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DIÁLOGOS CONSTITUCIONAIS E

AS RELAÇÕES ENTRE OS
PODERES
VI FÓRUM DE GRUPOS DE
PESQUISA EM DIREITO
CONSTITUCIONAL E TEORIA DO
DIREITO

ORGANIZADORES
José Ribas Vieira
Margarida Maria Lacombe Camargo
Vanice Regina Lírio do Valle
Carina Barbosa Gouvêa
Fabiana de Almeida Maia Santos
Siddharta Legale

2016
Conselho Editorial Conselho Científico
Antonio Celso Alves Pereira Adriano Moura da Fonseca Pinto
Antônio Pereira Gaio Júnior Alexandre de Castro Catharina
Cleyson de Moraes Mello Bruno Amaro Lacerda
Germana Parente Neiva Belchior (FA7) – Ceará Carlos Eduardo Japiassú
Guilherme Sandoval Góes Claudia Ribeiro Pereira Nunes
Gustavo Silveira Siqueira Célia Barbosa Abreu
João Eduardo de Alves Pereira Daniel Nunes Pereira
José Maria Pinheiro Madeira Elena de Carvalho Gomes
Martha Asunción Enriquez Prado (UEL) – Paraná Jorge Bercholc
Maurício Jorge Pereira da Mota Leonardo Rabelo
Nuria Belloso Martín Marcelo Pereira Almeida
Rafael Mário Iorio Filho Nuno Manuel Morgadinho dos Santos Coelho
Ricardo Lodi Ribeiro Sebastião Trogo
Sidney Guerra Theresa Calvet de Magalhães
Valfredo de Andrade Aguiar Filho (UFPB) – Paraíba Thiago Jordace
Vanderlei Martins
Vânia Siciliano Aieta
ORGANIZAÇÃO
ATENÇÃO
Todos os direitos desta edição estão reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida por
qualquer processo eletrônico ou mecânico, fotocopiada ou gravada sem autorização expressos do autor.
Edição: Freitas Bastos Editora
Capa e produção do ebook: Jair Domingos de Sousa

Fórum de Grupos de Pesquisa em Direito Constitucional e Teoria do Direito (6:2015, Rio de Janeiro, RJ)
Diálogos Constitucionais e as Relações entre os Poderes/ José Ribas Vieira, Margarida Maria Lacombe
Camargo, Vanice Regina Lírio do Valle, Carina Barbosa Gouvêa, Fabiana de Almeida Maia Santos e
Siddharta Legale. (organizadores). – Rio de Janeiro (RJ): Freitas Bastos Editora, 2016.
Xp.
ISBN 978-85-7987-269-3
1. Direito Constitucional. I. Vieira, José Ribas. II. Camargo, Margarida Maria Lacombe. III. Valle,
Vanice Regina Lírio do. IV. Gouvêa, Carina Barbosa. V. Santos, Fabiana de Almeida Maia.VI. Legale,
Siddharta. VII. Título.
CDU X

CIP – BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


VANESSA I. SOUZA CRB – 10/1468
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Reitor: Carlos Antônio Levi da Conceição
Vice-reitor: Antônio José Ledo Alves da Cunha
Pró-reitora de Pós-graduação e Pesquisa: Débora Foguel
Decania do Centro de Ciência Jurídicas e Econômicas
Decano: Vitor Mario Iório
Faculdade de Direito
Diretor: Flávio Alves Martins
Vice-diretor: Carlos Bolonha
Programa de Pós-graduação em Direito – PPGD
Coordenador: José Ribas Vieira
Coordenador Adjunto: Cecília Caballero Lois
Coordenação do Fórum
José Ribas Vieira
Comissão Científica
José Ribas Vieira
Vanice Regina Lírio do Valle
Margarida Lacombe Camargo
Cecília Caballero Lois
Carlos Bolonha
Comissão Executiva
Carina Barbosa Gouvêa
Fabiana de Almeida Maia Santos
Comissão Organizadora
Alfredo Canellas Guilherme da Silva
Allan Carlos da Silva Marques
Bianca Garcia Neri
Clara Duarte Silvestre Cavalcanti Lima
Daniele Ferreira Alvarenga
Eugeniusz Costa Lopes da Cruz
Francisco Arlindo Lima Moura
Igor Ajouz
Júlia Massadas Romeiro Fraga
Juliana de Souza Rodrigues
Lucas do Vale Pattitucci
Luciana Benevides Schueler
Maria Clara Borges Grippa de Souza
Mariana Almeida Picanço de Miranda
Osmar Schineidr Soares de Oliveira
Pietro do Valle Malamace Rezende
Raisa Duarte da Silva Ribeiro
Renata de Marins Jaber Maneiro
Tayssa Botelho dos Santos
Wanny Cristina Ferreira Fernandes
Grupos de Pesquisa Participantes
Direito Constitucional: Sociedade, Política e Economia – Universidade de
Tiradentes - UNIT
Direito, Democracia e Desenvolvimento - Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro – UNIRIO
Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais -
GREAT/UFRJ
Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre Comportamento das
Instituições - LETACI/UFRJ
Laboratório de Estudos Interdisciplinares em Direito Constitucional Latino
Americano - LEICLA/UFF
Novas Perspectivas em Jurisdição Constitucional - NP JURIS/UNESA
Núcleo de Estudos Urbanos e socioambientais NEUS/UVV/ES)
Núcleo de Pesquisas sobre Práticas e Instituições Jurídicas - NUPIJ/UFF
Observatório da Justiça Brasileira OJB - UFRJ/RJ
Transformações estruturais no Direito Urbanístico Brasileiro
contemporâneo – IPPUR/UFRJ
Grupo de Estudos de Direito Constitucional Internacional e Comparado -
GEDCIC
Produção Editorial
Organização: Margarida Maria Lacombe Camargo, José Ribas Vieira,
Vanice Regina Lírio do Valle, Carina Barbosa Gouvêa, Fabiana de
Almeida Maia Santos e Siddharta Legale.
Agradecimentos: Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade
Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(PPGD/FND/UFRJ), Universidade Estácio de Sá (UNESA), Universidade
Federal de Juiz de Fora (UFJF) e Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro (PUC Rio).
Nota Prévia: Os texto reproduzidos aqui foram mantidos como foram
enviados para VI Fórum de Grupos de Pesquisa em Direito Constitucional
e Teoria do Direito, realizado na Pontifícia Universidade Católica no dia
1º de novembro de 2014.
APRESENTAÇÃO
Apresenta-se à comunidade acadêmica, por intermédio da presente obra,
parte dos trabalhos apresentados no VI Fórum de Grupos de Pesquisa em
Direito Constitucional e Teoria do Direito, reunido na Pontifícia Universidade
Católica no dia 1º de novembro de 2014. A iniciativa consolida essa arena de
debates posta em favor não do pesquisador individual – mas da investigação
que se desenvolve coletivamente. Mais do que isso, o acompanhamento ao
longo desses já 6 anos das pesquisas apresentadas no Fórum permite a
identificação de tendências no campo da pesquisa em Direito – observação
que é mais do que relevante para aqueles que se dedicam a esse mesmo
processo de investigação não só no mundo jurídico, mas em todo o vasto
campo das ciências sociais aplicadas.
Desponta no conjunto de trabalhos que integram esta obra, a compreensão
de que o Direito não pode ser entendido a partir de uma perspectiva
isolacionista, que o desconecte da realidade sobre a qual incide, e das suas
relações com outros vetores que integram a dinâmica do convívio social.
Rompe-se assim um certo isolamento cognitivo, para enfrentar a necessidade
de se compreender melhor o Direito como parte integrante de um todo – sem
que nisso se vislumbre qualquer risco para a pureza científica do primeiro. Em
alguma medida, tem-se uma desconstrução de velhos paradigmas de
segregação científica, expressando um direito que investe no seu compromisso
de eficácia – e por isso, se reexamina, relocaliza e reinventa. Nesse mesmo
esforço, pode-se apontar os textos que refletindo sobre o constitucionalismo,
meditam sobre esse leito de produção da law; não mais a partir dos velhos
dogmas da imutabilidade ou do governo dos mortos, mas apostando nas
experiências mais recentes do constitucionalismo latino-americano e daquele
democrático. Entender o constitucionalismo como estratégia necessariamente
dinâmica, que guarde estreita relação com a realidade sobre a qual incide,
refletindo especialmente sua diversidade é também contribuir para a
construção de um sistema jurídico responsivo, que não encontre fundamento
numa legalidade reducionista, mas no seu condão de gerar adesão a um projeto
de vida comum.
Tem-se aqui a primeira parte da presente obra: “Constitucionalismo e
fatos como matrizes de construção do Direito”. Nesta parte inicial,
oferecem os Grupos de Pesquisa participantes do VI Fórum, ferramental
básico para a edificação de um sistema jurídico eficaz como padrão de
conduta na coletividade sobre a qual incide.
Dessa nova abertura no espectro de investigação decorrem as duas partes
subsequentes da obra: “Diálogos constitucionais com o Legislativo” e
“Executivo e Diálogos constitucionais com o Judiciário”. A expressão
“diálogos constitucionais” aqui se usa num sentido figurado, propondo
entender como cada qual destes braços de poder especializado veem a si
mesmo e ao Direito Constitucional a partir da matriz institucional que o
próprio Texto de Base lhes traça. Importante expandir a reflexão sobre o papel
de cada qual das funções do poder, não só a partir do que diga o Judiciário –
mas também tendo em conta o lugar que elas veem para si mesmas na
engenharia constitucional.
Identificou-se igualmente no VI Fórum de Grupos de Pesquisa, a ampliação
da agenda de investigação no tema dos arranjos institucionais do poder –
preocupação primária especialmente do Direito Constitucional. Assim, a par
dos trabalhos expressando análise do delicado equilíbrio provocado pelo
exercício de jurisdição constitucional; verificou-se um crescimento expressivo
das pesquisas direcionadas à compreensão da dinâmica dos demais poderes,
no exercício de sua atividade de criação de Direito lato sensu, e de sua
aplicação. Parece superada uma visão anterior de que se pudesse apartar o
Direito, especialmente o Direito Constitucional, das estruturas de poder
classicamente vocacionadas à sua criação e aplicação. Entender a dinâmica da
atuação dos braços especializados de poder no domínio do Direito, e mais
ainda, a maneira segundo a qual se estabelecem as relações entre eles por
intermédio do Direito é condição sine qua non para um sistema jurídico apto
efetivamente operar na realidade.
Seis anos de Fórum de Grupos de Pesquisa evidenciam, sem sombra de
dúvida, o crescimento da pesquisa em Direito, que não mais se satisfaz em
compilar decisões como se conhecer a ciência se resumisse a isso. O Direito
cada vez mais se apresenta como uma ciência cujo ponto de partida seja
identificar seus próprios propósitos na concretização da justiça e da
democracia. Por isso, a presença cada vez maior de trabalhos onde o que se
discute não é o “como” - mas o porquê das decisões, especialmente no
domínio do Direito Constitucional, onde Direito e Política se encontram. O
que importa, todavia, registrar, é que essa “virada” reflexiva traduz acima de
tudo, maior maturidade democrática, e um ambiente onde esse tipo de
investigação é possível.
A isso se propõe o Fórum de Grupos de Pesquisa em Direito
Constitucional e Teoria do Direito – favorecer o debate acadêmico instigante,
propositivo e crítico. A resposta a esse convite, prontamente aceito pela
comunidade acadêmica, se tem o prazer de passar agora às mãos do leitor.
Rio de Janeiro, Janeiro de 2015.

Vanice Regina Lírio do Valle


SUMÁRIO
Capa
Página de Rosto
Conselhos
Organização
Créditos
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Apresentação
Vanice Regina Lírio do Valle
Sumário

PESQUISA EMPÍRICA NO DIREITO


Marcelo Tadeu Baumann Burgos
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

PARTE 1 – CONSTITUCIONALISMO E FATOS COMO MATRIZES


DE CONSTRUÇÃO DO DIREITO
TEORIAS SISTÊMICAS, COMPLEXIDADE E O SISTEMA
CONSTITUCIONAL DE ADRIAN VERMEULE
Carlos Bolonha
Henrique Rangel
Igor de Lazari
Wanny Fernandes
Gustavo Costa
SYSTEMIC THEORIES, COMPLEXITY, AND THE ADRIAN
VERMEULE’S CONSTITUTIONAL SYSTEM
INTRODUÇÃO
1 CIÊNCIAS SISTÊMICAS
1.1 Reducionismo
1.2 Holismo
1.3 A Teoria dos Sistemas Complexos
1.4 A Escolha de um Paradigma Sistêmico
2 A PROPOSTA CIENTÍFICA DE ADRIAN VERMEULE
2.1 A Ontologia do Sistema Constitucional
2.2 A Epistemologia do Sistema Constitucional
2.3 A Metodologia do Sistema Constitucional
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO: SOBRE COMO RESIDE


NO PODER A APTIDÃO PARA LIMITAR A SI MESMO
DEMOCRATIC CONSTITUCIONALISM: ABOUT POWER AND ITS
ABILITY TO LIMIT ITSELF
Vanice Regina Lírio do Valle
1 MATURIDADE CONSTITUCIONAL E A ABERTURA PARA
OUTROS MODELOS DE CONSTITUCIONALISMO
2 CONSTITUIÇÃO E CONSTITUCIONALISMO: UMA DISTINÇÃO
AINDA ÁRDUA
2.1 Constituição e Constitucionalismo: um necessário acordo semântico
2.2 Constitucionalismo, Constituição e a sua Suposta Relação de
Precedência
3 CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO COMO ESPÉCIE DO
GÊNERO CONSTITUCIONALISMO DIALÓGICO
4 ELEMENTOS CONCEITUAIS DO CONSTITUCIONALISMO
DEMOCRÁTICO
4.1 Autoridade Constitucional e Reconhecimento: o problema da
identidade constitucional
4.2 Visão Constitucional”, Contestação, Persuasão e Consenso:
ferramentas para a responsividade
5 CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO PARA O CENÁRIO
BRASILEIRO: PORQUE COGITAR DISSO?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AS CATEGORIAS JURÍDICAS E A REALIDADE EXTERNA


LEGAL CATEGORIES AND THE EXTERNAL WORLD
Andre Wendriner
Pedro Aurélio de Pessôa Filho
Rachel Herdy
Janaina Matida
Alexandre De Luca
INTRODUÇÃO
1 REGRAS
2 ANALOGIA
3 PRECEDENTES
4 DETERMINAÇÃO DOS FATOS
CONCLUSÃO E PRÓXIMOS PASSOS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A BUSCA PELOS FATOS NO DIREITO: A COERÊNCIA É UMA BOA


DETETIVE?
FACT FINDING AT LAW: IS COHERENCE A GOOD DETECTIVE?
Juliana Melo Dias
Rachel Herdy
INTRODUÇÃO
PRIMEIRA PARTE
1 TRIAL BY MATHEMATICS
2 O TEOREMA DE BAYES
3 A PROPOSTA DE SHAFER
SEGUNDA PARTE:
4 TEORIAS DA VERDADE E TEORIAS DA JUSTIFICAÇÃO
EPISTÊMICA
5 A COERÊNCIA DE AMAYA
a) Inferência à melhor explicação
b) Coerência como satisfação de constrangimentos
c) Responsabilidade epistêmica
VI – O fundacoerentismo de Haack
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

PARTE 2 – DIÁLOGOS CONSTITUCIONAIS COM O


LEGISLATIVO E O EXECUTIVO
TENSÕES NO FEDERALISMO BRASILEIRO: ANALISANDO A
GUERRA FISCAL E A NOVA DISTRIBUIÇÃO DOS ROYALTIES DO
PETRÓLEO
TENSIONS IN THE BRAZILIAN FEDERALISM: ANALYSING THE
FISCAL WAR AND THE OIL ROYALTIES’ NEW DISTRIBUTION
Camilla Gutierrez
Carlos Bolonha
Leonardo Gaspar
Luiz Felipe Lima
Natan Lima
Telmo Olímpio
Wanny Cristina Fernandes
INTRODUÇÃO
1 DESENVOLVIMENTO
1.1 Noções Introdutórias da Guerra Fiscal
1.2 Histórico da Guerra Fiscal no Brasil
1.3 Como Funciona a Guerra Fiscal
1.4 Noções Introdutórias da Partilha dos Royalties do Petróleo
1.5 O Petróleo no Pré-sal e a Mudança na Partilha dos Royalties
2 ANÁLISE DAS TENSÕES FEDERATIVAS
2.1 A Tensão Causada pela Guerra Fiscal
2.2 A Tensão Causada pela Partilha dos Royalties
CONCLUSÕES
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MEDIDAS PROVISÓRIAS PÓS EMENDA CONSITUCIONAL Nº


32/2001: UMA ANÁLISE DO DIÁLOGO INSTITUCIONAL ENTRE
EXECUTIVO E LEGISLATIVO
GOVERNMENT PROVISIONAL ACTS POST CONSITUCIONAL
AMENDMENT No. 32/2001: AN ANALYSIS OF THE
INSTITUTIONAL DIALOGUE BETWEEN EXECUTIVE AND
LEGISLATIVE
Breno Barros
Bruna Veríssimo
Lorena Senra
Stella de Souza Ribeiro de Araújo
INTRODUÇÃO
1 HISTÓRICO DAS MEDIDAS PROVISÓRIAS
2 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO
3 ANÁLISE EMPÍRICA
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGÊNCIAS REGULADORAS: A LEGITIMIDADE DO PARECER


TÉCNICO
REGULATORY AGENCIES: THE LEGITIMACY OF TECHNICAL
REPORT
Ana Navarro
André Wendriner
Arnaldo Ferradosa
Carlos Bolonha
Gabriel Guia
Telmo Olímpio
INTRODUÇÃO
1 CAPACIDADE INSTITUCIONAL: PARECER TÉCNICO
2 BREVE HISTÓRICO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS
3 O CONFLITO ENTRE O PARECER TÉCNICO E O POLÍTICO
4 RESOLUÇÃO ANVISA (AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA
SANITÁRIA): SOBREPOSIÇÃO DO LEGISLATIVO AO PARECER DA
AGÊNCIA REGULADORA
5 PODER NORMATIVO DO ESTADO: DELEGAÇÃO
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A SEGURANÇA PÚBLICA NO ÂMBITO DO PODER EXECUTIVO


FEDERAL: OS PLANOS DE GOVERNO E A SUPREMACIA
EXECUTIVA
THE PUBLIC SAFETY UNDER THE FEDERAL EXECUTIVE POWER:
THE GOVERNMENT PLANS AND EXECUTIVE SUPREMACY
Carlos Bolonha
Dominique Oliveira
Gabriel Castro
Gabriel Dolabella
Gabriel Mendonça
Juliana Sales
Leonardo Gaspar
Luiz Lima
Stefanie Araujo
Telmo Olímpio
Victor Costa
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
1 A CRISE DE SEGURANÇA PÚBLICA: CONTEXTO E
DESDOBRAMENTOS
1.1 Projetos Políticos
1.1.1 Aécio Neves
1.1.2 Dilma Rousseff
1.2 Impactos das Propostas no Âmbito Federativo-Institucional: Breve
Análise
2 SUPREMACIA EXECUTIVA E TIRANOFOBIA
2.1 A Supremacia Executiva: Falência do Legalismo Liberal
2.2 Tiranofobia: A Experiência Norte-Americana
2.3 Supremacia Executiva e Desafios Brasileiros
2.4 Tiranofobia: Conclusões Parciais
3 DESDOBRAMENTOS INSTITUCIONAIS
4 REFLEXOS NA REALIDADE FEDERATIVA BRASILEIRA
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

OS DESAFIOS PARA EFETIVAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL


FRENTE O DECRETO N° 8.243/14
CHALLENGES FOR AN EFFECTIVE SOCIAL PARTICIPATION IN
THE DECREE N° 8.243/14
Sonia Nogueira Leitão
Maíra Neurauter
Marcus Vinicius Bacellar Romano
Jovelino Muniz de Andrade Filho
INTRODUÇÃO
1 A CONSTRUÇÃO DO CONTROLE SOCIAL NA SAÚDE: UM
BREVE HISTÓRICO
2 O DECRETO Nº 8243/14 E SUA POLÍTICA NÃO DELIBERATIVA
3 DIMENSÕES JURÍDICAS DO DECRETO Nº 8.243/14
4 O QUE É UM DECRETO E QUAIS OS SEUS LIMITES
5 LIMITES FORMAIS DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA AO
EDITAR NORMAS COM BASE NO ART.84, VI DA CONSTITUIÇÃO
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COTAS PARA O ACESSO AO SERVIÇO PÚBLICO: ANÁLISE


CRÍTICA DA LEI 12990/2014
QUOTAS FOR ACCESS TO PUBLIC OFFICE: A CRITICAL
ANALYSIS OF LAW 12990/2014
Alceu Mauricio Junior
Ana Carolina Gorrera França
Ricky Rocha Nascimento
INTRODUÇÃO
1 DESENVOLVIMENTO
2.1 A Igualdade como Objetivo Fundamental do Estado
2.2 Ação Afirmativa como Solução para a Desigualdade e a Teoria da
Justiça do Reconhecimento e Redistribuição
2.3 Análise da Lei 12.990: a não inclusão dos poderes legislativo e
judiciário
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A CIDADANIA NO ESPAÇO URBANO NO CONTEXTO DO NOVO


CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO
CITIZENSHIP IN URBAN SPACE IN THE CONTEXT OF THE NEW
LATIN AMERICAN CONSTITUTIONALISM
Enzo Bello
Ana Beatriz Oliveira Reis
Gabriel Barbosa Gomes de Oliveira Filho
Juliana Pessoa Mulatinho
Kelly Ribeiro Felix de Souza
Laíze Gabriela Benevides Pinheiro
Marcela Münch de Oliveira e Silva
INTRODUÇÃO
1 DIREITO À CIDADE E A “CIDADE DE EXCEÇÃO”
2 DESCOLONIALIDADE E DIREITO À CIDADE
3 DAS EXPERIÊNCIAS DO CONSTITUCIONALISMO LATINO-
AMERICANO
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

POLÍTICA URBANA E GRANDES PROJETOS PRIVADOS: UM


ESTUDO DE CASO DE LICENCIAMENTO DE SHOPPING CENTER
E SEUS REFLEXOS NA ORDEM JURÍDICO-URBANÍSTICA
URBAN POLICY AND LARGE SCALE PRIVATE PROJECTS:A CASE
STUDY OF LICENCING A SHOPPING MALL AND ITS
IMPLICATIONS WITH THE LEGAL-URBAN ORDER
Laura Marques dos Santos Fernandes Alves 150
Angel Costa Soares
Juliana Leite de Araújo
INTRODUÇÃO
1 IMPACTOS ECONÔMICOS E URBANÍSTICOS DO PROJETO
1.1 Impactos sobre Atividades Econômicas
1.2 Impactos sobre o Sistema Viário
1.3 Impactos sobre a Morfologia Urbana
1.4 Impactos sobre o Patrimônio Edificado
2 O GRAU DE COMPATIBILIDADE DO EMPREENDIMENTO COM O
PLANO DIRETOR DO MUNICÍPIO
3 AS DEFICIÊNCIAS DA AVALIAÇÃO DE IMPACTOS AMBIENTAIS
4 AS IRREGULARIDADES NOS PROCESSOS ADMINISTRATIVOS
DE LICENCIAMENTO: A NÃO OBSERVÂNCIA DO DEVIDO
PROCESSO LEGAL
4.1 Irregularidade na Regulamentação e no Recolhimento da Outorga
Onerosa do Direito de Construir
5 A JUDICIALIZAÇÃO DO CONFLITO EM TORNO DO
LICENCIAMENTO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

PARTE 3 - DIÁLOGOS CONSTITUCIONAIS COM O JUDICIÁRIO


A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM 2014:
SUPREMACIA JUDICIAL, SUPREMACIA LEGISLATIVA E
DIÁLOGOS CONSTITUCIONAIS
THE DECISIONS OF SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL IN 2014:
JUDICIAL SUPREMACY, LEGISLATIVE SUPREMACY AND
CONSTITUCIONAL DIALOGUES
José Ribas Vieira
Margarida Lacombe Camargo
Siddharta Legale
Alexandre de Lucca
Fatima Amaral
Julia Cani
INTRODUÇÃO
1 A SUPREMACIA LEGISLATIVA NA JURISPRUDÊNCIA DO STF
2 A SUPREMACIA JUDICIAL NA JURISPRUDÊNCIA DO STF DE
2014
3 DIÁLOGOS CONSTITUCIONAIS NO STF, A NOVA APLICAÇÃO
DA SÚMULA VINCULANTE 26 E AS AUDIÊNCIAS PÚBLICAS
SOBRE DIREITOS AUTORAIS E DIFERENÇA DE CLASSE
APONTAMENTOS FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A NATUREZA AMBIVALENTE DAS AUDIÊNCIAS PÚBLICAS NO


SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
THE AMBIVALENT NATURE OF PUBLIC HEARINGS ON THE
BRAZILIAN SUPREME COURT
Júlia Massadas
Fabiana de Almeida Maia Santos
Rachel Herdy
INTRODUÇÃO
1 A FUNÇÃO DOS EXPERTS
2 ENTRE FATOS E VALORES: UMA QUESTÃO DE GRAU
3 UM EXEMPLO: QUEIMADAS EM CANAVIAIS
4 ESTUDO EMPÍRICO
4.1 Entendimento da Corte
4.2 Critérios de Inadmissibilidade de Experts
5 NATUREZA AMBIVALENTE DAS AUDIÊNCIAS PÚBLICAS
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

O CONTROLE DA EXECUÇÃO ORÇAMENTÁRIA PELO


JUDICIÁRIO NA IMPLEMENTAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS
FUNDAMENTAIS
THE JUDICIARY’S CONTROL ON BUDGET EXECUTION IN THE
IMPLEMENTATION OF FUNDAMENTAL SOCIAL RIGHTS
Claudio Felipe Alexandre Magioli Núñez
Renata Rogar
Alessandra Almada de Hollanda
Rafael Bitencourt Carvalhaes
Pedro Bastos de Souza
Celso de Albuquerque Silva
Eduardo Garcia Ribeiro Lopes Domingues
INTRODUÇÃO
1 BREVES APONTAMENTOS SOBRE UM MARCO TEÓRICO EM
POLÍTICAS PÚBLICAS
2 PODER JUDICIÁRIO E A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA
3 O CONTROLE DA EXECUÇÃO ORÇAMENTÁRIA PELO
JUDICIÁRIO NA IMPLEMENTAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS
FUNDAMENTAIS
3.1 Âmbito e Objeto de Controle
3.1.1 Direitos fundamentais sociais e orçamento: controle abstrato e
concentrado
O controle concreto
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

O TSE E SUAS RESOLUÇÕES DE CARÁTER NORMATIVO


AUTÔNOMO
THE TSE AND ITS ATONOMOUS REGULATORY RESOLUTIONS
Augusto Sampaio
Edimar Santos
Juliana de Alencar
Lorena Senra
Lucas Pattitucci
Rodrigo Dias
Stella Araújo
Wanny Fernandes
INTRODUÇÃO
1 COMPORTAMENTO INSTITUCIONAL
2 PODER NORMATIVO DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL:
ASPECTOS GERAIS E PROBLEMATIZAÇÃO
3 O DIREITO ELEITORAL, A ATROFIA DO CONGRESSO
NACIONAL E A HIPERTROFIA DO TRIBUNAL SUPERIOR
ELEITORAL
4 CASOS PARADIGMÁTICOS: ADI 3.999-7/DF E A ADI 4946/14
5 O PODER NORMATIVO DO TSE
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A TRANSNACIONALIZAÇÃO DA UMBANDA E SEU IMPACTO NA


SOCIEDADE, NO SISTEMA DE JUSTIÇA E NO DIREITO
CONSTITUCIONAL PORTUGUÊS
THE TRANSNATIONALIZATION OF UMBANDA AND ITS IMPACT
ON SOCIETY, IN THE JUSTICE SYSTEM AND PORTUGUESE
CONSTITUTIONAL RIGHT
Ilzver Matos Oliveira
Kellen Josephine Muniz de Lima
Bruno Alves
INTRODUÇÃO
1 A TRANSNACIONALIZAÇÃO DA UMBANDA
2 A DIVINE MIGRATION E AS RELIGIÕES NEOPENTECOSTAIS
BRASILEIRAS PELO MUNDO
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A AUDIÊNCIA PÚBLICA SOBRE A DIFERENÇA DE CLASSE NO


SUS: RISCOS E PERSPECTIVAS
PUBLIC HEARING ON THE DIFFERENCE TREATMENT IN THE
BRAZILIAN PUBLIC HEALTH SYSTEM: RISKS AND
PERSPECTIVES
Margarida Maria Lacombe Camargo
Siddharta Legale
Ana Caroline Barros
Fernanda Dalbem
INTRODUÇÃO
1 A AUDIÊNCIA PÚBLICA E AS CORRENTES FAVORÁVEIS E
CONTRÁRIAS À DIFERENÇA DE CLASSE
2 A JURISPRUDÊNCIA SOBRE A DIFERENÇA DE CLASSE
ANTERIOR À AUDIÊNCIA PÚBLICA
3 APONTAMENTOS FINAIS. RISCOS E PERSPECTIVAS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LISTA DE AUTORES
PESQUISA EMPÍRICA NO DIREITO1 2
Marcelo Tadeu Baumann Burgos3

Gostaria de agradecer aos organizadores deste fórum pela oportunidade, e


pelo desafio que me foi colocado de fazer não tanto uma reflexão substantiva
sobre o fenômeno da judicialização e de outros fenômenos associados ao novo
lugar do direito e de suas instituições na vida brasileira, mas muito mais a
respeito da pesquisa e da metodologia, ou seja, desse bastidor da sociologia
do direito.
Antes de mais nada, gostaria de dizer que falarei aqui na condição de quem
teve a oportunidade de lecionar durante um bom tempo para estudantes de
Direito; e de quem teve a oportunidade participar de um grupo de pesquisa
muito ativo e pioneiro no campo das Ciências Sociais desde meados dos anos
de 1990, e que se dedicou, inicialmente, a estudos sobre o poder judiciário;
foi nesse contexto que identificamos a presença do fenômeno da judicialização
da política e das relações sociais no Brasil. Esse grupo, coordenado por Luiz
Werneck Vianna, atualmente professor do Departamento de Ciências Sociais
da PUC-Rio, mais tarde criaria o Centro de Estudos de Direito da Sociedade -
o CEDES, inicialmente vinculado ao IUPERJ, e agora abrigado na PUC-Rio.
Importante considerar, no entanto, que desde sua origem esse grupo conseguiu
uma rara constituição interdisciplinar, contando com uma generosa
colaboração de magistrados ligados à Associação dos Magistrados
Brasileiros.
O fato é que desde o impulso original não paramos mais de realizar
pesquisas, sempre empíricas, a respeito do Judiciário, e de outras instituições
do direito como o Ministério Público, bem como sobre o acesso à justiça e
aquilo que chamamos das “novas arenas da democracia” constituídas no
Brasil como efeito da judicialização da política e das relações sociais.
Portanto, é a partir desse lugar, e com base nessa experiência, que pretendo
refletir sobre a questão metodológica e epistemológica encerrada na
sociologia do direito. Como professor de Sociologia, como muitos dos meus
colegas, costumamos lecionar em cursos de Direito na PUC e em outras
universidades e, muito frequentemente, nossa participação tem sido
requisitada para lecionar disciplinas de metodologia. E se aqui me reporto
mais uma vez aos anos de 1990, é para melhor enfatizar que naquele momento
quase não se fazia a rigor pesquisa acadêmica na área do Direito. A formação
em Direito era muito dominada pelo projeto de preparar seu estudante para o
desempenho das funções e dos papéis mais tradicionais do campo do Direito.
No entanto, naquele período começava a ganhar força o movimento realizado
pela CAPES, e pela própria OAB, de estimular a criação e o fortalecimento
dos programas de pós-graduação em Direito, que são tardios quando
comparados com os programas de Ciências Sociais e de outras áreas das
ciências humanas. Havia um esforço, portanto, de se criar esse profissional
novo, que é o pesquisador do Direito. Assim, o que parecia à época alguma
coisa ainda muito fora do horizonte dos estudantes de Direito, vai pouco a
pouco sendo fomentado, dando lugar a esse novo sujeito, esse novo
personagem. E penso que esse movimento também refletia a nova importância
que o Direito assumia na vida brasileira.
O que pretendo afirmar é que malgrado a mudança profunda que a
Constituição de 88 havia promovido no lugar do direito na vida brasileira, só
gradualmente ela foi sendo sentida pelas Faculdades de Direito. Quer dizer,
inicialmente manteve-se o mesmo tipo, o mesmo cardápio, o mesmo repertório
que vinha sendo praticado antes dos anos 80 ou até 1988. Mas pouco a pouco
foi sentida essa necessidade de se criar um outro personagem no campo do
Direito, que é o pesquisador. Então, é nesse contexto que nós, sociólogos,
passamos a ser frequentemente convocados para essa tarefa de dar cursos de
metodologia. Isso nos colocava sempre diante de um público de alunos pouco
prevenidos para a discussão epistemológica e metodológica. Ao contrário das
Ciências Sociais, que para existir tem antes que resolver o problema da
validade do conhecimento que ela produz, pois sei que meu conhecimento é
sempre fruto da minha relação com os valores, do que se segue o conhecido
debate a respeito da neutralidade axiológica e da validade do conhecimento,
no Direito esse tipo de perspectiva não era considerada fundamental e esse
tipo de debate não era estimulado nas suas salas de aula.
No caso das Ciências Sociais, entretanto, essa é uma questão decisiva para
a própria existência da Sociologia e da Antropologia. Por exemplo, o
antropólogo que vai a campo estudar um determinado grupo o faz a partir de
quais critérios? Dos seus preconceitos? Ora, como se sabe, a crítica ao
etnocentrismo e ao evolucionismo fazem parte da própria fundação da tradição
da Antropologia, bem como da Sociologia. Para o Direito, contudo, essa
questão epistemológica fundamental não era praticada, e por isso nós nos
defrontávamos com estudantes muito pouco prevenidos para essa discussão em
torno do que poderíamos denominar, para evocar um termo feliz de Bourdieu,
de vigilância epistemológica. No Direito, diversamente, parecia prevalecer
uma cultura muito positivista, não no sentido do positivismo jurídico, mas no
sentido epistemológico, no sentido da crença de que a ciência produz verdades
porque fruto das pretensas vantagens cognitivas da ciência em face de outras
formas de cognição.
Como professor de metodologia, trabalhávamos o tempo todo no sentido
de combater essa concepção positivista para com isso abrir espaço para uma
reflexão sobre o sujeito do conhecimento ele mesmo, ponto de partida para
qualquer debate metodológico. Um dos sintomas mais comuns da falta de
preparo para o debate propriamente metodológico era uma certa tendência,
possivelmente aprendida com os próprios professores, de se reduzir a
metodologia às técnicas de pesquisa. Era muito comum receber aquele tipo de
projeto em que o sujeito coloca como metodologia o uso de entrevista, de
pesquisa bibliográfica, ou uso de questionário, quando do ponto de vista da
metodologia essa deve ser a última questão a ser resolvida. Não por acaso,
tampouco era raro, que se reduzisse o debate metodológico às normas da
ABNT.
Da perspectiva corrente no campo das Ciências Sociais, o debate
metodológico começa no epistemológico, no sentido de que se deve refletir
sobre o lugar do sujeito do conhecimento e da sua relação com os valores. Em
seguida, e como desdobramento dela, entra em cena o problema da validade
do conhecimento. Quanto a isso, pode-se afirmar que a resposta weberiana
tem sido a mais influente no campo das ciências sociais. Nela, o que está em
jogo é justamente o oposto da busca da neutralidade, mas antes a explicitação
dos valores que norteiam o processo de pesquisa, desde as perguntas que a
orientam até a forma como se define um recorte – que é sempre unilateral - da
realidade estudada. Com isso, o problema da neutralidade axiológica
transfere-se para o que Weber define como o teste do rigor lógico do
conhecimento, que remete aos cuidados nos procedimentos de construção da
pesquisa, e à permanente vigilância epistemológica, isto é, à vigilância quanto
aos efeitos da posição do sujeito e das condições em que se realiza a pesquisa
sobre o conhecimento por ela produzido. A imagem formulada por Zygmunt
Bauman é a esse respeito bastante feliz: “Na pesquisa sociológica, diz ele, a
cozinha tem que estar sempre aberta à visitação.” Pois a transparência em todo
o processo de produção do conhecimento é fundamental para a garantia do
rigor lógico, da delimitação do problema, passando pela definição da
estratégia metodológica, a realização da pesquisa, até a interpretação dos seus
resultados.
A hora da definição do objeto da pesquisa é também a da definição da
perspectiva a partir da qual se recorta e se ilumina determinado tema, por isso
a dimensão epistemológica está sempre implicada na metodológica; e, segundo
acredito, isso que vale para as Ciências Sociais vale também para o campo do
Direito. Pois o objeto não está dado, não é achado na rua. O objeto não se
confunde com o tema que está no dia-a-dia dos jornais, não é aquilo que está
nos conflitos, nas grandes questões que envolvem o judiciário, nos
movimentos sociais, o que for. O objeto é sempre uma elaboração que
pressupõe distanciamento em relação à “rua”. Ele pressupõe sempre um
afastamento em face desta, daquilo que aparece de diferentes maneiras no
debate público. Esse distanciamento se conquista no momento em que você de
algum modo está equacionando o problema do lugar do sujeito do
conhecimento e da sua relação com os valores. Eu gosto muito de citar um
exemplo dado por Florestan Fernandes, um dos grandes sociólogos
brasileiros, talvez o mais importante herói institucionalizador da Sociologia
no Brasil. Nos anos de 1940, Florestan faz um estudo sobre o negro em São
Paulo, e em numa reflexão autobiográfica confessa que para fazer aquele
estudo assumiu “o ponto de vista do negro”. Ora, alguém poderá objetar que
isso enviesa a sua pesquisa, subtraindo-lhe validade. Ora, mas se é verdade
que essa opção epistemológica impõe limites à sua pesquisa, é justamente ela
que permite que Florestan dialogue criticamente com a obra de Gilberto
Freire, em especial com seu “Casa Grande & Senzala”, que teria sido
construída sob a perspectiva da Casa Grande. Portanto, quando Florestan
afirma que assumiu o ponto de vista do negro, está na verdade assumindo que
adotou uma perspectiva inovadora, que o obrigou a buscar formas
metodológicas de se colocar no lugar do negro. A partir daí precisou
mobilizar técnicas de pesquisa para fazer o negro refletir e falar sobre o
preconceito, porque esse tema não aparecia espontaneamente; e não seria com
um questionário que o tema iria aparecer. Ao contrário, ele percebeu que em
um primeiro contato os negros entrevistados tendiam a reiterar a ideia de que
vivíamos em uma democracia racial, e que eles não sofriam com o
preconceito. Mas a perspectiva epistemológica adotada, de assumir o “ponto
de vista do negro”, acaba redirecionando todo o procedimento de pesquisa,
levando-o a abandonar as suas tentativas iniciais de aplicar um questionário e
a criar, na biblioteca municipal de São Paulo, encontros semanais com negros
de diferentes classes sociais, conseguindo com isso construir um tipo
específico de diálogo com roteiro, que mais se parece com o que atualmente
se chama de grupo focal. Florestan relata que com esse procedimento,
gradualmente os negros começam a elaborar vivências de preconceito que não
vinham sendo percebidas e muito menos elaboradas antes daquela pesquisa.
Com esse procedimento de pesquisa, um começa a provocar o outro, e os
relatos de preconceito começam a aparecer.
O que eu estou querendo dizer com esse exemplo? É como se Florestan
estivesse falando: “eu não pretendi ser neutro, assumi uma posição
epistemológica e a partir desse lugar pude desenvolver um conjunto de
procedimentos metodológicos que me permitiram produzir conhecimento sobre
muitos aspectos que se encontravam bloqueados pela ideologia da democracia
racial”. Portanto, acredito que com esse exemplo fique mais fácil de se
compreender que o rigor lógico da pesquisa não deriva da pretensão de
neutralidade, mas do modo como se elabora os instrumentos de pesquisa, de
como eles são submetidos ao teste empírico, e de como a partir dos dados
empíricos que eles permitem produzir se extraem conclusões que afinal
estarão sempre referidas aos limites das condições de realização da pesquisa.
Além disso, penso que ele também deixa mais claro como a técnica adotada na
pesquisa deve ser a última coisa que se deve definir quando se desenha a
estratégia metodológica de uma pesquisa, pois é preciso resolver antes o
problema da relação entre o sujeito e o objeto da pesquisa, já que o segundo
está necessariamente ligado ao primeiro. No exemplo utilizado, o objeto da
pesquisa não foi exatamente o negro, mas muito mais as bases sociais do
preconceito racial, pois, como se viu, a posição do pesquisador não podia ser
indiferente à delimitação do objeto.
Normalmente, os pesquisadores menos treinados não estão prevenidos
para as armadilhas contidas na delimitação do objeto, e o problema
epistemológico permanece invisível, como um ponto cego; por isso a
importância da vigilância epistemológica. Como disse antes, o objeto da
pesquisa é sempre construído, ou, como dizia Bourdieu, “o objeto é
conquistado”; e a ideia de conquista é muito oportuna pois a formulação de um
projeto é um trabalho complexo de criação, que exige muita reflexão; e a dica
número um para realizá-lo é ter clareza de que esse objeto não pode ser
entendido como uma derivação imediata dos problemas que estão no dia-a-dia
do cotidiano, ele é sempre, em qualquer ciência, construído pelo pesquisador.
Mesmo na física, como ensinou há muito tempo Thomas Kuhn, a natureza
levada ao laboratório é fruto da negociação entre os cientistas. Quando não se
tem consciência disso, corre-se o risco de confundir a conhecimento
produzido pela ciência com a realidade ela mesma, e com isso talvez se perca
a capacidade de interpelar a própria realidade.
Mas quando se pensa na especificidade da pesquisa no campo do Direito,
penso ser necessário considerar um outro aspecto que também não tem nada de
trivial, principalmente para estudantes que estão tentando construir essa
trajetória de pesquisador na área do Direito. Trata-se da compreensão de que
o campo do Direito é muito forte. Eu, como pesquisador da área de Ciências
Sociais, portanto um forasteiro que frequentou muito esse campo, aprendi a
identificar algo que para vocês que fazem parte do campo é muito
naturalizado. O mundo institucional do Direito é muito poderoso.
Um conhecido texto de Pierre Bourdieu, fala dessa força do Direito, e
talvez entre nós a força do campo do Direito seja ainda mais forte que na
França. Um sintoma disso que sempre me impressionou muito é de como
rapidamente as Faculdades de Direito conseguem desenvolver hábitos
intelectuais nos seus estudantes.
Pois bem, estou sustentando a hipótese de que essa força do Direito, ou
melhor, do campo do Direito, torne o lugar do pesquisador em Direito
particularmente difícil, posto que sufocado pela concepção de pesquisa
jurídica aplicada à praxis jurídica propriamente dita.
Por exemplo, como professor de metodologia para estudantes de Direito,
demorei muito a entender que alguns estudantes quando ouviam a palavra
“tese”, não a ouviam no sentido que eu usava, de síntese de uma pesquisa,
desenvolvida a partir de uma hipótese que você leva a campo, e cujos
resultados orientam as conclusões. Diversamente, a palavra tese era uma
espécie de posição pré-existente à pesquisa; e nesse caso a pesquisa passava a
ser entendida como a busca de elementos para a formulação de uma
argumentação jurídica, mobilizando a doutrina e a jurisprudência, para melhor
sustentá-la. Então era uma concepção de pesquisa completamente diferente da
que eu trazia porque para ela a verdade já estava pré-estabelecida. Por isso,
sua atenção se voltava para a pesquisa necessária à sua argumentação. Ao
passo que para os cientistas sociais o projeto da pesquisa deve ser entendido
como um esforço de formulação de perguntas que somente poderão ser
respondidas mediante pesquisas empíricas. Portanto, no caso das ciências
sociais, e isso vale para suas diferentes matrizes teóricas, marxistas ou
weberianas, durkheimianas ou funcionalistas, só é possível chegar à
sustentação de teses depois de testadas as hipóteses ou, para utilizar uma
linguagem menos cientificista, depois de interpelado os problemas ou as
questões formuladas no projeto. Desnecessário acrescentar que, no caso do
Direito, diversamente do que é praxe em Ciências Sociais, esse tipo de
concepção fazia com que o projeto de pesquisa estivesse orientado para a
lógica da exposição e não tanto para a lógica da investigação.
Então, como bem demonstra Bourdieu no citado texto, o campo do Direito
tende a criar essa dificuldade adicional para quem quer realmente construir
esse outro “habitus” de pesquisador do Direito, pois para isso ele precisará
construir um distanciamento em face do próprio Direito, o que se mostra
extremamente difícil exatamente pela força do campo do Direito.
Um bom truque para a construção desse distanciamento é compreender que
o processo de conquista do objeto passa pela capacidade de se construir um
diálogo com o debate bibliográfico, o chamado “estado das artes”. Eu sei que
é tudo de certo modo conhecido por vocês. Mas é sempre bom lembrar aquela
máxima ética usada por Isaac Newton: “Tudo o que vi foi porque subi no
ombro de gigantes”; trata-se de uma homenagem, claro, aos astrônomos e
matemáticos que o antecederam, mas é, sobretudo, uma forma de dizer que a
ciência é uma atividade coletiva. E isso, que é algo fundamental para a gente
ter clareza da diferença entre ciência e arte, por exemplo, parece não ser tão
nítido no campo do Direito; porque dizer que a ciência é uma atividade
coletiva é admitir que o nosso trabalho só faz sentido em diálogo com outros
que também estão interpelando problemas, fenômenos que você está ajudando
a compreender. Dizendo de outro modo: que as próprias perguntas, e portanto
dos objetos, que animam a pesquisa estão referidas ao “estado das artes”.
Talvez isso seja trivial, mas a experiência me fez crer que isso nem sem
sempre é bem compreendido pelo iniciante em pesquisa. E aqui eu estou
sempre me reportando a esse aluno de doutorado, de mestrado, e mesmo o de
graduação, que está se iniciando na pesquisa. Ele fala: “mas professor, não
tem nenhum trabalho escrito sobre o tema que vou estudar”; porque ele está
procurando uma coisa muito semelhante ao assunto que ele quer estudar; e aí
temos que demonstrar que, embora seja necessário considerar outras pesquisas
sobre o mesmo objeto que o seu, o mais importante é levar em conta que o
diálogo deve se dar em um nível mais abstrato, e com isso chegamos a um
ponto fundamental, que é o da relação entre teoria e empiria.
A rigor, não existe empiria sem teoria. O empirismo, o empilhamento de
dados, e a ideia de que os dados falam por si, sempre traz um argumento
teórico oculto, para a qual pode-se até não estar prevenido, mas que
necessariamente está ali, informando a perspectiva da pesquisa. Então, é muito
importante ter clareza e saber mapear no debate bibliográfico os partidos
teóricos, e as controvérsias fundamentais do debate, mesmo que o trabalho não
tenha a pretensão de interpelar esse debate teórico, pois isso, em geral, é
tarefa para teses de doutorado. Aos meus orientandos, gosto de falar assim:
‘mesmo que você não vá discutir lá no andar de cima é preciso reconhecer, é
preciso mapear e ter clareza que de algum modo você está se filiando a uma
determinada corrente teórica’. Penso que isso é uma exigência que também tem
a ver com a vigilância epistemológica. Você não precisa discutir com
Habermas, mas você precisa saber, por exemplo, com quem Habermas está
dialogando, o que pode ser acessível, por exemplo, por meio de comentaristas
da obra do autor. E isso será importante para uma delimitação mais precisa do
objeto da pesquisa.
Por outro lado, a rigor não existe pesquisa sem que se mobilize alguma
empiria. Pois também é ilusão pensar em uma concepção que se resolva em
debate puramente teórico. Entenda-se pesquisa empírica não apenas como a
pesquisa de campo ou o levantamento de dados quantitativos. A empiria pode
ser o estudo sobre doutrina ou sobre jurisprudência, por exemplo. Ou mesmo
um material bibliográfico de um debate entre filósofos. Empiria não quer dizer
que se tenha que lidar com dados em sentido documental, estatístico, ou textual
oriundo de entrevistas; ou seja, não importa de que empiria se está falando, o
importante é ter em mente que a ciência pressupõe sempre alguma articulação
entre teoria e empiria, e aqui estou fazendo uma consideração de alcance geral
que, acredito, inclui também a ciência do Direito.
Claro que para fazer essa última afirmação eu devo admitir que estou
considerando como ciência, sua concepção moderna, filha da física
newtoniana. E nisso, acompanho a definição de Max Weber, de que a ciência
moderna é resultado de uma combinação do conceito, que é uma ferramenta
intelectual inventada pelos gregos, e da experiência racionalista desenvolvida
no Renascimento, voltada para a experimentação empírica.
Mas se a articulação entre a teoria e a empiria está no coração da
atividade científica, é preciso acrescentar que também aqui a equação entre
essas duas dimensões está sempre condicionada pelo contexto, pois, como
Marx já ensinara, nossa capacidade de fazer perguntas está sempre em algum
nível condicionada pelo contexto.
Assim, para passarmos para o próximo ponto dessa minha intervenção,
considero necessário levar em conta que quando se pensa na pesquisa na área
do Direito é impossível não considerar que há uma espécie de intercâmbio, de
intercurso entre o debate teórico e a realidade nas suas diferentes dimensões.
Quando o Brasil, a partir de 1988 confere um outro “lugar” ao Direito
Constitucional , um outro “lugar” ao Supremo, e um outro “lugar” ao
Judiciário de uma maneira geral, é evidente que isso pouco a pouco vai
gerando uma nova agenda de perguntas e de problemas, que não se colocavam
antes.
Mesmo correndo o risco de “chover no molhado”, porque deve ser trivial
para vocês, acho importante enfatizar que o que ocorre com o Direito, a
mudança do “lugar” do Direito na vida brasileira, não deixa de conter um
claro elemento de continuidade, que fica evidente quando se pensa que o
Direito sempre foi central na formação brasileira: antes de existir um país,
existiu uma Constituição, uma ordem jurídica. Como se costuma dizer, aqui o
Estado precedeu a nação, e talvez por isso, historicamente, o Direito entre nós
sempre se confundiu com o Estado.
Não por acaso, antes dos anos de 1980, era comum a esquerda brasileira
usar o bordão: “direito, direita”. Pois o Direito estava associado à ordem, à
coerção, e ao controle que vêm de cima e que desaba sobre uma sociedade
inteiramente mergulhada em práticas que dialogam pouco com o Direito: “o
Brasil real versus o Brasil formal”, lembram disso? Fórmula que norteia muito
do debate do pensamento social brasileiro. Pegue lá um Oliveira Viana, por
exemplo.
Portanto, esse “lugar” do Direito como linguagem do Estado definiu a
agenda de perguntas que nós fazíamos ao Direito. E isso de certa forma
bloqueou o desenvolvimento de uma agenda de pesquisa sobre o direito e de
suas instituições a partir da perspectiva da Sociologia e da Ciência Política.
Isso é um dado interessante da história intelectual do Brasil; porque não é
assim em outros países, não é assim nos Estados Unidos, não foi assim na
Europa. Aqui, a Sociologia deixou por muito tempo o estudo do direito quase
exclusivamente a cargo dos juristas. Em um dado momento não existia mais
Sociologia do Direito, apenas a Sociologia Jurídica. E nada mais estranho
para um sociólogo do que pegar um manual de Sociologia Jurídica, porque
logo se percebe que é uma sociologia instrumentalizada, a serviço da
retificação de uma forma específica de organização do Direito e de uma certa
configuração de poder; uma sociologia manualizada, esterilizada em formulas
que no final cancelam aquilo que é o elemento mais interessante da sociologia,
seu ethos questionador e quase sempre iconoclasta. É por isso que a
Sociologia do Direito é um território que precisou ser reconquistado na vida
universitária brasileira, e isso a partir de embates no interior do próprio
terreno das Ciências Sociais. E penso que nesse processo há muito a se
avançar no sentido de se fortalecer uma perspectiva interdisciplinar
articulando de forma criativa o campo do Direito e o campo das Ciências
Sociais. A favor desse tipo de perspectiva, minha própria experiência com o
grupo interdisciplinar criado sob a liderança de Luiz Werneck Vianna, é um
bom testemunho.
Para se ter uma ideia, quando começamos a fazer nossas pesquisas nos
anos de 1990, não havia na ANPOCS - Associação Nacional de Pós-
Graduação em Ciências Sociais -, que é o principal lugar de encontro dos
pesquisadores dessa área, uma única mesa sobre o Judiciário, por exemplo.
Naquele contexto, o debate travado pela ciência política e pela sociologia
política, girava basicamente em torno do Legislativo e do Executivo, ou ainda
sobre questões relacionadas à moralidade, e ao costume, permanecendo o
Direito propriamente dito como um objeto quase que intransponível. Pouco a
pouco é que se foi abrindo um espaço nas Ciências Sociais e, com isso, sendo
formuladas novas perguntas que poderiam ser formuladas a partir do campo do
Direito, e da sociologia jurídica.
Mas o deslocamento no interior das Ciências Sociais somente foi possível
a partir do momento em que o Direito passou a ser uma língua da sociedade, e
não mais monopólio do Estado. Trata-se de um deslocamento profundo, o
Direito como arma do cidadão. Os mais jovens aqui já cresceram nesse mundo
criado por 88, mas é preciso sempre lembrar que não há nada de natural ou de
inevitável nisso, isto é, na ideia de cidadania, de um cidadão armado de
direitos, sujeito de direitos. A criança, por exemplo, como sujeito de direitos,
o meio-ambiente, a própria árvore e os animais entendidos como portadores
de direitos. A ideia de direitos coletivos e difusos e, sobretudo, a ideia de um
Direito Constitucional fazer parte da nossa vida, nada disso é trivial.
O fato é que isso levou a uma mudança profunda, a um deslocamento na
própria agenda de questões que se tornariam centrais à sociologia da vida
brasileira. E acho que agora já se pode falar de uma agenda muito abrangente
da sociologia do direito, que inclui questões que vão desde a formação do
jurista e as formas de recrutamento dos profissionais que atuam nas suas
instituições como o Judiciário, o Ministério Público, e a Defensoria Pública,
até estudos relacionados ao acesso ao direito e à justiça, que inclui dimensões
como a criação e a aplicação do direito, material e processual. Sob esse
aspecto, é possível afirmar que essa emergente sociologia do direito responde
a uma sociedade que cada vez mais interpela e precisa saber sobre o
funcionamento do campo do Direito. A discussão sobre o Direito Processual,
por exemplo, não pode ser travada somente no campo do Direito, pelos
juristas. Embora eles sejam os principais intelectuais que conduzem essa
discussão, o tema do acesso a direitos e do acesso à justiça, e da criação e
aplicação do direito, passam a ser incessantemente interpelados pelas
Ciências Sociais.
Quem acessa? Como acessa? Quando do início de nossas pesquisas na
área do Direito, os Juizados Especiais estavam sendo implantados no Brasil e
especialmente no Rio de Janeiro, contando inclusive com o nosso entusiasmo.
Na época, aliás, chegaram a ser implantados juizados em favelas mas a
experiência durou apenas dois ou três anos, sob o pretexto de que a população
da favela não procurava o Juizado, e que quem procurava o Juizado era o
morador dos bairros vizinhos às favelas, de classe média. Nisso abortou-se
uma experiência interessante de ampliação do acesso à justiça no Rio de
Janeiro. Nossa impressão é a de que essa interrupção decorreu de um vazio de
debate que a pesquisa na área da sociologia do direito teria ajudado a evitar.
Outro tema importante é o da efetividade das decisões judiciais. Fala-se
muito e nós ouvimos muito isso da parte de juízes e promotores, da frustração
com o fato de Ações Civis Públicas, por exemplo, não alcançarem
desdobramentos concretos, malgrado uma sentença judicial favorável. A ideia
do direito Constitucional como um direito meramente simbólico, que não se
transforma em realidade e não consegue mudar as práticas, é um outro
exemplo do problema da efetividade. Começamos a estudar isso, e
formulamos o conceito de “Decantação do Direito Constitucional», justamente
para tornar possível enxergar uma dinâmica de efetividade menos visível que
a simples materialização de uma decisão judicial, mas de grande relevância,
na medida em que iluminava o quanto a presença crescente do Judiciário na
vida brasileira, para além do alcance pontual de cada decisão judicial,
permitia instilar a cultura de direitos e muito especial os princípios
constitucionais na vida brasileira.
Finalmente, estudamos muito o tema da judicialização, de como a
sociedade brasileira rapidamente se apropria das novas formas de acesso
criadas em Constituição de 88. No caso das ações diretas de
inconstitucionalidade, por exemplo, já em 1995, por exemplo, constatava-se
uma avalanche de ADIN’s Estaduais e Federais, ou seja, desde nossa primeira
sondagem identificamos que o recurso às adins tornara-se uma ferramenta
importante e rotineira da judicialização do conflito político.
No caso, um dos fenômenos que a gente detectou no início da nossas
pesquisas, foi que o PT, à época o principal partido da oposição, tornara-se o
maior responsável por ADIN’s. Ora, aquele partido de esquerda, que tinha
uma história vinculada aos movimentos sociais, consagrava e legitimava esse
instrumento de judicialização, trazendo o Judiciário para participar de
processos decisórios que em uma visão mais pura da esquerda jacobina
deveria caber exclusivamente ao Legislativo. Então, por meio dessa pesquisas
começamos a identificar mutações muito interessantes no lugar do Direito na
vida brasileira; e isso faz com que em pouco tempo todo esse universo de
pesquisas passasse a ocupar um lugar central na agenda das Ciências Sociais.
Para concluir, o Professor Ribas me estimulou a falar especificamente das
pesquisas quantitativas. Sobre isso, primeiro é importante dizer o óbvio: que a
pesquisa quantitativa é fundamental. Não existe democracia de massa sem um
investimento contínuo na produção e na disponibilização de dados, disso
depende a transparência, mas também as condições para realização de
pesquisas capazes de produzir conhecimento sobre processos cada vez mais
complexos. Quando começamos a fazer pesquisa na área do Direito, o
Judiciário ainda não tinha informatizado seu sistema de dados, hoje
informatizou, mas ainda não atende plenamente às necessidades da pesquisa.
De um modo geral, é uma informatização muito orientada para medir
produtividade, e isso eu acho que tem que mudar. Em outros países, na França,
nos Estados Unidos, para lembrar de duas referências que eu conheço um
pouco melhor, o sistema de dados está muito mais preocupado em atender ao
pesquisador do que se verifica aqui, e talvez fosse um pouco ridículo lembrar,
aqui, que como isso despreza-se o papel que nós, enquanto universidade,
temos de produzir conhecimento para de alguma maneira enriquecer o debate
público. E esse debate público não pode ser enriquecido somente com os
dados de produtividade, então, esse é um ponto importante.
Como eu disse: pesquisa quantitativa é fundamental, e o próprio sistema
judicial deveria internalizar a cultura de uma gestão norteada por pesquisas
quantitativas, tal como se vê, por exemplo, nos Estados Unidos e na França. É
indispensável usar dados quantitativos para pensar a atuação de uma Corte, de
uma vara ou de um Juizado, porque se não, o grande risco que se fique
enxugando gelo, atuando somente na face mais visível do conflito, quando ele
já se transformou em um litígio judicial. Caso levasse mais a sério a pesquisa
quantitativa, a administração judicial poderia atuar de forma mais preventiva,
reduzindo com isso a própria explosão da demanda. Atualmente, fizemos
algum avanço na produção de dados, especialmente graças aos esforços do
Conselho Nacional de Justiça, mas ainda estamos longe do necessário para
podermos produzir uma massa crítica à altura da importância que essas novas
arenas de conflito constituídas em torno do Judiciário e do Ministério Público
alcançaram na vida brasileira.
Ainda sobre esse tema da pesquisa quantitativa é importante ressaltar que
não se deve estabelecer uma fronteira muito rigorosa entre as estratégias de
pesquisa quantitativa e qualitativa. O melhor é pensa-las como
complementares. Nós, por exemplo, fizemos algumas pesquisas quantitativas
que serviram para mapear os contornos mais gerais de determinados
fenômenos. Boa evidência disso foram as pesquisas sobre Ação Civil Pública.
Na época em que a realizamos, meados dos anos de 2000, dizia-se que a Ação
Civil Pública tinha perdido muito da sua importância, e que teria sido
monopolizada pelo Ministério Público. Nossa pesquisa, contudo, indicava
uma realidade um pouco diferente, com maior presença relativa de entidades
da sociedade civil no polo ativo da ação do que se costumava acreditar. Mas,
no fundo, somente quando realizamos uma abordagem qualitativa da questão
conseguimos enxergar dinâmicas que a pesquisa quantitativa não permitiria
identificar, na medida em que revelamos que por trás de boa parte das ações
promovidas pelo Ministério Público havia uma rede de atores da sociedade
civil. Neste caso, o dado estatístico escondia uma trama que só a abordagem
qualitativa foi capaz de revelar.
Outra situação na qual a pesquisa quantitativa e a qualitativa devem ser
concebidas como interdependentes envolve a importância relativa que os
dados podem ter quando se trata de uma análise do impacto de determinadas
ações judiciais. Por exemplo, em nossas pesquisas, muitas vezes uma única
Adin, ou uma única Ação Civil Pública, apesar de insignificantes do ponto de
vista estatístico tinha enorme relevância pelo seu impacto. Então, o que nossa
experiência em pesquisa indica é que o estudo do campo do Direito precisa
muito de pesquisadores capacitados para articular técnicas de pesquisa
quantitativa e qualitativa.
Pois se é verdade que a metodologia dos estudos de caso, especialmente
dos hard cases, estão consagradas no campo do Direito, é importante que elas
estejam sempre articuladas com mapeamentos que permitam situa-las em um
conjunto mais amplo. Então para concluir, eu diria que esse tipo de problema
ou de desafio inerente à pesquisa na área do Direito é justamente o que este
Fórum está se propondo a enfrentar, de maneira continuada e sistemática. Por
isso agradeço muito pela oportunidade que o convite para dele participar me
propiciou no sentido de desenvolver uma reflexão articulando minha condição
de pesquisador e de professor de Sociologia do Direito. Espero não ter
frustrado vossas expectativas. Contem sempre com meu entusiasmo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS4
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Editora Zahar, Rio de Janeiro, 2010.
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________________CHAMBOREDON, Jean Claude & PASSERON, Jean
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Editora Vozes,2004
BURGOS, Marcelo Baumann – A Constituição de 1988 e a transição como
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FERNANDES, Florestan – “Florestan Fernandes: Esboço de uma Trajetória”.
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KUHN, Thomas – A Estrutura das Revoluções Científicas. Editora
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Duas vocações. Editora Cultrix, São Paulo, 1968, 2ª edição.
___________ Sobre a Teoria das Ciências Sociais. Editora Moraes, São
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WERNECK VIANNA, Luiz, CARVALHO, Maria Alice R., PALÁCIOS,
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WERNECK VIANNA, Luiz, BURGOS, Marcelo - “Entre Princípios e Regras:
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In: Luiz Werneck Vianna (org.) A Democracia e os Três Poderes no Brasil.
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__________, SALLES, Paula (2007) “Dezessete Anos de Judicialização da
Política”. Tempo Social, vol.19, n.2, São Paulo, USP.

1 Palestra de abertura do VI Fórum de Grupos de Pesquisa em Direito Constitucional e em Teoria do


Direito, proferida no dia 1º de novembro de 2014 na sede da Puc-Rio.
2 Essa palestra foi transcrita por Maria Clara Borges Grippa de Souza, pesquisadora do Observatório do
Judiciário Brasileiro – OJB, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade Nacional
de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD/FND/UFRJ).
3 Graduado em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Mestre em
Planejamento Econômico e Políticas Públicas pelo Instituto de Economia Industrial da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Doutor em Sociologia pela Sociedade Brasileira de Instrução
(SBI/IUPERJ). É professor do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro (Puc-Rio), coordenador do Curso de Especialização em Sociologia Política e Cultura da
PUC-Rio e coordenador de graduação do mesmo Departamento.
4 Leituras lembradas ao longo do texto da palestra.
PARTE 1 – CONSTITUCIONALISMO E FATOS
COMO MATRIZES DE CONSTRUÇÃO DO DIREITO
TEORIAS SISTÊMICAS, COMPLEXIDADE E O
SISTEMA CONSTITUCIONAL DE ADRIAN
VERMEULE5
SYSTEMIC THEORIES, COMPLEXITY, AND THE
ADRIAN VERMEULE’S CONSTITUTIONAL
SYSTEM

Carlos Bolonha6
Henrique Rangel7
Igor de Lazari8
Wanny Fernandes9
Gustavo Costa10

RESUMO
O presente artigo parte de um dos problemas recorrentes no direito constitucional brasileiro: a referência a
categorias genéricas e abstratas, como “ordem constitucional” sem o necessário embasamento teórico.
Um paradigma sistêmico permite análises em objetos de elevado nível de agregação e, por isso,
investigam-se as propostas da denominada teoria geral dos sistemas. Neste fórum transdisciplinar,
destacam-se o reducionismo, o holismo e, mais recentemente, a teoria dos sistemas complexos.
Sustentando que a ordem constitucional deva ser observada enquanto sistema, o objetivo do presente
trabalho é demonstrar como a vertente complexa representa o paradigma mais apropriado para embasar
tais análises.

PALAVRAS-CHAVE
Desenhos Constitucionais; sistema constitucional; sistemas complexos.

ABSTRACT
This article starts from a current problem in the Brazilian constitutional law: the reference to general and
abstract categories, such as “constitutional order” without the necessary theoretical background. A
systemic paradigm allows research on objects within a high level of aggregation. Thus, we investigate
proposals in the general systems theory. In this interdisciplinary forum, reductionism, holism, and more
recently, the theory of complex systems stand out. Supporting the hypothesis that the constitutional order
should be observed as a system, our objective is to demonstrate how the theory of complex systems is the
most appropriate scientific paradigm to support such analyzes.

KEYWORDS
Constitutional Design; constitutional system; complex systems.

INTRODUÇÃO
A ordem constitucional democrática parece se revestir de um caráter
dinâmico na atividade mantida pelas instituições e pelos indivíduos que atuam
neste cenário. Muitos estudos e pesquisas em direito constitucional,
especialmente no meio acadêmico brasileiro, desconsideram este caráter
dinâmico existente, capaz de associar particularidades da Constituição ou de
outras instituições singularmente analisadas a propriedades que podem ser
extraídas somente de elementos externos a tais objetos científicos. Em outras
palavras, estudos específicos são utilizados como base para extrair conclusões
abrangentes, dirigidas a objetos como a “ordem constitucional”. Desse modo,
quando o objeto das pesquisas, considerado de modo genérico, é a “ordem
constitucional”, um comum – mas também grave – problema costuma se
apresentar: a desconsideração do caráter dinâmico da ordem constitucional.
Este problema observado na pesquisa em direito constitucional, e
particularmente em seu correspondente brasileiro, tem natureza eminentemente
científica e, evidentemente, pode refletir nos resultados e nas conclusões
supostamente obtidas. Considerando esta questão, a hipótese sustentada pelo
presente trabalho é a seguinte: existe caráter dinâmico na ordem constitucional
porque este deve ser apreciado enquanto um sistema.
O sistema constitucional seria, genericamente, um objeto científico em que
a Constituição e as instituições que desempenham funções constitucionais
estão interconectadas. O problema apontado, pois, é a não observância de um
caráter sistêmico ao redor da ordem constitucional. Para que uma pesquisa
aprecie a ordem constitucional enquanto um sistema constitucional, no entanto,
é preciso adotar um paradigma científico que ofereça recursos a uma análise
de natureza sistêmica. Sem o necessário embasamento científico, as pesquisas
em direito constitucional podem conduzir suas análises a resultados e a
conclusões falaciosos ou, ao menos, pouco compatíveis com a presente
realidade institucional.
Um referencial científico necessário para empreender uma análise
sistêmica pode ser encontrado na chamada teoria geral dos sistemas11. Trata-
se, basicamente, de um fórum científico transdisciplinar que não encontra
barreiras entre áreas do conhecimento. Por suas perspectivas concorrentes
servirem de paradigma genérico para distintas áreas e disciplinas do
conhecimento, há autores que entendem ser este campo de discussões o
“esqueleto da ciência” (BOULDING, 1956). As principais teorias sistêmicas
oferecidas por esta teoria geral são (i) o reducionismo, (ii) o holismo e (iii) a
teoria dos sistemas complexos. Estes três paradigmas científicos, apesar de
convergirem enquanto teorias sistêmicas, possuem perspectivas muito distintas
e podem ser avaliados a partir de três critérios que se observarão ao longo do
presente trabalho. Em síntese, cada paradigma sistêmico será apreciado a
partir de três referenciais mais restritos: (i) o ontológico; (ii) o
epistemológico; e (iii) o metodológico.
Estes três referenciais mais restritos, quando associados, reproduzem um
paradigma científico da teoria sistêmica, permitindo uma diferenciação mais
clara e precisa dos referenciais reducionista, holista e complexista. Na
verdade, tais referenciais recebem grandes contribuições de diversas áreas do
conhecimento, sobretudo da filosofia da ciência. Também nas disciplinas
jurídicas e políticas termos como ontologia, epistemologia e metodologia
receberão acepções controversas e díspares, mas é possível assumir algumas
definições estritamente para os propósitos da presente pesquisa. O referencial
ontológico está diretamente relacionado ao objeto científico. Os referenciais
ontológicos serão diversos nos paradigmas científicos concorrentes à medida
que houver diferentes regras definindo quais objetos científicos podem ou
devem ser adotados para o sucesso de determinada pesquisa. Este primeiro
referencial não determina, diretamente, qual objeto pode ou deve ser adotado,
mas firma parâmetros genéricos para que as pesquisas encontrem, em suas
especificidades, aqueles objetos que podem ou devem ser adotados. O
referencial epistemológico, por sua vez, associa-se ao conhecimento daquele
objeto científico adotado. Neste particular ponto-de-vista, conhecimento do
objeto, dependendo da área ou da disciplina do conhecimento, o que será
determinado pelo referencial epistemológico são as leis, as regras ou os
princípios que regem o funcionamento, o comportamento e as características
daquele objeto. Este segundo referencial não identifica, diretamente, as leis, as
regras ou os princípios determinantes àquele objeto. Ao contrário, instrui
como alcançar corretamente leis, regras ou princípios necessários ao estudo
daquele objeto. O referencial metodológico, por fim, guarda conexão com os
instrumentos hábeis a analisar aquele objeto segundo suas diretrizes
epistemológicas. Da mesma maneira, este terceiro referencial não
estabelecerá, diretamente, que instrumentos e métodos são adequados para
avaliar o objeto científico eleito, mas estabelece parâmetros gerais para que
tais instrumentos e métodos sejam selecionados. Em regra, a forma com que o
referencial epistemológico se define é de central relevância para firmar o
referencial metodológico, ao mesmo tempo em que o ontológico será
determinante para ambos.
Através de tais considerações, o objetivo geral do presente trabalho é
esclarecer como a pesquisa em direito constitucional deve partir de um
paradigma sistêmico e, mais especificamente, que o paradigma científico dos
sistemas complexos se apresenta como o mais apropriado para empreender
esta análise.

1 CIÊNCIAS SISTÊMICAS
Uma maneira muito tradicional e reconhecida de desenvolver pesquisas
científicas, em geral, é partir de referenciais usualmente reputados como
sistêmicos. Atualmente, a comunidade científica tem aprofundado um debate
conhecido como a teoria dos sistemas e este tem recebido contribuições de
autores afiliados a diversas áreas do conhecimento. A teoria dos sistemas tem
servido de base para disciplinas como a ciência da computação, a biologia, a
química e ciências médicas da saúde em geral, também observando intensos
estímulos para trabalhos na matemática, administração, farmacêutica e em
ciências sociais, política e econômica. O direito, particularmente, apresentou-
se alheio a tais discussões até o início do século XX e este referencial
costumava ser visto de modo pontual e superficial.
O desenvolvimento e a execução de pesquisas científicas avaliadas como
sistêmicas – ou mesmo que se intitulam como tal – podem carregar um sério
problema de natureza terminológica: a indefinição. A simples afirmativa desse
suposto caráter sistêmico não é suficientemente precisa e requer certo
esclarecimento quanto à definição de sistema que se pretende adotar. A
explicação para esse problema deriva das divergências que a própria teoria
dos sistemas apresenta internamente. Não há consenso acerca de seu
significado, nem mesmo acerca das implicações científicas de sua definição.
O que pode ser declarado, com maior rigor e segurança, é que o debate sobre
as teorias sistêmicas permitiu a concepção de três referenciais de essencial
importância para o progresso da ciência: (i) o reducionismo, também
conhecido como individualismo, (ii) o holismo, e (iii) a teoria dos sistemas
complexos12. A importância destas três teorias sistêmicas que têm se
aprimorado ao longo de décadas permite considerá-las verdadeiros
paradigmas científicos, cada qual com suas contribuições históricas, mas
oferecendo formas de pensamento, ferramentas de investigação e expectativas
que devem ser cuidadosamente dissociadas.
Para demonstrar o problema terminológico da teoria dos sistemas, basta
tentar responder ao seguinte questionamento: como é possível compreender um
sistema? Em princípio, parece ser este questionamento muito simples e
ingênuo, mas é necessário considerar que uma resposta adequada deveria
oferecer dados acerca de sua composição, dos aspectos que regem seu
funcionamento e de que métodos podem ser sobre ele empregados. Este
questionamento, na verdade, parece ser o mais desafiador e problemático que
se impõe perante a teoria dos sistemas. A dificuldade em lhe apresentar
respostas adequadas ilustra como o termo sistema pode ser entendido a partir
de referenciais distintos.
Para esclarecer o problema terminológico que enfrenta a teoria dos
sistemas, é possível alocar seus três principais paradigmas científicos de
modo concorrente. Em outras palavras, é possível simular três padrões de
resposta para o questionamento “como compreender um sistema”. Cada
padrão seria, provavelmente, adotado por um reducionista, por um holista e
por um complexista respectivamente.
1.1 Reducionismo
Perguntando-se para um cientista reducionista “o que é um sistema”, a
resposta mais provável que se obteria é a seguinte: “um sistema não é nada,
senão a soma de suas partes”. Esta resposta implica diretamente na forma
como o reducionismo prescreve “como é possível compreender um sistema”:
por meio da redução. O reducionismo é caracterizado por enfrentar complexos
e densos problemas pela estratégia denominada divide and conquer13.
Grandes questões poderiam ser reduzidas em unidades mais simples como
forma de combatê-lo. Muitas áreas do conhecimento foram profundamente
estruturadas a partir da premissa reducionista, especialmente aquelas ciências
associadas à saúde, como a medicina14.
Em sua origem, a ciência reducionista comparava sistema a uma máquina15.
Bastaria, assim, conhecer a função de cada peça para entender o
funcionamento daquele sistema. Posteriormente, a visão reducionista passou
também a provocar cientistas para uma discriminação hierárquica entre
determinadas subáreas do conhecimento, especialmente no plano das ciências
da natureza. O fato de o reducionismo ter sido concebido há séculos e, desde
então, difundido exaustivamente na ciência pode ensejar dúvidas acerca de
uma única e fidedigna definição – quanto ao próprio reducionismo. Essa
dificuldade pode ser superada considerando-se uma das passagens
representantes desse paradigma sistêmico mais características – e também uma
das mais duramente criticadas. Trata-se da proposta classificatória de Victor
Weisskopf, “na ausência de uma terminologia mais adequada” entre ciências
intensivas e extensivas: “intensive research goes for the fundamental laws,
extensive goes for the explanation of phenomena in terms of known
fundamental laws.”16 Reduzindo-se o máximo possível, poucas ciências seriam
dignas do título “intensivo” – como a astrofísica, a física nuclear, a lógica e a
matemática –, oferecendo leis fundamentais que serviriam para uma
“reconstrução do universo” por parte das ciências reputadas como
extensivas17.
Tendo em vista esse particular posicionamento no plano sistêmico,
compreender um sistema sob a ótica reducionista se resume a conhecer suas
partes, seus componentes. Enfim, para o reducionismo, sistema se limita à
soma de suas partes, seu funcionamento é a exata reprodução das funções
exercidas por tais componentes e os métodos de investigação que podem ser
empregados para entendê-lo são, unicamente, os empregáveis para analisar
suas partes.
1.2 Holismo
Perguntando-se para um cientista holista “o que é um sistema”, o mais
provável é que se obtenha uma resposta com conteúdo de negação: “um
sistema não se confunde com suas partes”. Esta resposta, da mesma forma que
a compreensão reducionista, implica diretamente na visão de “como é
possível compreender um sistema”: pelo sistema, autonomamente. Para o
holismo, o sistema tende a transcender suas partes e pode ser adotado como
objeto de análises por si só. Não se parte dos componentes para entendê-lo.
Simplesmente, o sistema é um objeto em si mesmo, dispensando divisões e
comparações com suas partes. Certos argumentos holistas podem partir de uma
perspectiva personificada e induzir ao pensamento de que um sistema pratica
atos ou possui intenções.
Muitos autores que estudam formas coletivas de organização humana se
envolvem com este paradigma científico. Para o holismo, fenômenos de
natureza sistêmica partiriam de entidades abstratas e fictícias. Assim, estes
fenômenos não vislumbram uma causa relacionada a seus componentes –
geralmente, indivíduos. Embora haja perspectivas holistas que admitem uma
relação reflexiva entre componentes e sistema, o tradicional modelo científico
holista trabalha com fenômenos e comandos que partem do todo para as
partes18. Assim como no caso do reducionismo, existem diversos autores que
partem das premissas de que o sistema somente pode ser compreendido por si
mesmo.
Há algumas proposições, contudo, cujo caráter holista pode ser mais
facilmente reconhecido. Quando Emile Durkheim estabelece as regras de seu
método sociológico, especificamente na defesa da externalidade como um de
seus elementos, há um clássico modelo holista de raciocínio. No momento em
que Durkheim sustenta que “(…) the states of the collective consciousness are
of a different nature from the states of the individual consciousness; they are
representations of another kind”, a concepção de sistema ganha autonomia
ontológica de seus componentes (DURKHEIM, 1982, p. 40). De modo similar,
quando defende que “[t]he mentality of groups is not that of individuals: it has
its own laws”, a concepção de sistemas passa a atender a regras distintas e
próprias de funcionamento (DURKHEIM, 1982, p. 40).
Tal compreensão de sistema não parece ser muito distante da teoria dos
sistemas sociais de Niklas Luhmann19. O sistema social, para este teórico,
“produz e reproduz seus próprios elementos pela interação de seus
elementos”. Esta ideia denominada “autopoieses” permite compreender como
Luhmann entende os elementos a partir do sistema – não o contrário – e como
seu funcionamento parece não exigir a participação de seus componentes –
exceto que sob o comando produtivo e reprodutivo do próprio sistema20.
Ao contrário do paradigma reducionista, compreender um sistema sob a
ótica holista requer conhecer o todo enquanto objeto autônomo e orientador
dos fenômenos observados no interior de sua dinâmica. Em síntese, para o
holismo, sistema, como um todo, não se confunde com as partes, seu
funcionamento não depende, ao menos em grandes proporções, das ações
oriundas de seus componentes e os métodos de investigação idôneos para
compreendê-lo recaem diretamente sobre a essência do sistema em termos
universais, desconsiderando a influência de suas partes.
1.3 A Teoria dos Sistemas Complexos
Após dirigir a mesma pergunta a um cientista adepto à teoria dos sistemas
complexos – “o que é um sistema” –, entre as principais respostas que se
podem aguardar, nenhuma é tão provável como a seguinte: “o todo é mais do
que a soma de suas partes”. Essa assertiva tão recorrente entre os autores
afiliados ao paradigma complexo conduz diretamente a uma resposta ao
questionamento “como compreender um sistema”: um sistema somente pode
ser entendido a partir de seus componentes e das interações mantidas entre
eles. Segundo a teoria complexa dos sistemas, o todo não seria responsável
por determinar as atividades e funções presentes em seu interior. Da mesma
maneira, a análise limitada de suas partes isoladamente não é capaz ilustrá-lo
por completo. Holismo e reducionismo representam paradigmas, na ciência e
na teoria sistêmica, antagônicos e que, para fins unicamente didáticos, seriam
intermediados pela perspectiva complexa.
Com isso, o sistema se torna mais do que a soma de seus componentes
porque as diferentes formas de interação desses elementos devem ser
consideradas. De um lado, para a teoria complexa, a estratégica de divide and
conquer, em razão de o problema ser reduzido a unidades, impede que a
interação entre elas seja analisada e tais interações sejam responsáveis por
qualificar tal agregação em um sistema. De outro lado, só é possível adotar um
sistema como objeto científico a partir dos elementos que o constituem e das
interações que o caracterizam. O sistema é o resultado, não o início das
análises.
Uma análise sistêmica e complexa requer a aplicação de variáveis idôneas
acerca da dinâmica existente entre as partes que compõem o todo. Por isso, o
primeiro desafio em uma análise complexa é reconhecer o correto nível de
agregação para abordar determinado objeto científico. Reduzir às unidades,
por um lado, impede a verificação de como aquelas unidades são capazes de
se relacionar e o que pode resultar desta interação. A excessiva abstração, por
outro lado, resulta na adoção de um objeto cujos fenômenos e propriedades
têm causa, origens e explicações indeterminadas e desconhecidas. Por não
admitir a análise daqueles objetos capazes de se agregar e firmar uma
dinâmica propriamente sistêmica, o holismo oferece razões frequentemente
obscuras e ocultas ao sustentar a obediência a “suas próprias leis” ou mesmo a
produção e a reprodução de seus elementos de modo autopoiético.
O segundo desafio da perspectiva complexa é admitir seu caráter
contraintuitivo. Em muitos momentos, situações emergem no interior de um
sistema sem que possam ser diretamente extraídas das partes que o compõe.
Do mesmo modo, tais situações podem também não ser esperadas ou
antevistas, assim como ser de difícil cognição por não se associar a um
componente especificamente. A origem dos fenômenos e das propriedades que
emergem em um sistema não terá seu esclarecimento pelo todo sob uma ótica
holista. A explicação precisa destas questões será encontrada de acordo com
as relações mantidas entre os elementos do sistema.
Em paralelo aos dois paradigmas já apreciados anteriormente, a
alternativa complexa de sistemas exige a avaliação dos componentes que se
agregam e se relacionam; possui uma dinâmica é própria, mas associada a
seus componentes e ao resultado de suas interações; além de métodos que
podem ser empregados contra as partes sob uma postura dialógica e não
isolada.
1.4 A Escolha de um Paradigma Sistêmico
Diante da dificuldade terminológica observada na teoria dos sistemas, uma
pesquisa que pretenda partir deste enfoque precisa se posicionar claramente
em relação a um dos paradigmas científicos desenvolvidos no interior de seus
debates. Para os propósitos da presente pesquisa, o paradigma complexo de
sistemas parece ser o mais apropriado, embora não dispense a necessidades
de justificativas para tal posicionamento.
Ambas as correntes reducionista e holista possuem o mérito no meio
acadêmico de suscitar paradigmas científicos que partem de análises
sistêmicas, mas não se eximem de problemas estruturais. O histórico dos
debates na teoria geral dos sistemas ficou marcado pelo surgimento de críticas
severas a estes dois paradigmas, de modo a contribuir para a elaboração de
um terceiro, mais recente, que se difundiu como teoria dos sistemas
complexos. Cada área do conhecimento identificou problemas naqueles
paradigmas e apresentou suas críticas e considerações que, em muitos
momentos, poderiam ser estendidos a uma discussão científica mais genérica.
Para a presente pesquisa, em especial, os pontos centrais do reducionismo e
do holismo estão, de alguma maneira, associados a um problema mais
abrangente de cada um.
O problema central do reducionismo, de um lado, parece ser a
pressuposição de uma perfeita simetria no sistema. O pensamento reducionista
parte do pressuposto de que análises puras e simples das menores unidades do
sistema permitiriam solucionar problemas de maior complexidade. A
estratégia do divide and conquer, inclusive, retrata este pressuposto
científico. Há, no entanto, uma grave falha neste pressuposto, uma vez que
apreciar as unidades isoladamente impede a identificação de questões que
podem emergir da interação mantida entre as partes de um sistema. O
argumento mais poderoso contrário ao reducionismo, no plano científico, é a
existência de propriedades emergentes no sistema, que, embora não possam
ser inferidas das partes singularmente, surgem da interação desenvolvida entre
os componentes agregados. O surgimento de propriedades emergentes em um
sistema é uma grande evidência de que não há uma necessária simetria entre as
partes e o todo. Um importante resultado de tal problema é a compreensão
incompleta do sistema, induzindo ao pensamento de que este se resume à soma
de suas partes. Este problema central do reducionismo, particularmente, foi
enfrentado com rigor e profundidade pelo teórico do direito Adrian Vermeule,
com uma nítida preocupação de aproximar tal discussão das ciências sociais,
política e jurídica (VERMEULE, 2011).
O problema central do holismo, por outro lado, parece ser a
pressuposição de que o sistema é autossuficiente. O pensamento holista parte
do pressuposto de que o sistema possuem leis próprias que não se comunicam
com as partes que o compõem. A falha do pressuposto holista é que observar o
sistema por ele próprio descarta a possibilidade de seus componentes se
relacionarem entre si e, com isso, refletir significativamente no agregado como
um todo. Embora haja menor debate entre complexistas e holistas no plano
científico, talvez o argumento mais severo que possa ser dispensado contra
este último paradigma é que nem todos os fenômenos e as propriedades
identificadas e atribuídas ao sistema, de fato, com ele se relacionam. As partes
desconsideradas da análise holista possuem propriedades e fenômenos
específicos e a interação por elas mantida também permite a emergência de
outros. Ao contrário do reducionismo, a dificuldade holista não é a
identificação de propriedades e fenômenos que emergem da interação dos
componentes do sistema. A dificuldade decorrente do pressuposto da
autossuficiência holista parece estar mais relacionada à explicação da
emergência e a discriminação entre o que emerge e o que se extrai diretamente
das partes de um sistema. Essa dificuldade implica em um resultado
expressivo, qual seja, a recorrente criação de ficções sociais, políticas ou
jurídicas, caracterizadas pela concepção de entes abstratos e personificados
bem como de argumentos falaciosos que descrevem o sistema como a causa e
culpado por todas as ocorrências. Quando propriedades e fenômenos
emergentes são identificados sob a perspectiva holista, a dificuldade em lhe
conferir explicações, pois estruturadas sobre o pressuposto da
autossuficiência, pode ser ilustrada por conceitos como a autopoiesis.
Uma dos referenciais mais inovadores, na ciência em geral, e responsável
por estimular o contínuo processo de construção da teoria dos sistemas
complexos representou uma crítica direta ao reducionismo. Sob o argumento
de que “mais é diferente”, Philip Warren Anderson promoveu um novo
conceito que, dentro do recorte científico dos sistemas complexos, ficou
conhecido como a quebra da simetria21. A quebra da simetria pode ser
compreendida, na ciência, como a possibilidade de cada nível de agregação
ter suas próprias leis fundamentais. Havia o pensamento de que as regras
aplicáveis às partes do sistema isoladamente também se aplicariam,
necessariamente, ao resultado de sua agregação – e a cada nível de agregação,
tais regras seriam mantidas como verdade. Anderson foi um dos pensadores
mais influentes em contra argumentar esta posição, sustentando que, a cada
nível de agregação possível, novas regras poderiam emergir como resultado
da agregação22. A partir da quebra da simetria estabelecida por Anderson,
tornou-se mais claro porque um sistema não se resume à soma de suas partes23.
O terceiro paradigma científico observado na teoria geral dos sistemas
parece ser o mais apropriado por superar um problema de identificação que
assola o reducionismo e outro concernente à atribuição de origens mais
precisas, característica do holismo. O diferencial da teoria dos sistemas
complexos é admitir que uma análise sistêmica deve considerar desde os
componentes até o agregado, sobretudo destacando a interação entre os
elementos, pois seriam capazes de provocar a emergência de propriedades e
fenômenos que, em princípio, não podem ser extraídos de suas partes
isoladamente, nem mesmo ser atribuídos precisamente ao sistema como um
todo. Em síntese, os problemas aqui tratados como centrais em cada um dos
paradigmas sistêmicos se comunicam pelo fato de não adotar a interação entre
componentes como objeto científico, não assumindo, portanto, uma postura
dialógica de análise.

2 A PROPOSTA CIENTÍFICA DE ADRIAN VERMEULE


A discussão acerca da teoria dos sistemas foi trazida ao direito e,
particularmente ao direito constitucional, quando Vermeule defendeu a tese de
que uma ordem constitucional minimamente complexa se comporta como um
sistema de sistemas24. Esta tese despertou um debate ao redor do caráter
sistêmico da ordem constitucional, o que tem sido tratado, inclusive, como
uma nova agenda de pesquisa a ser cumprida (BEDNAR, 2013). O sistema
constitucional de Vermeule promoveu o que alguns cientistas entendem ser uma
revolução nesta área do conhecimento especificamente, o que explica a
repercussão e a originalidade de seu trabalho25.
Para o direito constitucional, passar a compreender os acontecimentos
jurídicos e políticos a partir de uma perspectiva sistêmica e complexa parece
ser uma verdadeira mudança de paradigma. Quando a tese constitucional do
sistema de sistemas é afirmada como uma revolução científica, é necessário
explicar em que termos tal revolução está sendo considerada. Uma revolução
se opera no meio científico quando “[l]ed by a new paradigm, scientists adopt
new instruments and look in new places” (KUHN, 2012).
A revolução científica de Thomas Kuhn é uma perspectiva muito
apropriada para se analisar a tese do sistema constitucional, sobretudo em
razão de as propriedades emergentes exercerem um papel de especial
destaque neste posicionamento. Quando Kuhn afirma que “during revolutions
scientists see new and different things when looking with familiar instruments
in places they have looked before”, parece estar se designando precisamente
às propriedades emergentes, anteriormente negligenciadas pelos paradigmas
reducionista e holista26.
Essa nova agenda a ser cumprida pela pesquisa em direito constitucional
representa um paradigma científico diverso dos anteriormente adotados por
estudiosos da disciplina. Tal paradigma complexo e sistêmico deverá, com o
desenvolvimento de suas análises e o amadurecimento de suas produções,
definir com melhor clareza aspectos de três dimensões eminentemente
científicas: ontologia, epistemologia e metodologia. Em outras palavras, a
experiência e a prática daqueles que se associarem a este paradigma
sistêmico-constitucional permitirão que se consolidem, com certa clareza, (i)
quais seriam seus objetos científicos especificamente, (ii) quais comandos se
aplicariam precisamente ao sistema e seriam capazes de orientar seu
funcionamento, e (iii) que fatores e variáveis auxiliariam a formação de
métodos hábeis a comprovar e a analisar aspectos concernentes ao sistema.
Com isso, a compreensão de sistema constitucional, partindo-se do
paradigma complexo, implica mudanças em, pelo menos, três referenciais.
Talvez, as discussões sistêmicas, na ciência em geral, já tenham resultado em
ontologia, epistemologia e metodologia amadurecidas suficientemente para a
teoria complexa. Ao contrário, o particular paradigma complexo trazido ao
direito constitucional ainda precisa debater acerca do assunto para firmar seus
referenciais científicos próprios27.
2.1 A Ontologia do Sistema Constitucional
Em primeiro lugar, o referencial ontológico parece ser alterado porque as
pesquisas, ao partir deste paradigma, passarão a adotar diversos objetos
científicos. De um lado, o reducionismo sustenta que somente as unidades se
admitem como objeto. De outro lado, o holismo defende o todo como objeto
autossuficiente. A ontologia sistêmico-complexa admite os seguintes objetos
científicos: (i) componentes, (ii) agregado e (iii) interações que ocorrem no
interior do sistema.
Especificamente no direito constitucional, esta alteração teria algumas
repercussões que devem ser levadas a sério. Por exemplo, uma análise da
Constituição e de seu texto pode ser muito proveitosa para inserções de
caráter normativo, mas dificilmente será útil como um estudo de natureza
sistêmica. Consequentemente, é possível que nenhum dos aspectos idealmente
concebidos no plano normativo-constitucional se expresse em uma análise
sistêmica. Da mesma forma, não são ontologicamente sistêmicas – ao menos
efetivamente – as pesquisas concentradas em avaliar como determinada Corte
interpreta a Constituição, pois os resultados desta interação podem não atingir
a mesma relevância quando considerado o sistema constitucional como um
todo. Enfim, o objeto científico, segundo o paradigma complexo, deve
considerar quais componentes interagem entre si com maiores frequência e
destaque no sistema constitucional, aplicando-se o correto nível de agregação
às análises.
2.2 A Epistemologia do Sistema Constitucional
Em segundo lugar, a dimensão epistemológica parece ser modificada tendo
em vista que o funcionamento do sistema atenderá a diretrizes diversas
daquelas sustentadas tradicionalmente. De um lado, o reducionismo afirma que
regras e princípios aplicáveis às unidades são “extensíveis” ao todo. De outro
lado, o holismo alude possuir o sistema leis próprias que não se comunicam
com as partes respectivas. A epistemologia sistêmico-complexa, por sua vez, é
estabelecida pressupondo que das interações entre os componentes do sistema
podem emergir determinados fenômenos e propriedades diversos daqueles
compartilhados pelas partes.
Desse modo, o particular estudo do sistema constitucional deve se atentar
para quais categorias epistemológicas se aplicam, de fato, a este nível de
agregação. Primeiramente, nem toda a epistemologia adequada para apreciar a
Constituição será adequada para analisar o sistema constitucional. Mesmo os
principais conceitos insculpidos em seu texto podem ser pouco relevantes para
uma análise em nível de agregação mais elevado. Não há nenhum vício
epistemológico, de acordo com o paradigma complexo, em afirmar que as
propriedades das partes de um sistema podem ser as mesmas do agregado
como um todo. O problema está em afirmar que esta simetria é necessária,
pois a interação dos componentes sistêmicos pode ocasionar a observância de
propriedades emergentes. Tais propriedades não poderiam ser identificadas
por uma epistemologia reducionista, mas podem ser cruciais em uma investida
sistêmica e complexa. A epistemologia holista não tende a ser relativa à
identificação de eventuais propriedades emergentes. Ao contrário, não se
consegue pontuar precisamente a origem daqueles fenômenos e propriedades
que se expressam em nível sistêmico. Quando o paradigma holista defende que
o sistema tem suas próprias leis e que o mesmo “produz e reproduz” seus
próprios elementos, há, na verdade, propriedades extraídas dos componentes
do sistema ou emergentes de sua interação28. A epistemologia de um nível de
agregação se constrói a partir das propriedades de seus componentes e
daquelas que emergem da interação mantida entre estes, não do sistema por si
só.
2.3 A Metodologia do Sistema Constitucional
Em terceiro lugar, a dimensão metodológica parece se submeter a
mudanças, uma vez que os instrumentos de investigação também precisam ser
adaptados à ontologia e à epistemologia complexas. De um lado, o
reducionismo, marcado pela estratégia do divide and conquer aprecia cada
unidade de um sistema para caracterizar o agregado como um todo. De outro
lado, o holismo analisa o sistema como um todo sem grandes compromissos
com os elementos que o compõem. A metodologia sistêmico-complexa,
entretanto, deriva das modificações ontológica e epistemológica. Para que seja
efetivamente complexa, a metodologia deverá prever instrumentos capazes de
analisar processos dinâmicos, ou seja, a forma com que os componentes
sistêmicos interagem entre si. Esta avaliação dinâmica se desdobra em, pelo
menos, três aspectos. No primeiro aspecto, a metodologia deve admitir
avaliações relativas aos componentes em interação, de forma a evidenciar se
suas propriedades podem, de fato, ser estendidas ao agregado como um todo.
No segundo aspecto, a metodologia deve permitir que, caso não haja simetria
entre as propriedades dos componentes e as propriedades do sistema,
propriedades emergentes possam ser devidamente identificadas e
compreendidas suas origens a partir da relação mantida pelas partes. No
terceiro aspecto, a metodologia deve viabilizar avaliações da dinâmica
sistêmica aptas a identificar os efeitos que decorrem de tais interações.
Trazendo a questão metodológica à disciplina constitucional,
especificamente, há métodos renomados e sedimentados pelo tempo que não
necessariamente seriam proveitosos em uma análise sistêmica. As técnicas de
interpretação e de hermenêutica, por exemplo, desde as classificações
clássicas até as mais contemporâneas são métodos aplicados à atividade
judiciária, particularmente, podendo não refletir os mesmos resultados quando
analisado o sistema constitucional como um nível mais elevado de agregação.

CONCLUSÃO
Analisar a ordem constitucional torna-se, cada vez mais, uma necessidade
em democracias constitucionais. Esta tarefa, no entanto, não parece ser
perfeitamente viável se a ordem constitucional não for compreendida enquanto
um sistema. A ordem constitucional, de um lado, pressupõe a existência,
prevista formal e materialmente na Constituição, de instituições coordenadas e
interagindo entre si para sua formação. As instituições que fazem parte deste
sistema, de outro lado, também se caracterizam pela interação de componentes
próprios, quais sejam, os indivíduos incumbidos de prerrogativas e
atribuições públicas. Em ambos os casos, há agregação e, no particular caso
da ordem constitucional, esta se observa em um duplo nível. O duplo nível de
agregações, que representa o sistema constitucional, portanto, somente
assevera a necessidade de se adotar um paradigma sistêmico.
Assim, analisar a ordem constitucional por um viés não-sistêmico significa
promover análises impróprias do real contexto existente e das relações
empreendidas no seu interior. A ordem constitucional investigada por uma
perspectiva que não considere questões de natureza sistêmica conduz a
falácias da composição ou da divisão no sistema constitucional. Do mesmo
modo, impede que os efeitos de caráter sistêmico sejam considerados na
compreensão da configuração desta ordem constitucional e da forma por que
as principais instituições desempenham suas atividades. As propriedades
características de um sistema, emergentes da agregação de seus componentes,
tornam-se de difícil constatação ou de origem misteriosa ou desconhecida. A
avaliação da ordem constitucional somente pode ser feita adequadamente
partindo-se de um paradigma científico complexo que reconheça fenômenos
relacionados às agregações tipicamente sistêmicas e os respectivos efeitos que
decorrem da interação se seus elementos. Este é um entendimento que, ao
menos em princípio, parece ser negligenciado na pesquisa em direito
constitucional, sobretudo no Brasil.
Em síntese, este artigo buscou sustentar como termos genéricos e
abrangentes presentes no direito constitucional – tais como “ordem
constitucional” – requerem uma abordagem sistêmica e, após considerar os
principais paradigmas definidos na denominada teoria geral dos sistemas,
defende-se ser a teoria dos sistemas complexos a mais apropriada para
embasar tais análises.
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5 Trabalho apresentado pelo Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das
Instituições (LETACI), vinculado à Faculdade Nacional de Direito (FND) e ao Programa de Pós-
graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD/UFRJ) coordenado pelo
professor Carlos Bolonha.
6 Professor Adjunto e Vice-Diretor da Faculdade Nacional de Direito e Professor Permanente do
Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Diretor do Centro de
Pesquisa e Documentação da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Rio de Janeiro. E-mail:
bolonhacarlos@gmail.com.
7 Mestrando em Teorias Jurídicas Contemporâneas pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Técnico Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da Primeira
Região. E-mail: henriquerangelc@gmail.com.
8 Graduando em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Técnico Judiciário do Tribunal Regional Federal da Segunda Região. E-mail: rogi.242006@hotmail.com.
9 Graduanda em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Bolsista em Iniciação Científica pelo Programa Institucional de Bolsas em Iniciação Científica. E-mail:
wanny.fernandes@gmail.com.
10 Graduando em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Bolsista em Iniciação Científica pela Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro. E-mail:
gsallesdacosta@gmail.com.
11 Alguns autores atribuem o crédito pelo termo “teoria geral dos sistemas”, cunhado para se designar a
este fórum transdisciplinar, a Ludwig von Bertalanffy (VON BERTALANFFY, 1951). Cf. (BOULDING,
1956) e (KAST & ROSENZWEIG, 1972).
12 Em relação ao reducionismo, o termo individualismo costuma ser usado como seu correspondente no
plano das ciências humanas, tendo em vista a impossibilidade de reduzir, nestas áreas, mais do que o
próprio indivíduo. Nas ciências naturais, em geral, também é comum o emprego do termo fragmentalismo,
porém de modo pejorativo, da mesma forma com que o holismo é designado como organicismo. Neste
sentido, em relação ao reducionismo: “[p]hiloshophically, the movement has called for the necessity to
develop the ethics of the whole and modes of being in the world that build on interdependency, relatedness
and connectivity, as opposed to fragmentarism, separatism and isolationism” (HÄMÄLÄINEN &
SAARINEN, 2007, p. 295). Em relação ao holismo: “[t]he invalidity of attempts to reduce to their
components gives rise to flabby talk about ‘reductionist Western science’, and praise for ‘organicism’ and
‘holism’” (VERMEULE, 2011).
13 “Now, just as a state is much better governed when it has only a few laws that are strictly obeyed than
when it has a great many laws that can provide an excuse for vices, so I thought that in place of the large
number of rules that make up logic I would find the following four to be sufficient, provided that I made
and kept to a strong resolution always to obey them. (…) The second was to divide each of the difficulties
I examined into as many parts as possible and as might be required in order to resolve them better”
(DESCARTES, 2007, p. 8-9).
14 “Since Descartes and the Renaissance, science, including medicine, has taken a distinct path in its
analytical evaluation of the natural world. This approach can be described as one of ‘divide and conquer,’
and it is rooted in the assumption that complex problems are solvable by dividing them into smaller, simpler,
and thus more tractable units. Because the processes are ‘reduced’ into more basic units, this approach
has been termed ‘reductionism’ and has been the predominant paradigm of science over the past two
centuries” (AHN, TEWARI, POON, & PHILLIPS, 2006, p. 1). O texto afirma estar a medicina
estruturada sob uma visão reducionista por quatro motivos: (i) foco em um fator singular; (ii) ênfase na
homeostase; (iii) inexata modificação do risco; e (iv) tratamentos aditivos.
15 “You won’t find that at all strange if you know how many kinds of automata or moving machines the
skill of man can construct with the use of very few parts, in comparison with the great multitude of bones,
muscles, nerves, arteries, veins and all the other parts that are in the body of any animal, and if this
knowledge leads you to regard an animal body as a machine. Having been made by the hands of God, it is
incomparably better organized – and capable of movements that are much more wonderful – than any that
can be devised by man, but still it is just a machine” (DESCARTES, 2007, p. 9).
16 No texto crítico ao reducionismo de Philip Warren Anderson, o paradigma reducionista fica
compreendido a partir de uma transcrição de autoria de Victor Weisskopf: “[l]ooking at the development of
the science in the Twentieth Century one can distinguish two trends, which I will call ‘intensive’ and
‘extensive’ research, lacking a better terminology. In short: intensive research goes for the fundamental
laws, extensive research goes for the explanation of phenomena in terms of known fundamental laws. As
always, distinctions of this kind are not unambiguous, but they are clear in most cases. Solid states physics,
plasma physics, and perhaps also biology are extensive. High energy physics and a good part of nuclear
physics are intensive. There is always much less intensive research going on than extensive. Once new
fundamental laws are discovered, a large and ever increasing activity begins in order to apply the
discoveries to hitherto unexplained phenomena. Thus, there are two dimensions to basic research. The
frontier of science extends all along a long line from the newest and most modern intensive research, over
the extensive research recently spawned by the intensive research of yesterday, to the broad and well
developed web of extensive research activities based on intensive research of past decades”
(ANDERSON, 1972, p. 393).
17 “It seems inevitable to go on uncritically to what appears at first sight to be an obvious corollary of
reductionism: that if everything obeys to same fundamental laws, than the only scientists who studying
anything really fundamental are those who are working on those laws. In practice, that amounts to some
astrophysics, some elementary particles physicists, some logicians, and some other mathematicians, and
few others. (…) The main fallacy in this kind of thinking is that reductionist hypothesis does not by any
means imply a ‘constructionism’ one: [t]he ability to reduce everything to simple fundamental laws does
not imply the ability to start from those laws and reconstruct the universe. In fact, the more elementary
particle physicist tell us about the nature of the fundamental laws, the less relevance they seem to have to
the very real problems of the rest of science, much less to those of society” (ANDERSON, 1972, p. 393).
18 Como exemplo de um teórico holista mais sofisticado, pois reconhece também uma dimensão passiva
do sistema social em relação a seus indivíduos, a teoria do estruturalismo sociológico de Anthony Giddens
admite uma dinâmica reflexiva em sua tensão entre sociedade e knowledgeables human actors. Com
isso, determinados humanos participam da construção da estrutura social, que, por sua vez, influencia
severamente o comportamento humano (GIDDENS, 1984). No mesmo sentido, reputando Giddens um
holista em razão de sua teoria estruturalista, (GILBERT, 1996).
19 Também alocando Luhmann sob o paradigma holista: “I guess theirs is a defensive strategy: they do not
wish to be taken for holists, and they are diffident of the writers who call themselves system theorists
although actually they are holists. (Talcott Parsons, Niklas Luhmann, and Erwin Laszlo come to mind.)
Their opaque and long-winded utterances has given systemism a bad name. I guess this is why most social
scientists shun the word ‘system’ even while studying social systems” (BUNGE, 2000, p. 149).
20 Para entender como Luhmann relaciona o sistema jurídico com o sistema social, é possível recorrer à
passagem a seguir: “legal system is a differentiated functional system within society. Thus in its own
operations, the legal system is continually engaged in carrying out the self-reproduction (autopoiesis) of the
overall social system as well as its own” (LUHMANN, 2009, p. 183).
21 Na obra (ANDERSON, 1972), é sustentado o argumento da symmetry breaking, estruturado a partir
das propriedades que emergem dos diversos níveis de agregação sistêmica.
22 “The constructionist hypothesis breaks down when confronted with the twin difficulties of scale and
complexity. The behavior of large and complex aggregates of elementary particles, it turn outs, it is not to
be understood in terms of a simple exploration of the properties of a few particles. Instead, at each level of
complexity entirely new properties appears, and the understanding of the new behaviors requires
researches which I think is fundamental in its nature as any other” (ANDERSON, 1972, p. 393). É de
suma relevância destacar que a existência de supostas “leis fundamentais”, como tratou Anderson, a cada
nível de agregação não deve se confundir com o argumento holista de que o sistema possui leis próprias,
pois, neste último caso, a origem de tais leis não se comunica com os componentes do sistema, nem
mesmo a interação mantida entre eles.
23 “[i]n this case we can see how the whole becomes not only more than but very different form the sum
of its parts” (ANDERSON, 1972, p. 395).
24 A ideia de sistema de sistemas também está presente na obra de Luhmann, embora sob uma
perspectiva holista. Para este teórico, sistemas como o social e o direito são capazes de provocar reflexos
uns aos outros. Em Luhmann, há sistemas que, de algum modo, comunicam-se, persistindo, neste ponto, a
visão personificada dos sistemas. A diferença existente entre esta perspectiva e o sistema de sistemas de
Vermeule acaba sendo sutil. Neste último modelo são considerados os componentes com maior destaque,
de forma que sua interação permite uma agregação em segundo nível – algo não tratado em Luhmann. A
ênfase conferida por Vermeule aos componentes que interagem entre si permite compreender com maior
precisão a origem da interação em segundo nível de agregação, correspondente ao sistema constitucional.
Cf. (LUHMANN, 2009) e (VERMEULE, 2011).
25 O paradigma científico dos sistemas complexos já se tentou implementar em áreas do conhecimento de
direito público, notadamente, no direito constitucional, mas não com o mesmo mérito científico que
Vermeule e seu sistema constitucional (RUHL, 1996).
26 Complementando este trecho: “It is rather as if the professional community had been suddenly
transported to another planet where familiar objects are seen in a different light and are joined by
unfamiliar ones as well” (KUHN, 2012, p. 111).
27 O presente trabalho, reconhecendo a dificuldade e a complexidade desta tarefa, pretende meramente
contribuir com as discussões, não havendo a intenção de afirmar categoricamente os aspectos ontológicos,
epistemológicos e metodológicos da teoria sistêmica e complexa aplicada ao direito constitucional.
28 Há uma comum tendência, no holismo, em partir do pressuposto de que o sistema, enquanto
autossuficiente, é capaz de determinar seu próprio funcionamento. Na teoria complexa, entretanto, Stuart
Kauffman apresenta ideias que tentam esclarecer como tal funcionamento se determina sem que haja a
presença de uma entidade fictícia. O movimento liderado por Kauffman, systems biology, recebe críticas,
por exemplo, que o associam à filosofia de Henri Bergson. Isso ocorre porque Kauffman formula uma
expressão na ciência evolucionista interpretada como anti-darwiniana, o que é comparado com o élan vital
bergsoniano e até referido como “determinismo cego e mecânico”, por Michael Ruse: a ordem a partir da
ausência de ordem (order for free). Cf. (BASTOS, 2009). De uma forma muito próxima, Friedrich
Hayek elabora uma perspectiva sistêmica da economia em que “the market coordinates the decentralized
information and tacit knowledge distributed throughout society, coordinating individual plans better than
could any central planner” (VERMEULE, 2011, p. 67).
CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO:
SOBRE COMO RESIDE NO PODER A APTIDÃO
PARA LIMITAR A SI MESMO29
DEMOCRATIC CONSTITUCIONALISM:
ABOUT POWER AND ITS ABILITY TO LIMIT
ITSELF

Vanice Regina Lírio do Valle30

RESUMO
Depois de 25 anos de implementação constitucional no Brasil, é tempo de reexaminar a compatibilidade
entre os propósitos transformadores originais, e a leitura atual do Texto Fundamental. Iniciando pelo
esclarecimento quanto aos conceitos de constitucionalismo e constituição, o texto desconstrói uma suposta
relação de precedência entre o primeiro e o último, afirmando que uma mesma Carta Constitucional pode
ser construída a partir de uma determinada perspectiva, e evoluir para outro modelo, respondendo às
necessidades percebidas na sociedade por ela disciplinada. Entre as várias novas categorias de
constitucionalismo, a proposta de Post e Siegel de constitucionalismo democrático, onde a revelação do
sentido constitucional se dá através de um processo contínuo, baseado em contestação, persuasão e a
formação de novos consensos, se apresenta como uma alternativa útil, onde a jurisdição constitucional se
vê reconciliada com a democracia. O texto finalizar com uma primeira aproximação sobre como o
conceito pode se revelar útil à compreensão e aperfeiçoamento do entendimento no Brasil, acerca da
jurisdição constitucional e do papel do Judiciário nessa mesma função.

PALAVRAS-CHAVE
Constitucionalismo democrático; jurisdição constitucional; sentido constitucional; função jurisdicional.

ABSTRACT
After 25 years of constitutional implementation in Brazil, it is time to reexamine the compatibility among
the original transformational proposals, and the present reading of the Fundamental Text. Starting with a
clarification between the concepts of constitutionalism and constitution, the text deconstruct a supposed
precedency relationship among the first and the latter, asserting that a same Fundamental Chart can be
built in a certain perspective, and evolve to another model, answering to new needs perceived in the ruled
society. Among the various new categories of constitutionalism, Post and Siegel’s proposal of a democratic
constitutionalism, in which asserting constitutional’s meaning is taken as an ongoing process, based on
challenge, persuasion an new consensus, present itself as an useful alternative, in which judicial review is
reconciled with democracy. The text end with a first glance of how that concept can be helpful to
understand and perfect the Brazilian understanding of judicial review and the Judiciary’s role in that same
activity.
KEYWORDS
Democratic constitutionalism; judicial review; constitutional meaning; jurisdictional meaning.

1 MATURIDADE CONSTITUCIONAL E A ABERTURA


PARA OUTROS MODELOS DE CONSTITUCIONALISMO
O estudo do poder como fenômeno social; como capacidade de agir e
produzir efeitos no convívio coletivo é tema antigo mas nem por isso, menos
atual. Sua dissociação da força, para assentar-se na “...arregimentação
permanente e estável das vontades individuais postas em convivência...”
(MOREIRA NETO, 2011, p. 17), com o que se tinha viabilizada a formação
de uma vontade coletiva, potencializa o debate em torno de seu fundamento e
de sua esfera de atuação (BOBBIO, MATTEUCCI e PASQUINO, 2004, p.
934). Identificar o ponto de convergências dos múltiplos quereres que se
compunham numa mesma coletividade, para nele assentar o direcionamento
dessa mesma comunhão de vidas se apresenta como o desafio primário do
poder, desde o momento em que esse conceito se apresenta ao homem.
Em quadra mais recente da reflexão sobre esse mesmo fenômeno social,
desponta a importância da constituição como mecanismo hábil a empreender à
restrição ao poder que se revela arbitrário no seu exercício, instituindo um
governo limitado pelo conjunto de princípios fundamentais e arranjos
institucionais correlatos (SARTORI, 1962). Se do chamado Texto Fundamental
se extraem as premissas postas às decisões políticas (GRIMM, 2006, p. 32),
tem-se que a cunhagem da Carta de Base proporcionará diferentes modelos de
subordinação do poder – o que explica igualmente o recrudescimento da
cogitação acadêmica em torno de alternativas seja de estrutura e conteúdo
desse mesmo instrumento (constituição); seja de prática institucional da sua
aplicação31. Não se pode olvidar que essa mesma engenharia constitucional
que hoje se julga apta a empreender à contenção do cratos, é de preservar
essa sua habilidade no curso do tempo, objetivo que desafia por sua vez o
importante problema da atualidade da solução institucional originalmente
desenhada32.
Intimamente relacionado ao recrudescimento da importância da
Constituição em si – como instrumento de estruturação do convívio pela
definição da arquitetura do poder e pela eleição dos valores nucleares que
regem aquela comunidade; tem-se o despontar da reflexão em torno do
constitucionalismo, e das suas múltiplas manifestações. Assim, se há consenso
em torno de um elemento central desse último conceito – a saber, a limitação
jurídica do poder político em favor dos governados (SOUZA NETO e
SARMENTO, 2013, p. 67) –; há de outro lado uma variadíssima miríade de
soluções que se orientam em tese a concretizar idêntico propósito. Assim, a
cada momento se tem a proposição teórica de um novo constitucionalismo33,
num exercício que apresenta, segundo seus distintos, ora descritivo, ora
prescritivo.
Identificar e classificar as novas alternativas de limitação do poder
expressas em cada qual dos constitucionalismos que a doutrina em todo o
mundo vem propondo é atividade que pode em alguma medida se revelar
diversionista – a multiplicação ilimitada de categorias conduz a uma certa
fragmentação teórica, o que pode se revelar contraproducente, prejudicando a
construção do saber por agregação34. De outro lado, os modelos de
constitucionalismo que tem reivindicado uma certa autonomia categorial,
enunciam estratégias do arranjo e constrição do poder que podem favorecer a
reflexão sobre desenho institucional e práticas de mesma natureza que se
apresentam como úteis ou necessárias a diversas realidades sociais,
históricas, culturais e econômicas.
Dedica-se o presente trabalho à apresentação de mais uma categoria de
constitucionalismo – aquele que se vê qualificado como democrático, cogitado
em terras norte-americanas por Post e Siegel (2007); secundado, dentre outros,
por Balkin (2009)35. A proposta, centrada na busca da conciliação entre
constitucionalismo e democracia através do estabelecimento de uma dinâmica
dialógica no processo de formação e atualização de sentido do texto
constitucional, pode se revelar útil ao equacionamento de um dilema
claramente posto no cenário nacional, a saber, aquele da oxigenação da Carta
de 1988 por mecanismos outros que não sejam o crescente protagonismo do
Judiciário. Esse estado de coisas, com uma ampliação crescente do espaço
político do Judiciário em geral – e da Corte Constitucional em particular –
tematiza não só o risco de solapar as deliberações já havidas por outros
braços especializados de poder, mas a própria engenharia constitucional de
formulação das escolhas públicas, eis que se tem por secundarizada a
necessidade do desenvolvimento de ações corretivas no enfrentamento do
fenômeno de mau funcionamento ordinário dos demais braços especializados
de poder.
O estudo que ora se apresenta é de caráter eminentemente teórico, com a
exploração do conceito proposto, seus elementos identificadores, e uma
primeira aproximação acerca de suas potencialidades na proposta de
alternativas e um modelo juricêntrico que hoje se tem por criticado no cenário
nacional.
A primeira parte do texto dedica-se à cunhagem de uma distinção
conceitual entre constituição e constitucionalismo; verdadeiro embasamento
teórico imprescindível à avaliação de uma nova categoria deste último.
Enunciar o papel que se reconheça a cada qual deles, e a relação que se
estabelece entre texto e constitucionalismo é um elemento indissociável da
compreensão de em que medida o último possa contribuir para o
aprimoramento do primeiro. Afinal, a atualização de sentido pela via da
modificação formal, com o uso em particular das emendas, é prática que
embora possa ter em seu favor evocada a vantagem da explicitação da
mudança; de outro lado pode militar contra a unidade do Texto Fundamental, e
mesmo em desfavor da formação do sentimento constitucional defendido por
Verdú (1985).
A segunda parte dedica-se à apresentação dos atributos específicos do
referido modelo de constitucionalismo democrático, com destaque para a
preconizada dialética permanente quanto ao efetivo conteúdo da Carta de
Base, num exercício de objeção, persuasão e formação de novos consensos
que se pretende contribua para sua legitimidade, atualização de sentido e
efetividade. Essa receptividade para com a mudança em relação ao sentido do
Texto afigura-se como elemento inovador, que pode ser igualmente visto com
reservas, a partir de uma perspectiva que associe estabilidade da
normatividade constitucional àquela da sua própria interpretação36.
A terceira parte do texto apresenta possíveis fragilidades do modelo de
constitucionalismo democrático, municiando o leitor de uma visão crítica em
relação à proposta teórica sob análise. Finalmente, numa quarta parte do texto,
explora-se a contribuição que a categoria constitucionalismo democrático
possa emprestar a uma reflexão acerca do desenho e prática institucional
brasileira no que toca à jurisdição constitucional desenvolvida pelo Supremo
Tribunal Federal. Nesse mesmo momento, empreender-se-á a uma análise das
possíveis dificuldades de transposição do modelo, de uma cultura
constitucional distinta como o é a norte-americana, para o cenário brasileiro.
A premissa dessas considerações exploratórias é aquela de que a Carta de
1988 já tenha alcançado um determinado nível de maturidade, que permita uma
reflexão desassombrada quanto aos mecanismos institucionais envolvidos na
concretização de suas propostas e na sua proteção ao seu projeto de
transformação social. A efetividade do Texto Fundamental e de suas
promessas de câmbio social e político, embora preceitualmente estabelecida
em regras como aquela do art. 5º, § 1º CF, encontra ainda significativos
obstáculos à sua transposição para o mundo da vida, com o que merece
atenção o permanente risco de infidelidade constitucional. Tais barreiras à
materialização dos objetivos fundamentais da República enunciados na Carta
de 1988, frequentemente associadas a patologias no funcionamento do poder
político organizado, culminam por concorrer para um quadro de protagonismo
judicial que tem sido denunciado por muitos como indesejável e
antidemocrático. Cumpre todavia construir alternativas teóricas para um
reposicionamento das peças no xadrez institucional que se entende inadequado
– e esse é o objetivo das presentes considerações37.
Predomina hoje uma percepção subjetiva de que na raiz da inefetividade
constitucional; daquele comportamento patológico que Barroso (2003, p. 59-
65) qualificava como insinceridade normativa se tem dificuldades inerentes à
inadequação do desenho ou da prática institucional – do Executivo, reputado
ineficiente; do Legislativo tido por moroso se não inerte; e do Judiciário, a
quem se imputa ausência de expertise para o nível de intervenção que vem
desenvolvendo nas escolhas públicas. Se esse é o quadro, a análise de
propostas que operem a partir de um outro desenho das relações institucionais
entre os órgãos de poder, e destes com a sociedade – com isso contribuindo
para o incremento do índice de democracia nas deliberações públicas –
revela-se exercício teórico útil na identificação de alternativas que concorram
para o incremento do grau de efetividade do Texto de 1988.
Para tanto, inicia-se a análise a partir dos conceitos onde se tem decerto,
configurado o arranjo institucional do poder político.

2 CONSTITUIÇÃO E CONSTITUCIONALISMO: UMA


DISTINÇÃO AINDA ÁRDUA
Constituição e constitucionalismo são expressões que mais recentemente se
tem apresentado com frequência, associadas uma à outra, insinuando uma
verdadeira simbiose. É no campo do último conceito, todavia, que se tem
apresentado crescentemente, subcategorias, verdadeiros adjetivos, na busca de
se refletir no plano teórico a miríade de alternativas estratégicas que a
realidade social e política de cada coletividade tem determinado para a
construção e compreensão do respectivo ordenamento jurídico.
2.1 Constituição e Constitucionalismo: um necessário acordo semântico
A ideia de constituição como “batismo jurídico do poder” (PILOTY, apud
QUEIROZ, 2009, p. 113); proposta normativa que prescreve uma determinada
organização a uma coletividade, não é nova no cenário. Quando menos na
perspectiva institucional – de padrão comportamental tido por aceitável numa
determinada coletividade – o fenômeno constitucional remonta a período
anterior à Era Moderna (SANTOS, 2008, p. 27)38. Numa perspectiva ainda
afinada com o positivismo jurídico e com um purismo da ciência jurídica, o
termo constituição ingressa na seara do Direito emprestado das ciências
sociais, e com um conteúdo essencialmente descritivo, identificando-se como
o documento que formula a estruturação do poder; a “ordem necessária que
deriva da designação de um poder soberano e dos órgãos que o exercem”
(BOBBIO, MATTEUCCI e PASQUINO, 2004, p. 247).
A partir do século XVIII portanto, já se tem consolidado o conceito de
constituição como “conjunto de regras jurídicas definidoras das relações do
poder político; do estatuto de governantes e governados” (MIRANDA, 2002,
p. 319); ou ainda como “plano ou estrutura de um governo livre” (SARTORI,
2004, p. 212). Esse mesmo conteúdo expande-se com o passar do tempo,
especialmente a partir do período pós-45, para recepcionar igualmente aos
direitos fundamentais, também estes, sob determinada perspectiva, limitadores
do poder pela fixação em relação a este, de uma inafastável orientação
finalística. Ainda que se tenha o influxo axiológico da centralidade da pessoa
como novo elemento de constrição ao poder trazido pela constituição; fato é
que a ferramenta segue revestida de fragilidades, seja no que toca à sua
efetividade ab initio, seja pelo desafio que se põe a esse mesmo atributo em
decorrência dos efeitos do transcurso do tempo sobre um arranjo institucional
que se cunha num ponto determinado da trajetória de um corpo social39.
É a percepção de que o desenho formal da ordem de convívio e exercício
do poder não pode restar como pura retórica, expresso nas letras mas não
transposto para o mundo da vida; que vai permitir a cunhagem do conceito de
constitucionalismo – hoje já identificado no seu sentido comum, como “adesão
aos princípios do regime constitucional” (MICHAELLIS, [s/d]). Assim é que a
vetusta compreensão do Estado sub legem, associada à constituição como
instrumento de desenho jurídico do poder político, conduzirá à conclusão de
que aquela seja o instrumento de uma prática orientada à prevenção contra as
arbitrariedades do governo (BELLAMY, 2010, p. 1); esse sim resultado ou
atributo de um sistema jurídico que pretende condicionar comportamentos e
parametrizar o convívio coletivo.
O imperativo de uma concepção de constitucionalismo – informadora e
conformadora do conteúdo de constituição – relaciona-se portanto a uma visão
que não mais opera a partir de uma segmentação total entre direito e política.
O império da lei; o direito como seara exclusivamente da técnica, predefinido
pelo domínio da política – mas dele segregado; essa é uma concepção ainda
voltada ao Estado de Direito (REGLA, 2008, p. 15), onde o domínio da
política é campo onde se tem as decisões do poder soberano, sempre
prevalentes em relação àquelas primeiras. É o reconhecimento do
artificialismo - ou mesmo da insuficiência e dos riscos a uma estruturação de
convívio coletivo que opera a partir dessa segregação – que levará a uma
reaproximação entre política e direito, impondo-se portanto a construção de
uma concepção teórica que possa cogitar as interferências recíprocas entre
ambas. Abre-se espaço então para a necessária formulação de uma opção
ideológica acerca desse mesmo convívio – Regla (2008, p. 15) alude a um
constitucionalismo político, onde o meio pelo qual suas opções se
materializam (constituição) deixa de ser valorativamente neutro, e passa a ser,
ao contrário, orientado a um determinado projeto de estruturação e orientação
da coletividade.
Tem-se no constitucionalismo portanto, a aproximação dinâmica do modo
de funcionamento do poder – que há de repudiar o arbítrio, e se desenvolver
de forma limitada, nos exatos termos e em favor dos precisos objetivos que o
mesmo documento fundante lhe tenha traçado. Nesse sentido, afirma Baker
(2008, p. 106-107) que constituições se distinguem de constitucionalismo –
sendo o último o meio pelo que se empreende à avaliação da forma,
substância e legitimidade das primeiras.
Constitucionalismo portanto se apresenta como uma teoria de governo
limitado (LOUGHLIN, 2010, p. 55); que eclode em oposição funcional ao
absolutismo (WALKER, 2010, p. 209), distinguindo-se das concepções
anteriores de governo by law pela circunstância de que esta não é mais mero
instrumento do poder soberano, mas a sua própria fonte. É de Regla (2008, p.
16), uma vez mais, a indicação dos males associados às dominações políticas
que o constitucionalismo buscará neutralizar:
A arbitrariedade (a falta de segurança jurídica), o autoritarismo (a
falta de liberdades negativa), o despostismo ou a exclusão política
(a falta de canais para a participação política) e a oligarquia ou
exclusão social (a falta de capacidade para fazer presentes os
próprios interesses na agenda e no debate políticos).
Afastados os fundamentos clássicos do poder absoluto, tem-se a sua
identificação no povo soberano, que se manifesta através de um pacto
fundante, que para se revelar apto a determinar a constrição ao poder político,
cunha suas próprias limitações pela articulação de técnicas e ferramentas de
intervenção recíproca entre seus braços especializados de atuação.
Identificados de outro lado, as principais ameaças decorrentes de um quadro
de dominação, o debate passa a gravitar em torno de quais sejam os
instrumentos próprios a prevenir esse mesmo quadro.
Importante destacar a interconexão entre a perda dos fundamentos
transcendentes do poder, e concepção de uma deliberação a um só tempo
fundante e limitadora. Assim, o poder se tem por constituído e limitado, sendo
esse particular modo de ser e se exercitar o seu fundamento de autoridade e
legitimidade. Introduz-se com o constitucionalismo, portanto, uma concepção
dinâmica de relação com o poder numa sociedade organizada – como ele é de
ser gizado, mas também e sobretudo, como deve ser exercido de molde a que
essa atuação se revele legitima.
Constitucionalismo é um exercício teórico-abstrato sobre o poder que se
almeja formalmente constituir – mas também, ao longo do tempo, exercitar.
Constitucionalismo é conceito que vem ao lume com uma contradição interna.
Afinal, é nessa teorização que se pretende explicar e constituir o poder; mas
ao mesmo tempo, se busca limita-lo por intermédio dos recursos disponíveis
na engenharia constitucional já desenvolvida, ou mesmo por novo ferramental
que se venha a engendrar40.
Naturalmente, se a reflexão sobre os meios de constrição do poder se dá
no plano do constitucionalismo, é previsível que os modelos ali concebidos se
reflitam na constituição, documento formal que o traduz em relação a um
determinado Estado-Nação. Essa simbiose se tem por revelada seja na sua
redação, nos momentos fundantes de uma comunidade que surge como como
ente político organizado ou se rearranja institucionalmente; seja no processo
de revelamento de sentido de textos preexistentes, à medida em que o tempo
opera sobre ela (constituição) os seus efeitos. É essa íntima relação entre
teoria e ferramenta; constitucionalismo e constituição, que muitas vezes
aproxima os conceitos à fronteira da indistinção. O constitucionalismo,
contudo, como teoria da configuração do governo limitado, confere inspiração
e oxigênio para os Textos Fundamentais, na sua gênese e aplicação, através do
desenvolvimento da política constitucional (ZAGREBELSKY, 2003, p. 14),
que se dá orientada aos fins que aquele mesmo constitucionalismo elege como
elementos centrais de sua concepção de projeto de vida coletivo.
Constitucionalismo se põe portanto no quadro de ordenação do poder, com
a função de “traçar os princípios ideológicos que são a base de toda a
Constituição e de sua organização interna” (BOBBIO, MATTEUCCI e
PASQUINO, 2004, p. 247). É no plano do constitucionalismo – da teoria da
limitação do poder – que se reconhece que esse mesmo propósito constritivo
pode se dar mediante técnicas distintas, que se inicialmente se manifestam em
ideias consolidadas (separação, e ao mesmo tempo, equilíbrio e harmonia
entre poderes, reconhecimento de minorias, direitos fundamentais, etc.); hoje
já se desdobram em outras estratégias mais sofisticadas, eis que o objeto
primário de constrição do poder pode se alcançar através de ferramentas de
intensidade variada (WALDRON, 2012, p. 13).
Assim, controle do poder é atividade que se pode desenvolver na seara da
simples supervisão e da visibilidade dos atos decisórios; e esse é um
resultado que pode ser suficiente em relação a alguns planos da vida pública41.
Já n’outros terrenos mais sensíveis, o que se pode desejar é a exclusão como
possibilidade, de uma determinada escolha do poder – aquela que invade, por
exemplo, a esfera de privacidade, ou a que interfere na prática do voto livre,
na inspiração de modelos mais tradicionais, que viam na criação de áreas
vedadas à intervenção estatal uma técnica relevante de contenção.
É nesse contexto – de sofisticação dos mecanismos de cerceamento do
poder político contra o arbítrio, com o uso de ferramentas outras que escapam
à estruturação institucional e recepcionam área de ação obrigatória ou vedada
– que se tem a eclosão dos direitos fundamentais, que se apresentam
inequivocamente como garantias contra o quadro de abuso que se quis evitar42.
Tais direitos se põem como signo de legitimidade do sistema político-jurídico,
fundamentando uma obrigação política (REGLA, 2008, p. 18) através da qual
se “estabelece sob que condições o cidadão de uma determinada comunidade
política está obrigado a cumprir as normas que essa mesma comunidade lhe
fixou”. Aqui, notadamente no reconhecimento da chamada dimensão objetiva
dos direitos fundamentais, tem-se a orientação finalística do agir cratológico,
e com isso a criação de novas esferas de constrição do poder político
(SARLET, 2012, p. 297).
Constitucionalismo, como teoria da constrição do poder passa então a se
apresentar como uma ideação que não é politicamente neutra – mas veicula
uma proposta de um projeto também político de instituição de uma ordem
nova; um ideal de futuro de uma coletividade (QUEIROZ, 2009, p. 118). É a
percepção de que constituição sem ideal é corpo sem espírito que se tem em
boa medida, na raiz do triunfo do constitucionalismo por todo o mundo – em
que pese a pertinente denúncia de Hirschl (2004) de que essa mesma vitória
possa servir à preservação de interesses hegemônicos43. Vale ainda registrar,
como inequívoco sinal do êxito de uma teorização quanto aos meios e
estratégias da constrição ao poder, a tendência que se apresenta de concepção
de um constitucionalismo sem Estado, na busca de asseguração desse mesmo
resultado de proteção contra o abuso e o arbítrio, num cenário de dissolução
de fronteiras nacionais44, e onde as ameaças contra a liberdade podem vir de
estruturas de poder que não se identificam com a dimensão política formal de
um determinado Estado-Nação. Explora-se portanto, até mesmo a ideia de
constitucionalismo sem constituição – mas a recíproca não parece ser
verdadeira45.
É essa associação entre constitucionalismo com uma específica proposta
de conformação do poder – seja no seu desenho institucional, seja nas suas
restrições, seja nos compromissos valorativos a que serve – que explica a
diversificação de categorias desse mesmo fenômeno que se identifica
recentemente na doutrina brasileira e estrangeira. Em verdade, a reformulação
do papel posto à interpretação jurídica tradicional, emancipando as
possibilidades exegéticas, seja da norma, seja do seu agente (BARROSO,
2007); vai permitir extrair-se do mesmo texto constitucional resultados
aplicativos distintos, fruto de uma dialética interna da Carta de Base, onde se
buscará a conciliação entre bens e valores jurídicos que eventualmente podem
se pôr na sua concretização, numa relação de aparente contraposição. Esse
exercício de harmonização dos possíveis conflitos internos e dos percalços no
plano da aplicação do Texto Fundamental, orientados por sua vez a partir de
um conjunto de valores centrais associados àquele Diploma Maior, contribuem
para a formação de uma constitutional law que se põe a serviço desses
mesmos propósitos. A identidade ideológica do constitucionalismo
consagrado em determinado Texto, contribui para a construção de seu sentido;
para aquilo que Häberle (2002, p. 31) denomina “desenvolvimento funcional”
da norma, processo que compreende as “forças ativas da law in public
action”.
Nesse contexto em que profissões de fé em valores compartidos se
consolidam em torno de um novo modelo de constrição do poder, é que se
pode identificar uma também inédita manifestação de constitucionalismo, que
busca dar resposta àqueles pontos de fragilidade no arranjo ou na prática
institucional que a experiência histórica de uma determinada coletividade
aponta46. E se o constitucionalismo não é sempre o mesmo – eis que reflete
uma opção estratégica sobre constrição do poder que é temporalmente
localizada; põe-se a indagação em torno de uma eventual relação de
antecedente e consequente entre ambas as categorias.
2.2 Constitucionalismo, Constituição e a sua Suposta Relação de
Precedência
Numa perspectiva de localização temporal portanto, constitucionalismo e
constituição não se apresentam necessariamente num modelo sempre igual de
antecedente e consequente. Assim, embora seja quase instintiva a percepção
de que não se constrói o texto formal (constituição) sem algum desenho teórico
a inspira-lo (constitucionalismo); também é possível imaginar que uma nova
compreensão em abstrato de como se deva conter o Estado se apresente
depois da elaboração do texto formal. Assim, embora seja possível que uma
determinada inclinação ideológica quanto à modelagem do poder tenha
pautado o exercício do poder constituinte originário; essa mesma inspiração
pode se modificar com o tempo, trazendo nova concepção quanto ao
constitucionalismo aplicável ou desejado por aquela sociedade.
Admitir esta possibilidade exploratória – de que distintas ideologias
possam operar sobre um mesmo texto constitucional – envolve recepcionar a
distinção proposta por Regla (2008, p. 23-25) entre “dar-se uma constituição e
viver uma constituição”, onde se reconhece que conceitos abertos empregados
para a construção de consensos possíveis, podem admitir desenvolvimentos
distintos na trajetória de uma coletividade
O que se está a afirmar é a hipótese da influência do constitucionalismo
como ideologia inspiradora da ação finalística do poder direcionando
igualmente a aplicação de um texto pré-existente; do que podem ocorrer
distintos efeitos no plano político. O primeiro deles é permitir a oxigenação
do texto, preservando-lhe a aptidão para reger o processo de convívio
coletivo, guardando a devida aderência para com a realidade sobre a qual
incide. O segundo deles é a possibilidade de que essa mesma orientação
finalística assumida pela Carta Magna depois de sua promulgação, empreste-
lhe legitimidade quando ele originalmente talvez não a tinha, ou ainda confira-
lhe reforço a esse signo que originalmente se tinha – mas que poderia ter se
perdido com o tempo. Exemplo claro do primeiro fenômeno – a legitimação
superveniente, inspirada por um constitucionalismo que conquistou o apoio e a
adesão da coletividade sobre a qual ele incide, é a própria experiência
brasileira, que tinha contra a Carta de 1988 as conhecidas críticas em relação
à convocação da constituinte, sua composição e seu método de trabalho. Não
obstante essas dificuldades de ambiente, que levaram os céticos à afirmação
de que se pudesse ter uma constituição despida de legitimidade, fato é que a
hipótese da rejeição não se confirmou, prevalecendo a hipótese da transição
(MOREIRA NETO, 1988) com a consolidação da Constituição-Cidadã em
suas múltiplas dimensões, seja de reestruturação da democracia
representativa, seja de impulsionamento de um projeto de transformação
social que vem sendo levado a cabo nos seus já completos 25 anos de vida.
Em síntese, constituição e constitucionalismo guardam sim, uma relação
quase simbiótica – mas não de identidade; tampouco exigem uma necessária
ordenação de precedência e consequencia. Constituição como norma é algo
que se constrói e reformata a partir da inspiração valorativa, ideologicamente
comprometida do constitucionalismo que tem por valorizado num determinado
momento histórico da coletividade sobre a qual aquele Texto Fundante incide.
E isso não torna menos relevante a constituição – ao contrário, revitaliza-a,
permitindo atravessar décadas como pacto fundante de uma coletividade,
superando a encruzilhada apontada por Verdú (1994, p. 27) entre a norma
constitucional e a realidade também constitucional.
Gizada essa primeira distinção, resta assinalar que não obstante o caráter
em princípio localizado e responsivo da solução constitucional dada a cada
realidade disciplinada por um Texto Fundamental específico; é inequívoco um
movimento de globalização de um determinado padrão de organização
institucional – e portanto, de constitucionalismo como modelo teórico que o
inspire. Se identidade de texto é um intuito claramente inadequado para um
movimento de homogeneização que pretenda transcender fronteiras nacionais;
simetria de modelos e propósitos já se afigura como atributo palatável, se não
mesmo exigido pela globalização das relações. Não obstante a pressão pela
homogeneização acerca de um modelo de constitucionalismo que articule a
sociedade global, fato é que as particularidades locais fundamentam
diferenciações quanto a esse arquétipo supostamente neutro e universalizável
(TUSHNET, 2008). Não menos relevante é a percepção do papel das elites na
disseminação desse suposto modelo homogêneo, que pode ser visto como
elemento integrante de um projeto de preservação de posições hegemônicas
(HIRSCHL, 2004, p. 43).
É nessa tensão entre pretensão universalizante de um modelo de
constitucionalismo, e a indispensável preservação de seu potencial de
instrumentalização de um projeto democrático, que se põe a categoria proposta
analisar neste trabalho, a saber, aquela identificada por seus autores como
constitucionalismo democrático.

3 CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO COMO


ESPÉCIE DO GÊNERO CONSTITUCIONALISMO
DIALÓGICO
O conceito de constitucionalismo democrático – ao menos no sentido que
se emprega nestas considerações – está fundado na proposição desenvolvida
inicialmente por Post (2000) e Siegel (2007)47, secundada depois por Balkin
(2009) e outros autores. A proposição se tem apresentada de maneira mais
sistemática na obra “The Constitution in 2020” (BALKIN e SIEGAL, 2009), e
espelha em verdade uma longa trajetória de reflexão dos citados autores sobre
o tema dos mecanismos de construção e atualização de sentido do texto
constitucional estadunidense; e em consequência, do processo de agregação de
legitimidade às decisões (judiciais ou não) em que se empreende à aplicação
da constituição norte-americana. Se é certo que naquela particular experiência,
se põem importantes elementos de diferenciação em relação ao sistema
brasileiro (seja a antiguidade do texto constitucional, seja o sistema jurídico
fundado em comon law); não é menos certo que em tempos de normas
constitucionais de textura aberta, de pluralismo e de alto potencial de
controvérsias sociais, o debate americano sobre a necessária garantia de
atualização de sentido do Texto Fundamental segue sendo útil à compreensão
do quadro brasileiro; por isso a análise da referida categoria.
Mais ainda; a discussão sobre o constitucionalismo democrático insere-se
no grande grupo de proposições que investem no caráter dialógico desse
mesmo modelo teórico-político (GARGARELLA, 2014) – alternativa que vem
sendo igualmente explorada pela doutrina brasileira para a compreensão,
senão de nosso modelo constitucional; quando menos do tipo de prática
decisória que possa ou deva se estabelecer no exercício da judicial review48.
Finalmente, à falta do referencial teórico do Velho Continente – de que sempre
se valeu o constitucionalismo brasileiro para seu próprio debate –; tem-se uma
ampliação do olhar também para terras estadunidenses, o que corrobora a
importância do conhecimento das categorias teóricas que por lá se tem
apresentado para a compreensão e o aperfeiçoamento da judicial review no
Brasil.
No âmago de todo este debate sobre uma concepção adequada de
constitucionalismo, tem-se a retomada da necessária (re)conciliação entre o
direito (constitucional) e a política, com um foco especial para a cogitação
que ora se desenvolve, para o papel que possa ter a jurisdição constitucional
na censura das deliberações havidas no campo de incidência da última, em
nome da integridade dos critérios jurídicos que tenham sido postos no
momento fundante, como pilares da disciplina do poder. Evocando uma vez
mais a noção de que a constituição fixa as premissas postas às decisões
políticas (GRIMM, 2006, p. 32); tem-se como consequência inafastável que as
deliberações nesta mesma comunidade destinatárias do Texto Fundamental só
serão efetivamente democráticas se havidas no campo delimitado pela
moldura constitucional. Nesse modelo não se apequena o político nem
sobrevaloriza o jurídico49; o que se tem é o reconhecimento de que o político,
como expressão do poder, não se pode entender, sob nenhuma circunstância,
despido de constrições, como já se sustentou no subitem 2 acima.
O reencontro entre política e direito – especialmente no campo da judicial
review – foi preconizado em terras norte-americanas mais recentemente, por
autores integrantes da corrente identificada como constitucionalismo
progressista (WEST, 1999; COHEN e ALBERSTEIN, 2011; ), que tem por
premissa a ideia de que a constituição deva se apresentar responsiva para com
as necessidades sociais manifestas, e os ideais sempre cambiantes de um
padrão mínimo de justiça a pautar o convívio numa determinada coletividade.
Tem-se portanto, nessa concepção, a transposição de compromissos
valorativos para o texto constitucional – ainda que não literalmente postos,
mas inerentes a dito piso mínimo de justiça que se teria por estruturante da
sociedade. Se tal atributo do texto constitucional, ainda que na realidade
estadunidense, não se pode afirmar propriamente como uma novidade – não
obstante seu texto bicentenário e sintético; nem por isso é menos relevante a
afirmação de que esse seja o modelo teórico a ser aplicado ao exercício, na
lição de Regla (2008), do viver da Carta de Base.
É na esteira desta convicção que surgirão ideias como a da constituição
como organismo vivo (Balkin, 2008) e o popular constitutionalism
(KRAMER, 2204 e TUSHNET, 2006); onde se postula que a restituição do
mister de determinação do conteúdo substantivo da constituição se desloque
de um modelo juricêntrico, para outra concepção que revalorize a política, e
os autores primários das escolhas que são próprias a esse campo da vida
social50. Tais aportes teóricos reconhecem a resiliência como um atributo
indispensável ao texto constitucional, e tematizam de outro lado a relevante
questão atinente à identificação de quem seja os agentes materializadores do
procedimento dessa mesma atualização de sentido, e ainda, da existência (ou
não) de relações de proeminência entre eles.
Progressive constitutionalism é uma proposição mais ampla, que assevera
que o processo político é mais apto a determinar avanços graduais na
materialização de direitos e liberdades, do que a adjudicação judicial; mais
do que isso, denuncia o protagonismo judicial como inibidor desse mesmo
método de deliberação, e como determinante de um alheamento popular em
relação ao debate em torno do conteúdo dos direitos constitucionalmente
postos (COHEN e ALBERSTEIN, 2011, p. 1086-1088). Seus críticos, de
outro lado, no que interessa especialmente ao presente texto, afirmam que sua
proposição expressa essencialmente preferências políticas – e que pouco teria
a contribuir para a compreensão da law51.
O constitucionalismo democrático se insere nesta mesma corrente de
pensamento, afinada com o caráter dialógico e progressista da estratégia de
constrição do poder que investe na constituição como seu instrumento. A
proposição de Post e Siegel (2007, p. 24) abraça a ideia de que adjudicação
de direitos e exercício democrático da política são práticas que
necessariamente guardam uma interferência recíproca, na busca da solução de
interesses conflitantes que podem se apresentar no exercício cotidiano ou
judicial da constitutional lawmaking (POST e SIEGEL, 2007, p. 3). Assim,
há elementos comuns ao gênero em que ele se classifica, como a preconização
de uma ampliação do universo de interlocutores no processo de revelação de
sentido do texto – aqui, a profissão dialógica do conceito. De outro lado, o
caráter claramente valorativo do documento constitucional determina
necessariamente um processo de determinação de sentido orientado à
concretização daqueles compromissos fundamentais – o que ineludivelmente
reclama o olhar progressista, afinado com um projeto político de
transformação da realidade sobre a qual ele incide. Disso decorrerá
igualmente – em linha de sintonia com outras vertentes do constitucionalismo
dialógico – uma desconfiança para com a adequação do modelo de supremacia
judicial como hoje praticado, em que mais do que a designação formal de
quem seja o titular da última manifestação autoritativa; o Judiciário ocupa um
papel de proeminência também (e principalmente) na deliberação efetiva
quanto aos conceitos abertos que o Texto Fundamental contempla.
Já adentrando ao campo das especificidades da proposta de Post e Siegel
(2007, p. 7), tem-se uma associação entre o prestígio às práticas extrajudiciais
de interpretação constitucional, com especial atenção àquelas desenvolvidas e
externadas pelos movimentos sociais; mas nem por isso se desconsidera ou
descarta o papel da adjudicação na tarefa de cunhagem e atualização dos
direitos. O constitucionalismo democrático reconhece portanto que o sentido
da constituição – a constituição que se vive, na já referida expressão de Regla
(2008) – não é do domínio exclusivo da Corte Constitucional, mas encontra
nela um papel relevante de articulação dos muitos agentes que integram esse
mesmo processo de revelação de sentido.
Nesse particular tem-se talvez a mais sensível distinção entre
constitucionalismo democrático e popular: neste último, no diálogo que tem
lugar entre texto e seus intérpretes, não se deve reconhecer ao Judiciário uma
prioridade normativa (TUSHNET, 2006, p. 999-1000). Para os adeptos do
constitucionalismo popular, a conversação reveladora de sentido da Carta
Fundamental envolve idealmente, todo o universo de seus aplicadores –
cidadania, Legislativo, Executivo e Judiciário – sem que se possa apontar um
protagonismo em favor de qualquer deles, como se dá na concepção mais
disseminada em que a supremacia do Judiciário se apresenta como pedra de
toque, e revestida de caráter subordinante às demais estruturas formais que
apliquem igualmente à constituição. No constitucionalismo democrático, de
outro lado, não obstante se reconheça um papel normativamente distinto àquele
mesmo braço especializado de poder, disso não decorre uma integral
transposição em seu favor, e em regime de exclusividade, do centro de decisão
quanto ao conteúdo dos direitos assegurados no Texto de Base –
especialmente, aqueles fundamentais52. A ideia central da proposição de Post e
Siegel (2007, p. 7) é de que ao Judiciário as revele um papel institucional
relevante de viabilização do impoderamento dos direitos – não por uma
aptidão superior previamente estabelecida, ou pela autoridade do sujeito, mas
porque sua própria estrutura de provocação e deliberação pode prover uma
fixação de agenda que priorize e favoreça uma discussão sobre direitos que
não vinha alcançando superar as obstruções políticas no Legislativo ou no
Executivo.
Não se resume a distinção entre as várias espécies de constitucionalismo
abrigados sob a categoria de dialógico aos elementos aqui apresentados – mas
os pontos demarcados já são suficientes para localizar cada qual das
concepções dentre do quadro geral de modelos teóricos de constrição jurídica
do poder político que investem no debate como o veio mais adequado de
compreensão e atualização. Cumpre agora aprofundar a proposta do
constitucionalismo democrático em si, o que se faz a partir de seus elementos
identificadores.

4 ELEMENTOS CONCEITUAIS DO
CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO
Já se apontou no subitem acima, que uma das problemáticas que se
pretendia enfrentar com a construção do ideário do constitucionalismo
democrático, é o reforço do signo de legitimidade do Texto Fundante, que se
vê desafio neste particular aspecto, seja pelo transcurso em si do tempo, seja
pelo caráter sempre cambiante do ambiente sobre o qual ele incide. Essa
cogitação, no cenário americano, tem particular relevância pela tensão
inerente naquele corpo social, entre o reconhecimento do ideário de self
government, e ao mesmo tempo, o respeito pela rule of law. Nesse conflito
interno, a rule of law – fundada na constituição – há de se reconhecer como
harmônica, e não violadora do auto-governo, o que decerto suscita os desafios
relacionados à preservação da sua legitimidade.
Primeiro elemento portanto que se tinha em conta na proposição, era a
necessária garantia da autoridade da constituição pelo caminho de sua
renovada legitimação; o que estaria a envolver, na proposta do
constitucionalismo democrático, o reconhecimento do sujeito constitucional
no texto, e o seu papel da compreensão do sentido das regras que por ele e a
ele se destinavam.
4.1 Autoridade Constitucional e Reconhecimento: o problema da
identidade constitucional
Apresenta-se como verdadeiro truísmo a assertiva de que a constituição
contenha em seu corpo cláusulas cuja determinação de sentido revele
diferentes graus. Afinal, é inerente ao processo de negociação que antecede à
sua cunhagem, os igualmente distintos níveis de consenso e teorização em
relação a cada qual dos grandes temas que nela se regulam
(SUNSTEIN,2000). A textura abertura das normas constitucionais apresenta-se
como elemento inegável, mas estruturante do sistema, à medida em que
permitirá exatamente a recepção daquele espectro de sentido latente no
conjunto social que Cover (1983) denominou nomos. De outro lado, a
aproximação entre constituição e a narrativa do universo normativo que rege
uma determinada coletividade (COVER, 1983, p. 4) expressará outro vetor
igualmente relevante, que é aquele da identidade constitucional.
É de Rosenfeld (2003, p. 22-23) a advertência sobre o caráter
verdadeiramente constitutivo na organização da coletividade, daquilo que
chamou de identidade constitucional – uma síntese de laços e elementos de
identificação originários de uma nacionalidade ou cultura partilhada. Afinal, é
essa identidade constitucional que conferirá forma e conteúdo aos
compromissos que no texto se manifestem, mesmo aqueles associados aos
direitos fundamentais53. De outro lado, é ainda Rosenfeld (2000, p. 22) quem
aponta um paradoxo posto à identidade constitucional – que sendo síntese da
coletividade, é distinta de outras identidades relevantes, mas é
“inevitavelmente forçada a incorpora-las parcialmente para que possa adquirir
sentido suficientemente determinado ou determinável”. Sensível ao tema da
identidade constitucional, Post e Siegel (2009, p. 26) vão apontar que quanto
mais estreito o laço de reconhecimento do sujeito constitucional pelo texto;
maior a legitimidade da constituição, e portanto, mais intenso o grau de sua
efetividade.
Duas distintas dimensões se contêm nessa afirmação: de um lado, é preciso
que o sujeito constitucional se identifique com o texto e suas proposições; de
outro lado, esse mesmo sujeito há de ter confiança na responsividade dessa
mesma ordem para preservar essa identidade, incorporando aqueles elementos
externos a ela que venham a refletir mudanças havidas no nomos; no espectro
de sentido acerca dos pilares de construção do convívio coletivo. Afinal, a
identificação entre sujeito e constituição – que pode existir originariamente,
forjada ou refletida no momento fundante daquele Estado-Nação – admite a
possibilidade de quebra em decorrência do inevitável transcurso do tempo, e
das transformações que ele possa trazer.
O acatamento a uma decisão quanto ao sentido da constituição divergente
do posicionamento de seus destinatários (ainda que parte deles) decorrente de
uma nova recepção de identidades relevantes que competem pelo
reconhecimento54, só será possível se existir a confiança de que esse
equacionamento possa ser contrastado mediante um exercício racional de
crítica e reformatação. Assim, uma mudança social, traduzida como aspiração
política, é de ser passível de incorporação ao sistema do direito, promovendo
neste último uma atualização de sentido à sua normatividade, que é
determinada pela primeira55. De outro lado, essa mesma imagem da identidade
constitucional, novamente forjada pelas interferências do processo político e
social de reformulação, há de admitir como possibilidade, à sua vez, o seu
afastamento ou reconfiguração futura; preservando a todas as identidades que
competem entre si, a possibilidade de se verem em algum momento,
recepcionadas na identidade constitucional.
Esse elemento fiduciário relacionado à possibilidade de mudança e
interferências estará no eixo central do conceito de constitucionalismo
democrático como proposto. Isso porque, dadas as dificuldades próprias do
sistema norte-americano para o desenvolvimento do processo formal de
emenda constitucional; a responsividade do texto, e a confiança do “We the
People” de que a Carta se revele capaz de atualizar-se, é de se materializar
por outros caminhos, que não a interferência direta e literal no texto.
A construção é sutil. Se a constituição espelha a coletividade em que o
sujeito constitucional se insere, seu reconhecimento nela permitirá o
reconhecimento da sua legitimidade, e da autoridade das decisões (judiciais
ou não)56 que nela se fundem e traduzam a sua aplicação. De outro lado, essa
mesma constituição é de ser apta a conferir resposta institucional, nos moldes
por ela mesma traçados, aos estímulos externos que sobre ela incidam:
ameaças, infidelidade, inefetividade material. A um só tempo, o texto mantém
o diálogo com seus múltiplos sujeitos, e protege sua identidade; síntese das
muitas identidades representadas na coletividade sobre a qual ela incide. Na
legitimidade dessa construção coletiva, repousará a autoridade da constituição
como norma fundante e das instituições que a aplicam; na responsividade para
com o querer da coletividade que é ao mesmo tempo, seu artífice e sujeito,
repousará seu signo de democrática, seja na sua origem, seja na sua aplicação
prática por qualquer de muitos de seus artífices.
Identificada a relevância teórica da resposividade – como veículo da
legitimação do texto, e portanto, garantia de sua autoridade; segue-se a
indagação de como se assegura que esse mesmo atributo inicial se tenha
presente no viver a Constituição. Esso o problema que suscita o segundo eixo
de elementos integrantes da proposta do constitucionalismo democrático,
envolvendo a incorporação do dissenso, da divergência interpretativa como
uma condição normal para o desenvolvimento do constituional law (POST e
SIEGEL, 2007, p. 2).
4.2 Visão Constitucional”, Contestação, Persuasão e Consenso:
ferramentas para a responsividade
É certo que a atualização de sentido do texto constitucional é resultado que
em princípio se pode por ter associado à sua própria interpretação,
qualificada nessa hipótese específica, de evolutiva (BARROSO, 2003, p.
146), onde se tem a “...atribuição de novos conteúdos à norma constitucional,
sem modificação de seu teor literal, em razão de mudanças históricas ou
fatores políticos e sociais...”. Também o chamado costume constitucional
(FERRAZ, 1986, p. 197) pode se apresentar como estratégia à promoção da
adaptação da norma superior “...às necessidades e aspirações da comunidade,
sejam de natureza política, econômica ou social”. A questão proposta, todavia,
no argumento do constitucionalismo democrático, está em saber se o debate
em torno de critérios de interpretação constitucional pode ser suficiente para
promover o desenvolvimento funcional do texto, alinhado com as expectativas
próprias de um constitucionalismo de transformação.
Mais do que isso, o constitucionalismo democrático, firmado na ideia da
relevância do equilíbrio a se promover entre rule of law e auto-governo,
acolhe a divergência de interpretação como um caminho possível para um
engajamento político e jurídico, que conduza a ordem constitucional a uma
condição de fidelidade para com o nomos (POST e SIEGEL, 2007, p. 67), o já
referido espectro de sentido latente no conjunto social relacionado a uma
determinada cláusula constitucional.
Para entender o argumento, é preciso incorporar um pressuposto que
integra construção teórica de Post e Siegel (2009, p. 25-34), a saber, aquele da
“visão constitucional”; elemento capaz de mobilizar às pessoas em torno desse
mesmo projeto, que orienta as deliberações que se dão na esfera da política, e
se revela constitutivo do sentido do Texto Fundamental57. A “visão
constitucional” expressaria ideais fundamentais que definem a coletividade – e
estes teriam, na visão dos autores, o condão de mobilizar a sociedade. “Visão
constitucional” é algo portanto que antecede à judicialização – e não envolve
propriamente uma teoria de interpretação (POST, 2009, p. 31), mas sim uma
percepção difusa no corpo social, de quais sejam os valores essenciais
regedores daquela coletividade, e como eles se traduzam. A autoridade
constitucional decorreria da aptidão que o sistema expressa (ou desenvolve)
de alinhar constitutional law (o sentido do direito constitucional) à “visão
constitucional” – e a dissintonia entre a decisão autoritativa e essa mesma
visão estaria também na raiz da reação violenta da sociedade contra eventual
proclamação da Corte, no fenômeno denominado backlash (POST e SIEGEL,
2007, p. 5).
Há portanto uma inversão no iter de (re)atualização de sentido da Carta de
Base; esta não se dá no Judiciário para incidir sobre a coletividade, mas nasce
da coletividade para ser traduzida em law pelo Judiciário; num processo que
há de ser dialógico e contínuo, deflagrado de novo e novamente, a cada
mudança no nomos que se venha a identificar.
O desafio está em que se essa “visão constitucional”, que antecede a
judicialização, e se origina no campo da sociedade – e não da técnica –; em
algum momento há se ser capaz de se traduzir como compromissos axiológicos
na linguagem que é própria do direito (POST, 2009, p. 31); e essa é uma
atividade que pode resultar na afirmação da inadequação do que se tinha
assentado como a visão jurídica de uma realidade. Em última análise, a visão
constitucional, uma vez traduzida no código do direito, pode se revelar
contrária a uma concepção vigente, assentada em lei ou mesmo em
jurisprudência constitucional, com a autoridade que e própria a cada qual
dessas manifestações formais do poder político. Tem-se então uma relação de
contraposição, que propõe o segundo elemento integrante do conceito sob
análise: a contestação enquanto possibilidade no curso de um processo de
determinação de conteúdo das cláusulas constitucionais.
A contestação, objeção ou desafio em relação à concepção vigente acerca
do conteúdo de cláusulas constitucionais é elemento verdadeiramente
constitutivo do constitucionalismo democrático – eis que é a partir dessa
contestação de sentido; dessa oposição ao que se tenha por assentado como
significado da Carta, que se poderá empreender à sua ressintonia com a visão
constitucional. Nesse sentido, especial lugar terá no projeto de Post e Siegel, a
participação dos movimentos sociais, que por sua própria articulação,
revelar-se-ão aptos a promover essa contestação de forma mais estruturada,
seja no plano do debate anterior à judicialização, seja no domínio do
contencioso judicial, através daquilo que os americanos denominam litígio
estratégico. Vocalizada a reformulação da visão constitucional, e estruturada
como compreensão por movimentos sociais, tem-se facilitado o processo de
sua transposição para o código do direito – por isso a relevância desses
mesmos movimentos.
Importante destacar que no modelo do constitucionalismo democrático, o
litígio não expressa uma ameaça à autoridade da constituição ou da Corte
Constitucional que por ela zela; a contestação constitucional integra a
dinâmica de atualização de seu sentido, e é bem vinda como elemento
indispensável à sua sintonia com a tanto mencionada constituição que se vive.
Naturalmente, a divergência quanto ao senso comum anteriormente
formado quanto a determinada cláusula fundante não será por si só suficiente a
promover a identificação de que nisso se tenha a expressão de uma nova visão
constitucional. À contestação quanto à posição dominante, é de se somar o
exercício de persuasão, do convencimento em favor de uma nova leitura do
texto. Importante sublinhar que no campo da argumentação persuasiva, dois
distintos elementos hão de encontrar aferição: primeiro deles, o alcance da
percepção de sentido da Carta de Base que o exercício de contestação oferece
– e esse é um elemento útil à aferição da relevante temática acerca do eventual
papel contramajoritário a se desenvolver na jurisdição constitucional.
Segundo elemento que será avaliado no exercício da persuasão – este mais
óbvio – diz respeito à autoridade mesmo do argumento; sujeita todavia a um
debate inclusivo e ampliado, como é característico (já se mencionou antes)
das teorias dialógicas.
Assim, para que o diálogo fomentador da deliberação democrática
efetivamente aconteça, é preciso primeiro, conhecer os termos em que o
dissenso se apresenta no que toca à compreensão constitucional se tem por
assentada. Qual o objeto da divergência? Qual o novo sentido que se pretende
ver firmado? Quais as razões para o afastamento da leitura mais tradicional?
Todos esses são questionamentos próprios ao momento da formulação da
contestação em si. Já no plano da persuasão, tem-se o espaço por excelência
para o exercício argumentativo em favor da nova posição preconizada por
aquele que suscita a divergência – e também, eventualmente, para as
contribuições de outros interlocutores, que ainda que não se tenham
apresentado na primeira discussão, possam manifestar interesse em participar
do debate constitucional.
O mecanismo em verdade é de contemplar a divergência como alternativa,
e a persuasão como estratégia possível de câmbio da compreensão vigente. Se
o exercício suasório se revelar suficiente, o resultado será a formação de
(novo) consenso em torno da proposta veiculada pela objeção – e com isso
restaura-se a harmonia entre visão constitucional e a constitutional law. Um
destaque mais do que relevante formular todavia, está em que enquanto em
teorias afinadas com o diálogo social, a abertura a esse exercício discursivo
se tem por possível; na proposta do constitucionalismo democrático, o
exercício dialógico é constitutivo do processo; é o único mecanismo apto a
conferir a desejada legitimidade à nova configuração de sentido. Essa
afirmação – de que abertura ao diálogo não seja uma prerrogativa ofertada ao
julgador, mas um dever para a formular de um novo consenso num ambiente
democrático – se harmoniza com a afirmação de que nesta proposta teórica, o
Judiciário não tem uma proeminência subjetiva no processo, mas conduz o
diálogo, funcionando como seu agente articulador.
O exercício identificado no constitucionalismo democrático (contestação,
persuasão e formação de novo consenso) é atributo cíclico, nos dois sentidos
da palavra – observa uma determinada ordem, e se repete. Assim, a objeção
ao estabelecido é de se desdobrar na oportunidade para o exercício
persuasivo, e resultará em novo consenso: de manter-se o estabelecido, de
mudança parcial, ou de mudança total. A preservação dos três momentos do
ciclo revela-se particularmente importante para que se tenha caracterizada
uma verdadeira responsividade da ordem constitucional (POST, 2009, p. 27);
uma abertura ao questionamento e uma orientação à oferta de respostas.
De outro lado, o resultado das duas primeiras etapas – objeção e
persuasão – pode ter como resultado possível, qualquer das também três
alternativas acima apresentadas: a preservação do status quo, a mudança
parcial e o câmbio radical. Isso porque, o exercício é de responsividade para
com as demandas sociais, que podem não se ter por plenamente
caracterizadas, ou podem ainda se revelar divididas nos resultados
pretendidos – o que certamente recomendará uma posição mais cautelosa no
que toca à alteração de compreensões já estabelecidas.
Importante sublinhar, por fidelidade intelectual para com o pensamento de
Post e Siegel (2007, p. 32-35), que a alusão à modificação parcial como
alternativa, não se confunde com uma inclinação em favor do minimalismo –
que prefere o grau diminuto de alteração como estratégia de decisão. Isso
porque na proposta de Sunstein (2005), a decisão auto-contida no alcance e na
profundidade prefere àquela de maior alcance e profundidade sempre, como
opção de modelo em abstrato, tendo em conta a tensão inerente entre
jurisdição constitucional e democracia. Já na proposta de Post e Siegel (2007,
p. 32-35), a incorporação do viés democrático à formação da decisão judicial
permite superar essa tensão, viabilizando uma decisão judicial não
necessariamente minimalista, desde que uma análise de contexto assim o
recomende.
Profundidade e abrangência da decisão judicial, na proposta do
constitucionalismo democrático é algo que há de guardar indissociável relação
entre o grau de modificação das posições originais quanto ao sentido do texto,
e a nova proposta, é pautada diretamente pela responsividade. Significa dizer;
a uma clara indicação de consenso social mais amplo em torno de uma nova
formulação, há de corresponder a modificação de sentido com toda a
amplitude externada pela sociedade; o espectro mais restrito do conteúdo da
decisão se porá como alternativa em hipóteses onde não se tenha claramente
delimitado o grau de objeção.

5 CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO PARA O


CENÁRIO BRASILEIRO: PORQUE COGITAR DISSO?
Não se poderia ter por concluída essa apresentação da categoria conceitual
do constitucionalismo democrático, sem que se cogitasse brevemente de qual
possa ser a utilidade de seu conhecimento e/ou transposição no cenário
brasileiro.
Já se apontou nas considerações iniciais desse mesmo trabalho, que as
distinções entre o modelo americano e o brasileiro de Texto Fundante não se
revelam suficientes para excluir a possibilidade de aprendizado com a
reflexão teórica que lá se estabelece em torno do constitucionalismo
democrático. Afinal, os objetivos perseguidos pela referida categoria –
atualização de sentido constitucional, reforço no seu signo de legitimidade,
conciliação entre política e direito, afirmação do judicial review como
possibilidade de contenção ao poder sem renúncia do caráter democrático
dessas mesmas deliberações; tudo isso são pontos comuns que validam a
reflexão em torno do conceito. Mas o que mais, além da curiosidade
acadêmica, pode justificar a abordagem que aqui se propõe?
Boa parte da reflexão já desenvolvida no tema da jurisdição constitucional
envolveu a compreensão do tema a partir de seu desenho institucional
primário – qual seja o sistema proposto pela Carta de 1988, como se
conciliem seus múltiplos instrumentos, quais seja, suas condições de
funcionamento. É possível afirmar que as ferramentas disponíveis ao exercício
da judicial review e a compreensão de suas relações recíprocas tenham
consumido boa parte do esforço doutrinário e do próprio labor da Corte.
Temas como o papel do controle da inconstitucionalidade por omissão58;
limites e possibilidades da reclamação constitucional59 e da ADPF;
fungibilidade das ações abstratas de controle60; todos eles ocuparam e ainda
ocupam a Corte, num esforço de construção de coerência sistêmica.
Esse encaminhamento é perfeitamente compreensível quanto se tem em
conta que historicamente, o direito brasileiro nunca albergou um sistema de
controle de constitucionalidade tão amplo e diversificado, o que determinou a
necessidade sua densificação procedida já com os preceitos que o
consagravam vigentes.
Superado esse momento, a comunidade acadêmica se tem voltado para a
reflexão acerca da estruturação em si da decisão, abordando elementos
diversos que dizem respeito a como se construa a deliberação em matéria de
temas controvertidos como o são aqueles que determinam os grandes casos em
jurisdição constitucional. Introduz-se no cenário as discussões já mais
visitadas do papel do amicus curiae61, das audiências públicas62 e das
sentenças aditivas.
Mais recentemente, ingressa com força a discussão em torno do caráter
efetivamente deliberativo do mecanismo de construção das decisões do
Supremo Tribunal Federal, a partir da discussão da aptidão mesmo do modelo
seriatim aqui adotado para resultar em juízo deliberativo em sentido estrito; e
ainda tendo em conta a aplicação desse mesmo modelo pela Corte brasileira63.
Esse se afigura portanto o novo campo posto à reflexão, a saber, a
artesania envolvida na construção da deliberação da Corte Constitucional –
não mais a partir dos limites formais positivos dos institutos que o STF aplica,
mas tendo em conta a inspiração teórico do modelo de constitucionalismo que
essa mesma resolução de conflito está a servir.
Retomar a premissa de qual seja o modelo teórico de constitucionalismo
que se está buscando implementar é condição sine qua non para organizar a
reflexão e debate em torno de qual sejam as melhores práticas a se
implementar no campo da jurisdição constitucional, tendo em conta o
incremento da efetividade constitucional, conciliando-se a tensão com a opção
pelo signo democrático. Se o neoconstitucionalismo ofertou a sua contribuição
como método; é preciso agora avançar tendo em conta um constitucionalismo
que se apresente como modelo teórico de constrição do poder, orientado
todavia pela opção fundante empreendida pela Carta de 1988, que erigiu a
República Federativa do Brasil do Estado de Direito – mas sobretudo,
democrático.
Vale ainda destacar que em cenário onde se tem de maneira tão candente o
debate em torno do ativismo, como opção atitudinal da Corte que reclama e
confere a si mesma um espaço político de decisão que não é aquele
tradicionalmente reconhecido a um Judiciário que se afirmava legitimado pela
técnica; merece atenção a proposta de um modelo teórico que reconhece o
relevante papel institucional da Corte, mas não lhe confere o protagonismo
excludente na definição do sentido constitucional.
Mantendo o diálogo com os autores apresentados, Post e Siegel (2007, p.
35) destacam que uma teoria da relação adequada entre adjudicação judicial e
exercício democrático da política está indissociavelmente relacionada a
qualquer deliberação acerca de um direito constitucionalmente assegurado que
se pretenda proteger pela via do judicial review. Recepcionar portanto a
política no reino da jurisdição constitucional – como decorrência direta do
caráter político do Texto Fundante que se aplica no seu exercício (GARCÍA
DE ENTERRÍA, 2001, p. 179) – é opção que há de se dar de braços dados
com o reconhecimento de que se assim for, a decisão que se trava na Corte
Constitucional há de incorporar também ela, o mesmo viés democrático que a
Carta de 1988 exigiu de todos os poderes.
É no constitucionalismo que se concebe como se constringe o poder, que é
exercido no âmbito da política. Não há portanto como conceber um modelo de
jurisdição constitucional sem que este mesmo ideário se tenha por presente,
subsidiando a decisão da Corte Constitucional de molde a que ela também se
adjetive como democrática.
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29 Trabalho apresentado pelo Grupo de Pesquisa Novas Perspectivas em Jurisdição Constitucional (NP
JURIS) vinculado à Universidade Estácio de Sá (UNESA).
30 Professora Permanente do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá,
vinculada à linha de pesquisa Direitos Fundamentais e Novos Direitos. Pós-doutorado em Administração
pela EBAPE/FGV-Rio; Doutorado em Direito pela Universidade Gama Filho. Procuradora do Município
do Rio de Janeiro.
31 A contenção dos abusos do poder é prática que envolverá sempre e necessariamente um diálogo com
as particularidades de uma determinada coletividade sobre a qual ele incide. Assim, os modos de
instalação e exercício do poder são distintos – donde os meios para a sua reconfiguração igualmente não
se manifestarão da mesma forma.
32 Do total de 188 constituições vigente em todo o mundo (COMPARATIVE CONSTITUTIONS
PROJECT, 2014); 88 delas são anteriores à brasileira – o que significa que elas têm pelo menos mais de
25 anos de promulgação. É de se ter em conta ainda a localização temporal desse quarto de século,
inserido totalmente na aceleração de conhecimento e comunicação que nos trouxe o final do século XX e
a primeira década do século XXI. Atualização de sentido portanto do projeto de vida coletiva é tema
sensível
33 Desde o primeiro impacto de reconhecimento de um novo modelo, trazido pela incorporação ao cenário
jurídico nacional do neoconstitucionalismo, já se viu aportar a este mesmo ambiente ideias como as do
constitucionalismo popular (KRAMER, 2004; TUSHNET, 2006), de transição (YEH e CHANG, 2009;
KHATIWADA, 2007), de transformação (CHRISTIANSEN, 2001; KLARE, 1998 e LANGA, 2006),
teocrático (BACKER, 2008 e HIRSCHL, 2008), até mais recentemente o constitucionalismo proclamado
latino-americano (GARGARELLA, 2010; OLIVEIRA e STRECK, 2012).
34 No tema, apontando os riscos do desenvolvimento de maior densidade teórica em relação a cada qual
dos modelos, e da perda de conhecimento já formado por agregação – tudo em favor da busca de um
singularismo que não guarda propriamente relação direta com a efetividade do modelo, consulte-se Valle
(2012).
35 A expressão não é estranha à produção acadêmica norte-americana, mas por vezes se tem presente
em sentido distinto daquele explorado por Post e Siegel (2007); esse caráter polissêmico não é em nada
incomum na ciência do Direito, mas deve ser tido em conta no eventual percurso à literatura, mesmo a
norte-americana: nem todo texto que contenha essa mesma interlocução estará se referindo ao mesmo
conjunto de atributos amealhados por Post e Siegel.
36Essa concepção que vê a perenização de interpretação como um atributo da estabilidade, já se vê
37 No particular, esse texto é sensível à advertência de Sartori (2004, p. 160) de que democracia é
sobretudo um sistema de governo, o que reclama uma especial atenção não só à crítica (a expressão do
autor é “garrotazos”), mas também aos mecanismos através dos quais possamos compor ou melhorar a
velha maquinaria da política: “...quando se descuida da função de governo, pioramos a ela, ou pomos em
perigo o seu funcionamento...”.
38 Não se vai aqui adentrar na discussão que avalia a possibilidade de se conferir a alcunha de
constituição (no sentido formal) a documentos não revestidos desse mesmo atributo, mas revestidos de
conteúdo estruturante do convívio. Para a ampliação desse debate, consulte-se Queiroz (2009, p. 113-117),
afirmando remontar o conceito à Antiguidade Clássica; no outro extremo, Sarlet (2012, p. 36-51) e Sartori
(2004, p. 211-218) fixando no final do sec. XVIII o surgimento do conceito no sentido ainda hoje
conhecido.
39 Não se constitui elemento central do presente texto a discussão acerca da inclusão de direitos
fundamentais como elemento essencial da afirmação da existência em si de constituição. Vale todavia
assinalar a visão de Sartori (2004, p. 212), que externa posição distinta àquela do mainstream, que
identifica a presença pelo menos dos direitos de primeira dimensão como constitutiva da constituição, Para
o autor italiano, é de se ter por claro quando menos que “uma constituição cujo núcleo e parte mais
importante não seja a estrutura de governo, não é uma constituição).
40 A própria inclusão de direitos fundamentais como mecanismos de limitação do poder expressou à sua
época, uma nova técnica – ou quando menos, uma nova utilização de uma categoria jurídica que já se via
aplicada com menos eficácia, ao tempo em que se tinha esse tipo de preceituação por revestido de caráter
meramente programático.
41 É de Bobbio (2000, p. 386) a identificação entre democracia (ideia central que pode se ver
instrumentalizada por um determinado tipo de constitucionalismo) e governo em público
42 É de Andrade ([s/d]) o destaque de que o poder que se contém por intermédio de direitos fundamentais
não se resume àquele politicamente institucionalizado, sendo possível antever a formação de barreiras
contra o abuso do poder econômico, ou da imprensa, a partir desses mesmo direitos, especialmente com a
recepção da ideia de que estejam eles sujeitos, a partir de sua força irradiante, também à incidência na
dimensão horizontal.
43 O argumento de Hirschl (2004) – que por sua sofisticação, não pode ser integralmente reproduzido nos
limites deste trabalho – é de que a constitucionalização, combinada com a expansão da judicial review
pode favorecer a inclusão na zona protegida pela estabilidade constitucional, de cláusulas e garantias que
protejam os interesses de grupos hegemônicos, seja no momento em que eles estejam no poder, seja
naqueles (se não especialmente nestes) em que a alternância na titularidade desse mesmo poder se
prenuncie.
44 Explorando a alternativa de um constitucionalismo dissociado de uma ideia de Estado soberano ao qual
aquela teoria de limitação se aplique, consulte-se Preuss (2010) e Canotilho (2006, p. 286). Registre-se
ainda a cogitação quanto a um constitucionalismo societal, onde se tem o reconhecimento de que também
fora do Estado (se não predominantemente aí) se pode ter manifesto poderes que mereçam igualmente o
desenvolvimento de teorias constritiva (TEUBNER, 2010).
45 Já se tem em Miranda (2002, p. 323) a advertência de que em qualquer Estado, em qualquer época e
lugar se encontrará sempre um conjunto de regras atinentes quando menos à “...expressão jurídica do
enlace entre poder e comunidade política ou entre sujeitos e destinatários do poder.”
46 Nesse conjunto de constitucionalismos cunhados a partir de peculiaridades locais e/ou históricas – já
gizado na nota de rodapé nº 3, soma-se a pretensa categoria do constitutionalism of the Global South
(MALDONADO, 2013), que congregaria experiências de países que manifestam um cariz ativista das
respectivas Cortes Constitucionais.
47 Consulte-se aplicações no conceito também na sua interface com a ideia de backlash (POST e
SIEGEL, 2007).
48 No grande espectro de modalidades dialógicas de constitucionalismo, tem-se na experiência brasileira e
presença na prática do STF, quando menos, do modelo de diálogos institucionais, como se verifica
facilmente nas decisões em ADIO e MI, onde a Corte afirma a existência de um dever de legislar (e
portanto, a necessidade da recondução do Legislativo à sua trilha de funcionamento regular), e aponta
vetores aplicáveis ao futuro critério jurídico de solução a ser aprovado pelo Parlamento. É de se apontar
ainda a aproximação com a lógica dos diálogos sociais, na clara ampliação do uso do instituto das
audiências públicas, seja no controle concentrado de constitucionalidade, seja naquele de caráter difuso
onde se tenha a análise de Recursos Extraordinários aos quais se tenha conferido o signo de repercussão
geral.
49 Na visão de Post e Siegel (2007, p. 33-34), não se pode imaginar a jurisdição constitucional e a
democracia como forças divergentes, concorrendo num jogo que se pretenda de soma zero; em verdade,
embora o jurídico possa em alguma medida constringir o político, esse mesmo exercício de identificação
dos limites da contenção retroalimenta o político. A relação portanto é de interdependência recíproca –
mas não de oposição absoluta, onde o avanço de um implique no retrocesso do outro.
50 Escapa aos limites da abordagem possível neste texto, o detalhamento das proposições do
constitucionalismo popular, bastando ter-se por registrada a desconfiança para com o Judiciário como o
intérprete do sentido do Texto a detentor da supremacia na referida decisão. Para um olhar um pouco
mais ampliado no tema, consulte-se Cardoso (2014).
51 Registre-se que no cerne do debate se tem, mais uma vez, a suposta segregação entre direito e política
– resultando inaceitável para os que apostam nessa ideia, uma proposição que reforça o viés político do
exercício da judicial review.
52 Registre-se por absoluta fidelidade intelectual para com a proposta norte-americana, que as referências
naqueles textos a direitos fundamentais envolverão sempre aqueles de liberdade – até pela circunstância
de que a constituição daquele país não contempla direitos sociais em seu texto. A transposição de
argumentos segue possível, todavia – se não reforçada – em modelos como o brasileiro, com intensa
presença de direitos socioeconômicos, pela circunstância mesmo de que esses (mais do que aqueles de
liberdade) envolvem necessariamente escolhas alocativas de recursos escassos, que por implicarem
necessariamente em exclusões, hão de se revestir de especial signo de legitimidade democrática.
53 A percepção do limite do inaceitável, da restrição inautorizada a direitos fundamentais, dos critérios
possíveis de solução de conflitos entre estes mesmo direitos; tudo isso guardará intrínseca relação com a
referida identidade constitucional.
54 O reconhecimento de sujeitos constitucionais distintos, e a correspondente identificação em favor
desses mesmo grupos de direitos próprios é o processo que Bobbio (1992, p. 62) denomina
“especificação”, e “consiste na passagem gradual, porém cada vez mais acentuada, para uma ulterior
determinação dos sujeitos de direitos”.
55 Ilustração já francamente utilizada, mas nem por isso menos relevante, diz respeito à integração ao
ordenamento normativo, da admissibilidade do reconhecimento de efeitos jurídicos diversos às uniões
homoafetivas – possibilidade que em décadas passadas seria peremptoriamente negada pelos valores
comunitários, mas que na segunda década do século XXI, já foi acolhida em vários países do mundo, em
alguns deles pela via da jurisdição constitucional, eis que textos constitucionais empregavam uma
linguagem que não permitia essa mesma conclusão a partir de sua literalidade. Este foi o fenômeno que se
verificou no Brasil, com a conhecida decisão na APF 132, mas também da África do Sul, no caso
identificado como Minister of Home Affairs and Another v Fourie and Another.
56 A percepção de que a construção do sentido constitucional não é atividade limitada à Corte
Constitucional é uma constante na literatura norteamericana, desde Thayer (1893) com o
departamentalismo, até os dias de hoje.
57 Inequívoca a relação igualmente entre “visão constitucional” e aquilo que Siegel (2006) vai denominar
“cultura constitucional” – uma compreensão do papel e das práticas argumentativas que a cidadania e os
agentes públicos encarregados de aplicação da Carta de Base empregam para negociar a distinção entre o
que se passe no plano da política e do direito, quando se busca empreender à mudança constitucional (a
expressão aqui se utiliza no sentido mais amplo possível, compreendendo especialmente aquelas alterações
que se dão pela via interpretativa, e não formal).
58 Desde o leading case em matéria de controle da omissão pela via da injunção, no conhecido MI 107
QO, até a viragem compreensiva externada nos não menos conhecidos MI’s 670 e 708 – onde se
reconheceu a possibilidade da enunciação pelo Supremo Tribunal Federal do critério jurídico de solução
para a violação a direito subjetivo decorrente da inércia legislativa constitucionalmente relevante, muito se
escreveu e decidiu na matéria.
59 O espectro de alternativas ofertado à reclamação constitucional – no que toca aos legitimados ativos e
às possibilidades de decisão – é matéria ainda intensamente controversa na Corte, valendo o registro
recente da decisão havida no bojo da Reclamação 4374, em que se empreendeu à reconfiguração do juízo
em abstrato de constitucionalidade da Lei Orgânica da Previdência Social antes formulado na ADI 1232.
A proclamação, pela via da Reclamação constitucional, do vício de raiz de lei antes reputada constitucional
no controle abstrato foi uma inovação no que toca ao alcance deste mesmo instituto. Para uma
sistematização do tratamento anteriormente conferido pelo STF à Reclamação, consulte-se VALLE
(2009).
60 O debate era aceso, a partir da introdução do instituto da ação declaratório da constitucionalidade pela
Emenda Constitucional nº 3, quanto à fungibilidade entre ela e a ação declaratória de inconstitucionalidade;
bem como no que toca à vinculatividade dos efeitos dos dois institutos. A matéria só se pacificou com a
edição da Lei 9868/99, que afirmou um e outro atributo às duas ações de controle abstrato.
61 Sistematizando o papel do amicus curiae no sistema brasileiro, consulte-se Medina (2010).
62 Examinando o desenho legislativo e a prática institucional das audiências públicas no Supremo Tribunal
Federal, consulte-se Ajouz et. ali (2012) e Ajouz e Silva (2013).
63 Representando o debate em torno dessa nova temática, consulte-se Hübner (2013) e Silva (2013), onde
se explora a hipótese de que as decisões forjadas no STF não se revelem aptas a expressar deliberação no
sentido estrito da palavra.
AS CATEGORIAS JURÍDICAS E A REALIDADE
EXTERNA 64
LEGAL CATEGORIES AND THE EXTERNAL
WORLD

Andre Wendriner65
Pedro Aurélio de Pessôa Filho66
Rachel Herdy67
Janaina Matida68
Alexandre De Luca69

RESUMO
O objetivo deste trabalho é investigar o problema da categorização dos fatos no Direito. A categorização é
um exercício intelectual do julgador que consiste em qualificar um fato concreto como estando ou não
incluído no predicado fático de uma norma. Toda regra possui um predicado fático (também chamado de
protasis), o qual se refere a uma classe específica de coisas ou eventos e designa o campo de cobertura
da regra. A categorização é um tipo de raciocínio prévio que se configura como condição necessária à
aplicação do Direito. Com efeito, a categorização precede a aplicação de regras e precedentes, a
construção de analogias e a determinação dos fatos. A escolha da categoria a ser empregada reflete o
modo pelo qual o Direito relaciona-se com o mundo real – ora recorrendo a categorias do mundo jurídico,
ora referindo-se a categorias extrajurídicas. A presente pesquisa conceitua a categorização, explora a sua
relevância em diversas formas de raciocínio jurídico e levanta algumas hipóteses interessantes a respeito
das implicações decorrentes do tipo de categorização que o Direito decide empregar.

PALAVRAS-CHAVE
Categorização; raciocínio jurídico; epistemologia aplicada.

ABSTRACT
The aim of this paper is to investigate the problem concerning the categorization of facts in the Law.
Categorization consists of an intellectual exercise performed by the trier of fact, who qualifies the inclusion
or exclusion of a fact under the rule’s factual predicate. Every rule contains a factual predicate (also
called protasis), which refers to a specific class of things or events, and designates the boundaries of
applicability of the rule. Categorization is a type of previous reasoning that figures as a necessary condition
to the application of the Law. Accordingly, categorization is prior to the application of rules and precedents,
to the construction of analogies and to the process of fact-finding. The choice of a category reflects the
way in which the Law deals with the external world – sometimes making use of exclusive law-created
categories, while at others referring to non-legal categories. This research theorizes categorization,
explores its relevance in different forms of legal reasoning, and formulates some interesting hypothesis
concerning the implications arising from the type of categorization that the Law chooses to apply.
KEYWORDS
Categorization; legal reasoning; applied epistemology.

INTRODUÇÃO
O presente trabalho investiga o problema da categorização dos fatos no
Direito. Na medida em que a categorização é uma operação intelectual que
precede toda forma de raciocínio jurídico, é necessário aprofundar a
compreensão de diversos modos de raciocínio jurídico. Analisaremos o
raciocínio com base em regras, a construção de analogias, a aplicação de
precedentes e a determinação dos fatos no contexto judicial70. Cada raciocínio
será analisado, em momento posterior, através de sua significação no contexto
extrajurídico vis-à-vis sua aplicação no contexto judicial. A justificativa da
presente pesquisa reside no fato de que a categorização desempenha uma
função que está mais no centro do raciocínio jurídico que costumamos
reconhecer71. Todo raciocínio jurídico pressupõe a categorização72; no entanto,
pouco se fala a respeito da categorização como um processo de raciocínio no
direito.
O conceito de “categorização” tem acepções diferentes a depender do
contexto em que aparece73. No mundo extrajurídico, a categorização é definida
como a atividade de organização empreendida pelo homem sobre sua própria
experiência. Esta organização opera com a classificação da experiência em
conceitos, associando-lhes rótulos linguísticos. A categorização é um
procedimento necessário no raciocínio sobre a realidade em geral, pois a
atribuição de significação aos fatos do mundo só ocorre mediante o uso de
categorias. Os fatos percebidos74 são assim organizados em grupos, classes ou
modelos75.
No contexto judicial, a categorização é uma atividade intelectual do
julgador que consiste em qualificar um fato do caso concreto como estando
incluído ou não no predicado fático de uma regra. Esta atividade também é
frequentemente chamada de “qualificação” ou “fixação”. Além de sua
importância para o raciocínio jurídico, vale ressaltar que o próprio predicado
fático de uma regra constitui uma categorização. É fácil entender o papel da
categorização na formulação das regras quando constatamos que o predicado
fático de uma regra é sempre uma generalização. Se há uma placa fixada na
parede de uma restaurante que diz “Cães não são permitidos”, o predicado
fático se refere a “qualquer tipo de cachorro neste restaurante, em qualquer
tempo”, e não a um cachorro em particular. Se a política de uma companhia
aérea diz que “Não serão permitidos, como bagagem, cães braquicefálicos”,76
ainda que tenha sido formulada de maneira mais específica, a política continua
operando através de uma generalização, uma vez em que ela proíbe todas as
raças que são afetadas pela síndrome branquicefálica de serem verificadas
como bagagem, e não a um bulldog em particular. “Não há regras para
particulares”, escreve Frederick Schauer77.
O problema que se vislumbra é que a escolha da categoria reflete o modo
pelo qual o Direito se relaciona com o mundo real78, ora operando com
categorias do mundo extrajurídico, ora com categorias eminentemente
jurídicas. Deve-se ter em mente que a escolha da categoria para qualificar
certos fatos é um ato de decisão do julgador, sendo que, em determinadas
situações, o Direito norteia-se por categorias extrajurídicas, como “feto”, e,
em outros momentos, por categorias estritamente jurídicas, como “bens” ou
“nascituro”. Por categorias extrajurídicas ou pré-jurídicas entendem-se
aqueles conceitos presentes em domínios externos ao Direito, como a Biologia
e a Política. Nesse sentido, é de se imaginar que o conceito de “feto” tenha um
sentido fora da realidade jurídica. Por outro lado, há de se notar que conceitos
como “bens” não possuem sentido senão no Direito. Perceba-se, ademais, que
a categorização, independentemente de operar com categorias jurídicas ou
extrajurídicas, associa o Direito a fatos do mundo, o que faz com que este
processo seja indispensável para a submissão do mundo ao governo de
regras79.
Este trabalho está estruturado em cinco partes, dedicadas a analisar quatro
diferentes tipos de raciocínio jurídico. Em cada parte, após uma análise da
estrutura do raciocínio em questão, buscaremos situar o problema da
categorização. Assim, nas seções que se seguem, analisaremos (I) o raciocínio
com base em regras, tendo como foco os casos difíceis; (II) a construção de
analogias; (III) a utilização de precedentes, muito semelhante à aplicação de
regras; e (IV) a determinação dos fatos. Por fim, na seção V, levantaremos
algumas hipóteses a serem investigadas no futuro.

1 REGRAS
A depender de seu contexto, extrajurídico ou judicial, um tipo de
raciocínio pode sofrer interpretações diversas, evidenciando o caráter
polissêmico do termo, ou apresentar maior ou menor especificidade. As
regras, no contexto extrajurídico, podem ser definidas como um
direcionamento do comportamento humano, que preceitua uma forma
apropriada de falar80, por exemplo. No contexto judicial, a este raciocínio é
atribuído uma especificidade maior, sendo ele caracterizado por prescrições
dotadas de um antecedente – chamado de predicado fático – e de um
consequente. Contudo, o elemento mais importante no raciocínio com base em
regras é a ideia de generalização.
Imaginemos o exemplo hipotético de Mário, um excelente motorista, que
estava dirigindo seu carro novo em um dia ensolarado de domingo a 80km/h,
limite para aquela rodovia. Ao conduzir seu carro em direção a saída, ele
entra em uma rua cujo limite de velocidade é 40 km/h, devido a presença de
uma escola pública a poucos metros. Mário, no entanto, continua a 80 km/h,
velocidade esta que possui total controle de seu carro, somado ao fato de que
não havia aula naquele dia. Um agente policial, por conseguinte, ao presenciar
o fato, solicitar o encostamento do carro e entrega a multa a Mário dizendo:
“A questão é que 40km/h é 40km/h, senhor, independente da circunstância”.
Toda regra, portanto, contém uma generalização81, pois é criada para abranger
vários casos e não atender às especificidades de apenas um caso concreto.
Além disso, toda regra também possui um texto82 – “é proibido conduzir acima
de 40 km/h” – e um propósito subjacente – devido à presença de uma escola a
poucos metros.
Por serem generalizações, as regras podem ser, quando aplicadas,
sobreinclusivas ou subinclusivas83. No primeiro caso, as regras incluem
eventos que não deveriam incluir tendo em vista o seu propósito subjacente;
no segundo caso, as regras não incluem eventos que deveriam incluir tendo em
vista o seu propósito subjacente. O caso de Mário configura um exemplo de
sobreinclusão uma vez que ele não violou o propósito subjacente da regra. Um
caso de subinclusão seria o de Felipe, por exemplo, um péssimo motorista.
Mesmo dirigindo a 30 km/h, em um dia de semana, Felipe oferece riscos
graves à segurança das crianças. Ele não seria, contudo, incluído na hipótese
da regra referida. A ideia de generalização, e o consequente fenômeno da
sobre- e subinclusão permitem-nos compreender a afirmação de que as regras
são regras porque oferecem razões de autoridade84. Isso significa que o
julgador deve aplicar a regra independentemente da sua concordância com o
conteúdo – não importa se ele acha ou não que Felipe é um péssimo condutor,
a regra não será aplicada a ele85. É nisso que consiste o raciocínio com base
em regras. Percebemos essa característica das regras quando internamente o
julgador discorda do conteúdo da regra, mas mesmo assim deve aplicar suas
consequências.
Passemos à análise da categorização no raciocínio com base em regras.
Para ilustrar como a categorização incide sobre o raciocínio com base em
regras, podemos pensar no caso enunciado pelas seguintes proposições:
“Aline estava grávida”, “Aline envolveu-se em um acidente de carro”, “O
acidente resultou no aborto” e “Aline pede indenização com base no artigo 3º,
I da Lei 6.194/74 da Lei do Seguro DPVAT”. Com efeito, diz o referido
dispositivo da Lei 6.194/74:
Os danos pessoais cobertos pelo seguro [DPVAT] compreendem as
indenizações por morte, invalidez permanente, total ou parcial, e por
despesas de assistência medica e suplementares, nos valores e
conforme as regras que se seguem, por pessoa vitimada:
I. R$ 13.500,00 no caso de morte;
II. Até R$ 13.500,00 no caso de invalidez permanente;
III. Até R$ 2.700,00 como reembolso à vítima no caso de assistência
médica.
Há de se perceber que o dispositivo acima descreve situações de “morte,
invalidez permanente, total ou imparcial” e fala em “pessoa vitimada”. É
tendo em mente essas categorias que se deve responder aos seguintes
questionamentos: “pode o feto ser categorizado como pessoa?”, “pode o feto
ser categorizado como pessoa vitimada para efeitos de seguro DPVAT?”,
“pode o feto ser categorizado como titular do direito de indenização por
morte?” e “pode o ser que não nasceu morrer?”. Em suma, como classificar o
caso do feto? Somente por meio da categorização do bebê da Aline é que
poderemos saber se a lei incide ou não sobre o seu caso86.
Trata-se este exemplo de uma ilustração do caso presente no RESP n.
1.415.727 – SC. No julgamento deste recurso indicou que uma interpretação
literal do artigo 2º do Código Civil não condiria com uma interpretação
sistemática do ordenamento jurídico. Aquela interpretação levaria à crença de
que a personalidade jurídica dá-se apenas quando do nascimento com vida,
porém esta última revela que o conceito de pessoa não está vinculado
necessariamente à ocorrência daquela situação fática. Assim, o rótulo de
“pessoa”, neste último caso, poderia ser flexibilizado quanto às situações
fáticas que por ele são contempladas. É neste sentido que se observa o
nascituro enquanto “pessoa”, como estaria presente na interpretação
sistemática dos artigos 1º, 2º, 6º e 45, caput, do Código Civil. O julgado traz
também a presença do “crime de aborto” enquanto “crime contra a pessoa” e
“crime contra a vida”, o que se levaria a crer que o nascituro teria a condição
de pessoa viva. Outro argumento trazido está em se afirmar que as teorias
natalista e da personalidade condicional foram erigidas sob a órbita
patrimonial – contra a qual foram positivadas a Constituição de 1988 e o
Código Civil de 2002, atualmente em vigor. Afirma-se ainda que tais teorias
só fazem sentido se reconhecido o direito à vida, sendo este necessário para
que se possa pensar em garantia de expectativas de direitos ou direitos
condicionados ao nascimento.
O caso consiste em um acidente automobilístico que resultou no aborto de
um nascituro de aproximadamente quatro meses, conforme noticiado por
Graciane Muller Selbman, que ajuizou, então, a ação em face da Seguradora
Líder dos Consórcios do Seguro DPVAT. Requereu-se a indenização por morte
com base no disposto do art. 3º, caput e inciso I, da Lei n. 6.194/1974. Na
primeira instância, o caso foi julgado procedente. É de se notar que, neste
momento, o Juízo de Direito categorizou o feto enquanto pessoa, pois imputou
consequências que só fazem sentido quando da constatação de que o fato pode
consistir da premissa fática de um silogismo cuja premissa normativa continha
a categoria de “pessoa”, implícita ou explicitamente. Da mesma forma, exigir-
se-ia a categoria de “pessoa viva” no predicado fático desta norma,
respondendo-se, pois, quando da aceitação da referida premissa fática
enquanto componente deste silogismo, afirmativamente quanto à questão
outrora suscitada “pode o ser que não nasceu morrer?”.
Em grau de apelação, porém, o julgado foi alterado, sendo negada a
indenização. Discutiu-se a natureza jurídica do nascituro, chegando-se à
impossibilidade de recebimento de direitos patrimoniais, a qual estaria sujeita
à condição do nascimento com vida. Afirmou-se a teoria condicionalista
presente no art. 2º do Código Civil, cuja interpretação não-sistêmica, como
mencionado mais acima, levaria ao não reconhecimento da aquisição da
personalidade pelo nascituro. Outro argumento que se pode notar consiste em
que apenas direitos personalíssimos poderiam ser garantidos aos nascituros,
como o direito à vida, porém não direitos patrimoniais, de forma que não se
receberia o a indenização requerida – havendo, apenas, pois, uma mera
expectativa de direitos patrimoniais.
No julgamento do recurso especial fundado materialmente neste caso,
porém, contra-argumentou-se que a autora não buscaria direitos patrimoniais
do nascituro, porém requereria indenização pela produção do resultado morte,
sendo que, no caso de norte, a pessoa do beneficiário do seguro não
coincidiria com a da vítima do sinistro.
A decisão explora ainda as três teorias que poderiam ser aplicáveis ao
caso, devendo-se observar que cada teoria realizaria uma categorização
distinta. A teoria natalista não rotularia o nascituro como pessoa, pois a
personalidade jurídica só se iniciaria com o nascimento. Fala-se aqui em
expectativas de direitos, não em direitos. A teoria concepcionista, por seu
turno, qualificaria o nascituro como pessoa, visto que a personalidade jurídica
só se iniciaria com a concepção. Assim, o nascituro seria sujeito de direitos.
Seria, pois, possível, para esta teoria a subsunção no silogismo jurídico de
uma norma que, em seu predicado fático, se remetesse à categoria de “pessoa”
e uma premissa fática que apresentasse a categoria de “nascituro”, pois este
não seria que “pessoa”. Há ainda a teoria da personalidade condicional, em
que o nascituro titularizaria direitos submetidos a condição suspensiva, porém
a personalidade começaria apenas com nascimento. Para esta teoria, não seria
ainda, o nascituro pessoa.
Ainda sobre categorização, a decisão aponta que a categoria de “pessoa” e
a de “sujeito de direitos” não esgotam seus conteúdos mutuamente, pois entes
outros que não pessoas podem ser sujeitos de direitos, não sendo, pois, todo
sujeito de direitos, pessoa. Assim, seria mais fácil se entender o nascituro
como sujeito de direitos do que como pessoa, visto a maior quantidade de
eventos que podem ser qualificados por aquele conceito. Afirma a decisão,
ainda, que os conceitos de “pessoa” e “personalidade jurídica” não são
tampouco sinônimos, sendo esta mais restrita que aquela, o que se observa
pela construção presente no artigo 2º do Código Civil “a personalidade civil
da pessoa começa”. É ainda se pautando nesta distinção que se poderá dizer
que a lei é silente quanto ao início da existência da pessoa natural, o que se
infere a partir da constatação dos termos expressos no artigo 6º, em que se
afirma “[a] existência da pessoa natural termina com a morte”, como bem
aponta o juiz deste recurso, o Ministro Luis Felipe Salomão. Aponta, assim, o
Ministro: “Portanto, extraem-se conclusões que afastam a ideia de que só
pessoas titularizam direitos e de que a existência de pessoa natural só se inicia
com o nascimento”; e continua “Porém, segundo penso, a principal conclusão é
a de que, se a existência da pessoa natural tem início antes do nascimento,
nascituro deve mesmo ser considerado pessoa, e, portanto, sujeito de direito,
uma vez que, por força do art. 1º, “[t]oda pessoa é capaz de direitos e deveres
na ordem civil”. Aqui, observa-se, uma vez mais a categorização do nascituro
enquanto pessoa, e, em virtude do fenômeno “pessoa” estar contido,
juridicamente, no de “sujeito de direitos”, haveria de se entender “nascituro”
enquanto contemplado por “sujeito de direitos”. Assim, nota-se um atributo
básico da categorização, ela opera com níveis de generalização; uma categoria
genérica poderia abarcar mais situações fáticas que uma categoria não-
genérica – e, principalmente, quando se puder falar de generalização, se pode
falar de categorias, pois, ser mais ou menos genérico é prerrogativa da
categoria, não da situação fática tampouco na porção essencialmente
normativa de uma norma.

2 ANALOGIA
Entendido no meio extrajurídico com uma “relação de semelhança entre
coisas ou fatos”87, a analogia, no contexto judicial, fundamenta-se na
identificação de propriedades relevantes semelhantes. A mera semelhança de
atributos entre duas situações não é suficiente para a construção de um
raciocínio analógico para o Direito. É preciso que os atributos identificados
sejam juridicamente relevantes.
Um exemplo claro de raciocínio analógico pode ser identificado em um
dos debates mais polêmicos das eleições presidenciais de 201488. Ao afirmar
que o discurso do candidato Lévy Fidelix contra a comunidade LGBT era o
mesmo que Hitler empregava contra os judeus, a candidata Luciana Genro
construiu um raciocínio analógico baseado em relações de semelhança de
atributos e propósitos. Alguém poderia indagar, no entanto, o motivo pelo qual
a mesma construção analógica não poderia ser fundamentada com Charlie
Chaplin, por exemplo, uma vez em que os três sujeitos possuíam atributos
semelhantes, como o fato de serem homens e de possuírem bigodes. Há de ser
ver, porém, com o processo de categorização, que uma regra ou princípio
jurídico incidirá sobre as situações fáticas diferentes materializando as
propriedades relevantes para esta regra ou princípio, podendo restar, pois,
irrelevante o fato de ambos serem homens e possuírem bigodes. Assim, a
analogia não se fundamentaria sobre esses dois atributos.
Passemos à análise da categorização no raciocínio analógico. Pense-se em
duas situações fáticas que não se confundem. Uma primeira apresentando
certos atributos e uma segunda também com determinados atributos. Ao se
determinar que uma categoria abrange atributos de ambas as situações,
justifica-se a analogia entre elas. Há de se questionar, porém, como se
determina esta categoria. É ela determinada quando da incidência de uma
regra ou princípio jurídico sobre as situações fáticas, o que ocasionará a
materialização de certas propriedades que, se forem tidas como relevantes,
justificarão o raciocínio analógico. Neste sentido, de um conjunto de n
propriedades apresentados pela primeira situação fática, determinada regra ou
princípio ressaltará x, y e z, que, se presentes também na segunda situação
fática como propriedades relevantes, levarão à analogia. Há de se pensar,
neste ponto, que a categorização pode ser feita com base em atributos ou
propósitos. Os primeiros dizem respeito a propriedades pré-existentes ao que
o homem possa pensar sobre elas; enquanto os segundos são eminentemente
humanos ou institucionais89. Quando da analogia entre situações fáticas,
verificou-se que foram materializados atributos – e não propósitos – mas é
necessário que se pense que os propósitos criam propriedades que são
equiparáveis a atributos e podem ser materializadas por um princípio ou regra.
Pensar que “a criança deve ser protegida” implica afastar facas e pedófilos,
que não são semelhantes quando de uma concepção unicamente natural ou pré-
humana, visto que não há atributos prévios semelhantes. Os propósitos, por
isso, têm o condão de indicar propriedades equivalentes aos atributos e que
poderão justificar uma possível analogia que equipare pedófilos a facas e
cigarros, todos, de alguma forma, perigosos a crianças.

3 PRECEDENTES
A utilização do termo precedente em outros contextos não jurídicos se
diferencia em grau de intensidade normativa, e pode ser confundido com o
termo analogia90. No mundo externo ao Direito, refere-se a precedente para
designar uma “decisão ou modo de agir que serve de referência para um caso
parecido”91. No contexto judicial, porém, trata-se de uma decisão passada que
opera como prescrição para a resolução de casos futuros92. Dessa forma, nota-
se que o precedente não oferece tão somente uma referência ou argumentação
persuasiva – como a analogia – mas também evidencia a existência pré-
determinada de uma resposta do Direito para a hipótese fática em questão.
Consiste, por conseguinte, em um raciocínio com base em regras, uma vez que
sua aplicabilidade não está condicionada à discricionariedade do julgador. De
modo a justificar sua aplicação, MacCormick elenca três motivos: (1) justiça;
(2) imparcialidade; e (3) economia de tempo e esforço. No que concerne à
razão de justiça, sustenta-se que casos iguais devem ser tratados igualmente,
de modo a garantir a segurança jurídica. A imparcialidade, por sua vez,
possibilita a manutenção de um sistema constante, que promove a mesma
justiça a todos, pois a fidelidade ao Estado de Direito requer que se evite
qualquer variação frívola no padrão decisório de um juiz ou corte para outro.
Já o ultimo motivo permite que juízes e advogados não precisem realizar novo
esforço argumentativo sobre as mesmas circunstâncias. Como exemplo, tem-se
a Resolução nº 175 do Conselho Nacional de Justiça – que proíbe as
autoridades competentes de se recusarem a habilitar, celebrar casamento civil
ou de converter união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo -
que utilizou a ADPF 132 e a ADI 4277, ações estas que tratavam da União
estável homoafetiva, como precedente.
A categorização no raciocínio sobre precedentes opera de forma bastante
similar à categorização no raciocínio analógico. Pode-se pensar na ADPF 132
e na ADI 4277, ambas de 2011, sendo seu resultado o da equiparação de
cônjuge aos companheiros de mesmo sexo. Imagine-se um caso, em 2014, em
que Caio, companheiro de Tício, morre; pergunta-se: Tício poderia herdar de
Caio tal como ocorre quando da morte de um dos cônjuges? Tendo-se como
base os precedentes supracitados, a resposta seria afirmativa. Percebe-se, com
isso, que os casos das ADPF 132 e ADI 4277 devem ser relevantemente
semelhantes (tal como as propriedades na analogia) a este caso recente de
Caio e Tício para que se justifique sua utilização enquanto precedentes.
4 DETERMINAÇÃO DOS FATOS
Um tipo importante de tomada de decisão em procedimentos legais
consiste na determinação dos fatos. Não há no mundo externo ao Direito,
contudo, um termo que seja precisamente fidedigno ao significado da
expressão “determinação dos fatos”. Ainda assim, é possível traçar uma
relação entre este tipo de raciocínio com o ato de investigar, que consiste em
fazer diligências para achar, pesquisar, indagar, inquirir93. Nessa etapa do
processo legal, determina-se os fatos que são relevantes e que constituirão a
premissa fática do silogismo jurídico. Os fatos, nesse contexto, estão sempre
mediados pela linguagem, de maneira que o objeto da prova no processo legal
consiste em enunciados sobre alegações de certos fatos, e não nos fatos em si.
Essa ideia de representação se materializa no quadro La trahison des
images, em que René Magritte apresenta um cachimbo junto a seguinte
afirmação: “Ceci n’est pas une pipe” (“Isto não é um cachimbo”). Trata-se de
uma representação de um cachimbo, assim como os fatos no processo legal
são representações, alegações, enunciados sobre fatos, mas não os fatos de per
si.
O raciocínio probatório constitui-se de fatos a provar e fatos probatórios94.
Neste raciocínio, há um importante procedimento: o de passagem dos fatos
probatórios, ou seja, as próprias provas, aos fatos que se almeja provar. Este
procedimento exige a categorização a partir do momento que se deseja
representar um fato que possa ser premissa fática de uma regra jurídica.
Tomemos um exemplo. “Tício impediu Caio de respirar ocasionando-lhe
inatividade cerebral” se trata do fato probatório. Entretanto, determinada
premissa normativa “Quem mata deve ser punido” não se remete à inatividade
cerebral, porém à morte. O que faria, então, com que Tício fosse punido? Que
“inatividade cerebral” valesse como “morte”, predicado fático da norma.
Deste modo, o fato probatório passa a contar como o fato a provar, sendo este
procedimento de categorização necessário para a constituição da premissa
fática, o que tornará possível a decisão judicial.

CONCLUSÃO E PRÓXIMOS PASSOS


Concluímos que a categorização é imprescindível para o raciocínio
jurídico. Isto se justifica verificada que a categorização é uma operação
intelectual prévia à aplicação de regras, à construção de analogias, à
utilização de precedentes e à determinação dos fatos, que são os raciocínios
presentes no Direito. A categorização, ou qualificação, ou ainda fixação, é
essencial para que se verifique que determinadas situações fáticas apresentam
características relevantes semelhantes ou dessemelhantes, para que se possa
realizar a subsunção num silogismo jurídico, uma vez que a premissa fática
deve estar contida na categoria apresentada no predicado fático da norma,
para que se construa a própria premissa fática, verificada a transição dos fatos
probatórios aos fatos a provar.
Gostaríamos de concluir levantando cinco hipóteses sugeridas por Schauer
e que pretendemos investigar empiricamente95. São elas: (1) Eventos não
jurídicos muito notórios levam mais ao uso pelo Direito de categorias não
jurídicas; (2) As regras sobre categorias não jurídicas têm maior grau de
cumprimento; (3) A criação judicial do Direito produz mais categoriais
jurídicas, e as instâncias legislativas ou administrativas usam mais categorias
extrajurídicas; (4) Eventos jurídicos muito notórios levam a uma maior
categorização jurídica no mundo não jurídico; e, por fim, (5) A categorização
jurídica é menos conservadora (facilita mais a mudança social) do que a não
jurídica. Observamos que a segunda etapa de nossa investigação relacionará a
opção por categorias jurídicas ou extrajurídicas com diversas consequências.
Para (1), nota-se, com Schauer, que haveria uma atividade de pressão por
parte do mundo real, isto é, externo ao Direito contra ele, de forma que o
obrigaria a reagir criando normas, que podem ser regras ou princípios, que
responderiam a esta pressão exterior. Para (2), há de se notar, com Schauer,
que o índice de cumprimento das regras jurídicas seria uma função de grau
entre o nível de correspondência entre os padrões de conduta prévios à
regulamentação pelo Direito e o que seria prescrito pelas regras jurídicas.
Uma maior correspondência, todavia, levaria a que o Direito tivesse menor
possibilidade de alterar o comportamento existente no mundo. Colocam-se,
assim, em polos distintos o elevado grau de cumprimento e o elevado grau de
mudança. Para (3), Schauer apontará que seria bem mais provável que quem
tenha formação jurídica, isto é, os juízes, ou, em termos de Poder, o Judiciário,
fosse mais consciente das categorias jurídicas do que quem não tivesse esta
formação, como parte dos integrantes do Legislativo e do Executivo. Para (4),
observar-se-ia um fenômeno paralelo ao que ocorre em (1), pois se trataria
aqui da pressão exercida pelos tribunais e pelo Direito contra o mundo
externo, o mundo social, de forma que se esperaria que categorias utilizadas
neste mundo fossem oriundas de categorias criadas no Direito. Para (5),
haveria de se notar que quando o Direito selecionasse uma categoria não
jurídica, elegeria uma categoria fora de seu controle, sendo que, quando o
sistema jurídico opta por categorias próprias, estaria apartado de tendências
de um mundo maior em que o processo de mudança categorial seria muito mais
dificultoso, de forma que se entenderia o Direito como menos conservador que
o mundo real e capaz de criar categorias livres da “tendência estabilizadora”
deste mundo externo. Pelo momento, afirmamos, com Schauer, que “a
categorização pode estar situada mais no centro da empresa jurídica do que se
tem normalmente se reconhecido”96.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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prueba. Madrid: Marcial Pons, 3º ed, 2010.
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SCHAUER, Frederick F. Thinking Like a Lawyer: A New Introduction to
Legal Reasoning. USA: President and Fellows of Harvard College, 2009.
SCHAUER, Frederick F. La categorización, en el Derecho y en Mundo.
Doxa, Cuardernos de Filosofia del Derecho, 2005.
SPELLMAN, Barbara A.; SCHAUER, Frederick. Legal Reasoning. Virginia
Public Law and Legal Theory Research Paper No. 2012-09.

64 Este artigo é resultado de pesquisa realizada no âmbito no Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia
Jurídica Aplicada aos Tribunais (GREAT/Faculdade Nacional de Direito–FND/Universidade Federal do
Rio de Janeiro–UFRJ) sob orientação das professoras Rachel Herdy e Janaína Matida.
65 Graduando em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de janeiro;
monitor de Filosofia Geral; e pesquisador do Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos
Tribunais (GREAT). E-mail: andre_wend@hotmail.com.
66 Graduando em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro;
bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC, 2014-2016); e pesquisador do
Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais (GREAT). E-mail: pedrodepessoa@ufrj.br.
67 Professora Adjunta da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro;
Professora Permanente do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de
Janeiro; e pesquisadora-líder do Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais (GREAT).
E-mail: rachelherdy@direito.ufrj.br.
68 Professora Substituta da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro;
Doutoranda na Universidad de Girona; e pesquisadora-líder do Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia
Aplicada aos Tribunais (GREAT). E-mail: janamatida@gmail.com.
69 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e
pesquisador do Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais (GREAT).
70 SPELLMAN, Barbara A.; SCHAUER, Frederick. Legal Reasoning. Virginia Public Law and Legal
Theory Research Paper No. 2012-09, p. 3.
71 Idem, p. 17.
72 SCHAUER, Frederick F. La categorización, en el Derecho y en Mundo. Doxa, Cuardernos de
Filosofia del Derecho, 2005, p. 308.
73 Define o Dicionário Houaiss “categorização” como “1. ato ou efeito de classificar por ou em
categorias. 2. organização da experiência humana em conceitos, tendo rótulos linguísticos a eles
associados”. Trata-se este do sentido pré-jurídico do termo, isto é, o modo como é compreendido fora da
realidade do Direito.
74 GONZÁLEZ LAGIER, Daniel. Hechos y Argumentos I. Jueces para la Democracia. Información y
Debate, nº 46, 2003 p. 19.
75 SCHAUER, 2005, op. cit., p.309.
76 Esta regra aparece na política de bordo da American Airlines.
77 SCHAUER, Frederick F. Playing by the Rules: A Philosophical Examination of Rule-Based
Decision-Making in Law and in Life. New York: Oxford University Press, 1991, p. 17
78 Ibid., p.308.
79 SCHAUER, 2005, op. cit., p.309
80 Dicionário Houaiss: “re.gra sf. 1. Aquilo que regula, dirige, rege. 2. Norma, fórmula que indica o modo
apropriado de falar, pensar, agir em determinados casos”.
81 SCHAUER, Frederick F. Thinking Like a Lawyer: A New Introduction to Legal Reasoning.
USA: President and Fellows of Harvard College, 2009, pp. 24-9.
82 Ibid., pp.29-35.
83 SCHAUER, 1991, op. cit. pp. 31-4.
84 SCHAUER, 2009, op. cit., pp.61-7.
85 SCHAUER, 1991, op. cit., pp.3-6.
86 O exemplo refere-se a uma recente decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, no RESP n.
1.415.727 de Santa Catarina, relatado pelo Ministro Luiz Felipe Salomão.
87 Dicionário Houaiss: “a.na.lo.gi.a sf. 1. relação de semelhança entre coisas ou fatos distintos. 4. na
filosofia moderna, processo efetuado através da passagem de asserções facilmente verificáveis para
outras de difícil constatação, realizando uma extensão ou generalização probabilística do conhecimento.”
88 Debate presidencial das eleições de 2014 no Brasil, promovido pela Rede Globo no dia 02 de outubro.
Disponível em: http://youtu.be/jQbj3Pe81JE?t=1m10s.
89 SCHAUER, 2005, op. cit., p. 310.
90 SCHAUER, 2009, op. cit., pp. 85-91.
91 Dicionário Houaiss: “pre.ce.den.te sm. 3. fato que permite entender um outro fato análogo e posterior;
decisão ou modo de agir que serve de referência para um caso parecido. 4. fato ou ato anterior invocado
como justificação ou pretexto para se agir da mesma forma”.
92 SCHAUER, 2009, op. cit., p. 37.
93 Dicionário Houaiss: “in.ves.ti.gar. v.t.d. 1. seguir os vestígios, as pistas de 2. fazer diligências para
descobrir <i. os motivos de um crime> 3. procurar descobrir (algo), com exame e observação minuciosos;
pesquisar (i. a causa de uma doença).
94 GONZÁLEZ, D. Hechos y Argumentos II: Racionalidad epistemológica y prueba de los hechos
en el proceso penal. Jueces para la Democracia, nº 47, 2003, p.35.
95 SCHAUER, 2005, op. cit., p.307.
96 Ibid, p.320.
A BUSCA PELOS FATOS NO DIREITO: A
COERÊNCIA É UMA BOA DETETIVE?
FACT FINDING AT LAW: IS COHERENCE A
GOOD DETECTIVE? 97

Juliana Melo Dias 98


Rachel Herdy 99

RESUMO
Na década de 1960, uma teoria bastante peculiar ganhou força nos países da common law. Impulsionado
pelo caso People v. Collins, o probabilismo jurídico, como ficou conhecido na literatura, conquistou
diversos juristas e filósofos americanos. Sua premissa básica consiste na ideia de que é possível aplicar a
teoria da probabilidade matemática ao direito de forma a se avaliar as provas disponíveis e, a partir disso,
chegar a conclusões acerca das alegações sustentadas pelas partes. Para que se realize essa aplicação, o
teorema de Bayes, uma fórmula matemática, é de extrema importância, na medida em que nos permite
recalcular a probabilidade de uma alegação sempre que uma nova prova surgir. Apesar do grande apoio
conquistado no século passado, o probabilismo jurídico está equivocado. É a probabilidade epistêmica, e
não a matemática, que nos permite avaliar as provas disponíveis e chegar a conclusões sobre o caso
concreto. Mas no que consiste a probabilidade epistêmica? Para alguns autores, ela está relacionada à
noção de coerência, o que nos leva a uma segunda questão: qual o papel desempenhado pela coerência na
busca pelos fatos no direito? Há duas abordagens interessantes que se debruçam sobre essa pergunta. A
primeira, de Amalia Amaya, confere à coerência um papel central e trabalha com a noção de
responsabilidade epistêmica. A segunda, de Susan Haack, conjuga o coerentismo com a sua teoria rival na
epistemologia, qual seja, o fundacionalismo, além de trabalhar com a noção de garantia e suas dimensões.
Resta saber qual dessas duas abordagens é a mais adequada para a justificação de hipóteses ou alegações
no contexto jurídico da busca pelos fatos. Em que devemos confiar, afinal, na responsabilidade epistêmica
ou nas dimensões da garantia?

PALAVRAS-CHAVE
Coerência; inferência à melhor explicação; fundacoerentismo.

ABSTRACT
In the 1960 decade, a very peculiar theory became strong in the common law countries. Driven by the
People v. Collins case, legal probabilism, as it became known in literature, attracted many american
jurists and philosophers. Its basic premisse is that it is possible to apply the mathematical probability theory
in law in order to evaluate the available evidence and then reach conclusions about the litigants’ claims.
Bayes’ theorem, a mathematical formula, is an essential part for that work, as it allows us to recalculate
the probability of a claim whenever we discover new evidence. Despite the support conquered in the last
century, legal probabilism is mistaken. The probability that allows us to evaluate evidence and reach a
conclusion about the case is the epistemic one. But what epistemic probability is? For some authors, it’s
related to the notion of coherence, what takes us to another question: what’s the role of coherence in law
fact finding? There are two interesting approaches that answer this question. The first one, developed by
Amalia Amaya, gives coherence a central role and works with the notion of epistemic responsability. The
second one, developed by Susan Haack, unites coherentism with its rival theory in epistemology, that is,
foundationalism, and works with dimensions of warrant. The question is: what of these two approaches is
more adequate to justify hypotheses or claims in law fact finding? In which one should we trust: epistemic
responsability or dimensions of warrant?

KEYWORDS
Coherence; inference to the best explanation; foundherentism.

INTRODUÇÃO
Tradicionalmente, as discussões acerca da justificação das decisões
judiciais se debruçam sobre a premissa normativa, questionando, por exemplo,
como as normas devem ser interpretadas e aplicadas aos casos concretos. No
entanto, outra questão igualmente importante começa a reivindicar seu espaço
na literatura. Não apenas as premissas normativas carecem de justificação,
mas também as premissas fáticas. Afinal, não pode o julgador decidir sem que
antes as partes tentem provar as alegações sobre fatos por elas sustentadas.
Dessa forma, surge a pergunta: existem critérios para que o julgador possa
acreditar que determinada premissa fática é verdadeira de forma justificada?
Uma resposta que se tornou bastante popular na década de 1960 busca
amparo na probabilidade matemática. O então chamado probabilismo jurídico
afirmava ser possível avaliar as alegações e provas disponíveis por meio de
axiomas e fórmulas matemáticos, como, por exemplo, o teorema de Bayes.
Nos últimos anos, porém, surgiu um forte movimento contrário ao
probabilismo jurídico, argumentando que a probabilidade aplicável ao direito
não é a matemática, mas sim a epistêmica, pois é a epistemologia que nos
permite raciocinar diante de provas complexas.
É justamente sobre essa discussão que se debruça o presente artigo, o qual
foi dividido em duas partes. A primeira se dedica ao estudo do probabilismo
jurídico, enquanto a segunda se dedica ao estudo da probabilidade epistêmica
3. Cada uma dessas partes foi dividida em seções diferentes. A seção um
expõe de forma breve a história do probabilismo jurídico, apontando alguns
de seus principais autores. A seção dois traz algumas explicações acerca da
teoria e da aplicação do teorema de Bayes, bem como os principais
argumentos a seu desfavor. A seção três aborda uma proposta alternativa que,
contudo, ainda não abandona totalmente o cálculo matemático. A seção quatro
dá início ao estudo da noção de probabilidade epistêmica, trazendo noções
importantes sobre teorias da verdade e teorias da justificação. Nas seções
cinco e seis, por fim, adentramos as abordagens de duas autoras específicas,
Amalia Amaya e Susan Haack, trabalhando suas principais ideias.
Enquanto Amaya sustenta uma abordagem centrada na ideia de coerência,
Haack conjuga o coerentismo com sua teoria rival de justificação epistêmica,
o fundacionalismo. Ambas as autoras, porém, trabalham com a noção de
verdade como correspondência. Outra diferença diz respeito aos métodos de
justificação adotados por cada uma. Enquanto a primeira se foca no sujeito
julgador e na noção de responsabilidade epistêmica, a segunda se foca no
objeto (as evidências) e na noção de garantia.

97 Trabalho investigado no âmbito do Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais
(GREAT/Faculdade Nacional de Direito–FND/Universidade Federal do Rio de Janeiro–UFRJ) sob
orientação da professora Rachel Herdy.
98 Aluna de Graduação da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais (GREAT),
orientado pela Prof.ª Rachel Herdy. E-mail: mimikachan12@hotmail.com.
99 Professora Adjunta do Departamento de Teoria do Direito da Faculdade Nacional de Direito da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Professora Colaboradora do Mestrado em Teorias
Jurídicas Contemporâneas da UFRJ; Doutora em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: rherdy@ufrj.br.
PRIMEIRA PARTE
1 TRIAL BY MATHEMATICS
Na década de 1960, um caso a princípio simples causou grande comoção
entre os juristas americanos. O casal Collins, acusado de roubar uma senhora
em um beco de Los Angeles, Califórnia, foi condenado com base em um
cálculo probabilístico. Tal episódio, no mínimo curioso, envolvia um júri
dominado pelo fascínio, mas iletrado nos conceitos matemáticos que a
acusação lhes apresentou. O grande argumento em desfavor dos Collins era de
que as chances de se encontrar um casal exatamente como eles eram muito
baixas, o que implicaria a sua culpa.
Talvez soe estranho para aqueles inseridos na tradição da civil law que
uma decisão possa ser pautada em números, mas decisões nesse sentido
ocupam um lugar interessante nos Estados Unidos. Tanto no âmbito civil como
no criminal, encontramos casos em que a probabilidade desempenha um papel
fundamental, seja para condenar o réu, seja para negar ao autor a indenização
por um determinado dano, dentre outras hipóteses. Existem, inclusive, vários
estudos sobre o assunto, alguns sob um ponto de vista moral100, outros sob um
ponto de vista epistêmico101.
Não se tratam, em geral, de casos que causem clamor por conta de
aspectos políticos ou morais. Como disse a epistemóloga Susan Haack, eles só
poderiam ser realmente amados por estudiosos interessados em direito
probatório (2014b). No entanto, não deixam de ser importantes, justamente por
sua premissa básica ser questionável: afinal, como pode o cálculo
probabilístico, pertencente à lógica formal, ser aplicável ao direito, no qual
temos situações únicas que não podem ser repetidas, além de princípios e
juízos de valor que influenciam a tomada de decisões?
Voltemos ao caso do assalto no beco. A história tem início em junho de
1964, quando uma senhora volta para sua casa após fazer compras. Ela é
surpreendida por uma jovem loira que tenta derrubá-la para roubar sua bolsa.
Em meio ao susto, tudo o que consegue registrar é que a agressora veste
roupas escuras e prende os cabelos em um rabo de cavalo. Não muito longe
dali, um homem que cuida de seu jardim vê a referida jovem fugir do beco e
saltar para dentro de um carro amarelo dirigido por um homem negro com
barba e bigode.
Alguns dias depois, o casal Janet e Malcolm Collins é acusado do roubo e
levado a julgamento. As provas contra ambos são no mínimo confusas, com
testemunhos conflitantes e antecedentes desfavoráveis a Malcolm. É nesse
momento delicado que a acusação faz a jogada que mudaria não só a vida do
casal, mas também grande parte da literatura jurídica norte americana. Edward
Thorp, matemático contratado pela acusação, realiza um cálculo que nenhum
dos jurados é capaz de entender. Aplicando a regra do produto às descrições
fornecidas pela vítima e pelo homem do jardim, Thorp chega à conclusão de
que havia apenas uma chance em 12 milhões de se encontrar um casal com as
características dos Collins, o que significaria que a probabilidade de Janet e
Malcolm terem sido vítimas de uma terrível coincidência era mínima102. O
casal é condenado.
Quatro anos depois, o caso chega à Suprema Corte da Califórnia e é
denominado People v. Collins. Janet havia desistido, mas Malcolm recorrera,
exigindo um novo julgamento. A Corte entende que os cálculos realizados por
Thorp estão equivocados, não apenas em termos estatísticos, mas também em
termos teóricos. Afinal, o matemático se utilizara de dados inventados por ele,
desprovidos de qualquer base empírica, e ignorara um dos requisitos para a
correta aplicação da regra do produto, qual seja, a independência entre os
fatores. Alguns deles não eram realmente independentes entre si, o que por si
só derrubaria o argumento de Thorp103.
Seis características foram retiradas dos relatos da senhora e da testemunha
no jardim: mulher loira, mulher com rabo de cavalo, homem negro com barba,
homem com bigode, carro amarelo e casal inter-racial. Uma análise cuidadosa
deixa claro que as características “homem com bigode” e “homem negro com
barba” na verdade constituem uma só, qual seja, “homem negro com barba e
bigode”. Além disso, quando falamos em mulher loira e homem negro, já está
implícita a ideia de casal inter-racial, o que torna esta categoria inútil104.
Assim, para que pudéssemos falar em fatores independentes entre si, teríamos
de nos ater às seguintes categorias: “homem negro com barba e bigode”,
“mulher loira” e “carro amarelo”. Isso não eliminaria, contudo, o problema
das estatísticas inventadas.
Características Probabilidade de sua ocorrência
Carro amarelo 1/ 10
Homem com bigode 1/4
Mulher com rabo de cavalo 1/10
Mulher loira 1/3
Homem negro com barba 1/10
Casal inter-racial 1/1000
Tabela 1: Caso Collins

Outros argumentos que podem ser usados para rechaçar o raciocínio de


Thorp afetam seus cálculos de forma apenas indireta. O mais forte talvez seja
o que diz respeito à credibilidade do relato da vítima e das testemunhas. A
própria decisão da Corte traz exemplos de relatos contraditórios, de
discordâncias quanto às características do casal. Como se isso não bastasse,
tais características são, de uma forma geral, mutáveis. Mulheres podem cortar
ou pintar seus cabelos, e até mesmo cacheá-los ou alisá-los com alguma
facilidade. Homens podem raspar a barba e o bigode, ou deixar um, ou outro,
ou ambos crescerem. Se Janet e Malcolm Collins eram mesmo os criminosos
procurados, isso não implica que suas aparências tenham restado inalteradas
até o momento em que foram encontrados pela polícia105.
A Corte se debruçou sobre todas essas considerações e, no final, foi
concedido a Malcolm Collins um novo julgamento, o qual, por razões práticas,
nunca chegou a ocorrer. As testemunhas não puderam ser reunidas novamente
(FISHER, 2006 apud HAACK, 2014b). O caso Collins foi encerrado, mas as
discussões por ele suscitadas perpassaram os anos e ainda hoje despertam o
interesse de muitos juristas, alguns a favor, outros contra a aplicação do
raciocínio matemático ao direito.
O marco inicial desse embate é o ano de 1970. Michael Finklestein e
William Fairley publicaram um artigo na Harvard Law Review criticando o
método de Thorp e oferecendo sua própria abordagem106. Um ano depois, veio
a resposta107. Lawrence Tribe publicou na mesma revista um artigo rechaçando
o que ele chamou de julgamento pela ciência dos números (trial by
mathematics), não apenas por entender que a probabilidade matemática é
incompatível com o raciocínio jurídico, mas também por considerar
politicamente inadequado basear decisões jurídicas em cálculos. Ao introduzir
suas ideias, ele diz que escreve:
em reação a uma crescente e confusa literatura de admiração da
precisão da matemática no contexto judicial, uma literatura que tende
a catalogar ou assumir as virtudes das abordagens matemáticas de
uma forma tão acrítica quanto os autores passados tendiam a negar
sua relevância (1971: 1332 – tradução livre).
Em 1977, o embate recebeu um novo impulso com a entrada de Richard
Lempert na discussão108. Ao contrário de Tribe, Lempert defende a aplicação
do raciocínio matemático às controvérsias jurídicas. Para ele, a força das
provas apresentadas em juízo deveria ser medida em termos probabilísticos.
Essa ideia, que se tornou conhecida na literatura pelo nome de probabilismo
jurídico (legal probabilism), foi bastante defendida nas últimas décadas, e
ainda é possível encontrar quem a sustente. No entanto, há também quem a
critique, apontando suas falhas e desenvolvendo novas abordagens109. Dentre
as críticas mais ferrenhas ao probabilismo jurídico, não podemos deixar de
notar aquelas que atingem um de seus pontos mais importantes: o teorema de
Bayes.

2 O TEOREMA DE BAYES
Todo estudo precisa de um ponto de partida, e, no caso da probabilidade
matemática, esse ponto são os chamados axiomas de Kolmogorov. Eles
definem a base da probabilidade como a conhecemos atualmente, abarcando,
também, o teorema de Bayes. São três axiomas ao todo: (1) a probabilidade
será sempre um valor de zero a um; (2) a probabilidade de um evento certo é
igual a um e (3) para dois ou mais eventos mutuamente excludentes, ou seja,
que não podem ocorrer em conjunto, a probabilidade de um ou outro ocorrer é
igual à soma de suas probabilidades separadas110. Neles estão implícitas três
ideias importantes: a) não existem probabilidades negativas; b) a
probabilidade de um evento impossível é igual a zero e c) a probabilidade da
ocorrência de um evento qualquer somada à probabilidade de sua não
ocorrência é sempre igual a um, ou, em termos matemáticos, P(X) + P(¬X) =
1.
Em algumas situações, é possível que os eventos, em vez de excluírem uns
aos outros, sejam independentes entre si. Isso quer dizer que a ocorrência de
um deles não influenciará a probabilidade de ocorrência do outro. Nesses
casos, a probabilidade de todos ocorrerem é igual ao produto de suas
probabilidades separadas. Eis a regra do produto, a qual foi utilizada
equivocadamente por Thorp no julgamento do casal Collins. Para ilustrar o
uso correto dessa regra, podemos citar o exemplo das caixas com bolas
coloridas. Imaginem-se duas caixas (A1 e A2) contendo quantidades
diferentes de bolas vermelhas e azuis. Pergunta-se qual a probabilidade de
retirarmos uma bola vermelha de A1 e uma bola azul de A2. Para chegar ao
resultado, basta multiplicar as probabilidades em separado de cada um dos
eventos. Um aspecto importante dessa regra é que o produto será sempre
inferior à menor probabilidade dentre as probabilidades separadas dos
eventos em questão111.
Também é possível que os eventos influenciem uns aos outros, de forma
que a ocorrência de um altere a probabilidade do outro. Nessa situação, temos
a chamada probabilidade condicional, que pode ser assim problematizada:
qual é a probabilidade de um evento A ocorrer uma vez que o evento B tenha
ocorrido? Por exemplo, a probabilidade de retirarmos, aleatoriamente, o ás de
ouro de um baralho não viciado será, não havendo nenhuma condição, de 1/52.
Se, porém, nós soubermos que a carta retirada é vermelha (nossa condição), a
probabilidade será alterada, tornando-se 1/26.
O teorema de Bayes está inserido no estudo das probabilidades
condicionais. O que o diferencia é a existência de eventos mutuamente
excludentes que podem influenciar um outro evento que deles depende. Em
outras palavras, nós temos um evento B que pode ser influenciado por um
evento do tipo A, sendo que os eventos do tipo A (A1, A2, A3, A4, ..., An) não
podem ocorrer em conjunto. Imagine-se, a título ilustrativo, três caixas (A1,
A2 e A3) contendo bolas vermelhas e azuis. Retira-se uma bola vermelha de
uma delas aleatoriamente (evento B). Pergunta-se qual a probabilidade de essa
bola ter sido retirada da caixa A1.
Esse teorema, perfeito na matemática, foi adaptado para a valoração das
provas no direito. Em vez de caixas e bolas coloridas, ou qualquer que seja o
objeto que a imaginação escolher, trabalha-se com alegações fáticas que se
contrapõem. Para cada alegação p que possa ser sustentada, é possível
levantar uma alegação negativa, de não-p. No âmbito criminal, por exemplo,
podemos trabalhar com as hipóteses de culpa (o réu cometeu o crime) e
inocência (o réu não cometeu o crime). A probabilidade dessas alegações será
calculada com base nas provas disponíveis, podendo ser recalculada sempre
que se descobrir algo novo:
Suponha que nós queiramos reacessar a probabilidade de um
probandum à luz de uma nova prova. Essa probabilidade é chamada
de probabilidade posterior, pois é relativa à probabilidade dessa
alegação depois que obtivemos essa nova prova. A fim de determinar
essa probabilidade posterior, nós precisamos de dois ingredientes. O
primeiro, chamado de probabilidade anterior, expressa quão seguros
nós estávamos de que a alegação é verdadeira antes de obtermos a
nova prova. O segundo, chamado de possibilidade, permite-nos
expressar quão forte é essa nova prova para transformar nossa
probabilidade anterior em uma probabilidade posterior (SCHUM,
2005: 251 – tradução livre).
Para ilustrar a aplicação do teorema, utilizaremos um exemplo inicialmente
proposto por TRIBE (1971), em uma forma simplificada. Imagine-se o
seguinte: um jovem assassinou uma senhora de idade e fugiu da cidade assim
que possível. Apesar de seus esforços, foi pego e levado a julgamento pelo
júri. Um dos jurados, sem saber que o réu tentara fugir, atribui à probabilidade
de ele ser culpado um valor inicial x. Ao saber da tentativa de fuga, o jurado
estima a probabilidade de um réu, sendo culpado, tentar fugir e alcança o
valor y. Com base nisso, aplica o teorema e chega à conclusão de que a
probabilidade final de o réu ser culpado é igual a w.
Esse raciocínio pode parecer sedutor à primeira vista, mas apresenta
sérias falhas. O contexto jurídico é complexo demais para se sujeitar à lógica
matemática. Não raro, as provas disponíveis não nos permitem chegar a
conclusões satisfatórias, porque são imperfeitas e incompletas. Às vezes,
sequer há provas. Diz-se que a probabilidade de ocorrência de um evento x
somada à probabilidade de sua não ocorrência é igual a 1, mas, se não existem
provas ou elas são muito fracas, nenhuma probabilidade pode ser estabelecida
(HAACK, 2014b).
Um dos problemas do teorema de Bayes é que ele não abre espaço para a
dúvida. Uma vez que nem sempre haverá uma base empírica confiável para o
estabelecimento das probabilidades, como ocorre na estimativa da
probabilidade de um réu culpado tentar fugir, há o risco de o julgador se
utilizar de valores inventados e pautados em suas próprias experiências e
preconceitos. Isso faz do teorema um cálculo altamente subjetivo e, por isso
mesmo, indesejável. Afinal, se não é possível estabelecer uma probabilidade
de forma objetiva, mas esta deve ser estabelecida, até para que se possa
aplicar o teorema, não é de se estranhar que o julgador faça suas próprias
estimativas.
Além disso, o teorema é uma afronta a um dos princípios mais caros do
processo penal, pois inverte toda a sistemática da prova, jogando sobre o réu
o ônus de provar sua inocência. Ao estabelecer a probabilidade de culpa logo
no início do processo, o que deve ser feito, já que não se pode recalcular a
probabilidade onde esta não existe, o julgador está, na verdade, presumindo
que o réu é culpado. Presunção esta que dificilmente será derrubada, já que o
teorema, por sua própria natureza, tende a aumentar a probabilidade da
alegação de culpa sempre que uma nova prova desfavorável ao réu for trazida.
Portanto, o teorema de Bayes, como método para avaliar as provas
disponíveis e as alegações que nelas se baseiam, é incompatível com o
raciocínio jurídico. Os cálculos realizados são demasiado complexos, não
abrem espaço para a dúvida e podem nos levar a decisões equivocadas e
injustas. Além disso, não oferecem respostas adequadas às situações, tão
comuns no direito, em que as provas são mínimas e pouco confiáveis. Tudo
isso acaba por criar um aparente paradoxo:
o mistério que envolve os argumentos matemáticos – a relativa
obscuridade que os torna ao mesmo tempo impenetráveis e
impressionantes para o homem leigo – cria o risco contínuo de que
esse homem dará a tais argumentos credenciais que eles não merecem
e um peso que aquele não consegue explicar logicamente (TRIBE,
1971: 1334 – tradução livre).

3 A PROPOSTA DE SHAFER
Na seção anterior, fizemos um breve estudo da teoria da probabilidade, a
fim de se demonstrar em quais bases se sustenta o teorema de Bayes. Também
foram levantados argumentos que rechaçam a aplicação de referido teorema ao
raciocínio jurídico, não apenas do ponto de vista teórico, mas também do
ponto de vista político. O cálculo bayesiano, justamente por seu teor subjetivo,
torna-se demasiado perigoso e indesejável.
Além disso, o raciocínio matemático como um todo não nos permite
avaliar alegações sobre fatos, pois esses fatos não são como o experimento
das caixas com bolas coloridas, em que se podem retirar as bolas das caixas e
colocá-las de volta até a exaustão. Afinal, esse experimento tende ao infinito,
podendo ser repetido várias e várias vezes, bastando que as bolas sejam
devolvidas. Com o direito é diferente. Neste, os casos são sempre únicos,
cada qual com suas próprias peculiaridades e incertezas. Como, então, aplicar
nele fórmulas e axiomas desenvolvidos para eventos que podem ser
enumerados, contados e repetidos112?
Nesse contexto, uma contraproposta em especial chama atenção. Gleen
Shafer não rejeita totalmente o raciocínio probabilístico, o que torna
interessante o estudo de suas ideias antes de se entrar em abordagens mais
“radicais”, por assim dizer. Surge uma pergunta: seria a proposta de Shafer
capaz de revirar o jogo a favor da probabilidade matemática ou ela apenas
configuraria mais uma tentativa fracassada de quantificar alegações fáticas no
direito?
Para responder a essa pergunta, é necessário saber o que a teoria de Shafer
tem de diferente. A ideia, a princípio, parece simples. Shafer rechaça a tese de
que a probabilidade de ocorrência de um evento qualquer somada à
probabilidade de sua não ocorrência seja sempre igual a um. Com isso, ele
oferece uma possível solução para um dos maiores problemas do teorema de
Bayes: a dúvida. Ao permitir que se trabalhe com a dúvida, essa
contraproposta abre espaço para a incerteza, tão presente no direito. Para duas
alegações que se excluem, não se fala mais em regra da adição, pois a soma
das probabilidades envolvidas pode ser inferior a um ou até mesmo zero
(SCHUM, 2005).
A fim de sustentar essa proposta, Shafer trabalha com a ideia de não
comprometimento. Normalmente, nós conseguimos associar as provas que
possuímos a determinada hipótese. Em algumas situações, porém, isso não
será possível. Há casos em que a prova é consistente com mais de uma
hipótese, pois não nega, nem confirma nenhuma delas. Assim, não é possível
atribuir valores probabilísticos a elas, pelo menos não no sentido tradicional
dos axiomas de Kolmogorov. Quando estamos diante de hipóteses mutuamente
excludentes e temos provas que não nos apontam um caminho específico,
podemos optar pelo não comprometimento. Podemos dizer que as evidências
que possuímos não dão suporte a uma ou outra hipótese, mas sim que são
consistentes com mais de uma delas (SCHUM, 2001).
Voltemos ao exemplo de Tribe. Imagine que o jovem fugitivo trabalhe
voluntariamente em um asilo todos os domingos e mantenha um ótimo
relacionamento com os idosos que ajuda. Ele, inclusive, estimula brincadeiras
e exercícios físicos e é tratado como um neto por várias senhoras. Além disso,
ele dedica seus sábados à prática de artes marciais. Imagine agora um jurado J
que deva decidir se o jovem será ou não condenado. Para esse jurado, a
tentativa de fuga dá suporte à ideia de que o jovem matou a vítima. O trabalho
voluntário, por sua vez, é condizente com a hipótese de inocência. Afinal,
parece contrariar o senso comum que um jovem que cuida de idosos em um
asilo e é querido por muitos deles seja capaz de assassinar uma senhora. O
problema surge com relação à prática de artes marciais. Por um lado, alguém
que as domine poderia facilmente matar uma pessoa, ainda mais uma senhora
de idade. Por outro, não se pode presumir que alguém que pratique essas artes
seja violento. Muitas pessoas se dedicam a elas para se defenderem de
agressões e não para se tornarem agressoras. Dessa forma, depois de muito
pensar, o jurado chega à conclusão de que os treinos de sábado não lhe dizem
muito, embora sejam certamente relevantes para a solução do caso. Como
decidir, então?
De acordo com a regra da adição, se o jurado atribuir à hipótese de culpa
uma probabilidade de 70%, terá de, necessariamente, atribuir à hipótese de
inocência uma probabilidade de 30%. Afinal, P(X) + P(¬X) = 1. Se, ao
contrário, achar que há 60% de chance de o jovem ser inocente, isso implica,
necessariamente, uma chance de culpa de 40%. A questão é: o que fazer com a
informação relativa às artes marciais? Uma vez que o jurado deve atribuir
probabilidades às alegações para aplicar o teorema de Bayes, ele não pode
simplesmente cruzar os braços e dizer para si mesmo “eu não sei”. Ele tem de
se decidir, ele tem de atribuir valores. Em outras palavras, ele precisa se
comprometer. Isso gera um risco muito grave, uma vez que pode inverter o
princípio da presunção de inocência. Se as provas que sustentam a hipótese de
que o réu é inocente são poucas, aumentam-se as chances de culpa. O jovem é
condenado.
A proposta de Shafer, por sua vez, cria um cenário diferente. É possível
que o jurado atribua uma probabilidade de 40% para a hipótese de culpa e
30% para a de inocência. Os 30% restantes representam a dúvida,
constituindo o percentual de não comprometimento. O jurado associa a fuga à
ideia de que o réu é culpado e o trabalho voluntário à ideia de que ele é
inocente. Quanto à prática de artes marciais, porém, nada diz, porque não
consegue definir qual hipótese ela sustenta. Abre-se espaço para o “eu não
sei”. Com isso, não se fala apenas em probabilidade de culpa e em
probabilidade de inocência, mas também em dúvida. Tudo o que não for
consistente com nenhuma hipótese específica será colocado em uma categoria
diferente, a qual será somada às probabilidades já estabelecidas para que se
chegue ao valor um (SCHUM, 2001). Como a probabilidade de culpa é muito
baixa nesse segundo caso, o réu dificilmente será condenado, o que
reestabelece a primazia do princípio da inocência.
Tendo isso em vista, surge a seguinte questão: a probabilidade de Shafer é
compatível com o raciocínio jurídico, ou é apenas mais uma tentativa
fracassada de avaliar as provas e alegações com base em cálculos
matemáticos? Parece-nos que essa proposta não é mais bem sucedida do que o
teorema de Bayes, pois incorre no mesmo erro do subjetivismo. Ainda que
seja possível trabalhar com a dúvida, os valores continuam sendo atribuídos
sem uma base empírica forte. Além disso, Shafer também trabalha com
fórmulas e axiomas, os quais não são compatíveis com fatos únicos e isolados
no passado.

100 Ver THOMPSON, 1986.


101 Ver SCHAUER, 2006.
102 Para uma explicação sobre a regra do produto, remetemos os leitores à seção dois deste artigo.
103 A decisão do caso pode ser obtida no seguinte endereço (em inglês):
http://scocal.stanford.edu/opinion/people-v-collins-22583 (acessado em 5 de maio de 2013).
104 Uma análise bastante interessante do caso Collins é feita por TRIBE (1971). Além do problema da
(falta de) independência dos fatores, o autor aponta muitos outros, tanto de cunho teórico matemático,
quanto de cunho moral e político. De todas as críticas feitas, uma assume especial relevância: “a acusação
erroneamente confundiu a probabilidade de um casal escolhido aleatoriamente possuir as características
incriminadoras com a probabilidade de um casal qualquer que possua essas características ser inocente.
Afinal, se a população suspeita contivesse, por exemplo, vinte e quatro milhões de casais, e se existisse
uma probabilidade de uma chance em doze milhões de que um casal escolhido aleatoriamente nessa
população suspeita possua as seis características em questão, então podemos esperar encontrar dois
casais nessa população que se encaixem nessas características, e haveria uma probabilidade de
aproximadamente uma chance em duas – não de uma chance em doze milhões – de um casal qualquer
que possua as seis características ser inocente” (1971: 1336 – tradução livre).
105 Houve, inclusive, uma enorme discussão no caso quanto a essas possibilidades. Várias testemunhas
foram chamadas para depor quanto a se Janet havia pintado o cabelo ou se Malcolm havia feito a barba
após o dia do roubo. Novamente, verificamos aqui o problema da confiabilidade desses testemunhos.
106 Ver FINKELSTEIN e FAIRLEY, 1970.
107 Ver TRIBE, 1971.
108 Ver LEMPERT, 1977.
109 Ver COHEN, 1977 para a chamada probabilidade Baconiana e ZADEH, 1965 para a chamada “fuzzy
logic”.
110 Esse axioma também é conhecido como regra da adição. Atente-se para o uso da proposição “ou”,
que é diferente da preposição “e”. Assim, a probabilidade de um ou outro evento ocorrer é diferente da
probabilidade de um e outro evento ocorrerem. Neste último caso, temos a chamada regra do produto.
111 Assim, a probabilidade de retirarmos uma bola vermelha de A1 e uma bola azul de A2 será inferior à
menor das probabilidades separadas em questão (a probabilidade de retirarmos uma bola vermelha de A1
e a probabilidade de retiramos uma bola azul de A2). No contexto jurídico, isso pode significar uma
redução da probabilidade de inocência do réu, como ocorreu no caso Collins. Note-se, a este respeito, o
quanto o produto (uma chance em doze milhões) é inferior com relação aos valores probabilísticos
atribuídos a cada uma das características escolhidas.
112 A crítica é de David Schum. O autor argumenta que a probabilidade matemática é uma probabilidade
enumerativa. Isso a faz perfeita para eventos aleatórios e que podem ser repetidos, como o rolar de um
dado, mas inútil quando se trata de eventos passados e únicos, como são os casos jurídicos (SCHUM,
2001).
SEGUNDA PARTE:
4 TEORIAS DA VERDADE E TEORIAS DA
JUSTIFICAÇÃO EPISTÊMICA
Enquanto a proposta de Shafer busca redimir a probabilidade matemática
como meio de avaliar as premissas fáticas no direito, outras abordagens fazem
justamente o contrário, sustentando que tal método deve se aposentar de vez.
Essas abordagens trabalham com uma noção diferente de probabilidade, dita
epistêmica, na qual a epistemologia, e não a matemática, desempenha um
papel central.
São inúmeras as abordagens epistêmicas desenvolvidas nos últimos anos.
Escrever sobre cada uma delas demandaria muito mais espaço e tempo do que
dispomos no presente artigo. Por essa razão, trabalharemos com apenas duas
autoras: uma jurista dedicada à epistemologia jurídica e uma epistemóloga
intrusa no mundo do direito. São elas, nessa ordem, Amalia Amaya e Susan
Haack.
A primeira desenvolve uma abordagem coerentista, na qual a noção de
responsabilidade epistêmica é de extrema importância. A segunda, por sua
vez, desenvolve uma abordagem fundacoerentista, na qual a noção de garantia
desempenha um papel central. Antes, porém, de adentrarmos cada uma dessas
abordagens, é necessário expormos as teorias epistêmicas que existem por
detrás delas, trazendo à tona as importantes discussões acerca da verdade e da
justificação.
A questão da verdade é bastante antiga na epistemologia. Ainda não existe
um consenso entre os filósofos sobre o que torna determinada crença
verdadeira. É bastante comum as pessoas dizerem, nas mais diferentes áreas
do conhecimento, que determina crença ou proposição é verdadeira ou falsa,
mas o que isto quer dizer? O que significa dizer “é verdade que os cisnes são
brancos” e “fadas existem é uma proposição falsa”?
Existem várias teorias que buscam responder a essas perguntas. Elas estão
preocupadas, primeiramente, com a própria natureza da verdade. São duas as
teorias principais: verdade como correspondência e verdade como coerência.
A primeira sustenta que a verdade depende do mundo exterior, da
correspondência entre a crença ou proposição e um fato da realidade. A
segunda, por sua vez, sustenta que a verdade deve ser entendida em termos de
coerência, ou seja, uma crença ou proposição é verdadeira quando for parte de
um conjunto harmonioso e consistente.
As teorias da verdade não se confundem com as teorias de justificação
epistêmica, as quais estão preocupadas com a seguinte questão: o que torna
determinada crença justificada? É claro que existe relação entre elas, mas é
perfeitamente possível que uma crença esteja justificada e seja, ao mesmo
tempo, falsa, ou que uma crença seja verdadeira, mas não esteja justificada113.
Quanto ao primeiro caso, imagine-se uma criança que acredita em determinada
proposição porque seu professor lhe disse que ela é verdadeira, quando, na
verdade, ela é falsa. Quanto ao segundo, imagine-se uma pessoa que acredite
em uma proposição verdadeira porque um amigo, sabidamente mentiroso,
disse-lhe que ela era verdadeira, imaginando que ela fosse falsa.
O que, então, significa estar uma crença justificada? Significa que o sujeito
dessa crença possui boas razões para acreditar nela. A criança tem boas
razões para acreditar no que seu professor diz porque sabe que a função dele é
ensinar, mas a pessoa que acredita em um amigo mentiroso não as tem.
Percebe-se, portanto, que as razões podem ser boas ou ruins, e pode ser mais
ou menos razoável acreditar que cisnes são brancos ou que fadas existem.
Tradicionalmente, há duas teorias rivais da justificação epistêmica: o
coerentismo e o fundacionalismo. O coerentismo sustenta que uma crença ou
proposição está justificada quando pertencer a um sistema coerente. Por conta
disso, diz-se que ele trabalha com uma visão holística de mundo, pois se
debruça sobre o conjunto, e não sobre suas partes. Aqui, há uma forte noção de
mútuo suporte entre as crenças, ou seja, essas crenças justificam umas às
outras, sem que qualquer delas seja considerada mais importante.
A questão que se coloca diz respeito a se o coerentismo pressupõe,
necessariamente, uma teoria coerentista da verdade. De fato, ambos aparecem
juntos em vários momentos na literatura, mas há vários autores que se atrevem
a separá-los. É o que faz Amalia Amaya, ao trabalhar o coerentismo ao lado
de uma teoria da verdade como correspondência.
O fundacionalismo, por sua vez, sustenta que determinadas crenças, ditas
básicas ou fundamentais, independem de outras, conferindo, inclusive,
justificação a elas. Aqui, ao contrário do que acontece no coerentismo, a
experiência e a memória desempenham um papel essencial, pois a justificação
depende da própria realidade. Observa-se, portanto, que o fundacionalismo
está fortemente relacionado à teoria da verdade como correspondência.
Para melhor ilustrar cada uma dessas teorias de justificação epistêmica,
foram desenvolvidas duas metáforas:
o fundacionalismo representa a justificação como tendo uma estrutura
semelhante à de um edifício, no qual certas crenças servem como
alicerces e todas as outras crenças são sustentadas por elas. O
coerentismo rejeita esta imagem e concebe a justificação como tendo
a estrutura de uma jangada. As crenças justificadas, do mesmo modo
como as tábuas que compõem a jangada, sustentam-se mutuamente
umas às outras (Dicionário de Filosofia de Cambridge, 2011: 157)114.
Enquanto o fundacionalismo exige que suas crenças se construam sobre
uma base sólida para que o prédio inteiro não corra o risco de ruir, o
coerentismo faz com que suas crenças fiquem à deriva no mar. Se essas
crenças não estiverem bem amarradas umas às outras, a jangada pode acabar
se desmanchando, e o navegador terá de juntar suas tábuas-crenças ali mesmo
para não se afogar.
Coerentismo Fundacionalismo

Crenças fundamentais
Mútuo suporte entre crenças
independem de outras

Visão holística de mundo Papel essencial da experiência

Não pressupõe, necessariamente, uma Relacionado à teoria da


teoria da verdade como coerência. verdade como correspondência.

Tabela 2: Coerentismo e fundacionalismo

5 A COERÊNCIA DE AMAYA
Na seção anterior, expomos de forma breve as principais teorias da
verdade e as duas teorias de justificação tradicionais da epistemologia. Agora,
adentramos a abordagem de Amalia Amaya, que, como já dissemos, trabalha o
coerentismo ao lado da noção de verdade como correspondência. Para que
possamos compreender melhor essa abordagem, faz-se necessário o estudo de
seus principais aspectos, os quais foram divididos em três tópicos: inferência
à melhor explicação, coerência como satisfação de constrangimentos e
responsabilidade epistêmica.
a) Inferência à melhor explicação
Amaya sustenta que o raciocínio jurídico sobre fatos pode ser entendido
como uma inferência à melhor explicação. Essa afirmação a princípio singela
desperta um sério problema: definir o que é a inferência à melhor explicação.
Tal espécie de raciocínio, muitas vezes chamada simplesmente de IBE115, tem
sido bastante abordada pelos filósofos nas últimas décadas, sem, contudo, que
se chegasse a um consenso quanto à sua natureza.
Alguns autores sustentam que a IBE é um tipo de indução, enquanto outros
sustentam que ela é mais ampla, tendo a indução como apenas um de seus
passos. Seja como for, os autores concordam em um aspecto: a IBE é uma
espécie de raciocínio não-dedutivo. A sua estrutura é de um raciocínio que
busca ampliar o conhecimento, e não partir do que já se sabe para se alcançar
conclusões lógicas.
Por meio da IBE, parte-se de um fenômeno observado para que seja gerada
uma hipótese que o explique. Primeiramente, formulam-se quantas hipóteses
forem possíveis para que, em seguida, seja selecionada aquela que melhor
explicar o fenômeno em questão. Por isso diz-se inferência à melhor
explicação.
Diante disso, alguém poderia perguntar como fazemos para selecionar a
melhor hipótese. É justamente nesse ponto que surge um dos maiores
problemas dessa espécie de raciocínio. Ora, para que possamos alcançar a
melhor explicação, é necessário, antes de tudo, definir o que se entende por
melhor explicação. Além disso, também devemos definir os métodos para se
alcançar esse objetivo.
Para Amaya, a melhor explicação é aquela que for a mais coerente. Ocorre
que essas palavras não são suficientes para jogar luz sobre o problema, pois
também a coerência não é um assunto pacífico na epistemologia. Mesmo após
anos de discussões, os filósofos ainda não chegaram a um consenso quanto à
sua natureza. Essa, porém, é uma questão que será abordada no próximo
tópico.
Por ora, é importante nos concentrarmos na estrutura de IBE com a qual
trabalha Amaya. Uma vez que as hipóteses tenham sido geradas, elas devem
ser refinadas, para que se tornem o mais coerente possível. A esse processo
chamamos de maximização da coerência. A fim de realizar essa maximização,
dispomos de três métodos diferentes: adição, subtração e reinterpretação. Pela
adição, acrescentamos elementos ao conjunto a fim de torná-lo mais coerente.
Pela subtração, fazemos o oposto, eliminando os elementos incoerentes. A
reinterpretação, por sua vez, é uma mistura dos métodos anteriores.
É importante ressaltar desde logo que esse não é um processo linear, mas
sim um processo de idas e vindas, no qual o julgador poderá, a qualquer
momento, gerar novas hipóteses ou eliminar hipóteses anteriormente
formuladas. Surge, nesse cenário, um enorme desafio no que diz respeito à
imparcialidade desse julgador. Há sempre o risco de que ele selecione aquela
hipótese que melhor lhe aprouver, a sua favorita, deixando as outras de lado.
Trata-se de um comportamento nem sempre consciente e por isso difícil de ser
percebido.
Além disso, outro problema ainda mais grave assola a IBE. Mesmo que o
julgador afaste seus vieses e preconceitos, existe o risco de que a hipótese
selecionada não seja, afinal, a melhor. É possível que ela seja apenas a melhor
entre as piores, ou seja, a hipótese mais razoável dentro de um conjunto
ruim116. Para que possamos acreditar que aquela explicação selecionada
dentro de um conjunto de explicações previamente elaboradas é a melhor,
devemos pressupor, antes de tudo, que a melhor explicação está nesse
conjunto.
Amaya reconhece ambos os problemas, mas sustenta que eles podem ser
eliminados, ou no mínimo mitigados, por meio da chamada responsabilidade
epistêmica, a qual será estudada no terceiro tópico desta seção.
b) Coerência como satisfação de constrangimentos
Como foi afirmado no tópico anterior, a discussão acerca da natureza da
coerência ainda está longe de seu fim. No entanto, existem várias abordagens
interessantes, dentre elas a noção de coerência como satisfação de
constrangimentos desenvolvida por Paul Thagard. É sobre essa noção de
coerência que Amaya se debruça ao trabalhar sua teoria coerentista.
THAGARD (2000) sustenta que a coerência pode ser entendida como a
satisfação de constrangimentos positivos e negativos. Os primeiros formam as
relações de coerência, tais como a explicação e a analogia117. Os segundos,
por sua vez, formam as relações de incoerência, tais como a contradição e a
competição entre hipóteses118. Naturalmente, nós nunca conseguiremos
alcançar relações que sejam perfeitamente coerentes, em virtude das próprias
limitações da mente humana.
Podemos, no entanto, nos aproximar desse objetivo, desenvolvendo
conjuntos que sejam tão coerentes quanto possível. Trata-se do já referido
processo de maximização de coerência. A fim de maximizarmos um conjunto
de hipóteses, sustenta Thagard, devemos primeiro separá-lo em dois
subconjuntos, quais sejam, o das hipóteses aceitas e o das hipóteses rejeitadas.
Em seguida, distribuímos as hipóteses entre esses subconjuntos de acordo com
as relações de coerência ou incoerência que mantenham entre si. Nesse
sentido, hipóteses que sejam coerentes entre si devem ser aceitas ou rejeitadas
em conjunto, ao passo que, se elas forem inconsistentes, uma deverá ser aceita,
enquanto a outra deverá ser rejeitada.
Esses são alguns dos principais aspectos da abordagem de Thagard, todos
os quais foram absorvidos pela teoria coerentista de Amaya. É importante
ressaltar que nenhum dos autores trabalha com uma teoria pura da coerência,
pois ambos conferem prioridade às proposições que descrevem resultados de
observações. Amaya vai além em sua abordagem jurídica, conferindo
prioridade também às hipóteses compatíveis com a inocência, em respeito ao
princípio mais caro do processo penal.
c) Responsabilidade epistêmica
Resta a seguinte pergunta: como o julgador poderá alcançar a melhor
explicação sem medo de privilegiar a sua explicação favorita ou de selecionar
aquela que seja apenas a melhor entre as piores? Para Amaya, a resposta se
encontra na noção de responsabilidade epistêmica, a qual consiste em uma
série de deveres e virtudes epistêmicos que conferem justificação à hipótese
selecionada.
Sendo assim, uma crença estará justificada quando for uma crença que um
julgador epistemicamente responsável teria aceitado como verdadeira em
contextos similares em razão de sua coerência (AMAYA, 2007). Atente-se
para o significado dessa afirmação, que certamente é mais complexa do que
parece. O importante não é que hipótese tenha sido, de fato, escolhida de uma
forma epistemicamente responsável, mas sim que ela seja uma hipótese que um
julgador epistemicamente responsável teria aceitado em um contexto similar
por ela ser coerente.
VI – O fundacoerentismo de Haack
Enquanto Amaya confere à coerência um papel central em sua abordagem,
Susan Haack sustenta que a coerência, sozinha, não é suficiente para compor
uma teoria da justificação, seja na filosofia, seja na epistemologia jurídica.
Em razão disso, Haack desenvolve uma teoria que não é coerentista, nem
fundacionalista, mas sim um equilíbrio entre as duas. Surge, então, o chamado
fundacoerentismo, com o qual a autora busca conciliar o que cada uma das
teorias rivais tem de melhor, evitando os seus aspectos negativos (2014a).
O fundacoerentismo concilia a noção de mútuo suporte entre as crenças,
própria do coerentismo, e a ideia de que a memória e a as experiências
provenientes dos sentidos desempenham um papel importante na justificação,
própria do fundacionalismo. Por conta dessa mistura, a nova teoria não pode
ser considerada holista, uma vez que se debruça não apenas sobre o conjunto,
mas também sobre as partes que o compõe (crenças, experiências e
memórias). Para Haack, trata-se de um holismo articulado.
Além disso, trata-se de uma teoria mundana, pois ela depende de fatos do
mundo. Ora, se cisnes são ou não brancos, essa é uma questão que depende da
realidade, e não do que possamos pensar sobre a cor dessas aves. Da mesma
forma, não importa se queremos que as fadas existam, ou mesmo que digamos
que elas existem, pois nossas experiências demonstram que esses seres
existem apenas em mundos imaginários, como o de Peter Pan.
Uma vez compreendidas essas características básicas do
fundacoerentismo, podemos adentrar mais a fundo essa teoria. Um de seus
conceitos centrais é o de evidência, a qual abarca tanto as crenças de fundo,
quanto a memória e as experiências provenientes dos sentidos. A evidência,
portanto, é formada pelos elementos que sustentam ou enfraquecem
determinada alegação.
Naturalmente, a evidência que possuímos em relação a uma alegação x
poderá ser mais forte ou mais fraca, conforme o caso. A depender da
qualidade dessa evidência, a alegação que se quer provar poderá estar mais
ou menos garantida, mas o que significa garantia? Na literatura em geral,
garantia e justificação são sinônimos. Haack, porém, traça uma distinção entre
os dois termos: enquanto a garantia diz respeito à qualidade das evidências
que o sujeito em questão possui, abrangendo, portanto, todas as evidências, a
justificação diz respeito à qualidade das evidências que esse sujeito de fato
utiliza, abrangendo, portanto, as evidências que o levam a sustentar
determinada alegação (2003)119.
A noção de garantia desenvolvida por Haack está profundamente ligada à
probabilidade epistêmica defendida pela autora. De forma simples, quão
melhores forem as evidências que se possui, mais garantida estará a alegação
que se quer provar, e quão mais garantida estiver essa alegação, maior a
probabilidade (epistêmica) de ela ser verdadeira. Se as evidências são boas, a
probabilidade é alta. Se, ao contrário, elas são ruins, a probabilidade é baixa.
A garantia, portanto, não é categórica, mas medida em graus.
O grande problema que se coloca é justamente medir a qualidade das
evidências em questão. Uma vez que essa qualidade não pode ser mensurada
em termos matemáticos, como fazer para determiná-la? A fim de solucionar
esse problema, Haack desenvolveu um método que, ao contrário dos cálculos
matemáticos, não é linear, mas multi-dimensional120. Trata-se das chamadas
dimensões da garantia: suporte, abrangência e segurança independente.
O suporte diz respeito ao quão bem as evidências e a alegação que se quer
provar se integram em uma abordagem explicativa e ao quão bem essa
alegação está ancorada na experiência. Nesse sentido, o suporte dependerá de
quanto acrescentar aquela evidência específica irá contribuir para a
abordagem como um todo, de quanto esse acréscimo irá contribuir para que a
conclusão seja bem explicada.
A segurança independente, por sua vez, diz respeito ao quão seguras são as
crenças de fundo, independentemente da alegação. Relembre-se, neste ponto, o
que foi dito acerca do caráter mundano do fundacoerentismo. Por exemplo, se
o pozinho das fadas é capaz de fazer as pessoas voarem, isso depende,
primeiramente, de se as fadas existem. A crença de que fadas existem, porém,
certamente não possui segurança independente, pois sabemos que esses seres
são apenas mito. Como bem ressalta Haack:
Isso evita um círculo vicioso, pois nós eventualmente chegaremos a
uma evidência proveniente dos sentidos, a qual não necessita de
garantia, sem que, contudo, deixemos todo o conjunto de evidências
flutuando em pleno ar, uma vez que a evidência proveniente dos
sentidos se ancora no mundo (2014a: 31).
A abrangência, por fim, diz respeito a quanto da evidência relevante nós
possuímos. Ainda que nossas evidências sejam seguras e deem suporte à
alegação que queremos provar, é possível que todo o nosso raciocínio acabe
ruindo diante de uma nova evidência. Exatamente por isso, é importante
procurar por novas evidências, a fim de que nenhum fato relevante seja
deixado de lado.
As três dimensões da garantia, aparentemente tão complexas, tornam-se
mais inteligíveis por meio da analogia criada por Haack. Basta imaginarmos a
garantia como um jogo de palavras cruzadas no qual as palavras já
preenchidas são as nossas crenças de fundo, e as pistas são as evidências que
deveremos desvendar por meio da memória e dos sentidos. Nesse contexto:
o que faz a evidência com respeito a uma alegação melhor ou pior é
análogo ao que faz uma entrada de um jogo de palavras cruzadas mais
ou menos razoável: o quanto a evidência dá suporte a uma alegação
(análogo: quão bem a entrada de um jogo de palavras cruzadas se
encaixa com a pista e as entradas já completadas que se intersectam);
o quanto as evidências são seguras, independentemente da alegação
em questão (análogo: quão razoáveis são as respostas das entradas
que se intersectam, independentemente da resposta em questão); o
quanto a evidência é abrangente, isto é, quanto da evidência
relevante ela inclui (análogo: quanto do jogo de palavras cruzadas foi
completado) (HAACK, 2012: 216 – tradução livre).
Voltando ao caso Collins apresentado no começo deste artigo, podemos
dizer que a alegação de que o casal era culpado estava pouco garantida pelo
conjunto probatório de que se dispunha. Afinal, os testemunhos eram
conflitantes, e os cálculos realizados por Edward Thorp estavam, na melhor
das hipóteses, equivocados. Dessa forma, o suporte que as provas davam à
alegação era muito baixo, além de existir um sério problema com relação à
segurança independente dos testemunhos. Quanto à abrangência, claro está que
grande parte das evidências relevantes estava ausente.
Diante desse problema, Haack propõe um conjunto de evidências mais
completo, no qual todas as três dimensões da garantia atinjam níveis mais
altos. Imagine que existam provas de que as testemunhas não possuem
problemas de visão e não têm motivos para incriminar os Collins injustamente.
Além disso, há razões para acreditar que os criminosos moram em Los
Angeles, e os Collins não apenas não possuem qualquer álibi, como
assumiram um comportamento evasivo após serem acusados (2014b). Com
essas novas evidências, o grau de garantia da alegação “os Collins são os
culpados” torna-se muito mais significante, e os problemas acerca da
segurança independente são mitigados.
Por todo esse caráter complexo, a probabilidade epistêmica desenvolvida
por Haack é incompatível com cálculos e fórmulas matemáticos. Afinal, “se os
conceitos de qualidade da evidência e grau de garantia são tão complexos,
sutis, multi-dimensionais e mundanos quanto esta abordagem sugere, a teoria
da probabilidade matemática não poderia, sozinha, constituir uma teoria da
garantia” (HAACK, 2014b: 61).
Dimensão da Analogia do jogo de palavras
Diz respeito a...
garantia cruzadas

Como as evidências e a
alegação se integram em Quão bem as palavras se
Suporte
uma abordagem encaixam?
explicativa.

Quão seguras são as


Quão seguras são as palavras já
Segurança crenças de fundo,
preenchidas independentemente
independente independentemente da
das que ainda vamos preencher?
alegação.

Quanto da evidência
Abrangência Quanto do jogo foi preenchido?
relevante nós possuímos.

Tabela 3: Dimensões da garantia


CONCLUSÃO
A teoria matemática da probabilidade certamente é de extrema importância
para o desenvolvimento das sociedades e das tecnologias. No entanto, não
devemos permitir que nosso fascínio por ela nos leve a aplicá-la em campos
aos quais não é adequada. O cálculo matemático é perfeito, mas o é apenas
enquanto for compatível com os elementos estudados. No direito, ele não é de
nenhuma utilidade para a construção de uma teoria da justificação da premissa
fática.
Nesse contexto, a probabilidade epistêmica surge como uma forte
candidata, pois a epistemologia nos permite trabalhar com provas complexas
tais como as que aparecem diariamente nos conflitos jurídicos. Ocorre que
existem várias abordagens nesse sentido, sendo que muitas delas apostam,
ainda que parcialmente, na noção de coerência, como o fazem as abordagens
de Amalia Amaya e Susan Haack.
Os próximos passos desta pesquisa, portanto, são estudar mais a fundo as
autoras selecionadas, a fim de determinar as vantagens e desvantagens de suas
teorias. Por um lado acreditamos que a coerência é essencial para a
justificação de alegações sobre fatos. Por outro, ela nos parece ser
insuficiente, carecendo de um complemento que lhe dê forças. Que
complemento seria esse? A responsabilidade epistêmica defendida por
Amaya, ou a noção de garantia sustentada por Haack? Ainda não possuímos
uma resposta para essa pergunta, de forma que nossas investigações
continuam.

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ZADEH, L. Fuzzy Sets. Information and Control, vol. 8, pp. 338-353, 1965.

113 Ver GETTIER, 1963.


114 Apesar de o Dicionário ter utilizado a palavra “jangada”, a metáfora é mais conhecida pelo substantivo
“barco”, sendo comumente chamada de “barco de Neurath” em homenagem a seu criador.
115 Do inglês, inference to the best explanation.
116 A crítica é de VAN FRAASSEN, 1989. O problema é chamado na literatura de “argument from the
bad lot” (argumento do conjunto ruim).
117 As relações de explicação podem se dar de várias formas: uma hipótese pode explicar uma evidência
ou até mesmo outra hipótese e duas ou mais hipóteses podem explicar a mesma evidência. As relações de
analogia, por sua vez, ocorrem entre hipóteses similares que explicam evidências similares.
118 A competição ocorre quando duas ou mais hipóteses explicam a mesma evidência sem, contudo, que
elas estejam conectadas por uma relação de explicação.
119 Ressalte-se, porém, que nenhum desses conceitos é subjetivo, pois eles não são determinados pelo que
o sujeito pensa sobre as evidências que possui ou utiliza. Sendo assim, tanto a garantia quanto a
justificação independem do quão garantido ou justificado esse sujeito julga estar.
120 Neste ponto, é possível tentar estabelecer um diálogo entre a noção de garantia de Susan Haack e a
inferência à melhor explicação de Amalia Amaya. Ambos os métodos negam a linearidade, possuindo uma
estrutura cheia de idas, vindas e reestruturações. Esse, porém, é um trabalho para outro artigo.
PARTE 2 – DIÁLOGOS CONSTITUCIONAIS COM O
LEGISLATIVO E O EXECUTIVO
TENSÕES NO FEDERALISMO BRASILEIRO:
ANALISANDO A GUERRA FISCAL E A NOVA
DISTRIBUIÇÃO DOS ROYALTIES DO
PETRÓLEO121
TENSIONS IN THE BRAZILIAN FEDERALISM:
ANALYSING THE FISCAL WAR AND THE OIL
ROYALTIES’ NEW DISTRIBUTION

Camilla Gutierrez122
Carlos Bolonha123
Leonardo Gaspar 124
Luiz Felipe Lima125
Natan Lima126
Telmo Olímpio127
Wanny Cristina Fernandes128

RESUMO
A realidade federativa brasileira, apesar de ser relativamente recente, possui bastantes peculiaridades, que
se expressam principalmente quando vemos a atuação dos entes federativos no desenho institucional do
país. O presente artigo pretende analisar duas situações emblemáticas de tensões no design federativo
brasileiro - a guerra fiscal e a partilha dos royalties do petróleo -, percebendo desarmonias existentes entre
os estados que o compõem. Para isso, tal análise será feita a partir da teoria institucional norte-americana,
utilizando os conceitos de capacidades institucionais e a relação das instituições com o sistema institucional
em que se inserem, esperando assim esclarecer o desenvolvimento de tais conflitos e seus
desdobramentos na realidade federativa brasileira.

PALAVRAS-CHAVE
Federalismo; teoria institucional; Brasil.

ABSTRACT
Brazilian federative reality, despite being relatively recent, has plenty of peculiarities, which express itself
mainly when we see the performance of the federated states in the Brazilian institutional design. The
present article intends to analyze two emblematic situations of tensions in the Brazilian federal design - the
oil royalties’ new distribution and the fiscal war -, noticing some disharmonies between the states that
compose it. For that, this analysis will be done by the light of the North-american institutional theory, using
the concepts of institutional capacities and the relation between de institutions and the institutional system
they belong, hoping to clarify the development of these conflicts and how they unfold in the Brazilian
federative reality.

KEYWORDS
Federalism; institutional theory; Brazil.

INTRODUÇÃO
No Brasil, temos como historicamente preponderante a forma federalista de estado, que foi instituída em
1889 e mantida desde então. A carta constitucional promulgada em 1891 possuía clara influência do
federalismo norte-americano, cuja Constituição de 1787 corresponde à gênese do Estado Federal129. À
época, o principal objetivo que norteou a experiência norte-americana foi a criação de um modelo de
Estado que reconhecesse os entes federativos como autônomos entre si e possibilitasse uma atuação
estatal melhor e mais eficiente do que os modelos anteriores130. Com isso chegou-se ao modelo
federalista, onde a divisão de competências entre os entes federativos e a participação dos Estados-
membros na vontade federal constituíam a base primordial do Estado.
Da mesma forma, a Constituição Federal de 1988 estabelece
expressamente as competências de cada um dos entes que integram o Estado
brasileiro, buscando assim um maior equilíbrio na sua atuação. Porém, a
principal discussão relacionada à realidade federativa brasileira diz respeito
aos limites da atuação de cada um dos entes; os conflitos relacionados à
centralização e descentralização e a atuação dos estados-membros são centrais
na análise da realidade federativa do país131.
É de se destacar, todavia, que o que se verifica atualmente é uma falta de
equidade na relação dos entes federativos brasileiros. O status atual do
federalismo brasileiro possui discrepâncias institucionais, que serão
abordadas aqui tendo-se como base dois temas específicos: a divisão dos
royalties do petróleo e a guerra fiscal. Tais assuntos são grandes exemplos de
tensões institucionais que existem no país por serem casos reais em que o
desequilíbrio na atuação dos entes gera problemas em nível federativo.
Para tal análise será utilizado como marco teórico a teoria institucionalista
desenvolvida por Cass Sunstein e Adrian Vermeule a respeito de (i)
capacidade institucional, conceito que trata das possibilidades de atuação das
instituições no que tange às suas aptidões para fazer qualquer coisa; (ii)
diálogo institucional, que traz a ideia de como as instituições de um mesmo
sistema institucional interagem entre si; e (iii) efeitos sistêmicos, que busca
conceituar como a atuação das instituições neste sistema se reflete nas outras
instituições.
Da mesma forma, também se utilizará como base teórica a visão de Jenna
Bednar quanto à relação entre os sistemas institucionais e o Estado em que
estes estão inseridos. A autora estabelece que os elementos que compõem tais
sistemas derivam das estruturas formais construídas por uma Constituição, e
que, indo mais além, funcionam como salvaguardas das leis de um Estado.
Sendo assim, os elementos institucionais que compõem o sistema devem ser
interpretados e entendidos a partir do próprio plano em que existem132.
A utilização de ambas as teorias busca mostrar como os casos
emblemáticos que aqui serão analisados derivam do desenho institucional do
Estado brasileiro, que propicia desequilíbrios quanto à atuação dos entes
federativos no plano federal. Destarte, o presente trabalho não busca observar
os casos em questão sob a ótica tributária, mas sim seguindo um viés
puramente institucional.
O presente trabalho se dividirá em três seções. Na seção 2 será avaliado o
caso da guerra fiscal e da partilha dos royalties do petróleo. A seção 3 trará
uma análise mais aprofundada a respeito dos casos, buscando entender os
motivos que os levam a configurar tensões no âmbito federativo. Por fim, a
seção 4 trará as conclusões alcançadas durante a análise.

1 DESENVOLVIMENTO
1.1 Noções Introdutórias da Guerra Fiscal
A chamada “guerra fiscal” tem sua origem em uma prática natural adotada
pelos Estados (tanto nacionais quanto subnacionais) para estimular o seu
desenvolvimento. Tal prática consiste na concessão de incentivos tributários a
empresas, para que assim ocorra o estabelecimento das mesmas no seu
território e, por consequência, surjam toda a sorte de benefícios para a
população133. Não obstante, a guerra fiscal surge quando se intensifica a
disputa entre os Estados para oferecer a situação fiscal mais atraente às
empresas, configurando-se assim como um estado de conflito entre eles. A
interpretação quanto a gravidade deste conflito no âmbito federativo, contudo,
ainda é motivo de discussão134.
A prática de dar incentivos fiscais, todavia, perde a sua força e não mais
serve como estímulo ao ingresso de empresas quando se torna comum a todos
os estados; indo além, tal situação apenas faz com que o benefício se
transforme em uma renúncia ao tributo em questão, com a perda de receita se
tornando um ônus para o estado135. O imposto que geralmente é utilizado nessa
concessão de benefícios por parte dos estados subnacionais corresponde ao
Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços - ICMS -, e
justamente por ser um imposto próprio dos Estados, abdicar dele significa
arriscar as já combalidas finanças estaduais. 136
1.2 Histórico da Guerra Fiscal no Brasil
A guerra fiscal no Brasil guarda profunda relação com os programas
estaduais de desenvolvimento. O fenômeno se mostra presente no país desde
meados da década de 60, período em que o imposto ainda não se chamava
ICMS, mas sim ICM - Imposto sobre Circulação de Mercadorias. Vale
destacar que esforços para equilibrar as disputas tributárias entre os estados já
existiam desde tal época; a legislação tributária vigente no período já
pretendia estabelecer meios para que houvesse uma integração entre os
Estados na concessão de incentivos fiscais, através da criação de convênios
regionais137. Apesar disso, tal medida não impediu que ocorressem conflitos
entre as diferentes regiões, e que esses conflitos desenvolvessem um tipo de
“guerra fiscal inter-regional”138.
Visando melhor coordenar as políticas tributárias no país, na década de
1970 o governo federal criou o Conselho Nacional de Política Fazendária -
CONFAZ. O CONFAZ buscava, à época, que o dar conformidade nacional
quanto ao tratamento especial dado do ICM; dessa forma, o objetivo era
regulamentar como os estados da federação deveriam utilizar o imposto
enquanto moeda de troca na barganha entre estes e as indústrias,
possibilitando assim que houvesse um equilíbrio interno na federação. Apesar
de no período haver êxito em regular a disputa econômica em questão,é de se
destacar que isso não se deve aos meios formais; a Lei Complementar 24/75 -
que cria o CONFAZ -, embora desse um tratamento restritivo ao acirramento
da competição fiscal, não impediu de fato o duelo existente no país139 - pelo
contrário, o maior rigor fiscal que de fato existiu à época associa-se muito
mais à disciplina centralizadora do governo militar.140
Nos anos 80, por outro lado, a estagnação econômica pela qual passava o
país fez com que a guerra fiscal se tornasse menos notória. Não obstante, as
práticas incentivadoras tomadas pelos estados continuavam a existir, ainda que
sem a mesma intensidade ou sem a mesma repercussão do período anterior.141
A década seguinte, a despeito da inércia do período anterior, trouxe uma
oxigenação à economia brasileira, principalmente com a estabilidade de
preços após o Plano Real e também com o mercado potencial do país. Foi
também após a promulgação da Constituição de 1988 que, com a
transformação do ICM e de outros quatro impostos em ICMS, os estados
adquiriram maior autonomia e com isso tiraram boa parte do poder detido
pelo CONFAZ142.
Atualmente, assim como ocorreu na década de 1980, não se vê a guerra
fiscal em um ponto de destaque, o que não quer dizer que as práticas
correspondentes a ela tenham desaparecido. Pelo contrário, os estados ainda
hoje mantém seus programas de incentivos fiscais, o que denota o quanto o
tema ainda é atual - mesmo que não esteja no mesmo plano de destaque de
antes.143
1.3 Como Funciona a Guerra Fiscal
Inicialmente é mister destacar que a guerra fiscal possui dois
desdobramentos completamente diferentes: o reflexo da barganha econômica
do ponto de vista do estado que concede benefícios e do ponto de vista da
federação. Posteriormente, o foco será mostrar como, do ponto de vista do
estado, há ganhos a serem obtidos, enquanto do ponto de vista da federação a
perda é quase que total.
Um estado-membro, por natureza, colocará seus interesses à frente dos de
outros estados. Ele detém autonomia para tal, e essa autonomia existe e é
garantida justamente para que ele possa alcançar aquilo que lhe interessa.
Assim sendo, os ganhos advindos com o estabelecimento de uma empresa em
seu território com certeza serão considerados no momento de ponderar se
incentivos tributários devem ser concedidos ou não.144
Tem-se reparado que a reprodução desse tipo de pensamento em todos os
estados gera um grande problema em que quem mais sofre é a federação. A
ideia é a de que incentivos fiscais não deveriam ser dados por estados, mas
sim pelo governo central, pois a concessão de incentivos fiscais por parte dos
entes federados de um Estado federal apenas são prejudiciais ao Estado como
um todo - afinal de contas, não se pode por em risco toda a estrutura da
federação apenas visando a defender os interesses de entes federados
esparsos. Dessa forma, embora possa parecer vantajoso para os estados
conceder esses benefícios para estimular o progresso em sua região, na
maioria das vezes o ônus vai para a federação.
Considerando, por exemplo, que o benefício seja concedido a uma
empresa voltada para o mercado interno: é do interesse da empresa estar no
país, então a concessão de incentivos não serve como estímulo para que a
empresa fique em território nacional - pelo contrário, apenas serve para que
ela vá para outro estado da federação, e o dinheiro que antes seria pago como
imposto e iria para o erário se torna lucro da empresa e deixa de ir para os
cofres públicos.
Seguindo a mesma lógica, no caso de empresas multinacionais que já se
instalariam no país, o incentivo fiscal permite que elas consigam sem esforço
um lucro maior com uma verba que, caso fosse paga como tributo, poderia ser
aplicada para o bem da população. Isso, ainda que trate de um tributo de
competência estadual, constitui uma perda extremamente gravosa para a
federação.
1.4 Noções Introdutórias da Partilha dos Royalties do Petróleo
Os royalties nada mais são do que valores pagos por alguém ou alguma
empresa que deseja explorar o produto de outrem para o dono do objeto em
questão. Assim, no caso do petróleo, as empresas petrolíferas que pretendem
extrair o material, refiná-lo e comercializá-lo devem pagar os direitos de
exploração a quem detém o objeto a ser explorado - o Estado.
O grande diferencial dado ao tratamento dos royalties do petróleo - e o que
configurará o conflito a ser abordado - é que os mesmos são partilhados entre
os entes federativos do Estado: como estabelece a Constituição Federal, no
seu artigo 20, § 1.º, “é assegurada, nos termos da lei, aos Estados, ao Distrito
Federal e aos Municípios, bem como a órgãos da administração direta da
União, participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de
recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos
minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou
zona econômica exclusiva, ou compensação financeira por essa
exploração”145.
1.5 O Petróleo no Pré-sal e a Mudança na Partilha dos Royalties
Em 2007, houve a descoberta de poços de petróleo na chamada camada do
Pré-Sal, que corresponde a um “conjunto de rochas localizadas nas porções
marinhas de grande parte do litoral brasileiro, com potencial para a geração e
acúmulo de petróleo”146. O nome “Pré-Sal” advém do fato desta camada
rochosa estar abaixo de um extenso aglomerado de sal.
Com tal descoberta, o debate acerca da partilha dos royalties do petróleo
foi trazido à tona. Os estados não-produtores exigiam uma parcela maior de
arrecadação de tal verba, visto que a lei existente até então não previa, para
estes, mais do que a concessão de 10% do valor arrecadado. É mister destacar
que esses 10% se destinavam inicialmente a um Fundo Especial, para então
ser redistribuído entre todos os estados não-produtores147.
Atualmente, a Lei n.º 9.478 teve sua redação alterada. Ela prevê uma
queda progressiva da arrecadação dos estados e municípios produtores de
petróleo, ao mesmo tempo em que ocorrerá um aumento da verba destinada ao
Fundo Especial dos estados e municípios não-produtores148.
À época, os debates no Congresso a respeito dos novos critérios de
partilha tinham como principal justificativa a ideia de que o petróleo é um bem
nacional, e assim sendo os royalties advindos da exploração desse bem devem
ser repartidos igualmente entre os entes federativos. Em paralelo, tal
argumento também é utilizado para se dizer que tal verba deve ser destinada
no combate contra a pobreza e na busca por «justiça social»149.
O problema de tal argumento reside no fato de se estar utilizando o
princípio federativo de forma errônea. Defender a partilha igualitária com
base na ideia de que o petróleo é um bem nacional e que por isso deve ser
dividido com todos é analisar equivocadamente o termo “bem nacional”: a
ideia que permeia todo o artigo 20 da Constituição Federal, que trata dos bens
da União, é a de determinação da soberania do Estado, ou seja, o constituinte
apenas busca instituir que os bens ali listados pertencem ao país. Ademais, se
tal bem possuísse mesmo tanta importância em nível nacional como foi
interpretado, tratar das reservas de petróleo deveria estar na lista de
competências da União150.
Da mesma forma, não se pode dizer que a nova divisão dos royalties de
fato geraria alguma mudança na luta por uma maior justiça social. A verba
advinda dos royalties do petróleo se mostra ínfima, quando repartida entre
todos os entes federativos, em comparação ao que estes já recebem do Fundo
de Participação dos Estados - FPE - e do Fundo de Participação dos
Municípios - FPM151.
O fato é que os estados produtores possuem reais perspectivas de se
desenvolver socioeconomicamente quando a maior parcela dos royalties se
dirige a eles. As leis anteriores que tratavam acerca do tema já mostravam a
adesão do constituinte à ideia de que os recursos advindos da exploração do
petróleo deveriam ser destinados, precipuamente, aos estados produtores.
Além disso, o próprio fato de não se ter alterado tal dispositivo anteriormente
à descoberta de petróleo no Pré-Sal mostra que o funcionamento da partilha
dos royalties já era algo internalizado no país. Resta assim a constatação de
que uma mudança de pensamento tão repentina e concomitante à descoberta de
uma jazida com potencial tão grande152 se mostra não como uma evolução
institucional natural, mas sim como uma atitude aproveitadora inconsequente
do ponto de vista federativo, que será tratado com maiores detalhes na seção
seguinte.

2 ANÁLISE DAS TENSÕES FEDERATIVAS


2.1 A Tensão Causada pela Guerra Fiscal
Findo o momento de apresentação e análise incipiente a respeito dos
temas, chega o momento de aprofundar as análises a partir da visão
institucional e federativa. É importante destacar inicialmente que aqui toma-se
a liberdade de se interpretar os estados membros de uma federação como
instituições parte de um sistema institucional maior - a própria federação.
Entender os estados como instituições de mesmo nível e a União como
mediadora na esfera federal permitirá entender com maior clareza como elas
se relacionam entre si153.
Do ponto de vista institucional percebe-se que, dentre os três principais
conceitos abordados por Vermeule e Sunstein154 – capacidades institucionais,
diálogo institucional e efeitos sistêmicos –, dois deles se mostram claramente
esquecidos.
A capacidade institucional de uma instituição nada mais é do que a
possibilidade ou aptidão para tomar certas decisões dentro de um sistema
institucional. Tal aptidão pode se dividir entre dois planos distintos: o
Normativo, que corresponde às suas competências formalmente instituídas; e o
Logístico, que trata dos recursos e dos instrumentos de atuação próprios da
instituição155. Já o diálogo institucional e os efeitos sistêmicos caminham de
forma muito próxima, visto que o primeiro trata da integração existente entre
as instituições no sistema institucional e o segundo dos reflexos que a atuação
de uma instituição produzirá nas outras no sistema em que habitam.
Na guerra fiscal nós vemos principalmente como os estados ignoram o
diálogo institucional que existe entre eles no âmbito federativo e
principalmente os reflexos provenientes de suas atitudes. A legítima autonomia
que os estados entes da federação possuem deixa margem para uma
discricionariedade institucional que, apesar de natural, não deve ser utilizada
ao máximo, sob pena de gerar conflitos de grande escala na federação; o ponto
é que o simples fato de um estado poder dar incentivos fiscais utilizando-se de
tributos de sua competência não necessariamente permite que isso ocorra
indiscriminadamente.
Nesse ponto, fica claro que a verdadeira barreira que deve impedir
conflitos na ordem federativa é o diálogo institucional. Se houvesse uma
preocupação em manter uma integração entre os estados, os efeitos
decorrentes da atuação deles seriam reduzidos. Uma federação demanda, para
que funcione satisfatoriamente, um determinado equilíbrio na atuação de seus
entes, pois só se todos mantiverem-se em prol desse equilíbrio é que o sistema
não colapsará.
Vale destacar aqui que uma maior atenção ao diálogo institucional e aos
efeitos sistêmicos não implica em um cerceamento da capacidade institucional
dos estados no plano federal. Pelo contrário, se ater a tais ideias apenas
permitirá que os estados utilizem a sua capacidade institucional da forma mais
proveitosa possível, sem gerar problemas para a federação.
2.2 A Tensão Causada pela Partilha dos Royalties
Tratando agora da partilha dos royalties, o caso mostra a atribuição de um
sentido falso ao princípio federativo, cuja invocação apenas serve para prover
sustentáculos à atuação dos estados não-produtores; o problema em questão é
que tais entes federados reinterpretam e desconstroem todo o ideal federativo
apenas para atender aos seus próprios interesses.
Isso pode ser visto como “oportunismo” dos estados não-produtores. O
conceito de “oportunismo” serve para definir a atuação de entes federativos
que visa apenas atingir aos seus próprios interesses156. Dessa forma, vemos a
atuação dos estados não-produtores como sendo oportunista no momento em
que se busca manipular a divisão de autoridade existente.
Quando vemos que o desenho institucional brasileiro, histórica e
formalmente, dá aos estados a prerrogativa de tratar de assuntos referentes ao
petróleo, se torna claro que a atuação vista no caso da partilha dos royalties
teve um viés oportunista: a ideia era mostrar que o petróleo era um bem
comum da federação e que sua exploração deveria beneficiar a todos,
ignorando veementemente que em mais de 50 anos de legislação referente à
exploração do petróleo isso nunca foi um ponto de vista considerado157.
Soma-se a isso o fato de que ocorreu a união dos 25 estados que se
beneficiariam com a nova partilha - em oposição a Rio de Janeiro e Espírito
Santo, que sofreriam o ônus da nova lei -, e assim surge um desenho em que se
tornou praticamente impossível ir contra o pensamento predominante158.
O conceito de oportunismo também foi trabalho tendo em vista maneiras de
impedir que tais transgressões oportunistas ocorressem. A principal ideia é a
de impedir o oportunismo através da ameaça de retaliação. No entanto, o
desenrolar da situação mostra que qualquer tentativa de retaliação por parte
dos outros estados seria inofensiva, visto que a imensa maioria da federação
estava de um lado da discussão, e que não é possível imaginar apenas dois
estados retaliando a atuação dos outros 25.

CONCLUSÕES
Analisando os dois casos através da perspectiva institucional, ambos
representam tensões federativas na realidade brasileira. Por um lado, a guerra
fiscal representa uma atuação descoordenada dos estados que fere o princípio
federativo no momento em que não há integração entre eles. Por outro, a
partilha dos royalties mostra-se como uma clara situação de oportunismo, em
que as circunstâncias possibilitaram ainda que ocorresse um alinhamento entre
os estados em prol de um objetivo comum.
A questão é que a razão da escolha do modelo federativo parece ter sido
esquecida. Tal modelo tem como principal objetivo estabelecer uma
integração entre os entes em diferentes níveis, visando assim que todos
possam atingir os seus próprios objetivos. Conceder tributos sem uma mútua
organização e lutar contra anos de história apenas para conseguir uma parte
maior de verba é agir como se não existisse um ideal de harmonia que devesse
ser perseguido. O que deve ser lembrado é que não só esse ideal existe como
ele também pode tornar necessário pôr os próprios interesses de lado para que
a federação e todos os seus benefícios se mantenham159.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BRASIL. Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997. Dispõe sobre a política
energética nacional, as atividades relativas ao monopólio do petróleo, institui
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e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil,
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FERREIRA MENDES, Gilmar; GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de
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e guerra fiscal. 1996.
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Brasil. Economia e Sociedade, v. 13, p. 1-40, 1999.
RODRIGUES, Alexandre. Cabral Chora pelos royalties perdidos. Estadão.
Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/geral,cabral-chora-
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SOUZA, Celina. Federalismo, desenho constitucional e instituições
federativas no Brasil pós-1988. Revista de Sociologia e Política, v. 24, n. 24,
p. 105-122, 2005.
SUNSTEIN, Cass; VERMEULE, Adrian. Interpretation and Institutions.
Chicago Public Law & Legal Theory Working Paper Series, No. 28, 2002.

121 Trabalho apresentado pelo Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das
Instituições (LETACI), vinculado à Faculdade Nacional de Direito (FND) e ao Programa de Pós-
graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD/UFRJ) coordenado pelo
professor Carlos Bolonha.
122 Graduanda da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Pesquisadora do LETACI. E-mail: gutierrezmilla@gmail.com.
123 Professor Adjunto da Faculdade Nacional de Direito (FND) da Universidade Federal do Rio de
Janeiro e do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(PPGD/UFRJ). Doutor em Direito pela Pontífice Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO). E-
mail: bolonhacarlos@gmail.com.
124 Graduando da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisador
do LETACI. E-mail: leonardo_q_g@hotmail.com.
125 Graduando da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisador
do LETACI. E-mail: luizfelipe.limaoliveira@gmail.com.
126 Graduando da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisador
do LETACI. E-mail: natanvengerov@gmail.com
127 Graduando da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisador
do LETACI. Monitor de Teoria do Estado. E-mail: telmo.olimpio@gmail.com.
128 Graduanda da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Pesquisadora do LETACI. E-mail: wanny.fernandes@gmail.com
129 “O federalismo tem as suas primeiras origens nos Estados Unidos. Surgiu como resposta à
necessidade de um governo eficiente em vasto território, que, ao mesmo tempo, assegurasse os ideais
republicanos que vingaram com a revolução de 1776”. FERREIRA MENDES, Gilmar; GONET
BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de direito constitucional. São Paulo, Saraiva, 2008.
130 Os “modelos anteriores” aqui não se restringem apenas a modelos estatais desenvolvidos em outras
épocas, como a monarquia parlamentarista inglesa ou o absolutismo francês, mas também ao modelo
anterior adotado quando da independência das Treze Colônias: em busca de um modelo mais eficiente do
que a confederação que se estabeleceu em 1777, o modelo federalista foi adotado. Podemos ver isso no
próprio preâmbulo da Constituição de 1787, que diz: “nós, o povo dos Estados Unidos, a fim de formarmos
uma União mais perfeita...”
131 Cf. SOUZA, 2005.
132 “Safeguards are not robotic, but staffed by humans, and so will reflect our tics and inconsistencies.
The imperfection of these safeguards is the source of federalism’s third challenge. [...]I offer a
perspective that sees the safeguards as varying in their capacity to respond to different transgressions,
varying in the force of their response, and varying in the causes of their own failures. These
heterogeneities provide an opportunity to overcome the apparent dilemma of force and flexibility while
providing insurance against misjudgment. The key lesson of this book is that safeguards must be
understood within their institutional context.” BEDNAR, Jenna. The Robust Federation - Principles of
Design, 2009.
133 Nesse sentido, Prado traz à tona uma avaliação possível de um Estado a respeito do custo-benefício
da concessão de incentivos tributários: “De uma forma simplificada, este processo envolve avaliar dois
grandes conjuntos de efeitos. De um lado, o custo fiscal líquido dos incentivos sob uma perspectiva
intertemporal. Isto é crucial porque é típica de toda política de desenvolvimento regional – e a guerra fiscal
não é exceção - a concentração de impacto fiscal negativo na fase inicial, com possível e desejável
recuperação parcial futura dos recursos aplicados. De outro lado, é necessário avaliar os benefícios
globais gerados pela nova inversão: criação direta e indireta de empregos, efeitos de indução de inversões
complementares (autopeças, por exemplo), indução à ampliação e diversificação do terciário, etc.”
PRADO, Sergio. Guerra fiscal e políticas de desenvolvimento estadual no Brasil. Economia e
Sociedade, v. 13, p. 1-40, 1999.
134 Varsano (1996) já apontava que, com a guerra fiscal, “ [o] federalismo, que é uma relação de
cooperação entre as unidades de governo, é abalado”. Prado, por outro lado, traz um ponto de vista
distinto ao justificar a guerra fiscal com a ideia de que “[...] lutar por interesses próprios de forma não-
cooperativa é inerente a agentes federativos: a federação é, neste sentido, intrinsecamente conflituosa,
composta por agentes em grande (e bem grande) medida competitivos entre si, o que exige a presença um
ente regulador das relações federativas – o governo central em conjugação com o Congresso”.
135 Cf. PIANCASTELLI, Marcelo; PEROBELLI, Fernando. ICMS: evolução recente e guerra fiscal.
1996.
136 DA SILVA ALVES, María Abadía. Guerra fiscal e finanças federativas no Brasil: o caso do setor
automotivo, cit. p. 1.
137 “Como anteriormente o IVC já tinha sido utilizado em algumas disputas por investimentos, alguns
dispositivos da Lei n.º 5.172 de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional) e o Ato Complementar
n.º 34 de 30 de janeiro de 1967 tinham o objetivo de evitar o surgimento de novos conflitos. Esta legislação
previa a celebração de convênios regionais para o estabelecimento de alíquotas uniformes do ICM e uma
política de incentivos comuns aos estados de uma mesma região. Assim, de meados da década de 60 até
1969, as questões referentes a incentivos fiscais eram resolvidas nessas reuniões regionais.” DA SILVA
ALVES, María Abadía. Guerra fiscal e finanças federativas no Brasil: o caso do setor automotivo. 2001.
138 DA SILVA ALVES, María Abadía. Idem, cit. p. 7.
139 Cf. PRADO, Sergio. Guerra fiscal e políticas de desenvolvimento estadual no Brasil. Economia e
Sociedade, v. 13, p. 1-40, 1999.
140 “Em um momento inicial, a disciplina exercida pelo governo federal neste período pode ser
considerada mais rígida do que no período anterior. Pelo menos até o início da década dos 80 a força
centralizadora do período militar parece ter exercido alguma disciplina capaz de impedir o surgimento de
programas mais agressivos, via ICMS.” DA SILVA ALVES, María Abadía. Guerra fiscal e finanças
federativas no Brasil: o caso do setor automotivo. 2001.
141 DA SILVA ALVES, María Abadía. passim, cit. p. 12.
142 “[A] submissão às regras do CONFAZ só foi possível ‘sob a vigilância de um estado forte e
centralizador. (....). No período recente, a impossibilidade de firmarem-se condições semelhantes coloca
em xeque a necessidade de existência do CONFAZ’.” PRADO; CAVALCANTI, 1998 apud DA SILVA
ALVES, 2001, p. 15.
143 “No entanto, não há nenhum indício de um movimento de desmonte dos programas estaduais de
incentivos. Embora não tenhamos feito um levantamento de todos os programas em todos os estados que
estejam em operação no momento atual, não há informações de que algum deles tenha sido desativado.
Pelo menos nos três estados selecionados para nosso estudo, os últimos programas criados ainda
permanecem montados, ainda que com ligeiras modificações.” DA SILVA ALVES, María Abadía. Guerra
fiscal e finanças federativas no Brasil: o caso do setor automotivo. 2001.
144 Considere aqui que a vinda de uma empresa para determinado estado propicie um aumento
significativo nas oportunidades de emprego e se mostre uma boa oportunidade de aquecer os setores
econômicos do Estado. As reflexões feitas no âmbito público do estado podem considerar, por exemplo,
que a perda fiscal advindo da renúncia do ICMS pode não ser tão onerosa a ponto de justificar a perda de
tais progressos sociais e econômicos - e o estado, no exercício de sua autonomia, pode e deve buscar o
melhor para a sua população.
145 BRASIL. CONSTITUIÇÃO, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Saraiva,
2014.
146 PETROBRAS. Pré-Sal [online] Disponível em: <http://www.petrobras.com/pt/energia-e-
tecnologia/fontes-de-energia/pre-sal/>. Acesso em 20 de outubro de 2014.
147 Cf. FERNANDES, Camila Formozo. A Evolução da Arrecadação de Royalties do Petróleo no Brasil
e seu Impacto sobre o Desenvolvimento Econômico do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro.
Universidade Federal do Rio de Janeiro: Instituto de Economia, 2007.
148 BRASIL. Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997. Dispõe sobre a política energética nacional, as
atividades relativas ao monopólio do petróleo, institui o Conselho Nacional de Política Energética e a
Agência Nacional do Petróleo e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil,
Brasília, DF. 7 ago. 1997. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9478.htm>. Acesso
em: 20 de outubro de 2014.
149 PEIXOTO, Fabrícia. Entenda a polêmica sobre a distribuição dos royalties do petróleo. BBC Brasil.
Disponível em:
<http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/03/100317_royalties_entenda_fa_np.shtml>. Acesso em
20 de outubro de 2014.
150 Nos artigos 21 e 22 da Constituição, que tratam respectivamente das competências exclusivas e
privativas da União, o único momento em que surge alguma possibilidade de interpretação nesse sentido é
no art. 22, XII: tal inciso define ser de competência privativa da União legislar sobre “jazidas, minas, outros
recursos minerais e metalurgia”. Poderia se interpretar que o termo “jazidas” se refere também às jazidas
de petróleo, porém tal interpretação cai por terra uma vez que a redação completa do inciso deixa clara a
intenção do constituinte de tratar exclusivamente de jazidas minerais.
151 Ao Estadão, Joaquim Levy, à época secretário da Fazenda do Rio de Janeiro, disse: “Hoje, os
recursos do FPE e do FPM somam R$100 bilhões. Se, mesmo ganhando isso, os outros estados continuam
com índice de pobreza elevado, qual a diferença se passarem a ganhar mais R$5 bilhões ou R$7 bilhões?”
RODRIGUES, Alexandre. Cabral Chora pelos royalties perdidos. Estadão. [online] Disponível em:
<http://www.estadao.com.br/noticias/geral,cabral-chora-pelos-royalties-perdidos,523062> Acesso em 20
de outubro de 2014.
152 A Petrobras estima para, em 2017, a produção diária das áreas de exploração de petróleo no Pré-Sal
ser superior a 1 milhão de barris. PETROBRAS. Pré-Sal [online] Disponível em:
<http://www.petrobras.com/pt/energia-e-tecnologia/fontes-de-energia/pre-sal/>. Acesso em 20 de outubro
de 2014.
153 Ainda que seja mais comum a análise de instituições como o Executivo e o Judiciário e não de um
organismo complexo como um estado, isso não quer dizer que seja impossível de ser feito. Ao se visualizar
a federação de um ponto de vista macro, se torna claro que a maneira como os estados se relacionam
entre si possui bastantes semelhanças com as instituições mais comumente analisadas, o que justifica a
utilização da teoria institucional de Vermeule e Sunstein.
154 SUNSTEIN, Cass; VERMEULE, Adrian, Interpretation and Institutions. Chicago Public Law
and Legal Theory Working Paper Series, No. 28, 2002.
155 Em um exemplo fictício, pode-se pensar em um caso que trate do transporte de animais silvestres no
espaço aéreo brasileiro. A capacidade institucional da Agência Nacional de Petróleo (ANP) para tratar
desse tema é basicamente nenhuma - a ANP não só não detém competência formal para tal como
também não possui expertise no assunto para de fato poder tomar uma decisão. Não obstante, a
capacidade institucional da Agência Nacional de Aviação Civil - ANAC - para tratar do mesmo assunto
está no extremo oposto em relação ao município B, uma vez que não só a ANAC é formalmente
competente para tal como possui os instrumentos necessários para avaliar o caso.
156 “Member governments—federal and state—may try to manipulate the division of authority to their
own benefit, an activity I will refer to as opportunism or transgressions.” BEDNAR, Jenna. The
Robust Federation - Principles of Design, 2009.
157 Cf. FERNANDES, Camila Formozo. A Evolução da Arrecadação de Royalties do Petróleo no Brasil
e seu Impacto sobre o Desenvolvimento Econômico do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro.
Universidade Federal do Rio de Janeiro: Instituto de Economia, 2007.
158 Ainda que houvesse o veto presidencial à lei, este poderia ser derrubado pelo Congresso, o que daria a
última palavra quanto à definição da partilha justamente para a instituição em que os estados interessados
estão representados - a Câmara dos Deputados e o Senado Federal.
159 “The federal benefits often require that the member governments, both state and federal, put general
welfare above their own apparent self-interest.” BEDNAR, Jenna. The Robust Federation -
Principles of Design, 2009.
MEDIDAS PROVISÓRIAS PÓS EMENDA
CONSITUCIONAL Nº 32/2001: UMA ANÁLISE
DO DIÁLOGO INSTITUCIONAL ENTRE
EXECUTIVO E LEGISLATIVO160
GOVERNMENT PROVISIONAL ACTS POST
CONSITUCIONAL AMENDMENT Nº. 32/2001: AN
ANALYSIS OF THE INSTITUTIONAL DIALOGUE
BETWEEN EXECUTIVE AND LEGISLATIVE

Breno Barros161
Bruna Veríssimo162
Lorena Senra163
Stella de Souza Ribeiro de Araújo164

RESUMO
A procura por maior governabilidade na estrutura política brasileira composta por multipartidarismo,
presidencialismo, federalismo e voto proporcional, motiva o chamado presidencialismo de coalizão,
segundo o qual as articulações políticas excedem os limites do partido do chefe do Poder Executivo para
assegurar a maioria no Congresso Nacional. O presente trabalho pauta-se no estudo de um dos
instrumentos de governo do Executivo e de controle da agenda legislativa: as Medidas Provisórias. Após a
Emenda Constitucional 32/2001, que instituiu novo regime de tramitação desta espécie, sucessivos
trancamentos da pauta do Poder Legislativo Federal ocorreram, dando origem uma anomalia institucional
tão intensa que reduziu drasticamente a deliberação no âmbito do Congresso Nacional. Dessa forma,
busca-se aferir se o problema descrito é mais uma demonstração da supremacia do Executivo.

PALAVRAS-CHAVE
Medidas provisórias; presidencialismo de coalização; diálogo institucional; supremacia do executivo.

ABSTRACT
The demand for greater governance in the Brazilian political structure composed of multi-party
presidentialism, federalism and proportional vote, motivates the so-called presidential system of coalition,
according to which the political articulations exceed the limits of party chief of the executive branch to
ensure the majority in Congress. This work analyses one of the executive government instruments used to
control the legislative agenda: government provisional acts. After the Constitutional Amendment 32/2001,
which established new rules of procedure of this kind, successive twists on the agenda of the Federal
Legislature occurred, creating an institutional anomaly so intense that dramatically reduced the resolution
in the National Congress. Thus, we seek to assess whether the problem described is a further
demonstration of the supremacy of the Executive.

KEYWORDS
Provisional measures; government provisional acts; institutional dialogue; executive supremacy.

INTRODUÇÃO
As Medidas Provisórias foram instituídas pela Constituição de 1988, porém não é um instituto totalmente
inovador no cenário brasileiro, visto que está inspirado no decreto-lei, presente no ordenamento nacional
desde a Constituição de 1937. Trata-se, por excelência, de função legislativa atribuída pelo poder
constituinte originário ao Presidente da República, o que suscita questionamentos a respeito do princípio
tripartição de poderes e suposta supremacia do poder executivo.
A edição de medidas provisórias é um remédio que busca o preenchimento
de lacunas legislativas frente às demandas sociais, estando limitada a casos de
“relevância e urgência”, bem como materialmente restrita, de acordo com o
artigo 62 da Constituição, que ainda submete as medidas provisórias à
apreciação do Congresso Nacional. Não obstante, observa-se uma hipertrofia
da atividade legiferante por parte do Presidente da República, o que levou o
Poder Legislativo a aprovar a Emenda Constitucional 32/2001, a fim de
constranger ainda mais a atuação do executivo.
A partir das medidas provisórias editadas após a EC 32, levanta-se a
hipótese de que há um excessivo controle de agenda do legislativo por parte
do Poder Executivo, o que corrobora sua supremacia, tendo-se em vista a
dinâmica de sobrestamento da pauta legislativa ensejada pela emenda e a
atuação deficiente do Poder Legislativo.
Utiliza-se com marco teórico a Teoria Institucional Americana, mais
especificamente o Estado administrativo moderno na perspectiva pós-
madisoniana de separação dos poderes, com base no livro “The Executive
Unbound”, de Eric Posner e Adrian Vermeule, o qual demonstra como a falta
de constrangimentos legais leva a supremacia do poder executivo. Observa-se
ainda, com base na obra “The Atrophy of Constitutional Powers” de Adrian
Vermeule, como a atuação legiferante hipertrofiada do Presidente da
República é promovida diante da atrofia do poder Legislativo.
Nesse contexto, é notável a Questão de Ordem 411/2009, proposta pela
Câmara dos Deputados, que, através de mutação constitucional, promove uma
interpretação restritiva ao artigo 62, § 6º, CF, - acrescentado pela EC 32.
Destarte, as Medidas Provisórias não votadas em quarenta e cinco dias podem
sobrestar apenas os projetos de lei ordinária que tenham por objeto matéria
passível de edição de medida provisória, sendo, portanto, a forma encontrada
pela Câmara de aliviar-se das inúmeras MPs editadas pelo Presidente da
República.
Diante da importância que as medidas provisórias possuem no cenário
nacional no que tange a promoção de políticas públicas pelo Poder Executivo,
a partir do método hipotético-dedutivo, objetiva-se analisar as capacidades
institucionais e efeitos sistêmicos tanto do Legislativo quanto do Executivo na
tomada de decisão, de acordo com o texto “Interpretation and institutions” do
autor Adrian Vermeule. A pesquisa pauta-se no levantamento de das MPs
editadas pelo Presidente no intervalo de 2002 a 2013, a partir dos dados
fornecidos pelo Centro de Documentação e Informação da Câmara dos
Deputados (CEDI).
Ademais, verifica-se como o sobrestamento de pauta afeta o andamento do
processo legislativo e a influência do regime instaurado pela EC 32/2001 na
relação entre estes dois Poderes. Procura-se ainda avaliar se a Questão de
Ordem 411/2009 foi uma resposta institucional à hipertrofia Executiva; e, por
fim, aferir se há ou houve atrofia legislativa em virtude do grande número de
MP’s editadas após a EC 32/2001.
A pesquisa insere-se no âmbito do presidencialismo de coalizão em
decorrência de o Estado brasileiro se pautar no federalismo,
multipartidarismo, presidencialismo, representação proporcional e na ampla
utilização de instrumentos de controle de agenda pelo Poder Executivo a fim
de aumentar sua governabilidade.

1 HISTÓRICO DAS MEDIDAS PROVISÓRIAS


O Estado Administrativo Moderno é marcado pelo predomínio do Poder
Executivo no cenário governamental, mesmo em períodos de normalidade.
Contudo, em períodos de crise a preponderância do Executivo é quase
absoluta165. Isso ocorre devido a uma maior capacidade para administrar
situações excepcionais, tendo em vista que os outros poderes possuiriam um
déficit informacional; além de uma falta de legitimidade pelo judiciário, que
não é formado por membros eleitos166, e uma dificuldade quanto ao tempo de
deliberação, frente a rapidez exigida em momentos de crise, por parte do
Legislativo167.
Essa realidade sociopolítica não comporta o retorno ao modelo proposto
pela visão madisoniana de separação de poderes, formada hoje por autores
que sustentam que o Executivo pode e de fato é controlado pela lei, além de
estar condicionado à fiscalização dos demais poderes168, sendo esse grupo
conhecido como a doutrina Legalista Liberal. De modo diverso à teoria
anterior, a tese defendida em The Executive Unbound, sustenta que os
mecanismos legais e tradicionais de fiscalização e controle sustentados pela
teoria supracitada, seriam ineficazes. Contudo, quando afirmam que o
Executivo não estaria submetido ao rule of law e a separação de poderes, não
significa que não existiria um controle, pelo contrário, haveriam outras formas
de limitação, que seriam basicamente a política e a opinião pública169.
A Constituição Federal de 1988, em seu texto original, previu a existência
de medida provisória (MP), que seria então, o tipo normativo sucessor do
decreto-lei. Dessa forma, percebemos que a sociedade e o governo
constantemente possuem demandas que não podem esperar a tramitação
normal exercida pelo Legislativo no processo ordinário. Por esse motivo, fez-
se necessário a delegação ao Presidente da República para a edição de
medidas provisórias com força de lei170. Este seria um instrumento de
excepcionalidade, e com o objetivo de implementar ações de forma mais
célere, trazendo a possibilidade de eficácia imediata, com força de lei e rito
sumário de tramitação no Congresso171.
Ao contrário do caráter alternativo do decreto-lei, os requisitos de
relevância e urgência da MP são cumulativos. Sendo assim, estes requisitos
teriam natureza política. A relevância legitima a adoção desse tipo normativo,
por tratar de assunto próprio de lei, e a urgência a conecta a um juízo político
de oportunidade e conveniência, amplamente utilizado pela administração
pública.
Como se infere do texto constitucional original172, não havia vedações
explícitas para a edição de medidas provisórias. Entretanto, a doutrina passou
a negar a elas ação sobre matérias próprias de leis delegadas173. Da mesma
forma, não previa o texto de forma explicita a reedição dessas MPs,
entretanto, o que se configurou foi o recebimento de uma reedição pelo
Congresso Nacional em 1989, sendo nomeada uma Comissão mista para a
análise da sua constitucionalidade, terminando em parecer favorável à
reedição até que uma lei complementar regulamentasse de forma adequada a
matéria. Posteriormente a Resolução nº 1, de 1989 apontou os procedimentos
de tramitação que deveriam ser adotados.
Não obstante, quando o Executivo edita normas que não tenham um tema
que se encaixe na esfera de urgência ou relevância para o governo ou a
sociedade, ocorreria uma apropriação indevida de competência
constitucionalmente indicada como legislativa, havendo uma concentração do
poder de legislar nas mãos de um grupo menor. Mesmo que não caiba
exclusivamente ao Executivo a edição da medida provisória, sendo necessário
a apreciação por parte do legislativo174. Ao longo de sua existência, este
instrumento com previsão constitucional de excepcionalidade, passou a ser
utilizado de forma trivial para atender inúmeras necessidades do Executivo,
muitas delas altamente discutíveis quanto à sua real urgência e relevância.
Esse aspecto leva a um importante questionamento que será trabalhado de
forma mais específica no decorrer do texto; se há ou houve atrofia legislativa
em virtude do grande número de MPs editadas nos dois períodos que serão
analisados.
Isto se deu a partir do momento em que foi aceita a reedição das medidas
provisórias tanto pelo Congresso quanto pelo Poder Judiciário. O panorama
institucional que se instaurou, levou o Congresso Nacional à necessidade de se
discutir o tema, culminando na promulgação da Emenda Constitucional nº 32
de 2011, que visava tornar mais rígida a edição e apreciação das medidas
provisórias175. Esta emenda não modificou a natureza da MP, contudo,
podemos depreender do novo texto dado ao artigo 62, da Constituição
brasileira, uma série de limites materiais176.
Todavia, um dos principais pontos de modificação, deu-se quanto à
tramitação da MP, visto que caso não seja apreciada no prazo de 45 dias
contados a partir de sua edição, ela passará a tramitar em regime de urgência,
em cada uma das Casas, sobrestando todas as demais deliberações
legislativas, até o encerramento de sua votação. Na prática, os prazos
estabelecidos anteriormente para a apreciação das MPs, foram reiteradamente
descumpridos, tanto na Câmara, quanto no Senado, passou a haver um
constante trancamento de pauta. O que se pretendia, no entanto era forçar o
Executivo a reduzir o número de MP’s e que se voltasse para a legislação
ordinária (projetos de lei e projetos de lei complementar)177.
Este novo rito de tramitação e apreciação das medidas provisórias
apresentava incompatibilidades com a Resolução n. 1, de 1989. Por este
motivo, a Resolução n. 1, de 2002-CN veio promover a adequação da
legislação comum do Congresso Nacional ao texto promulgado. No entanto,
este ajuste somente foi finalizado em maio de 2002, oito meses após a entrada
em vigor da EC n. 32/2001. Neste ínterim, 35 medidas provisórias foram
editadas, das quais 28 provocaram o sobrestamento da pauta178. Estas novas
regras impediram as reedições, mas aumentaram o poder de agenda do
Presidente da República, que então contava com um mecanismo lhe garantia
segurança e previsibilidade, porque as medidas provisórias a partir daquele
momento entrariam de forma automática na pauta de votação do Congresso.
Em sessão extraordinária, no dia 11 de março de 2009, o Deputado Regis
de Oliveira pediu a palavra para elaborar uma Questão de Ordem (QO), que
posteriormente recebeu o número 411/2009. Trata-se esta, de instrumento com
o fim de sanar qualquer dúvida levantada sobre regimentalidade ou
constitucionalidade de ato legislativo. A tese levantada nesta QO é a de que as
resoluções previstas no inciso VII do art. 59 da Constituição não estariam
sujeitas ao sobrestamento da pauta nos termos do art. 62, § 6º da Carta Magna,
isto porque não estaria incluída na definição da expressão “deliberações
legislativas”.
Desta forma, seria possível a deliberação sem se levar em conta o
trancamento da pauta de alterações regimentais e requerimentos de
prorrogação de Comissões Parlamentares de Inquérito179. Isto ocorreria
porque matérias administrativas submetidas ao conhecimento do Plenário não
poderiam ficar inibidas em face de medida provisória aguardando
deliberação. A resposta ao questionamento ampliou os efeitos já propostos,
não somente as resoluções, mas também as PECs, projetos de lei
complementar e decretos legislativos não estariam sujeitos ao trancamento da
pauta.

2 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO
Tema imprescindível para o entendimento de como funciona o ciclo das emendas constitucionais na
realidade político-jurídica brasileira é o presidencialismo de coalizão. Essa expressão foi cunhada por
Sérgio Abrantes em 1988, no qual estabeleceu seu conceito:
Apenas uma característica, associada à experiência brasileira,
ressalta como uma singularidade: o Brasil é o único país que, além
de combinar a proporcionalidade, o multipartidarismo e o
“presidencialismo imperial”, organiza o Executivo com base em
grandes coalizões. A esse traço peculiar da institucionalidade
concreta brasileira chamarei, à falta de melhor nome,
“presidencialismo de coalizão”, distinguindo-o dos regimes da
Áustria e da Finlândia (e a França gaullista), tecnicamente
parlamentares, mas que poderiam ser denominados de
“presidencialismo de gabinete”. (ABRANCHES, 1988, p. 21).
Apesar de nomeado somente em 1988, é um movimento que observa-se
desde 1946, segundo o entendimento do autor Fabiano Santos (2003, p. 17):
“Dada a separação de poderes e o pluralismo partidário no Congresso, o
presidente articula sua base de apoio graças à distribuição de cargos
ministeriais e de recursos orçamentários entre os grandes partidos, cujos
membros garantem os votos necessários à implementação do governo.” Sendo
assim, o que se percebe é uma formação subjetiva do governo, quanto na sua
manutenção, devido a caracteres não outros que a conformidade de interesses.
Entretanto, esperava-se que a constituição de 1988 e seus termos alterasse
essa configuração e por consequência tornasse o país ingovernável, pois
entendia-se que uma harmonização entre o Executivo e o Legislativo ser
improvável, já que:
Essa característica só é possível por dois fatores intrínsecos do
presidencialismo:
a) A “patronagem”
b) O poder de agenda
Patronagem é entendida como a disposição sobre recursos para impor
disciplina aos membros da coalizão, conseguindo apoio partidário consistente.
Esses “recursos” ou incentivos vão desde pastas ministeriais até a liberação
de emendas. É quando o Executivo usufrui de suas prerrogativas como Poder
para de alguma forma convencer os parlamentares a agirem de acordo com a
sua vontade. Isso tem por consequência a privatização de interesses, pois, a
partir do momento que um Poder tem influência sobre o outro a ponto de
conseguir com que grande parte de suas medidas sejam aprovadas, tem grande
chance de frustrar o surgimento outras novas propostas que gerem benefícios
tão ou mais abrangentes que as originadas pelo próprio.
Portanto essa característica de um executivo forte é unicamente decorrente
da necessidade dos interesses desse poder serem eleitos como próprios por
uma maioria de parlamentares garantindo que suas medidas sejam aceitas e
colocadas em prática e ao mesmo tempo se demonstra um contraponto
pernicioso pois para que isso seja possível ele usa de meios não ilegais porém
escusos, como o controle orçamentário, distribuição de posições ministeriais
não de acordo com a capacidade de administrativa do indivíduo mas sim a
legenda que o mesmo representa, entre outras.

3 ANÁLISE EMPÍRICA
Diante de todo o exposto nos capítulos precedentes, percebe-se que as
Medidas Provisórias podem ser utilizadas como mecanismo de controle da
agenda do Poder Legislativo pelo poder Executivo. Isto ocorre através de: (i)
má-utilização dos critérios “relevância e urgência”180, ambos fora da zona de
apreciação dos Poderes Legislativo e Judiciário e (ii) pelo sobrestamento de
pauta, instrumento introduzido no texto constitucional em 2001 e objeto da
presente pesquisa181.
O sobrestamento (ou trancamento) de pauta permite a votação das MP’s
antes de todas as demais proposições, ultrapassando até mesmo a urgência
constitucional. Desta forma, controla-se não só o que será votado, mas também
é facultado ao Presidente impedir que matérias propostas pelo próprio
Legislativo sejam votadas.
A latente falta de constrangimentos essencialmente legais para conter o
Executivo aponta para uma situação contrária da que pensavam os Federalistas
quando da gênese da separação de Poderes. Tanto no Brasil quanto no contexto
estadunidense, mecanismos ditos constitucionais promovem certa
preponderância ao Poder Executivo.
As soluções encontradas para frear excessos decorrentes da referida
preponderância são de natureza eminentemente política. Ou seja, “quando o
Executivo passa dos limites, a política toma conta”182.
Tal hipótese pode ser facilmente comprovada pela votação da Questão de
Ordem 411/2009. O então Presidente da Câmara Michel Temer, em sua
decisão alega como motivo político para esta decisão o grande número de
MPs editadas183 que atrapalhava a deliberação na Câmara e reduzia tanto a
credibilidade dos deputados frente a sociedade quanto a aprovação de leis de
sua iniciativa. Os custos dos deputados para manter o status quo tornaram-se
elevados demais e, portanto, algo deveria ser feito184.
A deliberação na Câmara ocorre nas sessões ordinárias – marcadas
previamente – e, se necessário for, nas extraordinárias – feitas a qualquer
tempo. De acordo com a TABELA 1, a grande maioria das sessões teve sua
pauta trancada. As sessões extraordinárias, por sua vez, tiveram 53,26% de
suas sessões trancadas.
TABELA 1 – SESSÕES ORDINÁRIAS 2002-2009

Ano Sessões com pauta trancada Total de sessões %

2002 49 54 90,7

2003 51 92 55,4

2004 47 63 74,6

2005 68 84 80,9

2006 43 64 67,1

2007 48 60 80,0

2008 38 47 80,8

2009 60 71 84,5

Total 404 535 76,7

Fonte: Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados

TABELA 2 – SESSÕES EXTRAORDINÁRIAS 2002-2009


Ano Sessões com pauta trancada Total de sessões %

2002 13 29 44,82
2003 33 78 42,30

2004 57 83 68,67

2005 44 64 68,75

2006 49 76 64,47

2007 67 112 59,82

2008 42 102 41,17

2009 38 105 36,19

Total 343 649 53,27

Fonte: Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados

De modo a contornar a influência excessiva do Poder Executivo, mudou-se a interpretação do texto


constitucional e transferiu-se a deliberação Legislativa das sessões ordinárias (as quais entre 2010 e 2013
tiveram 90,5% de trancamento) para as extraordinárias (28,40%).

TABELA 3 – SESSÕES ORDINÁRIAS 2010-2013


Ano Sessões com pauta trancada Total de Sessões %

2010 41 49 83

2011 56 56 100

2012 48 49 97,6

2013 22 27 81,4

Total 167 181 90,5

Fonte: Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados

TABELA 4 – SESSÕES EXTRAORDINÁRIAS 2010-2013


Ano Sessões com pauta trancada Total de Sessões %
2010 20 74 27,03

2011 41 113 36,28

2012 26 111 23,42

2013 45 167 26,9

Total 132 465 28,40

Fonte: Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados

CONCLUSÃO
A instituição das Medidas Provisórias pela Constituição de 1988 permitiu
que o Presidente da República exercesse de maneira significativa a atividade
legiferante no ordenamento brasileiro. Majorada pela atrofia do Poder
Legislativo, a edição de MPs ganhou proporções críticas do ponto de vista da
separação de poderes e da própria segurança jurídica.
Diante da análise dos dados, pode-se afirmar que a Emenda Constitucional
32/2001 veio a resolver o problema das reedições e, no entanto, foi
fundamento de outra anomalia institucional, uma vez que a partir do
sobrestamento de pauta (art. 62, §6º, CF), a grande maioria das sessões
deliberativas do Congresso ficou trancada pelo sobrestamento de pauta.
A preponderância do Executivo é inerente às suas prerrogativas e à própria
estrutura Constitucional, uma vez que a atuação do Congresso é
demasiadamente onerosa ante a edição de MPs pelo Presidente da República.
Esse agigantamento do Executivo é ainda favorecido pela atrofia do Poder
Legislativo diante das demandas sociais.
Não obstante, esse cenário pode ser mitigado, como se observa com a
questão de ordem 411/2009, que veio a constranger o controle de agenda pelo
Executivo. Destarte, a questão de ordem 411/09 foi clara resposta a grande
quantidade de MPs editadas pelo Presidente da República e aumentou a
possibilidade de deliberação no âmbito da Câmara dos Deputados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de (1988) – Presidencialismo de
Coalizão: O Dilema Institucional Brasileiro. Dados: Revista de Ciências
Sociais. Vol. 31, n. 1.
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submetidos ao regime de urgência: uma visão a partir do presidencialismo
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GOBATTO, Gilson. Executivo e legislativo - poderes harmônicos e
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LEVINSON, Daryl J; PILDES, Richard H. Separation of Parties, Not Powers.
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madisonian republic”. New York: Oxford University Press, 2011.
OLIVEIRA, Magali Carvalho Alves de. Medidas provisórias e a relação
Executivo x Legislativo: uma visão do sobrestamento de pauta. Programa de
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REIS, Graziany Marques dos. “Aspectos controversos na apreciação de
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Belo Horizonte: Editora UFMG, Rio de Janeiro: IEUPERJ, 2003.
SUNSTEIN, Cass; VERMEULE, Adrian. ”Interpretation and Institutions”.
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Disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=320245.
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TSEBELLIS, George. Veto players: how political institutions work. Princeton
UP and Russell Sage Foundation. 2002.
VERMEULE, Adrian. “The Atrophy of Constitutional Powers”. Harvard Law
School Public Law and Legal Theory Working Papers Series, No. 11-07,
2011. Disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?
abstract_id=173612. Acesso em: 20 ago 2014.
____________The System of the Constitution. New York, NY: Oxford
University Press, 2011.

160 Trabalho apresentado pelo Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das
Instituições (LETACI), vinculado à Faculdade Nacional de Direito (FND) e ao Programa de Pós-
graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD/UFRJ) coordenado pelo
professor Carlos Bolonha.
161 Graduando em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
e pesquisador do LETACI. E-mail: brenoabarros@hotmail.com.
162 Graduanda em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
e estagiária da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: bruna.verissimols@hotmail.com.
163 Graduanda em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
e pesquisadora do LETACI. E-mail: lorisenra@yahoo.com.br.
164 Graduanda em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
e monitora bolsista de Teoria do Estado da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. E-mail: stellasra@gmail.com.
165 “We live in a regime of executive-centered government, in a age after the separation of powers, and
de legally constrained executive is now a historical curiosity”. POSNER, Eric; VERMEULE, Adrian.
“The Executive Unbound: after the madisonian republic”. New York, NY: Oxford University Press,
2010, p.4.
166 POSNER, Eric; VERMEULE, Adrian. “The Executive Unbound: after the madisonian republic”.
New York, NY: Oxford University Press, 2010, p. 30.
167 Ibidem, p. 27.
168 Ibidem, P. 3.
169 Para Posner e Vermeule a política e a opinião pública seriam fatores capazes de, ao contrário dos
mecanismos legalistas liberais, controlar o Executivo porque, mesmo entre eleições, o presidente precisa
de popularidade, para obter suporte político a suas propostas, e de credibilidade para persuadir os demais
de que aquilo que afirma como uma necessidade ou realidade fática e/ou causal são verdadeiras e de que
suas intenções são as melhores. Por este motivo, mesmo que em momentos de normalidade, é
indispensável que o presidente assuma compromissos, atue com responsabilidade e negocie interesses
para otimizar o apoio que recebe da população e amenizar sua relação com demais representantes. O
fortalecimento do Executivo, em grande parte, depende de como ele mesmo se contém perante a política e
a opinião pública. Após promover concessões e conquistar popularidade e credibilidade, o presidente se
torna apto a concentrar maiores poderes a sua disposição. Ibidem, P. 5.
170 MACHADO, Lucas Cordova. “Dilemas institucionais e cenários políticos: análise do discurso da
alteração do sobrestamento da pauta na Câmara dos Deputados”. 2011, p. 20.
171 GOBATTO, Gilson. “Executivo e legislativo - poderes harmônicos e independentes? Uma análise do
poder de agenda”. 2013, p. 31.
172 O artigo 62 da lei maior brasileira em seu texto original dizia que: “Em caso de relevância e urgência,
o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de
imediato ao Congresso Nacional, que, estando em recesso, será convocado extraordinariamente para se
reunir no prazo de cinco dias. Parágrafo único. As medidas provisórias perderão eficácia, desde a edição,
se não forem convertidas em lei no prazo de trinta dias, a partir de sua publicação, devendo o Congresso
Nacional disciplinar as relações jurídicas delas decorrentes”.
173 Quanto a estas matérias que são próprias de leis delegadas e que seriam vedadas na edição de
medidas provisórias, temos os atos de competência exclusiva do Congresso Nacional e os de competência
privativa da Câmara dos Deputados e do Senado Federal; as matérias reservadas às leis complementares;
as relativas à organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, incluindo as carreiras e as garantias
de seus membros; os atos relativos à nacionalidade, cidadania, e aos direitos individuais, políticos e
eleitorais; e a legislação que envolve os planos plurianuais, as diretrizes orçamentárias e o orçamento
presentes nos artigos 49, 51 e 52 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
174 A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 em seu artigo 62, § 9º, indica que “Caberá à
comissão mista de Deputados e Senadores examinar as medidas provisórias e sobre elas emitir parecer,
antes de serem apreciadas, em sessão separada, pelo plenário de cada uma das Casas do Congresso
Nacional”. Contudo, esse controle por parte do Congresso Nacional, não evita o sobrestamento de pauta
sofrido pelo mesmo, e que favorece o Poder Executivo.
175 GOBATTO, Gilson. “Executivo e legislativo - poderes harmônicos e independentes? Uma análise do
poder de agenda”. 2013, p. 39.
176 Dentre estes limites estabelecidos estão as matérias quanto a nacionalidade, cidadania, direitos e
partidos políticos e sobre direito eleitoral; ao direito penal, processual penal e processual civil; organização,
carreira e garantias de membros do Poder Judiciário e do Ministério Público; matérias orçamentárias,
como os planos plurianuais, as diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares,
com a ressalva de permissão para os créditos extraordinários; detenção ou sequestro de bens, poupança
ou ativos financeiros; matérias reservadas às leis complementares; e matérias que já estejam disciplinadas
em projetos de lei devidamente aprovados pelas Casas do Congresso Nacional, e que estejam pendentes
de sanção ou de veto por parte do Presidente da República.
177 OLIVEIRA, Magali Carvalho Alves de. “Medidas provisórias e a relação Executivo x Legislativo:
uma visão do sobrestamento de pauta”. 2009, p. 36.
178 Ibidem, p. 40.
179 MACHADO, Lucas Cordova. “Dilemas institucionais e cenários políticos: análise do discurso da
alteração do sobrestamento da pauta na Câmara dos Deputados”. 2011, p. 27.
180 Constituição da República Federativa do Brasil, art 62, caput. “Em caso de relevância e urgência, o
Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de
imediato ao Congresso Nacional” (grifos nossos)
181 Segundo o artigo 62, parágrafo 2º da Constituição brasileira, após quarenta e cinco dias de tramitação
da medida provisória sem apreciação, esta entrará em regime de urgência em cada uma das casas do
Congresso Nacional e ficarão sobrestadas todas as outras deliberações até que haja a votação da MP.
182 “In this chapter, we discuss this puzzle. Our argument is simple: the system of elections, the
party system, and American political culture constrain the executive far more than do legal rules
created by Congress of the courts; and although politics hardly guarantees that the executive will
always act in the public interest, politics at least limits the scope for executive abuses.” POSNER,
Eric. A. VERMEULE, Adrian. Op.cit., p 112
183 “Se não encontrarmos uma solução no caso interpretativo do texto constitucional que nos
permita o destrancamento da pauta, nós vamos passar, Deputadas e Deputados, praticamente esse
ano sem conseguir levar adiante as propostas que tramitam por esta Casa que não sejam as
medidas provisórias[...] Eu quero, portanto, dar uma resposta à sociedade brasileira, dizendo que
nós encontramos aqui uma solução que vai nos permitir legislar” Michel Temer, então Presidente da
Câmara dos Deputados, em seu pronunciamento sobre a Questão de Ordem 411/09.
184 “In a nutshell the basic argument of the book is the following: In order to change policies (or
as we will say from now on: change the (legislative) status quo) a certain number of individual or
collective actors have to agree to the proposed change. I call such actors veto players”.
TSEBELLIS, George. Veto players: How political institutions work, Princeton UP and Russell Sage
Foundation. 2002, p. 12
AGÊNCIAS REGULADORAS: A
LEGITIMIDADE DO PARECER TÉCNICO
REGULATORY AGENCIES: THE LEGITIMACY OF
TECHNICAL REPORT

Ana Navarro
André Wendriner
Arnaldo Ferradosa
Carlos Bolonha
Gabriel Guia
Telmo Olímpio

RESUMO
A ideia de Administração Pública associa-se à necessidade de propiciar à máquina pública eficiência e
funcionalidade, as quais refletirão em questões estratégicas para o interesse público. O Estado
Administrador tem, nas agências reguladoras, instituições neutras capazes de regular matéria específica,
cujas capacidades institucionais permitem gerar efeitos sistêmicos mais desejáveis em setores nos quais os
representantes eleitos não estão capacitados a elaborar a mais eficiente regulação. O problema surge
quando o parecer técnico é contrastante com o de motivação política, pois, ao mesmo tempo em que
aquele parece justificado devido à expertise do seu emissor, este parece deter maior legitimidade em razão
do princípio democrático.

PALAVRAS-CHAVE
Órgão regulador; parecer técnico; legitimidade democrática.

ABSTRACT
The idea of Public Administration associates with the need to provide public machine efficiency and
funcionability, which will reflect on strategic issues for the public interest. The Administration has, in
regulatory agencies, neutral institutions capable of regulating specific matter. Their institutional capacity
can generate more desirable systemic effects in sectors in which elected representatives are not able to
develop the most efficient regulation. Thus set apart of partisan interests, agencies emit essentially
technical report, differentiating themselves from the politically motivated statements by the elected
branches. The problem arises when the technical report is at odds with the political motivations, because,
at the same time the first one seems justified as a result of the expertise of its issuer, the second one
seems to hold greater legitimacy due to the democratic principle.

KEYWORDS
Regulatory agency; technical report; democratic legitimacy.
INTRODUÇÃO
Em vários Estados Democráticos de Direito observou-se um movimento de redistribuição do poder político
por parte das instituições. Em relação à Administração Pública brasileira, esse fenômeno veio associado à
necessidade de propiciar maior eficiência e funcionalidade à máquina estatal. Desse modo, para o bom
funcionamento do Estado e para o melhor desenvolvimento da economia, consolidou-se o entendimento de
que não é possível prescindir de supervisão técnica especializada, com regulação uniforme e sistematizada,
principalmente em setores econômicos estratégicos do Estado.
As Agências Reguladoras surgiram neste contexto para proporcionar a
transformação do Estado, cujo modelo tradicional já não atendia à rápida
evolução tecnológica, ao novel modo de produção econômica e ao exercício
da regulação e fiscalização de atividades econômicas. O Estado
Administrador vislumbrou nas Agências Reguladoras instituições neutras
capazes de regular matérias de cunho técnico, cujas capacidades institucionais
permitiam gerar os efeitos sistêmicos mais desejáveis sobre os setores
econômicos frente aos quais os representantes eleitos não estavam tão
capacitados a elaborar a mais eficiente regulação.
Os pareceres das agências reguladoras, assim, porque apartadas de
interesses partidários e compostas por especialistas, se diferenciam dos de
cunho essencialmente político enunciados pelos Poderes eleitos, que são
integrados, em sua maioria, por agentes generalistas. O problema surge quando
o parecer de natureza técnica é contrastante com o parecer de motivação
política, pois, ao mesmo tempo em que aquele parece mais justificado devido
à sua especificidade, este parece deter maior legitimidade devido ao princípio
democrático. Pergunta-se: afinal, o parecer técnico é realmente menos legítimo
que o parecer político?
O objeto desta pesquisa é a análise da legitimidade das agências
reguladoras e os casos de sobreposição e conflitos entre pareceres políticos e
pareceres técnicos. A hipótese defendida é a que os pareceres não técnicos
dos órgãos democraticamente eleitos não devem se sobrepor, fundados em
pretensão de maior legitimidade, sobre os pareceres técnicos das agências
reguladoras. Em outras palavras, os pareceres técnicos também se reputam
legítimos no Estado Democrático de Direito, não devendo, pois, se submeter
aos pareceres políticos ante a alegação de que os últimos possuem maior
legitimidade. Para tanto, é trabalhada a ideia de legitimidade democrática
associando-a ao respaldo popular, à governabilidade e ao procedimento
legislativo.
A teoria institucional norte-americana, condensada nos nomes de Adrian
Vermeule e Cass Sunstein, mas também as teorias cujas perspectivas trabalham
mutuamente com o Direito Administrativo e a Ciência Política, como as
presentes em Peter Strauss, e, no âmbito brasileiro, em Gustavo Binenbojm,
dão a base teórica ao presente estudo. O método empregado é o hipotético-
dedutivo. Como objetivo geral, a pesquisa pretende justificar a legitimidade
das agências reguladoras e, como objetivo específico, apontar que, no conflito
entre pareceres técnicos e pareceres políticos, estes nem sempre devem se
sobrepor.
Este trabalho apresenta, no ponto 2, a teoria institucional norte-americana,
seus pilares conceituais e seus desdobramentos iniciais sobre os confrontos
entre pareceres emitidos por agências reguladoras e pareceres emitidos por
órgãos eleitos; posteriormente, são indicadas as duas ondas de
desenvolvimento destas instituições no país: a primeira, no período das
privatizações e a segunda, já no governo Lula, havendo maior preocupação
neste governo com a questão do respaldo democrático e o poder crescente das
agências reguladoras; no ponto 4, diante de um conflito entre pareceres
técnicos e políticos, duas perguntas são feitas: “Qual deve prevalecer?” e
“Seria o parecer técnico menos legítimo que o político?”. Por fim, analisará o
caso da nota técnica emitida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(ANVISA) que versa sobre inibidores de apetite e sua superação pelo Decreto
Legislativo nº 273/2004 do Congresso Nacional.

1 CAPACIDADE INSTITUCIONAL: PARECER TÉCNICO


Antes de tratar das Agências em específico, faz-se necessário um
esclarecimento conceitual que possibilite um melhor entendimento acerca do
fenômeno institucional. Estes conceitos conseguem delimitar o objeto da
pesquisa e propiciar maior clareza diante da análise dos pareceres técnicos e
não-técnicos e da legitimidade reivindicada a cada um deles.
Existem, desse modo, duas questões básicas que têm sido o foco dos
teóricos institucionalistas norte-americanos: quais são as possibilidades de
atuação das instituições dentro do Estado Democrático de Direito? E como
esta atuação repercute na esfera estatal e nas outras instituições? Estas
indagações podem ser condensadas na delimitação de dois conceitos-chave:
(i) capacidades institucionais e (ii) efeitos sistêmicos.
O conceito de capacidades institucionais deve ser compreendido com
base em dois ângulos distintos: o normativo e o logístico. Trata-se de uma
definição ampla, que visa cuidar de toda atividade institucional diante de suas
competências e de seus agentes, sob a ótica normativa; e dos seus mecanismos,
instrumentos e recursos, se analisada a questão logística.
Os efeitos sistêmicos também consistem em um conceito de grande
abrangência, que objetiva entender a repercussão da decisão de uma
instituição nas demais instituições, haja vista que devem elas trabalhar
coordenadamente, uma vez que a decisão de uma instituição tende a influir na
atividade das demais que lhe estão atreladas. Vale ressaltar a diversidade de
consequências que pode advir de uma decisão; podendo ser previsíveis, ou
não, os seus variados efeitos.
Neste quadro, consegue-se compreender os pareceres técnicos emitidos
pelas Agências Reguladoras como o exercício de uma capacidade institucional
que é garantida pela própria lei de criação da agência e que legitima e ordena
o seu funcionamento. Por outro lado, quando uma Agência emite decisão em
relação a um caso concreto, considerando a orientação explanada no seu
parecer, surgem daí efeitos sistêmicos, i.e., repercussões daquela decisão em
outras instituições, como veremos a seguir pelo Caso dos Inibidores de
Apetite. Estes efeitos podem ser previstos com maior precisão no estudo
técnico elaborado com cunho prospectivo.
Neste sentido, as capacidades institucionais referem-se a um fenômeno de
natureza institucional relacionada às possibilidades de o agente levantar
recursos e informações que balizem seu entendimento de forma mais eficaz.
Desta forma, a especialização se traduz em um fator que agrega maiores
capacidades institucionais a agência que atue na regulação de específico setor.
À luz desta teoria, vislumbra-se a existência de uma complexidade muito
maior na atuação das instituições do Estado que não parece estar contemplada
pelos simples mecanismos legais. Neste sentido, torna-se cabível a pergunta: o
parecer técnico, ancorado na lei que cria Agência Reguladora, é menos
legitimo que o parecer político, elaborado por um agente democraticamente
eleito? Criada a agência, toma-se como premissa a necessidade de pareceres
técnicos que regulem determinado setor como, por exemplo, aqueles emitidos
pela ANVISA, que devem normatizar o setor a que está destinada por lei, isto
é, a saúde pública. Então, por quais motivos o parecer político poderia
sobrepujar aquele de natureza técnica, fundado apenas na tese da legitimidade
democrática?
O que se pretende, por ora, é lançar luz a possíveis respostas quanto a
estas questões. Para tanto, sustenta-se a ideia de que os pareceres não-técnicos
dos órgãos democraticamente eleitos não devem se sobrepor, fundados em
pretensão de maior legitimidade, sobre os pareceres técnicos das agências
reguladoras.
A legitimidade, portanto, tem uma centralidade fulcral para análise das
decisões advindas das Agências em detrimento daquelas dos órgãos
democraticamente eleitos. Para análise apurada da própria legitimidade, não
se podem prescindir de ideias associadas como: (i) o respaldo popular, obtido
pelas consciências e aceitação da população acerca da medida ou decisão a
ser implementada; (ii) a governabilidade, que pode ser medida em grau sobre
a capacidade do órgão de impor e aplicar suas políticas através das decisões
e do apoio dos aliados políticos; e (iii) ao procedimento legislativo
democrático, que é resultado das decisões tomadas pelos representantes do
povo seguindo as devidas exigências legais e constitucionais, sem incorrer em
vícios insanáveis.
A ideia de legitimidade está na forma como se consegue conciliar a
vontade dos cidadãos com as decisões tomadas pelas instituições do Estado.
Aqueles que defendem que os pareceres políticos devem se sobrepor aos de
natureza técnica estão baseados na hipótese de que as Agências Reguladoras
possuem um déficit democrático. Neste trabalho, defende-se a inconsistência
deste argumento porquanto as leis que instituem as agências são procedimentos
legislativos democráticos e a atuação desses entes está fundada na
governabilidade, além do que a complexidade e especificidade das áreas nas
quais atuam as agências exigem decisões sustentadas com base na expertise.

2 BREVE HISTÓRICO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS


A implantação do modelo regulatório brasileiro se deu na década de 1990
inspirado no modelo norte-americano, porém os cenários político, ideológico
e econômico destes países eram distintos.
a. Estados Unidos da América
Nos Estados Unidos, o período conhecido como New Deal foi o mais fértil
para a criação de agências reguladoras, embora o surgimento das primeiras
agências tenha ocorrido em momento anterior à implantação dessa política.
Após o New Deal, concebem-se agências mais autônomas frente ao Executivo
e qualificadas pela expertise, sendo suas capacidades institucionais capazes
de gerar os melhores efeitos sistêmicos sobre a realidade política, econômica
e social.
No final do século XIX e início do XX, tiveram início as primeiras
medidas intervencionistas do governo sobre setores certos da economia, o que
provocou o surgimento de novos instrumentos regulatórios. Com a
normatização incidindo sobre indústrias, as agências daquele momento
relativizaram, ainda que embrionariamente, o direito de propriedade e a
liberdade contratual – revisão esta que será muito mais acentuada com a
Grande Depressão e o New Deal.
A crença de que as capacidades institucionais das agências reguladoras
eram capazes de gerar os melhores efeitos sistêmicos impulsionou a criação
de diversas agências reguladoras nos anos 1930, nos Estados Unidos. Além
deste fato, consideravam-se como favoráveis a estimular a economia as
capacidades técnicas destes órgãos e o seu distanciamento em relação aos
conflitos políticos (sistema de freios e contrapesos), frente a um Judiciário
conservador (Era Lochner).
Atualmente, porém, discute-se no ambiente norte-americano a necessidade
de um maior controle político, da responsividade social e da legitimação
democrática das agências. Isso se deu em virtude do crescente grau de
intrusividade desses entes nas atividades privadas, da questionável eficiência
e da não sujeição das agências à responsabilidade eleitoral.
Por essas razões, paulatinamente houve um crescimento da participação
social no processo decisório e dos mecanismos de controle dos Poderes
Constitucionais sobre as agências reguladoras estadunidenses – portanto,
controles jurídico, político e social. São exemplos disso medidas adotadas
pelos presidentes Reagan e Clinton, o ressurgimento do “veto legislativo” do
Congresso e a doutrina hard-look do Judiciário, que o tem colocado, nas
palavras de Binenbojm, como “curador da racionalidade dos processos
regulatórios”.
b. Brasil
Deve-se ter em mente que há dois momentos no desenvolvimento das
agências reguladoras no país. Um primeiro durante as privatizações e
desestatizações, na década de 1990, sendo notórias as emendas n.8 e n.9 de
1995. Buscou-se dar maior autonomia a estes entes técnicos e atrair
investidores. Um segundo momento se caracterizou pela alternância de poder
com a eleição do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que passou a governar
em 2002. Houve maior preocupação com o respaldo democrático e com o
poder crescente das agências reguladoras. O Governo, naquele momento,
visou evitar medidas impopulares tomadas pelas agências, o que o fez
restringir-lhes a autonomia decisória.
Num primeiro momento de criação de agências reguladoras setoriais,
entendeu-se que a atração do investimento internacional requeria a garantia de
previsibilidade e estabilidade das regras nas relações dos investidores com a
Administração Pública nacional, isto é, um compromisso regulatório que
representasse a blindagem institucional de um modelo que sobrevivesse a
alternâncias de poder na esfera governamental. Além disso, agências técnicas,
neutras e insuladas de pressões políticas contribuiriam para desestruturar os
“anéis burocráticos” nos Ministérios. Na realidade, há de se notar que as
agências reguladoras foram concebidas no Brasil para a preservação do status
quo, ao contrário do que ocorreu nos Estados Unidos, em que impulsionaram
uma mudança no sentido de relativizar o direito de propriedade e a autonomia
da vontade.
No governo Fernando Henrique Cardoso, criaram-se mecanismos
institucionais e jurídicos assecuratórios da autonomia das agências
reguladoras, sendo seu status jurídico o de autarquia de regime especial.
São aspectos da independência das agências reguladoras: independência
política dos dirigentes (nomeação; mandato fixo), independência técnica
decisional (motivações técnicas dos atos; sem revisão pelos Ministérios ou
Presidente), independência normativa e independência gerencial, orçamentária
e financeira ampliada (rubricas orçamentárias próprias e receitas atribuídas
pela lei às agências).
Noutro momento, as agências regulatórias são inauguradas com a
submissão frente ao teste de alternância democrática no governo em sua órbita
federal. O governo Lula viu na adoção de medidas impopulares um risco à sua
própria legitimidade (neste sentido, enquanto apoio e respaldo social), uma
vez que estas medidas seriam atribuídas ao governo como um todo. Haveria
aqui uma disputa entre o governo eleito e as agências cujos dirigentes foram
nomeados pelo governo anterior, o que pode ser entendido como evidência da
fragilidade do arranjo institucional regulatório brasileiro.

3 O CONFLITO ENTRE O PARECER TÉCNICO E O


POLÍTICO
Certo é que as agências reguladoras representaram uma mudança na forma
de organização das funções estatais, nas administrações contemporâneas. A
dimensão desta transformação envolveu questões tão profundas que, na década
de 1950, um membro da Suprema Corte norte-americana considerou que esses
entes passavam a constituir um quarto poder, à medida em que poderiam
interferir de forma decisiva em setores cruciais do Estado.
Ressalte-se que, mesmo nos EUA, questões envolvendo o déficit
democrático das agências reguladoras não foram devidamente solucionados.
No Brasil, de igual forma, surgiram questionamentos sobre a legitimidade
democráticas dessas instituições.
Para se compreender estes questionamentos, deve-se pensar que os
pareceres técnicos justificam-se cientificamente, isto é, que há uma
fundamentação epistêmica daquilo que se afirma, sendo estes pareceres
qualificados pela expertise dos seus prolatores. Os pareceres políticos, assim
como os pareceres técnicos, são capazes de provocar efeitos na esfera
política. Aqueles pareceres estão motivados politicamente, posto que emitidos
pelo Legislativo (poder-se-ia dizer moralmente, contrapondo-se a moral
política ao conteúdo epistêmico ou científico). Se o princípio democrático
constitui a legitimação subjacente dos pareceres políticos, seria, afinal, a
expertise uma causa legitimadora tanto quanto o princípio democrático o é? A
análise do caso dos inibidores de apetite a seguir ilustra a questão.

4 RESOLUÇÃO ANVISA (AGÊNCIA NACIONAL DE


VIGILÂNCIA SANITÁRIA): SOBREPOSIÇÃO DO
LEGISLATIVO AO PARECER DA AGÊNCIA
REGULADORA
Em 2011, a Anvisa publicou Nota Técnica sobre os medicamentos
inibidores de apetite, tendo em vista que os anorexígenos anfrepramona,
femproporex e mazindol estavam no mercado nacional há mais de trinta anos e
a sibutramina desde 1998, sendo consumidos no Brasil em níveis muito
superiores aos recomendados pela Organização Mundial de Saúde, e que
havia a necessidade de avaliação embasada em testes científicos atualizados
que comprovasse a eficácia e segurança dos mencionados medicamentos.
O referido parecer técnico foi elaborado a partir de dados recolhidos dos
processos dos medicamentos, da revisão das bases de dados sobre as reações
adversas, de artigos e trabalhos encontrados a partir de pesquisas extraídas
dos bancos de dados da Pubmed (US National Library of Medicine Institutos
Nacionais de Saúde) e Bireme e em bibliografia de referência. Em todos
esses estudos, a análise da ANVISA foi no sentido de que não havia resultados
robustos que comprovassem a eficácia de tais substâncias no combate à
obesidade, sendo ainda observado que o uso prolongado do medicamento
conduzia a reações adversas como, por exemplo, isquemia cerebral, acidente
cerebrovascular, hipertensão pulmonar primária, além de distúrbios
psicóticos, síndrome de abstinência, dependência e tolerância.
As ações regulatórias internacionais foram também consultadas, sendo
constatado que os mencionados anorexígenos não são mais utilizados na
Europa desde 1999 e a sibutramina foi descontinuada tanto na Europa quanto
nos Estados Unidos desde 2010.
Diante dos resultados obtidos, o corpo técnico da ANVISA concluiu que os
efeitos nocivos dos medicamentos anorexígenos superavam os supostos
benefícios no controle da obesidade, pronunciando-se pela retirada de tais
produtos do mercado brasileiro.
Esses dados foram apresentados por meio de uma audiência pública,
realizada no dia 23 de fevereiro de 2011, no auditório da ANVISA, sendo
editada em 6 de outubro de 2011 a Resolução nº 52, que proibiu a fabricação,
importação, comercialização, prescrição, dispensação e aviamento dos
anorexígenos anfepramona, femproporex e mazindol e estabeleceu requisitos
mais rígidos para a prescrição da sibutramina.
Apesar de a Diretoria Colegiada da ANVISA não ter acatado integralmente
as conclusões da área técnica no que tange à sibutramina, que não foi vedada
como os demais anorexígenos investigados, mas foi apenas alçada a uma
categoria de controle mais restrito, a medida teve grande repercussão social e
na classe médica, motivando o Conselho Federal de Medicina (CFM), em
2011, a ajuizar Ação Civil Pública pleiteando a declaração de nulidade da
Resolução nº 52/2011, sob a alegação de que os medicamentos proibidos pela
autarquia sanitária seriam a única possibilidade atualmente existente de
combate à obesidade, e que o uso deles não representaria riscos aos pacientes,
desde que observados os parâmetros éticos estabelecidos pelo CFM.
Não obstante a decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região no
sentido de manter a Nota Técnica da ANVISA, não concedendo a liminar
suspensiva da referida Resolução 52/2011, o debate chegou ao Congresso
Nacional, sendo proposta uma audiência pública pela Comissão de
Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, realizada em 5 de
abril de 2011, presentes, também, os representantes do CFM, da ANVISA e
associações interessadas. Logo a seguir, em 28 de setembro, foi apresentado o
Projeto de Lei (PL) 2431/2011 para proibir a ANVISA de impedir a produção
e a comercialização dos anorexígenos: sibutramina, anfepramona,
femproporex e mazindol. O mencionado PL encontra-se ainda em tramitação,
contudo, em 04 de setembro de 2014, foi aprovado pelo Senado o Decreto
Legislativo 273/2014 para sustar a Resolução Nº 52/2011 da ANVISA .
Conforme se depreende dos debates e documentos produzidos no âmbito
da discussão do referido projeto de decreto legislativo, a decisão do
Congresso Nacional se baseou em argumentos de cunho social, político-
jurídico e técnico.
Um dos argumentos de ordem técnica e social apresentado foi o de que a
obesidade é epidêmica no País e o número de crianças e obesos mórbidos
vêm crescendo, sendo que esse grupo não pode fazer uso de medicamentos
anorexígenos. Assim, a proibição geraria um agravamento do problema, qual
seja, a obesidade mórbida.
Outro argumento social utilizado consistiu na premissa de que a proibição
do medicamento poderia fomentar a comercialização ilegal do produto, o que
também agravaria o problema, à medida em que tornaria mais difícil o
controle por parte do Estado regulador, bem como impediria a prescrição e o
acompanhamento pelos profissionais de saúde habilitados para ministrá-los.
As justificativas de fundo político apresentadas dizem respeito à separação
de poderes, entendendo o Congresso que a Agência Reguladora extrapolou a
sua competência legal invadindo a competência do Poder Legislativo,
classificando a Resolução 52/2011 como “abuso normativo do Poder
Executivo”. Vê-se aqui, portanto, uma clara manifestação de defesa
institucional por parte do Legislativo frente ao Executivo “sem fronteiras”
pois, conforme a teoria institucional de Adrian Vermeule, um Poder que dispõe
de menos capacidade institucional para desempenhar determinada
competência tende a sofrer atrofia frente a outro mais bem equipado. Observe-
se que é comum no Brasil a deferência do Legislativo ao Executivo no que
toca a questões regulatórias, matérias em que há evidente prevalência de
recursos por parte deste sobre aquele.
Por fim, conclui a Justificativa do Decreto legislativo – exposição de
motivos que, por sua essência e conteúdo, é para os fins deste trabalho
considerada um parecer político - que a ANVISA não poderia ter decidido
pela proibição dos anorexígenos uma vez que ela não possuiria dados técnicos
e científicos conclusivos sobre o assunto em questão.
A interpretação a contrário sensu do argumento significaria afirmar,
contudo, que caso a ANVISA detivesse dados técnicos e científicos
conclusivos quanto ao tema seria válida a sua conclusão pela proibição dos
anorexígenos, de modo que ao Congresso caberia apenas resignar-se à decisão
da Agência. Assim, é cabível indagar se o interesse institucional do
Legislativo não estaria ameaçado em ambos os casos, pois, na hipótese, em
havendo maiores dados acerca do perigo dos medicamentos a proibição
reputar-se-ia correta.
Outra questão relevante para a teoria institucional diz respeito à
competência atribuída a cada ente, bem como à capacidade para desempenhá-
las. Isto porque entendimento manifestado pela ANVISA foi superado pelo
Legislativo, sendo questionável se este poderia chegar a dados técnicos e
científicos mais conclusivos do que a Agência, que é, no caso, o ente dotado
do corpo técnico com especialização para tratar da matéria, enquanto o
Congresso é composto por legisladores generalistas. Neste ponto, importa
ressaltar que a fundamentação técnica do parecer da casa legislativa foi
produzida com amparo em comentários produzidos por uma associação civil,
e não pela pesquisa direta dos membros do legislativo .
5 PODER NORMATIVO DO ESTADO: DELEGAÇÃO
No modelo paradigma norte-americano, não obstante a disposição
constitucional no sentido de que o Congresso Nacional detém todos os poderes
legislativos, a Suprema Corte já se pronunciou no sentido que são
constitucionais as leis do Congresso delegando função normativa ao Chefe do
Poder Executivo e às agências reguladoras. No caso, a Corte se ateve ao fato
de ter o Legislativo delimitado, com a necessária precisão, a competência de
cada agência e se a lei de criação de determinada agência fixou critérios
claros para o exercício da sua função regulatória. Estando presentes tais
circunstâncias, não haverá usurpação de competência por parte do ente
regulatório.
No caso brasileiro, há a previsão legal contida no art. 7º da Lei 9.782/99,
que confere competência à ANVISA para atuar diante de circunstâncias
especiais de risco à saúde, podendo proibir a fabricação, a importação, o
armazenamento, a distribuição e a comercialização de produtos e insumos, em
caso de risco iminente à saúde. Seguindo a linha da Corte norte-americana, se
a legislação confere competência para a Agência, não há que se falar em
ingerência do Executivo na esfera de atuação do Legislativo desde que a
proibição de fabricação e comercialização de anorexígenos pela ANVISA se
justifique no risco iminente à saúde. No caso em questão, foi exatamente este o
entendimento da Agência, que avaliou o risco/benefício da medicação
concluindo em bases técnico-científicas que os anorexígenos podem causar
grave lesão à saúde dos usuários, conforme expresso em seu parecer técnico.
Dessa forma, a alegação de preservação das capacidades institucionais do
Legislativo não encontra respaldo no atual desenho institucional, tendo a
ANVISA agido dentro das balizas do ordenamento jurídico, podendo ser
apenas questionado se a fundamentação apresentada para o ato subsiste de
fato. Trata-se, assim, de questionamento acerca do mérito da decisão da
Agência, e não da extrapolação de suas competências legais.
O segundo aspecto a ser avaliado diz respeito à possibilidade de o
Congresso realizar um juízo baseado em critérios técnico-científicos em
contraposição ao da Agência Reguladora. A criação de agências reguladoras
se funda na ideia de que determinados temas de grande relevância e
complexidade técnica devem ser delegados a entes especializados e com
competência técnica para tanto. Esta foi a intenção do legislador ao aprovar a
Lei 9.782/99, que dá respaldo ao reconhecimento de que a especificidade
produz resultados mais confiáveis quanto à regulação da matéria, de modo que
a decisão do Congresso de reavaliar a opinião técnico-científico da Agência
subverte essa sistemática. O ente regulador detém a atribuição para regular a
matéria, e é dotado de maior capacidade institucional para fazê-lo, sendo
esperada a deferência ao seu juízo técnico.
Compete ao Congresso Nacional adotar uma análise mais ampla do cenário
mercadológico, visando outros aspectos da equação custo/benefício, enquanto
a agência reguladora possui uma análise sistêmica mais específica do setor
que regula. O Legislativo deve ater-se a questões gerais, sociais e
econômicas, não apenas por lhe faltar capacidade técnica, mas também pelo
fato de que sua atuação é fortemente influenciada por interesses de políticos e
de grupos econômicos que impossibilitam a formação de um juízo imparcial.
Assim, seria aceitável que o Congresso ponderasse de forma diferente dando
prevalência a outros valores constitucionais para não acatar o juízo técnico da
Agência, mas pretender superar a expertise técnica desta não é razoável.
Joaquim Barbosa refletindo a respeito das agências brasileiras se alinha ao
pensamento esposado por Carlos Ari Sundfeld no sentido de que:
[...] nos novos tempos, o Poder Legislativo faz o que sempre fez:
edita leis, frequentemente com alto grau de abstração e generalidade.
Só que, segundo os novos padrões da sociedade, agora essas normas
não bastam, sendo preciso normas mais diretas para tratar das
especificidades, realizar o planejamento dos setores, viabilizar a
intervenção do Estado em garantia do cumprimento ou a realização
daqueles valores: proteção ao meio ambiente e do consumidor, busca
do desenvolvimento nacional, expansão das telecomunicações
nacionais, controle sobre o poder econômico- enfim, todos esses que
hoje consideramos fundamentais e cuja persecução exigimos do
Estado. É isso o que justificou a atribuição de poder normativo para
as agências, o qual não exclui o poder de legislar que conhecemos,
mas significa, sim, o aprofundamento da atuação normativa do
Estado. [...] A constitucionalidade da lei atributiva depende de o
legislador haver estabelecido Standards suficientes, pois do contrário
haveria delegação pura e simples de função legislativa.
Neste quadro, a suposta maior legitimidade democrática do parecer
político não justificaria a sua sobreposição ao parecer técnico. Se a Agência
agiu dentro de sua discricionariedade técnica, que decorre da Lei aprovada
pelo próprio Congresso, tal decisão é legítima, não havendo ingerência do
Executivo sobre matéria adstrita ao Legislativo. É evidente que o Congresso
tem o poder de reverter a delegação da matéria à Agência, contudo, isto não
ocorreu no caso em questão, haja vista que não foi promovida qualquer
alteração na Lei 9.782/99, sendo aprovado simples Decreto Legislativo para
sustar a decisão da Agência. Assim, o parecer da ANVISA é legítimo na
medida em que se restringe a dar cumprimento à sua missão institucional, não
havendo conflito com as atribuições do Legislativo, que, embora tenha o
respaldo do princípio democrático, não deveria, com fulcro no vigente
arcabouço teórico e legal, fundamentar as suas decisões contrariamente aos
pareceres de ordem técnico-científica.

CONCLUSÃO
As Agências Reguladoras, embora não detenham representatividade nos
moldes tradicionais realizada pelo voto popular, produzem pareceres técnicos
justificados, possuindo maior capacidade institucional para produzir os efeitos
sistêmicos mais desejáveis na ordem social e econômica do Estado.
À luz da teoria institucional vislumbra-se a existência de uma
complexidade muito maior na atuação das instituições do Estado que não
parece estar contemplada pelos simples mecanismos legais. Assim,
subentende-se que ante a criação de uma agência, toma-se como premissa a
necessidade de pareceres técnicos específicos que regulem determinado setor,
uma vez que esses entes são criados e capacitados institucionalmente para
melhor avaliar os efeitos dinâmicos das suas decisões.
Tendo em vista esse premissa, não há que se considerar viável a
superposição do parecer político sobre o parecer técnico com esteio na
legitimidade democrática que o primeiro possui. Com efeito, as agências
reguladoras constituem a superação ou relativização do dogma da não-
delegação das funções específicas de cada um dos poderes estatais. Em razão
da enorme transformação pela qual vem passando o Estado, para este dar
solução rápida e eficaz aos problemas cada vez mais freqüentes e complexos
da sociedade moderna, não pode prescindir das capacidades institucionais
(expertise) das agências, não encontradas na prática legislativa tradicional.

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A SEGURANÇA PÚBLICA NO ÂMBITO DO
PODER EXECUTIVO FEDERAL: OS PLANOS
DE GOVERNO E A SUPREMACIA EXECUTIVA
THE PUBLIC SAFETY UNDER THE FEDERAL EXECUTIVE
POWER: THE GOVERNMENT PLANS AND EXECUTIVE
SUPREMACY

Carlos Bolonha
Dominique Oliveira
Gabriel Castro
Gabriel Dolabella
Gabriel Mendonça
Juliana Sales
Leonardo Gaspar
Luiz Lima
Stefanie Araujo
Telmo Olímpio
Victor Costa

RESUMO
No Brasil, pode-se perceber um agigantamento do Poder Executivo Federal sob a ótica da Segurança
Pública, se analisado, inclusive, os planos de governo dos principais presidenciáveis de 2014. Dilma e
Aécio sugerem uma centralização Federal no combate à violência quotidiana. Disto deriva-se a análise da
capacidade institucional e normativa do Executivo Federal para medidas propostas para Segurança Pública
e seus efeitos sistêmicos nas instituições brasileiras. A centralidade no Presidente para superar a crise de
insegurança, tendo por base esses planos, é uma demonstração clara de uma Supremacia Executiva; e isto
concorre para o fato de não se encontrar uma reação tiranofóbica na opinião pública e nas demais
instituições estatais. Portanto, através de uma metodologia hipotético-dedutiva, propõe-se uma análise da
centralização da atuação executiva quanto à Segurança Pública no âmbito federal.

PALAVRAS-CHAVE
Supremacia Executiva; teoria institucional; segurança pública.

ABSTRACT
In Brazil, an enlargement of the Federal Executive Power can be noted from the perspective of Public
Security even if we analyze the government plans of the main presidential candidates of 2014 election. It is
suggested a federal centralization against the daily violence. The analysis of the institutional and normative
capacity of the Federal Executive to propose measures to Public Security and its systemic effects in
brazilian institutions derives from that situation. The centralization of the President to overcome the
insecurity crisis, based on these plans, is a clear demonstration of Executive Supremacy; and this
contributes to the fact that there is not a tyrannophobic reaction in public opinion and in the other state
institutions. Therefore, through a hypothetical-deductive methodology, we propose an analysis of the
centralization of the executive actions regarding Public Security at the federal level.

KEYWORDS
Supremacy executive; institutional theory; public safety.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente artigo visa a oferecer uma análise da supremacia do Poder
Executivo Federal no tocante à promoção da Segurança Pública. No Brasil,
verifica-se uma crise de insegurança, claramente demonstrada pelos dados
oficiais. Diante da necessidade de atuação do Poder Público para garantir um
direito constitucionalmente tutelado, observa-se uma tendência de o Poder
Executivo Federal coordenar e centralizar as políticas de Segurança Pública.
Entretanto, essa iniciativa desequilibra a tripartição de poderes uma vez que
promove um agigantamento do Poder Executivo, violando a distribuição
constitucional de competências.
Se, por um lado, a centralidade do Poder Executivo Federal no combate à
violência tem o escopo de promover um direito constitucional, por outro lado,
promove uma invasão de competências, claramente, estatuídas na Lei Maior.
Os principais presidenciáveis das eleições de 2014, Dilma Rousseff e Aécio
Neves, apresentaram propostas de centralização das políticas de Segurança
pública. Vale ressaltar que, a presidente reeleita, propôs a alteração do texto
constitucional de maneira a atribuir ao Governo Federal a responsabilidade de
coordenação das ações de combate à violência. A inexistência de uma reação
tiranofóbica deve-se, basicamente, à falta de consciência política e aos
efeitos, muitas vezes, positivos da atuação federal. Nesse sentido, o fenômeno
do agigantamento do Poder Executivo, embora viole disposições de patamar
constitucional, não encontra resistência numa sociedade que se mostra
impotente no monitoramento da atividade pública.
A referida ampliação do Poder Executivo Federal pode gerar uma crise
federativa e uma crise institucional. Em primeiro plano, a indiferença às
capacidades institucionais manifestada na atuação centralizada do Poder
Executivo denota a falta de diálogo entre as instituições e pode promover o
distanciamento entre elas. Sendo assim, pode-se falar em crise institucional.
Em segundo plano, a possibilidade de crise federativa deve-se à invasão de
competências; o Governo Federal se ocupa de uma atribuição que, do ponto de
vista técnico-formal, é concorrente. Dessa forma, rompe-se o princípio da
isonomia entre os entes federados.
Em suma, o Governo Federal viola o texto constitucional para promover
um direito constitucional. Como proceder diante dessa contradição que pode
conduzir a crises institucional e federativa?

1 A CRISE DE SEGURANÇA PÚBLICA: CONTEXTO E


DESDOBRAMENTOS
A Segurança Pública é um assunto que frequentemente constitui pauta na
agenda política brasileira, permeando os debates legislativos, o ambiente
jurisdicional, as temáticas midiáticas e o meio social. Essa relevância se deve
ao fato da configuração de uma crise de segurança permanente no país.
Esse quadro pode ser comprovado, por exemplo, por meio de dados. Pelo
Ministério da Fazenda/Secretaria do Tesouro Nacional, em ação com o Fórum
Brasileiro de Segurança Pública, observa-se que de 2003 a 2011 as despesas
nessa função passaram de 33 bilhões de reais para 51 bilhões de reais. Dados
do Mapa da Violência de 2012 revelam que a taxa de mortalidade juvenil
aumentou para 149 mortos a cada 100 mil jovens. Em 2014, o Brasil alcançou
o estágio de terceira maior população carcerária do mundo, com 715,3 mil
presos, gerando um novo déficit de 210 mil vagas no sistema penitenciário. A
política de drogas e seu respectivo controle de fronteiras não apresenta uma
execução eficiente, seja por parte de seus agentes, ou pelas instituições que a
realiza.
O cenário é configurado por diversas possíveis causas. Vive-se em um
ambiente social de profunda desigualdade econômica e incapaz de fornecer
condições de vida digna para milhões de jovens pobres; há um alto nível de
impunidade dos agentes públicos, corrupção e insatisfação do trabalho
policial; institucionalmente, os órgãos atuam sem integração, tornando-se
ineficientes no atendimento às diversas demandas existentes; além da disputa,
no âmbito federativo, sobre as razões e os métodos mais adequados de
enfrentamento da crise, dentre outros fatores. Nesse sentido, um dos efeitos
mais danosos da crise na área da Segurança Pública é a constante sensação de
insegurança e manifestação de insatisfação por parte da sociedade civil.
Uma vez exposta, a crise de segurança pode ser considerada um problema
estrutural e desafio ao Estado de Direito no Brasil. Nesse sentido, surgem as
propostas políticas para a superação da questão. Levando em consideração o
fato de que no ano de 2014 ocorreram eleições para Presidente da República,
a temática Segurança Pública foi uma das mais abordadas pelos
presidenciáveis em seus planos de governo. Analisar-se-ão, pois, as propostas
desenvolvidas pelos principais presidenciáveis de 2014: Aécio Neves e
Dilma Rousseff.
1.1 Projetos Políticos
1.1.1 Aécio Neves
A Segurança Pública propriamente dita foi abordada como o tema
pertencente ao rol de grandes prioridades do programa de governo. A tratativa
seria de considerar todo o ciclo de gestação da violência, desde a prevenção e
impunidade, através da proposição de uma série de reformas legislativas, de
inovações institucionais nas polícias e no sistema prisional.
Assim, Aécio Neves, filiado ao PSDB, Partido da Social Democracia
Brasileira, propôs mecanismos específicos como meio de alcançar tal
objetivo. Em primeiro lugar, por meio da descentralização, levar-se-ia a
solução para perto de onde ocorre, mediante forte ação federativa, com
reconhecimento do papel de Estados e Municípios. Assim, o relacionamento
com as administrações estaduais e municipais dar-se-ia em ambiente de
respeito à autonomia de cada entidade e de observância dos princípios da
Federação e da República.
Em adição, outra proposta foi a promoção da reforma dos serviços
públicos e da legislação penal, a fim de alcançar a erradicação, a impunidade
e aumento dos níveis de segurança no país.
Na seara da Defesa Nacional, as diretrizes seriam o tratamento desta como
uma política de Estado, com enfoque à defesa das fronteiras, em especial na
região amazônica, e das plataformas de produção e de perfuração no mar
territorial. Para tanto, ocorreria uma modernização na gestão administrativa,
estratégica, profissional, técnico-industrial e na relação para com o Ministério
da Defesa.
Pela política de drogas, Aécio Neves considerava o crack como a droga
mais perigosa da atualidade, argumentando que ela ocasionou o rompimento
dos limites geográficos e sociais, sendo apercebida, inclusive, no interior do
país. Deste modo, este tema abrangeria políticas públicas de saúde, segurança
pública e assistência social, dentre outras.
Para que tudo isto fosse possível, Aécio pretendia assegurar um fluxo
contínuo e estável de financiamentos para estados e municípios através de
diferentes fundos, sem contingenciamento, além do apoio técnico e
administrativo. A liderança do poder público federal, sempre que necessária,
seria firme e vigorosa. No total, 25 diretrizes previamente estipuladas
guiariam as propostas resolutivas à crise.
1.1.2 Dilma Rousseff
Dilma Rousseff, que foi reeleita pelo PT, Partido dos Trabalhadores,
apresentou o programa de governo intitulado “Mais mudanças, mais futuro”.
Mantendo as 13 diretrizes de sua primeira gestão, o diálogo político no
concernente ao tema da Segurança Pública continua centrado no combate ao
crime organizado.
Propondo-se a aprimorar as competências constitucionalmente previstas do
Executivo Federal, é também demanda um número maior de forças de
segurança para as áreas de fronteira, o fortalecimento das Polícias Federal e
Rodoviária Federal, e uma profunda reforma no sistema penitenciário.
Observa-se, ainda, frequente o entendimento de promoção da integração com
os governos estaduais por parte do governo federal. Objetiva-se, portanto, o
estabelecimento de parcerias que fortaleçam e complementem as ações
estaduais.
O programa assemelha-se ao proposto por Aécio Neves no que tange a
reiterada apropriação do conceito de federação para argumentar sobre a
necessidade de uma nova configuração das competências atribuídas a cada
ente federado. Portanto, a proposta de uma reforma federativa e de uma
reforma dos serviços públicos buscaria, assim, a construção de uma federação
mais cooperativa.
Nesse sentido, são programas para a integração das instituições de
segurança pública no País: Brasil Mais Seguro; Crack, É Possível Vencer;
Plano Estratégico de Fronteiras; e a Campanha do Desarmamento.
Dessa forma, é possível afirmar que o segundo governo Dilma buscará
ampliar as medidas já tomadas ao longo dos quatro anos anteriores,
propiciando a criação de mecanismos que transfiram as conquistas
institucionais do âmbito federal para o âmbito estadual e municipal.
1.2 Impactos das Propostas no Âmbito Federativo-Institucional: Breve
Análise
A problemática do programa de governo – cujo início está no governo Lula
– tem lugar no rol extensivo de atribuições do Executivo Federal atribuídas
pela atividade institucional.
Originariamente, pelo disposto na Constituição Federal de 1988 em seu
artigo 144, a segurança pública é um dever do Estado, tendo como órgãos da
União a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal e a Polícia Ferroviária
Federal, cujas competências estão previstas neste mesmo artigo. Entretanto, os
órgãos não se esgotam no disposto pelo texto constitucional.
Pelo Decreto nº 2.315/97, modificado em 2007 pelo Decreto nº 6.061, foi
criada a SENASP, Secretaria Nacional de Segurança Pública, responsável
pelo planejamento, implementação e avaliação de todo o concernente à
segurança pública, desde suas instituições e agentes até os programas de
governo.
A ENASP, Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública, constituída
em 2010, tem como objetivo planejar e implementar a coordenação de ações e
metas nas áreas de justiça e segurança pública, em âmbito nacional, que
exijam a conjugação articulada de esforços dos órgãos envolvidos.
O Pronasci, Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania,
citado quando da exposição do programa da presidenciável Dilma, foi
iniciado pelo Ministério da Justiça é um dos que se propõe a continuar. É um
dos casos mais polêmicos no que tange essa supremacia do Poder Executivo.
Ele abrange a FNSP, Força Nacional de Segurança Pública, criada em 2004
para atender às necessidades emergenciais dos estados em questões em que se
fizerem necessárias a interferência maior do poder público ou, for detectada a
urgência de reforço na área de segurança.
A implementação ocorreu pela União, por meio da articulação dos órgãos
federais, em regime de cooperação com os Estados, Distrito Federal e
Municípios. A FNSP parte do pressuposto de que a Segurança Pública é uma
questão transversal, que demanda a intervenção de várias áreas do poder
público de maneira integrada.
A Força já atuou nos Jogos Pan-Americanos no Rio de Janeiro, no
Maranhão, no Entorno do Distrito Federal, no Espírito Santo e no Mato
Grosso do Sul. Em 2011, todos os princípios e diretrizes introduzidos pelo
Pronasci na área da segurança pública passaram a ser orientadores de toda a
política nacional conduzida pelo governo federal.
Contudo, o uso Força Nacional relaciona-se diretamente com o uso das
Forças Armadas, o qual deveria decorrer das situações de preservação da
ordem pública previstas constitucionalmente: intervenção federal (art. 34, III,
CRFB); estado de sítio e estado de defesa (arts. 136 e 137, CRFB); garantia
da lei e da ordem (art. 142, CRFB). Adiciona-se a esse rol a possibilidade de
lei dispor sobre o ingresso das Forças Armadas.
O questionamento a ser feito, do ponto de vista técnico-legal, é se uma
disposição normativa específica e delicada, como é o tema tratado pode
ocorrer não enquanto lei, mas como decreto. Isto porque o art. 142, X, CRFB,
declara que é a lei o ato normativo responsável por dispor acerca das Forças
Armadas. Em adição, o art. 241, CRFB, prevê que consórcios públicos e
convênios de cooperação entre os entes federados deverão ser disciplinados
por lei. O que ocorreu, todavia, foi à promulgação por meio de Decreto.
Nessa orientação, a PRR1, Procuradoria Regional da República da 1ª
Região e o Ministério Público ajuizaram demandas arguindo a
inconstitucionalidade da Força Nacional de Segurança Pública, sob o
argumento principal de que a Presidente da República não pode instituir um
órgão policial sem a participação do Congresso Nacional, o que se daria por
meio de proposta de emenda constitucional.
O exposto é, ainda, corroborado se analisado o debate presidencial
ocorrido no dia 24 de outubro de 2014, e promovido pela Rede Globo. Após a
feitura de uma pergunta relativa à temática de segurança pública à
presidenciável, esta respondeu: “Por isso é que eu propus que nós
modifiquemos a Constituição, para atribuir ao Governo Federal, sim a
responsabilidade na ação conjunta com os Estados coordenando o Estado”.
A partir destas considerações, o Executivo Federal, ao tentar promover o
fim constitucionalmente previsto, inclusive como direito social pelo artigo 6º
da Constituição Federal, acaba por extrapolar em suas funções, o que gera um
agigantamento do Poder Executivo. Esse agigantamento pode gerar duas outras
crises: a primeira é a possibilidade de reflexos de ordem federativa, posto que
rompe-se com o princípio da isonomia entre os entes federados, uma vez que a
União concentra competências que, originariamente, seriam repartidas entre
estes entes; e uma crise institucional, já que o Executivo Federal aloca para si
o tratamento da questão da segurança, em detrimento das atividades dos
Poderes Legislativo e Judiciário.

2 SUPREMACIA EXECUTIVA E TIRANOFOBIA


2.1 A Supremacia Executiva: Falência do Legalismo Liberal
Os dados oficiais revelam uma crise de Segurança Pública no Brasil. A
imprescindibilidade de um orçamento maior para combater a violência, o
aumento da mortalidade juvenil, a expansão recorde da população carcerária
nos sugere a necessidade de intervenção do Poder Público visando a
promover um fim constitucionalmente tutelado, de forma mais ampla no artigo
6º enquanto direito social, e de forma mais pormenorizada no art. 144.
Verifica-se, hoje, uma tendência de o Poder Executivo Federal coordenar
esforços, centralizando a política de combate à violência. Apesar de essa
tendência representar uma tentativa de o Estado garantir materialmente um
direito de patamar constitucional, conduz a um agigantamento do Poder
Executivo, que por sua vez, concentra prerrogativas em detrimento dos
Poderes Legislativo e Judiciário.
Para tratar da supremacia do Poder Executivo no Brasil a partir do
exemplo da Segurança Pública, faremos uma retomada da teoria
institucionalista norte-americana. O Legalismo Liberal constitui uma
importante corrente do pensamento político nos EUA. Defende a tese de que o
Poder Legislativo deve cuidar da máquina administrativa enquanto o
Executivo e o Judiciário devem apenas guardar a lei. Entende também que o
Poder Executivo deve permanecer juridicamente limitado. Os legalistas
liberais não aceitam os freios impostos pelo jogo político, mas apenas aqueles
previstos no texto legal.
As críticas ao Legalismo Liberal são inúmeras. Para o jurista Alemão Carl
Schmitt é inevitável que os juízes, legisladores e opinião pública confiem no
executivo em momentos de crise. Nessas ocasiões, é preciso que o presidente
concentre poderes mais amplos para agir de forma eficaz, aferindo mudanças
mais rápidas, posturas e atitudes que regularmente dependeriam de
deliberação no Parlamento. Segundo Schmitt, as maiores restrições do
executivo não seriam oriundas da lei e da separação dos poderes, mas da
política e da opinião Pública. Para David Dyzenhaus, no Estado
Administrativo Moderno, em tempos de normalidade institucional, o controle
legal ao executivo pode ser aceitável, porém em tempos de crise esse controle
se mostra fraco e por vezes totalmente incipiente.
Em momentos de instabilidade, há, de fato, uma tendência à delegação de
funções ao Poder Executivo, permitindo maior celeridade na implementação
de medidas. Em virtude da delegação de poderes, o Executivo sofre um
processo de agigantamento. Entretanto, nesses períodos de crise, há uma
tendência à polarização, de modo que o Presidente é obrigado a fazer
concessões, visando a atrair para sua comunidade de apoio de legisladores de
outros partidos políticos. Sendo assim, as forças políticas, econômicas,
sociais geradoras da crise, funcionam, em última análise, como freios ao
Poder Executivo ampliado. Logo, verifica-se freios políticos em detrimento de
freios jurídicos, uma ideia que vai de encontro ao Legalismo Liberal.
É importante observar que a realidade da Supremacia Executiva é também
brasileira. A Segurança Pública é, em princípio, competência concorrente da
União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal (art. 144, CRFB).
Ainda que haja disposição constitucional em contrário, pode-se observar um
agigantamento do Poder Executivo Federal no tocante à promoção da
Segurança Pública. Diversamente da realidade norte-americana, o grande
desafio brasileiro é estabelecer o freio político em razão de uma opinião
pública impotente no monitoramento do exercício do Poder Político.
2.2 Tiranofobia: A Experiência Norte-Americana
A princípio, cabe ressaltar que a tiranofobia é um produto da falácia que
anima o Legalismo Liberal. Como mencionado, os teóricos dessa corrente
entendem um Poder Executivo juridicamente não constrangido como um Poder
Executivo ilimitado. Esse entendimento conduz imediatamente à aversão de
uma possível iminente ditadura, que na maioria das vezes, não é real.
A tiranofobia se expressa de maneira mais significativa nos Estados
Unidos. O estabelecimento desse fenômeno no discurso político norte-
americano remonta ao processo de independência das treze colônias. Na
condição de colônia, aqueles territórios eram submetidos ao jugo da
monarquia britânica e consequentemente, aos abusos do rei, entendido como
um usurpador. A aversão aos métodos tirânicos do chefe do Poder Executivo
inglês ensejou uma mentalidade tiranofóbica, que se entranhou no tecido
social, manifestando-se até os dias atuais.
A análise histórica nos revela o transplante da tiranofobia de um país que
experimentou tiranias reais para outro em que regimes autoritários não
possuíam partido. Em razão da importação desse fenômeno, as discussões
acerca dos abusos do Poder Executivo nasceram pari passu com a soberania
política daquelas regiões. Dessa maneira, a maioria dos presidentes
americanos são acusados de tiranos, devido à interação entre tiranofobia e
supremacia do poder executivo.
Se, por um lado, verifica-se uma retórica tiranofóbica no discurso político
norte-americano, por outro lado, o Poder Executivo é agigantado. Essa
Supremacia do Executivo é tida como fundamental para o planejamento e
condução das políticas de Estado. Entretanto, promove um desequilíbrio das
relações entre os poderes, de modo que o Executivo acumula, cada vez mais,
prerrogativas, esvaziando o Legislativo e o Judiciário – eis a base do
hiperpresidencialismo. Nesse sentido, a tiranofobia consiste, objetivamente,
no temor de que a Supremacia Executiva leve a regimes autoritários.
De fato, não há evidências de que a tiranofobia funciona como um
mecanismo de proteção à democracia. Talvez poder-se-ia admitir que esse
fenômeno coíbe abusos do Poder Executivo. Na verdade, o bom
funcionamento da democracia está diretamente relacionado ao nível de
educação da sociedade. Nos Estados Unidos, o alto nível de educação
contribui para a preservação da ordem democrática na medida em que a
sociedade monitora o exercício do poder político; o Poder Executivo é
limitado na sua atividade de governo em razão da supervisão permanente da
sociedade civil. Dessa forma, pode-se afirmar que a tiranofobia é elemento
supérfluo no contexto político americano e a manutenção da democracia
decorre da razoável instrução intelectual daquela sociedade, que viabiliza o
exercício de consciente atividade cidadã.
2.3 Supremacia Executiva e Desafios Brasileiros
Traçado o paralelo da experiência norte-americana, as deficiências
brasileiras no tratamento da Supremacia do Poder Executivo ficam evidentes.
Os riscos do hiperpresidencialismo potencializam-se num país em que há
apenas cidadania formal. No Brasil, os direitos fundamentais não são
materialmente garantidos, o que vulnera a dignidade da pessoa humana e
impede o exercício pleno da cidadania. A sociedade brasileira, em geral,
carente de educação de qualidade, não conhece os seus direitos e,
consequentemente, é impotente no monitoramento da atividade pública. Nesse
sentido, a verticalidade do presidencialismo brasileiro associada às precárias
condições sociais justificam os regimes autoritários com os quais o país se
deparou no século XX.
Apesar de estarmos formalmente instituídos numa democracia, não há
cidadania. A democracia brasileira encontra-se deformada. Jürgen Habermas
nos ensina que a democracia se expressa nos mecanismos procedimentais de
deliberação. A interação entre os indivíduos numa dimensão comunicativa
conduz a um consenso que molda o poder político, transformando-o na opinião
pública institucionalizada. Essa opinião pública programa o Estado
Administrativo. A lógica da política deliberativa não se encaixa na realidade
brasileira visto que requer participação intensa na atividade pública. Esta
condição não se implementa diante da permanente violação da dignidade da
pessoa humana e da inexistência material dos direitos fundamentais e da
cidadania. Dessa maneira, a práxis democrática não se realiza;
consequentemente não há uma opinião pública capaz de guiar o Estado na sua
atividade de governo.
A incapacidade de a opinião pública condicionar as medidas do Poder
Executivo constitui a diferença básica entre os hiperpresidencialismos norte-
americano e brasileiro. No Brasil, as invasões de competência são cada vez
mais comuns, entretanto o país carece de uma política deliberativa, em que o
consenso alcançado pelos sujeitos de direito seria capaz de frear os abusos do
poder executivo. O agigantamento do Poder Executivo Federal no tocante à
promoção da Segurança Pública é uma questão que suscita debate.
Pelas propostas declaradas dos principais presidenciáveis nas eleições de
2014, a centralidade do governo federal no combate à violência pode ser
analisada sob duas óticas: primeiro, o esforço do Poder Executivo Federal é
válido uma vez que visa a um fim constitucionalmente tutelado, a Segurança
Pública; segundo, o governo federal ultrapassa os limites de suas
competências, promovendo, dessa forma, uma crise institucional. Trata-se de
um debate importante no contexto político brasileiro a que os sujeitos de
direito são chamados a participar, contudo a cidadania deturpada que se
verifica no país não os municia de elementos indispensáveis para a atuação na
esfera pública. Logo, a supremacia do Poder Executivo Federal não pode ser
freada por uma sociedade, que no século XXI, não conhece a cidadania real.
Dada a atuação precária e insuficiente da sociedade na esfera pública, em
virtude de uma cidadania distorcida, a supremacia do Poder Executivo
Federal mostra-se desenfreada. Alguns exemplos corroboram o pensamento
construído a partir de todo o arcabouço teórico. A Força Nacional de
Segurança Pública, já abordada em pormenores, atuou do mês de Agosto a
Outubro de 2014, em parceria com o Exército, no complexo de favelas da
Maré numa empreitada que visava a preparar a comunidade para a
implantação de uma UPP, Unidade de Polícia Pacificadora. Ainda que a
atuação da FNSP na referida operação tivesse o escopo de garantir Segurança
à população carente que vive na região, trata-se de uma clara invasão de
competência que desequilibra a divisão de poderes. A falta de consciência
política impede a população local de enxergar os efeitos daquela intervenção
senão o mais imediato, a sensação de Segurança. A Força de Segurança atuou
também durante os Jogos Pan-americanos, em 2007, no Rio de janeiro, no
Maranhão, no Distrito Federal, no Espírito Santo e no Mato Grosso do Sul.
Assim como no exemplo anterior, a atuação da referida força denota um Poder
Executivo Federal agigantado uma vez que ultrapassa suas atribuições
constitucionalmente estatuídas. A segurança gerada em razão das operações
mencionadas garante o apoio da sociedade à Política Federal a despeito de
representar uma violação do texto constitucional. Nesse sentido, não há que se
falar em tiranofobia no Brasil; não há uma mobilização social de encontro à
Supremacia do Poder Executivo.
2.4 Tiranofobia: Conclusões Parciais
De fato, a tiranofobia nos EUA, tem raízes históricas. Todavia, é sustentada
pelo alto nível de educação da sociedade, que reage diante de abusos do
poder executivo por meio da dimensão comunicativa presente na política
proposta por Habermas. Esse fenômeno é preservado pela aversão social a
regimes autoritários (ainda que aquela sociedade nunca tenha experimentado
tais regimes) em decorrência do bom funcionamento da democracia, da
garantia de direitos fundamentais e da promoção da cidadania plena.
Em contrapartida, a realidade brasileira é radicalmente diversa; a violação
permanente das garantias fundamentais constitucionais vulnera a dignidade da
pessoa humana de tal forma que impede o exercício da atividade cidadã. Essas
razões justificam a ausência de uma mentalidade tiranofóbica no contexto
político brasileiro. Nesse sentido, a incapacidade de a opinião pública frear o
poder executivo no exercício do poder político representa uma ameaça à
ordem democrática e denota a necessidade de implantação da política
deliberativa habermasiana. Eis o grande desafio da política brasileira.

3 DESDOBRAMENTOS INSTITUCIONAIS
De forma a desenvolver a análise sobre uma possível crise institucional no
Brasil a partir da crise de Segurança Pública e das propostas de governo da
presidente Dilma Rousseff no Brasil é mister apresentar possíveis definições,
ainda que introdutórias, de três termos essenciais da Teoria Institucional. São
eles: diálogo institucional, capacidade institucional e efeitos sistêmicos.
O “diálogo institucional” pode ser entendido como a possibilidade
instrumental, normativa ou procedimental, de relação entre as instituições,
sobretudo as instituições do Estado, criando, assim, mecanismos de interação
entre elas. Em outras palavras, trata-se da cooperação entre as instituições.
Já a noção de “capacidade institucional” deve ser analisada com base em
dois diferentes planos: Normativo e Logístico. Trata-se de um conceito amplo
que abrange toda a atividade de uma instituição; seja no plano Normativo,
levando em consideração as suas competências e o desempenho de seus
agentes; seja no plano Logístico, observando os seus recursos, mecanismos e
instrumentos de atuação.
“Efeitos sistêmicos”, por outro lado, consiste na repercussão de uma
decisão tomada em determinada instituição em outras instituições; ou seja,
considerando a relação entre as instituições, a atividade de uma delas acarreta
consequências em outras instituições (salienta-se que essas consequências são
diversas e podem ser previsíveis, ou não).
Esses conceitos permeiam os estudos sobre o comportamento das
instituições, haja vista que, por meio deles, pode-se relacionar as instituições
e as suas situações fáticas ao que idealmente seria desejado, ou ao menos
esperado.
Isto posto, analisando as atividades do Executivo Federal concernentes à
crise de Segurança Pública, como já discutido, fica evidente que, ao
extrapolar as competências estabelecidas na Constituição Federal, verifica-se
o agigantamento do Executivo Federal em detrimento às outras instituições
(inclusive a instituições do próprio Poder Executivo, como, por exemplo, a
Polícia Civil e a Polícia Militar). Essa Supremacia pode ser entendida como
uma resposta mais imediata aos problemas, uma vez que, recorrentemente,
atribui-se ao Executivo Federal uma maior capacidade de ação, no sentindo de
adoção de medidas eficazes. No entanto vale indagar se, de fato, esse
fenômeno contribui para a resolução da crise. Até que ponto seria razoável a
exacerbada concentração de atividade por parte do Executivo Federal? Na
verdade, essa visão de um Executivo Federal como a maior instituição de
poder remete à cultura do povo brasileiro, muitas vezes indiferente às
capacidades institucionais. Além disso, considerando os efeitos sistêmicos, ao
passo que a capacidade institucional do Executivo Federal aumenta, as
atribuições das demais instituições são cada vez mais reduzidas.
Não obstante, enfatizando a criação da FNSP, pode-se constatar a
inexistência do devido diálogo entre as instituições. Argumenta nesse sentido
o Ministério Público Federal do Pará, que propõe a extinção da Força
Nacional de Segurança Pública, defendendo a inconstitucionalidade do órgão,
uma vez que foi criado por decreto presidencial. É necessário que o
presidente conte com a participação do Congresso Nacional para a criação de
um órgão policial que deve ser feita por meio de emenda constitucional. Com
base nesse exemplo, percebe-se a falta de cooperação entre as instituições.
Desse modo, tendo em vista que a cooperação é termo essencial e necessário
da noção de diálogo institucional, é cabível salientar a falta desse diálogo
entre, ao menos, as duas instituições em questão.
Constatações como essa, que deflagram a falta de cooperação entre as
instituições, são alarmantes já que destacam a possível inefetividade das
instituições. Uma instituição, ao se apropriar de competências que não as suas,
revela um desequilíbrio na distribuição das atividades institucionais de modo
a inviabilizar o desempenho normativa e logisticamente pretendido. Ao
assumir a frente de tais programas, e aqui se refere novamente à FNSP, o
Executivo Federal pode pretender apontar a falta da devida efetividade, no
caso, do Congresso Nacional; ou se não isso, pelo menos que ele não é
necessariamente indispensável. Elaboram-se tais proposições com base no
fato de que, mesmo atuando em contraposição ao exigido pelo ordenamento
jurídico - ou seja, não contando com a participação do Congresso Nacional - o
Executivo Federal conseguiu criar o órgão.
Esse quadro é problemático visto que pode resultar no excessivo
distanciamento das instituições, de modo a estabelecer uma crise institucional
generalizada. Embora cada instituição tenha certa independência de atuação
(no sentido de possuir uma capacidade institucional própria) é de extrema
importância que elas mantenham o “contato” e, mais que isso, a cooperação.
Uma vez que se estabeleça a falta de diálogo institucional, as chances de
ocorrência de crise são ampliadas. Essa crise se configura em razão das
consequências da confusão de competências entre as instituições, isto é, a
crise se apresenta como um efeito sistêmico da falta de diálogo institucional.
Frente à possível crise é latente o questionamento acerca da possibilidade
de garantir a estabilidade institucional por meio da normatização. Em outras
palavras: a normatização é capaz de garantir a estabilização das instituições?
Essa questão não está completamente solucionada, uma vez que, embora a
norma, muitas vezes de forma expressa, estabeleça o comportamento de
determinada instituição, no desempenho de suas atribuições a instituição se
ampara de instrumentos que não estão necessariamente apontados pelo
ordenamento.
Desse modo, embora fosse aprazível enfrentar a questão de modo a afirmar
que a criação de normas é suficiente para delimitar a capacidade de uma
instituição e garantir a sua estabilidade, é inevitável expor que, com base no
real desempenho das instituições, não se consegue aferir se a normatização, de
fato, promove a estabilização institucional. Por outro lado, é inoportuno
desconsiderar a possível contribuição da normatização para a estabilização.

4 REFLEXOS NA REALIDADE FEDERATIVA BRASILEIRA


É importante, agora, estabelecer como tal agigantamento do Poder
Executivo se desdobra na realidade federativa brasileira. Inicialmente, um
apanhado histórico acerca do desenvolvimento do federalismo mostra que tal
modelo de organização estatal tem como um de seus alicerces a ideia de
harmonia entre os entes federados. Desde a concepção inicial de federação,
surgida anos após a independência norte-americana, a ideia do modelo sempre
foi baseada em buscar um equilíbrio na atuação dos entes. Tal equilíbrio se
mostra presente quando da repartição de competências entre as esferas do
estado; em um Estado Federal, é necessário haver uma divisão de
competências que possibilite uma atuação autônoma, porém harmoniosa de
cada um dos entes federativos que o compõem.
Entretanto, repara-se que a perfeição nessa repartição apenas se encontra
no campo das ideias, pois no desenho federativo brasileiro há um patente
desequilíbrio na atuação dos entes federados. O alto grau de detalhamento na
divisão das competências entre eles que existe na Constituição Cidadã, por
exemplo, faz com que os Estados, cujas competências são residuais, possuam
um espectro pequeno de atuação, além de a Constituição ter indubitavelmente
dado um destaque maior à atuação da União.
O que se nota, contudo, é que o crescimento exacerbado da União parece
ser característico da realidade federativa brasileira. Assim como a
Supremacia do Poder Executivo no país decorre da conivência dos demais
poderes para com este, que se tornou um aspecto determinante do
desenvolvimento institucional brasileiro, não se pode negar que o tamanho
desproporcional da União frente aos demais entes também é um importante
fator para o desenho federativo do país. Para isso, é mister rememorar que a
ideia da União agigantada pressupõe a ideia de um Executivo igualmente
agigantado e vice-versa.
A doutrina norte-americana traz conceitos importantes para entender como
se dá o desenvolvimento federativo brasileiro. O primeiro deles é o de que em
um modelo federalista de Estado cada nível do governo possui um
relacionamento direto com seus cidadãos. Assim, embora seja muito clara a
proximidade com os cidadãos de um ente como o Município, o mesmo não
acontece ao se pensar na União.
Tal relacionamento pode ser visto através do desenho constitucional do
país, onde os artigos de competências comum e concorrente revelam uma
busca do constituinte para estabelecer a cooperação em âmbito federal entre
os diferentes níveis da federação. Entretanto, é importante destacar que, a
despeito do objetivo do constituinte, não vemos esse diálogo no federalismo
brasileiro. A inexistência de tal diálogo na federação justificaria, assim, uma
atuação mais presente do Executivo com medidas de grande porte, como a
criação da Força Nacional de Segurança Pública, a fim de aproximar a União
dos cidadãos. Uma vez que o desenho constitucional dá ao Executivo e à
União poder para atuar dessa forma, é natural pensar que tais meios são
utilizados para estabelecer esse relacionamento direto com o povo.
Continuando, não é o simples modelo federativo que possibilitará ao
Estado atingir seus objetivos, mas sim como é distribuída a autoridade entre
os entes que o compõem. Portanto, para se alcançar os fins a que se destina, o
ente federado deve possuir autoridade e consequentemente legitimidade para
tal.
Isso explica como políticas de grande porte e centralizadoras como a da
FNSP surgem e se mantém. A realidade política brasileira sempre viveu
momentos de centralização e descentralização, o que já denota um histórico de
potencial exacerbação da União frente aos demais entes. Soma-se a isso,
também, o fato de que no modelo estatal brasileiro há um Executivo
preponderante, o que traz mais poder à União, e surge o panorama em que nos
encontramos.
Por fim, vale trazer à tona que isso não necessariamente se configura como
um problema, mas sim como uma característica do país em seu
desenvolvimento político. Dessa forma, ainda que os efeitos possam ser os
mais variados, isso não se traduz em um atrito comportamental entre os entes -
mais do que isso, tal atuação se mostra naturalizada. Logo, mais do que causar
um reflexo na realidade federativa brasileira, a atuação presidencial no que
tange à Segurança Pública é o próprio reflexo desta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A temática da Segurança Pública corresponde, atualmente, a um tema de
suma importância para o país, possuindo destaque na agenda presidencial e
sendo grande ponto de embate nas disputas eleitorais. Indo além, o assunto
ganha especial relevância por ser um reflexo direto dos contrastes sociais
característicos do país, o que justifica o tratamento cuidadoso recebido pelos
candidatos quando da eleição.
Contudo, percebe-se que o tema não só é relevante por refletir a sociedade
brasileira, mas também por expor detalhes do design institucional e federativo
do Estado brasileiro. A atuação centralizadora do Executivo Federal frente ao
assunto mostra que, do ponto de vista institucional, este acaba agigantando-se
frente aos outros poderes, causando um desequilíbrio deste perante as outras
instituições do Estado e fazendo com que ocorra um distanciamento
generalizado entre todas elas. Quanto ao âmbito federativo, o trato dado pelo
Executivo Federal ao tema da Segurança Pública se mostra muito mais como
um exemplo de como o modelo federativo brasileiro funciona do que como
suscitador de possíveis mudanças neste - nota-se aqui um modelo em que a
centralização de forças por parte da União não só é naturalizada como
constitui verdadeira característica do design federativo.
Por fim, o fato de o agigantamento e a consequente supremacia do Poder
Executivo corresponder a uma característica do Estado brasileiro mostra uma
relação com a inexistência de um pensamento tiranofóbico na sociedade
brasileira. Assim, da mesma forma que o modo como o Estado federal se
desenvolveu nos Estados Unidos explica o porquê de existir um pensamento
tiranofóbico no país, a maneira distinta como o modelo estatal evoluiu no
Brasil também explica como tal pensamento não existe no país.

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OS DESAFIOS PARA EFETIVAÇÃO DA
PARTICIPAÇÃO SOCIAL FRENTE O DECRETO
N° 8.243/14
CHALLENGES FOR AN EFFECTIVE SOCIAL
PARTICIPATION IN THE DECREE N° 8.243/14

Sonia Nogueira Leitão


Maíra Neurauter
Marcus Vinicius Bacellar Romano
Jovelino Muniz de Andrade Filho

RESUMO
Recentemente o Poder Executivo Federal editou o Decreto nº 8.243/14, de 23 de maio de 2014, que
instituiu a Política Nacional de Participação Social e o Sistema Nacional de Participação Social. Diversos
setores da sociedade se posicionaram diante dessa opção em editar um decreto, e não um projeto de lei.
Este artigo analisa o Decreto à luz do conceito de controle social dentro do sistema de participação da
área da saúde, fazendo um histórico das lutas pelo controle social na saúde, a sua efetivação na
Constituição Federal. Entrando na análise propriamente do texto do Decreto n° 8.243/14, é descrita a
sistemática organizacional proposta, que acaba submetendo todos os sistemas de conselhos participativos,
existentes hoje, a uma instância governamental: a Secretaria-Geral da Presidência da República.

PALAVRAS-CHAVE
Participação; controle social; decreto.

ABSTRACT
Recently the Federal Government published the Decree number 8.243/14 which established the National
Policy for Social Participation and the National Social Participation System. Various sectors of society took
a stand on this political choice in editing a decree, not a bill. Given this context, this article analyzes the
document in the light of the concept of social control in the health’s system for participation, and its
effectiveness in the Federal Constitution. In the analysis of the document, the organizational proposed will
be described, which has just submitted all existing participatory councils systems to a government body, the
Presidential Office.

KEYWORDS
Participation; social control; decree.

INTRODUÇÃO
A Constituição de 1988 em muito se diferencia das anteriores,
principalmente no que se refere à relação entre Estado e sociedade. Primeiro,
pela sua própria estrutura - enquanto as anteriores iniciavam tratando da
Organização Nacional, a atual Constituição inicia com os Princípios
Fundamentais e em seguida já trata dos Direitos e Garantias Fundamentais, de
forma que o enfoque no cidadão e em seus direitos já vem logo na porta de
entrada deste sistema jurídico. O art. 1°, parágrafo único, foi além. Não se
limita a falar que todo poder emana do povo e que será exercido pelos
representantes eleitos. Sua inovação está na adoção da democracia direta ou
participativa como um de seus fundamentos.
No que se refere à Teoria Democrática e aos direitos políticos, nosso
sistema jurídico adota institutos de democracia representativa (art. 14 ao art.
17) e institutos de democracia participativa (art. 14 e incisos; art. 37, §3; art.
27, §4; art. 29 XII e XIII; art. 61, §2; art. 194, VII; art.198, III; art. 204, II; art.
206, VI; art. 216-A, X; art. 227, §1). Como regra geral, a Constituição exige
lei para regulamentar os dispositivos que tratam do sistema democrático
pátrio.
Cabe ainda lembrar que Medidas Provisórias e Leis Delegadas não podem
tratar de nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e
direito eleitoral (art. 62, §2, I e art. 68, §1, II – Constituição Federal), sendo,
para nós, muito claro que instrumentos de democracia participativa são
espécies de direito vinculados à cidadania e aos direitos políticos, portanto,
encontram-se dentro desta vedação.
Em geral, as principais previsões constitucionais sobre democracia
participativa tratam do plebiscito, do referendo, da iniciativa de leis e da
participação direta na tomada de decisões na construção de políticas públicas.
Os três primeiros são instrumentos de democracia semidireta e nosso
histórico demonstra sua baixa utilização. Por sua vez, os instrumentos de
participação direta da sociedade na Administração Pública para construção de
políticas públicas de Saúde, Assistências Social, Direitos da Criança e do
Adolescente, Educação, etc., foram exigidos pela própria Carta e cresceram
muito no pós-88.
As previsões normativas aliadas aos movimentos sociais garantiram que se
revitalizassem as consultas públicas, as audiências públicas e os chamados
Conselhos de Políticas Públicas. Estes últimos são previstos em leis
regulamentadoras dos referidos dispositivos constitucionais e se proliferaram
pelo país de tal forma que tanto os Estados, como as municipalidades
passaram a contar com vários Conselhos para construção de políticas
públicas.
O enfoque deste texto é justamente na análise dos conselhos de políticas
públicas frente às modificações propostas no Decreto n° 8.243/14. O objeto
deste trabalho se concentra no controle social na Saúde, que tem mais de 25
anos de construção e é uma rede de instâncias, estruturadas a partir das Leis
Federais n° 8.080/90 e n° 8.142/90, consolidada através de inúmeras leis
estaduais e municipais, além de outros dispositivos do próprio Governo
Federal. Este sistema conta com várias instâncias de controle social, como o
Conselho Nacional de Saúde e as Conferências de Saúde, que possuem um
extenso conjunto de deliberações e de normas infralegais.
A escolha em analisar os Conselhos para gestão do Sistema Único de
Saúde (SUS) parte da premissa de que o Decreto n° 8.243/14, por ser um ato
geral e abstrato, deve ser analisado primeiro de forma abstrata, o que significa
o estudo de suas possibilidades e limites diante do ordenamento jurídico e a
Teoria do Direito. A segunda forma de análise deve ser em concreto e busca
identificar os limites do Decreto frente às leis em sentido formal ou material
que regulam os diversos sistemas participativos em âmbito Federal.
Esse objeto permite analisar os limites normativos de um decreto na
regulamentação da relação entre os cidadãos e o Estado no que tange à
construção de políticas públicas. Podemos perguntar: Qual o lugar real e
formal da sociedade civil frente às Instituições Estatais? Quais os instrumentos
jurídicos que devem ser utilizados no tratamento de direitos de cidadania?

1 A CONSTRUÇÃO DO CONTROLE SOCIAL NA SAÚDE:


UM BREVE HISTÓRICO
O conceito de controle social utilizado na área de saúde corresponde à
ressignificação proposta por Correia (2000, p. 19) como “a possibilidade de a
sociedade organizada intervir nas ações do Estado, no gasto público,
redefinindo-o na direção das finalidades sociais, resistindo à tendência de
servir com exclusividade à acumulação de capital”. Para a autora, os espaços
de controle social tornaram-se uma arena de resolução de conflitos, de
pactuação e de desenvolvimento.
Assim, “de baixo para cima”, as formulações da política no âmbito da
saúde passam a acontecer nas Conferências e Conselhos Municipais,
atravessam as Conferências e Conselhos Estaduais e chegam à Conferência
Nacional e ao Conselho Nacional de Saúde. São as três etapas no processo de
reconhecimento, debate e deliberação relativo às necessidades de saúde, que
orienta a definição de políticas e recursos para o atendimento das demandas
sociais.
Não há como negar o poder de controle que tais conselhos e conferências
podem exercer sobre as ações do Estado. E aqui entendemos o Estado como
Gramsci o fez: “todo o conjunto de atividades teóricas e práticas com as quais
a classe dirigente justifica e mantém não somente a sua dominação, mas
também consegue obter o consenso ativo dos governados” (GRAMSCI, 2004,
p. 7).
A construção do controle social na saúde antecede à fase de
redemocratização do Brasil, pois, já em meados da década de 70, acontecia
importante efervescência na sociedade brasileira motivada pela resistência ao
regime de ditadura militar, que resultou no surgimento de vários movimentos
organizados em defesa dos direitos dos cidadãos. As pessoas se reuniam em
sindicatos, em movimentos de mulheres, nas Comunidades Eclesiais de Base
(CEB), em novos partidos políticos, no movimento dos médicos residentes,
dentre tantos outros, na busca de resolução para os problemas que afligiam o
seu dia-a-dia, principalmente o dramático quadro na assistência à saúde.
O movimento da Reforma Sanitária Brasileira surgiu nesse contexto,
inspirado pelos princípios da Reforma Sanitária Italiana, que teve entre seus
maiores expoentes o médico do trabalho e parlamentar do Partido Comunista
D’Italia (PCI), Giovanni Berlinguer.
No período entre 17 e 21 de março de 1986, aconteceu a VIII Conferência
Nacional de Saúde - VIII CNS - com grande representação dos segmentos
organizados da sociedade (mais de 4.000 participantes) e com predominâncias
das ideias emanadas do Movimento da Reforma Sanitária. Este conseguiu
inscrever seus princípios básicos, que seriam ampliados, mais tarde, no
processo da Assembleia Nacional Constituinte. Uma grande realização da VIII
Conferência foi propor que o novo Conselho Nacional de Saúde (CNS)
incorporasse representação da área social, dos demais níveis de governo e de
representações nacionais da sociedade civil organizada. Em suas novas
funções, estariam “orientar e desenvolver o sistema de saúde, bem como
avaliar seu desempenho, definir políticas, orçamentos e ações” (IPEA, 2002,
p. 50). Em 1986 também ocorreram eleições para o Parlamento, nas quais os
eleitos cumpririam a dupla função de serem deputados federais e constituintes.
Em l988, a Constituição Federal, norteada pelas discussões do Movimento
da Reforma Sanitária e da VIII Conferência Nacional de Saúde, estabeleceu
que:
Art. 196 - A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido
mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do
risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação.
No art. l97, a Constituição determinou que coubesse ao Poder Público
dispor sobre “sua regulamentação, fiscalização e controle devendo sua
execução ser feita diretamente ou através de terceiros, e, também, por pessoa
física ou jurídica de direito privado”. O art. 198 estabeleceu que os serviços e
as ações públicas de saúde, integram uma rede regionalizada e hierarquizada,
constituindo um sistema único. Este sistema, descentralizado, com direção
única em cada esfera de governo, faria o atendimento integral e teria a
participação da comunidade na gestão do sistema. Assim, estava criado o
Sistema Único de Saúde (SUS) e estabelecido o controle da sociedade sobre
as ações do Estado.
A Lei Orgânica da Saúde (LOS), de nº. 8.080, de l9 de setembro de 1990,
veio regulamentar as ações de saúde, o gerenciamento e a descentralização.
Esta lei dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação
da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes. O
sistema obedece às diretrizes da descentralização, com direção única, estados
e município possuem seu gestor, em cada esfera de governo. Finalmente, visa
ao atendimento integral e à participação da comunidade.
Em função do veto do Presidente da República Fernando Collor de Melo a
vários artigos que tratavam da participação popular no SUS, contidos na lei
8.080/90, neste mesmo ano, foi promulgada a lei n° 8.142/90, que tratou
especificamente sobre o assunto.
Nesta lei está definido como ocorrerão as transferências
intergovernamentais de recursos financeiros no SUS; a participação da
comunidade na gestão do sistema de saúde, através dos conselhos de saúde; a
conferência de saúde (em cada nível de governo, convocada pelo Executivo
ou pelos respectivos Conselhos de Saúde, a cada quatro anos); o Conselho de
Saúde (colegiado composto por representantes do governo, prestadores de
serviços, profissionais de saúde e usuários) com caráter permanente e
deliberativo; o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) e o
Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS),
ambos com representação no Conselho Nacional de Saúde (CNS); e a
representação paritária dos usuários nos conselhos de saúde e nas
conferências. Estabelece também, que para receberem recursos financeiros, os
municípios, estados e o Distrito Federal devem contar, entre outros requisitos,
com os conselhos de saúde implantados de acordo com a lei.

Figura 1: Esquema do Modelo Hierarquizado e Descentralizado do SUS

Os conselhos de saúde são órgãos colegiados e permanentes do Sistema


Único de Saúde (SUS) que possuem composição, organização e competências
fixadas na Lei Federal 8.142/90. É através destes órgãos que a participação
popular ou o controle social, estabelecido na Constituição Federal de 1988, se
efetiva no setor saúde.
Os Conselhos de Saúde têm como objetivo formular estratégias e
procedimentos de controle da execução das políticas de saúde, em suas
instâncias correspondentes, o que inclui os aspectos financeiros e econômicos.
Suas decisões, por definição, serão homologadas pelo Poder Executivo. Neste
sentido, Correia (2000) aponta para contradição no fato de a lei garantir o
caráter deliberativo dos conselhos, mas restringir tal poder, quando submete
suas deliberações ao crivo do Poder Executivo.
A partir da IX Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1992, as
decisões dos conselhos, quando não homologadas pelo Executivo, retornam ao
colegiado pleno para nova apreciação e deliberação. Portanto, a instância
participativa não é sobrepujada pelo órgão do Executivo, na verdade, no caso
de um impasse as negociações são retomadas.
Na Norma Operacional Básica 1/93, ficou evidente um fortalecimento
maior tanto da municipalização quanto da descentralização das ações. Nela
criaram-se duas instâncias de pactuação: a primeira foram as Comissões
Intergestores Bipartite (CIB), composta por gestores do Estado e dos seus
respectivos Municípios, cujas propostas são aprovadas nos Conselhos de
Saúde do Estado correspondente e a segunda, a Comissão Intergestores
Tripartite (CIT), de âmbito nacional, formada paritariamente por
representantes do Ministério da Saúde, Conselho Nacional dos Secretários
Estaduais de Saúde e Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde.
A CIT necessita da aprovação do Conselho Nacional de Saúde, para
programar suas propostas. Nestas comissões os gestores objetivam
principalmente a harmonia do sistema. Em caso de impasse nestas instâncias
de deliberação, o Conselho Nacional de Saúde é a instância máxima de
decisão, abaixo apenas das conferências nacionais de saúde.
O Ministro da Saúde, Jamil Haddad, em 23 de dezembro de 1992,
homologa a Resolução 33/1992, do CNS que é atualizada, em 04 de novembro
de 2003, pelo Ministro da Saúde, Humberto Costa, sob o número 333.
A partir desta resolução os conselhos de saúde, além de terem composição
paritária com o segmento dos usuários, devem ter seu presidente eleito dentre
seus membros, em reunião plenária. O número de conselheiros deve ser
definido em cada Estado ou Município, de acordo com situação específica,
sendo aconselhável não ultrapassar 20 membros ou ser inferior a 10.
A representação de entidades ou órgãos poderá variar de acordo com a
realidade local, porém deve respeitar a paridade. Nela, as vagas para a
participação nas Conferências e nos Conselhos de Saúde deverão ser
distribuídas de forma paritária entre usuários, trabalhadores e gestores do
sistema de saúde, com 50% de entidades de usuários do sistema de saúde;
25% de entidades dos trabalhadores de saúde; e, 25% de representantes dos
governos, e de prestadores de serviços privados, conveniados ou sem fins
lucrativos. Os representantes serão indicados pelas suas entidades e nenhum
conselheiro poderá ser remunerado.

Figura 2: Divisão tripartite nos Conselhos de Saúde e Conferências

O Conselho deverá ter dotação orçamentária, um Colegiado Pleno (que se


reúne obrigatoriamente uma vez ao mês) e uma Secretaria Executiva
(subordinada ao Conselho) com assessoria técnica. O funcionamento será
baseado em Regimento Interno que definirá, entre outros pontos, a duração e o
mandato dos conselheiros, o quórum mínimo para que as deliberações do
Pleno sejam aceitas. A criação dos conselhos deverá ser estabelecida por lei
estadual ou municipal, segundo o caso, e referendado pelo Executivo, a quem
cabe também indicar seus representantes. As reuniões devem ser abertas ao
público
A referida Resolução possibilita criar os Conselhos Regionais, Locais e
Distritais, incluindo Conselhos Distritais Sanitários Indígenas sob controle
social. Em relação à criação e reformulação dos conselhos de saúde, explicita
que o poder executivo deverá acolher as demandas da população,
consubstanciado nas conferências de saúde, embora não estabeleça a
obrigatoriedade no cumprimento das deliberações.
Por fim, os segmentos da sociedade civil que poderão pleitear os assentos
são: associações de portadores de patologias; associações de portadores de
deficiências; entidades indígenas; movimentos sociais e populares
organizados; movimentos organizados de mulheres, em saúde; entidades de
aposentados e pensionistas; entidades congregadas de sindicatos (centrais
sindicais, confederações e federações de trabalhadores urbanos e rurais);
entidades de defesa do consumidor; organizações de moradores; entidades
ambientalistas; organizações religiosas; trabalhadores da área de saúde:
(associações, sindicatos, federações, confederações e conselhos de classe);
comunidade científica; entidades públicas, de hospitais universitários e
hospitais campo de estágio, pesquisa e desenvolvimento; entidades patronais;
entidades dos prestadores de serviço de saúde, e Governo.

2 O DECRETO Nº 8243/14 E SUA POLÍTICA NÃO


DELIBERATIVA
O Decreto Presidencial nº 8.243, de 23 de maio de 2014, instituiu a
Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de
Participação Social (SNPS) e estabelece, em seus 22 artigos, um novo modelo
de estruturação da participação da sociedade junto ao governo federal, em
todos os estados e municípios da federação. Como trata de participação social
de forma geral, o Decreto pretende abarcar também o sistema de participação
social da saúde, descrita acima.
O objetivo do decreto, como consta em seu no art. 1º, é “fortalecer e
articular os mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo e a atuação
conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil”. Dentre os
conceitos que define, em seu art. 2º, fica estabelecido que sociedade civil,
para efeito da PNPS e do SNPS, é “o cidadão, os coletivos, os movimentos
sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas
organizações”.
Algo que se pode destacar no decreto é a amplitude do uso da expressão
“sociedade civil”, que aparece vinte e quatro vezes ao longo do texto, em
diferentes contextos. Destaque problemático, pois é sabido o quanto esse
conceito, nos diversos ramos das Ciências Sociais, é polissêmico e, portanto,
de difícil delimitação e fechamento. Outros conceitos, igualmente complexos,
também merecem uma discussão mais aprofundada, tais como os de
participação social - utilizado vinte e duas vezes -; movimentos sociais -
utilizado duas vezes -; controle social - utilizado duas vezes -; e cidadania
ativa - utilizado uma única vez.
Muito se questionou sobre a opção política do Governo em criar uma
Política Nacional e um Sistema Nacional de Participação Social por meio de
decreto, e não da iniciativa de um projeto de lei. Tal opção acabou por retirar
do Congresso o debate sobre a instituição dessa política.
A busca pela eficiência – identificada essencialmente com a capacidade de
tomar decisões rápidas, com o menor custo possível e maior aproveitamento
final – passa por um conflito com a democracia, que é naturalmente um sistema
que exige tempo e esforço para alcançar o consenso ou a vontade da maioria,
que nem sempre é o melhor, pois muitas vezes basta ser o consenso possível.
Em uma democracia, ainda que se busque objetivar o conceito de maioria
através de números, é inegável que, anterior ao processo de contagem de
votos, é necessária uma prévia articulação política em busca do consenso.
Seja pela democracia representativa, através do Congresso Nacional, seja
pela democracia participativa, através da participação direta, instrumentos
que garantam a eficácia de princípios como a publicidade, motivação e o
direito de se manifestar são essenciais, e a disputa entre diversos setores ou
ideologias dão o verdadeiro teor de uma sociedade pluralista, em que ideias
podem ser discutidas e confrontadas. A vantagem de instâncias que gerem esse
confronto de ideias é justamente a criação de arenas em que os diversos atores
possam participar da construção da decisão política ou administrativa. Isso é
o que se espera nos debates do Congresso Nacional, assim como é o que se
espera em audiências públicas na Administração Pública e nos Conselhos de
Políticas Públicas.
Por sua vez, a vantagem de atribuir poder normativo para as estruturas
burocráticas do executivo está justamente na “fuga da tribuna” e aproximação
com o gabinete. Isso faz com que se garantam as decisões rápidas exigidas
pelo mercado ou por determinados atores sociais e, principalmente, permite
que se furte da necessidade de construir consensos ou das críticas da opinião
pública na construção da decisão final. Estes processos costumam ser
justificados pelo manto da técnica ou da velocidade ou da eficiência ou, ainda,
da desconfiança frente aos processos políticos do Parlamento.
O Decreto n° 8.243/14 é, potencialmente, uma destas tantas formas de se
retirar determinado tema da arena político-deliberativa e passá-lo para uma
instância singular ou que não necessite de tantos arranjos, no caso a
Presidência da República. A Teoria do Direito Constitucional e
Administrativo tem se debruçado sobre esta característica que vem ganhando
destaque nas últimas décadas em nosso país. Institutos como a deslegalização,
o domínio do regulamento e o decreto autônomo representam relativizações do
clássico princípio da legalidade, justamente no intuito de ampliar as
competências normativas do Executivo.
A partir do momento em que por via de um Decreto a Presidência da
República, conforme veremos abaixo, modifica a ordem estrutural do Sistema
de Participação Social do SUS, que fora definido em lei e conta com diversas
resoluções construídas pelo embate de força dos grupos que integram este
Sistema, temos uma decisão que se furta ao debate com a sociedade e
preconiza a hierarquia e a centralização no Governo Federal.

3 DIMENSÕES JURÍDICAS DO DECRETO Nº 8.243/14


O Decreto n° 8.243/14, em seu preâmbulo, indica como fundamento para
sua edição ambos os incisos comentados do art.84 da Constituição Federal:
incisos IV e VI, alínea “a”.
A PRESIDENTA DA REPÚBLICA, no uso das atribuições que lhe
confere o art. 84, caput, incisos IV e VI, alínea “a”, da Constituição, e
tendo em vista o disposto no art. 3º, caput, inciso I, e no art. 17 da Lei
nº 10.683, de 28 de maio de 2003.
Dessa menção, infere-se que o referido Decreto é em parte executivo e em
parte autônomo. Executivo, quando propõe a regulamentação do art.3°, caput,
inciso I e art.17 da Lei 10.683/03, que dispõe sobre a organização da
Presidência da República e dos Ministérios. Autônomo, quando propõe a
organização do funcionamento da participação social na estrutura
administrativa do Poder Executivo Federal.
Vejamos os artigos da Lei 10.683/03, que dispõe sobre a organização da
Presidência da República e dos Ministérios, regulamentados pelo Decreto:
Art. 3° À Secretaria-Geral da Presidência da República compete
assistir direta e imediatamente ao Presidente da República no
desempenho de suas atribuições, especialmente: (Redação dada pela
Lei nº 11.204, de 2005).
I - no relacionamento e articulação com as entidades da sociedade
civil e na criação e implementação de instrumentos de consulta e
participação popular de interesse do Poder Executivo; (Incluído pela
Lei nº 11.204, de 2005)
Art. 17. À Controladoria-Geral da União compete assistir direta e
imediatamente ao Presidente da República no desempenho de suas
atribuições quanto aos assuntos e providências que, no âmbito do
Poder Executivo, sejam atinentes à defesa do patrimônio público, ao
controle interno, à auditoria pública, à correição, à prevenção e ao
combate à corrupção, às atividades de ouvidoria e ao incremento da
transparência da gestão no âmbito da administração pública federal.
(Redação dada pela Lei nº 11.204, de 2005)
Assim, o Decreto se propõe a regulamentar a assistência direta e imediata
da Secretaria Geral da Presidência da República ao Presidente da República,
especificamente no que tange ao “relacionamento e articulação com entidades
da sociedade civil e na criação e implementação de instrumentos de consulta e
participação popular no interesse do Poder Executivo”.
Em nome dessa regulamentação, o Decreto submete toda a estrutura do seu
Sistema Nacional de Participação Social à Secretaria-Geral da Presidência da
República, como se pode perceber na leitura do art.7°, a seguir:
Art. 7º O Sistema Nacional de Participação Social - SNPS,
coordenado pela Secretaria-Geral da Presidência da República, será
integrado pelas instâncias de participação social previstas nos
incisos I a IV do art. 6º deste Decreto, sem prejuízo da integração de
outras formas de diálogo entre a administração pública federal e a
sociedade civil.
As “instâncias de participação social previstas nos incisos I a IV do
art.6°” a que o artigo acima se refere são as seguintes: I - conselho de
políticas públicas; II - comissão de políticas públicas; III - conferência
nacional; e IV - ouvidoria pública federal.
Portanto, o Decreto abarca todas as estruturas e instâncias que hoje já
existem e modifica sua posição na estrutura organizativa do Poder Executivo
Federal, subordinando-as à Secretaria Geral da Presidência da República. E,
neste sentido, cria uma subordinação do Conselho Nacional de Saúde, por
exemplo, à Secretaria-Geral da Presidência da República.
Ocorre que tais instâncias como, por exemplo, os denominados pelo
Decreto, conselhos de políticas públicas, são órgãos criados por lei, que
possuem sua sistemática própria, a exemplo dos já citados conselhos de
saúde. Então surge a pergunta, o Decreto n° 8.243/14 poderia modificar
essa sistemática?
Para responder essa pergunta, será utilizada como base a análise dos
órgãos que compõem o sistema de participação da comunidade na gestão do
Sistema Único de Saúde (SUS), instituído pela Lei n° 8.142/90, que se
concretiza através de instâncias coletivas como a Conferência de Saúde (que
ocorre nos âmbitos municipal, estadual e nacional) e o Conselho de Saúde
(que também é composto nas três esferas federativas), como já explicitado em
tópico anterior.

4 O QUE É UM DECRETO E QUAIS OS SEUS LIMITES


O primeiro passo para estudar o papel de um Decreto no ordenamento
jurídico brasileiro, é analisar em que consiste esse instrumento jurídico.
Um decreto tem natureza jurídica de ato administrativo e pode ser
individual ou geral (DI PIETRO, 2010). Quando individual, ele gera efeitos
concretos para um individuo ou grupo de indivíduos (como, por exemplo, um
decreto de nomeação, de desapropriação, etc.). Quando geral, ele se
caracteriza como ato administrativo normativo, ou seja, um ato jurídico,
emitido pelo Chefe do Poder Executivo, cujo conteúdo apresenta generalidade
(indeterminabilidade dos destinatários) e abstração (não é direcionado a um
caso concreto específico e sim a todos). Essas também são as características
típicas de uma lei, cuja edição é privativa do Poder Legislativo. Assim, é
limitada a competência do Poder Executivo para a edição de tais atos. Em
geral, são identificadas duas espécies de decreto, como ato normativo, no
direito brasileiro: o decreto regulamentar e o decreto autônomo.
Para compreender essa diferença, é preciso, em primeiro lugar, marcar a
distinção entre atos normativos primários e secundários. A Constituição
Federal é a carta base do nosso ordenamento jurídico. É nela que se
fundamenta a validade de todos os atos normativos produzidos em outras
esferas. Assim, os atos que ancoram sua validade diretamente da Constituição
são chamados de atos normativos primários. Os melhores exemplos são as leis
ordinárias e complementares.
Por exemplo, sempre que a Constituição Federal determina o exercício de
algum direito “na forma da lei”, essa lei estará diretamente vinculada a ela e
será um ato normativo primário. Já os atos normativos secundários, não
possuem relação direta com a Constituição, mas somente indireta, pois têm um
intermediário entre eles (a lei). É o que acontece, por exemplo, com os
decretos regulamentares, atos administrativos normativos editados para
regulamentar uma lei, esta sim vinculada de forma imediata à Constituição.
De certa forma, todas as leis brasileiras, ordinárias e complementares,
possuem vinculação com a Constituição Federal, seja por meio de uma norma
explícita ou implícita. Existem duas espécies de normas: as regras e os
princípios (ÁVILA, 2005). As regras exteriorizam preceitos descritivos, de
forma que, ocorrendo na realidade, implicam consequências jurídicas. Já os
princípios são preceitos finalísticos, que exprimem o “mandamento nuclear de
um sistema” (MELLO, 2009, p. 948), podendo tanto ser positivados, ou seja,
escritos expressamente na Constituição, ou implícitos, refletindo valores
fundamentais para a racionalidade do sistema normativo. As leis
regulamentam uma norma constitucional, seja ela composta por uma regra, ou
por um princípio, explícito ou implícito.
Um decreto regulamentar – ou decreto executivo – é expedido pelo Chefe
do Poder Executivo com base no art. 84, inciso IV da Constituição Federal,
que determina ser competência privativa do Presidente da República expedir
decretos e regulamentos para fiel execução da lei. O decreto é a forma através
da qual se promove a regulamentação de uma lei. Assim, não se confundem os
conceitos de decreto e regulamento. Segundo Marçal Justen Filho, regulamento
“é o ato administrativo unilateral, normativo, destinado a complementar a
disciplina contida em norma legislativa” (2005, p. 212), já o decreto “é o
instrumento formal pelo qual o Chefe do Executivo manifesta formalmente por
escrito sua vontade funcional, nas hipóteses cabíveis” (idem). Pode haver
decreto que não contenha um regulamento no seu interior (como, por exemplo,
um decreto de nomeação de servidor público), da mesma forma que um
regulamento pode não vir em forma de decreto (todos os casos em que o
regulamento não é competência do Chefe do Poder Executivo). Decreto é a
forma, regulamento o conteúdo. O que se pode afirmar é que toda vez que a
competência para editar um regulamento for do Chefe do Poder Executivo
(federal, estadual ou municipal), este virá através de decreto.
Portanto, um decreto regulamentar não inova no ordenamento jurídico, ele
apenas regulamenta temas já tratados em lei, estando limitado por ela. Tem
como fundamento imediato a lei, constituindo um ato normativo secundário.
Diferente é um decreto autônomo. Sobre ele há divergência na doutrina, tanto
quanto a sua existência, como quanto a sua abrangência.
Os autores que reconhecem a possibilidade de edição de decreto autônomo
no direito brasileiro e apontam como fundamento constitucional o art. 84,
inciso VI, alínea “a” da Constituição Federal, que permite ao Presidente da
República dispor, mediante decreto, sobre a “organização e funcionamento da
administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação
ou extinção de órgãos públicos”. Portanto, não seria necessária a edição de
nenhuma lei para que o Presidente da República pudesse expedir esse ato
administrativo, que retiraria seu fundamento diretamente da Constituição,
caracterizando uma nova espécie de decreto, como ato normativo primário.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2010), apesar de reconhecer as restritas
hipóteses em que caberia esse instrumento jurídico, o reconhece como
“decreto autônomo”.
Celso Antônio Bandeira de Mello (2009) discorda da denominação dessa
nova espécie como “decreto autônomo”. Segundo ele, essa nomenclatura
remete a uma categoria do Direito Europeu muito mais ampla do que
permitiria a nossa previsão constitucional. Lá, os regulamentos independentes
ou autônomos são atos que podem ser editados pelo Poder Executivo em todo
assunto que não seja “reserva de lei”. Portanto existe uma amplitude nas
hipóteses em que pode ser utilizado, não presente no Brasil, cuja redação do
texto constitucional atribui “poderes muito circunscritos ao Presidente”
(MELLO, 2009, p. 337-338).
Então, como o Presidente não pode, através de decreto, criar nem extinguir
órgão, nem tomar medidas que impliquem em aumento de despesa, o leque de
temas que podem ser tratados por Decreto é limitado àqueles internos ao
Poder Executivo, como, por exemplo, a redistribuição de atribuições já
existentes de um órgão para outro; a transposição de um departamento de um
órgão para outro; etc. Enfim, resumidamente, só seria possível um Decreto ter
como conteúdo “um arranjo intestino dos órgãos e competências já criados
por lei” (MELLO, 2009. p. 338-339).
Por outro lado, autores como Daniel Sarmento não só reconhecem a
existência do decreto autônomo, como também defendem uma maior
abrangência no uso desse instrumento jurídico para regulamentação de normas
constitucionais que possuem aplicabilidade imediata. Aponta-se a passagem
da supremacia da lei para a supremacia da Constituição como um elemento a
ser considerado na análise do tema.
A visão contemporânea do direito constitucional e do direito
administrativo expõem a passagem da noção de legalidade para de
juridicidade. Antes da Constituição de 1988 a lei formal ocupava um papel
central no ordenamento jurídico. Porém, diversos fenômenos como a “crise da
democracia representativa, a inflação legislativa, o rearranjo institucional do
Estado na sociedade de massas, o reconhecimento da força normativa da
Constituição e a expansão da jurisdição constitucional” (SARMENTO, 2008,
p. 14) fizeram com que as atenções se deslocassem da lei para a Constituição,
movimento reconhecido como neoconstitucionalismo.
A necessidade de se extrair da Constituição uma máxima força normativa,
fez com que seus intérpretes – dentre eles o Poder Executivo – estivessem
vinculados ao dever de promover a máxima eficácia do texto constitucional.
Dessa forma, busca-se evitar que as normas constitucionais instituidoras de
direitos fundamentais fossem tidas meramente como programáticas, sem
qualquer densidade normativa. É nesse sentido que a doutrina aponta para a
passagem da noção de legalidade para a de juridicidade, já que o Poder
Executivo não está vinculado apenas ao cumprimento da lei, mas sim ao
ordenamento jurídico como um todo, incluído ai a própria Constituição e seus
princípios e regras.
Essa vinculação não gera apenas efeitos limitadores da atuação
administrativa, mas também exige atuações positivas por parte do Poder
Executivo.
A Constituição atua não apenas como limite à ação dos
administradores, como também como norma habilitadora, que confere
fundamento direto para a prática de atos e para a formulação de
políticas públicas em seu nome, visando à proteção e promoção dos
bens e valores que ela agasalha (SARMENTO, 2008, p. 14).
Assim, Sarmento (2008) defende que podem existir situações nas quais o
Poder Executivo não pode se furtar de agir por ausência de lei formal, pois é
imperativo constitucional a sua atuação positiva, sobretudo em temas que
envolvem direitos fundamentais, que possuem aplicabilidade imediata segundo
o art. 5°, § 1° da Constituição.
Nesses casos, seria possível a edição de decreto autônomo, inclusive fora
das hipóteses previstas no art. 84, inciso VI da Constituição Federal, sempre
que seja necessário “viabilizar o exercício de competências constitucionais do
Poder Executivo” (Sarmento, 2008, p. 16).
Uma nova abordagem do tema foi apontada no precedente judicial do
Tribunal Regional Federal da 4° Região, ao apreciar a arguição de
inconstitucionalidade n° 5005067-52.2013.404.0000/TRF, referente ao
Decreto n° 4.887/03, que regulamentou o procedimento para identificação,
reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por
remanescentes das comunidades dos quilombos, conforme o artigo 68 do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias.
Um dos argumentos levantados nessa ação judicial, para arguir a
inconstitucionalidade do decreto, era ele configurar hipótese de decreto
autônomo, fora da permissão constitucional do art.84, inciso VI.
Segundo esse precedente, dispositivos constitucionais que produzirem
efeitos imediatos dispensariam a necessidade de legislação intermediária para
a sua regulamentação, possibilitando a edição de atos normativos por parte do
Poder Executivo, para concretizá-los. Por não necessitarem de
regulamentação, tais dispositivos constitucionais não ensejariam a edição de
decreto autônomo, mas sim mero decreto regulamentar. Foi nesse sentido o
voto do desembargador federal Paulo Afonso Brum Vaz, segundo o qual “o
artigo 68 independe de regulamentação, razão pela qual o aventado Decreto
não pode ser tido como regulamento autônomo (cujas hipóteses encontram-se
previstas no artigo 84, VI, da CRFB)” (TRF4, ARGINC 5005067-
52.2013.404.0000, Corte Especial, Relator p/ Acórdão Paulo Afonso Brum
Vaz, juntado aos autos em 13/01/2014).
Assim, o tribunal reconheceu a possibilidade de edição de um decreto
executivo destinado a regulamentar diretamente a Constituição, nos casos em
que a norma constitucional for autoaplicável, estando presentes no seu texto
todos os elementos essenciais para sua aplicação. Dessa forma, definiu-se
mais uma hipótese de edição de Decreto por parte do Poder Executivo,
ampliando o escopo dos incisos IV e VI do art.84 da Constituição Federal, já
que não se trata de decreto regulamentador de lei, nem de decreto autônomo,
mas sim de decreto regulamentador da Constituição.
Portanto, percebe-se que existe divergência na ciência constitucional e
administrativista sobre o tema. Apesar da controvérsia, o que se pode
considerar pacífico é o reconhecimento de uma espécie normativa privativa do
Presidente da República, que encontra fundamento direto na Constituição, a
ser editada nos limites impostos por ela mesma, na hipótese do art. 84, inciso
VI.

5 LIMITES FORMAIS DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA


AO EDITAR NORMAS COM BASE NO ART.84, VI DA
CONSTITUIÇÃO
O art. 84, inciso VI, alterado pela Emenda Constitucional n° 32/2001,
surgiu pela necessidade de reequilíbrio entre os poderes, já que a referida
emenda modificou profundamente o sistema de edição de Medidas Provisórias
por parte do Chefe do Poder Executivo. Dessa forma, surgiu a possibilidade
de edição de um decreto, independente da existência de lei prévia, quando a
matéria se referisse apenas à alteração da estrutura interna do Poder
Executivo, sem importar em criação de despesa.
Essa permissão constitucional para edição de decreto independente de lei
intermediária ensejou a discussão sobre a existência de um domínio exclusivo
de regulamentos no Brasil. Existe entendimento no sentido de que o art. 84,
inciso VI e suas alíneas preveem matérias que somente podem ser
regulamentadas por via de decreto, sendo inconstitucionais eventuais leis que
tratassem sobre o tema. Por outro lado, há quem defenda a não existência de
tal reserva, pois a o princípio da legalidade não comportaria tamanha
relativização.
A legalidade é tradicionalmente dividida em reserva de lei e preferencia
de lei, sendo que a primeira se refere a matérias que a Constituição define
como sendo exclusivamente tratadas por lei, e a segunda a base de um sistema
democrático definidor da lei preferencial frente aos demais atos do Executivo.
Ainda que esse debate seja interessante, não parece ser aplicável ao caso
do Sistema Único de Saúde e demais sistemas constitucionais de participação
da coletividade na gestão de políticas públicas, pois, na maioria dos casos, o
constituinte exige expressamente que o tema seja tratado por lei, o que afasta a
referida discussão. No caso do SUS, a Constituição (do art. 196 ao art. 200)
parece ser clara quanto à escolha pela utilização de lei para regular o tema, o
que leva à conclusão de que o Decreto n° 8.243/14 só pode ser aplicado no
que não contrariar o sistema normativo legal já instituído.
Como já dito anteriormente, a lei que regula a participação da comunidade
no Sistema Único de Saúde é a Lei n° 8.142/90, que institui como instâncias
coletivas as Conferências de Saúde e os Conselhos de Saúde.
O Conselho de Saúde é a órgão colegiado, que exerce poder decisório,
pois de caráter deliberativo. A sua composição é tripartite, o que significa ser
composto por representantes dos gestores, dos profissionais de saúde e dos
usuários. Os conselheiros não são servidores públicos, mas sim agentes
públicos na figura de particulares em colaboração com o Estado, não existindo
nenhum vínculo de subordinação administrativa entre estes e a Administração
Pública (BORGES, 2008, p. 9).
Apesar disso, os conselhos de políticas públicas possuem natureza jurídica
de órgãos públicos, já que não possuem personalidade jurídica própria e
fazem parte da estrutura administrativa de muitos entes federativos.
Partindo dessa abordagem, é possível, em tese, que, com base no art. 84,
inciso VI, alínea “a” da Constituição Federal, haja edição de decreto
autônomo promovendo uma reorganização administrativa dos órgãos públicos,
de forma a compor um Sistema Nacional de Participação Social. Porém,
questionam-se os limites dessa reorganização, quando ela, por exemplo, cria
uma instância hierarquicamente superior aos conselhos de políticas públicas,
no caso, a Secretaria Geral da Presidência da República, não prevista na
legislação que regulamenta a participação social na gestão do Sistema Único
de Saúde (Lei n° 8142/90).
A referida Lei n° 8.142/90, que organiza a participação da comunidade no
Sistema Único de Saúde, vincula as instâncias colegiadas de controle social, a
Conferência de Saúde e o Conselho de Saúde, ao Ministério da Saúde,
conforme se verifica no seu art. 5°. Portanto, nesse aspecto, para se
implementar o disposto no Decreto n° 8.243/14 no sistema de participação
social da saúde, seria preciso aprovar no Congresso Nacional uma lei para
promover a alteração da Lei n° 8.142/90, não podendo haver alteração direta
por meio do decreto.
Além disso, o inciso VI do art. 84 da Constituição Federal impõe como
limitação do decreto autônomo a criação de novos órgãos. Assim, extrapola
esse limite a criação do Comitê Governamental de Participação Social –
CGPS, órgão instituído para dar suporte técnico administrativo à Secretaria
Geral da Presidência da República.
Como este decreto não se propõe a regulamentar norma constitucional
instituidora de direitos fundamentais, com aplicabilidade imediata, não se
justifica, em nenhuma das posições apontadas no presente trabalho, a
extrapolação dos limites constitucionais ao decreto autônomo.

CONCLUSÃO
Se pensássemos somente que o Decreto n. 8.243/2014, submete – novas
regras, critérios, diretrizes, etc. - à todas as atividades já instituídas
relacionadas a participação social, das diversas esferas governamentais e a
todos os entes federativos do Brasil, poderíamos concluir como sendo um ato
insensato, contrário a boa lógica ou à razão. Quando o ato jurídico em questão
submete todas as ações destas inúmeras organizações ao controle da
Secretaria-Geral da Presidência da República, verificamos que promove a
hierarquia e a centralização de todo processo.
Alguns órgãos relacionados ao sistema da Saúde no Brasil, dentre eles o
Conselho Nacional de Saúde, bem como diversos outros que formam uma rede
de instâncias, estruturadas a partir das Leis Federais n° 8.080/90 e n°
8.142/90, consolidada através de inúmeras leis estaduais e municipais, foram
criados por Lei.
O Decreto n. 8.243/2014 caso venha existir por algum tempo, só pode ser
aplicado em questões que não contrariarem o sistema normativo legal já
instituído por Lei para a área de saúde e para outras áreas na mesma situação.
Da análise das questões levantadas, ainda podemos inferir que apesar de
existir certa divergência de entendimento na ciência constitucional e
administrativa quanto à implementação de Decretos pelo Poder Executivo, um
ponto é muito claro, ou seja, a Constituição Brasileira vigente, através, de seu
Art. 84, inciso VI, não permite ao Poder Executivo expedir Decreto
direcionado a criar novos órgãos.
A Presidência da República, através do Decreto n. 8.243 de 23 de maio de
2014, em seu Art. 9o cria uma instância organizacional, o que se configura de
forma concreta, clara e precisa como uma inconstitucionalidade do referido
ato.
Art. 9º Fica instituído o Comitê Governamental de Participação
Social - CGPS, para assessorar a Secretaria-Geral da Presidência da
República no monitoramento e na implementação da PNPS e na
coordenação do SNPS. (Decreto n. 8.243 / 2014)
Finalmente, concluímos que uma boa decisão a ser tomada seria a
revogação do Decreto n. 8.243/2014 e encaminhamento da questão para o
Congresso Nacional como um projeto do Poder Executivo, mais
especificamente da Presidência da República, com vistas à adequação em
termos de procedimentos e de conceitos utilizados, e principalmente,
permitindo um amplo debate com a sociedade.

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Acórdão Paulo Afonso Brum Vaz, juntado aos autos em 13/01/2014.
COTAS PARA O ACESSO AO SERVIÇO
PÚBLICO: ANÁLISE CRÍTICA DA LEI
12990/2014
QUOTAS FOR ACCESS TO PUBLIC OFFICE: A CRITICAL
ANALYSIS OF LAW 12990/2014

Alceu Mauricio Junior


Ana Carolina Gorrera França
Ricky Rocha Nascimento

RESUMO
Discriminação, preconceito racial e a desigualdade estrutural na sociedade brasileira confrontam-se com
os objetivos fundamentais do Estado na Constituição brasileira. Este cenário requer a adoção de medidas
para reduzir a desigualdade observada no Brasil. A ação afirmativa criada pela Lei 12.990 de 2014, que
estabeleceu cotas para afrodescendentes em concursos públicos a nível federal, tem o potencial de
acelerar a redução da desigualdade econômica e social, garantindo a inclusão da população
afrodescendente no mercado de trabalho. Este artigo tem por objetivo analisar criticamente esta nova lei,
sugerindo uma interpretação constitucionalmente adequada para sua aplicação, assim como questionar a
exclusão de cotas para cargos judiciais e legislativos em seu âmbito de proteção. A análise é realizada
com base em um paradigma da justiça constitucional que engloba as dimensões de distribuição,
reconhecimento e participação.

PALAVRAS-CHAVE
Justiça constitucional; cargos públicos; ações afirmativas.

ABSTRACT
Discrimination, racial prejudice and structural inequality in Brazilian society clash with the fundamental
objectives of the State in the Brazilian Constitution. This cenario requires the adoption of measures to
reduce inequality observed in Brazil. The affirmative action created by Law 12.990 of 2014 , which
established quotas for Afro-descendants in civil service exams at the federal level , has the potential to
accelerate the reduction of economic and social inequality , ensuring the inclusion of Afro-descendant
population in the labor market . This article aims to critically examine the new law , suggesting a
constitutionally appropriate interpretation for the application of this new law, as well as questioning the
exclusion of quotas for judicial and legislative posts in its scope of protection The analysis is carried out
based on a paradigm of constitutional justice that encompasses the dimensions distribution, recognition and
participation.

KEYWORDS
Constitutional justice; public office; affirmative action.
INTRODUÇÃO
Persiste no Brasil, nesta segunda década do Século XXI, um quadro de
alarmante desigualdade social, que perpassa não somente a estrutura de
classes da sociedade, apresentando um nítido recorte de raça e de gênero. Ao
se analisar a população brasileira, verifica-se que a população
afrodescendente continua a ocupar majoritariamente os extratos sociais mais
pobres, com menores níveis de educação escolar, e com menor acesso ao
mercado de trabalho. Ainda dentro da população inserida no mercado de
trabalho, os afrodescendentes tendem a ocupar os postos com menor
remuneração e estabilidade. Anote-se, ainda, que neste quadro a mulher negra
ou parda enfrenta dificuldades ainda maiores (IPEA,
2011)”edition”:”4”,”event-place”:”Brasília”,”abstract”:”As desigualdades de
gênero e raça são estruturantes da desigualdade social brasileira. Não há,
nesta \nafirmação, qualquer novidade ou qualquer conteúdo que já não tenha
sido insistentemente evidenciado pela \nsociedade civil organizada e, em
especial, pelos movimentos negro, feminista e de mulheres, ao longo das
\núltimas décadas. Inúmeras são as denúncias que apontam para as piores
condições de vida de mulheres e \nnegros, para as barreiras à participação
igualitária em diversos campos da vida social e para as consequências \nque
estas desigualdades e discriminações produzem não apenas para estes grupos
específicos, mas para a \nsociedade como um todo.\nTais evidências factuais,
contudo, não foram capazes de, sozinhas, imprimir às agências governamentais
\num novo paradigma para a construção de intervenções que permitam reduzir
as desigualdades e a pobreza. \nPor décadas, as políticas se desenvolveram
tendo como ponto de partida – e de chegada – um conjunto \nhomogêneo de
seres humanos, sem sexo e sem raça, que deveriam, a partir deste marco
conceitual, ter \ncondições similares de acessar as políticas públicas e delas
se beneficiar. A realidade, porém, evidenciada por \nestudos e pesquisas
baseados em indicadores sociais, indicava que as desigualdades se mantinham
e que a \nreversão deste quadro demandaria uma nova forma de
agir.”,”URL”:”http://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/revista.pdf”,”author”:
[{“family”:”Ipea”,”given”:”Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada”}],”issued”:{“date-parts”:[[“2011”]]},”accessed”:{“date-parts”:
[[“2013”,8,9]]}}}],”schema”:”https://github.com/citation-style-
language/schema/raw/master/csl-citation.json”} .
Esta realidade empírica choca-se frontalmente com o ideal de igualdade
previsto na Constituição brasileira de 1988. A Constituição colocou como um
dos objetivos fundamentais do Estado brasileiro a redução da desigualdade,
de modo a alcançar uma sociedade justa e solidária. Esta igualdade, contudo,
não se atinge através de uma isonomia jurídica formal, fundada em um modelo
de Estado que não interfere na sociedade. Passados mais de cem anos de
isonomia jurídica formal no Brasil, reconhecida ao estilo das constituições
oitocentistas, muito pouco se avançou na diminuição da desigualdade acima
relatada. O objetivo fundamental de redução de desigualdade exigido pela
Constituição de 1988 impõe, ao contrário, a adoção de políticas públicas
efetivas que acelerem a inclusão social da população afrodescendente.
A ação afirmativa criada pela Lei 12.990 de 2014, que instituiu a reserva
de vagas para os negros em concursos públicos no âmbito federal, tem o
potencial de acelerar a redução da desigualdade socioeconômica, assegurando
a inclusão da população afrodescendente no mercado de trabalho. E, mais do
que isto, esta ação afirmativa tem o potencial de assegurar à população
afrodescendente o reconhecimento social de sua capacidade intelectual e de
sua competência na construção de uma melhor comunidade política, através de
sua atuação direta na estrutura de comando e decisão na burocracia estatal.
O objetivo deste trabalho é analisar criticamente esta nova lei, sugerindo
uma interpretação constitucionalmente adequada para sua aplicação, bem
como questionar a não inclusão dos poderes judiciário e legislativo em seu
âmbito de proteção. A análise é efetuada com base em paradigma de justiça
constitucional que engloba as dimensões distribuição, reconhecimento e
participação.

1 DESENVOLVIMENTO
Para alcançar o objetivo pretendido por este trabalho, desenvolvemos este
artigo em três seções. Inicialmente, analisamos a igualdade como objetivo
fundamental do Estado brasileiro, investigando o conteúdo dogmático e
filosófico do princípio da igualdade na Constituição de 1988. Em seguida,
abordamos a questão da ação afirmativa como solução para a desigualdade,
empreendendo sua leitura através de um marco teórico de justiça
constitucional que envolve tanto a dimensão do reconhecimento quanto as
dimensões de redistribuição e participação na redução da desigualdade. A
partir do quadro teórico-normativo desenvolvido nas duas primeiras seções,
efetuamos a análise crítica da Lei 12.990.
2.1 A Igualdade como Objetivo Fundamental do Estado
O constituinte de cinco de outubro de 1988, a fim de consolidar um Estado
Democrático de Direito, elencou em seu artigo terceiro os objetivos
fundamentais que devem nortear a República Federativa do Brasil. Todos os
incisos do referido artigo – em especial os incisos I, III e IV –, iniciam-se com
verbos imperativos em um claro compromisso por parte do Poder Público de
constituir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a
marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o
bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação.
Entretanto, para que esses objetivos ultrapassem as prescrições constantes
na Constituição Federal e coadunem-se à realidade brasileira, requer-se por
parte dos Poderes Públicos uma conduta positiva, por meio de ações
afirmativas que visem a reduzir os desequilíbrios sociais, econômicos e
culturais para que de fato possamos eliminar a persistente desigualdade social
que desafia o Estado brasileiro, no objetivo de construir uma nação mais
igualitária.
Diante disso, o princípio da igualdade jurídica, materialmente
considerada, componente sócio-político de grande relevância em um Estado
Social e Democrático de Direito, ganhou especial importância após a
promulgação da Constituição, passando a nortear a atuação da administração
pública em geral, bem como as decisões dos órgãos do Poder Judiciário,
elegendo a isonomia como pressuposto de justiça na composição dos conflitos
sociais.
As inúmeras atribuições constitucionais conferidas aos entes federativos
para promover a igualdade de oportunidade por meio de ações afirmativas
demonstram claramente que nossa Constituição baseou-se num ideal de estado
social intervencionista, que não se limita a prever igualdades meramente
formais, mas determina uma conduta positiva no sentido de modificar uma
desigualdade que permeia a linha histórica brasileira. Surge, então, a questão
do conteúdo jurídico do princípio constitucional da igualdade.
A igualdade entre os homens, estudada e explicada dentro de um contexto
normativo, atravessa a história da humanidade e traz a lume incessantes
indagações, tais como a busca por uma sociedade mais justa e o
aperfeiçoamento e evolução do próprio Direito. Decorrente da natureza plural
que é o comportamento e a cultura humana, a desigualdade, como não poderia
deixar de ser, foi e continua a ser assunto de interesse global, sobretudo
devido ao crescimento das tendências democráticas (ROCHA, 1990).
Daí que compreender que a igualdade jurídica, no que diz respeito às
desigualdades humanas, é imprescindível para que se compreendam as bases
de convivência justa e realização da pessoa, que não se prendem a uma forma
imutável, mas, pelo contrário, têm a desigualdade como um fato, um produto
da evolução histórica.
Segundo Cármen Lúcia Antunes Rocha (1990), em obra primordial para o
entendimento do sentimento de igualdade que influenciou a Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-1988, esclarece que não se tem um único e
mesmo conteúdo para este princípio ideal que se opõe à diversidade humana,
haja vista que princípio jurídico da igualdade deve-se aperfeiçoar à
necessidade de comunhão justa de bens e objetivos dos membros da sociedade
política estatal.
Traçando um paralelo entre justiça e igualdade com a evolução e
racionalização do Direito, a referida autora aduz ainda que:
A igualdade no Direito é arte do homem. Por isso o princípio jurídico
da igualdade é tanto mais legítimo quanto mais próximo estiver o seu
conteúdo da ideia de justiça em que a sociedade acredita. O princípio
jurídico de igualdade não é um princípio passivo ou estático, pois ele
é uma projeção do agir político de um povo manifestado no fazer e no
aplicar do seu Direito (ROCHA, 1990, p. 28).
Na mesma linha de raciocínio e entendimento, e elegendo a dignidade da
pessoa humana como a base do respeito como um todo, sustenta Luís Roberto
Barroso que:
A dignidade da pessoa humana é valor e princípio subjacente ao
grande mandamento, de origem religiosa, de respeito ao próximo.
Todas as pessoas são iguais e têm direito ao tratamento igualmente
digno. A ideia da dignidade da pessoa humana é ideia que uniforma,
na filosofia, o imperativo categórico kantiano, dando origem a
proposições éticas superadoras do utilitarismo: a) uma pessoa deve
agir como se a máxima de sua conduta pudesse transforma-se em uma
lei universal; b) cada indivíduo deve ser tratado como fim em si
mesmo, e não como meio para realização de metas coletivas ou de
outras metas individuais. As coisas têm preço; as pessoas têm
dignidade. Do ponto de vista moral, ser é muito mais do ter. (2011, p.
272)
A Constituição Federal, ao declarar que a República Federativa do Brasil
constitui-se em Estado Democrático de Direito, voltado à concretização de
uma sociedade justa, livre e solidária, sem preconceitos e livre de quaisquer
forma de discriminação, demonstra a preocupação do poder constituinte
originário de institucionalizar um Estado comprometido com objetivos e
fundamentos concretos, a serem alcançados por meio de medidas positivas de
reconhecimento e efetividade dos direitos.
A Constituição Federal de 1988, mais conhecida à época de sua
promulgação como Constituição Cidadã, em razão do forte clamar popular, foi
fortemente influenciada pelos ideais socializantes da recente redemocratização
do Brasil, o que se pode ver refletir nos inúmeros direitos fundamentais e na
supervalorização da dignidade da pessoa humana incertos nos primeiros
artigos da Carta, sobretudo no que tange à tendência ao tratamento cada vez
mais isonômico aos cidadãos.
Encheu-se de valor o que antes era puramente formal, conferindo-se
competência de guardião da Constituição ao Supremo Tribunal Federal,
dotando-o de autoridade suficiente a interpretar normas e conceitos jurídicos
constitucionais e infraconstitucionais à luz do que dispôs o poder constituinte,
com fito de concretizar seus preceitos fundamentais.
A contribuição do Supremo Tribunal Federal se nota a partir das inúmeras
manifestações como, por exemplo, ao apreciar ações que tratam das
divergências relativas à temática desigualdade, notadamente quanto ao
reconhecimento das uniões homoafetivas como entidades familiares (BRASIL,
2011) e à legitimidade na implementação de cotas raciais nas universidades
públicas (BRASIL, 2014b), revelando a importância e o impacto social
conferidos à interpretação de igualdade material pelo STF.
Em compasso com a promoção da igualdade, o Poder Legislativo também
vem editando leis de inclusão social para diminuição das desigualdades, tais
como a Lei 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial), que tem como
finalidade coibir as discriminações raciais, além de estabelecer políticas
públicas para diminuir as desigualdades existentes entre os diversos grupos
raciais (BRASIL, 2010); bem como a Lei 12.990/2014, objeto do presente
trabalho, que reservadas aos negros 20% (vinte por cento) das vagas
oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e
empregos públicos no âmbito da administração pública federal (BRASIL,
2014a).
A não discriminação é direito fundamental, condição para o livre exercício
dos direitos e para o sucesso da democracia e igualdade no Brasil. A atuação
positiva do Legislador na implementação do comando constitucional de
igualdade e as decisões do Supremo Tribunal Federal se destacam para a
consolidação da concepção de igualdade material e a legitimidade de ações
afirmativas, como medidas necessárias, bem como para a indispensabilidade
do Estado na garantia e promoção do direito à igualdade e proibição da
discriminação.
Flávia Piovesan, ao discorrer sobre a igualdade, diferença e direitos
humanos, adverte quando à necessidade de repensar a igualdade como
exercício da cidadania:
Daí a urgência em se erradicar todas as formas de discriminação,
baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica,
que tenha como escopo a exclusão. O combate à discriminação é
medida fundamental para que se garanta o pleno exercício dos
direitos civis e políticos, como também dos direito econômicos,
sociais e culturais (PIOVESAN, 2010, p 50).
É evidente, portanto, que para a concretização da igualdade o Direito deve
se incumbir da criação de fórmulas normativas que permitam realizar o
objetivo da igualdade jurídica sem se perder a diversidade humana (ROCHA,
1990). E, aos profissionais deste ramo de conhecimento, compete cm que o
texto normativo, que iguala e dignifica o homem em sua convivência política,
seja meio para alcançar as melhores condições humanas e mais justas relações
sociais.
Nesta mesma linha, Ronald Dworkin (2005) adverte quanto à importância
da igualdade ao afirmar que “nenhum governo é legítimo o menos que
demonstre igual consideração pelo destino de todos os cidadãos sobre os
quais afirme seu domínio e aos quais reivindique fidelidade”, pois considera a
igualdade virtude soberana da comunidade política, sem a qual os governos
não passariam de tiranias.
O Estado, como protagonista que deve ser na implementação de ações
afirmativas tendentes a consolidar a vontade social formalizada pelo poder
constituinte, deve buscar respostar diferenciadas e específicas, ou seja, faz
necessário perquirir a especificação dos sujeitos de direito, diferenciando-os.
Nesse sentido, importa ao Estado promover o direito de ser diferente,
suficiente a assegurar um tratamento substancialmente igualitário frente à
maioria igual, formalmente considerados (PIOVESAN, 2010).
A demanda pela adoção de políticas públicas de inclusão das populações
em situações de desigualdades faz-se necessária. Sejam ações afirmativas
para acesso a cargos e empregos públicos por meio de cotas raciais ou cotas
em universidades públicas, sejam ações coibindo a discriminação e
preconceito, estas políticas públicas são medidas necessárias para reduzir
com maior celeridade a desigualdade observada ao longo da história
brasileira, motivo pelo qual a Constituição de 1988, na busca de assentar a
igualdade como norte da República Federativa do Brasil, trouxe em seu corpo
normativo ferramentas e objetivos a serem implementados por seus entes.
2.2 Ação Afirmativa como Solução para a Desigualdade e a Teoria da
Justiça do Reconhecimento e Redistribuição
A desigualdade racial é um fato no Brasil, não podendo ser reduzida
apenas à desigualdade de classe, apesar de estarem correlacionadas. Assim,
em um país de exclusão racial e social a simples declaração de um direito não
se basta. Apenas o reconhecimento do direito em um texto jurídico não é
suficiente, mas sim sua aplicação efetiva para proporcionar uma inclusão
integral.
Os direitos fundamentais elencados na Constituição de 1988,
principalmente o da igualdade e o da construção de uma sociedade justa e
solidária são constantemente contrastados e muitas vezes ineficazes devido ao
mito de democracia racial existente no País. Então, a adoção de políticas
públicas é necessária para a redução dessa desigualdade, incluindo a
população afrodescendente no mercado de trabalho.
As ações afirmativas são um instrumento para equilibrar as relações
sociais e promover a igualdade material, são medidas temporárias que
concebem um tratamento distinto a pessoas que se encontram em diferentes
situações fáticas com o objetivo de lhes garantir a igualdade. Neste sentido:
A definição jurídica objetiva e racional da desigualdade dos
desiguais, histórica e culturalmente discriminados, é concebida como
uma forma para se promover a igualdade daqueles que foram e são
marginalizados por preconceitos encravados na cultura dominante na
sociedade. Por essa desigualação positiva promove-se a igualação
jurídica efetiva; por ela afirma-se uma fórmula jurídica para se
provocar uma efetiva igualação social, política, econômica no e
segundo o Direito, tal como assegurado formal e materialmente no
sistema constitucional democrático. A ação afirmativa é, então, uma
forma jurídica para se superar o isolamento ou a discriminação social
a que se acham sujeitas as minorias. (ROCHA, 1996, p. 286)
As ações afirmativas, como medidas que têm o objetivo de garantir a
igualdade material de fato devido à desigualdade de uns em relação a outros
membros da sociedade, devem ser temporárias, pois uma vez que a medida
não tenha alcançado seus objetivos, nada impede que sejam criadas novas
medidas inclusivas, podendo, caso seja necessário, promover-se a ampliação
do seu prazo de aplicação.
Entretanto, através da análise de julgados, percebeu-se que tais políticas
tendem a sofrer questionamentos nos tribunais (vide MAURICIO JUNIOR;
FRANÇA, 2014). Tendo em vista esse histórico de questionamentos, parte-se
do pressuposto que com a nova Lei 12.990 de 2014 não será diferente e que a
melhor maneira para aceitação das ações afirmativas é quando estas são
analisadas com base em uma teoria da justiça que abrange elementos, sociais,
culturais e econômicos, que não veem apenas a redistribuição como solução,
mas também o reconhecimento dessas minorias.
Nancy Fraser e Axel Honneth (2003) trazem em suas teorias da justiça uma
perspectiva que aborda tanto a dimensão redistributiva, como a dimensão do
reconhecimento, a partir das quais é possível formular um melhor
enquadramento teórico para a legitimação das ações afirmativas.
Axel Honneth defende o reconhecimento da dignidade dos indivíduos e
grupos uma parte vital do conceito de justiça. Sendo necessário que o
indivíduo adquira auto estima na forma de encorajamento mútuo da sua
individualidade na sociedade, e que haja um reconhecimento recíproco,
através do qual a partir da perspectiva de seus companheiros, os indivíduos
passam a se considerar como portadores iguais dos direitos. E então se faz
necessário por fim, um reconhecimento jurídico o qual proteja a chance de
participação na formação pública da vontade e que garanta um mínimo de bens
materiais para a sobrevivência (HONNETH, 1996).
Já na perspectiva de Nancy Fraser, uma vez que existe na sociedade
coletividades “bivalente”, onde as quais sofrem injustiças simultaneamente na
estrutura econômica e na ordem de status da sociedade, não se deve entender
que são excludentes e distintas as teorias da distribuição e do reconhecimento,
no entanto devem estas ser aplicadas em conjunto, tendo ambas igual
importância. Ressalta ainda, que o reconhecimento não deve ser visualizado
como auto-realização e sim como um problema de justiça, uma vez que alguns
indivíduos não participaram plenamente e em condições de igualdade na
construção da sociedade participando como atores inferiores e excluídos, por
conseguinte havendo uma subordinação de status, devido a padrões de valor
cultural institucionalizados (FRASER, 2000, 2005).
Essa perspectiva permite deixar os desacordos sobre auto-realização, para
assim haver um reconhecimento recíproco e igualdade de status, pois leva em
consideração o fato de que o não-reconhecimento não consiste simplesmente
em atitudes preconceituosas que geram danos psicológicos, mas sim padrões
institucionalizados de valor cultural que impedem a igual participação na vida
social (FRASER, 2000, 2005).
Sendo assim distribuição e reconhecimento não devem ser vistos como
perspectivas e dimensões distintas da justiça. Sem reduzir qualquer dimensão
à outra, engloba ambas em uma estrutura mais ampla e abrangente. Ou seja, é
necessário que sejam feitos arranjos sociais que permitam a todos os membros
adultos da sociedade interagir uns com os outros como pares (participação
paritária). Só que para a participação paritária ser possível ao menos duas
condições sociais devem ser satisfeitas, a distribuição de recursos materiais e
padrões institucionalizados de valor cultural que expressem igual respeito por
todos os participantes e assegurem igual oportunidade para a conquista de
estima social (FRASER, 2000, 2005).
Desta feita, além de necessárias para a promoção da igualdade, as ações
afirmativas devem ser analisadas sob esses novos paradigmas de justiça que
abordam, além da redistribuição, o reconhecimento. Estas teorias englobam
não só elementos econômicos, mas também elementos sociais, culturais e
políticos na implementação de políticas públicas para o acesso e inclusão de
minorias, constituindo um melhor enquadramento teórico para compreender a
desigualdade racial no Brasil, bem como justificar a legitimidade das ações
afirmativas.
2.3 Análise da Lei 12.990: a não inclusão dos poderes legislativo e
judiciário
Em 9 de junho, foi publicada a Lei 12.990/2014 que cria a reserva de 20%
das vagas de concursos para cargos na administração pública federal, bem
como nas autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de
economia mista da União (BRASIL, 2014a).
Esta lei teve origem no Projeto de Lei (PL) 6738/13, do Poder Executivo,
que teve o apoio da maioria no Congresso Nacional, sendo aprovado em
plenário pelo número de 314 votos a favor e 36 contra, tendo uma tramitação
rápida. Sua justificativa foi a promoção da igualdade, uma vez que a diferença
racial poderia ser constatada por dados estatísticos.
Conforme disposto em seu artigo 6º, a Lei 12.990/2014 tem vigência pelo
prazo de 10 anos, e, ainda, não abrange os editais já publicados. A lei
determina que a reserva deverá ser informada no edital sempre que o número
total de vagas for igual ou superior a três,, sendo as vagas remanescentes
redistribuídas para a ampla concorrência.
Cabe destacar que, nada impede que depois de passados os 10 anos de
vigência da Lei, caso este período não tenha sido suficiente seja ampliado o
prazo de vigência ou criados novos mecanismos sócio jurídicos para obtenção
da igualdade.
Conforme o parágrafo único do artigo 2º da Lei, como irão concorrer às
vagas reservadas aqueles que se autodeclararem negros ou pardos na
inscrição, há a previsão de eliminação do candidato do concurso público, se
for constatada que a declaração é falsa ou, se já tiver sido nomeado, a sua
contratação será anulada, podendo ainda sofrer outras sanções cabíveis na
esfera jurídica.
Há também uma proteção dos candidatos negros quanto à classificação e
nomeação, pois, os candidatos negros concorrerão concomitantemente às
vagas reservadas e às vagas destinadas à ampla concorrência, de acordo com
a sua classificação no concurso. Esse detalhe visa a evitar que os candidatos
negros, por optarem por concorrer a vagas reservadas, fiquem prejudicados
caso obtenham notas para passar nas vagas normais. Observe-se que o
objetivo é que sejam admitidos pelo menos vinte por cento de negros, e não
somente vinte por cento.
A nomeação dos candidatos aprovados respeitará os critérios de
alternância e proporcionalidade, que consideram a relação entre o número de
vagas total e o número de vagas reservadas a candidatos com deficiência e a
candidatos negros.
Procura-se, aqui, não prejudicar os candidatos cotistas na classificação e
na nomeação. A classificação é importante por que existe a previsão do art.
37, IV, da CF – “durante o prazo improrrogável previsto no edital de
convocação, aquele aprovado em concurso público de provas ou de provas e
títulos será convocado com prioridade sobre novos concursados para assumir
cargo ou emprego, na carreira” (BRASIL, 1988).
Ademais, é estabelecido no artigo 5º da Lei 12.990/2014 que, anualmente,
o órgão responsável pela política de promoção da igualdade étnica de que
trata o parágrafo primeiro do artigo 49 do Estatuto da Igualdade Racial, será
também responsável por acompanhar e avaliar as disposições da Lei
12.990/2014.
A Lei encontra-se ainda harmonizável com o disposto no artigo 39 da Lei
12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial), que diz:
Art. 39. O poder público promoverá ações que assegurem a
igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para a população
negra, inclusive mediante a implementação de medidas visando à
promoção da igualdade nas contratações do setor público e o
incentivo à adoção de medidas similares nas empresas e
organizações privadas.
Com a análise da Lei 12.990/2014, fica evidenciado que o objetivo dessa
é, de forma célere, reduzir as desigualdades e promover a efetivação dos
direitos fundamentais elencados na Carta Magna.
Entretanto, com tal objetivo, cabe o questionamento sobre a sua não
extensão aos poderes Legislativo e Judiciário, estando o Estado brasileiro em
uma situação de parcial inconstitucionalidade.
Especificamente sobre esta questão, recentemente foi impetrado mandado
de segurança coletivo com pedido de medida liminar, sob o n. 33072, no dia
10.7.2014, pelo Instituto de Advocacia Racial e Ambiental – IARA. Os
impetrantes alegam que a Lei 12.990/2014 não teria respeitado o princípio da
proporcionalidade de gênero nem contemplado os Poderes Legislativo e
Judiciário em suas normas. Alegam, igualmente, que referida Lei teria violado
o Estatuto da Igualdade Racial, especialmente em seu art. 39, caput e
parágrafos 2º e 4º, ao faltarem as autoridades competentes com o dever de
adotarem medidas de “justiça social, ação afirmativa e reparação do processo
de escravidão moderna e de antirracismo, notadamente pela omissão na
elaboração de atos normativos que adequassem os órgãos públicos” aos
ditames constitucionais e legais invocados. Afirmam ainda os impetrantes que
quaisquer ações afirmativas que não contemplem todos os Poderes não têm
eficácia plena e são insuficientes para promover a inclusão de
afrodescendentes (BRASIL, 2014c).
A relatora, ministra Carmen Lúcia, negou seguimento ao mandado de
segurança ressaltando a inadequação do instrumento processual para
questionar lei em tese, com base na Súmula 266 do STF. De fato, o impetrante
pretendia a declaração de inconstitucionalidade por omissão da Lei
12.990/20114 e para tal finalidade a Constituição da República define ações
específicas, o que não poderia ser substituído pelo mandado de segurança. A
relatora afastou também o argumento de violação a direito previsto no Estatuto
da Igualdade Racial, já que a essa lei não reserva 20% das vagas em concurso
público aos negros, mas apenas dispõe sobre a implementação de medidas
visando à promoção da igualdade das contratações do setor público, a cargo
dos órgãos competentes. De outro lado, considerou que a Lei 12.990/2.014
sequer poderia ter disposto sobre concursos nos órgãos legislativos e
Judiciários, tendo em verdade sido rejeitada, por inconstitucional, emenda
parlamentar proposta ao então projeto que resultara na lei, de iniciativa da
Presidente da República, diante da “competência privativa” dos demais
Poderes da República, “para dispor sobre seus cargos” (BRASIL, 2014c).
Em momento algum na decisão houve juízo sobre a legitimidade da reserva
de vagas à luz Constituição. A decisão se restringiu a afirmar a inadequação
da via eleita para o questionamento da matéria e, no mérito, a reconhecer que
a obrigatoriedade de reserva de vagas prevista na Lei 12.990/2.014 restringe-
se à Administração Federal, por limitações inerentes às regras do processo
legislativo e decorrentes do princípio de separação dos poderes.
Entretanto, deixando de lado a questão da adequação da via escolhida pelo
Instituto de Advocacia Racial e Ambiental – IARA, fica evidente a
inconstitucionalidade da regulamentação estatal da ação afirmativa para
acesso dos afrodescendentes a cargos públicos, com a violação dos art. 3º,
inciso I, e art. 5º, caput, da Constituição de 1988. Afinal, conforme foi
assinalado pelo próprio Supremo Tribunal Federal na ADPF 186 (BRASIL,
2014b), “justiça social, hoje, mais do que simplesmente redistribuir riquezas
criadas pelo esforço coletivo, significa distinguir, reconhecer e incorporar à
sociedade mais ampla valores culturais diversificados, muitas vezes
considerados inferiores àqueles reputados dominantes”. Assim, mais do que
uma cortesia do Estado, a criação das políticas afirmativas objeto da Lei
12.990/2014 são um dever estatal imposto pela Constituição.
Nesta linha, excluir da ação afirmativa os cargos relativos aos poderes
judiciário e legislativo seria uma clara violação de direitos fundamentais,
infringindo a cláusula de proibição de proteção insuficiente, notadamente pelo
fato de estes cargos serem dotados de relevantes poderes na estrutura
burocrática do Estado brasileiro. Como destacam Mendes, Coelho e Branco
(2007), referindo-se a Schlink, “se o Estado nada faz para atingir um dado
objetivo para o qual deva envidar esforços, não parece que esteja a ferir o
princípio da proibição da insuficiência, mas sim um dever de atuação
decorrente do dever de legislar ou de qualquer outro dever de proteção”.
Qual, então, seria a solução para este entrave? Parece-nos que esta
proteção insuficiente poderia ter sido combatida através de um mandado de
injunção. Este remédio constitucional, que pode ser utilizado “sempre que a
falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e
liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à
soberania e à cidadania” (art. 5º, LXXI, da Constituição de 1988), é adequado
para combater omissões inconstitucionais, inclusive para obtenção de efeitos
concretos, conforme a jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal
Federal (neste sentido, vide MENDES; COELHO; BRANCO, 2007, p. 1154–
1159). Esta, aliás, também parece ser a sugestão da ministra Carmen Lúcia, ao
afirmar que “para a finalidade de reconhecimento da omissão legislativa e da
efetiva inviabilidade do gozo de direito, faculdade ou prerrogativa
consagradas constitucionalmente em razão do vácuo normativo, a Constituição
da República define ações específicas” (BRASIL, 2014c).

CONCLUSÃO
Procuramos, neste trabalho, efetuar uma análise crítica da Lei nº
12.990/2014, que estabeleceu cotas para afrodescendentes nos concursos
públicos.
Para desenvolver esta análise, tornou-se necessário esclarecer o conteúdo
jurídico do princípio da igualdade na Constituição de 1988. Como vimos,
nossa Constituição estabelece uma cláusula de igualdade que vai além da
igualdade formal afirmada nas constituições do século XVIII, impondo aos
poderes públicos a busca por uma igualdade material, que, ao criar distinções
entre pessoas que se situam em diferentes situações fáticas, busca dar-lhes
iguais condições de liberdade e desenvolvimento humano.
A busca da igualdade material, por sua vez, demanda a criação e o
desenvolvimento de ações afirmativas, cujo objeto é exatamente a adoção de
tratamento diferenciado e mais favorecido a grupos historicamente excluídos
da sociedade. Neste sentido, a Lei 12.990/2014, ao reservar vagas para
afrodescendentes nos concursos públicos, é uma típica ação afirmativa.
Por outro lado, as ações afirmativas necessitam buscar fundamento em uma
teoria da justiça, considerando que o texto constitucional, por si só, não
elucida o significado de uma sociedade justa e solidária, e, também, que essas
ações tendem a enfrentar resistências e questionamento judiciais. Concluímos,
neste ponto, que uma teoria de justiça constitucionalmente adequada é a que
concilia as dimensões de redistribuição e reconhecimento.
Na análise da Lei 12.990/2014 propriamente dita, verificou-se que este ato
normativo procura ampliar o sistema protetivo dos direitos fundamentais da
população afrodescendente, mas incorre em violação da proibição de proteção
insuficiente ao não abranger a reserva de vagas aos concursos para cargos nos
poderes legislativo e judiciário. Consideramos, quanto a este aspecto, que o
instrumento adequado para combater essa inconstitucionalidade por omissão é
o mandado de injunção.

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A CIDADANIA NO ESPAÇO URBANO NO
CONTEXTO DO NOVO
CONSTITUCIONALISMO LATINO-
AMERICANO
CITIZENSHIP IN URBAN SPACE IN THE CONTEXT OF
THE NEW LATIN AMERICAN CONSTITUTIONALISM

Enzo Bello
Ana Beatriz Oliveira Reis
Gabriel Barbosa Gomes de Oliveira Filho
Juliana Pessoa Mulatinho
Kelly Ribeiro Felix de Souza
Laíze Gabriela Benevides Pinheiro
Marcela Münch de Oliveira e Silva

RESUMO
No contexto da reforma urbana em curso na cidade do Rio de Janeiro e impulsionada pela realização dos
megaeventos como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas e as Paraolimpíadas de 2016, verifica-se
uma modificação radical do espaço urbano promovida como estratégia de atração de investimentos e
reposicionamento da cidade através de sua renovação urbanística. O direito à cidade surge em meio a
novas práticas urbanas de cidadania, assumindo uma forma política de resistência popular e uma faceta
jurídica de direito coletivo voltado à resistência perante as reformas urbanas impostas pelo capital,
articulando a iniciativa privada e o poder público. O Novo Constitucionalismo Latino Americano revela-se
importante espaço de reconhecimento formal de novas experiências e ferramentas de participação, que
significam tentativas de se fundar uma nova sociedade a partir de processos sociais e políticos respaldados
nas ruas pelas manifestações e protestos, de onde surgem novos sujeitos políticos, novas instituições e um
modelo constitucional construído por demandas populares.

PALAVRAS-CHAVE
Cidadania; espaço urbano; novo constitucionalismo latino-americano.

ABSTRACT
Considering the context of the ongoing urban reform in the city of Rio de Janeiro and strengthened by the
fulfillment of mega events, such as the 2014 FIFA World Cup and the 2016 Olympic and Paralympic
Games, there has been a radical modification of the urban space, promoted as a strategy to attract
investments and to reposition the city through a urban renovation. The right to the city emerges amidst
new urban practices of citizenship, as a political popular resistance and as a legal facet of the collective
right, resisting the urban reforms demanded by the capital, articulating the private iniciative and the
government. The New Latin American Constitutionalism reveals itself as a important space of formal
acknowledgement of new experiences and participatory tools, which signifies attempts to create a new
society through social and political processes backed on the streets by demonstrations and protests, where
new political subjects, new institutions and a new constitutional model emerge, built by popular demand.

KEYWORDS
Citizenship; urbana space; new latin-american constitutionalism.

INTRODUÇÃO
Tem-se como objetivo oferecer um ambiente de discussão crítica acerca do exercício da cidadania no
contexto do espaço urbano, tendo como base as teorias do direito à cidade e do descolonialismo, no
horizonte das experiências de participação popular presentes no chamado Novo Constitucionalismo Latino-
Americano. No contexto da reforma urbana em curso na cidade do Rio de Janeiro e impulsionada pela
realização dos megaeventos como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas e as Paraolimpíadas de
2016, verifica-se uma modificação radical do espaço urbano promovida como estratégia de atração de
investimentos e reposicionamento da cidade através de sua renovação urbanística. O processo de
reorganização cotidiana do espaço urbano se faz de maneira a atender a necessidade do sistema
capitalista de maior acumulação de capital e é acompanhado pela violação de inúmeros direitos num
contexto de cidades que já são marcadas pela segregação social. O direito à moradia, por exemplo, é
abandonado diante das remoções forçadas para a realização das obras de infraestrutura dos megaeventos.
O direito à cidade surge em meio a novas práticas urbanas de cidadania, assumindo uma forma política de
resistência popular e uma faceta jurídica de direito coletivo voltado à resistência perante as reformas
urbanas impostas pelo capital, articulando a iniciativa privada e o poder público. A partir dessas novidades
aparecem novos atores políticos que almejam poder exercer o direito à cidade da sua maneira mais plena,
através da participação efetiva no planejamento e na gestão das cidades para se construir um novo espaço
urbano. Percebe-se uma oportunidade de diálogo entre direito à cidade e cidadania, no qual o pensamento
descolonial denota ser uma ferramenta importante para compreender a imposição de um modelo de cidade
pelo capital, representado ora por empreiteiras, ora por organizações supranacionais (FIFA e COI) para a
manutenção de países como o Brasil na condição de periferia em relação ao centro. A escolha de locais
para sediarem megaeventos esportivos internacionais como a Copa do Mundo e as Olimpíadas tem sido
guiada pela possibilidade, maior em governos de países subdesenvolvidos, de entidades como FIFA e COI
conseguirem pressionar pela adoção de medidas que garantam seu lucro. Esse é o caso do Brasil, em que
decisões relevantes a respeito da alocação de recursos relacionada a tais eventos passaram ao largo da
participação da sociedade. Ademais, era pressuposta uma abertura maior ao discurso de um legado
positivo, dada a carência de infraestrutura, quando na verdade a consequência até agora percebida foi o
acirramento das desigualdades do espaço urbano brasileiro, com a intensificação de processos de remoção
e gentrificação da cidade. É neste embate entre o capitalismo global e as resistências locais, que lutam por
um projeto de sociedade que valorize a vida, e novos tipos de relações em detrimento de um modelo de
desenvolvimento que prega o lucro a qualquer custo, que se situa o direito à cidade como um direito a
construir um novo padrão de sociabilidade entre os cidadãos no espaço que eles mesmos constroem. O
Novo Constitucionalismo Latino Americano revela-se importante espaço de reconhecimento formal de
novas experiências e ferramentas de participação, que significam tentativas de se fundar uma nova
sociedade a partir de processos sociais e políticos respaldados nas ruas pelas manifestações e protestos,
de onde surgem novos sujeitos políticos, novas instituições e um modelo constitucional construído por
demandas populares.

1 DIREITO À CIDADE E A “CIDADE DE EXCEÇÃO”


O direito à cidade nasce como um direito coletivo em resposta à
intensificação do processo do processo de urbanização ocorrido no século
XX, e é assim compreendido por David Harvey:
O direito à cidade é, portanto, muito mais do que o direito de acesso
individual ou de grupo com os recursos que a cidade incorpora: é um
direito de mudar e reinventar a cidade além do desejo dos nossos
corações. É, além disso, um direito coletivo, em vez de um direito
individual, já que reinventar a cidade inevitavelmente depende do
exercício de um poder coletivo sobre os processos de urbanização. A
liberdade de fazer e refazer a nós mesmos e as nossas cidades é, eu
quero dizer, um dos mais preciosos e ainda mais negligenciados de
nossos direitos humanos (HARVEY, 2012, p. 4).
Esse direito à cidade é dinâmico assim como as necessidades daqueles que
constroem diariamente a cidade. Sendo assim, “não pode ser concebido
apenas como um simples direito de visita ou de retorno às cidades
tradicionais. Só pode ser formulado como direito à vida urbana, transformada,
renovada” (LEFEBVRE, 1991, p. 116-117). Relaciona-se diretamente ao
direito de participação, sendo o contexto da vida urbana o ambiente profícuo
para o desenvolvimento da cidadania ativa (BELLO, 2013, p. 61 e ss.) capaz
de resistir às reformas urbanas impostas pelo capital, bem como influenciar na
construção de um novo espaço urbano.
(...) o direito de cidade, isto é, o direito à participação nos processos
deliberativos que dizem respeito à cidade e a adoção do
universalismo de procedimentos como padrão de deliberação da
coletividade urbana sobre seus destinos; por outro lado, a questão
distributiva traduzida na quebra do controle excludente do acesso à
riqueza, à renda e às oportunidades geradas no (e pelo) uso e
ocupação do solo urbano, assegurando a todos o direito à cidade
como riqueza social em contraposição a sua mercantilização
(SANTOS JÚNIOR; RIBEIRO, 2011, p. 13).
O exercício do direito à cidade tem se mostrado, atualmente, um grande
desafio. No momento em que o capitalismo passa por uma nova etapa, qual
seja a globalização, emerge um novo modelo de cidade onde, segundo Vainer
(2013), a única democracia exercida é a “democracia direta do capital.”
Percebe-se, nesse contexto, o pleno exercício do direito impedido.
Na tentativa de traduzir o atual momento em que passam as metrópoles do
contexto da globalização, Carlos Vainer, estabelece o conceito de cidade de
exceção tendo como referencial teórico a obra de Giorgio Agamben (2004)
“Estado de Exceção”. O autor italiano defende que nos momentos de ascensão
do Estado de Exceção há a suspensão do direito. Segundo Agamben, ainda que
as leis permaneçam vigentes no ordenamento jurídico, elas perdem suas forças
em detrimento da aplicação de atos com um maior grau de autoritarismo, como
os decretos.
O conceito de “Cidade de Exceção” é cunhado por Vainer para definir a
situação pela qual passa muitas cidades brasileiras, em especial a cidade do
Rio de Janeiro no contexto das transformações urbanas em curso
impulsionadas pela realização dos megaeventos esportivos de projeção
internacional. Nas cidades de exceção,
As formas institucionais de democracia representativa burguesa
permanecem, formalmente, operantes. O governo eleito governa, o
legislativo municipal legisla... Mas a forma como governam e
legislam produz e reproduz situações e práticas de exceção, em que
poderes são transferidos a grupos de interesse empresarial.
(VAINER, 2013, p. 71)
Giorgio Agamben (2004) afirma ainda que, no estado de exceção há a
suspensão da ordem jurídica sem qualquer formalidade. Embora as normas
jurídicas não percam sua vigência, a aplicação dessas normas é deixada de
lado, sendo substituída por atos que não têm valor de lei e que são emanados,
exclusivamente, pelo poder executivo. Ocorreria, portanto, a adoção de
instrumentos que rompem com a ordem formal justificada a partir de um
suposto estado de necessidade.
Na cidade do Rio de Janeiro, diante das atuais transformações no espaço
urbano, impulsionadas pela realização dos megaeventos que objetivam a
inserção da cidade no circuito internacional das metrópoles, as normas
urbanísticas vêm sendo conduzidas pelo poder executivo através de decretos.
Esses processos, muitas vezes conduzidos sem qualquer diálogo com a
população, têm sido criticados não só pela academia, mas também pelos
movimentos sociais, por violar o direito à moradia através das remoções
diretas e indiretas, por aumentar a segregação sócio-espacial através do
fenômeno da gentrificação além de promover a valorização imobiliária
excessiva de certas áreas bem como incentivar a especulação imobiliária.
O Decreto Municipal nº 38.197/2013, que aprova as diretrizes para a
demolição de imóveis e realocação de moradores de assentamentos populares
e altera o Decreto nº 32.115/2010 pode ser considerado um exemplo de
legislação de exceção na cidade do Rio de Janeiro.
O predomínio da participação de técnicos, revestidos de uma suposta
neutralidade, é uma característica dessa nova fase do empreendedorismo
urbano (Harvey, 2005). A participação social nos assuntos relacionados ao
planejamento e a gestão da cidade é esvaziada em detrimento dos decretos
executivos que passaram a determinar os rumos da atuação urbanística do
poder público e dos agentes privados.
A ideia de flexibilidade e o modelo de planejamento estratégico, no qual
prevalecem os interesses do marketing urbano, são amplamente defendidos e
adotados pelos gestores públicos de várias cidades do mundo. Esse processo,
contudo, não começou a ser construído agora. Desde 1993, na gestão do ex-
prefeito César Maia, a cidade do Rio de Janeiro vem se preparando para se
destacar cada vez mais no cenário internacional.
Não parece haver dúvidas de que o que estamos vivendo hoje é o
resultado de um processo lento, complexo, porém continuado, de
constituição de um bloco hegemônico que tinha a oferecer à “cidade
em crise”, desde os anos 70 e, sobretudo,80, um novo projeto, leia-
se, um novo destino.(VAINER, 2013)
Agamben (2004) destaca que o estado de exceção muitas vezes foi
justificado diante das situações de guerra. Para que a cidade de exceção torne-
se uma realidade, faz-se necessário a difusão de um sentimento de crise capaz
de criar a sensação de um estado de necessidade que justifique as medidas
excepcionais do poder executivo.
Nesse sentido, percebe-se que, na cidade do Rio de Janeiro, não só a
guerra ao tráfico de drogas como também os levantes populares têm sido
usados como justificativa para a administração governar através da exceção.
Os diversos coletivos que se formam na cidade e que propõem a contestação e
resistência aos atuais processos de transformação do espaço urbano são
tratados com hostilidade pelo poder público. Esses movimentos populares vão
na contramão da tentativa do discurso hegemônico que tenta construir a cidade
através do consenso, deixando-se de lado as contradições produzidas pelo
sistema de produção capitalista no âmbito do espaço urbano e ignorando os
diversos interesses que se confrontam nas cidades marcadas pelas
desigualdades sociais e econômicas tão evidentes através do simples olhar
para a paisagem urbana carioca.
Sendo assim, a cidade governada através da exceção tem cumprido um
importante papel viabilizador desses processos que vêm ocorrendo na Cidade
Maravilhosa. No âmbito da cidade de exceção, a democracia é fragilizada e a
população fica cada vez mais distante dos assuntos coletivos, uma vez que a
única democracia que impera é a “democracia direta do capital” (VAINER,
2013, p. 59).

2 DESCOLONIALIDADE E DIREITO À CIDADE


No capítulo anterior tratamos da “cidade de exceção” (VAINER, 2013) em
oposição ao “direito à cidade” (HARVEY, 2012), com o objetivo de
demonstrar como as cidades, em especial aquelas localizadas em territórios
tradicionalmente subalternizados face ao capital, vem sendo geridas em
contrariedade aos interesses da maior parte de seus cidadãos.
Neste capítulo busca-se: i) associar esse formato de gestão da cidade à
globalização e à manutenção de uma relação de colonialidade entre centros e
periferias capitalistas; ii) olhar para luta pelo direito à cidade como uma
forma de romper com o neoliberalismo, e sua dominação violenta sobre
determinadas formas de vida.
Na América Latina, o colonialismo transmutou-se em outra forma de
dominação: a colonialidade. Sem a consciência de tal assertiva a atual
conformação geopolítica do mundo não pode ser entendida.
Essa dominação encontra-se camuflada hoje no discurso dominante da
globalização neoliberal, que esconde a presença do Ocidente e a manutenção
de uma relação de subordinação/exploração face aos outros que lhe é vital
(CORONIL, 2005).
Essencial, portanto, desnudar a relação intrínseca entre modernidade e
capitalismo/colonialismo, ou seja, jogar luz sobre o fato de que ao capitalismo
foi e continua sendo essencial subalternizar e explorar determinados
territórios, sem os quais não teria se desenvolvido. Trata-se, portanto, de
perceber o lado escuro da globalização (CORONIL, 2005).
Segundo relatório de 1997 da Conferência das Nações Unidas sobre
Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), em 1965 o PIB médio per capita
dos 20% mais ricos da população mundial era trinta vezes maior que o dos
20% mais pobres; em 1990 esta diferença tinha duplicado, passando a
sessenta vezes. (CORONIL, 2005).
Essa concentração da riqueza global aparece, no entanto, de forma
geograficamente difusa, embaçando a lente de quem observa, pois aquela
relação metrópole colônia hoje se apresenta na dominação de conglomerados
financeiros transnacionais, que parecem não ter bandeira, mas continuam
socialmente localizados. Como bem resume, CORONIL:
Desde a conquista das Américas, os projetos de cristianização,
colonização, civilização, modernização e o desenvolvimento
configuraram as relações entre a Europa e suas colônias em termos de
uma oposição nítida entre um Ocidente superior e seus outros
inferiores. Em contraste, a globalização neoliberal evoca a imagem
de um processo indiferenciado, sem agentes geopolíticos claramente
demarcados ou populações definidas como subordinadas por sua
localização geográfica ou sua posição cultural; oculta as fontes de
poder altamente concentradas das quais emerge e fragmenta as
maiorias que atinge.( CORONIL, 2005, p.14)
E como essa dominação atinge as cidades? Em primeiro lugar, há uma
conexão inevitável entre o desenvolvimento capitalista e a urbanização
(HARVEY, 2012). Em outros termos, a expansão capitalista se dá
necessariamente na busca de novos territórios que possam escoar o seu
constante excedente de produção. De fato, na globalização neoliberal as
cidades passam a ter um papel fundamental para os processos de acumulação
de capital.
O impacto dessa configuração é um urbanismo marcado por megaeventos e
megaprojetos, que permitem mobilizar um grande volume de capital sob a
justificativa da necessidade de reformar a cidade. A “reabilitação” passa a ser
o termo em voga, num processo que HARVEY identifica como “destruição
criativa”, porquanto essa reabilitação implica necessariamente suplantar
formas e expressões de vida urbanas anteriores.
Em verdade, a substituição de habitantes menos ou não rentáveis por
habitantes de classe média e classe média alta é a nova estratégia urbanística
em voga nas cidades movidas pela competição global.
Conforme identifica o geógrafo Neil Smith em sua análise sobre o
fenômeno na cidade de Nova Iorque, o uso corrente do termo, aqui adaptado
para “reabilitação/renovação urbana” é prova de como a gentrificação se
institucionalizou e deixa de ser uma consequência pontual para tornar-se
objetivo central dos gestores da cidade.
Em que pese as diferenças entre os contextos dos cenários urbanos
observados pelo geógrafo e a realidade brasileira, é inegável que cidades
como o Rio de Janeiro, inseridas na corrida das cidades globais, estejam hoje
enfrentando problemas muito parecidos com os diagnosticados pelo autor.
Sendo assim, cumpre trazer aqui considerações por ele feitas, tais como a
de que a gentrificação pode ser considerada atualmente como uma aliança
sistemática e estratégica do urbanismo público e do capital, que se desenvolve
nas municipalidades com a presença de dois atores centrais - o Estado e as
empresas, e de uma nova ferramenta – a parceria público-privada. Mais ainda:
É a lógica do mercado e não mais os financiamentos dos serviços
sociais o novo modus operandi das políticas públicas. Os projetos
imobiliários se tornam a peça central da economia produtiva da
cidade, um fim em si, justificado pela criação de empregos, pela
geração de impostos, pelo desenvolvimento do turismo e pela
construção de grandes complexos culturais, além de enormes
conjuntos multisetoriais e templos do consumo nos novos centros
urbanos. (SMITH, 2006, p.79)
Todavia essa estratégia se concretiza por meio de um discurso ideológico
de “regeneração”, que ressalta a retomada dos centros urbanos, mas não
revela quem é o destinatário desse chamado, fazendo ignorar também a
existência de antigos habitantes dessas áreas, e, portanto, o fato de que terão
que ser deslocados para que se faça possível essa retomada. Essa ferramenta
significa nada mais que a escolha por identificar um fenômeno por sua
aparência, camuflando sua essência, e nisso reside extrema importância.
Ao apresentar-se enquanto reabilitação/revitalização, o fenômeno da
gentrificação reveste-se não apenas de uma institucionalidade e de uma
capacidade de intervenção planejada e financiada, mas também da
potencialidade neutralizadora de um discurso, que como afirma Neil Smith,
“representa uma vitória ideológica considerável para as visões neoliberais da
cidade.” (SMITH, 2006, p. 84)
Na década de 1990, em Seul, empresas de construção civil e empreiteiras
contrataram “lutadores de sumô” para destruir bairros inteiros, dado que a
zona tinha se tornado muito valiosa (HARVEY, 2012). No Rio de Janeiro, sob
a justificativa, num primeiro plano, da preparação da cidade para dois
megaeventos esportivos em especial, COPA (2014) e Olimpíadas (2016),
4.772 famílias já foram removidas, totalizando cerca de 16.700 pessoas de 29
comunidades, destas 3.507 famílias foram removidas por obras e projetos
ligados diretamente aos megaeventos esportivos.
Essas remoções acontecem sem nenhuma transparência e acesso à
informação dos moradores, que descobrem que suas casas serão removidas
com uma pintura feita por um funcionário da prefeitura na parede (ROLNIK,
2014).
Para além dessas remoções diretas, há ainda as indiretas ou “brancas”,
caracterizadas pela ocupação militar de determinados territórios na forma das
Unidades de Polícia Pacificadora, associada à entrada do mercado, que, aos
poucos encarece o custo de vida nestes lugares, expulsando seus antigos
moradores. Isso sem falar num controle que se instaura em seus cotidianos, a
partir de revistas diárias, de toques de recolher, do fechamento de locais de
encontro (como quadras esportivas).
Essas violações são ofuscadas, no entanto, por um discurso agregador, que
reclama um sentimento patriótico dos cidadãos em relação à cidade e ao seu
crescimento.
Embora toda a gestão da cidade esteja se dando no interesse do capital,
personificado em entidades internacionais como FIFA e COI, e de empreiteiras
que nada pretendem, senão o lucro através da alavanca da realização de
grandes obras, invoca-se um progresso benéfico rumo a tornar o Rio de
Janeiro uma cidade global, com plena capacidade de competir no mercado
internacional.
Mas existe resistência. Existem movimentos sociais urbanos buscando
construir à cidade de outra forma, se afirmando enquanto modos de expressão
de vida colidentes e é nessa resistência que esse trabalho coloca o foco. Na
sua capacidade de, ao reivindicar o poder de decisão sobre que tipo de cidade
se quer, questionar a própria forma de relações sociais que permeiam esse
cenário urbano, relações individualistas, isolacionistas, de modo a substituí-
las por outras formas de expressão, mais coletivas, mais integradas com a
natureza.
O que se quer investigar aqui é justamente o potencial da luta pelo direito à
cidade, entendido em sua complexidade, de romper com a gramática
neoliberal, que nos impõe subordinações geográficas, que nos impõe
dicotomias entre homem/natureza, centro/periferia, sujeitos do planejamento
urbano/e objetos ou obstáculos a esse planejamento.
Enfim, trata-se de reconhecer nas práticas de resistência criativa uma nova
possibilidade de cidade, e de relações humanas.

3 DAS EXPERIÊNCIAS DO CONSTITUCIONALISMO


LATINO-AMERICANO
Em consonância com o item anterior, o objetivo deste capítulo é buscar
referencias próximas de tentativas de ruptura com o modelo neoliberal, a
partir do movimento chamado de “novo constitucionalismo latino-americano”.
Fajardo (2010) faz uma distinção entre três ciclos de reformas
constitucionais que tem como marca a reconfiguração do modelo de Estado e
sua relação com os povos indígenas: o constitucionalismo multicultural (1982-
1988), o constitucionalismo pluricultural (1989-2005) e o constitucionalismo
plurinacional (2006-2009).
Neste último ciclo, segundo a autora, estariam os processos constituintes
da Bolívia (2006-2009) e do Equador (2008), cuja marca principal seria a
proposta de “refundação do Estado” em marcos descoloniais.
As novas Constituições pretendem libertar suas sociedades desse padrão
moderno colonial, i) fazendo um diagnóstico crítico dessa realidade,
compreendendo que por trás do discurso da modernidade há um oposto
necessário – a colonialidade do poder, que vai mais além do domínio
econômico, operando também no campo epistêmico, ao hierarquizar uma
produção de saber a partir da diferenciação racial e geográfica,
subalternizando ou mesmo silenciando conhecimentos periféricos ii)
produzindo um pensamento crítico desde as margens ou fronteiras
historicamente silenciadas por esse Estado eurocêntrico, colonial,
monocultural e monorganizativo.(MEDICI, 2012).
Há uma clara opção descolonial em oposição a um Estado permeado pelo
domínio de empresas e organismos do capitalismo transnacional, que impõem
receitas neoliberais gerando a ineficácia dos direitos humanos previstos no
texto formal.
Essa opção aparece i) nos preâmbulos, que marcam um desejo de
abandonar a colonialidade do poder, e refundar o Estado sobre bases plurais e
interculturais, resgatando a história de resistência de seus povos; ii) no eixo
central dessas constituições, traduzido na noção de “buen vivir” – Sumak
Kawsay (em Kechra), que significa um viver bem tanto em relações humanas
como em relações com a natureza, apartada dos parâmetros base da
modernidade: o individualismo, o lucro, a racionalidade custo-benefício, a
instrumentalização e objetivação da natureza, a relação estratégica entre seres
humanos e a mercantilização total das esferas de vida humana; iii) na noção de
interculturalidade – entendida aqui em termos mais amplos que um mero
reconhecimento das diferenças por um Estado que quer ser inclusivo, e
reformador, mantendo a ideologia neoliberal, mas como um reconhecimento da
diferença colonial e uma abertura para um diálogo a partir das autonomias e
cosmovisões distintas (MEDICI, 2012).
Quanto à forma de Estado, ambas as Constituições representam processos
transitórios de estruturas unitárias para estruturas plurinacionais,
interculturais, e descentralizadas a partir de um eixo descolonizador. O
reconhecimento de distintas formas de descentralização política e
administrativa dialoga com essa pluralidade, ao estabelecer os marcos de
competência a partir dela. Quanto à forma de governo, acentuam-se práticas
democráticas diretas, comunitárias e se reconhece o pluralismo no exercício
das funções judiciais. Na Bolívia se reconhece como sistema de governo três
formas de democracia: representativa, participativa e comunitária; o controle
de constitucionalidade é exercido por um Tribunal Constitucional
Plurinacional.
Quanto à previsão de direitos, ambas consagram um sistema onde a
universalidade, a indivisibilidade e a interdependência se articulam sobre a
noção de “buen vivir”, não havendo hierarquia entre direitos (não há divisão
hierárquica entre gerações de direitos), nem a dependência de normas infra-
constitucionais para aplicação. Há uma série de direitos previstos, marcados
por um contraste com o paradigma individualista e mecantilizado da
modernidade, e resultantes de experiências de conflitos anteriores, como é o
caso de recursos naturais como a água e o gás. (MEDICI, 2012).
A aproximação com essas experiências recentes latino-americanas levanta,
contudo, uma série de questões, as quais servem como norte desta pesquisa,
das quais listamos algumas a seguir:
i) A emergência dessas novas Constituições é possibilitada por contextos
mais gerais de crise do projeto civilizatório moderno e seus paradigmas
(segunda guerra e declínio a União Soviética), da fragmentação do Estado
nação, e de intensificação de um modelo de desenvolvimento econômico
calcado no crescimento econômico (e não necessariamente na distribuição) e
na exploração de recursos – com influência direta na organização do espaço e
sobre grupos que se reproduziam à margem do território estatal. Todavia, há
um contexto específico no Equador e na Bolívia, que dialoga com este mais
amplo, que é o fortalecimento da organização/representação dos povos
originários campesinos. No Equador, por exemplo, a CONAE conseguiu
abarcar um grande setor e ganhar força suficiente para impulsionar um projeto
de transformação. Como fazer um paralelo com o Brasil? Nós temos essa
potencia de organização? Onde enxergar essa possível identidade?
ii) Olhando para essas experiências, e buscando referências e
aprendizagens, o território pode ser um elemento interessante para articular a
noção de interculturalidade, e a noção de direitos? A dimensão territorial não
pode ser mais interessante que a dimensão “sujeito”?
iii) As novas Constituições partem de situações de tensão, que influenciam
inclusive a radicalidade da ruptura do texto constitucional. Por isso mesmo,
são tidas como transitórias e parte de um processo mais amplo. Até que ponto
a conquista desses novos textos constitucionais pode garantir a continuidade
de um avanço descolonial?
iv) Em ambos os casos, o novo Estado por vezes reivindica a “Revolução
Cidadã” ou a “Revolução” cultural para legitimar ações que continuam
violando territorialidades não estatais, qual seria a forma de lidar com essas
contradições?

CONCLUSÃO
O presente trabalho visou demonstrar que há um diálogo entre direito à
cidade e cidadania, no qual o pensamento descolonial denota ser uma
ferramenta importante para compreender a imposição de um modelo de cidade
pelo capital, representado ora por empreiteiras, ora por organizações
supranacionais (FIFA e COI) para a manutenção de países como o Brasil na
condição de periferia em relação ao centro.
Desta maneira, entendemos que o modelo de cidade em curso tem ligação
intrínseca com o atual desenvolvimento do modo de produção capitalista e sua
fase neoliberal, que estabelece na busca por índices de crescimento
econômico a prioridade da administração pública, transformando o Estado no
principal violador de direitos, a fim de garantir a competitividade na dinâmica
internacional.
Desta maneira, reivindicar um modelo de cidade inclusivo, onde a
cidadania seja exercida indistintamente por toda a população, impõe a
necessidade de debater e construir outro modelo de sociedade, rompendo com
a relação sujeito-objeto, calcada na garantia individual de direitos, para dar
lugar a uma relação coletiva, baseada no território, em harmonia com a
natureza. Ou seja, necessitamos superar a busca pelo lucro, substituindo-a pela
busca pelo “bem viver”, onde a natureza e as pessoas não sejam encaradas
como produtos mercantis a serem explorados, mas como partes integradas de
um mesmo todo.
Para isto, é necessário romper com a subordinação epistêmica eurocêntrica
e nos voltarmos a compreender as especificidades do nosso lugar no mundo,
romper com os laços coloniais e desenvolver, a partir das experiências da
América Latina, um pensamento e uma prática que sejam capazes de superar
os anos de exploração e subjugação e nos apontem rumos para não apenas
prever novos direitos sob novas bases teóricas, mas mecanismos de real
implementação destes, a partir de práticas e instrumentos de participação
verdadeiramente democráticos. É necessário transformar a cidade no local de
efetivo exercício da cidadania, onde a busca do “bem viver” seja maior e mais
importante que a luta diária pela sobrevivência nas favelas e áreas de
periferia.

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POLÍTICA URBANA E GRANDES PROJETOS
PRIVADOS: UM ESTUDO DE CASO DE
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SEUS REFLEXOS NA ORDEM JURÍDICO-
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URBAN POLICY AND LARGE SCALE PRIVATE PROJECTS:A
CASE STUDY OF LICENCING A SHOPPING MALL AND ITS
IMPLICATIONS WITH THE LEGAL-URBAN ORDER

Alex Ferreira Magalhães


Laura Marques dos Santos Fernandes Alves
Angel Costa Soares
Juliana Leite de Araújo

RESUMO
O presente artigo tem por objeto apresentar reflexões a respeito de um caso de licenciamento de um
grande empreendimento privado – shopping center e outras atividades correlatas – atualmente em curso
no município de Duque de Caxias (RJ), tomado como um exemplo ilustrativo das disputas atuais em torno
do planejamento das cidades brasileiras e do que costuma-se definir como direito à cidade. Com base na
análise da legislação municipal e nacional, dos processos de licenciamento urbano e ambiental e de dados
empíricos, discutem-se alguns problemas envolvidos no caso, como o grau de compatibilidade do
empreendimento com o Plano Diretor, as deficiências da avaliação de impactos ambientais, as
irregularidades nos processos administrativos de licenciamento, a não observância do devido processo
legal, a judicialização do conflito em torno do licenciamento, e o papel do movimento social de resistência à
implantação desse empreendimento. O caso estudado alimenta avaliações de maior escala a respeito da
efetividade e dos resultados da política urbana traçada em sede constitucional.

PALAVRAS-CHAVE
Grandes projetos urbanos; licenciamento; direito à cidade; devido processo legal.

ABSTRACT
This work presents thoughts about a large private development – a shopping mall and related activities - in
progress in the Duque de Caxias district, an important town at the state of Rio de Janeiro. This is taken as
an example of the disputes around the planning of Brazilian cities, and of what is commonly defined as
right to the city. Based in the analysis of municipal and national statutory law, in urban and environmental
licensing processes and empirical data, we discuss topics such as the compatibility of the whole business
venture with the district’s master plan (called “Plano Diretor” within the Brazilian urban system),
deficiencies of environmental impact assessment, irregularities of licensing administration procedures, the
non-observance of the due process of law, the sociopolitical conflict around the licensing and the role of
social movements against this development. The case studied feeds into evaluations of larger scale
regarding the effectiveness and the results of urban policies defined by the 1988’s Brazilian Constitution.

KEYWORDS
Large scale urban projects; licencing; right to the city; due process of law.

INTRODUÇÃO
Em maio de 2014, o movimento social intitulado FORAS – Fórum de
Oposição e Resistência ao Shopping, composto de mais de 20 entidades
sindicais e populares atuantes no município de Duque de Caxias, trouxe ao
grupo de pesquisa (e à universidade, de modo geral) uma demanda de
prestação de esclarecimentos técnicos acerca de um projeto de construção de
um shopping Center – e outros estabelecimentos a ele associados – na área
central daquele município.
Segundo a notícia trazida pelo movimento, trata-se de um empreendimento
de grande porte, que coloca em risco a última área verde que restou no Centro
duquecaxiense, além de ameaçar produzir impactos negativos significativos à
vizinhança, resultantes do brutal adensamento que o mesmo acarretará, caso
seja implantado. Entre esses impactos, mencionaram aqueles relacionados ao
trânsito na área central desse município, à visibilidade e à segurança de
edificações de relevância histórico-cultural, como a Igreja Matriz de Santo
Antônio e a Escola Municipal Doutor Álvaro Alberto, ao agravamento dos
problemas já existentes com o abastecimento de água, além de afetar o
tradicional “comércio de rua” do calçadão de Duque de Caxias. Isto sem falar
no malogro de um projeto de criação de um parque urbano na aludida área, à
semelhança do que ocorre no Rio de Janeiro, que dispõe de espaços como o
Campo de Santana e o Passeio Público, dentre outros, equipamentos públicos
tidos como “intocáveis” no contexto da capital.
A partir daí, o grupo de pesquisa dedicou boa parte de suas atividades do
2º semestre de 2014 ao estudo do projeto em questão, além de participar de
inúmeras atividades de discussão do mesmo, tendo respondido à demanda do
movimento através da organização e entrega de um estudo técnico, além de
contribuir com uma apresentação em audiência pública de iniciativa do mesmo
FORAS e com a propositura de ações judiciais que questionam o aludido
projeto.
Assim, o empreendimento aqui debatido consiste no que se pode chamar de
um “complexo de multiatividades”, constituído por um shopping, duas torres
comerciais, um hotel-residência e um estacionamento para quase 1.300
veículos. Segundo o respectivo projeto, estima-se que contará com um mix de
303 lojas, voltadas ao segmento socioeconômico da chamada “classe C”,
distribuídas em quatro pisos, além de espaço para lazer (cinema, rinque de
patinação, etc.). O volume de investimentos anunciado é de cerca de R$ 218
milhões e inúmeras grandes lojas e marcas já teriam manifestado interesse em
alocar-se no futuro shopping, que se situaria na Avenida Presidente Kennedy,
uma das principais vias que cruza o centro da cidade caxiense, conforme
ilustra a imagem abaixo, figurativa da construção projetada.

Através de análise dos documentos apresentados pela empresa ABL


Shopping, responsável pelo projeto do empreendimento, pelo movimento
FORAS, e pela Prefeitura de Duque de Caxias, pudemos destacar alguns
pontos para reflexão e problematização a respeito do caso. Assim, o presente
artigo visa analisar as vicissitudes do processo do licenciamento do
empreendimento aqui identificado, bem como discutir os meios e as técnicas
utilizadas pela empresa construtora, a fim de concretizar o empreendimento,
além de considerar o papel desempenhado pela chamada “sociedade civil”, no
conflito suscitado pela tramitação dos pedidos de licença ambiental e edilícia
para sua instalação. Trata-se de um conflito que consideramos bastante
representativo dos atuais dilemas que envolvem o desenvolvimento das
cidades brasileiras, tema que alcançou status constitucional em 1988, quando a
carta magna brasileira, pela primeira vez, recepciona um capítulo destinado à
política urbana, sendo seguida, nos anos seguintes, pelas cartas estaduais e
municipais.

1 IMPACTOS ECONÔMICOS E URBANÍSTICOS DO


PROJETO
1.1 Impactos sobre Atividades Econômicas
O Centro de Duque de Caxias, onde se pretende implantar o
empreendimento em questão, é conhecido por sua grande área comercial, que
atende não só aos moradores dessa região, como também aos de vários bairros
vizinhos, e até mesmo de bairros do subúrbio do município do Rio de Janeiro,
em busca das variedades e do bom preço.
Muito próximo ao sítio destinado ao empreendimento encontra-se o
Calçadão, uma área exclusiva para pedestres, cercada de lojas e galerias
comerciais, composto por segmentos da Avenida Nilo Peçanha, Rua Manuel
Correia, Rua José de Alvarenga e Rua André Rebouças, e que tem como
principal atrativo as atividades de serviços, alimentação e vestuário.
A preocupação dos comerciantes locais, com a chegada de um grande
Shopping Center localizado tão próximo do Calçadão e das outras diversas
ruas de lojistas, e ainda com a proposta de atingir o mesmo público – ou
segmento socioeconômico – é que os consumidores se voltem em sua maioria
para o Shopping, já que fatores “óbvios”, como o calor e o excesso de pessoas
nas ruas do Calçadão, tornem o novo empreendimento mais agradável e
atrativo. A desvantagem competitiva dos lojistas tradicionais tende a se
agravar em função de outros fatores como a propaganda, que inexiste para esse
grupo, de forma unificada, ao contrário do shopping, diariamente
glamourizado nos grandes veículos de marketing.
Um estudo realizado pelo Professor Marcelo Gomes Ribeiro (RIBEIRO,
2014),185 levantou uma breve caracterização do perfil regional do munícipio
de Duque de Caxias, a partir da participação populacional, número de
domicílio, renda média e renda mensal total, de modo a demonstrar o
potencial econômico desse município. Nele, os grupos (ou as classes) de
renda mais frequentes dentre a população são: C1 (26,5%), C2 (23,3%) e D
(22,9%), cuja renda é apontada no quadro abaixo.

Classe Intervalo de renda (R$) Renda média domiciliar mensal (R$)


C1 De 1.709 a 3.416 2.425,00
C2 De 1.142 a 1.708 1.412,00
D De 652 a 1.141 943,00
E Até 651 538,00

Há um total de 2.829 estabelecimentos distribuídos nos 9 diferentes polos


comerciais que compõem o Calçadão, sendo que as atividades de serviços,
alimentação e vestuário concentram 61% das atividades existentes. Tais
atividades também são o foco do novo empreendimento, que também oferecerá
atividades de lazer e hotelaria.
Ainda de acordo com o estudo de Ribeiro (2014), seria possível a
implantação de um shopping Center de pequeno porte, porém deve-se revisar a
análise mercadológica apresentada pela empresa construtora, por ela ter
desconsiderado estudos mais consistentes sobre o potencial construtivo, como:
• O município de Duque de Caxias participa com apenas 4,6% da renda
total da Região Metropolitana, mesmo concentrando 7,3% de sua população;
• A taxa de crescimento anual da população de Duque de Caixas é de
apenas 0,98%, abaixo, portanto, da taxa de reposição.
Como a análise do potencial de mercado não deixa clara a metodologia
utilizada, fica difícil avaliar se a inserção desse empreendimento potencializa
a dinâmica econômica da região onde se pretende que seja instalado ou se isso
acarretará em fechamento de lojas e comércios de rua já existente, tal como já
se verificou com relação a algumas atividades “de rua” na cidade do Rio de
Janeiro, como é o caso emblemático dos cinemas.
1.2 Impactos sobre o Sistema Viário
Há uma situação de saturação do uso do espaço onde se propõe construir o
empreendimento em tela, tendo em vista a precariedade das infraestruturas
existentes, o que é assaz verificável quando consideramos a situação do
sistema viário em toda a área central de Duque de Caxias, cuja avaliação de
encontrar-se em estado de saturação é bastante antiga.

Imagem 2: Produzida pelos autores.

Imagem 3: Trânsito local atual – Fonte: Google Mapas

O edifício que abrigaria o empreendimento seria construído no perímetro


definido pelas seguintes vias: Av. Presidente Kennedy, Rua 25 de Agosto, Rua
Deputado Romeiro Júnior e Rua José de Alvarenga. No respectivo projeto,
apresentam-se dois estudos de tráfico, porém, de acordo com análise realizada
pelo Professor Jorge Antônio Martins (MARTINS, 2014),186 nos estudos
apresentados observa-se grande disparidade de resultados. Tais como:
Entre os três modelos de veículos adotados como referência para o
estudo, a empresa consultora, alegando ser o modelo mais recente,
preferiu considerar tão somente as estimativas do modelo da CET-SP
(2011). Ressalte-se que o modelo escolhido foi desenvolvido para a
capital paulista, cujos shopping centers apresentam características
distintas dos shopping centers cariocas, sobretudo no que concerne
aos hábitos das populações das duas cidades.
O estudo de autoria da empresa M2A - Engenharia e Consultoria187 foca
apenas na entrada dos veículos no estacionamento do Shopping, não levando
em consideração os congestionamentos que serão causados pela descida de
carros da Rua Belisário Pena para a Av. Presidente Kennedy, que, como
facilmente percebido pelos usuários que circulam no local (e como mostrado
na imagem 3), já tem uma movimentação normalmente muito lenta, mesmo sem
o shopping.
A empresa apresenta o fluxo de carros do local e propõe uma mudança do
mesmo, contudo nenhum deles estabelece uma solução para a absorção desse
impacto negativo. Em ambas as opções ilustradas abaixo o fluxo vai para a Av.
Presidente Kennedy.
Fluxo Atual

Imagem 4: Apresentado no Estudo de Impacto Viário da empresa M2A-Engenharia e Consultoria


Fluxo proposto

Imagem 5: Apresentado no Estudo de Impacto Viário da empresa M2A-Engenharia e Consultoria

Além dos problemas com congestionamentos, também deve ser


considerada a alteração da qualidade do ar, pelo excesso de lançamento de
monóxido de carbono (CO), gerado pela grande quantidade de veículos
automotores retidos por longos períodos no entorno do empreendimento,
alterando o clima e originando ilhas de calor.
1.3 Impactos sobre a Morfologia Urbana
No estudo de Martins (2014), ele concluiu que, do ponto de vista
morfológico, o empreendimento se revela com uma volumetria que contrasta
significativamente com o seu entorno.
Por exemplo, a lateral do empreendimento voltada para a Rua Belisário
Pena, apesar de consumir quase todo o quarteirão, será ocupada por empena
cega da fachada principal, não contendo sequer vitrines voltadas para o
passeio público. Desse modo, não manterá nenhuma relação com seu entono
imediato e, logo, o espaço público perde a função de acesso lindeiro (ao
longo de sua extensão), concentrando-se o acesso de pedestres a dois únicos
pontos do edifício, pontos esses distantes entre si.
Isto tende a diminuir a percepção de segurança pública ao longo da via por
parte da população, não servindo o empreendimento para valorizar a vida
comunitária em seu próprio perímetro.
1.4 Impactos sobre o Patrimônio Edificado
Conforme a Imagem 3, acima apresentada, um dos vizinhos e confinantes
do estabelecimento questão consiste na Escola Municipal Dr. Álvaro Alberto,
estabelecida na mesma quadra em que se prevê a instalação daquele.

Imagem 6 e 7: Imagens da vistoria enviadas pelo grupo de resistência FORAS.

Essa escola foi vistoriada no dia 12/11/2014, devido ao recente aumento


das rachaduras existentes na quadra de esportes localizada nos fundos do
terreno. Estima-se que tais rachaduras estejam sendo provocadas pelas
intervenções de preparação do terreno para a execução da obra, no âmbito das
quais foi promovido corte de mais de uma centena de árvores que permeavam
o imóvel indicado para abrigar o empreendimento, realizado em junho de
2014, e com evidências de irregularidade.
O que ocorreu foi um progressivo afundamento do piso, verificado pelos
buracos na quadra, que chegavam a aproximadamente 25 a 30 cm de
profundidade, como mostram as imagens acima. Da mesma forma, apareceu na
extremidade de um dos muros, junto à quina dos fundos do terreno, uma trinca
horizontal. A origem dessas rachaduras, assim como o “piso oco”, deve-se,
provavelmente, ao rápido e recente afundamento do solo. Tanto a quadra
quanto o muro estão perdendo sustentação. Acredita-se que a poda da
vegetação do terreno vizinho expôs o solo, que é de topografia inclinada, e
agora há uma nova erosão, que não existia devido à proteção arbórea.
Figuras 8, 9 e 10: Perspectivas da Igreja Matriz de Santo Antônio – autora: Angel Costa Soares.

Na extremidade oposta do terreno encontra-se a Igreja Matriz de Santo


Antônio, que também é outra edificação que provavelmente sofrerá danos
físicos e paisagísticos, em função do tamanho desproporcional do
empreendimento em questão, já que também ficará contígua a ele e que, em sua
lateral também será erguida parede com empena cega, de altura superior ao
topo da Igreja, o que bloqueará toda a sua visibilidade, como podemos antever
com base nas Imagens 8 a 10, acima, oriundas de simulação elaborada a partir
dos parâmetros construtivos de ambas edificações.

2 O GRAU DE COMPATIBILIDADE DO
EMPREENDIMENTO COM O PLANO DIRETOR DO
MUNICÍPIO
A Lei Complementar municipal nº 01, de 31/10/2006, instituiu o 1º Plano
Diretor de Duque de Caxias, já nos estertores do prazo fixado pelo Estatuto da
Cidade, que vencera em 10/10 daquele mesmo ano.
Cumprindo uma das tarefas elementares dessa peça legislativa - e de
planejamento urbano - o Plano fixa, em seus artigos 38 e seguintes, um
macrozoneamento do território municipal, fracionando-o, basicamente, em
três macrozonas (desconsiderando-se, aqui, as zonas especiais e áreas de
reserva), a saber:
• Zona de Ocupação Controlada - ZOC
• Zona de Ocupação Básica - ZOB
• Zona de Ocupação Preferencial - ZOP
A partir desse Plano, a região central do município, integrante do que se
convencionou chamar de “1º Distrito” - isto com base no diploma legal que o
criou (o Decreto Lei nº 1.055, de 31/12/1943) - passa a ficar contida no que
ele define como ZOC, conforme, inclusive, é atestado no certificado de
zoneamento, expedido pela municipalidade em favor dos responsáveis pelo
empreendimento objeto de análise.188
No dizer do Plano Diretor, as “Zonas de ocupação controlada são as que
apresentam restrições a uma ocupação mais intensiva do solo” (art. 41).
As diretrizes para essa macrozona, estabelecidas no artigo seguinte,
determinam:
I. a reversão de processos acentuados de adensamento urbano;
II. a instalação de infraestruturas (em especial sistema viário,
macrodrenagem, esgotamento e abastecimento d’água) antes da ocupação
do solo;
III. a graduação da intensidade da ocupação em áreas limítrofes de
paisagens notáveis.
À luz dessas premissas, parece-nos forçoso reconhecer que o projeto de
edificação pretendido pelo empreendedor situa-se na contramão da disciplina
do macrozoneamento estabelecida no Plano Diretor, que, nunca é demais
recordar, constitui “o instrumento básico da política de desenvolvimento e
expansão urbana” conforme prescreve a Lei Maior brasileira. Isto porque:
1. representa forma ultra-intensiva de aproveitamento do solo, com
área edificada equivalente a quase sete vezes a área do terreno;
2. agrava o adensamento de área indiscutivelmente saturada, conforme
tacitamente reconhecido no Plano Diretor;
3. substitui as poucas casas térreas - ou, no máximo, com sobreloja - e
centenas de árvores existentes no terreno por uma edificação de mais
de 20 pavimentos;
4. promove fortíssimo adensamento sem que tenham sido previamente
ampliadas as redes de macrodrenagem, esgotamento e abastecimento
d’água, além do sistema viário;
5. instala edificação de altíssima intensidade precisamente ao lado de
uma das edificações mais emblemáticas do município - a Catedral de
Santo Antônio - sobre cujo valor histórico, cultural, religioso,
paisagístico e afetivo para o município e região também já foi
reconhecido no Plano e na legislação municipal, e que restará
inevitavelmente “escondida”, “diminuída” e “encurralada” por uma
estrutura de volume excepcionalmente maior do que ela (e do que
todo o entorno), tal como nas simulações apresentadas nesse estudo.

Figuras 11 e 12: Perspectivas da Igreja Matriz de Santo Antônio – autora: Angel Costa Soares.
Tal ordem de coisas impõe a compreensão das licenças urbanísticas
demandadas pelo empreendedor jamais como ato jurídico vinculado da
administração, e, logo, direito líquido e certo do empreendedor, em função,
por exemplo, da já certificada compatibilidade do uso pretendido com a
legislação municipal que estabelece o zoneamento, mas sim como ato
discricionário. Isto porque há um conjunto de outras circunstâncias, de
hierarquia superior, a serem consideradas no processo decisório a cargo do
município, tais como as diretrizes estabelecidas pelo Plano Diretor para as
macrozonas em que se dividir o território do município, além daquelas outras
sistematizadas no presente estudo. Nesse sentido, cabe invocar o magistério de
diversos autores, desde o seminal – e já clássico! – estudo de José Afonso da
Silva (SILVA, 1998) até a recente monografia de ROCCO (2009).
Tratam-se de normas que adquirem prevalência sobre as vetustas
concepções do “direito de construir”, concebido aos moldes civilistas, uma
vez que constituem “exigências fundamentais de ordenação da cidade”,
estabelecendo o modo como “a propriedade urbana cumpre a sua função
social” (art. 182, § 2º, da Constituição da República). O procedimento
administrativo de licenciamento do empreendimento permite ao administrador
público aferir os elementos de oportunidade e conveniência da obra no seu
mister constitucional de regular e direcionar a ocupação urbana adequada, em
especial quando a nova atividade pode gerar impactos significativos em sua
vizinhança.
No entanto, mesmo se adotada uma concepção reducionista do
licenciamento de obras e empreendimentos, vendo nele um puro e simples
exame da adequação do projeto aos índices e parâmetros de uso e ocupação
do solo definidos na legislação municipal - hipótese que admitimos apenas por
amor ao debate - ainda assim o projeto em questão não poderia atenderia aos
requisitos para a sua aprovação, face aos dispositivos do mesmo Plano
Diretor que visam estabelecer o controle do adensamento urbano.
Nesse sentido, há que se atentar para o seu Anexo IX, que admite o
coeficiente máximo de aproveitamento do terreno de 2,4 na área do
empreendimento em questão. Considerando-se que a área do imóvel que
abrigará o referido estabelecimento é de 11.718,72 m², o máximo de área
construída licenciável nessa macrozona seria de 28.124,93m², resultante da
multiplicação da área do terreno pelo coeficiente máximo admitido no Plano.
No entanto, observamos que o projeto de edificação do shopping, nos termos
da licença de construção outorgada em 23/08/2012,189 possui uma A.T.C. de
71.880,69m², área que excede em mais de duas vezes e meia (255,6% para
ser exato) o limite legalmente estabelecido, configurando um
aproveitamento bruto do terreno de incríveis 6,13.
Como é de comum conhecimento, o coeficiente de aproveitamento máximo
definido no Plano Diretor é insuperável, não podendo ser ultrapassado mesmo
mediante pagamento de contrapartida por parte do interessado, limite acima do
qual o espaço aéreo adquire a característica de área non aedificandi. Admitir
o oposto, seria flexibilizar todo o planejamento da cidade e ensejar a sua
compra pelos agentes com poder econômico.
Por todas essas razões, parece inescapável a adequação do projeto em
questão às normas do Plano Diretor referentes ao controle do adensamento
urbano excessivo, o que, aliás, é uma das diretrizes do próprio Estatuto da
Cidade - art. 2º, VI, alíneas “b”, “c” e “d”.

3 AS DEFICIÊNCIAS DA AVALIAÇÃO DE IMPACTOS


AMBIENTAIS
Já houve tempo que causava certa estranheza, senão resistência, falar em
avaliação de impactos ambientais no âmbito do processo de instalação de
empreendimentos inseridos em áreas urbanas, visto que, em geral, tais áreas já
se encontram bastante antropizadas, tomadas por construções e com
pouquíssimas áreas verdes. As exceções ficavam por conta, logicamente, dos
casos onde houvesse algum aspecto natural (como o relevo ou a existência de
cursos d’água, por exemplo) que atraísse a proteção das normas ambientais
“puras”, se é que assim podemos classificá-las.
Esse aparente afastamento, ou ao menos subsidiariedade, das normas
ambientais em relação às atividades e relações desenvolvidas no meio urbano
há muito já foi superado pela legislação, doutrina e jurisprudência,
especialmente a partir da Constituição Federal (CF) de 1988, que criou as
condições que, eventualmente, estariam ausentes, no sentido de que a tutela ao
meio ambiente permeasse também toda a regulação da construção e
desenvolvimento dos espaços urbanos e das relações de convivência social
nas cidades.
Em outras palavras, a partir da Constituição de 1988, a cidade passa a ter
natureza jurídica ambiental, deixando de ser observada, pelo plano jurídico,
tão somente com base nos regramentos adaptados aos bens privados ou
públicos, para ser disciplinada em face da estrutura jurídica do bem ambiental
de forma mediata, e de forma imediata, tudo isto em decorrência das
determinações constitucionais contidas nos arts. 182 e 183 da CF (FIORILLO,
2010, p. 445).
A cidade hoje é compreendida dentro do próprio conceito de meio
ambiente. É o meio ambiente artificial, que abrange o espaço urbano
construído, consistente no conjunto de edificações e equipamentos públicos
(FIORILLO, 2010, p. 72). Pode-se dizer que o ambiente construído
consubstancia ainda os esforços e as conquistas da população e suas
condições de vida e de trabalho, onde o desperdício ou mau aproveitamento
do espaço, da matéria e da energia constitui um desajuste ambiental
(FIORILLO, 2010, p. 347 e 355).
Nesse contexto, a variável ambiental vem sendo cada vez mais introduzida
na realidade municipal, a fim de assegurar a sadia qualidade de vida para o
homem e o desenvolvimento de suas atividades produtivas. Exemplo disso é a
inserção de princípios ambientais em Planos Diretores e leis de uso do solo,
bem como a instituição de Sistemas Municipais de Meio Ambiente e a edição
de Códigos Ambientais municipais (MILARÉ, 2011, p. 351).
Em relação ao cabimento e abrangência do licenciamento ambiental, a
regra geral é que a implantação de qualquer atividade ou obra efetiva ou
potencialmente degradadora do meio ambiente deve submeter-se a análise e
controle prévios, para efeitos de autorização / licenciamento, onde serão
verificados possíveis riscos e impactos ambientais a serem prevenidos,
corrigidos, mitigados e/ou compensados.
O meio ambiente urbano, no entanto, tem sua dinâmica própria, de modo
que as exigências ambientais que lhe são aplicáveis não são as mesmas que
gravam os empreendimentos e as outras interferências do homem nas áreas
com fortes características de elementos naturais (MILARÉ, 2011, p. 507). Da
mesma forma, o licenciamento ambiental das principais atividades observadas
nas cidades terá que observar e atender às particularidades intrínsecas a essa
dinâmica, que é bem própria.
Isso não significa, porém, que, nas cidades, não possa haver
empreendimentos com potencial de causar impactos ao meio ambiente de
magnitude igual, ou mesmo superior, à instalação de uma unidade industrial,
por exemplo. É o que ocorre justamente quando estamos diante da instalação
de um grande shopping center, como no caso em comento, o qual não causa
apenas uma alteração visual no local, mas traz outros importantes impactos
ambientais agregados, tais como corte de vegetação, aumento da demanda por
abastecimento de água potável, geração de grande quantidade de resíduos
sólidos, impactos viários, etc.
A avaliação ambiental de empreendimentos próprios do meio urbano é um
ponto no qual os órgãos licenciadores ainda têm muito a evoluir, posto que seu
corpo técnico em geral é capacitado com foco na avaliação de impactos
causados por atividades industriais, que não são muito comuns nos centros
urbanos, até mesmo por questões de logística e segurança técnico-operacional.
Nesse contexto, a Avaliação de Impactos Ambientais (AIA) se destaca
como importante instrumento de planejamento e controle que decorre do
princípio jurídico da consideração do meio ambiente na tomada de
decisões, comunicando-se com a elementar obrigação de obrigação de se
levar em conta o fator ambiental em qualquer ação ou decisão que possa
causar sobre ele qualquer efeito negativo. Vale destacar que a AIA, enquanto
instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), não se confunde
com o Estudo de Impacto Ambiental (EIA), que é uma ferramenta do
licenciamento ambiental e uma modalidade de AIA (MILARÉ, 2011, p. 464-
5).
Um desdobramento ou modalidade de AIA, e que tem papel fundamental na
avaliação de impactos ambientais de empreendimentos desenvolvidos nos
centros urbanos, consiste precisamente no Estudo de Impacto de Vizinhança
(EIV), que também é um instrumento associado à PNMA (embora não conste
explicitamente no texto legal com esse nome). O EIV, então, se aplica para o
estudo de impactos ambientais urbanos, cujos efeitos podem ser estritamente
localizados no tecido urbano ou, ainda, podem se estender para um âmbito
maior, impactando também sistemas viário e de tráfego urbano, por exemplo.
A elaboração do EIV é fundamental no âmbito do licenciamento ambiental
e urbanístico de empreendimentos urbanos, não apenas como alternativa de
avaliação de impactos, mas também por seu caráter pedagógico e por ser um
instrumento para a mobilização e a participação comunitária (MILARÉ, 2011,
p. 507).
Seguindo a mesma lógica do Estudo (prévio) de Impacto Ambiental (EIA),
que certamente é o mais conhecido dos instrumentos de AIA, os documentos
relativos ao EIV deverão ter publicidade e permanecer disponíveis para
consulta de qualquer interessado, de modo a suscitar e possibilitar a
mobilização da comunidade e a participação democrática desejada pelo
Estatuto da Cidade (MILARÉ, 2011, p. 676).
Feita esta breve contextualização acerca da importância e, mais que isso,
da imprescindibilidade de uma avaliação de impactos ambientais adequada ao
se analisar a viabilidade socioambiental de determinado empreendimento
proposto para área urbana, serão apresentados a seguir alguns pontos do
processo de licenciamento ambiental do empreendimento objeto deste estudo
que, ao menos à primeira vista, se mostraram deficientes nesse fundamental
aspecto.
O empreendimento em comento está sendo licenciado pelo órgão ambiental
municipal em virtude de seu enquadramento como atividade de impacto
ambiental baixo e local pela legislação vigente. Na forma do disposto no art.
1º, da Resolução CONEMA nº 42/2012, considera-se impacto ambiental de
âmbito local qualquer alteração direta ou indireta das propriedades físicas,
químicas e biológicas do meio ambiente, que afetem a saúde, a segurança e o
bem-estar da população; as atividades sociais e econômicas; a biota; as
condições estéticas e sanitárias do meio ambiente; e/ou a qualidade dos
recursos ambientais, dentro dos limites do Município.
Nos termos da mesma norma, não se considera de âmbito local o impacto
ambiental quando: (i) sua área de influência direta ultrapassar os limites do
Município; (ii) atingir ambiente marinho ou unidades de conservação do
Estado ou da União, à exceção das Áreas de Proteção Ambiental; (iii) a
atividade for listada em âmbito federal ou estadual como sujeita à elaboração
de Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e respectivo relatório de impacto
ambiental (RIMA).
Referido processo de licenciamento ambiental foi instaurado em outubro
de 2012, mediante requerimento direto de Licença de Instalação (LI), sendo
apenas posteriormente convertido em requerimento de Licença Ambiental
Prévia (LP), que é a licença adequada para a fase preliminar do planejamento
do empreendimento, aprovando sua localização e concepção, atestando sua
viabilidade ambiental e estabelecendo os requisitos básicos e condicionantes
a serem atendidos nas próximas fases de sua implementação, nos termos da
Resolução CONAMA nº 237/97.
Pela previsão contida no art. 28 da Lei Municipal nº 2.022/2006, o
executivo municipal somente pode expedir alvará de localização e licença de
construção e de funcionamento, ou quaisquer outras licenças solicitadas por
atividades potencial ou efetivamente poluidoras, mediante apresentação das
licenças ambientais. Essa disposição, ao que parece, não foi observada no
caso em tela, uma vez que o Alvará de Licença para construção do
empreendimento foi concedida ao interessado quase dois anos antes da
emissão da LP.
Pelo histórico de análise registrado no processo de licenciamento
ambiental, até a concessão da LP, também não se verifica muita importância à
efetiva avaliação dos impactos ambientais relacionados à instalação do
Shopping Center, muito embora o mesmo pretenda ocupar área central do
município de Duque de Caxias, onde já são observados graves problemas de
mobilidade urbana, abastecimento de água e grande fluxo populacional.
A dificuldade relatada pelo FORAS para ter acesso ao conteúdo do
processo de licenciamento ambiental do empreendimento e a outros
documentos que, a rigor, deveriam ser de acesso público, como o EIV, por
exemplo, bem como a não realização/convocação de audiência pública pelo
ente municipal licenciador, igualmente sinalizam deficiências no cumprimento
da legislação, agora quanto à participação da comunidade na discussão e
análise do projeto de instalação do empreendimento em questão.
Importante notar que a própria Secretaria Municipal de Meio Ambiente,
em parecer elaborado por sua equipe técnica em março de 2013, aponta
diversos impactos do empreendimento que deveriam ser considerados na
análise de sua viabilidade socioambiental. Nesse parecer, por exemplo, há
registro de realização de vistoria onde foi constatada grande extensão ocupada
por vegetação bastante densa e característica de sucessão média ou média
avançada, o que demandaria a realização de vistoria confirmatória conjunta
com o INEA, que não ocorreu até aqui.
Foi também observado no parecer que os danos ambientais relacionados à
implantação do empreendimento podem vir a ser de média magnitude regional,
tendo em vista que a supressão de vegetação interfere no microclima da região
e o volume de resíduos a serem gerados pelo corte do terreno. A equipe
técnica do órgão municipal destacou ainda o impacto viário na região a ser
causado pela movimentação do solo, com previsão de constantes
congestionamentos, sendo registrado que, após a conclusão do
empreendimento, o impacto será causado pelo aumento de veículos.
Também vale mencionar a preocupação registrada no parecer em relação à
drenagem pluvial e ao esgotamento sanitário da região do empreendimento,
sendo destacado que a rede existente não suportará a vazão da água de chuva
relacionada à área de impermeabilização, o que demandará um “forte
investimento na área do Centro”, para macrodrenagem e até mesmo inclusão
de caixa de retardo no projeto do Shopping; etc.
Em relação à área de grande extensão ocupada por vegetação (também
citada no parecer), reside nesse aspecto uma das principais deficiências
observadas quanto à avaliação dos impactos ambientais do projeto em
questão. Isso porque a referida cobertura vegetal, que configurava um espaço
de área verde sem similar no centro do município de Duque de Caxias, já foi
suprimida pelo empreendedor durante o período da Copa do Mundo de 2014,
de forma ilegal e praticamente clandestina.
Pode-se de dizer que a supressão dessa vegetação se deu de forma ilegal e
ilegítima em razão dos diversos vícios verificados no processo onde foi
emitida a respectiva Autorização de Supressão de Vegetação. Dentre os vícios
verificados, destacamos os seguintes: 1) a data do parecer de supressão é
posterior à data de emissão da autorização; 2) o próprio órgão municipal
emitiu Auto de Notificação, determinando a suspensão da Autorização de
Supressão de Vegetação, embora posteriormente tenha voltado atrás nessa
decisão.
Alem disso, não consta no processo qualquer registro de que tenha sido
solicitada a anuência prévia do INEA (órgão ambiental estadual) para a
emissão da Autorização de Supressão. Tal anuência prévia se fazia necessária
no caso em razão de haver indícios da presença de resquício de Mata
Atlântica no local, segundo os levantamentos de dados realizados na área
antes da supressão. Nesse caso, a legislação vigente prevê que a supressão
somente pode ser autorizada pelo órgão municipal mediante anuência prévia
do INEA, fundamentada em parecer técnico, na forma do art. 5º, do Decreto
Estadual nº 42.050/2009, com a alteração trazida pelo Decreto Estadual nº
42.440/2010, e do art. 14 da Resolução CONEMA nº 42/2012.
Outro ponto que merece atenção é a diferença de diagnóstico entre o
primeiro Relatório Técnico de Inventário Florestal, apresentado em agosto
de 2012 pela empresa idealizadora do empreendimento, e o Censo Florístico
– Parecer Técnico, contratado pela mesma empresa, datado de agosto de
2013. Tais documentos possuem inconsistências em aspectos importantes para
a adequada caracterização e análise da relevância ambiental da área objeto do
pedido de supressão de vegetação, tais como o tamanho da área afetada (de
9.722m2 passa para 11.587,73m2), a quantidade de espécimes arbóreos (de
124 passa para 167), e a avaliação fitossanitária do material vegetal (no
Relatório esse aspecto foi classificado como “bom”, enquanto que no Censo
foi apontado que cerca de 26,3% dos exemplares foram classificados em
estado “ruim” ou “mortos”).
É importante destacar que o estado fitossanitário da vegetação foi um
ponto crucial para a conclusão final alcançada no parecer técnico que
embasou a emissão da Autorização de Supressão, de modo que a
inconsistência de diagnóstico anteriormente relatada, sem dúvida, pode ter
comprometido, também nesse aspecto, a avaliação realizada pelo órgão
ambiental municipal quanto aos impactos ambientais do empreendimento.

4 AS IRREGULARIDADES NOS PROCESSOS


ADMINISTRATIVOS DE LICENCIAMENTO: A NÃO
OBSERVÂNCIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL
A legislação em vigor não se contenta com a mera exigência de
apresentação do EIV, tal como já exposto, e de que este atenda ao conteúdo
mínimo por ela fixado. Uma vez satisfeitas essas exigências, há que se seguir o
devido processo de análise desse estudo / relatório, que, com base no art. 10
da Resolução CONAMA nº 237/1997, deve obedecer, no mínimo, às
seguintes etapas:
a. publicidade do EIV;
b. abertura de prazo para que qualquer interessado apresente objeções;
c. análise do EIV e das manifestações populares, por parte dos órgãos
municipais;
d. realização de vistorias técnicas, por parte dos órgãos municipais,
quando necessárias;
e. solicitação de esclarecimentos e complementações, por parte do
órgão licenciador;
f. atendimento da solicitação, por parte do empreendedor;
g. realização de audiência pública (ou, ao menos, abertura de prazo
para que os entes legalmente legitimados requeiram a sua realização),
na forma estabelecida na legislação;190
h. solicitação de esclarecimentos e complementações, por parte do
órgão licenciador, decorrentes da audiência pública;
i. emissão de parecer jurídico, por parte do órgão municipal
competente;
j. emissão de parecer técnico conclusivo;
k. apreciação do pedido de licença, deferindo-o ou não, de maneira
fundamentada;
l. publicidade da decisão administrativa e abertura de prazo para
recurso;
m. apreciação do recurso, caso tenha sido apresentado;
n. emissão das licenças.
Tais são as etapas a serem seguidas, sem falar em exigências específicas,
contidas na legislação municipal. É o caso, por exemplo, da Portaria SMMAA
nº 011, de 17/12/2012, cujo art. 2º, I, exige autorização do Conselho
Municipal de Defesa do Meio Ambiente (CONDEMA) para “supressão igual
ou superior a dez indivíduos arbóreos, dentro dos limites do 1º distrito”,
devendo, ainda, a compensação dessa supressão dar-se a uma distância de no
máximo 300 metros do local onde ocorreu a supressão.
É o caso, ainda, do Plano Diretor de Duque de Caxias, cujo art. 9º, acima
citado, acresce a exigência de oitiva do Conselho Municipal de
Desenvolvimento da Cidade de Duque de Caxias (CONCIDADE), que deve
ser notificado para manifestar a respeito da licença requerida, no âmbito do
processo administrativo, antes da tomada de decisão por parte do órgão
licenciador. Trata-se de providência inarredável, dados os termos do Plano
Diretor, o caráter cogente de suas normas, o seu status constitucional, bem
como a relevância constitucional dos princípios da transparência e da
participação popular, que regem toda a gestão da coisa pública e que
encontram nessa exigência uma das formas de sua satisfação.
Reforça-se a exigibilidade de tal etapa do licenciamento na medida em que
o Plano Diretor - art. 130, I - delegou poderes ao Prefeito para compor e
instalar o CONCIDADE por meio de Decreto, bem como assinou-lhe, para
tanto, um prazo de 90 dias, a contar da vigência do Plano, prazo já
ultrapassado há mais de sete anos, sem que tenha sido atendido, induzindo-se à
hipótese do não comprometimento do Poder Executivo municipal com a
implementação do Plano Diretor, repita-se, “o instrumento básico da política
de desenvolvimento e expansão urbana”, nos termos da carta republicana de
1988, e reiterada pela Constituição Estadual de 1989.
Em face da ausência desse Conselho, em virtude da injustificável mora do
Poder Executivo quanto à sua instalação, a única conclusão que se nos afigura
possível, diante dos fatos, é a da inviabilidade jurídica da concessão de
licença ambiental pelo município, ao menos na hipótese prefigurada no art. 9º
do Plano Diretor, que se aplica ao caso concreto sob exame, que, como já dito,
é a das operações de movimentação de terra - tais como aterro, desaterro e
“bota-fora” - para execução de obras públicas ou privadas. Nesse caso, a
competência para o licenciamento se deslocaria para o Estado do Rio de
Janeiro, em caráter supletivo, solução preconizada pelo art. 15, II da Lei
Complementar Federal nº 140/2011.
Aliás, este é outro ponto em que resta ferido o devido processo legal no
caso em questão, uma vez que, em nenhum momento, foram ouvidos os órgãos
ambientais dos demais entes federativos - Estado do Rio de Janeiro e União
Federal - que não têm competência originária para o licenciamento em
questão, podendo, no entanto, manifestarem-se no processo de maneira não
vinculante (art. 13, § 1º, da LC 140/2011), o que a doutrina majoritária tem
entendido como poder-dever do órgão licenciador competente, e não como
faculdade discricionária, dada a relevância do direito constitucional ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado e ao princípio da cooperação federativa.
Em síntese, constata-se, nos processos administrativos relacionados ao
caso,191 o não atendimento dos procedimentos acima elencados, incidindo em
grave violação da cláusula constitucional do devido processo legal, uma vez
que em todos se encontra patenteada a emissão de diversas licenças - de
construção, prévia, de supressão de vegetação, de escavação e terraplanagem
- antes da conclusão de todas as etapas inerentes e obrigatórias ao processo de
licenciamento.
Isto sem falar a outros problemas dessa mesma ordem, como o não acesso
público à integra dos processos em curso192, a não abertura de oportunidade
para que a coletividade possa se manifestar formalmente no âmbito dos
mesmos, além da inconsistência da numeração dos processos, que possuem
folhas faltantes e em duplicidade, como verificado a partir da documentação
entregue aos representantes do movimento FORAS.
4.1 Irregularidade na Regulamentação e no Recolhimento da Outorga
Onerosa do Direito de Construir
Outro aspecto do caso sob exame, que também consideramos atentatório à
cláusula do devido processo, diz respeito ao modo como foi aplicado o
instrumento da outorga onerosa do direito de construir.
Trata-se de instrumento previsto no Plano Diretor - artigos 79 a 81 - e
regulamentado pelo Decreto nº 6.200, de 30/05/2012. Desde logo, diga-se que
tal formato é incompatível com o disposto no Estatuto da Cidade, em especial
em seu art. 30, que exige que tal regulamentação - rectius, o regramento das
condições da outorga, definindo fórmula de cálculo, modos de pagamento,
casos de isenção e destinação dos recursos, o que, a rigor, excede o que
costuma se definir como o exercício do mero “poder regulamentar” - se dê
forçosamente mediante lei municipal específica. Assim, fica o Decreto
municipal nº 6.200/2012, a despeito de seu conteúdo, exposto a ser arguída a
sua ilegalidade, em face da lei nacional de desenvolvimento urbano.
Já no que tange ao conteúdo desse decreto, registre-se, apenas ad
argumentandum, a obscuridade da fórmula de cálculo adotada em seu art. 5º,
que não permite ao intérprete entender, com clareza, como se objetivam cada
um dos seus respectivos componentes, sem falar no fato de que a definição de
um deles fica delegada a ato da Secretaria Municipal de Obras, agravando
ainda mais o problema que antes assinalamos, relacionado à violação do
princípio da legalidade.
No entanto, no caso em questão, paradoxalmente, é um outro aspecto que
mais nos causa espécie. Conforme informações extraídas do processo
administrativo 17.113/2012, o empreendedor solicitou o licenciamento do
empreendimento em 14/05/2012 e, menos de um mês depois, em 06/06/2012,
foi assinado um termo de recolhimento da outorga onerosa, no valor de R$
3.100.000,00, termo esse redigido pela Procuradoria Municipal e assinado
pelo Prefeito.193 O valor da OODC foi recolhido aos cofres públicos e, em
23/08/2012, foi expedido o alvará de licença para construção.
Trata-se de situação, em nosso sentir, absolutamente inusitada, na qual a
outorga onerosa foi recolhida antes mesmo da regular tramitação e apreciação
dos competentes pedidos de licença urbanística e ambiental. Ora, em nossa
compreensão, a legislação determina que suceda precisamente o oposto: o
recolhimento da outorga onerosa pressupõe processo de licenciamento
concluído, com decisão favorável e condicionantes atendidos, do contrário
não há projeto viável a ser executado. Em não havendo projeto viável a ser
executado, nada justifica o recolhimento da contraprestação devida à
municipalidade pelo exercício da faculdade de edificar. Em outras palavras,
antes que se constitua juridicamente um direito de construir em favor do
empreendedor, resta indevido o pagamento de qualquer contraprestação a
administração a pretexto dessa mesma causa.
A outorga onerosa seria comparável, nesse sentido, à obrigação do
loteador em transferir ao município uma certa parcela da gleba objeto do
projeto de loteamento, o que deve fazer, do mesmo modo, a título de
contraprestação à coletividade, exigível em nome da qualidade de vida na
cidade e como captura parcial da valorização que decorre do aproveitamento
do terreno, tal como facultado pela legislação. Ora, o loteador somente perde
as áreas objeto de doação compulsória a partir do momento em que não
somente o projeto de loteamento é licenciado pelo município, mas, também,
levado a registro. Assim, não há hipótese do pagamento de qualquer
contraprestação antes da regular análise e aprovação do projeto de loteamento
e emissão de licença em favor do empreendedor.
Não há como suceder de modo diferente no caso da outorga onerosa.
Somente após a conclusão, com êxito, do licenciamento poderia o
empreendedor ser regularmente notificado a recolher a contraprestação
devida, sendo possível, aí sim, atribuir à sua eventual mora o efeito de
revogação automática da licença. Admitir a possibilidade de subversão dessa
ordem - como, concretamente, o fazem os artigos 2º e 3º, caput, do Dec.
6.200/12 - seria solução incompatível com a finalidade e a função do
licenciamento, no qual, como antes sustentamos, não há direito líquido e certo
em favor do empreendedor à obtenção da licença requerida, a não ser que
partamos de ultrapassadas noções de gestão da cidade em moldes privatistas,
nos quais o ente público não passa de mero “carimbador” dos projetos
privados de uso do espaço público urbano, como é o caso de seu espaço
aéreo. A legislação brasileira em vigor, sabiamente, vai em outra direção,
mandando, inclusive, aos órgãos licenciadores que considerem a chamada
“opção zero”, isto é, a hipótese de não execução do projeto para o qual se
requer a licença - vide art. 5º, I, da Resolução CONAMA nº 1, de 1986.
O recolhimento da outorga onerosa logo no início do licenciamento, como
sucede no caso em exame, não somente fragmenta a análise do projeto de
empreendimento, que se requer integrada sob os pontos de vista urbano e
ambiental, admitindo que ele esteja licenciado numa esfera e não na outra,
como também gera uma espécie de “fato consumado” a favor do
empreendedor, que já pagou ab initio aquilo que devia a título de
contraprestação, restando apenas no aguardo do mero cumprimento do ritual
burocrático de outorga das respectivas licenças ambientais.
As preocupações acima relatadas veem-se reforçadas à medida que se
percebe que o Decreto 6.200, ora questionado, foi editado poucos dias após o
requerimento de licença por parte da ABL, induzindo-se à crença de que foi
feito à vista especificamente do caso desse empreendimento, vulnerando-se o
crucial princípio da impessoalidade na gestão da coisa pública.
Em outras palavras, o procedimento institucionalizado pelo Dec. 6.200
sugere um processo de compra de licenças por parte do empreendedor ou, no
mínimo, de substituição concreta do licenciamento pelo recolhimento da
outorga onerosa, que acaba valendo como se fosse licença urbanística e
ambiental. Ocioso arrematar que isso atinge as próprias noções de moralidade
e de finalidade públicas, além de reafirmar o esvaziamento concreto do
processo de licenciamento em sua função de avaliação e decisão, à luz do
interesse público, a respeito de empreendimentos de impacto ambiental
significativo.

5 A JUDICIALIZAÇÃO DO CONFLITO EM TORNO DO


LICENCIAMENTO
Uma das estratégicas políticas de atuação do FORAS foi a de buscar levar
ao judiciário os questionamentos de ordem jurídica que tinha a respeito do
projeto em questão. Neste sentido, encontram-se em tramitação, na data da
conclusão do presente estudo, três processos que judicializam o conflito.
A primeira medida tomada foi representar junto ao Ministério Público
estadual, através do seu órgão de tutela coletiva, a fim de que se instaurasse
um Inquérito Civil. Essa representação noticiava a intenção de construção do
Shopping e as irregularidades de que se tinha conhecimento no processo de
licenciamento. Deu-se mais ênfase à falta de publicidade dos atos
administrativos, à concessão de uma licença e ao recolhimento de pagamento
relacionado ao exercício do direito de construir (“outorga onerosa do direito
de construir”, nos termos do Estatuto da Cidade) sem a apresentação dos
estudos urbanos e ambientais previstos em lei e à necessidade de proteção da
Escola Municipal Dr. Álvaro Alberto, edifício vizinho à futura construção, que
é prédio de interesse histórico e tem sobre si pedido de tombamento em
tramitação há algum tempo junto à Prefeitura de Duque de Caxias, porém,
ainda não apreciado.
Ainda sem notícias de real providência por parte do Parquet estadual,
ajuizou-se, através de uma associação integrante do FORAS, uma vez que este
não possui personalidade jurídica, uma Ação Cautelar Inominada, com pedido
de liminar, distribuída em 16/06/2014 para a 1ª Vara Cível de Duque de
Caxias,194 em desfavor do Município de Duque de Caxias e da empresa ABL
Shopping. A ação pede, em sede de antecipação de tutela, a suspensão da
eficácia da Licença de Constrição até a decisão do processo de tombamento
da Escola Municipal Dr. Álvaro Alberto e até que sejam apresentados o
Estudo de Impacto de Vizinhança, o Estudo de Impacto Ambiental e seus
respectivos Relatórios. No mérito, o pleito é pela anulação da Licença de
Construção. A ação aponta, como causa de pedir, os mesmos problemas
relatados na Representação. Intimado o Ministério Público Estadual, para
atuar no processo como fiscal da lei, este entendeu ser o caso de abrir um
Inquérito Civil Público para analisar melhor a existência das irregularidades
ventiladas no processo judicial. Quanto à Ação Cautelar, determinou o juízo
que o pedido liminar somente será apreciado quando da resposta de ambos os
réus e de nova promoção ministerial, o que ainda não ocorreu.
O alhures citado Inquérito Civil (nº MMPRJ 2013.00467420) discutiu
bastante o procedimento de concessão da licença e a validade dos estudos
prévios, sem, no entanto, chegar a qualquer conclusão. Importante citar que
este IC mistura uma investigação já feita sobre um outro projeto de shopping
que se pretende construir, diverso do empreendimento questionado pelo
FORAS e localizado em região completamente diversa do município de Duque
de Caxias, às margens da Rodovia Washington Luís.
Como mais um instrumento para tentar evitar o avanço das obras, o
FORAS, novamente através de uma das associações que o integram, impetrou
um Mandado de Segurança com pedido de liminar.195 A autoridade coautora
apontada foi o Secretário do Meio Ambiente, Agricultura e Abastecimento, e o
ato impugnado foi a supressão total de 167 (cento e sessenta e sete) árvores no
terreno onde se pretende construir o shopping, sendo algumas destas árvores,
espécies nativas da Mata Atlântica. A ilegalidade da supressão é latente e
transparece nos aspectos já elencados no capítulo anterior.
Assim, o mandamus distribuído no dia 07/11/2014 para a 6ª Vara Cível de
Duque de Caxias,196 objetiva, liminarmente, a suspensão das próximas etapas
de instalação do Shopping, pedido este a ser confirmado quando da
apreciação do mérito. O juízo limitou-se, em um primeiro momento, a requerer
comprovação dos requisites necessárias à concessão da gratuidade de justiça
e, uma vez atendida essa exigência, a remeter os autos ao Ministério Público,
sem se manifestar sobre a medida liminar requerida. O Parquet devolveu o
processo com uma manifestação que o juízo determinou que se atenda. No
entanto, como este despacho não foi ainda publicado, não se sabe o teor da
promoção ministerial.197
O processo (até aqui) mais eficaz, no sentido de ter permitido, ainda que
timidamente, alguma apreciação do mérito do conflito, talvez seja a Ação
Civil Pública proposta pelo Ministério Público Estadual através de seu órgão
de Tutela Coletiva.198 O objeto dessa Ação é a proteção da Escola Municipal
Dr. Álvaro Alberto. Advoga-se que esta, mesmo sem ser um bem tombado,
merece proteção. É que a Lei Orgânica duquecaxiense prevê, de maneira
inovadora, proteção integral aos bens de valor histórico, mesmo que não haja
processo de tombamento. Uma das medidas protetivas que então seria
automaticamente estabelecida consistiria, precisamente, na preservação do
entorno desse bem, num raio mínimo de 50m (cinquenta metros), o que
impediria, portanto, a construção de um grande edifício, que violaria o entorno
do bem tombado e a ambiência cultural aí concebida. Cabe ressaltar que um
dos grandes motivadores da propositura desta Ação foi a pressão popular
liderada pelo FORAS, que insistiu para que o órgão estatal, na qualidade de
fiscal da lei, se posicionasse diante deste conflito urbano. Uma vez marcada a
data para a primeira audiência de conciliação no âmbito desse processo,
envolvendo Ministério Público, ABL Shopping e o Município, o FORAS
diligenciou no sentido de que outro de seus integrantes demandasse o ingresso
no feito como terceiro interessado, habilitando-se assim a intervir no deslinde
da ação. No entanto, para surpresa de todos, antes mesmo da audiência de
conciliação, as partes se reuniram, sem a presença do FORAS ou de qualquer
representante da sociedade civil, e firmaram acordo com o propósito de
encerrar a lide. Tal acordo, feito na forma de um Termo de Ajustamento de
Conduta, prevê, em apertada síntese, que a ABL Caxias Empreendimentos e
Participações S.A.: (1) reparará qualquer dano que seja causado à Escola
durante a construção; (2) custeará as obras de manutenção, restauração e
conservação da Escola e; (3) submeterá ao Ministério Público o projeto de
engenharia do Shopping. Já o Município de Duque de Caxias se comprometeu
a não conceder qualquer nova licença – urbanística ou ambiental – que
acarrete impactos negativos à preservação da Escola. Tendo em vista a
Transação feita pelas partes, o processo foi retirado de pauta e o juízo
determinou que as partes se manifestassem acerca do pedido de ingresso no
feito do SEPE, estando os autos remetidos ao Parquet estadual. As petições
do FORAS questionando a validade do Termo de Ajustamento de Conduta, por
falta de oportunidade para que ele, e a sociedade civil em geral, se
pronunciasse sobre a Transação, antes de sua homologação, ainda não foram
juntadas aos autos.199

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A título de avaliação preliminar, os autores deste estudo entendem que o
caso sob exame é bastante ilustrativo das grandes dificuldades e obstáculos à
efetividade da política urbana traçada em sede constitucional, em que pese o
fato de estar em vigor há mais de um quarto de século.
Muito embora tenha sido “decantada em verso e prosa” por juristas,
juízes, autoridades governamentais, lideranças políticas, etc., os seus
resultados efetivos, no âmbito das políticas urbanas atualmente praticadas,
ainda se mostram significativamente limitados, no sentido da realização de
suas pautas fundamentais: o direito à cidade (amplamente compreendido), a
função social da propriedade e a gestão urbana em bases justas, democráticas,
transparentes, participativas e sustentáveis.
À luz do caso estudado, pode se afirmar que, no “frigir dos ovos” da
tomada de decisões, acabam falando mais alto interesses não condizentes com
os princípios e valores que vêm sendo consagrados no âmbito do “novo
direito urbanístico brasileiro”, emergente no período pós-88. Os apelos
relacionados ao desenvolvimento econômico, ao aumento de arrecadação, à
geração de empregos, mesmo quando de muito discutível factibilidade e
confiabilidade (como nos parece ser o caso!), acabam funcionando como
imperativos absolutos. Ganham muito mais força quando a eles se articulam os
símbolos de modernidade, progresso e “urbanidade” vendidos pelo mercado
capitalista contemporâneo. E aqui não chegamos sequer a falar dos aspectos
criminógenos que ainda envolvem a operação da administração pública, tais
como os benefícios ilícitos oferecidos aos gestores de todos os níveis, pelos
detentores do poder econômico interessados em grandes empreendimentos
privados. Não é de se descartar a possibilidade da atuação desse fator,
primeiramente, em função de sua generalização, e, em segundo lugar, em face
das suspeitas que emergem do cipoal de graves irregularidades encontradas no
caso estudado.
No dia-a-dia de muitas administrações públicas, ainda hoje, reproduz-se –
lamentavelmente! – a clássica relação autoritária entre Estado e sociedade,
agravada quando, do lado da sociedade, apresentam-se movimentos populares,
representativos de segmentos sociais subalternizados, com baixo capital
político e/ou econômico.
Reproduz-se, também, a violação sistemática da ordem jurídica, que se
mostra sem força suficiente para coibir os abusos de poder praticados pelos
encarregados da gestão da coisa pública. Tais violações – insistimos,
lamentavelmente! – não têm encontrado controle adequado por parte dos
órgãos encarregados de sua fiscalização e sanção, desde órgãos do chamado
“controle interno”, ou do poder legislativo (e órgãos de contas incumbidos de
lhes auxiliar), chegando até o próprio poder judiciário, passando pelo
Ministério Público. No caso aqui estudado, observa-se que, nem mesmo após
a instauração de diversas medidas judicias e/ou de apuração dos fatos, se pôs
cobro às inúmeras e graves irregularidades vislumbradas nos processos
administrativos em andamento, que constituem a face visível da legitimação
dos grandes empreendimentos, tais como aquele objeto do presente estudo. Ao
contrário de coibir as irregularidades aqui escaneadas, e de exigir as
respectivas responsabilidades, os aludidos órgãos parecem ratifica-las e
legitimá-las, desestimulando a população a resistir aos interesses que movem
o Estado e os agentes econômicos, de cuja articulação emerge um bloco
hegemônico que parece desconhecer qualquer tipo de limite. Mais do que
nunca, parecemos estar diante de evidências eloquentes do que há algum
tempo vem sendo estudado sob o conceito de estado de exceção (cf.
AGAMBEN, 2004).
Em que pese o cenário não muito alvissareiro vislumbrado pelo grupo de
pesquisa, há que se reconhecer o fundamental papel do movimento social de
resistência à implantação do empreendimento aqui debatido, o que nos suscita
uma tênue esperança de ver concretizadas ao menos algumas das promessas de
nossa constituição, outrora dita “cidadã”, nos idos da década de 1980. Não
fosse a oportuna “provocação” trazida ao grupo de pesquisa por esse
movimento, o presente artigo jamais teria sido possível, bem como todo o
trabalho de pesquisa perderia uma oportunidade ímpar de vislumbrar os
problemas, limites e contradições tanto da ordem jurídica quanto do aparelho
do Estado, o que alguns designam como “mundo institucional”. Ao longo das
atividades realizadas em parceria com o movimento FORAS, pudemos
testemunhar o crucial papel pedagógico que este vem exercendo no município
duquecaxiense – e, hoje, até mesmo fora dele! – servindo como canal para
fazer despertar na população a percepção tanto da gravidade da questão
urbana contemporânea, quanto dos direitos urbanos – e humanos! – que vem
sendo violados.
Assim, se algum papel a universidade pública tenciona desempenhar no
sentido da realização do projeto constitucional, ao menos naquilo que ele
tenha de efetivamente democrático e de justiça socioespacial, não nos resta
dúvida de que o seu caminho é o de estreitar os seus laços com movimentos
dessa natureza, desenvolvendo e repensando, a partir de uma interlocução
renovadora com esses agentes sociais, os seus projetos de ensino, pesquisa e
extensão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Estatuto da Cidade - Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001 -
regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes
gerais da política urbana e dá outras providências.
BRASIL. Resolução CONAMA nº 01, de 23 de janeiro de 1986.
BRASIL. Resolução CONAMA nº 06, de 24 de janeiro de 1986.
BRASIL. Resolução CONAMA nº 09, de 03 de dezembro de 1987.
BRASIL. Resolução CONAMA nº 237, de 19 de dezembro de 1997.
ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Decreto Estadual nº 42.050, de 25 de
setembro de 2009 – disciplina o procedimento de descentralização do
licenciamento ambiental mediante a celebração de convênios com os
municípios do estado do Rio de Janeiro, e dá outras providências.
ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Decreto Estadual nº 42.159, de 02 de
dezembro de 2009 - dispõe sobre o Sistema de Licenciamento Ambiental -
SLAM e dá outras providências.
ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Decreto Estadual nº 42.440, de 30 de abril
de 2010 – altera o Decreto Estadual nº 42.050, de 25 de setembro de 2009.
ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Resolução CONEMA Nº 42, de 17 de
agosto de 2012 - dispõe sobre as atividades que causam ou possam causar
impacto ambiental local, fixa normas gerais de cooperação federativa nas
ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum
relativas à proteção das paisagens naturais notáveis, à proteção do meio
ambiente e ao combate à poluição em qualquer de suas formas, conforme
previsto na Lei Complementar nº 140/2011, e dá outras providências.
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro,
11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro, 18ª ed. São
Paulo: Malheiros, 2010.
MARTINS, Jorge. Estudo preliminar de Impactos de Vizinhança de projeto
de complexo multiatividades da ABL Shopping Empreendimentos e
Participações S.A. para Duque de Caxias/RJ. Rio de Janeiro, UFRJ, 2014.
MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente: a gestão ambiental em foco, 7ª ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
MUNICÍPIO DE DUQUE DE CAXIAS. Decreto Municipal nº 5.204, de 17 de
agosto de 2007 – regulamenta a Lei Municipal nº 2022, de 30 de dezembro de
2006.
MUNICÍPIO DE DUQUE DE CAXIAS. Lei Municipal nº 1618, de 28 de
dezembro de 2001 - cria o código de usos, funções e posturas urbanas do
Município de Duque de Caxias, e dá outras providências.
MUNICÍPIO DE DUQUE DE CAXIAS. Lei Municipal nº 2022, de 30 de
dezembro de 2006 - dispõe sobre a política municipal de proteção,
conservação e melhoria do meio ambiente, seus fins e mecanismo de
formulação e aplicação, e dá outras providências.
RIBEIRO, Marcelo G. Parecer da pesquisa mercadológica sobre estudo de
viabilidade mercadológica: Shopping Duque de Caxias. Rio de Janeiro,
UFRJ, 2014.
ROCCO, Rogério. Estudo de impacto de vizinhança. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2009.
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, 3ª ed.
São Paulo: Saraiva, 1998.

185 Professor Adjunto do IPPUR/UFRJ.


186 Professor Adjunto da UFRJ e pesquisador-líder do laboratório Mobile-LAB.
187 Responsável por um dos estudos de impacto viário submetidos à Prefeitura de Duque de Caxias, no
âmbito do processo de licenciamento do estabelecimento.
188 Secretaria Municipal de Planejamento, Habitação e Urbanismo, Processo administrativo nº
018.363/13, fls. 10, certidão nº 650/2013, expedida a requerimento de Júlio Cesar Vieira França.
189 Conforme Secretaria Municipal de Planejamento, Habitação e Urbanismo, Processo administrativo nº
35.803/2012, p. 107 e 108, alvará de licença nº 126, solicitado por Luis Carlos Jorge Romeiro.
190 Com relação à exigibilidade de audiência pública no caso concreto em questão, não há como deixar de
levar em consideração, na esfera tanto jurídica quanto de gestão pública, o fato da coleta de quase 6.000
assinaturas de moradores de Duque de Caxias, que se declararam contrários ao empreendimento em
questão, comprovadas em juízo e junto ao MP/RJ pelo movimento FORAS. Trata-se de fato determinante
da realização de audiência pública por iniciativa do próprio município, independente de qualquer solicitação
expressa, uma vez que incontestável que não se trata de projeto consensual entre a população a ser
impactada por ele, sem falar no caráter pedagógico, informativo e preventivo de futuros conflitos que a
referida audiência pode desempenhar.
191 O já citado processo 35.803/2012, além daqueles de nº 35.802/2012 e 39.393/2012.
192 Nos documentos repassados ao movimento FORAS faltam várias páginas dos processos em curso.
193 Abstrairemos, aqui, da complementação de valores que ocorreu a posteriori, por irrelevante para o
argumento ora desenvolvido.
194 Processo nº 0034147-96.2014.8.19.0021, que pode ser acompanhado
através do link:
http://www4.tjrj.jus.br/consultaProcessoWebV2/consultaMov.do?
v=2&numProcesso=2014.021.033071-5&acessoIP=internet&tipoUsuario=.
195 O acompanhamento do processo pode ser feito através do link:
http://www4.tjrj.jus.br/consultaProcessoWebV2/consultaProc.do?
v=2&FLAGNOME=&back=1&tipoConsulta=publica&numProcesso=2014.021.066569-
5
196 Processado sob o nº. 0068441-77.2014.8.19.0021.
197 Dado atualizado em 15/12/2014.
198 Esta ação corre sob o nº 0061989-51.2014.8.19.0021, perante a 7ª Vara Cível de Duque de Caxias.
199 Dado atualizado em 15/12/2014.
PARTE 3 - DIÁLOGOS CONSTITUCIONAIS COM O
JUDICIÁRIO
A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL EM 2014: SUPREMACIA JUDICIAL,
SUPREMACIA LEGISLATIVA E DIÁLOGOS
CONSTITUCIONAIS200 201
THE DECISIONS OF SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL IN
2014: JUDICIAL SUPREMACY, LEGISLATIVE SUPREMACY
AND CONSTITUCIONAL DIALOGUES

José Ribas Vieira202


Margarida Lacombe Camargo203
Siddharta Legale204
Alexandre de Lucca205
Fatima Amaral206
Julia Cani207

RESUMO
Foram analisados os casos julgados pelo STF em 2014 relacionados ao direito constitucional, procurando
entender o desempenho institucional da Corte a partir de três categorias: supremacia legislativa,
supremacia judicial e diálogos institucionais,208. A seleção de julgados e atuações representativos do
período teve com a finalidade de elaborar uma retrospectiva dos principais casos, de forma
exemplificativa, da atuação da Corte, como, por ex., as audiências públicas como práticas dialógicas. Essa
retrospectiva foi pautada por um plano prático, que se guiou pela descrição e sistematização de
determinadas atuações e decisões do STF e, um plano teórico, em que se optou por não aprofundar o
vinculo de cada um desses elementos e categorias, de modo a permitir que sobressaíssem os atos e
decisões do STF em relação à discussão teórica sobre as supremacias judicial, legislativa e os diálogos
institucionais. Deve ser destacado que, dos casos, selecionados, ficou a sensação de que houve mais
ativismo e supremacia judicial do que deferência ao Legislativo ou de que diálogo institucional.

PALAVRAS-CHAVE
Supremacia legislativa; supremacia judicial; diálogos constitucionais.

ABSTRACT
This research broaches the cases tried by the Brazilian Federal Supreme Court, seeking to understand the
institutional performance of the Court from three categories: supremacy legislative, judicial supremacy and
institutional dialogues. The selection of representative precedents of the period, in order to prepare a
retrospective in a exemplificative way of the judgments and acts of the Court in 2014, like, for example,
the public hearings as dialogic practices. This retrospective has been guided by a practical plan, which was
guided by the description and systematization of certain actions and decisions of the Supreme Court, and a
theoretical plan, in which it chose not to deepen the bond of each of these elements and categories in order
to allow the acts and the Supreme Court decisions in spotlight. It should be noted that among the selected
trial remains the feeling is of more activism and judicial supremacy than deference to the legislature or
than the institutional dialogue.

KEYWORDS
Legislative supremacy; judicial supremacy; constitutional dialogues.

INTRODUÇÃO
O ano de 2014 não foi nada fácil para os Ministros do Supremo Tribunal
Federal. Ao se examinar a atuação da Corte Constitucional, percebe-se que
questões de elevada relevância para o país foram debatidas e decididas sobre
a efetivação da Constituição de 1988. Em um esforço para compreender e
arrumar de forma didática a atuação do Tribunal no período, o Observatório
de Justiça Brasileira da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), que vem acompanhando e discutindo os casos em reuniões
ao longo do ano, procurou entender o desenho e desempenho institucional do
STF a partir de três categorias de discurso: supremacia legislativa,
supremacia judicial e diálogos institucionais, que tomaremos em uma acepção
geral209. Selecionamos algumas decisões representativas do período para o
direito constitucional. Não se fez um levantamento exaustivo, e sim
exemplificativo.
Na primeira categoria, em linhas bastante gerais, enquadram-se decisões
onde estão presentes argumentos que se inclinam em favor do Parlamento e
contra a atuação dos juízes em determinados campos por se reputar que o
parlamento possui a representatividade do processo eleitoral extraída da regra
da maioria, enquanto a Corte não, razão pela qual essa deve operar com maior
deferência à separação dos poderes210. Constata-se a existência de poucas
decisões do STF. A exceção fica, como veremos, com as decisões que
reconheceram a constitucionalidade da Legislação que buscou preparar o país
para os megaeventos ocorridos em 2014, como a Lei da Copa e a Jornada
Mundial da Juventude.
No segundo eixo, selecionamos três decisões representativas do período,
nas quais a inclinação em favor das Cortes em detrimento do Parlamento
estava presente211. A primeira é, em que pese a variedade de argumentos e
votos, a complexa Reclamação 4335, em que se discutiu o instituto da
extensão de efeitos pelo Senado Federal das decisões do controle difuso, nos
termos do art. 52, X da Constituição. O segundo trata da súmula vinculante 33
editada em abril pelo tribunal, dispondo sobre a aposentadoria especial dos
servidores públicos. O último caso selecionado tratou da definição do número
de parlamentares por estado e se seria possível delegar esse cálculo ao TSE
ou se isso competiria ao Legislativo. Nas três hipóteses, verificam-se
elementos de um discurso de supremacia judicial em termos substantivos ou
procedimentais.
O terceiro e último eixo observa elementos de uma cultura de diálogos
institucionais no STF na qual a preocupação não é tanto quem tem a última
palavra em matéria de jurisdição constitucionais e sim as rodadas
deliberativas como forma de obter mais informações e decidir melhor por
meio de um processo de deliberação interinstitucional212. Foram destacadas
especialmente as audiências públicas realizadas em 2014, no caso a sobre
aquela direitos autorais e diferença de classe no SUS, bem como a votação de
um caso que veio antecedido por uma audiência pública, qual seja, a
deliberação sobre o modelo de financiamento de campanha brasileiro,
julgamento que ainda não foi concluído em razão do pedido de vista do Min.
Gilmar Mendes. No entanto, nem só de audiência pública vive o diálogo
institucional e social do STF: também no caso referente à aplicação da súmula
vinculante 26 observa-se tal postura.

1 A SUPREMACIA LEGISLATIVA NA JURISPRUDÊNCIA


DO STF
Em relação a casos em que o STF se posicionou de forma deferente ao
legislativo é possível citar dois exemplos. O primeiro a súmula vinculante 37,
que cuida da revisão geral anual dos servidores. O segundo refere-se às
ADIns para os contra a legislação dos megaeventos realizados em 2014.
A Súmula vinculante n. 37213 possui como antecessora direta a Súmula 339
do STF, aprovada em 1963, que possui o mesmo teor. O objetivo com a nova
súmula, portanto, foi o de reafirmar a jurisprudência e conferir efeito
vinculante em relação aos demais membros do Poder Judiciário e da
Administração214. Fundada no o art.37, X, da CF/88, que trata da revisão geral
anual, a jurisprudência vem afirmando o descabimento da equiparação
isonômica entre servidores devido à necessidade de lei para tratar do tema.
Nessa linha, chegou-se a vedar a equiparação salarial entre delegados de
carreira e delegados bacharéis em direito215 ou, ainda, a impossibilidade de
aplicar aos motoristas a gratificação de gestão de sistemas deferida aos
servidores da Secretaria Municipal de Administração do Rio de Janeiro216.
Com objetivo de se preparar o país para realizações de eventos de grande
porte, como a Copa das Confederações de 2013, a Jornada Mundial da
Juventude, e a Copa do Mundo FIFA de 2014, foi aprovada a Lei nº 12.663 de
2012. Trata-se de uma opção política que mobilizou o país, especialmente
durante o ano de 2014. Duas foram as principais impugnações contra a
referida lei pelas ADIns 4976 e 5136.
Na primeira, o Procurador-Geral da República ajuizou a ADI contra a Lei
da Copa, alegando a inconstitucionalidade dos seguintes dispositivos: o art. 23
da Lei (responsabilidade civil da União perante a FIFA), os art. 37 a 47 da lei
(concessão de prêmio e auxílio mensal aos jogadores das seleções campeãs) e
o art. 53 (isenção à FIFA de custas e despesas processuais, nas causas que
tramitarem nas “Justiças” mantidas pela União, salvo má-fé). Em sessão
plenária, o STF apreciou a ADI 4976217 decidindo que a lei é constitucional
pelos motivos apresentados a seguir. Note-se, porém, que houve deferência à
opção política majoritária num cenário de supremacia legislativa, como
veremos.
O art. 23 da Lei da Copa impôs à União a responsabilidade objetiva sob a
modalidade do risco integral, determinando que a União assuma a
responsabilidade civil por todo e qualquer dano resultante ou que tenha
surgido em função de qualquer incidente ou acidente de segurança relacionado
aos Eventos, exceto se e na medida em que a FIFA ou a vítima houver
concorrido para a ocorrência do dano.
O STF entendeu que o referido art. 23 não se amolda à “teoria do risco
integral”, pois a parte final do dispositivo há exclusão expressa da
responsabilidade civil caso a FIFA ou a vítima tenham concorrido para a
ocorrência do dano, inexistindo incompatibilidade com o art. 37, §6º da
Constituição de 1988. A lei apenas teria instituído uma garantia adicional,
adotando aqui uma “teoria do risco social”, uma vez que se trata de risco
extraordinário assumido pelo Estado, mediante lei, em face de eventos
imprevisíveis, em favor da sociedade como um todo. Além disso, ainda que
fosse caso de risco integral, a Constituição não teria vedado a instituição deste
tipo de responsabilidade, que seria adotado em diversos dispositivos seus.
Em relação ao art. 37 e 47, relativo ao prêmio dos ex-jogadores, a ADI
contestou esse fato considerando que não seria justificativa suficiente para
autorizar o pagamento, a custa do erário, de valores em benefício dessas
pessoas. Esse auxílio especial mensal violaria o art. 195, § 5º da CF/88
porque não houve indicação da fonte de custeio total dos benefícios. O STF,
contudo, julgou improcedente o pedido. O auxílio mensal especial criado pela
lei não viola o referido artigo da Constituição porque esse auxílio especial
mensal não faz parte do rol de benefícios previdenciários e serviços
regularmente mantidos e prestados pelo sistema de seguridade social. O STF
entendeu que se trata de mera benesse assistencial criada por legislação
especial.
Segundo a maioria da corte, ainda nesse ponto, não houve ofensa ao
princípio da isonomia, porque Constituição não proíbe o tratamento
privilegiado, mas sim a concessão de privilégios injustificáveis. Esses
privilégios não seriam justificados já que o art. 217, IV, da CF/88 impõe ao
Poder Público, como valor a ser necessariamente observado, a proteção e o
incentivo às manifestações desportivas de criação nacional. O futebol, ainda
que não tenha origem brasileira, estaria integrado à cultura nacional e, nessa
linha, deveria ser protegido e promovido.
Por fim, em relação à isenção das custas processuais, a Corte entendeu que
não haveria violação da isonomia tributária (art. 150, II, da CF/88). Essa
isenção não deveria ser tratada como privilégio, mas como medida necessária
à realização da Copa, evento desejável por trazer benefícios sociais e
econômicos ao país. Seria, portanto, um incentivo fiscal concedido pelo
Estado soberano para o incremento de uma determinada atividade segundo a
conveniência pública.
Outro caso relacionado à lei da Copa vincula-se ao julgamento da ADI
5136/DF218, que questionava o § 1º do art. 28 da Lei, que impunha restrições à
liberdade de expressão nos Locais Oficiais de Competição. O Plenário, por
maioria, julgou improcedente o pedido. A corte entendeu que a liberdade de
expressão não é um direito absoluto e que pode sofrer restrições. Sempre que
esse direito colidir com outros direitos constitucionalmente protegidos seria
necessária a aplicação da proporcionalidade. O art. 28 trouxe limitações
específicas aos torcedores que iriam comparecer aos estádios no evento e tais
restrições tinham como finalidade ajudar a prevenir confrontos em potencial.
Assim, o legislador, a partir de um juízo de ponderação, teve como objetivo
limitar manifestações que poderiam gerar maiores conflitos e, com isso,
poderiam colocar em risco não apenas o evento em si, mas, principalmente, a
segurança dos demais participantes.
Por fim, vale dizer que dificilmente entre outros cenários que não os dos
megaeventos, haveria tamanha deferência do Supremo Tribunal Federal, que
tem se pautado por uma postura ativista em geral e que, especialmente na
última hipótese de restrições à liberdade de expressão, chegou a declarar na
ADPF 130 que não foi recepcionada toda a lei de imprensa, sob o argumento
de que a liberdade de expressão é absoluta. É verdade que essa afirmação foi
flexibilizada na Reclamação 9428, mas, ainda assim, o contraste entre outras
decisões do STF com a decisão tomada na Lei da Copa deixa evidente a
diferença de posicionamento.

2 A SUPREMACIA JUDICIAL NA JURISPRUDÊNCIA DO


STF DE 2014
Selecionamos dentre os principais julgamentos do Supremo Tribunal
Federal de 2014 quatro casos representativos de uma postura institucional que,
em linhas gerais, pode ser associada ao que se chama de supremacia judicial,
especialmente frente ao legislativo. O primeiro caso é a reclamação 4335 que
trata da proposta de mutação do art. 52, X da Constituição de 1988. O segundo
caso envolve a edição da súmula vinculante 33, relativa a aposentadoria
especial. O terceiro caso diz respeito à impossibilidade de delegação à justiça
eleitoral do cálculo para fixar o número de candidatos. O quarto caso envolve
a aprovação da Súmula vinculante 36, que trata da competência da justiça
federal para julgar civis que falsificarem certos documentos expedidos, por
exemplo, pela Marinha.
A Rcl. 4335 é um dos casos do STF mais importantes do controle difuso de
constitucionalidade sob a vigência da Constituição de 1988. Foi ajuizada em
19 de abril de 2006 pela Defensoria Pública da União (DPU) contra decisão
do Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco,
Acre/AC, que indeferiu pedido de progressão de regime formulado em favor
de condenados pela prática de crimes hediondos a penas de reclusão a serem
cumpridas, segundo a decisão reclamada, em regime integralmente fechado. A
DPU considerou que a redação original do art. 2º, § 1º, da Lei 8.072/1990,
teria ofendido a autoridade da decisão do Plenário STF que, ao julgar o HC
82.959/SP219, reconheceu, por maioria de votos, a inconstitucionalidade do
referido preceito normativo.
Note-se que a questão principal versa sobre a possibilidade de invocar em
sede de reclamação o descumprimento dos efeitos de uma decisão, proferida
no controle difuso do Supremo Tribunal Federal em um habeas corpus, que
considerou inconstitucional a impossibilidade imposta por lei de progressão
de regime dos crimes hediondos por violação ao princípio constitucional da
individualização da pena. Não se pretende discutir aqui os fundamentos para o
(in)deferimento do habeas corpus ou os detalhes sobre as modificações na
legislação penal a respeito.
A questão central, portanto, diz respeito a se o HC decidido pelo STF –
repita-se que se trata de uma decisão do controle difuso- teria ou não efeitos
erga omnes e vinculantes, que, no Brasil, são típicos apenas do controle
abstrato de constitucionalidade. Portanto, dessa suposta ou possível mutação
resulta a dúvida, se cabe a reclamação por descumprimento de decisão
proferida no controle difuso, bem como se o art. 52, X da Constituição de
1988, que trata da necessidade de remeter ao Senado para suspender a
eficácia da lei, tem efeito de mera comunicação, razão pela qual a
comunicação teria o condão apenas de conferir publicidade a uma decisão que
já vincularia ou, ao contrário, se o dispositivo permanece válido e necessário,
não sendo possível conferir efeitos erga omnes à decisão proferida no
controle difuso.
Três correntes formaram-se no Supremo Tribunal Federal a propósito da
mutação do controle difuso de constitucionalidade e do art. 52, X: (i) ocorreu
a mutação do art. 52, X para conferir a remessa ao Senado o efeito de mera
comunicação e as decisões no controle difuso passariam a ter efeito
vinculante; (ii) manutenção do art. 52, X pela impossibilidade de mutação,
diante da literalidade do dispositivo; e (iii) irrelevância da questão da
mutação, diante a edição posterior da súmula vinculante 26 que possui efeitos
vinculantes, o que torna a reclamação cabível.
A primeira, integrada inicialmente pelos Ministros Gilmar Mendes220 e
Eros Grau221, que julgavam procedente à reclamação, sob os fundamentos de
que o art. 52, X sofreu uma mutação constitucional, passando a ter o caráter de
mera comunicação ao Senado para suspensão dos efeitos. Em outras palavras,
a decisão em sede de controle difuso e incidental passaria a possuir desde
logo eficácia vinculante e erga omnes num processo informal de mudança da
constituição que passa a valorizar os precedentes222.
A segunda corrente, integrada pelo Min. Sepúlveda Pertence223, pelo Min.
Joaquim Barbosa224, pelo Min. Marco Aurélio, pelo Min. Ricardo
Lewandowski, que nega provimento à reclamação, embora concedam o habeas
corpus de ofício. Entendem que a mutação para ocorrer dependeria de um
maior decurso do tempo. Após a EC 45/2004, enfatizam, ainda, que para
conferir efeitos vinculantes a uma decisão do controle difuso o STF pode
lançar mão da súmula vinculante, que possui requisitos próprios, como se
tratar de uma controvérsia atual, decisões reiteradas na matéria e a aprovação
do texto por dois terços dos ministros. Em outras palavras, conferir efeitos
erga omnes ao controle difuso, pura e simplesmente, constituiria uma burla ou
by-pass às regras instituídas para edição das súmulas vinculantes. O Min.
Marco Aurélio chama atenção, ainda, para o fato de que a reclamação foi
proposta antes da edição da Súmula Vinculante 26225, o que inviabilizaria o
seu provimento. Ainda assim, ambos os ministros deferiram o habeas corpus
de ofício.
A terceira e última corrente, que prevaleceu no STF, foi composta pelos
Ministros Teori Zavascki, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Celso de Mello,
que dão provimento à reclamação com base na Súmula Vinculante n. 26.
Embora não adotem a tese da mutação do art. 52,X, proposta pelo Min.
Gilmar, a corrente parece simpática à tese ventilada em outros termos. Os
ministros consideram, porém, as modificações legislativas e jurisprudenciais
que levaram a uma eficácia expansiva dos precedentes insuficientes para
conferir efeito vinculante às decisões do controle difuso por ausência de
previsão constitucional ou legal expressa. A eventual mutação do art. 52, X
encontra limites expressos na literalidade da redação do texto constitucional.
O caso é complexo e revela alguns elementos de supremacia judicial. Em
primeiro lugar, seja a argumentação do ministro Gilmar e Eros Grau da
mutação constitucional e da abstrativização do controle difuso, seja a
argumentação de um efeito expansivo dos precedentes do Min. Teori Zavascki,
valorizam o processo de construção jurisprudencial do Direito. Em segundo
lugar, mesmo não tendo passado a proposta da abstrativização, a linha de
argumentação predominante fixou com naturalidade a existência de um efeito
expansivo dos precedentes do controle difuso. Por fim, chegou-se a ventilar a
possibilidade de um apelo ao legislador para reivindicar que a abstrativização
se desse por obra do legislador, como proposto pelo Min. Luís Roberto
Barroso. Em todos os votos, é possível encontrar em maior ou menor grau
certos elementos de um discurso de supremacia judicial.
O segundo caso selecionado como representativo do ano de 2014 do STF
envolve a edição da Súmula vinculante 33, publicada em 24 de abril, com a
seguinte redação: “Aplicam-se ao servidor público, no que couber, as regras
do regime geral de previdência social sobre aposentadoria especial de que
trata o artigo 40, § 4º, inciso III da Constituição Federal, até a edição de lei
complementar específica.”
Tal Súmula decorre de um ativismo procedimental226 adotado pelo
Supremo Tribunal Federal, conferindo, na ausência de lei específica,
efetividade a direitos constitucionais por meio de mandados de injunção.
Inicialmente, o Tribunal, de forma conservadora, limitava-se a reconhecer a
omissão legislativa e comunicá-la ao Poder Legislativo (MI 107-3 – DF).
Posteriormente, percebe-se uma guinada no modo de compreender o mandado
de injunção nos casos envolvendo greve do servidor público que adotou uma
solução normativa concretizadora do art. 37, VII, consagrada nos MIs nºs 670-
9/ES, 712-8/PA e 708-0/DF227.
No caso em questão, também houve uma série de decisões reiteradas do
Tribunal, relativas à possibilidade de aposentadoria especial de servidores
públicos, nas hipóteses do art. 40 § 4º da Constituição Federal. O acórdão
indicado pelo próprio site do STF como “Precedente Representativo”, foi o
MI 795228, que, mesmo diante da ausência de Lei federal específica para a
aposentadoria especial dos servidores públicos, determinou a aplicação do
disposto no Regime Geral da Previdência Social, especialmente o art. 57 da
Lei 8.213/91, deferindo a aposentadoria especial para um servidor público
que atuava como investigador da polícia civil.
Exemplificativamente, a analogia com o regramento do setor privado foi
aplicado caso a caso a outros servidores públicos também nos Mandados de
Injunção nºs 721-7/DF, que envolvia uma auxiliar de enfermagem do
Ministério da Saúde lotada na Fundação Sarah Kubitschek em Belo Horizonte,
e o MI 788-8/DF, que envolvia uma escrivã da polícia civil de São Paulo.
Como as três atividades de investigador, enfermeira e escrivã foram
consideradas insalubres, justificou-se a concessão da aposentadoria especial
suprindo a omissão inconstitucional decorrente da inexistência da lei para
regulamentar o art. 40, §4º a cada um desses servidores no seu respectivo
mandado de injunção.
Em outras palavras, o Tribunal adotou uma solução normativa
concretizadora individual, que só foi generalizada para todos os demais
servidores em situação análoga, mediante a aprovação da referida súmula
vinculante.
O terceiro caso que demonstra a presença de um discurso de supremacia
judicial envolve o julgamento conjunto da ADC 33 e das ADIns 4.947/DF, da
ADI 5.020/DF, da ADI 5.028/DF e da ADI 5.130, ADI 4963 e 4965, que
impugnaram a possibilidade de delegação a TSE do cálculo do número de
deputados estaduais em contraste com a população por Estado a partir do art.
45, §1º da Constituição de 1988. O ponto central da controvérsia diz respeito,
em linhas gerais, a possibilidade o TSE pode dispor mediante resolução sobre
o tema e se tal resolução respeitaria os parâmetros da LC 78/93; ou, por outro
lado, se o tema pressupõe regramento específico pelo Legislativo e tal
delegação violaria o princípio democrático e separação de poderes.229
Adiante-se que prevaleceu o segundo entendimento, mas vejamos os
dispositivos constitucionais e os diferentes posicionamento dos ministros do
STF a respeito para tornar a questão mais clara.
O § 1º do art. 45 da Constituição de 1988 prevê que o número total de
Deputados, assim como a representação por Estado e pelo Distrito Federal,
deveria ser estabelecido por lei complementar, proporcionalmente à
população. Em 1993, foi editada a LC 78/93, que disciplina a fixação do
número de Deputados, cujo art. 1º determina que, em cada ano anterior às
eleições, o IBGE deverá fornecer ao TSE a atualização estatística
demográfica das unidades da Federação. Com base nesses dados, o TSE faz o
cálculo da quantidade de Deputados Federais por Estado/DF e encaminha para
os TRE’s e para os partidos políticos o número de vagas a serem disputadas.
Em 2013, com base no art. 1º da LC 78/93, o TSE editou a Resolução
23.389 alterando o número de vagas de Deputado Federal de cada Estado/DF
e, consequentemente, o número de vagas de Deputados Estaduais a serem
disputadas nas eleições de 2014. O Congresso Nacional, argumentando que o
TSE exorbitou do seu poder regulamentar e invadiu , publicou o Decreto
Legislativo 424/2013 sustando os efeitos da Resolução TSE 23.389/2013.
Além disso, os Estados prejudicados propuseram seis ADIs no STF pedindo a
declaração de inconstitucionalidade do art. 1º da LC 78/93 e da Resolução
TSE 23.389/2013. Por sua vez, a mesa do Senado Federal ajuizou uma ADC
requerendo que o STF declarasse a validade do Decreto Legislativo
424/2013. O STF, então, julgou todas essas ações em conjunto.
Os ministros os Ministros Gilmar Mendes, Roberto Barroso e Dias Toffoli
julgaram improcedentes os pedidos de inconstitucionalidade nelas formulados.
O Ministro Gilmar Mendes lembrou que as disposições normativas
questionadas objetivariam dar concretude aos ditames constitucionais
regulamentadores do sistema eleitoral proporcional de listas abertas e que as
cadeiras da Câmara dos Deputados deveriam ser distribuídas de maneira
proporcional à população dos entes federados, e não proporcionalmente ao
eleitorado dos Estados-membros. Negou, por isso, a existência de
inconstitucionalidade formal da LC 78/1993 afirmando que, não tenha
ocorrido votação nominal, uma vez que o projeto de lei que dera origem à LC
78/1993 fora aprovado por unanimidade.
Afirmou, ainda, que inexistia inconstitucionalidade material, tendo em
vista que poderia, sim, a LC 78/1993 atribuir ao TSE a fixação de número de
representantes, por unidade federativa, na Câmara dos Deputados já que não
haveria real delegação, mas apenas transferência ao TSE da função de
realização dos cálculos pertinentes, com base em parâmetros previamente
fixados pela Constituição e pela lei complementar. Por fim, tendo em vista que
a fixação das bancadas sempre fora tarefa do TSE e, após a edição da LC
78/1993, teriam sido editadas sucessivas resoluções até a Resolução
23.389/2013, declarar a inconstitucionalidade da norma significaria discutir
as leis produzidas, bem como as emendas constitucionais votadas desde 1990,
além de colocar em situação de inconstitucionalidade todas as eleições
realizadas no País após a CF/1988.
O Ministro Barroso afirmou, por sua vez, que uma interpretação literal do
dispositivo constitucional levaria a uma situação de
inconstitucionalidade, pois o cumprimento da Constituição não poderia
depender exclusivamente do processo político majoritário, da vontade, ou não,
do Congresso Nacional de tratar da matéria por lei complementar. Uma
omissão do Congresso em editar a lei complementar referida no art. 45, § 1º,
da CF, manteria a representação populacional inalterada de maneira indevida
e, por consequência, frustrar-se-iam direitos políticos fundamentais e
essenciais ao princípio democrático, tais como o cumprimento da
proporcionalidade da representação política e o da igualdade entre os
eleitores. Nesse sentido, a atuação do TSE, dentro dos parâmetros
previamente fixados na lei complementar e na constituição, seria válida, pois
oriunda de órgão imparcial e institucionalmente mais adequado do que o
sistema político.
Em divergência, que se sagrou vencedora, a Ministra Rosa Weber,
acompanhada pelos Ministros Teori Zavascki, Luiz Fux, Ricardo
Lewandowski, Marco Aurélio, Celso de Mello e Joaquim Barbosa, julgou
procedentes os pedidos formulados nas ações diretas, para declarar a
inconstitucionalidade da Resolução TSE 23.389/2013, sob os argumentos que
se passa a sintetizar. Inicialmente, asseverou que a jurisprudência do STF a
resolução do TSE inaugura conteúdo normativo não veiculado na lei
complementar, nem passível de ser dela deduzido, tratando de ato normativo
primário e não secundário. Como tal, o controle abstrato de
constitucionalidade é possível e, no caso, se imporia o reconhecimento da
inconstitucionalidade.
Em seguida, a Min. Rosa Weber argumentou que a tradição histórica do
federalismo brasileiro não permitir a delegação à Justiça Eleitoral ou ao TSE
da responsabilidade de fixar o número de representantes. As constituições
anteriores, que quando o constituinte pretendera delegar essa atribuição ao
TSE, fizera-o expressamente e, no caso da atual, por exemplo, o art. 2º, § 2º,
do ADCT foi expresso ao autorizar o TSE à edição de normas
regulamentadoras do plebiscito de 1993. Acrescentou, ainda, que o art. 45, §
1º, da CF, não contemplaria inferência no sentido de que a lei complementar
poderia estabelecer o número total de deputados, sem a fixação de imediato e
em seu bojo da representação por ente federado, para delegar implicitamente
essa responsabilidade política ao TSE. Afirmou que o texto constitucional
imporia o estabelecimento, por lei complementar, tanto do número total de
deputados, quanto da representação por cada Estado-membro e Distrito
Federal.
O Min. Joaquim Barbosa destacou que a fixação do número de deputados
não é tarefa administrativa. De forma semelhante, o Min. Luiz Fux entendeu
que tal delegação violava a separação dos poderes, bem como o Min. Teori
Zavascki também afirmou a resolução do TSE efetivamente fixou o número de
deputados, o que não foi previsto na lei complementar. Em seguida, entendeu
que, mesmo reconhecendo as dificuldades de o Poder Legislativo em reunir as
condições para aprovar a norma exigida pelo art. 45, §1º, isso não autorizaria
a atuação do TSE pela omissão do legislador. Cogitou que eventual omissão
deveria ser sanada por mandado de injunção
No final, prevaleceu a posição da corte no sentido de declarar
inconstitucional o art. 1º da LC 78/93 e, consequentemente, a Resolução TSE
23.389/2013, entendendo não ser possível a delegação ao TSE da fixação do
número de parlamentares, matéria eminentemente política e que deveria ser
tratada no parlamento, mas também não ser possível a sustação pelo
Legislativo de atos do Poder Judiciário, o que, nos termos do art. 49,V só
seria possível em relação aos atos relacionados à delegação ao Poder
Executivo.
Note-se a modificação por via judicial da opção de deixar a questão a
cargo do TSE, bem como a recusa a possibilidade lógica sustação da
delegação pelo Poder legislativo, quando o fizesse ao Poder Judiciário,
consubstancia uma manifestação de Supremacia Judicial.
O quarto e último caso diz respeito à edição da Súmula Vinculante nº 36
pelo STF, pacificando um importante conflito de competência entre a justiça
militar e a justiça comum. Em linhas gerais entendeu-se que a Justiça Federal é
competente para processar e julgar civil denunciado pelos crimes de
falsificação e de uso de documento falso (art. 315 do CPM) quando se tratar
de falsificação da Caderneta de Inscrição e Registro (CIR) ou de Carteira de
Habilitação de Amador (CHA) ou, mesmo quando sejam expedidas pela
Marinha do Brasil.
A controvérsia decorria do fato de os documentos mencionados serem
licenças para se pilotar embarcações expedidas pela Marinha do Brasil. Por
essa razão, algumas decisões costumavam considerar competente a Justiça
militar, sob a justificativa de afronta ao art. 9º, III, “a”, do Código Penal
Militar, isto é, tratando o fato como crime militar em tempos de paz praticado
por civis contra instituições militares.
O STF entendeu que esse posicionamento não se sustentava, porque a
Caderneta de Inscrição e Registro (CIR) e a Carteira de Habilitação de
Amador (CHA), sendo que os documentos públicos de natureza civil e a
atividade de policiamento naval exercidas pela Marinha são atividades
administrativas (serviço público federa relacionado à segurança pública), não
se enquadrando entre as atribuições constitucionalmente previstas para as
Forças Armadas. Apenas em caráter excepcional é que se pode considerar o
cometimento do delito militar por agente civil em tempo de paz, quando
houver ofensa grave à defesa da Pátria, garantia dos poderes constitucionais,
da lei e da ordem (art. 142, da Constituição federal).
O uso e falsificação da CHA e da CIR configura, portanto, infração
comum, tendo em vista ocorrerem em detrimento de bens, serviços ou
interesses da União, atraindo, a incidência do inciso IV do art. 109, bem como
do 21, inciso XXII, 144, § 1º, III, todos da Constituição Federal. A
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é, assim, firme no sentido de que
cabe à Justiça Federal a competência para processar e julgar civil ação penal
que envolva tais crimes230.

3 DIÁLOGOS CONSTITUCIONAIS NO STF, A NOVA


APLICAÇÃO DA SÚMULA VINCULANTE 26 E AS
AUDIÊNCIAS PÚBLICAS SOBRE DIREITOS AUTORAIS E
DIFERENÇA DE CLASSE
Nesse tópico, destacam-se as audiências públicas231 realizadas em 2014 –
preferência de classe e direitos autorais -, assim como a votação do caso
ainda não encerrada sobre a constitucionalidade do financiamento de
campanha brasileiro. No entanto, nem só de audiência pública vive o diálogo
institucional e social do STF: também há diálogo no caso referente à aplicação
da súmula vinculante 26.
É verdade que a súmula vinculante nº 26 foi editada em 2009. No entanto,
em razão da retomada do julgamento da Rcl 4335 apresentada anteriormente,
sua aplicação voltou à tona. O enunciado da súmula prevê o seguinte: “Para
efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo
ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do
art. 2º da Lei 8.072, de 25 de julho de 1.990, sem prejuízo de avaliar se o
condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do
benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a
realização de exame criminológico.”
No julgamento da Rcl nº 4.335, , noticiado no Informativo 739,
especificamente no voto do Min. Teori Zavascki, acolheu-se a Reclamação
com base da súmula vinculante editada posteriormente ao ajuizamento da
mesma, sob o argumento de que o “descumprimento enseja a propositura de
reclamação, fato esse que deve ser levado em consideração, nos termos do
art. 462 do CPC”. Nesse cenário, o diálogo entre o STF e o Congresso ocorre
no seguinte ritmo: (i) o STF declara a inconstitucionalidade da vedação da
progressão de regime para crimes hediondos; (ii) o Congresso edita um nova
lei instituindo um regime mais gravoso ara os crimes hediondos do que a
progressão para outros crimes; (iii) o STF reconhece a constitucionalidade da
nova lei, mas determina a sua aplicação da respectiva publicação para frente.
Vejamos esse itinerário de forma mais detalhada.
A Reclamação 4.335 foi ajuizada em 2006, contra decisão do Juiz de
Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco, no Acre, que
indeferiu a progressão de regime em favor de condenados pela prática de
crimes hediondos, com base na redação original do art. 2º, § 1º, da Lei
8.072/1990. O Reclamante alegou que tal indeferimento ofenderia a decisão
do Plenário do STF, que reconheceu a inconstitucionalidade da referida norma
no julgamento do HC 82.959/SP.
A Súmula 26 teve como “Precedente Representativo” indicado no site do
STF o referido Habeas Corpus 82.959/SP, que, reformulando anterior
entendimento da Corte Suprema, assentou que a individualização da pena no
julgamento de crimes hediondos, prevista no inciso XLVI, do art. 5º, da
Constituição Federal, aplica-se também no momento de execução da pena, e
não somente na sua dosimetria na sentença.
A redação da Súmula, contudo, ficou de certa forma incompleta,
considerando que antes de sua publicação já havia sido editada a Lei 11.464,
de 28/03/2007, que deu nova redação ao art. 2º da Lei 8.072/1990,
especialmente aos seus §§ 1º e 2º, permitindo a progressão de regime antes
vedada, desde que cumpridos 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for
primário, e 3/5 (três quintos), se reincidente. Na verdade, a aludida Súmula,
ao reconhecer a inconstitucionalidade da redação original do art. 2º da Lei
8.072/2009, que proibia a progressão de regime em relação a crimes
hediondos (o que gerou a possibilidade da progressão de regime para tais
crimes nos mesmos moldes dos demais delitos – cumprimento de 1/6 – um
sexto – da pena), aplica-se aos crimes praticados antes de 29/03/2007 – data
do início da vigência da Lei 11.464. Isto porque, a partir de então, o
Congresso, “dialogando” com o Poder Judiciário, reconheceu a possibilidade
de se conceder a progressão, mediante o atendimento de requisitos mais
severos do que os estabelecidos para crimes comuns.
Tal interpretação resultou clara da leitura do debate que precedeu a edição
da referida Súmula, disponível no site do STF, especialmente da seguinte
observação feita pelo Min. Cezar Peluso ao se manifestar sobre objeção feita
por defensor público presente na discussão: “Seria o caso de constar restrição
para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime
hediondo equiparado, praticado antes de 29 de março de 2007, levando-se em
conta a inconstitucionalidade do art. 2º, § 1º, da Lei 8.072 e aplicando-se o
artigo 112 da LEP. Acho que com isso deixaríamos fora de dúvida a questão
da irretroatividade da lei mais gravosa.”
A seguinte manifestação do Min. Dias Toffoli corrobora a mesma
interpretação: “No tocante ao primeiro ponto colocado, estava aqui a pensar
exatamente a maneira de adequar a proposta de Súmula à reintrodução de
dispositivos no artigo 2º da Lei nº 8.072/90, através da Lei 11.464/07, mas o
Ministro Cezar Peluso fez uma proposição que, entendo, acolhe, nessa parte, a
proposição feita pela Defensoria de maneira bastante adequada e que nos fará
exatamente ter na Súmula Vinculante a ser editada a devida segurança jurídica,
evitando interpretações futuras que iriam discutir sua aplicação diante da nova
Lei de 2.007 e as consequências que daí adviriam.”
Em resumo, o STF declarou inconstitucional o art 2º da Lei 8072/90 e, em
seguida, passou de 1/6 (inconstitucionalidade equiparação da progressão do
hediondo com o comum) para 2/5 ou 3/5 (29 de março) como requisito mínimo
para cumprimento da pena. O STF entendeu, ainda, pela constitucionalidade
da progressão mais gravosa dos crimes hediondos para o comum. Se HC for
impetrado por crime praticado depois da lei que permitiu a progressão,
aplica-se 2/5 ou 3/5. Se o crime é anterior à lei, 1/6. O caso revela um diálogo
entre legislativo e judiciário pela divergência de entendimentos ter conseguido
se alcançar um meio termo entre a ausência de progressão de regime
decorrente do clamor popular e a reinvindicação judicial da individualização
da pena.
Passando ao cenário de diálogos institucionais e sociais, decorrentes das
audiências públicas, 2014 presenciou a realização da audiência pública para
discutir a chamada “diferença de classe” em internação hospitalar pelo
Sistema Único de Saúde (SUS) foi convocada pelo Ministro Dias Toffoli, do
Supremo Tribunal Federal (STF) que com os depoimentos dos especialistas
escritos permitiram esclarecer diversos aspectos sobre a questão do Recurso
Extraordinário nº 581488 de sua relatoria. O RE se origina em uma ação civil
pública movida pelo CREMERS contra o Município de Canela, que pretendia
forçar a aceitação do tratamento de diferença de classes dentro da gestão
municipal do Sistema Único de Saúde (SUS). A diferença de classe é a
possibilidade de melhoria no tipo de acomodação do paciente e a contratação
de profissional de sua preferência, mediante o pagamento de complemento.
Na abertura da audiência pública, o Ministro Dias Toffoli afirmou a
necessidade das discussões referentes ao acesso universal e igualitário das
ações ou serviços de saúde; a complementariedade da participação do setor
privado na economia da diferença de classe no sistema único de saúde e os
efeitos dessa modalidade de internamento nos procedimentos de triagem e no
acesso ao SUS. No decorrer da audiência pública, as diversas correntes de
opinião sobre o tema manifestaram-se contra e a favor da diferença de classe.
Contrário à diferença de classe, o Subprocurador Geral da República,
Humberto Jacques de Medeiros argumentou que a diferença de classe existiu,
sob a vigência de outro sistema constitucional, no país quando vivíamos num
sistema de saúde mutualístico, havia então uma figura criada pelo INAMPS,
que agia em favor dos trabalhadores e foi banido pela constituição de 1988.
Destacou que, sob a vigência da Constituição de 1988, o direito à saúde
oferecido pelo Estado é para todos que se encontram no território nacional.
Trata-se de um bem coletivo de proteção universal que trás também uma
proteção universal. Entendeu que a diferença de classe contraria a
universalidade e igualdade, sendo assim, não somente a constituição, mas
também a Lei n. 80/80 e a Lei Complementar n. 141 com a ideia de acesso
universal, igualitário e gratuito que reforçam o parecer desse sistema
universal.
Por fim, discorreu sobre a problemática do Estado Democrático de Direito
e republicano se encontra no fato de poder ter um serviço de base universal
que envolva pagamento de diferenças. Deste modo, o MP acredita que essa
corte deve ter muito zelo para esse debate, a discussão central deve ser qual
relação existe entre o Estado e as prestações republicanas, todos são iguais
perante a lei e perante a dor. Se há algum tipo de remuneração a constituição
já previu um sistema privado para esses serviços, mas não se pode permitir
que um sistema público seja discriminatório.
De um lado, as entidades contrárias à preferência de classe nas falas
desses participantes da audiência pública argumentam que haveria: (i)
violação ao acesso universal e igualitário ao SUS, consagrado nos art. 196 da
Constituição de 1988, na Lei n. 80/80 e na Lei Complementar n. 141; (ii)
proibição do retrocesso à época do INAMPS e IAP em que saúde era
privilégio de quem podia pagar; (iii) deflagração de um processo de
terceirização do SUS incompatível com a ordem constitucional; e (iv) a via
adequada para que hospitais privados e santas casas recebam efetivamente o
que gastaram ao receber pacientes do SUS é a reivindicação com o próprio
SUS, que é remunerado por impostos, e não cobrando um adicional dos
pacientes; (v) a maior parte dos recursos continuaria sendo pública e não dos
pacientes e, numa sociedade patrimonialista e clientelista, como a brasileira,
seria extremamente problemática232-233.
Por outro lado, quem defende a possibilidade da preferência ou diferença
de classe argumenta: (i) dificuldades do sistema único de saúde; (ii)
possibilitar melhoria do sistema de saúde mediante pagamento que não
custaria nada ao erário; (iii) ausência ou insuficiência dos repasses à rede
privada conveniada ao SUS; e (iv) impossibilidade de se vedar condição um
pouco melhor ao cidadão que tem condições de contribuir, mas não em
condições e arcar com os preços excessivos de um plano privado ou do
sistema privado.234
Por fim, destaque que as falas dos participantes das audiências públicas
revelaram presença de mais argumentos jurídicos e políticos do que técnicos e
científicos. Aparentemente, ficaram em segundo plano, por exemplo, dados
sobre o quanto esse sistema de preferência de classe arrecada efetivamente e
sobre a experiência com os hospitais e Santas Casas de misericórdia que as
adotam se melhoraram o tratamento ou não, se o repasse do SUS é realmente
insuficiente para custear os tratamentos. Isso nos permite associar à audiência
pública convocada pelo Min. Dias Toffoli nesse caso muito mais a um modelo
“Gilmar Mendes” de audiência pública do que a um modelo “Luiz Fux”235.
O caso ainda não foi objeto de decisão definitiva pelo STF, mas existem
casos anteriores à convocação da audiência em que o STF se posicionou
favoravelmente à diferença de classe, permitindo que o paciente custeasse um
“isolamento protetor” (RE 255086236), de quarto diferenciado (RE 255086 e
RE 226825)237 e . É aguardar para conferir se o entendimento será mantido ou
revisto.
A segunda audiência pública realizada em 2014 tratou da nova lei sobre
direitos autorais. Convocada pelo Ministro Luiz Fux, que enfatizou a
dimensão democrática e técnica a audiência pública, a Lei 12.853/2013 foi
impugnada pelas ADIs 5062 e 5065 das quais é relator. Ajuizadas pelo ECAD
e pela UBC, as ADIs contestam essencialmente três alterações promovidas: (i)
a caracterização como “de interesse público” as atividades desempenhadas
por associações privadas e pelo próprio Ecad; (ii) as regras para conferir
publicidade e transparência aos valores arrecadados a título de direitos
autorais; e (iii) a participação dos titulares dos direitos sobre cada obra.
De um lado, quem defendia a inconstitucionalidade da referida lei
sustentava: (i) o ECAD observa nos processos de arrecadação regras
internacionais para fixar preços e critérios de cobrança; (ii) desempenha essa
atividade privada há anos sem apoio ou interferência do Poder Executivo; (iii)
confusão entre o sistema privado e público de droit d´auter versus copyright;
(iv) confidencialidade e privacidade dos dados pessoais dos artistas; (v) a lei
foi aprovada de modo açodado; (vi) expropriação de direitos adquiridos; (vi)
autonomia privada e ingerência indevida do estado, considerando o autor é
que deve cuidar de sua própria música; (vii) controle e supervisão não podem
ser confundidos com intervenção direta.
De outro, quem defendia a constitucionalidade afirmava: (i) a falta de
transparência dos recursos arrecadados; (ii) a concentração de recursos nas
mãos de poucos, porque há 573 mil titulares de direito e, em 2013, a entidade
distribuiu direitos autorais a apenas pouco mais de 122 mil pessoas; (iii) criou
não apenas um órgão punitivo vinculado ao governo federal, mas sim uma
instância que regula e fiscaliza em nome do direito coletivo de terceiros e
possibilita também a mediação de conflitos com usuários a gestão coletiva,
sem retirar o papel do Poder Judiciário e sem retirar o poder dos que analisam
a questão concorrencial, como o Cade; (v) por se tratar de um monopólio
privado dado por lei e de filiação praticamente obrigatória, o Ecad atua em
espaço público, ainda que não estatal, e sua cobrança é fortemente sentida
pela coletividade, “quase que como um imposto”. Os direitos autorais são,
segundo o representante do Minc, a maior fonte de reclamações no ministério,
mas, antes da nova lei, o Estado não tinha como dar respostas a tanta demanda;
(vi) Em 1990, este tipo conselho foi extinto pelo presidente Fernando Collor
e, desde então, não houve mais uma supervisão estatal desse monopólio
privado concedido pelo Estado para gestão coletiva. Concordam que o Ecad é
fundamental, mas reputam que os 23 anos de ausência de supervisão do ECAD
levaram ao aparecimento de uma sanha arrecadadora que deixa os autores
insatisfeitos com o que recebem e os usuários insatisfeitos como que pagam;
(viii) outros países possuem legislação, como a França e a Espanha, onde
supervisão estatal tem padrões até mais rígidos do que prevê a nova lei
brasileira sobre o tema, concluindo que a nova lei aproxima o Brasil do
modelo europeu de gestão de direitos autorais; (ix) faz sentido haver um
monopólio no modelo de arrecadação no Brasil, dada a variedade de
detentores de direitos autorais no Brasil, mas, como o monopólio traz
ineficiência alocativa, o Ecad não tinha pressão competitiva para abaixar essa
taxa e redistribuir de forma mais eficiente para os autores. Então, a nova lei
estabelece um regime que permite que isso aconteça por meio da gestão
coletiva; (x) audiência pública já desmentiu a falácia de que a maioria dos
artistas repele a gestão coletiva e anseia pela intervenção estatal na gestão dos
direitos autorais.
O terceiro caso, que até o momento, parece relacionar-se mais ao modelo
dos diálogos diz respeito à ADI 4650238 por ter sido precedido de um
audiência pública para discutir o financiamento de campanha que ocorreu em
junho de 2013. Por essa razão, o Min. Luiz Fux, relator do caso que a
convocou, afirmou em sua abertura que se trata de um processo judicial
participativo e democrático, que contará com expositores, cujo conhecimento
técnico permitirá ampliar a capacidade institucional do Supremo Tribunal
Federal para decidir sobre o tema do financiamento de campanha. Existem
basicamente duas correntes de opinião na audiência pública
A primeira pode ser simplificada como aquela referente aos argumentos
contrários ao modelo de financiamento atual (empresas e limites percentuais).
Nessa linha está tanto quem defendeu um financiamento público
exclusivamente público, como o Deputado Henrique Fontana Júnior até o
professor Daniel Sarmento. O professor, inicialmente, de forma mais precisa,
descreve o cenário de reduzida pulverização de doações de pequeno porte,
doações vultuosas de poucos doadores não raro para partidos rivais e da
desigualdade que o limite de doação por percentual opera entre pessoas
físicas e jurídicas já que mais ricos poderão dor mais em termos de valor. O
problema, portanto, não seria apenas o caixa 2 e sim o próprio sistema que
viola razoabilidade, igualdade, liberdade de expressão, republicano. Destaca
que o STF é a esfera adequada para tratar do tema, diante dos problemas e
dificuldade das instituições em resolvê-los.
A segunda corrente, representada pela Professora Adriana Cuoco Portugal
pelo Prof. Maurício Soares Bugarini traça, preliminarmente um histórico sobre
o financiamento dos recursos no Brasil: (i) vedação ao financiamento privado;
(ii) 1971, foi mantida a proibição e estendida para sindicatos etc; (iii)
Fernando Collor, foi reformulada e a permissão da doação privada com
transparência; (iv) de lá pra cá, houve restrições. Em seguida, afirmou que o
financiamento público não é alternativa. Se garantido, os candidatos
continuarão buscando financiamentos privados. Portanto, a maior captura dos
recursos por grupos por meio do financiamento privado é inevitável, razão
pela qual a maior transparência possibilitará estudos para compreender o
modelo e reformar o modelo. Enfatiza, por fim, que a maior capacidade de
captar recursos pode indicar a qualidade dos partidos e é parte inerente do
processo político. A proibição do financiamento privado levará ao Caixa 2 e o
custo maior para corromper, de modo que outras limitações seriam mais
eficazes.
A questão é mais complexa e foi retratada e debatida por diversos ângulos
ao longo da audiência pública. Ainda assim, a polarização simplificadora para
fins expositivos revela o profundo desacordo sobre o melhor modelo político
para o Brasil e a presença de ideias contrapostas no STF entre os
especialistas sobre qual a melhor escolha. No encerramento da mesma, o Min.
Luiz Fux ressalta se tratar de um figura nova destinada a ampliar a
democratização do processo, que precisa ser melhor amparado pelso
especialistas sobre questões interdisciplinares e envolve igualmente a
judicialização de questões políticas são típicas das democracias
contemporâneas.
Veja-se que a judicialização da política nesse caso decorre da propositura
pelo Conselho Federal da OAB da ação direta de inconstitucionalidade contra
os artigos 23, §1º, I e II; 24; e 81, caput e § 1º, da Lei 9.504/1997 (Lei das
Eleições), que tratam de doações a campanhas eleitorais por pessoas físicas e
jurídicas. A ação questiona, ainda, a constitucionalidade dos artigos 31; 38,
III; 39, caput e §5º, da Lei 9.096/1995 (Lei Orgânica dos Partidos Políticos),
que regulam a forma e os limites em que serão efetivadas as doações aos
partidos políticos. Como ressaltado pelo Ministro Luis Fux, relator do
processo, eram três as questões trazidas pela ação. Em primeiro lugar, haveria
a questão da possibilidade de campanha política ser financiada por doação de
pessoa jurídica. Em segundo lugar, haveria uma questão acerca dos valores e
limites de doações às campanhas. Por fim, havia o debate sobre o
financiamento com recursos do próprio candidato.
O Ministro Fux ressaltou que STF seria a sede própria para esse debate.
Afirmou também que a reforma política deveria ser tratada nas instâncias
políticas majoritárias e que não pretendia defender a juristocracia, mas que
isso não significaria deferência cega do juízo constitucional em relação às
opções políticas feitas pelo legislador. Frisou que os atuais critérios adotados
pelo legislador no tocante ao financiamento das campanhas eleitorais não
satisfariam as condições necessárias para o adequado funcionamento das
instituições democráticas, porque não dinamizariam seus elementos nucleares,
tais como o pluralismo político, a igualdade de chances e a isonomia formal
entre os candidatos, apontando ainda que as audiências públicas teriam
demonstrado o aumento da influência do poder econômico nas eleições, como
aumento dos gastos de campanha dos candidatos. Por essa razão, julgou
inconstitucional o modelo brasileiro de financiamento de campanhas eleitorais
por pessoas naturais baseado na renda. Na mesma linha, julgou ainda
inconstitucional a possiblidade de financiamento de campanha de candidato
com recursos próprios, pois a balança penderia sempre para o lado dos
candidatos mais ricos. Entendeu ainda o Ministro que seria também
inconstitucional o financiamento de campanha por pessoas jurídicas, pois a
cidadania seria inerente apenas à pessoas naturais e a participação de pessoas
jurídicas apenas encareceria as campanhas. O fundo partidário e a propaganda
eleitoral gratuita seriam um substitutivo eficaz aos recursos doados por essas
pessoas jurídicas e a mera transparência nessas doações não seriam capaz de
aplacar a influência do poder econômico na política. Por esses motivos, julgou
procedentes os pedidos e deu um prazo deu um prazo de dois anos ao
Congresso para a edição de um novo marco normativo ao financiamento de
campanha que obedecesses aos seguintes parâmetros: a) o limite a ser fixado
para doações a campanha eleitoral ou a partidos políticos por pessoa natural,
deverá ser uniforme e em patamares que não comprometam a igualdade de
oportunidades entre os candidatos nas eleições; b) idêntica orientação deverá
nortear a atividade legiferante na regulamentação para o uso de recursos
próprios pelos candidatos; e c) em caso de não elaboração da norma pelo
Congresso Nacional, no prazo de 18 meses, será outorgado ao TSE a
competência para regular, em bases excepcionais, a matéria.
O voto do relator foi seguido pelos Ministros Joaquim Barbosa, Dias
Toffoli e Luis Roberto Barroso, que, após afirmar que o sistema eleitoral
brasileiro teria viés antidemocrático por conta do financiamento privado de
campanha e do sistema eleitoral proporcional com lista aberta, propôs um
diálogo institucional com o Congresso Nacional no sentido do barateamento
do custo das eleições, uma vez que não bastaria coibir esse tipo de
financiamento. O julgamento foi suspenso pelo pedido de vista formulado pelo
Ministro Teori Zavascki na sessão anterior.
O julgamento foi retomado em 2 de abril de 2014. Em voto-vista, o
Ministro Teori Zavascki divergiu do entendimento esposado pelo Ministro
Luiz Fux. Afirmou que, se por um lado, seria possível afirmar que o poder
econômico poderia interferir negativamente no sistema democrático, ao
favorecer a corrupção eleitoral e outras formas de abuso; por outro, não se
poderia imaginar um sistema democrático de qualidade sem partidos políticos
fortes e atuantes, especialmente em campanhas eleitorais, o que pressuporia a
disponibilidade de recursos financeiros expressivos. Reputou que seria
fundamental o estabelecimento de um adequado marco normativo, que, no
entanto, não seria suficiente para coibir as más relações entre política e
dinheiro. Ressaltou ser necessário, no entanto, que as normas fossem
efetivamente cumpridas e as punições aplicadas, conforme o caso. Além disso,
afirmou não haver, na Constituição, disciplina específica sobre a matéria.
Salientou duas referências à influência do poder econômico em seara eleitoral
(CF, art. 14, §§ 9º e 10). Frisou que essas normas não buscariam combater o
concurso do poder econômico em campanhas eleitorais, mas a influência
econômica abusiva. Também destacou que as pessoas jurídicas, embora não
votassem, fariam parte da realidade social, e existiriam apenas para, direta ou
indiretamente, atender interesses das pessoas naturais nelas envolvidas.
O julgamento foi suspenso pelo pedido de vista do Min. Gilmar Mendes.
De todo modo, a oportunidade aberta pela audiência pública de ouvir e
publicizar diferentes correntes de opinião sobre a matéria deu início a um
debate público sobre que modelos queremos. Desde então, reportagens sobre
o volume, origem e destino das doações têm sido mais frequentes. Em outras
palavras, a audiência pública e o início da votação deflagrou um diálogo
social e institucional sobre o tema.

APONTAMENTOS FINAIS
A elaboração da retrospectiva das principais decisões do Supremo
Tribunal Federal no ano de 2014 foi pautado por dois planos conclusivos. No
plano prático, pautou-se o texto no sentido de descrever e sistematizar
determinadas atuações e decisões da Corte. Nesse universo, o pano de fundo
foram as leituras orientadas para demarcar os níveis de deliberação, de
elaboração normativa (súmulas vinculantes) e de articulação com a sociedade
brasileira a e atores políticos por meio dos diálogos constitucionais.
No aspecto teórico, por sua vez, optamos por não aprofundar o vinculo de
cada um desses elementos e categorias, de modo a permitir que a retrospectiva
do ano de 2014 sobressaísse os atos e decisões do STF em relação à
discussão doutrinária. Apesar dessa cautela, este anuário aponta para a
necessidade de reconhecer a complexidade politico-institucional para
mensurar os graus de deliberação do STF com as demais instituições e atores
sociais.
É de fato difícil enquadrar a atuação ou decisão em um modelo forte, fraco
ou dialógico de “constitucional review” (Stephen Gardbaun, Joel L. Colon
Rios e Conrado Hubner Mendes). Por essa razão, a escolha dessa nova
tipologia no processo de guarda da constituição foi utilizada mais a partir do
grau de proximidade da decisão do STF ou atuação do STF com uma das
categorias do que com o fato de determinada decisão só possuir mostras, por
ex., de supremacia judicial. Em outras palavras, todas as decisões são
multifacetadas e complexas e, em boa medida, o enquadramento se deu por
mais predominância e para fins didáticos.

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CASOS DO STF
STF, ADI 4650/DF, rel. Min. Luiz Fux, 11 e 12.12.2013 (Financiamento de
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STF, RE 581488, Rel. Min. Dias Toffoli (Diferença de classe)
STF, ADI 5062 e 5065, Rel. Min. Luiz Fuz (Direitos autorais)
STF, Rcl nº 4.335, Rel. Min. Gilmar Mendes (extensão de efeitos pelo
Senado)
STF, ADI 5136/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, 1º.7.2014. (Lei da Copa)
STF, ADI 4947/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, 18.6.2014. (Delegação ao TSE
para fixar número de parlamentares)
STF, Súmula vinculante n. 26: “Para efeito de progressão de regime no
cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da
execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da lei n. 8.072, de 25
de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não,
os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para
tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico.”
(discussão sobre a aplicação da progressão de regime)”
STF, Súmula vinculante n. 36: “Compete à justiça federal comum processar
e julgar civil denunciado pelos crimes de falsificação e de uso de documento
falso quando se tratar de falsificação da caderneta de inscrição e registro
(cir) ou de carteira de habilitação de amador (cha), ainda que expedidas
pela marinha do brasil.”STF, Súmula vinculante n.37: “Não cabe ao poder
judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores
públicos sob o fundamento de isonomia.”

200 Trabalho apresentado pelo grupo Observatório do Judiciário Brasileiro (OJB).


201 Agradecemos pelo debate de algumas questões pontuais aos professores Vanice Lírio do Valle e
Alexandre Garrido, bem como ao debate com os acadêmicos Maria Clara Borges Grippa de Souza, da
Universidade Candido Mendes (UCAM), David Araújo, Ana Caroline Barros e Fernanda Dalbem,
integrantes da Faculdade de Direito Universidade Federal de Juiz de Fora - Campus de Governador
Valadares (UFJF-GV).
202 Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). E-mail: jribas@puc-rio.br
203 Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). E-mail: margaridalacombe@gmail.com
204 Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora - Campus de Governador
Valadares (UFJF-GV). Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito pela
Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: siddhartalegale@hotmail.com
205 Mestrando em teorias jurídicas contemporâneas pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: acdeluca@gmail.com
206 Mestranda em teorias jurídicas contemporâneas pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: fatimaamaral@me.com
207 Mestranda em teorias jurídicas contemporâneas pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento do
Pessoal do Ensino Superior (CAPES) em convênio com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). E-mail:
juliacani@yahoo.com.br
208 Para um aprofundamento da discussão teórica sobre legitimidade democrática da jurisdição
constitucional, ver: BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro.
São Paulo: Saraiva, 2012, p. 74-85. Do mesmo autor, Constituição, democracia e supremacia judicial:
direito e política no Brasil contemporâneo. Revista Jurídica da Presidência 96, 2010. De qualquer forma,
duas teses de doutorado pela USP e pela UERJ tratam bastante bem das categorias e argumentos em
favor de cada um dos modelos, são de leitura densa sem perder uma clareza didática. Cf. MENDES,
Conrado Hübner. Direitos fundamentais, separação de poderes e deliberação. São Paulo: Editora
Saraiva, 2011. BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia Judicial versus diálogos constitucionais: a quem
cabe a última palavra sobre o sentido da Constituição? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. Uma
sistematização do debate entre as diversas teorias pode ser encontrada em COLÓN-RÍOS, Joel L. A new
typology of judicial review of legislation. Global constitutionalism 3, p. 143-169.
209 Não desejamos aprofundar do ponto de vista teórico cada um desses elementos e categoriais, de
modo a permitir que a retrospectiva do ano de 2014 sobressaia em relação à discussão doutrinária. Ainda
assim, existem diversos trabalhos no Brasil tratando da legitimidade democrática da jurisdição
constitucional. Por todos, BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito
brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 74-85. Do mesmo autor, Constituição, democracia e supremacia
judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. Revista Jurídica da Presidência 96, 2010. De qualquer
forma, duas teses de doutorado pela USP e pela UERJ tratam bastante bem das categorias e argumentos
em favor de cada um dos modelos, são de leitura densa sem perder uma clareza didática. Cf. MENDES,
Conrado Hübner. Direitos fundamentais, separação de poderes e deliberação. São Paulo: Editora
Saraiva, 2011. BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia Judicial versus diálogos constitucionais: a quem
cabe a última palavra sobre o sentido da Constituição? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. Uma
sistematização do debate entre as diversas teorias pode ser encontrada em COLÓN-RÍOS, Joel L. A new
typology of judicial review of legislation. Global constitutionalism 3, p. 143-169.
210 Em geral aponta-se Jeremy Waldron como representante emblemático das teses. Cf. WALDRON,
Jeremy. The core case against judicial review. Yale Law Journal n. 115, 2006. Sobre o novo modelo de
controle de constitucionalidade fraco, Cf. GARDBAUM, Stephen. The new commonwealth model of
constitutionalism. The American Journal of Comparative Law n. 49, p. 707 e ss.
211 Representantes típicos, cujos argumentos e obras são constantemente mobilizados em favor de um
argumento de supremacia judicial, são Ronald Dworkin e Robert Alexy, especialmente as noções das
Cortes como “fórum de princípios” que reinvindicam um direito como integridade ou uma representação
argumentativa da sociedade. Sobre o tema Cf. DWORKIN, Ronald. Freedom’s law: the moral reading of
the American constitution, 1996, p. 1-38. Vale a pena conferir três textos (“A institucionalização da razão”,
direitos fundamentais no Estado constitucional e “Direito constitucional e direito ordinário: jurisdição
constitucional e jurisdição especialização”) no livro ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo, trad.
Luís Afonso Heck, 2ª Ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. CAMARGO, Margarida Marai
Lacombe de; MIRANDA NETTO, Fernando Gama de. Representação argumentativa: fator retórico ou
mecanismo de legitimação da atuação do supremo tribunal federal? Disponível em: <
http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/fortaleza/3589.pdf>
212 SILVA, Virgílio Afonso da. O STF e o controle de constitucionalidade: deliberação, diálogo e razão
pública. Revista de Direito Administrativo n. 250, 2009. MENDES, Conrado Hubner. Direitos
fundamentais, separação de poderes e deliberação. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 105 e ss. BATEUP,
Christine A., “The Dialogic Promise: Assessing the Normative Potential of Theories of Constitutional
Dialogue” (2005). New York University Public Law and Legal Theory Working Papers. Paper 11.
http://lsr.nellco.org/nyu_plltwp/11
213 Súmula Vinculante 37 Não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar
vencimentos de servidores públicos sob o fundamento de isonomia.
214 STF, RE 592317/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 28/8/2014. Informativo 756.
215 STF, AI 414123 AgR, Relator(a): Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, julgado em 20/10/2009 e
STF, J 28/05/2013 segunda turma ag .reg. No Recurso Extraordinário 402.467, Rel. Min. Teori Zavascki.
216 STF, J. 23/09/2010, RG RE 592.317/RJ, Rel Min. Gilmar Mendes.
217 STF, ADI 4976/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 7.5.2014. Informativo 745.
218 STF, ADI 5136/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, 1º.7.2014. (ADI-5136). Informativo 752
219 STF, HC 82.959/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 23.02.2006, DJ 01.09.2006
220 “Alega-se, na espécie, ofensa à autoridade da decisão da Corte no HC 82959/SP (DJU de 1º.9.2006),
em que declarada a inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90, que vedava a progressão de
regime a condenados pela prática de crimes hediondos. O Min. Gilmar Mendes, relator, julgou procedente
a reclamação, para cassar as decisões impugnadas, assentando que caberá ao juízo reclamado proferir
nova decisão para avaliar se, no caso concreto, os interessados atendem ou não os requisitos para gozar
do referido benefício, podendo determinar, para esse fim, e desde que de modo fundamentado, a realização
de exame criminológico. Rcl 4335/AC, rel. Min. Gilmar Mendes, 1º.2.2007. Informativo 454
221 O Min. Eros Grau, em voto-vista, julgou procedente a reclamação, acompanhando o voto do relator,
no sentido de que, pelo art. 52, X, da CF, ao Senado Federal, no quadro de uma verdadeira mutação
constitucional, está atribuída competência apenas para dar publicidade à suspensão da execução de lei
declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, haja
vista que essa decisão contém força normativa bastante para suspender a execução da lei. Rcl 4335/AC,
rel. Min. Gilmar Mendes, 19.4.2007. Informativo 463.
222 Posteriormente, o Min. Gilmar Mendes aderiu ao dispositivo da decisão do Min. Teori Zavascki, ou
seja, votou no mesmo sentido, mas por fundamentos diferentes. Aparentemente, pelo vídeo não mudou o
seu entendimento, mesmo após o voto do Min. Teori Zavascki.
223 Em divergência, o Min. Sepúlveda Pertence julgou improcedente a reclamação, mas concedeu habeas
corpus de ofício para que o juiz examine os demais requisitos para deferimento da progressão.
Reportando-se aos fundamentos de seu voto no RE 191896/PR (DJU de 29.8.97), em que se declarou
dispensável a reserva de plenário nos outros tribunais quando já houvesse declaração de
inconstitucionalidade de determinada norma legal pelo Supremo, ainda que na via do controle incidente,
asseverou que não se poderia, a partir daí, reduzir-se o papel do Senado, que quase todos os textos
constitucionais subseqüentes a 1934 mantiveram. Ressaltou ser evidente que a convivência paralela, desde
a EC 16/65, dos dois sistemas de controle tem levado a uma prevalência do controle concentrado, e que o
mecanismo, no controle difuso, de outorga ao Senado da competência para a suspensão da execução da
lei tem se tornado cada vez mais obsoleto, mas afirmou que combatê-lo, por meio do que chamou de
“projeto de decreto de mutação constitucional”, já não seria mais necessário. Aduziu, no ponto, que a EC
45/2004 dotou o Supremo de um poder que, praticamente, sem reduzir o Senado a um órgão de publicidade
de suas decisões, dispensaria essa intervenção, qual seja, o instituto da súmula vinculante (CF, art. 103-A).
Rcl 4335/AC, rel. Min. Gilmar Mendes, 19.4.2007. Informativo 463.
224 Por sua vez, o Min. Joaquim Barbosa não conheceu da reclamação, mas conheceu do pedido como
habeas corpus e também o concedeu de ofício. Considerou que, apesar das razões expostas pelo relator, a
suspensão da execução da lei pelo Senado não representaria obstáculo à ampla efetividade das decisões
do Supremo, mas complemento. Aduziu, de início, que as próprias circunstâncias do caso seriam
esclarecedoras, pois o que suscitaria o interesse da reclamante não seria a omissão do Senado em dar
ampla eficácia à decisão do STF, mas a insistência de um juiz em divergir da orientação da Corte enquanto
não suspenso o ato pelo Senado. Em razão disso, afirmou que resolveria a questão o habeas corpus
concedido liminarmente pelo relator. Afirmou, também, na linha do que exposto pelo Min. Sepúlveda
Pertence, a possibilidade de edição de súmula vinculante. Dessa forma, haveria de ser mantida a leitura
tradicional do art. 52, X, da CF, que trata de uma autorização ao Senado de determinar a suspensão de
execução do dispositivo tido por inconstitucional e não de uma faculdade de cercear a autoridade do STF.
Afastou, ainda, a ocorrência da alegada mutação constitucional. Asseverou que, com a proposta do relator,
ocorreria, pela via interpretativa, tão-somente a mudança no sentido da norma constitucional em questão,
e, que, ainda que se aceitasse a tese da mutação, seriam necessários dois fatores adicionais não presentes:
o decurso de um espaço de tempo maior para verificação da mutação e o conseqüente e definitivo desuso
do dispositivo. Por fim, enfatizou que essa proposta, além de estar impedida pela literalidade do art. 52, X,
da CF, iria na contramão das conhecidas regras de auto-restrição. Após, pediu vista dos autos o Min.
Ricardo Lewandowski. Rcl 4335/AC, rel. Min. Gilmar Mendes, 19.4.2007. Informativo 463.
225 STF, Súmula vinculante n. 26: “Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por
crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da lei n.
8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos
objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização
de exame criminológico.”
226 MIRANDA NETTO, Fernando Gama de. O ativismo judicial nas Decisões do Supremo Tribunal
Federal. In: SOUZA, Marcia Cristina Xavier de e RODRIGUES, Walter dos Santos. (Org.). O novo
Código de Processo Civil. 1ed.Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, v. , p. 87-98.
227 Para uma abordagem mais ampla o tema, vale conferir o excelente trabalho que se encontra no prelo
para publicação Cf. FERNANDES, Eric Baracho Dore. Omissões inconstitucionais e seus
instrumentos de controle: Contribuições para o aprimoramento institucional. Dissertação de
Mestrado do PPGDC-UFF, 2014.
228 STF, MI 795, Relatora Ministra Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, julgamento em 15.4.2009, DJe de
22.5.2009. “Ementa: Mandado de injunção. Aposentadoria especial do servidor público. Artigo 40, § 4º, da
Constituição da República. Ausência de lei complementar a disciplinar a matéria. Necessidade de
integração legislativa. 1. Servidor público. Investigador da polícia civil do Estado de São Paulo. Alegado
exercício de atividade sob condições de periculosidade e insalubridade. 2. Reconhecida a omissão
legislativa em razão da ausência de lei complementar a definir as condições para o implemento da
aposentadoria especial. 3. Mandado de injunção conhecido e concedido para comunicar a mora à
autoridade competente e determinar a aplicação, no que couber, do art. 57 da Lei n. 8.213/91.”
229 STF, ADI 4947/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, 18.6.2014. Informativo 751 de 2014
230 Referências: HC 108744. Publicação: DJe nº 064, em 29/03/2012. HC 104837. Publicação: DJe nº
200, em 22/10/2010. HC 90451. Publicação: DJe nº 187, em 03/10/2008. HC 103318. Publicação: DJe nº
168, em 10/09/2010. HC 110237. Publicação: DJe nº 041, em 04/03/2013. HC 112142. Publicação: DJe nº
041, em 01/02/2013.
231 Em trabalho apresentado na edição anterior do FORUM dos grupos de pesquisa, discorremos sobre
os principais modelos de audiências públicas, quais sejam, Modelo Fux (centro em argumentos
interdisciplinares e sua função instrutória) e modelo Gilmar Mendes (centrado em argumentos jurídicos de
uma sociedade aberta de intérpretes). Para mais detalhes, Cf. CAMARGO, Margarida Maria Lacombe;
LEGALE, Siddharta; JOHANN, Rodrigo Fonseca . As audiências públicas no Supremo Tribunal Federal
nos modelos Gilmar Mendes e Luiz Fux: a legitimação técnica e o papel do cientista no laboratório de
precedentes. In: José Ribas Vieira, Vanice Regina Lírio do Valle e Gabriel Lima Marques. (Org.).
Democracia e suas instituições. 1ed Rio de Janeiro: IMOS, 2014, v. 1, p. 181-211. Para uma abordagem
ampla sobre o tema, Cf. VALLE, Vanice Regina Lírio do. Audiências Públicas e Ativismo: Diálogo
Social no STF. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
232 O Ministério Público,a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), a procuradoria do Estado do
Rio Grande do Sul, a Confederação Nacional da Saúde (CNS), o Conselho Nacional da Saúde (CNS), o
Conselho de Saúde do Rio Grande do Sul, o cirurgião e professor Raul Cutait, do Hospital Sírio-Libanês de
São Paulo e Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), o
Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), o Conselho Nacional de Secretários Municipais de
Saúde (Conasems), a procuradoria de Canela e a Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo
dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC) são contrários a diferença de classe no Sistema Único de
Saúde.
233 Nesse sentido, a procuradora do Estado do Rio Grande do Sul, Fabrícia Boscaini, professor de
Medicina da Universidade de São Paulo (USP) Raul Cutait, Associação Nacional dos Auditores de
Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC), Lucieni Pereira, diretor-presidente da
Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), André Longo Araújo de Melo, O presidente do Conselho
de Saúde do Rio Grande do Sul, Paulo Humberto Gomes da Silva, O presidente do Conselho Nacional de
Secretários de Saúde (Conass), Wilson Duarte Alecrim, O presidente do Conselho Nacional de
Secretários Municipais de Saúde (Conasems) Antônio Carlos Figueiredo Nardi, ministro da Saúde, Arthur
Chioro, Procurador de Canela (RS), Gladimir Chiele, presidente do Conselho Nacional da Saúde (CNS),
Maria do Socorro de Souza, professor de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) Raul Cutait,
afirma que um terço dos leitos do SUS, Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos
Tribunais de Contas do Brasil (ANTC), Lucieni Pereira
234 Confederação pelas Santas Casas de Misericórdia, representada pelo seu presidente Júlio Dornelles
de Matos, O coordenador Jurídico da Confederação Nacional da Saúde (CNS) e representante da
Federação Nacional dos Estabelecimentos de Serviços de Saúde (Fenaess), Alexandre Venzon Zanetti,
diretor Claudio Balduino Souto Franzen, representante do Conselho Regional de Medicina do Estado do
Rio Grande do Sul, O presidente da Federação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades
Filantrópicas do Rio Grande do Sul e representante da Confederação das Santas Casas, Júlio Dornelles de
Matos
235 LEGALE, Siddharta ; CAMARGO, Margarida Maria Lacombe ; JOHANN, Rodrigo Fonseca . As
audiências públicas no Supremo Tribunal Federal nos modelos Gilmar Mendes e Luiz Fux: a legitimação
técnica e o papel do cientista no laboratório de precedentes. In: José Ribas Vieira, Vanice Regina Lírio do
Valle e Gabriel Lima Marques. (Org.). Democracia e suas instituições. 1ed.Rio de Janeiro: IMOS, 2014, v.
1, p. 181-211.
236 STF, RE 255086/RS, Rel. Min. Ellen Gracie, J. 11/09/2001, DJ 11/10/2001
237 STF, RE 255086, Rel. Min. Ilmar Galvão, J. 14.12.1999, DJ 10.03.2000 e STF, RE 226835/RS, Rel.
Min. Ilmar Galvão, J. 14/12/1999, DJ 10/03/2000.
238 STF, ADI 4650/DF, rel. Min. Luiz Fux, 11 e 12.12.2013.
A NATUREZA AMBIVALENTE DAS
AUDIÊNCIAS PÚBLICAS NO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL239
THE AMBIVALENT NATURE OF PUBLIC HEARINGS ON
THE BRAZILIAN SUPREME COURT

Júlia Massadas240
Fabiana de Almeida Maia Santos241
Rachel Herdy242

RESUMO
O objetivo deste estudo é analisar como o instituto das Audiências Públicas vem sendo utilizado pelo
Supremo Tribunal Federal (STF). Mais especificamente, esta pesquisa visa a investigar qual o papel
exercido pelos experts nas referidas Audiências. Observa-se que a despeito da crescente convocação de
Audiências Públicas pelos ministros do STF, há uma carência de análise crítica do instituto a partir da
perspectiva da epistemologia jurídica e, especialmente, das relações entre Direito e Ciência. Dentro desse
contexto, esta pesquisa visa a investigar como o Supremo Tribunal Federal lida com questões
multidisciplinares, que devem ser levadas em conta na tomada de decisões judiciais, mas que extrapolam o
saber dogmático do Direito, demandando um conhecimento técnico-especializado. As hipóteses levantadas
são: (I) as Audiências Públicas são utilizadas para legitimar democraticamente as decisões judiciais; (II)
não existem critérios de admissibilidade dos experts bem definidos; e (III) tais características são sintomas
do desvirtuamento do instituto. A metodologia empregada envolve um estudo empírico da jurisprudência
brasileira e de doutrina estrangeira, especialmente dos trabalhos de: HAACK (2009 e 2011), DWYER
(2008) e FAIGMAN (2008). Conclui-se que as Audiências Públicas convocadas pelo STF não
correspondem, na prática, ao papel que lhes foi atribuído pelo legislador, servindo mais a interesses
políticos do que epistêmicos.

PALAVRAS-CHAVE
Audiências Públicas; experts; Supremo Tribunal Federal.

ABSTRACT
This study aims to analyze how the institute of the Public Hearings has been used by the Brazilian
Supreme Court (Supremo Tribunal Federal – STF); More specifically, this research aims to investigate
the role played by the experts in those hearings. It is observed that despite the growing call for public
hearings by the ministers of the Supreme Court, there is a lack of critical analysis of the institute from the
perspective of legal epistemology and, specially, of the relations between Law and Science. In this context,
this research aims to bring to the legal field the concern for multidisciplinary issues that must be taken into
account when making judicial decisions, but that go beyond the dogmatic know of the Law Schools,
requiring a technical expertise. The hypothesis is that: (I) The Brazilian’s Supreme Court Public Hearings
are used to democratically legitimate judicial decisions; (II) There are no well-defined criteria for the
eligibility of experts; (III) Such features are symptoms of the distortion of the institute. The methodology
involves an empirical study of the Brazilian jurisprudence and of foreign doctrine, especially of the works
of: HAACK (2009 e 2011), DWYER (2008) and FAIGMAN (2008). As a conclusion, it follows that the
Public Hearings convened by the Supreme Court (STF) do not correspond, in practice, to the role assigned
to them by the legislature, serving more to political than to epistemic interests.

KEYWORDS
Public Hearings; experts; Brazilian Supreme Court.

INTRODUÇÃO
Uma análise do processo de tomada de decisão revela que a
interdisciplinaridade é uma característica crescente nos tribunais. Premissas
fáticas não-jurídicas de diversos tipos – biológicas, psicológicas, políticas,
econômicas etc. – são partes indispensáveis para as inferências judiciais.
Influenciados pelo crescimento continuado da ciência e da tecnologia, os
tomadores de decisão no direito eventualmente enfrentam situações fáticas
inesperadas que não podem ser adequadamente acomodados em categorias
jurídicas estabelecidas. Dentro desse contexto, é essencial criar mecanismos
para que o Judiciário possa interagir com profissionais qualificados de outras
áreas do saber de forma a tomar decisões integradas à realidade social e
conscientes do contexto científico em que estão inseridas.
Tal problemática fica ainda mais evidente nos casos – normalmente mais
complexos – que chegam à Suprema Corte de um país. No Brasil, os experts
que participam das Audiências Públicas do Supremo Tribunal Federal (STF)
têm a função de estabelecer um diálogo entre a Corte e as questões mais
latentes, instigantes e polêmicas do mundo científico hoje, sobre as quais os
ministros do STF não têm competência para deliberar, apesar da formação
jurídica de excelência que eles possuem. As referidas Audiências Públicas
estão previstas nas Leis 9.868 e 9.882, ambas de 1999, e foram
regulamentadas pelo Regimento Interno do STF em 2009. No entanto, parece-
nos que a intenção do legislador não corresponde à forma com que as
Audiências Públicas vêm sendo utilizadas pelo STF.
A pesquisa ora apresentada possui como objetivo averiguar como o
instituto das audiências públicas tem sido utilizado pelo Supremo Tribunal
Federal, analisando, mais especificamente, qual o papel atribuído aos experts
nesse contexto. A motivação desta pesquisa se deu pela constatação de uma
carência de análise crítica nos trabalhos sobre as Audiências Públicas e
apresenta como problema o fato de que não existem critérios de
admissibilidade dos experts nessas Audiências. As hipóteses levantadas
afirmam que: (I) as Audiências Públicas do STF são utilizadas para legitimar
democraticamente as decisões judiciais; (II) não existem critérios de
admissibilidade dos experts bem definidos; e (III) tais características são
sintomas do desvirtuamento do instituto. A metodologia adotada envolve um
estudo de jurisprudência brasileira através da análise minuciosa dos
despachos convocatórios e das transcrições de vídeos das referidas
audiências no sítio eletrônico youtube. Além disso, foi feito um estudo de
teóricos estrangeiros a respeito da relação entre Direito e Ciência, uma vez
que pouco se fala sobre esse tema na doutrina brasileira. Este artigo está
organizado da seguinte forma: no próximo tópico nós abordamos o papel
exercido pelos experts no STF. No terceiro e quarto tópicos, indicamos o
pressuposto teórico adotado. No quinto, apresentamos o estudo empírico
realizado. No sexto, traçamos o perfil das audiências públicas. Finalmente, no
sétimo tópico está disposta a conclusão desta pesquisa.

1 A FUNÇÃO DOS EXPERTS


Ciente da necessidade de se abrir o Judiciário para a comunidade
científica e para a sociedade civil, o legislador criou o instituto das
Audiências Públicas e, neste contexto, a figura do expert. Conforme dispõe o
art. 9º, §1º da Lei 9868/99:
Em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou
circunstância de fato ou de notória insuficiência das informações
existentes nos autos, poderá o relator requisitar informações
adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita
parecer sobre a questão, ou fixar data para, em audiência pública,
ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na
matéria243.
No Regimento Interno do STF, os experts são definidos como especialistas
em questões técnicas, científicas, administrativas, políticas, econômicas e
jurídicas. Eles são pessoas com experiência e autoridade na matéria submetida
ao Tribunal244.
Os depoimentos dos experts se fazem necessários nos casos em que a
Corte é epistemicamente incompetente para avaliar determinadas afirmações.
As alegações fáticas trazidas por experts demandam uma avaliação judicial
que é diferente das alegações frequentemente trazidas por testemunhas leigas.
Existe uma diferenças entre a expert evidence e a análise leiga? O raciocínio
do especialista é diferente?
Em primeiro lugar, a expert evidence é fundada em opiniões e não
propriamente em fatos245. Isso não significa que estamos falando de uma mera
crença subjetiva, mas sim de uma crença justificada formada a partir de fatos,
ou seja, trata-se de uma interpretação técnica. Dessa forma, ela se diferencia
da análise leiga, que será pautada muitas vezes no que as pessoas
simplesmente “acham”. A grande questão relacionada à expert evidence é que,
por se tratar de um conhecimento de especialista que não pode ser
propriamente acessado por quem não tem perícia na área e/ou no tema
específico a ser trabalhado, há dificuldades epistemológicas para a avaliação
do seu depoimento. Além disso, na maioria das vezes o magistrado se vê
obrigado a confiar no depoimento do expert, pois frequentemente a “expert
evidence é apresentada por testemunhas que representam comunidades de
prática fora do domínio jurídico [...]. Enquanto que a Corte tem competência
para avaliar provas de maneira geral, a sua competência para avaliar a expert
evidence especificamente é mais limitada”246. Em outras palavras, devido ao
fato de que o jurista não possui formação técnica em outras áreas do saber, a
sua competência para analisar diferentes teorias e estudos científicos é
pequena, sendo muito difícil para ele saber qual é a mais “correta”,
“verdadeira” ou aplicável ao caso concreto.

2 ENTRE FATOS E VALORES: UMA QUESTÃO DE GRAU


O pressuposto teórico adotado é de que há uma diferenciação de grau
entre questões de fato e questões de valor. Em linhas gerais, assumimos que
enunciados fáticos são verdadeiros ou falsos independentemente do que
qualquer pessoa ou comunidade específica possa pensar. Questões de valor,
por sua vez, são aquelas que envolvem opções políticas, morais e jurídicas.
Sobre a veracidade ou falsidade dos enunciados fáticos, cabe destacar que
adotamos um modelo epistemológico-cognoscitivista em oposição a um
modelo construcionista, como define Marina Gascón:
[A]quele modelo segundo o qual os procedimentos de fixação dos
fatos se dirigem à formulação de enunciados fáticos que serão
verdadeiros se os fatos que eles descrevem tiverem ocorrido e falsos
em caso contrário. Em outras palavras, a fixação judicial dos fatos
não pode ser, por exemplo, consequência do puro decisionismo ou
construtivismo, mas o resultado de um juízo descritivo de fatos a que
se atribui uma “existência independente”. Por isso, o conceito de
verdade requisitado por este modelo é o semântico da
correspondência e o principal critério de verdade é o do contraste
empírico247.
Este trabalho, portanto, adota a teoria da verdade como correspondência,
que atesta que um enunciado será verdadeiro quando estiver adequado à
realidade a que se refere, ou seja, demanda que os fatos narrados
correspondam ao estado de coisas em que estão inseridos248. Isso significa que
os enunciados fáticos descrevem a realidade, mas que os fatos têm uma
existência independente daqueles. Ou seja, os enunciados fornecem
informações sobre os fatos, mas não os constituem. Rejeitamos, assim, as
teorias da verdade como coerência ou aceitabilidade justificada. Estas podem
até servir como um teste subsidiário de verificação sobre se o que está sendo
dito é verdadeiro, mas não são propriamente a verdade249. Além disso,
identificamo-nos com o realismo epistemológico, que sustenta duas teses: uma
metafísica e uma epistemológica. “A tese metafísica consiste em se pressupor
que existe um mundo real, independente do sujeito cognoscente. A tese
empírica consiste em se pressupor que podemos conhecer este mundo real,
ainda que seja de forma imperfeita”250.
Conforme destaca Marina Gáscon: “que os enunciados são fáticos significa
dizer que são uma descrição dos eventos que ocorreram; é dizer, que o juízo
de fato tem natureza descritiva”251 e “[q]ue os enunciados são verdadeiros
significa dizer que os atos descritos por eles ocorreram252”. Nota-se ainda que
“afirmar a veracidade dos enunciados fáticos não é uma questão trivial (...)
porque o juiz não teve acesso direto aos fatos, de modo que aquilo que ele
imediatamente conhece são os enunciados sobre os fatos, em cuja veracidade
ele tem que acreditar”253. A partir dessa constatação a autora destaca que
surgem alguns problemas. O principal para nós é que “se na determinação dos
fatos foi necessário introduzir valorações seria difícil afirmar que esses juízos
são descritivos e não valorativos, ao menos em parte254”. Do que decorre a
necessidade de se “reduzir ao mínimo possível a discricionariedade ou
atuação valorativa do juiz na fixação dos fatos”255.
Por este motivo, é importante ressaltar que a diferenciação entre fatos e
valores serve para fins didáticos e que não deve ser interpretada como um
modelo rígido. Nós optamos por utilizar dois polos ideais para indicar quais
Audiências Públicas estão mais “próximas”, ou seja, quais delas abordam
temas mais relacionados a questões valorativas ou fáticas. Evidentemente,
existem casos de difícil classificação e nós reconhecemos que há fatos que são
construídos socialmente, como o dinheiro, por exemplo, que depende da
aceitação social para ter liquidez. Isto é, depende do que as pessoas “pensam”
sobre ele, caso contrário perde a sua função. Dentro desse contexto,
acreditamos que experts devem ser chamados para tratar de questões de fato,
enquanto que amici curiae devem trabalhar aspectos valorativos, dando maior
legitimidade à decisão judicial, sendo ambos muito importantes em uma
audiência pública.
Todavia, qual é afinal a diferença entre fatos e opiniões – questões
valorativas – e em qual sentido eles estão sendo empregados neste trabalho?
Seguindo a distinção feita por Dwyer, conclui-se que “fato” é a verdade
conhecida através da observação ou testemunho autêntico e que se opõe ao que
é meramente inferido, a conjecturas ou ficções. O termo “opinião”, por sua
vez, pode ser entendido como: (I) reflexo da avaliação das provas
disponíveis; conclusão alcançada; julgamento formado; ou seja, como “o que
eu concluí através de um raciocínio cuidadoso” ou (II) conclusão alcançada
com pouca ou nenhuma consideração com os pormenores das provas, isto é,
enquanto simplesmente “o que eu acho”256. Neste trabalho, nos referiremos a
“opiniões” sempre no primeiro sentido.
A partir disso pergunta-se sobre como deverá ser classificada a expert
evidence levada até a Corte julgadora. E é aqui que se torna claro o motivo
pelo qual nós rejeitamos uma distinção absoluta e estanque entre fatos e
opiniões/valores. Ocorre que quando o expert é chamado para atuar no
tribunal ele não leva tão somente o que observou de forma neutra, pois, nos
casos em que as suas observações só puderem ser sensivelmente expressadas
enquanto opiniões, ele se verá obrigado a lançar mão destas. Sendo assim:
[o] que o expert traz para o processo não é a sua opinião por si só
[…], mas uma recomendação de um especialista sobre qual é a forma
apropriada de se aplicar as generalizações a uma determinada série
de fatos, além de possivelmente a própria conclusão do expert sobre
o resultado advindo da aplicação dessas generalizações257.
Vê-se, portanto que, na prática, há uma confusão entre os conceitos. Isso
porque o expert é chamado para informar a Corte sobre os fatos por ele
observados, agregados da sua opinião de especialista, ou seja, da
interpretação técnica que ele fez sobre os referidos fatos. Em outras palavras,
o depoimento dos experts consiste em opiniões que ele desenvolveu a partir
de fatos, os quais ele pode identificar e trabalhar graças à sua expertise258.
Isso porque:
[g]eralmente, dentro ou fora da Corte, qualquer descrição deve
inevitavelmente depender de alguma avaliação. O acesso a fatos é
inevitavelmente mediado pelas vivências, suposições e crenças de
cada um. Em uma linguagem atual, fatos são socialmente construídos
e construídos a partir de uma visão de mundo259.
Sendo assim, “essa distinção na qualidade de inferências apenas existe se
nós aceitarmos que há uma diferença essencial em vez de pragmática entre
fatos e opiniões. Se nós dissermos que todos os fatos contêm algum grau de
inferência, então essa distinção desaparece potencialmente”260. Segundo
Dwyer a:
[e]xpert evidence não pode ser classificada satisfatoriamente com a
distinção entre fatos e opiniões. O problema é que, enquanto que uma
parte da expert evidence consiste em opiniões que ela tenha auferido
dos fatos, outra parte consiste em fatos constitutivos que podem ter
sido fornecidos por um não expert, um expert também pode
identificar e trabalhar com fatos que são apenas observáveis em
função da sua expertise, ou reconhecidos como significativos por
causa da sua expertise261.
Todavia, se a referida distinção não abarca todos os nuances relativos à
expert evidence, por que optamos por mantê-la? Ocorre que apesar de haver
casos práticos em que é difícil saber se trata-se de fatos ou opiniões, existe
uma diferença quanto ao grau de inferência envolvido. Todos os fatos são
formados por inferências, mas estes são separados de opiniões porque o grau
de inferência deles é considerado pequeno. Nas opiniões, por sua vez, tem-se
proposições formadas de um grande espectro de inferência, tanto por pessoas
que testemunharam os fatos, quando por aquelas que dependem inteiramente
das inferências de terceiros. Ou seja, a diferença que existe entre fatos e
opiniões é que o grau de inferência envolvido no raciocínio fático é menor do
que o constante nas opiniões.
Vejamos um exemplo.

3 UM EXEMPLO: QUEIMADAS EM CANAVIAIS


Para exemplificar o referido argumento, recorreremos à audiência pública
convocada pelo Ministro Luiz Fux para tratar do caso das queimadas em
canaviais, discutido no âmbito do Recurso Extraordinário (RE) nº 586.224 no
STF. In casu, discutia-se se a queima da palha da cana-de-açúcar em
canaviais afetava ou não a saúde dos trabalhadores. Ocorre que se as
queimadas são prejudiciais ou não é um fato que independe do que as pessoas
(até mesmo aquelas que formam a comunidade científica) pensam sobre ele.
Para que a sua veracidade seja constatada, um expert deverá realizar um
estudo empírico cuidadoso para, a partir de evidências justificadas, identificar
(caso a ciência já tenha se desenvolvido a esse ponto) se algum dano pode ser
decorrente dessas queimadas e, em caso positivo, quais são eles e se existe
uma alternativa262 para a referida prática. A partir disso conclui-se que muitas
vezes o julgador, em função da sua ignorância temática, tem que prestar
deferência ao que a comunidade científica acredita, reconhecendo “o papel do
expert, da autoridade, da confiança justificada na competência dos outros” 263.
Porém, isso não significa que os juristas devam confiar cegamente no que
diz a Ciência e nem que os cientistas podem dar as suas opiniões profissionais
de maneira pouco ou mal justificada. Mas como poderá um juiz ou ministro,
ainda que do Supremo Tribunal Federal, apreciar evidências que são trazidas
por experts se as Faculdades de Direito são focadas na dogmática jurídica e
pouco (ou nada) ensinam de Metodologia ou de qualquer área do saber que
não raciocine com base no Direito? Se o exercício do Direito hoje exige, cada
vez mais, que magistrados, promotores, procuradores, defensores e advogados
encontrem respostas para a resolução de casos concretos em conhecimentos
extrajurídicos, seria essencial que os operadores do Direito buscassem obter
uma formação multidisciplinar? Seria importante que aprendessem a avaliar as
pesquisas que lhe forem apresentadas, de forma a ficarem menos dependentes
da visão dos profissionais que são chamados a dar o seu parecer sobre o caso
a ser julgado? Seria possível aumentar a capacidade epistêmica do julgador
em se tratando de questões “tipicamente científicas”?

4 ESTUDO EMPÍRICO
Entendidos os pressupostos teóricos desta pesquisa, cabe agora relacioná-
los com o estudo empírico das Audiências Públicas do Supremo Tribunal
Federal. Dezesseis audiências públicas foram realizadas em toda a história do
STF até o fechamento deste artigo, sendo a primeira convocada em 2007,
muito embora houvesse previsão legislativa para a realização de audiências
públicas no STF desde 1999.
Audiências Públicas Convocadas (2007-2014)264

Analisamos todos os despachos convocatórios destas audiências265. Da


mesma forma, estudamos todas as transcrições destas ou seus respectivos
vídeos no Youtube (nos casos em que as transcrições ainda não houvessem
sido disponibilizadas). O primeiro dado importante é o do número de
audiências públicas convocadas por cada ministro.
Audiências Públicas Convocadas por Ministro (2007-2014)266
Conforme indicado no gráfico acima, apenas sete ministros já convocaram
Audiências Públicas no Supremo Tribunal Federal. A primeira audiência
pública do STF foi convocada pelo ministro Carlos Ayres Britto em 2007 no
âmbito da ADI nº 3.510 para discutir sobre pesquisas com células-tronco
embrionárias, sendo esta a única audiência convocada por ele. Vê-se ainda
que o ministro Luiz Fux foi o responsável pela realização de cinco audiências
públicas para versar sobre: (i) alterações no marco regulatório da gestão
coletiva de direitos autorais no Brasil; (ii) financiamento de campanhas
eleitorais; (iii) queimadas em canaviais; (iv) novo marco regulatório para TV
por assinatura no Brasil e (v) “Lei Seca” – proibição da venda de bebidas
alcoólicas nas proximidades de rodovias, sendo, portanto, quem mais
convocou audiências. A entrada do ministro Fux no STF é o principal motivo
pelo qual houve um grande aumento do nº de audiências convocadas nos anos
de 2012 e 2013267. O ministro Marco Aurélio, por sua vez, convocou três
audiências, sendo elas sobre os seguintes temas: (i) programa “Mais
Médicos”; (ii) proibição do uso de amianto e (iii) interrupção de gravidez –
feto anencéfalo. O ministro Gilmar Mendes convocou duas audiências, sendo
elas sobre: (i) regime prisional e (ii) judicialização do direito à saúde. A
ministra Cármen Lúcia, sobre (i) biografias não autorizadas e importação de
pneus usados. O ministro Dias Toffoli, sobre: (i) internação hospitalar com
diferença de classe no SUS e (ii) campo eletromagnético de transmissão de
energia. Já o ministro Ricardo Lewandowski convocou apenas uma audiência
pública, que versou sobre políticas de ação afirmativa de acesso ao ensino
superior.
Outra questão importante para nós foi verificar qual o número máximo de
ministros que já participaram de uma audiência pública, pois, caso se
constatasse que os ministros de fato participam dessas audiências, o referido
dado corroboraria a hipótese de que há um efetivo interesse por parte deles
em ouvir o que os experts e amici curiae têm a dizer.
Presença dos Ministros por Audiência (2007-2014)268

A ideia por trás da realização dessas audiências é que os ministros tenham


a possibilidade de esclarecer as suas dúvidas, de ouvir opiniões de
especialistas na temática e, no caso dos amici curiae, de se aproximar da
sociedade civil. Isso ajudaria os ministros a tomar uma decisão mais acertada
no caso concreto. Infelizmente, conforme o disposto no gráfico abaixo, esta
pesquisa concluiu que o no máximo três ministros já estiveram presentes em
uma audiência pública, muito embora seja sabido que o Tribunal é composto
de onze ministros. Ocorre que os estes são convidados a participar das
audiências públicas, mas não têm qualquer obrigação de comparecer.
Na prática, constata-se que o ministro relator, ou seja, normalmente aquele
que convocou a audiência, está sempre presente e comanda os trabalhos e que
em oito casos o ministro Presidente do STF também compareceu, mas
dificilmente permaneceu até o final da audiência, estando presente
normalmente apenas no início dos trabalhos. Em quatro destes casos teve-se
além do relator e do Presidente um terceiro ministro participando da
audiência. Porém, em oito audiências apenas o relator esteve presente. Diante
dessa chocante constatação o leitor pode estar se perguntando o quão restrito
foi o conceito de “presença” adotado, mas, talvez se assuste ainda mais ao
saber que foi bastante amplo. Foram considerados presentes para os fins de
elaboração deste gráfico os ministros que tenham adentrado a sala na qual
estava sendo realizada a audiência pública por qualquer intervalo de tempo,
ainda que tenha sido por um mero minuto. No entanto, ainda assim, apenas
chegamos ao número máximo de três ministros presentes em uma audiência
pública. O que desanimadoramente corrobora a nossa hipótese de que há um
descaso por parte dos ministros com relação ao que está sendo feito nessas
audiências, muito embora haja um discurso que coloca as audiências públicas
como um importante instrumento de legitimação judicial e de abertura
democrática da Corte para a comunidade científica e para a sociedade civil.
4.1 Entendimento da Corte
Após se discutir qual o papel atribuído pelo legislador às audiências
públicas, cabe destacar qual é a visão dos próprios ministros sobre o instituto.
Sendo assim, destacaremos alguns trechos das falas dos ministros que sejam
representativos do entendimento da Corte sobre as referidas audiências. O
Ministro Fux, por exemplo, afirmou na audiência pública de Financiamento de
campanhas o seguinte: “(...) gostamos de ouvir amicus curiae que tem aquele
entendimento técnico especializado269”. Denotando, portanto, uma clara
confusão entre experts e amici curiae, na medida que quem tem conhecimento
técnico é o expert, sendo o amicus curiae responsável por representar a
sociedade civil perante à Corte. Em outra audiência pública (sobre queimadas
em canaviais), ele disse que:
as Audiências Públicas permitem que o cidadão no exercício pleno
da sua cidadania contribua para que uma decisão judicial seja
legitimada democraticamente porque o grande trunfo de uma decisão
da Suprema Corte é obter confiança do povo. Essa é a grande arma
do Judiciário: é a confiança do povo270.
O ministro afirma assim o papel do instituto para legitimar
democraticamente as decisões judiciais. Nesta mesma audiência ele indicou
ainda que: “as audiências públicas são limitadas ao debate de aspectos
técnicos, nós não trazemos em uma audiência pública debates jurídicos” 271. O
que é bastante sensato, especialmente no que diz respeito aos experts, haja
vista que questões jurídicas devem ser debatidas no Plenário pelos próprios
ministros, que são competentes para tanto; Mas, na prática isso não ocorre,
conforme será demonstrado adiante.
O ministro Marco Aurélio atestou, por sua vez, que o expert é um “símbolo
marcante da própria democracia” 272 durante a sua exposição na audiência
pública sobre o uso de amianto. O ministro Carlos Ayres Britto destacou ainda
na audiência pública sobre pesquisas com células-tronco que: “não se trata
aqui [na audiência pública] de estabelecer um debate, um contraditório; Cada
grupo deve ouvir com respeito o outro grupo. O objetivo é colher dados para a
formulação mais consistente do que seja a vida” 273. Dessa forma, ele afastou a
possibilidade de haver qualquer tipo de confronto de ideias entre os experts.
Outros ministros já se posicionaram no mesmo sentido como, por exemplo, o
ministro Dias Toffoli na audiência pública sobre linhas eletromagnéticas de
transmissão de energia ao dizer:
ouviremos os técnicos que foram indicados tanto pelas partes quanto
por outros segmentos da sociedade e do Estado. A eles será dado o
prazo de quinze minutos para fazerem suas exposições. Infelizmente,
em razão da dinâmica do trabalho, não haverá espaço para perguntas
do plenário a respeito das colocações trazidas pelos expositores, daí
por que nós não teremos esse debate. Existe a possibilidade de haver
perguntas por parte da Mesa, evidentemente, mas as partes terão
sempre o protocolo aberto, bem como o e-mail da audiência pública,
para encaminhar seus pontos de vista referentes às exposições feitas
por cada qual dos expositores274.
Além dele, a ministra Cármen Lúcia também se posicionou na audiência
pública sobre biografias não autorizadas275.
4.2 Critérios de Inadmissibilidade de Experts
Dito isso, destacaremos alguns critérios de inadmissibilidade de experts
explicitados pela ministra Cármen Lúcia na audiência pública de Biografias
não autorizadas. Ela diz que o expert não pode ter ações pendentes em juízo
ou mesmo já julgadas pela Corte. Isso, com o objetivo de afastar interesses
pessoais da fala deste especialista. Além disso, segundo a ministra, deve
haver respeito a qualquer opinião profissional de outros experts, no sentido de
que não deve haver contraditório, ou seja, de que não haverá embate entre os
experts. Ela diz que eles inclusive não podem fazer perguntas uns para os
outros. Tudo isso para fazer prevalecer o interesse público, que deve reger as
audiências públicas276. A ministra Cármen Lúcia foi a única a estabelecer
critérios (ainda que muito amplos e sem maiores preocupações com a
competência técnica dos experts admitidos) de inadmissibilidade de experts, o
que demonstra a falta de preparo da Corte para lidar com questões técnico-
científicas e saber o que deverá ser aceito ou não pela Corte, afastando a
ciência “ruim” (junk science) e também a não ciência (non science)277.
Segundo Dwyer:
opiniões formadas a partir de mera especulação ou de evidências
pouco claras podem ser seguramente afastadas de considerações de
tribunais sobre os fatos, uma vez que isso permitiria que decisões
fossem tomadas com base em fofocas ou especulações ou permitiriam
evidências que em caso contrário seriam inadmissíveis278.
No entanto, o STF não demonstra uma preocupação em afastar nem mesmo
as evidências que “seguramente” deveriam estar fora do âmbito do Tribunal, o
que diminui a qualidade das decisões judiciais no que diz respeito à sua base
fática.

5 NATUREZA AMBIVALENTE DAS AUDIÊNCIAS


PÚBLICAS
A partir do pressuposto de que existe uma diferenciação de grau entre
questões fáticas e valorativas, acreditamos que as Audiências Públicas no
Supremo Tribunal Federal possuem um caráter ambivalente. Os experts vão
até a Corte não apenas – como devido – para tratar de questões técnico-
científicas, mas, também, para trabalhar questões valorativas que deveriam ser
debatidas pelos próprios ministros no Plenário e/ou levantadas pelos amici
curiae. Sendo assim, elas têm tanto um caráter fático quanto valorativo. Para
ilustrar o referido argumento, nós elaboramos um gráfico traçando o perfil
dessas audiências públicas no que diz respeito ao papel desenvolvido pelos
experts. É importante ressaltar que o nosso objetivo não é definir o ponto
específico que cada audiência pública se situa, mas apenas indicar a diferença
de grau entre os dois polos explicitados, reconhecendo que há casos de difícil
classificação e que em uma mesma audiência pública os experts podem
abordar ambas as questões. O espectro abaixo foi elaborado com base na fala
dos próprios ministros do STF e daquilo que nós extraímos dos depoimentos
dos experts. De um lado indicamos as questões valorativas e/ou jurídicas, ou
seja, aquilo que não seria objeto da fala de um expert em uma audiência
pública por se tratar de interpretação jurídico-constitucional e/ou opções
políticas. E no outro polo do espectro estão dispostas as questões técnicas,
que demandam um conhecimento especializado.
Perfil das Audiências Públicas (2007-2014)279

A seguir, indicamos algumas das principais questões levantadas, conforme


a numeração que se lê no gráfico acima: (1) Proibição do uso de amianto (ADI
3.937): Há substitutos seguros para a crisotila? (2) Interrupção de gravidez –
feto anencéfalo (ADPF 54): Há expectativa de vida para fetos anencéfalos
fora do útero? (3) Queimadas em canaviais (RE 586.224): “Quais os impactos
da queima de palha para a saúde do trabalhador?” (Ministro Luiz Fux). (4)
Pesquisas com células-tronco embrionárias (ADI 3.510): Quando começa a
vida? (5) Importação de pneus usados (ADPF 101): A importação de pneus
usados gera danos ambientais e à saúde pública? (6) Lei Seca – proibição de
venda de bebidas alcoólicas nas proximidades de rodovias (ADI 4.103): Qual
grau de alcoolemia acarreta alteração nos sentidos, sendo imprudente a
direção? (7) Campo eletromagnético de linhas de transmissão de energia (RE
627.189): “Quais são os efeitos da radiação eletromagnética de baixa
frequência sobre o meio ambiente e a saúde pública”? (Ministro Dias Toffoli)
(8) Internação hospitalar com diferença de classe no SUS (RE 581.488):
Como é o funcionamento e qual é o “impacto administrativo e econômico da
diferença de classe no SUS”? (Ministro Dias Toffoli). (9) Programa Mais
Médicos (ADI 5.037 e ADI 5.035): A contratação de médicos para atuar na
rede pública é eficaz na melhoria do atendimento à população carente? (10)
Novo marco regulatório para TV por assinatura no Brasil (ADI 4.679, ADI
4.756 e ADI 4.747): “Qual o papel e natureza de cada atividade integrante da
cadeia do valor do mercado audiovisual de acesso condicionado”? (Ministro
Luiz Fux). (11) Financiamento de campanhas eleitorais (ADI 4650): Deve-se
estabelecer limites para o financiamento privado de campanhas? (12) Políticas
de ação afirmativa de acesso ao ensino superior (ADPF 186 e RE 597.285):
As cotas raciais são uma forma eficaz de promover igualdade no campo
educacional? (13) Alterações no marco regulatório da gestão coletiva de
direitos autorais no Brasil (ADI 5062 e ADI 5065): Quais os impactos da Lei
12.853/13 sobre a comunidade artística? (14) Biografias não-autorizadas
(ADI 4815): O sujeito da biografia que se sentir ofendido pode pedir a
exclusão de trecho(s) da obra ou isso fere a liberdade de expressão do artista?
(15) Regime prisional (RE 641320): Como lidar com o déficit de vagas no
sistema carcerário para o regime semi-aberto? (16) Judicialização do direito à
saúde (SL 47, SL 64, STA 36, STA 185, STA 211, STA 278, SS 2.361, SS
2.944, SS 3.345, SS 3.355): Qual é a “responsabilidade dos entes da
federação em matéria de direito à saúde”? (Ministro Gilmar Mendes).
A partir disso vê-se que a discussão, por exemplo, sobre qual é a
responsabilidade dos entes da federação em matéria de direito à saúde, ou
seja, qual é a interpretação que deve ser dada a um dispositivo constitucional
difere amplamente da averiguação sobre se a fibra do amianto é segura e se há
um substituto para a crisotila. Nota-se que há uma diferença clara entre os
tipos de audiência pública que são convocadas, corroborando a nossa hipótese
de que as audiências públicas possuem um caráter ambivalente.

CONCLUSÃO
Conclui-se, portanto, que nas audiências públicas do Supremo Tribunal
Federal, os ministros fazem referências explícitas às ideias de: “legitimação”,
“democracia”, “opinião pública” e “cidadania”, reforçando constantemente a
importância destas audiências para a abertura da Corte para a sociedade civil
e para a legitimação democrática das decisões judiciais. Isso, ao mesmo
tempo em que os próprios ministros não comparecem às mesmas, causando, no
mínimo, a impressão de que o caráter técnico-científico destas não está sendo
levado a sério. Além disso, os ministros confundem experts com amici curiae
– que muitas vezes vão até o STF para exercer o mesmo papel valorativo – e
convocam audiências para tratar de qualquer questão controvertida (e não
apenas de questões fáticas). A partir disso vê-se que há uma ausência de
comprometimento dos ministros, que sequer comparecem nas referidas
audiências. Há ainda um caráter personalista da convocação e admissão de
experts. Em vez de se seguir critérios de admissibilidade claros e unificados,
chama-se e/ou admite-se normalmente pessoas (como, por exemplo, o Dr.
Drauzio Varella, que foi convidado a participar mais de uma vez de audiências
públicas) ou entidades de renome na área (como, por exemplo, a Federação
Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, que foi convidada a participar da
audiência pública sobre anencefalia). Há ainda um sincretismo entre os
modelos adversarial e inquisitorial280. As audiências são inquisitoriais na
medida em que em alguns casos os experts são convidados pelos próprios
ministros a participar e, além disso, pois não há contraditório/ embate entre
eles (não há cross-examination, o cruzamento de informações não é feito). Os
experts não podem, por exemplo, fazer perguntas uns para os outros, o que nos
parece inadequado, haja vista que este debate possibilitaria que as partes
indicassem as falhas nas teorias umas das outras, fazendo com o que os
ministros percebessem determinados aspectos das teses que não saberiam por
conta própria. Por outro lado, as audiências seguem um caráter adversarial
porque as partes sempre possuem a prerrogativa de indicar os seus próprios
experts para “defender seus interesses”, de certa forma, perante a Corte.
Cabe ressaltar ainda que consideramos problemático que os ministros do
STF estejam convocando audiências públicas para discutir aspectos jurídicos,
para os quais eles têm ou pelo menos deveriam ter competência e que experts
e amici curiae estejam sendo confundidos de tal maneira que são chamados
para falar sobre os mesmos temas. O STF confunde Ciência e conhecimento
com política. Em vez de adotar de forma clara as suas próprias opções
políticas, suas interpretações jurídicas, eles as revestem de uma suposta
objetividade científica. Experts devem ser chamados para falar de estudos
empíricos por eles realizados e suas conclusões, devem dar a sua opinião de
especialistas e não para simplesmente dizer o que acreditam (de forma pouco
ou nada justificada) ser a melhor opção política. Constata-se, portanto, que o
Supremo Tribunal Federal confunde Direito e Ciência, legitimando suas
decisões fundadas em interpretações jurídicas e opções políticas com uma
suposta objetividade científica. Em contraste com o discurso de uma abertura
da Corte para a comunidade científica, o descaso dos ministros é latente e
questões valorativas ocupam a posição central.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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SCHAUER, Frederick. Can Bad Science Be Good Evidence? Neuroscience
and the Mistaken Conflation of Legal and Scientific Norms. University of
Virginia School of Law, 2009. Disponível em:
http://ssrn.com/abstract=1448744 . Acesso em: 10/12/14.

239 Este artigo é resultado do projeto de pesquisa “Questões de fato no Supremo Tribunal Federal”,
desenvolvido no âmbito do Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais (GREAT). Uma
versão preliminar deste estudo foi apresentada na XXXVI Jornada Giulio Massarani de Iniciação
Científica, Tecnológica, Artística e Cultural da Universidade Federal do Rio de Janeiro e no VI Fórum de
Grupos de Pesquisa em Direito Constitucional e Teoria do Direito da Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.
240 Graduanda da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(FND/UFRJ); monitora bolsista da disciplina Filosofia Geral na Universidade Federal do Rio de Janeiro; e
pesquisadora do Grupo de Pesquisa do Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais
(GREAT). E-mail: juliamassadas@gmail.com.
241 Advogada; mestranda em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; especialista em
Gestão de Organizações do Terceiro Setor e em Direito Constitucional e Docência em Ensino Superior
pela Universidade Estácio de Sá (UNESA); pesquisadora dos grupos Novas Perspectivas em Jurisdição
Constitucional e Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais (GREAT). E-mail:
fabianamaiaadv@yahoo.com.br.
242 Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ); professora do
Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD/UFRJ); e
Líder do Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais (GREAT). E-mail:
rachelherdy@direito.ufrj.br.
243 Legislação disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9868.htm. Acesso em 10/12/14.
244 Definição extraída dos arts.13, XVII e 21, XVII, ambos do Regimento
Interno do STF. Disponível em:
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoRegimentoInterno/anexo/RISTF_Maio_2013_v
Acesso em 10/12/14.
245 Dwyer, Déirdre. The judicial assessment of expert evidence.
246 Dwyer, Déirdre. The judicial assessment of expert evidence. p. 76. Tradução livre do original: “[…]
expert evidence is frequently presented by witnesses who represent persistent communities of practice
outside the legal domain […]. While the court has a competence to assess evidence generally, the court’s
competence to assess expert evidence specifically is more limited”.
247 Abellán, Marina Gáscon. Los hechos em el derecho. Bases argumentales de la prueba, p. 49.
Grifos no original. Tradução livre do original: “(...) aquel modelo según el cual los procedimentos de
fijación de los hechos se dirigen a la formulación de enunciados fácticos que serán verdadeiros si los
hechos que describen han sucedido y falsos em caso contrario. Em otras palavras, la fijación judicial de los
hechos no puede ser, por ejemplo, consecuencia del puro decisionismo o constructivismo, sino el resultado
de um juicio descriptivo de hechos a los que se atribuye <<existencia independiente>>. Por ello, el
concepto de verdade requerido por el modelo es el semântico de la correspondencia y el principal critério
de verdade el de la contrastación empírica”.
248 Cf. Abellán, Marina Gáscon. Los hechos em el derecho. Bases argumentales de la prueba, p. 51.
Em sentido contrário tem-se a teoria da verdade como coerência, que atesta que “a veracidade de um
enunciado consiste no seu pertencimento a um conjunto coerente de enunciados” (p.51) e as teorias
pragmatistas da verdade, que indicam que “um enunciado é verdadeiro se a crença na sua veracidade está
justificada crer que ele é verdadeiro uma vez que serve a algum fim (versão instrumentalista) ou porque é
aceito (versão consensualista)” (p. 51). Tradução livre dos originais: “la verdade de um enunciado consiste
en su pertinência a um conjunto coherente de enunciados” e “Un enunciado es verdadero si está
justificado crer que es verdadero porque sirve a algún fin (versión <<instrumentalista>>) o porque es
aceptado (versión <<consensualista>>). Grifos no original. Para um estudo mais aprofundado sobre o
tema V. Abellán, Marina Gáscon. Los hechos em el derecho. Bases argumentales de la prueba, pp. 50-
67.
249 Cf. Abellán, Marina Gáscon. Op. cit, p. 60.
250 Abellán, Marina Gáscon. Los hechos em el derecho. Bases argumentales de la prueba, p.
51.Tradução livre do original: “La tesis metafísica consiste em presuponer que existe un mundo real,
independiente del sujeto cognoscente. La tesis gnoseológica consiste em presuponer que podemos conocer
esse mundo real, aunque sea de forma imperfecta”.
251 Abellán, Marina Gáscon. Los hechos em el derecho. Bases argumentales de la prueba, p. 49.
Tradução livre do original: “Que los enunciados sean <<fácticos>> significa que son uma descripción de
los hechos acaecidos; es dicer, que el juicio de hecho tiene naturaliza descriptiva”. Grifos no original.
252 Abellán, Marina Gáscon. Los hechos em el derecho. Bases argumentales de la prueba, p. 49.
Tradução livre do original: “Que los enunciados fácticos sean <<verdaderos>> significa que los hechos
descritos por tales enunciados han tenido lugar”. Grifos no original.
253 Abellán, Marina Gáscon. Los hechos em el derecho. Bases argumentales de la prueba, pp. 49-50.
Tradução livre do original: “(...) afirmar la verdad de los enunciados fácticos no es uma cuestión trivial (...)
porque el juez no ha tenido acceso directo a los hechos, de modo que lo que imediatamente conoce son
enunciados sobre los hechos, cuya verdad hay que acreditar”.
254 Abellán, Marina Gáscon. Los hechos em el derecho. Bases argumentales de la prueba, p. 49.
Tradução livre do original: “(...) si em la determinación de los hechos fuera necesario introducir
valoraciones resultaria difícil afirmar que esos juicios son descriptivos y no valorativos, al menos en parte”.
255 Abellán, Marina Gáscon. Los hechos em el derecho. Bases argumentales de la prueba, p. 49.
Tradução livre do original: “reducir al mínimo posible la discrecionalidad o actuación valorativa del juez en
la fijación de los hechos”.
256 Cf. Dwyer, Déirdre. The judicial assessment of expert evidence, pp. 87-88.
257 Dwyer, Déirdre. The judicial assessment of expert evidence, p. 78. Grifos acrescidos. Tradução
livre do original: “What an expert brings to this process is not her opinions per se (…), but rather specialist
advice on the appropriate generalizations to apply to a particular set of facts, and how those
generalizations should best be applied, as well as possibly the expert’s own conclusion on the application of
those generalizations”.
258 Cf. Dwyer, Déirdre. The judicial assessment of expert evidence, pp. 88 – 92.
259 HL Ho. A Philosophy of Evidence Law. Justice in the Search for Truth, p. 9. Tradução livre do
original: “Generally, in and outside of the court, any description must inevitably rely on some evaluation.
Access to facts is inevitably mediated by one’s background assumptions and beliefs. In fashionable idiom,
facts are socially constructed and constructed from a worldview”.
260 Dwyer, Déirdre. The judicial assessment of expert evidence, p. 92. Tradução livre do original: “That
distinction in the quality of inferences only exists if we accept that there is an essential rather than
pragmatic difference between facts and opinions. If we say that all facts contain some degree of
inference, then that distinction potentially disappears”.
261 Dwyer, Déirdre. The judicial assessment of expert evidence, p. 90. Grifos acrescidos. A expressão
“expert evidence” está sendo utilizada neste texto no sentido de prova trazida pelo expert (especialista).
Já o termo “expertise” é utilizado aqui como sinônimo de especialidade; perícia em uma determinada área
do saber. Tradução livre do original: “Expert evidence does not allow itself to be classified tidily within the
fact/opinion distinction. The problem is that, while part of an expert’s evidence consists of opinions that she
has drawn from the facts, and another part consists of constituent facts that may have been provided by a
non-expert, an expert may also identify and work with facts that are either only observable because of her
expertise, or recognized as significant because of her expertise”.
262Posteriormente é interessante que se observe ainda se a referida alternativa é necessária, adequada e
proporcional em sentido estrito, seguindo a fórmula de sopesamento proposta por Robert Alexy. Para uma
análise aprofundada da temática Cf. Alexy, Robert. Principais elementos de uma teoria da dupla
natureza do direito.
263 Haack, Susan. Manifesto de uma moderada apaixonada. Ensaios contra a moda irracionalista,
p. 191.
264 Este gráfico foi elaborado por Júlia Massadas com base nos dados disponíveis no site do Supremo
Tribunal Federal até dezembro de 2014. Vale ressaltar que o critério utilizado para datar as audiências
refere-se à data de convocação, e não à realização.
265 A única exceção é o despacho convocatório da audiência pública para discutir o cabimento de ações
afirmativas no ensino superior (ADPF nº 186 e RE nº 597.285), pois este não foi publicado até a
finalização deste artigo. Ressalte-se aqui ainda que há uma grande dificuldade no desenvolvimento da
pesquisa no que diz respeito ao acesso à informação, haja vista que os despachos convocatórios demoram
para ser publicados pelo STF, assim como as transcrições das audiências. Tal contexto obriga o
pesquisador a assistir todos os vídeos referentes às audiências, o que demanda muito tempo.
266 Este gráfico foi elaborado por Júlia Massadas com base nos dados disponíveis no site do Supremo
Tribunal Federal até dezembro de 2014.
267 Ver supra: gráfico de audiências públicas por ano (2007-14).
268 Este gráfico foi elaborado por Júlia Massadas com base nos dados disponíveis no site do Supremo
Tribunal Federal até dezembro de 2014.
269 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?
v=K6YqPG4kQBc&index=1&list=PLippyY19Z47tzkhjOXH1_fi1JGgx-sBYz
Acesso em: 09/12/14. Grifos acrescidos.
270 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?
v=GtNGR1zhEyc&index=1&list=PLippyY19Z47vSUdzoXYw4mNEclkHMKVaa >Acesso em:
09/12/2014.
271 Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?
v=GtNGR1zhEyc&index=1&list=PLippyY19Z47vSUdzoXYw4mNEclkHMKVaa> Acesso em: 09/12/14.
Grifos acrescidos.
272 Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?
v=qvVgf_pSTnY&list=PL8031EED7EAEAF459&index=1.> Acesso em: 09/12/14.
273 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=E-
72dhUBb5g&index=1&list=PLippyY19Z47tTbo0EN-CjZ8n_Ymp4Rbk3>. Acesso em 09/12/14.
274 Transcrição da audiência pública disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TrancricaoCampoEletromagn
pp.5 e 6.>
275 Vídeo da audiência disponível em: <https://www.youtube.com/watch?
v=p8B_UBERIhQ&index=1&list=PLippyY19Z47snMTqOO3vtRdit5BeN6QVj>.
Acesso em 09/12/14.
276 Informações disponíveis em: <https://www.youtube.com/watch?
v=p8B_UBERIhQ&index=1&list=PLippyY19Z47snMTqOO3vtRdit5BeN6QVj> . Acesso em 09/12/14.
277 Cf. Schauer, Frederick. Can Bad Science Be Good Evidence? Neuroscience and the Mistaken
Conflation of Legal and Scientific Norms.
278 Dwyer, Déirdre. The judicial assessment of expert evidence, p. 96. Tradução livre do original:
“Opinions formed from idle speculation or from no clear evidence can be safely excluded from
considerations by the tribunal of fact, since it would allow for decisions based on gossip and speculation, or
allow in evidence that would be otherwise inadmissible”.
279 Este gráfico foi elaborado por Júlia Massadas com base nos dados disponíveis no site do Supremo
Tribunal Federal até dezembro de 2014.
280 Este trabalho não visa se aprofundar nas diferenças entre os modelos inquisitorial e adversarial. Sobre
a temática ver: Damasška, Mirjan R. The Faces of Justice and State Authority: A Comparative
Approach to the Legal Process. E, do mesmo autor, Evidence Law Adrift.
O CONTROLE DA EXECUÇÃO
ORÇAMENTÁRIA PELO JUDICIÁRIO NA
IMPLEMENTAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS
FUNDAMENTAIS281
THE JUDICIARY’S CONTROL ON BUDGET EXECUTION IN
THE IMPLEMENTATION OF FUNDAMENTAL SOCIAL
RIGHTS

Claudio Felipe Alexandre Magioli Núñez282


Renata Rogar283
Alessandra Almada de Hollanda284
Rafael Bitencourt Carvalhaes285
Pedro Bastos de Souza286
Celso de Albuquerque Silva287
Eduardo Garcia Ribeiro Lopes Domingues288

RESUMO
O Orçamento Público não deve ser um empecilho para a promoção dos direitos fundamentais sociais.
Portanto, a formulação das políticas públicas não deve ser de competência exclusiva dos Poderes
Executivo e Legislativo, já que o Poder Judiciário também está legitimado para o controle social e para a
promoção de políticas públicas. Apesar disso, a legitimidade do Judiciário não é ilimitada e, portanto, em
determinadas situações, não se pode analisar questões que envolvam políticas públicas em uma
perspectiva exclusivamente individual, já que o orçamento público é um instrumento de promoção dos
direitos sociais que possuem perspectiva coletiva. O presente artigo pretende discutir os limites de atuação
do Judiciário na implementação de políticas sociais levando-se em conta as questões que rondam a
elaboração e execução do Orçamento Público.

PALAVRAS-CHAVE
Poder Judiciário; políticas públicas; orçamento público.

ABSTRACT
Public budget should not be an obstacle to promote social fundamental rights. Therefore, formulation of
public policies should not be exclusive competence of the Executive and Legislative branches, since
Judiciary is also legitimated for social control and the promotion of public policies. Nevertheless, the
legitimacy of Judiciary is not unlimited. So, in certain situations, it cannot analyze issues involving public
policy in a purely individual perspective, since the public budget is a tool for social rights promotion on a
collective perspective. This article discusses the limits of the judicial role in implementation of social
policies taking, considering some issues that surround the development and implementation of the Public
Budget.

KEYWORDS
Judiciary; public policies; public budget.

INTRODUÇÃO
O mínimo existencial é o núcleo imutável do Princípio da Dignidade da
Pessoa Humana, que serve como base para estabelecer o mínimo que o
indivíduo deve receber como prestações de certos serviços públicos para a
mantença de sua vida com dignidade.
Diversos países, a exemplo do Brasil, passaram por uma grande
redemocratização, deixando de ser um Estado Liberal e passando a ser um
Estado Social. A atuação estatal positiva passa a ser obrigatória, diante dos
interesses sociais.
Mas para que estes direitos fundamentais, embora constitucionalmente
prestados, fossem realmente implementados pelo Estado, o papel do
Judiciário passa a ser fundamental, como último bastião na defesa dos direitos
fundamentais, especialmente os direitos fundamentais sociais básicos, para
que os demais Poderes os promovam e efetivamente os implementem. O
modelo de separação de poderes que vigorou durante o apogeu do positivismo
e do constitucionalismo liberal não possui mais as condições necessárias para
o atendimento dos anseios sociais. Esses paradigmas precisavam ser alterados
na vigência do constitucionalismo social pós-1945.
Surge o paradigma de interpretação do direito denominado de
neoconstitucionalismo, que tem por características básicas o reconhecimento
da centralidade da constituição e de sua força normativa; o reconhecimento
constitucional dos direitos fundamentais sociais; a blindagem desses direitos
por forte e robusto sistema de controle judicial; o surgimento de um novo
modelo de separação de poderes que reconhece o poder judiciário como um
verdadeiro poder político, inclusive para, ainda que subsidiariamente,
implementar e assegurar as políticas públicas quando referenciadas aos
direitos fundamentais, aí agora incluídos os sociais, econômicos e culturais.
A judicialização das políticas públicas tem seu lado positivo, já que a
prestação de serviços essenciais deve ocorrer, mesmo sem previsão
orçamentária, pois tratam de direitos fundamentais e o Judiciário não tem
como recusar a execução da sua prestação. Por outro lado, esse ativismo
judicial tem também sua faceta negativa, pois representa uma crise na
legitimidade democrática, eis que cada vez mais demandas que antes poderiam
se exaurir no âmbito dos Poderes Executivo e Legislativo, legitimamente
investidos para tal, acabam exaurindo-se no âmbito do Poder Judiciário.
O presente artigo pretende analisar os limites de atuação do Judiciário na
implementação de políticas sociais levando-se em conta as questões que
rondam a elaboração e execução do Orçamento Público. Busca-se apontar
para um caminho que fuja às posições maniqueístas – um Judiciário inerte e
indiferente às mazelas sociais x um Judiciário ultraativista, tendente a se
tornar um superpoder suplantando os demais.
Apresenta-se preliminarmente uma revisão de literatura sobre o campo de
conhecimento Políticas Públicas. Debate-se, de forma breve, o fenômeno da
judicialização da política para, em seguida, apresentar a discussão central do
estudo: o controle da execução orçamentária pelo Judiciário na implementação
dos direitos sociais fundamentais. Leva-se em conta o momento do controle e
seu âmbito: individual/coletivo, concreto/abstrato. Tais variáveis influenciam
na possibilidade de uma maior ou menor intervenção do Judiciário.

1 BREVES APONTAMENTOS SOBRE UM MARCO


TEÓRICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS
Celina Souza (2006, p.23) entende que a política pública em geral e a
política social em particular são campos multidisciplinares e seu foco está nas
explicações sobre a natureza da política pública e seus processos. Elas
repercutem na economia e nas sociedades, daí por que qualquer teoria da
política pública precisa também explicar as interrelações entre Estado,
política, economia e sociedade.
Costuma-se pensar o campo das políticas públicas unicamente
caracterizado como administrativo ou técnico, livre, portanto do aspecto
‘político’ propriamente dito, que é mais evidenciado na atividade partidária
eleitoral. Fernandes (2007, p. 203) considera este pensamento como uma
“meia verdade”, já que, apesar de se tratar de uma área técnico-
administrativa, a esfera das políticas públicas também possui uma dimensão
política, uma vez que está relacionada ao processo decisório.
Eloisa Hofling (2001, p.30) ressalta que, para além da crescente
sofisticação na produção de instrumentos de avaliação de programas, projetos
e mesmo de políticas públicas, é fundamental se referir às chamadas “questões
de fundo”, as quais informam, basicamente, as decisões tomadas, as escolhas
feitas, os caminhos de implementação traçados e os modelos de avaliação
aplicados, em relação a uma estratégia de intervenção governamental
qualquer. Uma destas relações consideradas fundamentais é a que se
estabelece entre Estado e políticas sociais, ou melhor, entre a concepção de
Estado e a(s) política(s) que este implementa, em uma determinada sociedade,
em determinado período histórico.
A reflexão de um conceito jurídico para políticas públicas relaciona-se
intrinsecamente com uma concepção multidisciplinar e humanística do Direito.
A polissemia do termo exige uma leitura que ultrapassa o conhecimento
político, repercutindo na economia, sociologia e no direito. Demais disso, a
dignidade da pessoa humana, enquanto fundamento da República Federativa
do Brasil, deve integrar a definição propugnada, centralizando desta maneira o
conhecimento no ser humano (Machado, 2010, p.14).
De acordo com Kim & Miranda (2010, p.72), as políticas públicas sociais
passam a ganhar maior importância na área do Direito com o entendimento de
que as normas programáticas geram sim efeitos positivos e negativos, havendo
um conteúdo mínimo, em especial, quando estabelecem obrigações positivas
com o fim de efetivar direitos fundamentais delineados na Constituição
Federal.
Maria Paula Bucci (2008, p.39) definiu política pública como “o programa
de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos
juridicamente regulados visando coordenar os meios à disposição do Estado e
as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes
e politicamente determinados.” Como tipo ideal, política pública deve visar a
realização de objetivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a
reserva de meios necessários à sua consecução e o intervalo de tempo em que
se espera o atingimento dos resultados.
Após realizar ampla revisão de literatura sobre o marco conceitual
referente a políticas públicas, Celina Souza (2008, p.26) define:
Pode-se, então, resumir política pública como o campo do
conhecimento que busca, ao mesmo tempo, “colocar o governo em
ação” e/ou analisar essa ação (variável independente) e, quando
necessário, propor mudanças no rumo ou curso dessas ações
(variável dependente). A formulação de políticas públicas constitui-
se no estágio em que os governos democráticos traduzem seus
propósitos e plataformas eleitorais em programas e ações que
produzirão resultados ou mudanças no mundo real.
De acordo com Bucci (2008, p.31) as políticas públicas não são categoria
definida e instituída pelo direito, mas arranjos complexos típicos da atividade
político-administrativa, que a ciência do direito deve estar apta a descrever,
compreender e analisar, de modo a integrar à atividade política os valores e
métodos próprios do universo jurídico.
As políticas públicas funcionam como instrumentos de aglutinação de
interesses em torno de objetivos comuns, que passam a estruturar uma
coletividade de interesses. Toda política pública é um instrumento de
planejamento, racionalização e participação popular. Os elementos das
políticas públicas são o fim da ação governamental, as metas nas quais se
desdobra esse fim, os meios alocados para a realização das metas e,
finalmente, os processos de sua realização (Bucci, 2001).
Trata-se de um movimento de interação constante entre o direito e a
política. O respeito aos direitos fundamentais e à dignidade da pessoa humana
são, em um momento inicial, prestigiados nos textos constitucionais. As
políticas públicas têm sido tratadas pelo Direito como meios para a efetivação
de direitos de cunho prestacional pelo Estado (Fonte, 2013, p.40). Isto implica
reconhecer nos direitos sociais e nos demais direitos fundamentais o objetivo
final de boa parte das políticas públicas executadas pelo Estado.
O fato é que não há uma definição “fechada” sobre políticas públicas,
tendo em vista os autores trabalharem com abordagens distintas, ou seja, a
abordagem estatística ou a abordagem multicêntrica, como será visto a seguir.
A abordagem estatista considera a política como pública quando
proveniente do ator estatal. Secchi (2012) destaca que, segundo essa
concepção, o que determina se uma política é ou não ‘pública’ é a
personalidade jurídica do ator protagonista. Essa abordagem também é
utilizada por Souza (2006). Já a abordagem multicêntrica, relaciona a política
pública com a natureza pública, ou seja, se o problema é público, não
importando a natureza privada ou pública do ator protagonista. Esta
abordagem é assim conceituada por Secchi (2012, p.2):
A abordagem multicêntrica, contrariamente, considera organizações
privadas, organizações não governamentais, organismos multilaterais,
redes de políticas públicas (policy networks), juntamente com os
atores estatais protagonistas no estabelecimento das políticas
públicas (Dror, 1971; Kooiman, 1193; Rhodes, 1997; Regonini,
2001). Autores da abordagem multicêntrica atribuem o adjetivo
‘pública’ a uma política, quando o problema que se teta enfrentar é
público.
Para fins do presente estudo, o mais coerente é seguir a abordagem
estatista, por envolver políticas públicas que são implementadas pelo Poder
Estatal e o consequente debate sobre o orçamento público. Vale salientar,
ainda, que quando o problema é público e seus atores tem natureza pública,
não importa a abordagem escolhida, já que ambas serão resolvidas
diretamente por atores estatais, desde a elaboração da política pública até a
sua avaliação.
Em relação às modalidades de política pública, interessante mencionar a
tipologia trazida por Theodore Lowi (1972), citado por Secchi (2012). Neste
modelo, encontram-se quatro tipos de políticas públicas:
Políticas Regulatórias: visa regular e determinar padrões de
comportamentos, serviços ou produtos para atores públicos ou privados.
Assim, através de suas burocracias, fica mais visível ao público. Secchi
(2012, p.17) conclui:
Segundo Lowi, as políticas regulatórias se desenvolvem
predominantemente dentro de uma dinâmica pluralista, em que a capacidade
de aprovação ou não de uma política desse gênero é proporcional à relação de
força dos atores e interesses presentes na sociedade.
Políticas Distributivas: seu sistema é utilizado quando uma política
pública visa alcançar um grupo social específico, embora o custo seja
repassado toda sociedade. Celina Souza (2006) assim o define:
(...)decisões tomadas pelo governo, que desconsideram a questão dos
recursos limitados, gerando grandes impactos mais individuais do que
universais, ao privilegiar certos grupos sociais ou regiões, em detrimento do
todo.
Políticas Redistributivas: envolvem a questão da concentração de
“riquezas”. Isto quer dizer, que é escolhido um grupo específico de atores para
receber determinados benefícios. Atinge maior número de pessoas, embora
possa impor perdas concretas e no curto prazo para certos grupos sociais.
(SOUZA, 2006). Para Secchi (2012, p.18):
O tipo de dinâmica predominante em arenas políticas redistributivas é o
elitismo, no qual se formam duas elites, uma demandando que a política se
efetive a outra lutando para a política seja descartada.
Políticas Constitutivas: está ligada a divisão de poderes. Esta política é
mais utilizada para definir competências e jurisdições, ou seja, define quem
elabora as políticas públicas ”São chamadas meta-policies, porque se
encontram acima dos três outros tipos de políticas e comumente moldam a
dinâmica política nessas outras arenas” (SECCHI, 2012, p.18).
Já em relação ao ciclo de políticas públicas, há uma série de etapas – que
nem sempre são lineares e nem sempre seguidas por completo, que vão da
identificação do problema à avaliação/feedback.
Na visão de Secchi (2012:33), o processo de elaboração de políticas
públicas, também conhecido como ciclo de políticas públicas, pode ser
sintetizado em sete fases principais: identificação do problema, formação da
agenda, formulação de alternativas, tomada de decisão, implementação,
avaliação e extinção.
Focalizando o momento de implementação, Sabatier (1986;1999), citado
por Secchi (2012, p.46-47), apresenta dois modelos básicos de
implementação de políticas públicas. O modelo top-down é caracterizado pela
separação clara entre o momento de tomada de decisão e de implementação,
nos quais os tomadores de decisão (políticos) são separados dos
implementadores (administração).
Para Secchi (2012, p.47) o modelo top-down de implementação parte de
uma visão funcionalista e tecnicista de que as políticas devem ser elaboradas
e decididas pela esfera política e que a implementação é mero esforço
administrativo de achar meios para os fins estabelecidos.
Já o modelo bottom-up (de baixo para cima), é caracterizado pela maior
liberdade de burocratas e redes de atores em auto-organizar e modelar a
implementação de políticas públicas. A implementação é predominantemente
avaliada pelos resultados alcançados posteriormente, em vez da avaliação
baseada na obediência cega a prescrições (Secchi, 2012, p.47).

2 PODER JUDICIÁRIO E A JUDICIALIZAÇÃO DA


POLÍTICA
A judicialização da política no Brasil decorre de um novo modelo
constitucional e é, em certa medida, inevitável. A inclusão na Constituição
Federal de 1988 dos direitos fundamentais de segunda geração (saúde,
educação, previdência e assistência social) e da mudança da visão do Estado,
que passa a fazer parte ativamente da vida do cidadão, através do implemento
de políticas públicas que deem efetividade a tais direitos, contribuem para
afirmar a intervenção do Judiciário nas decisões políticas. Ocorre que a
decisão política é tomada com base no orçamento público, ou seja, no
planejamento e previsão de receitas e despesas, conforme os artigos 165 a 169
da CRFB/88.
Além disso, a redemocratização pela qual passou o país fortaleceu e
expandiu o Poder Judiciário. Ainda pode ser apontado o sistema brasileiro de
controle de constitucionalidade como causa para essa expansão, tendo em
vista que as causas de natureza sociais passaram a ser objeto de controle de
constitucionalidade.
O que ocorre aqui, portanto, é o que se pode chamar de
constitucionalização da política, ou melhor, de judicialização da política.
Barroso (2009) elucida que a judicialização está ligada a questões sociais e
públicas, de ampla repercussão, decididas pelo Poder Judiciário ao invés do
Congresso Nacional e o Poder Executivo.
É de se notar que nem sempre o orçamento, como vetor da atividade
financeira estatal, consegue prever de maneira absoluta todas as despesas a
serem supridas. Ainda que as preveja, por vezes alberga dotação insuficiente
para supri-las. Nesse momento é que pode se fazer necessária a atuação do
Judiciário, com o intuito de fazer valer os direitos fundamentais
constitucionalmente assegurados. Deve-se, contudo, respeitar determinados
limites, já que a previsão orçamentária limita os gastos do poder público em
razão do princípio da legalidade da despesa pública, também previsto
constitucionalmente. Assim, por vezes torna-se impossível agregar uma nova
política pública a despesas não previstas no orçamento anual.
Para tanto, a Carta Magna é expressa em determinar que a abertura de
créditos somente será realizada mediante lei (com exceção dos créditos
extraordinários), haja vista que a previsão orçamentária concretizada mediante
lei é a expressão mais autêntica do Estado Democrático de Direito. Para
realizar o planejamento orçamentário, os cidadãos expressam suas vontades
por intermédio de seus representantes, constituídos no Poder Legislativo.
Assim, quando o Judiciário atua ativamente nas políticas públicas do Estado
há de fazê-lo em ocasiões excepcionais e para garantir a efetividade do núcleo
dos direitos fundamentais, pois, cabe esclarecer, que não possui legitimidade
para “burlar” o processo legislativo, a fim de garantir o atendimento às
necessidades sociais
O Poder Judiciário não é composto por indivíduos eleitos pelos cidadão, o
que não lhe confere legitimidade democrática. Isto o torna alvo de críticas
quanto na seara da judicialização da política. Os componentes dos poderes
Legislativo e Executivo, por sua vez, naturalmente tomam decisões de natureza
políticas, com representantes do povo e capacidade para tomar tais decisões.
Assim, iniciam-se as divergências sobre a atuação do Judiciário ao
interferir nas políticas públicas, já que existem princípios que limitam a
própria atuação do Legislativo - responsável pelo planejamento orçamentário
- ao elaborar a legislação sobre o orçamento público, como por exemplo, a
legalidade financeira e a separação dos poderes. Não obstante, há de existir
uma solução viável a comprometer o Executivo e o Legislativo a realizar
políticas públicas com o fim de atender, pelo menos, ao mínimo existencial.
Para Lobo Torres (1999, p.32-33), “o mínimo existencial exibe as
características básicas dos direitos da liberdade: é pré-constitucional, posto
que inerente à pessoa humana; constitui direito público subjetivo do cidadão,
não sendo outorgado pela ordem jurídica, mas condicionando-a; tem validade
erga omnes, aproximando-se do conceito e das conseqüências do estado de
necessidade; (...) é dotado de historicidade, variando de acordo com o
contexto social.”
Na omissão dos demais poderes democraticamente eleitos, a Constituição
– por sua normativa – confere ao Judiciário legitimidade para assegurar uma
solução alternativa que garanta a prestação de serviços essenciais, mas sua
atuação tem que ser com o cuidado de a prestação jurisdicional respeitar os
limites orçamentários. Deve, também, alcançar o maior número possível de
indivíduos, sempre visando uma perspectiva coletiva.
O fenômeno da judicialização das políticas públicas tem seu lado positivo,
já que a prestação de serviços essenciais, conforme Torres (1989), deve
ocorrer mesmo sem previsão orçamentária, pois, trata-se de direitos
fundamentais e o Judiciário não tem como recusar a execução da sua
prestação. Por outro lado, esse ativismo judicial tem sua faceta negativa, pois
pode representar uma crise na legitimidade democrática: cada vez mais
demandas que antes poderiam se exaurir no âmbito dos poderes Executivo e
Legislativo, acabam exaurindo-se no âmbito do Poder Judiciário.
Sobre o assunto, Barroso (2009) alude que o Judiciário realmente é quem
interpreta as normas constitucionais ou legais em vigor, no caso de
divergência entre elas. Porém, isto não quer dizer que possua uma primazia
absoluta, tendo em vista não ser toda e qualquer matéria passível de ser objeto
de decisão judicial. Contudo, esta não é a postura que o Judiciário vem
adotando no Brasil. Por vezes observam-se grandes intervenções, em algumas
hipóteses sem qualquer limite, nas atribuições e competências conferidas aos
poderes Legislativo e Executivo. É o que ocorre, por exemplo, no caso da
saúde, em que são concedidas tutelas de caráter individual sem previsão
orçamentária, que prejudicam a coletividade que seria beneficiada por
determinados programas de saúde previstos no orçamento.

3 O CONTROLE DA EXECUÇÃO ORÇAMENTÁRIA PELO


JUDICIÁRIO NA IMPLEMENTAÇÃO DOS DIREITOS
SOCIAIS FUNDAMENTAIS
A criação e formulação das políticas públicas depende de uma decisão
política que, para sua implementação, necessita da inclusão na previsão
orçamentária. Em outras palavras, no momento da aprovação da legislação
orçamentária a política pública deve estar apontada nas despesas estatais. A
criação de políticas públicas serve como propulsor para a promoção dos
direitos sociais, principalmente os direitos sociais fundamentais básicos para
a existência digna dos indivíduos.
O orçamento público não pode ser visto como um empecilho à promoção
dos direitos fundamentais sociais, já que o dever de prestar esses direitos pelo
Estado vem por determinação constitucional, conforme o art. 6º, da
Constituição Federal de 1988. Para tanto, o Judiciário tem um papel
fundamental, com o objetivo de fiscalizar e defender esses direitos,
representando o controle social.
Conforme bem destacado por Almeida & Acioli (2012, p.2), o Poder
Judiciário não exerce mais aquele papel idealizado pelo modelo de
Montesquieu, o da “boca da lei”, em que tomava a posição de mero limitador
do Poder absoluto. Na visão mais conservadora, com base na teoria da
separação dos poderes, a criação do direito era papel exclusivo do Poder
Legislativo.
O poder político é uno e indivisível; manifesta-se por meio de funções.
Partindo desse pressuposto, o fenômeno da separação dos poderes nada mais é
do que a separação das funções estatais dos diferentes órgãos do Estado. As
funções legislativas eram a criação e aperfeiçoamento das leis; a função
executiva consistia basicamente na resolução das questões internacionais
(declaração de guerra, determinação de paz); por fim, a função judiciária, que
era a faculdade de punir os crimes e julgar os dissídios de ordem cível
(ALMEIDA & ACIOLI, 2012, p.2).
No Estado Democrático de Direito, as Cartas Constitucionais
contemporâneas permitiram uma expansão do Judiciário, que passa a ser um
dos maiores defensores dos direitos fundamentais. Conforme destacado por
Bucci (1997, p.90), com o fim da Segunda Guerra Mundial e o advento de
políticas sociais de saúde, seguridade social e habitação, muito expressivo
nos países da Europa e nos Estados Unidos, há um aprofundamento de uma
alteração qualitativa das funções do Estado, que do plano da economia se
irradia sobre o conteúdo social da noção de cidadania. De acordo com Bucci
(1997, p.90):
O dado novo a caracterizar o Estado social, no qual passam a ter
expressão os direitos dos grupos sociais e os direitos econômicos, é
a existência de um modo de agir dos governos ordenado sob a forma
de políticas públicas, um conceito mais amplo que o de serviço
público, que abrange também as funções de coordenação e de
fiscalização dos agentes públicos e privados.
É bom lembrar, conforme bem faz Silva (2009, p.8), que o modelo teórico
clássico da separação de poderes, cuja finalidade primordial era a superação
do Estado Absoluto com a instituição de controles recíprocos entre os vários
poderes públicos, experimentou variações ao longo do desenvolvimento do
movimento constitucionalista e da consolidação do Estado de Direito. Em sua
origem apresenta-se como uma teoria jurídico-formalista, na qual, na visão de
seu principal formulador (Monstesquieu), o Judiciário nada mais seria do que
a boca pela qual falaria a lei. O Poder Judiciário, então, é visto nessa
perspectiva como um mero limite contra o poder absoluto, reduzindo a atuação
judicial à clássica concepção de um legislador negativo típica do estado
liberal absenteísta. Ainda segundo Silva (2009, p.8):
Nessa visão mais conservadora do princípio da separação dos poderes, o
legislador possuiria o monopólio na criação do direito. Posteriormente o
advento do Estado Democrático de Direito promoveu um resgate da força
normativa da Constituição e abriu espaço para um processo de expansão do
Judiciário na proteção dos direitos fundamentais e, até mesmo, na intervenção
e/ou proteção de políticas públicas não realizadas pelos demais poderes do
Estado, superando-se a vetusta visão da função judicial negativista clássica,
que cede passo a uma função ativa e intervencionista.
A sociedade e o Estado evoluíram. Assim, conforme abordado por
Cristovam (2005, p.2):
A supremacia da Constituição e o caráter vinculante dos direitos
fundamentais são os traços característicos do Estado constitucional,
um modelo de Estado de direito pautado pela força normativa dos
princípios constitucionais e pela consolidação de um modelo
substancial de justiça, conforme pensado pelas teorias pós-
positivistas que vem sustentando a consolidação do que se pode
referir como o novo constitucionalismo. A superação do positivismo
jurídico exige uma revisão de vários institutos jurídicos e inúmeras
teorias que, embora servissem ao modelo liberal de Estado de
direito, atualmente não se sustentam no seio do novo
constitucionalismo: a teoria liberal da separação de poderes, a
própria noção de soberania, o papel do Poder Judiciário no controle
da Administração Pública, o controle jurisdicional da
discricionariedade e do mérito administrativo, e, o objetivo central
deste texto, a justiciabilidade de políticas públicas.
Neste novo paradigma, não se pode considerar a formulação das políticas
públicas como papel exclusivo dos Poderes Legislativo e Executivo, ficando a
cargo do Poder Judiciário o exercício do controle social, com o objetivo de
fiscalizar se o Poder Público promove os valores constitucionalmente
assegurados à sociedade.
Farlei Oliveira (2009, p.724) destaca que os direitos sociais, em regra,
dependem, para a sua eficácia, de atuação do Executivo e do Legislativo, por
terem o caráter de generalidade e publicidade. Assim é o caso da educação
pública, da saúde pública, dos serviços de segurança e justiça, do direito a um
meio ambiente sadio, ao lazer, à assistência aos desamparados, à previdência
social, e outros previstos.
No entanto, apesar de ser um consectário lógico de sua função o Judiciário
estar legitimado para a promoção das políticas públicas em razão do seu
dever de defesa dos direitos fundamentais, esta função não é ilimitada.
Tampouco pode ser exercida em determinadas situações em que prepondere
uma perspectiva individual (quando há ausência de previsão orçamentária
para a formulação de uma politica pública),
Isto quer dizer que a visão do Judiciário deve relacionar-se à tutela
coletiva, em função da previsão orçamentária. É sabido que o orçamento não
pode ser considerado um obstáculo para a promoção dos direitos sociais.
Contudo, há que se considerá-lo como um instrumento com o intuito de
alcançar a maior parte dos indivíduos que necessitem da prestação de um
serviço público. Quando se emana uma decisão individual, a parcela de
recursos financeiros para atender sua execução será retirada do montante
destinado ao conjunto social beneficiado pela política pública encartada na
peça orçamentária. Uma vez verificado que o orçamento não aloca recursos
financeiros da forma adequada, a fim de atender a estes direitos sociais,
entende-se que isto interessa à coletividade que é atingida com a ausência da
atuação estatal. Para tanto, existem instrumentos adequados para uma decisão
coletiva, como a Ação Civil Pública, que no art. 7º, da Lei 7347/85, prevê que
o magistrado remeta os autos ao Ministério Público, caso verifique fatos que
possam ensejar Ação Civil Pública, para que tome as medidas necessárias.
Assim, nessa nova conjuntura político-jurídica, o Judiciário exerce o
controle judicial, abrangendo o aspecto formal (legalidade) e material
(legitimidade), concreta e difusamente, além, também, do controle
concentrado, abstrato e com eficácia vinculante, do orçamento público, já que
se reconhece que esta peça contábil é essencial para a efetiva implementação
dos direitos sociais.
3.1 Âmbito e Objeto de Controle
Em termos conceituais, é possível delimitar o entendimento sobre o
alcance dos direitos sociais fundamentais sob dois pontos de vista. Uma
primeira corrente é denominada maximalista, ou seja, acredita que todos os
direitos sociais são jusfundamentais (KRELL, 2002); a segunda é denominada
de minimalista e os seus seguidores reduzem o direitos sociais ao seu núcleo
essencial conhecido como mínimo existencial, que abarca, apesar do conceito
ser um tanto controverso, educação fundamental, saúde básica e assistência
aos desamparados, ou seja, os direitos sociais chamados “básicos”
(BARCELLOS, 2002, p.258). Independente do posicionamento adotado,
ambos convergem sobre os direitos sociais básicos. A visão mais social
apenas amplia a fundamentalidade dos direitos sociais.
Para fins deste estudo, cabe colocar que o controle judicial será analisado
com base na segunda corrente, a que se baseia no mínimo existencial. Leva-se
em conta, ainda, as etapas de elaboração das políticas públicas, quais sejam: a
identificação do problema, a agenda, a implementação e a avaliação.
As etapas de identificação do problema e seleção da agenda se relacionam
com a própria deliberação política acerca de quais direitos, no decorrer do
processo de feitura das chamadas escolhas dramáticas, serão atendidos na
peça orçamentária. Essas etapas representam o início do ciclo da política
pública – seja ela distributiva ou redistributiva – com a identificação do
problema (a necessidade pública a ser atendida), a formatação da agenda
política e/ou formal (enfrentar o agravo a saúde representado pela doença X),
a formulação de alternativas (combate preventivo via vacinação ou repressivo
via tratamento com remédios) e, finalmente, a tomada de decisão (a política
púbica preventiva, repressiva ou ambas acolhida(s) ou não na peça
orçamentária). Nesse âmbito, o controle judicial, apesar de normativo, deve
também conter um maior grau de politicidade e, portanto, é o controle abstrato
e concentrado o mais adequado.
Quando referenciado às etapas de implementação e avaliação, o controle
judicial possui um maior componente jurídico e menor componente político,
por incidir sobre o oferecimento ou não das políticas públicas que já são
objeto de previsão no orçamento, cujas rubricas relativas aos direitos
públicos fundamentais componentes do mínimo existencial devem ser
impositivas e não meramente autorizativas. Nesse âmbito deve se realizar de
forma concreta e difusa, ainda que preferencialmente pela via das ações
coletivas para resguardar o oferecimento universal e isonômico desses
direitos.
3.1.1 Direitos fundamentais sociais e orçamento: controle abstrato e
concentrado
Em primeiro lugar, cabe estabelecer se há possibilidade ou não de exercer
o controle concentrado e abstrato sobre lei orçamentária, que é uma lei
meramente formal e, também, de efeitos concretos.
Em razão do julgamento da ADI 1640289, em 1998, o Supremo Tribunal
Federal não permitia esta forma de controle sobre legislação orçamentária.
Atualmente, entende-se por sua possibilidade em razão do julgamento da ADI
4048, em 2008, quando o STF alterou seu entendimento anterior e entendeu ser
possível o controle concentrado e abstrato sobre legislação orçamentária,
quando suscitada questão de constitucionalidade em abstrato. Neste sentido:

ADI 4048 MC / DF - DISTRITO FEDERAL MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE


INCONSTITUCIONALIDADERelator(a): Min. GILMAR MENDESJulgamento: 14/05/2008
Órgão Julgador: Tribunal Pleno
EMENTA: MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.
MEDIDA PROVISÓRIA N° 405, DE 18.12.2007. ABERTURA DE CRÉDITO EXTRAORDINÁRIO.
LIMITES CONSTITUCIONAIS À ATIVIDADE LEGISLATIVA EXCEPCIONAL DO PODER
EXECUTIVO NA EDIÇÃO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS. I. MEDIDA PROVISÓRIA E SUA
CONVERSÃO EM LEI. Conversão da medida provisória na Lei n° 11.658/2008, sem alteração
substancial. Aditamento ao pedido inicial. Inexistência de obstáculo processual ao prosseguimento do
julgamento. A lei de conversão não convalida os vícios existentes na medida provisória. Precedentes. II.
CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE DE NORMAS
ORÇAMENTÁRIAS. REVISÃO DE JURISPRUDÊNCIA. O Supremo Tribunal Federal deve
exercer sua função precípua de fiscalização da constitucionalidade das leis e dos atos
normativos quando houver um tema ou uma controvérsia constitucional suscitada em abstrato,
independente do caráter geral ou específico, concreto ou abstrato de seu objeto. Possibilidade
de submissão das normas orçamentárias ao controle abstrato de constitucionalidade. III.
LIMITES CONSTITUCIONAIS À ATIVIDADE LEGISLATIVA EXCEPCIONAL DO PODER
EXECUTIVO NA EDIÇÃO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS PARA ABERTURA DE CRÉDITO
EXTRAORDINÁRIO. Interpretação do art. 167, § 3º c/c o art. 62, § 1º, inciso I, alínea “d”, da
Constituição. Além dos requisitos de relevância e urgência (art. 62), a Constituição exige que a abertura
do crédito extraordinário seja feita apenas para atender a despesas imprevisíveis e urgentes. Ao contrário
do que ocorre em relação aos requisitos de relevância e urgência (art. 62), que se submetem a uma ampla
margem de discricionariedade por parte do Presidente da República, os requisitos de imprevisibilidade e
urgência (art. 167, § 3º) recebem densificação normativa da Constituição. Os conteúdos semânticos das
expressões “guerra”, “comoção interna” e “calamidade pública” constituem vetores para a
interpretação/aplicação do art. 167, § 3º c/c o art. 62, § 1º, inciso I, alínea “d”, da Constituição. “Guerra”,
“comoção interna” e “calamidade pública” são conceitos que representam realidades ou situações fáticas
de extrema gravidade e de conseqüências imprevisíveis para a ordem pública e a paz social, e que dessa
forma requerem, com a devida urgência, a adoção de medidas singulares e extraordinárias. A leitura
atenta e a análise interpretativa do texto e da exposição de motivos da MP n° 405/2007 demonstram que
os créditos abertos são destinados a prover despesas correntes, que não estão qualificadas pela
imprevisibilidade ou pela urgência. A edição da MP n° 405/2007 configurou um patente desvirtuamento
dos parâmetros constitucionais que permitem a edição de medidas provisórias para a abertura de créditos
extraordinários. IV. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. Suspensão da vigência da Lei n° 11.658/2008,
desde a sua publicação, ocorrida em 22 de abril de 2008. (grifo nosso).

Deve-se considerar que este tipo de controle fatalmente irá intervir no


espaço da deliberação das políticas majoritárias. Por isso, deve se pautar no
princípio da self-restraint judicial, que autolimita as decisões judiciais a
manejar decisões de natureza política o mínimo e na medida necessária nesse
espaço deliberativo, a fim de adequar as decisões políticas emanadas pelo
Legislativo e o Executivo, com os valores e princípios regulatórios dos
direitos fundamentais (BARBOSA & KOZICKI, 2012).
Exercer o controle abstrato e concentrado das escolhas políticas no espaço
democrático variará de intensidade e interferência, dependendo da prestação
do direito social requerido. Isto quer dizer, que a interferência será maior ou
menor a considerar o que seria o conteúdo do mínimo existencial, que apesar
de ser o limite mínimo para o exercício do controle, não define um conjunto
uniforme para apresentar uma única solução, tornando a intensidade do
controle e intervenção extremamente elástica. Como exemplo, cite-se o direito
fundamental social à saúde.
Diferentemente do que ocorre com o direito social à educação
fundamental, em que se determina o ensino fundamental como nível mínimo
educacional exigido constitucionalmente, criando um direito subjetivo
individual, a Constituição de 1988 não relacionou todos os serviços que serão
prestados em relação à saúde. Apenas determinou a criação do Sistema Único
de Saúde (SUS), para tentar as necessidades sociais compatibilizadas com os
gastos públicos. Assim afirmam Delduque et al (2013, p.181):
É evidente que a partir de 1988, a política pública para a saúde no
Brasil está essencialmente inscrita na Constituição federal, mas
também em inúmeros outros dispositivos normativos. Essa situação
não é suficiente, pois ainda existem lacunas que necessitam ser
preenchidas e que estão aguardando a ação legislativa para sua
concretização. Como política pública para a saúde, a mudança
fundamental empreendida pela Constituição de 1988 foi alterar o
padrão anterior para garantir um sistema único de saúde com acesso
universal, igualitário e gratuito às ações e serviços de saúde. Nenhum
outro direito social recebeu chancela constitucional semelhante ao da
saúde: a relevância pública atribuída às ações e aos serviços de
saúde. Esta relevância pública garantiu à saúde um lugar de destaque
na Carta Política brasileira.
É bom lembrar que, como tipo ideal, a política pública deve visar a
realização de objetivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a
reserva de meios necessários à sua consecução e o intervalo de tempo em que
se espera o atingimento dos resultados (BUCCI, 2006, p.39)
A Constituição Federal, em seu artigo 196, refere-se à saúde como um
direito de todos e deve ser prestado pelo Estado por meio de políticas
públicas (sociais e econômicas) para o seu fomento e implementação. A
prestação do serviço, em si, pode ser individual, mas sua formulação e
implementação como política de Estado (ou mesmo de um governo em
concreto) é realizada levando em conta necessariamente seu caráter coletivo.
Através desta interpretação, o controle judicial é limitado, já que
enfrentará deliberações políticas no espaço democrático, realizadas pelos
demais poderes. Isto não quer dizer que a avaliação judicial sobre essas
deliberações não possa ser pautada em parâmetros judiciais e respaldada em
um juízo técnico-científico, em conjunto com o princípio da razoabilidade. Em
sentido semelhante, Farlei Oliveira (2009. p.733) ressalta que:
ao juiz é plenamente possível exercitar o princípio da ampla tutela
jurisdicional com olhos voltados à máxima eficácia doa direitos e
garantias fundamentais, para contrastar se a política pública
apresenta ineficiência ou omissão em seu cumprimento, sindicar
amplamente as causas e motivos que levaram aquela situação,
verificar se direitos estiverem ameaçados ou lesados. De outra parte,
parece-nos que a teoria da “reserva do possível” deve ser acolhida
com ressalvas. Sempre existirá alguma sorte de limite para o
atendimento a direitos, considerando que todos eles têm determinado
custo, e os recursos são limitados. É no mínimo discutível a tese que,
em nome da reserva do possível, pode-se obstaculizar o
reconhecimento de direitos a prestações estatais. É intuitivo que esse
obstáculo não possa ser invocado como razão absoluta para o
desenvolvimento e atendimento dos direitos sociais.
Almeida & Acioli (2013, p14) concluem que a reserva do possível não
pode ser invocada pelo administrador, de forma isolada, como óbice à
efetivação dos direitos sociais. Faz-se necessária a relação com o mínimo
existencial, que impede a restrição dos serviços necessários para uma vida
com dignidade. Quando não são respeitados, cabe a busca pela efetividade
junto ao Poder Judiciário.
É verdade que essas políticas públicas representam um dispêndio de
recursos públicos. Em determinadas situações, uma decisão judicial concreta
e específica de realização de uma despesa para atender a um indivíduo ou a
um pequeno grupo deles em vez da coletividade, pode encontrar sério
obstáculo no princípio da reserva do possível. Isto ocorre porque, em razão da
suposta escassez dos recursos públicos, a utilização destes na implementação
das políticas públicas deve sempre visar economicidade, eficiência e o
interesse público. Serviços como o de saúde sofrem impactos financeiros e é
inegável o sacrifício a ser feito através das decisões políticas, sobre
privilegiar um serviço ao invés de outro, ou escolher quais medicamentos
serão oferecidos pela rede pública.
Essas decisões são baseadas, em última análise, nas necessidades sociais.
Neste sentido, conforme Bucci (1997, p.90), a função estatal de coordenar as
ações públicas para a realização de direitos dos cidadãos – à saúde, à
habitação, à previdência, à educação – legitima- se pelo convencimento da
sociedade quanto à necessidade de realização desses direitos sociais.
Assim, não se impede a priori o controle judicial. O controle é plausível
tanto em sentenças aditivas, para assegurar à disposição impugnada uma
regulação ausente até então, quanto por sentenças manipulativas, em que a
participação do Judiciário é de interferência na norma impugnada, consistindo
em substituir o seu conteúdo por outro, para que esta norma fique em
conformidade com a Constituição. Nesta linha expõe Silva (2009, p.13):
Por tal razão, esse controle deve-se pautar por argumentos
racionalmente deduzíveis, estruturados em parâmetros ou standards
objetivos identificáveis na própria Constituição. Inicialmente
sugerimos dois: 1) universalidade das ações políticas e 2) princípio
da fraternidade Assim, por exemplo, tanto em termos de prevenção
como em termos de recuperação da saúde, as ações devem visar as
doenças que mais constantemente assolam a população,
comprometidas que precisam estar com a diretriz da universalidade
do atendimento e, ainda assim, se escolha tiver que ser feita entre
várias doenças de amplo espectro, deve-se privilegiar ações
relativas aquelas que atingem com maior intensidade e regularidade
as pessoas de menor potencial aquisitivo, a fim de assegurar a
vigência do constitucionalismo fraternal, nos termos dos objetivos
fundamentais de nossa República relacionados com a redução da
pobreza e da desigualdade social e construção de uma sociedade
justa e solidária.
Na etapa de avaliação da política pública como a de saúde, deve ficar
comprovado sua prioridade genérica levando em conta a economicidade e o
custo/benefício, pois caso não se confirme tal prioridade, o princípio da
reserva do possível (aplicação do princípio da
razoabilidade/proporcionalidade) deve prevalecer. Assim, decisões judiciais
não deveriam conceder a permissão a tratamentos experimentais de saúde.
Para exemplificar, o Superior Tribunal de Justiça (Informativo STJ 235,
14/02/2005) tem jurisprudência pacífica quanto ao tratamento experimental
contra a doença retinose pigmentar, para não mais permitir tratamento em
Cuba, por inexistir comprovação científica do êxito do tratamento, além de ser
um tratamento muito custoso para o SUS.
Então, decisões judiciais que efetivamente concedem este tipo de
tratamento violam o princípio da separação de poderes, já que ultrapassam os
limites razoáveis, legítimos e constitucionalmente assegurados para seu
exercício.
O controle concreto
Cumpre salientar que a execução orçamentária, em seu sentido amplo,
envolve a formulação da política financeira, concretizada na lei orçamentária
anual e sua execução estrita implementada por intermédio dos serviços
públicos, que significa nada mais do que a realização das opções políticas
com o oferecimento de prestações sociais individualizadas incluídas nas
despesas públicas, com o intuito a atender aos interesses dos cidadãos. Isto
segue um procedimento para sua ocorrência, em que a primeira fase é a
programação, depois as fases de empenho, liquidação, ordenação e
pagamento, segundo os critérios estabelecidos nos artigos. 47 a 65 da Lei
4320/65.
Então, esta espécie de controle só pode ser aplicada pelo Judiciário, caso
os Poderes Executivo e Legislativo não implementem as políticas por eles
mesmos definidas, englobando o caso em que o Poder Judiciário exerceu o
controle concentrado e abstrato e definiu metas sobre políticas públicas, que
também não foram cumpridas por esses poderes.
Para Almeida & Acioli (2012, p.12), essa atuação será legitima quando a
decisão estiver fundada na Constituição ou em leis ordinárias, o mesmo
ocorrendo quando se faz uma avaliação quanto às decisões dos poderes
públicos nas hipóteses de omissão. Para as autoras: “Quando há leis e atos
administrativos implementando a Constituição e sendo devidamente aplicados,
o judiciário não deve agir.”
Conforme Moreira Neto (2008, p.58), o aperfeiçoamento do controle
judicial das políticas públicas não deve ser entendido como a substituição do
político e do administrador pelo juiz, mas “no reconhecimento de que cabe a
este zelar pelo Direito e não apenas pela lei, como se preferiu enfática e
exemplarmente declarar na Constituição espanhola em seu art. 103. 1: a
submissão da Administração à Lei e ao Direito”.
O orçamento não é mais uma mera peça contábil, que não servia de base
para o controle efetivo dos gastos públicos realizados pelo Estado. Todavia,
apesar de se ter ultrapassado esta fase, a lei orçamentária não é vista como
uma lei impositiva, mas sim autorizativa, conforme relata SILVA (2009, p.1):
Considerando-se que pela práxis brasileira o orçamento, se já venceu
a terrível fase de ser reputada uma simples peça de ficção sem
qualquer papel relevante em termos de planejamento e ordenação das
finanças e políticas públicas, continua sendo visto como um programa
de intenção e não de efetiva realização das ações ali determinadas,
não será raro a necessidade de controle por parte do Judiciário.
Muito contribui para o atual estado das coisas, a manutenção do
entendimento clássico de que o orçamento é uma lei meramente
autorizativa e não impositiva, o que possibilita tanto a transferência
de recursos entre as diversas rubricas orçamentárias através dos
instrumentos dos créditos adicionais quanto a limitação de empenho e
movimentação financeira (contingenciamento) na hipótese da
realização da receita não comportar o cumprimento das metas de
resultado primário ou nominal, nos termos do artigo 9º da Lei
Complementar nº 101/2000. Tais circunstâncias criam as condições
propícias para redução significativa da parcela de recursos
originariamente destinada às rubricas sociais.
A visão de que o orçamento possui a natureza de mero ato administrativo
ou ato-condição para a realização da despesa pública não pode mais ser
aceita, ao menos quanto às rubricas relativas ao oferecimento de prestações
relacionadas aos direitos fundamentais componentes do mínimo existencial.
Com relação a essas rubricas, a natureza jurídica do orçamento deve ser
reconhecida como lei e não ato administrativo, com a consequente implicação
de vê-lo como um instrumento impositivo e não meramente autorizativo.
Sabendo-se disso, o controle concreto das políticas públicas deve ocorrer
para garantir a fruição das prestações sociais já previamente estabelecidas por
escolhas políticas. É plausível que o magistrado, em sua decisão, conceda a
prestação deste serviço de forma específica. Para tanto, a título de exemplo, o
Poder Público insere na lei orçamentária a despesa com o fornecimento de
insulina para o tratamento de diabetes, mas não o fornece como estaria
previsto para aquele ano. O pleito judicial para o fornecimento do
medicamento e a decisão favorável para o seu fornecimento pelo Estado é o
exercício do controle judicial para efetivar a prestação de direitos
fundamentais sociais, que estavam previstas no orçamento, lembrando que esta
decisão judicial não substitui a escolha política, tendo em vista que ela existe,
mas a ausência de sua efetiva implementação faz com que o Judiciário exija a
sua implementação.
Contudo, embora seja mais fácil aceitar este tipo de controle judicial,
ainda se vê críticas em algumas hipóteses que é exercido. Uma delas refere-se
ao fato de o crédito orçamentário ser um crédito virtual (princípio da reserva
financeira). Embora esteja autorizada determinada despesa, isto não quer dizer
que o Estado dispõe de recurso para efetivamente utilizá-lo.
Isto não seria o caso de justificativa para não implementar esta política,
tendo em vista que o Judiciário está plenamente capaz a autorizar que as
rubricas orçamentárias, de destinação diversa, que não tenham sido utilizadas
em sua integralidade sejam automaticamente remanejadas para a despesa da
prestação dos direitos sociais (conforme interpretação ampliativa do art. 8º,
parágrafo único, da LC 101/2001), que têm natureza impositiva (art. 9º, § 2º,
da Lei Complementar nº 101/2001), mesmo para aqueles que consideram, no
pensamento mais conservador, a lei orçamentária como meramente
autorizativa.
Entretanto, em se tratando do princípio da reserva orçamentária, o
Judiciário deve ser mais cauteloso. Isto porque, quando não há previsão
orçamentária para uma despesa pública, não pode o magistrado em controle
judicial concreto autorizá-la, já que, neste caso, o Judiciário não estaria
implementando uma política, mas sim formulando uma política pública.
Aliás, é por tal motivo que o Poder Judiciário tem sido criticado por este
tipo de judicialização da política. Formular novas políticas com um alcance
extremamente restrito de indivíduos não é a lógica que permeia o papel de se
garantir direitos sociais pelo Judiciário. A saúde é o alvo dessas decisões
equivocadas. SILVA (2009, p 1) segue este entendimento ao afirmar que:
Esse tipo de atuação jurisdicional não contribui para a afirmação dos
direitos sociais, pois sendo decisões pontuais, atingem um número
restrito de pessoas, ainda que se trate de ações coletivas, dificultando
o acesso universal e igualitário desses direitos. Outra consequência
ainda mais grave é que esse tipo de adjudicação possibilita a captura
dos benefícios sociais por parte das camadas mais favorecidas da
população, levando à predação das rendas públicas pelas elites, em
detrimento daqueles estratos mais hipossuficientes econômica e
socialmente, que são, em linha de princípio, os verdadeiros e
legítimos destinatários de tais políticas públicas.
A rigor, há uma camada de classes médias que, embora não sejam
propriamente “elites”, possuem maiores possibilidades de acesso ao Poder
Judiciário e aos canais para reivindicação de direitos. Acabam, assim,
tornando-se clientela relevante de determinado tipo de decisão, em detrimento
de cidadãos que não possuem os meios de realizar determinadas
reivindicações.
Nesses casos, cabe ao Judiciário exercer o controle abstrato e
concentrado, efetivado por sentenças aditivas ou manipulativas, que vai
definir metas ao Estado, obrigando-o a reestruturar e realocar as rubricas
orçamentárias. O controle judicial em concreto não é o meio hábil para a
atuação do Judiciário quando a decisão tiver o intuito de formular novas
políticas, bem como criar despesas não previstas no orçamento público.

CONCLUSÃO
Com o surgimento do constitucionalismo social, passou-se a considerar
cada vez mais necessidades públicas não mais restritas à proteção da
liberdade e propriedade. É certo, contudo, que as demandas por prestações
positivas estatais acabaram por exercer forte pressão financeira sobre os
recursos públicos, o que levou ao desenvolvimento teórico das normas
meramente programáticas. Nesse contexto, em um primeiro momento, as
normas constitucionais que incorporaram os direitos sociais foram reputadas
como normas de juridicidade incompleta, necessitando de intervenção
legislativa ordinária para sua completa operacionalização, eficácia e
aplicabilidade, tendo por função apenas fornecer um norte ou uma orientação
ao Legislador democrático no exercício da regulação social e proteção
jurídica. Esse construto teórico acabou por gerar um desatendimento ao
comando constitucional no que concerne à efetiva promoção de políticas
públicas destinadas a atender esses novos direitos.
Em especial após a Segunda Guerra Mundial ganha fôlego uma nova visão
sobre a força normativa da constituição e dos direitos humanos que ela
assegura e protege, bem como do novo papel a ser desenvolvido pelo Poder
Judiciário na arena política.
O paradigma neocontitucionalista, entretanto, não é isento de problemas,
dificuldades e críticas. Os custos dos direitos sociais são elevados e a
escassez dos recursos financeiros estatais é uma constante. Ademais, a
judicialização da esfera política pode vir a afetar um valor essencial que é a
democracia, na medida em que o mérito das ações tomadas pelos poderes
eleitos democraticamente podem ser revisados pelo Judiciário, um poder não
legitimado pelas urnas.
De qualquer sorte, tendo em vista o reconhecimento de que a constituição
não é mais apenas um documento político, mas também jurídico e que os
direitos fundamentais não são apenas esboços orientativos ao Legislador, mas
representam um programa normativo a ser necessariamente por ele atuado, é
conseqüência inexorável o reconhecimento de que a intervenção do Judiciário
na política é plenamente possível, tendo em vista ser ele, por determinação
constitucional, defensor dos direitos fundamentais espelhados pela
Constituição de 1988.
O Estado Democrático de Direito está obrigado à promoção dos direitos
sociais através da prestação de serviços públicos, como saúde, educação e
assistência aos desamparados, que de fato concretizem estes direitos. Desse
modo, a formulação de políticas para a promoção desses direitos é
fundamental, mas que para isso ocorra, depende-se das escolhas políticas a
serem feitas, no sistema democrático, com prioridade pelos representantes do
povo.
Reconhecido, em um sistema democrático, aos poderes eleitos -
Legislativo e Executivo - a primazia na escolha política de quais necessidades
públicas serão atendidas no período orçamentário, deve ser reconhecida uma
margem de discricionariedade administrativa e de conformação legislativa. As
escolhas políticas dependem também do erário público disponível, o que
exige um planejamento orçamentário para mobilizar a máquina estatal e para o
qual funcionalmente estão melhor aparelhados os poderes legislativo e
executivo.
Por outro lado, essa discricionariedade política assenta sua validade no
princípio da razoabilidade. Ao exercer o juízo acerca de que políticas
públicas serão executadas, deve-se também reconhecer que no orçamento
devem estar alocados recursos públicos necessários ao suprimento integral
dos direitos relacionados ao mínimo existencial, em virtude de sobreprincípio
da dignidade da pessoa humana. Falhando os poderes eleitos no atendimento
desse núcleo duro dos direitos sociais, emerge a subsidiária legitimidade do
Poder Judiciário para controlar o próprio mérito das políticas públicas a fim
de assegurar o respeito aos direitos fundamentais, atuação que se revela
harmoniosa com o princípio democrático, quando se reconhece que
democracia não é apenas a vontade da maioria, mas também o respeito aos
direitos fundamentais da pessoa humana.
Conceituada democracia como um sistema político que também se assenta
na ideia de respeito aos direitos humanos, a noção de que o Judiciário não
possa intervir na política em função do princípio da separação dos poderes
está ultrapassada. Nada obstante, sua atuação sofre limites como a atuação de
qualquer dos demais poderes, para conformar esse ativismo nos lindes
normativos do Estado Democrático de Direito.
O primeiro limite, já mencionado acima, é sua atuação subsidiária. O
Poder Judiciário não é um poder eleito, de modo que sua legitimidade é
extraída de outra fonte que a dos Poderes eleitos. Assim, o controle judicial
das políticas públicas só pode se dar quando identificada uma ação ou
omissão dos demais poderes que importem violação aos direitos
fundamentais.
O segundo limite se refere aos direitos fundamentais que legitimam a
atuação judicial na esfera das políticas públicas e sua conformidade com o
princípio da reserva do economicamente possível, o que implica em
reconhecer uma margem de liberdade de conformação dos poderes eleitos
sobre que direitos serão atendidos no período orçamentário. Não fosse essa
insuficiência de recursos nem mesmo se estaria a falar em judicialização da
política.
Assim, são os direitos sociais básicos, conhecidos como o mínimo
existencial, ou seja, a prestações materiais mínimas sem as quais o indivíduo
não pode viver com dignidade, como a saúde e educação fundamental, por
exemplo, que autorizam a atuação judicial quando políticas públicas não são
adequadamente implementadas, hipótese em que a atuação do Judiciário passa
a ser fundamental para o cumprimento e efetivação desses direitos.
Por fim, o âmbito do controle judicial deve se restringir fundamentalmente
às etapas de implementação e avaliação das políticas públicas, porque nessas
hipóteses o controle possui um maior componente jurídico e menor
componente político, por incidir sobre o oferecimento ou não das políticas
públicas que já são objeto de previsão no orçamento, cujas rubricas relativas
aos direitos públicos fundamentais componentes do mínimo existencial devem
ser impositivas e não meramente autorizativas. Nesse âmbito deve se realizar
de forma concreta e difusa, ainda que preferencialmente pela via das ações
coletivas para resguardar o oferecimento universal e isonômico desses
direitos.
Em situações excepcionais, verdadeiramente aberrantes dos contornos
politico-jurídicos do Estado Democrático de Direito, é admissível se pensar,
ainda nas etapas de identificação do problema e seleção da agenda - no
decorrer do processo de feitura das chamadas escolhas dramáticas, em um
controle abstrato e concentrado da lei orçamentária, através de decisões
aditivas - no caso improvável de uma omissão total - ou manipulativas, no
caso de omissões parciais relevantes no atendimento do mínimo existencial.

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281 Trabalho apresentado pelo grupo Grupo Direito, Democracia e Desenvolvimento vinculado à
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
282 Pesquisador Associado do Programa de Pós-Graduação em Direito e Políticas Públicas da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO. E-mail: cfamnunez@gmail.com.
283 Pesquisadora Associada do Programa de Pós-Graduação em Direito e Políticas Públicas da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO. E-mail: renatarogar@yahoo.com.br.
284 Pesquisador Associada do Programa de Pós-Graduação em Direito e Políticas Públicas da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO. E-mail: alessandra.hollanda@globo.com.
285 Pesquisador Associado do Programa de Pós-Graduação em Direito e Políticas Públicas da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO. E-mail: rafael.carvalhaes.adv@gmail.com.
286 Pesquisador Associado do Programa de Pós-Graduação em Direito e Políticas Públicas da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO. E-mail: pedrobastos2@globo.com.
287 Docente vinculado ao Centro de Ciências Jurídicas e Políticas e ao Programa de Pós-Graduação em
Direito e Políticas Públicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO. E-mail:
celso@mpf.mp.br.
288 Docente vinculado ao Centro de Ciências Jurídicas e Políticas e ao Programa de Pós-Graduação em
Direito e Políticas Públicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO. E-mail:
edomingues@unirio.br.
289 “ADI 1640 QO / UF - UNIÃO FEDERAL QUESTÃO DE ORDEM NA AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES Julgamento: 12/02/1998
Órgão Julgador: Tribunal Pleno
EMENTA: - DIREITO CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO PROVISÓRIA
SOBRE MOVIMENTAÇÃO FINANCEIRA - C.P.M.F. AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE “DA UTILIZAÇÃO DE RECURSOS DA C.P.M.F.” COMO
PREVISTA NA LEI Nº 9.438/97. LEI ORÇAMENTÁRIA: ATO POLÍTICO-ADMINISTRATIVO - E
NÃO NORMATIVO. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO: ART. 102, I, “A”, DA C.F. 1.
Não há, na presente Ação Direta de Inconstitucionalidade, a impugnação de um ato normativo. Não se
pretende a suspensão cautelar nem a declaração final de inconstitucionalidade de uma norma, e sim de
uma destinação de recursos, prevista em lei formal, mas de natureza e efeitos político-administrativos
concretos, hipótese em que, na conformidade dos precedentes da Corte, descabe o controle concentrado
de constitucionalidade como previsto no art. 102, I, “a”, da Constituição Federal, pois ali se exige que se
trate de ato normativo. Precedentes. 2. Isso não impede que eventuais prejudicados se valham das vias
adequadas ao controle difuso de constitucionalidade, sustentando a inconstitucionalidade da destinação de
recursos, como prevista na Lei em questão. 3. Ação Direta de Inconstitucionalidade não conhecida,
prejudicado, pois, o requerimento de medida cautelar. Plenário. Decisão unânime.”.
O TSE E SUAS RESOLUÇÕES DE CARÁTER
NORMATIVO AUTÔNOMO290
THE TSE AND ITS ATONOMOUS REGULATORY
RESOLUTIONS

Augusto Sampaio291
Edimar Santos292
Juliana de Alencar293
Lorena Senra294
Lucas Pattitucci295
Rodrigo Dias296
Stella Araújo297
Wanny Fernandes298

RESUMO
O estudo do Direito Eleitoral e suas nuances demonstra como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) se
caracteriza por ser um dos principais agentes garantidores do bom funcionamento das eleições. Investido
em prerrogativa especial, ao Tribunal compete a regulamentação, secundum legem, das normas de Direito
Eleitoral e da própria eleição. No âmbito institucional nota-se o caráter imediatista do Direito Eleitoral e a
mora do Legislativo em regular determinadas questões primordiais, como a infidelidade partidária. Indaga-
se, pois, se o TSE possuiria legitimidade para editar resoluções de caráter normativo autônomo, em
medidas excepcionais, para a melhor aplicabilidade e dinamicidade da realidade eleitoral. Dessa forma, o
presente trabalho procura analisar a legitimidade dessas resoluções autônomas através do fundamento dos
votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) em casos em que essas resoluções são alvo de
Ação Direta de Inconstitucionalidade, bem como, à luz da Teoria da Atrofia de Poderes de Adrian
Vermeule.

PALAVRAS-CHAVE
Direito Eleitoral; Resoluções do TSE; Teoria da Atrofia dos Poderes.

ABSTRACT
The study of the Electoral Law and its nuances demonstrates how the Brazilian Superior Electoral Court
(known as TSE) is characterized as one of the main agents that ensures a good development of the
elections. The Court is invested with special prerogative and it has a special authority to regulate,
secundum legem, the rules of electoral law and also the election itself. In the institutional range can be
notice the immediate character of the Electoral Law as well the slowness of the Legislative to regulate
certain key issues - such as “party loyalty”. It is possible to ask if TSE has the legitimacy to edit
autonomous normative resolutions, by exceptional policies, for a better applicability and a better dynamics
of the electoral reality. Thus, this paper analyzes the legitimacy of these autonomous resolutions through
the substantiation of the votes of Supreme Federal Court (known as STF) judges in some cases in which
these resolutions motivated some “Ação Direta de Inconstitucionalidade”, as well, according to the Theory
of Atrophy Powers by Andrian Vermeule.

KEYWORDS
Electoral Law; TSE Resolutions; Theory of Atrophy of Powers.

INTRODUÇÃO
A cada disputa eleitoral, é notório o crescimento exponencial das
demandas judiciais envolvendo questões pertinentes à Justiça Eleitoral,
questões essas que possuem natureza demasiadamente complexa, mas que
precisam, em contrapartida, de céleres soluções, as quais podem ser obtidas
através de resoluções elaboradas pelo TSE.
A produção de resoluções, cujo amparo legal é o Código Eleitoral
Brasileiro299, possui limitações quanto ao seu conteúdo, destinando-se a
situações normativas específicas. Ressalta-se ainda que o texto constitucional
consagra o princípio da separação dos poderes e o princípio da
indelegabilidade das atribuições, o que veda a atividade legislativa por um
órgão judiciário.
Ocorre que o Poder Legislativo, muitas vezes, demonstra-se alheio às
demandas eleitorais, ou mesmo se distancia propositalmente, deixando de
responder às questões suscitadas à cada ano de eleições. Para tentar suprir a
falta legiferante do Congresso Nacional, o TSE procura, através de suas
resoluções, dar respostas ágeis aos anseios eleitorais, regulando questões
importantes como, por exemplo, a infidelidade partidária e o número de
parlamentares da Câmara dos Deputados.
Este comportamento institucional, estudado a partir da teoria norte-
americana300, revela uma atrofia301 do Poder Legislativo quando desta
ausência de produção normativa. Nesse sentindo, o trabalho objetiva analisar
e identificar os efeitos sistêmicos302 ocasionados por esta atrofia, bem como a
tratar acerca das consequências da afetação da capacidade institucional303 do
Poder Legislativo, tanto em seu plano normativo quanto logístico.
Dessa forma, o presente artigo procura demonstrar as características do
Poder Regulamentar do Tribunal Superior Eleitoral, bem como investigar os
efeitos sistêmicos no desenho institucional brasileiro, a partir da análise de
resoluções e acórdãos proferidos pelo STF. O objetivo, portanto, é responder
a seguinte questão: seria Tribunal Superior Eleitoral legitimado para editar
resoluções autônomas, na notória inércia do Poder Legislativo?

1 COMPORTAMENTO INSTITUCIONAL
O estudo das instituições TSE e Congresso Nacional requer, para melhor
compreensão da sua natureza e das consequências decorrentes de suas
atividades, a perspectiva própria da Teoria Institucional. Sendo que o emprego
das questões institucionais (i) capacidades institucionais e os (ii) efeitos
sistêmicos304, apresentadas por Vermeule, mostram-se essenciais nesse estudo
em razão da relação tecida entre essas instituições e descrita como problema e
abordagem central do presente trabalho.
Tais premissas apontam para a existência prática de certa liberdade
interpretativa305 que as instituições parecem possuir em determinadas
situações, ou seja, a Teoria Institucional apresenta a perspectiva de que a
atuação institucional já não mais se encontra limitada severamente pela norma,
mas possui determinadas capacidades de interpretar e atuar
discricionariamente.
A atuação do TSE frente as competências próprias do Congresso Nacional
demonstra o que a Teoria Institucional chama de capacidades institucionais,
pois essa instituição atua dentro da sua perspectiva normativa própria, porém
incorpora a função que o desenho institucional não estabeleceu como sendo
própria da sua esfera. Nessa medida, a atuação do TSE demonstra uma
capacidade institucional que interpreta e aplica a norma de forma
independente das prerrogativas formais e ideais dessa instituição ao editar
resoluções autônomas. Tal atuação se torna eficaz, na leitura da Teoria
Institucional, pela necessidade institucional de tal atividade frente a letargia
do Congresso Nacional, isto é, a competência não foi institucionalmente
estabelecida ao TSE, porém na prática sua atuação evidencia uma capacidade
institucional que é exercida de fato e que gera consequências antes
inexistentes.
Essas consequências devem ser analisadas cuidadosamente, pois como a
Teoria Institucional esclarece o cálculo dos efeitos sistêmicos de determinada
decisão são necessários para a avaliação da pertinência de uma atuação dentro
de uma ordem institucional. Nesse ponto o estudo busca questionar se a
atuação do TSE promove as consequências necessárias e legitimas, dentro da
ordem institucional, quando atua por meio das suas capacidades institucionais
que adotam e incorporam competências próprias do Congresso Nacional.
Dessa maneira, a análise do presente trabalho foi desenvolvida e o seu
problema identificado tendo em vista os referenciais próprios da Teoria
Institucional, sendo que as respostas e discussões que o trabalho busca tratar
estarão relacionados a esse referencial, precisamente, as questões
institucionais, isto é, as capacidades institucionais e dos efeitos sistêmicos,
visando esclarecer a dinâmica relacional das competências do Congresso
Nacional e a postura institucional do TSE.

2 PODER NORMATIVO DO TRIBUNAL SUPERIOR


ELEITORAL: ASPECTOS GERAIS E
PROBLEMATIZAÇÃO
Nas lições clássicas de Montesquieu306, ao Poder Judiciário compete
tipicamente o exercício da atividade jurisdicional, com o objetivo de
promover a pacificação de conflitos. O TSE, pertencente a este Poder,
configura o órgão máximo da Justiça Eleitoral, com competências fixadas pela
Constituição Federal de 1988 e no Código Eleitoral.
A Justiça Eleitoral apresenta peculiaridades, como a ausência de quadro
próprio dos juízes e dos membros do Ministério Público, a temporariedade do
exercício da magistratura e o poder normativo do Tribunal Superior Eleitoral,
sendo este último um ponto controvertido para a doutrina e no âmbito
institucional desta Justiça Especializada como um todo307.
O supracitado poder normativo encontra amparo legal nos artigos 1º,
parágrafo único e art. 23, IX, ambos do Código Eleitoral, consistindo na
possibilidade de edição de resoluções que disciplinam a aplicação da lei
eleitoral. Vale ressaltar que a Constituição Federal de 1988 expressamente
permite à lei complementar dispor sobre a competência e organização do TSE,
o que confere às disposições legais contidas no Código Eleitoral fundamento
de validade constitucional.
A edição, pelo TSE, dessas resoluções, de acordo com o artigo 105 da Lei
n. 9.504 de 1997, alterado pela Lei n° 12.034/09 – Lei das Eleições – não
pode restringir direitos ou estabelecer sanções diversas das previstas em lei.
Nesse sentido, objetiva-se conter a capacidade legislativa de um órgão
jurisdicional, garantindo o respeito ao princípio da divisão dos poderes e ao
princípio da indelegabilidade das atribuições.
Portanto, o TSE, incumbido da expedição dos atos regulamentares
relativos a todas as fases do processo eleitoral, pode realizá-los em duas
categorias distintas:
i. Resoluções de caráter permanente: não veiculam matéria diretamente
relacionada às disputas eleitorais;
ii. Resoluções de caráter transitório: destinadas a veicular as regras das
disputas eleitorais.
A problematização em torno das resoluções existe devido ao fato de que o
TSE, ao editá-las, poderia “inovar o ordenamento jurídico”, provocando uma
invasão de competências, uma vez que a função de criar normas que regerão e
nortearão as relações no país compete ao Poder Legislativo. Este fato é,
inclusive, ponto controvertido na doutrina brasileira308. Parte dos estudiosos
se posiciona de forma favorável a edição de tais resoluções por parte do
Tribunal, já que essa função está legalmente instituída, sendo estipulada pelo
próprio legislador. Outros, no entanto, afirmam que apesar da previsão legal, a
realidade institucional revela um uso exacerbado da atividade por parte do
TSE, no sentido de disciplinar questões outras que não aquelas
originariamente previstas. O que parece pacífico é que o poder regulamentar
do TSE deve ser exercido secundum legem ou praeter legem, mas jamais
contra legem.
Das resoluções criadas desde 1965 até 2014, 58 ainda vigoram. Em
decorrência da discussão quanto à legitimidade do Tribunal para a edição
destas, demandas foram ajuizadas no STF, sendo paradigmáticos os seguintes
casos: em 2008, o Partido Social Cristão (PSC), na ADI 3.999-7/DF309
julgada improcedente, requereu a inconstitucionalidade das resoluções
22.610/2007 e 22.733/2008 que disciplinam os procedimentos de desfiliação
partidária e perda do cargo eletivo, sob o argumento de que o TSE atuou
contra legem, fugindo dos limites materiais fixados pelo legislador.
Recentemente, no entanto, o entendimento da Corte Constitucional modificou-
se. Julgada neste ano como procedente, a ADI 4947/DF310 sobre a resolução
23.389/2013, formulada em torno da distribuição de cadeiras na Câmara dos
Deputados entre os Estados-membros. O Supremo Tribunal Federal sublinhou
que ao TSE não compete legislar, mas promover a normatização da legislação
eleitoral.
A temática ainda suscita problematizações outras, concernentes à atuação
do Poder Legislativo, quando este se omite na sua atribuição criadora de
normas. Dessa forma, é cabível o questionamento de até que ponto o silêncio
legislativo permite a contrapartida judiciária em editar atos normativos.
Portanto, do viés institucional, a atrofia daquele legitima a manifestação de
funções atípicas deste? Ademais, é preciso salientar a diferença, muitas vezes
sutil, entre as resoluções que efetivamente preenchem lacunas e aquelas que
legislam, de fato, sobre o Direito Eleitoral, para que se argua sobre possíveis
inconstitucionalidades.

3 O DIREITO ELEITORAL, A ATROFIA DO CONGRESSO


NACIONAL E A HIPERTROFIA DO TRIBUNAL
SUPERIOR ELEITORAL
As instituições do Estado pós-moderno, apesar de idealizadas com o
intuito de separar os poderes políticos estatais, convivem simultaneamente
dentro de um mesmo espaço político e, portanto, constituem uma dialética
fundamental ao funcionamento das atividades do Estado.
Montesquieu, expoente idealizador da noção de separação de poderes na
civilização ocidental contemporânea predisse, com base na sua experiência de
estudo do comportamento das instituições do Estado inglês, que a separação
não seria absoluta311, isto é, que as novas instituições dos poderes constituídos
do Estado não passariam a existir como forças solistas, mas sim como forças
harmônicas que, por vezes, dividiriam funções a partir da concorrência de
competências previstas na Constituição.
Uma vez esclarecido que os poderes do Estado compõem um sistema
complexo em que o funcionamento de seus órgãos é conjunto, diversas foram
as teorias que buscaram o estudo da dialética das instituições enquanto força-
motriz das atividades fundamentais estatais. Dentre elas, merece destaque a
Teoria da Atrofia de Poderes312 de Adrian Vermeule.
Para Vermeule, no curso histórico de um Estado Democrático de Direito, é
normal que poderes que estão descritos na Carta Política caiam em desuso em
casos de inércia de suas respectivas instituições no exercício de determinada
competência ou autoridade constitucional. Segundo o autor, o desuso do poder
faz com que a competência que caiu em inércia seja considerada como
ilegítima ao sistema jurídico e portanto, atrofie para efeitos institucionais. Um
poder que não é exercitado tende, ao longo do tempo, a virar inexercitável.
Paralelo ao processo de atrofia de um poder ocorre o fenômeno da
hipertrofia de outro. A partir do momento que o exercício de determinada
competência constitucional de uma instituição cai em desuso, o vácuo gerado
por essa inércia tende a ser preenchido por outra instituição313. Isso se dá
porque as competências institucionais prefixadas na Constituição estão ali
prescritas justamente por assumirem um papel fundamental ao funcionamento
das atividades estatais e, uma vez inutilizadas, causar-se-ia um prejuízo ao
Estado Democrático de Direito.
Para situar esse fenômeno na realidade institucional brasileira, o
comportamento do Tribunal Superior Eleitoral frente ao Congresso Nacional,
instituição do Poder Legislativo por excelência, no que se refere à questão de
Direito Eleitoral, se faz uma completa fonte de estudo. Nesse caso tem-se um
comportamento negativo do Congresso Nacional e um paralelo comportamento
positivo do TSE.
Uma vez que ao Congresso Nacional está atribuída a competência de
exercer o processo legislativo propriamente dito, cabe a esta instituição
legislar sobre, dentre outras matérias, Direito Eleitoral. As leis eleitorais são
as normas que regulamentam e tornam possível um processo eleitoral
organizado e eficiente, capaz de atingir o seu principal objetivo de efetivação
da democracia, proporcionando aos cidadãos a possibilidade do voto direto,
secreto, universal e periódico. A eficácia de leis eleitorais representa
fundamental importância ao Estado Democrático de Direito, uma vez que o
processo eleitoral constitui-se como a forma mais relevante de participação
popular na vida política do Estado brasileiro. Entretanto, considerando as três
dimensões da norma, existência-validade-eficácia, para que uma lei seja
eficaz, é necessário que esta esteja em vigor.
O que se tem observado nos anos pós-Constituição de 1988 é uma inércia
do Poder Legislativo na questão da formulação de leis eleitorais quando, junto
do amadurecimento da jovem democracia brasileira, tem crescido a
necessidade de se amadurecer a regulamentação do processo eleitoral. O
Código Eleitoral314, este formulado nos primeiros momentos do período da
Ditadura Militar, não é mais suficiente para que se tenha uma regulamentação
eficaz do processo eleitoral brasileiro.
Como citado anteriormente, paralelo a esse comportamento negativo do
Congresso, tem-se observado um comportamento positivo do Tribunal
Superior Eleitoral no sentido de tentar preencher o vácuo provocado pelo
Poder Legislativo em sua inação quanto ao Direito Eleitoral. Nesse caso,
portanto, a atrofia da competência do Congresso Nacional de legislar sobre
matéria eleitoral abriu espaço para que o TSE pudesse se autodeclarar
legítimo ao exercício de tal função, atuando através de suas resoluções
normativas e, logo, passando pelo fenômeno da hipertrofia. Isso significa dizer
que o Tribunal, por não mais limitar-se ao âmbito jurisdicional, uma vez que
ele incorpora a característica de uma instituição que produz normas, torna-se
uma instituição com atribuições exacerbadas em detrimento da produção
normativa do próprio Poder Legislativo.
Dada a hipertrofia do Tribunal Superior Eleitoral, abriu-se uma discussão
sobre os limites da legitimidade que uma instituição do Poder Judiciário
possui para assumir uma função própria do Poder Legislativo - ao contrário do
segundo, o primeiro não é composto por membros eleitos democraticamente
pelo povo. Levanta-se a questão: é legítimo ao Poder Judiciário exercer uma
função típica e tão cara do Poder Legislativo, sendo este último composto
pelos mandatários do povo? Questionar a legitimidade do TSE em legislar
através de suas resoluções normativas significa relativizar a validade destas.
Esta discussão, portanto, atinge a segunda dimensão da norma - a validade -,
sem a qual, subsiste a eficácia.
Não poderia terminar de outra forma uma discussão sobre legitimidade e
competências constitucionais, senão, provocando a Suprema Corte brasileira
para se pronunciar sobre o dilema. Como forma de melhor situar esse estudo
na realidade em que ele se encontra, analisar-se-á, a seguir, dois casos
paradigmáticos: (i) o julgamento da ADI 3999/DF, de 12/11/2008, que tratou
sobre Infidelidade Partidária e (ii) a ADI 4947/DF, de 25/06/2014, que versou
sobre Redefinição do Número de Parlamentares.

4 CASOS PARADIGMÁTICOS: ADI 3.999-7/DF E A ADI


4946/14
Uma vez exposta a problemática das resoluções editadas pelo TSE, faz-se
necessária a abordagem de julgados do STF, em vista de corroborar a
hipertrofia do Tribunal como resposta à atrofia do Poder Legislativo Federal.
Nesse sentido, encontram-se a ADI 3.999-7/DF e a ADI 4946/14, importantes
pela atualidade e por abordarem a discussão a respeito da legitimidade do
TSE em legislar através de suas resoluções. Com isso, torna-se possível a
compreensão do cenário atual, bem como a posição do STF frente a essa
questão.
A ADI 3999-7/DF juntamente com a ADI 4086, suscitadas pelo Partido
Social Cristão(PSC) e pelo procurador-geral da República, respectivamente,
versam sobre a constitucionalidade das Resoluções 22.610 e 22.733 do TSE a
respeito do processo de perda de cargo eletivo, bem como justificação de
desfiliação partidária. Entre as violações constitucionais arguidas salienta-se
a suposta contrariedade do artigo 2º da referida Resolução315 ao artigo 121 da
Constituição, atribuindo ao TSE e aos Tribunais Regionais Eleitorais a
competência para examinar os pedidos de perda de cargo eletivo por
infidelidade partidária, quando a Constituição reserva à lei complementar a
definição das competências. Ademais, há uma alegada usurpação de
competência do Legislativo e do Executivo para dispor sobre matéria
eleitoral, violando ainda o princípio da separação dos poderes.
Não obstante, o STF julgou constitucionais as Resoluções em questão,
visto que através dos Mandados de Segurança 26.602, 26.603 e 26.604
reconheceu a necessidade de observância do princípio da fidelidade
partidária. Entende-se assim que as Resoluções surgem em contexto
excepcional e transitório para assegurar o cumprimento de um direito
constitucional enquanto o Poder Legislativo permanecer silente.
Percebe-se então que o STF identifica na inércia do legislativo uma
possibilidade de legitimação para o poder normativo do TSE, a fim de
salvaguardar um direito anteriormente reconhecido pela própria corte. Volta-
se assim para a Teoria da Atrofia dos Poderes de Vermeule316, que entende a
atrofia de um poder - no caso o legislativo -, como fator de legitimação para o
exercício deste por outra instituição (TSE) visando a preencher o vácuo
criado, ou seja, uma forma de compensação, mantendo a higidez do Estado
Democrático de Direito.
Após esse julgamento favorável ao TSE, o Congresso Nacional aprovou a
Lei 12.034/09, dando nova redação ao artigo 105, caput, da Lei 9504/97317.
Com o intuito de conter o poder normativo do TSE, reafirma-se o caráter
secundum legis da regulamentação exercida pela Justiça Eleitoral. Não
obstante, a doutrina destaca a importância do TSE para a legislação eleitoral
diante do vazio criado pela omissão do Poder Legislativo, o que é
insustentável frente à importância do processo eleitoral para o exercício da
democracia.318 Mais uma vez, observa-se que a aparente hipertrofia do TSE
surge em resposta à lacuna legislativa, e apesar de ter havido movimentação
do Congresso para limitar o alcance das resoluções do TSE, não houve
atuação das casas legislativas no sentido de inovar a legislação eleitoral,
tarefa que, como observado na ADI 3.999, vinha sendo cumprida pela Justiça
Eleitoral.
Por fim, volta-se à discussão dentro da Suprema Corte a respeito da ADI
4947, julgando inconstitucional a Resolução 23.389/2013 do TSE, que dispõe
sobre o número de membros da Câmara dos Deputados e das Assembleias e
Câmara Legislativa para as eleições de 2014, e o parágrafo único do artigo 1º
da Lei Complementar 78/93319.
Inicialmente, entende-se que a Constituição de 1988 em seu artigo 45, § 1º,
ao determinar que o número total de deputados e a representação por Estado e
Distrito Federal seria estabelecida por lei complementar, não admite que esta
função seja delegada ao TSE, ainda que pela própria lei complementar. Em
seguida, assinala que, embora apto a produzir efeitos normativos abstratos
com força de lei, o poder normativo do TSE tem limites materiais
condicionados aos parâmetros fixados pelo legislador, estando sua
legitimidade condicionada ao cumprimento destes limites. Ou seja, seguindo
um posicionamento à primeira vista contrário ao da ADI 3.999, a corte afirma
que a renúncia do legislador complementar ao exercício de sua competência
exclusiva não se prestaria a legitimar o preenchimento de lacuna pelo TSE.
O Ministro Gilmar Mendes, relator do processo, teve seu voto vencido,
posicionando-se pela improcedência da ADI ao afirmar que não admitir que o
legislador complementar delegue ao TSE essa função de atualização seria
contrário à realidade política do país, entendendo ainda que se trata de uma
prática institucional legítima320.
5 O PODER NORMATIVO DO TSE
Após a análise do objeto da presente pesquisa, qual seja, a edição de
resoluções de caráter normativo autônomo pelo TSE e o entendimento do STF
sobre esse assunto; que se justifica pela inércia do Poder Legislativo e pela
necessidade de celeridade quanto a regulamentação dos impasses em área
eleitoral, defende-se a seguinte hipótese: o TSE possui poder normativo
autônomo, excepcional e transitório, quando há vácuo legislativo em
regulamentar dispositivo constitucional-eleitoral fundamental para o exercício
de direitos políticos e investidura de cargos eletivos.
Para a defesa da supracitada proposição e esclarecimento desta, indicamos
os seguintes argumentos: (i) a atrofia do Poder Legislativo321; (ii) o princípio
democrático322; e (iii) o princípio da máxima efetividade constitucional323.
A Justiça Eleitoral está vinculada a competências de natureza
administrativa e a propósito ao poder regulamentar. No que concerne a esta
última, o Poder Legislativo deixa sempre margem para complementação ao
editar as leis em matéria eleitoral. Este é uma característica marcante e
normatizada da vigente legislação eleitoral324. Contudo, a persistente omissão
legiferante dá azo a uma atuação preponderante do poder normativo da Justiça
Eleitoral, que age para assegurar o cumprimento da constituição e das leis,
impedindo que se estagne o trabalho normativo em detrimento de uma
interpretação mais simples deste artigo325.
Como foi dito anteriormente, no que tange à ADI n. 3.999-7, o fundamento
para a propositura da ação foi a possibilidade de usurpação de competência
própria do Congresso Nacional e do Presidente da República, quanto a
Resolução de Direito eleitoral e Direito processual, ou seja, buscava-se uma
resposta para o limite e alcance do poder regulamentar reconhecido ao TSE. O
STF ratificou a posição das resoluções do Tribunal Superior Eleitoral no
âmbito das fontes primárias do Direito brasileiro condicionadamente, sendo
assim, entendeu-se a transitoriedade da Resolução frente Lei posterior
emanada do Congresso Nacional tratando da mesma temática. Dessa forma, em
contexto excepcional e transitório, essas resoluções assegurariam direitos
constitucionais enquanto o Poder Legislativo permanecesse inerte.
A partir da análise deste caso podemos perceber a aparente hipertrofia do
TSE, primeiro argumento apontado, que surge a partir da falta de ação por
parte do legislativo326. Apesar da movimentação do Congresso para limitar o
alcance das resoluções do TSE, não há a mesma disposição para inovação da
legislação eleitoral, que como foi observado, vinha sendo desempenhada pela
Justiça Eleitoral. Sendo assim, saber em que grau poderes constitucionais são
exercidos é determinante para uma possível atrofia ou hipertrofia de poderes
constitucionais.
Cass Sunstein e Adrian Vermeule em seu livro “Interpretation and
Institutions” chamam a atenção para a existência de questões como as
capacidades institucionais determinantes à atividade institucional. Dessa
forma, ao invés de construir considerações pautadas em se colocar no lugar do
juiz, uma teoria interpretativa necessariamente deve estabelecer o que deveria
fazer um juiz real de acordo com as circunstâncias institucionais em que está
envolto.327 Da mesma maneira, essas considerações devem estar presentes
quando observamos o Congresso, que em certos momentos, para deliberar
sobre matéria de sua competência, carece de mecanismos adequados que o
habilitariam ao pleno exercício de sua função deliberativa328. O TSE
apresenta-se como órgão técnico e especializado na temática eleitoral, sendo
assim, uma vez inerte o Legislativo nesta matéria, sendo isso um obstáculo ao
processo eleitoral, e prejudicial à democracia, legitima-se o exercício desta
função pelo TSE.
No que tange ao segundo argumento apresentado, o Princípio da
Democracia apresenta-se como um dos pilares da ordem jurídica
constitucional em que estamos inseridos. Para este trabalho em particular, é de
suma importância o papel que exerce este princípio no Direito Eleitoral. No
preâmbulo da Constituição brasileira, temos que o Brasil é um “Estado
Democrático”, o que exemplifica a proeminência deste princípio para o
sistema eleitoral brasileiro. Através dele são tomadas as decisões políticas
que buscam efetivar a participação política dos cidadãos com o intuito de
satisfazer suas necessidades e desejos. Além disso, princípios como a
liberdade e igualdade dependem da existência de uma democracia de fato para
sua concretização.
A existência de um processo eleitoral se faz de suma importância para a
existência de um Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, o Tribunal
Superior Eleitoral se caracteriza por ser um dos principais agentes
garantidores do bom funcionamento das eleições, maior exemplo de
concretização deste princípio em democracias representativas. Investido em
prerrogativa especial, ao Tribunal compete a regulamentação, secundum
legem, das normas de Direito Eleitoral e da própria eleição. Devido ao
caráter imediatista do Direito Eleitoral, assim como à mora do Legislativo em
regular determinadas questões primordiais, como a infidelidade partidária.
A ADI 4947, julgando inconstitucional a Resolução 23.389/2013 do TSE,
de forma diversa, concluiu que não seria possível a delegação à Justiça
Eleitoral ou ao TSE do encargo de fixar o número de representantes, devido a
uma tradição histórica do federalismo brasileiro. O imperativo presente no art.
45, § 1º, da Constituição Federal329, não aceitaria a interpretação de que a lei
complementar poderia estabelecer o número total de deputados sem a fixação
da representação por ente federado, para delegar de forma implícita esse
dever político ao TSE. Ao analisar Constituições anteriores, a Corte chegou à
conclusão de que quando o constituinte desejara delegar essa atribuição ao
TSE, fizera-o de forma expressa. Ainda assim, reconheceu que o TSE
possuiria destaque na normatização, organização e arbitramento do processo
político eleitoral, e que essas atribuições por serem realizadas por órgão
técnico, independente e especializado, representariam um aperfeiçoamento do
Estado Democrático de Direito, oferecendo-lhe segurança e legitimidade330.
Para o STF não haveria completa identidade entre a função normativa sui
generis do TSE, exercida na esfera administrativa, e a função tradicionalmente
exercida pela Administração Pública de regulamentar leis, de modo a
viabilizar seu cumprimento, ou editar regulamento autônomo. Embora seja
apto a produzir efeitos normativos abstratos com força de lei, o poder
normativo do TSE teria limites materiais condicionados aos parâmetros
fixados pelo legislador.
Partindo do exposto, quanto ao terceiro e último argumento apontado, o
princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, consiste este em
atribuir na interpretação maior eficácia às normas constitucionais, buscando
extrair todo seu potencial. É um princípio operativo em relação a todas e
quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese
da atualidade das normas programáticas, é hoje, invocado principalmente no
âmbito dos direitos fundamentais331, nesse sentido, se houver incerteza quanto
ao âmbito de aplicação, deve-se preferir a interpretação que ofereça maior
eficácia.
A Constituição deverá imprimir certa ordem e conformação à realidade
política e social. Portanto, temos que, como apontado anteriormente, a
realidade institucional que se apresenta, especificamente o comportamento
negativo do Congresso Nacional frente o Direito Eleitoral, em contraposição
ao comportamento positivo do TSE na solução dessa importante questão, abre
espaço para a legitimação do TSE em sua atuação através de resoluções
normativas.

CONCLUSÃO
Defende-se, neste trabalho, o poder regulamentar, ainda que autônomo, do
Tribunal Superior Eleitoral quando há injustificada inércia do Poder
Legislativo em normatizar dispositivos constitucionais como direitos políticos
fundamentais e princípios fundamentais de investidura de cargos eletivos,
desde que sua atuação seja transitória e excepcional.
Os fundamentos para essa atuação pró-ativa do TSE são a efetividade
constitucional, a Teoria da Atrofia dos Poderes de Adrian Vermeule e a
excepcionalidade e transitoriedade dessa tarefa.
Verifica-se que o Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 3999-
7/DF deu um passo importante nesse sentido ao entender que o Poder
Legislativo ao não regular dispositivos constitucionais acaba por ferir a
Constituição e subverter a própria vontade popular. O princípio constitucional
da máxima efetividade impele atitudes dos demais Poderes da República a fim
de dar cumprimento ao comando constitucional. Contudo, tal entendimento
ainda não parece consolidado, na ADI 4947/DF, como visto, o STF parece ter
recuado um pouco em relação ao seu entendimento anterior, mas não negou o
poder regulamentar do TSE.
A Teoria da Atrofia dos Poderes de Adrian Vermeule enfoca com novas
“luzes” a interação entre os Poderes e deve ser um dos fundamentos desse
poder normativo autônomo do TSE no vácuo do legislador. Se o Poder
Legislativo não exerce sua função típica, acaba, tacitamente, possibilitando a
atuação de outro Poder.
Por fim, deve-se deixar claro que esse agir do TSE não pode ser contra
legem e deve ser transitório e excepcional, enquanto o Poder legítimo não
efetiva sua função constitucional.
Nota-se que o poder regulamentar do TSE é matéria extremamente
controvertida e atual no cenário brasileiro. Entre as discussões a respeito do
ativismo judicial, muito se argumenta que a atividade legiferante realizada
pelo TSE é prejudicial à democracia. Não obstante, o poder legislativo
permanece omisso, o que lhe é extremamente conveniente, visto que a
defasagem da matéria eleitoral beneficia diretamente aqueles que compõem o
Congresso, comprometendo assim o sistema eleitoral e o aperfeiçoamento do
Estado Democrático de Direito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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VERMEULE, Adrian. The Atrophy of Constitutional Powers. Harvard Law
School Public Law & Legal Theory Working Paper Series. No. 11, 2007.

290 Trabalho apresentado pelo Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das
Instituições (LETACI), vinculado à Faculdade Nacional de Direito (FND) e ao Programa de Pós-
graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD/UFRJ) coordenado pelo
professor Carlos Bolonha.
291 Graduando em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e pesquisador do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das
Instituições (LETACI). E-mail:augustocesar.ap@gmail.com.
292 Graduando em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e pesquisador do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das
Instituições (LETACI). E-mail:edimarjornalismo@hotmail.com.
293 Graduanda em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e pesquisadora do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das
Instituições (LETACI). E-mail:juliana.alencar@ig.com.br.
294 Graduanda em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e pesquisadora do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das
Instituições (LETACI). E-mail:losenra@gmail.com.
295 Graduando em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e pesquisador do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das
Instituições (LETACI). E-mail:pattitucci@outlook.com.
296 Pós-graduado em Direito Constitucional e Bacharel em Direito pela Universidade Cândido Mendes.
Pesquisador do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das Instituições
(LETACI). E-mail:rodrigopfdias@gmail.com.
297 Graduanda em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e pesquisadora do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das
Instituições (LETACI). E-mail:stellara@gmail.com.
298 Graduanda em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e pesquisadora do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das
Instituições (LETACI). E-mail:wanny.fernandes@gmail.com.
299 Lei n. 4.737 de 1965.
300 O presente artigo faz uso dos estudos norte-americanos devido a observância de uma experiência de
estabilidade em suas instituições, bem como a preocupação sobre o comportamento destas por parte dos
estudiosos. Por exemplo, GILLMAN, Howard; CLAYTON, Cornell. The Supreme Court in American
Politics: New Institutionalist Perspectives. Lawrence, KA: Kansas University Press, 1999 e
GRIFFIN, Stephen. American Constitutionalism: From Theory to Politics. Princeton: Princeton
University Press, 1999.
301 Entende-se por atrofia o desuso de determinada atribuição institucional. Sobre o fenômeno, ver
VERMEULE, Adrian. The Atrophy of Constitutional Powers. Harvard Law School Public Law &
Legal Theory Working Paper Series. No. 11, 2007.
302 Sobre o fenômeno, ver SUNSTEIN, Cass; VERMEULE, Adrian, Interpretation and Institutions.
Chicago Public Law and Legal Theory Working Paper Series, No. 28, 2002.
303 Sobre o fenômeno, ver SUNSTEIN, Cass; VERMEULE, Adrian. Interpretation and Institutions.
Chicago Public Law & Legal Theory Working Paper Series, No. 28, 2002, p.2.
304 Presente pesquisa destaca o trabalho desenvolvido por Adrian Vermeule e Cass Sunstein em que se
pode verificar a construção de duas premissas que norteiam a compreensão da teoria institucional, são
elas as Capacidades Institucionais e os Efeitos Sistêmicos. “The question instead is ‘how should certain
institutions, with their distinctive abilities and limitations, interpret certain texts? […] Its consequences for
private and public actors of various sorts. Capacidades institucionais: “[…] a questão ‘é como certas
instituições deveriam, com suas habilidades distintas e limitações, interpretar certos textos?” Efeitos
sistêmicos: “as consequências para os atores públicos e privados de vários ramos.” SUNSTEIN, Cass;
VERMEULE, Adrian. ―Interpretation and Institutions. Chicago Law School Public Law & Legal
Theory Working Papers Series, No. 28, 2002.
305
306 MONTESQUIEU, Charles. Do Espírito das Leis, São Paulo, Edições e Publicações Brasil Editora
S-A, 1960.
307 AGRA, Walber de Moura; VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Elementos de Direito Eleitoral. 4
ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 34.
308 Ver, nesse sentido, GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. São Paulo: Atlas, 2014; RAMAYANA,
Marcos. Direito Eleitoral. 11 ed. Niterói: Impetus, 2010 e AGRA, Walber de Moura; VELLOSO, Carlos
Mário da Silva. Op. Cit..
309 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3999-7/DF. Rel. Ministro
Joaquim Barbosa. Disponível em <www.stf.jus.br
/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2584922>. Acesso em
22/11/2014.
310 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4947/DF. Rel. Ministro Gilmar Mandes, rel. para acórdão
Min. Rosa Weber. Disponível em <www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?
incidente=4399504>. Acesso em 22/11/2014.
311 Válido é o ensinamento de James Madison no artigo federalista no. 47: « The oracle who is always
consulted and cited on this subject is the celebrated Montesquieu. If he be not the author of this invaluable
precept in the science of politics, he has the merit at least of displaying and recommending it most
effectually to the attention of mankind. Let us endeavor, in the first place, to ascertain his meaning on this
point.
The British Constitution was to Montesquieu what Homer has been to the didactic writers on epic poetry.
As the latter have considered the work of the immortal bard as the perfect model from which the
principles and rules of the epic art were to be drawn, and by which all similar works were to be judged, so
this great political critic appears to have viewed the Constitution of England as the standard, or to use his
own expression, as the mirror of political liberty; and to have delivered, in the form of elementary truths,
the several characteristic principles of that particular system. That we may be sure, then, not to mistake
his meaning in this case, let us recur to the source from which the maxim was drawn.
On the slightest view of the British Constitution, we must perceive that the legislative, executive, and
judiciary departments are by no means totally separate and distinct from each other. The executive
magistrate forms an integral part of the legislative authority. He alone has the prerogative of making
treaties with foreign sovereigns, which, when made, have, under certain limitations, the force of legislative
acts. All the members of the judiciary department are appointed by him, can be removed by him on the
address of the two Houses of Parliament, and form, when he pleases to consult them, one of his
constitutional councils. One branch of the legislative department forms also a great constitutional council to
the executive chief, as, on another hand, it is the sole depositary of judicial power in cases of
impeachment, and is invested with the supreme appellate jurisdiction in all other cases. The judges, again,
are so far connected with the legislative department as often to attend and participate in its deliberations,
though not admitted to a legislative vote.” MADISON, James; HAMILTON, Alexander; JAY, John. The
Federalist Papers. San Bernardino: Tribeca, 2014. Print.
312 VERMEULE, Adrian. The Atrophy of Constitutional Powers. Harvard Law School Public Law
& Legal Theory Working Paper Series. No. 11, 2007.
313 “ In some cases, where the power-holder has a zero-sum relationship with another officer or
institution, the atrophy of the former’s power will necessarily result in the hypertrophy of the latter’s
power. Yet there need not be any zero-sum relationship between power-holders. One may lose power that
the other fails to gain, perhaps because the government as a whole is losing power to other actors. In any
event, I will focus squarely on the atrophy phenomenon, if only because the hypertrophy of constitutional
powers has been studied a great deal under labels like “aggrandizement”. Ibidem, p. xx.
314 Lei n. 4.737, de 1507/1965.
315 Art. 2º - O Tribunal Superior Eleitoral é competente para processar e julgar pedido relativo a mandato
federal; nos demais casos, é competente o tribunal eleitoral do respectivo estado.
316 The judges may be filling a vacuum of power created by legislative debility, rather than muscling in on
legislative terrain, acting as implicit agents for a governing coalition, or acting as implicit agents for a past
coalition that succeeded in entrenching itself in the courts. VERMEULE, Adrian. Op. Cit., p. xxx.
317 Art. 105. Até o dia 5 de março do ano da eleição, o Tribunal Superior Eleitoral, atendendo ao caráter
regulamentar e sem restringir direitos ou estabelecer sanções distintas das previstas nesta Lei, poderá
expedir todas as instruções necessárias para sua fiel execução, ouvidos, previamente, em audiência
pública, os delegados ou representantes dos partidos políticos.
318 A redação atual do art. 105 revela um retrocesso à evolução da legislação eleitoral, pois é inegável
que a demora do legislador em produzir uma reforma eleitoral e partidária conduzem ao cenário de vazio
normativos intransponíveis, que demandam uma atuação pioneira do poder normativo do TSE no sentido
primacial de melhor conduzir os postulados fundamentais que servem de rumo seguro ao nosso sistema
jurídico eleitoral. RAMAYANA, Marcos. Direito Eleitoral. Editora Impetus, 2013, p. 127.
14
Art. 1º Proporcional à população dos Estados e do Distrito Federal, o número de deputados federais não
ultrapassará quinhentos e treze representantes, fornecida, pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística, no ano anterior às eleições, a atualização estatística demográfica das unidades da Federação.
Parágrafo único. Feitos os cálculos da representação dos Estados e do Distrito Federal, o Tribunal
Superior Eleitoral fornecerá aos Tribunais Regionais Eleitorais e aos partidos políticos o número de vagas a
serem disputadas.
319
320 “Desse modo, não admitir que o legislador complementar delegue ao TSE essa função de atualização
não apenas nega a realidade política do país – e o Direito Constitucional não pode ser compreendido
dissociadamente da realidade política que o circunscreve –, como também faz pouco da história
institucional brasileira e coloca em situação de inconstitucionalidade todas as eleições realizadas no Brasil
posteriormente ao advento da Constituição de 1988. (...)Assim, tem-se que não há razão para se atribuir a
pecha de inconstitucionalidade a uma prática institucional legítima, tradicional em nossa cultura
constitucional, que não constitui usurpação legislativa e que se afigura de acordo com a jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal.” BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4947/DF. Rel. Ministro Gilmar
Mandes, rel. para acórdão Min. Rosa Weber. Disponível em
www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4399504. Acesso em 22/11/2014.
321 VERMEULE, Adrian. Op. Cit., p.1.
322 Princípio segundo o qual é exigível a democracia como forma de vida, de racionalização do processo
político e de legitimação do poder.
323 O princípio da máxima efetividade das normas constitucionais (ou princípio da interpretação efetiva)
consiste em atribuir na interpretação das normas oriundas da Constituição o sentido de maior eficácia,
utilizando todas as suas potencialidades.
324 Art. 105, caput, Lei nº 9504/97: “Até o dia 5 de março do ano da eleição, o Tribunal Superior Eleitoral,
atendendo ao caráter regulamentar e sem restringir direitos ou estabelecer sanções distintas das previstas
nesta Lei, poderá expedir todas as instruções necessárias para sua fiel execução, ouvidos, previamente,
em audiência pública, os delegados ou representantes dos partidos políticos”. O texto deste artigo foi
modificado após ser julgada improcedente pelo STF a ADI 3.999/08, ajuizada contra as Resoluções
22.610/07 e 22.733/08 do TSE. Em resposta a esse “ativismo judicial”, o Poder Legislativo aprovou a Lei
12.034/09, dando nova redação ao artigo 105, caput, da Lei 9.504/97, visando a restringir o poder
regulamentar do TSE. Essa mudança apresenta-se como um retrocesso à evolução da legislação
constitucional, tendo em vista que o silêncio do legislador causa sérios vazios normativos que demandam
forte atuação do TSE no que tange a seu poder normativo, para que o sistema eleitoral brasileiro, de
enorme importância para a efetivação da democracia no país, não sofra as consequências.
325 RAMAYANA, Marcos. Op. Cit., p.117.
326 Nesse caso, quando uma instituição permite que determinada competência sua caia em desuso, a
lacuna que se abre pode ser preenchida por outra instituição. Enquanto a primeira sofrerá com a atrofia
de seu poder, a segunda presenciará uma hipertrofia. “In some cases, where the power-holder has a zero-
sum relationship with another officer or institution, the atrophy of the former’s power will necessarily
result in the hypertrophy of the latter’s power.” VERMEULE, Adrian. Op. Cit., p.1.
327 SUNSTEIN, Cass; VERMEULE, Adrian. Interpretation and Institutions. Chicago Public Law &
Legal Theory Working Paper Series, No. 28, 2002, p.4.
328 CORRÊA, Flávio; RANGEL, Henrique. Competente mas Descapacitado: desenhos
instituicionais em matéria tributária. In: CONPEDI/UFF (Orgs.); DUARTE, Fernanda; SANCHES,
Samyra Haydêe; FEITOSA, Maria Luiza Pereira (Coords.). (Org.). Direitos Fundamentais e Democracia
II - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI - 2012.2). 1ed.Florianópolis:
FUNJAB, v.1, 2012, p. 141-166.
329 Art. 45, § 1º, da CRFB: “O número total de deputados, bem como a representação por Estado e pelo
Distrito Federal, será estabelecidopor lei complementar, proporcionalmente à população, procedendo-se
aos ajustesnecessários, no ano anterior às eleições, para que nenhuma daquelas unidade da Federação
tenha menos de oito ou mais de setenta Deputados.”
330 Cass Sunstein e Adrian Vermeule em seu artigo “Interpretation and Institutions” defendem que
mesmo que as cortes devam seguir o significado ordinário da lei, é razoável que instituições especializadas
em determinada matéria, no caso presente neste artigo, a Justiça Eleitoral, tenham um entendimento mais
profundo dos impasses que as cercam. Dessa forma seria benéfico uma maior flexibilização interpretativa
nos casos que as envolvam. “We also urge that even if courts should follow the ordinary meaning of text, it
is reasonable to suggest that administrative agencies need not, in part because agencies are specialists
rather than generalists. Compared to courts, agencies are likely to have a good sense of whether a
departure from formalism will seriously damage a regulatory scheme; hence it is appropriate to allow
agencies a higher degree of interpretive flexibility”. SUNSTEIN, Cass; VERMEULE, Adrian.
Interpretation and Institutions, p.4.
331 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 6ª edição.
Coimbra: Almedina, ano, p. 227.
A TRANSNACIONALIZAÇÃO DA UMBANDA E
SEU IMPACTO NA SOCIEDADE, NO SISTEMA
DE JUSTIÇA E NO DIREITO CONSTITUCIONAL
PORTUGUÊS332
THE TRANSNATIONALIZATION OF UMBANDA AND ITS
IMPACT ON SOCIETY, IN THE JUSTICE SYSTEM AND
PORTUGUESE CONSTITUTIONAL RIGHT

Ilzver Matos Oliveira333


Kellen Josephine Muniz de Lima334
Bruno Alves335

RESUMO
Diversas pesquisas têm dado destaque a um novo fenômeno migratório religioso internacional que,
principalmente nas três últimas décadas, foi (e ainda continua a ser) extremamente importante na criação,
expansão, dispersão e globalização dos novos movimentos religiosos: as igrejas neopentecostais, que
passaram a abranger importante e complexa relação entre o Brasil e a Europa. No Brasil o crescimento
do número de evangélicos é apontado pelos principais institutos de pesquisa e cada vez maior é a sua
presença no espaço político. De outro modo, tem havido uma redução numérica dos adeptos da Umbanda
no mercado religioso brasileiro. As perseguições e agressões públicas às religiões afro-brasileiras são
denunciadas por vários estudos e eles indicam as religiões neopentecostais como as principais
responsáveis por esse quadro de crescimento da intolerância. Em Portugal, o final do regime salazarista
marca o momento em que a Umbanda chega no país e se expande, porém, nos últimos anos temos visto
uma ampliação das denominações religiosas neopentecostais brasileiras em solo português. Assim, emerge
a nossa questão de pesquisa: Como se configura, no campo jurídico, a experiência portuguesa com a
transnacionalização da Umbanda e das religiões neopentecostais brasileiras?

PALAVRAS-CHAVE
Transnacionalização das religiões brasileiras; Portugal; intolerância religiosa; umbanda; neopentecostais.

ABSTRACT
Several studies have highlighted a new international religious migratory phenomenon that, in the last three
decades, was (and still remains) extremely important in the creation, expansion, dispersion and
globalization of new religious movements: the neo-Pentecostal churches, which now includes important
and complex relationship between Brazil and Europe. In Brazil the growth of evangelical number is
appointed by leading research institutes and is growing its presence in the political space . Otherwise, there
has been a reduction in the number of fans of the Umbanda in the religious market. The persecutions and
public attacks on african-brazilian religions are reported by various studies and they indicate the neo-
Pentecostal religions as the main responsible for this growth framework intolerance. In Portugal, the end
of the Salazar regime marks the time when the Umbanda arrives in the country and expands, but in recent
years we have seen an expansion of the Brazilian neo-Pentecostal denominations in Portuguese soil. Thus
emerges our research question: How do I set in the legal field, the Portuguese experience with the
transnationalization of Umbanda and Brazilian neo-Pentecostal religions ?

KEYWORDS
Transnationalisation brazilian religions; Portugal; religious intolerance; umbanda; Neo-Pentecostal .

INTRODUÇÃO
Regulamentando as expressões de religiosidades em contextos específicos,
ou mesmo produzindo releituras de manifestações religiosas no decurso do
tempo histórico, o direito, desde a colonização está na zona de contato336 entre
as religiões e as intolerâncias religiosas e muitas vezes as utilizam como
fontes para a criação de suas normas e decisões judiciais.
Por outro lado, sabemos que também as religiões utilizam o direito,
sobretudo quando as próprias religiões procuraram se apropriar do direito
enquanto aparato de intenso alcance social, difusor de representações e
imaginários coletivos.
Nesse cenário o direito tem assumido alguns importantes papéis. Tem sido
em alguns momentos um promotor ou questionador das doutrinas e práticas
religiosas; tem causando polêmicas por servir de base para o crescimento no
mercado religioso e/ou político de algumas denominações religiosas; tem
polemizado também por entrar em conflito com os dogmas religiosos.
Assim sendo, diante da abrangente possibilidade de abordagens e
releituras acerca desta temática, esta proposta de trabalho busca dialogar e
problematizar as relações entre religiões e intolerâncias religiosas no direito
através da análise da sua atuação ao longo da história e na atualidade no
âmbito do direito à liberdade religiosa dos cultos umbandistas no Brasil e em
Portugal.
Partimos da percepção de que o Brasil sempre foi considerado um país de
fácil convivência entre os diferentes, inclusive no campo das religiões.
Entretanto, nos últimos anos, porém, à medida que a sociedade se torna cada
vez mais plural em termos religiosos, paradoxalmente temos assistido a
manifestações públicas de intolerância religiosa. Tais manifestações se dão
em um contexto político novo de investimento de setores religiosos
conservadores na sociedade e no Estado, seja disputando lugares de poder no
Executivo, seja conquistando espaços cada vez maiores no Parlamento,
ocupando funções no Judiciário, ou ainda, ampliando as possibilidades de
incidência social pelo uso do aparato estatal em prol de seus objetivos.
A ampliação do poder político desses grupos expressa-se, entre outros, nas
tentativas de reverter avanços em relação a direitos nos campos da
sexualidade e da reprodução, afetando diretamente a população homossexual e
de mulheres, da educação e da igualdade, atingindo grupos raciais e religiosos
historicamente vulnerabilizados, como são as religiões de origem africana e
seus adeptos, que serão o objeto desta investigação.
Desse modo, emerge a necessidade de, para compreensão desde quadro
problemático, empreendermos a discussão de questões que dizem respeito às
articulações entre liberdade religiosa, democracia e a efetivação dos direitos
de cidadania em Estados nacionais constitucionalmente laicos, como o são
Brasil e Portugal.
Sobre este aspecto, vemos que as relações entre direito e religiões podem
ser compreendidas a partir de dois modelos. Primeiro o da laicidade,
entendida simplificadamente como a inexistência de uma religião oficial e
pela abstenção estatal de imiscuir-se no campo da religiosidade. Segundo, o
da liberdade religiosa, representada pela garantia real de que grupos
religiosos possam se expressar livremente no espaço público.
Nesse contexto e diante destes dois modelos, o direito se tornou uma
importante arena de disputa entre os diferentes atores sociais, resultando em
tensões que evidenciam diferentes visões de mundo, na qual estão mobilizadas
as agendas dos movimentos sociais e políticos e dos grupos religiosos, e que
são levadas, por exemplo, diante dos tribunais, legítimos interpretadores das
normas e responsáveis pelo apaziguamento dos conflitos sociais.
Por isso nossa proposta é analisar as relações entre as religiões e o direito
buscando investigar se estas relações interferem na construção ou
desconstrução da tolerância e intolerância religiosa e na possibilidade ou
impedimento de novos desenhos tanto da atuação do sistema jurídico e judicial
nacional como das relações de tolerância/intolerância religiosa.
O tema dessa investigação é diversidades e intolerâncias religiosas no
Brasil e em Portugal, dada à urgência em se aprofundar os estudos sobre a
crescente pluralização e transnacionalização das adesões religiosas e as
possibilidades e obstáculos à livre manifestação destas religiões e às
migrações religiosas no mundo contemporâneo.
O foco nesse trabalho é direcionado para os adeptos da Umbanda, e assim
a investigação abordará a recorrência de demandas advindas desta parcela da
sociedade que questionam o diálogo entre ciência (direito) e religião para a
construção identitária das Religiões Afrobrasileiras337. Ressaltamos que a
pesquisa não tem como objeto o estudo da Umbanda enquanto uma religião
brasileira, apesar de destinarmos parte da nossa reflexão para essa questão,
mas sim, abrir um espaço de interlocução entre o direito e os religiosos da
Umbanda sobre as suas necessidades recíprocas e sobre os seus papéis na
construção de Estados laicos e com liberdade religiosa plena.
Assim, pretendemos apresentar e aprofundar temas associados aos
mecanismos de convergência e de divergência e/ou violência que atingem
adeptos dessa denominação religiosa. As reflexões também incidirão sobre as
relações dessa religião com marcadores sociais da diferença, especialmente
raça e etnia, com outras dimensões da esfera pública, nomeadamente a política
e a judicial, e sobre os desafios que estes temas impõem à produção teórica e
metodológica dos estudos sobre religiões e religiosidades, principalmente
dentro da ciência do direito no Brasil e em Portugal.

1 A TRANSNACIONALIZAÇÃO DA UMBANDA
Como dissemos anteriormente, o foco nesse trabalho é direcionado para os
adeptos da Umbanda. Essa religião se estruturou no Brasil nos anos 1930 do
século passado, primeiramente no Rio de Janeiro, buscando distinguir-se das
práticas religiosas afro-brasileiras urbanas conhecidas sob a rubrica genérica
e preconceituosa de “macumba”.
Sobre a macumba Carneiro (1959, p. 7) relata que antes de dançar, os
jongueiros executam movimentos especiais pedindo a bênção dos cumbas
velhos, palavra que significa jongueiro experimentado.
[...] de acordo com esta explicação de um preto centenário: “Cumba é
jongueiro rúim, que tem parte com o demônio, que faz feitiçaria, que
faz macumba, reunião de cumbas.” Como o vocábulo é sem dúvida
angolense, a sua sílaba inicial talvez corresponda à partícula ba que,
nas línguas do grupo banto, se antepõe aos substantivos para a
formação do plural, com provável assimilação do adjetivo feminino
má. Nem todos os crentes se satisfazem com esta designação
tradicional — e os cultos mais modernos, tocados de espiritismo, já
se intitulam de Umbanda, em contraste com Quimbanda, ou seja,
macumba. Esta seria a magia negra, a Umbanda, a magia branca.
(CARNEIRO, 1959, p. 8).
Berkenbrock (1998) diz que macumba designa a religião afro-brasileira
surgida principalmente no Rio de Janeiro e advinda da tradição religiosa banta
(congo e angola), mas ressalta que na atualidade muitas vezes o termo é
utilizado de forma generalizada para designar as práticas ou cerimônias e
ainda de forma pejorativa para designar os cultos de origem africana. No
mesmo sentido, Maggie (2001) diz que macumba poderá ter três designações:
a) instrumento musical, tambor ou atabaque; b) designação da religião de
possessão em termos amplos; e c) definição do próprio trabalho feito.
A Umbanda encontra suas raízes na própria ideologia de formação da
sociedade brasileira, a partir de três matrizes culturais localizáveis também na
prática religiosa: as matrizes indígenas, africana e europeia338. (PORDEUS Jr.,
2010, p. 66). É por isso que para alguns autores a Umbanda é considerada uma
religião globalizada, diferentemente do Candomblé, voltado à retomada e à
preservação das tradições advindas da África (PRANDI, 2004).
Sobre a umbanda, Prandi (2003) diz que se formou no século XX, no
Sudeste, e que representa uma síntese do antigo candomblé da Bahia,
transplantado para o Rio de Janeiro na passagem do século XIX para o XX,
com o espiritismo kardecista, chegado da França no final do século XIX. Para
o autor ainda hoje é comum os umbandistas se chamarem de espíritas ou
católicos, seja por engano ou até mesmo para fugir de repressões e
discriminações - refletiremos sobre estas estratégias de fuga da opressão dos
setores repressores do Estado na nossa pesquisa. Em outras épocas os
católicos e os agentes de segurança pública designavam a umbanda de “baixo
espiritismo”, para diferenciá-la do espiritismo kardecista339.
Nesse contexto, Pordeus Jr. (2004) marca o final do regime salazarista
como o momento em que a Umbanda chega a Portugal através de D. Virgínia
Albuquerque que, em 1950, com seus pais, migra para o Rio de Janeiro, casa-
se com um rapaz da mesma origem e termina por se iniciar na religião,
passando a atuar daí em diante em um terreiro de Umbanda na cidade.
Posteriormente, abre, com o marido, um herbanário e, voltando a Portugal para
visitar a família decide ficar, desfazem-se dos bens no Brasil e instalam um
pequeno comércio em Portugal, mas logo em seguida D. Virgínia começa a
prestar consultas de caráter privado e por fim resolve abrir um terreiro,
quando começa realmente a praticar a religião e inicia novos adeptos nos
meados da década de 70. Reproduz-se o mesmo fenômeno da Umbanda no
Brasil: surgem daí outros terreiros e é criado, em 1980, o Terreiro de
Umbanda Ogum Megê, muito famoso no país. (PORDEUS Jr., 2004, p. 13).

2 A DIVINE MIGRATION E AS RELIGIÕES


NEOPENTECOSTAIS BRASILEIRAS PELO MUNDO
Mais recentemente, entretanto, diversas pesquisas têm dado destaque a um
novo fenômeno migratório religioso internacional que, principalmente nas três
últimas décadas, foi (e ainda continua a ser) extremamente importante na
criação, expansão, dispersão e globalização dos novos movimentos religiosos:
as igrejas neopentecostais, que passaram a abranger importante e complexa
relação entre o Brasil e a Europa. São essas algumas conclusões do trabalho
de Braga (2013) sobre as dinâmicas e características dessa mobilidade
geográfica religiosa, que o autor denomina de “divine migration” Pentecostal
de Sul para Norte, que vem implicando em mudanças significativas no
panorama religioso mundial, criando, desta forma, novas “spiritual
geographies”. Braga (2013) na sua investigação buscou pensar essa
“exportação” religiosa e as semelhanças e diferenças entre os casos
pentecostais evangélicos e católicos e como eles se inserem na perspectiva
analítica da “reverse mission”, ou seja, o fenômeno que explica como a
Europa, que anteriormente era exportadora de instituições e doutrinas
religiosas, é hoje um território fértil para o trabalho missionário.
Braga (2013), analisa que, surgidas a partir do trabalho de evangelização
do Protestantismo europeu e Pentecostal norte-americano, as igrejas
(neo)pentecostais latino-americanas e brasileiras consideram-se hoje
responsáveis pela importante “missão divina” de recristianizar a Europa, que
passa por um forte processo de secularização/laicização. Já em relação ao
contexto católico europeu, com semelhante estratégia proselitista, o
movimento da Renovação Carismática Católica tem por missão o
reavivamento espiritual do catolicismo numa Europa secularizada, dentro da
qual a Igreja Católica vem demonstrando claros sinais de perda de fiéis e
relativa diminuição de sua influência.
Para outros estudiosos, o fenômeno migratório internacional, nas últimas
décadas, tem sido extremamente importante na criação e globalização de
novos movimentos religiosos, abrangendo o importante triângulo Brasil-
África-Europa. O modelo atual de expansão religiosa segue normalmente as
diásporas emigratórias, partindo do Brasil e de países africanos de expressão
portuguesa para Portugal, mas também da África lusófona para o Brasil e vice-
versa, constituindo hoje um importante e global fenômeno religioso (PINEZI,
2014). O processo de transculturação de terreiros de Umbanda situados na
Grande Lisboa, por exemplo, está presente em diversos estudos (PORDEUS
Jr, 1994; 1996; 2000; 2004; 2009; 2010).
No Brasil o crescimento do número de evangélicos é apontado pelos
principais institutos de pesquisa e cada vez maior é a sua presença no espaço
político. De outro modo, tem havido uma redução numérica dos adeptos da
Umbanda no mercado religioso brasileiro. (NERI, 2011). As perseguições e
agressões públicas às religiões afro-brasileiras são denunciadas por vários
estudos e eles indicam as religiões neopentecostais como as principais
responsáveis por esse quadro de crescimento da intolerância. (SILVA, 2007;
SILVA Jr., 2007).
Algumas denominações pentecostais de origem muito recente e
grande sucesso junto às massas, como a Igreja Universal do Reino de
Deus, Deus é Amor e A Casa da Benção, atraem boa parte de sua
clientela pregando contra a umbanda e o candomblé, identificados
como fontes do mal. Para esse pentecostalismo, o contraponto com as
religiões afro-brasileiras chega a ser constitutivo. Na própria história
recente do pentecostalismo no Brasil é possível identificar três
“etapas”: as primeiras igrejas tiveram sua ênfase no dom de se falar
em línguas estranhas (glossolalia), que revive o episódio bíblico do
Pentecostes, quando Deus apareceu aos apóstolos em línguas de fogo;
surgem depois as igrejas que enfatizam o dom da cura; e numa etapa
mais recente, as igrejas que pregam um nova teologia que redime
religiosamente o dinheiro e centra o foco ritual no exorcismo dos
demônios, identificados e nomeados como as divindades e entidades
afro-brasileiras: orixás, caboclos, pombagiras, exus. O conflito entre
pentecostais e afro-brasileiros é aberto e mesmo incentivado por
lideranças pentecostais. Em seus templos e através de seus programas
na televisão, pode-se ver, através de incorporações no transe, orixás
e caboclo mostrados como manifestações do diabo; transe afro-
brasileiro que é metamorfoseado no transe pentecostal do Espírito
Santo, a presença de Deus. (PRANDI, 1995, p. 120).
Outros relatos de pesquisas indicam que:
O panteão afro-brasileiro é especialmente alvo deste ataque,
sobretudo a linha ou categoria de Exu, que foi associada inicialmente
ao diabo cristão e posteriormente aceita nessa condição por uma boa
parcela do povo-de-santo, principalmente o da umbanda. No interior
das igrejas neopentecostais são frequentes as sessões de exorcismo
(ou “descarrego”, conforme denominação da Igreja Universal do
Reino de Deus – Iurd) dessas entidades, que são chamadas a
incorporar para em seguida serem desqualificadas e expulsas como
forma de libertação espiritual do fiel. (SILVA, 2007, p. 11)
Assim, emerge a nossa questão de pesquisa: Como se configura, no campo
jurídico, a experiência portuguesa com a transnacionalização da Umbanda e
das religiões neopentecostais brasileiras?

CONCLUSÃO
Apresentamos aqui apenas os contornos inciais dessa investigação que tem
como objetivo geral analisar o fenômeno da transnacionalização da Umbanda,
religião originalmente brasileira, a partir da ideia de mobilidade geográfica
religiosa chamada atualmente por alguns teóricos de divine migration, e a sua
importância na construção de novas spiritual geographies na sociedade e
também no sistema de justiça portugueses, especialmente a partir da expansão
das religiões neopentecostais brasileiras para a Europa num movimento de
exportação religiosa que vem sendo denominado de reverse mission.
Mostramos ainda que, especificamente, buscaremos estudar até que ponto o
passado e o presente de perseguições e discriminações à Umbanda no Brasil,
perpetradas por órgãos estatais, tais como as instituições do sistema de justiça
e, mais recentemente, por organizações privadas, ultrapassaram, juntamente
com a doutrina e as práticas religiosas, as fronteiras internacionais e como
elas se manifestam na sociedade e no direito portugueses; quais as
semelhanças e distinções encontradas nos dois países do ponto de vista da
trajetória histórica e de construção legislativa; como os terreiros de umbanda
e os umbandistas se organizam em Portugal em torno desse debate; como a
experiência portuguesa pode contribuir para pensarmos a intolerância
religiosa à Umbanda no Brasil.
Esperamos com essa investigação, além de todo o exposto, estudar
questões como a redefinição dos direitos de um ponto de vista multicultural; as
discriminações e as lutas pela igualdade racial e religiosa; as políticas
identitárias e as questões do reconhecimento; os processos pós-coloniais com
incidência na colonização portuguesa; os modos de produção e reprodução do
direito; o papel do direito e da justiça na configuração dos processos sociais,
políticos e econômicos contemporâneos; a construção e a aplicação do direito,
designadamente a interface entre o Estado e a pluralidade de sistemas de
justiça; a qualidade e transnacionalização do direito e da justiça.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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no Brasil. In: SILVA, Vagner Gonçalves da (org.) Intolerância Religiosa:
impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. São
Paulo: EDUSP, 2007.

332 Trabalho apresentado pelo Grupo de Pesquisa Direito Constitucional: Sociedade, Política e Economia
(UNIT).
333 Doutor em Direito PUCRio. Mestre em Direito – UFBA. Professor Pleno do Mestrado em Direito da
Universidade Tiradentes. Líder e pesquisador do Grupo de Pesquisa Direito Constitucional: Sociedade,
Política e Economia – UNIT-CNPq. E-mail: ilzver@gmail.com
334 Especialista em Direito Civil e Processual Civil e Graduada em Direito pela Universidade Federal de
Sergipe. Estudante-pesquisadora do Grupo Direito Constitucional: Sociedade, Política e Economia – UNIT-
CNPq. E-mail: kellen_muniz@yahoo.com.br
335 Graduado em Direito pela Universidade Cândido Mendes no Rio de Janeiro. Estudante-pesquisador do
Grupo Direito Constitucional: Sociedade, Política e Economia – UNIT-CNPq. E-mail:
brunocandydojuridico@yahoo.com.br
336 Para Boaventura de Sousa Santos (2003, p.43), as zonas de contato são campos sociais em que
diferentes mundos da vida normativos se encontram e defrontam. Para o autor é nesses espaços que
diferentes culturas jurídicas se defrontam de modos altamente assimétricos, quer dizer, em embates que
mobilizam trocas de poder muito desiguais. As zonas de contato são, portanto, zonas em que ideias,
saberes, formas de poder, universos simbólicos e agências normativos e rivais se encontram em condições
desiguais e mutuamente se repelem, rejeitam, assimilam, imitam e subvertem, de modo a dar origem a
constelações político-jurídicas de natureza híbrida em que é possível detectar o rasto da desigualdade das
trocas. Os híbridos jurídicos são fenómenos político-jurídicos onde se misturam entidades heterogéneas
que funcionam por desintegração das formas e por recolha dos fragmentos, de modo a dar origem a novas
constelações de significado político e jurídico. Em resultado das interações que ocorrem na zona de
contato, tanto a natureza dos diferentes poderes envolvidos como as diferenças de poder existentes entre
eles são afetadas. A compreensão deste conceito é fundamental para esta pesquisa, uma vez que os afro
religiosos no nosso país são um dos principais exemplos atuais de grupos sociais que se envolvem têm se
envolvido em conflitos assimétricos com culturas nacionais dominantes.
337 Sobre a garantia dos chamados direitos étnicos ou direitos de comunidades tradicionais, são inúmeros
os dispositivos constitucionais, legais nacionais e internacionais e, sobretudo, as políticas públicas criadas
nos últimos anos para a proteção dos direitos desses grupos no Brasil. Desde a Constituição Federal de
1988, passando pela Lei Caó (Lei 7.716 de 1989), pela ratificação da Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho sobre comunidades tradicionais, até o surgimento da Secretaria de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial e a instituição de políticas públicas para comunidades tradicionais, farto é o
conjunto de medidas legislativas e executivas criadas para a proteção desses grupos, mas, da mesma
forma, grande é a dificuldade de sua implementação no Brasil.
338 A matriz europeia, inicialmente identificada com o catolicismo, no que tange à Umbanda, foi
substituída por um catolicismo já transformado pelo espiritismo kardecista.
339 A umbanda tem sido compreendida como uma religião brasileira de caráter sincrético e socialmente
dialético (NEGRÃO, 1996), de culto aos ancestrais africanos, pretos-velhos, ancestrais africanos diretos, e
aos caboclos, os ancestrais da terra Brasil (SANTOS, 1995), representantes de grupos que sofreram ou
sofrem exclusão social. “A umbanda conservou do candomblé o sincretismo católico: mais que isto,
assimilou preces, devoções e valores católicos que não fazem parte do universo do candomblé. Na sua
constituição interna, a umbanda é muito mais sincrética que o candomblé.” (PRANDI, 2003, p. 2).
A AUDIÊNCIA PÚBLICA SOBRE A DIFERENÇA
DE CLASSE NO SUS: RISCOS E
PERSPECTIVAS340
PUBLIC HEARING ON THE DIFFERENCE TREATMENT IN
THE BRAZILIAN PUBLIC HEALTH SYSTEM: RISKS AND
PERSPECTIVES

Margarida Maria Lacombe Camargo341


Siddharta Legale342
Ana Caroline Barros343
Fernanda Dalbem 344

RESUMO
O artigo aborda a audiência sobre diferença de classe no SUS, convocada pelo Ministro Dias Toffoli em
2014 para o STF receber mais informações para decidir melhor antes de tomar a decisão em um Recurso
Extraordinário que se origina em uma ação civil pública.

PALAVRAS-CHAVE
Judicialização; audiência pública; direito à saúde; STF.

ABSTRACT
The paper broaches the public hearing on different treatment in Brazilian public health care system,
convened by Justice Dias Toffoli in 2014 to the Brazilian Federal Supreme Court receive better
information before making a decision on an extraordinary appeal that originates in a class action.

KEYWORDS
Judicialization; public hearing; Right to Health; Brazilian Federal Supreme Court.

INTRODUÇÃO
O presente artigo cuidará da audiência pública que trata da “diferença de
classe”, convocada em 2014 pelo Ministro Dias Toffoli. Ainda não se
deliberou e proferiu decisão final do recurso extraordinário para o qual a
audiência pública foi convocada ainda, de modo que uma síntese da
problemática das falas dos experts nela, bem como de outras decisões do STF
e tribunais sobre o tema serão importantes para fornecer uma compreensão
mais complexa da questão desse importante tema relacionado ao direito
fundamental à saúde.
A saúde encontra-se prevista como direito fundamental social no art. 6º e e
art. 196 da Constituição de 1988, que dispõe que ele será efetivado mediante
políticas públicas respeitando essencialmente três diretrizes: a redução de
riscos, a universalização do acesso aos medicamentos e tratamentos, assim
como ao acesso igualitário. Igualmente no plano internacional o direito
humano à saúde está consagrado no art. 22 e 23 da Declaração Universal de
Direitos do Homem e cidadão e no art. 12 do Pacto de direitos Econômicos e
sociais. No plano regional, o Protocolo de São Salvador, protocolo adicional
à Convenção Americana sobre direitos humanos em matéria de direitos
econômicos, sociais e culturais, prevê o direito à saúde física, mental e social.
Note-se que, sob o influxo da doutrina da efetividade345, de um Poder
Judiciário ativista e de movimentos sociais no processo de democratização da
sociedade e do Estado após 1988, o texto e interpretação da Constituição de
1988 e dos tratados de direitos humanos permitiram superar antigas
concepções do direito social à saúde como um favor ou como um mero
serviço privado monetarizável em direção a construção de direitos e deveres
fundamentais à saúde de forma integral e universal346-347. Nas palavras
precisas de Luís Roberto Barroso, o cenário passou da falta de efetividade à
judicialização excessiva dos medicamentos e tratamentos de saúde348. Talvez
seja possível dizer que alguns pacientes aproximaram-se mais dos juízes do
que dos médicos.
O tema é socialmente urgente, politicamente estratégico e cientificamente
desafiador. Por óbvio, judicial e normativamente, não seria diferente:
frequentemente – para não dizer excessivamente – no Poder Judiciário (e
também no Supremo Tribunal Federal) é chamado a se posicionar sobre as
mais variadas questões349. Qualquer que seja o ângulo da questão350 não há
como não ser atraído pelas questões suscitadas nele. Se colocássemos a
questão em sentido amplo, poderíamos ampliar ainda mais o rol. Afinal, uma
série de temas tratados por outras audiências públicas do STF envolvem
questões correlatas, como, por exemplo, o uso seguro ou não do amianto tem
reflexos para a saúde do trabalhador, a pesquisa com células-tronco pode
incrementar a qualidade de vida e a saúde das pessoas com a possibilidade de
descoberta de novos medicamentos e tratamentos e, ainda, a saúde física e
psíquica da mulher que está em uma gestão de um feto com anencefalia.
Especificamente sobre o tema debater a questão da saúde foram três sobre
a judicialização da saúde351, convocada pelo ministro Gilmar Mendes, sobre o
programa mais médicos, convocada pelo Min. Marco Aurélio e a última sobre
a diferença de classe no SUS, convocada pelo Min. Dias Toffoli. A
possibilidade de distribuição de medicamentos, o impacto disso no orçamento,
a questão federativa, a solidariedade entre os entes, a contração de médicos
estrangeiros sem a revalidação do diploma no Brasil são apenas alguns temas
objeto de consulta à sociedade e aos especialistas por meio da audiência
pública. Como se pode perceber, nem sempre é fácil decidir o que é a
igualdade no caso concreto e que direitos estamos (ou não) dispostos a
sacrificar para alcançá-la. Talvez por isso o debate público para obter mais
informações para decidir com maior segurança seja considerado tão relevante
na opinião da própria Corte.
A audiência pública para discutir a chamada “diferença de classe” em
internação hospitalar pelo Sistema Único de Saúde (SUS) envolve justamente
essa problemática. Em linhas gerais, a “diferença” ou “preferência” de classe
é a possibilidade de melhoria no tipo de acomodação ou tratamento do
paciente e a contratação de profissional de sua preferência, mediante o
pagamento de valor complementar pelo mesmo. Convocada pelo Ministro
Dias Toffoli, a audiência parece estar situada no meio do caminho entre um
modelo Gilmar Mendes e um modelo Luiz Fux de Audiências públicas352,
porque, se por um lado, ela trata de questões jurídicas relacionadas à
construção igualitária do SUS; por outro lado, parece fundamental esclarecer
questões de fato sobre o que é a essa diferença de classe, seu impacto no
orçamento dos hospitais e quando o tratamento diferenciado não suportado
pelo SUS é realmente fundamental para o sucesso terapêutico do tratamento.
Ao longo da audiência pública, o Supremo Tribunal Federal (STF) contou
com a participação e os depoimentos dos diversos especialistas oralmente e
por escrito esse tema enredado no Recurso Extraordinário nº 581488. O RE se
origina em uma ação civil pública, que pretendia reconhecer a possibilidade
do tratamento de diferença de classe dentro da gestão municipal do Sistema
Único de Saúde (SUS). A referida ação civil pública foi proposta pelo
Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul
(CREMERS)353, como autarquia com personalidade jurídica de direito público
interno com autonomia administrativa, conforme o Art. 5, IV, lei nº 7347/85,
propôs ação civil publica contra o Município de Canela, na qualidade de
gestor municipal do SUS354.
Preliminarmente, vale lembrar que a diferença de classe no SUS era
permitida até 1991, quando o antigo INAMPS através da Resolução nº 283
cessou tal prática, proibindo-a. O referido réu, enquanto gestor municipal do
SUS, manteve a política instituída pela Resolução n° 283, aumentando as
restrições e impedindo o cidadão que recorresse ao SUS de optar pela
chamada “diferença de classe. Não obstante, o estado do Rio Grande do Sul,
enquanto gestou do SUS a nível estadual, não admite que paciente atendido
inicialmente por medico particular interne-se diretamente no SUS, fazendo-se
necessário uma triagem em um porto de saúde.
O CREMERS alega que ambas as situações descritas violam direitos do
paciente ao privá-lo do acesso a melhores serviços de saúde e a procurar um
médico de sua confiança, bem como do médico em sua autonomia profissional.
Afirma que a confiança construída na relação médico-paciente é importante
para o sucesso do tratamento médico e estaria sendo desprezada. Argumenta
que o pagamento relativo a tal prática alivia as instituições hospitalares e os
médicos, compensando em certa medida as perdas impostas e “desafogando”
as acomodações normalmente oferecidas pelo SUS. Portanto, diante do corte
de verbas na área da saúde, do crescente caos no acesso a saúde, a garantia do
direito dos pacientes de optarem pela diferença de classe, pagando a diferença
aos hospitais e médicos amenizaria a crise e o prejuízo aos direitos. Por fim,
reitera que a “diferença de classe” não representa quebra da isonomia, porque
não se estabelece tratamento desigual entre pessoas numa mesma situação,
apenas faculta atendimento diferenciado em situação diferenciada, ampliando
direitos previstos na Constituição e sem ônus para o sistema público (RE nº
226.835-6/RS). O Estado do Rio Grande do Sul e a União, na condição de
sucessora do INAMPS são chamados a integrar a lide, na condição de
litisconsorte passivo necessário.
O Município de Canela/RS, em contestação por meio de seu representante
legal alega a inadequação da ação civil pública na a defesa de direitos
coletivos dos pacientes e médicos por não configurarem interesses coletivos, e
sim individuais homogêneos, portanto, interesses particulares e individuais.
Alega, ainda, a ilegitimidade do autor para tal, pois o estatuto pelo qual o
Conselho-autor é regido, não prevê esta capacidade. Além do mais, o pedido
do Conselho postularia, também e acima de tudo, uma inversão no sistema,
privilegiando estritamente os pacientes de profissionais particulares, em
detrimento dos demais, violando os princípios de universalidade e igualdade,
enquanto base fundamental do Sistema Único de Saúde e previstos
constitucionalmente.
O Estado do Rio Grande do Sul, se manifesta com argumentos semelhantes
aos outros legitimados passivos da ação. Dentre os requerimentos dos três está
reconhecimento de ilegitimidade ativa do autor; indeferimento do pedido de
antecipação de tutela; condenação do autor em honorários e demais ônus
sucumbenciais. Assim concordam com a extinção do processo sem julgamento
do mérito ou que seja julgada improcedente a causa.
A União também contestou a legitimidade ativa do autor para postular os
direitos em nome dos pacientes, sob o argumento de que a postulação de
direitos em favor de qualquer não estaria entre as atribuições do CREMERS,
só podendo postular em juízo para garantir direitos e prerrogativas de seus
filiados dentro do que têm em comum: o exercício da medicina. Carece,
portanto, de legitimidade e interesse, nos termos do art. 3º e 6º do CPC.
Quanto ao pedido da reiteração da “diferença de classe”, esta representaria a
violação da isonomia e pretensão da universalidade da assistência à saúde
garantida constitucionalmente. A proibição de tal prática, prevista na Portaria
nº 113 de 04/09/1997, visa evitar que o hospital, diante de eventual escassez
de vagas para o SUS, opte, dentre os pacientes sujeitos a internação, por
aquele que se disponha a pagar a complementação por tratamento
diferenciado, priorizando o critério econômico, em detrimento dos critérios
estabelecidos pelo SUS. Seria a porta aberta à arbitrariedade, à
descriminação e ao constrangimento impostos aqueles que não possuem
condições de pagar pelo tratamento diferenciado. A disposição da portaria não
contraria dispositivo legal algum e tem como única finalidade garantir a
isonomia no atendimento pelos hospitais privados, impedindo diferenciações
por quaisquer critérios que não se relacionem à saúde do paciente.
Em decisão interlocutória, o Juiz afirmou que a ação civil pública proposta
mostra-se adequada ao fim visado e reconhece a legitimidade ativa do autor.
Também reconheceu a competência da Justiça Federal para processar e julgar
a presente ação, e termina por indeferir o pedido de liminar. Contra a
supramencionada decisão, a União interpôs agravo retido e o autor, por sua
vez, interpôs agravo de instrumento no TRF da 4a Região. O juiz indeferiu
ambos os recursos, mantendo a decisão recorrida.
O juiz do TRF4 reconheceu a legitimidade ativa do Conselho como
autarquia com base no art. 5º da lei nº 7347/85 e a pertinência temática da
causa com base no art. 1º, II, da mesma lei, entendendo os pacientes do SUS
como consumidores. Mas indefere o pedido de restabelecer a prática
denominada “preferência de classe”, sob o fundamento de que há violação aos
princípios constitucionais que constituem o sistema único de saúde e
reafirmando as complicações que a reiteração da prática poderia causar ao
SUS, em sua organização, administração e funcionalidade. Indeferido todos os
recursos, foi interposto perante o STF e admitido para julgamento RE nº
581488 para o qual o Min. Dias Toffoli convocou uma audiência pública no
intuito de decidir com mais segurança.

1 A AUDIÊNCIA PÚBLICA E AS CORRENTES


FAVORÁVEIS E CONTRÁRIAS À DIFERENÇA DE
CLASSE
Na abertura da audiência pública, o Ministro Dias Toffoli afirmou a
necessidade das discussões referentes ao acesso universal e igualitário das
ações ou serviços de saúde; a complementariedade da participação do setor
privado na economia da diferença de classe no sistema único de saúde e os
efeitos dessa modalidade de internamento nos procedimentos de triagem e no
acesso ao SUS. No decorrer da audiência pública, as diversas correntes de
opinião sobre o tema manifestaram-se contra e a favor da diferença de classe.
Contrário à diferença de classe, o Subprocurador Geral da República,
Humbert Jacques de Meideiros argumentou que a diferença de classe existiu,
sob a vigência de outro sistema constitucional, no país quando vivíamos num
sistema de saúde mutualístico, havia então uma figura criada pelo INAMPS,
que agia em favor dos trabalhadores e foi banido pela Constituição de 1988.
Destacou que, sob a vigência da Constituição de 1988, o direito à saúde
oferecido pelo Estado é para todos que se encontram no território nacional.
Trata-se de um bem coletivo de proteção universal que reivindica também uma
proteção por tratamentos universalizáveis. Entendeu que a diferença de classe
contraria a universalidade e igualdade, sendo assim, não somente a
constituição, mas também a Lei n. 80/80 e a Lei Complementar n. 141 com a
ideia de acesso universal, igualitário e gratuito que reforçam o parecer desse
sistema universal.
Por fim, discorreu sobre a problemática do Estado Democrático de Direito
e republicano se encontra no fato de poder ter um serviço de base universal
que envolva pagamento de diferenças. Deste modo, o Ministério Público
acredita que essa corte deve ter muito zelo para esse debate, a discussão
central deve ser qual relação existe entre o Estado e as prestações
republicanas, todos são iguais perante a lei e perante a dor. Se há algum tipo
de remuneração a constituição já previu um sistema privado para esses
serviços, mas não se pode permitir que um sistema público seja
discriminatório.
Ainda nessa linha contrária à diferença de classe encontram-se a maioria
das entidades representadas na audiência pública.355 O ministro da Saúde,
Arthur Chioro, por exemplo, afirma que a possibilidade seria uma “medida
ineficiente e eticamente inadequada, que permite o uso por poucos de
recursos destinados a todos”, porque criaria um privilégio, uma
desorganização no sistema e uma quebra da regulação e ordenamento do
cuidado pela gestão pública, ficando esta na mão de cada profissional ou dos
prestadores de serviços privados.
No mesmo sentido, o procurador de Canela (RS), Gladimir Chiele,
argumenta que a diferença de classe estabeleceria o dito “fura fila” por quem
tivesse condições de pagar e representaria um retrocesso ao tempo de
privilégio vivenciado no período de vigência do Instituto Nacional de
Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS).
A presidente do Conselho Nacional da Saúde (CNS), Maria do Socorro de
Souza, defendeu que o acesso à saúde é compactuado com um Estado mais
forte, que redistribua riqueza e não o avanço de privilégios. Além disso,
segundo ela, a diferença de classe não contribui para salvar vidas, pelo
contrário, estratifica e discrimina pessoas pelo seu perfil de renda além de
criar maiores tendências de terceirização e privatização do SUS, tornando-o
um sistema fora do previsto em termos constitucionais.
O professor de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) Raul Cutait,
afirma que um terço dos leitos do SUS é destinado aos hospitais públicos,
sendo também um terço para os filantrópicos e outros um terço para os
privados. Sobre o fato de os hospitais privados receberem pacientes e leitos
do SUS ser extremamente desvantajosa, pois o tratamento custa mais do que o
arcado pelo SUS, destaca que a briga deve ser para que o Sistema Único de
Saúde tenha mais recursos e não para criar uma classe que reafirma o
privilégio e a desigualdade de forma contrária ao disposto em lei. Destacou
que seria antiético o médico receber do Estado e do paciente, bem como
escolher o médico, porque o paciente do SUS é um “paciente institucional”.
Representando a Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo
dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC), Lucieni Pereira busca abordar os
impactos administrativos e econômicos da diferença de classe, chamando a
atenção o risco dessa decisão não ser ater aos hospitais filantrópicos e
também uma pressão de se chegar aos hospitais públicos. Após relembrar a
reforma sanitária e que o acesso ao SUS deve ser universal, destaca a
dimensão pragmática do SUS de avaliar se esta rede de instituições é
garantidora de acesso ao cuidado efetivo à saúde. Argumenta, ainda, com
dados estatísticos da Receita Federal sobre os subsídios da área da saúde,
onde embora o Brasil tenha sido considerado a sétima economia no mundo
esse dado não se traduz para a saúde em número de leitos. Enfatiza um
exemplo com base na auditoria do Tribunal de Contas da União sobre como
esses processos podem comprometer os princípios constitucionais da
universalidade. Exemplifica com o HCPA que é um hospital criado sobre
forma de empresa pública federal e tem dupla porta de entrada, sendo assim,
não se pode permitir sobre a justificativa de maior arrecadação visto que de
acordo com os dados mostrados os recursos públicos arrecadam 94% e a
receita do HCPA mais planos de saúde e particulares seriam 6% apenas.
Entende que o estado é civilizatório com uma sociedade patrimonialista e
clientelista, destacando que os processos administrativos interferem no acesso
igualitário da saúde. Conclui ao afirmar que o Tribunal de Contas entende
como desvio de finalidade o uso do dinheiro público do SUS para pacientes
privados e o projeto de lei que tenta legitimar algum tipo de cobrança teve sua
rejeição pelo relator. Portanto, a ANTC se posiciona afirmando que a
diferença de classe viola o conceito constitucional universal pelas vias dos
processos administrativos jurídicos institucionais.
Outras entidades contrárias à preferência de classe poderiam ser
elencadas, mas as falas desses participantes da audiência pública parecem
adequadas para se ter uma noção dos argumentos principais dessa corrente de
opinião356: (i) violação ao acesso universal e igualitário ao SUS, consagrado
nos art. 196 da Constituição de 1988, na Lei n. 80/80 e na Lei Complementar
n. 141; (ii) proibição do retrocesso à época do INAMPS e IAP em que saúde
era privilégio de quem podia pagar; (iii) a deflagração de um processo de
terceirização do SUS incompatível com a ordem constitucional; e (iv) a via
adequada para que hospitais privados e santas casas recebam efetivamente o
que gastaram ao receber pacientes do SUS é a reivindicação com o próprio
SUS, que é remunerado por impostos, e não cobrando um adicional dos
pacientes; (v) a maior parte dos recursos continuaria sendo pública e não dos
pacientes e, numa sociedade patrimonialista e clientelista, como a brasileira,
seria extremamente problemática.
Favorável à diferença de classe357, por outro lado, é importante ressaltar a
fala do participante da audiência pública, o diretor Claudio Balduino Souto
Franzen, representante do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio
Grande do Sul. Argumenta que é preciso defender o tema através de plano
fático e não ideológico sobre a possibilidade de pacientes do SUS internados
em hospitais filantrópicos ou particulares conveniados com um sistema
obterem internação em condições melhores do que as do SUS, mediante
pagamento de diferenças que é a “Diferença de classe”.
Exibe uma série de fotografias retiradas dos hospitais mostrando sua
precariedade e ainda dados estatísticos do Ministério da Saúde e do Tribunal
de Contas da União demonstrando que 64% dos 116 hospitais analisados estão
com uma ocupação de emergência maior do que a capacidade prevista.
Entende-se que o problema não está na falta de médicos, como se tem
compreendido ultimamente, já que no Rio Grande do Sul o número de médicos
dobrou sem haver uma alteração populacional considerável em comparação a
esta quantidade, entretanto, nota-se uma diminuição de leitos que afeta todo o
plano hospitalar. A internação hospitalar dentro da modalidade de “diferença
de classe” e o pagamento de diferença de custos para melhor acomodação.
Após reconhecer o caos evidente e já a muito alarmante dentro do SUS,
refende que a preferência de classe é o método menos agressivo ou violador
da igualdade e universalidade do sistema, porque realiza a dignidade humana
de quem pode arcar financeiramente com algo, não tem como recorrer a um
sistema privado de saúde que se tornou caro e inacessível e, ainda assim,
precisa de tratamento em uma realidade do SUS atualmente. Chega a afirmar
que inconstitucional seria o atendimento prestado pelo SUS e não a
preferência de classe.
O membro do Cremers, que interpôs o RE contra a proibição da
preferência de classe (favorável, portanto, a instituição desta), destaca que
tem experiência em Santas Casas e demais entidades filantrópicas, além
de hospitais privados. Em primeiro lugar, chama atenção para o fato de o SUS
custear serviços nesses locais em valor muito inferior ao custo real da
assistência prestada. Em consequência disso, segundo ele, vem-se observando,
não só no Rio Grande, mas em todo o Brasil, o fechamento de hospitais e uma
queda gradativa do número de leitos à disposição dos pacientes do SUS. Em
termos gerais, argumentou que R$ 9,4 bilhões de que o Ministério da Saúde
dispunha para investir no SUS, no ano passado, ele repassou apenas R$ 3,9
bilhões, ou seja, 40% do total disponível. Por conta disso, sustentou o
pagamento adicional pela acomodação como uma forma de permitir uma
melhora das condições dos hospitais privados conveniados com o SUS.
Afirmou que como “O SUS real não é o SUS idealizado”, então, o cidadão
“não pode ser cerceado por medidas administrativas. A rede (de hospitais
filantrópicos e particulares) não pode ser sucateada para defender teses
ideológicas desprovidas de comprovação prática”.
Para sustentar sua posição, Franzen afirma que talvez o termo “preferência
de classe” assuste um pouco, e seus preceitos pareçam contradizer os
pressupostos de igualdade constitucional, mas seria algo ínfimo frente à
falácia de um atendimento universal dentro do SUS. Segundo ele, toda a
pretensão de universalidade, toda a proteção constitucional a dignidade da
pessoa humana parece mero discurso quando se avalia concretamente a
realidade do SUS, onde pessoas subsistem no caos em condições sub-
humanas, e ao CREMERS parece errado negar algo um pouco melhor a quem
tem condição de pagar para se manter alheio ao caos.
O presidente da Federação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e
Entidades Filantrópicas do Rio Grande do Sul e representante da
Confederação das Santas Casas, Júlio Dornelles de Matos, defendeu à
diferença de classe, inicialmente realizando uma abordagem estatística de
vinculo entre o SUS e as Santas Casas onde embora seja imprescindível essa
relação é ao mesmo tempo deficitária onde a cada a cada cem reais de custo
de um paciente, são remuneradas em apenas sessenta reais dentre outras
dívidas, bem como um contexto jurídico em que as condições hospitalares
deixam a desejar e é necessário os princípios da universalidade e isonomia do
SUS com direito fundamental à saúde com autonomia e liberdade contratual –
ambos fundamentais constitucionalmente previstos.
A posição, portanto, é favorável a diferença de classe mediante a adoção
do princípio da proporcionalidade, em sentido stricto consiste entre a
intensidade da restrição de um direito fundamental sobrepesado. Os
fundamentos da medida restritiva que proibiu a diferença de classe não têm
peso suficiente para restringir o direito fundamental saúde em nome de um
acesso universal e igualitário. Nesse sentido, propõe a ponderação pela
aplicabilidade do princípio da proporcionalidade para permitir a regulação do
gestor e do contrato com os profissionais do corpo clinico e que atuem
rotineiramente no SUS, dentro de certos parâmetros, por exemplo, em relação
aos honorários e a serviços hospitalares e termo de adesão livre e
acompanhamento a autorização da internação hospitalar. Argumenta, ainda
inexistir razão para renunciar a novos recursos ampliando os leitos
hospitalares e na melhoria do orçamento em relação aos médicos e hospitais.
Outras entidades defenderam a preferência ou diferença de classe, mas
essas duas falas parecem representativas dos argumentos a favoráveis à
implantação no SUS: (i) dificuldades do sistema único de saúde; (ii)
possibilitar melhoria do sistema de saúde mediante pagamento que não
custaria nada ao erário; (iii) ausência ou insuficiência dos repasses à rede
privada conveniada ao SUS; e (iv) impossibilidade de se vedar condição um
pouco melhor ao cidadão que tem condições de contribuir, mas não em
condições e arcar com os preços excessivos de um plano privado ou do
sistema privado.358

2 A JURISPRUDÊNCIA SOBRE A DIFERENÇA DE


CLASSE ANTERIOR À AUDIÊNCIA PÚBLICA
O caso que originou a audiência pública ainda não foi objeto de decisão
definitiva pelo STF, mas existem casos anteriores nos quais o STF se
posicionou favoravelmente à diferença de classe, permitindo que o paciente
custeasse um “isolamento protetor” (RE 255086359) e de quarto diferenciado
(RE 255086, RE 226835 e RE 261268)360.
O RE 255086 e o RE 226835 tratam do caso de Eduardo Leão Francisco
Marques e Rosemari Pereira Dias respectivamente, portadores de leucemia.
No caso de Eduardo, o tratamento da moléstia portada necessitava de um
isolamento protetor. Atendendo à sua demanda, a Corte permitiu o tratamento
diferenciado alegando que a prestação de serviço à saúde deve considerar,
caso a caso, a enfermidade portada pelo necessitado.
Dentro desse contexto, no caso de Rosemari houve um mandado de
segurança impetrado para ver o direito da internação por diferença devido à
leucemia mielóide aguda, que demandava isolamento em quarto privativo com
custo que o SUS não tutela. Nessa situação, o Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul concedeu a segurança a paciente e a Corte alegou o não
reconhecimento de violação de direitos fundamentais, como o acesso à saúde
e tratamento igualitário.
Já no RE 261268, o paciente Fernando José Pires Silveira, contribuinte da
previdência social, era portador de uma patologia diagnosticada como
“Colcctomia total por colite isquêmica” e, como nos casos dos RE N.
255086 e o RE 226835, necessitava de isolamento protetor e quarto
diferenciado para o tratamento da moléstia. Como forma de argumentar
contrário ao tratamento diferenciado, o Desembargador Élvio Schuch alega a
deficiência de leitos oferecidos pelo Sistema Único de Saúde e afirma a
quebra de isonomia pela previdência social- cobrança de custeio a mais.
Contudo, utilizando os mesmos argumentos em todos os casos de diferenciação
de classe do SUS, a Primeira Turma da corte ao julgar o RE 225.835 com base
no voto de Ilmar Galvão, afirma “Inocorrência da quebra da isonomia: não
se estabeleceu tratamento desigual entre pessoas numa mesma situação, mas
apenas facultou-se atendimento diferenciado em situação diferenciada, sem
ampliar direito previsto na Carta e sem nenhum ônus extra para o sistema
público.”
É importante destacar que, para além da discussão do direito à saúde do
paciente versus a forma de estruturar o SUS de modo que ele respeito os seus
princípios, previstos no art. 6 e 196, a diferença de classe também suscita
dúvidas sobre a legalidade e a eventual responsabilização civil,
administrativa e até penal dos médicos e trabalhadores do setor da saúde
eventualmente beneficiados com a prática. A própria jurisprudência dos
tribunais revela a existência de processos em que tais profissionais são
acuados por, entre outros crimes, o de corrupção dentro do sistema de saúde
brasileiro.
Em uma apelação criminal realizada pelo Ministério Público do TRF4361,
um grupo de médicos foram denunciados por formação de quadrilha com a
finalidade de cometer crimes contra o Sistema Único de Saúde. A formação de
quadrilha alegada teria ocorrida pelo consenso entre os profissionais de
encaminhar os pacientes para internação pelo SUS no Hospital de Saúde de
Canguçu e cobrar honorários e internação, como se o atendimento tivesse sido
particular. Por essa razão, foram também denunciados por concussão, ou seja,
a exigência de honorários “extras”, o que configuraria, segundo a decisão, uma
vantagem ilícita e indevida a esses profissionais.
Por fim, a 8° turma decidiu dar parcial provimento à apelão do MP,
declarando a extinção da punibilidade dos médicos, devido à prescrição da
pretensão punitiva estatal. A decisão de mérito, portanto, não se manifestou
propriamente sobre se o recebimento de um vantagem dentro do sistema da
diferença de classe configura corrupção, o que, de um lado, para os
profissionais da área, gera insegurança jurídica quanto a prática da mesma e,
por outro lado, a população que se vê muitas vezes constrangida ao pagamento
dos adicionais sente-se desamparada contra os abusos e com uma sensação de
impunidade de tais profissionais que abusaram da possibilidade aberta por via
legal.
Por outro lado, há casos de médicos que foram efetivamente
responsabilizados penalmente por lançarem mão do sistema de diferença de
classe. É o caso do médico Ernani Luiz Olinger362, em parceria com o Hospital
São Benedito, situado na cidade de Benedito Novo, em Santa Catarina. Em
uma internação ocorrida em 26 de dezembro de 1996, o médico exigiu de sua
paciente grávida, Angélica Neckel, uma quantia de R$200,00 referentes uma
diferença para ficar em um “quarto de primeira classe”. Com receio de não
conseguir uma vaga para que desse início ao trabalho de parto, a paciente
pagou a quantia a secretaria do hospital, dos quais R$150,00 foi repassado
para Ernani Luiz Olinger, R$50,00 para o hospital e a diária do “quarto de
primeira classe”, na época, ficaria em torno de R$24,00.
Em outro processo envolvendo o mesmo médico, a União Federal chegou a
exigir a exoneração de Ernani Luiz Olinger do cargo de “Médico-NS” do
Ministério da Saúde. Exonerado, Olinger entrou com um recurso pedindo a
reintegração no serviço público, no entanto, a impugnação voluntária não foi
admitida devida a ausência de uma preliminar de repercussão geral.

3 APONTAMENTOS FINAIS. RISCOS E PERSPECTIVAS


Note-se, que, independente do ponto de vista adotado, contra ou a favor à
diferença de classe, esse processo evidencia a necessidade de lidar melhor
com a tutela coletiva como uma forma de preservar a isonomia nas questões de
saúde363, de modo que a decisão do RE contra a ação civil pública, objeto da
reflexão da audiência pública, será fundamental para estabilizar demandas e
tornar previsível a conduta estatal quanto ao tema ou, em outras palavras, para
gerar segurança jurídica.
É impressionante que, analisando a problemática suscitada pela diferença
de classe abstratamente, não é difícil ser impiedosamente contra tal prática
por violar à isonomia constitucionalmente estabelecida para o Sistema único
de Saúde, dificultar o acesso a direitos fundamentais da população mais
carentes364 e de abrir das brechas abertas à corrupção pelos profissionais do
ramo face de pessoas doentes.
Diante do caso concreto, porém, somos no mínimo sensibilizados pela
necessidade do paciente de um tratamento singular que não condenem
injustamente quem de boa-fé atuou dentro do quadro legal permitido e, ao
mesmo tempo, ponha em risco sua vida, integridade física dentro de um
sistema de saúde não raro precário e caótico.
É preciso reconhecer que, ainda que não se concorde a medida, é
necessário no mínimo a ponderar mais cuidadosamente as circunstâncias em
que o direito à saúde está envolto, de modo que a espera pelo aprimoramento
do SUS não se torne vã e danosa à quem procura o tratamento.

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340 Trabalho apresentad pelo Grupo do OJB – Observatório de Justiça Brasileiro, cujas discussões
preliminares à versão do presente artigo ocorridas na UFRJ e no VI FORUM dos grupos de Pesquisa em
2014 na PUC-RJ, em especial com o Prof. José Ribas Vieira e com mestrandos da UFRJ Fátima Amaral,
Júlia Cani e Alexandre de Lucca foram fundamentais para aperfeiçoar a qualidade do texto.
Agradecemos, ainda, os debates sober a audiência pública com alunos do Grupo de Estudos de Direito
Constitucional Internacional e Comparado (GEDCIC) da UFJF-GV, especialmente a David Araújo,
Debora Sampaio, Matheus Mesquita, Wagner Botelho e Vitor Fraga.
341 Professora do Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade Nacional de Direito da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD/FND/UFRJ) e Doutora em Direito. Email:
margaridalacombe@gmail.com.
342 Professor de Constitucional da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF-GV). Doutorando pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFF). Email:siddhartalegale@hotmail.com.
343 Acadêmica e Extensionista da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF-GV). Email:
anac.mb@hotmail.com.
344 Acadêmica e Monitora de constitucional da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF-GV).
Email:fernandadalbems@gmail.com.
345 BARROSO, Luís Roberto. A doutrina brasileira da efetividade. In: Temas de direito constitucional, t.
III, 2005. A expressão foi originalmente empregada por SOUZA NETO, Cláudio Pereira de.
Fundamentação e normatividade dos direitos fundamentais: uma reconstrução teórica à luz do princípio
democrático. In: Luís Roberto Barroso (org.). A nova interpretação constitucional: ponderação,
direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 285 e ss.
346 Não desejamos percorrer o histórico dos movimentos pela efetivação do direito à saúde no Brasil. De
forma precisa a respeito, Felipe Asensi sistematiza em três momentos: no Império e na República Velha
numa tradição patrimonialista a saúde é uma benesse ou favor estatal; posteriormente, a partir da Era
Vargas, ocorre a criação das caixas de assistências e planos privados em que a saúde é um benefício
decorrente do vínculo empregatício, enquanto os desempregados seriam assistidos socialmente pelas casas
de misericórdia e, por fim, após a década de 70, com o movimento sanitarista, começam as reivindicações
por um “direito” á saúde integral e universal, que culminaria com a redação da Constituição de 1988. Cf.
ASENSI, Felipe Dutra. Indo além da judicilização: o Ministério Público e a saúde no Brasil. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas/CJS, 2010, p. 15 e ss. ASENSI, Felipe Dutra. Direito à saúde:
práticas sociais reivindicatórias e sua efetivação. Curitiba: Juruá Editora, 2013, p. 131 e ss.
347 Não desejamos percorrer as diversas teorias e conceitos operacionais que envolvem os direitos
sociais. Sobre o tema, Cf. SARLET, Ingo. Os direitos Fundamentais sociais: Algumas Notas sobre seu
Conteúdo, Eficácia e Efetividade nos Vinte Anos da Constituição Federal de 1988”. In: AGRA, Walber de
Moura(coord.). Retrospectiva dos Vinte Anos da Constituição Federal. São Paulo: Saraiva, 2009.
SARLET, Ingo; FIGUEIREDO, Mariana Filchtine. “Reserva do Possível, Mínimo Existencial e Direito à
Saúde: Algumas Aproximações”. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (orgs.). Direitos
Fundamentais – Orçamento e Reserva do Possível. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
DUARTE, Bernardo Augusto Ferreira. Direito à saúde e teoria da argumentação: em busca da
legitimidade dos discursos jurisdicionais. Belo Horizonte: Arraes, 2012, p.217 e ss.
348 BARROSO, Luis Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde,
fornecimento gratuito de medicamente e parâmetros para atuação judicial. Revista Interesse Público,
Belo Horizonte, n. 46, p. 34, nov./dez. 2007. Para uma inteligente análise das críticas e parâmetros para a
efetivação judicial de direitos sociais, Cf. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. A justiciabilidade dos
direitos sociais: críticas e parâmetros. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel.
(Org.). Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2008.
349 É claro que o direito à saúde não se circunscreve à arena judicial, embora esse tenha tinha em boa
medida o recorte do presente artigo. Existem diversos outros temas importantes a serem desenvolvidos,
como a questão das agências reguladoras, a CONITEC e a incorporação ode novos medicamentos, como
aponta PERLINGEIRO, Ricardo. O princípio da isonomia na tutela judicial individual e coletiva, e em
outros meios aos planos privados de saúde Revista da Procuradoria-Geral Mun. Belo Horizonte, ano 5,
n. 10, jul./dez. 2012, p. 217-227. PERLINGEIRO, Ricardo. Novas perspectivas para a judicialização da
saúde no Brasil. Scientia Iuridica, v. 333, 2013, p. 519-539. Um excelente rol de temas contemporâneos
relevantes podem ser encontrados em a reunião do grupo que contou com a participação de diversos
professores, desembargadores e Conselhos do CNJ, como Ricardo Perlingeiro, Guilherme Calmon, Saulo
Bahia Cf. EMARF. Reunião de Trabalho “judicialização da saúde púbica” - Agosto de 2014. Disponível
em: < http://ssrn.com/abstract=2487841>.
350 Do ponto de vista mais teórico, existem diversos trabalhos interessantes sobre se os direitos
fundamentais sociais, em especial são direitos fundamentais formalmente protegidos pelas cláusulas
pétreas (Ingo Sarlet com base do Título II) ou não (Ricardo Lobo Torres com base no art. 60, §4º, IV que
fala apenas direitos e garantias individuais), bem como como refletir sobre a fundamentalidade material do
direito à saúde a partir, do mínimo existencial, dignidade da pessoa humana. SARLET, Ingo Wolfgang.
Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à saúde na Constituição de
1988. Revista Eletrônica sobre Reforma do Estado (RERE), 2007. Disponível em:
www.reformadoestado.com.br/rere.asp.
351 Para uma reflexão crítica sobre a audiência pública Cf. ASENSI, Felipe Dutra et. al. Tornar presente
quem está ausente? Uma análise da audiência pública em saúde no judiciário. Confluências: Revista
Interdisciplinar de Sociologia e Direito da UFF n. 14, 2012, p. 146 e ss.
352 Sobre os modelos, Cf. CAMARGO, Margarida Maria Lacombe; LEGALE, Siddharta; JOHANN,
Rodrigo Fonseca As audiências públicas no Supremo Tribunal Federal nos modelos Gilmar Mendes e Luiz
Fux: a legitimação técnica e o papel do cientista no laboratório de precedentes. In: José Ribas Vieira,
Vanice Regina Lírio do Valle e Gabriel Lima Marques. (Org.). Democracia e suas instituições. 1ed.Rio
de Janeiro: IMOS, 2014, v. 1, p. 181-211.
353 Um panorama mais amplo da questão, do ponto de vista doutrinário e empírico, pode ser encontrado
na excelente dissertação de mestrado do Professor Felipe Asensi, que chegou a realizar entrevistas em
Porto Alegre com membros do Ministério Público para avaliar a questão da ACP e dos TACs (termos de
ajustamento de conduta), propostos por seus membros, de modo a perceber a importância e os efeitos da
juridicização, judicialização e desjudicialização para a efetivação do direito à saúde. Cf. ASENSI, Felipe
Dutra. Indo além da judicilização: o Ministério Público e a saúde no Brasil. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas/CJS, 2010, p. 63 e ss.
354 Não desejamos discorrer sobre a relação entre o controle de constitucionalidade (difuso) e a ação civil
pública, que é uma hipótese extremamente polêmica a demandar um estudo próprio. Ressaltamos, porém,
o entendimento da doutrina e do STF de que, como a ação civil pública possui efeitos erga omnes, a ACP
não pode ter a inconstitucional como o objeto, mas apenas como causa de pedir para não usurpar a
competência do STF e para não ser substitutiva da ADI. Perceba-se, que, ainda assim, esse controle
difuso e incidental adquire, em certa medida, feições objetivas ou abstratas. Para mais detalhes sobre o
tema Cf. MENDES, Gilmar Ferreira. Ação civil pública e controle de constitucionalidade. In: MILARÉ,
Edis. (Org.). A Ação Civil Pública após 20 anos: efetividade e desafios. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005, p. 195-205. ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e
tutela coletiva de direitos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p.231 e ss.
355 O Ministério Público,a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), a procuradoria do Estado do
Rio Grande do Sul, a Confederação Nacional da Saúde (CNS), o Conselho Nacional da Saúde (CNS), o
Conselho de Saúde do Rio Grande do Sul, o cirurgião e professor Raul Cutait, do Hospital Sírio-Libanês de
São Paulo e Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), o
Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), o Conselho Nacional de Secretários Municipais de
Saúde (Conasems), a procuradoria de Canela e a Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo
dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC) são contrários a diferença de classe no Sistema Único de
Saúde.
356 Nesse sentido, a procuradora do Estado do Rio Grande do Sul, Fabrícia Boscaini, professor de
Medicina da Universidade de São Paulo (USP) Raul Cutait, Associação Nacional dos Auditores de
Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC), Lucieni Pereira, diretor-presidente da
Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), André Longo Araújo de Melo, O presidente do Conselho
de Saúde do Rio Grande do Sul, Paulo Humberto Gomes da Silva, O presidente do Conselho Nacional de
Secretários de Saúde (Conass), Wilson Duarte Alecrim, O presidente do Conselho Nacional de
Secretários Municipais de Saúde (Conasems) Antônio Carlos Figueiredo Nardi
357 O Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul e a Federação das Santas Casas
de Misericórdia, juntamente com a Confederação das Santas Casas, são favoráveis a diferença de classe
no Sistema Único de Saúde.
358 Confederação pelas Santas Casas de Misericórdia, representada pelo seu presidente Júlio Dornelles
de Matos, O coordenador Jurídico da Confederação Nacional da Saúde (CNS) e representante da
Federação Nacional dos Estabelecimentos de Serviços de Saúde (Fenaess), Alexandre Venzon Zanetti,
359 STF, RE 255086/RS, Rel. Min. Ellen Gracie, J. 11/09/2001, DJ 11/10/2001
360 STF, RE 255086, Rel. Min. Ilmar Galvão, J. 14.12.1999, DJ 10.03.2000; STF, RE 226835/RS, Rel.
Min. Ilmar Galvão, J. 14/12/1999, DJ 10/03/2000 e STF, RE 261268/RS, Rel. Min. Moreira Alves, J.
28/08/2001, DJ 05/10/2001.
361 TRF4, Apelação Criminal n° 2001.71.10.003946-4/RS, relator Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz.
362 APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO N° 2004. 72. 05. OO2572-7/SC, relator Des. Federal
Fernando Quadros da Silva.
363 Refletindo sobre a relação entre isonomia, ações coletivas e direito à saúde Cf. PERLINGEIRO,
Ricardo. A tutela judicial do direito público à saúde no Brasil. Direito, Estado e Sociedade, v. 41, 2012, p.
184-203.
364 Uma pesquisa empírica sobre o tema em 2007 de São Paulo retrata essa captura do Judiciário em
questão de saúde por pessoas com maior poder aquisitivo em detrimento dos mais carentes. SILVA,
Virgílio Afonso da; TERRAZAS, Fernanda Vargas. Claiming the Right to Health in Brazilian Courts:
the exclusion of the already excluded. Disponível em: <www.ssrn.com>
LISTA DE AUTORES
Alceu Maurício Júnior
Alessandra Almada de Hollanda
Alex Ferreira Magalhães
Alexandre De Luca
Ana Beatriz Oliveira Reis
Ana Carolina Gorrera França
Ana Navarro
André Wendriner
Angel Costa Soares
Arnaldo Ferradosa
Augusto Sampaio
Breno Barros
Bruna Veríssimo
Bruno Alves
Camilla Gutierrez
Carlos Bolonha
Celso de Albuquerque Silva
Claudio Felipe Alexandre Magioli Núñez
Dominique Oliveira
Edimar Santos
Eduardo Garcia Ribeiro Lopes Domingues
Enzo Bello
Fabiana de Almeida Maia Santos
Fatima Amaral
Gabriel Barbosa Gomes de Oliveira Filho
Gabriel Castro
Gabriel Dolabella
Gabriel Guia
Gabriel Mendonça
Gustavo Costa
Henrique Rangel
Igor de Lazari
Ilzver Matos Oliveira
Janaina Matida
José Ribas Vieira
Jovelino Muniz de Andrade Filho
Julia Cani
Júlia Massadas
Juliana de Alencar
Juliana Leite de Araújo
Juliana Melo Dias
Juliana Pessoa Mulatinho
Juliana Sales
Kellen Josephine Muniz de Lima
Kelly Ribeiro Felix de Souza
Laíze Gabriela Benevides Pinheiro
Laura Marques dos Santos Fernandes Alves
Leonardo Gaspar
Lorena Senra
Lucas Pattitucci
Luiz Felipe Lima
Maíra Neurauter
Marcela Münch de Oliveira e Silva
Marcelo Tadeu Baumann Burgos
Marcus Vinicius Bacellar Romano
Margarida Lacombe Camargo
Natan Lima
Pedro Aurélio de Pessôa Filho
Pedro Bastos de Souza
Rachel Herdy
Rafael Bitencourt Carvalhaes
Renata Rogar
Ricky Rocha Nascimento
Rodrigo Dias
Siddharta Legale
Sonia Nogueira Leitão
Stefanie Araújo
Stella de Souza Ribeiro de Araújo
Telmo Olímpio
Vanice Regina Lírio do Valle
Victor Costa
Wanny Cristina Fernandes

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