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Em A vida breve de Sezefredo das Neves, poeta, temos uma história, a do poeta
Sezefredo das Neves e de seus escritos informes, dentro de outra história, a do escritor
que recebe o espólio literário do poeta e precisa organizá-lo. Essa situação obriga o
narrador a olhar para o próprio passado no intuito de traçar um pálido retrato dos anos
1940/50 na, então, província de Florianópolis, quando ele e um grupo de jovens
idealistas, com os seus sonhos e angústias, conheceram/produziram Sezefredo. Esse
grupo participava do Círculo de Arte Moderna (CAM), movimento cultural de
renovação modernista das artes catarinenses, mais conhecido como Grupo Sul.
O livro está estruturado em oito cadernos. O primeiro, intitulado “A maçaroca
ou Um esclarecimento”, conta como o narrador recebeu a maçaroca de papéis que
pertencia à Sezefredo e como tenta compreendê-los e ordená-los devidamente,
introduzindo o leitor na proposta do livro. O segundo caderno transcreve “Dois
necrológicos”, primeiro, a morte literária do poeta, quando ele decide abandonar a
carreira artística e, posteriormente, a morte física do próspero empresário S. Antero das
Neves, personalidade na qual se transmutou. O terceiro, “Cronologia”, apresenta uma
cronologia biográfica do personagem de 1927 a 1954, o seu período de formação e as
suas aspirações, saltando, em seguida, para 1986, quando o rico empresário morre e o
narrador recebe a maçaroca de papéis.
Os três cadernos posteriores, “Fragmentos de um diário íntimo”, “Poemas” e
“Prosa”, constituem o cerne da obra, apresentando o conteúdo do espólio literário
recebido pelo narrador. O diário íntimo aborda o período de 1947 a 1954 e permite ao
leitor reviver, sob a perspectiva do protagonista, os anos de efervescência do cenário
cultural em Santa Catarina, com a constituição do CAM. Além disso, expõe o percurso
do protagonista desde Biguaçu até Florianópolis, os seus desejos, anseios, paixões e
sofrimentos. A quinta parte apresenta um conjunto de poemas que, seguindo a linha da
arte moderna, fundem o prosaico e o poético. Na sexta parte, há a reunião de diversas
narrativas curtas em que se destaca a projeção de alguns personagens como Dona
Pudica, Madalena e Dona Filó. Nessas duas últimas partes citadas há ainda a inserção de
poemas/contos manuscritos e/ou datilografados, causando a impressão de que foram
extraídas originalmente da maçaroca.
O sétimo caderno, “Imprecisos perfis”, dá a conhecer a figura do poeta que
sonha em tornar-se um acadêmico, transitando do sonho, pela desilusão e pelo vexame
até chegar à vingança, quando o protagonista pretende compor uma novela picaresca de
ridicularização daqueles que lhe desvalorizaram. No entanto, essa parte foi excluída da
segunda edição do livro, revista pelo autor em 2005.
Na parte final, “Reminiscências – Depoimentos”, o narrador apresenta, na visão
do grupo modernista em formação, como o poeta Sezefredo sondava-os, buscando
aproximar-se e expor a sua criação poética. Segue-se, logo depois, uma série de
depoimentos de integrantes do Grupo Sul acerca do personagem.
Vista a obra, assim, em conjunto, parece-nos que a tentativa de “desventrar” o
mundo de Sezefredo das Neves configura-se antes como a “ponta do iceberg”, uma vez
que, por baixo, subsistem outras problemáticas. Dentre elas, destacam-se as dificuldades
em torno do processo de escrita, os problemas enfrentados pelo artista na luta pela
sobrevivência diária, o jogo ambíguo entre o ser e o parecer, a fugacidade da vida, os
motivos para o fracasso dos ideais daquela geração, as contradições do tempo presente.
Imersos nessa aventura, procuramos, aqui, juntamente com o narrador-escritor,
adentrar no mundo do poeta a fim de compreender uma determinada época, a daquela
geração de jovens idealistas, moradores da então província de Florianópolis em meados
dos anos 1940-1950, os quais ainda acreditavam poder construir um mundo mais
solidário.
Vês o que podes fazer com ele, por ele, com ambos, espólio e poeta.
Ressuscitá-los, quem sabe. Será um pouco como que a volta de todos nós, o
retorno àqueles anos de juventude e desafios. Me explica, se és capaz, onde
foram parar os sonhos, as esperanças, a vontade de realização individual e
coletiva. Como foi que tudo se esboroou. Olho ao redor de mim, de nós, do
que nos cerca. Nada reconheço, nada. Não identifico os vultos esmaecidos
que mal sobrevivem, sombras erradias entre sombras. Em que curva do
caminho se perderam o jovem idealismo, as fagueiras esperanças, a vontade
de realização em prol do bem comum, de um mundo mais solidário, por que
esta luta feroz pelo poder, cada qual buscando abocanhar um espaço maior,
qual a razão de tanto egoísmo, de tantas... (VBSN, 2005, p.23).
Tentei recusar, aleguei compromissos imediatos, que ele melhor do que eu,
poderia arrumar e dar forma àquilo, já que de todos fora o mais próximo do
poeta, conhecera-o em Biguaçu, convivera com ele em Florianópolis, tivera
conhecimento do empresário.
Em vão. Não concordou com minha recusa nem aceitou minha
argumentação, riu e disse “então, joga tudo na cesta do lixo se tens coragem”.
[...]
Não tive coragem; não joguei fora a maçaroca.
Dito isto, antes que eu saísse da minha estupefação, meu matutino visitante
levantou-se, despediu-se, saiu. E ainda que continuássemos a nos
encontrar periodicamente pelas esquinas da cidade, posso em sã
consciência afirmar que nunca mais o vi. Nunca mais nos vimos. (VBSN,
2005, p.25-26, grifo nosso).
Dez capítulos do romance foram publicados, sendo cada um deles escrito por um
membro diferente do CAM. O romance nunca foi concluído, permanecendo o seu final
em aberto, todavia a aventura dos “ghost writers” conseguiu render certa polêmica, seja
por parte daqueles que desconfiaram da autoria do projeto e buscavam conferir a sua
autenticidade, seja por parte daqueles que acreditaram na brincadeira e insistiam no fato
de já terem lido um trecho de outro livro do mesmo escritor, publicado em revista do
Rio de Janeiro ou de São Paulo.
A criação de um projeto de poeta não seria, portanto, uma ideia incomum para
retomar e representar literariamente a história do Grupo Sul. Valendo-se dessa premissa,
parece-nos que Salim Miguel constrói “fantasmaticamente” um protótipo de poeta
romântico, alguém que, como sugere o verso de François Villon utilizado como epígrafe
inicial, “Où sont les neiges d’antan?”,1 seja capaz de evocar melancolicamente os
1
O verso de Villon poderia ser traduzido literalmente da seguinte forma: “Onde estão às neves de
antanho?”. Contudo, o verso por si só não esclarece o seu emprego neste livro de Salim Miguel, sendo
necessário retomar o poema do qual ele foi retirado – Ballade de dames du temps jadis – e o contexto de
sua produção. Dessa forma, podemos inferir que a neve é um símbolo relacionado neste poema à imagem
do degelo e da morte. Ademais, importa lembrar que François Villon, considerado o precursor dos poetas
malditos, reelaborou poeticamente a sua própria vida, a qual foi transformada em lenda após o seu
misterioso desaparecimento.
mortos e, dessa maneira, ludibriar a força inexorável do tempo e recuperar a história
daquela geração de jovens, nas décadas de 1940/1950:
Como se percebe neste fragmento, é pela lente de Sezefredo que algumas críticas
mais “duras” ao movimento de renovação cultural em Florianópolis são realizadas,
evitando qualquer tipo de sentimentalismo:
Numa das peças (de Pirandello) os dois atores, entre aspas, podem ser tudo,
ter tudo, menos vocação para ator. Não sabem interpretar, não sabem dizer.
Um pouco fala, mal se movimenta em cena, todo desengonçado, melhor seria
se não falasse nada e menos se movimentasse pro espectador se esquecer
dele; o outro fala demais, e mal, para dentro, num som cavo, sem modulação,
que mal chega ao ouvinte. Também seria bom se não falasse, num esquete
mudo. (VBSN, 2005, p.145).
Tal crítica prossegue na análise das outras duas peças, com destaque para o
“hermetismo atroz” de uma delas, provavelmente fruto de “teorias mal assimiladas,
leituras mal digeridas”. Na sequência, o poeta explica que com a renda o grupo financia
a publicação de uma revista cultural, intitulada Sul: “O primeiro número da revista,
convenhamos, não diz ao que vem. Transcrições, matérias originais incaracterísticas,
edição graficamente pobre e confusa.” (VBSN, 2005, p.149).
Essa mesma análise é compartilhada pelo próprio escritor Salim Miguel o qual
em Variações sobre o livro, retoma a trajetória da revista Sul e afirma que ela fora
sempre:
Ademais, pela ótica do poeta é apresentada ao leitor uma série de outros fatos
culturais ocorridos em Florianópolis naquele período: a polêmica entre os “Velhos” e os
“Novos”, protagonizada no jornal O Estado, a vinda de Marques Rebelo e a primeira
exposição de arte moderna na “terrinha”, a criação do Museu de Arte Moderna, a edição
independente de livros próprios, a morte prematura de Antonio Paladino (Toninho).
Sezefredo acompanha tudo isso a distância, até que, em determinado momento, no ano
de 1951, é convidado a publicar na Revista Sul. Ele envia, utilizando um pseudônimo,
um apólogo sobre o vento sul,2 mas depois se desespera, aturdido com a possibilidade
de que venham a descobrir a sua verdadeira identidade. Em razão disso, cada vez mais
se isola do grupo até que desaparece.
Ao narrador resta recolher os seus escritos informes, poemas e prosa, e solicitar
aos seus antigos companheiros de ideais e ideias modernistas – Aníbal Nunes Pires,
Ody Fraga, José Hamilton Martinelli, Jason Cesar, Adolfo Boos Júnior, Hugo Mund Jr.,
Antônio Paladino, Pierre T. Taulois, Guido Wilmar Sassi, Fúlvio Luis Vieira, Silveira
de Souza, Élio Balstaedt, Hamilton V. Ferreira, Hassis, Eglê Malheiros – e a alguns
personagens ficcionais, característicos do universo de Biguaçu – Stela, prima de Dulce
(A voz submersa), João-Dedinho, delegado-alfaiate, Dona Mariazinha, professora, e o
filho mais velho do Zé-Gringo –, para que possam auxiliá-lo a compor essa imagem
fugidia de poeta.
A figura de um poeta etéreo, insofrido, infeliz e deslocado, mas persistente,
como todo artista em um país periférico é uma das nuances perseguidas. Um sujeito
sensível, que nasceu fora de seu tempo e do seu meio, mas, mesmo assim, com
consciência de seu papel no advento de um país melhor e menos desigual, fato que o
2
Salim Miguel publicou uma crônica com esse título “Vento Sul” na Revista Atualidade. (C.F. v.2, 1990,
p.50).
torna um desiludido, um desesperançado: “tenho apenas duas mãos e o sentimento do
mundo”. Em suma, um poeta por sua postura diante da vida, por seu “estar no mundo”
e, como argumenta o narrador, por sua consciência da luta com a palavra escrita, mais
do que pelo que deixou de concreto em termos artísticos:
Vale lembrar que esse título, “Dois minutos”, foi o mesmo dado por Salim
Miguel ao seu primeiro conto ficcional, com 12 anos de idade. Um rascunho do original
pode ser visto no livro Reinvenção da infância, tendo sido objeto também de nossa
análise no capítulo correspondente a essa obra. Ademais, há, ao longo de A vida breve
de Sezefredo das Neves, uma série de outras semelhanças biográficas e literárias entre o
escritor e o seu duplo metamorfoseado em poeta irrealizado, como o fato de ambos
serem canhotos e, consequentemente, “gauches na vida”,3 terem morado durante a
infância em Biguaçu e estudado no mesmo Grupo Escolar e, depois, no mesmo ano de
1943, fixarem residência em Florianópolis.
Em termos literários, as proximidades são mais evidentes, como a reutilização de
episódios narrativos – o causo do patacão rebrilhando ao sol e do caboclo descrente
curado pelo espírita Jacinto Silva –, o emprego dos mesmos personagens que compõem
o universo ficcional de Salim – Seu Zé-Gringo, J.M. Cego, Ti Adão, seu Galiani – e o
uso de um processo criativo semelhante: “Coleciono o que observo, anoto causos,
anedotas, lendas historietas, episódios, incidentes a que assisto ou que me contaram.
Mais tarde, quem sabe, me ajudarão... [...] tirarei daí minha literatura [...].” (VBSN,
2005, p.129-132).
Com base nessas considerações, não seria estranho afirmar que o texto ficcional
do “poetinha” transformou-se em lugar de encontro do escritor Salim Miguel com o seu
próprio passado esquecido e, igualmente, em espaço autoficcional de recriação da sua
3
Em entrevista a Giovanni Ricciardi, Salim Miguel esclarece como se tornou um “falso canhoto”: “[...]
tinha pouco mais de 4 anos (1928), morava num município de colonização alemã, brincava de roda com
outras crianças mais ou menos da minha idade. O rodar mais veloz, mais veloz, até que me solto ou me
soltam, dou uma volta, me estatelo no chão, fraturo a omoplata, um barbeiro é chamado, faz uma tala e
me imobiliza o ombro e o braço, permaneço assim durante meses; o que me torna um canhoto, falso
canhoto ou semicanhoto, ‘gaúcho’ [gauche] na vida como diria o poeta Drummond.” (2009, p.57).
experiência de juventude. Essa hipótese parece-nos confirmada no ensaio “Ody Fraga,
um amigo que se foi”, publicado no mesmo ano em que Salim começa a escrever o
livro, 1987:
[...] com a morte de Ody Fraga, vitimado por um edema pulmonar agudo,
vai-se mais uma parte de minha juventude, dos anos de sonhos, de
esperanças, de entusiasmo, de efervescência.
Paro e penso: a implacável ceifadora das gentes aos poucos de forma
inexorável, dizima o chamado Grupo Sul. Agora que nos aproximamos do
quadragésimo aniversário do surgimento do movimento, que tantas e tão
duradouras marcas deixou na cultura catarinense, olho para trás e conto
nossos mortos. (C.F. v.2, 1990, p.77).