproposta em especial chama atenção. Gleen
Shafer não rejeita totalmente o raciocínio probabilístico, o que torna
interessante o estudo de suas ideias antes de se entrar em abordagens mais
“radicais”, por assim dizer. Surge uma pergunta: seria a proposta de Shafer
capaz de revirar o jogo a favor da probabilidade matemática ou ela apenas
configuraria mais uma tentativa fracassada de quantificar alegações fáticas no
direito?
Para responder a essa pergunta, é necessário saber o que a teoria de Shafer
tem de diferente. A ideia, a princípio, parece simples. Shafer rechaça a tese de
que a probabilidade de ocorrência de um evento qualquer somada à
probabilidade de sua não ocorrência seja sempre igual a um. Com isso, ele
oferece uma possível solução para um dos maiores problemas do teorema de
Bayes: a dúvida. Ao permitir que se trabalhe com a dúvida, essa
contraproposta abre espaço para a incerteza, tão presente no direito. Para duas
alegações que se excluem, não se fala mais em regra da adição, pois a soma
das probabilidades envolvidas pode ser inferior a um ou até mesmo zero
(SCHUM, 2005).
A fim de sustentar essa proposta, Shafer trabalha com a ideia de não
comprometimento. Normalmente, nós conseguimos associar as provas que
possuímos a determinada hipótese. Em algumas situações, porém, isso não
será possível. Há casos em que a prova é consistente com mais de uma
hipótese, pois não nega, nem confirma nenhuma delas. Assim, não é possível
atribuir valores probabilísticos a elas, pelo menos não no sentido tradicional
dos axiomas de Kolmogorov. Quando estamos diante de hipóteses mutuamente
excludentes e temos provas que não nos apontam um caminho específico,
podemos optar pelo não comprometimento. Podemos dizer que as evidências
que possuímos não dão suporte a uma ou outra hipótese, mas sim que são
consistentes com mais de uma delas (SCHUM, 2001).
Voltemos ao exemplo de Tribe. Imagine que o jovem fugitivo trabalhe
voluntariamente em um asilo todos os domingos e mantenha um ótimo
relacionamento com os idosos que ajuda. Ele, inclusive, estimula brincadeiras
e exercícios físicos e é tratado como um neto por várias senhoras. Além disso,
ele dedica seus sábados à prática de artes marciais. Imagine agora um jurado J
que deva decidir se o jovem será ou não condenado. Para esse jurado, a
tentativa de fuga dá suporte à ideia de que o jovem matou a vítima. O trabalho
voluntário, por sua vez, é condizente com a hipótese de inocência. Afinal,
parece contrariar o senso comum que um jovem que cuida de idosos em um
asilo e é querido por muitos deles seja capaz de assassinar uma senhora. O
problema surge com relação à prática de artes marciais. Por um lado, alguém
que as domine poderia facilmente matar uma pessoa, ainda mais uma senhora
de idade. Por outro, não se pode presumir que alguém que pratique essas artes
seja violento. Muitas pessoas se dedicam a elas para se defenderem de
agressões e não para se tornarem agressoras. Dessa forma, depois de muito
pensar, o jurado chega à conclusão de que os treinos de sábado não lhe dizem
muito, embora sejam certamente relevantes para a solução do caso. Como
decidir, então?
De acordo com a regra da adição, se o jurado atribuir à hipótese de culpa
uma probabilidade de 70%, terá de, necessariamente, atribuir à hipótese de
inocência uma probabilidade de 30%. Afinal, P(X) + P(¬X) = 1. Se, ao
contrário, achar que há 60% de chance de o jovem ser inocente, isso implica,
necessariamente, uma chance de culpa de 40%. A questão é: o que fazer com a
informação relativa às artes marciais? Uma vez que o jurado deve atribuir
probabilidades às alegações para aplicar o teorema de Bayes, ele não pode
simplesmente cruzar os braços e dizer para si mesmo “eu não sei”. Ele tem de
se decidir, ele tem de atribuir valores. Em outras palavras, ele precisa se
comprometer. Isso gera um risco muito grave, uma vez que pode inverter o
princípio da presunção de inocência. Se as provas que sustentam a hipótese de
que o réu é inocente são poucas, aumentam-se as chances de culpa. O jovem é
condenado.
A proposta de Shafer, por sua vez, cria um cenário diferente. É possível
que o jurado atribua uma probabilidade de 40% para a hipótese de culpa e
30% para a de inocência. Os 30% restantes representam a dúvida,
constituindo o percentual de não comprometimento. O jurado associa a fuga à
ideia de que o réu é culpado e o trabalho voluntário à ideia de que ele é
inocente. Quanto à prática de artes marciais, porém, nada diz, porque não
consegue definir qual hipótese ela sustenta. Abre-se espaço para o “eu não
sei”. Com isso, não se fala apenas em probabilidade de culpa e em
probabilidade de inocência, mas também em dúvida. Tudo o que não for
consistente com nenhuma hipótese específica será colocado em uma categoria
diferente, a qual será somada às probabilidades já estabelecidas para que se
chegue ao valor um (SCHUM, 2001). Como a probabilidade de culpa é muito
baixa nesse segundo caso, o réu dificilmente será condenado, o que
reestabelece a primazia do princípio da inocência.
Tendo isso em vista, surge a seguinte questão: a probabilidade de Shafer é
compatível com o raciocínio jurídico, ou é apenas mais uma tentativa
fracassada de avaliar as provas e alegações com base em cálculos
matemáticos? Parece-nos que essa proposta não é mais bem sucedida do que o
teorema de Bayes, pois incorre no mesmo erro do subjetivismo. Ainda que
seja possível trabalhar com a dúvida, os valores continuam sendo atribuídos
sem uma base empírica forte. Além disso, Shafer também trabalha com
fórmulas e axiomas, os quais não são compatíveis com fatos únicos e isolados
no passado.
Crenças fundamentais
Mútuo suporte entre crenças
independem de outras
5 A COERÊNCIA DE AMAYA
Na seção anterior, expomos de forma breve as principais teorias da
verdade e as duas teorias de justificação tradicionais da epistemologia. Agora,
adentramos a abordagem de Amalia Amaya, que, como já dissemos, trabalha o
coerentismo ao lado da noção de verdade como correspondência. Para que
possamos compreender melhor essa abordagem, faz-se necessário o estudo de
seus principais aspectos, os quais foram divididos em três tópicos: inferência
à melhor explicação, coerência como satisfação de constrangimentos e
responsabilidade epistêmica.
a) Inferência à melhor explicação
Amaya sustenta que o raciocínio jurídico sobre fatos pode ser entendido
como uma inferência à melhor explicação. Essa afirmação a princípio singela
desperta um sério problema: definir o que é a inferência à melhor explicação.
Tal espécie de raciocínio, muitas vezes chamada simplesmente de IBE115, tem
sido bastante abordada pelos filósofos nas últimas décadas, sem, contudo, que
se chegasse a um consenso quanto à sua natureza.
Alguns autores sustentam que a IBE é um tipo de indução, enquanto outros
sustentam que ela é mais ampla, tendo a indução como apenas um de seus
passos. Seja como for, os autores concordam em um aspecto: a IBE é uma
espécie de raciocínio não-dedutivo. A sua estrutura é de um raciocínio que
busca ampliar o conhecimento, e não partir do que já se sabe para se alcançar
conclusões lógicas.
Por meio da IBE, parte-se de um fenômeno observado para que seja gerada
uma hipótese que o explique. Primeiramente, formulam-se quantas hipóteses
forem possíveis para que, em seguida, seja selecionada aquela que melhor
explicar o fenômeno em questão. Por isso diz-se inferência à melhor
explicação.
Diante disso, alguém poderia perguntar como fazemos para selecionar a
melhor hipótese. É justamente nesse ponto que surge um dos maiores
problemas dessa espécie de raciocínio. Ora, para que possamos alcançar a
melhor explicação, é necessário, antes de tudo, definir o que se entende por
melhor explicação. Além disso, também devemos definir os métodos para se
alcançar esse objetivo.
Para Amaya, a melhor explicação é aquela que for a mais coerente. Ocorre
que essas palavras não são suficientes para jogar luz sobre o problema, pois
também a coerência não é um assunto pacífico na epistemologia. Mesmo após
anos de discussões, os filósofos ainda não chegaram a um consenso quanto à
sua natureza. Essa, porém, é uma questão que será abordada no próximo
tópico.
Por ora, é importante nos concentrarmos na estrutura de IBE com a qual
trabalha Amaya. Uma vez que as hipóteses tenham sido geradas, elas devem
ser refinadas, para que se tornem o mais coerente possível. A esse processo
chamamos de maximização da coerência. A fim de realizar essa maximização,
dispomos de três métodos diferentes: adição, subtração e reinterpretação. Pela
adição, acrescentamos elementos ao conjunto a fim de torná-lo mais coerente.
Pela subtração, fazemos o oposto, eliminando os elementos incoerentes. A
reinterpretação, por sua vez, é uma mistura dos métodos anteriores.
É importante ressaltar desde logo que esse não é um processo linear, mas
sim um processo de idas e vindas, no qual o julgador poderá, a qualquer
momento, gerar novas hipóteses ou eliminar hipóteses anteriormente
formuladas. Surge, nesse cenário, um enorme desafio no que diz respeito à
imparcialidade desse julgador. Há sempre o risco de que ele selecione aquela
hipótese que melhor lhe aprouver, a sua favorita, deixando as outras de lado.
Trata-se de um comportamento nem sempre consciente e por isso difícil de ser
percebido.
Além disso, outro problema ainda mais grave assola a IBE. Mesmo que o
julgador afaste seus vieses e preconceitos, existe o risco de que a hipótese
selecionada não seja, afinal, a melhor. É possível que ela seja apenas a melhor
entre as piores, ou seja, a hipótese mais razoável dentro de um conjunto
ruim116. Para que possamos acreditar que aquela explicação selecionada
dentro de um conjunto de explicações previamente elaboradas é a melhor,
devemos pressupor, antes de tudo, que a melhor explicação está nesse
conjunto.
Amaya reconhece ambos os problemas, mas sustenta que eles podem ser
eliminados, ou no mínimo mitigados, por meio da chamada responsabilidade
epistêmica, a qual será estudada no terceiro tópico desta seção.
b) Coerência como satisfação de constrangimentos
Como foi afirmado no tópico anterior, a discussão acerca da natureza da
coerência ainda está longe de seu fim. No entanto, existem várias abordagens
interessantes, dentre elas a noção de coerência como satisfação de
constrangimentos desenvolvida por Paul Thagard. É sobre essa noção de
coerência que Amaya se debruça ao trabalhar sua teoria coerentista.
THAGARD (2000) sustenta que a coerência pode ser entendida como a
satisfação de constrangimentos positivos e negativos. Os primeiros formam as
relações de coerência, tais como a explicação e a analogia117. Os segundos,
por sua vez, formam as relações de incoerência, tais como a contradição e a
competição entre hipóteses118. Naturalmente, nós nunca conseguiremos
alcançar relações que sejam perfeitamente coerentes, em virtude das próprias
limitações da mente humana.
Podemos, no entanto, nos aproximar desse objetivo, desenvolvendo
conjuntos que sejam tão coerentes quanto possível. Trata-se do já referido
processo de maximização de coerência. A fim de maximizarmos um conjunto
de hipóteses, sustenta Thagard, devemos primeiro separá-lo em dois
subconjuntos, quais sejam, o das hipóteses aceitas e o das hipóteses rejeitadas.
Em seguida, distribuímos as hipóteses entre esses subconjuntos de acordo com
as relações de coerência ou incoerência que mantenham entre si. Nesse
sentido, hipóteses que sejam coerentes entre si devem ser aceitas ou rejeitadas
em conjunto, ao passo que, se elas forem inconsistentes, uma deverá ser aceita,
enquanto a outra deverá ser rejeitada.
Esses são alguns dos principais aspectos da abordagem de Thagard, todos
os quais foram absorvidos pela teoria coerentista de Amaya. É importante
ressaltar que nenhum dos autores trabalha com uma teoria pura da coerência,
pois ambos conferem prioridade às proposições que descrevem resultados de
observações. Amaya vai além em sua abordagem jurídica, conferindo
prioridade também às hipóteses compatíveis com a inocência, em respeito ao
princípio mais caro do processo penal.
c) Responsabilidade epistêmica
Resta a seguinte pergunta: como o julgador poderá alcançar a melhor
explicação sem medo de privilegiar a sua explicação favorita ou de selecionar
aquela que seja apenas a melhor entre as piores? Para Amaya, a resposta se
encontra na noção de responsabilidade epistêmica, a qual consiste em uma
série de deveres e virtudes epistêmicos que conferem justificação à hipótese
selecionada.
Sendo assim, uma crença estará justificada quando for uma crença que um
julgador epistemicamente responsável teria aceitado como verdadeira em
contextos similares em razão de sua coerência (AMAYA, 2007). Atente-se
para o significado dessa afirmação, que certamente é mais complexa do que
parece. O importante não é que hipótese tenha sido, de fato, escolhida de uma
forma epistemicamente responsável, mas sim que ela seja uma hipótese que um
julgador epistemicamente responsável teria aceitado em um contexto similar
por ela ser coerente.
VI – O fundacoerentismo de Haack
Enquanto Amaya confere à coerência um papel central em sua abordagem,
Susan Haack sustenta que a coerência, sozinha, não é suficiente para compor
uma teoria da justificação, seja na filosofia, seja na epistemologia jurídica.
Em razão disso, Haack desenvolve uma teoria que não é coerentista, nem
fundacionalista, mas sim um equilíbrio entre as duas. Surge, então, o chamado
fundacoerentismo, com o qual a autora busca conciliar o que cada uma das
teorias rivais tem de melhor, evitando os seus aspectos negativos (2014a).
O fundacoerentismo concilia a noção de mútuo suporte entre as crenças,
própria do coerentismo, e a ideia de que a memória e a as experiências
provenientes dos sentidos desempenham um papel importante na justificação,
própria do fundacionalismo. Por conta dessa mistura, a nova teoria não pode
ser considerada holista, uma vez que se debruça não apenas sobre o conjunto,
mas também sobre as partes que o compõe (crenças, experiências e
memórias). Para Haack, trata-se de um holismo articulado.
Além disso, trata-se de uma teoria mundana, pois ela depende de fatos do
mundo. Ora, se cisnes são ou não brancos, essa é uma questão que depende da
realidade, e não do que possamos pensar sobre a cor dessas aves. Da mesma
forma, não importa se queremos que as fadas existam, ou mesmo que digamos
que elas existem, pois nossas experiências demonstram que esses seres
existem apenas em mundos imaginários, como o de Peter Pan.
Uma vez compreendidas essas características básicas do
fundacoerentismo, podemos adentrar mais a fundo essa teoria. Um de seus
conceitos centrais é o de evidência, a qual abarca tanto as crenças de fundo,
quanto a memória e as experiências provenientes dos sentidos. A evidência,
portanto, é formada pelos elementos que sustentam ou enfraquecem
determinada alegação.
Naturalmente, a evidência que possuímos em relação a uma alegação x
poderá ser mais forte ou mais fraca, conforme o caso. A depender da
qualidade dessa evidência, a alegação que se quer provar poderá estar mais
ou menos garantida, mas o que significa garantia? Na literatura em geral,
garantia e justificação são sinônimos. Haack, porém, traça uma distinção entre
os dois termos: enquanto a garantia diz respeito à qualidade das evidências
que o sujeito em questão possui, abrangendo, portanto, todas as evidências, a
justificação diz respeito à qualidade das evidências que esse sujeito de fato
utiliza, abrangendo, portanto, as evidências que o levam a sustentar
determinada alegação (2003)119.
A noção de garantia desenvolvida por Haack está profundamente ligada à
probabilidade epistêmica defendida pela autora. De forma simples, quão
melhores forem as evidências que se possui, mais garantida estará a alegação
que se quer provar, e quão mais garantida estiver essa alegação, maior a
probabilidade (epistêmica) de ela ser verdadeira. Se as evidências são boas, a
probabilidade é alta. Se, ao contrário, elas são ruins, a probabilidade é baixa.
A garantia, portanto, não é categórica, mas medida em graus.
O grande problema que se coloca é justamente medir a qualidade das
evidências em questão. Uma vez que essa qualidade não pode ser mensurada
em termos matemáticos, como fazer para determiná-la? A fim de solucionar
esse problema, Haack desenvolveu um método que, ao contrário dos cálculos
matemáticos, não é linear, mas multi-dimensional120. Trata-se das chamadas
dimensões da garantia: suporte, abrangência e segurança independente.
O suporte diz respeito ao quão bem as evidências e a alegação que se quer
provar se integram em uma abordagem explicativa e ao quão bem essa
alegação está ancorada na experiência. Nesse sentido, o suporte dependerá de
quanto acrescentar aquela evidência específica irá contribuir para a
abordagem como um todo, de quanto esse acréscimo irá contribuir para que a
conclusão seja bem explicada.
A segurança independente, por sua vez, diz respeito ao quão seguras são as
crenças de fundo, independentemente da alegação. Relembre-se, neste ponto, o
que foi dito acerca do caráter mundano do fundacoerentismo. Por exemplo, se
o pozinho das fadas é capaz de fazer as pessoas voarem, isso depende,
primeiramente, de se as fadas existem. A crença de que fadas existem, porém,
certamente não possui segurança independente, pois sabemos que esses seres
são apenas mito. Como bem ressalta Haack:
Isso evita um círculo vicioso, pois nós eventualmente chegaremos a
uma evidência proveniente dos sentidos, a qual não necessita de
garantia, sem que, contudo, deixemos todo o conjunto de evidências
flutuando em pleno ar, uma vez que a evidência proveniente dos
sentidos se ancora no mundo (2014a: 31).
A abrangência, por fim, diz respeito a quanto da evidência relevante nós
possuímos. Ainda que nossas evidências sejam seguras e deem suporte à
alegação que queremos provar, é possível que todo o nosso raciocínio acabe
ruindo diante de uma nova evidência. Exatamente por isso, é importante
procurar por novas evidências, a fim de que nenhum fato relevante seja
deixado de lado.
As três dimensões da garantia, aparentemente tão complexas, tornam-se
mais inteligíveis por meio da analogia criada por Haack. Basta imaginarmos a
garantia como um jogo de palavras cruzadas no qual as palavras já
preenchidas são as nossas crenças de fundo, e as pistas são as evidências que
deveremos desvendar por meio da memória e dos sentidos. Nesse contexto:
o que faz a evidência com respeito a uma alegação melhor ou pior é
análogo ao que faz uma entrada de um jogo de palavras cruzadas mais
ou menos razoável: o quanto a evidência dá suporte a uma alegação
(análogo: quão bem a entrada de um jogo de palavras cruzadas se
encaixa com a pista e as entradas já completadas que se intersectam);
o quanto as evidências são seguras, independentemente da alegação
em questão (análogo: quão razoáveis são as respostas das entradas
que se intersectam, independentemente da resposta em questão); o
quanto a evidência é abrangente, isto é, quanto da evidência
relevante ela inclui (análogo: quanto do jogo de palavras cruzadas foi
completado) (HAACK, 2012: 216 – tradução livre).
Voltando ao caso Collins apresentado no começo deste artigo, podemos
dizer que a alegação de que o casal era culpado estava pouco garantida pelo
conjunto probatório de que se dispunha. Afinal, os testemunhos eram
conflitantes, e os cálculos realizados por Edward Thorp estavam, na melhor
das hipóteses, equivocados. Dessa forma, o suporte que as provas davam à
alegação era muito baixo, além de existir um sério problema com relação à
segurança independente dos testemunhos. Quanto à abrangência, claro está que
grande parte das evidências relevantes estava ausente.
Diante desse problema, Haack propõe um conjunto de evidências mais
completo, no qual todas as três dimensões da garantia atinjam níveis mais
altos. Imagine que existam provas de que as testemunhas não possuem
problemas de visão e não têm motivos para incriminar os Collins injustamente.
Além disso, há razões para acreditar que os criminosos moram em Los
Angeles, e os Collins não apenas não possuem qualquer álibi, como
assumiram um comportamento evasivo após serem acusados (2014b). Com
essas novas evidências, o grau de garantia da alegação “os Collins são os
culpados” torna-se muito mais significante, e os problemas acerca da
segurança independente são mitigados.
Por todo esse caráter complexo, a probabilidade epistêmica desenvolvida
por Haack é incompatível com cálculos e fórmulas matemáticos. Afinal, “se os
conceitos de qualidade da evidência e grau de garantia são tão complexos,
sutis, multi-dimensionais e mundanos quanto esta abordagem sugere, a teoria
da probabilidade matemática não poderia, sozinha, constituir uma teoria da
garantia” (HAACK, 2014b: 61).
Dimensão da Analogia do jogo de palavras
Diz respeito a...
garantia cruzadas
Como as evidências e a
alegação se integram em Quão bem as palavras se
Suporte
uma abordagem encaixam?
explicativa.
Quanto da evidência
Abrangência Quanto do jogo foi preenchido?
relevante nós possuímos.
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VAN FRAASSEN, Bas. Laws and Symmetry. Oxford: Clarendon Press,
1989.
ZADEH, L. Fuzzy Sets. Information and Control, vol. 8, pp. 338-353, 1965.
Camilla Gutierrez122
Carlos Bolonha123
Leonardo Gaspar 124
Luiz Felipe Lima125
Natan Lima126
Telmo Olímpio127
Wanny Cristina Fernandes128
RESUMO
A realidade federativa brasileira, apesar de ser relativamente recente, possui bastantes peculiaridades, que
se expressam principalmente quando vemos a atuação dos entes federativos no desenho institucional do
país. O presente artigo pretende analisar duas situações emblemáticas de tensões no design federativo
brasileiro - a guerra fiscal e a partilha dos royalties do petróleo -, percebendo desarmonias existentes entre
os estados que o compõem. Para isso, tal análise será feita a partir da teoria institucional norte-americana,
utilizando os conceitos de capacidades institucionais e a relação das instituições com o sistema institucional
em que se inserem, esperando assim esclarecer o desenvolvimento de tais conflitos e seus
desdobramentos na realidade federativa brasileira.
PALAVRAS-CHAVE
Federalismo; teoria institucional; Brasil.
ABSTRACT
Brazilian federative reality, despite being relatively recent, has plenty of peculiarities, which express itself
mainly when we see the performance of the federated states in the Brazilian institutional design. The
present article intends to analyze two emblematic situations of tensions in the Brazilian federal design - the
oil royalties’ new distribution and the fiscal war -, noticing some disharmonies between the states that
compose it. For that, this analysis will be done by the light of the North-american institutional theory, using
the concepts of institutional capacities and the relation between de institutions and the institutional system
they belong, hoping to clarify the development of these conflicts and how they unfold in the Brazilian
federative reality.
KEYWORDS
Federalism; institutional theory; Brazil.
INTRODUÇÃO
No Brasil, temos como historicamente preponderante a forma federalista de estado, que foi instituída em
1889 e mantida desde então. A carta constitucional promulgada em 1891 possuía clara influência do
federalismo norte-americano, cuja Constituição de 1787 corresponde à gênese do Estado Federal129. À
época, o principal objetivo que norteou a experiência norte-americana foi a criação de um modelo de
Estado que reconhecesse os entes federativos como autônomos entre si e possibilitasse uma atuação
estatal melhor e mais eficiente do que os modelos anteriores130. Com isso chegou-se ao modelo
federalista, onde a divisão de competências entre os entes federativos e a participação dos Estados-
membros na vontade federal constituíam a base primordial do Estado.
Da mesma forma, a Constituição Federal de 1988 estabelece
expressamente as competências de cada um dos entes que integram o Estado
brasileiro, buscando assim um maior equilíbrio na sua atuação. Porém, a
principal discussão relacionada à realidade federativa brasileira diz respeito
aos limites da atuação de cada um dos entes; os conflitos relacionados à
centralização e descentralização e a atuação dos estados-membros são centrais
na análise da realidade federativa do país131.
É de se destacar, todavia, que o que se verifica atualmente é uma falta de
equidade na relação dos entes federativos brasileiros. O status atual do
federalismo brasileiro possui discrepâncias institucionais, que serão
abordadas aqui tendo-se como base dois temas específicos: a divisão dos
royalties do petróleo e a guerra fiscal. Tais assuntos são grandes exemplos de
tensões institucionais que existem no país por serem casos reais em que o
desequilíbrio na atuação dos entes gera problemas em nível federativo.
Para tal análise será utilizado como marco teórico a teoria institucionalista
desenvolvida por Cass Sunstein e Adrian Vermeule a respeito de (i)
capacidade institucional, conceito que trata das possibilidades de atuação das
instituições no que tange às suas aptidões para fazer qualquer coisa; (ii)
diálogo institucional, que traz a ideia de como as instituições de um mesmo
sistema institucional interagem entre si; e (iii) efeitos sistêmicos, que busca
conceituar como a atuação das instituições neste sistema se reflete nas outras
instituições.
Da mesma forma, também se utilizará como base teórica a visão de Jenna
Bednar quanto à relação entre os sistemas institucionais e o Estado em que
estes estão inseridos. A autora estabelece que os elementos que compõem tais
sistemas derivam das estruturas formais construídas por uma Constituição, e
que, indo mais além, funcionam como salvaguardas das leis de um Estado.
Sendo assim, os elementos institucionais que compõem o sistema devem ser
interpretados e entendidos a partir do próprio plano em que existem132.
A utilização de ambas as teorias busca mostrar como os casos
emblemáticos que aqui serão analisados derivam do desenho institucional do
Estado brasileiro, que propicia desequilíbrios quanto à atuação dos entes
federativos no plano federal. Destarte, o presente trabalho não busca observar
os casos em questão sob a ótica tributária, mas sim seguindo um viés
puramente institucional.
O presente trabalho se dividirá em três seções. Na seção 2 será avaliado o
caso da guerra fiscal e da partilha dos royalties do petróleo. A seção 3 trará
uma análise mais aprofundada a respeito dos casos, buscando entender os
motivos que os levam a configurar tensões no âmbito federativo. Por fim, a
seção 4 trará as conclusões alcançadas durante a análise.
1 DESENVOLVIMENTO
1.1 Noções Introdutórias da Guerra Fiscal
A chamada “guerra fiscal” tem sua origem em uma prática natural adotada
pelos Estados (tanto nacionais quanto subnacionais) para estimular o seu
desenvolvimento. Tal prática consiste na concessão de incentivos tributários a
empresas, para que assim ocorra o estabelecimento das mesmas no seu
território e, por consequência, surjam toda a sorte de benefícios para a
população133. Não obstante, a guerra fiscal surge quando se intensifica a
disputa entre os Estados para oferecer a situação fiscal mais atraente às
empresas, configurando-se assim como um estado de conflito entre eles. A
interpretação quanto a gravidade deste conflito no âmbito federativo, contudo,
ainda é motivo de discussão134.
A prática de dar incentivos fiscais, todavia, perde a sua força e não mais
serve como estímulo ao ingresso de empresas quando se torna comum a todos
os estados; indo além, tal situação apenas faz com que o benefício se
transforme em uma renúncia ao tributo em questão, com a perda de receita se
tornando um ônus para o estado135. O imposto que geralmente é utilizado nessa
concessão de benefícios por parte dos estados subnacionais corresponde ao
Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços - ICMS -, e
justamente por ser um imposto próprio dos Estados, abdicar dele significa
arriscar as já combalidas finanças estaduais. 136
1.2 Histórico da Guerra Fiscal no Brasil
A guerra fiscal no Brasil guarda profunda relação com os programas
estaduais de desenvolvimento. O fenômeno se mostra presente no país desde
meados da década de 60, período em que o imposto ainda não se chamava
ICMS, mas sim ICM - Imposto sobre Circulação de Mercadorias. Vale
destacar que esforços para equilibrar as disputas tributárias entre os estados já
existiam desde tal época; a legislação tributária vigente no período já
pretendia estabelecer meios para que houvesse uma integração entre os
Estados na concessão de incentivos fiscais, através da criação de convênios
regionais137. Apesar disso, tal medida não impediu que ocorressem conflitos
entre as diferentes regiões, e que esses conflitos desenvolvessem um tipo de
“guerra fiscal inter-regional”138.
Visando melhor coordenar as políticas tributárias no país, na década de
1970 o governo federal criou o Conselho Nacional de Política Fazendária -
CONFAZ. O CONFAZ buscava, à época, que o dar conformidade nacional
quanto ao tratamento especial dado do ICM; dessa forma, o objetivo era
regulamentar como os estados da federação deveriam utilizar o imposto
enquanto moeda de troca na barganha entre estes e as indústrias,
possibilitando assim que houvesse um equilíbrio interno na federação. Apesar
de no período haver êxito em regular a disputa econômica em questão,é de se
destacar que isso não se deve aos meios formais; a Lei Complementar 24/75 -
que cria o CONFAZ -, embora desse um tratamento restritivo ao acirramento
da competição fiscal, não impediu de fato o duelo existente no país139 - pelo
contrário, o maior rigor fiscal que de fato existiu à época associa-se muito
mais à disciplina centralizadora do governo militar.140
Nos anos 80, por outro lado, a estagnação econômica pela qual passava o
país fez com que a guerra fiscal se tornasse menos notória. Não obstante, as
práticas incentivadoras tomadas pelos estados continuavam a existir, ainda que
sem a mesma intensidade ou sem a mesma repercussão do período anterior.141
A década seguinte, a despeito da inércia do período anterior, trouxe uma
oxigenação à economia brasileira, principalmente com a estabilidade de
preços após o Plano Real e também com o mercado potencial do país. Foi
também após a promulgação da Constituição de 1988 que, com a
transformação do ICM e de outros quatro impostos em ICMS, os estados
adquiriram maior autonomia e com isso tiraram boa parte do poder detido
pelo CONFAZ142.
Atualmente, assim como ocorreu na década de 1980, não se vê a guerra
fiscal em um ponto de destaque, o que não quer dizer que as práticas
correspondentes a ela tenham desaparecido. Pelo contrário, os estados ainda
hoje mantém seus programas de incentivos fiscais, o que denota o quanto o
tema ainda é atual - mesmo que não esteja no mesmo plano de destaque de
antes.143
1.3 Como Funciona a Guerra Fiscal
Inicialmente é mister destacar que a guerra fiscal possui dois
desdobramentos completamente diferentes: o reflexo da barganha econômica
do ponto de vista do estado que concede benefícios e do ponto de vista da
federação. Posteriormente, o foco será mostrar como, do ponto de vista do
estado, há ganhos a serem obtidos, enquanto do ponto de vista da federação a
perda é quase que total.
Um estado-membro, por natureza, colocará seus interesses à frente dos de
outros estados. Ele detém autonomia para tal, e essa autonomia existe e é
garantida justamente para que ele possa alcançar aquilo que lhe interessa.
Assim sendo, os ganhos advindos com o estabelecimento de uma empresa em
seu território com certeza serão considerados no momento de ponderar se
incentivos tributários devem ser concedidos ou não.144
Tem-se reparado que a reprodução desse tipo de pensamento em todos os
estados gera um grande problema em que quem mais sofre é a federação. A
ideia é a de que incentivos fiscais não deveriam ser dados por estados, mas
sim pelo governo central, pois a concessão de incentivos fiscais por parte dos
entes federados de um Estado federal apenas são prejudiciais ao Estado como
um todo - afinal de contas, não se pode por em risco toda a estrutura da
federação apenas visando a defender os interesses de entes federados
esparsos. Dessa forma, embora possa parecer vantajoso para os estados
conceder esses benefícios para estimular o progresso em sua região, na
maioria das vezes o ônus vai para a federação.
Considerando, por exemplo, que o benefício seja concedido a uma
empresa voltada para o mercado interno: é do interesse da empresa estar no
país, então a concessão de incentivos não serve como estímulo para que a
empresa fique em território nacional - pelo contrário, apenas serve para que
ela vá para outro estado da federação, e o dinheiro que antes seria pago como
imposto e iria para o erário se torna lucro da empresa e deixa de ir para os
cofres públicos.
Seguindo a mesma lógica, no caso de empresas multinacionais que já se
instalariam no país, o incentivo fiscal permite que elas consigam sem esforço
um lucro maior com uma verba que, caso fosse paga como tributo, poderia ser
aplicada para o bem da população. Isso, ainda que trate de um tributo de
competência estadual, constitui uma perda extremamente gravosa para a
federação.
1.4 Noções Introdutórias da Partilha dos Royalties do Petróleo
Os royalties nada mais são do que valores pagos por alguém ou alguma
empresa que deseja explorar o produto de outrem para o dono do objeto em
questão. Assim, no caso do petróleo, as empresas petrolíferas que pretendem
extrair o material, refiná-lo e comercializá-lo devem pagar os direitos de
exploração a quem detém o objeto a ser explorado - o Estado.
O grande diferencial dado ao tratamento dos royalties do petróleo - e o que
configurará o conflito a ser abordado - é que os mesmos são partilhados entre
os entes federativos do Estado: como estabelece a Constituição Federal, no
seu artigo 20, § 1.º, “é assegurada, nos termos da lei, aos Estados, ao Distrito
Federal e aos Municípios, bem como a órgãos da administração direta da
União, participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de
recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos
minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou
zona econômica exclusiva, ou compensação financeira por essa
exploração”145.
1.5 O Petróleo no Pré-sal e a Mudança na Partilha dos Royalties
Em 2007, houve a descoberta de poços de petróleo na chamada camada do
Pré-Sal, que corresponde a um “conjunto de rochas localizadas nas porções
marinhas de grande parte do litoral brasileiro, com potencial para a geração e
acúmulo de petróleo”146. O nome “Pré-Sal” advém do fato desta camada
rochosa estar abaixo de um extenso aglomerado de sal.
Com tal descoberta, o debate acerca da partilha dos royalties do petróleo
foi trazido à tona. Os estados não-produtores exigiam uma parcela maior de
arrecadação de tal verba, visto que a lei existente até então não previa, para
estes, mais do que a concessão de 10% do valor arrecadado. É mister destacar
que esses 10% se destinavam inicialmente a um Fundo Especial, para então
ser redistribuído entre todos os estados não-produtores147.
Atualmente, a Lei n.º 9.478 teve sua redação alterada. Ela prevê uma
queda progressiva da arrecadação dos estados e municípios produtores de
petróleo, ao mesmo tempo em que ocorrerá um aumento da verba destinada ao
Fundo Especial dos estados e municípios não-produtores148.
À época, os debates no Congresso a respeito dos novos critérios de
partilha tinham como principal justificativa a ideia de que o petróleo é um bem
nacional, e assim sendo os royalties advindos da exploração desse bem devem
ser repartidos igualmente entre os entes federativos. Em paralelo, tal
argumento também é utilizado para se dizer que tal verba deve ser destinada
no combate contra a pobreza e na busca por «justiça social»149.
O problema de tal argumento reside no fato de se estar utilizando o
princípio federativo de forma errônea. Defender a partilha igualitária com
base na ideia de que o petróleo é um bem nacional e que por isso deve ser
dividido com todos é analisar equivocadamente o termo “bem nacional”: a
ideia que permeia todo o artigo 20 da Constituição Federal, que trata dos bens
da União, é a de determinação da soberania do Estado, ou seja, o constituinte
apenas busca instituir que os bens ali listados pertencem ao país. Ademais, se
tal bem possuísse mesmo tanta importância em nível nacional como foi
interpretado, tratar das reservas de petróleo deveria estar na lista de
competências da União150.
Da mesma forma, não se pode dizer que a nova divisão dos royalties de
fato geraria alguma mudança na luta por uma maior justiça social. A verba
advinda dos royalties do petróleo se mostra ínfima, quando repartida entre
todos os entes federativos, em comparação ao que estes já recebem do Fundo
de Participação dos Estados - FPE - e do Fundo de Participação dos
Municípios - FPM151.
O fato é que os estados produtores possuem reais perspectivas de se
desenvolver socioeconomicamente quando a maior parcela dos royalties se
dirige a eles. As leis anteriores que tratavam acerca do tema já mostravam a
adesão do constituinte à ideia de que os recursos advindos da exploração do
petróleo deveriam ser destinados, precipuamente, aos estados produtores.
Além disso, o próprio fato de não se ter alterado tal dispositivo anteriormente
à descoberta de petróleo no Pré-Sal mostra que o funcionamento da partilha
dos royalties já era algo internalizado no país. Resta assim a constatação de
que uma mudança de pensamento tão repentina e concomitante à descoberta de
uma jazida com potencial tão grande152 se mostra não como uma evolução
institucional natural, mas sim como uma atitude aproveitadora inconsequente
do ponto de vista federativo, que será tratado com maiores detalhes na seção
seguinte.
CONCLUSÕES
Analisando os dois casos através da perspectiva institucional, ambos
representam tensões federativas na realidade brasileira. Por um lado, a guerra
fiscal representa uma atuação descoordenada dos estados que fere o princípio
federativo no momento em que não há integração entre eles. Por outro, a
partilha dos royalties mostra-se como uma clara situação de oportunismo, em
que as circunstâncias possibilitaram ainda que ocorresse um alinhamento entre
os estados em prol de um objetivo comum.
A questão é que a razão da escolha do modelo federativo parece ter sido
esquecida. Tal modelo tem como principal objetivo estabelecer uma
integração entre os entes em diferentes níveis, visando assim que todos
possam atingir os seus próprios objetivos. Conceder tributos sem uma mútua
organização e lutar contra anos de história apenas para conseguir uma parte
maior de verba é agir como se não existisse um ideal de harmonia que devesse
ser perseguido. O que deve ser lembrado é que não só esse ideal existe como
ele também pode tornar necessário pôr os próprios interesses de lado para que
a federação e todos os seus benefícios se mantenham159.
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SUNSTEIN, Cass; VERMEULE, Adrian. Interpretation and Institutions.
Chicago Public Law & Legal Theory Working Paper Series, No. 28, 2002.
121 Trabalho apresentado pelo Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das
Instituições (LETACI), vinculado à Faculdade Nacional de Direito (FND) e ao Programa de Pós-
graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD/UFRJ) coordenado pelo
professor Carlos Bolonha.
122 Graduanda da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Pesquisadora do LETACI. E-mail: gutierrezmilla@gmail.com.
123 Professor Adjunto da Faculdade Nacional de Direito (FND) da Universidade Federal do Rio de
Janeiro e do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(PPGD/UFRJ). Doutor em Direito pela Pontífice Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO). E-
mail: bolonhacarlos@gmail.com.
124 Graduando da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisador
do LETACI. E-mail: leonardo_q_g@hotmail.com.
125 Graduando da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisador
do LETACI. E-mail: luizfelipe.limaoliveira@gmail.com.
126 Graduando da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisador
do LETACI. E-mail: natanvengerov@gmail.com
127 Graduando da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisador
do LETACI. Monitor de Teoria do Estado. E-mail: telmo.olimpio@gmail.com.
128 Graduanda da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Pesquisadora do LETACI. E-mail: wanny.fernandes@gmail.com
129 “O federalismo tem as suas primeiras origens nos Estados Unidos. Surgiu como resposta à
necessidade de um governo eficiente em vasto território, que, ao mesmo tempo, assegurasse os ideais
republicanos que vingaram com a revolução de 1776”. FERREIRA MENDES, Gilmar; GONET
BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de direito constitucional. São Paulo, Saraiva, 2008.
130 Os “modelos anteriores” aqui não se restringem apenas a modelos estatais desenvolvidos em outras
épocas, como a monarquia parlamentarista inglesa ou o absolutismo francês, mas também ao modelo
anterior adotado quando da independência das Treze Colônias: em busca de um modelo mais eficiente do
que a confederação que se estabeleceu em 1777, o modelo federalista foi adotado. Podemos ver isso no
próprio preâmbulo da Constituição de 1787, que diz: “nós, o povo dos Estados Unidos, a fim de formarmos
uma União mais perfeita...”
131 Cf. SOUZA, 2005.
132 “Safeguards are not robotic, but staffed by humans, and so will reflect our tics and inconsistencies.
The imperfection of these safeguards is the source of federalism’s third challenge. [...]I offer a
perspective that sees the safeguards as varying in their capacity to respond to different transgressions,
varying in the force of their response, and varying in the causes of their own failures. These
heterogeneities provide an opportunity to overcome the apparent dilemma of force and flexibility while
providing insurance against misjudgment. The key lesson of this book is that safeguards must be
understood within their institutional context.” BEDNAR, Jenna. The Robust Federation - Principles of
Design, 2009.
133 Nesse sentido, Prado traz à tona uma avaliação possível de um Estado a respeito do custo-benefício
da concessão de incentivos tributários: “De uma forma simplificada, este processo envolve avaliar dois
grandes conjuntos de efeitos. De um lado, o custo fiscal líquido dos incentivos sob uma perspectiva
intertemporal. Isto é crucial porque é típica de toda política de desenvolvimento regional – e a guerra fiscal
não é exceção - a concentração de impacto fiscal negativo na fase inicial, com possível e desejável
recuperação parcial futura dos recursos aplicados. De outro lado, é necessário avaliar os benefícios
globais gerados pela nova inversão: criação direta e indireta de empregos, efeitos de indução de inversões
complementares (autopeças, por exemplo), indução à ampliação e diversificação do terciário, etc.”
PRADO, Sergio. Guerra fiscal e políticas de desenvolvimento estadual no Brasil. Economia e
Sociedade, v. 13, p. 1-40, 1999.
134 Varsano (1996) já apontava que, com a guerra fiscal, “ [o] federalismo, que é uma relação de
cooperação entre as unidades de governo, é abalado”. Prado, por outro lado, traz um ponto de vista
distinto ao justificar a guerra fiscal com a ideia de que “[...] lutar por interesses próprios de forma não-
cooperativa é inerente a agentes federativos: a federação é, neste sentido, intrinsecamente conflituosa,
composta por agentes em grande (e bem grande) medida competitivos entre si, o que exige a presença um
ente regulador das relações federativas – o governo central em conjugação com o Congresso”.
135 Cf. PIANCASTELLI, Marcelo; PEROBELLI, Fernando. ICMS: evolução recente e guerra fiscal.
1996.
136 DA SILVA ALVES, María Abadía. Guerra fiscal e finanças federativas no Brasil: o caso do setor
automotivo, cit. p. 1.
137 “Como anteriormente o IVC já tinha sido utilizado em algumas disputas por investimentos, alguns
dispositivos da Lei n.º 5.172 de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional) e o Ato Complementar
n.º 34 de 30 de janeiro de 1967 tinham o objetivo de evitar o surgimento de novos conflitos. Esta legislação
previa a celebração de convênios regionais para o estabelecimento de alíquotas uniformes do ICM e uma
política de incentivos comuns aos estados de uma mesma região. Assim, de meados da década de 60 até
1969, as questões referentes a incentivos fiscais eram resolvidas nessas reuniões regionais.” DA SILVA
ALVES, María Abadía. Guerra fiscal e finanças federativas no Brasil: o caso do setor automotivo. 2001.
138 DA SILVA ALVES, María Abadía. Idem, cit. p. 7.
139 Cf. PRADO, Sergio. Guerra fiscal e políticas de desenvolvimento estadual no Brasil. Economia e
Sociedade, v. 13, p. 1-40, 1999.
140 “Em um momento inicial, a disciplina exercida pelo governo federal neste período pode ser
considerada mais rígida do que no período anterior. Pelo menos até o início da década dos 80 a força
centralizadora do período militar parece ter exercido alguma disciplina capaz de impedir o surgimento de
programas mais agressivos, via ICMS.” DA SILVA ALVES, María Abadía. Guerra fiscal e finanças
federativas no Brasil: o caso do setor automotivo. 2001.
141 DA SILVA ALVES, María Abadía. passim, cit. p. 12.
142 “[A] submissão às regras do CONFAZ só foi possível ‘sob a vigilância de um estado forte e
centralizador. (....). No período recente, a impossibilidade de firmarem-se condições semelhantes coloca
em xeque a necessidade de existência do CONFAZ’.” PRADO; CAVALCANTI, 1998 apud DA SILVA
ALVES, 2001, p. 15.
143 “No entanto, não há nenhum indício de um movimento de desmonte dos programas estaduais de
incentivos. Embora não tenhamos feito um levantamento de todos os programas em todos os estados que
estejam em operação no momento atual, não há informações de que algum deles tenha sido desativado.
Pelo menos nos três estados selecionados para nosso estudo, os últimos programas criados ainda
permanecem montados, ainda que com ligeiras modificações.” DA SILVA ALVES, María Abadía. Guerra
fiscal e finanças federativas no Brasil: o caso do setor automotivo. 2001.
144 Considere aqui que a vinda de uma empresa para determinado estado propicie um aumento
significativo nas oportunidades de emprego e se mostre uma boa oportunidade de aquecer os setores
econômicos do Estado. As reflexões feitas no âmbito público do estado podem considerar, por exemplo,
que a perda fiscal advindo da renúncia do ICMS pode não ser tão onerosa a ponto de justificar a perda de
tais progressos sociais e econômicos - e o estado, no exercício de sua autonomia, pode e deve buscar o
melhor para a sua população.
145 BRASIL. CONSTITUIÇÃO, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Saraiva,
2014.
146 PETROBRAS. Pré-Sal [online] Disponível em: <http://www.petrobras.com/pt/energia-e-
tecnologia/fontes-de-energia/pre-sal/>. Acesso em 20 de outubro de 2014.
147 Cf. FERNANDES, Camila Formozo. A Evolução da Arrecadação de Royalties do Petróleo no Brasil
e seu Impacto sobre o Desenvolvimento Econômico do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro.
Universidade Federal do Rio de Janeiro: Instituto de Economia, 2007.
148 BRASIL. Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997. Dispõe sobre a política energética nacional, as
atividades relativas ao monopólio do petróleo, institui o Conselho Nacional de Política Energética e a
Agência Nacional do Petróleo e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil,
Brasília, DF. 7 ago. 1997. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9478.htm>. Acesso
em: 20 de outubro de 2014.
149 PEIXOTO, Fabrícia. Entenda a polêmica sobre a distribuição dos royalties do petróleo. BBC Brasil.
Disponível em:
<http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/03/100317_royalties_entenda_fa_np.shtml>. Acesso em
20 de outubro de 2014.
150 Nos artigos 21 e 22 da Constituição, que tratam respectivamente das competências exclusivas e
privativas da União, o único momento em que surge alguma possibilidade de interpretação nesse sentido é
no art. 22, XII: tal inciso define ser de competência privativa da União legislar sobre “jazidas, minas, outros
recursos minerais e metalurgia”. Poderia se interpretar que o termo “jazidas” se refere também às jazidas
de petróleo, porém tal interpretação cai por terra uma vez que a redação completa do inciso deixa clara a
intenção do constituinte de tratar exclusivamente de jazidas minerais.
151 Ao Estadão, Joaquim Levy, à época secretário da Fazenda do Rio de Janeiro, disse: “Hoje, os
recursos do FPE e do FPM somam R$100 bilhões. Se, mesmo ganhando isso, os outros estados continuam
com índice de pobreza elevado, qual a diferença se passarem a ganhar mais R$5 bilhões ou R$7 bilhões?”
RODRIGUES, Alexandre. Cabral Chora pelos royalties perdidos. Estadão. [online] Disponível em:
<http://www.estadao.com.br/noticias/geral,cabral-chora-pelos-royalties-perdidos,523062> Acesso em 20
de outubro de 2014.
152 A Petrobras estima para, em 2017, a produção diária das áreas de exploração de petróleo no Pré-Sal
ser superior a 1 milhão de barris. PETROBRAS. Pré-Sal [online] Disponível em:
<http://www.petrobras.com/pt/energia-e-tecnologia/fontes-de-energia/pre-sal/>. Acesso em 20 de outubro
de 2014.
153 Ainda que seja mais comum a análise de instituições como o Executivo e o Judiciário e não de um
organismo complexo como um estado, isso não quer dizer que seja impossível de ser feito. Ao se visualizar
a federação de um ponto de vista macro, se torna claro que a maneira como os estados se relacionam
entre si possui bastantes semelhanças com as instituições mais comumente analisadas, o que justifica a
utilização da teoria institucional de Vermeule e Sunstein.
154 SUNSTEIN, Cass; VERMEULE, Adrian, Interpretation and Institutions. Chicago Public Law
and Legal Theory Working Paper Series, No. 28, 2002.
155 Em um exemplo fictício, pode-se pensar em um caso que trate do transporte de animais silvestres no
espaço aéreo brasileiro. A capacidade institucional da Agência Nacional de Petróleo (ANP) para tratar
desse tema é basicamente nenhuma - a ANP não só não detém competência formal para tal como
também não possui expertise no assunto para de fato poder tomar uma decisão. Não obstante, a
capacidade institucional da Agência Nacional de Aviação Civil - ANAC - para tratar do mesmo assunto
está no extremo oposto em relação ao município B, uma vez que não só a ANAC é formalmente
competente para tal como possui os instrumentos necessários para avaliar o caso.
156 “Member governments—federal and state—may try to manipulate the division of authority to their
own benefit, an activity I will refer to as opportunism or transgressions.” BEDNAR, Jenna. The
Robust Federation - Principles of Design, 2009.
157 Cf. FERNANDES, Camila Formozo. A Evolução da Arrecadação de Royalties do Petróleo no Brasil
e seu Impacto sobre o Desenvolvimento Econômico do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro.
Universidade Federal do Rio de Janeiro: Instituto de Economia, 2007.
158 Ainda que houvesse o veto presidencial à lei, este poderia ser derrubado pelo Congresso, o que daria a
última palavra quanto à definição da partilha justamente para a instituição em que os estados interessados
estão representados - a Câmara dos Deputados e o Senado Federal.
159 “The federal benefits often require that the member governments, both state and federal, put general
welfare above their own apparent self-interest.” BEDNAR, Jenna. The Robust Federation -
Principles of Design, 2009.
MEDIDAS PROVISÓRIAS PÓS EMENDA
CONSITUCIONAL Nº 32/2001: UMA ANÁLISE
DO DIÁLOGO INSTITUCIONAL ENTRE
EXECUTIVO E LEGISLATIVO160
GOVERNMENT PROVISIONAL ACTS POST
CONSITUCIONAL AMENDMENT Nº. 32/2001: AN
ANALYSIS OF THE INSTITUTIONAL DIALOGUE
BETWEEN EXECUTIVE AND LEGISLATIVE
Breno Barros161
Bruna Veríssimo162
Lorena Senra163
Stella de Souza Ribeiro de Araújo164
RESUMO
A procura por maior governabilidade na estrutura política brasileira composta por multipartidarismo,
presidencialismo, federalismo e voto proporcional, motiva o chamado presidencialismo de coalizão,
segundo o qual as articulações políticas excedem os limites do partido do chefe do Poder Executivo para
assegurar a maioria no Congresso Nacional. O presente trabalho pauta-se no estudo de um dos
instrumentos de governo do Executivo e de controle da agenda legislativa: as Medidas Provisórias. Após a
Emenda Constitucional 32/2001, que instituiu novo regime de tramitação desta espécie, sucessivos
trancamentos da pauta do Poder Legislativo Federal ocorreram, dando origem uma anomalia institucional
tão intensa que reduziu drasticamente a deliberação no âmbito do Congresso Nacional. Dessa forma,
busca-se aferir se o problema descrito é mais uma demonstração da supremacia do Executivo.
PALAVRAS-CHAVE
Medidas provisórias; presidencialismo de coalização; diálogo institucional; supremacia do executivo.
ABSTRACT
The demand for greater governance in the Brazilian political structure composed of multi-party
presidentialism, federalism and proportional vote, motivates the so-called presidential system of coalition,
according to which the political articulations exceed the limits of party chief of the executive branch to
ensure the majority in Congress. This work analyses one of the executive government instruments used to
control the legislative agenda: government provisional acts. After the Constitutional Amendment 32/2001,
which established new rules of procedure of this kind, successive twists on the agenda of the Federal
Legislature occurred, creating an institutional anomaly so intense that dramatically reduced the resolution
in the National Congress. Thus, we seek to assess whether the problem described is a further
demonstration of the supremacy of the Executive.
KEYWORDS
Provisional measures; government provisional acts; institutional dialogue; executive supremacy.
INTRODUÇÃO
As Medidas Provisórias foram instituídas pela Constituição de 1988, porém não é um instituto totalmente
inovador no cenário brasileiro, visto que está inspirado no decreto-lei, presente no ordenamento nacional
desde a Constituição de 1937. Trata-se, por excelência, de função legislativa atribuída pelo poder
constituinte originário ao Presidente da República, o que suscita questionamentos a respeito do princípio
tripartição de poderes e suposta supremacia do poder executivo.
A edição de medidas provisórias é um remédio que busca o preenchimento
de lacunas legislativas frente às demandas sociais, estando limitada a casos de
“relevância e urgência”, bem como materialmente restrita, de acordo com o
artigo 62 da Constituição, que ainda submete as medidas provisórias à
apreciação do Congresso Nacional. Não obstante, observa-se uma hipertrofia
da atividade legiferante por parte do Presidente da República, o que levou o
Poder Legislativo a aprovar a Emenda Constitucional 32/2001, a fim de
constranger ainda mais a atuação do executivo.
A partir das medidas provisórias editadas após a EC 32, levanta-se a
hipótese de que há um excessivo controle de agenda do legislativo por parte
do Poder Executivo, o que corrobora sua supremacia, tendo-se em vista a
dinâmica de sobrestamento da pauta legislativa ensejada pela emenda e a
atuação deficiente do Poder Legislativo.
Utiliza-se com marco teórico a Teoria Institucional Americana, mais
especificamente o Estado administrativo moderno na perspectiva pós-
madisoniana de separação dos poderes, com base no livro “The Executive
Unbound”, de Eric Posner e Adrian Vermeule, o qual demonstra como a falta
de constrangimentos legais leva a supremacia do poder executivo. Observa-se
ainda, com base na obra “The Atrophy of Constitutional Powers” de Adrian
Vermeule, como a atuação legiferante hipertrofiada do Presidente da
República é promovida diante da atrofia do poder Legislativo.
Nesse contexto, é notável a Questão de Ordem 411/2009, proposta pela
Câmara dos Deputados, que, através de mutação constitucional, promove uma
interpretação restritiva ao artigo 62, § 6º, CF, - acrescentado pela EC 32.
Destarte, as Medidas Provisórias não votadas em quarenta e cinco dias podem
sobrestar apenas os projetos de lei ordinária que tenham por objeto matéria
passível de edição de medida provisória, sendo, portanto, a forma encontrada
pela Câmara de aliviar-se das inúmeras MPs editadas pelo Presidente da
República.
Diante da importância que as medidas provisórias possuem no cenário
nacional no que tange a promoção de políticas públicas pelo Poder Executivo,
a partir do método hipotético-dedutivo, objetiva-se analisar as capacidades
institucionais e efeitos sistêmicos tanto do Legislativo quanto do Executivo na
tomada de decisão, de acordo com o texto “Interpretation and institutions” do
autor Adrian Vermeule. A pesquisa pauta-se no levantamento de das MPs
editadas pelo Presidente no intervalo de 2002 a 2013, a partir dos dados
fornecidos pelo Centro de Documentação e Informação da Câmara dos
Deputados (CEDI).
Ademais, verifica-se como o sobrestamento de pauta afeta o andamento do
processo legislativo e a influência do regime instaurado pela EC 32/2001 na
relação entre estes dois Poderes. Procura-se ainda avaliar se a Questão de
Ordem 411/2009 foi uma resposta institucional à hipertrofia Executiva; e, por
fim, aferir se há ou houve atrofia legislativa em virtude do grande número de
MP’s editadas após a EC 32/2001.
A pesquisa insere-se no âmbito do presidencialismo de coalizão em
decorrência de o Estado brasileiro se pautar no federalismo,
multipartidarismo, presidencialismo, representação proporcional e na ampla
utilização de instrumentos de controle de agenda pelo Poder Executivo a fim
de aumentar sua governabilidade.
2 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO
Tema imprescindível para o entendimento de como funciona o ciclo das emendas constitucionais na
realidade político-jurídica brasileira é o presidencialismo de coalizão. Essa expressão foi cunhada por
Sérgio Abrantes em 1988, no qual estabeleceu seu conceito:
Apenas uma característica, associada à experiência brasileira,
ressalta como uma singularidade: o Brasil é o único país que, além
de combinar a proporcionalidade, o multipartidarismo e o
“presidencialismo imperial”, organiza o Executivo com base em
grandes coalizões. A esse traço peculiar da institucionalidade
concreta brasileira chamarei, à falta de melhor nome,
“presidencialismo de coalizão”, distinguindo-o dos regimes da
Áustria e da Finlândia (e a França gaullista), tecnicamente
parlamentares, mas que poderiam ser denominados de
“presidencialismo de gabinete”. (ABRANCHES, 1988, p. 21).
Apesar de nomeado somente em 1988, é um movimento que observa-se
desde 1946, segundo o entendimento do autor Fabiano Santos (2003, p. 17):
“Dada a separação de poderes e o pluralismo partidário no Congresso, o
presidente articula sua base de apoio graças à distribuição de cargos
ministeriais e de recursos orçamentários entre os grandes partidos, cujos
membros garantem os votos necessários à implementação do governo.” Sendo
assim, o que se percebe é uma formação subjetiva do governo, quanto na sua
manutenção, devido a caracteres não outros que a conformidade de interesses.
Entretanto, esperava-se que a constituição de 1988 e seus termos alterasse
essa configuração e por consequência tornasse o país ingovernável, pois
entendia-se que uma harmonização entre o Executivo e o Legislativo ser
improvável, já que:
Essa característica só é possível por dois fatores intrínsecos do
presidencialismo:
a) A “patronagem”
b) O poder de agenda
Patronagem é entendida como a disposição sobre recursos para impor
disciplina aos membros da coalizão, conseguindo apoio partidário consistente.
Esses “recursos” ou incentivos vão desde pastas ministeriais até a liberação
de emendas. É quando o Executivo usufrui de suas prerrogativas como Poder
para de alguma forma convencer os parlamentares a agirem de acordo com a
sua vontade. Isso tem por consequência a privatização de interesses, pois, a
partir do momento que um Poder tem influência sobre o outro a ponto de
conseguir com que grande parte de suas medidas sejam aprovadas, tem grande
chance de frustrar o surgimento outras novas propostas que gerem benefícios
tão ou mais abrangentes que as originadas pelo próprio.
Portanto essa característica de um executivo forte é unicamente decorrente
da necessidade dos interesses desse poder serem eleitos como próprios por
uma maioria de parlamentares garantindo que suas medidas sejam aceitas e
colocadas em prática e ao mesmo tempo se demonstra um contraponto
pernicioso pois para que isso seja possível ele usa de meios não ilegais porém
escusos, como o controle orçamentário, distribuição de posições ministeriais
não de acordo com a capacidade de administrativa do indivíduo mas sim a
legenda que o mesmo representa, entre outras.
3 ANÁLISE EMPÍRICA
Diante de todo o exposto nos capítulos precedentes, percebe-se que as
Medidas Provisórias podem ser utilizadas como mecanismo de controle da
agenda do Poder Legislativo pelo poder Executivo. Isto ocorre através de: (i)
má-utilização dos critérios “relevância e urgência”180, ambos fora da zona de
apreciação dos Poderes Legislativo e Judiciário e (ii) pelo sobrestamento de
pauta, instrumento introduzido no texto constitucional em 2001 e objeto da
presente pesquisa181.
O sobrestamento (ou trancamento) de pauta permite a votação das MP’s
antes de todas as demais proposições, ultrapassando até mesmo a urgência
constitucional. Desta forma, controla-se não só o que será votado, mas também
é facultado ao Presidente impedir que matérias propostas pelo próprio
Legislativo sejam votadas.
A latente falta de constrangimentos essencialmente legais para conter o
Executivo aponta para uma situação contrária da que pensavam os Federalistas
quando da gênese da separação de Poderes. Tanto no Brasil quanto no contexto
estadunidense, mecanismos ditos constitucionais promovem certa
preponderância ao Poder Executivo.
As soluções encontradas para frear excessos decorrentes da referida
preponderância são de natureza eminentemente política. Ou seja, “quando o
Executivo passa dos limites, a política toma conta”182.
Tal hipótese pode ser facilmente comprovada pela votação da Questão de
Ordem 411/2009. O então Presidente da Câmara Michel Temer, em sua
decisão alega como motivo político para esta decisão o grande número de
MPs editadas183 que atrapalhava a deliberação na Câmara e reduzia tanto a
credibilidade dos deputados frente a sociedade quanto a aprovação de leis de
sua iniciativa. Os custos dos deputados para manter o status quo tornaram-se
elevados demais e, portanto, algo deveria ser feito184.
A deliberação na Câmara ocorre nas sessões ordinárias – marcadas
previamente – e, se necessário for, nas extraordinárias – feitas a qualquer
tempo. De acordo com a TABELA 1, a grande maioria das sessões teve sua
pauta trancada. As sessões extraordinárias, por sua vez, tiveram 53,26% de
suas sessões trancadas.
TABELA 1 – SESSÕES ORDINÁRIAS 2002-2009
2002 49 54 90,7
2003 51 92 55,4
2004 47 63 74,6
2005 68 84 80,9
2006 43 64 67,1
2007 48 60 80,0
2008 38 47 80,8
2009 60 71 84,5
2002 13 29 44,82
2003 33 78 42,30
2004 57 83 68,67
2005 44 64 68,75
2006 49 76 64,47
2010 41 49 83
2011 56 56 100
2012 48 49 97,6
2013 22 27 81,4
CONCLUSÃO
A instituição das Medidas Provisórias pela Constituição de 1988 permitiu
que o Presidente da República exercesse de maneira significativa a atividade
legiferante no ordenamento brasileiro. Majorada pela atrofia do Poder
Legislativo, a edição de MPs ganhou proporções críticas do ponto de vista da
separação de poderes e da própria segurança jurídica.
Diante da análise dos dados, pode-se afirmar que a Emenda Constitucional
32/2001 veio a resolver o problema das reedições e, no entanto, foi
fundamento de outra anomalia institucional, uma vez que a partir do
sobrestamento de pauta (art. 62, §6º, CF), a grande maioria das sessões
deliberativas do Congresso ficou trancada pelo sobrestamento de pauta.
A preponderância do Executivo é inerente às suas prerrogativas e à própria
estrutura Constitucional, uma vez que a atuação do Congresso é
demasiadamente onerosa ante a edição de MPs pelo Presidente da República.
Esse agigantamento do Executivo é ainda favorecido pela atrofia do Poder
Legislativo diante das demandas sociais.
Não obstante, esse cenário pode ser mitigado, como se observa com a
questão de ordem 411/2009, que veio a constranger o controle de agenda pelo
Executivo. Destarte, a questão de ordem 411/09 foi clara resposta a grande
quantidade de MPs editadas pelo Presidente da República e aumentou a
possibilidade de deliberação no âmbito da Câmara dos Deputados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Coalizão: O Dilema Institucional Brasileiro. Dados: Revista de Ciências
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TSEBELLIS, George. Veto players: how political institutions work. Princeton
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School Public Law and Legal Theory Working Papers Series, No. 11-07,
2011. Disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?
abstract_id=173612. Acesso em: 20 ago 2014.
____________The System of the Constitution. New York, NY: Oxford
University Press, 2011.
160 Trabalho apresentado pelo Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das
Instituições (LETACI), vinculado à Faculdade Nacional de Direito (FND) e ao Programa de Pós-
graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD/UFRJ) coordenado pelo
professor Carlos Bolonha.
161 Graduando em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
e pesquisador do LETACI. E-mail: brenoabarros@hotmail.com.
162 Graduanda em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
e estagiária da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: bruna.verissimols@hotmail.com.
163 Graduanda em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
e pesquisadora do LETACI. E-mail: lorisenra@yahoo.com.br.
164 Graduanda em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
e monitora bolsista de Teoria do Estado da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. E-mail: stellasra@gmail.com.
165 “We live in a regime of executive-centered government, in a age after the separation of powers, and
de legally constrained executive is now a historical curiosity”. POSNER, Eric; VERMEULE, Adrian.
“The Executive Unbound: after the madisonian republic”. New York, NY: Oxford University Press,
2010, p.4.
166 POSNER, Eric; VERMEULE, Adrian. “The Executive Unbound: after the madisonian republic”.
New York, NY: Oxford University Press, 2010, p. 30.
167 Ibidem, p. 27.
168 Ibidem, P. 3.
169 Para Posner e Vermeule a política e a opinião pública seriam fatores capazes de, ao contrário dos
mecanismos legalistas liberais, controlar o Executivo porque, mesmo entre eleições, o presidente precisa
de popularidade, para obter suporte político a suas propostas, e de credibilidade para persuadir os demais
de que aquilo que afirma como uma necessidade ou realidade fática e/ou causal são verdadeiras e de que
suas intenções são as melhores. Por este motivo, mesmo que em momentos de normalidade, é
indispensável que o presidente assuma compromissos, atue com responsabilidade e negocie interesses
para otimizar o apoio que recebe da população e amenizar sua relação com demais representantes. O
fortalecimento do Executivo, em grande parte, depende de como ele mesmo se contém perante a política e
a opinião pública. Após promover concessões e conquistar popularidade e credibilidade, o presidente se
torna apto a concentrar maiores poderes a sua disposição. Ibidem, P. 5.
170 MACHADO, Lucas Cordova. “Dilemas institucionais e cenários políticos: análise do discurso da
alteração do sobrestamento da pauta na Câmara dos Deputados”. 2011, p. 20.
171 GOBATTO, Gilson. “Executivo e legislativo - poderes harmônicos e independentes? Uma análise do
poder de agenda”. 2013, p. 31.
172 O artigo 62 da lei maior brasileira em seu texto original dizia que: “Em caso de relevância e urgência,
o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de
imediato ao Congresso Nacional, que, estando em recesso, será convocado extraordinariamente para se
reunir no prazo de cinco dias. Parágrafo único. As medidas provisórias perderão eficácia, desde a edição,
se não forem convertidas em lei no prazo de trinta dias, a partir de sua publicação, devendo o Congresso
Nacional disciplinar as relações jurídicas delas decorrentes”.
173 Quanto a estas matérias que são próprias de leis delegadas e que seriam vedadas na edição de
medidas provisórias, temos os atos de competência exclusiva do Congresso Nacional e os de competência
privativa da Câmara dos Deputados e do Senado Federal; as matérias reservadas às leis complementares;
as relativas à organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, incluindo as carreiras e as garantias
de seus membros; os atos relativos à nacionalidade, cidadania, e aos direitos individuais, políticos e
eleitorais; e a legislação que envolve os planos plurianuais, as diretrizes orçamentárias e o orçamento
presentes nos artigos 49, 51 e 52 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
174 A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 em seu artigo 62, § 9º, indica que “Caberá à
comissão mista de Deputados e Senadores examinar as medidas provisórias e sobre elas emitir parecer,
antes de serem apreciadas, em sessão separada, pelo plenário de cada uma das Casas do Congresso
Nacional”. Contudo, esse controle por parte do Congresso Nacional, não evita o sobrestamento de pauta
sofrido pelo mesmo, e que favorece o Poder Executivo.
175 GOBATTO, Gilson. “Executivo e legislativo - poderes harmônicos e independentes? Uma análise do
poder de agenda”. 2013, p. 39.
176 Dentre estes limites estabelecidos estão as matérias quanto a nacionalidade, cidadania, direitos e
partidos políticos e sobre direito eleitoral; ao direito penal, processual penal e processual civil; organização,
carreira e garantias de membros do Poder Judiciário e do Ministério Público; matérias orçamentárias,
como os planos plurianuais, as diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares,
com a ressalva de permissão para os créditos extraordinários; detenção ou sequestro de bens, poupança
ou ativos financeiros; matérias reservadas às leis complementares; e matérias que já estejam disciplinadas
em projetos de lei devidamente aprovados pelas Casas do Congresso Nacional, e que estejam pendentes
de sanção ou de veto por parte do Presidente da República.
177 OLIVEIRA, Magali Carvalho Alves de. “Medidas provisórias e a relação Executivo x Legislativo:
uma visão do sobrestamento de pauta”. 2009, p. 36.
178 Ibidem, p. 40.
179 MACHADO, Lucas Cordova. “Dilemas institucionais e cenários políticos: análise do discurso da
alteração do sobrestamento da pauta na Câmara dos Deputados”. 2011, p. 27.
180 Constituição da República Federativa do Brasil, art 62, caput. “Em caso de relevância e urgência, o
Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de
imediato ao Congresso Nacional” (grifos nossos)
181 Segundo o artigo 62, parágrafo 2º da Constituição brasileira, após quarenta e cinco dias de tramitação
da medida provisória sem apreciação, esta entrará em regime de urgência em cada uma das casas do
Congresso Nacional e ficarão sobrestadas todas as outras deliberações até que haja a votação da MP.
182 “In this chapter, we discuss this puzzle. Our argument is simple: the system of elections, the
party system, and American political culture constrain the executive far more than do legal rules
created by Congress of the courts; and although politics hardly guarantees that the executive will
always act in the public interest, politics at least limits the scope for executive abuses.” POSNER,
Eric. A. VERMEULE, Adrian. Op.cit., p 112
183 “Se não encontrarmos uma solução no caso interpretativo do texto constitucional que nos
permita o destrancamento da pauta, nós vamos passar, Deputadas e Deputados, praticamente esse
ano sem conseguir levar adiante as propostas que tramitam por esta Casa que não sejam as
medidas provisórias[...] Eu quero, portanto, dar uma resposta à sociedade brasileira, dizendo que
nós encontramos aqui uma solução que vai nos permitir legislar” Michel Temer, então Presidente da
Câmara dos Deputados, em seu pronunciamento sobre a Questão de Ordem 411/09.
184 “In a nutshell the basic argument of the book is the following: In order to change policies (or
as we will say from now on: change the (legislative) status quo) a certain number of individual or
collective actors have to agree to the proposed change. I call such actors veto players”.
TSEBELLIS, George. Veto players: How political institutions work, Princeton UP and Russell Sage
Foundation. 2002, p. 12
AGÊNCIAS REGULADORAS: A
LEGITIMIDADE DO PARECER TÉCNICO
REGULATORY AGENCIES: THE LEGITIMACY OF
TECHNICAL REPORT
Ana Navarro
André Wendriner
Arnaldo Ferradosa
Carlos Bolonha
Gabriel Guia
Telmo Olímpio
RESUMO
A ideia de Administração Pública associa-se à necessidade de propiciar à máquina pública eficiência e
funcionalidade, as quais refletirão em questões estratégicas para o interesse público. O Estado
Administrador tem, nas agências reguladoras, instituições neutras capazes de regular matéria específica,
cujas capacidades institucionais permitem gerar efeitos sistêmicos mais desejáveis em setores nos quais os
representantes eleitos não estão capacitados a elaborar a mais eficiente regulação. O problema surge
quando o parecer técnico é contrastante com o de motivação política, pois, ao mesmo tempo em que
aquele parece justificado devido à expertise do seu emissor, este parece deter maior legitimidade em razão
do princípio democrático.
PALAVRAS-CHAVE
Órgão regulador; parecer técnico; legitimidade democrática.
ABSTRACT
The idea of Public Administration associates with the need to provide public machine efficiency and
funcionability, which will reflect on strategic issues for the public interest. The Administration has, in
regulatory agencies, neutral institutions capable of regulating specific matter. Their institutional capacity
can generate more desirable systemic effects in sectors in which elected representatives are not able to
develop the most efficient regulation. Thus set apart of partisan interests, agencies emit essentially
technical report, differentiating themselves from the politically motivated statements by the elected
branches. The problem arises when the technical report is at odds with the political motivations, because,
at the same time the first one seems justified as a result of the expertise of its issuer, the second one
seems to hold greater legitimacy due to the democratic principle.
KEYWORDS
Regulatory agency; technical report; democratic legitimacy.
INTRODUÇÃO
Em vários Estados Democráticos de Direito observou-se um movimento de redistribuição do poder político
por parte das instituições. Em relação à Administração Pública brasileira, esse fenômeno veio associado à
necessidade de propiciar maior eficiência e funcionalidade à máquina estatal. Desse modo, para o bom
funcionamento do Estado e para o melhor desenvolvimento da economia, consolidou-se o entendimento de
que não é possível prescindir de supervisão técnica especializada, com regulação uniforme e sistematizada,
principalmente em setores econômicos estratégicos do Estado.
As Agências Reguladoras surgiram neste contexto para proporcionar a
transformação do Estado, cujo modelo tradicional já não atendia à rápida
evolução tecnológica, ao novel modo de produção econômica e ao exercício
da regulação e fiscalização de atividades econômicas. O Estado
Administrador vislumbrou nas Agências Reguladoras instituições neutras
capazes de regular matérias de cunho técnico, cujas capacidades institucionais
permitiam gerar os efeitos sistêmicos mais desejáveis sobre os setores
econômicos frente aos quais os representantes eleitos não estavam tão
capacitados a elaborar a mais eficiente regulação.
Os pareceres das agências reguladoras, assim, porque apartadas de
interesses partidários e compostas por especialistas, se diferenciam dos de
cunho essencialmente político enunciados pelos Poderes eleitos, que são
integrados, em sua maioria, por agentes generalistas. O problema surge quando
o parecer de natureza técnica é contrastante com o parecer de motivação
política, pois, ao mesmo tempo em que aquele parece mais justificado devido
à sua especificidade, este parece deter maior legitimidade devido ao princípio
democrático. Pergunta-se: afinal, o parecer técnico é realmente menos legítimo
que o parecer político?
O objeto desta pesquisa é a análise da legitimidade das agências
reguladoras e os casos de sobreposição e conflitos entre pareceres políticos e
pareceres técnicos. A hipótese defendida é a que os pareceres não técnicos
dos órgãos democraticamente eleitos não devem se sobrepor, fundados em
pretensão de maior legitimidade, sobre os pareceres técnicos das agências
reguladoras. Em outras palavras, os pareceres técnicos também se reputam
legítimos no Estado Democrático de Direito, não devendo, pois, se submeter
aos pareceres políticos ante a alegação de que os últimos possuem maior
legitimidade. Para tanto, é trabalhada a ideia de legitimidade democrática
associando-a ao respaldo popular, à governabilidade e ao procedimento
legislativo.
A teoria institucional norte-americana, condensada nos nomes de Adrian
Vermeule e Cass Sunstein, mas também as teorias cujas perspectivas trabalham
mutuamente com o Direito Administrativo e a Ciência Política, como as
presentes em Peter Strauss, e, no âmbito brasileiro, em Gustavo Binenbojm,
dão a base teórica ao presente estudo. O método empregado é o hipotético-
dedutivo. Como objetivo geral, a pesquisa pretende justificar a legitimidade
das agências reguladoras e, como objetivo específico, apontar que, no conflito
entre pareceres técnicos e pareceres políticos, estes nem sempre devem se
sobrepor.
Este trabalho apresenta, no ponto 2, a teoria institucional norte-americana,
seus pilares conceituais e seus desdobramentos iniciais sobre os confrontos
entre pareceres emitidos por agências reguladoras e pareceres emitidos por
órgãos eleitos; posteriormente, são indicadas as duas ondas de
desenvolvimento destas instituições no país: a primeira, no período das
privatizações e a segunda, já no governo Lula, havendo maior preocupação
neste governo com a questão do respaldo democrático e o poder crescente das
agências reguladoras; no ponto 4, diante de um conflito entre pareceres
técnicos e políticos, duas perguntas são feitas: “Qual deve prevalecer?” e
“Seria o parecer técnico menos legítimo que o político?”. Por fim, analisará o
caso da nota técnica emitida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(ANVISA) que versa sobre inibidores de apetite e sua superação pelo Decreto
Legislativo nº 273/2004 do Congresso Nacional.
CONCLUSÃO
As Agências Reguladoras, embora não detenham representatividade nos
moldes tradicionais realizada pelo voto popular, produzem pareceres técnicos
justificados, possuindo maior capacidade institucional para produzir os efeitos
sistêmicos mais desejáveis na ordem social e econômica do Estado.
À luz da teoria institucional vislumbra-se a existência de uma
complexidade muito maior na atuação das instituições do Estado que não
parece estar contemplada pelos simples mecanismos legais. Assim,
subentende-se que ante a criação de uma agência, toma-se como premissa a
necessidade de pareceres técnicos específicos que regulem determinado setor,
uma vez que esses entes são criados e capacitados institucionalmente para
melhor avaliar os efeitos dinâmicos das suas decisões.
Tendo em vista esse premissa, não há que se considerar viável a
superposição do parecer político sobre o parecer técnico com esteio na
legitimidade democrática que o primeiro possui. Com efeito, as agências
reguladoras constituem a superação ou relativização do dogma da não-
delegação das funções específicas de cada um dos poderes estatais. Em razão
da enorme transformação pela qual vem passando o Estado, para este dar
solução rápida e eficaz aos problemas cada vez mais freqüentes e complexos
da sociedade moderna, não pode prescindir das capacidades institucionais
(expertise) das agências, não encontradas na prática legislativa tradicional.
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THE PUBLIC SAFETY UNDER THE FEDERAL EXECUTIVE
POWER: THE GOVERNMENT PLANS AND EXECUTIVE
SUPREMACY
Carlos Bolonha
Dominique Oliveira
Gabriel Castro
Gabriel Dolabella
Gabriel Mendonça
Juliana Sales
Leonardo Gaspar
Luiz Lima
Stefanie Araujo
Telmo Olímpio
Victor Costa
RESUMO
No Brasil, pode-se perceber um agigantamento do Poder Executivo Federal sob a ótica da Segurança
Pública, se analisado, inclusive, os planos de governo dos principais presidenciáveis de 2014. Dilma e
Aécio sugerem uma centralização Federal no combate à violência quotidiana. Disto deriva-se a análise da
capacidade institucional e normativa do Executivo Federal para medidas propostas para Segurança Pública
e seus efeitos sistêmicos nas instituições brasileiras. A centralidade no Presidente para superar a crise de
insegurança, tendo por base esses planos, é uma demonstração clara de uma Supremacia Executiva; e isto
concorre para o fato de não se encontrar uma reação tiranofóbica na opinião pública e nas demais
instituições estatais. Portanto, através de uma metodologia hipotético-dedutiva, propõe-se uma análise da
centralização da atuação executiva quanto à Segurança Pública no âmbito federal.
PALAVRAS-CHAVE
Supremacia Executiva; teoria institucional; segurança pública.
ABSTRACT
In Brazil, an enlargement of the Federal Executive Power can be noted from the perspective of Public
Security even if we analyze the government plans of the main presidential candidates of 2014 election. It is
suggested a federal centralization against the daily violence. The analysis of the institutional and normative
capacity of the Federal Executive to propose measures to Public Security and its systemic effects in
brazilian institutions derives from that situation. The centralization of the President to overcome the
insecurity crisis, based on these plans, is a clear demonstration of Executive Supremacy; and this
contributes to the fact that there is not a tyrannophobic reaction in public opinion and in the other state
institutions. Therefore, through a hypothetical-deductive methodology, we propose an analysis of the
centralization of the executive actions regarding Public Security at the federal level.
KEYWORDS
Supremacy executive; institutional theory; public safety.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente artigo visa a oferecer uma análise da supremacia do Poder
Executivo Federal no tocante à promoção da Segurança Pública. No Brasil,
verifica-se uma crise de insegurança, claramente demonstrada pelos dados
oficiais. Diante da necessidade de atuação do Poder Público para garantir um
direito constitucionalmente tutelado, observa-se uma tendência de o Poder
Executivo Federal coordenar e centralizar as políticas de Segurança Pública.
Entretanto, essa iniciativa desequilibra a tripartição de poderes uma vez que
promove um agigantamento do Poder Executivo, violando a distribuição
constitucional de competências.
Se, por um lado, a centralidade do Poder Executivo Federal no combate à
violência tem o escopo de promover um direito constitucional, por outro lado,
promove uma invasão de competências, claramente, estatuídas na Lei Maior.
Os principais presidenciáveis das eleições de 2014, Dilma Rousseff e Aécio
Neves, apresentaram propostas de centralização das políticas de Segurança
pública. Vale ressaltar que, a presidente reeleita, propôs a alteração do texto
constitucional de maneira a atribuir ao Governo Federal a responsabilidade de
coordenação das ações de combate à violência. A inexistência de uma reação
tiranofóbica deve-se, basicamente, à falta de consciência política e aos
efeitos, muitas vezes, positivos da atuação federal. Nesse sentido, o fenômeno
do agigantamento do Poder Executivo, embora viole disposições de patamar
constitucional, não encontra resistência numa sociedade que se mostra
impotente no monitoramento da atividade pública.
A referida ampliação do Poder Executivo Federal pode gerar uma crise
federativa e uma crise institucional. Em primeiro plano, a indiferença às
capacidades institucionais manifestada na atuação centralizada do Poder
Executivo denota a falta de diálogo entre as instituições e pode promover o
distanciamento entre elas. Sendo assim, pode-se falar em crise institucional.
Em segundo plano, a possibilidade de crise federativa deve-se à invasão de
competências; o Governo Federal se ocupa de uma atribuição que, do ponto de
vista técnico-formal, é concorrente. Dessa forma, rompe-se o princípio da
isonomia entre os entes federados.
Em suma, o Governo Federal viola o texto constitucional para promover
um direito constitucional. Como proceder diante dessa contradição que pode
conduzir a crises institucional e federativa?
3 DESDOBRAMENTOS INSTITUCIONAIS
De forma a desenvolver a análise sobre uma possível crise institucional no
Brasil a partir da crise de Segurança Pública e das propostas de governo da
presidente Dilma Rousseff no Brasil é mister apresentar possíveis definições,
ainda que introdutórias, de três termos essenciais da Teoria Institucional. São
eles: diálogo institucional, capacidade institucional e efeitos sistêmicos.
O “diálogo institucional” pode ser entendido como a possibilidade
instrumental, normativa ou procedimental, de relação entre as instituições,
sobretudo as instituições do Estado, criando, assim, mecanismos de interação
entre elas. Em outras palavras, trata-se da cooperação entre as instituições.
Já a noção de “capacidade institucional” deve ser analisada com base em
dois diferentes planos: Normativo e Logístico. Trata-se de um conceito amplo
que abrange toda a atividade de uma instituição; seja no plano Normativo,
levando em consideração as suas competências e o desempenho de seus
agentes; seja no plano Logístico, observando os seus recursos, mecanismos e
instrumentos de atuação.
“Efeitos sistêmicos”, por outro lado, consiste na repercussão de uma
decisão tomada em determinada instituição em outras instituições; ou seja,
considerando a relação entre as instituições, a atividade de uma delas acarreta
consequências em outras instituições (salienta-se que essas consequências são
diversas e podem ser previsíveis, ou não).
Esses conceitos permeiam os estudos sobre o comportamento das
instituições, haja vista que, por meio deles, pode-se relacionar as instituições
e as suas situações fáticas ao que idealmente seria desejado, ou ao menos
esperado.
Isto posto, analisando as atividades do Executivo Federal concernentes à
crise de Segurança Pública, como já discutido, fica evidente que, ao
extrapolar as competências estabelecidas na Constituição Federal, verifica-se
o agigantamento do Executivo Federal em detrimento às outras instituições
(inclusive a instituições do próprio Poder Executivo, como, por exemplo, a
Polícia Civil e a Polícia Militar). Essa Supremacia pode ser entendida como
uma resposta mais imediata aos problemas, uma vez que, recorrentemente,
atribui-se ao Executivo Federal uma maior capacidade de ação, no sentindo de
adoção de medidas eficazes. No entanto vale indagar se, de fato, esse
fenômeno contribui para a resolução da crise. Até que ponto seria razoável a
exacerbada concentração de atividade por parte do Executivo Federal? Na
verdade, essa visão de um Executivo Federal como a maior instituição de
poder remete à cultura do povo brasileiro, muitas vezes indiferente às
capacidades institucionais. Além disso, considerando os efeitos sistêmicos, ao
passo que a capacidade institucional do Executivo Federal aumenta, as
atribuições das demais instituições são cada vez mais reduzidas.
Não obstante, enfatizando a criação da FNSP, pode-se constatar a
inexistência do devido diálogo entre as instituições. Argumenta nesse sentido
o Ministério Público Federal do Pará, que propõe a extinção da Força
Nacional de Segurança Pública, defendendo a inconstitucionalidade do órgão,
uma vez que foi criado por decreto presidencial. É necessário que o
presidente conte com a participação do Congresso Nacional para a criação de
um órgão policial que deve ser feita por meio de emenda constitucional. Com
base nesse exemplo, percebe-se a falta de cooperação entre as instituições.
Desse modo, tendo em vista que a cooperação é termo essencial e necessário
da noção de diálogo institucional, é cabível salientar a falta desse diálogo
entre, ao menos, as duas instituições em questão.
Constatações como essa, que deflagram a falta de cooperação entre as
instituições, são alarmantes já que destacam a possível inefetividade das
instituições. Uma instituição, ao se apropriar de competências que não as suas,
revela um desequilíbrio na distribuição das atividades institucionais de modo
a inviabilizar o desempenho normativa e logisticamente pretendido. Ao
assumir a frente de tais programas, e aqui se refere novamente à FNSP, o
Executivo Federal pode pretender apontar a falta da devida efetividade, no
caso, do Congresso Nacional; ou se não isso, pelo menos que ele não é
necessariamente indispensável. Elaboram-se tais proposições com base no
fato de que, mesmo atuando em contraposição ao exigido pelo ordenamento
jurídico - ou seja, não contando com a participação do Congresso Nacional - o
Executivo Federal conseguiu criar o órgão.
Esse quadro é problemático visto que pode resultar no excessivo
distanciamento das instituições, de modo a estabelecer uma crise institucional
generalizada. Embora cada instituição tenha certa independência de atuação
(no sentido de possuir uma capacidade institucional própria) é de extrema
importância que elas mantenham o “contato” e, mais que isso, a cooperação.
Uma vez que se estabeleça a falta de diálogo institucional, as chances de
ocorrência de crise são ampliadas. Essa crise se configura em razão das
consequências da confusão de competências entre as instituições, isto é, a
crise se apresenta como um efeito sistêmico da falta de diálogo institucional.
Frente à possível crise é latente o questionamento acerca da possibilidade
de garantir a estabilidade institucional por meio da normatização. Em outras
palavras: a normatização é capaz de garantir a estabilização das instituições?
Essa questão não está completamente solucionada, uma vez que, embora a
norma, muitas vezes de forma expressa, estabeleça o comportamento de
determinada instituição, no desempenho de suas atribuições a instituição se
ampara de instrumentos que não estão necessariamente apontados pelo
ordenamento.
Desse modo, embora fosse aprazível enfrentar a questão de modo a afirmar
que a criação de normas é suficiente para delimitar a capacidade de uma
instituição e garantir a sua estabilidade, é inevitável expor que, com base no
real desempenho das instituições, não se consegue aferir se a normatização, de
fato, promove a estabilização institucional. Por outro lado, é inoportuno
desconsiderar a possível contribuição da normatização para a estabilização.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A temática da Segurança Pública corresponde, atualmente, a um tema de
suma importância para o país, possuindo destaque na agenda presidencial e
sendo grande ponto de embate nas disputas eleitorais. Indo além, o assunto
ganha especial relevância por ser um reflexo direto dos contrastes sociais
característicos do país, o que justifica o tratamento cuidadoso recebido pelos
candidatos quando da eleição.
Contudo, percebe-se que o tema não só é relevante por refletir a sociedade
brasileira, mas também por expor detalhes do design institucional e federativo
do Estado brasileiro. A atuação centralizadora do Executivo Federal frente ao
assunto mostra que, do ponto de vista institucional, este acaba agigantando-se
frente aos outros poderes, causando um desequilíbrio deste perante as outras
instituições do Estado e fazendo com que ocorra um distanciamento
generalizado entre todas elas. Quanto ao âmbito federativo, o trato dado pelo
Executivo Federal ao tema da Segurança Pública se mostra muito mais como
um exemplo de como o modelo federativo brasileiro funciona do que como
suscitador de possíveis mudanças neste - nota-se aqui um modelo em que a
centralização de forças por parte da União não só é naturalizada como
constitui verdadeira característica do design federativo.
Por fim, o fato de o agigantamento e a consequente supremacia do Poder
Executivo corresponder a uma característica do Estado brasileiro mostra uma
relação com a inexistência de um pensamento tiranofóbico na sociedade
brasileira. Assim, da mesma forma que o modo como o Estado federal se
desenvolveu nos Estados Unidos explica o porquê de existir um pensamento
tiranofóbico no país, a maneira distinta como o modelo estatal evoluiu no
Brasil também explica como tal pensamento não existe no país.
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OS DESAFIOS PARA EFETIVAÇÃO DA
PARTICIPAÇÃO SOCIAL FRENTE O DECRETO
N° 8.243/14
CHALLENGES FOR AN EFFECTIVE SOCIAL
PARTICIPATION IN THE DECREE N° 8.243/14
RESUMO
Recentemente o Poder Executivo Federal editou o Decreto nº 8.243/14, de 23 de maio de 2014, que
instituiu a Política Nacional de Participação Social e o Sistema Nacional de Participação Social. Diversos
setores da sociedade se posicionaram diante dessa opção em editar um decreto, e não um projeto de lei.
Este artigo analisa o Decreto à luz do conceito de controle social dentro do sistema de participação da
área da saúde, fazendo um histórico das lutas pelo controle social na saúde, a sua efetivação na
Constituição Federal. Entrando na análise propriamente do texto do Decreto n° 8.243/14, é descrita a
sistemática organizacional proposta, que acaba submetendo todos os sistemas de conselhos participativos,
existentes hoje, a uma instância governamental: a Secretaria-Geral da Presidência da República.
PALAVRAS-CHAVE
Participação; controle social; decreto.
ABSTRACT
Recently the Federal Government published the Decree number 8.243/14 which established the National
Policy for Social Participation and the National Social Participation System. Various sectors of society took
a stand on this political choice in editing a decree, not a bill. Given this context, this article analyzes the
document in the light of the concept of social control in the health’s system for participation, and its
effectiveness in the Federal Constitution. In the analysis of the document, the organizational proposed will
be described, which has just submitted all existing participatory councils systems to a government body, the
Presidential Office.
KEYWORDS
Participation; social control; decree.
INTRODUÇÃO
A Constituição de 1988 em muito se diferencia das anteriores,
principalmente no que se refere à relação entre Estado e sociedade. Primeiro,
pela sua própria estrutura - enquanto as anteriores iniciavam tratando da
Organização Nacional, a atual Constituição inicia com os Princípios
Fundamentais e em seguida já trata dos Direitos e Garantias Fundamentais, de
forma que o enfoque no cidadão e em seus direitos já vem logo na porta de
entrada deste sistema jurídico. O art. 1°, parágrafo único, foi além. Não se
limita a falar que todo poder emana do povo e que será exercido pelos
representantes eleitos. Sua inovação está na adoção da democracia direta ou
participativa como um de seus fundamentos.
No que se refere à Teoria Democrática e aos direitos políticos, nosso
sistema jurídico adota institutos de democracia representativa (art. 14 ao art.
17) e institutos de democracia participativa (art. 14 e incisos; art. 37, §3; art.
27, §4; art. 29 XII e XIII; art. 61, §2; art. 194, VII; art.198, III; art. 204, II; art.
206, VI; art. 216-A, X; art. 227, §1). Como regra geral, a Constituição exige
lei para regulamentar os dispositivos que tratam do sistema democrático
pátrio.
Cabe ainda lembrar que Medidas Provisórias e Leis Delegadas não podem
tratar de nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e
direito eleitoral (art. 62, §2, I e art. 68, §1, II – Constituição Federal), sendo,
para nós, muito claro que instrumentos de democracia participativa são
espécies de direito vinculados à cidadania e aos direitos políticos, portanto,
encontram-se dentro desta vedação.
Em geral, as principais previsões constitucionais sobre democracia
participativa tratam do plebiscito, do referendo, da iniciativa de leis e da
participação direta na tomada de decisões na construção de políticas públicas.
Os três primeiros são instrumentos de democracia semidireta e nosso
histórico demonstra sua baixa utilização. Por sua vez, os instrumentos de
participação direta da sociedade na Administração Pública para construção de
políticas públicas de Saúde, Assistências Social, Direitos da Criança e do
Adolescente, Educação, etc., foram exigidos pela própria Carta e cresceram
muito no pós-88.
As previsões normativas aliadas aos movimentos sociais garantiram que se
revitalizassem as consultas públicas, as audiências públicas e os chamados
Conselhos de Políticas Públicas. Estes últimos são previstos em leis
regulamentadoras dos referidos dispositivos constitucionais e se proliferaram
pelo país de tal forma que tanto os Estados, como as municipalidades
passaram a contar com vários Conselhos para construção de políticas
públicas.
O enfoque deste texto é justamente na análise dos conselhos de políticas
públicas frente às modificações propostas no Decreto n° 8.243/14. O objeto
deste trabalho se concentra no controle social na Saúde, que tem mais de 25
anos de construção e é uma rede de instâncias, estruturadas a partir das Leis
Federais n° 8.080/90 e n° 8.142/90, consolidada através de inúmeras leis
estaduais e municipais, além de outros dispositivos do próprio Governo
Federal. Este sistema conta com várias instâncias de controle social, como o
Conselho Nacional de Saúde e as Conferências de Saúde, que possuem um
extenso conjunto de deliberações e de normas infralegais.
A escolha em analisar os Conselhos para gestão do Sistema Único de
Saúde (SUS) parte da premissa de que o Decreto n° 8.243/14, por ser um ato
geral e abstrato, deve ser analisado primeiro de forma abstrata, o que significa
o estudo de suas possibilidades e limites diante do ordenamento jurídico e a
Teoria do Direito. A segunda forma de análise deve ser em concreto e busca
identificar os limites do Decreto frente às leis em sentido formal ou material
que regulam os diversos sistemas participativos em âmbito Federal.
Esse objeto permite analisar os limites normativos de um decreto na
regulamentação da relação entre os cidadãos e o Estado no que tange à
construção de políticas públicas. Podemos perguntar: Qual o lugar real e
formal da sociedade civil frente às Instituições Estatais? Quais os instrumentos
jurídicos que devem ser utilizados no tratamento de direitos de cidadania?
CONCLUSÃO
Se pensássemos somente que o Decreto n. 8.243/2014, submete – novas
regras, critérios, diretrizes, etc. - à todas as atividades já instituídas
relacionadas a participação social, das diversas esferas governamentais e a
todos os entes federativos do Brasil, poderíamos concluir como sendo um ato
insensato, contrário a boa lógica ou à razão. Quando o ato jurídico em questão
submete todas as ações destas inúmeras organizações ao controle da
Secretaria-Geral da Presidência da República, verificamos que promove a
hierarquia e a centralização de todo processo.
Alguns órgãos relacionados ao sistema da Saúde no Brasil, dentre eles o
Conselho Nacional de Saúde, bem como diversos outros que formam uma rede
de instâncias, estruturadas a partir das Leis Federais n° 8.080/90 e n°
8.142/90, consolidada através de inúmeras leis estaduais e municipais, foram
criados por Lei.
O Decreto n. 8.243/2014 caso venha existir por algum tempo, só pode ser
aplicado em questões que não contrariarem o sistema normativo legal já
instituído por Lei para a área de saúde e para outras áreas na mesma situação.
Da análise das questões levantadas, ainda podemos inferir que apesar de
existir certa divergência de entendimento na ciência constitucional e
administrativa quanto à implementação de Decretos pelo Poder Executivo, um
ponto é muito claro, ou seja, a Constituição Brasileira vigente, através, de seu
Art. 84, inciso VI, não permite ao Poder Executivo expedir Decreto
direcionado a criar novos órgãos.
A Presidência da República, através do Decreto n. 8.243 de 23 de maio de
2014, em seu Art. 9o cria uma instância organizacional, o que se configura de
forma concreta, clara e precisa como uma inconstitucionalidade do referido
ato.
Art. 9º Fica instituído o Comitê Governamental de Participação
Social - CGPS, para assessorar a Secretaria-Geral da Presidência da
República no monitoramento e na implementação da PNPS e na
coordenação do SNPS. (Decreto n. 8.243 / 2014)
Finalmente, concluímos que uma boa decisão a ser tomada seria a
revogação do Decreto n. 8.243/2014 e encaminhamento da questão para o
Congresso Nacional como um projeto do Poder Executivo, mais
especificamente da Presidência da República, com vistas à adequação em
termos de procedimentos e de conceitos utilizados, e principalmente,
permitindo um amplo debate com a sociedade.
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Acórdão Paulo Afonso Brum Vaz, juntado aos autos em 13/01/2014.
COTAS PARA O ACESSO AO SERVIÇO
PÚBLICO: ANÁLISE CRÍTICA DA LEI
12990/2014
QUOTAS FOR ACCESS TO PUBLIC OFFICE: A CRITICAL
ANALYSIS OF LAW 12990/2014
RESUMO
Discriminação, preconceito racial e a desigualdade estrutural na sociedade brasileira confrontam-se com
os objetivos fundamentais do Estado na Constituição brasileira. Este cenário requer a adoção de medidas
para reduzir a desigualdade observada no Brasil. A ação afirmativa criada pela Lei 12.990 de 2014, que
estabeleceu cotas para afrodescendentes em concursos públicos a nível federal, tem o potencial de
acelerar a redução da desigualdade econômica e social, garantindo a inclusão da população
afrodescendente no mercado de trabalho. Este artigo tem por objetivo analisar criticamente esta nova lei,
sugerindo uma interpretação constitucionalmente adequada para sua aplicação, assim como questionar a
exclusão de cotas para cargos judiciais e legislativos em seu âmbito de proteção. A análise é realizada
com base em um paradigma da justiça constitucional que engloba as dimensões de distribuição,
reconhecimento e participação.
PALAVRAS-CHAVE
Justiça constitucional; cargos públicos; ações afirmativas.
ABSTRACT
Discrimination, racial prejudice and structural inequality in Brazilian society clash with the fundamental
objectives of the State in the Brazilian Constitution. This cenario requires the adoption of measures to
reduce inequality observed in Brazil. The affirmative action created by Law 12.990 of 2014 , which
established quotas for Afro-descendants in civil service exams at the federal level , has the potential to
accelerate the reduction of economic and social inequality , ensuring the inclusion of Afro-descendant
population in the labor market . This article aims to critically examine the new law , suggesting a
constitutionally appropriate interpretation for the application of this new law, as well as questioning the
exclusion of quotas for judicial and legislative posts in its scope of protection The analysis is carried out
based on a paradigm of constitutional justice that encompasses the dimensions distribution, recognition and
participation.
KEYWORDS
Constitutional justice; public office; affirmative action.
INTRODUÇÃO
Persiste no Brasil, nesta segunda década do Século XXI, um quadro de
alarmante desigualdade social, que perpassa não somente a estrutura de
classes da sociedade, apresentando um nítido recorte de raça e de gênero. Ao
se analisar a população brasileira, verifica-se que a população
afrodescendente continua a ocupar majoritariamente os extratos sociais mais
pobres, com menores níveis de educação escolar, e com menor acesso ao
mercado de trabalho. Ainda dentro da população inserida no mercado de
trabalho, os afrodescendentes tendem a ocupar os postos com menor
remuneração e estabilidade. Anote-se, ainda, que neste quadro a mulher negra
ou parda enfrenta dificuldades ainda maiores (IPEA,
2011)”edition”:”4”,”event-place”:”Brasília”,”abstract”:”As desigualdades de
gênero e raça são estruturantes da desigualdade social brasileira. Não há,
nesta \nafirmação, qualquer novidade ou qualquer conteúdo que já não tenha
sido insistentemente evidenciado pela \nsociedade civil organizada e, em
especial, pelos movimentos negro, feminista e de mulheres, ao longo das
\núltimas décadas. Inúmeras são as denúncias que apontam para as piores
condições de vida de mulheres e \nnegros, para as barreiras à participação
igualitária em diversos campos da vida social e para as consequências \nque
estas desigualdades e discriminações produzem não apenas para estes grupos
específicos, mas para a \nsociedade como um todo.\nTais evidências factuais,
contudo, não foram capazes de, sozinhas, imprimir às agências governamentais
\num novo paradigma para a construção de intervenções que permitam reduzir
as desigualdades e a pobreza. \nPor décadas, as políticas se desenvolveram
tendo como ponto de partida – e de chegada – um conjunto \nhomogêneo de
seres humanos, sem sexo e sem raça, que deveriam, a partir deste marco
conceitual, ter \ncondições similares de acessar as políticas públicas e delas
se beneficiar. A realidade, porém, evidenciada por \nestudos e pesquisas
baseados em indicadores sociais, indicava que as desigualdades se mantinham
e que a \nreversão deste quadro demandaria uma nova forma de
agir.”,”URL”:”http://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/revista.pdf”,”author”:
[{“family”:”Ipea”,”given”:”Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada”}],”issued”:{“date-parts”:[[“2011”]]},”accessed”:{“date-parts”:
[[“2013”,8,9]]}}}],”schema”:”https://github.com/citation-style-
language/schema/raw/master/csl-citation.json”} .
Esta realidade empírica choca-se frontalmente com o ideal de igualdade
previsto na Constituição brasileira de 1988. A Constituição colocou como um
dos objetivos fundamentais do Estado brasileiro a redução da desigualdade,
de modo a alcançar uma sociedade justa e solidária. Esta igualdade, contudo,
não se atinge através de uma isonomia jurídica formal, fundada em um modelo
de Estado que não interfere na sociedade. Passados mais de cem anos de
isonomia jurídica formal no Brasil, reconhecida ao estilo das constituições
oitocentistas, muito pouco se avançou na diminuição da desigualdade acima
relatada. O objetivo fundamental de redução de desigualdade exigido pela
Constituição de 1988 impõe, ao contrário, a adoção de políticas públicas
efetivas que acelerem a inclusão social da população afrodescendente.
A ação afirmativa criada pela Lei 12.990 de 2014, que instituiu a reserva
de vagas para os negros em concursos públicos no âmbito federal, tem o
potencial de acelerar a redução da desigualdade socioeconômica, assegurando
a inclusão da população afrodescendente no mercado de trabalho. E, mais do
que isto, esta ação afirmativa tem o potencial de assegurar à população
afrodescendente o reconhecimento social de sua capacidade intelectual e de
sua competência na construção de uma melhor comunidade política, através de
sua atuação direta na estrutura de comando e decisão na burocracia estatal.
O objetivo deste trabalho é analisar criticamente esta nova lei, sugerindo
uma interpretação constitucionalmente adequada para sua aplicação, bem
como questionar a não inclusão dos poderes judiciário e legislativo em seu
âmbito de proteção. A análise é efetuada com base em paradigma de justiça
constitucional que engloba as dimensões distribuição, reconhecimento e
participação.
1 DESENVOLVIMENTO
Para alcançar o objetivo pretendido por este trabalho, desenvolvemos este
artigo em três seções. Inicialmente, analisamos a igualdade como objetivo
fundamental do Estado brasileiro, investigando o conteúdo dogmático e
filosófico do princípio da igualdade na Constituição de 1988. Em seguida,
abordamos a questão da ação afirmativa como solução para a desigualdade,
empreendendo sua leitura através de um marco teórico de justiça
constitucional que envolve tanto a dimensão do reconhecimento quanto as
dimensões de redistribuição e participação na redução da desigualdade. A
partir do quadro teórico-normativo desenvolvido nas duas primeiras seções,
efetuamos a análise crítica da Lei 12.990.
2.1 A Igualdade como Objetivo Fundamental do Estado
O constituinte de cinco de outubro de 1988, a fim de consolidar um Estado
Democrático de Direito, elencou em seu artigo terceiro os objetivos
fundamentais que devem nortear a República Federativa do Brasil. Todos os
incisos do referido artigo – em especial os incisos I, III e IV –, iniciam-se com
verbos imperativos em um claro compromisso por parte do Poder Público de
constituir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a
marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o
bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação.
Entretanto, para que esses objetivos ultrapassem as prescrições constantes
na Constituição Federal e coadunem-se à realidade brasileira, requer-se por
parte dos Poderes Públicos uma conduta positiva, por meio de ações
afirmativas que visem a reduzir os desequilíbrios sociais, econômicos e
culturais para que de fato possamos eliminar a persistente desigualdade social
que desafia o Estado brasileiro, no objetivo de construir uma nação mais
igualitária.
Diante disso, o princípio da igualdade jurídica, materialmente
considerada, componente sócio-político de grande relevância em um Estado
Social e Democrático de Direito, ganhou especial importância após a
promulgação da Constituição, passando a nortear a atuação da administração
pública em geral, bem como as decisões dos órgãos do Poder Judiciário,
elegendo a isonomia como pressuposto de justiça na composição dos conflitos
sociais.
As inúmeras atribuições constitucionais conferidas aos entes federativos
para promover a igualdade de oportunidade por meio de ações afirmativas
demonstram claramente que nossa Constituição baseou-se num ideal de estado
social intervencionista, que não se limita a prever igualdades meramente
formais, mas determina uma conduta positiva no sentido de modificar uma
desigualdade que permeia a linha histórica brasileira. Surge, então, a questão
do conteúdo jurídico do princípio constitucional da igualdade.
A igualdade entre os homens, estudada e explicada dentro de um contexto
normativo, atravessa a história da humanidade e traz a lume incessantes
indagações, tais como a busca por uma sociedade mais justa e o
aperfeiçoamento e evolução do próprio Direito. Decorrente da natureza plural
que é o comportamento e a cultura humana, a desigualdade, como não poderia
deixar de ser, foi e continua a ser assunto de interesse global, sobretudo
devido ao crescimento das tendências democráticas (ROCHA, 1990).
Daí que compreender que a igualdade jurídica, no que diz respeito às
desigualdades humanas, é imprescindível para que se compreendam as bases
de convivência justa e realização da pessoa, que não se prendem a uma forma
imutável, mas, pelo contrário, têm a desigualdade como um fato, um produto
da evolução histórica.
Segundo Cármen Lúcia Antunes Rocha (1990), em obra primordial para o
entendimento do sentimento de igualdade que influenciou a Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-1988, esclarece que não se tem um único e
mesmo conteúdo para este princípio ideal que se opõe à diversidade humana,
haja vista que princípio jurídico da igualdade deve-se aperfeiçoar à
necessidade de comunhão justa de bens e objetivos dos membros da sociedade
política estatal.
Traçando um paralelo entre justiça e igualdade com a evolução e
racionalização do Direito, a referida autora aduz ainda que:
A igualdade no Direito é arte do homem. Por isso o princípio jurídico
da igualdade é tanto mais legítimo quanto mais próximo estiver o seu
conteúdo da ideia de justiça em que a sociedade acredita. O princípio
jurídico de igualdade não é um princípio passivo ou estático, pois ele
é uma projeção do agir político de um povo manifestado no fazer e no
aplicar do seu Direito (ROCHA, 1990, p. 28).
Na mesma linha de raciocínio e entendimento, e elegendo a dignidade da
pessoa humana como a base do respeito como um todo, sustenta Luís Roberto
Barroso que:
A dignidade da pessoa humana é valor e princípio subjacente ao
grande mandamento, de origem religiosa, de respeito ao próximo.
Todas as pessoas são iguais e têm direito ao tratamento igualmente
digno. A ideia da dignidade da pessoa humana é ideia que uniforma,
na filosofia, o imperativo categórico kantiano, dando origem a
proposições éticas superadoras do utilitarismo: a) uma pessoa deve
agir como se a máxima de sua conduta pudesse transforma-se em uma
lei universal; b) cada indivíduo deve ser tratado como fim em si
mesmo, e não como meio para realização de metas coletivas ou de
outras metas individuais. As coisas têm preço; as pessoas têm
dignidade. Do ponto de vista moral, ser é muito mais do ter. (2011, p.
272)
A Constituição Federal, ao declarar que a República Federativa do Brasil
constitui-se em Estado Democrático de Direito, voltado à concretização de
uma sociedade justa, livre e solidária, sem preconceitos e livre de quaisquer
forma de discriminação, demonstra a preocupação do poder constituinte
originário de institucionalizar um Estado comprometido com objetivos e
fundamentos concretos, a serem alcançados por meio de medidas positivas de
reconhecimento e efetividade dos direitos.
A Constituição Federal de 1988, mais conhecida à época de sua
promulgação como Constituição Cidadã, em razão do forte clamar popular, foi
fortemente influenciada pelos ideais socializantes da recente redemocratização
do Brasil, o que se pode ver refletir nos inúmeros direitos fundamentais e na
supervalorização da dignidade da pessoa humana incertos nos primeiros
artigos da Carta, sobretudo no que tange à tendência ao tratamento cada vez
mais isonômico aos cidadãos.
Encheu-se de valor o que antes era puramente formal, conferindo-se
competência de guardião da Constituição ao Supremo Tribunal Federal,
dotando-o de autoridade suficiente a interpretar normas e conceitos jurídicos
constitucionais e infraconstitucionais à luz do que dispôs o poder constituinte,
com fito de concretizar seus preceitos fundamentais.
A contribuição do Supremo Tribunal Federal se nota a partir das inúmeras
manifestações como, por exemplo, ao apreciar ações que tratam das
divergências relativas à temática desigualdade, notadamente quanto ao
reconhecimento das uniões homoafetivas como entidades familiares (BRASIL,
2011) e à legitimidade na implementação de cotas raciais nas universidades
públicas (BRASIL, 2014b), revelando a importância e o impacto social
conferidos à interpretação de igualdade material pelo STF.
Em compasso com a promoção da igualdade, o Poder Legislativo também
vem editando leis de inclusão social para diminuição das desigualdades, tais
como a Lei 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial), que tem como
finalidade coibir as discriminações raciais, além de estabelecer políticas
públicas para diminuir as desigualdades existentes entre os diversos grupos
raciais (BRASIL, 2010); bem como a Lei 12.990/2014, objeto do presente
trabalho, que reservadas aos negros 20% (vinte por cento) das vagas
oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e
empregos públicos no âmbito da administração pública federal (BRASIL,
2014a).
A não discriminação é direito fundamental, condição para o livre exercício
dos direitos e para o sucesso da democracia e igualdade no Brasil. A atuação
positiva do Legislador na implementação do comando constitucional de
igualdade e as decisões do Supremo Tribunal Federal se destacam para a
consolidação da concepção de igualdade material e a legitimidade de ações
afirmativas, como medidas necessárias, bem como para a indispensabilidade
do Estado na garantia e promoção do direito à igualdade e proibição da
discriminação.
Flávia Piovesan, ao discorrer sobre a igualdade, diferença e direitos
humanos, adverte quando à necessidade de repensar a igualdade como
exercício da cidadania:
Daí a urgência em se erradicar todas as formas de discriminação,
baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica,
que tenha como escopo a exclusão. O combate à discriminação é
medida fundamental para que se garanta o pleno exercício dos
direitos civis e políticos, como também dos direito econômicos,
sociais e culturais (PIOVESAN, 2010, p 50).
É evidente, portanto, que para a concretização da igualdade o Direito deve
se incumbir da criação de fórmulas normativas que permitam realizar o
objetivo da igualdade jurídica sem se perder a diversidade humana (ROCHA,
1990). E, aos profissionais deste ramo de conhecimento, compete cm que o
texto normativo, que iguala e dignifica o homem em sua convivência política,
seja meio para alcançar as melhores condições humanas e mais justas relações
sociais.
Nesta mesma linha, Ronald Dworkin (2005) adverte quanto à importância
da igualdade ao afirmar que “nenhum governo é legítimo o menos que
demonstre igual consideração pelo destino de todos os cidadãos sobre os
quais afirme seu domínio e aos quais reivindique fidelidade”, pois considera a
igualdade virtude soberana da comunidade política, sem a qual os governos
não passariam de tiranias.
O Estado, como protagonista que deve ser na implementação de ações
afirmativas tendentes a consolidar a vontade social formalizada pelo poder
constituinte, deve buscar respostar diferenciadas e específicas, ou seja, faz
necessário perquirir a especificação dos sujeitos de direito, diferenciando-os.
Nesse sentido, importa ao Estado promover o direito de ser diferente,
suficiente a assegurar um tratamento substancialmente igualitário frente à
maioria igual, formalmente considerados (PIOVESAN, 2010).
A demanda pela adoção de políticas públicas de inclusão das populações
em situações de desigualdades faz-se necessária. Sejam ações afirmativas
para acesso a cargos e empregos públicos por meio de cotas raciais ou cotas
em universidades públicas, sejam ações coibindo a discriminação e
preconceito, estas políticas públicas são medidas necessárias para reduzir
com maior celeridade a desigualdade observada ao longo da história
brasileira, motivo pelo qual a Constituição de 1988, na busca de assentar a
igualdade como norte da República Federativa do Brasil, trouxe em seu corpo
normativo ferramentas e objetivos a serem implementados por seus entes.
2.2 Ação Afirmativa como Solução para a Desigualdade e a Teoria da
Justiça do Reconhecimento e Redistribuição
A desigualdade racial é um fato no Brasil, não podendo ser reduzida
apenas à desigualdade de classe, apesar de estarem correlacionadas. Assim,
em um país de exclusão racial e social a simples declaração de um direito não
se basta. Apenas o reconhecimento do direito em um texto jurídico não é
suficiente, mas sim sua aplicação efetiva para proporcionar uma inclusão
integral.
Os direitos fundamentais elencados na Constituição de 1988,
principalmente o da igualdade e o da construção de uma sociedade justa e
solidária são constantemente contrastados e muitas vezes ineficazes devido ao
mito de democracia racial existente no País. Então, a adoção de políticas
públicas é necessária para a redução dessa desigualdade, incluindo a
população afrodescendente no mercado de trabalho.
As ações afirmativas são um instrumento para equilibrar as relações
sociais e promover a igualdade material, são medidas temporárias que
concebem um tratamento distinto a pessoas que se encontram em diferentes
situações fáticas com o objetivo de lhes garantir a igualdade. Neste sentido:
A definição jurídica objetiva e racional da desigualdade dos
desiguais, histórica e culturalmente discriminados, é concebida como
uma forma para se promover a igualdade daqueles que foram e são
marginalizados por preconceitos encravados na cultura dominante na
sociedade. Por essa desigualação positiva promove-se a igualação
jurídica efetiva; por ela afirma-se uma fórmula jurídica para se
provocar uma efetiva igualação social, política, econômica no e
segundo o Direito, tal como assegurado formal e materialmente no
sistema constitucional democrático. A ação afirmativa é, então, uma
forma jurídica para se superar o isolamento ou a discriminação social
a que se acham sujeitas as minorias. (ROCHA, 1996, p. 286)
As ações afirmativas, como medidas que têm o objetivo de garantir a
igualdade material de fato devido à desigualdade de uns em relação a outros
membros da sociedade, devem ser temporárias, pois uma vez que a medida
não tenha alcançado seus objetivos, nada impede que sejam criadas novas
medidas inclusivas, podendo, caso seja necessário, promover-se a ampliação
do seu prazo de aplicação.
Entretanto, através da análise de julgados, percebeu-se que tais políticas
tendem a sofrer questionamentos nos tribunais (vide MAURICIO JUNIOR;
FRANÇA, 2014). Tendo em vista esse histórico de questionamentos, parte-se
do pressuposto que com a nova Lei 12.990 de 2014 não será diferente e que a
melhor maneira para aceitação das ações afirmativas é quando estas são
analisadas com base em uma teoria da justiça que abrange elementos, sociais,
culturais e econômicos, que não veem apenas a redistribuição como solução,
mas também o reconhecimento dessas minorias.
Nancy Fraser e Axel Honneth (2003) trazem em suas teorias da justiça uma
perspectiva que aborda tanto a dimensão redistributiva, como a dimensão do
reconhecimento, a partir das quais é possível formular um melhor
enquadramento teórico para a legitimação das ações afirmativas.
Axel Honneth defende o reconhecimento da dignidade dos indivíduos e
grupos uma parte vital do conceito de justiça. Sendo necessário que o
indivíduo adquira auto estima na forma de encorajamento mútuo da sua
individualidade na sociedade, e que haja um reconhecimento recíproco,
através do qual a partir da perspectiva de seus companheiros, os indivíduos
passam a se considerar como portadores iguais dos direitos. E então se faz
necessário por fim, um reconhecimento jurídico o qual proteja a chance de
participação na formação pública da vontade e que garanta um mínimo de bens
materiais para a sobrevivência (HONNETH, 1996).
Já na perspectiva de Nancy Fraser, uma vez que existe na sociedade
coletividades “bivalente”, onde as quais sofrem injustiças simultaneamente na
estrutura econômica e na ordem de status da sociedade, não se deve entender
que são excludentes e distintas as teorias da distribuição e do reconhecimento,
no entanto devem estas ser aplicadas em conjunto, tendo ambas igual
importância. Ressalta ainda, que o reconhecimento não deve ser visualizado
como auto-realização e sim como um problema de justiça, uma vez que alguns
indivíduos não participaram plenamente e em condições de igualdade na
construção da sociedade participando como atores inferiores e excluídos, por
conseguinte havendo uma subordinação de status, devido a padrões de valor
cultural institucionalizados (FRASER, 2000, 2005).
Essa perspectiva permite deixar os desacordos sobre auto-realização, para
assim haver um reconhecimento recíproco e igualdade de status, pois leva em
consideração o fato de que o não-reconhecimento não consiste simplesmente
em atitudes preconceituosas que geram danos psicológicos, mas sim padrões
institucionalizados de valor cultural que impedem a igual participação na vida
social (FRASER, 2000, 2005).
Sendo assim distribuição e reconhecimento não devem ser vistos como
perspectivas e dimensões distintas da justiça. Sem reduzir qualquer dimensão
à outra, engloba ambas em uma estrutura mais ampla e abrangente. Ou seja, é
necessário que sejam feitos arranjos sociais que permitam a todos os membros
adultos da sociedade interagir uns com os outros como pares (participação
paritária). Só que para a participação paritária ser possível ao menos duas
condições sociais devem ser satisfeitas, a distribuição de recursos materiais e
padrões institucionalizados de valor cultural que expressem igual respeito por
todos os participantes e assegurem igual oportunidade para a conquista de
estima social (FRASER, 2000, 2005).
Desta feita, além de necessárias para a promoção da igualdade, as ações
afirmativas devem ser analisadas sob esses novos paradigmas de justiça que
abordam, além da redistribuição, o reconhecimento. Estas teorias englobam
não só elementos econômicos, mas também elementos sociais, culturais e
políticos na implementação de políticas públicas para o acesso e inclusão de
minorias, constituindo um melhor enquadramento teórico para compreender a
desigualdade racial no Brasil, bem como justificar a legitimidade das ações
afirmativas.
2.3 Análise da Lei 12.990: a não inclusão dos poderes legislativo e
judiciário
Em 9 de junho, foi publicada a Lei 12.990/2014 que cria a reserva de 20%
das vagas de concursos para cargos na administração pública federal, bem
como nas autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de
economia mista da União (BRASIL, 2014a).
Esta lei teve origem no Projeto de Lei (PL) 6738/13, do Poder Executivo,
que teve o apoio da maioria no Congresso Nacional, sendo aprovado em
plenário pelo número de 314 votos a favor e 36 contra, tendo uma tramitação
rápida. Sua justificativa foi a promoção da igualdade, uma vez que a diferença
racial poderia ser constatada por dados estatísticos.
Conforme disposto em seu artigo 6º, a Lei 12.990/2014 tem vigência pelo
prazo de 10 anos, e, ainda, não abrange os editais já publicados. A lei
determina que a reserva deverá ser informada no edital sempre que o número
total de vagas for igual ou superior a três,, sendo as vagas remanescentes
redistribuídas para a ampla concorrência.
Cabe destacar que, nada impede que depois de passados os 10 anos de
vigência da Lei, caso este período não tenha sido suficiente seja ampliado o
prazo de vigência ou criados novos mecanismos sócio jurídicos para obtenção
da igualdade.
Conforme o parágrafo único do artigo 2º da Lei, como irão concorrer às
vagas reservadas aqueles que se autodeclararem negros ou pardos na
inscrição, há a previsão de eliminação do candidato do concurso público, se
for constatada que a declaração é falsa ou, se já tiver sido nomeado, a sua
contratação será anulada, podendo ainda sofrer outras sanções cabíveis na
esfera jurídica.
Há também uma proteção dos candidatos negros quanto à classificação e
nomeação, pois, os candidatos negros concorrerão concomitantemente às
vagas reservadas e às vagas destinadas à ampla concorrência, de acordo com
a sua classificação no concurso. Esse detalhe visa a evitar que os candidatos
negros, por optarem por concorrer a vagas reservadas, fiquem prejudicados
caso obtenham notas para passar nas vagas normais. Observe-se que o
objetivo é que sejam admitidos pelo menos vinte por cento de negros, e não
somente vinte por cento.
A nomeação dos candidatos aprovados respeitará os critérios de
alternância e proporcionalidade, que consideram a relação entre o número de
vagas total e o número de vagas reservadas a candidatos com deficiência e a
candidatos negros.
Procura-se, aqui, não prejudicar os candidatos cotistas na classificação e
na nomeação. A classificação é importante por que existe a previsão do art.
37, IV, da CF – “durante o prazo improrrogável previsto no edital de
convocação, aquele aprovado em concurso público de provas ou de provas e
títulos será convocado com prioridade sobre novos concursados para assumir
cargo ou emprego, na carreira” (BRASIL, 1988).
Ademais, é estabelecido no artigo 5º da Lei 12.990/2014 que, anualmente,
o órgão responsável pela política de promoção da igualdade étnica de que
trata o parágrafo primeiro do artigo 49 do Estatuto da Igualdade Racial, será
também responsável por acompanhar e avaliar as disposições da Lei
12.990/2014.
A Lei encontra-se ainda harmonizável com o disposto no artigo 39 da Lei
12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial), que diz:
Art. 39. O poder público promoverá ações que assegurem a
igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para a população
negra, inclusive mediante a implementação de medidas visando à
promoção da igualdade nas contratações do setor público e o
incentivo à adoção de medidas similares nas empresas e
organizações privadas.
Com a análise da Lei 12.990/2014, fica evidenciado que o objetivo dessa
é, de forma célere, reduzir as desigualdades e promover a efetivação dos
direitos fundamentais elencados na Carta Magna.
Entretanto, com tal objetivo, cabe o questionamento sobre a sua não
extensão aos poderes Legislativo e Judiciário, estando o Estado brasileiro em
uma situação de parcial inconstitucionalidade.
Especificamente sobre esta questão, recentemente foi impetrado mandado
de segurança coletivo com pedido de medida liminar, sob o n. 33072, no dia
10.7.2014, pelo Instituto de Advocacia Racial e Ambiental – IARA. Os
impetrantes alegam que a Lei 12.990/2014 não teria respeitado o princípio da
proporcionalidade de gênero nem contemplado os Poderes Legislativo e
Judiciário em suas normas. Alegam, igualmente, que referida Lei teria violado
o Estatuto da Igualdade Racial, especialmente em seu art. 39, caput e
parágrafos 2º e 4º, ao faltarem as autoridades competentes com o dever de
adotarem medidas de “justiça social, ação afirmativa e reparação do processo
de escravidão moderna e de antirracismo, notadamente pela omissão na
elaboração de atos normativos que adequassem os órgãos públicos” aos
ditames constitucionais e legais invocados. Afirmam ainda os impetrantes que
quaisquer ações afirmativas que não contemplem todos os Poderes não têm
eficácia plena e são insuficientes para promover a inclusão de
afrodescendentes (BRASIL, 2014c).
A relatora, ministra Carmen Lúcia, negou seguimento ao mandado de
segurança ressaltando a inadequação do instrumento processual para
questionar lei em tese, com base na Súmula 266 do STF. De fato, o impetrante
pretendia a declaração de inconstitucionalidade por omissão da Lei
12.990/20114 e para tal finalidade a Constituição da República define ações
específicas, o que não poderia ser substituído pelo mandado de segurança. A
relatora afastou também o argumento de violação a direito previsto no Estatuto
da Igualdade Racial, já que a essa lei não reserva 20% das vagas em concurso
público aos negros, mas apenas dispõe sobre a implementação de medidas
visando à promoção da igualdade das contratações do setor público, a cargo
dos órgãos competentes. De outro lado, considerou que a Lei 12.990/2.014
sequer poderia ter disposto sobre concursos nos órgãos legislativos e
Judiciários, tendo em verdade sido rejeitada, por inconstitucional, emenda
parlamentar proposta ao então projeto que resultara na lei, de iniciativa da
Presidente da República, diante da “competência privativa” dos demais
Poderes da República, “para dispor sobre seus cargos” (BRASIL, 2014c).
Em momento algum na decisão houve juízo sobre a legitimidade da reserva
de vagas à luz Constituição. A decisão se restringiu a afirmar a inadequação
da via eleita para o questionamento da matéria e, no mérito, a reconhecer que
a obrigatoriedade de reserva de vagas prevista na Lei 12.990/2.014 restringe-
se à Administração Federal, por limitações inerentes às regras do processo
legislativo e decorrentes do princípio de separação dos poderes.
Entretanto, deixando de lado a questão da adequação da via escolhida pelo
Instituto de Advocacia Racial e Ambiental – IARA, fica evidente a
inconstitucionalidade da regulamentação estatal da ação afirmativa para
acesso dos afrodescendentes a cargos públicos, com a violação dos art. 3º,
inciso I, e art. 5º, caput, da Constituição de 1988. Afinal, conforme foi
assinalado pelo próprio Supremo Tribunal Federal na ADPF 186 (BRASIL,
2014b), “justiça social, hoje, mais do que simplesmente redistribuir riquezas
criadas pelo esforço coletivo, significa distinguir, reconhecer e incorporar à
sociedade mais ampla valores culturais diversificados, muitas vezes
considerados inferiores àqueles reputados dominantes”. Assim, mais do que
uma cortesia do Estado, a criação das políticas afirmativas objeto da Lei
12.990/2014 são um dever estatal imposto pela Constituição.
Nesta linha, excluir da ação afirmativa os cargos relativos aos poderes
judiciário e legislativo seria uma clara violação de direitos fundamentais,
infringindo a cláusula de proibição de proteção insuficiente, notadamente pelo
fato de estes cargos serem dotados de relevantes poderes na estrutura
burocrática do Estado brasileiro. Como destacam Mendes, Coelho e Branco
(2007), referindo-se a Schlink, “se o Estado nada faz para atingir um dado
objetivo para o qual deva envidar esforços, não parece que esteja a ferir o
princípio da proibição da insuficiência, mas sim um dever de atuação
decorrente do dever de legislar ou de qualquer outro dever de proteção”.
Qual, então, seria a solução para este entrave? Parece-nos que esta
proteção insuficiente poderia ter sido combatida através de um mandado de
injunção. Este remédio constitucional, que pode ser utilizado “sempre que a
falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e
liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à
soberania e à cidadania” (art. 5º, LXXI, da Constituição de 1988), é adequado
para combater omissões inconstitucionais, inclusive para obtenção de efeitos
concretos, conforme a jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal
Federal (neste sentido, vide MENDES; COELHO; BRANCO, 2007, p. 1154–
1159). Esta, aliás, também parece ser a sugestão da ministra Carmen Lúcia, ao
afirmar que “para a finalidade de reconhecimento da omissão legislativa e da
efetiva inviabilidade do gozo de direito, faculdade ou prerrogativa
consagradas constitucionalmente em razão do vácuo normativo, a Constituição
da República define ações específicas” (BRASIL, 2014c).
CONCLUSÃO
Procuramos, neste trabalho, efetuar uma análise crítica da Lei nº
12.990/2014, que estabeleceu cotas para afrodescendentes nos concursos
públicos.
Para desenvolver esta análise, tornou-se necessário esclarecer o conteúdo
jurídico do princípio da igualdade na Constituição de 1988. Como vimos,
nossa Constituição estabelece uma cláusula de igualdade que vai além da
igualdade formal afirmada nas constituições do século XVIII, impondo aos
poderes públicos a busca por uma igualdade material, que, ao criar distinções
entre pessoas que se situam em diferentes situações fáticas, busca dar-lhes
iguais condições de liberdade e desenvolvimento humano.
A busca da igualdade material, por sua vez, demanda a criação e o
desenvolvimento de ações afirmativas, cujo objeto é exatamente a adoção de
tratamento diferenciado e mais favorecido a grupos historicamente excluídos
da sociedade. Neste sentido, a Lei 12.990/2014, ao reservar vagas para
afrodescendentes nos concursos públicos, é uma típica ação afirmativa.
Por outro lado, as ações afirmativas necessitam buscar fundamento em uma
teoria da justiça, considerando que o texto constitucional, por si só, não
elucida o significado de uma sociedade justa e solidária, e, também, que essas
ações tendem a enfrentar resistências e questionamento judiciais. Concluímos,
neste ponto, que uma teoria de justiça constitucionalmente adequada é a que
concilia as dimensões de redistribuição e reconhecimento.
Na análise da Lei 12.990/2014 propriamente dita, verificou-se que este ato
normativo procura ampliar o sistema protetivo dos direitos fundamentais da
população afrodescendente, mas incorre em violação da proibição de proteção
insuficiente ao não abranger a reserva de vagas aos concursos para cargos nos
poderes legislativo e judiciário. Consideramos, quanto a este aspecto, que o
instrumento adequado para combater essa inconstitucionalidade por omissão é
o mandado de injunção.
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A CIDADANIA NO ESPAÇO URBANO NO
CONTEXTO DO NOVO
CONSTITUCIONALISMO LATINO-
AMERICANO
CITIZENSHIP IN URBAN SPACE IN THE CONTEXT OF
THE NEW LATIN AMERICAN CONSTITUTIONALISM
Enzo Bello
Ana Beatriz Oliveira Reis
Gabriel Barbosa Gomes de Oliveira Filho
Juliana Pessoa Mulatinho
Kelly Ribeiro Felix de Souza
Laíze Gabriela Benevides Pinheiro
Marcela Münch de Oliveira e Silva
RESUMO
No contexto da reforma urbana em curso na cidade do Rio de Janeiro e impulsionada pela realização dos
megaeventos como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas e as Paraolimpíadas de 2016, verifica-se
uma modificação radical do espaço urbano promovida como estratégia de atração de investimentos e
reposicionamento da cidade através de sua renovação urbanística. O direito à cidade surge em meio a
novas práticas urbanas de cidadania, assumindo uma forma política de resistência popular e uma faceta
jurídica de direito coletivo voltado à resistência perante as reformas urbanas impostas pelo capital,
articulando a iniciativa privada e o poder público. O Novo Constitucionalismo Latino Americano revela-se
importante espaço de reconhecimento formal de novas experiências e ferramentas de participação, que
significam tentativas de se fundar uma nova sociedade a partir de processos sociais e políticos respaldados
nas ruas pelas manifestações e protestos, de onde surgem novos sujeitos políticos, novas instituições e um
modelo constitucional construído por demandas populares.
PALAVRAS-CHAVE
Cidadania; espaço urbano; novo constitucionalismo latino-americano.
ABSTRACT
Considering the context of the ongoing urban reform in the city of Rio de Janeiro and strengthened by the
fulfillment of mega events, such as the 2014 FIFA World Cup and the 2016 Olympic and Paralympic
Games, there has been a radical modification of the urban space, promoted as a strategy to attract
investments and to reposition the city through a urban renovation. The right to the city emerges amidst
new urban practices of citizenship, as a political popular resistance and as a legal facet of the collective
right, resisting the urban reforms demanded by the capital, articulating the private iniciative and the
government. The New Latin American Constitutionalism reveals itself as a important space of formal
acknowledgement of new experiences and participatory tools, which signifies attempts to create a new
society through social and political processes backed on the streets by demonstrations and protests, where
new political subjects, new institutions and a new constitutional model emerge, built by popular demand.
KEYWORDS
Citizenship; urbana space; new latin-american constitutionalism.
INTRODUÇÃO
Tem-se como objetivo oferecer um ambiente de discussão crítica acerca do exercício da cidadania no
contexto do espaço urbano, tendo como base as teorias do direito à cidade e do descolonialismo, no
horizonte das experiências de participação popular presentes no chamado Novo Constitucionalismo Latino-
Americano. No contexto da reforma urbana em curso na cidade do Rio de Janeiro e impulsionada pela
realização dos megaeventos como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas e as Paraolimpíadas de
2016, verifica-se uma modificação radical do espaço urbano promovida como estratégia de atração de
investimentos e reposicionamento da cidade através de sua renovação urbanística. O processo de
reorganização cotidiana do espaço urbano se faz de maneira a atender a necessidade do sistema
capitalista de maior acumulação de capital e é acompanhado pela violação de inúmeros direitos num
contexto de cidades que já são marcadas pela segregação social. O direito à moradia, por exemplo, é
abandonado diante das remoções forçadas para a realização das obras de infraestrutura dos megaeventos.
O direito à cidade surge em meio a novas práticas urbanas de cidadania, assumindo uma forma política de
resistência popular e uma faceta jurídica de direito coletivo voltado à resistência perante as reformas
urbanas impostas pelo capital, articulando a iniciativa privada e o poder público. A partir dessas novidades
aparecem novos atores políticos que almejam poder exercer o direito à cidade da sua maneira mais plena,
através da participação efetiva no planejamento e na gestão das cidades para se construir um novo espaço
urbano. Percebe-se uma oportunidade de diálogo entre direito à cidade e cidadania, no qual o pensamento
descolonial denota ser uma ferramenta importante para compreender a imposição de um modelo de cidade
pelo capital, representado ora por empreiteiras, ora por organizações supranacionais (FIFA e COI) para a
manutenção de países como o Brasil na condição de periferia em relação ao centro. A escolha de locais
para sediarem megaeventos esportivos internacionais como a Copa do Mundo e as Olimpíadas tem sido
guiada pela possibilidade, maior em governos de países subdesenvolvidos, de entidades como FIFA e COI
conseguirem pressionar pela adoção de medidas que garantam seu lucro. Esse é o caso do Brasil, em que
decisões relevantes a respeito da alocação de recursos relacionada a tais eventos passaram ao largo da
participação da sociedade. Ademais, era pressuposta uma abertura maior ao discurso de um legado
positivo, dada a carência de infraestrutura, quando na verdade a consequência até agora percebida foi o
acirramento das desigualdades do espaço urbano brasileiro, com a intensificação de processos de remoção
e gentrificação da cidade. É neste embate entre o capitalismo global e as resistências locais, que lutam por
um projeto de sociedade que valorize a vida, e novos tipos de relações em detrimento de um modelo de
desenvolvimento que prega o lucro a qualquer custo, que se situa o direito à cidade como um direito a
construir um novo padrão de sociabilidade entre os cidadãos no espaço que eles mesmos constroem. O
Novo Constitucionalismo Latino Americano revela-se importante espaço de reconhecimento formal de
novas experiências e ferramentas de participação, que significam tentativas de se fundar uma nova
sociedade a partir de processos sociais e políticos respaldados nas ruas pelas manifestações e protestos,
de onde surgem novos sujeitos políticos, novas instituições e um modelo constitucional construído por
demandas populares.
CONCLUSÃO
O presente trabalho visou demonstrar que há um diálogo entre direito à
cidade e cidadania, no qual o pensamento descolonial denota ser uma
ferramenta importante para compreender a imposição de um modelo de cidade
pelo capital, representado ora por empreiteiras, ora por organizações
supranacionais (FIFA e COI) para a manutenção de países como o Brasil na
condição de periferia em relação ao centro.
Desta maneira, entendemos que o modelo de cidade em curso tem ligação
intrínseca com o atual desenvolvimento do modo de produção capitalista e sua
fase neoliberal, que estabelece na busca por índices de crescimento
econômico a prioridade da administração pública, transformando o Estado no
principal violador de direitos, a fim de garantir a competitividade na dinâmica
internacional.
Desta maneira, reivindicar um modelo de cidade inclusivo, onde a
cidadania seja exercida indistintamente por toda a população, impõe a
necessidade de debater e construir outro modelo de sociedade, rompendo com
a relação sujeito-objeto, calcada na garantia individual de direitos, para dar
lugar a uma relação coletiva, baseada no território, em harmonia com a
natureza. Ou seja, necessitamos superar a busca pelo lucro, substituindo-a pela
busca pelo “bem viver”, onde a natureza e as pessoas não sejam encaradas
como produtos mercantis a serem explorados, mas como partes integradas de
um mesmo todo.
Para isto, é necessário romper com a subordinação epistêmica eurocêntrica
e nos voltarmos a compreender as especificidades do nosso lugar no mundo,
romper com os laços coloniais e desenvolver, a partir das experiências da
América Latina, um pensamento e uma prática que sejam capazes de superar
os anos de exploração e subjugação e nos apontem rumos para não apenas
prever novos direitos sob novas bases teóricas, mas mecanismos de real
implementação destes, a partir de práticas e instrumentos de participação
verdadeiramente democráticos. É necessário transformar a cidade no local de
efetivo exercício da cidadania, onde a busca do “bem viver” seja maior e mais
importante que a luta diária pela sobrevivência nas favelas e áreas de
periferia.
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POLÍTICA URBANA E GRANDES PROJETOS
PRIVADOS: UM ESTUDO DE CASO DE
LICENCIAMENTO DE SHOPPING CENTER E
SEUS REFLEXOS NA ORDEM JURÍDICO-
URBANÍSTICA
URBAN POLICY AND LARGE SCALE PRIVATE PROJECTS:A
CASE STUDY OF LICENCING A SHOPPING MALL AND ITS
IMPLICATIONS WITH THE LEGAL-URBAN ORDER
RESUMO
O presente artigo tem por objeto apresentar reflexões a respeito de um caso de licenciamento de um
grande empreendimento privado – shopping center e outras atividades correlatas – atualmente em curso
no município de Duque de Caxias (RJ), tomado como um exemplo ilustrativo das disputas atuais em torno
do planejamento das cidades brasileiras e do que costuma-se definir como direito à cidade. Com base na
análise da legislação municipal e nacional, dos processos de licenciamento urbano e ambiental e de dados
empíricos, discutem-se alguns problemas envolvidos no caso, como o grau de compatibilidade do
empreendimento com o Plano Diretor, as deficiências da avaliação de impactos ambientais, as
irregularidades nos processos administrativos de licenciamento, a não observância do devido processo
legal, a judicialização do conflito em torno do licenciamento, e o papel do movimento social de resistência à
implantação desse empreendimento. O caso estudado alimenta avaliações de maior escala a respeito da
efetividade e dos resultados da política urbana traçada em sede constitucional.
PALAVRAS-CHAVE
Grandes projetos urbanos; licenciamento; direito à cidade; devido processo legal.
ABSTRACT
This work presents thoughts about a large private development – a shopping mall and related activities - in
progress in the Duque de Caxias district, an important town at the state of Rio de Janeiro. This is taken as
an example of the disputes around the planning of Brazilian cities, and of what is commonly defined as
right to the city. Based in the analysis of municipal and national statutory law, in urban and environmental
licensing processes and empirical data, we discuss topics such as the compatibility of the whole business
venture with the district’s master plan (called “Plano Diretor” within the Brazilian urban system),
deficiencies of environmental impact assessment, irregularities of licensing administration procedures, the
non-observance of the due process of law, the sociopolitical conflict around the licensing and the role of
social movements against this development. The case studied feeds into evaluations of larger scale
regarding the effectiveness and the results of urban policies defined by the 1988’s Brazilian Constitution.
KEYWORDS
Large scale urban projects; licencing; right to the city; due process of law.
INTRODUÇÃO
Em maio de 2014, o movimento social intitulado FORAS – Fórum de
Oposição e Resistência ao Shopping, composto de mais de 20 entidades
sindicais e populares atuantes no município de Duque de Caxias, trouxe ao
grupo de pesquisa (e à universidade, de modo geral) uma demanda de
prestação de esclarecimentos técnicos acerca de um projeto de construção de
um shopping Center – e outros estabelecimentos a ele associados – na área
central daquele município.
Segundo a notícia trazida pelo movimento, trata-se de um empreendimento
de grande porte, que coloca em risco a última área verde que restou no Centro
duquecaxiense, além de ameaçar produzir impactos negativos significativos à
vizinhança, resultantes do brutal adensamento que o mesmo acarretará, caso
seja implantado. Entre esses impactos, mencionaram aqueles relacionados ao
trânsito na área central desse município, à visibilidade e à segurança de
edificações de relevância histórico-cultural, como a Igreja Matriz de Santo
Antônio e a Escola Municipal Doutor Álvaro Alberto, ao agravamento dos
problemas já existentes com o abastecimento de água, além de afetar o
tradicional “comércio de rua” do calçadão de Duque de Caxias. Isto sem falar
no malogro de um projeto de criação de um parque urbano na aludida área, à
semelhança do que ocorre no Rio de Janeiro, que dispõe de espaços como o
Campo de Santana e o Passeio Público, dentre outros, equipamentos públicos
tidos como “intocáveis” no contexto da capital.
A partir daí, o grupo de pesquisa dedicou boa parte de suas atividades do
2º semestre de 2014 ao estudo do projeto em questão, além de participar de
inúmeras atividades de discussão do mesmo, tendo respondido à demanda do
movimento através da organização e entrega de um estudo técnico, além de
contribuir com uma apresentação em audiência pública de iniciativa do mesmo
FORAS e com a propositura de ações judiciais que questionam o aludido
projeto.
Assim, o empreendimento aqui debatido consiste no que se pode chamar de
um “complexo de multiatividades”, constituído por um shopping, duas torres
comerciais, um hotel-residência e um estacionamento para quase 1.300
veículos. Segundo o respectivo projeto, estima-se que contará com um mix de
303 lojas, voltadas ao segmento socioeconômico da chamada “classe C”,
distribuídas em quatro pisos, além de espaço para lazer (cinema, rinque de
patinação, etc.). O volume de investimentos anunciado é de cerca de R$ 218
milhões e inúmeras grandes lojas e marcas já teriam manifestado interesse em
alocar-se no futuro shopping, que se situaria na Avenida Presidente Kennedy,
uma das principais vias que cruza o centro da cidade caxiense, conforme
ilustra a imagem abaixo, figurativa da construção projetada.
2 O GRAU DE COMPATIBILIDADE DO
EMPREENDIMENTO COM O PLANO DIRETOR DO
MUNICÍPIO
A Lei Complementar municipal nº 01, de 31/10/2006, instituiu o 1º Plano
Diretor de Duque de Caxias, já nos estertores do prazo fixado pelo Estatuto da
Cidade, que vencera em 10/10 daquele mesmo ano.
Cumprindo uma das tarefas elementares dessa peça legislativa - e de
planejamento urbano - o Plano fixa, em seus artigos 38 e seguintes, um
macrozoneamento do território municipal, fracionando-o, basicamente, em
três macrozonas (desconsiderando-se, aqui, as zonas especiais e áreas de
reserva), a saber:
• Zona de Ocupação Controlada - ZOC
• Zona de Ocupação Básica - ZOB
• Zona de Ocupação Preferencial - ZOP
A partir desse Plano, a região central do município, integrante do que se
convencionou chamar de “1º Distrito” - isto com base no diploma legal que o
criou (o Decreto Lei nº 1.055, de 31/12/1943) - passa a ficar contida no que
ele define como ZOC, conforme, inclusive, é atestado no certificado de
zoneamento, expedido pela municipalidade em favor dos responsáveis pelo
empreendimento objeto de análise.188
No dizer do Plano Diretor, as “Zonas de ocupação controlada são as que
apresentam restrições a uma ocupação mais intensiva do solo” (art. 41).
As diretrizes para essa macrozona, estabelecidas no artigo seguinte,
determinam:
I. a reversão de processos acentuados de adensamento urbano;
II. a instalação de infraestruturas (em especial sistema viário,
macrodrenagem, esgotamento e abastecimento d’água) antes da ocupação
do solo;
III. a graduação da intensidade da ocupação em áreas limítrofes de
paisagens notáveis.
À luz dessas premissas, parece-nos forçoso reconhecer que o projeto de
edificação pretendido pelo empreendedor situa-se na contramão da disciplina
do macrozoneamento estabelecida no Plano Diretor, que, nunca é demais
recordar, constitui “o instrumento básico da política de desenvolvimento e
expansão urbana” conforme prescreve a Lei Maior brasileira. Isto porque:
1. representa forma ultra-intensiva de aproveitamento do solo, com
área edificada equivalente a quase sete vezes a área do terreno;
2. agrava o adensamento de área indiscutivelmente saturada, conforme
tacitamente reconhecido no Plano Diretor;
3. substitui as poucas casas térreas - ou, no máximo, com sobreloja - e
centenas de árvores existentes no terreno por uma edificação de mais
de 20 pavimentos;
4. promove fortíssimo adensamento sem que tenham sido previamente
ampliadas as redes de macrodrenagem, esgotamento e abastecimento
d’água, além do sistema viário;
5. instala edificação de altíssima intensidade precisamente ao lado de
uma das edificações mais emblemáticas do município - a Catedral de
Santo Antônio - sobre cujo valor histórico, cultural, religioso,
paisagístico e afetivo para o município e região também já foi
reconhecido no Plano e na legislação municipal, e que restará
inevitavelmente “escondida”, “diminuída” e “encurralada” por uma
estrutura de volume excepcionalmente maior do que ela (e do que
todo o entorno), tal como nas simulações apresentadas nesse estudo.
Figuras 11 e 12: Perspectivas da Igreja Matriz de Santo Antônio – autora: Angel Costa Soares.
Tal ordem de coisas impõe a compreensão das licenças urbanísticas
demandadas pelo empreendedor jamais como ato jurídico vinculado da
administração, e, logo, direito líquido e certo do empreendedor, em função,
por exemplo, da já certificada compatibilidade do uso pretendido com a
legislação municipal que estabelece o zoneamento, mas sim como ato
discricionário. Isto porque há um conjunto de outras circunstâncias, de
hierarquia superior, a serem consideradas no processo decisório a cargo do
município, tais como as diretrizes estabelecidas pelo Plano Diretor para as
macrozonas em que se dividir o território do município, além daquelas outras
sistematizadas no presente estudo. Nesse sentido, cabe invocar o magistério de
diversos autores, desde o seminal – e já clássico! – estudo de José Afonso da
Silva (SILVA, 1998) até a recente monografia de ROCCO (2009).
Tratam-se de normas que adquirem prevalência sobre as vetustas
concepções do “direito de construir”, concebido aos moldes civilistas, uma
vez que constituem “exigências fundamentais de ordenação da cidade”,
estabelecendo o modo como “a propriedade urbana cumpre a sua função
social” (art. 182, § 2º, da Constituição da República). O procedimento
administrativo de licenciamento do empreendimento permite ao administrador
público aferir os elementos de oportunidade e conveniência da obra no seu
mister constitucional de regular e direcionar a ocupação urbana adequada, em
especial quando a nova atividade pode gerar impactos significativos em sua
vizinhança.
No entanto, mesmo se adotada uma concepção reducionista do
licenciamento de obras e empreendimentos, vendo nele um puro e simples
exame da adequação do projeto aos índices e parâmetros de uso e ocupação
do solo definidos na legislação municipal - hipótese que admitimos apenas por
amor ao debate - ainda assim o projeto em questão não poderia atenderia aos
requisitos para a sua aprovação, face aos dispositivos do mesmo Plano
Diretor que visam estabelecer o controle do adensamento urbano.
Nesse sentido, há que se atentar para o seu Anexo IX, que admite o
coeficiente máximo de aproveitamento do terreno de 2,4 na área do
empreendimento em questão. Considerando-se que a área do imóvel que
abrigará o referido estabelecimento é de 11.718,72 m², o máximo de área
construída licenciável nessa macrozona seria de 28.124,93m², resultante da
multiplicação da área do terreno pelo coeficiente máximo admitido no Plano.
No entanto, observamos que o projeto de edificação do shopping, nos termos
da licença de construção outorgada em 23/08/2012,189 possui uma A.T.C. de
71.880,69m², área que excede em mais de duas vezes e meia (255,6% para
ser exato) o limite legalmente estabelecido, configurando um
aproveitamento bruto do terreno de incríveis 6,13.
Como é de comum conhecimento, o coeficiente de aproveitamento máximo
definido no Plano Diretor é insuperável, não podendo ser ultrapassado mesmo
mediante pagamento de contrapartida por parte do interessado, limite acima do
qual o espaço aéreo adquire a característica de área non aedificandi. Admitir
o oposto, seria flexibilizar todo o planejamento da cidade e ensejar a sua
compra pelos agentes com poder econômico.
Por todas essas razões, parece inescapável a adequação do projeto em
questão às normas do Plano Diretor referentes ao controle do adensamento
urbano excessivo, o que, aliás, é uma das diretrizes do próprio Estatuto da
Cidade - art. 2º, VI, alíneas “b”, “c” e “d”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A título de avaliação preliminar, os autores deste estudo entendem que o
caso sob exame é bastante ilustrativo das grandes dificuldades e obstáculos à
efetividade da política urbana traçada em sede constitucional, em que pese o
fato de estar em vigor há mais de um quarto de século.
Muito embora tenha sido “decantada em verso e prosa” por juristas,
juízes, autoridades governamentais, lideranças políticas, etc., os seus
resultados efetivos, no âmbito das políticas urbanas atualmente praticadas,
ainda se mostram significativamente limitados, no sentido da realização de
suas pautas fundamentais: o direito à cidade (amplamente compreendido), a
função social da propriedade e a gestão urbana em bases justas, democráticas,
transparentes, participativas e sustentáveis.
À luz do caso estudado, pode se afirmar que, no “frigir dos ovos” da
tomada de decisões, acabam falando mais alto interesses não condizentes com
os princípios e valores que vêm sendo consagrados no âmbito do “novo
direito urbanístico brasileiro”, emergente no período pós-88. Os apelos
relacionados ao desenvolvimento econômico, ao aumento de arrecadação, à
geração de empregos, mesmo quando de muito discutível factibilidade e
confiabilidade (como nos parece ser o caso!), acabam funcionando como
imperativos absolutos. Ganham muito mais força quando a eles se articulam os
símbolos de modernidade, progresso e “urbanidade” vendidos pelo mercado
capitalista contemporâneo. E aqui não chegamos sequer a falar dos aspectos
criminógenos que ainda envolvem a operação da administração pública, tais
como os benefícios ilícitos oferecidos aos gestores de todos os níveis, pelos
detentores do poder econômico interessados em grandes empreendimentos
privados. Não é de se descartar a possibilidade da atuação desse fator,
primeiramente, em função de sua generalização, e, em segundo lugar, em face
das suspeitas que emergem do cipoal de graves irregularidades encontradas no
caso estudado.
No dia-a-dia de muitas administrações públicas, ainda hoje, reproduz-se –
lamentavelmente! – a clássica relação autoritária entre Estado e sociedade,
agravada quando, do lado da sociedade, apresentam-se movimentos populares,
representativos de segmentos sociais subalternizados, com baixo capital
político e/ou econômico.
Reproduz-se, também, a violação sistemática da ordem jurídica, que se
mostra sem força suficiente para coibir os abusos de poder praticados pelos
encarregados da gestão da coisa pública. Tais violações – insistimos,
lamentavelmente! – não têm encontrado controle adequado por parte dos
órgãos encarregados de sua fiscalização e sanção, desde órgãos do chamado
“controle interno”, ou do poder legislativo (e órgãos de contas incumbidos de
lhes auxiliar), chegando até o próprio poder judiciário, passando pelo
Ministério Público. No caso aqui estudado, observa-se que, nem mesmo após
a instauração de diversas medidas judicias e/ou de apuração dos fatos, se pôs
cobro às inúmeras e graves irregularidades vislumbradas nos processos
administrativos em andamento, que constituem a face visível da legitimação
dos grandes empreendimentos, tais como aquele objeto do presente estudo. Ao
contrário de coibir as irregularidades aqui escaneadas, e de exigir as
respectivas responsabilidades, os aludidos órgãos parecem ratifica-las e
legitimá-las, desestimulando a população a resistir aos interesses que movem
o Estado e os agentes econômicos, de cuja articulação emerge um bloco
hegemônico que parece desconhecer qualquer tipo de limite. Mais do que
nunca, parecemos estar diante de evidências eloquentes do que há algum
tempo vem sendo estudado sob o conceito de estado de exceção (cf.
AGAMBEN, 2004).
Em que pese o cenário não muito alvissareiro vislumbrado pelo grupo de
pesquisa, há que se reconhecer o fundamental papel do movimento social de
resistência à implantação do empreendimento aqui debatido, o que nos suscita
uma tênue esperança de ver concretizadas ao menos algumas das promessas de
nossa constituição, outrora dita “cidadã”, nos idos da década de 1980. Não
fosse a oportuna “provocação” trazida ao grupo de pesquisa por esse
movimento, o presente artigo jamais teria sido possível, bem como todo o
trabalho de pesquisa perderia uma oportunidade ímpar de vislumbrar os
problemas, limites e contradições tanto da ordem jurídica quanto do aparelho
do Estado, o que alguns designam como “mundo institucional”. Ao longo das
atividades realizadas em parceria com o movimento FORAS, pudemos
testemunhar o crucial papel pedagógico que este vem exercendo no município
duquecaxiense – e, hoje, até mesmo fora dele! – servindo como canal para
fazer despertar na população a percepção tanto da gravidade da questão
urbana contemporânea, quanto dos direitos urbanos – e humanos! – que vem
sendo violados.
Assim, se algum papel a universidade pública tenciona desempenhar no
sentido da realização do projeto constitucional, ao menos naquilo que ele
tenha de efetivamente democrático e de justiça socioespacial, não nos resta
dúvida de que o seu caminho é o de estreitar os seus laços com movimentos
dessa natureza, desenvolvendo e repensando, a partir de uma interlocução
renovadora com esses agentes sociais, os seus projetos de ensino, pesquisa e
extensão.
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agosto de 2012 - dispõe sobre as atividades que causam ou possam causar
impacto ambiental local, fixa normas gerais de cooperação federativa nas
ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum
relativas à proteção das paisagens naturais notáveis, à proteção do meio
ambiente e ao combate à poluição em qualquer de suas formas, conforme
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MUNICÍPIO DE DUQUE DE CAXIAS. Lei Municipal nº 1618, de 28 de
dezembro de 2001 - cria o código de usos, funções e posturas urbanas do
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dezembro de 2006 - dispõe sobre a política municipal de proteção,
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RESUMO
Foram analisados os casos julgados pelo STF em 2014 relacionados ao direito constitucional, procurando
entender o desempenho institucional da Corte a partir de três categorias: supremacia legislativa,
supremacia judicial e diálogos institucionais,208. A seleção de julgados e atuações representativos do
período teve com a finalidade de elaborar uma retrospectiva dos principais casos, de forma
exemplificativa, da atuação da Corte, como, por ex., as audiências públicas como práticas dialógicas. Essa
retrospectiva foi pautada por um plano prático, que se guiou pela descrição e sistematização de
determinadas atuações e decisões do STF e, um plano teórico, em que se optou por não aprofundar o
vinculo de cada um desses elementos e categorias, de modo a permitir que sobressaíssem os atos e
decisões do STF em relação à discussão teórica sobre as supremacias judicial, legislativa e os diálogos
institucionais. Deve ser destacado que, dos casos, selecionados, ficou a sensação de que houve mais
ativismo e supremacia judicial do que deferência ao Legislativo ou de que diálogo institucional.
PALAVRAS-CHAVE
Supremacia legislativa; supremacia judicial; diálogos constitucionais.
ABSTRACT
This research broaches the cases tried by the Brazilian Federal Supreme Court, seeking to understand the
institutional performance of the Court from three categories: supremacy legislative, judicial supremacy and
institutional dialogues. The selection of representative precedents of the period, in order to prepare a
retrospective in a exemplificative way of the judgments and acts of the Court in 2014, like, for example,
the public hearings as dialogic practices. This retrospective has been guided by a practical plan, which was
guided by the description and systematization of certain actions and decisions of the Supreme Court, and a
theoretical plan, in which it chose not to deepen the bond of each of these elements and categories in order
to allow the acts and the Supreme Court decisions in spotlight. It should be noted that among the selected
trial remains the feeling is of more activism and judicial supremacy than deference to the legislature or
than the institutional dialogue.
KEYWORDS
Legislative supremacy; judicial supremacy; constitutional dialogues.
INTRODUÇÃO
O ano de 2014 não foi nada fácil para os Ministros do Supremo Tribunal
Federal. Ao se examinar a atuação da Corte Constitucional, percebe-se que
questões de elevada relevância para o país foram debatidas e decididas sobre
a efetivação da Constituição de 1988. Em um esforço para compreender e
arrumar de forma didática a atuação do Tribunal no período, o Observatório
de Justiça Brasileira da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), que vem acompanhando e discutindo os casos em reuniões
ao longo do ano, procurou entender o desenho e desempenho institucional do
STF a partir de três categorias de discurso: supremacia legislativa,
supremacia judicial e diálogos institucionais, que tomaremos em uma acepção
geral209. Selecionamos algumas decisões representativas do período para o
direito constitucional. Não se fez um levantamento exaustivo, e sim
exemplificativo.
Na primeira categoria, em linhas bastante gerais, enquadram-se decisões
onde estão presentes argumentos que se inclinam em favor do Parlamento e
contra a atuação dos juízes em determinados campos por se reputar que o
parlamento possui a representatividade do processo eleitoral extraída da regra
da maioria, enquanto a Corte não, razão pela qual essa deve operar com maior
deferência à separação dos poderes210. Constata-se a existência de poucas
decisões do STF. A exceção fica, como veremos, com as decisões que
reconheceram a constitucionalidade da Legislação que buscou preparar o país
para os megaeventos ocorridos em 2014, como a Lei da Copa e a Jornada
Mundial da Juventude.
No segundo eixo, selecionamos três decisões representativas do período,
nas quais a inclinação em favor das Cortes em detrimento do Parlamento
estava presente211. A primeira é, em que pese a variedade de argumentos e
votos, a complexa Reclamação 4335, em que se discutiu o instituto da
extensão de efeitos pelo Senado Federal das decisões do controle difuso, nos
termos do art. 52, X da Constituição. O segundo trata da súmula vinculante 33
editada em abril pelo tribunal, dispondo sobre a aposentadoria especial dos
servidores públicos. O último caso selecionado tratou da definição do número
de parlamentares por estado e se seria possível delegar esse cálculo ao TSE
ou se isso competiria ao Legislativo. Nas três hipóteses, verificam-se
elementos de um discurso de supremacia judicial em termos substantivos ou
procedimentais.
O terceiro e último eixo observa elementos de uma cultura de diálogos
institucionais no STF na qual a preocupação não é tanto quem tem a última
palavra em matéria de jurisdição constitucionais e sim as rodadas
deliberativas como forma de obter mais informações e decidir melhor por
meio de um processo de deliberação interinstitucional212. Foram destacadas
especialmente as audiências públicas realizadas em 2014, no caso a sobre
aquela direitos autorais e diferença de classe no SUS, bem como a votação de
um caso que veio antecedido por uma audiência pública, qual seja, a
deliberação sobre o modelo de financiamento de campanha brasileiro,
julgamento que ainda não foi concluído em razão do pedido de vista do Min.
Gilmar Mendes. No entanto, nem só de audiência pública vive o diálogo
institucional e social do STF: também no caso referente à aplicação da súmula
vinculante 26 observa-se tal postura.
APONTAMENTOS FINAIS
A elaboração da retrospectiva das principais decisões do Supremo
Tribunal Federal no ano de 2014 foi pautado por dois planos conclusivos. No
plano prático, pautou-se o texto no sentido de descrever e sistematizar
determinadas atuações e decisões da Corte. Nesse universo, o pano de fundo
foram as leituras orientadas para demarcar os níveis de deliberação, de
elaboração normativa (súmulas vinculantes) e de articulação com a sociedade
brasileira a e atores políticos por meio dos diálogos constitucionais.
No aspecto teórico, por sua vez, optamos por não aprofundar o vinculo de
cada um desses elementos e categorias, de modo a permitir que a retrospectiva
do ano de 2014 sobressaísse os atos e decisões do STF em relação à
discussão doutrinária. Apesar dessa cautela, este anuário aponta para a
necessidade de reconhecer a complexidade politico-institucional para
mensurar os graus de deliberação do STF com as demais instituições e atores
sociais.
É de fato difícil enquadrar a atuação ou decisão em um modelo forte, fraco
ou dialógico de “constitucional review” (Stephen Gardbaun, Joel L. Colon
Rios e Conrado Hubner Mendes). Por essa razão, a escolha dessa nova
tipologia no processo de guarda da constituição foi utilizada mais a partir do
grau de proximidade da decisão do STF ou atuação do STF com uma das
categorias do que com o fato de determinada decisão só possuir mostras, por
ex., de supremacia judicial. Em outras palavras, todas as decisões são
multifacetadas e complexas e, em boa medida, o enquadramento se deu por
mais predominância e para fins didáticos.
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CASOS DO STF
STF, ADI 4650/DF, rel. Min. Luiz Fux, 11 e 12.12.2013 (Financiamento de
campanha)
STF, RE 581488, Rel. Min. Dias Toffoli (Diferença de classe)
STF, ADI 5062 e 5065, Rel. Min. Luiz Fuz (Direitos autorais)
STF, Rcl nº 4.335, Rel. Min. Gilmar Mendes (extensão de efeitos pelo
Senado)
STF, ADI 5136/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, 1º.7.2014. (Lei da Copa)
STF, ADI 4947/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, 18.6.2014. (Delegação ao TSE
para fixar número de parlamentares)
STF, Súmula vinculante n. 26: “Para efeito de progressão de regime no
cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da
execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da lei n. 8.072, de 25
de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não,
os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para
tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico.”
(discussão sobre a aplicação da progressão de regime)”
STF, Súmula vinculante n. 36: “Compete à justiça federal comum processar
e julgar civil denunciado pelos crimes de falsificação e de uso de documento
falso quando se tratar de falsificação da caderneta de inscrição e registro
(cir) ou de carteira de habilitação de amador (cha), ainda que expedidas
pela marinha do brasil.”STF, Súmula vinculante n.37: “Não cabe ao poder
judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores
públicos sob o fundamento de isonomia.”
Júlia Massadas240
Fabiana de Almeida Maia Santos241
Rachel Herdy242
RESUMO
O objetivo deste estudo é analisar como o instituto das Audiências Públicas vem sendo utilizado pelo
Supremo Tribunal Federal (STF). Mais especificamente, esta pesquisa visa a investigar qual o papel
exercido pelos experts nas referidas Audiências. Observa-se que a despeito da crescente convocação de
Audiências Públicas pelos ministros do STF, há uma carência de análise crítica do instituto a partir da
perspectiva da epistemologia jurídica e, especialmente, das relações entre Direito e Ciência. Dentro desse
contexto, esta pesquisa visa a investigar como o Supremo Tribunal Federal lida com questões
multidisciplinares, que devem ser levadas em conta na tomada de decisões judiciais, mas que extrapolam o
saber dogmático do Direito, demandando um conhecimento técnico-especializado. As hipóteses levantadas
são: (I) as Audiências Públicas são utilizadas para legitimar democraticamente as decisões judiciais; (II)
não existem critérios de admissibilidade dos experts bem definidos; e (III) tais características são sintomas
do desvirtuamento do instituto. A metodologia empregada envolve um estudo empírico da jurisprudência
brasileira e de doutrina estrangeira, especialmente dos trabalhos de: HAACK (2009 e 2011), DWYER
(2008) e FAIGMAN (2008). Conclui-se que as Audiências Públicas convocadas pelo STF não
correspondem, na prática, ao papel que lhes foi atribuído pelo legislador, servindo mais a interesses
políticos do que epistêmicos.
PALAVRAS-CHAVE
Audiências Públicas; experts; Supremo Tribunal Federal.
ABSTRACT
This study aims to analyze how the institute of the Public Hearings has been used by the Brazilian
Supreme Court (Supremo Tribunal Federal – STF); More specifically, this research aims to investigate
the role played by the experts in those hearings. It is observed that despite the growing call for public
hearings by the ministers of the Supreme Court, there is a lack of critical analysis of the institute from the
perspective of legal epistemology and, specially, of the relations between Law and Science. In this context,
this research aims to bring to the legal field the concern for multidisciplinary issues that must be taken into
account when making judicial decisions, but that go beyond the dogmatic know of the Law Schools,
requiring a technical expertise. The hypothesis is that: (I) The Brazilian’s Supreme Court Public Hearings
are used to democratically legitimate judicial decisions; (II) There are no well-defined criteria for the
eligibility of experts; (III) Such features are symptoms of the distortion of the institute. The methodology
involves an empirical study of the Brazilian jurisprudence and of foreign doctrine, especially of the works
of: HAACK (2009 e 2011), DWYER (2008) and FAIGMAN (2008). As a conclusion, it follows that the
Public Hearings convened by the Supreme Court (STF) do not correspond, in practice, to the role assigned
to them by the legislature, serving more to political than to epistemic interests.
KEYWORDS
Public Hearings; experts; Brazilian Supreme Court.
INTRODUÇÃO
Uma análise do processo de tomada de decisão revela que a
interdisciplinaridade é uma característica crescente nos tribunais. Premissas
fáticas não-jurídicas de diversos tipos – biológicas, psicológicas, políticas,
econômicas etc. – são partes indispensáveis para as inferências judiciais.
Influenciados pelo crescimento continuado da ciência e da tecnologia, os
tomadores de decisão no direito eventualmente enfrentam situações fáticas
inesperadas que não podem ser adequadamente acomodados em categorias
jurídicas estabelecidas. Dentro desse contexto, é essencial criar mecanismos
para que o Judiciário possa interagir com profissionais qualificados de outras
áreas do saber de forma a tomar decisões integradas à realidade social e
conscientes do contexto científico em que estão inseridas.
Tal problemática fica ainda mais evidente nos casos – normalmente mais
complexos – que chegam à Suprema Corte de um país. No Brasil, os experts
que participam das Audiências Públicas do Supremo Tribunal Federal (STF)
têm a função de estabelecer um diálogo entre a Corte e as questões mais
latentes, instigantes e polêmicas do mundo científico hoje, sobre as quais os
ministros do STF não têm competência para deliberar, apesar da formação
jurídica de excelência que eles possuem. As referidas Audiências Públicas
estão previstas nas Leis 9.868 e 9.882, ambas de 1999, e foram
regulamentadas pelo Regimento Interno do STF em 2009. No entanto, parece-
nos que a intenção do legislador não corresponde à forma com que as
Audiências Públicas vêm sendo utilizadas pelo STF.
A pesquisa ora apresentada possui como objetivo averiguar como o
instituto das audiências públicas tem sido utilizado pelo Supremo Tribunal
Federal, analisando, mais especificamente, qual o papel atribuído aos experts
nesse contexto. A motivação desta pesquisa se deu pela constatação de uma
carência de análise crítica nos trabalhos sobre as Audiências Públicas e
apresenta como problema o fato de que não existem critérios de
admissibilidade dos experts nessas Audiências. As hipóteses levantadas
afirmam que: (I) as Audiências Públicas do STF são utilizadas para legitimar
democraticamente as decisões judiciais; (II) não existem critérios de
admissibilidade dos experts bem definidos; e (III) tais características são
sintomas do desvirtuamento do instituto. A metodologia adotada envolve um
estudo de jurisprudência brasileira através da análise minuciosa dos
despachos convocatórios e das transcrições de vídeos das referidas
audiências no sítio eletrônico youtube. Além disso, foi feito um estudo de
teóricos estrangeiros a respeito da relação entre Direito e Ciência, uma vez
que pouco se fala sobre esse tema na doutrina brasileira. Este artigo está
organizado da seguinte forma: no próximo tópico nós abordamos o papel
exercido pelos experts no STF. No terceiro e quarto tópicos, indicamos o
pressuposto teórico adotado. No quinto, apresentamos o estudo empírico
realizado. No sexto, traçamos o perfil das audiências públicas. Finalmente, no
sétimo tópico está disposta a conclusão desta pesquisa.
4 ESTUDO EMPÍRICO
Entendidos os pressupostos teóricos desta pesquisa, cabe agora relacioná-
los com o estudo empírico das Audiências Públicas do Supremo Tribunal
Federal. Dezesseis audiências públicas foram realizadas em toda a história do
STF até o fechamento deste artigo, sendo a primeira convocada em 2007,
muito embora houvesse previsão legislativa para a realização de audiências
públicas no STF desde 1999.
Audiências Públicas Convocadas (2007-2014)264
CONCLUSÃO
Conclui-se, portanto, que nas audiências públicas do Supremo Tribunal
Federal, os ministros fazem referências explícitas às ideias de: “legitimação”,
“democracia”, “opinião pública” e “cidadania”, reforçando constantemente a
importância destas audiências para a abertura da Corte para a sociedade civil
e para a legitimação democrática das decisões judiciais. Isso, ao mesmo
tempo em que os próprios ministros não comparecem às mesmas, causando, no
mínimo, a impressão de que o caráter técnico-científico destas não está sendo
levado a sério. Além disso, os ministros confundem experts com amici curiae
– que muitas vezes vão até o STF para exercer o mesmo papel valorativo – e
convocam audiências para tratar de qualquer questão controvertida (e não
apenas de questões fáticas). A partir disso vê-se que há uma ausência de
comprometimento dos ministros, que sequer comparecem nas referidas
audiências. Há ainda um caráter personalista da convocação e admissão de
experts. Em vez de se seguir critérios de admissibilidade claros e unificados,
chama-se e/ou admite-se normalmente pessoas (como, por exemplo, o Dr.
Drauzio Varella, que foi convidado a participar mais de uma vez de audiências
públicas) ou entidades de renome na área (como, por exemplo, a Federação
Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, que foi convidada a participar da
audiência pública sobre anencefalia). Há ainda um sincretismo entre os
modelos adversarial e inquisitorial280. As audiências são inquisitoriais na
medida em que em alguns casos os experts são convidados pelos próprios
ministros a participar e, além disso, pois não há contraditório/ embate entre
eles (não há cross-examination, o cruzamento de informações não é feito). Os
experts não podem, por exemplo, fazer perguntas uns para os outros, o que nos
parece inadequado, haja vista que este debate possibilitaria que as partes
indicassem as falhas nas teorias umas das outras, fazendo com o que os
ministros percebessem determinados aspectos das teses que não saberiam por
conta própria. Por outro lado, as audiências seguem um caráter adversarial
porque as partes sempre possuem a prerrogativa de indicar os seus próprios
experts para “defender seus interesses”, de certa forma, perante a Corte.
Cabe ressaltar ainda que consideramos problemático que os ministros do
STF estejam convocando audiências públicas para discutir aspectos jurídicos,
para os quais eles têm ou pelo menos deveriam ter competência e que experts
e amici curiae estejam sendo confundidos de tal maneira que são chamados
para falar sobre os mesmos temas. O STF confunde Ciência e conhecimento
com política. Em vez de adotar de forma clara as suas próprias opções
políticas, suas interpretações jurídicas, eles as revestem de uma suposta
objetividade científica. Experts devem ser chamados para falar de estudos
empíricos por eles realizados e suas conclusões, devem dar a sua opinião de
especialistas e não para simplesmente dizer o que acreditam (de forma pouco
ou nada justificada) ser a melhor opção política. Constata-se, portanto, que o
Supremo Tribunal Federal confunde Direito e Ciência, legitimando suas
decisões fundadas em interpretações jurídicas e opções políticas com uma
suposta objetividade científica. Em contraste com o discurso de uma abertura
da Corte para a comunidade científica, o descaso dos ministros é latente e
questões valorativas ocupam a posição central.
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and the Mistaken Conflation of Legal and Scientific Norms. University of
Virginia School of Law, 2009. Disponível em:
http://ssrn.com/abstract=1448744 . Acesso em: 10/12/14.
239 Este artigo é resultado do projeto de pesquisa “Questões de fato no Supremo Tribunal Federal”,
desenvolvido no âmbito do Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais (GREAT). Uma
versão preliminar deste estudo foi apresentada na XXXVI Jornada Giulio Massarani de Iniciação
Científica, Tecnológica, Artística e Cultural da Universidade Federal do Rio de Janeiro e no VI Fórum de
Grupos de Pesquisa em Direito Constitucional e Teoria do Direito da Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.
240 Graduanda da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(FND/UFRJ); monitora bolsista da disciplina Filosofia Geral na Universidade Federal do Rio de Janeiro; e
pesquisadora do Grupo de Pesquisa do Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais
(GREAT). E-mail: juliamassadas@gmail.com.
241 Advogada; mestranda em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; especialista em
Gestão de Organizações do Terceiro Setor e em Direito Constitucional e Docência em Ensino Superior
pela Universidade Estácio de Sá (UNESA); pesquisadora dos grupos Novas Perspectivas em Jurisdição
Constitucional e Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais (GREAT). E-mail:
fabianamaiaadv@yahoo.com.br.
242 Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ); professora do
Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD/UFRJ); e
Líder do Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais (GREAT). E-mail:
rachelherdy@direito.ufrj.br.
243 Legislação disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9868.htm. Acesso em 10/12/14.
244 Definição extraída dos arts.13, XVII e 21, XVII, ambos do Regimento
Interno do STF. Disponível em:
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoRegimentoInterno/anexo/RISTF_Maio_2013_v
Acesso em 10/12/14.
245 Dwyer, Déirdre. The judicial assessment of expert evidence.
246 Dwyer, Déirdre. The judicial assessment of expert evidence. p. 76. Tradução livre do original: “[…]
expert evidence is frequently presented by witnesses who represent persistent communities of practice
outside the legal domain […]. While the court has a competence to assess evidence generally, the court’s
competence to assess expert evidence specifically is more limited”.
247 Abellán, Marina Gáscon. Los hechos em el derecho. Bases argumentales de la prueba, p. 49.
Grifos no original. Tradução livre do original: “(...) aquel modelo según el cual los procedimentos de
fijación de los hechos se dirigen a la formulación de enunciados fácticos que serán verdadeiros si los
hechos que describen han sucedido y falsos em caso contrario. Em otras palavras, la fijación judicial de los
hechos no puede ser, por ejemplo, consecuencia del puro decisionismo o constructivismo, sino el resultado
de um juicio descriptivo de hechos a los que se atribuye <<existencia independiente>>. Por ello, el
concepto de verdade requerido por el modelo es el semântico de la correspondencia y el principal critério
de verdade el de la contrastación empírica”.
248 Cf. Abellán, Marina Gáscon. Los hechos em el derecho. Bases argumentales de la prueba, p. 51.
Em sentido contrário tem-se a teoria da verdade como coerência, que atesta que “a veracidade de um
enunciado consiste no seu pertencimento a um conjunto coerente de enunciados” (p.51) e as teorias
pragmatistas da verdade, que indicam que “um enunciado é verdadeiro se a crença na sua veracidade está
justificada crer que ele é verdadeiro uma vez que serve a algum fim (versão instrumentalista) ou porque é
aceito (versão consensualista)” (p. 51). Tradução livre dos originais: “la verdade de um enunciado consiste
en su pertinência a um conjunto coherente de enunciados” e “Un enunciado es verdadero si está
justificado crer que es verdadero porque sirve a algún fin (versión <<instrumentalista>>) o porque es
aceptado (versión <<consensualista>>). Grifos no original. Para um estudo mais aprofundado sobre o
tema V. Abellán, Marina Gáscon. Los hechos em el derecho. Bases argumentales de la prueba, pp. 50-
67.
249 Cf. Abellán, Marina Gáscon. Op. cit, p. 60.
250 Abellán, Marina Gáscon. Los hechos em el derecho. Bases argumentales de la prueba, p.
51.Tradução livre do original: “La tesis metafísica consiste em presuponer que existe un mundo real,
independiente del sujeto cognoscente. La tesis gnoseológica consiste em presuponer que podemos conocer
esse mundo real, aunque sea de forma imperfecta”.
251 Abellán, Marina Gáscon. Los hechos em el derecho. Bases argumentales de la prueba, p. 49.
Tradução livre do original: “Que los enunciados sean <<fácticos>> significa que son uma descripción de
los hechos acaecidos; es dicer, que el juicio de hecho tiene naturaliza descriptiva”. Grifos no original.
252 Abellán, Marina Gáscon. Los hechos em el derecho. Bases argumentales de la prueba, p. 49.
Tradução livre do original: “Que los enunciados fácticos sean <<verdaderos>> significa que los hechos
descritos por tales enunciados han tenido lugar”. Grifos no original.
253 Abellán, Marina Gáscon. Los hechos em el derecho. Bases argumentales de la prueba, pp. 49-50.
Tradução livre do original: “(...) afirmar la verdad de los enunciados fácticos no es uma cuestión trivial (...)
porque el juez no ha tenido acceso directo a los hechos, de modo que lo que imediatamente conoce son
enunciados sobre los hechos, cuya verdad hay que acreditar”.
254 Abellán, Marina Gáscon. Los hechos em el derecho. Bases argumentales de la prueba, p. 49.
Tradução livre do original: “(...) si em la determinación de los hechos fuera necesario introducir
valoraciones resultaria difícil afirmar que esos juicios son descriptivos y no valorativos, al menos en parte”.
255 Abellán, Marina Gáscon. Los hechos em el derecho. Bases argumentales de la prueba, p. 49.
Tradução livre do original: “reducir al mínimo posible la discrecionalidad o actuación valorativa del juez en
la fijación de los hechos”.
256 Cf. Dwyer, Déirdre. The judicial assessment of expert evidence, pp. 87-88.
257 Dwyer, Déirdre. The judicial assessment of expert evidence, p. 78. Grifos acrescidos. Tradução
livre do original: “What an expert brings to this process is not her opinions per se (…), but rather specialist
advice on the appropriate generalizations to apply to a particular set of facts, and how those
generalizations should best be applied, as well as possibly the expert’s own conclusion on the application of
those generalizations”.
258 Cf. Dwyer, Déirdre. The judicial assessment of expert evidence, pp. 88 – 92.
259 HL Ho. A Philosophy of Evidence Law. Justice in the Search for Truth, p. 9. Tradução livre do
original: “Generally, in and outside of the court, any description must inevitably rely on some evaluation.
Access to facts is inevitably mediated by one’s background assumptions and beliefs. In fashionable idiom,
facts are socially constructed and constructed from a worldview”.
260 Dwyer, Déirdre. The judicial assessment of expert evidence, p. 92. Tradução livre do original: “That
distinction in the quality of inferences only exists if we accept that there is an essential rather than
pragmatic difference between facts and opinions. If we say that all facts contain some degree of
inference, then that distinction potentially disappears”.
261 Dwyer, Déirdre. The judicial assessment of expert evidence, p. 90. Grifos acrescidos. A expressão
“expert evidence” está sendo utilizada neste texto no sentido de prova trazida pelo expert (especialista).
Já o termo “expertise” é utilizado aqui como sinônimo de especialidade; perícia em uma determinada área
do saber. Tradução livre do original: “Expert evidence does not allow itself to be classified tidily within the
fact/opinion distinction. The problem is that, while part of an expert’s evidence consists of opinions that she
has drawn from the facts, and another part consists of constituent facts that may have been provided by a
non-expert, an expert may also identify and work with facts that are either only observable because of her
expertise, or recognized as significant because of her expertise”.
262Posteriormente é interessante que se observe ainda se a referida alternativa é necessária, adequada e
proporcional em sentido estrito, seguindo a fórmula de sopesamento proposta por Robert Alexy. Para uma
análise aprofundada da temática Cf. Alexy, Robert. Principais elementos de uma teoria da dupla
natureza do direito.
263 Haack, Susan. Manifesto de uma moderada apaixonada. Ensaios contra a moda irracionalista,
p. 191.
264 Este gráfico foi elaborado por Júlia Massadas com base nos dados disponíveis no site do Supremo
Tribunal Federal até dezembro de 2014. Vale ressaltar que o critério utilizado para datar as audiências
refere-se à data de convocação, e não à realização.
265 A única exceção é o despacho convocatório da audiência pública para discutir o cabimento de ações
afirmativas no ensino superior (ADPF nº 186 e RE nº 597.285), pois este não foi publicado até a
finalização deste artigo. Ressalte-se aqui ainda que há uma grande dificuldade no desenvolvimento da
pesquisa no que diz respeito ao acesso à informação, haja vista que os despachos convocatórios demoram
para ser publicados pelo STF, assim como as transcrições das audiências. Tal contexto obriga o
pesquisador a assistir todos os vídeos referentes às audiências, o que demanda muito tempo.
266 Este gráfico foi elaborado por Júlia Massadas com base nos dados disponíveis no site do Supremo
Tribunal Federal até dezembro de 2014.
267 Ver supra: gráfico de audiências públicas por ano (2007-14).
268 Este gráfico foi elaborado por Júlia Massadas com base nos dados disponíveis no site do Supremo
Tribunal Federal até dezembro de 2014.
269 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?
v=K6YqPG4kQBc&index=1&list=PLippyY19Z47tzkhjOXH1_fi1JGgx-sBYz
Acesso em: 09/12/14. Grifos acrescidos.
270 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?
v=GtNGR1zhEyc&index=1&list=PLippyY19Z47vSUdzoXYw4mNEclkHMKVaa >Acesso em:
09/12/2014.
271 Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?
v=GtNGR1zhEyc&index=1&list=PLippyY19Z47vSUdzoXYw4mNEclkHMKVaa> Acesso em: 09/12/14.
Grifos acrescidos.
272 Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?
v=qvVgf_pSTnY&list=PL8031EED7EAEAF459&index=1.> Acesso em: 09/12/14.
273 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=E-
72dhUBb5g&index=1&list=PLippyY19Z47tTbo0EN-CjZ8n_Ymp4Rbk3>. Acesso em 09/12/14.
274 Transcrição da audiência pública disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TrancricaoCampoEletromagn
pp.5 e 6.>
275 Vídeo da audiência disponível em: <https://www.youtube.com/watch?
v=p8B_UBERIhQ&index=1&list=PLippyY19Z47snMTqOO3vtRdit5BeN6QVj>.
Acesso em 09/12/14.
276 Informações disponíveis em: <https://www.youtube.com/watch?
v=p8B_UBERIhQ&index=1&list=PLippyY19Z47snMTqOO3vtRdit5BeN6QVj> . Acesso em 09/12/14.
277 Cf. Schauer, Frederick. Can Bad Science Be Good Evidence? Neuroscience and the Mistaken
Conflation of Legal and Scientific Norms.
278 Dwyer, Déirdre. The judicial assessment of expert evidence, p. 96. Tradução livre do original:
“Opinions formed from idle speculation or from no clear evidence can be safely excluded from
considerations by the tribunal of fact, since it would allow for decisions based on gossip and speculation, or
allow in evidence that would be otherwise inadmissible”.
279 Este gráfico foi elaborado por Júlia Massadas com base nos dados disponíveis no site do Supremo
Tribunal Federal até dezembro de 2014.
280 Este trabalho não visa se aprofundar nas diferenças entre os modelos inquisitorial e adversarial. Sobre
a temática ver: Damasška, Mirjan R. The Faces of Justice and State Authority: A Comparative
Approach to the Legal Process. E, do mesmo autor, Evidence Law Adrift.
O CONTROLE DA EXECUÇÃO
ORÇAMENTÁRIA PELO JUDICIÁRIO NA
IMPLEMENTAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS
FUNDAMENTAIS281
THE JUDICIARY’S CONTROL ON BUDGET EXECUTION IN
THE IMPLEMENTATION OF FUNDAMENTAL SOCIAL
RIGHTS
RESUMO
O Orçamento Público não deve ser um empecilho para a promoção dos direitos fundamentais sociais.
Portanto, a formulação das políticas públicas não deve ser de competência exclusiva dos Poderes
Executivo e Legislativo, já que o Poder Judiciário também está legitimado para o controle social e para a
promoção de políticas públicas. Apesar disso, a legitimidade do Judiciário não é ilimitada e, portanto, em
determinadas situações, não se pode analisar questões que envolvam políticas públicas em uma
perspectiva exclusivamente individual, já que o orçamento público é um instrumento de promoção dos
direitos sociais que possuem perspectiva coletiva. O presente artigo pretende discutir os limites de atuação
do Judiciário na implementação de políticas sociais levando-se em conta as questões que rondam a
elaboração e execução do Orçamento Público.
PALAVRAS-CHAVE
Poder Judiciário; políticas públicas; orçamento público.
ABSTRACT
Public budget should not be an obstacle to promote social fundamental rights. Therefore, formulation of
public policies should not be exclusive competence of the Executive and Legislative branches, since
Judiciary is also legitimated for social control and the promotion of public policies. Nevertheless, the
legitimacy of Judiciary is not unlimited. So, in certain situations, it cannot analyze issues involving public
policy in a purely individual perspective, since the public budget is a tool for social rights promotion on a
collective perspective. This article discusses the limits of the judicial role in implementation of social
policies taking, considering some issues that surround the development and implementation of the Public
Budget.
KEYWORDS
Judiciary; public policies; public budget.
INTRODUÇÃO
O mínimo existencial é o núcleo imutável do Princípio da Dignidade da
Pessoa Humana, que serve como base para estabelecer o mínimo que o
indivíduo deve receber como prestações de certos serviços públicos para a
mantença de sua vida com dignidade.
Diversos países, a exemplo do Brasil, passaram por uma grande
redemocratização, deixando de ser um Estado Liberal e passando a ser um
Estado Social. A atuação estatal positiva passa a ser obrigatória, diante dos
interesses sociais.
Mas para que estes direitos fundamentais, embora constitucionalmente
prestados, fossem realmente implementados pelo Estado, o papel do
Judiciário passa a ser fundamental, como último bastião na defesa dos direitos
fundamentais, especialmente os direitos fundamentais sociais básicos, para
que os demais Poderes os promovam e efetivamente os implementem. O
modelo de separação de poderes que vigorou durante o apogeu do positivismo
e do constitucionalismo liberal não possui mais as condições necessárias para
o atendimento dos anseios sociais. Esses paradigmas precisavam ser alterados
na vigência do constitucionalismo social pós-1945.
Surge o paradigma de interpretação do direito denominado de
neoconstitucionalismo, que tem por características básicas o reconhecimento
da centralidade da constituição e de sua força normativa; o reconhecimento
constitucional dos direitos fundamentais sociais; a blindagem desses direitos
por forte e robusto sistema de controle judicial; o surgimento de um novo
modelo de separação de poderes que reconhece o poder judiciário como um
verdadeiro poder político, inclusive para, ainda que subsidiariamente,
implementar e assegurar as políticas públicas quando referenciadas aos
direitos fundamentais, aí agora incluídos os sociais, econômicos e culturais.
A judicialização das políticas públicas tem seu lado positivo, já que a
prestação de serviços essenciais deve ocorrer, mesmo sem previsão
orçamentária, pois tratam de direitos fundamentais e o Judiciário não tem
como recusar a execução da sua prestação. Por outro lado, esse ativismo
judicial tem também sua faceta negativa, pois representa uma crise na
legitimidade democrática, eis que cada vez mais demandas que antes poderiam
se exaurir no âmbito dos Poderes Executivo e Legislativo, legitimamente
investidos para tal, acabam exaurindo-se no âmbito do Poder Judiciário.
O presente artigo pretende analisar os limites de atuação do Judiciário na
implementação de políticas sociais levando-se em conta as questões que
rondam a elaboração e execução do Orçamento Público. Busca-se apontar
para um caminho que fuja às posições maniqueístas – um Judiciário inerte e
indiferente às mazelas sociais x um Judiciário ultraativista, tendente a se
tornar um superpoder suplantando os demais.
Apresenta-se preliminarmente uma revisão de literatura sobre o campo de
conhecimento Políticas Públicas. Debate-se, de forma breve, o fenômeno da
judicialização da política para, em seguida, apresentar a discussão central do
estudo: o controle da execução orçamentária pelo Judiciário na implementação
dos direitos sociais fundamentais. Leva-se em conta o momento do controle e
seu âmbito: individual/coletivo, concreto/abstrato. Tais variáveis influenciam
na possibilidade de uma maior ou menor intervenção do Judiciário.
CONCLUSÃO
Com o surgimento do constitucionalismo social, passou-se a considerar
cada vez mais necessidades públicas não mais restritas à proteção da
liberdade e propriedade. É certo, contudo, que as demandas por prestações
positivas estatais acabaram por exercer forte pressão financeira sobre os
recursos públicos, o que levou ao desenvolvimento teórico das normas
meramente programáticas. Nesse contexto, em um primeiro momento, as
normas constitucionais que incorporaram os direitos sociais foram reputadas
como normas de juridicidade incompleta, necessitando de intervenção
legislativa ordinária para sua completa operacionalização, eficácia e
aplicabilidade, tendo por função apenas fornecer um norte ou uma orientação
ao Legislador democrático no exercício da regulação social e proteção
jurídica. Esse construto teórico acabou por gerar um desatendimento ao
comando constitucional no que concerne à efetiva promoção de políticas
públicas destinadas a atender esses novos direitos.
Em especial após a Segunda Guerra Mundial ganha fôlego uma nova visão
sobre a força normativa da constituição e dos direitos humanos que ela
assegura e protege, bem como do novo papel a ser desenvolvido pelo Poder
Judiciário na arena política.
O paradigma neocontitucionalista, entretanto, não é isento de problemas,
dificuldades e críticas. Os custos dos direitos sociais são elevados e a
escassez dos recursos financeiros estatais é uma constante. Ademais, a
judicialização da esfera política pode vir a afetar um valor essencial que é a
democracia, na medida em que o mérito das ações tomadas pelos poderes
eleitos democraticamente podem ser revisados pelo Judiciário, um poder não
legitimado pelas urnas.
De qualquer sorte, tendo em vista o reconhecimento de que a constituição
não é mais apenas um documento político, mas também jurídico e que os
direitos fundamentais não são apenas esboços orientativos ao Legislador, mas
representam um programa normativo a ser necessariamente por ele atuado, é
conseqüência inexorável o reconhecimento de que a intervenção do Judiciário
na política é plenamente possível, tendo em vista ser ele, por determinação
constitucional, defensor dos direitos fundamentais espelhados pela
Constituição de 1988.
O Estado Democrático de Direito está obrigado à promoção dos direitos
sociais através da prestação de serviços públicos, como saúde, educação e
assistência aos desamparados, que de fato concretizem estes direitos. Desse
modo, a formulação de políticas para a promoção desses direitos é
fundamental, mas que para isso ocorra, depende-se das escolhas políticas a
serem feitas, no sistema democrático, com prioridade pelos representantes do
povo.
Reconhecido, em um sistema democrático, aos poderes eleitos -
Legislativo e Executivo - a primazia na escolha política de quais necessidades
públicas serão atendidas no período orçamentário, deve ser reconhecida uma
margem de discricionariedade administrativa e de conformação legislativa. As
escolhas políticas dependem também do erário público disponível, o que
exige um planejamento orçamentário para mobilizar a máquina estatal e para o
qual funcionalmente estão melhor aparelhados os poderes legislativo e
executivo.
Por outro lado, essa discricionariedade política assenta sua validade no
princípio da razoabilidade. Ao exercer o juízo acerca de que políticas
públicas serão executadas, deve-se também reconhecer que no orçamento
devem estar alocados recursos públicos necessários ao suprimento integral
dos direitos relacionados ao mínimo existencial, em virtude de sobreprincípio
da dignidade da pessoa humana. Falhando os poderes eleitos no atendimento
desse núcleo duro dos direitos sociais, emerge a subsidiária legitimidade do
Poder Judiciário para controlar o próprio mérito das políticas públicas a fim
de assegurar o respeito aos direitos fundamentais, atuação que se revela
harmoniosa com o princípio democrático, quando se reconhece que
democracia não é apenas a vontade da maioria, mas também o respeito aos
direitos fundamentais da pessoa humana.
Conceituada democracia como um sistema político que também se assenta
na ideia de respeito aos direitos humanos, a noção de que o Judiciário não
possa intervir na política em função do princípio da separação dos poderes
está ultrapassada. Nada obstante, sua atuação sofre limites como a atuação de
qualquer dos demais poderes, para conformar esse ativismo nos lindes
normativos do Estado Democrático de Direito.
O primeiro limite, já mencionado acima, é sua atuação subsidiária. O
Poder Judiciário não é um poder eleito, de modo que sua legitimidade é
extraída de outra fonte que a dos Poderes eleitos. Assim, o controle judicial
das políticas públicas só pode se dar quando identificada uma ação ou
omissão dos demais poderes que importem violação aos direitos
fundamentais.
O segundo limite se refere aos direitos fundamentais que legitimam a
atuação judicial na esfera das políticas públicas e sua conformidade com o
princípio da reserva do economicamente possível, o que implica em
reconhecer uma margem de liberdade de conformação dos poderes eleitos
sobre que direitos serão atendidos no período orçamentário. Não fosse essa
insuficiência de recursos nem mesmo se estaria a falar em judicialização da
política.
Assim, são os direitos sociais básicos, conhecidos como o mínimo
existencial, ou seja, a prestações materiais mínimas sem as quais o indivíduo
não pode viver com dignidade, como a saúde e educação fundamental, por
exemplo, que autorizam a atuação judicial quando políticas públicas não são
adequadamente implementadas, hipótese em que a atuação do Judiciário passa
a ser fundamental para o cumprimento e efetivação desses direitos.
Por fim, o âmbito do controle judicial deve se restringir fundamentalmente
às etapas de implementação e avaliação das políticas públicas, porque nessas
hipóteses o controle possui um maior componente jurídico e menor
componente político, por incidir sobre o oferecimento ou não das políticas
públicas que já são objeto de previsão no orçamento, cujas rubricas relativas
aos direitos públicos fundamentais componentes do mínimo existencial devem
ser impositivas e não meramente autorizativas. Nesse âmbito deve se realizar
de forma concreta e difusa, ainda que preferencialmente pela via das ações
coletivas para resguardar o oferecimento universal e isonômico desses
direitos.
Em situações excepcionais, verdadeiramente aberrantes dos contornos
politico-jurídicos do Estado Democrático de Direito, é admissível se pensar,
ainda nas etapas de identificação do problema e seleção da agenda - no
decorrer do processo de feitura das chamadas escolhas dramáticas, em um
controle abstrato e concentrado da lei orçamentária, através de decisões
aditivas - no caso improvável de uma omissão total - ou manipulativas, no
caso de omissões parciais relevantes no atendimento do mínimo existencial.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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281 Trabalho apresentado pelo grupo Grupo Direito, Democracia e Desenvolvimento vinculado à
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
282 Pesquisador Associado do Programa de Pós-Graduação em Direito e Políticas Públicas da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO. E-mail: cfamnunez@gmail.com.
283 Pesquisadora Associada do Programa de Pós-Graduação em Direito e Políticas Públicas da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO. E-mail: renatarogar@yahoo.com.br.
284 Pesquisador Associada do Programa de Pós-Graduação em Direito e Políticas Públicas da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO. E-mail: alessandra.hollanda@globo.com.
285 Pesquisador Associado do Programa de Pós-Graduação em Direito e Políticas Públicas da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO. E-mail: rafael.carvalhaes.adv@gmail.com.
286 Pesquisador Associado do Programa de Pós-Graduação em Direito e Políticas Públicas da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO. E-mail: pedrobastos2@globo.com.
287 Docente vinculado ao Centro de Ciências Jurídicas e Políticas e ao Programa de Pós-Graduação em
Direito e Políticas Públicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO. E-mail:
celso@mpf.mp.br.
288 Docente vinculado ao Centro de Ciências Jurídicas e Políticas e ao Programa de Pós-Graduação em
Direito e Políticas Públicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO. E-mail:
edomingues@unirio.br.
289 “ADI 1640 QO / UF - UNIÃO FEDERAL QUESTÃO DE ORDEM NA AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES Julgamento: 12/02/1998
Órgão Julgador: Tribunal Pleno
EMENTA: - DIREITO CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO PROVISÓRIA
SOBRE MOVIMENTAÇÃO FINANCEIRA - C.P.M.F. AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE “DA UTILIZAÇÃO DE RECURSOS DA C.P.M.F.” COMO
PREVISTA NA LEI Nº 9.438/97. LEI ORÇAMENTÁRIA: ATO POLÍTICO-ADMINISTRATIVO - E
NÃO NORMATIVO. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO: ART. 102, I, “A”, DA C.F. 1.
Não há, na presente Ação Direta de Inconstitucionalidade, a impugnação de um ato normativo. Não se
pretende a suspensão cautelar nem a declaração final de inconstitucionalidade de uma norma, e sim de
uma destinação de recursos, prevista em lei formal, mas de natureza e efeitos político-administrativos
concretos, hipótese em que, na conformidade dos precedentes da Corte, descabe o controle concentrado
de constitucionalidade como previsto no art. 102, I, “a”, da Constituição Federal, pois ali se exige que se
trate de ato normativo. Precedentes. 2. Isso não impede que eventuais prejudicados se valham das vias
adequadas ao controle difuso de constitucionalidade, sustentando a inconstitucionalidade da destinação de
recursos, como prevista na Lei em questão. 3. Ação Direta de Inconstitucionalidade não conhecida,
prejudicado, pois, o requerimento de medida cautelar. Plenário. Decisão unânime.”.
O TSE E SUAS RESOLUÇÕES DE CARÁTER
NORMATIVO AUTÔNOMO290
THE TSE AND ITS ATONOMOUS REGULATORY
RESOLUTIONS
Augusto Sampaio291
Edimar Santos292
Juliana de Alencar293
Lorena Senra294
Lucas Pattitucci295
Rodrigo Dias296
Stella Araújo297
Wanny Fernandes298
RESUMO
O estudo do Direito Eleitoral e suas nuances demonstra como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) se
caracteriza por ser um dos principais agentes garantidores do bom funcionamento das eleições. Investido
em prerrogativa especial, ao Tribunal compete a regulamentação, secundum legem, das normas de Direito
Eleitoral e da própria eleição. No âmbito institucional nota-se o caráter imediatista do Direito Eleitoral e a
mora do Legislativo em regular determinadas questões primordiais, como a infidelidade partidária. Indaga-
se, pois, se o TSE possuiria legitimidade para editar resoluções de caráter normativo autônomo, em
medidas excepcionais, para a melhor aplicabilidade e dinamicidade da realidade eleitoral. Dessa forma, o
presente trabalho procura analisar a legitimidade dessas resoluções autônomas através do fundamento dos
votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) em casos em que essas resoluções são alvo de
Ação Direta de Inconstitucionalidade, bem como, à luz da Teoria da Atrofia de Poderes de Adrian
Vermeule.
PALAVRAS-CHAVE
Direito Eleitoral; Resoluções do TSE; Teoria da Atrofia dos Poderes.
ABSTRACT
The study of the Electoral Law and its nuances demonstrates how the Brazilian Superior Electoral Court
(known as TSE) is characterized as one of the main agents that ensures a good development of the
elections. The Court is invested with special prerogative and it has a special authority to regulate,
secundum legem, the rules of electoral law and also the election itself. In the institutional range can be
notice the immediate character of the Electoral Law as well the slowness of the Legislative to regulate
certain key issues - such as “party loyalty”. It is possible to ask if TSE has the legitimacy to edit
autonomous normative resolutions, by exceptional policies, for a better applicability and a better dynamics
of the electoral reality. Thus, this paper analyzes the legitimacy of these autonomous resolutions through
the substantiation of the votes of Supreme Federal Court (known as STF) judges in some cases in which
these resolutions motivated some “Ação Direta de Inconstitucionalidade”, as well, according to the Theory
of Atrophy Powers by Andrian Vermeule.
KEYWORDS
Electoral Law; TSE Resolutions; Theory of Atrophy of Powers.
INTRODUÇÃO
A cada disputa eleitoral, é notório o crescimento exponencial das
demandas judiciais envolvendo questões pertinentes à Justiça Eleitoral,
questões essas que possuem natureza demasiadamente complexa, mas que
precisam, em contrapartida, de céleres soluções, as quais podem ser obtidas
através de resoluções elaboradas pelo TSE.
A produção de resoluções, cujo amparo legal é o Código Eleitoral
Brasileiro299, possui limitações quanto ao seu conteúdo, destinando-se a
situações normativas específicas. Ressalta-se ainda que o texto constitucional
consagra o princípio da separação dos poderes e o princípio da
indelegabilidade das atribuições, o que veda a atividade legislativa por um
órgão judiciário.
Ocorre que o Poder Legislativo, muitas vezes, demonstra-se alheio às
demandas eleitorais, ou mesmo se distancia propositalmente, deixando de
responder às questões suscitadas à cada ano de eleições. Para tentar suprir a
falta legiferante do Congresso Nacional, o TSE procura, através de suas
resoluções, dar respostas ágeis aos anseios eleitorais, regulando questões
importantes como, por exemplo, a infidelidade partidária e o número de
parlamentares da Câmara dos Deputados.
Este comportamento institucional, estudado a partir da teoria norte-
americana300, revela uma atrofia301 do Poder Legislativo quando desta
ausência de produção normativa. Nesse sentindo, o trabalho objetiva analisar
e identificar os efeitos sistêmicos302 ocasionados por esta atrofia, bem como a
tratar acerca das consequências da afetação da capacidade institucional303 do
Poder Legislativo, tanto em seu plano normativo quanto logístico.
Dessa forma, o presente artigo procura demonstrar as características do
Poder Regulamentar do Tribunal Superior Eleitoral, bem como investigar os
efeitos sistêmicos no desenho institucional brasileiro, a partir da análise de
resoluções e acórdãos proferidos pelo STF. O objetivo, portanto, é responder
a seguinte questão: seria Tribunal Superior Eleitoral legitimado para editar
resoluções autônomas, na notória inércia do Poder Legislativo?
1 COMPORTAMENTO INSTITUCIONAL
O estudo das instituições TSE e Congresso Nacional requer, para melhor
compreensão da sua natureza e das consequências decorrentes de suas
atividades, a perspectiva própria da Teoria Institucional. Sendo que o emprego
das questões institucionais (i) capacidades institucionais e os (ii) efeitos
sistêmicos304, apresentadas por Vermeule, mostram-se essenciais nesse estudo
em razão da relação tecida entre essas instituições e descrita como problema e
abordagem central do presente trabalho.
Tais premissas apontam para a existência prática de certa liberdade
interpretativa305 que as instituições parecem possuir em determinadas
situações, ou seja, a Teoria Institucional apresenta a perspectiva de que a
atuação institucional já não mais se encontra limitada severamente pela norma,
mas possui determinadas capacidades de interpretar e atuar
discricionariamente.
A atuação do TSE frente as competências próprias do Congresso Nacional
demonstra o que a Teoria Institucional chama de capacidades institucionais,
pois essa instituição atua dentro da sua perspectiva normativa própria, porém
incorpora a função que o desenho institucional não estabeleceu como sendo
própria da sua esfera. Nessa medida, a atuação do TSE demonstra uma
capacidade institucional que interpreta e aplica a norma de forma
independente das prerrogativas formais e ideais dessa instituição ao editar
resoluções autônomas. Tal atuação se torna eficaz, na leitura da Teoria
Institucional, pela necessidade institucional de tal atividade frente a letargia
do Congresso Nacional, isto é, a competência não foi institucionalmente
estabelecida ao TSE, porém na prática sua atuação evidencia uma capacidade
institucional que é exercida de fato e que gera consequências antes
inexistentes.
Essas consequências devem ser analisadas cuidadosamente, pois como a
Teoria Institucional esclarece o cálculo dos efeitos sistêmicos de determinada
decisão são necessários para a avaliação da pertinência de uma atuação dentro
de uma ordem institucional. Nesse ponto o estudo busca questionar se a
atuação do TSE promove as consequências necessárias e legitimas, dentro da
ordem institucional, quando atua por meio das suas capacidades institucionais
que adotam e incorporam competências próprias do Congresso Nacional.
Dessa maneira, a análise do presente trabalho foi desenvolvida e o seu
problema identificado tendo em vista os referenciais próprios da Teoria
Institucional, sendo que as respostas e discussões que o trabalho busca tratar
estarão relacionados a esse referencial, precisamente, as questões
institucionais, isto é, as capacidades institucionais e dos efeitos sistêmicos,
visando esclarecer a dinâmica relacional das competências do Congresso
Nacional e a postura institucional do TSE.
CONCLUSÃO
Defende-se, neste trabalho, o poder regulamentar, ainda que autônomo, do
Tribunal Superior Eleitoral quando há injustificada inércia do Poder
Legislativo em normatizar dispositivos constitucionais como direitos políticos
fundamentais e princípios fundamentais de investidura de cargos eletivos,
desde que sua atuação seja transitória e excepcional.
Os fundamentos para essa atuação pró-ativa do TSE são a efetividade
constitucional, a Teoria da Atrofia dos Poderes de Adrian Vermeule e a
excepcionalidade e transitoriedade dessa tarefa.
Verifica-se que o Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 3999-
7/DF deu um passo importante nesse sentido ao entender que o Poder
Legislativo ao não regular dispositivos constitucionais acaba por ferir a
Constituição e subverter a própria vontade popular. O princípio constitucional
da máxima efetividade impele atitudes dos demais Poderes da República a fim
de dar cumprimento ao comando constitucional. Contudo, tal entendimento
ainda não parece consolidado, na ADI 4947/DF, como visto, o STF parece ter
recuado um pouco em relação ao seu entendimento anterior, mas não negou o
poder regulamentar do TSE.
A Teoria da Atrofia dos Poderes de Adrian Vermeule enfoca com novas
“luzes” a interação entre os Poderes e deve ser um dos fundamentos desse
poder normativo autônomo do TSE no vácuo do legislador. Se o Poder
Legislativo não exerce sua função típica, acaba, tacitamente, possibilitando a
atuação de outro Poder.
Por fim, deve-se deixar claro que esse agir do TSE não pode ser contra
legem e deve ser transitório e excepcional, enquanto o Poder legítimo não
efetiva sua função constitucional.
Nota-se que o poder regulamentar do TSE é matéria extremamente
controvertida e atual no cenário brasileiro. Entre as discussões a respeito do
ativismo judicial, muito se argumenta que a atividade legiferante realizada
pelo TSE é prejudicial à democracia. Não obstante, o poder legislativo
permanece omisso, o que lhe é extremamente conveniente, visto que a
defasagem da matéria eleitoral beneficia diretamente aqueles que compõem o
Congresso, comprometendo assim o sistema eleitoral e o aperfeiçoamento do
Estado Democrático de Direito.
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290 Trabalho apresentado pelo Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das
Instituições (LETACI), vinculado à Faculdade Nacional de Direito (FND) e ao Programa de Pós-
graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD/UFRJ) coordenado pelo
professor Carlos Bolonha.
291 Graduando em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e pesquisador do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das
Instituições (LETACI). E-mail:augustocesar.ap@gmail.com.
292 Graduando em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e pesquisador do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das
Instituições (LETACI). E-mail:edimarjornalismo@hotmail.com.
293 Graduanda em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e pesquisadora do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das
Instituições (LETACI). E-mail:juliana.alencar@ig.com.br.
294 Graduanda em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e pesquisadora do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das
Instituições (LETACI). E-mail:losenra@gmail.com.
295 Graduando em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e pesquisador do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das
Instituições (LETACI). E-mail:pattitucci@outlook.com.
296 Pós-graduado em Direito Constitucional e Bacharel em Direito pela Universidade Cândido Mendes.
Pesquisador do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das Instituições
(LETACI). E-mail:rodrigopfdias@gmail.com.
297 Graduanda em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e pesquisadora do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das
Instituições (LETACI). E-mail:stellara@gmail.com.
298 Graduanda em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e pesquisadora do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das
Instituições (LETACI). E-mail:wanny.fernandes@gmail.com.
299 Lei n. 4.737 de 1965.
300 O presente artigo faz uso dos estudos norte-americanos devido a observância de uma experiência de
estabilidade em suas instituições, bem como a preocupação sobre o comportamento destas por parte dos
estudiosos. Por exemplo, GILLMAN, Howard; CLAYTON, Cornell. The Supreme Court in American
Politics: New Institutionalist Perspectives. Lawrence, KA: Kansas University Press, 1999 e
GRIFFIN, Stephen. American Constitutionalism: From Theory to Politics. Princeton: Princeton
University Press, 1999.
301 Entende-se por atrofia o desuso de determinada atribuição institucional. Sobre o fenômeno, ver
VERMEULE, Adrian. The Atrophy of Constitutional Powers. Harvard Law School Public Law &
Legal Theory Working Paper Series. No. 11, 2007.
302 Sobre o fenômeno, ver SUNSTEIN, Cass; VERMEULE, Adrian, Interpretation and Institutions.
Chicago Public Law and Legal Theory Working Paper Series, No. 28, 2002.
303 Sobre o fenômeno, ver SUNSTEIN, Cass; VERMEULE, Adrian. Interpretation and Institutions.
Chicago Public Law & Legal Theory Working Paper Series, No. 28, 2002, p.2.
304 Presente pesquisa destaca o trabalho desenvolvido por Adrian Vermeule e Cass Sunstein em que se
pode verificar a construção de duas premissas que norteiam a compreensão da teoria institucional, são
elas as Capacidades Institucionais e os Efeitos Sistêmicos. “The question instead is ‘how should certain
institutions, with their distinctive abilities and limitations, interpret certain texts? […] Its consequences for
private and public actors of various sorts. Capacidades institucionais: “[…] a questão ‘é como certas
instituições deveriam, com suas habilidades distintas e limitações, interpretar certos textos?” Efeitos
sistêmicos: “as consequências para os atores públicos e privados de vários ramos.” SUNSTEIN, Cass;
VERMEULE, Adrian. ―Interpretation and Institutions. Chicago Law School Public Law & Legal
Theory Working Papers Series, No. 28, 2002.
305
306 MONTESQUIEU, Charles. Do Espírito das Leis, São Paulo, Edições e Publicações Brasil Editora
S-A, 1960.
307 AGRA, Walber de Moura; VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Elementos de Direito Eleitoral. 4
ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 34.
308 Ver, nesse sentido, GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. São Paulo: Atlas, 2014; RAMAYANA,
Marcos. Direito Eleitoral. 11 ed. Niterói: Impetus, 2010 e AGRA, Walber de Moura; VELLOSO, Carlos
Mário da Silva. Op. Cit..
309 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3999-7/DF. Rel. Ministro
Joaquim Barbosa. Disponível em <www.stf.jus.br
/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2584922>. Acesso em
22/11/2014.
310 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4947/DF. Rel. Ministro Gilmar Mandes, rel. para acórdão
Min. Rosa Weber. Disponível em <www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?
incidente=4399504>. Acesso em 22/11/2014.
311 Válido é o ensinamento de James Madison no artigo federalista no. 47: « The oracle who is always
consulted and cited on this subject is the celebrated Montesquieu. If he be not the author of this invaluable
precept in the science of politics, he has the merit at least of displaying and recommending it most
effectually to the attention of mankind. Let us endeavor, in the first place, to ascertain his meaning on this
point.
The British Constitution was to Montesquieu what Homer has been to the didactic writers on epic poetry.
As the latter have considered the work of the immortal bard as the perfect model from which the
principles and rules of the epic art were to be drawn, and by which all similar works were to be judged, so
this great political critic appears to have viewed the Constitution of England as the standard, or to use his
own expression, as the mirror of political liberty; and to have delivered, in the form of elementary truths,
the several characteristic principles of that particular system. That we may be sure, then, not to mistake
his meaning in this case, let us recur to the source from which the maxim was drawn.
On the slightest view of the British Constitution, we must perceive that the legislative, executive, and
judiciary departments are by no means totally separate and distinct from each other. The executive
magistrate forms an integral part of the legislative authority. He alone has the prerogative of making
treaties with foreign sovereigns, which, when made, have, under certain limitations, the force of legislative
acts. All the members of the judiciary department are appointed by him, can be removed by him on the
address of the two Houses of Parliament, and form, when he pleases to consult them, one of his
constitutional councils. One branch of the legislative department forms also a great constitutional council to
the executive chief, as, on another hand, it is the sole depositary of judicial power in cases of
impeachment, and is invested with the supreme appellate jurisdiction in all other cases. The judges, again,
are so far connected with the legislative department as often to attend and participate in its deliberations,
though not admitted to a legislative vote.” MADISON, James; HAMILTON, Alexander; JAY, John. The
Federalist Papers. San Bernardino: Tribeca, 2014. Print.
312 VERMEULE, Adrian. The Atrophy of Constitutional Powers. Harvard Law School Public Law
& Legal Theory Working Paper Series. No. 11, 2007.
313 “ In some cases, where the power-holder has a zero-sum relationship with another officer or
institution, the atrophy of the former’s power will necessarily result in the hypertrophy of the latter’s
power. Yet there need not be any zero-sum relationship between power-holders. One may lose power that
the other fails to gain, perhaps because the government as a whole is losing power to other actors. In any
event, I will focus squarely on the atrophy phenomenon, if only because the hypertrophy of constitutional
powers has been studied a great deal under labels like “aggrandizement”. Ibidem, p. xx.
314 Lei n. 4.737, de 1507/1965.
315 Art. 2º - O Tribunal Superior Eleitoral é competente para processar e julgar pedido relativo a mandato
federal; nos demais casos, é competente o tribunal eleitoral do respectivo estado.
316 The judges may be filling a vacuum of power created by legislative debility, rather than muscling in on
legislative terrain, acting as implicit agents for a governing coalition, or acting as implicit agents for a past
coalition that succeeded in entrenching itself in the courts. VERMEULE, Adrian. Op. Cit., p. xxx.
317 Art. 105. Até o dia 5 de março do ano da eleição, o Tribunal Superior Eleitoral, atendendo ao caráter
regulamentar e sem restringir direitos ou estabelecer sanções distintas das previstas nesta Lei, poderá
expedir todas as instruções necessárias para sua fiel execução, ouvidos, previamente, em audiência
pública, os delegados ou representantes dos partidos políticos.
318 A redação atual do art. 105 revela um retrocesso à evolução da legislação eleitoral, pois é inegável
que a demora do legislador em produzir uma reforma eleitoral e partidária conduzem ao cenário de vazio
normativos intransponíveis, que demandam uma atuação pioneira do poder normativo do TSE no sentido
primacial de melhor conduzir os postulados fundamentais que servem de rumo seguro ao nosso sistema
jurídico eleitoral. RAMAYANA, Marcos. Direito Eleitoral. Editora Impetus, 2013, p. 127.
14
Art. 1º Proporcional à população dos Estados e do Distrito Federal, o número de deputados federais não
ultrapassará quinhentos e treze representantes, fornecida, pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística, no ano anterior às eleições, a atualização estatística demográfica das unidades da Federação.
Parágrafo único. Feitos os cálculos da representação dos Estados e do Distrito Federal, o Tribunal
Superior Eleitoral fornecerá aos Tribunais Regionais Eleitorais e aos partidos políticos o número de vagas a
serem disputadas.
319
320 “Desse modo, não admitir que o legislador complementar delegue ao TSE essa função de atualização
não apenas nega a realidade política do país – e o Direito Constitucional não pode ser compreendido
dissociadamente da realidade política que o circunscreve –, como também faz pouco da história
institucional brasileira e coloca em situação de inconstitucionalidade todas as eleições realizadas no Brasil
posteriormente ao advento da Constituição de 1988. (...)Assim, tem-se que não há razão para se atribuir a
pecha de inconstitucionalidade a uma prática institucional legítima, tradicional em nossa cultura
constitucional, que não constitui usurpação legislativa e que se afigura de acordo com a jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal.” BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4947/DF. Rel. Ministro Gilmar
Mandes, rel. para acórdão Min. Rosa Weber. Disponível em
www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4399504. Acesso em 22/11/2014.
321 VERMEULE, Adrian. Op. Cit., p.1.
322 Princípio segundo o qual é exigível a democracia como forma de vida, de racionalização do processo
político e de legitimação do poder.
323 O princípio da máxima efetividade das normas constitucionais (ou princípio da interpretação efetiva)
consiste em atribuir na interpretação das normas oriundas da Constituição o sentido de maior eficácia,
utilizando todas as suas potencialidades.
324 Art. 105, caput, Lei nº 9504/97: “Até o dia 5 de março do ano da eleição, o Tribunal Superior Eleitoral,
atendendo ao caráter regulamentar e sem restringir direitos ou estabelecer sanções distintas das previstas
nesta Lei, poderá expedir todas as instruções necessárias para sua fiel execução, ouvidos, previamente,
em audiência pública, os delegados ou representantes dos partidos políticos”. O texto deste artigo foi
modificado após ser julgada improcedente pelo STF a ADI 3.999/08, ajuizada contra as Resoluções
22.610/07 e 22.733/08 do TSE. Em resposta a esse “ativismo judicial”, o Poder Legislativo aprovou a Lei
12.034/09, dando nova redação ao artigo 105, caput, da Lei 9.504/97, visando a restringir o poder
regulamentar do TSE. Essa mudança apresenta-se como um retrocesso à evolução da legislação
constitucional, tendo em vista que o silêncio do legislador causa sérios vazios normativos que demandam
forte atuação do TSE no que tange a seu poder normativo, para que o sistema eleitoral brasileiro, de
enorme importância para a efetivação da democracia no país, não sofra as consequências.
325 RAMAYANA, Marcos. Op. Cit., p.117.
326 Nesse caso, quando uma instituição permite que determinada competência sua caia em desuso, a
lacuna que se abre pode ser preenchida por outra instituição. Enquanto a primeira sofrerá com a atrofia
de seu poder, a segunda presenciará uma hipertrofia. “In some cases, where the power-holder has a zero-
sum relationship with another officer or institution, the atrophy of the former’s power will necessarily
result in the hypertrophy of the latter’s power.” VERMEULE, Adrian. Op. Cit., p.1.
327 SUNSTEIN, Cass; VERMEULE, Adrian. Interpretation and Institutions. Chicago Public Law &
Legal Theory Working Paper Series, No. 28, 2002, p.4.
328 CORRÊA, Flávio; RANGEL, Henrique. Competente mas Descapacitado: desenhos
instituicionais em matéria tributária. In: CONPEDI/UFF (Orgs.); DUARTE, Fernanda; SANCHES,
Samyra Haydêe; FEITOSA, Maria Luiza Pereira (Coords.). (Org.). Direitos Fundamentais e Democracia
II - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI - 2012.2). 1ed.Florianópolis:
FUNJAB, v.1, 2012, p. 141-166.
329 Art. 45, § 1º, da CRFB: “O número total de deputados, bem como a representação por Estado e pelo
Distrito Federal, será estabelecidopor lei complementar, proporcionalmente à população, procedendo-se
aos ajustesnecessários, no ano anterior às eleições, para que nenhuma daquelas unidade da Federação
tenha menos de oito ou mais de setenta Deputados.”
330 Cass Sunstein e Adrian Vermeule em seu artigo “Interpretation and Institutions” defendem que
mesmo que as cortes devam seguir o significado ordinário da lei, é razoável que instituições especializadas
em determinada matéria, no caso presente neste artigo, a Justiça Eleitoral, tenham um entendimento mais
profundo dos impasses que as cercam. Dessa forma seria benéfico uma maior flexibilização interpretativa
nos casos que as envolvam. “We also urge that even if courts should follow the ordinary meaning of text, it
is reasonable to suggest that administrative agencies need not, in part because agencies are specialists
rather than generalists. Compared to courts, agencies are likely to have a good sense of whether a
departure from formalism will seriously damage a regulatory scheme; hence it is appropriate to allow
agencies a higher degree of interpretive flexibility”. SUNSTEIN, Cass; VERMEULE, Adrian.
Interpretation and Institutions, p.4.
331 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 6ª edição.
Coimbra: Almedina, ano, p. 227.
A TRANSNACIONALIZAÇÃO DA UMBANDA E
SEU IMPACTO NA SOCIEDADE, NO SISTEMA
DE JUSTIÇA E NO DIREITO CONSTITUCIONAL
PORTUGUÊS332
THE TRANSNATIONALIZATION OF UMBANDA AND ITS
IMPACT ON SOCIETY, IN THE JUSTICE SYSTEM AND
PORTUGUESE CONSTITUTIONAL RIGHT
RESUMO
Diversas pesquisas têm dado destaque a um novo fenômeno migratório religioso internacional que,
principalmente nas três últimas décadas, foi (e ainda continua a ser) extremamente importante na criação,
expansão, dispersão e globalização dos novos movimentos religiosos: as igrejas neopentecostais, que
passaram a abranger importante e complexa relação entre o Brasil e a Europa. No Brasil o crescimento
do número de evangélicos é apontado pelos principais institutos de pesquisa e cada vez maior é a sua
presença no espaço político. De outro modo, tem havido uma redução numérica dos adeptos da Umbanda
no mercado religioso brasileiro. As perseguições e agressões públicas às religiões afro-brasileiras são
denunciadas por vários estudos e eles indicam as religiões neopentecostais como as principais
responsáveis por esse quadro de crescimento da intolerância. Em Portugal, o final do regime salazarista
marca o momento em que a Umbanda chega no país e se expande, porém, nos últimos anos temos visto
uma ampliação das denominações religiosas neopentecostais brasileiras em solo português. Assim, emerge
a nossa questão de pesquisa: Como se configura, no campo jurídico, a experiência portuguesa com a
transnacionalização da Umbanda e das religiões neopentecostais brasileiras?
PALAVRAS-CHAVE
Transnacionalização das religiões brasileiras; Portugal; intolerância religiosa; umbanda; neopentecostais.
ABSTRACT
Several studies have highlighted a new international religious migratory phenomenon that, in the last three
decades, was (and still remains) extremely important in the creation, expansion, dispersion and
globalization of new religious movements: the neo-Pentecostal churches, which now includes important
and complex relationship between Brazil and Europe. In Brazil the growth of evangelical number is
appointed by leading research institutes and is growing its presence in the political space . Otherwise, there
has been a reduction in the number of fans of the Umbanda in the religious market. The persecutions and
public attacks on african-brazilian religions are reported by various studies and they indicate the neo-
Pentecostal religions as the main responsible for this growth framework intolerance. In Portugal, the end
of the Salazar regime marks the time when the Umbanda arrives in the country and expands, but in recent
years we have seen an expansion of the Brazilian neo-Pentecostal denominations in Portuguese soil. Thus
emerges our research question: How do I set in the legal field, the Portuguese experience with the
transnationalization of Umbanda and Brazilian neo-Pentecostal religions ?
KEYWORDS
Transnationalisation brazilian religions; Portugal; religious intolerance; umbanda; Neo-Pentecostal .
INTRODUÇÃO
Regulamentando as expressões de religiosidades em contextos específicos,
ou mesmo produzindo releituras de manifestações religiosas no decurso do
tempo histórico, o direito, desde a colonização está na zona de contato336 entre
as religiões e as intolerâncias religiosas e muitas vezes as utilizam como
fontes para a criação de suas normas e decisões judiciais.
Por outro lado, sabemos que também as religiões utilizam o direito,
sobretudo quando as próprias religiões procuraram se apropriar do direito
enquanto aparato de intenso alcance social, difusor de representações e
imaginários coletivos.
Nesse cenário o direito tem assumido alguns importantes papéis. Tem sido
em alguns momentos um promotor ou questionador das doutrinas e práticas
religiosas; tem causando polêmicas por servir de base para o crescimento no
mercado religioso e/ou político de algumas denominações religiosas; tem
polemizado também por entrar em conflito com os dogmas religiosos.
Assim sendo, diante da abrangente possibilidade de abordagens e
releituras acerca desta temática, esta proposta de trabalho busca dialogar e
problematizar as relações entre religiões e intolerâncias religiosas no direito
através da análise da sua atuação ao longo da história e na atualidade no
âmbito do direito à liberdade religiosa dos cultos umbandistas no Brasil e em
Portugal.
Partimos da percepção de que o Brasil sempre foi considerado um país de
fácil convivência entre os diferentes, inclusive no campo das religiões.
Entretanto, nos últimos anos, porém, à medida que a sociedade se torna cada
vez mais plural em termos religiosos, paradoxalmente temos assistido a
manifestações públicas de intolerância religiosa. Tais manifestações se dão
em um contexto político novo de investimento de setores religiosos
conservadores na sociedade e no Estado, seja disputando lugares de poder no
Executivo, seja conquistando espaços cada vez maiores no Parlamento,
ocupando funções no Judiciário, ou ainda, ampliando as possibilidades de
incidência social pelo uso do aparato estatal em prol de seus objetivos.
A ampliação do poder político desses grupos expressa-se, entre outros, nas
tentativas de reverter avanços em relação a direitos nos campos da
sexualidade e da reprodução, afetando diretamente a população homossexual e
de mulheres, da educação e da igualdade, atingindo grupos raciais e religiosos
historicamente vulnerabilizados, como são as religiões de origem africana e
seus adeptos, que serão o objeto desta investigação.
Desse modo, emerge a necessidade de, para compreensão desde quadro
problemático, empreendermos a discussão de questões que dizem respeito às
articulações entre liberdade religiosa, democracia e a efetivação dos direitos
de cidadania em Estados nacionais constitucionalmente laicos, como o são
Brasil e Portugal.
Sobre este aspecto, vemos que as relações entre direito e religiões podem
ser compreendidas a partir de dois modelos. Primeiro o da laicidade,
entendida simplificadamente como a inexistência de uma religião oficial e
pela abstenção estatal de imiscuir-se no campo da religiosidade. Segundo, o
da liberdade religiosa, representada pela garantia real de que grupos
religiosos possam se expressar livremente no espaço público.
Nesse contexto e diante destes dois modelos, o direito se tornou uma
importante arena de disputa entre os diferentes atores sociais, resultando em
tensões que evidenciam diferentes visões de mundo, na qual estão mobilizadas
as agendas dos movimentos sociais e políticos e dos grupos religiosos, e que
são levadas, por exemplo, diante dos tribunais, legítimos interpretadores das
normas e responsáveis pelo apaziguamento dos conflitos sociais.
Por isso nossa proposta é analisar as relações entre as religiões e o direito
buscando investigar se estas relações interferem na construção ou
desconstrução da tolerância e intolerância religiosa e na possibilidade ou
impedimento de novos desenhos tanto da atuação do sistema jurídico e judicial
nacional como das relações de tolerância/intolerância religiosa.
O tema dessa investigação é diversidades e intolerâncias religiosas no
Brasil e em Portugal, dada à urgência em se aprofundar os estudos sobre a
crescente pluralização e transnacionalização das adesões religiosas e as
possibilidades e obstáculos à livre manifestação destas religiões e às
migrações religiosas no mundo contemporâneo.
O foco nesse trabalho é direcionado para os adeptos da Umbanda, e assim
a investigação abordará a recorrência de demandas advindas desta parcela da
sociedade que questionam o diálogo entre ciência (direito) e religião para a
construção identitária das Religiões Afrobrasileiras337. Ressaltamos que a
pesquisa não tem como objeto o estudo da Umbanda enquanto uma religião
brasileira, apesar de destinarmos parte da nossa reflexão para essa questão,
mas sim, abrir um espaço de interlocução entre o direito e os religiosos da
Umbanda sobre as suas necessidades recíprocas e sobre os seus papéis na
construção de Estados laicos e com liberdade religiosa plena.
Assim, pretendemos apresentar e aprofundar temas associados aos
mecanismos de convergência e de divergência e/ou violência que atingem
adeptos dessa denominação religiosa. As reflexões também incidirão sobre as
relações dessa religião com marcadores sociais da diferença, especialmente
raça e etnia, com outras dimensões da esfera pública, nomeadamente a política
e a judicial, e sobre os desafios que estes temas impõem à produção teórica e
metodológica dos estudos sobre religiões e religiosidades, principalmente
dentro da ciência do direito no Brasil e em Portugal.
1 A TRANSNACIONALIZAÇÃO DA UMBANDA
Como dissemos anteriormente, o foco nesse trabalho é direcionado para os
adeptos da Umbanda. Essa religião se estruturou no Brasil nos anos 1930 do
século passado, primeiramente no Rio de Janeiro, buscando distinguir-se das
práticas religiosas afro-brasileiras urbanas conhecidas sob a rubrica genérica
e preconceituosa de “macumba”.
Sobre a macumba Carneiro (1959, p. 7) relata que antes de dançar, os
jongueiros executam movimentos especiais pedindo a bênção dos cumbas
velhos, palavra que significa jongueiro experimentado.
[...] de acordo com esta explicação de um preto centenário: “Cumba é
jongueiro rúim, que tem parte com o demônio, que faz feitiçaria, que
faz macumba, reunião de cumbas.” Como o vocábulo é sem dúvida
angolense, a sua sílaba inicial talvez corresponda à partícula ba que,
nas línguas do grupo banto, se antepõe aos substantivos para a
formação do plural, com provável assimilação do adjetivo feminino
má. Nem todos os crentes se satisfazem com esta designação
tradicional — e os cultos mais modernos, tocados de espiritismo, já
se intitulam de Umbanda, em contraste com Quimbanda, ou seja,
macumba. Esta seria a magia negra, a Umbanda, a magia branca.
(CARNEIRO, 1959, p. 8).
Berkenbrock (1998) diz que macumba designa a religião afro-brasileira
surgida principalmente no Rio de Janeiro e advinda da tradição religiosa banta
(congo e angola), mas ressalta que na atualidade muitas vezes o termo é
utilizado de forma generalizada para designar as práticas ou cerimônias e
ainda de forma pejorativa para designar os cultos de origem africana. No
mesmo sentido, Maggie (2001) diz que macumba poderá ter três designações:
a) instrumento musical, tambor ou atabaque; b) designação da religião de
possessão em termos amplos; e c) definição do próprio trabalho feito.
A Umbanda encontra suas raízes na própria ideologia de formação da
sociedade brasileira, a partir de três matrizes culturais localizáveis também na
prática religiosa: as matrizes indígenas, africana e europeia338. (PORDEUS Jr.,
2010, p. 66). É por isso que para alguns autores a Umbanda é considerada uma
religião globalizada, diferentemente do Candomblé, voltado à retomada e à
preservação das tradições advindas da África (PRANDI, 2004).
Sobre a umbanda, Prandi (2003) diz que se formou no século XX, no
Sudeste, e que representa uma síntese do antigo candomblé da Bahia,
transplantado para o Rio de Janeiro na passagem do século XIX para o XX,
com o espiritismo kardecista, chegado da França no final do século XIX. Para
o autor ainda hoje é comum os umbandistas se chamarem de espíritas ou
católicos, seja por engano ou até mesmo para fugir de repressões e
discriminações - refletiremos sobre estas estratégias de fuga da opressão dos
setores repressores do Estado na nossa pesquisa. Em outras épocas os
católicos e os agentes de segurança pública designavam a umbanda de “baixo
espiritismo”, para diferenciá-la do espiritismo kardecista339.
Nesse contexto, Pordeus Jr. (2004) marca o final do regime salazarista
como o momento em que a Umbanda chega a Portugal através de D. Virgínia
Albuquerque que, em 1950, com seus pais, migra para o Rio de Janeiro, casa-
se com um rapaz da mesma origem e termina por se iniciar na religião,
passando a atuar daí em diante em um terreiro de Umbanda na cidade.
Posteriormente, abre, com o marido, um herbanário e, voltando a Portugal para
visitar a família decide ficar, desfazem-se dos bens no Brasil e instalam um
pequeno comércio em Portugal, mas logo em seguida D. Virgínia começa a
prestar consultas de caráter privado e por fim resolve abrir um terreiro,
quando começa realmente a praticar a religião e inicia novos adeptos nos
meados da década de 70. Reproduz-se o mesmo fenômeno da Umbanda no
Brasil: surgem daí outros terreiros e é criado, em 1980, o Terreiro de
Umbanda Ogum Megê, muito famoso no país. (PORDEUS Jr., 2004, p. 13).
CONCLUSÃO
Apresentamos aqui apenas os contornos inciais dessa investigação que tem
como objetivo geral analisar o fenômeno da transnacionalização da Umbanda,
religião originalmente brasileira, a partir da ideia de mobilidade geográfica
religiosa chamada atualmente por alguns teóricos de divine migration, e a sua
importância na construção de novas spiritual geographies na sociedade e
também no sistema de justiça portugueses, especialmente a partir da expansão
das religiões neopentecostais brasileiras para a Europa num movimento de
exportação religiosa que vem sendo denominado de reverse mission.
Mostramos ainda que, especificamente, buscaremos estudar até que ponto o
passado e o presente de perseguições e discriminações à Umbanda no Brasil,
perpetradas por órgãos estatais, tais como as instituições do sistema de justiça
e, mais recentemente, por organizações privadas, ultrapassaram, juntamente
com a doutrina e as práticas religiosas, as fronteiras internacionais e como
elas se manifestam na sociedade e no direito portugueses; quais as
semelhanças e distinções encontradas nos dois países do ponto de vista da
trajetória histórica e de construção legislativa; como os terreiros de umbanda
e os umbandistas se organizam em Portugal em torno desse debate; como a
experiência portuguesa pode contribuir para pensarmos a intolerância
religiosa à Umbanda no Brasil.
Esperamos com essa investigação, além de todo o exposto, estudar
questões como a redefinição dos direitos de um ponto de vista multicultural; as
discriminações e as lutas pela igualdade racial e religiosa; as políticas
identitárias e as questões do reconhecimento; os processos pós-coloniais com
incidência na colonização portuguesa; os modos de produção e reprodução do
direito; o papel do direito e da justiça na configuração dos processos sociais,
políticos e econômicos contemporâneos; a construção e a aplicação do direito,
designadamente a interface entre o Estado e a pluralidade de sistemas de
justiça; a qualidade e transnacionalização do direito e da justiça.
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impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. São
Paulo: EDUSP, 2007.
332 Trabalho apresentado pelo Grupo de Pesquisa Direito Constitucional: Sociedade, Política e Economia
(UNIT).
333 Doutor em Direito PUCRio. Mestre em Direito – UFBA. Professor Pleno do Mestrado em Direito da
Universidade Tiradentes. Líder e pesquisador do Grupo de Pesquisa Direito Constitucional: Sociedade,
Política e Economia – UNIT-CNPq. E-mail: ilzver@gmail.com
334 Especialista em Direito Civil e Processual Civil e Graduada em Direito pela Universidade Federal de
Sergipe. Estudante-pesquisadora do Grupo Direito Constitucional: Sociedade, Política e Economia – UNIT-
CNPq. E-mail: kellen_muniz@yahoo.com.br
335 Graduado em Direito pela Universidade Cândido Mendes no Rio de Janeiro. Estudante-pesquisador do
Grupo Direito Constitucional: Sociedade, Política e Economia – UNIT-CNPq. E-mail:
brunocandydojuridico@yahoo.com.br
336 Para Boaventura de Sousa Santos (2003, p.43), as zonas de contato são campos sociais em que
diferentes mundos da vida normativos se encontram e defrontam. Para o autor é nesses espaços que
diferentes culturas jurídicas se defrontam de modos altamente assimétricos, quer dizer, em embates que
mobilizam trocas de poder muito desiguais. As zonas de contato são, portanto, zonas em que ideias,
saberes, formas de poder, universos simbólicos e agências normativos e rivais se encontram em condições
desiguais e mutuamente se repelem, rejeitam, assimilam, imitam e subvertem, de modo a dar origem a
constelações político-jurídicas de natureza híbrida em que é possível detectar o rasto da desigualdade das
trocas. Os híbridos jurídicos são fenómenos político-jurídicos onde se misturam entidades heterogéneas
que funcionam por desintegração das formas e por recolha dos fragmentos, de modo a dar origem a novas
constelações de significado político e jurídico. Em resultado das interações que ocorrem na zona de
contato, tanto a natureza dos diferentes poderes envolvidos como as diferenças de poder existentes entre
eles são afetadas. A compreensão deste conceito é fundamental para esta pesquisa, uma vez que os afro
religiosos no nosso país são um dos principais exemplos atuais de grupos sociais que se envolvem têm se
envolvido em conflitos assimétricos com culturas nacionais dominantes.
337 Sobre a garantia dos chamados direitos étnicos ou direitos de comunidades tradicionais, são inúmeros
os dispositivos constitucionais, legais nacionais e internacionais e, sobretudo, as políticas públicas criadas
nos últimos anos para a proteção dos direitos desses grupos no Brasil. Desde a Constituição Federal de
1988, passando pela Lei Caó (Lei 7.716 de 1989), pela ratificação da Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho sobre comunidades tradicionais, até o surgimento da Secretaria de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial e a instituição de políticas públicas para comunidades tradicionais, farto é o
conjunto de medidas legislativas e executivas criadas para a proteção desses grupos, mas, da mesma
forma, grande é a dificuldade de sua implementação no Brasil.
338 A matriz europeia, inicialmente identificada com o catolicismo, no que tange à Umbanda, foi
substituída por um catolicismo já transformado pelo espiritismo kardecista.
339 A umbanda tem sido compreendida como uma religião brasileira de caráter sincrético e socialmente
dialético (NEGRÃO, 1996), de culto aos ancestrais africanos, pretos-velhos, ancestrais africanos diretos, e
aos caboclos, os ancestrais da terra Brasil (SANTOS, 1995), representantes de grupos que sofreram ou
sofrem exclusão social. “A umbanda conservou do candomblé o sincretismo católico: mais que isto,
assimilou preces, devoções e valores católicos que não fazem parte do universo do candomblé. Na sua
constituição interna, a umbanda é muito mais sincrética que o candomblé.” (PRANDI, 2003, p. 2).
A AUDIÊNCIA PÚBLICA SOBRE A DIFERENÇA
DE CLASSE NO SUS: RISCOS E
PERSPECTIVAS340
PUBLIC HEARING ON THE DIFFERENCE TREATMENT IN
THE BRAZILIAN PUBLIC HEALTH SYSTEM: RISKS AND
PERSPECTIVES
RESUMO
O artigo aborda a audiência sobre diferença de classe no SUS, convocada pelo Ministro Dias Toffoli em
2014 para o STF receber mais informações para decidir melhor antes de tomar a decisão em um Recurso
Extraordinário que se origina em uma ação civil pública.
PALAVRAS-CHAVE
Judicialização; audiência pública; direito à saúde; STF.
ABSTRACT
The paper broaches the public hearing on different treatment in Brazilian public health care system,
convened by Justice Dias Toffoli in 2014 to the Brazilian Federal Supreme Court receive better
information before making a decision on an extraordinary appeal that originates in a class action.
KEYWORDS
Judicialization; public hearing; Right to Health; Brazilian Federal Supreme Court.
INTRODUÇÃO
O presente artigo cuidará da audiência pública que trata da “diferença de
classe”, convocada em 2014 pelo Ministro Dias Toffoli. Ainda não se
deliberou e proferiu decisão final do recurso extraordinário para o qual a
audiência pública foi convocada ainda, de modo que uma síntese da
problemática das falas dos experts nela, bem como de outras decisões do STF
e tribunais sobre o tema serão importantes para fornecer uma compreensão
mais complexa da questão desse importante tema relacionado ao direito
fundamental à saúde.
A saúde encontra-se prevista como direito fundamental social no art. 6º e e
art. 196 da Constituição de 1988, que dispõe que ele será efetivado mediante
políticas públicas respeitando essencialmente três diretrizes: a redução de
riscos, a universalização do acesso aos medicamentos e tratamentos, assim
como ao acesso igualitário. Igualmente no plano internacional o direito
humano à saúde está consagrado no art. 22 e 23 da Declaração Universal de
Direitos do Homem e cidadão e no art. 12 do Pacto de direitos Econômicos e
sociais. No plano regional, o Protocolo de São Salvador, protocolo adicional
à Convenção Americana sobre direitos humanos em matéria de direitos
econômicos, sociais e culturais, prevê o direito à saúde física, mental e social.
Note-se que, sob o influxo da doutrina da efetividade345, de um Poder
Judiciário ativista e de movimentos sociais no processo de democratização da
sociedade e do Estado após 1988, o texto e interpretação da Constituição de
1988 e dos tratados de direitos humanos permitiram superar antigas
concepções do direito social à saúde como um favor ou como um mero
serviço privado monetarizável em direção a construção de direitos e deveres
fundamentais à saúde de forma integral e universal346-347. Nas palavras
precisas de Luís Roberto Barroso, o cenário passou da falta de efetividade à
judicialização excessiva dos medicamentos e tratamentos de saúde348. Talvez
seja possível dizer que alguns pacientes aproximaram-se mais dos juízes do
que dos médicos.
O tema é socialmente urgente, politicamente estratégico e cientificamente
desafiador. Por óbvio, judicial e normativamente, não seria diferente:
frequentemente – para não dizer excessivamente – no Poder Judiciário (e
também no Supremo Tribunal Federal) é chamado a se posicionar sobre as
mais variadas questões349. Qualquer que seja o ângulo da questão350 não há
como não ser atraído pelas questões suscitadas nele. Se colocássemos a
questão em sentido amplo, poderíamos ampliar ainda mais o rol. Afinal, uma
série de temas tratados por outras audiências públicas do STF envolvem
questões correlatas, como, por exemplo, o uso seguro ou não do amianto tem
reflexos para a saúde do trabalhador, a pesquisa com células-tronco pode
incrementar a qualidade de vida e a saúde das pessoas com a possibilidade de
descoberta de novos medicamentos e tratamentos e, ainda, a saúde física e
psíquica da mulher que está em uma gestão de um feto com anencefalia.
Especificamente sobre o tema debater a questão da saúde foram três sobre
a judicialização da saúde351, convocada pelo ministro Gilmar Mendes, sobre o
programa mais médicos, convocada pelo Min. Marco Aurélio e a última sobre
a diferença de classe no SUS, convocada pelo Min. Dias Toffoli. A
possibilidade de distribuição de medicamentos, o impacto disso no orçamento,
a questão federativa, a solidariedade entre os entes, a contração de médicos
estrangeiros sem a revalidação do diploma no Brasil são apenas alguns temas
objeto de consulta à sociedade e aos especialistas por meio da audiência
pública. Como se pode perceber, nem sempre é fácil decidir o que é a
igualdade no caso concreto e que direitos estamos (ou não) dispostos a
sacrificar para alcançá-la. Talvez por isso o debate público para obter mais
informações para decidir com maior segurança seja considerado tão relevante
na opinião da própria Corte.
A audiência pública para discutir a chamada “diferença de classe” em
internação hospitalar pelo Sistema Único de Saúde (SUS) envolve justamente
essa problemática. Em linhas gerais, a “diferença” ou “preferência” de classe
é a possibilidade de melhoria no tipo de acomodação ou tratamento do
paciente e a contratação de profissional de sua preferência, mediante o
pagamento de valor complementar pelo mesmo. Convocada pelo Ministro
Dias Toffoli, a audiência parece estar situada no meio do caminho entre um
modelo Gilmar Mendes e um modelo Luiz Fux de Audiências públicas352,
porque, se por um lado, ela trata de questões jurídicas relacionadas à
construção igualitária do SUS; por outro lado, parece fundamental esclarecer
questões de fato sobre o que é a essa diferença de classe, seu impacto no
orçamento dos hospitais e quando o tratamento diferenciado não suportado
pelo SUS é realmente fundamental para o sucesso terapêutico do tratamento.
Ao longo da audiência pública, o Supremo Tribunal Federal (STF) contou
com a participação e os depoimentos dos diversos especialistas oralmente e
por escrito esse tema enredado no Recurso Extraordinário nº 581488. O RE se
origina em uma ação civil pública, que pretendia reconhecer a possibilidade
do tratamento de diferença de classe dentro da gestão municipal do Sistema
Único de Saúde (SUS). A referida ação civil pública foi proposta pelo
Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul
(CREMERS)353, como autarquia com personalidade jurídica de direito público
interno com autonomia administrativa, conforme o Art. 5, IV, lei nº 7347/85,
propôs ação civil publica contra o Município de Canela, na qualidade de
gestor municipal do SUS354.
Preliminarmente, vale lembrar que a diferença de classe no SUS era
permitida até 1991, quando o antigo INAMPS através da Resolução nº 283
cessou tal prática, proibindo-a. O referido réu, enquanto gestor municipal do
SUS, manteve a política instituída pela Resolução n° 283, aumentando as
restrições e impedindo o cidadão que recorresse ao SUS de optar pela
chamada “diferença de classe. Não obstante, o estado do Rio Grande do Sul,
enquanto gestou do SUS a nível estadual, não admite que paciente atendido
inicialmente por medico particular interne-se diretamente no SUS, fazendo-se
necessário uma triagem em um porto de saúde.
O CREMERS alega que ambas as situações descritas violam direitos do
paciente ao privá-lo do acesso a melhores serviços de saúde e a procurar um
médico de sua confiança, bem como do médico em sua autonomia profissional.
Afirma que a confiança construída na relação médico-paciente é importante
para o sucesso do tratamento médico e estaria sendo desprezada. Argumenta
que o pagamento relativo a tal prática alivia as instituições hospitalares e os
médicos, compensando em certa medida as perdas impostas e “desafogando”
as acomodações normalmente oferecidas pelo SUS. Portanto, diante do corte
de verbas na área da saúde, do crescente caos no acesso a saúde, a garantia do
direito dos pacientes de optarem pela diferença de classe, pagando a diferença
aos hospitais e médicos amenizaria a crise e o prejuízo aos direitos. Por fim,
reitera que a “diferença de classe” não representa quebra da isonomia, porque
não se estabelece tratamento desigual entre pessoas numa mesma situação,
apenas faculta atendimento diferenciado em situação diferenciada, ampliando
direitos previstos na Constituição e sem ônus para o sistema público (RE nº
226.835-6/RS). O Estado do Rio Grande do Sul e a União, na condição de
sucessora do INAMPS são chamados a integrar a lide, na condição de
litisconsorte passivo necessário.
O Município de Canela/RS, em contestação por meio de seu representante
legal alega a inadequação da ação civil pública na a defesa de direitos
coletivos dos pacientes e médicos por não configurarem interesses coletivos, e
sim individuais homogêneos, portanto, interesses particulares e individuais.
Alega, ainda, a ilegitimidade do autor para tal, pois o estatuto pelo qual o
Conselho-autor é regido, não prevê esta capacidade. Além do mais, o pedido
do Conselho postularia, também e acima de tudo, uma inversão no sistema,
privilegiando estritamente os pacientes de profissionais particulares, em
detrimento dos demais, violando os princípios de universalidade e igualdade,
enquanto base fundamental do Sistema Único de Saúde e previstos
constitucionalmente.
O Estado do Rio Grande do Sul, se manifesta com argumentos semelhantes
aos outros legitimados passivos da ação. Dentre os requerimentos dos três está
reconhecimento de ilegitimidade ativa do autor; indeferimento do pedido de
antecipação de tutela; condenação do autor em honorários e demais ônus
sucumbenciais. Assim concordam com a extinção do processo sem julgamento
do mérito ou que seja julgada improcedente a causa.
A União também contestou a legitimidade ativa do autor para postular os
direitos em nome dos pacientes, sob o argumento de que a postulação de
direitos em favor de qualquer não estaria entre as atribuições do CREMERS,
só podendo postular em juízo para garantir direitos e prerrogativas de seus
filiados dentro do que têm em comum: o exercício da medicina. Carece,
portanto, de legitimidade e interesse, nos termos do art. 3º e 6º do CPC.
Quanto ao pedido da reiteração da “diferença de classe”, esta representaria a
violação da isonomia e pretensão da universalidade da assistência à saúde
garantida constitucionalmente. A proibição de tal prática, prevista na Portaria
nº 113 de 04/09/1997, visa evitar que o hospital, diante de eventual escassez
de vagas para o SUS, opte, dentre os pacientes sujeitos a internação, por
aquele que se disponha a pagar a complementação por tratamento
diferenciado, priorizando o critério econômico, em detrimento dos critérios
estabelecidos pelo SUS. Seria a porta aberta à arbitrariedade, à
descriminação e ao constrangimento impostos aqueles que não possuem
condições de pagar pelo tratamento diferenciado. A disposição da portaria não
contraria dispositivo legal algum e tem como única finalidade garantir a
isonomia no atendimento pelos hospitais privados, impedindo diferenciações
por quaisquer critérios que não se relacionem à saúde do paciente.
Em decisão interlocutória, o Juiz afirmou que a ação civil pública proposta
mostra-se adequada ao fim visado e reconhece a legitimidade ativa do autor.
Também reconheceu a competência da Justiça Federal para processar e julgar
a presente ação, e termina por indeferir o pedido de liminar. Contra a
supramencionada decisão, a União interpôs agravo retido e o autor, por sua
vez, interpôs agravo de instrumento no TRF da 4a Região. O juiz indeferiu
ambos os recursos, mantendo a decisão recorrida.
O juiz do TRF4 reconheceu a legitimidade ativa do Conselho como
autarquia com base no art. 5º da lei nº 7347/85 e a pertinência temática da
causa com base no art. 1º, II, da mesma lei, entendendo os pacientes do SUS
como consumidores. Mas indefere o pedido de restabelecer a prática
denominada “preferência de classe”, sob o fundamento de que há violação aos
princípios constitucionais que constituem o sistema único de saúde e
reafirmando as complicações que a reiteração da prática poderia causar ao
SUS, em sua organização, administração e funcionalidade. Indeferido todos os
recursos, foi interposto perante o STF e admitido para julgamento RE nº
581488 para o qual o Min. Dias Toffoli convocou uma audiência pública no
intuito de decidir com mais segurança.
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ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e
tutela coletiva de direitos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.
340 Trabalho apresentad pelo Grupo do OJB – Observatório de Justiça Brasileiro, cujas discussões
preliminares à versão do presente artigo ocorridas na UFRJ e no VI FORUM dos grupos de Pesquisa em
2014 na PUC-RJ, em especial com o Prof. José Ribas Vieira e com mestrandos da UFRJ Fátima Amaral,
Júlia Cani e Alexandre de Lucca foram fundamentais para aperfeiçoar a qualidade do texto.
Agradecemos, ainda, os debates sober a audiência pública com alunos do Grupo de Estudos de Direito
Constitucional Internacional e Comparado (GEDCIC) da UFJF-GV, especialmente a David Araújo,
Debora Sampaio, Matheus Mesquita, Wagner Botelho e Vitor Fraga.
341 Professora do Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade Nacional de Direito da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD/FND/UFRJ) e Doutora em Direito. Email:
margaridalacombe@gmail.com.
342 Professor de Constitucional da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF-GV). Doutorando pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFF). Email:siddhartalegale@hotmail.com.
343 Acadêmica e Extensionista da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF-GV). Email:
anac.mb@hotmail.com.
344 Acadêmica e Monitora de constitucional da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF-GV).
Email:fernandadalbems@gmail.com.
345 BARROSO, Luís Roberto. A doutrina brasileira da efetividade. In: Temas de direito constitucional, t.
III, 2005. A expressão foi originalmente empregada por SOUZA NETO, Cláudio Pereira de.
Fundamentação e normatividade dos direitos fundamentais: uma reconstrução teórica à luz do princípio
democrático. In: Luís Roberto Barroso (org.). A nova interpretação constitucional: ponderação,
direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 285 e ss.
346 Não desejamos percorrer o histórico dos movimentos pela efetivação do direito à saúde no Brasil. De
forma precisa a respeito, Felipe Asensi sistematiza em três momentos: no Império e na República Velha
numa tradição patrimonialista a saúde é uma benesse ou favor estatal; posteriormente, a partir da Era
Vargas, ocorre a criação das caixas de assistências e planos privados em que a saúde é um benefício
decorrente do vínculo empregatício, enquanto os desempregados seriam assistidos socialmente pelas casas
de misericórdia e, por fim, após a década de 70, com o movimento sanitarista, começam as reivindicações
por um “direito” á saúde integral e universal, que culminaria com a redação da Constituição de 1988. Cf.
ASENSI, Felipe Dutra. Indo além da judicilização: o Ministério Público e a saúde no Brasil. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas/CJS, 2010, p. 15 e ss. ASENSI, Felipe Dutra. Direito à saúde:
práticas sociais reivindicatórias e sua efetivação. Curitiba: Juruá Editora, 2013, p. 131 e ss.
347 Não desejamos percorrer as diversas teorias e conceitos operacionais que envolvem os direitos
sociais. Sobre o tema, Cf. SARLET, Ingo. Os direitos Fundamentais sociais: Algumas Notas sobre seu
Conteúdo, Eficácia e Efetividade nos Vinte Anos da Constituição Federal de 1988”. In: AGRA, Walber de
Moura(coord.). Retrospectiva dos Vinte Anos da Constituição Federal. São Paulo: Saraiva, 2009.
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Saúde: Algumas Aproximações”. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (orgs.). Direitos
Fundamentais – Orçamento e Reserva do Possível. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
DUARTE, Bernardo Augusto Ferreira. Direito à saúde e teoria da argumentação: em busca da
legitimidade dos discursos jurisdicionais. Belo Horizonte: Arraes, 2012, p.217 e ss.
348 BARROSO, Luis Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde,
fornecimento gratuito de medicamente e parâmetros para atuação judicial. Revista Interesse Público,
Belo Horizonte, n. 46, p. 34, nov./dez. 2007. Para uma inteligente análise das críticas e parâmetros para a
efetivação judicial de direitos sociais, Cf. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. A justiciabilidade dos
direitos sociais: críticas e parâmetros. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel.
(Org.). Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2008.
349 É claro que o direito à saúde não se circunscreve à arena judicial, embora esse tenha tinha em boa
medida o recorte do presente artigo. Existem diversos outros temas importantes a serem desenvolvidos,
como a questão das agências reguladoras, a CONITEC e a incorporação ode novos medicamentos, como
aponta PERLINGEIRO, Ricardo. O princípio da isonomia na tutela judicial individual e coletiva, e em
outros meios aos planos privados de saúde Revista da Procuradoria-Geral Mun. Belo Horizonte, ano 5,
n. 10, jul./dez. 2012, p. 217-227. PERLINGEIRO, Ricardo. Novas perspectivas para a judicialização da
saúde no Brasil. Scientia Iuridica, v. 333, 2013, p. 519-539. Um excelente rol de temas contemporâneos
relevantes podem ser encontrados em a reunião do grupo que contou com a participação de diversos
professores, desembargadores e Conselhos do CNJ, como Ricardo Perlingeiro, Guilherme Calmon, Saulo
Bahia Cf. EMARF. Reunião de Trabalho “judicialização da saúde púbica” - Agosto de 2014. Disponível
em: < http://ssrn.com/abstract=2487841>.
350 Do ponto de vista mais teórico, existem diversos trabalhos interessantes sobre se os direitos
fundamentais sociais, em especial são direitos fundamentais formalmente protegidos pelas cláusulas
pétreas (Ingo Sarlet com base do Título II) ou não (Ricardo Lobo Torres com base no art. 60, §4º, IV que
fala apenas direitos e garantias individuais), bem como como refletir sobre a fundamentalidade material do
direito à saúde a partir, do mínimo existencial, dignidade da pessoa humana. SARLET, Ingo Wolfgang.
Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à saúde na Constituição de
1988. Revista Eletrônica sobre Reforma do Estado (RERE), 2007. Disponível em:
www.reformadoestado.com.br/rere.asp.
351 Para uma reflexão crítica sobre a audiência pública Cf. ASENSI, Felipe Dutra et. al. Tornar presente
quem está ausente? Uma análise da audiência pública em saúde no judiciário. Confluências: Revista
Interdisciplinar de Sociologia e Direito da UFF n. 14, 2012, p. 146 e ss.
352 Sobre os modelos, Cf. CAMARGO, Margarida Maria Lacombe; LEGALE, Siddharta; JOHANN,
Rodrigo Fonseca As audiências públicas no Supremo Tribunal Federal nos modelos Gilmar Mendes e Luiz
Fux: a legitimação técnica e o papel do cientista no laboratório de precedentes. In: José Ribas Vieira,
Vanice Regina Lírio do Valle e Gabriel Lima Marques. (Org.). Democracia e suas instituições. 1ed.Rio
de Janeiro: IMOS, 2014, v. 1, p. 181-211.
353 Um panorama mais amplo da questão, do ponto de vista doutrinário e empírico, pode ser encontrado
na excelente dissertação de mestrado do Professor Felipe Asensi, que chegou a realizar entrevistas em
Porto Alegre com membros do Ministério Público para avaliar a questão da ACP e dos TACs (termos de
ajustamento de conduta), propostos por seus membros, de modo a perceber a importância e os efeitos da
juridicização, judicialização e desjudicialização para a efetivação do direito à saúde. Cf. ASENSI, Felipe
Dutra. Indo além da judicilização: o Ministério Público e a saúde no Brasil. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas/CJS, 2010, p. 63 e ss.
354 Não desejamos discorrer sobre a relação entre o controle de constitucionalidade (difuso) e a ação civil
pública, que é uma hipótese extremamente polêmica a demandar um estudo próprio. Ressaltamos, porém,
o entendimento da doutrina e do STF de que, como a ação civil pública possui efeitos erga omnes, a ACP
não pode ter a inconstitucional como o objeto, mas apenas como causa de pedir para não usurpar a
competência do STF e para não ser substitutiva da ADI. Perceba-se, que, ainda assim, esse controle
difuso e incidental adquire, em certa medida, feições objetivas ou abstratas. Para mais detalhes sobre o
tema Cf. MENDES, Gilmar Ferreira. Ação civil pública e controle de constitucionalidade. In: MILARÉ,
Edis. (Org.). A Ação Civil Pública após 20 anos: efetividade e desafios. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005, p. 195-205. ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e
tutela coletiva de direitos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p.231 e ss.
355 O Ministério Público,a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), a procuradoria do Estado do
Rio Grande do Sul, a Confederação Nacional da Saúde (CNS), o Conselho Nacional da Saúde (CNS), o
Conselho de Saúde do Rio Grande do Sul, o cirurgião e professor Raul Cutait, do Hospital Sírio-Libanês de
São Paulo e Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), o
Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), o Conselho Nacional de Secretários Municipais de
Saúde (Conasems), a procuradoria de Canela e a Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo
dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC) são contrários a diferença de classe no Sistema Único de
Saúde.
356 Nesse sentido, a procuradora do Estado do Rio Grande do Sul, Fabrícia Boscaini, professor de
Medicina da Universidade de São Paulo (USP) Raul Cutait, Associação Nacional dos Auditores de
Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC), Lucieni Pereira, diretor-presidente da
Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), André Longo Araújo de Melo, O presidente do Conselho
de Saúde do Rio Grande do Sul, Paulo Humberto Gomes da Silva, O presidente do Conselho Nacional de
Secretários de Saúde (Conass), Wilson Duarte Alecrim, O presidente do Conselho Nacional de
Secretários Municipais de Saúde (Conasems) Antônio Carlos Figueiredo Nardi
357 O Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul e a Federação das Santas Casas
de Misericórdia, juntamente com a Confederação das Santas Casas, são favoráveis a diferença de classe
no Sistema Único de Saúde.
358 Confederação pelas Santas Casas de Misericórdia, representada pelo seu presidente Júlio Dornelles
de Matos, O coordenador Jurídico da Confederação Nacional da Saúde (CNS) e representante da
Federação Nacional dos Estabelecimentos de Serviços de Saúde (Fenaess), Alexandre Venzon Zanetti,
359 STF, RE 255086/RS, Rel. Min. Ellen Gracie, J. 11/09/2001, DJ 11/10/2001
360 STF, RE 255086, Rel. Min. Ilmar Galvão, J. 14.12.1999, DJ 10.03.2000; STF, RE 226835/RS, Rel.
Min. Ilmar Galvão, J. 14/12/1999, DJ 10/03/2000 e STF, RE 261268/RS, Rel. Min. Moreira Alves, J.
28/08/2001, DJ 05/10/2001.
361 TRF4, Apelação Criminal n° 2001.71.10.003946-4/RS, relator Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz.
362 APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO N° 2004. 72. 05. OO2572-7/SC, relator Des. Federal
Fernando Quadros da Silva.
363 Refletindo sobre a relação entre isonomia, ações coletivas e direito à saúde Cf. PERLINGEIRO,
Ricardo. A tutela judicial do direito público à saúde no Brasil. Direito, Estado e Sociedade, v. 41, 2012, p.
184-203.
364 Uma pesquisa empírica sobre o tema em 2007 de São Paulo retrata essa captura do Judiciário em
questão de saúde por pessoas com maior poder aquisitivo em detrimento dos mais carentes. SILVA,
Virgílio Afonso da; TERRAZAS, Fernanda Vargas. Claiming the Right to Health in Brazilian Courts:
the exclusion of the already excluded. Disponível em: <www.ssrn.com>
LISTA DE AUTORES
Alceu Maurício Júnior
Alessandra Almada de Hollanda
Alex Ferreira Magalhães
Alexandre De Luca
Ana Beatriz Oliveira Reis
Ana Carolina Gorrera França
Ana Navarro
André Wendriner
Angel Costa Soares
Arnaldo Ferradosa
Augusto Sampaio
Breno Barros
Bruna Veríssimo
Bruno Alves
Camilla Gutierrez
Carlos Bolonha
Celso de Albuquerque Silva
Claudio Felipe Alexandre Magioli Núñez
Dominique Oliveira
Edimar Santos
Eduardo Garcia Ribeiro Lopes Domingues
Enzo Bello
Fabiana de Almeida Maia Santos
Fatima Amaral
Gabriel Barbosa Gomes de Oliveira Filho
Gabriel Castro
Gabriel Dolabella
Gabriel Guia
Gabriel Mendonça
Gustavo Costa
Henrique Rangel
Igor de Lazari
Ilzver Matos Oliveira
Janaina Matida
José Ribas Vieira
Jovelino Muniz de Andrade Filho
Julia Cani
Júlia Massadas
Juliana de Alencar
Juliana Leite de Araújo
Juliana Melo Dias
Juliana Pessoa Mulatinho
Juliana Sales
Kellen Josephine Muniz de Lima
Kelly Ribeiro Felix de Souza
Laíze Gabriela Benevides Pinheiro
Laura Marques dos Santos Fernandes Alves
Leonardo Gaspar
Lorena Senra
Lucas Pattitucci
Luiz Felipe Lima
Maíra Neurauter
Marcela Münch de Oliveira e Silva
Marcelo Tadeu Baumann Burgos
Marcus Vinicius Bacellar Romano
Margarida Lacombe Camargo
Natan Lima
Pedro Aurélio de Pessôa Filho
Pedro Bastos de Souza
Rachel Herdy
Rafael Bitencourt Carvalhaes
Renata Rogar
Ricky Rocha Nascimento
Rodrigo Dias
Siddharta Legale
Sonia Nogueira Leitão
Stefanie Araújo
Stella de Souza Ribeiro de Araújo
Telmo Olímpio
Vanice Regina Lírio do Valle
Victor Costa
Wanny Cristina Fernandes