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re v ista literária
amor fati
3
Núcleo Editorial
Nilson Oliveira
Izabela Leal
João Camillo Penna
Alberto Pucheu
Ricardo Pinto Souza
Ney Ferraz Paiva
Ramon Cardeal
Evandro Nascimento
Editora de Arte
Polichinello
Eliane Moura
Dez anos
Revisão
Dayse Barbosa
Imagens
Gianguido Bonfanti
Distribuição
Lumme Editor
Contato
revista.polichinello@gmail.com
Tiragens
500 Exemplares
índice
Nilson Oliveira
Desertado ao ofício (de copistas) na direção das experiências que só o aberto proporciona,
Wilson Coutinho | 12 Milton Meira 88 Bouvard e Pécuchet ingressam nos prazeres (bucólicos) de uma vida outra, na qual o tempo é convertido
em exercício de instrução, numa aventura pelos saberes, os mais diversos, entre os quais, astronomia,
Max Martins | 14 15 Mauricio Chamarelli Gutierrez 89 arqueologia, pedagogia, jardinagem, hidroterapia, ginástica, veterinária, conservas, historia, literatura,
Clément Rosset | 17 John Berger 91 filosofia, etc. Mas, ao longo de 20 anos, falham em todas as investidas, não conseguindo concluir nada
sobre tantos e diversos assuntos, declinando numa situação-limite cujo efeito é o retorno ao ofício
Adam Colin Chambers | 21 Leonardo Gandolfi 92 primeiro:
“E os personagens encomendam de um carpinteiro uma escrivaninha dupla e se põem a copiar
Silvana Tótora | 22 Luiz Guilherme Barbosa 93
manuais, manuscritos, anúncios, documentos, cartazes, livros, muitos dos quais eles tentaram primeiro
Giorgio Agamben | 25 Marcelo Jacques de Moraes 97 se apropriar pela experiência e colocando-os à prova do real. Eles copiam, classificam, ordenam, eles
tornam-se os livros”
Marcelo Ariel | 28 Solange Rebuzzi 99 Mas isso, o retorno em si, acontece, paradoxalmente, numa virada cujo postulado consiste
Evandro Nascimento | 29 Chiu Yi Chih e Irael Luziano – LOZ 100 numa aceitação: sem rebelião, sem revolta, o puro sim. Afirmação no limite de uma ação na qual o
sim consiste, apesar de tudo, numa aceitação ao destino: “Certo dia eles topam com o fragmento de
Contador Borges | 30 Márcio-André 102 um relatório confidencial, feito pelo médico local, que os caracterizava como imbecis inofensivos.
Perguntando um ao outro o que fazer, logo decidem: “nada de reflexões, copiemos”.
Alfred Jarry | 34 Flávio Castro 103
A aventura de Bouvard e Pécuchet, nesse recorte, nos remete a uma imagem cuja borda (a cena
Marcia Tiburi | 35 Victor Sosa 104 do retorno) nos faz pensar nos possíveis entre escrita e destino, num processo de justaposição, dobra
para uma experiência intensiva, experiência com a escrita, movimento que não cessa e pelo qual se
Philipe Lacoue-Labarthe | 37 Paulo Sposati Ortiz 106 deflagram os mais diversos dos acontecimentos.
Alfredo Fressia | 40 Diogo Cardoso 107 Essa é a parte que nos afeta e, a um só tempo, a imagem que partilhamos nesta edição da
Polichinello: o amor à literatura. Ou seja, a compreensão da escrita como prática em retorno cuja
Martín Gambarotta | 41 Vinícius Nicastro Honesko 108 direção é o sem fundo do escrever. Experiência viva, combate num plano que se bifurca em linhas
várias: por entre o neutro, pelo fora, no rastro do inominável. Experiências que não cessam de ser a
Alejandra Pizarnik | 43 Ana Amália 111
intimidade de seu eterno nascimento.
Eduardo Pellejero | 46 Daniel Lopes 112 Falamos, portanto, do AMOR AO DESTINO - AMOR FATI. Falamos da escrita como vontade
intensa de pertencimento ao mundo (do escrever), vontade transfiguradora e criadora que deseja
Claudio Willer | 48 Keyla Sobral 113 afirmar a vida apesar das suas contingências mais estranhas e difíceis: apesar de tudo, AFIRMAR.
Eduardo Sterzi | 52 Vasco Cavalcante 116 Apesar de tudo, ESCREVER. Pois “escrever é uma questão de devir, sempre inacabado, sempre em
vias de fazer-se. É um processo, quer dizer, uma passagem de vida que atravessa o vivível e o vivido”
Marília Garcia | 56 Bianca Coutinho Dias 118 (Deleuze/Guattari).
E nessa passagem entre escrita e destino, retorno e devir, chegamos à nova edição da
Ney Ferraz Paiva | 64 Marcia Barbieri 120
Polichinello. Algo especial para nós, pois com esse novo sopro alcançamos o decênio. É a resistência-
Maura Lopes Cançado 67 Suelen Carvalho 122 polichinello. Dez anos de confluências, acertos e erros; algo possível tão somente pela força dos afetos,
sobretudo pela vontade-em-comum (vontade de encontro) de movimentar a escrita literária. Ação-
Célia Musilli 69 alberto lins caldas 125 com-amigos: amizade como categoria, amizade como condição para pensar. Ação-plural, com, pautada
Andréa Catrópa 73 Ramon Cardeal 128 na direção de uma experiência entre a literatura e o pensamento.
E nessa direção partirmos, com um tema em vibração com os Dez anos de circulação da revista.
Sandra Mara Corazza 76 Élida Lima 130 Tema de afirmação, pois se trata de um ciclo de resistência que, através da sua maneira plural, se
espraia no coração da literatura, inclinando-se pelo mais diverso das maneiras do escrever, afirmando
Cecilia Cavalieri 80
a polissemia de experiências que gravitam no interior da Polichinello (inclusive para além [ou aquém]
Fabiano Calixto 81 Imagens de Gianguido Bonfanti | capa 3 6 13 32 51 56 da própria literatura), apostando na literatura, a apesar de tudo.
Gianguido Bonfanti pertence a essa família de pintores, na qual não se deve excluir, no Brasil, a última e
sensacional fase de Iberê Camargo. A obra de Bonfanti veio nascendo lenta, combinando pesquisa, imensa cora
gem para desagradar e severa ética profissional, que encabula pelo rigor ascético. É, afinal, um artista. (...). Pinta
cenas desoladas de sexualidade, cheias de vazio e morte.
Quando aprofundou esse tema radical e violento, usava violetas, vermelhos e azuis exibindo virtuose em
veladuras. Poderia mexer com o nosso gosto americano, tal eram o estilo francês, elegância formal e romantismo
das suas telas. O tema, porém, adaptava-se ao acabamento dos seus pincéis, mas poderia estar em contradição,
exatamente, devido ao exemplar acabamento. Bonfanti alterou sua paleta para negros, ocres, azuis, escapando da
luminosidade interior das telas passadas. Nesta fase a luz escorreu por todo o quadro, tornando a cena sexual mais
fria e mais terrível.
Moveu-lhe também (...) outra ambição corajosa: recuperar, contemporaneamente, o autorretrato, sem cair
em artimanhas: a fotografia e técnicas digitais. Usa tinta óleo e nos deixa a nostalgia da terebintina. Passo a passo
pode-se ver a sua evolução nos autorretratos (...) até os seus rápidos movimentos circulares do pincel e a im
piedade em autorretratar-se, criando verdadeiras máscaras dolorosas. É o óleo chegando a três passos
do inferno.
A obra de Bonfanti (...) é um imenso desafio para a crítica, para o gosto e para o conformismo
da atual arte. Bonfanti é grande artista e sua ética, fora do comum: não abre mão de sua verdade para
agradar a ninguém.
Firme penetra e cresce a aproximação conjunta Agora que a madeira e o fogo de novo se combinam
E ocupa um centro: A morte, a fera e o inimigo n° l já não te enxerga
da vida ou vai-se embora
te lambendo varre a tua cabana e expõe ao sol tua língua
tua esperança tíbia
o tigre da Coréia da parede
Do livro Para ter onde ir | 1992 Do livro Para ter onde ir | 1992
Aquele que tem muita alegria deve ser um homem bom: mas
talvez não seja o mais inteligente, embora alcance aquilo a
que o mais inteligente aspira com toda sua inteligência.
O viajante e sua sombra
1. «De la bé
2. atitude chez Nietzsche», in Nietzsche, Cahiers de Royaumont, Minuit, 1967, p. 13-28.
3. Idem, p. 13.
4. Todas as citações de Nietzsche serão tiradas das traduções francesas que fazem parte das Oeuvres Completes, de
Nietzsche, publicadas pela Gallimard conforme o texto original estabelecido por G. Colli e M Montinari.[Os textos em
português, quando não foram traduzidos diretamente da referida tradução francesa, foram tirados de Nietzsche, coleção
“Os Pensadores”, Editora Nova Cultural Ltda., trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho, N. T.].
20 4. “Incursões de um extemporâneo”, Af. 12. Adam Colin Chambers (B.A, McGill) 21
VELHICE E AMOR FATI | POÉTICA DA VIDA tão depreciativa da velhice não deixa de ser a outra face do ideário atual de “velhice ativa”. Trata-se de
uma concepção que se sustenta pela negatividade. Ativa, hoje, é a velhice que contrasta com a fealdade,
Silvana Tótora a doença e o pessimismo.
Nietzsche em outro aforismo da “Aurora” (§ 542) é impiedoso contra um tipo de velhice que
acomete o pensamento filosófico e os filósofos. Trata-se da perda de força da criação e um trabalho
para perpetuar-se. Abusando da metáfora poética ele afirma: “A velhice como a noite, ama disfarçar-
se de uma nova e atraente moralidade e sabe humilhar o dia com os vermelhos do crepúsculo e o
silêncio apaziguador ou nostálgico”. Neste caso, a velhice pode significar uma fadiga do pensamento e
Sessenta anos. Repasseio meu corpo para sentir as forças, os afetos e as potências que o atravessa. o desejo de fixar-se num dado sistema legado à posteridade sob a guarda de uma instituição ou de seus
São estas pulsões de vida que impedem o corpo de congelar-se no organismo, ou ser capturado na discípulos. O pensamento deixa de fruir numa luta incessante, na imanência da vida, para cristalizar-se
identidade de um sujeito substancializado no “Eu”. A matéria como pluralidade de forças e potências num personagem que se autocontempla acima da obra de sua vida.
é insubmissa e transvasa a forma; resiste, re-age, rende-se ao jogo de forças desiguais em que umas “Velhice ativa”, Velhice e tristeza, “Velhice monumento” são variações de tipos de velhice que
dominam as outras num vai e vem sem fim. O corpo pode mutilar-se, ser destroçado, resistir ou reputo decadentes, porque sem força para criar além de si mesma. Velhice, contudo, pode sinalizar
subjugar-se ao enlace dos dispositivos de poder que o disciplina, dociliza, moraliza e controla. a “grande saúde” nietzschiana (Gaia Ciência, § 382) - aquela que se adquire e se sacrifica a cada
Velhice é destinação, e não cronologia ou castigo para aqueles que não obedeceram aos modelos momento - que tira proveito da própria doença como antídoto ao conforto e a conservação do si.
alardeados. Envelhecemos com a idade, mas nos tornamos velhos por um acontecimento singular, Nietzsche, na companhia do filósofo Heráclito e do deus Dioniso, não teme as forças transbordantes
delicado e nada ruidoso; audível para orelhas pequenas e seletivas. Apreendê-lo requer um aprendizado que rompem os limites fronteiriços e brincam com o lado mais terrível da existência.
único, sutil e imperceptível ao público majoritário, sejam eles poucos ou muitos. Estes últimos são Um gosto pela solidão nutre as almas transbordantes. A velhice pode ser o momento da vida em
aqueles sedentos de fórmulas prontas e um sentido para a vida. que nos desobrigamos das responsabilidades com o trabalho, dos compromissos impostos, e, assim,
De que aprendizado se trata? Da invenção experimental na imanência da vida. A vida escorre podemos desfrutar do prazer da nossa própria companhia e da simples existência. Uma velhice artista
pelo corpo e reúne este fragmento do acaso que nos produziu. Afinal, somos o fruto fortuito de uma não se põe acima da sua obra a fim de preservá-la, mas, a maneira da criança brincalhona, constrói e
multiplicidade de forças em relação que, numa luta desigual de suas potências, impulsiona a vida. destrói com a inocência do puro jogo do devir.
Sem finalidade, sem causa. Puro acaso. Urge agarrar este presente da fortuna e fazer dele destino ou Há intensidade na experimentação de um tempo que não passa, e neste instante tudo pode
necessidade: amor fati. acontecer. Oh doce sensação de um tédio profundo que vibra no compasso das batidas do coração!
Amor fati. Poetas e artistas não temem a solidão, mas a desejam. É preciso encontrar a graça na sua própria
companhia e se alimentar de uma solidão povoada. Pode-se também desfrutar da solidão a dois que se
Amor ao destino unem não por suas carências, mas para partilharem intensidades transbordantes. Nada comunicam para
se entregarem ao silêncio bruto e pulsante dos corpos.
Amor à necessidade... Podemos contrapor à dita “velhice ativa”, anêmica de vida, outra concepção de velhice que
faça convergir o trágico com uma ética afirmativa do amor fati. Trata-se de um Sim dionisíaco à vida
Pathos afirmativo por excelência
com tudo que ela tem de grande, de abismo, de dores, sofrimentos, alegrias, doenças... O trágico é
Um Sim incondicional à vida justamente a recusa da moral ou qualquer similar artístico, religioso, filosófico ou científico que se
alimente da negatividade, do pessimismo, da morbidez no julgamento da vida, com base em modelos
Com todas as dores sofrimentos alegrias ideais de natureza metafísica. A ciência positivista também é uma forma de metafísica invertida que se
Como não bendizer a velhice quando se toma a perspectiva da vida? Espinosa, Nietzsche e põe fora dos fluxos da história e da vida.
Deleuze num encontro estelar, por mim provocado, com a poesia de Manoel de Barros e Hilda Hilst, Os doutores da finalidade da existência tentam confundir o trágico com o pensamento decadente
aproximaram-se desta perspectiva da vida. Eles encontraram para si os seus próprios remédios, por eles apregoado. Estão sempre a postos como salvadores de uma pretensa universalidade da natureza
exprimível na criação filosófica e poética, e se recusaram a servir aos doutores duvidosos. Médicos, humana. Zaratustra identifica nestes chamados “grandes homens” o maior perigo. Eles se denominam
pastores, psicólogos e outros profissionais de saúde distanciam-se do fluxo da vida quando se empenham de bons e justos cujo móvel é a punição dos indesejáveis. Ora, justa é a vida: eis a dimensão trágica
Na Teodicéia, Leibniz justificou o direito do que foi contra o que podia ser e não foi, com um
apólogo grandioso, mas terrível. Prolongando a história de Sexto Tarquinio, narrada por Lorenzo Valia Scholem escreveu um dia que há qualquer coisa de infinitamente desconsolador na doutrina da
no seu diálogo sobre o livrc-arbítrio, ele imagina uma imensa pirâmide de ápice resplandecente, e ausência de objecto do conhecimento supremo, tal como é ensinada nas primeiras páginas do Zohar, e
cuja base desce até ao infinito. Cada um dos inúmeros apartamentos que compõem tal “Palácio dos que constituí, de resto, a lição última de toda a mística. Nessas páginas, no limite extremo do conheci
destinos” representa um destino possível de Sexto, a que corresponde um mundo possível, que, no mento, aparece o pronome interrogativo O quê? (Mah), para lá do qual não há já resposta possível:
entanto, não se realizou. Em cada um deles, Teodoro, que a deusa Atenas transportou por encanto para “Quando um homem interroga, procurando discernir e conhecer, grau após grau até ao último, atinge o
o palácio, contempla uma existência possível de Sexto “cm um só golpe de olhar, como acontece em Quê? ou seja: Entendeste o que? Viste o que? Buscaste o que? Mas tudo contínua tão impenetrável como
uma representação teatral”. “Ingressou em outro apartamento, e eis um novo mundo e outro Sexto... ao princípio.” Mais íntimo e oculto é, no entanto, segundo o Zohar, o outro pronome interrogativo, que
Os apartamentos formavam uma pirâmide e tornavam-se mais belos à medida que, subindo para o assinala o limite superior dos céus: Quem? (Mi). Se o Quê? é a pergunta que interroga a coisa (o quid
ápice, representavam mundos melhores. Alcançaram finalmente o lugar mais elevado, que terminava da filosofia medieval), o Quem? é a pergunta que se dirige ao nome: “O impenetrável, o Antigo, criaram
a pirâmide, e era o mais esplêndido de todos; com efeito, a pirâmide tinha um início, mas não se via o isso. E quem é isso? E o Quem?... Como é, a um tempo, objecto de pergunta, indesvendável e fechado,
seu fim; tinha um verdee, mas nenhuma base, pois esta se alargava ao infinito. Isso acontece - explicou chama-se-Ihe Quem? Para lá dele não há mais perguntas... Existente e inexistente, impenetrável e
a deusa - porque entre uma infinidade de mundos possíveis, existe um que é o melhor de todos, do fechado no nome, não tem outro nome senão Quem?, aspiração a ser desvendável, a ser chamado por
contrário Deus não poderia tê-lo enado; mas não há nenhum que não tenha abaixo de si um menos um nome.”
perfeito: por isso a pirâmide desce sem fim “
É certo que o pensamento, uma vez atingido o limite do Quem?, deixa de ter objecto, chega à
Podemos imaginar que também para os livros existe uma “Biblioteca dos destinos” semelhante, experiência da ausência de objecte último. Mas isto não é desconsolador, ou melhor, é-o apenas para um
em cujas infinitas prateleiras estào conservadas as variáveis possíveis de cada obra, os livros que pensamento que, tomando uma pergunta por outra, continua a perguntar Quem?, lá onde não só já não há
poderíamos ter escrito se, a um certo ponto, algo não tivesse decidido em favor do livro que acabou respostas, como também não há perguntas. Verdadeiramente desconsolador seria o conhecimento último
sendo escrito e publicado. O livro real ocupa aqui o ápice de uma pirâmide, em que os inúmeros livros ter ainda a forma da objectualidade. É precisamente a ausência de um objecto último do conhecimento
possíveis se precipitam de andar em andar até o Tártaro, que contém o livro impossível, que nunca que nos salva da tristeza sem remédio das coisas. Toda a verdade última formulável num discurso
poderíamos ter escrita objectivante, ainda que na aparência feliz, teria necessariamente um carácter destinal de condenação,
de um ser condenado à verdade. A deriva em direcção a este definitivo fechamento da verdade é
Não c uma experiência fácil, para o autor, entrar em semelhante Biblioteca, porque a seriedade
uma tendência presente em todas as línguas históricas, a que a filosofia e a poesia obstinadamente se
de um pensamento se mede sobretudo na relação com o passado. Ao autor não se permite, como
opõem, e na qual encontram alimento, tanto o poder significante das linguagens humanas, como a sua
acontece com o demiurgo leibniziano, voltar a visitar o palácio dos livros possíveis, para “entregar-se
inelutável morte. A verdade, a abertura que, segundo um oros platónico, é própria da alma, fixa-se,
ao prazer de recapitular as coisas, e confirmar a sua escolha, da qual não pode deixar de se regozijar”. Na
através da linguagem e na linguagem, num último e imutável estado de coisas, num destino.
tradição crítico-filosófica em que este livro conscientemente se inscrevia no momento da sua primeira
edição (1977), uma obra valia, de fato, não só pelo que efetivamente continha, mas também pelo que Nietzsche tentou escapar a este pensamento pela ideia do eterno retomo, pelo sim dito ao instante
nela havia ficado em potência, pelas possibilidades que havia sabido conservar (“salvar”), para além mais atroz, quando a verdade parece fechar-se para sempre num mundo de coisas. O eterno retomo
do ato (e que, neste, viviam como tarefa). Portanto, nesta perspectiva, precisamente é séria a relação é, de facto, uma última coisa, mas ao mesmo tempo também a impossibilidade de uma última coisa:
com o passado que não o transforma simplesmente cm necessidade, mas que sabe repetir (retomar, a eterna repetição do fechamento da verdade num estado de coisas é, enquanto repetição, também a
segundo a intenção kierkegaardiana) a sua possibilidade - inclusive e sobretudo a possibilidade de não impossibilidade desse fechamento. Na formulação insuperável de Nietzsche, o amor fati, o amor do
ser (ou de ser dc outra maneira), ou seja, a contingência. O ato de criação não é, na realidade, segundo destino.
a instigante concepção corrente, um processo que caminha da potência para o ato para nele se esgotar,
mas contém no seu centro um ato de descriação, no qual o que foi e o que não foi acabam restituídos à sua Este monstruoso compromisso entre destino e memória, no qual aquilo que só pode ser objecto
unidade originária na mente de Deus, e o que podia não ser e foi se dissipa no que podia ser e não foi. de recordação (o retorno do idêntico) é vivido todas as vezes como um destino, é a imagem distorcida
Este ato de descriação é, propriamente, a vida da obra, o que permite a sua leitura, sua tradução e sua da verdade, que o nosso tempo não consegue dominar. Porque a abertura da alma – a verdade – não
(Abertura)
Preciso alcançar o que é maior do que o nome no teu corpo, esse nome provisoriamente gravado em
tua imagem-sem-a-vertigem-da-presença,ainda não é você, apesar de evocar o mistério que está muito
acima do silêncio, mistério que tenta tocar de leve na superfície desta ‘ vidraça de surpresas’ como diz
o poema de `Paul Eluard com o qual estou conversando agora, somente na destruição de um refúgio,
no destroçamento de um farol, reside aquilo que é maior do que o nome, a nudez da solidão subindo
os degraus da morte, a esperança em sua obsessiva luta contra a saudade, na implosão das paredes do
tédio, nestes lugares interiores que migram devagar para o exterior, inomináveis como a alegria da
chegada que faz do amor e da liberdade, rios paralelos é que ouço o teu verdadeiro nome , se for capaz
de esquecer o meu.
O fato é que o amor move o Sol e etç., O sol do amor não dorme e talvez isto explique porque o amor
afaste o sono em quem está longe daquilo que ama, exposto sozinho ao poder de seus raios ‘de solidão’
, sem que a sombra acolhedora de outro corpo possa protegê-lo de tanta realidade. Desço os degraus de água – com os pés em desacerto – até as entranhas cinzentas do abismo líquido
(Largo-Andante) que anda.
Amo tua imagem congelada , luz congelada que é a prova de que até o ‘parado’se move, se no sonho Plânctons invisíveis roçam minha superfície corpórea e comprimem maliciosamente meus músculos de
tua imagem é mais real do que a realidade, é este rei que divide em dois o tempo de uma vida, que virilidade, lançando-me à mobilidade infinita de voluptuosas correntes aquáticas.
anuncia o câmbio dela para este outro sonho onde agora estou acordado Sinto-me próximo dos movimentos graciosos das ariranhas, que abrem suas vísceras como o fruto
rubro de exposição mais íntima, num doce aceno à ardência dionisíaca de algum passante fortuito.
( Scherzo)
A lembrança do seu rosto , me visita através da luz de um céu, coração aberto tocado pelo Sol : morada Há ali uma incandescência libidinosa que irradia a energia repassada há muito pelos mais reluzentes
final de todos os que amam , na memória do mundo, a morte deste Sol é inconcebível porque jamais espelhos primitivos.
a veremos, tão curta é a duração do nosso sonho que finda, evocando a finitude de tudo,até da Estrela, Vou seguindo acorrentando-me às cálidas correntes...
mas há outra maior, outro Sol que nasce na memória do infinito e penetra nesse esquecido paraíso que
é o mundo, impelido pela amorosa força que também deseja unir dois corpos a uma mesma Alma,
sigo carregando dentro do peito esta certeza, acalmando e alegrando meu espirito, que pela tarde vaga,
tocando já nesta Alma, mesmo que ninguém a veja
(Opus)
O mel, o desabrochar de uma rosa, a chuva, quase tudo na natureza obedece uma arquitetura da
espera, até o relâmpago, êxtase das nuvens e ventos, espera o momento do encontro no tempo, o amor,
sobrenatureza que anima a natureza dos amantes, que são como vento e luz habitando uma casa de
ar e água, também é uma tessitura de esperas paradoxais , porque aquilo que esperamos e está vindo
também está em nós. Assim aguardo que seja cancelada na noite do tempo, do outro lado do ser, vossa
ausência para que a quase apagada vertigem da próxima manhã se converta em dupla presença.
28 29
Marcelo Ariel (1968). Poeta, performer e dramaturgo. Autor do livro Retornaremos das cinzas para sonhar com o silêncio. Evandro Nascimento (PA). Escritor e tradutor. Foi interlocutor e amigo de Augusto Monterroso e Severo Sarduy.
MÍTICOS
Contador Borges
Tradução:
Eclair Antonio Almeida Filho &
Odulia Capelo África, janeiro de 2014. Sonho com R. mas R. não aparece no sonho. R. é uma ideia distante. Estamos
na África, de qualquer modo. Sempre estivemos na África, não preciso dizer. De um lado, pelo caminho
da esquerda, ouço latidos e sei que há um foco de ebola. Do outro lado, à direita, está R., ou melhor,
sua ideia. Do outro lado, sempre do outro lado, é assim que R., no caminho transversal a seguir, anda
no leito de um riacho seco, como a vida.
R. acorda, ao meu lado, transformado em um escaravelho, como o monstro de Kafka. Pergunta-me, por
entre gosmas e cartilagens, se posso parar de falar em Nietzsche por alguns dias. Respondo que não.
O anjo da morte appareceu ao meu senhor com seis faces, co’as quaes elle recolhe as almas
Leio um parágrafo das Considerações Extemporâneas e ele se acalma. Mas aviso, para a renovação de
dos habitantes d’Oriente, d’Occidente, do céo, da terra, dos paizes de Jadjudi e Madjudi e do paiz dos
seu desespero, que Nietzsche bate à porta e vou deixá-lo entrar. Como não se deve fazer com alguém
crentes. E mostrou ao meu senhor sua sexta face. Ora, os djinns que trabalham no templo a cortar os
que já morreu, lembro incomodada. R. me diz, insistindo ao exaspero, que não abra a porta. Tento, mas
metaes silenciosamente co’a pedra samur fornecida pelo corvo, escutarão a queda do corpo do propheta
não posso ouvi-lo. Do outro lado, sua voz é pura imaginação. Uso minha impotência para me proteger,
ao piso da salla de crystal, e não quererão acabar a construcção. Elles veem meu senhor erecto entre
a impotência é a inimiga mais poderosa da imaginação, não preciso explicar. R. fica revoltado e tenta
as muralhas transparentes, apoiado em seu cajado de cedro; e si o anjo lhe leva a alma n’esta posição,
virar-se, mas sua forma corporal atual não permite que se mova como quer. Abro a porta e vejo que não
o piso luminoso vibrará, attingido pelo corpo terrestre, tão sómente apoz a ruptura do cajado, corroido
era Nietzsche, mas um cão. Deixo o escaravelho terminar sua dança angustiada tentando erguer-se do
pelos vermes. E, talvez, o templo será acabado. Aconselhei ao meu senhor que sustentasse suas palmas
chão. R. saiu da cena deixando para trás um rastro de folhas secas. Eu perco a audição para sempre.
co’uma vêrga d’oiro incorruptivel, afim de que os djinns o soubessem eternamente erecto na salla
de crystal. Todavia, o propheta não quer, de nenhum modo, impedir que os vermes desmintam uma
R. me acorda contando o sonho. O cão pertencia a Nietzsche, como Argos a Ulisses, diz-me desviando
eterna mentira, e o anjo preparou o envelope de sêda verde em que será insufflada su’alma, confiada a
o olhar. Por não saber ouvir o animal, a culpa há de me devorar por séculos intransponíveis, ele ameaça,
um passaro verde que a levará ao tribunal dos anjos Ankir e Menkir. Mas elevei meus olhares ao céo,
enquanto dou de ombros riscando o silêncio com o barulho de um fósforo. O cão sabia que eu estava
e a rainha Balkis, esposa de Salomão, que por elle abjurou o culto ao sol, consentirá em confiar sua
doente e que morreria logo, era seu alerta. A vida é um caminho errado, continua a falar pesaroso,
propria alma ao anjo que a insufflará no envelope de sêda verde, e o anjo da morte, sob qualquer fórma
tentando livrar-se das folhas amareladas que não sumiram depois do sonho. Percebo nas palavras de R.
com que appareça, receberá uma alma envelopada para oferecel-a ao passaro Simurg, pois que a alma
que, como Nietzsche, o que ele anuncia é sua viuvez. Não me impressiono. Os homens, como R., como
deve alcançar o paraizo dos crentes pela região do ar e do fogo; e um corpo astral para o barqueiro
Nietzsche, sempre anunciam a própria viuvez. Certos de que a vida é um caminho errado, eles tentam
monstruoso, que o transportará atravez do paiz dos pantanos. Assim Salomão viverá em corpo e alma
de tudo para parecer o contrário. R. evoca o silêncio batendo na madeira. A madeira do meu caixão. A
até ao acabamento do templo.
vida é sonho, descubro conversando com Calderón, com quem almocei no dia anterior. Calderón tem
muitos filhos e também ele vive de anunciar a própria viuvez. O sonho é apenas um detalhe. Não sabe
que eu e sua mulher temos um caso. É nossa pequena vingança.
O cão está finalmente morto. Não sabemos como, mas padeceu sob o vírus do ebola.
Alfred Jarry (Laval-1873 | Paris-1907) foi um patafísico poeta, romancista e dramaturgo francês. Autor de Ubu Rei Marcia Tiburi, filósofa, escreveu os romances Magnólia (2005), A Mulher de Costas (2006), O Manto (2009) e Era meu
34 (1896). Amor Absoluto (1899). esse rosto (2012). 35
O NASCIMENTO É A MORTE
Philipe Lacoue-Labarthe
A memória de Sarah
Há «cenas primitivas»: é sabido, ou reconhecido, desde Freud. Pelo menos. Elas são matriciais:
rememoradas, reelaboradas ou reconstituídas, e mesmo simplesmente inventadas, por efeito de uma
espécie de retroprojeção - elaboradas, portanto –, elas dão forma a ou ditam um destino singular ou
colectivo. Uma vida é, do mesmo modo que uma civilização, a repetição – a «reação», no sentido estrito – dessas
cenas inaugurais ou, mais exactamente, imemoriais, se entendermos por esse qualificativo o que ele deveria
significar: elas são anteriores à própria memória, da qual são na verdade a possibilidade mais precisa; e, por isso
mesmo, a impossibilidade: a devastação do esquecimento. Qualquer existência – o fado de existir, ou que há
existência - é a recordação daquilo de que não existe, por definição, nenhuma recordação: o nascimento.
Este mecanismo das cenas, por mais arcaico que seja, foi tornado visível desde há muito pelos mitógrafos
e pelos etnólogos: é o da citação d o s planos ou das sequências míticas, pensados como modelos de existência
e indutores de comportamento. Mas é preciso não esquecer que toda a moral clássica, antiga ou moderna – de
Plutarco a Montaigne ou a Rousseau e a Nietzsche – foi fundada sobre a meditação dos exemplos (os «homens
ilustres») ; e que a ética cristã, que se reclamava da “vida dos Santos”, acabou por se resumir na Imitação de Jesus
Cristo. Foi em plena consciência que o profeta da morte de Deus intitulou a sua autobiografia Ecce Homo.
Não é certamente absurdo pôr a hipótese de que esse mesmo fenómeno é constitutivo da «Literatura»
enquanto tal. A origem da literatura seria, também ela, imemorial. Com a única diferença, todavia, de que ela
São ambas instaladas – para sempre – pelos poemas homéricos. É a cena da cólera (Aquiles, A. Ilíada);
e é a cena da experiência literalmente: da travessia de um perigo – um termo marítimo, como sabemos (Ulisses,
36 A, Odisseia). O Ocidente é colérico e aventuroso, experimental, mesmo no momento em que se torna cristão e no 37
qual cresce, precisamente contra o mito grego, a cólera do Deus bíblico (e dos profetas). Ou em que o destino do
Espírito, que ele considera como o seu Destino – senão mesmo o próprio Destino – se chama travessia do deserto,
e retorno: a si, a casa (Ítaca é uma terra prometida). Ou ainda: paixão, morte e ressurreição. «No lugar onde se A cena está absolutamente enquadrada: é a mais antiga, a mais velha. Artaud comenta-a assim (é, por
encontra o perigo, abunda também aquilo que salva»: foi Hölderlin que o disse, ele que via em Kant «o Moisés da assim dizer, sem frase: unicamente um murmúrio: «não vociferar», como ele diz):
(sua) nação». Mas Hegel e Schelling teriam consentido na máxima, eles que definiam a filosofia (o pensamento
ocidental), desde a sua mais remota origem, como a «Odisseia da consciência». Seja como for, qualquer um deles O electrochoque que me fez morrer foi o terceiro.
era devedor dessa sabedoria de Lutero: «Mesmo Deus está morto». Retomarei este ponto. Eu tinha adormecido penosamente com a descarga da corrente e recordo-me de ter andado às voltas
por um tempo indeterminado, esgazeado como uma mosca no interior das minhas próprias goelas, em
A cena da cólera diz respeito à Justiça, e portanto ao juízo: o final, segundo a escatologia seguida sentira-me a morrer e a rebentar sobre os meus próprios restos, mas sem chegar a separar-me
judaica e cristã (que não é forçosamente o «messianismo»). Artaud torna a representá-la, essa cena, sob totalmente do meu corpo.
a invocação do mártir (da testemunha exemplar) que ele elegeu: Van Gogh, «o suicidado da sociedade». Eu oscilava no ar como um balão preso, perguntando a mim próprio de que lado estava o caminho, e se
Isso tem por nome, ainda assim fora de qualquer acaso, Para acabar de vez com o juízo de Deus. Entenda-se o meu corpo chegaria alguma vez a acompanhar-me nele (...)
com clareza: há juízo, mas para acabar de vez com o juízo. Juízo final do «Juízo final», fim do «reinado dos Fins».
Tinha chegado a esse ponto da luta, quando um estalido brusco me fez soçobrar na superfície, e voltei a
Artaud protesta e exige, como Aquiles (ou Job), uma compensação. É a tentativa de, na veemência e na revolta – a
mim no quarto em que o eletrochoque me tinha fulminado.
“santa cólera” –, consumar a espoliação teológico-metafísica, o furto da alma. Uma cólera assim é comparável à de
Disseram-me depois que o Dr. Ferdière, julgando-me morto, tinha ordenado a 2 enfermeiros para
Nietzsche, igualmente dolorosa, igualmente patética. Mas talvez com maior dureza. Exige-se que tenha fim – por
transportarem o meu corpo para a morgue, e que só o meu despertar, nesse momento, me tinha salvo.
fim – o despojamento, a desapropriação. Nietzsche rejubilava, Artaud passa um martírio. A sua questão não é, em
absoluto: quem sou eu?, nem mesmo: estarei ainda vivo? (Estas são, no fundo, questões infantis, e narcisistas.) A
sua questão é: por que razão me «forçaram» a ser? Por que razão me arrancaram (é uma das suas palavras)? E é a Artaud volta a representar toda a cena. Ele volta a representá-las todas, na realidade. O que
questão da morte – do nascimento. significa; todas as mortes. A de Montaigne caindo do cavalo (Essais, II, 6, De l’exercitation); a de Rousseau,
que a repete (Rêverie du promeneur solitaire, II); a de Chateaubriand (Mémoires d’outre-tombe); a de Rimbaud
A experiência de Ulisses não é ela própria uma mera navegação; nem mesmo a do furor do retorno. (Une Saison en Enfer), ou a de Mallarmé quando declara: «a destruição foi a minha Béatrice», e confidenciando
Ela culmina na travessia da morte, a descida aos Infernos – um topos obrigatório, doravante, para toda a grande ao seu amigo Casalis: «Agora posso dizer que estou totalmente morto». E tantos outros, até ao Blanchot de
literatura (ocidental), de Virgílio e Lucano a Dante ou a Joyce, e a Broch. O trecho denomina-se, tecnicamente, L’lnstant de ma mort. A impossível experiência da morte é a autorização da literatura, e não existe nenhum escritor
nékuia: o herói decide-se no sentido dos mortos – o «passo para-além», como diz Blanchot – atravessa «esse não preocupado com a sua essência que não esteja, desde sempre, já morto. De outro modo, que teria ele a dizer de
muito profundo regato caluniado, a morte» (a frase é de Mallarmé): Estige, Aqueronte. Ele reaparece. importante?
Ele reaparece, mas para se descobrir incrédulo por ter reaparecido. Por essa razão, ele diz (narra), ele Escrever é dizer como se está morto. E isso é o próprio pensamento, que não consiste em espantar-se
escreve: sabe que está morto, e é a própria Ciência. O mito de Orfeu expressa unicamente isso, e é o pelo motivo de que «eu sou», mas sim em ser agitado pelo motivo de que «eu já não fui». A morte é algo como o
mito da origem da poesia, isto é, da arte. imperativo categórico do pensamento, da literatura. Hegel transformou essa necessidade num sistema. Mas Artaud
(Não pensem que tudo isto seja apenas uma abstracção, reservada ao exame literário ou proferiu-a na mais extrema dor, e isso tem o nome de poesia.
filosófico. A própria história está sujeita a descrições deste tipo: de Gaulle, em 1940, tratou-se de uma
cólera; e Miterrand, em 1981, da descida para junto dos mortos. A sujeição simbólica não apresenta
falhas).
Esta ponderação elementar firma-se apenas na leitura dos blocos de notas preliminares de
Artaud para a «Conferência no Vieux-Colombier», pronunciada (não necessariamente «vociferada»)
a 13 de Janeiro de 1947. Num dos três blocos de notas trazidos por Artaud para essa ocasião, se é
que aos podemos fiar na transcrição apresentada por Paule Thévenin (mas, após alguma reflexão, é
possível fazê-lo), é possível ler que Artaud morreu crucificado, no Gólgota, há dois mil anos. Artaud
foi O Cristo: «Mesmo Deus está morto». Trata-se certamente de um «delírio». O Doutor Ferdière, que
o «trata», diz-lhe isso mesmo. Passo a citar:
Alfredo Fressia (Uruguai, Montevidéu, 1948). Poeta, tradutor e ensaísta. Recentemente recebeu o Premio Bartolomé Hidalgo
40 do Uruguai. Autor de Canto desalojado (Lumme). Editor da revista de poessía La Otra, México. http://alfredofressia. Martín Gambarotta (1968 Buenos Aires). Poeta e jornalista argentino. Punctum (1996). Ganhou o “I Concurso 41
blogspot.com/ Hispanoamericano Diario de Poesía”, 1995.
ALEJANDRA PIZARNIK
Os ausentes sopram e a noite é densa. A noite tem a cor das pálpebras do morto.
Toda noite faço a noite. Toda noite escrevo. Palavra por palavra eu escrevo a noite.
CONTEMPLAÇÃO
Morreram as formas apavoradas e não houve mais um fora e um dentro. Ninguém estava
escutando o lugar porque o lugar não existia.
Com o propósito de escutar estão escutando o lugar. Dentro de tua máscara relampejava a
noite. Te atravessam com grunhidos. Te martelam com pássaros negros. Cores inimigas se unem na
tragédia.
NA OUTRA MADRUGADA
Vejo crescer diante de meus olhos figuras de silêncio e desesperadas. Escuto cinzas, densas
vozes no antigo lugar do coração.
FIGURAS E SILÊNCIOS
I XI
E sobretudo olhar com inocência. Como se nada tivesse acontecido, o que é certo. Ao negro sol do silêncio as palavras se bronzeavam.
II XII
Mas a ti quero olhar até que teu rosto se distancie de meu medo como um pássaro da borda afiada da Mas o silêncio é certo. Por isso escrevo. Estou sozinha e escrevo. Não, não estou sozinha. Há alguém
noite. aqui que treme.
III XIII
Como uma menina de tez rosada em um muro muito velho subitamente apagada pela chuva. Mesmo que diga sol e lua e estrela me refiro a coisas que me sucedem. E o que eu desejava?
Desejava um silêncio perfeito.
Por isso falo.
IV
Como quando se abre uma flor e revela o coração que não tem.
XIV
A noite tem a forma de um grito de lobo.
V
Todos os gestos de meu corpo e de minha voz para fazer de mim a oferenda, o ramo que abandona o
vento no umbral. XV
Delícia perder-se na imagem pressentida. Eu me levantei de meu cadáver, eu fui em busca de quem
sou. Peregrina de mim, fui até aquela que dorme em um país ao vento.
VI
Cobre a memória de tua cara com a máscara daquela que serás e assustas a menina que foste.
XVI
Minha caída sem fim a minha caída sem fim onde ninguém me aguardou pois ao olhar quem me
VII aguardava não vi outra coisa que eu mesma.
A noite dos dois se dispersou com a neblina. É a estação dos alimentos frios.
XVII
VIII Algo caía no silêncio. Minha última palavra foi eu mas me referia à aurora luminosa.
E a sede, minha memória é da sede, eu embaixo, no fundo, no poço, eu bebia, recordo.
XVIII
IX Flores amarelas constelam um círculo de terra azul. A água treme cheia de vento.
Cair como um animal ferido no lugar que iria ser de revelações.
44 45
Alejandra Pizarnik (1936-1972). Escritora e poeta argentina.
MARCA D’ÁGUA
Eduardo Pellejero
Acordas (tarde), levantas-te (quase às cegas), fazes café (sem açúcar). Passaste toda a noite uma intimidade sem intrusões. O deserto no qual te adentraste é um deserto povoado de miragens.
em branco, assombrado pelos teus demônios, e apenas conseguiste escrever umas poucas linhas, que Não há preço mais alto que a solidão, e a escrita não aceita menos que isso, não pode. Exige
temes ler à luz do dia (e fazes bem). Abres espaço na mesa para apoiar a xícara de café. Quiçá ligas do escritor uma solidão tão grande que é o próprio escritor quem não está. Escrever é estar fora de si.
o radio. De costas para a janela que dá para o pátio, sentas-te. Enganam-se, portanto, aqueles que pensam que escrever é um meio de fugir do mundo e subtrair-se
Não sei o que acontece com o corpo quando adota essa posição nem que forças secretas se à seriedade da vida para moldar outro mundo e outra vida, à vontade. Se o poeta se asfixia no mundo
desatam sob a tensa imobilidade da carne, mas sei que aí tem lugar uma vida que não se parece à vida (quando falar já não faz mais sentido, quando não adianta), não é no alto da noite, na solidão da sua
tal como a conhecemos (e quiçá uma morte que não acaba). Falo de uma falha no homem, no animal habitação, perante a folha em branco, que encontra uma atmosfera fácil, porque aí o poeta quase não
que é o homem, e que é o mais profundo ascendente da sua humanidade. O olho, que durante séculos respira – é, antes, inspirado (desvelado por uma ideia obsessiva, que não consegue tirar da cabeça,
respondeu às necessidades da caça, dilata a pupila e se abandona a um exercício de contemplação sem sobre a qual não pode deixar de escrever). A inspiração, ou o entusiasmo, como diziam os gregos,
objeto, sem conceito, sem fim; a coluna, cuja função fora em tempos manter o corpo ereto para abarcar é a forma clássica de assinalar a dependência total do escritor em relação à escritura. Poeta não é
melhor o horizonte, cede ao peso da cabeça e se curva sobre o papel; a mão, forte no punho, se abre meramente quem faz versos: é aquele que é visitado pela musa, aquele que ganha o seu favor, e que,
para acolher os ditados da inspiração. Pela escritura o homem se expõe sem reservas, deixando atrás o sem reservas, se entrega de corpo e alma a ela. Ninguém pode simplesmente sentar-se a escrever. Juan
domínio da necessidade, para explorar a forma possível do seu desejo. Aí não é nada, não quer nada, Gelman dizia: “Escrevemos poesia quando ela nos visita, quando vem a senhora, quando bate à nossa
não pode nada, mas ao mesmo tempo encontra em si todos os sonhos do mundo (Pessoa). Sempre foi porta, depois de ter ido para a cama com meio mundo; então há que abrir-lhe a porta, e aí escrevemos
e continua sendo um mistério para nós o que acontece com o corpo quando adota essa posição. (ou somos escritos por ela, que é o melhor)”. O escritor só existe como possibilidade da escritura, sofre
Enquanto isso, fazes marcas sobre o papel, pequenas marcas negras sobre o papel, como a sua gravitação, é vitima dos seus impasses, paga os seus excessos, e muitas vezes não lhe sobrevive.
cagadinhas de inseto, passas o dia nisso. As marcas esgotam páginas inteiras. As páginas se acumulam Vais até o espelho, que te devolve a imagem do teu rosto com uma verdade descarnada, na
sobre a mesa, como o pó. Alguma vez souberam despertar algum interesse (foi fugaz). Hoje apenas qual não te reconheces. Mais tarde, de novo curvado sobre a tua mesa de trabalho, o papel em branco
ocupam lugar (cada dia ocupam mais lugar), fieis ao mutismo do mínimo de matéria que exige a te sugerirá variações não menos falazes. A elas dedicaste toda a tua vida. De longe, alguém que te
rebeldia da tua imaginação. Andas preocupado por esse fenômeno, mas o que vais fazer? Voltar observasse quiçá teria pena de uma vida assim (mas de longe todos os animais parecem moscas). Ligas
a escrever para os editores, frequentar os círculos literários, tudo isso te tomaria tempo. Escrever a luz. A noite caiu sem que notasses. Aceitaste a escritura como destino, nunca tiveste opção. Não é
também toma tempo. Tu tens o teu tempo. O teu tempo apenas, não tens mais. Se alguém se oferecesse algo do qual devas lamentar-te: quando falamos de destino, não há um melhor que outro. Gostas de
para fazer isso por ti, o deixarias fazer, não te importaria sequer que esse alguém se atribuísse todo o dizer que, fora de escrever, e não muito bem, nunca soubeste fazer outra coisa. Isso te salva. Sem essa
crédito, que usurpara o teu nome. O teu nome é ninguém. Mas não há ninguém. Em algum momento a distância irónica, o amor ao destino é uma forma da loucura.
escritura exigiu que não houvesse ninguém, também. Quando a noite chegue ao seu ponto mais alto, e não consigas conciliar o sonho, vozes sem
Sabemos que o mundo faz pouco caso da nossa paixão pela literatura e pelo pensamento. A sombra desgarrarão em ti também essa certeza. Estás habituado a isso, a que o chão se abra aos teus
escritura surgiu na história como uma forma de levar o registo da administração do Estado e, fora disso, pés, a que o teto te caia em cima. Sem perder a compostura, tateando, na penumbra que rodeia tudo
parecera passar bem sem ela. Quatro mil e quinhentos anos não mudaram o fundamental: os signos ao teu redor, buscarás a garrafa que escondes na última gaveta da mesa. Depois, lentamente, entre um
que entrelaça um indivíduo na solidão do seu quarto podem encontrar nas nossas sociedades uma trago e outro, escreverás esta página, e quiçá mais uma, e mais uma, até que tu ou o teu corpo se deem
Como observa Jeanne Marie Gagnebin, essa concepção de crítica como “mortificação das
obras” (como o próprio Benjamin dirá no estudo sobre o Trauerspiel) contraria “toda boa vontade
hermenêutica que se esforça por manter o calor da imediatidade”. Portanto, se queremos preservar
54a imediatez do encontro com a obra como o cerne de nossas “narrativas de intuição” (expressão de Eduardo Sterzi. Escritor e professor de teoria literária na UNICAMP. O presente texto resulta de pesquisas realizadas com 55
auxílio do CNPq num primeiro momento e da FAPESP e do FAEPEX num segundo.
malaysia airlines, voo MH17
Marília Garcia
um morador da região
a malaysia airlines disse disse que os corpos
que o avião que operava caíram do céu
o voo MH17 após a explosão do avião
tinha um histórico
de manutenção em ordem
a malaysia airlines disse
que sua última revisão a chanceler da alemanha
fora no dia 11 de julho angela merkel
a aeronave entrou disse que um cessar-fogo
em operação em 1997 é necessário no leste da ucrânia:
e tinha 75.322 horas de voo “há muitas indicações
de que o avião foi derrubado”
ela disse
desde marco
o espaço aéreo sobre a ucrânia um dos comissários
estava fechado do voo MH17
desde março foi vítima da tragédia
não era possível voar porque pouco antes
abaixo de certa altura tinha trocado de voo
com um colega
pintura é crime vandalismo pra pegar com a boca com a mesma facilidade
pinta-se a sangue-frio pra matar mais uma vítima
à vontade com grande luxo ou nenhuma classe
seja você seja quem for eis a linguagem do poeta
enquanto não entra pro mercado comercial do tráfico da prostituição do pixo se você quiser comer sem deixar ou evitar nada
você é só mais um turista um acadêmico talentoso
enquanto não tiver desossado uma mulher branca em busca do que o corpo sabe da pintura do poema num lance de amor & vício – o osso a cor o orifício
da fotografia você é só mais um analfabeto das ambiências espaciais realidades alternativas fantasias o cão o arroto o livro o palitar descarado do umbigo
equestres do poema
acaba por cair nos dicionários no latim na água elementar que corta a cidade o que há de mais fértil no interior do globo terrestre
sensação pop ícone de estilo arranca aplausos da plateia o mais falso elogio
o olhovirado do avesso o que não se pode medir
sem jamais ter pintado bigodes à Mona Lisa
poesia mata em público nada deixa morrer naturalmente se você quiser passar a fronteira do que resta vir
acabado o ciclo das combinações possíveis
o ventre animal da vida a pele infame suja ínfima
Medeia ressurge num quarto totalmente escuro
você mordido comido ali no silêncio & na sombra
Ando deveras muito preocupada com o que se passa ao meu redor. Não que tema morrer;
em vez disso, sinto medo de me ver eternizada em bloco de pedra, ou mesmo continuar como estou:
esperando, esperando, apenas esperando salvar-me dos rostos quadrados, fugir e encontrar pessoas
com as quais possa falar, sem que minhas palavras se percam no vácuo, inúteis. Porque vivo sozinha
num mundo cada vez mais estranho, fantástico, monstruoso. Não que as coisas tenham se modificado
tanto. Desde menina este encarceramento me sufoca, minha coragem foi sempre formada do desejo
de evasão, o desespero de fuga deu-me forças até hoje. Ignoro mesmo se existe um lugar onde se
movam pessoas e esta dúvida pode ser a causa da crescente inquietação que me domina, pois ameaça
ruir minha única esperança. Não: tudo se agravou mesmo depois da morte do espelho.
Não costumo sair de casa. Os dias são distantes, depressa, e quase nunca há sol. Habito um
apartamento de andar térreo, um pouco escuro, ainda durante o dia, luxuoso e antigo, onde moram
três outras criaturas. Ignoro porque moramos juntas. Conheço-as há pouco tempo. São mais ou menos
parecidas com as que tenho visto, apesar de sabê-las mais perigosas - decerto pela proximidade. (Na
verdade, gostaria de me mudar. Conheço, porém, a inutilidade das mudanças.) Falam demais, andam
constantemente armadas, usam com ferocidade os dentes. Estão sempre gordas de razão. Esqueci-me
de dizer que são mulheres, estas tremendas criaturas. Apesar deste detalhes, uma delas deixou crescer
vasto bigode, que a tornou um pouco mais simpática, ocultando-lhe as presas, fortes, ameaçadoras.
Ao levantar-me de manhã, para ir à cozinha fazer meu café, encontro-a, articulando a possante
mandíbula, no trabalho pertinaz da primeira refeição. Cumprimento-a delicadamente, esforçando-me
em parecer afável. Tenho por resposta o rosnar ameaçador de como se protege a caça. Nem sempre
consigo tomar até o fim o meu café. A criatura rosna impaciente, às vezes uiva, dançando pela
cozinha, dando-me a impressão de grande exagero na sua manifestação, creio, de alegria.
Volto ao quarto e me deito sob os cobertores, enquanto outra se veste rápida, precisa, para
chegar na hora exata à primeira aula do Curso de Geologia. (Ocupamos as duas o mesmo quarto.)
Antes de sair, faz ginástica. Conseguiu desenvolver de tal modo os músculos das pernas que, por
várias vezes, julguei entrar um edifício inteiro pelo quarto, em sua construção exótica: pilares
gigantescos sustentando pequeno tronco, enquanto a cabeça rodava, bola, distante e pequena como a
cabeça de um alfinete. Após a ginástica arruma, sempre rápida, precisa, a metade do aposento que lhe
pertence, jogando, debaixo e mesmo sobre minha cama, grandes pedras, por ela colhidas diariamente
nas praias. Pedras personalíssimas, quase vivas, que já me tomam a metade do leito. Encolho-me sob
os cobertores, as pedras ocupando sempre mais espaço, atiradas pela intrépida criatura: mecânica-
rápida-organizada. Gostaria de impedir que meu corpo se expusesse diariamente a estas pedradas.
Não que me ache conformada. Tentei protestar uma vez mas a estudante continuou, solene,
limpando os móveis. Depois, sem pressa, meteu-me uma grande pedra na boca, deixando tranqüila
o quarto. Mais tarde, escutei-a relinchando na sala para as outras, que eu cacarejo demais e não sei
marchar. Não a compreendi. Ainda assim fui possuída de grande raiva, tomei de uma arma esquecida
por uma delas na cadeira, tentei atingi-la nas costas. Não consegui e terminei amarrada em trouxa
dentro de meu próprio cobertor, onde passei dois dias. Ao libertar-me, grunhiu qualquer coisa, como
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sentir pena dos meus compromissos. Que ignoro quais sejam.
A terceira criatura é tirana - e muito boa pessoa. Proibiu-me mover rápido a cabeça para A PALAVRA MUITO ALÉM DA LOUCURA
os lados, temendo que o ar sinta-se demais agredido. Assim, ando pelo apartamento buscando ver
sempre o que está à minha frente. Se me viro, faço-o com delicadeza. Esse cuidado me traz em Célia Musilli
constante tensão. É uma mulher pequena, rosto quadrado, cabelos duros de torre; vai sempre ao
cabeleireiro. Costumo confundi-la com os objetos da casa.
Como já disse, evito sair à rua. Os edifícios me ameaçam, as mãos frias do vento me sufocam.
No fim da década de 1950, Maura Lopes Cançado, internada num hospício, escreve um diário.
Além dos olhares assassinos e da velocidade; pessoas enormes deslizam ruidosas pela cidade,
Durante cinco meses, de outubro de 1959 a março de 1960, dedica-se a relatar tudo o que acontece ao
conduzindo dentro delas outras pessoas. Posso vê-las quando arrisco meu olhar assombrado pelas
seu redor, misturando a dor da sua condição psicótica a descrições do ambiente lúgubre em que vivia:
janelas dos seus ventres.
“O hospício é árido e atentamente acordado, em cada canto, olhos cor-de-rosa e frios, espiam sem
piscar.”
Não prefiro coisa alguma. No entanto, saio às vezes, principalmente à noite. Vem buscar-
me um ser que desconheço - embora venha buscar-me. Mostra-me os dentes, parece quase sempre A referência aos olhos é uma alusão ao ambiente vigiado do Hospital Gustavo Riedel, no
irritado, joga-me porta a fora como se eu fosse um saco de abóboras. Costuma também relinchar, bairro do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, onde os portões eram trancados, os muros altos,
mostrando toda ferocidade nos dentes brancos. Nas ruas, busca proteger-me. Apesar de já me haver todos cumpriam uma rotina rígida e as internas eram controladas por tratamentos que incluíam os
deixado sozinha, entregue às feras, habitantes de um certo subúrbio. Este ser talvez me quisesse dizer eletrochoques, além de doses maciças de medicamentos. O diário, publicado pela primeira vez em
algo. Vejo-o luzente, vestido de alumínio, brilhando de noite à minha frente. Não seria sua maneira de 1965, pela José Olympio, recebeu um título curioso: “Hospício é Deus”. Ao escrevê-lo, Maura saltou o
rir? Indago-me se essa lata possui um coração. muro do manicômio e ganhou reconhecimento como autora.
Além dele, visita-me, não se para quê, outra criatura, um pedaço de tronco fino de árvore. A imagem dos olhos – ou do olhar – trespassa o livro como símbolo da vigilância institucional
Sentado à minha frente, discorre longamente sobre pulgas, galinhas e percevejos. Depois do quê, sai e também do testemunho da autora. Ver e contar torna-se neste período sua principal atividade; ela
sem se despedir, encolhido em sua própria casca, morena, rugosa. transforma a escrita num estímulo cotidiano e, ao mesmo tempo, num instrumento de denúncia. A
situação de ser vista e vigiada, assim como de olhar e relatar, articula-se com o título do seu segundo
Ruas fervilham. Duelos se dão e todo instante. Mulheres se odeiam, beijando faces umas livro: “O Sofredor do Ver”, publicado em 1968, também pela José Olympio, e que só teve uma segunda
das outras. Muitas enxertam carne de vaca nas nádegas. Nem por isso perdem o jeito mau e duro publicação em 2011, pela Confraria dos Bibliófilos do Brasil, reunindo doze contos, sendo que alguns
de andar. Mostram as presas, se as olhamos dão constantes coices. Homens comem ávidos, o hálito remetem a situações e personagens do manicômio.
podre provocando náusea. Mas é então que as fêmeas se agitam de todo, coiceam e relincham,
“Hospício é Deus”, seu livro mais conhecido, mostra a intensidade da sua escrita, aliando a
movendo caudas e crinas. O asfalto queima.
angústia a um grande potencial literário. Trata-se da força expressiva de quem faz outra leitura do
mundo, plasmada por uma percepção dilatada das coisas mas sem perder a lucidez, embora no diário
Encolho-me no apartamento, sofrendo a presença das três horrendas criaturas. Gostaria de
faça uma auto-representação da louca, dando voz a si mesma e a suas companheiras de hospício. O
viver sozinha, ou pelo menos possuir um quarto, onde não me atormentassem tanto. Móveis animados
livro é um documento de época que mostra o tratamento dispensado à loucura, uma situação trágica
passeiam o dia todo pelo aposento. Ouço ruídos esquisitos.
tendo em vista os tratamentos dolorosos e até desumanos. A autora faz uma crítica feroz ao sistema
psiquiátrico em vigor no período de seus internamentos que foram muitos, já que passou a vida entrando
Tudo se tornou demais difícil depois do crime da futura geóloga, assassinando o espelho com uma
e saindo de manicômios até falecer em 1993, aos 63 anos.
pedrada. Considero esse crime a maior desgraça em minha vida, inútil, calada, vazia.
O interessante nos seus livros é que não se trata apenas de “escrita de denúncia,” abordada em
Foi o espelho a única criatura humana que conheci. Desde a infância habituara-me a ele e não muitas pesquisas, mas da expressão de ideias num plano simbólico que se articula como uma espécie
havia como temê-lo. Vê-lo diariamente, minha grande aventura. Contemplava-lhe a figura trêmula, de “inconsciente da obra.” Maura utiliza muitas imagens e metáforas, recursos ainda mais presentes
hesitante, de olhos escuros, amáveis. O espelho possuía de medo o rosto branco. Tinha de medo o no livro de contos “O Sofredor do Ver”, que considero sua grande obra, com uma linguagem que se
Uma autora versátil A simbologia na obra de Maura é muito forte, assim como o atrito das palavras, combustão
que pode nos levar a uma abordagem surrealista. Fora isso há o aspecto da vigilância porque Maura
Maura Lopes Cançado escreveu em diversos gêneros, é autora de poemas, contos e também do era vigiada e, de certa forma, também vigiava o hospício, fazendo dele um tema constante. Comparo
diário que se caracteriza como “escrita de si.” Dividiu espaço com intelectuais como José Louzeiro, sua escrita à linguagem cinematográfica, sua experiência a um reality show, como se Maura ligasse no
Carlos Heitor Cony, Assis Brasil e Ferreira Gullar ao publicar alguns de seus contos no “Suplemento hospício uma câmera 24 horas, vendo e relatando tudo. Ela mesma diz muitas vezes que está inserida
Dominical do Jornal do Brasil” – SDJB – considerado um caderno literário de vanguarda entre os anos num contexto, num ambiente “que só o cinema seria capaz de mostrar”. Isso revela muito da sua
50 e 60. Até por isso, em alguns momentos seu diário apresenta traços jornalísticos como a criação obsessão pela linguagem perfeita, que capte a realidade em detalhes. Além disso, revela nos contos uma
de manchetes para dar conta do cotidiano do hospício. Ela escreve em letras garrafais: “EXTRA! forma de olhar bastante original, o verbo “ver” permeia toda sua obra, tanto que escreveu um livro e um
EXTRA! O CRIME DA GRAVATA NOVA!”, mostrando não só verve de repórter como uma boa dose conto homônimo intitulados “O Sofredor do Ver”.
de humor. Apesar do sofrimento, encontra-se em seus textos uma versão de humor negro, caro a alguns
surrealistas. Ela também se valia da ligação que tinha com o Jornal do Brasil – onde publicava contos, Num trecho de “Hospício é Deus”, ela descreve a loucura fundida com a condição feminina:
mesmo estando internada – e da amizade com jornalistas como condição que lhe conferia prestígio, “Nós, mulheres despojadas, sem ontem nem amanhã, tão livres que nos despimos quando queremos.
como autora era vista de outro modo no manicômio, gozava de um status e isso, às vezes, transparece Ou rasgamos os vestidos (o que dá ainda um certo prazer). Ou mordemos. Ou cantamos, alto e reto,
como motivo de orgulho em seus textos. Foi através da condição de autora que adquiriu uma nova quando tudo parece tragado, perdido. [...] Nós, mulheres soltas, que rimos doidas por trás das grades
identidade, não sendo “apenas um prefixo no peito do uniforme” como descreve em “Hospício é Deus” - em excesso de liberdade”. Nos seus escritos, o “ser mulher” está próximo de uma região de loucura,
os internos que formavam a massa da loucura. A literatura a colocava em outro plano, remetendo ao onde é possível rir plenamente, existir sem tempo, ir em frente apesar da flagrante contradição de ser
conceito de arte como “organização da experiência”, valorizado por críticos como o norte-americano prisioneira, resistir livre, no prazer e na sensualidade, ainda que esteja apartada do mundo. Acredito
I.A. Irving e Antonio Cândido. que para Maura, a literatura é realmente a representação desta liberdade, o leimotiv que a fez manter-se
viva.
Em matéria de gêneros Maura é eclética, escreveu como quem mexe no dial de um rádio. Os
amigos jornalistas frequentemente são citados no seu diário para formular críticas ou como motivo de No diário, ela também cita o Dr. A, um psiquiatra negro que foi seu grande amor no hospício,
orgulho por contar com pessoas consideradas influentes, dependendo do momento ou da circunstância, assim como fala do pai – com quem manteve uma relação meio edipiana – do ex-marido, do ex-sogro,
da cumplicidade ou da decepção. Quando a situação ficava difícil, ela chamava Reynaldo Jardim – do filho Cesarion, mas os homens figuram mais como dados biográficos, pois ela mantém sua atenção
editor do Suplemento Dominical e um dos primeiros a valorizar sua obra – ou queria falar com Ferreira sobre personagens femininas. Como mulher, se expressa de forma muito sensual no diário, era vaidosa,
Gullar, Alice Barroso e outros conhecidos para quem telefonava. narcisista, maquiava-se bem, exibia as pernas, gostava de ser vista e admirada, colocando-se de “forma
artística” no manicômio, a ponto de dançar no telhado. Mas a condição feminina estava introjetada nela
Já o livro de contos que se encontra esgotado, pode ser considerado uma raridade que revela muito sem que isso se relacione a uma busca de emancipação, era naturalmente independente e rebelde. Numa
sobre Maura. Um dos seus contos mais conhecidos, “No quadrado de Joana”, traz uma personagem entrevista ao jornalista João da Penha, da revista Escrita, nos anos 70, Maura fala dos gêneros sem fazer
Célia Musilli. Jornalista, poeta, cronista e mestre em Teoria e Crítica Literária pela Unicamp. Tem os seguintes livros
72 publicados: Londrina Puxa o Fio da Memória ( Letra d’Água/ 2004); Sensível Desafio (Atrito Art/ 2006); Todas as Mulheres 73
em Mim (Atrito Art e editora Kan/ 2010).
deslocamentos
ser bailarina na página é tarefa
vamos pensar naqueles que nascem e mamãe
que não acaba nunca
tão louca de sol os chama
muitos pensariam
de rio ou chuva
nas pegadas delicadas
pensar conceber
(outros em pés torturados
aqueles que não sabem de édipo ou grécia
– a crueldade do gesso, a necessidade de que ossos
porque não conhecem o pai a lei
voem )
e o chão não se traduz
palavras não se domam com o sofrimento do corpo
no preço
a insistência do gesto
da passagem em tempo dividido pela
e os caminhos (onde abrimos linhas? no papel na tela na cabeça de quem
velocidade eu penso agora nos meninos
desdobramos caprichosos
de olhos verde floresta
os versos,
flancos das montanhas
não vê? ninguém vem, mademoiselles et monsieurs, ao menor
e cifras são tetas bem cheias
espetáculo da terra) estamos batendo cabeças
das vacas cascos miúdos das cabras
tu e eu, je et moi même,
o leite
alucinada alteridade do espelho
néctar supremo
estamos rasgando o protocolo
mamãe
a superfície plácida da prata
animal estranho
sangrando as grossas paredes da cela
disparou
lá vem ela, a bailarina, seu último
este coração
golpe
em seu colo meus olhos
o passo britadeira
viam as nuvens em seus braços
funde pontas pernas e chão
primeiro precipício a luta
é o último recurso a máquina
entre o amor e a queda
do tempo que emergindo da página abre a porta para o espaço
40. A Escrileitura desdenha a distribuição das indulgências científicas; e, mesmo, as odeia, quando há
ocasião para tanto.
41. As indulgências, que asseguram publicação qualificada, são pregadas, por todas as comissões e
comitês científicos, para que o povo as julgue preferíveis à Escrileitura.
42. A aquisição de indulgências inviabiliza a equiparação da Escrileitura às leituras e escritas científicas.
Quando o horror do absurdo se apodera de nós e a voz não sai
43. Dando textos aos pobres ou emprestando-os aos necessitados de Espírito, a Escrileitura procede
melhor do que se comercializasse indulgências científicas. Só o grito preso entre os dentes moles do esforço
44. Através da Escrileitura, cresce o amor aos textos e eles se tornam potentes; com as indulgências, o Tudo destruído de uma só vez
As notas leves de tempos idos e carcomidos.
texto queda prisioneiro da obrigação de escrever e de ler cientificamente ou refém dos Pareceres.
45. Quem despreza a Escrileitura, para lidar e gastar com indulgências científicas, obtém somente a ira Uma carcaça risonha e seca me espreita.
Só
do povo. Hendel, Mozart, Vivaldi
46. Se a Escrileitura não tiver ideias em abundância, conservará só as necessárias para o texto; e, de Não me enganam mais. Hoje é hoje.
forma alguma, desperdiçará recursos com as indulgências científicas. Sempre o fim. A cada minuto o fim.
O vazio absurdo, um grande buraco aberto no ventre do Mundo.
47. A Escrileitura não compra piedade e não aceita clemência científica; por isso, não perde o temor de
escrever e ler. Os esforços, rememorações
Algo tem que brotar deste vazio,
48. Antes de a Escrileitura acatar os interesses e critérios dos Comissários de Indulgências, prefere que não seja outro vazio
reduzir a cinzas o seu texto, em vez de edificá-lo com pele, sangue, carne e ossos.
49. Vã é a confiança na purificação da Escrileitura, por meio dos Pareceres de Indulgência Científica;
mesmo que aquela desse a sua alma como garantia.
Uma tentativa de organização. Onde nada se organiza. Na poesia na musica, uma tentativa at the
50. São amigos da Escrileitura aqueles que, outrora e hoje, esculpem palavras, ideias, imagens e signos; still point of the turning world. La está a dança. Quisera conhecer a dança inteira, do seu começo ao
são seus inimigos todos os Profetas das Indulgências Científicas e os com eles condescendentes; os fim, procurar o que ?
quais sejam excomungados e amaldiçoados por todo o sempre.
Não consigo nem por um segundo desembaraçar o pensamento. Se me fosse dado um segundo
apenas de clareza, de entendimento. Nada se explica. As palavras são tentativas. Tudo continua
sem conhecimento. Não consigo nem intuir. Tudo me escapa, a não ser a sensação de perda e de
perplexidade Por que? A única coisa que posso fazer é perguntar.
Oh, herege, para qual Escrita e leitura pendes?
Olha a força da injusta tirania científica sobre o século;
olha o desinteresse cruel pelo mundo artista;
Giselda Leirner (SP). Artista plástica e escritora. Expôs várias mostras individuais e coletivas no Brasil e no exterior. É
78 autora de A Filha de Kafka (Massao Ono, 1999 e Gallimard, 2005). Nas Águas do Mesmo Rio (Ateliê, 2005). Naufrágios 79
Sandra Mara Corazza. Professora da UFRGS. (Editora 34, 2011).
TODO O CÉU CONCENTRADO NO REFLEXO DE UM MATINÊ PERDIDA
BALDE D’ÁGUA de uma expressão bonita do Odyr & de uma canção linda dos Smashing Pumpkins
DA MESMA AÇÃO?: O QUE MARIA GABRIELA LLANSOL A sensualidade investida no texto pode ser sentida nas palavras de Barthes quando ele descreve
a relação amorosa, portanto erótica, entre o escritor e seu leitor. E ainda, entre o escritor e o seu próprio
NOS ENSINA SOBRE O CORPO PULSIONAL. texto. E mais, entre o texto e o seu escritor. Ele chega a propor a ideia de que existe um desejo da
própria escrita, uma vez que o escritor vive sob a exigência da obra. Ainda em seu livro O prazer do
Luciana Brandão Carreira. texto ([1973]1997), ele nos apresenta essa ideia de que o texto deve dar provas ao escritor (bem como
ao leitor) de que ele (o texto) é o desejante da escrita. Somente assim se atinge o que ele chama de
Escritura, uma vez que nem todos os textos provocam prazer. Alguns, por ele chamados de textos de
Maria Gabriela Llansol testemunhou no dia 02 de outubro de 1981, num dos seus vários diários:
gozo, provocam inquietação, “o texto que o senhor escreve tem de me dar prova de que ele me deseja.
“Não há Literatura. Quando se escreve só importa saber em que real se entra, e se há técnica adequada
Essa prova existe: é a Escritura. A Escritura é isso: a ciência das fruições da linguagem, seu kama-
para abrir caminho a outros” (Llansol, 2011a, p.52). Ao se referir sobre o próprio estilo, ela também
sutra (desta ciência, só há um tratado: a própria escritura)” (Barthes, 1973, p.11).
escreveu no dia 30 de maio de 1979: “Destituo-me da literatura, e passo para a margem da língua (...)
tal é a árvore genealógica da literatura portuguesa (...) vivo para escrever e ouvir e, hoje, fui um dos O que é a Escritura para Barthes? Numa resposta curta e direta: a escritura é o kama-sutra
primeiros leitores de Na casa de Julho e Agosto; tão profundamente me sensibilizou o texto que, depois da linguagem. Para ele, “a linguagem é uma pele: esfrego minha linguagem no outro. É como se eu
de me ter esquecido o que ia dizer, ou seja, escrever a seguir, me sentei no banco verde do jardim, junto tivesse palavras ao invés de dedos, ou dedos na ponta das palavras. Minha linguagem treme de desejo.
de Prunus Triloba, a reflectir que me devia perder da literatura para contar de que maneira atravessei a A emoção de um duplo contato: de um lado, toda uma atividade do discurso vem, discretamente,
língua, desejando salvar-me através dela” (Llansol, 2011a, p.12). indiretamente, colocar em evidência um significado único que é “eu te desejo”, e liberá-lo, alimentá-lo,
ramificá-lo, fazê-lo explodir (a linguagem goza de se fazer tocar a si mesma); por outro lado, envolvo
Transpor os limites da linguagem significa engendrar o ilimitado pelas bordas do discurso,
o outro nas minhas palavras, eu o acaricio, o roço, prolongo esse roçar, me esforço em fazer durar o
insinua Maria Gabriela.
comentário ao qual submeto a relação” (Barthes, 1997, p. 64).
Essa modalidade de texto, que aponta ao lugar vazio da morte enquanto abismo da significação,
Barthes se posiciona de um modo novo em face à crítica literária de sua época, ao propor que
indica o topos de onde uma genuína invenção pode surgir, através da criação de uma nova retórica.
um texto nem sempre é lugar de prazer. Para além dos textos confortáveis e idílicos, há essa Outra
Quando é preciso dizer mas não se tem meios para fazê-lo, forja-se essa novidade, capaz de modificar
escrita, que aponta, ao contrário, a um lugar de desconforto, próprio ao gozo que se vive na experiência
o corpus social por meio de sua potência poética. Assim, novos significantes são criados e estilos
do unheimlich. Textos assim se erguem numa íntima relação com a morte, com a morte enquanto
inovadores reconhecidos, tanto quanto gêneros literários são rompidos e limites discursivos ampliados.
ruptura. Por isso costumam ser vertiginosos. Eles demandam uma posição diferente de seus leitores
Textos concebidos frente ao vazio da produtividade correspondem ao que se admite no discurso (portanto, de seus críticos). Inicialmente dragados pelo turbilhão que tais textos suscitam, há todo um
literário como Escrita Feminina1, mesmo quando o sujeito da enunciação é um homem. Uma escrita de trabalho necessário de descolamento e separação por parte do leitor, que advém muitas vezes somente
Gozo, diria Barthes. Ao meu ver, textos que dizem respeito ao que Jacques Lacan apontou em sua lição depois que ele é levado pelo texto a escrever. É preciso que ele suporte um tempo de simbiose amorosa
sobre Lituraterra, em seu Seminário 18 (1971) - De um discurso que não fosse do Semblante. Trata-se e mimetismo com o objeto amado – o texto, que também é objeto de desejo – para que, no desenlace
de uma escrita que advém a partir de uma posição discursiva aberta ao feminino, ao Gozo feminino. dessa paixão, a crítica se faça com alguma verdade.
Uma abertura para a transgressão, tentativa de se ir além dos limites da língua, do corpo e da narrativa.
Barthes se refere a essa experiência com tal rigor que considera impossível proceder a uma
Numa trilha além do prazer, além do princípio do prazer.
leitura/escrita “de fora” do texto. É preciso escrever/ler “de dentro” do texto; nele, em seu interior,
Esse “a mais” que diz respeito ao “além” do gozo feminino é circunscrito pelos limites da confundido com o escritor que inicialmente o concebeu. Talvez por isso a crítica tradicional muitas
linguagem, indicando a existência de uma modalidade textual que se produz nas bordas do discurso, vezes os considerem textos herméticos, inanalisáveis e sem lugar... “o escritor de prazer (e seu leitor)
mas não fora dele. Por isso podemos articulá-los como textos-limite, caracterizando uma literatura aceita a letra; renunciando ao gozo, tem o direito e o poder de dizê-la: a letra é o seu prazer; está
de borda, escritos que tangenciam um litoral e margeiam o gozo: Lituraterras. Ou, como testemunha obsedado por ela, como estão todos aqueles que amam a linguagem (não a fala), todos os logófilos,
Llansol, textos concebidos na margem da língua. Uma textualidade que se dirige ao que Barthes nomeou escritores, epistológrafos, linguistas; dos textos de prazer é possível portanto falar [...] a crítica versa
como Escritura, num além em relação à Literatura. sempre sobre os textos de prazer, jamais sobre os textos de gozo [...]. Com o escritor de gozo (e seu
leitor) começa o texto insustentável, o texto impossível. Este texto está fora-de-prazer, fora-da-crítica,
90 Mauricio Chamarelli Gutierrez (Rio de Janeiro, 1984). Autor de Corpo Tênue (2006) e Largo (2010). Mora hoje em 91
Florianópolis. O trecho acima faz parte da série Paisagem do Desterro. John Berger (1926, Highams Park, Londres) é um crítico de arte, romancista, pintor e escritor inglês.
QUARTA-FEIRA TÍTULOS SALVOS NAS NUVENS
Leonardo Gandolfi Luiz Guilherme Barbosa
Há, senão nas nuvens, nas outras palavras as palavras que faltam. Que falte a próxima obra (o
próximo romance, o próximo poema, que nome tenha), é o que se chama tempo. Ou quando. Que falte
Querido querido, este este é é o o lado lado ruim ruim do do meu meu amor amor. O o tempo a próxima frase, que se chame murmúrio. E se chama silêncio, dizem, não faltar palavras. Ou seja,
tempo desaparece desaparece. Ou ou fica fica resumido resumido a a um um ponto ponto onde quando.
onde todos todos os os outros outros pontos pontos, antes antes dispostos dispostos horizoltamente
horizontalmente, acumulam-se acumulam-se indiferenciados indiferenciados. Preciso preciso saber Leitor apaixonado de António Lobo Antunes dificilmente passa do título dos seus livros. A
saber de de tudo tudo. Não não preciso preciso saber saber de de tudo tudo. Fazer fazer da da memória hipnose sintática que há neles os faz obra além da obra. E a série de livros a cada ano ou dois os torna
memória uma uma agulha agulha e e do do seu seu passado passado um um furo furo. Ou ou quem
performance além de romances. Eu, que dificilmente passo do título dos seus livros, anoto sugestões
quem sabe sabe, o o contrário contrário. O o lado lado ruim ruim do do meu meu amor amor. Aliás aliás
previno previno que que isto isto não não é é agenda agenda nem nem diário diário, é é apenas apenas para os próximos, e aguardo. Na desesperança de quem jamais previu exato o título, espero errar em
uma uma nova nova versão versão, a a mais mais recente recente, do do jogo jogo de de sete sete erros público. Sou leitor.
erros que que dedicarei dedicarei a a Ricardo Piglia e e à à teoria teoria do do iceberg iceberg de de
Hemmingway. Este que ama o destino das letras, desde o esforço contra o trocadilho (que chamam de fala) até
a desconfiança quanto ao canto delas, o leitor. Como tal, leio, no título que vem, uma obra. Nomes de
livros que não se escreveram. Não houvesse um livro não escrito sob cada título, não haveria obra.
História natural
Não lê quem
Quando lemos um romance de Marguerite Duras, sobretudo aqueles, que não são poucos,
em que ela encena de maneira mais ou menos explícita elementos de seu passado – a infância e a
adolescência na Indochina, a experiência da guerra, o alcoolismo, as relações amorosas –, é difícil
evitar a especulação sobre as relações entre vida e obra, entre biografia e romance. Tanto mais difícil
na medida em que a própria escritora sempre se referiu ao seu processo de criação numa perspectiva
que associa necessariamente a escrita a uma espécie de vertigem que envolve o corpo e a memória,
e em que o jato da inspiração – a despeito de toda racionalidade e de toda inteligência elaborativa –
desempenha um papel que está longe de ser insignificante. Diz ela, por exemplo, em Escrever, de 1993:
“É isso a escrita. É o movimento do escrito que passa pelo corpo. Atravessa-o. É daí que se parte para
falar destas emoções tão difíceis de dizer, tão estranhas e que, no entanto, de repente, se apoderam de
você.” Ou ainda: “O escrito, isso chega como o vento, e isso passa como nenhuma outra coisa passa na
vida, nada mais, exceto ela, a vida.”
Assim, na esteira das pistas fornecidas pela própria Duras, e também, é claro, do enorme
sucesso de público e de crítica de O Amante, de 1984 – cuja segunda tradução brasileira, de Denise
Bottmann, recebe nova edição neste ano de 2012 –, proliferaram as biografias e depoimentos de toda
sorte sobre a escritora, e a reflexão crítica em torno de sua obra se debruçou cada vez mais sobre as
nebulosas fronteiras entre a narrativa autobiográfica e a ficcional. É nesse contexto que, em 2006, os
Cadernos da Guerra, traduzidos no Brasil em 2009 por Mario Laranjeira, foram publicados na França.
Parte importante dos arquivos doados em 1995 pela escritora ao IMEC (Instituto Memórias da edição
contemporânea), os quatro pequenos cadernos que compõem o livro, redigidos entre 1943 e 1949, e que
ela própria havia reunido e conservado com esse título, contêm esboços significativos de textos de forte
cunho autobiográfico e publicados anos mais tarde – além do próprio O amante, Barragem contra o
Pacífico, de 1950, e A dor, de 1985 (estes também já traduzidos por aqui, mas infelizmente esgotados)
–, e poderiam ser lidos simplesmente no registro de confirmação dessa tendência crítica.
Pois, de um lado, o leitor encontra nesses manuscritos passagens de uma fluência narrativa
que parece realmente servir, mais do que a um projeto literário, à pura e simples preservação de um
material que encontraria sua força justamente em seu despudor algo catártico, algo confessional. Quase
como um diário íntimo. Como, aliás, escreve Duras, depois da evocação das relações familiares nos
anos de Indochina e do chinês que se tornaria 40 anos depois o protagonista de O amante: “Tem-se o
direito de se perguntar por que escrevo estas lembranças, por que exponho condutas as quais previno
Solange Rebuzzi. Escritora, psicanalista e pesquisadora. Autora de Gradiva Verão (Lumme editor) e Outonos / montagem
98 Marcelo Jacques de Moraes. Professor de literatura francesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro, tradutor e incompleta (7 Letras). Traduziu (de Francis Ponge) Nioque antes da primavera e Testemunhar Francis Ponge (ambos 99
pesquisador do CNPq. pela: Lumme editor), frutos de seu pós-doutorado na UFF/Faperj.
AÍSTHESIS E METACORPOREIDADE Nesse sentido, o aisthetikós é aquele que remodela e reestrutura todas as significações já existentes
de tal modo a permitir que outras significações possam se atualizar. Em virtude da potencialização
Chiu Yi Chih e Irael Luziano – LOZ de seu ato de perceber, ele maquina numa dimensão transmaterializadora de novas relações. São
metacorporificadas visualidades nunca vistas, tactilidades nunca tocadas, como numa espécie de
telescopia das estruturas imperceptíveis. Por meio desse ato transmaterializador onde cada elemento
criado se torna permeável aos fluxos interconectivos, torna-se possível a remodelação das categorias
Quando nos deparamos com as obras de arte, pensamos frequentemente que existe um sentido
de tempo e espaço. Pois, sabemos que tanto o tempo como o espaço são condições determinantes sem
obscuro por detrás daquilo que vemos. É como se tudo estivesse presente num domínio de puras
as quais não é possível qualquer percepção sensível. Por isso, em tal aísthesis amplificada, o que se
intuições, onde o pensamento daquele que fez a obra pudesse ser “decifrado” numa fórmula intelectual.
vê não é tanto a supressão de tais categorias senão a própria reconfiguração do momento presente no
Somos tentados a especular sobre a intuição original do autor como se houvesse uma incógnita vagando
qual se performatiza todo acontecimento sensível. Nesse processo de transmaterialização, a duração
na sua mente criativa. Ora, isso não ocorrerá justamente em virtude do esquecimento da própria camada
do presente se metacorporifica, torna-se palpável, adquire contornos porosos, arrasta consigo um peso
sensível da obra? Por que desejamos tanto capturar um sentido obscuro e esquecemos de considerar
temporal radicalmente mais denso e volumoso do que aquele medido pelo relógio cotidiano.
a forma visível de sua concretude? Nesse sentido, qual é a razão de concedermos uma ênfase maior à
representação da obra do que à sua própria forma expressiva? Assim, quando imergimos num tempo dilatado, percebemos sinestesias em variação, vórtices,
formigações, modulações de metacorporeidades. Ao atravessarmos campos, fronteiras e limites, cada
Será possível lançarmos um olhar diferenciado sobre o fenômeno da expressividade – uma
momento de nossa percepção se multiplica topograficamente. É evidente que a percepção (aísthesis)
vez que a arte é uma forma de metacorporificação segundo nossa concepção – sem que exista uma
se alarga através de um sistemático descentramento de si mesmo, através de uma extrusão pela qual o
separação entre a forma sensível e o seu conteúdo significativo, e mais, sem que ocorra um fosso
corpo se trespassa e se impregna de múltiplas temporalidades. Altera-se o conceito de tempo, que deixa
entre a subjetividade do artista e a sua própria obra concretizada? Como podemos então evitar esse
de ser apreendido como mera sucessividade mecânica e passa a existir como textura sinestesicamente
dualismo que provoca a cisão entre a subjetividade estética e o próprio mundo em que ela se encontra?
pulsional. Em lugar de ser objeto de mensuração analítica, ele é perceptível pela sua fluidez, porosidade
A subjetividade estética não está situada enquanto corporeidade expressiva diante da paisagem de sua
e presença. Nessa aísthesis dinamizadora, o tempo se torna fluente, real, duração viva e cheia de
criação, enquanto modo de imanência nas fronteiras do mundo?
imprevisibilidades.
De certo modo, quando o artista realiza uma obra, ele não pensa em algo que esteja fora daquela
Do mesmo modo, o espaço na sua acepção conceitual, ao invés de ser percebido como simples
forma esteticamente trabalhada. O artista não constrói uma “ideia” num plano abstrato, não a formula
extensão constituída por altura, comprimento e largura, passa a ser visto como tecido impregnado
numa esfera de representação constituída por outras ideias igualmente abstraídas do campo sensorial.
pelas metacorporeidades e relações transmaterializantes. É nessa dimensão que a corporeidade como
Geralmente consideramos que o artista se engaja nessa empreitada, imaginando que ele, consciente
modulação existencial passa a ser afetada pelas múltiplas forças germinativas do mundo circundante.
de sua ideia, vai aplicá-la posteriormente à uma forma específica. Nosso hábito nos força a olhar um
Habitar o espaço significa não somente ocupar um volume inerte estruturado por medidas exatas, mas
quadro com o objetivo de decifrar seu sentido para além do que está ali pintado. Seria equivocado
também se interrelacionar com um território de sensações, sinestesias, forças, atrações, repulsões e
pensar que o sentido da obra se revelasse num espaço puro do pensamento.
presenças.
Ora, se existe algum sentido na arte, ele deve ser percebido na própria tessitura carnal da obra
Tal inerência à matéria de nossas próprias percepções nos conduz à experiência fundamental
tanto quanto no processo metacorporificante daquele que agencia a sua criação. É por meio de tal
da percepção estética onde tudo se enreda e se desenreda em novelos, formas, linhas, cores e
imanência que o artista cria e desdobra os elementos materiais de sua composição. O artista não realiza
concavidades. É assim que posso me considerar um ser percipiente, não entendido a partir da operação
a sua obra fora do campo sensorial em que está situado. Por isso, mesmo que ele quisesse se assumir
autorreflexionante da consciência, senão mesmo através da experiência radical de extrusão de mim
como um sujeito não-sensível, não-corpóreo, isso jamais será efetivamente possível. Isto porque a
mesmo. Sou lançado e arrastado para fora. As cores me invadem, os cheiros me intoxicam, as carnes
percepção da sua corporeidade é o primeiro dado concretamente visível. Sob esse prisma, ele tanto não
me enternecem. Nesse fenômeno radical, tudo é percebido em infindáveis curvaturas: as sonoridades
recusará sua corporeidade como também não deixará de perceber as possíveis interconexões que esta
submergem com as minhas vísceras, as pulsações interiores se misturam com o ambiente ruidoso. A
mesma poderá adquirir no seu processo de metacorporificação junto com as outras corporeidades. Desse
percepção deixa de ser um ato de consciência isolada. Tudo se crava e se desencrava nas interconexões.
modo, ele não poderá criar as suas obras fora do contexto sensível, desconsiderando a processualidade
É nesse sentido que as coisas se entrelaçam com meu corpo enquanto estruturas metacorporificáveis.
dos acontecimentos que o circundam, e nesse caso, ele se assemelha a um ser potencialmente mais
Não há separação entre meu corpo e o processo de autoconsciência. Aquilo que designo como “meu
expressivo que nós – não porque se encontre numa condição de “gênio” ou num isolamento espiritual
modo de estar consciente” não se desvincula do fenômeno perceptivo das metacorporeidades. Meu
– mas porque, acima de tudo, ele é um ser em estado imersivo.
corpo não somente deixa de ser um esquema abstrato de medidas e mensurações, como também passa
Em outras palavras, ele assumirá cada vez mais para si mesmo aquilo que conceitualmente a ser visto como vasto universo de instituições, signos, valores, memórias transpessoais, tessitura de
concebemos como seu estado ontológico primordial, isto é, aquela condição de fluidez intrínseca ao
*fragmento
Ao vencedor, darei de comer maná escondido, e lhe darei uma pedra branca, e na pedra escrito um nome
novo, o qual ninguém conhece senão aquele que o recebe.
Apocalipse, 2:17
Mergulhe na imensidão azul, e o sol se quebrará: pequeno manual de magia. Por duas vezes gritei e o que saia de minha boca eram raízes extremas. Duas vezes, não mais que duas.
Enquanto a vassoura espalha o perfume da morte, EU CONTINUAREI, Da primeira, sete aves visitaram-me os lábios e com a certeza de quem assassina, comi-as todas. Farto,
Entrelaçado por uvas e eras, porque a noite também tem a sua noite. sentei as raízes em minha desolação. Não podia mais ser grito, não podia – queria apenas o silêncio
perpétuo dos ânus venais. Isso foi há muito tempo, quando ainda os deuses nasciam com os pés atados
Mergulhe, enquanto o sol se quebra e os detetives morrem. à terra e as árvores eram tecidas de carnes mortas infantis. Da segunda, padeço ainda hoje das raízes
Boca negra, conheço-me da borda da piscina para dentro. saídas do sexo e do sonho impossível dos voos de pássaros dos quais sinto toda a fome.
Se eu mudasse de vida, os mágicos seriam esquecidos.
Ana Amália Alves (1984, Marília/SP). Escreve e traduz poesia e ficção. Mestre em Spanish Portuguese and Latin American
Vinícius Nicastro Honesko. Professor Adjunto de História Contemporânea na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Studies pela King’s College London, atuou como Professora Visitante - Supervisora de Tradução no programa de Mestrado
110 111
Atualmente desenvolve pesquisas sobre Teoria da História sobretudo a partir de W. Benjamin e Giorgio Agamben. em Translating Popular Culture da City University London.
LANCE DE DADOS SOBRE ÁGUAS E ARREBENTAÇÕES
Daniel Lopes Keyla Sobral
Cada lance de dados mergulha mundos na Sombra. Tudo o que se desvela, vela algo latente. O
caminho que tomo agora, suprime o fato de que poderia ter ido por outro caminho. No entanto, de certa
forma, em alguma dobra do tempo, estou no caminho velado que agora se desvela, velando o anterior.
E também estarei no outro caminho... E no outro... E no outro... E no outro. Até que só me reste o
resultado do primeiro lance de dados. E novamente estarei nesta estrada da qual jamais escapei... E
depois na outra... E na outra... E ainda na outra, feito um rato de gaiola percorrendo sua roda, tendo a
ilusão de que sai do lugar. Que estou dizendo? Um lance de dados afirma todas as possibilidades de
uma vez. Se jogo os dados duas vezes, o fato de ter dado o número 5 na primeira, não exclui o fato
de que o 5 possa vir a dar novamente, e novamente, e novamente. Para continuar com a imagem do
rato e da roda, o rato poderia nunca ter estado na roda, porque os lances se seguem e afetam o ponto
de lançamento uns dos outros. Para Heidegger é o Ser quem se dá a desvelar, quem joga os dados
e sabe o resultado, o que nos aparece como acaso é na verdade destino, plano do Ser. Quando as
O mergulho e a falta de respiração. Me apaixonei de pronto, imediato. Instantâneo. Ela veio deslizando
possibilidades se esgotarem, elas tornarão a se repetir, como numa equação cristalina. Isso nos leva
sobre as águas, corpo esguio e levemente salgado. Nas águas barrentas do Marahú. A orquídea solitária
aos dois ensinamentos do mestre Zaratustra, que ensina primeiro o eterno retorno do mesmo, o que
pousada no ombro. O corpo súrfico. Esse era um sinal de alerta. O risco. A experiência. A beijei suave
livra o homem do seu maior ressentimento, o ressentimento contra a morte, e o libera para o segundo
no meio de uma construção, cheia de poeira, tinta e cal. E ela me disse: se jogue nas águas da Bahia,
ensinamento de Zaratustra, o além-homem, aquele que diz Sim. Os dados são lançados, ninguém os
mas prometa por favor não se afogar. É necessário ainda a sua volta.
lança, não há sujeito ou escolha, o acaso não é o meio pelo qual o Ser, ou o Espírito se dão a conhecer.
Estes são os maus lances de dados que se inscrevem nas mesmas hipóteses. Aqui, o próprio acaso é o
fim, o Ser, Ser-Acaso, e mantem os dados girando numa velocidade tão grande que os próprios dados se
desintegram, desprendem-se os pontos pretos, restam raios, fluxos e o branco, soma de todas as cores.
Lá onde se espera o diferente, pode vir a repetição; onde se espera a repetição, pode vir eternamente
o diferente. Os dados não caem ordenadamente, primeiro o 1, depois o 2, depois o 3, o 4, o 5, o 6.
Podemos jogar os dados 12 vezes e nas doze vezes cair o número 1, ou o número 1 pode não cair em
nenhuma delas. Voltando ao eterno retorno, o Sim só vale se for um Sim à transitoriedade, um Sim à
plena transitoriedade: Amor Fati. O ser é unívoco, se diz sempre de uma mesma maneira sobre todas
as coisas, mas o que essa boca fala é a própria diferença, a única coisa permanente é a mudança, o
devir. Império do fantasma e do simulacro. O Idêntico é a própria diferença, não espera a repetição
de uma mesma identidade, mas de uma singularidade pré-individual. Repete-se, mas o que se repete
já é outra coisa, a diferença em estado selvagem. Talvez o Sim aqui seja aquele Sim a que Nietzsche
tenha chegado somente em Ecce Homo, quando afirma ter sido Alexandre, o grande, numa das vezes
em que passou pela Terra. Fica algo de Dionísio em Alexandre, algo de Alexandre em Napoleão, algo
112 Daniel Lopes. Escreve para diversos sites e revistas de literatura e filosofia. Publicou a coletânea de contos Pianista 113
Boxeador e o romance Fruta (edita o blogue) www.pianistaboxeador21.blogspot.com Keyla Sobral (PA). Artista visual, editora e fundadora da revista eletrônica Não-Lugar (www.naolugar.com.br).
114
No Seminário dedicado a James Joyce, Lacan desdobra seu interesse pela escrita e o Tal como Primo Levi descreveu o indizível nos campos de concentração, sabendo que a língua
irrepresentável. A arte de Joyce, com sua escrita enigmática, fascina o psicanalista ao levá-lo a um comum não basta para dizer da experiência desmedida. Ou como Paul Celan, que inventou uma poesia
ponto de embaraço. É a partir desse limite real que Lacan dá um passo a mais, apresentando uma nova à altura dessa não-metáfora absoluta que é Auschwitz, o infigurável da morte. Uma poesia que sabe da
concepção de sintoma – que grafa como sinthoma – numa conjunção entre letra e gozo. Seu fascínio fragilidade humana e que abriga também o indizível, o irrepresentável, insistindo nessa tentativa tão
por Joyce advém justamente do modo como o escritor utiliza a linguagem, construindo uma escrita em precária quanto potente de tentar dizer algo que possa nos deslocar novamente para a vida.
que o jogo de letras revela o lapso, o furo onde se funda a finalidade da escrita: escrever aquilo que não Se Nietzsche instituiu o “amor fati”– esse amor ao destino – Lacan fala do “c’est ça “– é isso.
pode ser escrito. Quando se chega ao “é isso” não há mais recuo diante do furo da linguagem. Ao contrário, está aí a
As palavras em Joyce chegam como um impasse, naquilo que elas podem guardar de inquietação função da letra que não se furta de evidenciar algo de radical na linguagem e de extrair da escrita suas
e vazio, de vida e morte, forjando o “objeto perdido”. A escrita se torna o buraco por onde o gozo conseqüências mais potentes implicadas no tratamento do impossível pelo contingente.
escorre e pode se alojar, chuva da linguagem que captura o incapturável e cria uma marca, um rastro, “Amor fati” – afirmar a vida naquilo que cabe à escrita literária: lá onde o inexprimível se
um sulco. Escrita que é, portanto, letra – esse conceito que permite a Lacan sofisticar a noção de real e
Quem a via não poderia acreditar que Solange fosse capaz de influenciar as decisões da advogada Começaram então a tirar todos os jornais com matérias especiais e fotos do Roberto Carlos,
Ravena. A menina negra e pequena, não media um metro e meio. Era magra, com feições de anjo, que organizados em pastas pretas com folhas de plástico. Eram mais de quatro caixotes de televisão 14
seriam mais evidentes se não alisasse os cabelos naturalmente encaracolados. Já era adulta, mas com polegadas. Desde a década de 1980, Ravena não era mais tão fanática e a coleção ia de 1962 a 1982,
compleição de criança. E quando indagada sobre o que deve ser jogado fora, era categórica e firme. quando o Rei lançou o disco com a música Fera Ferida. Apesar de lamentar ficar sem aqueles recortes,
não foi tão difícil jogá-los fora.
- Isso junta muito mofo, faz mal pra saúde.
- A senhora gostava mesmo de Roberto Carlos, né dona Ravena?
Com a desculpa da ‘vida saudável’, Solange já tinha conseguido induzir Ravena a se desfazer
de poucas coisas, como algumas revistas, roupas que tinha usado muito, sapatos. Nada além disso. Mas - Eu era louca por ele, mas depois passou. Era da idade.
sabia que chegaria o momento em que a patroa teria que escolher entre acumular e conseguir caminhar - A senhora não teve namorado nessa época também? - Solange ousou perguntar, para matar uma
dentro da própria casa. curiosidade de anos, mas ficou com a face contraída e apreensiva na expectativa da resposta da patroa.
Ainda tinha o problema do mofo, o grande inimigo das memórias de Ravena. Vencer a umidade Diria sim ou não, tranquilamente, ou repreenderia o intrometimento da diarista?
não era tarefa fácil para quem gosta de guardar, ainda mais em Belém. Cansou de encontrar papéis - Ah, tive alguns namorados, mas nunca gostei de homem no meu pé. Gosto de ser livre – disse
molhados e bolorentos. Tentava salvar alguma coisa com o secador de cabelo, mas nem sempre Ravena, acreditando que a autossuficiência disfarçaria o tom amargurado em sua voz ao tocar no
funcionava. A água estava no ar, consumindo tudo, não havia escapatória. Produtos antimofo, giz, assunto.
receitinhas da tia da amiga da prima, dicas da avó, desumidificador. Quase nada amenizava o avanço
Solange refletiu sobre qual tipo de liberdade acredita que tem uma pessoa que guarda tanta coisa
das matérias orgânicas invisíveis em decomposição. De janeiro a maio era bem pior, porque a chuva
III
128 129
Ramon Cardeal (PA). Poeta e tradutor. Autor de O Estrangeiro e outros andarilhos (edições IAP, 2012).
AO MAX MARTINS, A CRÍTICA EXPANDIDA AO MAX MARTINS, A CRÍTICA EXPANDIDA
Como imaginar uma contribuição da crítica expandida para a história da recepção da obra de Max “Que faço desse dia que me adora / pegá-lo pela cauda, antes da hora / vermelha de furtar-se ao meu festim?” Faustino,
VII
Martins enquanto o mesmo requer para o poeta o título de um dos mais secretos poetas brasileiros? Vale Mário. O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
dizer que não se trata de fazê-lo conhecido por poucas ou por muitas pessoas (considerando o quanto VIII
Hyde, Lewis. A dádiva: como o espírito criador transforma o mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
pode ser conhecido um poeta), mas se trata de poder resguardar os seus segredos, de encontrar meios
(criar meios) para resguardar a pergunta do poema. Que Max Martins possa continuar secreto para um
número cada vez maior de leitores é uma progressão com potencial, fatalmente, revolucionário. Ter nas
mãos um objeto que se torna mais secreto quanto mais se o explora e poder fazer de Max Martins, com
a crítica expandida, um segredo que só aumenta.
Fazer ver, com Max e a crítica, que “o que o pensador transmite, então, não é um saber, mas um
aprender, um criar”.6 Max Martins transmitiu o seu aprender e o seu criar em sua poesiavida e em sua
vidapoesia, como assegura o amigo de infância e companheiro de estudos, o filósofo Benedito Nunes,
em ensaio intitulado “Max Martins, mestre-aprendiz”: “Para ele, cultivar a poesia significa estudá-la,
132 4 “O escritor não é doente, mas médico, médico de si próprio e do mundo.” Deleuze, Gilles. A literatura e a vida. Élida Lima. Escritora, poeta e ensaísta. Autora do livro de poesia Voados (edição da autora, 2009) e Cartas ao Max: 133
In: Crítica e clínica. 1. ed. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: 34, 1997. limiar afetivo da obra de Max Martins (Invisíveis Produções, 2013), livro de fronteira entre poesia e crítica literária.
Gianguido Bonfanti (SP-1948)
Pintor, gravador, desenhista, ilustrador, cenógrafo.
Filho do também pintor Gianfranco Bonfanti, cursa desenho sob orientação de Poty Lazzarotto, entre
1962 e 1969. Neste ano, ingressa na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ, e cursa artes plásticas no Festival de Inverno de Ouro Preto, Minas Gerais. Em 1971
viaja para a Itália, onde passa dois anos estudando na Accademia di Belle Arti di Roma [Academia de
Belas Artes de Roma]. De volta ao Brasil em 1974, frequenta ateliê de gravura em metal na Escolinha
de Arte do Brasil, no Rio de Janeiro, sob orientação de Marília Rodrigues. Entre os anos de 1976 e
1979, realiza ilustrações para os periódicos Pasquim, Opinião, revista Ele & Ela, Jornal do Brasil e
para o livro Sangue, Papéis e Lágrimas, de Doc Comparato. Realiza cenário para a peça As Gralhas,
de Bráulio Pedroso, e projeta o teatro construído no Centro Cultural Cândido Mendes. Este período
é também marcado por uma profunda crise existencial que tem seu auge em 1978. Até esta época,
Bonfanti recusa-se a fazer uso da cor, limitando-se a desenhar e a gravar. Quatro anos depois, realiza
sua primeira exposição de pinturas e desenhos coloridos. Inicia atividade como docente na década
de 1980, lecionando na Escola de Artes Visuais do Parque Lage - EAV/Parque Lage, na Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC/RJ, na Faculdade da Cidade e na Casa de Cultura Laura
Alvim, no Rio de Janeiro. Participa do Panorama de Arte Atual Brasileira, no Museu de Arte Moderna
de São Paulo - MAM/SP, em 1974, 1977 e 1980; duas edições do Salão Nacional de Arte Moderna
- SNAM e três edições do Salão Nacional de Artes Plásticas, no Rio de Janeiro, entre 1974 e 1981;e
de individuais, como no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro - MAM/RJ e no Museu de Arte
Contemporânea - MAC/PR.
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Sem título, 1979, água forte e ponta seca sobre papel, 47x60cm, chapa, edição de 30
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