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Este livro foi digitalizado por Raimundo do Vale Lucas, com a

intenção de dar aos cegos a oportunidade de apreciarem mais uma

manifestação do pensamento humano..

Middlemarch

Um estudo da vida

provinciiana

GEORGE ELIOT

Um estudo da vida

. .

provinciana

Tradução e prefácio de

LEONARDO FRÓES

RIO DE JANEIRO · SÃO PAULO

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, R

Eliot, George, 1819-1880

E43m Middemarch: um estudo da vida provinciana /

George Eliot; traduÇão e prefácio de Leonardo Fróes. -

Rio de Janeiro: Record, 1998.

Tradução de: Middemarch

ISHN 85-01-04535-7

1. Romance inglês. I. Fróes, Leonardo. II. Título.

CDD - 823

98-0156 CDU - 820-3

Título original ínglês

MIDDLEMARCH

Copyright © Editora Record, 1998

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oTow

ISBN 85-01-04535-7

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SUMÁRIO

Prefácio .......................................................................
.................... 7

Prelúdio........................................................................

................. 13

I. Miss

Brooke..........................................................................

.... 15

II. Velhos e

Jovens ..................................................................... 139

III. À Espera da

Morte ............................................................... 249

IV Três Problemas de Amor ......................................................

345

V A Mão do

Morto .................................................................... 455

VI. A Viúva e a

Esposa .............................................................. 565

VII. Duas

Tentações .................................................................. 671

VIII. Sol Posto e Sol

Nascente ................................................... 767

Finale .........................................................................

................. 871

PREFÁCIO

Mulher e Cultura

no Dissenso Literário

Leonardo Fróes

A romancista inglesa que se tornou conhecida por este nome de homem

- George Eliot - chamava-se na realidade Mary Ann Evans e nasceu

numa fazenda do Warwickshire, da qual seu pai era o administrador, em

22 de novembro de 1819. No mesmo ano, nasceu Vitória, a rainha do

apogeu do império britânico, que se manteve por mais de sessenta anos


no trono para acabar dando nome à época. A autora, que por notável

esforço pessoal ingressou no mundo da cultura, ainda então uma exclu-

sividade dos homens, descreveu e analisou em Middemarch a situação

do império por dentro - dos seus valores, projetos, sentimentos - nos

anos conturbados que antecedem a ascensão de Vitória: qtando a teoria

e a prática do progresso, avançando pelo interior da Inglaterra, ameaça-

vam por um lado as velhas estruturas do campo e, por outro, difundiam

um clamor por reformas nem sempre claro e entendido.

Sem dote, sem berço e sem beleza, GE iniciou seu esforço de cultura

em Coventry, a cidade mais próxima da fazenda de Arbury, onde apren-

deu como autodidata, pois às moças reservava-se o ensino para salão:

de boas maneiras, belas-artes, piano, religião e bordados, e em contato

com intelectuais progressistas. Com 25 anos, começou a traduzir do ale-

mão Das Leben Jesu (The Life of Jesus), de David Friedrich Strauss. Com 32

já em Londres, era a editora-assistente e na verdade a mola mestra de

prestigiosa publicação literária, a Westminster Review. Quando morreu em

1 8

GEORGE ELIOT

" 1880, rica e famosa por seus vários romances, já era um dos nomes

mais representativos da grande prosa vitoriana - a ombrear com

Thackeray e Dickens, pela mordacidade de sua visão crítica, e, pela ori-

ginalidade de sua mente, com Samuel Butler.

Depois do sucesso em vida, a obra de GE atravessou dois momen-

tos: o de um relativo ostracismo junto ao público, em comparação com o

constante interesse por autoras como Jane Austen ou Emily Brontë, e o

da redescoberta contemporânea. Este, que se generalizou na década de

1990, com a publicação de vários trabalhos a seu respeito, tomou corpo,

em âmbito mais restrito, na de 1960, ao constituir-se o grande ciclo das

pesquisas centradas no feminismo e após livros pioneiros como os de


Barbara Hardy (The Novels of George Eliot, 1964; Middemarch: Critical

Approaches to the Novel, 1967), que puseram em realce o valor literário de

suas construções e estilo. Mas GE, antes mesmo de ser incluída no cânon

da ficção inglesa por ER. Leavis (em The Great Tradition, 1948), se·npre

contou com admiradores de peso entre os escritores. Proust, por exem-

plo, tinha particular estima por The Mill on the Floss, romance no qual ela

descreve sua infância rural e que já foi tão conhecido quanto Middemarch,

hoje unanimemente apontado como o melhor de seus livros.

A técnica do monólogo interior ou fluxo de consciência, que se di-

fundiu e radicalizou no século XX, é muito usada por GE, ainda a modo

de esboço, é verdade, mas claramente intencional e que lhe garante sem

dúvida a precedência do uso. Seguidas vezes em Middemarch, antes ou

depois de um personagem falar, é comum que ele reflita longamente

sobre suas próprias palavras, confrontando-as com a orientação dos seus

interesses ou, dependendo do personagem, seus princípios éticos. Há

sempre em cada criatura um olhar mais interno que a observa, uma voz

interior que dialoga e aconselha, e uma das marcas de GE é este esforço

de ir pelos meandros da mente em busca do mais sincero e recôndito.

Consideradas as finalidades de Proust em relação aos modos de atuação

da memória, entende-se que a introspecção da autora - sua técnica de

dissecar pensamentos - lhe tenha despertado interesse. Ao longo do

romance, o texto aqui e ali adquire feição de marcações para o palco, ou

de um futuro roteiro cinematográfico, tal o cuidado com que é feita, para

transmitir todo o impacto dos estados mentais, a indicação de gestos,

olhares e posturas que definem a presença dos personagens em cena.

Escrito entre 1869 e 1871, Middemarch recua quarenta anos no tem-

po para situar sua ação entre o outono (setembro) de 1829 e a primave-

ra (maio) de 1832. As principais questões da época, com o reino em

polvorosa, após a morte de dois reis a um pequeno intervalo e a vindou-

MIDDLEMARCH

ra entronização de uma rainha ainda adolescente, estão em relevo ple-


no. Nas conversas da elite e do povo, em linguagens bem distintas para

acentuar o desnível, ora é abordada a questão religiosa, marcada pela

recente emancipação dos católicos e pelo avanço do dissenso ou não-

conformismo daqueles que se separavam da Igreja Anglicana; ora, a ques-

tão política, centrada nos embates parlamentares, na discussão das re-

formas cuja aprovação se propunha, nas referências à formação de ligas

operárias e outros movimentos de reivindicação popular. O panorama

social como um todo, enquanto a efervescência metropolitana se espa-

lha pelo interior do país, é representado pela transformação que já se

processa, com o poder dos velhos proprietários de terras, como Mr.

Featherstone, passando para as mãos ágeis e ávidas dos capitães da in-

dústria manufatureira, como Mr. Vincy. Os pobres, vivendo em miserá-

veis casebres, despertam o ardor de Dorothea, seus ideais humanitários

de beneficência. O novo, personificado pelos que vêm de fora, Ladislaw

e Lydgate, desarruma a rotina e escandaliza, quer nos métodos de traba-

lho, quer nas relações pessoais. E novo é também o trem de ferro, que

no plano real estava começando a correr entre Liverpool e Manchester, e

que na ficção ameaça chegar a Middemarch cortando terras ao meio.

Para dar credibilidade ao realismo de seu romance, GE se muniu de

escrupulosos dados sobre o que acontecia no país por volta de 1830.

Com particular atenção ela enfoca o estado de certas áreas de atividade

como a medicina, à qual faz críticas ferozes. Todo o mundo das profis-

sões masculinas - uma seqüência de figuras caricatas como um leiloeiro

pedante, um espertalhão que vende cavalos, um juiz falastrão, médicos

venais e retrógrados - é radiografado de longe por seu olhar de mulher.

É um mundo cheio de teatralidade e astúcia, de belas e vazias palavras,

que parece brotar da falsidade e onde a gana por dinheiro silencia os

princípios. Seu representante mais perfeito será o banqueiro Bulstrode,

que esconde as falcatruas do passado, origem de sua grande fortuna, sob

um opressivo pendor por obras de caridade, hipocrisia religiosa e


mandonismo político.

A pequena cidade fictícia de Middemarch ocupa a mesma localiza-

ção de Coventry, ou seja, está no "meio da Mércia," um dos antigos

reinos da Inglaterra anglo-saxônica, independente até o século X. Ao

criá-la para aí empreender "um estudo da vida provinciana," como diz o

subtítulo de seu romance, GE seguiu por um caminho já bastante co-

mum na ficção européia e explorado por grandes predecessores, como

Balzac, Flaubert e Turgueniev, o último dos quais, por sinal, ela conhe-

ceu em pessoa. Mas isto não retira valor a seu trabalho, onde a origina-

10

GEORGE ELIOT

lidade maior reside nos seus modos de ver, resultado de experiências

" genuínas por que ela mesma passou como mulher diferente e dissidente

numa sociedade tacanha.

Dorothea, a jovem e bela heroína de Middemarch, cheia de bondade

no coração, é em parte a feia e rigorosa GE como heroína pela aquisição

" de cultura e a manutenção de ideais. O desejo de aprender, de partilhar

" deste privilégio dos homens, que deveria lhe servir de ponte para fazer o

bem à humanidade, leva Dorothea a se interessar por Casaubon, ho-

mem trinta anos mais velho do que ela, rabugento, doentio, egoísta,

mas supostamente culto, e uma das mais convincentes dentre as carica-

turas profissionais de GE - a do erudito estéril. Sua união aparente-

mente incompleta permite à romancista, que pensa o mundo e o social

com uma isenção de filósofa, mostrar os equívocos do casamento como

ilusão ou negócio, não como troca, e retratar a sujeição degradante em

que as mulheres viviam.

Quando acordar da letargia na gaiola de luxo, Dorothea terá de de-

safiar a oposição da família, as opiniões da cidade e as convenções do

mundo para realizar seu amor. Na vida real, a escritora Mary Ann Evans,

desafiando tudo isto, fugiu com um homem casado, o também escritor

George Henry Lewes, e por quase um quarto de século os dois constituí-


ram um harmonioso casal, cada qual a construir sua obra numa coopera-

ção produtiva. O nome dele está no pseudônimo, George Eliot, que ela

adotou desde o primeiro livro (Scenes of Clerical Life), e foi ele quem mais

a incentivou a escrever ficção, deixando a filosofia de lado. Em 1880,

dois anos após a morte de Lewes e sete meses antes de morrer ela pró-

pria, GE, que estava com 61 anos, casou-se com um homem vinte anos

mais moço, John Walter Cross, que foi o seu primeiro biógrafo.

Há toques feministas explícitos em Middemarch. Mas as mulheres

não são poupadas quando a vida provinciana é exposta pelo que tem de

mais tolo. Celia se submete ao marido e idiotiza-se na relação com o

filhinho, enquanto Rosamond transforma em frivolidade e lascívia o sa-

lão de seu ócio. Quando ela enjoa de Lydgate e começa a flertar com

outros homens, GE explica bem didaticamente que "o descontentamen-

to de Rosamond com seu casamento era devido às condições do casa-

mento em geral, à demanda de auto-supressão e tolerância, e não à

natureza de seu marido." Na eterna comadrice das senhoras, que vivem

tomando chá com as amigas, desde que chega um boato novo, transil.a a

maledicência mais torpe e formam-se os preconceitos gratuitos. É po-

rém uma veracidade do humano que GE procura atingir: como se armas-

se a trama do cotidiano para desvestir personagens da imposição dos

MIDDLEMARCH

11

papéis, das determinações do meio; como se, no auge da sátira à socie-

dade, deixasse uma fresta aberta para se olhar com simpatia o indivíduo;

como se no interior das pessoas houvesse um princípio só e sagrado.

O que há de novo na ficção inglesa, com Middemarch e a visão de GE,

é que não há maniqueísmo na análise, as pessoas não são boas e más

por completo, mas misturas mutáveis de circunstâncias mutáveis, às quais

cedem ou resistem. Às falhas denunciadas com rigor se contrapõe o ar-

gumento de que o caráter pode adoecer como o corpo e ser tratado tam-
bém. A capacidade de observação de GE e a amplitude da visão que ela

emprega têm por efeito mais óbvio tornar facilmente críveis, para um

mundo tão diverso, seus personagens em transe - tão antigos pela apa-

rência, no entanto tão atuais pelas circunstâncias que os criam. Não se lê

impunemente GE: a tendência do leitor, a cada página, é envolver-se nas

situações, retratar-se, perguntar-se como ele mesmo agiria, ou se já agiu

assim algum dia, em circunstâncias análogas. Experiência às vezes dura,

que indica que não temos saída, senão as tentativas de correção perma-

nente pelo poder da auto-análise, mas sempre experiência proveitosa e

que nos deixa do convívio com a autora uma impressão muito forte.

Como aliás a que ela deve ter tido, na dura alegria de criá-la, ao conviver

com Dorothea: `É presença de uma natureza nobre, generosa em seus

desejos, ardente em sua caridade, muda a luz para nós: começamos a ver

as coisas de novo em suas massas maiores, mais tranqüilas, e a acreditar

que nós também podemos ser vistos e julgados na totalidade do nosso

caráter."

A presente tradução, a primeira a ser feita em português, tomou por

base a edição crítica de Bert G. Hornback, da Universidade de Michigan

(Nova York e Londres: W W Norton & Company, 1977), em constante

cotejo com a da Everyman"s Library, com introdução, bibliografia e cro-

nologia de E. S. Shaffer (Nova York e Toronto: Alfred A. Knopf, 1991).

Foram respeitadas as características do original, mesmo quando há dis-

crepâncias internas, em relação ao uso de iniciais maiúsculas, itálico,

aspas etc. e, sempre que possível, à pontuação como um todo. Em GE,

como na prosa vitoriana em geral, a pontuação - com farto emprego de

travessões em diferentes funções - é parte essencial à expressividade

do texto. Seria pois uma infidelidade submetê-lo a normas ou hábitos

de hoje, o que além do mais eliminaria o tanto de sabor de época que se

quis manter. Nas epígrafes em versos que encimam capítulos, quase um

iz

GEORGE ELIOT
, livro de poesia que se agrega ao romance, mantêm-se às vezes, mas nem

sempre, os esquemas originais de rima e métrica. Nem sempre porque

ao polimento se preferiu outras vezes a mais direta clareza, para aclarar

" o mais possível a relação entre o que diz a epígrafe e o que dirá o capítu-

lo. As falas dialetais do povo, grafadas por GE num inglês dos mais de-

formados, são indicadas apenas, na impossibilidade de achar equivalen-

tes, por desrespeito ao rigor gramatical. A edição original de Middemarch

foi publicada parceladamente entre dezembro de 1871 e setembro de

1872, correspondendo cada um dos oito livros em que se divide o ro-

mance aos fascículos de sua serialização bimensal, que forrriavam junts

uma obra em quatro tomos.

PRELÚDIO

Quem muito se importa em saber a história do homem, e como a miste-

riosa mistura se comporta sob os experimentos variáveis do Tempo, que

não se tenha debruçado, brevemente que o fosse, sobre a vida de Santa

Teresa, que não tenha sorrido com alguma ternura ao pensamento da

menina que uma manhã sai andando de mãos dadas com o irmãozinho

ainda menor do que ela, para ir em busca do martírio no país dos mouros?

Da rude Ávila, a passos vacilantes, eles partiram pois, com os olhos

arregalados e um ar de desamparo como dois cervos novos, mas com

humanos corações já batendo por uma idéia nacional; até que a realida-

de doméstica, em forma de tios, os encontrasse e mandasse de volta,

desviando-os da grande resolução. Esta peregrinação das crianças foi

um começo adequado. A natureza idealista e apaixonada de Teresa pe-

dia uma vida épica: o que eram os romances de cavalaria em muitos

volumes e as conquistas sociais de uma moça brilhante para ela? Sua

flama queimou rapidamente este combustível volátil; e, alimentada des-

de dentro, alteou-se à cata de alguma satisfação ilimitável, algum objeto

quejamais justificasse o cansaço, que conciliasse o desespero de ser com

a consciência arrebatada da vida além do ser. Foi na reforma de uma

ordem religiosa que ela encontrou sua epopéia.


Esta mulher espanhola que viveu há trezentos anos atrás certamen-

te não foi a última de sua espécie. Muitas Teresas já nascidas não encon-

traram para si a vida épica onde houvesse o constante desdobrar de uma

ação de longa ressonãoncia; talvez apenas uma vida de erros, o cruza-

mento de uma certa grandeza espiritual mal correspondida com a pe-

quenez das oportunidades; talvez um fracasso trágico que não achou

seu poeta sacro e que sem pranto afundou no esquecimento. Com luzes

baças e circunstâncias enredadas elas tentaram moldar em nobre con-

cordância seu pensamento e ação; mas afinal suas lutas, aos olhos co-

muns, pareceram mera inconsistência e informidade; pois essas Teresas

tardiamente nascidas não foram ajudadas por uma fé e ordem social

coerentes, capazes de perfazer a função do conhecimento para as almas

14

GEORGE ELIOT

ardentemente pressurosas. Seu ardor se alternava entre um vago ideal e

. a aspiração comum da condição feminina; de modo que aquele foi re-

provado como extravagância e esta, condenada como um lapso.

Alguns julgaram que essas vidas às tontas são devidas à inconveni-

ente indefinição com que o Poder Supremo forjou a natureza das mulhe-

res: caso houvesse um nível de incompetência feminina tão estrito quan-

to a capacidade de só contar até três, o destino social das mulheres po-

deria ser tratado com a exatidão da ciência. Entrementes a indefinição

permanece, e os limites de variação são realmente muito mais vastos do

que imaginaria qualquer um ante a mesmice dos penteadosfemininos e

das histórias prediletas de amor em prosa e verso. Aqui e ali um peque-

no cisne é dificilmente criado no açude turvo entre filhotes de pato e

nunca encontra, na corrente viva, o companheirismo de sua própria es-

pécie palmípede. Aqui e ali nasce uma Santa Teresa, fundadora de nada,

cujas batidas de coração e soluços por uma bondade inatingida tremem

e são dispersos entre empecilhos, ao invés de se centrarem nalguma


ação longamente reconhecível.

LIvRo I

Miss Brooke

CAPÍTULO I

"Sínce I can no good because a woman,

Reach constantly at something that is near it."

- The Maid"s Tragedy: BEAUMONT AND FLETCHER.

("Se de bom, por ser mulher, nada faço,

Tendo sempre ao que há mais perto a ele.")

A tragédia da donzela: BEAUMONT E FLETCHER.

MIss BRooKE "riNHA esse tipo de beleza que parece ser lançada em

relevo pelas roupas simples. Sua mão e o pulso eram tão delicadamen-

te feitos que ela poderia usar mangas não menos destituídas de estilo

que aquelas com as quais a Santa Virgem foi vista pelos pintores italia-

nos; e seu perfil, bem como a estatura e o porte, parecia ganhar digni-

dade maior com o vestuário singelo, que ao lado da moda provinciana

dava-lhe a impressibilidade de uma bela citação da Bíblia - ou de um

de nossos velhos poetas - num parágrafo do jornal de hoje. Falava-se

geralmente dela como sendo pessoa de inteligência notável, mas com

o acréscimo de que sua irmã Celia tinha mais bom senso. Contudo,

Celia também não se enfeitava muito; e era somente para observado-

res bem próximos que sua roupa diferia da que a irmã usava, tendo um

quê de coqueteria nos arranjos; pois a maneira singela de Miss Brooke

vestir-se era devida a um misto de condições partilhado, em sua maior

parte, por sua irmã. O orgulho de serem damas finas tinha alguma coi-

sa a ver com isso: a origem dos Brooke, embora não exatamente aris-

tocrática, era inquestionavelmente "boa": se se buscasse no passado


p ,

or uma ou duas gerações, jamais se encontraria um de seus ancestrais

que vivesse de tomar as medidas ou de fazer embrulhos - nada menor

18

GEORGE ELIOT

que um almirante ou um clérigo; e havia até um antepassado discernível

como um fidalgo puritano que servíu sob Cromwell, mas afinal se aco-

modou, e conseguiu livrar-se de todas as preocupações polítícas na

condição de proprietário de uma respeitável herdade. Moças de tal ori-

gem, vivendo numa confortável casa no campo, e freqüentando uma

igreja de aldeia pouco maior que uma saleta, naturalmente considera-

vam os enfeites uma ambição de filha de mascate. E havia ainda a eco-

nomia das pessoas de bem, que fazia da ostentação no vestir-se, nes-

ses dias, o primeiro item passível de dedução, quando qualquer mar-

gem fosse requerida para gastos mais distintivos de classe.Tais razões

bastariam para justificar a roupa simples, independentemente do sen-

timento religioso; mas no caso de Miss Brooke a religião sozinha tería

determinado isto; e Celia meigamente concordava com todos os senti-

mentos da irmâ, infundindo-os tão-só desse bom senso que é capaz de

aceitar doutrinas momentosas sem nenhuma agitação excêntrica.

Dorothea sabia de cor muitas passagens das Pensées de Pascal e de Jeremy

Taylor; e para ela os destinos da humanidade, vistos à luz da cristanda-

de, faziam com que as solicitudes da moda feminina parecessem uma

ocupação para Bedam." Não lhe era possível conciliar as ansiedades de

uma vida espiritual, envolvendo conseqüências eternas, com um inte-

resse muito grande por blusinhas de baixo e protuberâncias artificiais

de roupagem. Sua mente era teórica e, por sua natureza, ansiava por

alguma elevada concepção de mundo que pudesse francamente incluir

a paróquia de Tipton e sua própria regra de conduta lá; enamorada de

intensidade e grandeza, precipitava-se ela em abraçar qualquer causa

que lhe parecesse ter tais aspectos; e igualmente em procurar o martí-


rio, fazer retratações e afinal conhecer então o martírio em paragens

aonde não o tinha ido buscar. Certamente estes elementos, no caráter

de uma moça por casar, tendiam a interferir com seu destino e a dificul-

tar que ele fosse decidido em consonãoncia com os costumes, o encanto

pessoal, a vaidade e simplesmente a afeição canina. Com tudo isso,

ela, a mais velha, ainda não chegara aos vinte, e as duas tinham sido

educadas, desde que perderam os pais por volta dos doze anos de ida-

de, em planos a uma só vez estreitos e promíscuos, primeiro numa

família inglesa e depois, em Lausanne, numa família suíça, seu tio celi-

batário e tutor tentando assim desse rnodo remediar as desvantagens

de sua condição de órfãs.

"Nome popular do Hospítal Real de Bethlehem, o maís antigo hospícío da

Inglaterra, fundado

em 1247; por extensão, nome de qualquer ínstítuíção do gênero.

MIDDLEMARCH lg

Nem bem fazia um ano que elas tinham vindo viver em Tipton Grange

com o tio, homem de quase sessenta anos, temperamento aquiescente,

opiniões em miscelânea e voto incerto. Em anos já remotos, ele viajara

bastante, e nesta parte do país era tido por haver desenvolvido uma

mente errática. As conclusões de Mr. Brooke eram tão difíceis de prever

como o tempo: só se podia dizer em segurança que ele agiria com inten-

ções benévolas e gastaria o mínimo de dinheiro possível para levá-las à

prática. Pois as mentes mais pegajosamente indefinidas encerram alguns

duros grãos de hábito; e já se viu um homem ser relaxado em relação a

todos seus próprios interesses, exceto a retenção de sua caixa de rapé,

no tocante à qual ele é atento, suspicaz e voraz ao deitar-lhe a mão.

Em Mr. Brooke o traço hereditário de energia puritana achava-se

claramente em suspensão; mas em sua sobrinha Dorothea ele fulgurava

igualmente por entre defeitos e virtudes, transformando-se às vezes em

impaciência da conversa do tio ou do seu modo de "deixar as coisas pra

lá" na propriedade, e fazendo-a ansiar ainda mais pela maioridade, quan-


do teria controle sobre o dinheiro para generosos projetos. Era vista

como uma herdeira; pois não só cada uma das irmãs tinha por ano sete-

centas libras, mas também, caso Dorothea se casasse e tivesse um filho,

este filho herdaria a propriedade de Mr. Brooke, a qual presumivelmente

valia umas três mil libras por ano - renda que já parecia riqueza para as

famílias provincianas que ainda discutiam a mais recente conduta de Mr

Peel quanto à Questão Católica", alheias às futuras regiões auríferas e a

essa plutocracia brilhante que exaltou tão nobremente as necessidades

da vida requintada.

E como iria Dorothea não se casar, moça tão linda e com tais pers-

pectivas? Nada seria um obstáculo a isto, a não ser seu amor pelos ex-

tremos e sua insistência em regular a vida segundo noções que poderiam

levar um homem cauteloso a hesitar antes de lhe fazer uma proposta, ou

mesmo finalmente levá-la a recusar todas elas. Uma jovem dama de boa

cepa e fortuna, que se ajoelhava de súbito num chão de tijolos ao lado

de um trabalhador enfermo e orava ardorosamente como se se imagi-

nasse a viver no tempo dos Apóstolos - que tinha estranhas venetas de

jejuar como um papista e de à noite sentar-se para ler velhos livros de

teologia! Tal esposa poderia acordá-lo nalguma bela manhã com um novo

projeto para a aplicação da própria renda que interferiria com a econo-

mia política e a posse e guarda de cavalos de sela: naturalmente um

Contrário à liberdade política e religiosa para os católicos, Robert Peel

(1788-1850), ministro

do Interior no governo do duque de Wellington, mudou bruscamente de posição em

1829.

20 GEORGE ELIOT

homem pensaria duas vezes antes de arriscar-se em tal companhia. Es-

perava-se que as mulheres tivessem opiniões fracas; mas a grande salva-

guarda da sociedade e da vida doméstica era as opiniões não serem se-

guidas. As pessoas normais faziam o que os vizinhos faziam; assim, se


houvesse lunáticos por perto, poderiam saber, e evitá-los.

A opinião rural sobre as novas moças, mesmo entre os moradores

das casinhas pobres, geralmente pendia em favor de Celia, por ter o ar

tão inocente e por ser tão amável, enquanto os grandes olhos de Miss

Brooke, como sua religião, pareciam incomuns demais e assombrosos.

Pobre Dorothea! Comparada a ela, a inocente Celia era experiente e

conhecedora do mundo; tão mais sutil é a mente humana do que os

tecidos externos que para ela fazem uma espécie de brasão ou mostra-

dor de relógio.

Entretanto os que se aproximavam de Dorothea, embora com algum

preconceito por causa desse ouvir dizer alarmista, nela descobriam um

encanto que inexplicavelmente se harmonizava com ele. Os homens, em

sua maioria, julgavam-na fascinante quando estava a cavalo. Ela adora-

va o ar livre e os vários aspectos do campo e, quando uma mescla de

prazeres brilhava-lhe na face e nos olhos, pouco se parecia com uma

devota. Montar era uma indulgência que Dorothea se permitia a despei-

to de conscienciosos remorsos; sentia que gostava de montar de um

modo sensual e pagão, e sempre pensava que algum dia acabaria renun-

ciando àquilo.

Era aberta, ardente, e nem um pouco embevecida de si; com efeito,

era tocante ver como sua imaginação adornava a irmã Celia de atrativos

em tudo superiores aos seus e, se parecesse que algum cavalheiro vinha

à granja por qualquer outro motivo que não estar com Mr. Brooke, logo

deduzia que ele devia estar apaixonado por Celia: Sir James Chettam,

por exemplo, que ela constantemente considerava do ponto de vista da

própria Celia, debatendo em seu íntimo se aceitá-lo seria bom para Celia.

Parecer-lhe-ia uma irrelevância ridícula que ele pudesse ser visto como

um pretendente a ela própria. Dorothea, com toda sua impaciência para

conhecer as verdades da vida, retinha idéias muito pueris sobre o casa-

mento. Estava certa de que teria aceito o judicioso Hookert, se houvesse

nascido a tempo de salvá-lo do desditoso erro matrimonial que ele co-


meteu; ou John Milton, quando sua cegueira se manifestou; ou qualquer

dos outros grandes homens cujos hábitos bizarros teria sido gloriosa

devoção suportar; mas um baronete gracioso e amável, que dizia "Exa-

"Richard Hooker (1554-160O), teólogo inglês.

MIDDLEMARCH 21

tamente" às suas palavras, mesmo quando ela exprimia íncerteza, -

como poderia impressioná-la com seu amor? O casamento realmente

prazeroso devia ser um no qual o marido fosse uma espécie de pai que

poderia ensinar-lhe até hebreu, se esta fosse sua vontade.

Tais peculiaridades do caráter de Dorothea tornaram Mr Brooke ainda

mais criticado nas famílias da vizinhança por não contratar alguma senhora

de meia-idade como guia e companheira para suas sobrinhas. Mas ele pró-

prio temia tanto o tipo de mulher superior que provavelmente se poderia

encontrar para esse emprego, que se deixou dissuadir pelas objeções de

Dorothea, e neste caso teve coragem bastante para desafiar o mundo - ou

seja, Mrs. Cadwallader, a esposa do reitor da paróquia, e a pequena fração

de boa sociedade que ele regularmente visitava no cantão nordeste do

Loamshire. Assim Miss Brooke presidia a casa do tio, e não desgostava

nada de sua nova autoridade, com as homenagens que a ela se associavam.

Sir James Chettam ia jantar hoje na granja com um outro cavalheiro

que as moças nunca tinham visto, mas sobre o qual Dorothea já sentia uma

expectativa de veneração. Era o Reverendo Edward Casaubon, respeitado

no condado como homem de grande conhecimento, sabidamente há mui-

tos anos às voltas com uma obra concernente à história religiosa; e também

como homem de suficiente riqueza para dar lustro à sua devoção, e que

tinha opiniões muito próprias, a serem afirmadas mais claramente com a

publicação de seu livro. Seu simples nome causava uma impressão muito

funda, dificil de ser medida sem uma cronologia precisa de erudição.

No começo do dia, Dorothea já estava de volta da escola infantil que ela

criara na aldeia, e já ia tomando seu lugar costumeiro na saleta aconchegan-


te que separava os quartos das irmãs, para debruçar-se e acabar a planta de

umas construções (tipo de trabalho que ela adorava), quando Celia, que a

vinha observando com hesitante desejo de propor alguma coisa, disse:

"Dorothea, querida, se você não se importar - se não estiver muito

ocupada - que tal nós darmos uma olhada hoje nas jóias da mamãe, e

dividi-las? Hoje se completam exatamente seis meses desde que o tio as

deu a você, e você ainda nem as viu."

A face de Celia tinha a sombra de uma expressão amuada, estando a

presença plena deste amuo contida por um temor habitual de Dorothea

e princípios; dois fatores associados que poderiam mostrar uma eletrici-

dade misteriosa se incautamente alguém tocasse neles. Para seu alívio,

os olhos de Dorothea, quando se ergueram, estavam cheios de ironia.

"Que almanaquezinho maravilhoso você é, Celia! São seis meses

pelo calendário ou seis meses lunares?"

"Hoje é o último dia de setembro, e foi em primeiro de abril que o tio as

GEORGE EI.IOT

22

deu a você. Lembra? ele disse que até então tinha esquecido delas. E você,

desde que as trancou aqui no armário, acho que nunca mais pensou nisso."

"Bem, querida, nós, como você sabe, não devemos usar essas jóias

nunca." Dorothea falou num tom de todo cordial, carinhoso em parte e,

em parte, explanatório. Estava com seu lápis na mão, e na margem do

papel ia fazendo diminutos esboços.

Celia enrubesceu, e ficou muito séria. "Acho, querida, que seria falta

de respeito pela memória de mamâe deixá-las de lado e não ligar para

elas. E," acrescentou, após hesitar um pouco, com um soluço de mortifi-

cação que aumentava, "os colares agora estão muito em uso; e Madame

Poinçon, que em certas coisas era até mais rigorosa do que você, costuma-

va usar enfeites. E os cristãos de modo geral - certamente há mulheres

que agora estão no céu e que usaram jóias." Celia tinha consciência de sua

boa dose de vigor mental quando ela realmente se empenhava numa ar-
gumentação.

"Você gostaria de usá-las?" exclamou Dorothea, um ar de descober-

ta perplexa a animar sua pessoa toda com um movimento dramático que

ela havia pegado justamente dessa Madame Poinçon que usava jóias.

"Mas então vamos a elas, é claro! Por que não me disse antes? Mas e as

chaves, as chaves!" Ela apertou as mãos contra os lados da cabeça, pare-

cendo desesperar da memória.

"Estão aqui," disse Celia, em quem a explicação tinha sido longamente

pensada e premeditada.

"Então, por favor, abra a gaveta grande do armário e pegue o porta-

jóias."

Aberto o estojo sem demora, diante delas esparramaram-se as jóias,

criando em cima da mesa um ornamento brilhante. Não sendo uma co-

leção muito grande, incluía porém algumas peças que eram realmente

de extraordinária beleza; a mais bela a evidenciar-se logo foi um colar de

ametistas roxas montado em primorosa ourivesaria e com uma cruz de

pérolas com cinco brilhantes engastados. Dorothea apanhou imediata-

mente o colar e pendurou-o no pescoço da irmã, onde ele se encaixou

quase tão bem e tão justo como um bracelete; mas o círculo combinava

com o tipo Henrietta-Marial do pescoço e da cabeça de Celia, o que o

espelho entre janelas, do lado oposto, pôde confirmar para ela.

"Ah, Celia! Você pode usá-lo com o vestido de musselina indiana.

Mas acho que a cruz fica melhor com suas roupas escuras."

"Rainha-consorte (1609-1669) de Carlos I da Inglaterra, sempre retratada com um

clar de

pérolas no pescoço fino e comprido.

MIDDLEMARCH 23

Celia tentava não sorrir de prazer. "Oh, Dodo, você devia ficar com a

cruz para você."

"Não, não, não, querida," disse Dorothea, erguendo a mão em desa-


provação descuidosa.

"Devia sim, devia mesmo; ficaria muito bem em você agora - com

seu vestido preto," disse Celia insistindo. "Você deve usá-la."

"Nem por nada deste mundo. Nunca eu usaria uma cruz como um

penduricalho." Um ligeiro estremecimento percorreu Dorothea.

"Mas então a seu ver não seria também conveniente eu usá-la," dis-

se Celia sem jeito.

"Não, querida, não," disse Dorothea, alisando o rosto da irmã. `As al-

mas também têm compleições: o que convém a uma não convém a outra."

"Mas você pode querer ficar com ela pela lembrança de mamãe."

"Não, tenho outras coisas que foram de mamãe - sua caixa de

sândalo, de que eu gosto tanto - cheia de coisas. São todas suas na

verdade, querida. Não precisamos discutir mais isso. Aí está - pegue o

que lhe pertence."

Celia se sentiu um pouco ferida. Havia uma forte afirmação de supe-

rioridade nesta tolerância puritana, quase tão penosa para a carne loura

de uma irmã não fanática quanto uma perseguição puritana.

"Mas como eu iria usar adornos, se você, que é a irmâ mais velha,

nunca vai usá-los?"

"Não, Celia, isto já é pedir demais, que deva eu usar enfeites só para

lhe encorajar. Se eu tivesse de colocar um colar assim no pescoço, me

sentiria como se estivesse fazendo uma pirueta. O mundo rodaria à mi-

nha volta e eu não saberia mais como andar."

Celia tinha desabotoado e retirado o colar. "Em seu pescoço ele fica-

ria um pouco apertado; alguma coisa que se pudesse usar mais solta

seria melhor para você," disse com uma ponta de satisfação. A completa

inadequação do colar para Dorothea, sob todos os pontos de vista, au-

mentava a felicidade de Celia em conservá-lo. Ela estava abrindo umas

caixinhas de anéis, um dos quais exibia uma bela esmeralda com dia-

mantes, e justamente então foi que o sol, passando além de uma nuvem,
brilhou com força sobre a mesa.

"Que lindas são estas gemas!" disse Dorothea sob uma nova corrente

de sentimento, tão repentina quanto aquele fulgor "É estranho como as

cores parecem penetrar tão fundo na gente como os odores. Suponho que

seja esta a razão pela qual as gemas são usadas como emblemas espiri-

tuais na Revelação de São João. Parecem-se com fragmentos do céu. E

esta esmeralda a meu ver é a mais bela de todas."

GEORGE EI..IOT

24

"E há um bracelete para usar com ela," disse Celia. "Não o tínhamos

notado a princípio."

"São maravilhosos," disse Dorothea, enfiando o anel e o bracelete no

dedo e no pulso bem torneados, antes de erguê-los na direção da janela e

bem no nível de seus olhos. Enquanto isso seu pensamento tentava juscifi-

car seu prazer com as cores, mesclando-o com sua alegria místico-religiosa.

"Estas você adoraria, Dorothea," disse Celia meio titubeante, come-

çando a pensar com espanto que a irmâ demonstrava certa fraqueza, e

também que as esmeraldas, em seu próprio corpo, poderiam assentar-se

ainda melhor que as ametistas roxas. "Você deve hear com o bracelete e

o anel - ou senão com outra coisa. Mas olhe só, estas ágatas são muito

bonitas - e discretas."

"É mesmo! Vou ficar com estas - com este anel e o bracelete," disse

Dorothea. Depois, deixando a mão cair na mesa, ela disse noutro tom:

"No entanto, que homens vis os que descobrem tais coisas, e nelas traba-

lham, e as vendem!" Fez uma nova pausa, e Celia achou que sua irmã ia

renunciar às jóias, como para ser coerente ela deveria fazer

"Sim, querida, vou ficar com estas," Dorothea falou com decisão.

"Mas leve todo o restante, e o porta-jóias também."

Pegou seu lápis sem retirar as jóias, e ainda olhando para elas. Pen-

sava em tê-las com freqüência a seu lado, para alimentar a visão com

essas pequenas fontes de cor pura.


"Deveremos usá-las em reuniões?" disse Celia, que a observava com

real curiosidade em relação ao que ela iria fazer.

Dorothea olhou de relance para a irmã. Varando todo seu imaginati-

vo embelezamento daqueles de quem ela gostava, projetava-se de quando

em quando um discernimento agudo, não desprovido de uma qualidade

pungente. Se alguma vez Miss Brooke atingiu a mansidão perfeita, não

foi por falta de fogo interior.

"Talvez," disse ela arrogantemente. "Não sei dizer até que nível sou

capaz de baixar."

Celia corou e se sentiu infeliz; viu que tinha ofendido sua irmã e

sequer se atrevia a dizer alguma coisa delicada sobre o presente das

jóias, que ela pôs de novo no estojo e levou dali. Dorothea sentia-se

também descontente, ao voltar a desenhar sua planta, questionando a

pureza de seus próprios sentimentos e palavras na cena que terminara

com essa pequena explosão.

Disse-lhe a consciência de Celia que ela não estivera de todo errada:

nada mais natural e justificável que houvesse feito a pergunta, e ela se

repetia ainda agora que Dorothea era incoerente: ou bem deveria ter

MIDDLEMARCH 25

ficado com toda sua parte das jóias, ou bem, depois do que havia dito,

renunciado completamente a elas.

"Tenho certeza - ou pelo menos acredito," pensou Celia, "que o

uso de um colar não vai interferir com minhas orações. E não vejo por

que submeter-me eu às opiniões de Dorothea, se bem que ela mesma,

é claro, tenha de ser submetida por elas. Mas Dorothea nem sempre é

coerente."

E assim ficou Celia, curvada em mutismo sobre sua tapeçaria, até

que ouviu a irmã chamá-la.

"Venha ver, Kitty, olhe só minha planta; se eu não tiver posto larei-

ras e escadas incompatíveis, vou achar que sou uma grande arquiteta."

Enquanto Celia se debruçava sobre o papel, Dorothea encostou o


rosto, carinhosamente, no braço de sua irmã. Celia entendeu o gesto.

Dorothea viu que tinha errado, e Celia a perdoou. Desde que as duas se

lembravam, sempre houvera uma mistura de temor respeitoso e crítica

na atitude mental de Celia em relação à irmâ mais velha. A mais nova

sempre esteve sob o jugo da outra; mas há alguma criatura subjugada

que não tenha suas opiniões próprias?

CAPÍTULO II

"Dime; no ves aquel caballero que hacia nosotros viene so-

bre un caballo rucio rodado que trae puesto en la cabeza un

yelmo de oro?" "Lo que veo y columbro," respondiò Sancho,

"no es sino un hombre sobre un asno pardo como el mio,

que trae sobre la cabeza una cosa que relumbra." "Pues ese

es el yelmo de Mambrino," dijo Don Quijote.

- CERVANTES.

("Dize-me; não vês aquele cavaleiro que vem em nossa dire-

ção, montado num cavalo baio malhado, e que traz posto na

cabeça um elmo de ouro?" "O que vejo e distingo," respon-

deu Sancho, "não é senão um homem sobre um asno pardo

como o meu, que traz sobre a cabeça uma coisa que reluz."

"Pois este é o elmo de Mambrino," disse Dom Quixote.)

- CERVANTES.

"Sllt HUMPHltY DAvY?" disse Mr. Brooke durante a sopa, com aquele seu

jeito de sorrir à toa, aproveitando a observação de Sir James Chettam de

que ele estava estudando a Química Agrícola de Davy." "Ah, sim, Sir

Humphry Davy: pois anos atrás jantei com ele no Cartwright, e sabem

quem estava também? - o poeta Wordsworth. Coisa aliás bem singular.

Eu, que estudei em Cambridge no tempo de Wordsworth, nunca o havia

encontrado, - e vinte anos depois jantei com ele no Cartwright. As coisas

são mesmo estranhas. Mas então lá estava o Davy, que também era poeta.

Ou, como posso dizer, Wordsworth era o poeta número um, Davy, o poe-
ta número dois. Isto era verdade em todos os sentidos, sabem?"

Elements of Agricultural Chemistry (1813), de Sir Humphrey Davy (1778-1829).

MIDDLEMARCH

Dorothea sentia-se um pouco menos à vontade que de costume. No

começo do jantar, sendo pequeno o grupo e tranqüila a sala, estas partí-

culas da massa cerebral de um magistrado caíam com muito estardalha-

ço. Perguntava-se ela como um homem do porte de Mr. Casaubon su-

portaria tais banalidades. Seus modos, pensava, eram muito dignos; a

combinação da cabeleira cinza-escura com a órbita cava de seus olhos

tornava-o parecido com o retrato de Locke. Ele tinha a aparência descar-

nada, a tez pálida dos estudiosos; tão diferente quanto possível do exu-

berante inglês do tipo avermelhado de uísque que Sir James Chettam

representava.

"Estou lendo a Química Agrícola," disse este excelente baronete, "por-

que vou pegar em mãos uma das fazendas, e ver se não se pode fazer

alguma coisa para criar entre meus rendeiros um bom padrão de agricultu-

ra. Concorda com a decisão, Miss Brooke?"

"É um grande erro, Chettam," interpôs Mr. Brooke, "eletrificar suas

terras e esse tipo de coisa, e transformar seu curral numa sala de visitas.

Não vai dar certo. Eu mesmo já recorri bastante à ciência em certa épo-

ca; mas vi que não adiantaria. Ela leva a tudo; e nada você pode deixar

em paz. Não, não - cuide de que os rendeiros não vendam seus tarecos,

e esse tipo de coisa; dê manilhas de esgotos para eles, o que é ótimo.

Mas essa fazenda dos seus sonhos não dará certo - por mais caro que

você possa pagar para realizar o capricho: mais vale manter uns cães de

caça."

"Certamente," disse Dorothea, "é melhor gastar dinheiro para des-

cobrir um meio de os homens aproveitarem melhor a terra, que os sus-

tenta a todos, do que para manter cães de caça e cavalos só para galopar.

Não é pecado fazer-se pobre na realização de experiências para o bem

de todos."
Ela falou com uma energia que não seria de esperar-se em dama

assim ainda tão jovem, mas Sir James a havia interessado. Ele já estava

acostumado com isso, e elajá muitas vezes pensara que poderia incentivá-

lo a muitas boas ações, quando ele fosse seu cunhado.

Mr. Casaubon virou os olhos de modo muito acentuado para

Dorothea, nisto que ela estava falando, e pareceu observá-la sob um

ângulo novo.

"Senhoritas, como o senhor sabe, não entendem de economia polí-

tica," disse Mr. Brooke sorrindo para Mr. Casaubon. "Lembro-me de

quando estávamos todos lendo Adam Smith. Agora sim havia um livro.

Absorvi de uma só vez todas as novas idéias - a perfectibilidade huma-

na, essas coisas. Mas há quem diga que a história se move em círculos; e

GEORGE EIOT

28

isto pode ser muito bem demonstrado; eu mesmo, aliás, já o fiz. O fato

é que a razão humana pode levar-nos um pouco longe demais - e até a

ultrapassar os limites. A mim levou certa vez a uma razoável distância;

mas eu vi que não era por ali. Detive-me a tempo. Mas não de brusco.

Sempre fui a favor de um pouco de teoria: temos de ter o Pensamento;

senão, atiram-nos de volta à idade das trevas. Por falar em livros, aliás,

há a Guerra Peninsular de Southey", que estou lendo de uma sentada.

Conhece Southey?"

"Não," disse Mr. Casaubon, não acompanhando o passo da

impetuosa razão de Mr. Brooke e pensando apenas no livro. "Tenho

pouco tempo para este tipo de literatura agora. Ultimamente ando gas-

tando muito a vista sobre velhos caracteres; o fato é que preciso de um

leitor para minhas noites; mas sou muito exigente no tocante às vozes

e não consigo manter-me ouvindo um leitor imperfeito. Em certo sen-

tido, é um infortúnio: nutro-me demais das fontes interiores; vivo de-

mais com os mortos. Meu espírito é como o fantasma de uma pessoa

de outra época que perambula pelo mundo e tenta reconstruí-lo men-


talmente como um dia ele foi, a despeito das ruínas e perturbadoras

mudanças. Mas julgo necessário valer-me do máximo de cautela quan-

to à minha vista."

Era a primeira vez que Mr. Casaubon falava assim por mais tem-

po. Exprimiu-se com precisão, como se o houvessem chamado a fazer

um discurso em público; e a clareza, o equilíbrio, a cadência de sua

fala, acompanhada, de quando em quando, por um movimento com a

cabeça, sobressaíam ainda mais por seu contraste com a verbosidade

descosida do bom Mr. Brooke. Dorothea se disse que Mr. Casaubon

era o homem mais interessante que ela já tinha visto, não excetuan-

do nem mesmo Monsieur Liret, o clérigo de Vaudois que havia feito

conferências sobre a história dos waldenses.2 Reconstruir um mundo

passado, tendo em vista sem dúvida os mais altos objetivos da verda-

de, - que bom participar de um trabalho assim, dar-lhe, de alguma

forma, uma ajuda, mesmo que fosse somente segurando a luz! Tal

pensamento, que elevava, elevou-a de fato acima de seu agastamento

por ter visto ironizada sua ignorância em economia política, esta ci-

ência que, embora nunca explicada, erz lançada sobre todas as suas

luzes para extingui-las.

History of the Peninsular War (1823-1832), do poeta e ensaísta inglês Robert

Southey ( 1774-

1843), relato das lutas dos espanhóis contra Napoleão.

Seita do século XII que rejeitava a autoridade do papa e que, no século XVI,

aderiu aos

protestantes.

MIDDLEMARCH 29

"Pois então gosta de montar, não é, Miss Brooke?," Sir James en-

controu presentemente uma oportunidade para dizer. "Devo ter pensa-

do que também se interessaria um pouco pelos prazeres da caça. Se me

permitisse, gostaria de lhe mandar um cavalo castanho para a senhorita

experimentar. Foi treinado para uma dama. Pude vê-la no sábado, galo-
pando pelo morro num cavalo que era indigno de quem o montava. Meu

cavalariço trará o Corydon todos os dias aqui, basta que a senhorita

determine a que horas."

"Muito obrigada, o senhor é muito gentil. Mas eu pretendo desis-

tir de montar. Sim, não vou mais montar," disse Dorothea, impelida

a tão brusca resolução pelo pequeno incômodo que Sir James lhe cau-

sava solicitando sua atenção, quando ela queria dá-la toda a Mr.

Casaubon.

"Não, isto é um exagero," disse Sir James num tom de reprovação que

demonstrava forte interesse. "Sua irmã é dada à automortificação, não

é?" prosseguiu virando-se para Celia, que estava do seu lado direito.

`Elcho que é," disse Celia, temerosa de falar alguma coisa que desa-

gradasse à irmã, e enrubescendo da maneira mais bonita possível sobre

seu colar. "Ela gosta de desistir."

"Se isto fosse verdade, Celia, minha mania de desistir seria auto-

indulgência, e não automortificação. Mas deve haver boas razões para se

resolver não fazer o que é muito agradável," disse Dorothea.

Mr. Brooke estava falando ao mesmo tempo, mas era evidente que

Mr. Casaubon observava Dorothea, e ela tinha consciência disto.

"Exatamente," disse Sir James. A senhorita desiste por algum mo-

tivo elevado, generoso."

"Não, não exatamente. Eu não disse isto de mim mesma," respon-

deu Dorothea ruborizando-se. Ao contrário de Celia, raramente lhe

vinha o rubor à face, e quando vinha era só de raiva, ou por algum

supremo deleite. Neste momento ela sentia raiva do perverso Sir James.

Por que não dava ele atenção a Celia, não a deixava livre para ouvir Mr.

Casaubon? - Ah, se este homem tão culto pelo menos falasse, ao

invés de se permitir ser o alvo das falas de seu tio! Mr. Brooke, justa-

mente então, informava-lhe que ou a Reforma significara alguma coisa

ou não, que ele mesmo era um protestante convicto, mas que o catoli-
cismo era um fato; e, quanto à recusa de um acre de suas terras, por

parte de alguém, para uma capela católica, todos os homens necessita-

vam do freio da religião, que, propriamente falando, era o temor da

Vida Futura.

"Fiz certa vez um longo estudo da teologia," disse Mr. Brooke, como

GEORGE ELIOT

30

se explicasse seu enfoque recém-manifestado. "Conheço um pouco de

cada escola, e conheci Wilberforce" em seus melhores dias. O senhr

conhece Wilberforce?"

Mr. Casaubon disse: "Não."

"Bem, Wilberforce não chegou talvez a ser um grande pensador; mas

se eu viesse a ingressar no Parlamento, como já me foi sugerido, tomaria

assento no bloco independente, como fez Wilberforce, e iria dedicar-me

à filantropia."

Mr. Casaubon, inclinando-se, observou que era um campó muito vasto.

"Sim," disse Mr. Brooke com um leve sorriso, "mas eu tenho docu-

mentos. Faz um bom tempo que eu comecei a reunir documentos. Preci-

sam de arrumação, é fato; mas, sempre que uma questão me intrigava,

eu escrevia a alguém e obtinha resposta. Tenho documentos nos quais

me basear. A propósito, como o senhor arruma os seus documentos?"

"Em parte, nas papeleiras," disse Mr. Casaubon com um ar de esfor-

ço algo assustado.

"Ah, nas papeleiras não dá! Eu já tentei as papeleiras, mas nas

papeleiras tudo se mistura: nunca sei se um papel está no A ou no Z,."

"Gostaria, tio, que me deixasse organizar seus papéis para o senhor,"

disse Dorothea. "Eu marcaria todos eles com letras, e depois faria uma

lista de assuntos sob cada letra."

Mr. Casaubon deu um grave sorriso de aprovação e disse para Mr.

Brooke: "O senhor, como vê, tem à mão uma excelente secretária."

"Não, não," disse Mr. Brooke balançando a cabeça. "Não posso dei-
xar que as senhoritas se metam com os meus documentos, porque elas

são muito avoadas."

Dorothea sentiu-se magoada. Mr. Casaubon ia pensar que seu tio

tinha alguma razão especial para manifestar esta opinião, quando na

mente dele, entre todos os outros fragmentos que lá se achavam, a ob-

servação jazia tão levemente quanto a asa quebrada de um inseto, e qfora

uma corrente casual que a impeliu a vir pousar sobre ela.

Quando as duas moças se encontravam sozinhas na sala de visieas,

Celia disse:

"Como Mr. Casaubon é feioso!"

"Celia! Ele é um dos homens de ar mais distinto que eu já vi. É

incrível como se parece com o retrato de Locke. Seus olhos têm as mes-

mas órbitas cavas."

William Wilberforce (1759-1833), político, filantropoe escritor religioso

inglês, palali, cie

causas como a abolião da escravidão e a reforma penal.

MIDDLEMARCH 31

"Locke também tinha aquelas duas manchas brancas com pêlos?"

"Creio que sim, quando pessoas de um certo tipo olhavam para ele!"

disse Dorothea, afastando-se um pouco.

"Mr. Casaubon é tão pálido!"

"Melhor. Suponho que sua admiração vá para um homem que tenha

a pele de um cochon de lait.""

"Dodo!" exclamou Celia, olhando surpresa ao derredor. "Nunca lhe

ouvi fazer uma comparação destas."

"Por que iria eu fazê-la, antes que a ocasião surgisse? É uma compa-

ração muito boa: a correspondência é perfeita."

Miss Brooke já se entregava claramente ao descontrole, como aliás

Celia pensou.

`Acho que você está irritada, Dorothea."


"O que é triste em você, Celia, é que você olha para os seres huma-

nos como se eles fossem apenas animais sob uma toalete, e nunca vê a

grande alma, no rosto de um homem."

"Mr. Casaubon tem uma grande alma?" Não faltava a Celia um to-

que de ingênua malícia.

"Sim, creio que tem," disse Dorothea com a própria voz da deci-

são. "Tudo que vejo nele corresponde ao seu panfleto sobre Cosmologia

Bíblica."

"Ele conversa muito pouco," disse Celia.

"Não tem com quem conversar."

Célia pensou com seus botões: "Dorothea despreza Sir James

Chettam; não creio que ela o aceitasse." A seu ver, era uma pena. Ela

nunca se havia enganado quanto ao objeto de interesse do baronete. Às

vezes refletira, com efeito, que Dodo talvez nunca fizesse um marido

feliz, se ele não compartilhasse sua própria maneira de encarar as coisas;

e sufocado nas profundezas de seu coração estava o sentimento de que

sua irmã era religiosa demais para o conforto familiar. As noções e escrú-

pulos eram como agulhas esparramadas, infundindo no próximo o medo

de pisar no chão, de sentar-se ou mesmo de comer.

Quando Miss Brooke estava à mesa do chá, Sir James veio sentar-

se a seu lado, não tendo achado de forma alguma ofensivo o modo

como ela lhe respondera. Por que deveria? Julgou provável que Miss

Brooke gostasse dele, e os modos, com efeito, devem ser bem observa-

dos antes que parem de ser interpretados por concepções prévias, quer

confiantes, quer suspeitosas. Ela o tratou com toda a delicadeza, mas

Em francês no original: "leitão."

32 GEORGE ELIOT

claro está que ele teorizou um pouco sobre a ligação que almejava.

Tinha o raro mérito, feito que era de excetente mistura humana, de

saber que sua índole, mesmo largada ao descontrole, jamais colocaria

em turbulência as águas de um arroio tranqüilo: convinha-lhe portanto


a perspectiva de uma esposa à qual pudesse dizer "O que devemos

fazer?" sobre isto ou aquilo; a qual ajudasse com razões seu marido,

não deixando de estar, para tanto, altamente qualificada. No tocante à

excessiva religiosidade alegada contra Miss Brooke, ele tinha uma no-

ção muito indefinida daquilo em que consistia, e pensava que acabaria

por desaparecer com o casamento. Em suma, sentia-se em estado de

amor no lugar certo, e pronto para suportar a boa dose de predominãn-

cia que, afinal de contas, um homem sempre podia pôr por terra, quan-

do o desejasse. Sir James não tinha a menor idéia se algum dia quere-

ria pôr por terra a predominãoncia desta moça tão linda, com cuja viva-

cidade mental ele se deleítava. E por que não? A cabeça de um homem

- o que disso existe - sempre tem a vantagem de ser masculina -

como a menor bétula é de típo melhor que a maís esguia palmeira - e

até mesmo sua ignorância é de superior qualidade. Sir James pode não

ter dado origem a esta estimativa; mas a benevolente Providência for-

nece à personalidade mais claudicante um pouco de amido ou de goma

em forma de tradição.

"Resta-me a esperança de que venha a modificar sua resolução quanto

ao cavalo, Miss Brooke," disse o admirador perseverante. "Garanto-lhe

que montar ë o mais saudável dos exercícios."

"Sei disto," disse Dorothea com bastante frieza. "Acho que faria bem

a Celia - se ela se animasse a aderir."

"Mas a senhorita é uma perfeita amazona."

"Não é bem assim; tenho praticado pouco, e facilmente seria der-

rubada."

"Uma razão a mais para praticar. Todas as damas devem ser perfei-

tas amazonas, para que possam acompanhar seus maridos."

"Veja só como divergimos, Sir James. Eu já cheguei à concIusão de

que não devo ser uma perfeita amazona, e assim nunca corresponderia a

seu modelo de dama." Dorothea olhou reto para a frente e falou com fria
brusquidez, e com muito do ar de um rapaz bonito, em divertido con-

traste com a amabilidade solícita de seu admirador.

"Gostaria de conhecer suas razões para esta resolução tão cruel. Não

é possível que julgue que montar a cavalo está errado."

"É perfeitamente possível que o julgue errado para mim."

"Oh, por quê?" disse Sir James num tom mais brando de protesto.

MIDDLEMARCH 33

Mr. Casaubon se aproximara da mesa, xícara de chá na mão, e estava

ouvindo.

"Não devemos inquirir pelos motivos com curiosidade excessiva,"

interpôs ele a seu modo ponderado. "Miss Brooke sabe que é comum,

na expressão oral, eles se enfraquecerem: o aroma se mistura ao ar mais

impuro. Devemos manter longe da luz o grão que está germinando."

Dorothea corou-se de prazer e olhou agradecida para quem falava.

Ali estava um homem capaz de compreender a elevação da vida interior,

e com quem poderia haver alguma comunhão espiritual; e não só isto -

que poderia esclarecer os princípios com o conhecimento mais vasto:

um homem cuja erudição já era quase uma prova de tudo aquilo em que

ele acreditava!

As inferências de Dorothea podem parecer magnãonimas; mas real-

mente a vida jamais teria prosseguido, em qualquer período, se não fos-

se essa permissão liberal de conclusões que tem facilitado o casamento

sob as dificuldades da civilização. Alguém já pôde por acaso pinçar em

sua pequenez pilular a teia das aproximações pré-matrimoniais?

"Certamente," disse o bom Sir James. "Miss Brooke não será insta-

da a dar razões sobre as quais prefira guardar silêncio. Estou certo de

que suas razões só lhe fariam honra."

Não estava nem um pouco enciumado pelo interesse com o qual

Dorothea havia olhado para Mr. Casaubon: nunca lhe ocorrera que uma

moça a quem ele considerava fazer uma proposta de casamento pudesse

ligar para um rato-de-biblioteca sem sangue e já quase cinqüentão, a


não ser, de fato, de um modo por assim dizer religioso, como um clérigo

de certa distinção.

Contudo, já estando Miss Brooke entregue a uma conversa com

Mr. Casaubon sobre a clerezia de Vaudois, Sir James endereçou-se a

Celia, e com ela se entreteve sobre sua irmâ; falou de uma casa na

cidade, e perguntou se Miss Brooke desgostava de Londres. Longe da

irmã, Celia se exprimiu à vontade, e Sir James se disse que esta segun-

da Miss Brooke era decerto muito agradável, além de ser bem bonita,

embora não fosse, como pretendiam alguns, mais inteligente e sensata

que a irmã mais velha. Ele achava que havia escolhido a que, sob todos

os aspectos, era superior; e naturalmente um homem gosta de olhar à

frente para ter o melhor. O homem solteiro que fingisse não levar isto

em conta seria o próprio Mawworm.l

Personagem falsamente piedoso da peGa The Hypocrite (1769), de Isaac

Bickerstaffe.

CAPÍTULO III

"Say, goddess, what ensued, when Raphaël,

The affable archangel...

Eve

The story heard attentive, and was filled

With admiration, and deep muse, to hear

Of things so high and strange."

MILTON, Paradise Lost.

("Diz, ó deusa, o que se deu, quando Rafael,

O arcanjo afável...

Eva

A história ouviu atenta e se encheu

De admiração, e cisma funda, ao saber

De coisas tão elevadas e estranhas.")

MILTON, Paraíso perdido.


SE REALMENTE OCORRERA a Mr. Casaubon pensar em Miss Brooke como

uma esposa adequada para ele, as razões que poderiam induzi-la a aceitá-

lo já estavam plantadas em sua mente, e na noite do dia seguinte já

haviam dado botões e florido. Pois os dois tinham, pela manhã, tido

uma longa conversa, enquanta Celia, a quem não agradava a companhia

da palidez e das manchas de Mr. Casaubon, escapava para ir brincar no

vicariato com os filhos mal calçados, porém divertidos, do coadjut.or.

Dorothea a essa altura já havía olhado bem fundo no imensurável

reservatório da mente de Mr. Casaubon, aí vendo refletidas, em vaga f

labiríntica extensão, todas as qualidades que ela própria trazia; a elf

havia revelado bons trechos de sua experiência pessoal, assim cono delc

captara o escopo de seu grande trabalho, que era também de atraentE

MIDDLEMARCH 35

extensão labiríntica. Pois ele fora tão instrutivo quanto o "arcanjo afá-

vel" de Milton; e com algo das maneiras angelicais lhe dissera como se

havia consagrado a mostrar (o que de fato já tinham tentado antes, mas

não com a mesma profundidade, justeza de comparação e eficiência

compositiva que Mr. Casaubon pretendia) que todos os sistemas míticos

ou fragmentos míticos a errar pelo mundo eram corrupções de uma tra-

dição originalmente revelada. Uma vez dominada a posição verdadeira,

e assentado aí um pé firme, o vasto campo das construções míticas tor-

nava-se inteligível, quando não iluminado pela luz refletida das corres-

pondências. Mas ir à cata de frutos nesta grande colheita da verdade não

era trabalho leve nem rápido. Suas notas já se alongavam por uma res-

peitável coleção de volumes, mas a tarefa de coroamento seria condensar

esses resultados ainda em fase de acumulação e adequá-los, como as

primeiras safras de livros hipocráticos, a caber numa pequena prateleira.

Ao explicar isto para Dorothea, Mr Casaubon se expressara quase como

se estivesse em presença de um confrade de estudos, pois não dispunha

de dois estilos de falar: é verdade que, quando usou uma frase em grego
ou latim, deu sempre com escrupulosa atenção a tradução em inglês, o

que aliás provavelmente faria em qualquer caso. Um clérigo letrado de

provínciajá se acostumou a pensar nas pessoas com as quais se relacio-

na como "lordes, cavaleiros e outros homens nobres e dignos que não

sabem senão um acanhado latim.""

Dorothea sentiu-se de todo catívada pela enorme abrangência da con-

cepção. Aqui estava alguma coisa que não se resumia à superficialidade da

literatura da escola feminina: aqui estava um Bossuet vivo, cuja obra re-

conciliaria o conhecimento completo com a religiosidade devota; aqui es-

tava um Agostinho moderno que uniria as glórias do doutor e do santo.

A santidade não parecia menos marcada que a erudição, pois

Dorothea, ao ser impelida a abrir seu espírito sobre certos temas dos

quais não poderia falar com ninguém que já tivesse visto em Tipton,

particularmente a importância secundária das formas eclesiásticas e arti-

gos da fé em comparação com essa religião espiritual, essa submergência

do ser em comunhão com a Perfeição Divina que lhe parecia expressa

nos melhores livros cristãos das eras mais recuadas, encontrou em Mr.

Casaubon um ouvinte que a compreendeu de imediato, que lhe pôde

garantir sua concordância com esta opinião, quando devidamente tem-

perada de sensata conformidade, tendo além disso podido mencionar

exemplos históricos antes desconhecidos por ela.

Citação modificada do prólogo de Mandevílle"s Tiavels. lívro de ]ohn

Mandeville (m. em 1372).

GEORGE ELIOT

36

"Ele pensa como eu," disse Dorothea consigo mesma, "ou melhor,

pensa todo um mundo do qual meu pensamento não passa de um pobre

espelho ordinário. E seus sentimentos também, toda sua experiência -

que lago, em comparação com minhas pocinhas!"

Miss Brooke fundamentava-se em disposições e palavras sem vestí-

gios daquela hesitação tão comum às jovens de sua idade. Os signos são
pequenas coisas mensuráveis, mas suas interpretações são ilimitáveis, c

nas moças de natureza doce, ardente, todo signo tende a conjurar prodí

gios, crença, esperança, vasto como o céu e tingido por um bocado difusc

de matéria em forma de conhecimento. Nem sempre se enganam elas do

maneira grosseira; pois o próprio Sinbad pode ter dado, por sorte, corr

uma descrição verdadeira, e os raciocínios errôneos às vezes lançam po

bres mortais a conclusões corretas: partindo de uma longa distância do

ponto certo, e procedendo por voltas e ziguezagues, de quando em quan

do chegamos justamente aonde devemos estar. Como Miss Brooke fo

açodada em sua confiança, não ficou conseqüentemente claro se MI

Casaubon era indigno dela.

Ele se demorou um pouco mais do que pretendera de início, em fao

da leve pressão de um convite de Mr. Brooke, que outro chamariz não

lhe propôs senão os documentos que tinha sobre os quebra-quebras d

máquinas e a queima de medas.l Mr. Casaubon foi chamado à bibliotec

para ver tais documentos numa pilha, enquanto seu anfitrião pegava or

um ora outro e lia trechos em voz alta de modo saltitante e incertc

pulando de uma passagem inacabada a outra com um `Ah, sim, ma

aqui está!", e finalmente pondo a todos de lado para abrir o diário d

suas viagens quando jovem pelo Continente.

"Olhe aqui - aqui está tudo sobre a Grécia. Rhamnoús, as ruínas d

Ramnunte - agora o senhor é um grande grego. Não sei se já se deu a

estudo da topografia. Eu gastei um tempo infindo para escrever esta

coisas - Hélicon, veja. Aqui, veja! - `Partimos na manhã seguinte paI

o Parnasso, o Parnasso de duplo cume". Todo este volume é sobre

Grécia, sabe?," concluiu Mr. Brooke, correndo o polegar transversalmem

pela beirada das folhas, ao mostrar o livro.

Mr. Casaubon constituía uma audiência condigna, não obstante u

pouco triste; curvado no lugar certo, e evitando olhar, na medida c

possível, para tudo que fosse documentário, sem demonstrar impaciê


Alusão à quebra de máquinas por operários nas fábricas e à destruiGão de grãos

por lavrad

res, em protestos sociais generalizados na Inglaterra na época em que transcorre

a ação 

romance.

MIDDLEMARCH

37

cia nem desinteresse; pensando que um palavreado tão desconexo esta-

va associado com as instituições do país, e que o homem que o submetia

àquela grave confusão mental não só era um anfitrião atencioso, mas

também um proprietário de terras e custos rotulorum." Ou sua tolerância

foi favorecida também pela reflexão de que Mr. Brooke era o tio de

Dorothea?

Cada vez mais, sem dúvida, ele parecia inclinado a puxar conversa

com ela, a induzi-la a falar, como a própria Celia observou; e, ao olhar

para ela, era como um pálido raio de sol de inverno que um sorriso não

raro lhe iluminava o rosto. Antes de ir-se embora, no dia seguinte, e

enquanto dava uma agradável volta com Miss Brooke pelo terreiro de

cascalho, ele havia mencionado a ela as desvantagens da solidão que

sentia, a necessidade desse alegre companheirismo com o qual a presen-

ça da juventude pode atribuir mais variação e leveza aos graves instru-

mentos da maturidade. E fez esta declaração com a mesma precisão cau-

telosa de um enviado diplomático cujas palavras devessem ser ouvidas

com resultados. Com efeito, Mr. Casaubon não estava acostumado a

esperar que tivesse de repetir ou revisar seus comunicados de ordem

prática ou pessoal. Julgaria suficiente referir-se às inclinações que havia

deliberadamente exposto no dia 2 de outubro pela menção desta data; e

julgando pelos padrões de sua própria memória, que era um volume

onde um vide supra poderia evitar repetições, e não o ordinário e gasto

livro de apontamentos que só fala de escritas esquecidas. Mas neste

caso a con iança de Mr. C; " "


da, pois Dorothea ouviu 

resse de uma natureza jo

periência é uma época.

Eram três horas, con

Casaubon partiu de volta .

quilômetros de Tipton; e

se ao longo dos arbustos

pelo bosque adjacente se _

rande cão são-bernardo ios de

g 9

Surgira à sua frente a visã  ó a

eito pela

para si, e que com trêmu ., Q.  " bem-estar,

futuro visionário fosse vag ó.  tz a Providência.

no ar fresco, a cor afluiu-1

w o eição ue dantes

nossos contemporâneos pe

)uiz de paz, sob cuja guarda ficav,

o E

vida que, por breve

passadas onde, caso as

m registro que lhe possa

38 GEORGE EI.IOT

uma forma obsoleta de cesta) caiu um pouco para trás. Não sería ta(vez

caracterizá-la bem, caso omitíssemos que usava seu cabelo castanho bem

puxado e amarrado para trás com uma fita, de modo a expor-lhe o con-

torno da cabeça de um jeito audacioso, num tempo em que o gosto

público requeria que a pouquidão da natureza fosse dissimulada por

altas barricadas de cachos e ondas frisados, nunca ultrapassadas por


qualquer grande raça, exceto os habitantes das ilhas Fiji. Este era um

traço do ascetismo de Miss Brooke. Mas nada havia de uma expressão

ascética no brilho de seus olhos abertos enquanto ela fixava o caminho,

não vendo conscientemente, mas absorvendo na intensidade de seu es-

tado de espírito a solene glória da tarde com suas longas faixas de luz

por entre os renques de distantes tílias cujas sombras se tocavam umas

às outras.

Todas as pessoas, jovens ou velhas (isto é, todas as pessoas nesses

tempos ante-reformas), tomariam-na por ínteressante objeto se associas-

sem o brilho de seus olhos e faces às imagens comuns recém-despertas

do amor juvenil: as ilusões de Chloe sobre Strephon foram suficic:nte-

mente consagradas na poesia, como o encanto patético de toda confian-

ça espontânea deve ser. Miss Pippin adorando o jovem Pumpkin, e so-

nhando panoramas sem fim de um infatigável companheirismo, eis um

pequeno drama do qual nossos pais nunca se cansaram, e que foi intro-

duzido em toda a indumentária. Bastaria que Pumpkin tivesse uma figu-

ra capaz de demonstrar as desvantagens do fraque de cintura curta. para

que todos considerassem não só natural mas também necessário à per-

feição da feminilidade que uma doce menina, de imediato, se deixasse

convencer da virtude, da excepeional capacidade e, acima de tudo, da

erfeita sinceridade dele. Mas nenhuma pessoa então vivente - certa-

te ninguém nas vizinhanças de Tipton - talvez tivesse compreen-

es simpatia pelos sonhos de uma moça cujas noções sobre o casa-

coisa traíam totalmente sua cor de um entusiasmo exaltado sobre os

o Parna . um entusiasmo que era aclarado principalmente por seu

Grécia, sa que não incluía as belezuras do trousseau, nem a qualida-

pela beirada em mesmo as honras e doces alegrias da mulher madu-

Mr. Casaubo

pouco triste; curv

possível, para tudo

Alusão à quebra de máquinas po


res, em protestos sociais general,

romance.

i entrado na cabeça de Dorothea que Mr.

torná-la sua esposa, e a idéia de que viesse

numa espécie de gratidão reverente. Que bom

uase como se um mensageiro alado se

ro

beira de seu caminho e estendido a mão

tira oprimida pela indefinição que

MIDDLEMARCH

39

pairava em seu espírito, como uma bruma densa de verão, quanto ao

desejo que nutria de tornar sua própria vida grandemente eficaz. Que

poderia, que deveria ela fazer? - ela, que mal passava de uma mulher

desabrochando, porém já com uma consciência ativa e uma grande ne-

cessidade mental, incapaz de ser satisfeita por uma instrução para mo-

ças comparável às mordidinhas e juízos de um rato discursivo. Com al-

gumas prendas de estupidez e vaidade, talvez pensasse que uma jovem

cristã e de fortuna deveria encontrar seu ideal de vida em obras de cari-

dade na aldeia, no patrocínio do clero mais humilde, na leitura dos "Per-

sonagens Femininos da Escritura,"1 onde se expunha a experiência par-

ticular de Sara sob a Velha Dispensação, e a de Dorcas sob a Nova, e nos

cuidados de sua alma com seus bordados em seu próprio boudoir - ten-

do ao fundo uma perspectiva de casamento com um homem que, embo-

ra menos rigoroso que ela no tocante ao envolvimento em questões re-

ligiosamente inexplicáveis, podia ser objeto de orações e sazonalmente

exortado. Deste contentamento a pobre Dorothea estava livre. A inten-

sidade de sua inclinação religiosa, e a coerção que sobre toda sua vida

ela exercia, eram apenas um aspecto de uma natureza a um só tempo

ardente, teórica e intelectualmente conseqüente: e com uma tal nature-

za, que se debatia nas faixas de um ensino estreito, encurralada por uma
vida social que nada mais parecia a não ser um labirinto de corridas

tolas, um emaranhado de raias intramuros que jamais iam dar em parte

alguma, o resultado dece " "

exagero e incoerência. A

justificar pelo conhecim

pretensa de normas que

ainda gotejava nessa for

pudesse libertar da sua

dar-lhe a liberdade da su  , w  á.   w "

pelo verdadeiro caminhe .  w oró ., r"- o "

"vó a " " um

Aí então eu aprend

pela trilha de cavalos no

Chettam

eu pudesse auxiliá-lo m  G a r " "

a. a o gradaria.

banal em nossas vidas. , . ro  a "

mente as mais importan V    eu tio, disse

a em parte.

deria a ver a verdade pel "  s mulheres eram um

ram. E então saberia o q - o, em sua idade, acha-

era possível viver uma . , científicas sobre elas! Cá

"Female Scripture Characters (181:

enor chance que fosse.

há pressa - para você não há

GEORGE ELIOT

40

estou certa de agora estar fazendo o bem de algum modo: tudo parece

ser como partir em missão junto a um povo cuja língua eu não sei; - a

não ser que esta missão fosse a construção de casas populares condignas
- sobre o que não pode haver dúvidas. Oh, eu desejaria ser capaz de

pôr todas as pessoas de Lowick em boas moradias! Vou desenhar o má-

ximo de plantas, enquanto ainda tenho tempo."

Bruscamente Dorothea surpreendeu-se em autocensura pelo modo

presunçoso como já estava contando com acontecimentos incertos, mas

foi poupada de qualquer esforço interior para mudar a direção de seus

pensamentos pelo aparecimento de um cavaleiro a galoe numa curva

do caminho. O cavalo castanho bem tratado e os dois belos setters não

podiam deixar dúvidas de que o cavaleiro era Sir James Chettam. Ele viu

Dorothea, pulou sem perda de tempo do cavalo e, tendo-o entregue ao

seu cavalariço, avançou para ela com uma coisa branca num braço, para

a qual os dois setters latiam no maior alvoroço.

"Que alegria encontrá-la, Miss Brooke," disse ele, erguendo o cha-

péu e pondo à mostra seu cabelo louro levemente ondeado. "Um encon-

tro que abreviou o prazer que eu pretendia encontrar."

Miss Brooke não gostou da interrupção. Este baronete polido, real-

mente um marido adequado para Celia, exagerava a necessidade de se

fazer agradável para a irmâ mais velha. Mesmo um cunhado em perspec-

tiva pode ser uma opressão, se estiver sempre a pressupor um entendi-

mento muito bom com você, e concordando até mesmo quando você o

contradiz. O pensamento de que ele cometera o erro de render homena-

gens a ela mesma não poderia tomar forma: toda a atividade mental de

Dorothea se esgotara em persuasões de outro tipo. Mas no momento

ele decididamente era um importuno, e seu aperto de mão foi bem

desagrável. Ela, corando de ter o gênio açodado, e muito, respondeu ao

cumprimento com uma certa soberba.

Sir James, interpretando-lhe aquela cor mais intensa do modo mais

gratificante para si mesmo, pensou que nunca tinha visto Miss Brooke

tão bonita assim.

"Trouxe-lhe um pequeno postulante," disse ele, "ou melhor, trouxe-

o para ver se ele será aprovado antes de sua postulação ser feita." F
mostrou a coisa branca que tinha embaixo do braço, que era um mimosc

cachorrinho maltês, um dos mais inocentes brinquedos da natureza.

"Dói-me ver estas criaturas que são criadas apenas como animais de

estimação," disse Dorothea, cuja opinião se ia formando neste exatc

momento (como às opiniões acontece) sob o calor da irritação.

"Oh, por quê?" disse Sir James, nisto que eles andavam à frente.

MIDDLEMARCH 41

"Creio que a estima dada a eles nunca os torna felizes. São seres

indefesos demais: suas vidas são muito frágeis. Uma doninha ou um

camundongo que cuidam de sua própria subsistência são mais interes-

santes. Inclino-me a pensar que os animais que nos rodeiam têm almas

um pouco como as nossas, e ou bem cuidam dos seus próprios negócios

de somenos ou bem são nossos companheiros, aqui como o Monk. Já

estas criaturas são parasitas."

"Fico muito contente em saber que não lhe agradam," disse o bom Sir

James. "Por mim também nunca os criaria, mas as mulheres em geral

gostam destes cachorrinhos malteses. Ei, John, aqui, leve o cachorro, sim?"

O cãozinho objetável, cujo nariz e olhos eram igualmente pretos e

expressivos, foi posto pois fora de cena, havendo Miss Brooke decidido

que era melhor ele nem ter vindo ao mundo. Mas ela achou que era

preciso explicar.

"O senhor não devejulgar os sentimentos de Celia pelos meus. Creio

que ela aprecia estes bichinhos. Certa vez teve um minúsculo terrier do

qual gostava muito. A mim ele fazia sofrer, pois eu tinha medo de esmagá-

lo nos pés. Não tenho a vista muito boa, sabe?"

"Tem sua própria opinião sobre tudo, Miss Brooke, e é sempre uma

boa opinião."

Que resposta era possível a um cumprimento tão tolo?

"Sabe, eu lhe invejo isto," disse Sir James, enquanto continuavam

andando no ritmo algo acelerado que Dorothea impunha.


"Não entendo muito bem o que quer dizer."

"Seu poder de formar uma opinião. Sou capaz de formar uma opi-

nião sobre as pessoas. Sei quando eu gosto das pessoas. Mas sobre ou-

tras coisas, sabe, freqüentemente tenho dificuldade em decidir. Ouvem-

se coisas muito sensatas ditas de lados opostos."

"Ou que parecem sensatas. Talvez nem sempre discriminemos entre

a sensatez e um disparate."

Dorothea sentiu que havia sido um pouco rude demaís.

"Exatamente," disse Sir James. "Mas a senhorita parece ter o poder

da discriminação."

"Pelo contrário, muitas vezes sou incapaz de decidir. Mas isto por

questão de ignorância. A conclusão correta está sempre lá, embora eu

não consiga enxergá-la."

"Creio que há poucos que pudessem enxergá-la mais prontamente.

Sabe, ainda ontem Lovegood me dizia que a melhor concepção do mun-

do de planta para casa popular é a sua - surpreendente numa jovem, no

entender dele. A senhorita teria um real genus, para lembrar a expressão

42 GEORGE ELIOT

que usou. E ele disse ser de seu desejo que Mr. Brooke construísse um

novo conjunto de casas, embora parecesse achar pouco provável que seu

tio concordasse com isto. Sabe que é uma das coisas que eu gostaria de

fazer - quero dizer, em minha própria propriedade? Eu ficaria tão con-

tente de executar esta sua planta, se ma mostrasse! Naturalmente é afun-

dar dinheiro; e é por isto que lhe fazem objeções. Os trabalhadores nun-

ca podem pagar um aluguel que corresponda. Mas, afinal de contas, vale

a pena fazer."

"Vale a pena sim! vale a pena mesmo," disse Dorothea com energia,

esquecendo-se de suas ligeiras irritações anteriores. `Achò que merece-

mos ser expulsos a chicotadas de nossas belas casas - todos nós que

deixamos os trabalhadores viverem nessas pocilgas que vemos à nossa

volta. A vida em casas populares poderia ser mais feliz que a nossa, se
elas fossem casas de verdade, adequadas a seres humanos dos quais

esperamos afeições e deveres."

"Mostrar-me-ia a senhorita sua planta?"

"Sim, certamente. Ouso dizer que tem muitas falhas. Mas eu exami-

nei todas as plantas de casas populares no livro de Loudon," e selecionei

o que aparentemente são as melhores coisas. Oh, que felicidade seria

criar o modelo por aqui! Penso que, ao invés de Lázaro no portão, deve-

ríamos pór as casínholas-pocilga fora do portão do parque."

Dorothea agora estava no auge da alegria. Sir James, como seu cunha-

do, construindo casas-modelo em sua propriedade, e depois, quem sabe,

outras sendo construídas em Lowick e, em imitação, cada vez mais nou-

tros lugares - seria como se o espírito de Oberlín2 tívesse passado sobre

as paróquias para tornar bela a vida da pobreza!

Sir James viu todas as plantas e levou uma consigo, para conversar a

respeito com Lovegood. Consigo levou também uma impressão compla-

cente de que ele andava fazendo grandes progressos na consideração em

que Miss Brooke o tínha. O cachorrinho maltês não foi of"erecido a Celia;

omissão na qual Dorothea pensou depois com surpresa; embora se res-

ponsabilizasse por isto. Ela estivera a absorver toda a atenção de Sir

James. Mas af nal era um alívio que não houvesse cachorrinhos para

pisar-se em cima.

Celia estava presente, quando as plantas foram examinadas, e ob-

servou a ilusão de Sir James. "Ele pensa que Dodo liga para ele, e ela sé

"]ohn C. Loudon (1783-1843), autor de manuais de agricultura e construções

rurais.

ZJohann Friedrich Oberlin (1740-1826), pastor luterano da Alsácia, conhecido por

sua dedicação

aos pobres.

MIDDLEMARCH 43

liga para suas plantas. No entanto, não estou certa de que ela o recusas-
se, se pensasse que ele a deixaria cuidar de tudo e pôr suas idéias todas

em prática. E quão pouco à vontade ficaria Sir James! Eu não agüento

essas idéias."

Entregar-se a este desagrado era um luxo particular de Celia. Não o

ousava confessar à irmã por uma declaração direta, pois isto seria o mes-

mo que abrir-se a uma demonstração de que ela estava de algum modo

em guerra contra toda a bondade. Mas, em oportunidades seguras, tinha

um método indireto de fazer sua sabedoria negativa falar a Dorothea e

chamá-la a descer de seu estado de espírito rapsódico lembrando-lhe

que as pessoas só estavam olhando, e não ouvindo. Celia não era impul-

siva: o que tinha a dizer sempre podia esperar, e sempre provinha dela

com a mesma uniformidade firme de um staccato. Quando as pessoas

falavam com energia e ênfase ela simplesmente observava suas

fisionomias e expressões. Nunca pôde compreender como pessoas bem

educadas se permitiam cantar e abrir a boca da maneira ridícula que é

requerida para este tipo de exercício vocal.

Não se passaram muitos dias antes de Mr. Casaubon fazer uma

visita matinal, durante a qual foi convidado de novo para jantar e pas-

sar a noite, na semana seguinte. Dorothea teve assim mais três conver-

sas com ele, e convenceu-se de que suas primeiras impressões eram

corretas. Ele era tudo o que de início ela o imaginara ser: qualquer

coisa que dizia, parecia espécime de alguma jazida, ou a inscrição na

porta de um museu que poderia dar acesso aos tesouros de idades

passadas; e esta confiança na saúde mental de Mr. Casaubon era ainda

mais profunda e mais atuante em sua inclinação porque agorajá estava

óbvio que as visitas que ele fazia eram por causa dela. Este homem

realizado condescendia em pensar numa mulher tão jovem e suportava

conversar com ela, não com absurdos cumprimentos, mas sim apelos à

sua compreensão e, às vezes, até com correções instrutivas. Que com-

panhia maravilhosa! Mr. Casaubon sequer parecia ter consciência de

que existissem banalidades, e nunca desfiava essa conversa oca que é a


dos homens fúteis, tão aceitável quanto um bolo de casamento há muito

tempo guardado e já com cheiro de armário. Falava daquilo pelo que

tinha interesse, se não ele ficava em silêncio, inclinando-se com triste

civilidade. Para Dorothea, havia nisto uma autenticidade adorável, e

uma abstinência religiosa da artificialidade que esgota a alma em es-

forços de fingimento. Pois pela elevação religiosa de Mr. Casaubon,

posto acima dela, tinha o mesmo reverente respeito que por sua erudi-

ção e intelecto. Ele assentia com as expressões de devoto sentimento

GEORGE EI.IOT

44

dela, e em geral com uma citação adequada; permitiu-se até dizer que

passara por alguns conflitos espirituais em sua juventude; Dorothea

viu que aqui, em suma, poderia contar com a simpatia e compreensão

de um guia. Num - e só num - de seus temas prediletos desapontou-

se. Mr. Casaubon aparentemente não se interessava pela construção

de casas populares e, como que colocando um padrão muito alto, des-

viou a conversa para a acomodação extremamente apertada que se

impunha nas moradias dos antigos egípeios. Quando se foi, aquele

desinteresse dele fez alojar-se em Dorothea certa agitação; e sua men-

te já estava exausta, de tantos argumentos provindos das variáveis con-

dições climáticas que modificam as necessidades humanas, e da reco-

nhecida crueldade dos déspotas pagãos. Não convinha instar com Mr.

Casaubon sobre tais argumentos, quando ele viesse outra vez? Refle-

tindo melhor ela se disse que era muita pretensão querer pedir-lhe

atenção para esse assunto; ele não se oporia a que ela se ocupasse

disso nos momentos de folga, como outras mulheres esperavam ocu-

par-se dos seus bordados e roupas, - não proibiria isso quando - e

Dorothea sentiu uma ponta de vergonha ao detectar em seu íntimo

tais especulações. Mas seu tio havia sido convidado para ir a Lowick e

lá passar uns dias: seria razoável supor que Mr. Casaubon apreciasse a

companhia de Mr. Brooke em si mesma, com ou sem documentos?


Entrementes este pequeno desapontamento fê-la deliciar-se ainda

mais com a disposição de Sir James Chettam. Pronto a erguer as dese-

jadas melhorias, ele passou a vir com muito mais freqüência que Mr.

Casaubon, e Dorothea deixou de achá-lo desagradável, posto que se

mostrasse tão cheio de bons propósitos; pois ele já havia discutido

com muita habilidade prática as estimativas de Lovegood, e era encan-

tadoramente dócil. Ela propôs construir duas casas para as quais trans-

ferir duas famílias de suas velhas choupanas, que então seriam

destruídas, de modo a que nos mesmos lugares se construíssem casas

novas. Sir James disse: "Exatamente," uma observação que ela rece-

beu muitíssimo bem.

Certamente esses homens que tinham tão poucas idéias espontâ-

neas poderiam ser membros muito úteis da sociedade sob uma boa

orientação feminina, se acaso dessem sorte ao escolher suas cunhadas!

É difícil dizer se havia ou não um pouco de premeditação na cegueira

permanente dela à possibilidade de que outra espécie de escolha esti-

vesse em questão em relação à sua pessoa. Mas sua vida estava agora

repleta de esperança e ação: ela não só ia pensando em seus planos,

como também baixando doutos volumes da biblioteca e lendo às pres-

MIDDLEMARCH

45

sas muitas coisas (a fim de ser um pouco menos ignorante ao conversar

com Mr. Casaubon), ao mesmo tempo em que era assaltada por

questionamentos de consciência quanto a estar exaltando além da conta

essas pobres ações e contemplando-as com aquela auto-satisfação que

era a sentença final da ignorância e da insensatez.

CAPÍTULO IV
"Ist Gent. Our deeds are fetters that we forge ourselves,

2nd Gent. Ay, truly: but I think it is the world

That brings the iron."

"1: Sr. Nossas ações são grilhões que nos forjamos.

2: Sr. Sim, verdade: mas eu acho que é o mundo

Que traz o ferro."t

"SIR JAMES PARECE decidido a fazer tudo o que você quiser," disse Celia,

enquanto elas voltavam de carrruagem para casa, após uma inspeção ac

novo local de construção.

"Ele é ótima pessoa, e mais sensato do que se poderia pensar," dissf

Dorothea irrefletidamente.

"Você quer dizer que ele tem cara de tolo?"

"Não, não," dísse Dorothea, recompondo-se e pousando a mão ns

irmâ um momento, "mas não fala igualmente bem de todos os assun

tos."

"Tendo a pensar que ninguém o faz, a não ser as pessoas desagradá

veis," disse Celia, com sua gabarolice costumeira. "Deve ser terrível vi

ver com gente assim. Já pensou só? no café da manhã, e sempre!"

Dorothea riu. "Oh, Kitty, você é uma criatura fantástica!" E pego

no queixo de Celia, predisposta agora a achá-la muito cativante e graci

osa - com tudo para ser doravante um querubim eterno e, se não foss

doutrinalmente errado dizer assim, pouco mais necessitada de salvação

do que um esquilo. "É claro que ninguém precisa estar falando bem

Esta e as demais epígrafes não identificadas que se seguem são de autoria da

própria Geort

Eliot.

MIDDLEMARCH

47

tempo todo. Só que as pessoas, quando tentam falar bem, revelam a

capacidade de suas mentes."

"Você quer dizer que Sir James tenta mas falha."


"Eu estava falando de modo geral. Mas por que ficar-me catequizando

sobre Sir James? Agradar-me não é o objetivo da vida dele."

"Oh, Dodo, você realmente acredita nisto?"

"Sem dúvida. Ele pensa em mim como uma futura irmã - e é tudo."

Dorothea nunca havia insinuado isto antes, esperando, por certa timi-

dez em tais casos que era comum às duas irmãs, que o assunto viesse a

ser suscitado por algum fato decisivo. Celia corou, mas disse logo:

"Por favor, não cometa mais este erro, Dodo. Outro dia a Tantripp

quando estava escovando meu cabelo, disse que o cavalariço de Sir James

tinha sabido pela criada de Mrs. Cadwallader que Sir James ia-se casar

com a mais velha das irmãs Brooke."

"Como você permite que a Tantripp lhe conte um boato destes,

Celia?" disse Dorothea, indignada, e com mais raiva ainda porque deta-

lhes que em sua memória estavam recolhidos ao sono eram despertados

agora pela indesejável revelação. "Você há de lhe ter feito perguntas. É

degradante!"

"Não vejo nada de mais em que a Tantripp se ponha a conversar

comigo. É melhor ouvir o que as pessoas dizem. Você bem sabe os erros

que comete por se agarrar às idéias. Estou certa de que Sir James preten-

de fazer-lhe uma proposta; e ele acredita que você o aceitará, principal-

mente porque em relação aos seus planos você já se mostrou tão satis-

feita com ele. E o titio também - sei que ele está contando com isto.

Todo mundo pode ver que Sir James está muito enamorado de você."

A revulsão no espírito de Dorothea foi tão forte e dolorosa que as

lágrimas brotaram e fluíram copiosamente. Seus diletos planos, todos

eles, tornaram-se uma só amargura, e com desgosto ela pensou na ilu-

são de Sir James julgando que ela o reconhecia como seu pretendente.

Por causa de Celia, sua aflição era maior ainda.

"Como ele pôde pensar nisto?" explodiu ela, a seu modo mais im-
petuoso. "Nunca me pus de acordo quanto a nada com ele, a não ser as

casinhas: antes, aliás, mal fui polida ao tratá-lo."

"É, mas tem estado tão contente com ele, desde então, que ele pas-

sou a se sentir muito seguro de que você está apaixonada por ele."

`Apaixonada por ele, Celia? Como você pode empregar expressões

tão odiosas assim?" disse Dorothea, no auge da exaltação.

`llto lá, Dorothea, suponho que o certo seja você estar apaixonada

pelo homem que aceitaria por marido."

48 GEORGE EL.IOT

"É uma ofensa à minha pessoa dizer que Sir James pudesse pensar

que eu estava apaixonada por ele. Além disso, não é a expressão correta

para o sentimento que eu deveria ter em relação ao homem que fosse

aceïtar como marido."

"Bem, sinto muito, por causa de Sir James. Achei que era bom dizer-

lhe isto, porque você já ia indo como sempre vai, nunca olhando muito

bem onde está, e pisando no lugar errado. Você sempre vê o que nin-

guém mais vê; é impossível satisfazê-la; e no entanto nunca vê o óbvio.

É o seu jeito de ser, Dodo." Algo decerto dava a Celia inusual coragem;

pois ela não poupava a irmâ, à qual ocasionalmente temià. Quem pode

dizer que justas críticas Murr, o gato, talvez esteja fazendo sobre nós,

seres de especulação maís ampla?

"Dói muito," disse Dorothea, sentindo-se açoitada. "Não posso mais

dedicar-me às casas. É preciso que eu seja descortês com ele. Devo di-

zer-lhe que não terei mais nada a ver com elas. Dói muito mesmo." Seus

olhos encheram-se outra vez de lágrimas.

"Espere um pouco. Pense nisto. Como você sabe, ele vai-se afastar

por um ou dois dias para ir visitar a irmâ dele. Não haverá mais ninguém

além de Lovegood." Celia não pôde deixar de enternecer-se. "Pobre

Dodo," prosseguiu num amistoso staccato. "É um duro golpe: sua distra-

ção favorita é desenhar plantas."

"Distrafão desenhar plantas! Vocé pensa que é apenas deste modo


infantíl que eu me preocupo com casas para os meus semelhantes? Pos-

so, sim, cometer erros. Como será alguém capaz dejamais fazer alguma

coisa nobremente cristã, vivendo entre pessoas com pensamentos tão

fúteis?"

Nada mais foi dito: Dorothea estava muito descontrolada para. recu-

perar a calma e mostrar por seu comportamento que admitia algum errc

de sua parte. Predispunha-se antes a acusar a intolerável estreiteza e 

consciência obtusa da sociedade ao redor: e Celia já não era mais c

querubim eterno, mas um espinho em seu espírito, uma incrédula frívo

la, pior do que qualquer presença desencorajadora na "Viagem do Pere

grino."" A distração de desenhar plantas! Que valia a vida - que grand

fé era possível quando todo o efeito das ações de uma pessoa podia se

reduzido a uma simplificação assim tão grosseira? Quando desceu d

carruagem, ela tinha os olhos vermelhos, as faces pálidas. Era a imager

do sofrimento, e seu tio, que a recebeu logo na entrada, só não se alai

mou porque Celia, por achar-se ao lado dela com ar tão belo e faceirc

"The Pilgrim"s Progress (1678), do escritor inglês ]ohn Bunyan (1628-1688).

MIDDLEMARCH 49

levou-o a concluir de imediato que as lágrimas de Dorothea tinham ori-

gem em sua religiosidade excessiva. Durante a ausência das moças ele

havia retornado de uma ida à cidade para cuidar de uma petição para o

indulto a um criminoso.

"Bem, minhas queridas," disse éle gentilmente quando elas foram

beijá-lo, "espero que nada de desagradável tenha acontecido enquanto

estive fora."

"Não, meu tio," disse Celia, "apenas fomos a Freshitt dar uma olha-

da nas casas. Pensávamos que estivesse de volta para o almoço."

"Passei por Lowick para almoçar - ah, é, vocês não sabiam que eu

viria por Lowick! E eu trouxe uns panfletos para você, Dorothea - na

biblioteca, sabe?; estão na mesa da biblioteca."


Foi como se uma corrente elétrica percorresse subitamente Dorothea,

transportando-a do desespero à expectativa. Eram panfletos sobre a Igreja

primitiva. E ela, desvencilhando-se da opressão de Sir James, Tantripp,

Celia, rumou direto à biblioteca. Celia foi para cima. Um recado ainda

reteve ali Mr. Brooke; ao retornar à biblioteca, ele encontrou Dorothea

sentada e já imersa num dos panfletos, que continha alguma anotação à

margem por Mr. Casaubon, - e absorvendo-o com a mesma intensida-

de com que teria absorvido o refrescante perfume de um buquê depois

de uma caminhada quente, seca, exaustiva.

Lá ia ela se afastando de Tipton e Freshitt, e de sua própria e triste

tendência a pisar no lugar errado, em seu caminho para a Nova Jerusalém.

Mr. Brooke sentou-se em sua poltrona, espichou as pernas para o

fogo, onde uns tições que haviam desabado esparramavam-se por entre

os cachorros numa prodigiosa massa de brilhantes partículas, e esfregou

as mãos levemente, olhando para Dorothea de um jeito que era muito

meigo, porém neutro e pachorrento também, como se nada de especial

ele tivesse a dizer. Dorothea fechou seu panfleto, tão logo se deu conta

da presença do tio, e levantou-se como se fosse sair. Ter-se-ia normal-

mente interessado pelas misericordiosas providências do tio em benefí-

cio do criminoso, mas sua recente agitação a deixara bem distraída.

"Eu voltei por Lowick, sabe," disse Mr. Brooke, não como se tivesse

alguma intenção de impedir-lhe a saída, mas aparentemente por causa

de sua costumeira tendência a dizer o que havia dito antes. Este princí-

pio fundamental da fala humana era ostensivamente demonstrado em

Mr. Brooke. `Almocei lá e vi a biblioteca de Casaubon e esse tipo de

coisa. Vem vindo aí um vento forte. Não quer sentar-se, querida? Você

parece estar com frio."

Dorothea sentiu-se muito inclinada a aceitar o convite. Às vezes,

50 GEORGE ELIOT

quando não se tornava exasperante, o jeito descansado de seu tío enca-

rar as coisas até que acalmava um pouco. Ela tirou o xale e o chapéu e se
sentou diante dele, feliz com o fogo, mas erguendo à guisa de tela suas

mãos tão bonitas, para proteger-se do brilho. Não eram finas, suas mãos,

nem pequenas; eram mãos femininas, matemais, poderosas. E ela pare-

cia mantê-las soerguidas em propiciação por seu desejo apaixonado de

saber e pensar, que nos meios inóspitos de Tipton e Freshitt tinha re-

dundado sornente em pranto e olhos vermelhos.

Veio-lhe então à lembrança o criminoso condenado. "Que notícias o

senhor trouxe do ladrão de ovelhas, titio?"

"Ah, o coitado do Bunch? - bem, tudo indica que não há como O

salvarmos - vão enforcá-lo."

Reprovação e compaixão se fundiram na expressão do rosto de

Dorothea.

"Enforcá-lo, sabe," disse Mr. Brooke com um resignado meneio.

"Pobre Romilly!" ele nos teria ajudado. Eu conhecia o Romilly. Casaubon

não conhecia o Romilly O Casaubon vive meio enterrado nos livros,

não é?"

"Quando um homem se dá a grandes estudos e está escrevendo uma

grande obra, deve naturalmente abster-se de um muito intenso conví-

vio. Como pode ele sair travando conhecimentos por aí?"

"É verdade. Mas o homem desanima, sabe? Eu também sempre fui

um celibatário, mas tenho uma tal disposição que nunca me entreguei

ao desânimo; meu destino foi sempre rodar por toda parte e provar de

tudo. Nunca me entreguei ao desânimo: mas vejo que Casaubon se en-

trega, sabe? Ele precisa de uma companheira - uma companheira, sabe?"

"Seria uma grande honra para qualquer uma ser sua companheira "

disse Dorothea, com muita energia.

"Você gosta dele, não é?" disse Mr. Brooke, sem demonstrar surpre-

sa ou qualquer outra emoção. "Bem, eu conheço o Casaubon há dez

anos, desde que ele veio para Lowick. Mas nunca consegui extrair-lhe

nada -nenhuma idéia, sabe? No entanto é um homem destacado e que

ainda pode ser bispo - esse tipo de coisa, sabe, se Peel continuar nc
cargo. E ele pensa muito bem de você, querida."

Dorothea nem conseguia falar.

`H verdade é que ele pensa muitíssimo bem a seu respeito. E comc

fala incomumente bem - o Casaubon! Alongou-se comigo sobre su

"Sír Samuel Romílly (1757-l818), polítíco ínglës que se empenhou pela reforma da

legíslação

criminal.

MIDDLEMARCH S1

menoridade, e eu, em suma, prometi que ia falar com você, se bem lhe

dissesse que a meu ver não havia muitas chances. Fui obrigado a dizer-

lhe isto. Disse, minha sobrinha é muito jovem, e esse tipo de coisa. Mas

não achei necessário entrar em grandes detalhes. Enfim, para encurtar a

conversa, o fato é que ele me pediu permissão para fazer a você uma

proposta de casamento - de casamento, sabe," disse Mr. Brooke, com

seu meneio explanatório de cabeça. "Achei que era melhor lhe dizer,

minha querida."

Ninguém teria detectado a menor ansiedade nos modos de Mr.

Brooke, mas realmente ele queria saber alguma coisa do que a sobrinha

pensava, para que, havendo necessidade de eventuais conselhos, pudes-

se dá-los a tempo. Era genuinamente bondoso o sentimento ao qual,

como magistrado que absorvera tantas idéias, ele podia dar espaço. Não

tendo Dorothea falado logo, Mr. Brooke repetiu: `Achei que era melhor

lhe dizer, minha querida."

"Muito obrigada, meu tio", disse Dorothea, num tom claro e sem

hesitação. "Fico muito agradecida a Mr. Casaubon. Se ele me fizer um

pedido, eu o aceitarei. Admiro-o e respeito-o mais que a qualquer ho-

mem que já conheci."

Mr. Brooke fez uma ligeira pausa, antes de dizer em voz baixa, alon-

gando-se ao máximo: `E1h?... Bem! Ele é um bom partido, sob certos

aspectos. Mas, pensando bem, Chettam também é um bom partido. E


nossas terras se limitam. Nunca hei de interferir com sua vontade, mi-

nha querida. As pessoas devem decidir por si mesmas em relação ao

casamento, e esse tipo de coisa - mas até um certo ponto, não é mes-

mo? Eu sempre disse isto, até um certo ponto. Quero é que você se case

bem; e tenho boas razões para crer que Chettam quer-se casar com você.

É uma hipótese, sabe?"

"Impossível que algum dia eu me torne esposa de Sir James Chettam,"

disse Dorothea. "Se ele pensa em se casar comigo, está cometendo um

grande erro."

`Aí é que está. A gente sempre se engana. A meu modo de ver Chettam

seria justamente o tipo de homem de que uma mulher se agradaria."

"Peço não mencioná-lo de novo sob este prisma, meu tio," disse

Dorothea, sentindo que sua recente irritação já revivia em parte.

Mr. Brooke, surpreso, sentiu por sua vez que as mulheres eram um

tema inesgotável de estudo, já que nem ele mesmo, em sua idade, acha-

va-se numa situação perfeita para predições científicas sobre elas! Cá

estava um homem como Chettam sem a menor chance que fosse.

"Bem, mas Casaubon, vejamos. Não há pressa - para você não há

52 GEoRcE ELtoT

pressa. Cada ano há de pesar mais um pouco sobre ele, não é? Como

você sabe, ele já passa dos quarenta e cinco. Eu diria que é bem uns

vinte e sete anos mais velho do que você. Sem dúvida, - se você gosta

de erudição e prestígio, e esse tipo de coisa, não podemos ter tudo. E a

situação financeira dele é boa - ele tem uma bela propriedade indepen-

dente da Igreja - tem uma boa renda. Só que não é mais jovem e, não

convém que eu o oculte de você, querida, penso que a saúde dele não é

Iá das melhores. Nada mais há que eu saiba contra ele."

"Eu não gostaria de ter um marido mais ou menos da mesma idade

que eu," disse Dorothea, com grave decisão. "Gostaria de um marido

que estivesse acima de mim pelos conhecirnentos gerais e a capacidade

de julgamento."
Mr. Brooke repetiu seu controlado "f1h? - Eu pensava que você

tivesse mais opiniões próprias do que a maioria das moças. Pensava que

você prezasse mais suas próprias opiniões - que tivesse mais apreço

por elas, sabe?"

"Não consigo imaginar-me vivendo sem algumas opiniões, mas gos-

taria de ter boas razões para tê-las, e um homem sábio poderia ajudar-

me a ver que opiniões têm o melhor fundamento, ajudando-me também

a viver de acordo com elas."

"É verdade. Você não poderia colocar melhor a questão - não po-

deria, antecipadamente, colocá-la melhor Mas as coisas são muito es-

tranhas, sabe," prosseguiu Mr. Brooke, cuja consciência estava realmen-

te determinada a levá-lo a fazer o melhor possível para sua sobrinha,

nesta ocasíão. "E1 vida não está vazada num molde - não se traça por

Iinhas, nem por normas, e esse tipo de coisa. Eu mesmo nunca me casei,

e isto será até melhor para você e seu futuro marido. O fato é que eu

nunca amei ninguém bastante para me pôr, por sua causa, neste laço.

Porque é um laço, não é? Veja bem, há o gênio, a questão do gênio - e

um marido gosta de ser o mestre."

"Sei que devo contar com desafos, meu tio. O casamento impõe

grandes obrigações. Nunca o encarei como uma simples questão de con-

forto pessoal," disse Dorothea.

"Bem, você não é dada à ostentação, não liga para bailes, jantares,

uma casa suntuosa, esse tipo de coisa. Vejo que o modo de vida de

Casaubon talvez combine mais com você que o de Chettam. Decida pois

como quíser, mínha querïda. Eu jamaís críaria obstáculos para Casaubon;

fui logo dizendo isto; pois nunca se sabe como as coisas vão acabar. Você

não tem os mesmos gostos que as moças costumam ter; e um religioso e

intelectual - que pode até vir a ser bispo - esse tipo de coisa - talve

MIDDLEMARCH 53

combine mais com você. Chettam é um bom sujeito, tem um bom cora-
ção, como você sabe; mas não é muito chegado às idéias. Eu, quando

tinha a idade dele, era. Agora a vista de Casaubon, não sei não. Acho

que ele a estragou de tantas leituras.

"Eu ficaria ainda mais feliz, tio, quanto mais razões houvesse para

ajudá-lo," disse Dorothea com ardor."

"Você já tem sua decisão tomada, pelo que estou vendo. Bem, que-

rida, o fato é que eu tenho uma carta para você aqui no bolso." Mr.

Brooke entregou a carta a Dorothea e, nisto que ela se levantava para

sair, acrescentou: "Não é preciso se precipitar, querida. Pense bem sobre

isto, não é?"

Quando Dorothea o deixou, ele refletiu que sem dúvida fora muito

duro ao falar: colocara-lhe os riscos do casamento de maneira muito

alarmante. Mas era de seu dever fazê-lo. Quanto às pretensões de ser

sensato para com os jovens, - nenhum tio, por mais que tivesse viajado

na juventude, absorvido as novas idéias e jantado com celebridades já

falecidas, podia ter a pretensão de saber que tipo de casamento daria

eventualmente certo para uma moça que preferia Casaubon a Chettam.

Em suma, a mulher era um problema que, posto que a mente de Mr

Brooke se sentisse incapaz diante dele, não podia ser menos complicado

que as revoluções de um sólido irregular.

CAPITULO V

"Hard students are commonly troubled with gowts, catàrrhs,

rheums, cachexia, bradypepsia, bad eyes, stone, and collick,

crudities, oppilations, vertigo, winds, consumptions, and

all such diseases as come by over-much sitting: they are

most part lean, dry, ill-coloured... and all through

immoderate pains and extraordinary studies. If you will not

belíeve the truth of thís, look upon great Tostatus and Tho-

mas Aquinas" works; and tell me whether those men took


pains."

- BURTON, Anatomy of Melancholy.

("Os que estudam muito são comumente incomodados por

gota, gripes, dores reumáticas, caquexia, bradipepsia, vista

má, cálculos e cólicas, cruezas, opilações, vertigem, flatu-

lência, tísica pulmonar e todas essas doenças que proce-

dem do manter-se demasiadamente sentado: em sua maio-

ria eles são magros, chupados, descorados... e tudo em vir-

tude de esforços imoderados e extraordinários estudos. Se

você não quiser acredítar na verdade dísto, veja as obras do

grande Tóstato e de Tomás de Aquino; e diga-me então se

não foi grande o esforço que estes homens fizeram.")

- BURTON, Anatomia da melaneolia.

EsTA ERA A carta de Mr. Casaubon:

ESTIMADA MISS BROOKE, - É com a permissão de seu tutor que

lhe escrevo sobre um tema que me ocupa como nenhum outro o

coração. Acredito não estar enganado ao reconhecer alguma cor-

MIDDLEMARCH

respondência mais profunda que a de datas no fato de uma cons-

ciência de necessidade em minha própria vida ter surgido con-

temporaneamente à possibilidade de eu travar relações com a Se-

nhorita. Pois na primeira hora em que a vi, tive a impressão de sua

eminente e quiçá exclusiva adequação a preencher tal necessidade

(vinculada, devo dizer, a uma atividade das afeições que nem mes-

mo as preocupações de um trabalho muito especial para ser aban-

donado poderia ininterruptamente dissimular); e cada sucessiva

oportunidade de observação deu à impressão profundidade ainda

maior, convencendo-me mais enfaticamente daquela adequação que

eu havia preconcebido, e assim evocando de modo mais decisivo as

afeições às quais somente agora me refiro. Nossas conversas, pen-


so, deixaram-lhe suficientemente claro o teor de minha vida e pro-

pósitos: um teor inadequado, sei muito bem, à ordem mais co-

mum das mentes. Mas em sua pessoa eu discerni uma elevação de

pensamento e uma capacidade de devoção que até então não me

ocorrera ser compatível nem com a primeira floração dajuventude

nem com estes encantos do sexo dos quais se pode dizer que ao

mesmo tempo conquistam e conferem distinção quando combina-

dos, como notavelmente estão na Senhorita, com as qualidades

mentais acima indicadas. Estava além de minha esperança, confes-

so, encontrar esta rara combinação de elementos tão atraentes

quanto sólidos, adaptados a fornecer ajuda nos labores mais gra-

ves e a aspergir suas graças sobre as horas de ócio; e, não fosse o

fato de minha apresentação à Senhorita (que, permita-me dizê-lo

outra vez, não creio ser superficialmente coincidente com necessi-

dades prefiguradas, mas sim provídencialmente relacionada a elas

como etapas voltadas para a consecução de um plano de vida),

presumivelmente eu deveria continuar até o fim sem qualquer ten-

tativa de buscar numa união matrimonial um alívio para a solidão

que me oprime.

Tal é, estimada Miss Brooke, a declaração acurada dos meus

sentimentos; e é confiante em sua plena indulgência que me aven-

turo a perguntar-lhe agora o quanto hão de ser os seus próprios de

natureza a confirmar meu feliz pressentimento. Ser aceito pela

Senhorita como seu marido e guardião terreno de seu bem-estar,

eis o que eu consideraria a mais alta das dádivas da Providência.

Em retorno posso oferecer-lhe ao menos uma afeição que dantes

nunca se gastou e a fiel consagração de uma vida que, por breve

que venha a ser ao depois, não tem páginas passadas onde, caso as

queira virar, a Senhorita encontre algum registro que lhe possa

55

56 GEORGE ELIOT
eventualmente causar grande desgosto ou vergonha. Aguardo a

expressão de seus sentimentos com uma ansiedade que competi-

ria à sabedoria (se ela fosse possível) distrair com um labor mais

árduo que o costumeiro. Mas nesta ordem de experiência ainda

sou jovem, e na expectativa de uma possibilidade desfavorável não

posso senão sentir que a resignação à solitude há de ser mais

difícil após a temporária iluminação da esperança. Em qualquer

dos casos, afianço-lhe a minha devoção mais sincera,

EDWARD CASAUBON.

Dorothea tremia enquanto leu esta carta; depois caiu de joelhos,

enterrou o rosto nas mãos e começou a chorar. Rezar não podia; sob o

ímpeto de uma solene emoção na qual os pensamentos se tornavam

vagos e as imagens flutuavam incertas, não podia senão lançar-se, com

uma sensação infantil de confiança, no regaço da consciência divina que

lhe amparava a própria. Permaneceu nesta atitude até a hora de se vestir

para o jantar.

Como poderia ocorrer-lhe examinar a carta, olhá-la criticamente como

uma declaração de amor? Toda sua alma foi possuída pelo fato de que

uma vida mais ampla estava a se abrir diante dela: era uma neófita a

ponto de ingressar num grau mais alto de iniciação. Teria de ter espaço

para as energias que se revolviam intranqüilamente sob a obscuridade e

pressão de sua própria ignorância e o fútil mas peremptório caráter dos

hábitos do mundo.

Agora ela seria capaz de devotar-se a obrigações de vulto, contudo

bem definidas; ser-lhe-ia permitido agora viver continuamente à luz de

uma inteligência que ela podia reverenciar. A esta esperança se mesclava

decerto o brilho de um orgulhoso deleite - a alegre surpresa de uma

jovem ao ser escolhida pelo homem que sua própria admiração já esco-

lhera. Toda a paixão de Dorothea transfundia-se através de um espírito

que lutava por uma vida ideal; a radiância de sua meninice transfigurada

incidiu sobre o primeiro objeto que apareceu no mesmo nível que ela. O
ímpeto com o qual a inclinação se tornou resolução foi aumentado pelos

pequenos fatos do dia, que haviam despertado seu descontentamento

com as atuais condições de sua vida.

Depois do jantar, quando Celia estava tocando uma "ária com varia-

ções," frágil espécie de tintinamento que simbolizava a parte estética na

educação de uma moça, Dorothea subiu para o seu quarto a fim de res-

ponder a carta de Mr. Casaubon. Por que adiaria ela a resposta? Rees-

creveu-a três vezes, não porque quisesse mudar alguma palavra, mas

MIDDLEMARCH

57

porque sua mão estava incomumente trêmula, e não podia suportar a

idéia de Mr. Casaubon tomar por ilegível e má sua caligrafia. Obrigou-se

a escrever de um jeito em que cada letra era distinguível sem dar mar-

gem nenhuma a conjecturas, decidida a tirar todo o partido desta execu-

ção caprichada para poupar os olhos de Mr. Casaubon. Por três vezes

escreveu:

PREzADo MR. CAsAuBoN, - Agradeço-lhe imensamente por me

ter amor, e por julgar-me digna de ser sua esposa. Não posso con-

templar felicidade maior que a que se torne uma só com a do Se-

nhor Se eu mais dissesse, seria só a mesma coisa escrita de uma

forma alongada, pois não me posso agora deter em outro pensa-

mento senão o de que eu possa ser pela vida, devotadamente, sua

DOROTHEA BROOKE.

Mais tarde, na mesma noite, ela acompanhou seu tio à biblioteca

para entregar-lhe a carta, que ele poderia enviar pela manhâ. Mr. Brooke

surpreendeu-se, mas sua surpresa manifestou-se somente por uns pou-

cos momentos de silêncio, durante os quais ele remexeu em vários obje-

tos na sua escrivaninha, e finalmente se pôs de costas para o fogo, ócu-

los no nariz, olhando o endereço na carta de Dorothea.

"Pensou bem sobre isto, querida?" disse por fim.


"Não era preciso pensar muito, meu tio. Não sei de nada que me

faça vacilar. Se eu mudasse de idéia, só se fosse por alguma coisa impor-

tante e totalmente nova para mim."

`Ah! - então você o aceitou? Quer dizer que Chettam não tem mais

chances? Chettam magoou-a - ofendeu-a de alguma forma? Do que é

que você não gosta no Chettam?"

"Não há nada de que eu goste nele," disse Dorothea com certa im-

petuosidade.

Mr. Brooke jogou a cabeça e os ombros para trás, como se tivesse

sido atingido por uma arma de arremesso. Reprovando-se de imediato

um pouco, Dorothea disse:

Quero dizer, enquanto marido. Ele é muito bom, eu acho - real-

mente muito bom quanto às casas. Um homem de boas intenções."

"Mas você quer um intelectual, e esse tipo de coisa, não é? Bem, isto

tem um pouco a ver com nossa família. Eu mesmo tive isto - este amor

do conhecimento, este interessar-se por tudo - um pouco demais até

- que me levou muito longe; se bem que esse tipo de coisa não costu-

me ocorrer na linha feminina; a não ser que corra subterraneamente,

58 GEORGE EL fOT

como os rios na Grécia, sabe, - para aparecer nos filhos. Filhos brilhan-

tes, mães brilhantes. Certa época, fui a fundo nisto. Contudo, minha

querida, eu sempre disse que todo mundo deve fazer como bem quer

nestas coisas, mas até um certo ponto. Eu jamais poderia, como seu

tutor, concordar com um mau partido. Casaubon porém corresponde: é

boa a posição dele. Temo apenas que Chettam saia magoado, e Mrs.

Cadwallader há de jogar a culpa em mim."

Nesta noite, claro está, Celia nada soube do que havia ocorrido.

Atribuiu o ar ausente de Dorothea, e a evidência de mais choro desde

que elas voltaram para casa, ao descontrole que a dominara quanto a Sir

James Chettam e as construções, e tomou muito cuidado para não ofendê-

la ainda mais: tendo dito o que queria dizer, Celia não se dispunha a
retornar a assuntos desagradáveis. Quando criança, era de sua natureza

não brigar com ninguém - apenas observar com espanto que outros

brigavam com ela, ficando então parecidos com perus briguentos; quan-

to a ela, nestas circunstâncias, estava sempre disposta a brincar de cama-

de-gato, tão logo se recuperassem eles. Quanto a Dorothea, sempre fora

seu hábito achar algo de errado nas palavras da irmã, embora Celia se

garantisse intimamente ter dito todas as vezes apenas como as coisas

eram, e nada mais: nunca pôs nem poderia pôr em palavras coisas saídas

de sua própria cabeça. Mas o melhor em Dodo era ela não ficar zangada

por muito tempo com a irmã. Agora, se bem quase não se tivessem fala-

do durante a noite, quando Celia interrompeu seu trabalho, pretenden-

do ir para a cama, no que era sempre e com grande antecedência a pri-

meira, Dorothea, que estava sentada num tamborete baixo, incapaz de

outra ocupação que não suas meditações, disse, com a entonação musi-

cal que em momentos de sentimento profundo mas sereno dava à sua

fala um timbre de recitativo agradável:

"Celia, querida, venha dar-me um beijo," já de braços abertos ac

pronunciar esta frase.

Celia se ajoelhou, para ficar no mesmo nível, e deu-lhe uma ligeira

beijoca, enquanto Dorothea a envolvia nos seus braços gentis e grave

mente comprimia seus lábios nas bochechas da irmã, uma de cada vez

"Não fique acordada, Dodo, você hoje está tão pálida: vá para ;

cama cedo," disse Celia de um modo muito tranqüilo, sem nenhum to

que patético.

"Não, querida, eu estou muito, muito feliz," disse Dorothea con

ardor.

"Bem, melhor assim," pensou Celia. "Mas que estranho como Dod

passa de um extremo ao outro!"

MIDDLEMARCH

59
No dia seguinte, hora do almoço, o mordomo, entregando algo a Mr.

"

Brooke, disse: "Jonas já está de volta, senhor, e trouxe esta carta.

Mr. Brooke a leu e, com um meneio de cabeça para Dorothea, disse:

"Casaubon, querida: ele virá para o jantar; nem esperou para escrever

mais - nem esperou, sabe."

Que um convidado para ojantar fosse anunciado de antemão à irmâ

não poderia parecer a Celia nada extraordinário, mas, seguindo seus

olhos na mesma direção que os de seu tio, ela se impressionou com o

peculiar efeito da notícia sobre Dorothea. Foi como se alguma coisa se- ;

melhante ao reflexo de uma asa branca ensolarada tivesse passado por

seu semblante, culminando num de seus raros rubores. Pela primeira

vez veio à cabeça de Celia que entre Mr Casaubon e sua irmã poderia

haver algo mais que, de parte dele, o deleite em falar de livros e, de parte

dela, o deleite em ouvir Até então ela havia classificado a admiração por

este conhecido sabichão e "feioso" junto com a admiração por Monsieur

Liret em Lausannne, também feioso e sabichão. Dorothea nunca se can-

sava de ouvir o velho Monsieur Liret, quando o frio nos pés de Celia era

o pior possível e quando já se tornara realmente um horror ver o couro

de sua cabeça calva se mexendo na sala. Por que então o entusiasmo

dela não se estenderia a Mr Casaubon simplesmente do mesmo modo

como se endereçou a Monsieur Liret? Parecia provável, ademais, que

todos .os homens letrados lançassem para a juventude em geral uma

espécie de olhar de mestre-escola.

Mas Celia agora estava mesmo espantada com a surpresa que havia

despontado em seu íntimo. Raramente uma surpresa a abalava assim,

pois sua fantástica rapidez na observação de uma certa gama de sinais

geralmente a preparava para esperar os fatos por cujo desenrolar tinha

interesse. Não que agora ela já imaginasse Mr. Casaubon como um pre-

tendente aceito: apenas começara a sentir desgosto ante a possibilidade

de que algo na mente de Dorothea pudesse tender para tal desfecho.


Neste caso, teria realmente um motivo para se irritar com Dodo: tudo

bem que ela não aceitasse Sir James Chettam, mas que idéia se casar

com Mr. Casaubon! Celia sentiu uma espécie de vergonha, mesclada a

um senso do ridículo. Mas talvez Dodo, se de fato estivesse a se aproxi-

mar de uma extravagância dessas, pudesse ser desviada a tempo: a expe-

riência já demonstrara muitas vezes que se podia levar em conta sua

impressibilidade. O dia estava úmido, não sairiam pois para caminhar, e

assim foram ambas para o seu quarto de estar; e lá Celia observou que ,

Dorothea, ao invés de se entregar com seu diligente interesse costumei-

ro a alguma ocupação, limitava-se a apoiar o cotovelo num livro aberto

60 GEORGE ELIO

e a olhar pelajanela o grande cedro, com sua pátina de prata da chuva. 

própria Celia já se havia envolvido com a feitura de um brinquedo par

os filhos do coadjutor, e não ia precipitadamente adentrar-se por ne

nhum assunto.

De fato, Dorothea estava pensando que seria desejável para Celi

saber da momentosa mudança na posição de Mr. Casaubon desde qu

ele estivera em casa delas pela última vez: não parecia justo deixá-la n

ignorância do que necessariamente afetaria sua atitude para com eIE

mas era impossível não se retrair de contar-lhe tudo. Dorothea reprc

vou, nesta timidez, certa fraqueza sua: era-lhe sempre odioso dar-se

quaisquer pequenos medos ou maquïnações sobre suas ações, mas nes

te momento ela estava procurando a mais alta ajuda possível para pode

não temer a corrosividade da índole carnal da prosa de Celia. Seu deva

neio foi ínterrompido, e a dificuldade da decísão banida, pela vozính

bastante gutural de Celia, por cujo tom costumeiro se expressava um

observação paralela ou um "aliás."

"Vem mais alguém para jantar além de Mr. Casaubon?"

"Que eu saiba, não."

"Espero que haja mais alguém. Só assim não o ouvirei tomando


sopa daquele jeito."

"O que há de notável no jeito como eIe toma sopa?"

"Realmente, Dodo, será que você não ouve quando ele raspa a co

lher? E ele sempre pisca antes de falar Não sei se Locke também pisca

va, mas estou certa de que lamento a sorte dos que se sentavam em fac

dele, caso o fizesse."

"Celia," disse Dorothea com enfática gravidade, "por favor, não faç

mais observações deste tipo."

"Por que não? São pura verdade," retrucou Celia, que tinha su

razões para perseverar, embora já estivesse começando a ficar com m

pouco de medo.

"Muitas coisas são verdade que só as mentes mais comuns observam

"Pois então penso que as mentes mais comuns devem ser bem útei

Penso que é uma pena que a mâe de Mr. Casaubon não tivesse un

mente mais comum: poderia tê-lo educado melhor."

Alarmada por dentro, Celia estava pronta para correr, agora que a

remessara este dardo ríspido.

Já os sentimentos de Dorothea avolumaram-se em avalanche, tc

nando impossível qualquer ulterior preparo:

"É de meu dever dizer-lhe, Celia, que estou comprometida a r

casar com Mr. Casaubon."

MIDDLEMARCH 61

Nunca dantes Celia devia ter ficado tão pálida. Por mais um pouco o

boneco de papel que ela estava fazendo sairia com uma perna quebrada,

não fosse seu habitual cuidado com tudo o que tinha em mãos. Largou a

frágil figura, de imediato, na mesa e manteve-se totalmente imóvel por

alguns momentos. Quando falou, brotava-lhe uma primeira lágrima.

"Oh, Dodo, espero que você seja feliz." Seu carinho de irmã, nesta

hora, não podia senão se sobrepor a outros sentimentos, e seus receios

eram os receios do afeto.

Dorothea continuava ofendida e agitada.


"Então está decidido?" disse Celia num subtom temeroso. "E o tio

sabe?"

`Aceitei o pedido de Mr. Casaubon. Meu tio me trouxe a carta que o

continha; sabia de tudo antes."

"Perdoe-me, Dodo, se eu disse alguma coisa que lhe ofendeu," disse

Celia soluçante. Nunca teria imaginado que pudesse sentir-se num esta-

do desses. Havia em toda a questão algo funéreo, com Mr. Casaubon

dando a impressão de ser o sacerdote oficiante, sobre o qual não era

conveniente fazer observações.

"Não tem problema, Kitty, não se torture. Não devemos admirar nun-

ca as mesmas pessoas. Muitas vezes eu causo ofensas dessa ordem tam-

bém; inclino-me a falar com muito exagero dos que não me agradam."

A despeito desta magnanimidade, Dorothea ainda estava ferida: quer

pelo espanto refreado de Celia, quer por suas leves críticas. Naturalmen-

te todo o mundo ao redor de Tipton antipatizaria com este casamento.

Dorothea não sabia de ninguém que pensasse como ela sobre a vida e

seus melhores desígnios.

Todavia, antes de findar-se a noite ela estava muito feliz. Num tête-à-

tête de uma hora com Mr. Casaubon, conversou com ele com uma liber-

dade que nunca havia sentido previamente, deixando mesmo extravasar

sua alegria à idéia de lhe ser devotada e de aprender como melhor com-

partilhar e incentivar todos os grandes objetivos dele. Mr. Casaubon foi

atingido por um desconhecido prazer (que homem o não seria?) ante

este irreprimido ardor pueril: e não teve surpresa (que homem enamora-

do teria?) por ser ele o tomado como seu objeto.

"Minha estimada senhorita - Miss Brooke - Dorothea!" disse ele

apertando nas suas a mão dela, "nunca imaginei que uma felicidade des-

sas me estivesse reservada. Estava muito longe de mim, de fato, imagi-

nar que eu fosse alguma vez encontrar uma pessoa e uma alma tão rica
em prendas tão várias que pudesse tornar desejável o casamento. Sua

pessoa tem todas - não, mais que todas - as qualidades que sempre

62 GEORGE ELIO

contemplei como as excelências características da feminilidade. O gran

de encanto de seu sexo é esta capacidade de uma ardente afeição dE

quem se auto-sacrifica, na qual vemos sua adequação para coroar e com

pletar a existéncía do nosso. Até aquí conheci poucos prazeres, salvo o

de tipo mais estrito: minhas satisfações têm sido as do estudante

solitá-

rio. Pouco dispus-me a apanhar flores fadadas a murchar em minhas

próprias mãos, mas agora hei de as colher pressuroso, para as coloca

em seu peito."

Nenhum discurso teria sído maís profundamente honesto em sua

intenção: a frígida retórica, no fim, era tão sincera quantoo latido de

um

cão, ou os grasnidos de uma gralha amorosa. Não seria precipitado con

cluir que não havia paixão por trás desses sonetos a Delia", que no

comovem como a müsica terna de um bandolim?

A fé de Dorothea fornecia tudo o que as palavras de Mr. Casaubon

haviam aparentemente deixado de dizer: que convicto enxerga uma in-

felicidade ou omissão que incomoda? O texto, seja de profeta ou poeta,

expande-se pelo que lhe pode ser enxertado, e até sua má gramática É

sublime.

"Eu sou muito ignorante - há de espantar-se e não pouco com

minha ignorância," disse Dorothea. "Tenho muitas idéias que podem

estar totalmente equivocadas; e agora vou ser capaz de as colocar ao

senhor, e de inquiri-lo a respeito. Mas," ela acrescentou, rapidamente

imaginando o provâvel sentímento de Mr. Casaubon, "não o incomo-

darei em demasia; só quando estiver disposto a ouvir-me. Suponhe

que se sinta muitas vezes exausto com a pesquisa de temas em seu

próprio caminho. Já estarei ganhando muito se levar-me por ele err


sua companhia."

"Como poderei perseverar agora em qualquer caminho, sem conta

com você como companheira?" disse Mr. Casaubon, beijando a front

cândida da amada e sentindo que o céu lhe tinha concedido uma bên

ção que correspondia sob todos os aspectos às suas necessidades pac

ticulares. Ele estava sendo inconscientemente tragado pelos encanto

de uma natureza que era totalmente desprovída de cerebrações ocu"

tas, quer para efeitos imediatos, quer para fins remotos. Era isto o que

tornava Dorothea tão pueril e, segundo alguns juízes, tão tola, malgrad

toda sua reputação de inteligência; como, por exemplo, no present

caso de atirar-se, metaforicamente falando, aos pés de Mr. Casaubon

beijar-lhe, como se ele fosse um Papa protestante, os antíquado

"De autoria de Samuel Daniel (1562-t619).

MIDDLEMARCH

63

laçarotes dos sapatos. Ela não estava de modo algum ensinando Mr.

Casaubon a se perguntar se ele era realmente bom para ela, mas ape -

nas se perguntando, com ansiedade, como poderia ela ser realmente

boa para Mr. Casaubon. Antes de ele ir-se embora, no dia seguinte, foi

decidido que o casamento se realizaria em um mês e meio. Por que

não? A casa de Mr. Casaubon estava pronta. Não era um mero presbi-

tério, mas uma imponente mansão, com muita terra agregada. O pres-

bitério era habitado pelo coadjutor, que fazia todo o serviço, a não ser

pregar o sermão matinal.

CAPÍTULO VI

"My lady"s tongue is like the meadow blades

That cut you stroking them with ide hand.

Nice cutting is her funetion: she divides


With spírítual edge the millet-seed,

And makes intangible savings."

("Mínha dama tem a língua como folha que corta

Quem no campo a alisa com a mão descuidada.

Sua função é cortar bem: ela divide

Com seu gume espiritual o grão de painço

E faz reservas intangíveis.")

QUANDO IA SAINDO pela porteira, a carruagem de Mr. Casaubon barrou

a entrada de uma charrete com um pônei, conduzida por uma senhora

e levando, sentada atrás, uma criada. Era duvidoso que o conhecimen

to tivesse sido mútuo, pois Mr. Casaubon ficou olhando para a frentc

distraidamente; a senhora porém não perdeu tempo, olhou-o bem, lan

çou-lhe um cumprimento com a cabeça e um "Como tem passado 

senhor?" A despeito de seu chapeuzinho surrado e do xale indiam

muito velho, era claro que a guarda-porteira a tinha por important

personagem, pelo exagero da reverência com que seu pequeno fáeto

foi recebido à entrada.

"E então, Mrs. Fitchett, suas galinhas agora como estão botando?

disse a senhora de olhos negros, tez muito rubra, na expressão ma:

claramente cinzelada.

"Botando tão muito bem, madame, só que elas deram pra cumê c

ovos: eu num sossego mais com essas galinha."

"Que canibais! É melhor vendê-las logo barato. Por quanto as ve

MIDDLEMARCH 65

deria ao par? Galinhas de mau caráter, se o preço for alto, ninguém vai

querer comer."

"Bem, madame, meia-coroa: não posso deixar por menos."

"Meia-coroa nesta época! Espere lá - é para a canja do reitor num

domingo. As nossas de que eu podia dispor ele já consumiu todas. Com

o sermão, Mrs. Fitchett, não se esqueça de que a senhora já está paga


em parte. Fique com um casal de pombos por elas - umas gracinhas.

Apareça lá para vê-los. São de uma raça que vocês não têm no pombal."

"Bem, madame, Mestre Fitchett então é que vai ver esses pombos,

depois do trabalho. Ele é doido por uma novidade no assunto: pra agra-

dar a senhora."

"Agradar a mim! Pois vai ser a melhor barganha que ele já fez na

vida. Um casal de pombos volteadores de igreja por um par de galinhas

espanholas perversas que comem seus próprios ovos! Só espero é que a

senhora e Fitchett não se ponham a gabar-se muito depois!"

Com estas últimas palavras lá se foi o fáeton em frente, deixando

Mrs. Fitchett sorrindo e balançando lentamente a cabeça com um inter-

jetivo "Tá certo, tá certo!" - do qual se poderia inferir que aquela re-

gião rural lhe pareceria um pouco mais monótona se a esposa do reitor

tivesse a língua menos solta e não fosse assim tão sovina. Com efeito, os

agricultores e trabalhadores das paróquias de Freshitt e Tipton sentir-

se-iam atingidos por triste falta de assunto se não contassem com as

conversas sobre o que Mrs. Cadwallader tinha dito e feito: uma dama da

mais alta e imperscrutável linhagem, que descendia, por assim dizer, de

desconhecidos condes, tão imprecisos quanto a multidão de vultos he-

róicos - e que alegava pobreza, regateava nos preços e dizia graçolas na

maior camaradagem, mas com um modo de falar que logo dava a saber

quem ela era. Uma dama deste feitio conferia urbanidade tanto à posi-

ção social quanto à religião, e mitigava a amargura do dízimo que ainda

faltava pagar Outra personagem muito mais exemplar, com uma infusão

de dignidade azeda, teria sido menos útil à compreensão local dos Trinta

e Nove Artigos" e, socialmente, menos unificadora.

Mr. Brooke, que considerava os méritos de Mrs. Cadwallader de um

outro ponto de vista, franziu um pouco o sobrolho quando lhe anuncia-

ram seu nome, na biblioteca onde ele se sentava a sós.

"Vejo que o nosso Cícero de Lowick esteve aqui," disse ela, sentan-

do-se à vontade, jogando para trás seu agasalho e pondo à mostra uma
figura magra, mas bem feita. "Suspeito que o senhor e ele estejam tra-

A base da Igreja Anglicana, dada por lei elizabetana de 1563.

66 GFoRcE EI.roT

mando algum conchavo político, se não não estariam a ver-se tanto em

pessoa. Vou denunciá-los: lembre-se de que ambos se acham sob

suspeição desde que tomaram o lado de Peel na questão da Lei Católica.

Vou dizer a todo mundo que o senhor se candidatará por Middemarch,

alinhado com os liberais, quando o velho Pinkerton renunciar, e que

Casaubon vai ajudá-lo de uma maneira escusa: vai corromper os eleito-

res com panfletos, mantendo todos os bares abertos para distribuï-los.

Vamos, confesse!"

"Nada disto," disse Mr. Brooke, sorrindo e esfregando os ócuIos,

mas realmente meio sem jeito com a interrupção. "Casaubon e eu pouco

falamos de política. Ele não se interessa muito pelo lado filantrópico das

coisas; pelos maus tratos, e esse tipo de coisa. Só se interessa pelas

questões da Igreja. Não é esta a minha linha de ação, como sabe."

"Meu amigo, sei até bem demais! Eu tenho ouvido falar de suas prá-

ticas. Quem foi que vendeu seu pedacinho de terra para os apistas em

Middemarch? Creio que o senhor o comprou de propósito. E um perfei-

to Guy Faux. Cuidado para que o não queimem em efígie no próximo 5

de novembro." Humphrey não quis vir discutir o assunto com o senhor,

assim vim eu."

"Muito bem. Eu estava preparado para ser perseguido por não per-

seguir - por não perseguir, sabe?"

"Lá vai o senhor! Esta é uma boa lengalenga que já tem pronta para as

eleições. Mas não deixe que eles o aliciem para as eleições, meu caro Mr.

Brooke. Um homem sempre banca o bobo, quando está discursando: não

há desculpa senão estar do lado certo, e assim o senhor pode pedir uma

bênção até para a barulheira que faz. Mas o senhor há de perder-se, devo

adverti-lo. Há de fazer uma salada completa das opiniões de todos os


partidos políticos, e acabará sendo escorraçado por todos."

"É o que espero, sabe," disse Mr. Brooke, não querendo demonstrar

quão pouco lhe agradava esta encenação profética, - "o que eu espero

como um homem independente. Quanto aos liberais, um homem que

freqüenta os bons pensadores não se deixará levar por nenhum partido.

Pode ir junto com eles até um certo ponto - só até um certo ponto,

sabe? Mas é isto o que as senhoras, as mulheres, nunca compreendem."

"Onde fica este seu certo ponto? Não. Eu gostaria que me dissessem

como um homem pode ter um certo ponto qualquer quando ele não

pertence a partido algum - quando leva uma vida errante, sem nunca

"Nesta data, com fogueiras e queimas de efigies do personagem, celehra-se na

Grã-lirecanha

a revolta de Guy Faux (ou Fawkes), em 1605, contra as leis de repressão aos

católicos.

MIDDLEMARCH 67

permitir que os amigos saibam seu endereço. `Ninguém sabe onde vai

ficar Brooke - não se pode contar com Brooke"- isto é o que andam

dizendo a seu respeito, para ser bem franca. Pois bem, torne-se respeitá-

vel? Como poderá ir para as sessões, se todos o olharem desconfiados, e

o senhor estiver de bolso vazio mas com a consciência pesada?"

"Não me disponho a discutir política com uma senhora," disse Mr.

Brooke, com um ar de sorridente indiferença, embora se sentisse cons-

ciente, e com algum desagrado, de que este ataque de Mrs. Cadwallader

abrira a campanha defensiva à qual certos passos ousados o haviam

exposto. "Em seu sexo não há pensadores, sabe - varium et mutabile

semperl - esse tipo de coisa. Vocês não conhecem Virgílio. Eu conheci"

- Mr. Brooke refletiu a tempo que ele não travara conhecimento pes-

soal com o poeta augustano - "eu ia dizer o pobre Stoddart, sabe. Foi

ele quem disse isto. Vocês mulheres estão sempre contra uma atitude
independente - enquanto um homem só se preocupa com a verdade,

e esse tipo de coisa. Em nenhuma parte do país a opinião é mais estrei-

ta do que aqui - não tenho a intenção de atirar pedras, sabe, mas é

preciso que alguém assuma a lïnha independente; se não for eu, quem

será?"

"Quem? Bem, qualquer arrivista que não tenha berço nem posição.

Pessoas de gabarito deveriam consumir seus despropósitos independen-

tes em casa, e não alardeá-los em público. E logo o senhor! que está

para casar sua sobrinha, que é tão boa como se fosse uma filha, com um

dos nossos melhores homens. Seria um aborrecimento cruel para Sir

James: seria um golpe muito duro para ele se o senhor mudasse de posi-

ção agora e se tornasse um homem dos liberais."

Mr. Brooke outra vez estremeceu por dentro, pois ele havia pensa-

do, tão logo decidido o compromisso de Dorothea, na perspectiva dos

insultos de Mrs. Cadwallader. Seria fácil, para observadores ignorantes,

dizer: "Briga com Mrs. Cadwallader;" mas para onde irá um grão-senhor

do campo, se brigar com seus mais antigos vizinhos? Quem poderia sa-

borear o fino gosto do nome Brooke, se ele fosse fornecido casualmente,

como um vinho sem lacre? Certamente um homem só pode ser cosmo-

polita até um certo ponto.

"Espero que Chettam e eu sejamos sempre bons amigos; mas la-

mento dizer que não há hipótese de ele se casar com minha sobrinha "

disse Mr. Brooke, aliviado de ver pela janela que Celia vinha chegando.

de Virgílio (Eneida, 4:569): "Varium et mutabile semper femina" ("A mulher,

sempre

e inconstante").

68

GEORGE ELIOT

"Por que não?" disse Mrs. Cadwallader, com uma nota aguda de
surpresa. "Há nem bem duas semanas o senhor e eu ainda falávamos

disto."

"Minha sobrinha já escolheu seu pretendente - escolheu o outro,

sabe? Não tive nada a ver com isto. De minha parte eu teria preferido

Chettam; até diria que Chettam era o homem que qualquer moça esco-

lheria. Mas não há como regular essas coisas. As mulheres são capricho-

,.

sas, não é

`:Alto lá! Com quem o senhor quer dizer que vai deixá-la se casar

A mente de Mrs. Cadwallader examinava rapidamente as possibilidades

de escolha para Dorothea.

Mas nisto entrou Celia, vinda, florescente, de um passeio pelo jar-

dim e a troca de saudações desobrigou Mr. Brooke da necessidade de

res onder imediatamente. Levantando-se às pressas, ele disse: "Por fa-

p "

lar nisso, preciso ir falar com o Wright sobre os cavalos, e mais apressa-

do ainda ejetou-se da sala.

"De que se trata, minha menina? - que história é essa de sua irmã

á ter um compromisso?" disse Mrs. Cadwallader.

"Foi prometida em casamento a Mr. Casaubon," disse Celia, recorren-

do, como de costume, à mais simples declaração de fato, e feliz por ter

esta o ortunidade de conversar a sós com a esposa do reitor da paróquia.

"Oh, mas é terrível! Há quanto tempo isso já estava no ar?"

"Eu só soube ontem. Vão-se casar daqui a um mês e meio."

"Bem, querida, desejo-lhe toda a alegria com seu cunhado."

"Sinto tanto por Dorothea!"

"Sente? Pois suponho que foi ela quem quis."

"Foi; diz que Mr. Casaubon tem uma grande alma."

"Tomara que tenha mesmo."

"Oh, Mrs. Cadwallader, não penso que seja boa coisa casar com um
homem que tem uma grande alma."

"Pois então fique alerta, pois agora já conhece a cara de um; quando

o próximo aparecer e quiser casar com você, não o aceite."

"Tenho certeza de que nunca deverei."

"Não; um desses numa família já basta. Mas então sua irmã nunca

se interessou por Sir James Chettam? O que você diria dele, para set

cunhado?"

"Ah, eu adoraria! E estou certa de que ele seria um bom marido. Si

ue " acrescentou Celia com um ligeiro rubor (ela às vezes parecia rubo

q , , "

rizar-se até ao respirar), "não creio que ele servisse para Dorothea.

"Não voa muitv alto?"

MIDDLEMARCH

69

"Dodo é muito rigorosa. Pensa demais sobre tudo, e dá muito im-

portância ao que alguém diz. Sir James nunca pareceu agradar a ela."

"Mas deve tê-lo encorajado, estou certa. Isto não é muito bonito.

"Não se zangue, por favor, com Dodo; ela não vê as coisas direito.

Envolveu-se demais com a construção das casas, e com Sir James, às

vezes, foi até rude; mas ele é tão bom que nunca notou nada."

"Bem," disse Mrs. Cadwallader, pondo o xale nas costas e levantan-

do-se como se estivesse com pressa, "tenho de ir agora mesmo conversar

com Sir James e participar-lhe isto. A essa altura ele já terá trazido a mâe

dele de volta, e me cabe ir lá. Seu tio jamais irá contar-lhe. Estamos todos

muito desapontados, minha filha. Os jovens deveriam pensar em suas

famílias ao se casarem. Eu mesma dei um mau exemplo - casei-me com

um clérigo pobre, e me tornei digna de pena entre os De Bracys - obriga-

da a obter meu carvão por estratagemas, a orar aos céus por meu óleo de

salada. Casaubon, entretanto, tem um bom dinheiro; justiça se lhe faça,

quanto a isto. Quanto a seu sangue, suponho que o esquartelado da famí-

lia sejam três sables de siba e uma figura rampante. Aliás, querida, antes
que eu me vá, preciso dar uma palavrinha com Mrs. Carter sobre culinária.

Quero mandar minha moça da cozinha para aprender com ela. Como você

sabe, gente pobre como nós, e com quatro filhos, não se pode dar ao luxo

de uma boa cozinheira. Não tenho dúvida de que Mrs. Carter me fará este

favor A cozinheira de Sir James é uma verdadeira megera."

Em menos de uma hora Mrs. Cadwallader já havia enredado Mrs.

Carter e se deslocado para Freshitt Hall, que não era distante de seu

próprio presbitério, residindo seu marido em Freshitt e mantendo em

Tipton um coadjutor

Sir James Chettam, de regresso da breve viagem que o mantivera

ausente alguns dias, já havia até mudado de roupa, planejando uma

cavalgada para Tipton Grange. Seu cavalo o esperava à porta quando

Mrs. Cadwallader irrompeu, e imediatamente ele foi recebê-la ali mes-

mo, de chicote na mão. Lady Chettam ainda não havia voltado, mas a

mensagem de Mrs. Cadwallader não poderia ser transmitida na presen-

ça de serviçais; ela então pediu para ir olhar as novas plantas no jardim

de inverno contíguo; ao atingir um patamar contemplativo, disse:

"Prepare-se para um grande choque; espero que em matéria de amor

o senhor não tenha ido tão longe como dava a entender."

Era inútil protestar contra o modo de Mrs. Cadwallader colocar as

coisas. Mas Sir James perdeu um pouco a compostura. Sentiu um vago

alarme.

"Não acredito que Brooke vá afinal se expor. Acusei-o de pretender

70 GEORGE ELIOT

concorrer por Middemarch pelo lado liberal, e ele assumiu um ar de

zanga mas jamais o negou - falou da linha independente e dos contra-

sensos de praxe."

"Isto é tudo?" disse Sir James, muito aliviado.

"Bem," retomou Mrs. Cadwallader, com uma nota ainda mais agu-

da, "não há de o senhor querer dizer que gostaria de vê-lo transformar-


se em homem público desta maneira - fazendo de si mesmo uma espé-

cie de mascate político?"

"Ele poderia ser dissuadido, não hesito em pensar. A despesa decer-

to não lhe agradaria."

"Foi o que eu disse a ele. Nisto é vulnerável à razão - numa pitada

de avareza há sempre uns grãos de bom senso. A avareza é uma qualida-

de capital para se ter nas famílias; é o lado seguro por onde a loucura

pode mergulhar. E deve haver uma pequena brecha na família Brooke,

se não nós não veríamos o que ainda havemos de ver."

"O quê? Brooke concorrendo por Middemarch?"

"Pior que isto. Realmente sinto-me um pouco responsável. Porque

eu sempre lhe disse que Miss Brooke seria um ótimo partido. Eu sabia

que nela faltava um pouco de bom senso - havendo em contrapartída,

em excesso, uma espécie caótica de estofo metodista. Essas coisas, nas

moças, passarn. Contudo, desta vez fui pegada de surpresa."

"Que está querendo dizer, Mrs. Cadwallader?" disse Sir James. Seu

medo de que Miss Brooke pudesse ter fugido para ingressar na Irmanda-

de dos Morávios ou nalguma seita maluca, desconhecida da boa socie-

dade, era um pouco reduzido por seu conhecimento de que Mrs.

Cadwallader sempre tornava as coisas piores. "Que aconteceu com Miss

Brooke? Por favor, diga logo."

"Muito bem. Ela foi prometida em casamento." Mrs. Cadwallader

parou por alguns momentos, observando na face de seu amigo uma ex-

pressão muito ofendida que ele tentava disfarçar com um sorriso nervo-

so, chicoteando enquanto isso sua bota; mas ela logo acrescentou: "Pro-

metida a Casaubon."

Sir James deixou cair seu chicote e se abaixou para apanhá-lo. Nun-

ca dantes sua face tenha talvez concentrado tanto desgosto junto como

quando ele se virou para Mrs. Cadwallader e repetiu: "Casaubon?"

"Isto mesmo. Agora o senhor já sabe a minha incumbência."

"Meu Deus! Que horror! Ele é pior do que uma múmia!" (Há que se
entender tal ponto de vista como o de um rival ardente e desapontado.)

"Diz ela que ele tem uma grande alma. - Pois sim, uma grande

bexiga para encher de ervilha seca e chocalhar!" disse Mrs. Cadwallader

MIDDLEMARCH

71

"Por que é que um solteirão desses inventa de se casar?" disse Sir

James. "Ele já está com um pé na cova."

"Quer tirá-lo lá de dentro, suponho."

"Brooke não deveria permitir isto: e sim insistir em deixar a coisa de

lado até ela atingir a maioridade. Ela então poderia pensar melhor Para

que serve um tutor?"

,.

"Como se alguém jamais pudesse arrancar uma decisão de Brooke!

"Cadwallader podia conversar com ele."

"Ele não! Humphrey acha todo mundo um encanto. Nunca consigo

que ele desanque Casaubon. É capaz de falar bem até do bispo, por mais

que eu lhe diga que isto não é natural num clérigo beneficiado: o que se

há de fazer com um marido que dá tão pouca atenção às conveniências?

Disfarço isto o melhor que posso desancando eu mesma todo mundo.

Mas vamos lá, anime-se! Foi bom livrar-se de Miss Brooke, moça que

poderia exigir-lhe que à luz do dia visse estrelas. Muito aqui entre nós, a

pequena Celia vale duas dela, e é bem provável que, feitas as contas,

seja o melhor partido. Pois este casamento com Casaubon é o mesmo

que entrar para um convento."

"Oh, a meu modo de ver, é sim, - e é pensando em Miss Brooke

que acho que seus amigos deveriam usar da influência que têm sobre

ela."

"Bem, Humphrey ainda não está sabendo. Mas, quando eu for dizer

a ele, pode apostar que ele vai replicar: `Mas por que não? Casaubon é

um bom moço - e jóvem - tão jovem." Essa gente caridosa nunca


distingue o vinagre do vinho, até que o tenha engolido e descoberto a

cólica. Entretanto, se eu fosse homem eu preferiria Celia, sobretudo se

não há mais Dorothea. A verdade é que o senhor andou cortejando uma

e conquistou a outra. Pelo que vejo, ela o admira tanto, ou quase, quan-

to um homem espera ser admirado. Se fosse outro que dissesse isto, não

eu, o senhor poderia achar que era exagero. Adeus!"

Sir James ajudou Mrs. Cadwallader a subir no fáeton e depois pulou

no seu cavalo. Não ia renunciar à pretendida volta só por causa da desa-

gradável notícia de sua amiga - apenas cavalgaria mais rápido em qual-

quer outra direção que não fosse a de Tipton Grange.

Mas por que no mundo haveria Mrs. Cadwallader de se preocupar

com o casamento de Miss Brooke; e por que, quando um partido que lhe

aprazia pensar que tinha à mão se frustrava, haveria de maquinar, sem

perda de tempo, as preliminares de outro? Existia aí alguma trama enge-

nhosa, alguma ação do tipo esconde-esconde, que pudesse ser detecta-

da por um meticuloso esquadrinhamento telescópico? Não, nada disto:

72 GEORGE EI.fO"1

um telescópio que varresse as paróquias de Tipton e Freshitt, toda a

área visitada por Mrs. Cadwallader em seu fáeton, não testemunharu

uma entrevista que fosse capaz de despertar suspeitas, ou qualque.

cena da qual ela não regressasse com a mesma ímperturbável acuídado

de vista e a mesma intensa coloração natural. De fato, se este cômodo

veículo já existisse no tempo dos Sete Sábios," um deles teria observa

do sem dúvida que pouco nós podemos saber sobre as mulheres, quan

do as seguimos por aí em seus fáetons puxados por cavalinhos. Mesmc

com um microscópio direcionado sobre uma gota d"água encontramo

nos a fazer interpretações que por fim se mostram meio grosseiras

pois enquanto sob uma lente fraca pode parecer que nós vemos uma

criatura a exibir uma voracidade ativa, na qual outras criaturas meno

res entram ativamente em questão como se fossem moedas imantadas

uma lente mais forte nos revela certos filamentos irrisórios que se fa
zem de vórtices para essas vítimas, enquanto o engolidor aguarda pas

sivamente em seu guichê de aduana. Desta forma, falando metaforica

mente, uma lente forte aplicada às alcovitices de Mrs. Cadwalladel

mostrará a ínteração de pequeninas causas produzíndo o que se podf

chamar de vórtices do pensamento e da fala para levar até ela o tipo dE

alimento que precisava.

Sua vida era ruralmente simples, totalmente livre de segredos sórdi

dos, perigosos ou de outro modo importantes, e não conscientementc

afetada pelas grandes questões do mundo. Por isto as questões do gran

de mundo despertavam-lhe ainda mais interesse, quando comunicada;

em cartas de parentes bem nascidos: o modo pelo qual fascínantes filho

mais moços caíram na mais completa ruína após casarem-se com sua

amantes; a bela idiotice caquética do jovem Lord Tapir e os furiosos 

gotosos humores do velho Lord Megatherium; o exato cruzamento d

genealogias que havia introduzido um coronel2 num ramo novo e ampliad

as relações de escândalo - tais eram tópicos dos quais ela retinha deta

lhes com a maior precisão, reproduzindo-os numa excelente conserv

de epigramas com que ela mesma se deliciava ainda mais porque acred;

tava tão inquestionavelmente em berço e ausência de berço como er

caça e praga. Por pobreza, nunca repudiaria ninguém: um De Bracy rf

duzido a comer seu jantar numa bacia parecer-lhe-ia um exemplo d

patético digno de exagero, e temo que seus vícios aristocráticos não

tivessem horrorizado. Mas o sentimento que a movia em relação ac

Da antiga Grécia: Bias, Quílon, Cleóbulo, Periandro, Pítaco, Sólon e Tales.

zEm heráldica, remate em forma de coroa encimado de um escudo.

MIDDLEMARCH 73

ricos vulgares era uma espécie de ódio religioso: provavelmente todo o

dinheiro que eles tinham feito vinha de preços altos n varejo, e Mrs.

Cadwallader detestava os preços altos para tudo o que não fosse pago

em gêneros no reitorado: essas pessoas não eram parte dos desígnios de


Deus ao fazer o mundo; e sua maneira de falar era uma aflição para os

ouvidos. Um lugar onde proliferavam tais monstros pouco mais era que

uma espécie de comédia mambembe, que não poderia ser levada em

conta num esquema bem concebido do universo. Se alguma dama incli-

nada a ser mais dura com Mrs. Cadwallader perguntar pela abrangência

de suas opiniões tão belas, saiba sem nenhuma dúvida que elas propicia-

vam acomodação para todas as vidas que tinham a honra de coexistir

com a dela.

Com uma tal cabeça, ativa como o fósforo, capaz de reduzir tudo O

que tinha ao redor à forma que melhor lhe convinha, como poderia

Mrs. Cadwallader se considerar uma estranha em relação às irmãs

Brooke e suas perspectivas matrimoniais? Principalmente porque era

um hábito de anos, para ela, passar sermões em Mr. Brooke com a

franqueza mais amistosa e deixá-lo confidencialmente saber que o jul-

gava um grande tolo. Desde a chegada das moças a Tipton ela pre-

arranjara o casamento de Dorothea com Sir James e, se ele tivesse

ocorrido, sentir-se-ia plenamente canvencida de que era obra sua: mas

que ele não fosse ocorrer, depois de ela o ter preconcebido, causava-

lhe uma irritação com a qual qualquer pensador há de simpatizar. Ela

era o diplomata de Tipton e Freshitt, e tudo o que acontecesse sem sua

participação era uma irregularidade ofensiva. Com esquisitices como a

de Miss Brooke, Mrs. Cadwallader não tinha a menor paciência, e via

agora que sua opinião sobre esta moça havia sido contaminada por

algo da benevolência molenga do seu marido: esses tiques metodistas,

esse ar de ser mais religiosa que o reitor e o coadjutor juntos, vinham

de uma doença mais constitucional e mais funda do que ela se dispuse-

ra a crer.

"Contudo," disse Mrs. Cadwallader, primeiro para si mesma, depois

para seu marido, "eu desisto dela: havia uma possibilidade, caso se ca-

sasse com Sir James, de ela tornar-se uma mulher sensata e saudável.
Ele nunca iria contrariá-la, e uma mulher, quando não é contrariada, não

tem motivo para obstinar-se em seus absurdos. Mas agora, desejo-lhe

toda alegria em seu cilício."

Seguia-se que Mrs. Cadwallader precisava arranjar outro partido para

Sir James e, tomada sua decisão de que o melhor seria a mais jovem

Miss Brooke, não poderia haver cartada mais habilidosa para o sucesso

74 GEORGE ELI(

de seu plano que a alusão por ela feita ao baronete de que ele tinl

deixado uma impressão no coração de Celia. Pois ele não era um dess

cavalheiros que enlanguescem pela inatingível maçã de Safo a rir no g

lho mais alto - o encanto que

"Ri qual prímula em tufo no penhasco

Que a mão querente nunca irá pegar."

Não tinha sonetos a escrever, e era impossível que lhe fosse agr

dável não ser um objeto de preferência para a mulher que ele hav

preferido. O conhecimento de que Dorothea escolhera Mr. Casaube

já refreara sua ligação, largando-a à rédea solta. Muito embora S

James fosse um desportista, tinha alguns outros sentimentos em r

lação às mulheres que não os que nutria por raposas e tetrazes, e m

olhava sua futura esposa como uma presa, valiosa sobretudo pel;

excitações da caça. Nem era ele tão bem enfronhado assim nos cost

mes das raças primitivas para sentir que um combate ideal por ela, c

machado de guerra em punho, por assim dizer, era necessário à co

tinuidade histórica do vínculo do matrimônio. Pelo contrário, tendo

condescendente vaidade que nos une aos que gostam de nós, m:

nos desinclina pelos que nos são indiferentes, e sendo de nature;

boa e agradável, a mera idéia de que uma mulher pudesse interessa

se por ele já lhe tecia uns filetes de ternura que emanavam de st

coração para o dela.

Assim aconteceu que, após ter cavalgado bem rápido por uma me
hora em direção contrária à de Tipton Grange, Sir James diminuiu

passo e por fim desembocou num caminho que o levaria de volta por u

percurso menor. Vários sentimentos urdiram nele a determinação de a

nal ir à granja hoje, como se nada de novo houvesse acontecido. N

podia deixar de se alegrar por não ter feito o pedido e nunca assim 

sido rejeitado; a simples polidez entre amigos requeria que ele fo

visitar Dorothea para falar das casas, e agora felizmente Mrs. Cadwallac

já o preparara para dar os parabéns, se necessário, sem demonstrar c

cessiva falta de jeito. Isto porém não lhe agradava: abrir mão de Dorotl-

era mesmo penoso para ele; mas na decisão de fazer imediatamente e;

visita e dominar toda demonstração de sentimentos havia algo que 

uma espécie de antürritante e elaboração preciosa. Sem seu nítido re

nhecimento do impulso, certamente estava nele presente a impress

No original: "Smile like the knot of cowsfips on the cliff, / Not to be come

at 6y the willing har

MIDDLEMARCH

75

de que Celia estaria lá, e de que agora lhe convinha dar mais atenção a

ela que antes.

Nós mortais, homens e mulheres, devoramos muitas decepções en-

tre a hora do café da manhã e a do jantar; contenha pois suas lágrimas,

não mostre senão certo palor em torno dos lábios e, respondendo a

perguntas, diga: "Oh, não é nada!" O orgulho ajuda-nos; e não é má

coisa o orgulho quando apenas nos insta a ocultar as próprias feridas -

para não ferir os outros.

CAPÍTULO VII

"Piacer e popone
Vuol la sua stagione."

- Italian Proverb.

("O prazer e o melão

têm a sua estação."")

- Provérbio italiano.

MR. CAsAusoN, como seria de esperar-se, passou grande parte de seu

tempo, nessas semanas, na granja, e o estorvo ocasionado pelo namoro

ao progresso de sua grande obra - a Chave de Todas as Mitologias -

fê-lo divisar com ainda maior ansiedade o feliz desfecho da corte que lhe

competia fazer. Deliberadamente porém ele procurara esse estorvo, ten-

do resolvido que já estava na hora de ornamentar sua vida com as graças

da companhia feminina, de dissipar com a atividade da fantasia feminina

o abatimento que a fadiga era capaz de inculcar nos intervalos do seu

estudioso labor e de garantir-se, ao culminar nesta idade, o refrigério do

desvelo feminino em seus anos de declínio. Determinou-se pois a aban-

donar-se ao fluxo dos sentimentos, surpreendendo-se por constatar que

córrego incrivelmente raso ele era. Assim como nas regiões áridas o ba

tismo por imersão só pode ser realizado de maneira simbólica, consta

tou Mr. Casaubon que um borrifo era a mais profunda abordagem para c

mergulho que lhe permitiria seu rio; e concluiu que os poetas tinhan

exagerado em muito a força da paixão masculina. Não obstante, obser

vou com prazer que Miss Brooke demonstrava uma afeição ardente 

submissa que prometia corresponder às suas mais agradáveis previsõe

de casamento. Uma ou duas vezes, é fato, passou-lhe pela cabeça qu

MIDDLEMARCH 77

possivelmente havia alguma deficiência em Dorothea que justificava a

moderação do seu abandono; mas não foi capaz de discernir esta defici-

ência, nem de se figurar que mulher lhe teria eventualmente agradado

mais; assim pois não havia, com clareza, uma razão à qual recorrer,

excetuados os exageros da tradição humana.

"Eu não podería preparar-me agora para ser mais útil depois?" dis-
se-lhe Dorothea certa manhã, logo no começo do namoro; "não poderia

aprender a ler latim e grego para você em voz alta, como as filhas de

Milton liam para o paï, sem entender o que estavam lendo?"

"Temo que seja muito enfadonho para você," disse Mr. Casaubon

sorrindo; "e de fato, se me lembro bem, as jovens que mencionou consi-

deravam este exercicio em línguas ignoradas como um motivo de rebe-

lião contra o poeta."

"Sim; mas por um lado eram moças vazias, porque se não se orgu-

lhariam da leitura a um tal pai; por outro, poderiam ter feito um estudo

à parte e aprender a entender o que elas liam, que neste caso seria inte-

ressante. Espero que não deseje que eu seja ignorante e vazia."

"Espero que seja tudo o que uma jovem dama encantadora é capaz

de ser, em todas as possíveis circunstâncias da vida. Poderia decerto ser

uma grande vantagem se você aprendesse a copiar os caracteres gregos,

e para tanto seria bom começar com um pouco de leitura."

Dorothea apegou-se a isto como a uma permissão preciosa. Não

ousaria pedir sem mais nem menos a Mr. Casaubon que lhe ensinasse as

lfnguas, antes de mais nada porque temia ser cansativa, e não útil; mas

não era simplesmente por devoção a seu futuro marido que ela queria

saber latim e grego. Estas províncias do conhecímento masculino pare-

ciam-lhe um posto de observação de onde toda verdade poderia ser vis-

ta com mais clareza. Na situação em que estava, constantemente ela

duvidava de suas próprias conclusões, porque sentia os limites de sua

ignorância: como ter certeza de que as casinhas de um só quarto não

eram para a glória de Deus, quando homens que conheciam os clássicos

pareciam conciliar a indiferença pelas casas com o fervor pela glória?

Talvez até o hebreu fosse necessário - pelo menos o alfabeto e algumas

raízes - para chegar ao cerne das coisas e julgar com propriedade sobre

os deveres sociais de um cristão. Ela não havia atingido aquele ponto de

renúncia no qual se sentiria satisfeíta com ter um marido sábio; ela mes-
ma queria, pobre criança, também ser sábia. Com toda sua propalada

inteligência, Miss Brooke certamente era muito naïve. Celia, cuja mente

nunca fora instruída com muito alarde, via o vazio das pretensões alheias

com muito maís rapídez. Ter de modo geral somente um escasso sentir

78 GEORGE EI.lO"

parece ser a única segurança contra o sentir em demasia em qualque

ocasião específica.

Contudo, Mr. Casaubon consentiu em ouvir e ensinar por uma hor;

juntos, como um perfeito mestre-escola de crianças, ou melhor, com

um pretendente ao qual as dificuldades e a ignorância elementar da amad

adequam-se de um modo tocante. Poucos são os intelectuais que não

teriam gostado de ensinar o alfabeto sob tais circunstâncias. Já Dorothe;

sentiu-se um pouco espantada e desencorajada com sua própria igno

rância, e as respostas que obteve a algumas tímidas perguntas sobre c

valor dos acentos gregos deram-lhe a suspeita penosa de que de fatc

poderia haver segredos que não eram susceptíveis de explicação à razão

de uma mulher.

Mr. Brooke não tinha dúvidas sobre este ponto e expressou-se ;

respeito com seu vigor usual, um dia em que entrou na biblioteca nun

momento em que a leitura ia em curso.

"Mas ora esta, Casaubon, esses estudos tão aprofundados, os clássi

cos, a matemática, esse tipo de coisa, forçam muito as mulheres - for

çam demais, sabe?"

"Dorothea só está aprendendo a ler os caracteres," disse Mr. Ca

saubon esquivando-se à questão. "Ocorreu-lhe a idéia muito ponderada

de poupar-me os olhos."

"Ah, bem, sem entender, sabe - isto pode não ser tão mau assim

Na mente feminina há porém um quê de leveza - um deixar-se levar -

a música, as belas-artes, esse típo de coisa- poís é, elas deveriam estudá

las até um certo ponto, deveriam sim; mas de um jeito leve, sabe? Um

mulher deve ser capaz de sentar-se e tocar ou cantar para você um


antiga e gostosa canção inglesa. É disto que eu gosto; se bem que eu j

ouvi quase tudo - fuí á ópera em Víena: Gluck, Mozart, tudo do gênerc

Mas em música eu sou conservador - não é como no campo das idéia;

sabe? Prefiro as antigas e gostosas canções."

"Mr Casaubon não é chegado ao piano, e alegra-me que o não seja,

disse Dorothea, cujo pouco interesse pela música doméstica e as bela

artes femininas deve ser perdoado, considerando-se as insignificantc

tinidos e barrões em que no mais das vezes consistiam nesse período c

trevas. Ela sorriu, olhou com uma expressão de gratidão para o noiv

Se ele sempre lhe pedisse para tocar "A Última Rosa do Verão", teria c

ser muito resignada. "Já me contou que só há um velho cravo em Lowic

e que está coberto de livros."

"Ah, nisto você está atrás de Celia, minha querida. Celia anda toca

do muito bem agora, e sempre está disposta a tocar. Contudo, se

MIDDLEMARCH

79

Casaubon não gosta, você está certa. Mas é uma pena que não se queira

dar a pequenas recreações desse gênero, Casaubon: com o arco sempre

retesado - esse tipo de coisa, sabe, - assim não dá."

"Nunca considerei que a exposição de meus ouvidos a uma barulheira

compassada e incômoda pudesse ser vista como recreação," disse Mr

Casaubon. "Uma canção muito repetida tem o efeito ridículo de fazer com

que as palavras em minha cabeça executem uma espécie de minueto para

ocupar o tempo - um efeito que, imagino, é quase impossível de tolerar,

passada a infância. No que tange às formas mais elevadas de música, dig-

nas de acompanharem celebrações solenes, e até de servirem como influ-

ente fator na educação, segundo a antiga concepção, eu não digo nada,

pois não é com estas que estamos diretamente preocupados."

"É verdade; mas deste gênero de música bem que eu gostaria," disse

Dorothea. "Quando estávamos vindo de Lausanne para casa, meu tio nos

levou para ouvir o grande órgão de Freiberg, que me arrancou lágrimas."


"Esse tipo de coisa não é nada saudável," disse Mr. Brooke. "Agora

Casaubon, ela estará em suas mãos: convém que ensine minha sobrinha

a encarar as coisas com mais serenidade, não é, Dorothea?"

Terminou com um sorriso, não querendo ferir sua sobrinha, mas real-

mente pensando que talvez fosse melhor para ela casar-se cedo com um

sujeito assim circunspecto como Casaubon, posto que a Chettam não

daria ouvidos.

"No entanto, é incrível," disse consigo mesmo ao escapulir da sala, "é

incrível que ela tenha gostado dele. Reconheço porém que é um bom

partido. Seria exorbitar de minhas obrigações impor-lhe algum obstáculo,

diga lá o que disser Mrs. Cadwallader. O Casaubon sem dúvida ainda

chega a bispo. O panfleto dele sobre a Questão Católica foi mesmo muito

oportuno: - vale ao menos um decanado. É, devem-lhe um decanado."

E aqui devo reivindicar uma pretensão à reflexão filosófica, obser-

vando que Mr. Brooke, nesta ocasião, jamais pensou no discurso radical

que, em período posterior, foi levado a fazer sobre os rendimentos dos

bispos. Que historiador elegante deixaria passar em branco uma oportu-

nidade ideal para assinalar que seus heróis não anteviam a história do

mundo, nem mesmo suas próprias ações? - Por exemplo, esse Henrique

de Navarra, quando era um bebê protestante, jamais pensou que ia ser

um rei católico; nem esse Alfredo o Grande, quando media suas noites

laboriosas queimando velas, tinha a menor idéia de que homens de ge-

rações futuras mediriam com relógios seus ociosos dias. Eis aqui uma

mina de verdades que, não importa o vigor com que possa ser explora-

da, provavelmente há de durar mais do que o nosso carvão.

80

GEORGE ELIOT

Mas sobre Mr. Brooke faço ainda outra observação, talvez menos

comprovada por precedentes, - qual seja, a de que poderia não ter feito
grande diferença se ele houvesse antevisto seu discurso. Pensar com pra-

zer na hipótese de o marido de sua sobrinha ter uma grande renda ecle-

siástica era uma coisa - fazer um discurso liberal era outra; e só uma

mente muito estreita não é capaz de olhar um mesmo assunto sob vá-

rios pontos de vista.

CAPÍTULO VIII

"Oh, rescue her! I am her brother now,

And you her father. Every gentle maid

Should have a guardian in each gentleman."

("Oh, salve-a! Eu agora sou o irmão

E você o pai dela. Toda gentil donzela

Deve ter por guardião um cavalheiro.")

O PRÓPRIO SIR JAMES CHETTAM se admirava da maneira normal como ele

continuava gostando de ir à granja após ter encontrado a dificuldade de

olhar pela primeira vez para Dorothea na condição de uma mulher já

comprometida com outro homem. Claro está que o relâmpago fendido

pareceu trespassá-lo logo que ele se dispôs a abordá-la, mantendo-se

consciente, durante toda a conversa, de esconder seu constrangimento;

mas, bom como era, deve-se reconhecer que este constrangimento era

menor do que teria sido se porventura ele tomasse o rival por um parti-

do brilhante e desejável. Não se considerava de modo algum eclipsado

por Mr. Casaubon; alarmava-o apenas que Dorothea estivesse sob uma

ilusão de melancolia, e sua mortificação perdia um pouco da amargura

que lhe era inerente ao se mesclar à compaixão.

Apesar de Sir James se dizer que havia renunciado por completo a

Dorothea, posto que com a perversidade de uma Desdêmona ela não se

deixasse comover por uma perspectiva de casamento que lhe era adequa-

da e conforme à natureza, ele entretanto não conseguia ficar inteiramente

passivo ante a idéia do compromisso assumido pela moça com Mr.

Casaubon. No dia em que os viu juntos pela primeira vez, e à luz do que

então já era de seu conhecimento, pareceu-lhe não haver encarado o as-


sunto com a seriedade devida. Brooke realmente era passível de culpa;

82 GEORGE ELIC

competia-lhe ter imposto dificuldades. Quem poderia falar com ele? A

guma coisa precisava ser feita, e talvez ainda agora, ao menos para adu

o casamento. A caminho de casa, assim, ele passou pelo reitorado

perguntou por Mr. Cadwallader. O reitor felizmente estava em casa e

visitante foi levado ao seu gabinete, todo entulhado de apetrechos c

pesca. Mas ele mesmo se achava num quartinho contíguo, trabalhand

em seu torno, e chamou o baronete para que fosse até lá. A amizac

entre os dois era maior que entre quaisquer outros clérigos e propriet;

rios de terras do condado - fato significativo e que se achava em cor

cordáncia com a expressão cordial de ambos os rostos. "

Mr. Cadwallader era um homem corpulento, de lábios grossos e coI

um doce sorriso; muito simples e rude em seu exterior, mas dotado de;

sa tranqüilidade e bom humor imperturbáveis e sólidos que são cont

giantes e, como grandes colinas verdes ao sol, acalmam até mesmo uI

egoísmo irritado, fazendo-o envergonhar-se um pouco de si. "Olá, com

vai?" disse ele, mostrando a mão que não estava em condições de sf

apertada. "Pena que não lhe encontrei antes. Há algum problema? Voc

parece estar aborrecido."

Sir James tinha uma ruga na testa, uma pequena depressão d

supercílio, que ele parecia exagerar de propósito quando respondia.

"É apenas essa conduta do Brooke. Acho que alguém deveria ir fala

com ele."

"Do quê? a intenção de candidatar-se?" disse Mr. Cadwallader, pro

seguindo com o conserto das carretilhas de pesca que ele tinha acabad

de pôr no torno. "Custo a pensar que ele queira mesmo. Mas que mal 1

nisto, se assim o desejar? Todos que são contra o liberalismo hão c

ficar contentes se os liberais não Iançarem o candidato mais forte. El

não derrubarão a Constituição com a cabeça de nosso amigo Brool


como aríete."

"Oh, não é disto que estou falando," disse Sir James, que, após po

sar o chapéu e jogar-se numa cadeira, começou a passar a mão na per

e a examinar a sola de sua bota com uma cara muito zangada. "Est

falando é do casamento. De ele deixar essa moça ainda tão florescen

se casar com Casaubon."

"Mas qual é o problema com Casaubon? Não vejo nada de erra

nele - se a moça gosta."

"Ela ainda é muito nova para saber do que gosta. É mister que s

tutor interfira. Mister que ele não perrnita que a coísa seja feita ass

sem mais nem menos. Espanta-me que um homem como vo

Cadwallader - um homem que tem filhas, possa olhar com indiferer

MIDDLEMARCH 83

para este caso: e com um coração como o seu! Pense com seriedade no

assunto."

"Não estou brincando; estou tão sério quanto possível," disse o rei-

tor, com uma provocante risadinha para dentro. "Você é mau como Elinor

Ela queria que eu fosse e fizesse um sermão ao Brooke; e lembrei a ela

que seus próprios amigos tinham péssima opinião a meu respeito, quan-

do ela se casou comigo."

"Mas olhe bem para Casaubon," disse Sir James, indignado. "Deve

andar pelos cinqüenta, e não creio que alguma vez tenha sido mais que

a sombra de um homem. Olhe bem as pernas dele!"

"Não entendo vocês, os rapazes bonitos que acham que tudo no

mundo tem de ser de seu jeito! Vocês não compreendem as mulheres.

Elas não os admiram nem a metade do que vocês mesmos se admiram.

Elinor costumava dizer às irmãs dela que se casou comigo devido à mi-

nha feiúra - tão variada e divertida que lhe conquistara totalmente a

prudência."

"Você? era muito fácil cue uma mulher lhe amasse. Mas no caso não

é uma questão de beleza. E que eu não gosto de Casaubon." Esta era a


maneira mais forte de Sir James dar a entender que o caráter de alguém

lhe desagradava.

"Por quê? que sabe que deponha contra ele?" disse o reitor, deixan-

do suas carretilhas de lado para enfiar os polegares nas axilas, com um ar

de atenção.

Sir James fez uma pausa. Geralmente não lhe era fácil dar suas

razões: parecia-lhe estranho que as pessoas não as soubessem sem as

terem ouvido, já que ele somente sentia o que era razoável. Mas por

fim disse:

"Bem, Cadwallader, você acha que ele tem coração?"

"Acho que sim. Não é do tipo meloso, mas o cerne é de boa qualida-

de, pode estar certo disto. Ele é muito bom com seus parentes pobres:

concede pensões a várias das mulheres e, para educar um rapaz, faz

considerável despesa. Casaubon age de acordo com seu senso dejustiça.

A irmã da mãe dele fez um mau casamento - com um polonês, acho -

e se perdeu - e foi em suma deserdada pela família. Não fosse isto,

Casaubon não teria tido metade do dinheiro que tem. Acredito que ele

foi pessoalmente à procura de seus primos para ver o que podia fazer

por eles. Nem todos os homens reagiriam assim tão bem, com seu pecú-

lio posto à prova. você sim, Chettam; mas nem todos os homens."

"Não sei não," disse Sir James, ruborizando. "Não me garanto tan-

to." E, após uma breve pausa, acrescentou: "Foi uma boa ação, esta do

84 GEORGE ELIOT

Casaubon. Mas um homem, ainda que predisposto a fazer boas ações,

pode ser mesmo assim uma espécie de código em pergaminho. Uma

rnulher pode não ser feliz com ele. E penso que, quando se trata de uma

moça tão jovem, como é o caso de Miss Brooke, seus amigos devam

interferir um pouco para impedi-la de fazer alguma tolice. Você ri, por-

que imagina que haja algum sentïmento de minha parte em questão.

Mas, por minha honra, não se trata disto. Eu sentiria o mesmo se fosse
irmão ou tio de Miss Brooke."

"Bem, e o que faria então?"

; "Diria que o casamento não deveria ser decidido antes de ela chegar

à maioridade. E, se dependesse disto, nesse caso nunca se consumaria.

Espero que você tenha visto as coisas como eu - pois eu gostaria que

falasse sobre o assunto com Brooke."

Sir James levantou-se quando ainda acabava sua frase, pois viu que

Mrs. Cadwallader vinha entrando no gabinete. Trazia pela mão a filha

mais nova, de uns cinco anos de idade, que imediatamente correu para o

papai, sendo posta à vontade em seus joelhos.

"Ouvi o que você estava dizendo," disse a esposa. "Mas não vai

causar ímpressão ao Humphrey. Enquanto o peixe morder a isca, todo

mundo há de ser como tem de ser. Casaubon conseguiu, graças a Deus,

um ribeiro de trutas, e no qual não se importa de ele mesmo pescar:

pode existir homem melhor?"

"Bem, quanto a isto há alguma coisa," disse o reitor, com seu riso

tranqüilo para dentro. "Ter um ribeiro de trutas é uma qualidade muito

boa num homem."

"Mas, a sério," disse Sir James, cuja irritação ainda não havia passa-

do, "a senhora não acha que o reitor poderia estar fazendo algum bem,

se falasse?"

"Oh, eu já lhe disse de antemão o que ele iria dizer," respondeu Mrs.

Cadwallader, levantando as sobrancelhas. "Fiz o que eu pude: lavo mi-

nhas mãos sobre este casamento."

"Primeiramente," disse o reitor, com um ar mais para o grave, "seria

um contra-senso esperar que eu possa convencer o Brooke e levá-lo a

agir como se quer. Brooke é ótima pessoa, mas inconsistente; é capaz de

entrar em qualquer molde, mas não mantém a forma que toma."

"Poderia mantê-la o necessário para adiar o casamento," disse Sir

James.

"Mas, meu caro Chettam, por que deveria eu usar minha influência
para prejudicar Casaubon, a não ser que estivesse muito mais seguro do

que estou de que estaria agindo para favorecer Miss Brooke? Não sei de

MIDDLEMARCH 85

nada que deponha contra Casaubon. Pouco me ïmporto com seu

Xisuthrus", seu Fee-fo-fum2 e todo o restante; mas ele também pouco se

importa com meus apetrechos de pesca. A lïnha que adotou quanto à

Questão Católïca, é verdade, foi inesperada; mas comigo ele tem sido

sempre correto, e não vejo por que devesse eu ir estragar seu brïnquedo.

Pelo que eu possa prever, Miss Brooke talvez seja mais feliz com ele do

que o seria com qualquer outro homem."

"Humphrey, você me esgota a paciência! Sabe muito bem que prefe-

riria jantar encostado numa cerca do que a sós com Casaubon. Vocês

dois não têm nada o que dizer um ao outro."

"E o que isto tem a ver com o casamento de Miss Brooke com ele?

Não é para me divertir que ela o faz."

"Ele não tem nenhum vestígio de bom sangue vermelho," disse Sir

James.

"Não mesmo. Alguém pôs uma gota sob uma lente de aumento, e só

se viam parênteses e pontos-e-vírgulas," disse Mrs. Cadwallader

"Por que, ao invés de se casar, ele não publica seu livro?" disse Sir

James, com um desgosto que julgava autorizado pelos bons sentimen-

tos de um fidalgo inglês.

"Oh, ele sonha com notas de pé de página, e sua capacidade cerebral

se esvai de todo com elas. Dizem que, quando ainda era um garotinho,

fez um resumo de `Hop o"my Thumb,"3 e desde então vive fazendo resu-

mos. Ufa! E este é o homem com o qual Humphrey insiste em dizer que

uma mulher pode ser feliz."

"Bem, é do que Miss Brooke gosta," disse o reitor. "Não tenho a

pretensão de entender o gosto particular de cada senhorita."

"Mas, e se ela fosse sua filha?" disse Sir James.


"Seria um caso diferente. Ela não é minha filha e não me sinto

chamado a interferir. Casaubon é tão bom quanto a maioria de nós. É

um ministro anglicano erudito e que honra seu ministério. Um radi-

cal que andou arengando por Middemarch disse que o letrado Ca-

saubon tinha a incumbência de cortar a palha, Freke a incumbência

de assentar os tijolos e eu a incumbéncia de pescar à lïnha. E dou a

minha palavra que não vejo qual de nós é melhor ou pior que o ou-

tro." O reitor concluiu pelo seu riso em silêncio. Via sempre a inten-

ção de qualquer sátira a seu respeito. Tinha uma consciência compla-

Noé, no mito do dilúvio na Babilônia.

"Um ogre.

"Personagem de história infantil, como Tom Thumb, o Pequeno Polegar.

86 GEORGE E I.IOT

cente e espaçosa, como o restante dele: a qual só fazia o que podia

sem jamais perturbar-se.

Claramente não haveria interferência de Mr. Cadwallader no casa-

mento de Miss Brooke; e Sir James sentiu com certa tristeza que ela ia

ter perfeita liberdade parajulgar errado. Era um sinal de sua boa vonta-

de ele não ter esmorecido em nada na intenção de levar a cabo o plano

de Darothea para as casas populares. Sem dúvida esta persistência, para

sua própria dignidade, era a melhor opção: mas o orgulho apenas nos

ajuda a ser generosos, ele nunca nos faz assim, como a vaidade nunca

nos confere brilho. A essa altura ela estava bem consciente da posição

de Sir James a seu respeito, para apreciar a retidão da perseverança dele

num dever de propríetárío com o qual ele se comprometera de início por

complacência amorosa, e o prazer que disto lhe advinha era suficiente-

mente grande para representar alguma coisa mesmo em sua felicidade

presente. Talvez ela dedicasse às casas de Sir James Chettam todo O

interesse que pudesse poupar de Mr. Casaubon, ou melhor, da sinfonia

de sonhos esperançosos, confiança admiradora e autodevoção apaíxo-


nada que este senhor tão culto lhe havia posto em execução na alma.

Donde de fato aconteceu que nas visitas seguintes o gentil baronete,

nisto que começava a desdobrar-se em pequenas atenções com Celia,

passou a ver-se ao mesmo tempo em conversas, cada vez mais prazerosas,

com Dorothea. Ela agora se mostrava totalmente desembaraçada e sem

irritação para com ele, que pouco a pouco ia descobrindo o deleite exis-

tente na amizade e companheirismo mais francos entre uma mulher e

um homem que não têm paixão para esconder, nem para confessar.

CAPÍTULO IX

ist Gent. An ancient land in ancient oracles

Is called `law-thirsty": all the struggle there

Was after order and a perfect rule.

Pray, where lie such lands now?...

2nd Gent. Why, where they lay of old - in human souls.

i° Sr. De uma terra antiga em antígos oráculos

Diz-se que tem "sede de lei": toda luta lá

Era em prol da ordem e um perfeito governo.

Diga-me cá: agora, onde estão tais terras?...

2° Sr Ora, onde dantes jaziam - na alma humana.

o COMPORTAMENTO DE MR. Casaubon quanto aos necessários acertos foi

altamente satisfatório para Mr. Brooke, e as preliminares do casamento

transcorreram sem maiores entraves, encurtando as semanas de namo-

ro. Prometida, a noiva deve ir ver sua futura casa e ordenar as eventuais

mudanças que lá gostaria de fazer. A mulher ordena antes do casamento

a fim de que, depois, possa ter um desejo de submissão. E certamente o

erro que nós mortais, homens e mulheres, cometemos quando escolhe-

mos nosso próprio caminho pode suscitar certo espanto de que ele nos

agrade.

Numa manhâ de novembro, cinzenta mas firme, Dorothea partiu de


carruagem para Lowick em companhia de seu tio e de Celia. A residên-

cia de Mr. Casaubon era o solar. Perto, visível de algumas partes do

jardim, ficava a igrejinha, com o antigo presbitério em frente. No come-

ço de sua carreira, Mr. Casaubon contara apenas com seu benefício

eclesiástico, mas com a morte do irmão entrara também na posse do

solar da família. O qual tinha um pequeno parque, aqui e ali marcado

88 GEORGE ELIO7

por um velho e rijo carvalho, e umã alameda de tílias dando para a fa-

chada sudoeste, com uma cerca arriada entre o parque e a área de la.zer,

e assim das janelas do salão Oolhar vagava ininterruptamente por uma

encosta relvada até as tílias terminarem no nível das plantações de mi-

lho e pastos que pareciam fundir-se muitas vezes num lago sob o pôr do

sol. Este era o lado feliz da casa, pois o sul e o leste tinham um aspecto

meio melancólico até nas manhãs mais claras. Os espaços eram aqui

confinados, os canteiros de flores não demonstravam manutenção cui-

dadosa, e densos aglomerados de árvores, em geral sombrios teixos,

haviam crescido a grande altura, a menos de dez metros das janelas. A

construção, em pedra esverdeada, era no velho estilo inglês, não feia,

mas com janelas muito pequenas e, na aparência, soturna: o tipo de casa

que precisaria ter crianças, muitas flores, janelas abertas e pequenas vis-

tas de coisas brilhantes para fazê-la parecer um lar alegre. Neste final já

avançado do outono, com um esparso remanescente de folhas secas ca-

indo lentamente de través sobre as folhagens escuras numa quietude

sem sol, a casa também tinha um ar de declínio outonal, e Mr. Casaubon,

quando se apresentou, não dispunha de floração alguma que se pudesse

projetar em relevo contra tal fundo.

"Deus meu!" disse Celia consigo rnesma. "Estou certa de que Freshitt

Hall teria sido mais agradável que isto." Pensou nas pedras de cantaria

,
que eram brancas, nos pilares do pórtico, no terraço cheio de flores e em

Sir James sorrindo acima delas como um príncipe a sair de seu encanta-

mento numa roseira, com um lenço resultante da súbita metamorfose

das pétalas de mais delicado odor - Sir James, que conversava de modo

tão agradável, e sempre sobre coisas em que havia bom senso, não sobre

estudos! Celia tinha esses gostos femininos, irrefletidos e jovens que

os

homens desgastados e graves às vezes preferem numa esposa; mas feliz

mente as intenções de Mr. Casaubon haviam sido diferentes, pois elc

jamais teria chances com Celia.

Dorothea, pelo contrário, achou que a casa e seus espaços eram tudo

o que ela podia desejar: as estantes escuras na biblioteca comprida, o

tapetes e cortinas de cores esbatídas pelo tempo, os interessantes mapa

antigos e vistas panorâmicas nas paredes do corredor, com aqui e ali ur

velho vaso por baixo, não lhe davam a menor opressão, e ela os julgav

mais aconchegantes do que as estátuas e pinturas da granja, que o tio há

muito tempo trouxera para casa de suas viagens - e que estavam prov

velmente entre as manias que ele pegou certa vez. Para a pobre Dorothe

. aqueles nus clássicos tão sérios e as correggiosidades renascentistas c

sorriso afetado eram penosamente inexplicáveis em meio às suas concel

MIDDLEMARCH 89

ções puritanas: nunca lhe haviam ensinado como ela poderia pô-los nal-

gum tipo de relevância em sua vida. Mas os donos de Lowick aparente-

mente não tinham sido viajantes, e os estudos do passado por Mr.

Casaubon não eram feitos com a ajuda desses instrumentos.

Dorothea andou pela casa com uma deleitosa emoção. Tudo lhe pa-

recia santificado: ali seria o lar do qual ela seria a esposa, e era com

olhos cheios de confiança que olhava para Mr. Casaubon, quando este

lhe chamava a atenção, em especial, para determinados detalhes da ar-

rumação, perguntando-lhe se gostaria de mudar alguma coisa. Ela rece-

bia agradecida todas as deferências a seu gosto, mas nada via que mu-
dar. Nem via defeitos nos esforços de cortesia exata e solicitude formal

que ele fazia. Com perfeições não manifestadas ela preenchia todos os

claros, interpretando-o como interpretava as obras da Providência e res-

ponsabilizando pelas supostas discórdias sua própria surdez às harmo-

nias mais altas. E há muitos claros que ficam nas semanas de namoro,

completados pela crença amorosa com uma segurança feliz.

"Agora, minha querida Dorothea, eu gostaria que me indicasse, por

obséquio, que quarto pretende ter como seu boudoir," disse Mr. Casaubon,

demonstrando que seu modo de ver a natureza feminina era suficiente-

mente amplo para incluir esta necessidade.

"É muita bondade sua pensar nisto," disse Dorothea, "mas garanto-

lhe que prefiro ter essas questões já resolvidas para mim. Ficarei muito

feliz em ter tudo assim como está -justamente como você se acostu-

mou a ter, ou como há de preferir que seja. Não tenho motivos para

desejar nada mais."

"Oh, Dodo," disse Celia, "por que não fica com aquele quarto de

cima, o da janela em torrinha?"

Mr. Casaubon os conduziu até lá. A janela em torrinha dava para a

alameda de tílías; toda a mobilia era de um azul desmaiado, e havia

umas miniaturas de cavalheiros e damas de cabelo empoado pendura-

das em grupo. Uma tapeçaria por cima de uma porta também mostrava

um mundo azul-esverdeado com um veado pálido dentro. As cadeiras e

mesas, de pernas finas, eram fáceis de virar. Era um quarto no qual se

poderia ímaginar o fantasma de uma dama apertada em seus espartilhos

revisitando a cena dos seus bordados. Uma leve estante continha os

volumes in-duodecimo de uma literatura elegante encadernada em cou-

ro, completando a decoração.

"É mesmo," disse Mr. Brooke, "com umas forrações novas, uns so-

fás, esse tipo de coisa, daria um ótimo quarto. Agora está um pouco

pelado."
,., .

90 GEORGE ELIOT

"Não, titio," disse Dorothea com ardor. "Nem fale, por favor, em

mudar nada. Há tantas outras coisas no mundo que é preciso mudar -

Quero que as coisas fiquem assim como estão. E você gosta delas como

estão, não é?" acrescentou, olhando para Mr. Casaubon. "Talvez este

tenha sido o quarto de sua mâe quando jovem."

"Foi sim," disse ele, com sua lenta inclinação de cabeça.

" "E esta é sua mãe," disse Dorothea, que se virara para examinar o

grupo de miniaturas. "Parece-se com aquela bem pequenina que você

me levou; só que eu diria que o retrato é melhor. E esta aqui do outro

lado, quem é?"

"A irmã mais velha dela. Como você e sua irmã, foram os únicos

! filhos tidos pelos pais, que são estes que estão por cima."

"A írmã é boníta," disse Celia, dando a entender que era de opinião

menos favorável quanto à mãe de Mr. Casaubon. Um rumo novo se abria

à imaginação de Celia ao pensar que ele vinha de uma família onde

todos em seu tempo tinham sído jovens - e as damas sempre usavam

colares.

"É um rosto bem peculiar," disse Dorothea, olhando de perto. "Es-

tes olhos fundos, cinzentos, talvez um pouco juntos demais - e o nariz

delicado, irregular, com uma pequena ondulação - e todos estes cachos

! empoados caindo para trás. No todo, parece-me mais peculiar que boni-

to. Nem mesmo há uma parecença de família entre ela e a sua mãe."

"Não. E no destino também elas não foram iguais."

" "Você ainda não me falara dela," disse Dorothea.

"Minha tia teve um casamento infeliz. Eu nunca a vi."

t ..

Dorothea surpreendeu-se um pouco, mas sentiu que seria indeticado

perguntar ali mesmo por alguma informação que Mr. Casaubon se absti-

vera de dar e, a fim de admirar a vista, voltou-se para a janela. O sol


finalmente trespassara o cinza, e a alameda de tílias projetava sombras.

"Não podíamos agora ir passear no jardim?" disse Dorothea.

"Ah, e você gostaria de ver a igreja, sabe?" disse Mr. Brooke. "É uma

ígrejínha engraçada. E a aldeia. Cabe tudo numa concha. Aliás, para

você vem a calhar, Dorothea; porque as casas dos pobres são como uns

pavilhões de asilo - jardinzinhos, cravos-da-índia, esse tipo de coisa."

"Sim, por favor," disse Dorothea, olhando para Mr. Casaubon, "eu gos-

taria de ver tudo isto." Nada de mais explícito já conseguira extrair dele

sobre as casas dos pobres de Lowick á não ser que elas "não eram más."

Em breve estavam num caminho de cascalho que passava principal

mente por entre moitas de capim e grupos de árvores, sendo este o ca

minho mais curto para a igreja, como disse Mr. Casaubon. No portãozinhe

MIDDLEMARCH

91

que dava para o pátio da igreja houve uma pausa, enquanto Casaubon ia

ao presbitério, que era quase ao lado, apanhar uma chave. Celia, que se

deixara ficar um pouco atrás, aproximou-se presentemente dos outros,

ao ver que Mr. Casaubon se afastava, e disse em sua voz desenvolta de

staccato, que sempre parecia contradizer a suspeita de alguma intenção

maliciosa:

"Sabe, Dorothea, eu acabo de ver alguém muito jovem vindo por

um desses caminhos."

"E daí, Celia, que há de mais nisto?"

"Pode bem ser um jovem jardineiro - por que não?" disse Mr.

Brooke. "Eu mesmo disse ao Casaubon que ele devia mudar de jardi-

neiro."

"Não, não é um jardineiro," disse Celia; "um cavalheiro com um

caderno de desenho. Tinha o cabelo castanho-claro e cacheado. Só pude

vê-lo de costas. Mas era bem jovem."

"Talvez o filho do coadjutor," disse Mr. Brooke. `Ah, aí está o


Casaubon de volta, e o Tucker com ele. Uai apresentar o Tucker. Vocês

ainda não conhecem o Tucker."

Mr. Tucker era o coadjutor de meia-idade, gente do "clero infe-

rior", a quem em geral não faltam filhos. Feitas as apresentações, a

conversa porém não conduziu a nenhuma pergunta sobre a família dele,

e a surpresa daquela aparição de juventude foi esquecida por todos,

menos por Celia. Interiormente ela se negava a crer que aqueles ca-

chos castanhos e a esguia figura pudessem ter qualquer parentesco com

Mr. Tucker, que era exatamente tão velho e desenxabido quanto ela

esperaria que fosse o coadjutor de Mr. Casaubon; sem dúvida um bom

homem que iria para o céu (pois Celia não queria abrir mão de seus

princípios), mas os cantos da boca dele eram desagradáveis demais.

Algo desolada, Celia pensou no tempo que como dama de honor ela

teria de passar em Lowick, onde o coadjutor provavelmente não tinha

filhos bonitinhos de quem ela pudesse gostar, independentemente de

princípios.

Mr. Tucker foi fundamental ao passeio; e talvez que à cabeça de Mr

Casaubon não tenha faltado antevisão, pois o coadjutor foi capaz de

responder a todas as perguntas de Dorothea sobre os moradores da al-

deia e demais paroquianos. Todos, garantiu-lhe ele, viviam bem em

Lowick: não havia um morador dessas casinhas duplas de aluguel barato

que deixasse de criar o seu porco, e os canteiros de horta nos fundos

estavam sempre bem plantados. Os garotos usavam um cordurói exce-

lente, as meninas saíam como criadas bem arrumadas ou, ficando em

92 GEORGE ELIO"

casa, dedicavam-se aos trabalhos em palha: aqui não havia vultos, nãoc

havia Dissenso;" e, embora a disposição pública tendesse mais ao di

nheiro que em direção à espiritualidade, não havia muitos vícios. Eran

tão numerosas as galinhas pintadas, que Mr. Brooke observou: "Pelc

que estou vendo, em suas lavouras sempre sobra um pouco de cevad;


para as mulheres catarem. Aqui os pobres podem ter uma galinha ns

panela, como o bom rei de França desejava que seu povo todo tivesse

! Os franceses comem muita galinha - galinha magra, sabem."

í "Penso que este desejo dele era bem reles," disse Dorothea indigna

da. "Serão os reis tão monstruosos que um desejo como este deva se

reconhecido como virtude real?"

"Se o que ele desejava para o povo eram galinhas magras," diss

Celia, "não seria nada bom. Mas talvez o que quisesse para todos fos

i sem galinhas gordas."

"Sim, mas o termo ficou fora do texto, ou talvez subauditum; ou seja

presente no raciocínio do reí, mas não expresso," dísse Mr. Casaubon

sorrindo com uma inclinação de cabeça para Celia, que imediatamentc

recuou um pouco, pois não podia suportar que Mr. Casaubon piscass

os olhos diante dela.

No caminho de volta para casa, Dorothea mergulhou em silêncio

; Sentia-se um pouco desapontada, envergonhando-se entretanto disto

por não haver em Lowick nada para ela fazer; e nos poucos mínuto;

que se seguiram sua mente passou a vislumbrar a possibilidade, que

ela teria preferido, de que sua casa se achasse numa paróquia con

,;

maior parcela da miséria do mundo, para que aí ela pudesse ter obriga

ções mais ativas. Depois, voltando-se para o futuro que realmente es

tava à sua frente, imaginou-se na mais completa devoção aos objetivo

de Mr Casaubon, dos quais iria esperar novas obrigações. Muitas d

resto poderiam revelar-se ao conhecimento superior por ela ganho nest

convívio.

Mr. Tucker logo os deixou, tendo algum trabalho clerical a fazer qi

não lhe permitiria almoçar no solar; e, nisto que eles iam reingressanc

no jardim pelo portãozinho, Mr. Casaubon disse:

"Você parece um pouco triste, Dorothea. Espero que tenha gosta


do que viu."

"Estou sentindo uma coisa que é talvez descabida e errada," respe

deu Dorothea corn sua costumeira franqueza - "quase desejando q

as pessoas aqui carecessem de que se fizesse mais por elas. Tenho c

, :,

"No caso, a dissidência da Igreja estabelecida (a anglicana), que incluía

evangélicos e metodi

 i

MIDDLEMARCH

93

nhecido tão poucos modos de dar utilidade à minha vida! Mas é claro

que minhas noções de utilidade devem ser limitadas. Devo aprender

novos modos de ajudar as pessoas."

"Sem dúvida," disse Mr. Casaubon. "Todas as posições têm suas

obrigações correspondentes. Na sua, como senhora de Lowick, nenhu-

ma delas, tenho certeza, deixará de ser atendida."

"Esta é minha crença de fato," disse Dorothea resolutamente. "Não

fique pensando que estou triste."

"Está bem. Agora, se não estiver cansada, vamos voltar para casa

por um outro caminho, não por onde viemos."

Dorothea não estava nem um pingo cansada, e assim foi feito um

pequeno circuito até um teixo soberbo, a maior glória hereditária da

propriedade neste lado da casa. Quando se aproximaram, uma figura

p ,

atente contra um fundo escuro de folhagens, já se achava ali num ban-

co, desenhando a velha árvore. Mr. Brooke, que andava à frente com

Celia, virou a cabeça e disse:

"Quem é este jovem, Casaubon?"

Tinham chegado já bem perto quando Casaubon respondeu:

"É um jovem parente meu, um primo em segundo grau: na verdade


o neto," acrescentou, olhando para Dorothea, "da senhora cujo retrato

lhe despertou a atenção, minha tia Julia."

O rapaz, pondo de lado seu caderno de desenho, levantara-se. Seus

bastos cachos castanhos, tal como suajuvenilidade, identificavam-no de

imediato com o vulto visto por Celia.

"Dorothea, permita-me apresentar-lhe meu primo, Mr. Ladislaw Will,

esta é Miss Brooke."

O primo estava agora tão perto que, quando ergueu o chapéu,

Dorothea pôde ver os olhos cinzentos talvez um pouco juntos demais, o

nariz delicado, irregular, com uma espécie de pequena ondulação, e o

cabelo caindo para trás; a boca e o queixo eram porém de aspecto mais

proeminente e ameaçador que o associado ao tipo da miniatura da avó.

O jovem Ladislaw não se sentia obrigado a sorrir, como se esta apresen-

tação à futura prima e seus parentes lhe agradasse; assumiu, com efeito

um amuado ar de descontentamento.

"Pelo que vejo, é um artista," disse Mr. Brooke, apanhando o cader-

no de desenho e folheando-o sem fazer cerimônia, como de seu hábito.

"Não, apenas desenho um pouco. Aí não há nada que me -- -

visto," disse Ladislaw, corando talvez de irritação, não de mod

"Mas ora esta, bem que está interessante! Em certa época

bém fiz algo do gênero, sabe. Mas olhem só; eis aqui o que eu cc

94 GEORGE ELfOT

I.

i;

t.

um bom trabalho, feito com o que outrora chamávamos de brio." Mr.

Brooke estendeu para as duas moças um grande esboço colorido de um

lugar pedregoso e árvores, com um açude.

"Não tenho como julgar tais coisas," disse Dorothea, não com frie-

za, mas desaprovando com impaciência o apelo a ela dirigido. "Sabe,


meu tio, nunca vejo a beleza dessas obras pictóricas que o senhor diz

serem tão admiradas. São uma linguagem que eu não entendo. Suponho

que haja alguma relação entre natureza e pintura que eu sou ignorante

demais para sentir-assim como o senhor entende uma frase grega que

para mim nada quer dizer." Dorothea ergueu os olhos para Mr. Casau bon

que inclinou a cabeça para ela, enquanto Mr. Brooke, sorrindo, dízia

despreocupadamente:

"Meu Deus, como as pessoas são diferentes! Mas então você rece-

beu uma instrução mal orientada, sabe - pois isto é justamente o ideal

para moças - o esboço, as belas-artes etc. Você preferiu porém dese-

nhar plantas de casas; não compreende a morbidezza," e esse tipo de coi-

sa. Espero que venha à minha casa, e eu lhe mostrarei o que fiz no

gênero," prosseguiu ele, virando-se para o jovem Ladislaw, que teve de

ser interrompido na atenção com que observava Dorothea. Ladislaw já

havia concluído que a moça devia ser bem desagradável, posto que se ia

casar com Casaubon, e o que ela dissera de sua ignorância em pintura

confirmaria esta opinião, mesmo que ele tivesse acreditado. Com eFeito,

havia tomado as palavras dela por um julgamento dissimulado, e estava

certo de que detestara seu esboço. Fora grande a sagacidade presente na

explicação de Dorothea: a um só tempo ela zombara do seu tio e dele,

quando a deu. Porém que voz! Era como a voz de uma alma que tivesse

vivido antigamente numa harpa eólia. Tratar-se-ia decerto de uma da

incongruências da Natureza. Não podia haver nenhum tipo de paixão

numa moça que se casaria com Casaubon. Mas ele, desviando-se da

preocupação nela centrada, expressou seus agradecimentos ao convit

de Mr. Brooke.

"Veremos juntos minhas gravuras italianas," contínuou o bom ho

mem. "Tenho um sem-fim dessas coisas, que há anos deixei do lado

Aqui neste cantão do país nós nos enferrujamos um pouco, sahe? Mf

nos vocé, Casaubon; você se apega aos seus estudos; mas eu, minh
melhores idéias ficam soterradas - fora de uso, sabe. Vocês, due sã

jovens e inteligentes, devem-se proteger da indolência. Eu fui muito a

Esta palavra italiana, que quer dizer "macieza, delicadeza," esteve em voga na

crítica de arte

século XVIII para definir um estilo de pintura caracterízado pe(a extrema

suavídade.

MIDDLEMARCH 95

dolente, sabe: se não, em certa época teria conseguido alguma coisa."

"Eis aí uma admoestação oportuna," disse Mr. Brooke; "agora po-

rém vamos passar à casa, para que as moças não se cansem de estar

sempre de pé."

Com todos já de costas, Ladislaw sentou-se para continuar seus bos-

quejos, e ao fazê-lo seu rosto deu-se a uma expressão de regozijo que ia

aumentando enquanto ele desenhava, até que explodiu num riso alto,

jogando a cabeça para trás. Era em parte a repercussão de sua própria

produção artística o que o divertia; mas em parte também, a idéia de seu

sisudo primo na condição de amante daquela moça; e ainda em parte, a

definição de Mr. Brooke sobre o lugar que poderia ter atingido, não fos-

se o impedimento da indolência. O senso do ridículo, em Mr. Will

Ladislaw, avivava-lhe as feições de modo muito agradável: era o puro

desfrute da comicidade, sem nenhuma mistura de auto-exaltação e de

escárnio.

"Que vai fazer de si mesmo o seu sobrinho, Casaubon?" disse Mr

Brooke a caminho.

"Meu primo, você quer dizer - não meu sobrinho."

"Sim, sim, primo. Mas digo em termos de carreira, entende?"

`A resposta a esta pergunta é constrangedoramente incerta. Ao dei-

xar Rugby, ele declïnou de entrar numa universidade inglesa, onde de

bom grado eu o teria posto, e escolheu o que devo considerar a solução

anômala de estudar em Heidelberg. Agora quer ir para o estrangeiro de

novo, mas sem uma intenção definida, a não ser os vagos objetivos do
que chama de cultura, em preparo para o quê nem ele sabe. Tem declina-

do de escolher uma profissão."

"Suponho que não tenha outros meios senão os que você lhe fornece."

`Á ele e seus amigos sempre dei a entender que eu forneceria com

moderação o que fosse necessário para dar-lhe uma educação completa

e lançá-lo respeitavelmente na vida. Estou por conseguinte obrigado a

corresponder à expectativa assim surgida," disse Mr. Casaubon, situan-

do como mera retidão sua conduta: traço de delicadeza que Dorothea

notou com admiração.

"É um sedento de viagens; talvez acabe-se tornando um Bruce ou

um Mungo Park,"" disse Mr. Brooke. "Eu mesmo já fui um pouco assim

certa vez."

"Não, ele não tem o menor pendor para explorações, nem para o

alargamento de nossa geognose: isto seria uma intenção definida que eu

)ames Bruce (1730-1794) e Mungo Park (1771-1806), exploradores britânicos da

África.

GEORGE ELIOT

96

reconheceria com certa aprovação, muito ernbora sem felicitá-lo pela

carreira, que com tanta freqüência termina em morte prematura e vio-

lenta. Ele está tão longe de ter algum desejo de um conhecimento mais

acurado da superfície da Terra, que disse que preferia não conhecer as

, nascentes do Nilo, e que deveria haver algumas regiões desconhecidas

preservadas como áreas de caça para a imaginação poética."

"Bem, não deixa de ser interessante," disse Mr. Brooke, que certa

mente tinha um espírito imparcial.

"Temo que isto não seja nada mais que parte de sua inaptidão e

indisposição generalizadas para uma entrega profunda aalguma coisa, c

que seria um mau augúrio para ele em qualquer profissão, civil ou ecle
siástica, se porventura fosse suficientemente submisso à norma estabe

lecida para escolher uma."

"Talvez ele tenha escrúpulos de consciência baseados em sua pró

pria inadequação," disse Dorothea, que já se ia interessando por encon

trar uma explicação favorável. "Por que o direito e a medicina devem se

profissões muito difíceis de abraçar, não é mesmo? Delas dependem a

vida e a fortuna dos outros."

"Sem dúvida; temo porém que meu jovem parente Will Ladislav

seja determinado principalmente, em sua aversão por estas vocações

pelo desamor à constante aplicação e a este tipo de aquisição que c

i instrumentalmente necessária, se bem não seja encantadora nem dE

imediato apeteça ao gosto auto-indulgente. Já insisti com ele sobre c

que Aristóteles disse com admirável brevidade, que para a consecução

de qualquer obra considerada como um fim deve haver um prévio exer

cício de muitas energias ou meios adquiridos de uma ordem secundária

exigindo paciência. Apontei-lhe meus próprios volumes de manuscritos

que representam a lida de anos de preparo para uma obra ainda não

realizada. Mas em vão. Aos raciocínios prudentes desta espécie ele res

ponde intitulando-se Pégaso, assim como chama de `arreios" a qualque

forma de trabalho prescrito."

Celia riu. Era uma surpresa, para ela, constatar que Mr. Casaubo

podia dizer alguma coisa engraçada.

"Bem, sabe, ele pode acabar virando um Byron, um Chatterton, ur

Churchill - esse tipo de coisa - não há como saber," disse Mr. Brookf

"Com que então você o manda à Itália, ou aonde mais queira ir?"

"Pois é; concordei em conceder-lhe uma moderada ajuda por mai

ou menos um ano; não pede mais. Deixarei que se submeta ao teste d

liberdade."

I

"É muita bondade sua," disse Dorothea, olhando para Mr. Casaubo
MIDDLEMARCH

97

com um enorme prazer. "É um gesto nobre. Afinal, as pessoas realmente

podem ter uma vocação que a elas mesmas não se revela de todo, não é?

Podem parecer fracas e preguiçosas só porque estão crescendo. Temos

de ser muito pacientes uns com os outros, a meu modo de ver."

"Suponho que é por estar comprometida a casar-se que você passou

a pensar que ser paciente é bom," disse Celia, assim que ela e Dorothea,

na hora de desvestirem-se, encontraram-se a sós.

"Você quer dizer que eu sou muito impaciente, não é, Celia?"

"É; quando as pessoas não fazem e dizem o que você quer." Celia

passara a ter menos medo de "dizer coisas" para Dorothea desde seu

compromisso de casamento: o brilho da inteligência parecia-lhe mais

digno de pena que nunca.

CAPÍTULO X

"He had catched a great cold, had he had no other clothes

to wear than the skin of a bear not yet killed."

- FULLER.

("Teria pegado uma grande gripe, se não tivesse outras rou-

pas para usar, além da pele de um urso ainda não morto.")

- FULLER."

O JovElvl LAolsLAw não foi fazer a visita para a qual

Mr. Brooke o con

dara, e apenas transcorridos seis dias Mr. Casaubon

informou que o

paz seu parente já havia embarcado para o Continente,

dando a entE

der pela fria vaguidão que dispensava perguntas. Com

efeito, Will dec

nara de referir-se a qualquer destino mais preciso que


toda a área

Europa. O gênio, sustentava ele, necessariamente não

tolera os grilhõ

por um lado, tem de ter o máximo de expansão para sua

espontaneic

de; por outro, pode esperar com confiança pelas

mensagens do unive

que o convocam para uma obra específica, colocando-se

apenas nw

. I atitude de receptividade perante as chances sublimes.

As atitudes

receptividade são várias, e Will já experimentara

sinceramente mui

delas. Nem gostava tanto assim de vinho, mas excedeu-se

não pouc

vezes, simplesmente para realizar um experimento nesta

forma de êx

se; jájejuara até desmaiar, indo depois comer lagosta;

já se pusera doc

, ,,"".....J te de tantas doses de ópio. Nada de

grandemente original havia resul

do destas práticas; e os efeitos do ópio convenceram-no

de m

l,".  disparidade total existente entre sua

constituição e a de De Quinc

If

Thomas Fuller (1608-1661), clérigo anglicano e escritor

inglês.

tt

 "i
MIDDLEMARCH

99

Aquela circunstância a mais que induziria à evolução do gênio ainda não

tinha surgido; o universo ainda não fizera um chamado. Até a sorte de

César, antigamente, não foi senão um grande pressentimento. Sabemos

que todo desenvolvimento é uma mascarada, e que formas efetivas po-

dem estar sob disfarce em embriões indefesos. - O mundo, de fato, está

cheio de analogias esperançosas e de ovos lindos mas dúbios chamados

possibilidades. Will viu com suficiente clareza os lamentáveis exemplos

de uma longa incubação não geradora de prole e, não fosse sua gratidão,

teria rido de Casaubon, cuja aplicação diligente, cujas pilhas de cader-

nos e fracas luzes de teoria erudita para explorar a barafunda das ruínas

do mundo pareciam dar força a uma moral que encorajava de todo a

generosa confiança de Will nas intenções do universo a seu respeito.

Esta confiança, segundo ele, era uma marca de gênio; e certamente não

é marca que indique o contrário; pois não consiste o gênio em presunção

nem humildade, mas num poder de produzir ou fazer, não algo em geral,

mas alguma coisa em particular. Que ele então parta para o Continente,

sem que nos pronunciemos sobre seu futuro. Em meio a todas as formas

de erro, a profecia é a mais gratuita.

No momento esta cautela quanto a um julgamento muito apressado

interessa-me mais em relação a Mr. Casaubon que a seu jovem primo.

Se Mr. Casaubon foi para Dorothea a mera ocasião que ateou fogo ao

delicado material inflamável de suas ilusões juvenis, deve-se deduzir

que ele estivesse bem representado nas mentes dos personagens menos

apaixonados que até agora já manifestaram julgamentos a seu respeito?

Protesto contra qualquer conclusão absoluta, qualquer preconceito deri-

vado do desprezo de Mrs. Cadwallader pela alegada grandeza de alma

de um clérigo que era seu vizinho, ou da opinião negativa de Sir James

Chettam sobre as pernas do seu rival, - do fracasso de Mr. Brooke em

extrair as idéias de um confrade, ou das críticas de Celia à aparência


pessoal de um intelectual de meia-idade. Não tenho certeza de que o

maior homem de sua época, se jamais este solitário superlativo existiu,

pudesse escapar desses reílexos desfavoráveis de si em vários espelhinhos;

pois até Milton, contemplando numa colher seu retrato, teria de admitir

que tinha os ângulos faciais de um roceiro. Além do mais, se Mr. Casaubon

quando se manifesta, recorre a uma retórica frígida, não é conseqüente-

mente certo que nele não haja bons sentimentos, nem bons trabalhos.

Um físico imortal e decifrador de hieróglifos não escreveu versos detes-

táveis?" A teoria do sistema solar foi porventura elaborada por meio de

Alusão a Thomas Young (1773-1829), médico, fisico, egiptólogo e poeta inglês.

10O GEORGE Et.tO"

graciosas maneiras e tato na conversação? Suponha que nos voitemo

das apreciações externas de um homem para tentar saber, com o mai

agudo interesse, quais os informes de sua própria consciência sobre su;

capacidade e fazer: com que estorvos ele leva a cabo suas tarefas diárias

que dissipar-se de esperanças, ou que mais funda fixidez de auto-ilusão

os anos demarcam dentro dele; e com que espírito ele luta contra a pres

são universal que um dia lhe há de ser por demais pesada e levará se

coração à pausa final. Sem dúvida alguma sua sorte é importante a seu

próprios olhos; a principal razão para pensarmos que insta por um (uga

muito grande em nossa consideração deve ser nossa falta de espaço par;

ele, posto que o reportemos com perfeita confiança à proteção Divina; 

nem só, é tido mesmo por sublime que de lá nosso vizinho espere c

máximo, por pouco que de nós tenha podido obter. Mr. Casaubon, tam

bém, era o centro de seu próprio mundo; se corria o risco de pensar qm

os outros eram providencialmente feitos para ele, e especialmente d

considerá-los à luz de sua adequação para o autor de uma "Chave dE

Todas as Mitologias," tal traço não nos é de todo estranho e, como a;

demais esperanças mendicantes dos mortais, pede-nos um pouco de pie


dade.

Decerto este assunto de seu casamento com Miss Brooke o afetav

mais diretamente que a qualquer uma das pessoas que até agora tên

demonstrado que o desaprovavam, e no atual estado de coisas eu sintc

mais simpatia por sua sensação de triunfo do que pelo desapontamen

to do amável Sir James. Pois na verdade, ao aproximar-se o dia marca

do para o casamento, Mr. Casaubon não percebia elevação em seu âni

mo; nem a contemplação desse matrimonial cenário de jardim onde

como toda experiência mostrou, o caminho devia ser bordejado de flo

res, revelava-se persistentemente mais atraente para ele do que as costu

meiras abóbadas sob os quais andava com sua vela na mão. Não con

fessava a si mesmo, e menos ainda poderia ter sussurrado a outrerr

sua surpresa de conquistar o nobre coração de uma moça adorável ser

todavia ter conquistado o prazer - que ete também havia visto com

objeto a encontrar por busca. É bem verdade que sabia todas as passa

gens clássicas que dão a entender o contrário; mas saber passagen

clássicas, parece-nos, é uma forma de despender energia, o que explic

por que elas deixam tão pouca força suplementar para sua aplicaçã

pessoal.

O pobre Mr. Casaubon havia imaginado que sua longa vívência de celi

batário estudioso armazenara para ele um composto interesse de fru

ção, e que grandes exigências sobre suas afeições não deixariam de sf

MIDDLEMARCH

101

honradas; pois todos nós, sisudos ou não, temos nossos pensamentos

emaranhados em matáforas, e fatalmente agimos à força delas. E agora

ele se achava ante o risco de ser entristecido pela própria convicção de

que suas circunstâncias eram incomumente felizes: nada havia de ex-


terno que pudesse responsabilizar por certa vagueza de sensibilidade

que o dominava justamente quando sua alegria expectante deveria es-

tar mais viçosa, justamente quando ele trocava a monotonia rotineira

de sua biblioteca em Lowick pelas visitas à granja. Aqui estava uma

molesta experiência na qual ele era tão drasticamente condenado à

solidão quanto no desespero que o ameaçava às vezes enquanto no

atoleiro da autoria ele se afadigava sem nunca parecer mais perto do

fim. E era a pior das solidäes a dele, a que tende a retrair-se ante a

simpatia. Não podia senão desejar que Dorothea o julgasse não menos

feliz do que o mundo esperaria que seu bem sucedido pretendente

fosse; e em relação às suas ambiçäes de autor ele contava com a juvenil

confiança e veneração da moça, deleitando-se em instigar-lhe o inte-

resse fresco de ouvir como um meio de encorajamento a si mesmo: ao

falar para ela, apresentava toda sua atuação e tenção com a segurança

refletida do pedagogo, e nesta hora se livrava da audiência ideal e frígi-

da que atravancava suas horas laboriosas e iriférteis com a vaporosa

pressão das sombras tartáreas.

Para Dorothea, após a história mundial de brinquedo adaptada para

moçoilas que havia constituído a principal parte de sua educação, as

conversas de Mr. Casaubon sobre seu grande livro estavam cheias de

novos panoramas; e esse sentido de revelação, essa surpresa de uma

introdução mais fiel a estóicos e alexandrinos, como gente que tinha

idéias não de todo diferentes das dela, mantinha,por ora em suspensão

temporaria sua usual avidez de uma teoria unificadora que pudesse

levar sua própria vida e doutrina a uma estreita conexão com esse fa-

buloso passado e dar às fontes mais remotas de conhecimento alguma

influência sobre suas açäes. Este ensinamento mais completo haveria

de vir - Mr. Casaubon contar-lhe-ia tudo: ela aguardava uma iniciação

mais elevada às idéias como aguardava o casamento, mesclando suas

confusas concepçäes das duas coisas. Seria grande emo supor que

Dorothea se viesse a preocupar com qualquer participação nos conhe-


cimentos de Mr. Casaubon como mera proeza; pois, embora a opinião

dos vizinhos de Freshitt e Tipton a houvesse declarado inteligente, tal

epíteto não a teria descrito nos círculos em cujo vocabulário mais pre-

ciso inteligência dá a entender simples aptidão para saber e fazer, à

parte do caráter. Toda sua ansiedade de aquisição jazia no interior des-

102

GEORGE ELIOT

sa corrente repleta de motivos de simpatia na qual suas idéias e impul-

sos eram de hábito arrastadas. Ela não queria adornar-se de conheci-

mento - usá-lo desligado dos nervos e do sangue que a alimentavam

na ação; e, se tivesse escrito um livro, tê-lo-ia feito como Santa Teresa,

sob o comando de uma autoridade que lhe constringisse a consciência.

Mas ansiava por algo pelo qual sua vida pudesse ser preenchida de

ação a um só tempo racional e ardente; e, posto que ido o tempo das

visäes que guiavam e dos diretores espirituais, posto que a prece au-

mentava o anseio, mas não a instrução, que luz ainda havia senão a do

conhecimento? Todo o óleo restante era o que os eruditos mantinham;

e que homem mais erudito que Mr. Casaubon?

Assim nessas breves semanas a alegre e grata expectativa de Dorothea

não se alterou e, ainda que seu amado pudesse ocasionalmente

conscíentizar-se de monotonia, nunca poderia atríbuí-la ao menor arre-

fecer de seu afeiçoado interesse.

Era época de clima bem ameno para estimular o projeto de estender

até Roma a viagem de núpeias, o que deixava ansioso Mr. Casaubon,

porque era de seu desejo examinar no Vaticano alguns manuscritos.

"Continuo a lamentar que sua irmã não nos acompanhe," disse ele

certa manhã, pouco tempo depois de esclarecido que Celia se opunha a

ir e que Dorothea não a desejava levar. "Você há de ter muitas horas de


solidão, Dorothea, pois serei obrigado a aproveitar meu tempo ao máxi-

mo durante nossa estada em Roma, e eu me sentiria mais livre se você

tivesse companhia."

As palavras "eu me sentiria mais livre" deixaram Dorothea enfeza-

da. Pela primeira vez ela corou de irritação ao conversar com Mr.

Casaubon.

"Você deve ter-me entendido muito mal," disse ela, "se pensa que

eu não compreenderia o valor de seu tempo - se pensa que eu não

abriria mão, de bom grado, de qualquer coisa que lhe impedisse de usá-

lo para o melhor objetivo possível."

" muito gentil de sua parte, minha querida Dorothea," disse Mr,

Casaubon, não percebendo nem um pouco que ela estava ofendida; "mas,

se houvesse outra mulher a lhe fazer companhia, eu poderia confiar vocês

duas aos cuidados de um cicerone, e assim realizaríamos dois objetivos

no mesmo espaço de tempo."

"Peço-lhe que não se refira novamente a isto," disse Dorothea, não

sem soberba. Mas imediatamente ela temeu estar enganada e, voltan-

do-se para Mr. Casaubon, pôs a mão sobre a dele e acrescentou noutrc

tom: "Por favor, não se inquiete por minha causa. Terei tanto o qu(

"Yf w

MIDDLEMARCH

103

pensar, quando estiver sozinha! E Tantripp já será companhia bastante,

apenas para cuidar de mim. Eu não agüentaria a Celia comigo: ela ficaria

muito infeliz."

Estava na hora de se vestir. Haveria nesse dia um jantar, a última das

comemoraçäes feitas na granja como preliminares corretas para o casa-


mento, e Dorothea alegrou-se por ter uma razão para afastar-se logo

dali ao som do sino, como se necessitasse de mais preparativos então

que os de costume. Envergonhava-se da irritação provinda de alguma

causa que nem para si mesma era capaz de definir; pois, embora ela não

tivesse a intenção de ser falsa, sua resposta não tocara na verdadeira

ofensa em seu íntimo. As palavras de Mr. Casaubon haviam sido bem

razoáveis, provocando no entanto, de parte dela, uma instantânea e vaga

sensação de dístanciamento.

"Encontro-me decerto num estado de espírito estranharnente egoís-

ta e fraco," disse ela a si mesma. "Como posso ter um marido que está

tão acima de mim sem saber que ele precisa menos de mim que eu

dele?"

Tendo-se convencido de que Mr. Casaubon estava absolutamente

certo, ela recuperou sua equanimidade, e já era uma agradável imagem

de dignidade serena quando ingressou na sala de visitas em seu ves-

tido cinza-prateado - as linhas simples do cabelo castanho partidas

no alto da testa e enroladas para trás num só tufo, em concordância

com a total ausência, em seus modos e expressão, de qualquer busca

de efeito. Muitas vezes, quando Dorothea se achava em companhia

dos outros, o ar de tranqüilidade que a parecia envolver era tão com-

pleto como se ela fosse uma pintura de Santa Bárbara a olhar de sua

torre o céu claro; mas estes intervalos de quietude tornavam a energia

de sua fala e emoção mais notada quando algum apelo exterior a sen-

sibilizava.

Naturalmente ela foi alvo de muitas observaçäes essa noite, pois era

um grande jantar e, no tocante à presença masculina, algo mais hetero-

gêneo que qualquer outro já oferecido na granja desde que as sobrinhas

de Mr. Brooke residiam com ele, travando-se por conseguinte as conver-

sas em duos e trios mais ou menos desarmônicos. Lá estavam o prefeito

recém-eleito de Middemarch, que por sinal era um dono de fábrica; o

banqueiro filantropo, cunhado dele, que mandava tanto na cidade que


era chamado de metodista por uns e, por outros, de hipócrita, conforme

os recursos dos respectivos vocabulários; e homens de várias profissäes.

Com efeito, Mrs. Cadwallader disse que Brooke estava começando a

regalar a sociedade local e que ela preferia os agricultores no jantar do

104

GEORGE ELIOT

dízimo, os quais bebiam despretensiosamente à saúde dela e não ti-

nham vergonha da mobília dos seus próprios avós. Pois nesta região do

país, antes de a Reforma ter feito sua parte notável no desenvolvimento

da consciência política, havia uma distinção mais clara de classes e uma

distinção mais imprecisa de partidos; assim que os convites heterogê-

neos de Mr. Brooke pareciam ligar-se àquela frouxidão generalizada que

provinha de suas desordenadas viagens e do hábito de, em forma de

idéias, ele ter absorvido demais.

Tão logo Miss Brooke saiu da sala de jantar, encontraram-se oportu-

nidades para alguns "reparos" ínterjetivos.

"Bela mulher, Miss Brooke! mulher incomumente bela, por Deus!"

disse Mr. Standish, o velho advogado, que depois de tantos anos de

preocupação com a pequena nobreza e suas terras acabara também pro-

prietário, e que proferiu esta blasfêmia em voz grossa, como uma espé-

cie de divisa armorial, qualificando a fala de um homem que desfrutava

de uma boa situação.

A observação parecia dirigir-se ao banqueiro, Mr. BuIstrode, mas

este senhor se limitou a inclinar-se, avesso que era a grosserias e

profanidades. Foi tomada então por Mr. Chichely, um solteirão de meia-

idade e celebridade da caça, que tinha o corpo algo semelhante a um ovo

de Páscoa, alguns fios de cabelo cuidadosamente ajeitados e uma postu-

ra que denotava consciência de uma aparencia distinta.


", mas não é meu tip -: gosto da mulher que se exibe um pouco

mais para agradar a gente. E preciso que haja na mulher um pouco de

filigrana - alguma coisa da coquete. O homem gosta de uma espécie de

desafio. Quanto mais ela o deixar acuado, melhor."

"Há certa verdade nisto," disse Mr. Standish, disposto a ser cordial.

"E, por Deus, é geralmente por aí que elas vão. Suponho que isto

corresponda a alguns sábios fins: foi a Providência que as fez assim, não

é, Bulstrode?"

"Eu me inclinaria a vincular a coqueteria a outra fonte," disse Mr.

BuIstrode. "Antes, inclinar-me-ia a vinculá-la ao diabo."

,Ah, sem dúvida, numa mulher é preciso que haja um diabinho,"

disse Mr. Chichely, cujo estudo do belo sexo parecia ser feito em detri.

mento de sua teologia. "E eu gosto é das louras, com um bom passo e

um pescoço de cisne. Aqui entre nós, a filha do prefeito é muito mais a

meu gosto do que Miss Brooke ou Miss Celia. Se eu fosse homem por

me casar, antes de qualquer uma delas escolheria Miss Vincy."

"Pois decida-se, decida-se," disse Mr. Standish, fazendo graça; "os

homens de meia-idade, como você vê, estão na ordem do dia."

MIDDLEMARCH

105

Mr. Chichely balançou a cabeça de um modo bem expressivo: ele

não ia sujeitar-se à certeza de que viria a ser aceito pela mulher que

escolhesse.

Esta Miss Vincy que tinha a honra de ser o ideal de Mr. Chichely

naturalmente não estava presente; pois Mr. Brooke, sempre contrário a

ir-se longe demais, não gostaria de ver suas sobrinhas travando conheci-

mento com a filha de um dono de fábrica de Middemarch, a menos que

fosse numa ocasião pública. A parte feminina da companhia não incluía


ninguém a quem Lady Chettam ou Mrs. Cadwallader pudessem fazer

objeçäes; pois Mrs. Renfrew, a viúva do coronel, não só era inatacável

no tocante à origem, mas também interessante em virtude de seus acha-

ques, que intrigavam os doutores e pareciam claramente um caso onde a

inteireza do conhecimento profissional poderia necessitar de um suple-

mento de charlatanice. Lady Chettam, que atribuía sua própria saúde

extraordinária a beberagens caseiras aliadas a um constante atendimen-

to médico, acompanhou com grande esforço de imaginação os sintomas

descritos por Mrs. Renfrew, e soube da espantosa ineficácia, no caso

dela, de todos os remédios fortificantes.

"Mas e o poder desses remédios, para onde então é que vai, minha

querida?" disse a meiga mas pomposa matrona, virando-se pensativa-

mente para Mrs. Cadwallader, assim que Mrs. Renfrew teve a atenção

chamada alhures.

" um poder que fortalece a doença," disse a esposa do reitor, muito

bem nascida demais para não ser amadora em medicina. "Tudo depende

da constituição: uns produzem gordura, outros sangue, outros bílis - é

assim que eu vejo a questão; e qualquer coisa que as pessoas ingerem é

como uma batelada de grãos para o moinho."

"Pois então ela devia tomar remédios que atenuassem - que enfra-

quecessem a doença, sabe, se você, minha querida, está com a razão. E

acho o que diz muito sensato."

"Certamente é sensato. Pegue duas espécies de batatas, criadas no

mesmo solo. Uma delas cresce mais e fica mais aguada..."

"Ah! como a pobre Mrs. Renfrew - isto é o que eu penso. Hidropisia!

Por enquanto ainda não há inchação - é para dentro. Eu diria que ela

devia tomar remédios que secassem, você não acha? - ou então um

banho a seco de ar quente. Há muitas coisas a tentar, assim de um tipo

secante.PI

"Que tal ela tentar os panfletos de uma certa pessoa?" disse Mrs.

Cadwallader em voz baixa, vendo que os senhores entravam. "Ele não


precisa ficar mais seco."

106

GEORGE ELIOT

"Ele quem, querida?" disse Lady Chettam, mulher encantadora, que

não se apressaria para anular o prazer de uma explicação.

"O noivo - Casaubon. Decerto ele está secando mais rápido depois

do noivado: a chama da paixão, suponho."

"Tendo a crer que está longe de ter uma boa constituição," disse

Lady Chettam, num tom de voz ainda mais baixo. E depois os estudos

dele - tão áridos, como você diz."

"Realmente, ao lado de Sir James, ele até parece o próprio crânio da

morte coberto de pele para a cerimônia. Guarde minhas palavras: dentro

de um ano a contar de hoje esta menina vai odiá-lo. Atualmente ela o vê

como um oráculo, mas passará pouco a pouco para o outro extremo,

Tudo caprichos inconstantes!"

" muito triste! Acho que ela é mesmo uma cabeça-dura. Mas diga-

me - você sabe tudo sobre ele - há alguma coisa realmente má? Qual

é a verdade?"

"A verdade? ele é tão ruim quanto um remédio emado - ruim de se

tomar e, na certa, fazendo mal."

"Não podia haver nada pior do que isto," disse Lady Chettam, com

uma concepção tão vívida do tal remédio que parecia ter aprendido algo

bastante objetivo sobre as desvantagens de Mr. Casaubon. "No entanto,

Jarnes não dará ouvidos a nada contra Miss Brooke. Diz que ela é ainda

o espelho das mulheres."

"Um generoso fingimento da parte dele. Pode estar certa disto, ele

gosta mais da pequena Celia, e ela bem que o aprecia. Creio que da

minha pequena Celia a senhora gosta, pois não?"


"Decerto; não só ela é mais chegada aos gerânios, como também

parece mais meiga, embora sua figura não faça tanta vista. Mas, já

que estávamos falando de remédios, fale-me desse novo e jovem ci-

rurgião, Mr. Lydgate. Disseram-me que tem uma inteligência fantás-

tica: o que sem dúvida ele demontra na aparência - uma bela cabe-

ça, de fato."

" um cavalheiro. Ouvi-o conversando com Humphrey. Fala muito

bem."

". Diz Mr. Brooke que ele descende dos Lydgates da Northumberland,

é realmente bem aparentado. Não é isto o que se espera de um profis-

sional dessa classe. De minha parte, prefiro um médico mais em pé de

igualdade com os serviçais; os quais muitas vezes são para lá de inteligen-

tes. Garanto-lhe que eu julgava infalível o discernimento do pobre Hicks;

nunca soube que se enganasse. Ele era bruto e parecia um açougueiro,

mas conhecia minha constituição. Foi uma perda para mim que se fosse

MIDDLEMARCH

107

tão de repente. Mas, meu Deus, que conversa mais animada Miss Brooke

parece estar tendo com este Mr. Lydgate!"

"Está falando de casas populares e hospitais com ele," disse Mrs.

Cadwallader, cujos ouvidos e poder de interpretação eram apurados.

"Parece-me que ele é uma espécie de filantropo, e Brooke assim na certa

vai pegá-lo."

"James," disse Lady Chettam quando seu filho chegou perto, "cha-

me Mr. Lydgate e o apresente a mim. Quero testá-lo."

A afável viúva declarou-se encantada com a oportunidade de conhe-

cer Mr. Lydgate, já tendo ouvido falar do sucesso dele no uso de um

novo tratamento da febre.


Mr. Lydgate tinha o talento médico de parecer perfeitamente sério,

fosse qual fosse o absurdo que lhe diziam, e seus olhos escuros, firmes,

davam-lhe impressibilidade como ouvinte. Era tão pouco quanto possí-

vel como o lamentado Hicks, particularmente no tocante a um ligeiro e

refinado descuido nos seus modos de vestir e expressar-se. Não obstante,

Lady Chettam teve muita confiança nele, que lhe confirmou o ponto de

vista sobre sua própria condição como peculiar, ao admitir que todas as

constituiçäes podem ser consideradas peculiares, e sem negar que a dela

talvez fosse mais peculiar do que outras. Ele não aprovava os métodos

para abaixar a febre, como a aplicação impensada de ventosas, nem, por

outro lado, o uso incessante de vinho do Porto e cascas. Dizia "Penso

que sim" com um ar de tanta deferência a acompanhar a profundidade

de sua concordância, que ela formou sobre seus talentos a opinião mais

favorável.

"Seu protégé agradou-me em cheio," disse ela a Mr. Brooke antes de

ir-se embora.

ddmeu protégé? - Deus meu! - Quem é?" disse Mr. Brooke.

"Este jovem Lydgate, o novo médico. Parece-me que compreende

muitíssimo bem a profissão."

"Oh, Lydgate! ele não é meu protégé, sabe; eu apenas conhecia um

tio dele que me mandou uma carta recomendando-o. Contudo, acredito

que seja de primeira categoria - estudou em Paris, conheceu Broussais;

tem idéias, sabe - quer erguer a profissão."

"Lydgate tem um monte de idéias, totalmente novas, sobre ventila-

ção e dieta, esse tipo de coisa," retomou Mr. Brooke, após ter levado à

porta Lady Chettam e voltado para trocar gentilezas com um grupo de

concidadãos.

"Com a breca! acha que está mesmo correto isto? - alterar o velho

tratamento que fez dos ingleses o que eles são?" disse Mr. Standish.

108
GEORGE ELIOT

"O conhecimento médico está em maré baixa entre nós," disse Mr.

BuIstrode, que falou em tom dosado e tinha um ar bem doente. "Eu, de

minha parte, saúdo o advento de Mr. Lydgate. Espero encontrar boas

razäes para confiar à direção dele o novo hospital."

"Está tudo muito bem," replicou Mr. Standish, que não gostava de

Mr. Bulstrode; "se vocês o querem para fazer experiências com os paci-

entes do hospital, e por caridade matar algumas pessoas, não tenho ne-

nhuma objeção. Mas não sou eu que irei tirar dinheiro da algibeira para

que realizem experiências em mim. Prefiro um tratamento já um pouco

testado."

"Sabe de uma coisa, Standisli, cada dose que a gente toma é uma

experiência - uma experiência, sabe," disse Mr. Brooke, com um me-

neio de cabeça para o advogado.

"Oh, se você fala neste sentido!" disse Mr. Standish, com tanto des-

gosto ante estas evasivas não legais quanto é capaz de deixar transparecer

um homem em relação a um valioso cliente.

"Agradar-me-ia qualquer tratamento que me curasse sem me reduzir

a um esqueleto, como o pobre Grainger," disse Mr. Vincy, o prefeito, um

homem flórido, que poderia ter servido para um estudo da carne, em

marcante contraste com as cores franciscanas de Mr. BuIstrode. " coisa

incomumente arriscada ser deixado sem qualquer proteção contra os

golpes da doença, como já disse alguém, - expressão que eu mesmo

aliás considero muito feliz."

Mr. Lydgate, naturalmente, não estava ouvindo a conversa. Saíra cedo

da festa, e a teria julgado entediante de todo, não fosse a novidade de

algumas apresentaçäes, particularmente a apresentação a Miss Brooke,

cuja juventude em flor, com seu casamento à vista com aquele intelec-

tual fariado, e seu interesse pelas questäes socialmente úteis, davam-lhe


o grande encanto de uma combinação não costumeira.

" uma boa criatura - esta bela menina - mas um pouco séria

demais," pensou ele. " um problema conversar com tais mulheres. Es-

tão sempre procurando razäes, no entanto são muito ignorantes para

compreender os méritos de qualquer questão, e geralmente recorrem a

seu sentido moral para resolver as coisas de acordo com seu própric

gosto."

Evidentemente o tipo de mulher que Miss Brooke era não agradaw

a Mr. Lydgate mais do que a Mr. Chichely. Considerada, de fato, em.

relação ao último, que tinha o espírito amadurecido, ela era um emc

completo, e calculada para abalar sua confiança nas causas últimas, in.

cluída aí a adaptação de belas moças a intelectuais de cara empolada

MIDDLEMARCH

109

Mas Lydgate era menos maduro, e talvez pudesse ter experiências à frente

que viessem a modificar a opinião que ele tinha quanto às coisas funda-

mentais numa mulher.

Miss Brooke, entretanto, não voltou a ser vista por nenhum destes

cavalheiros com seu nome de solteira. Não muito depois desse jantar,

ela havia passado a ser Mrs. Casaubon, e já estava a caminho de Roma.

CAPíTULO XI

"But deeds and language such as men do use,

And persons such as comedy would choose,

When she would show an image of the times,

And sport with human follies, not with

crimes."
- BEN JONSON.

("Língua e açäes como as que os homens usam

E pessoas tais de que as comédias abusam,

Quando resolvem mostrar a imagem dos anos

E rir das loucuras, não dos crimes humanos.")

- BEN JONSON. 1

LYDGATE, DE FATO, já tinha consciência de estar sendo fascinado por uma

mulher notavelmente diferente de Miss Brooke: se nem sequer descon-

fiava de que perdera o equilíbrio e se apaixonara, havia porém dito da

mulher em questão: "Ela é a própria graça; é cheia de perfeiçäes, e

arrebatadora.  assim que uma mulher deve ser: deve causar o efeito de

uma música rara." As mulheres comuns ele encarava como os outros

fatos inexoráveis da vida, para serem vistas com filosofia e investigadas

pela ciência. Mas Rosamond Vincy pareceu-lhe ter o verdadeiro encanto

melódico; e quando um homem já viu a mulher que haveria de escolher,

se pretendesse casar-se rapidamente, em geral a hipótese de ele conti-

nuar solteiro vai depender mais da resolução dela que da dele. Lydgate

achava que deveria aguardar vários anos antes de se casar: não fazê-l(

Vo prólogo de Every - in His Humour (1598).

MIDDLEMARCH

111

senão já tendo andado por um bom e claro caminho aberto para si à

distância da estrada larga que estava toda pronta. Miss Vincy foi vista
em seu horizonte durante tempo quase igual ao que Mr. Casaubon le-

vou para noivar e contrair matrimônio: mas este letrado cavalheiro era

possuidor de fortuna; havia reunido suas volumosas notas e construído

aquele tipo de reputação que precede o desempenho - e que em geral é

a maior parte da fama de um homem. Arranjou uma esposa, como vi-

mos, para adornar o quadrante restante de seu percurso e ser uma lua

tão pequena que dificilmente causaria perturbação calculável. Mas Lydgate

era jovem, pobre, ambicioso. Tinha seu meio século à frente, não pelas

costas, e viera para Middemarch decidido a fazer muitas coisas que não

eram diretamente indicadas para garantir-lhe fortuna, nem mesmo uma

boa renda. Para um homem nestas circunstâncias, arranjar uma esposa é

algo mais que uma questão de ornamento, por maior valor que ele dê a

isto; e a predisposição de Lydgate era dar-lhe, entre as funçäes de uma

mulher, o primeiro posto. Para seu gosto, orientado por uma única con-

versa, era neste ponto que Miss Brooke se revelaria deficiente, não

obstante sua inegável beleza. Ela não via as coisas pelo correto ângulo

feminino. A companhia de tais mulheres era quase tão relaxante quanto,

ao sair do trabalho, você ainda ter de dar aulas para a segunda série, ao

invés de ir reclinar-se num paraíso, com doces risos à guisa de cantar de

pássaros e, à guisa de céu, olhos azuis.

Decerto nada atualmente poderia parecer muito menos importante

para Lydgate do que as voltas do espírito de Miss Brooke ou, para Miss

Brooke, do que as qualidades da mulher que havia atraído o jovem ci-

rurgião. Mas quem observa atentamente a furtiva convergência dos

fadários humanos vê uma lenta preparação de efeitos desde uma vida à

outra, que fala como calculada ironia da indiferença ou do frio semblan-

te com o qual olhamos para o vizinho que não nos foi apresentado. Por

sarcasmo, o destino mantém dobradas nas mãos nossas dramatis personae.

A velha sociedade provinciana tinha sua parcela deste movimento

sutil: tinha não só suas espantosas quedas, seus jovens e brilhantes dândis

profissionais que acabavam por manter um romance com uma prostituta


e seis filhos, mas também essas vicissitudes menos óbvias que constan-

temente modificam as fronteiras do intercâmbio social, e vão gerando

uma nova consciência de interdependência. Se alguns escorregavam para

baixo, outros tomavam pé para cima: os denegados, que a aspiram, con-

quistavam riqueza, e fastidiosos cavalheiros lançavam-se como candida-

tos nos burgos; uns se envolviam em correntes políticas, outros, em ecle-

siásticas, para talvez se encontrarem, em conseqüência, surpreendente-

112

GEORGE ELIOT

mente agrupados; enquanto isso uns poucos personagens ou famílias

que se mantinham com firmeza pétrea em meio a toda esta flutuação

iam lentamente apresentando novos aspectos, a despeito da solidez, e

alterando-se com a dupla mudança de espectador e ator, O centro muni-

cipal e a zona rural gradualmente criavam novos vínculos de conexão -

gradualmente, à medida que o velho pé de meia dava lugar à caixa-

econômica e que o culto do guinéu solar" se tornava extinto; à medida

que proprietários, baronetes e até lordes, tendo antes vivido inata-

cavelmente à distância da opinião pública, colhiam agora as imperfei-

çäes de um conhecimento mais íntimo. De distantes condados vinham

também forasteiros, uns com uma novidade alarmante em sua arte, ou-

tros com uma ofensiva vantagem na esperteza. Com efeito, processava-

se na velha Inglaterra muito da mesma espécie de movimento e mistura

que encontramos no ainda mais velho Heródoto, o qual também, ao

narrar o que havia acontecido, julgou por bem tomar por ponto de par-

tida o fado de uma mulher; embora lo, como jovem aparentemente

seduzida por atrativas mercancias, fosse o reverso de Miss Brooke, e a

este respeito guardasse talvez mais semelhança com Rosamond Vincy,

que tinha excelente gosto para se vestir, com seu porte de ninfa e lourice
pura dando-lhe a mais ampla gama de escolha quanto à cor e caimento

dos panos. Coisas que constituíam porém apenas parte do seu encanto.

Reconhecidamente ela era a flor da escola de Mrs. Lemon, onde a instru-

ção abrangia tudo o que era requerido da mulher bem formada - inclu-

indo noçäes extras, como subir e descer de uma carruagem. A própria

Mrs. Lemon sempre havia apresentado Miss Vincy como exemplo: ne-

nhuma aluna, dizia ela, ultrapassava em aptidão mental e propriedade

de expressão esta senhorita, cuja execução musical era totalmente

incomum. Não podemos evitar a maneira como falam de nós e, prova-

velmente, se Mrs. Lemon tivesse resolvido descrever Julieta ou Imogen,

estas heroínas não pareceriam poéticas. Mas a primeira visão de

Rosamond bastaria à maioria dos juízes para dissipar qualquer precon-

ceito despertado pelo elogio de Mrs. Lemon.

Lydgate não poderia ficar muito tempo em Middemarch sem ter

esta agradável visão, ou mesmo sem travar relaçäes com a família Vincy;

porque embora Mr. Peacock, para herdar cuja clientela ele pagara certa

quantia, não fosse o médico deles (o método debilitante que adotava

não agradava a Mrs. Víncy), tinha muitos pacientes entre seus conheci-

dos e parentes. Pois quem de certa distinção em Middemarch não era

"Moeda de ouro em uso até 18 13, quando foi substituída pelo soberano, moeda

de uma libra.

MIDDLEMARCH

113

aparentado ou pelo menos conhecido dos Vincys? Eles, velhos donos de

fábrica que eram, mantinham há três geraçäes uma boa casa, na qual

naturalmente se tornaram comuns os casamentos com vizinhos mais ou

menos decididamente finos. A irmã de Mr. Vincy havia feito um bom


negócio ao aceitar Mr. BuIstrode, que por seu turno, como homem não

nascido na cidade, e de origem totalmente obscura, agira na opinião

geral muito bem, unindo-se a uma verdadeira família de Middemarch;

por outro lado, Mr. Vincy havia decaído um pouco, tendo ficado com a

filha de um estalajadeiro. Mas deste lado também havia uma animosa

previsão de dinheiro; pois a irmã de Mrs. Vincy, que fora a segunda es-

posa do rico e velho Mr. Featherstone, tinha morrido anos atrás sem

filhos, podendo-se esperar desse modo que seus sobrinhos e sobrinhas

merecessem as afeiçäes do viúvo. E aconteceu que Mr. BuIstrode e Mr.

Featherstone, dois dos pacientes mais importantes de Peacock, tinham,

por diferentes causas, dado uma recepção particularmente boa ao seu

sucessor, homem que tanto suscitava adesäes quanto discussäes. Mr.

Wrench, o médico da família Vincy, bem cedo encontrou motivos para

pôr em dúvida a discrição profissional de Lydgate, e não havia informe

sobre ele que não fosse esmiuçado em casa dos Vincys, onde as visitas

eram freqüentes. Mr. Vincy inclinava-se mais a uma pacífica convivência

com todos que a tomar qualquer partido, mas não tinha por que precipi-

tar-se para fazer novos conhecidos. já Rosamond desejava em silêncio

que seu pai convidasse Mr. Lydgate à casa. Estava cansada das figuras e

faces às quais sempre se habituara - os vários perfis irregulares e os

modos de andar e falar que caracterizavam os rapazes de Middemarch

que ela conhecia desde meninos. Na escola, fora colega de moças de

posição mais alta, por cujos irmãos, tinha certeza, poderia interessar-se

mais do que pelos inevitáveis companheiros de Middemarch. Mas ela

não se decidia a mencionar sua vontade ao pai; e ele, por sua vez, não se

apressava sobre o assunto. Um vereador a ponto de ser prefeito deve de

quando em quando ampliar seus jantares, mas por ora já havia convida-

dos de sobra à sua mesa bem guarnecída.

Freqüentemente esta mesa permanecia coberta das migalhas do

desjejum familiar até muito depois de Mr. Vincy ter saído com seu se-

gundo filho para o depósito, e até Miss Morgan já estar bastante adian-
tada, no quarto de estudo, com as liçäes da manhã para as meninas mais

novas. Esperava pelo molengão da família, que achava qualquer tipo de

incômodo (aos outros) menos desagradável do que, quando o chama-

vam, levantar-se logo. Pois foi o caso, certa manhã daquele outubro em

que recentemente vimos Mr. Casaubon em visita à granja; a sala estava

114

GEORGE ELIOT

um pouco quente demais devido ao fogo, que expulsara para um canto

afastado o ofegante cachorro spaniel, mas Rosamond, por alguma razão,

continuava sentada com seu bordado mais tempo que de costume, to-

mada de quando em quando por ligeiro tremor e estendendo o trabalho

nos joelhos para contemplá-lo com ar de hesitante enfado. Sua mãe,

recém-chegada de uma incursão na cozinha, sentava-se ao outro lado da

pequena mesa de trabalho com ar mais cabal de placidez, até que, já de

novo anunciando o relógio que estava para dar as horas, ela ergueu os

olhos da renda cujo conserto lhe ocupava os dedos roliços e tocou a

sineta.

"Bata na porta de Mr. Fred de novo, Pritchard, e diga a ele que já são

dez e meia."

O que foi dito sem nenhuma mudança no radiante bom humor do

rosto de Mrs. Vincy, onde quarenta e cinco anos não haviam cavado

ângulos nem paralelas; e ela, puxando para trás os cordäes da touca cor

de rosa que usava, deixou pousado no seu colo o trabalho, enquanto

olhava com admiração para a filha.

"Mamãe," disse Rosamond, "quando o Fred descer, peço não con-

sentir que ele coma arenque defumado. Não agüento aquele cheiro por

toda a casa, logo a esta hora da manhã."

"Oh, minha querida, não seja tão impertinente com seus irmãos!  a
única falha que eu consigo ver em você. Seu temperamento é o mais

doce do mundo, no entanto você é chata com seus irmãos."

"Chata não, mamãe: a senhora nunca me ouve falar de maneira ina-

dequada a uma senhorita."

"Bem, mas você quer negar coisas a eles."

"Irmãos são muito desagradáveis."

"Oh, querida, você precisa saber compreender os rapazes. E dê gra-

ças, sempre que eles tenham bom coração. Uma mulher deve aprender

a não ligar para coisas de somenos. Algum dia você estará casada

"Não com alguém como o Fred."

"Não menospreze seu próprio irmão, minha filha. Poucos rapazes

têm menos contra si, apesar de ele não ter podido formar-se - por

razäes que estou certa de não captar, pois a mim parece muito inteli-

gente. Você mesma sabe que ele foi considerado igual ao que havia

de melhor na escola. Exigente como você é, minha filha, espanta-me

que não se alegre de ter um rapaz tão cavalheiresco assim por irmão.

Está sempre encontrando algum defeito no Bob porque ele não é o

Fred."

"Oh, não, mamãe, só porque ele é o Bob."

MIDDLEMARCH

115

"Bem, querida, você não há de encontrar um só rapaz de Middemarch

contra o qual não haja alguma coisa."

"Mas" - e o rosto de Rosamond abriu-se aqui num sorriso que

bruscamente revelou duas covas. Ela mesma avaliava em desfavor suas

covas, sorrindo pouco por isto em sociedade. "Mas não hei de me casar

com um rapaz de Middemarch."

"Parece que não, pois você já recusou a papa-fina daqui; e se há


coisa melhor para se ter, não há moça, estou certa, que a mereça mais

que você."

"Desculpe-me, mamãe - eu gostaria que a senhora não dissesse "a

papa-fina daqui"."

"Ué, mas então o que são eles?"

"Quero dizer, mamãe, que a expressão é meio vulgar."

"Muito provavelmente, minha filha; falar bem nunca foi mesmo o

meu forte. Como eu deveria dizer?"

"Os melhores daqui."

"Bem, mas isto também soa comum e banal. Se eu tivesse tido tem-

po para pensar, deveria ter dito "os rapazes mais superiores." Mas você,

com sua educação, deve saber."

"O que é que a Rosy deve saber, mãe?" disse Mr. Fred, que penetra-

ra pela porta entreaberta sem ser observado, enquanto as damas se man-

tinham curvadas sobre seus trabalhos, e que agora, indo até o fogo, lá se

punha de costas para ele a aquecer a sola dos chinelos.

"Se é correto dizer "rapazes superiores,` disse Mrs. Vincy, tocando a

sineta.

"Oh, há tantos chás e açúcares superiores agora, que superior já está

virando gíria de merceeiros."

"Você então já começa a não gostar mais de gíria?" disse Rosamond,

com moderada seriedade.

"Só do tipo emado. Toda escolha de palavras é gíria. Marca uma

classe."

"Mas existe o inglês correto: que não é gíria."

"Desculpe-me: o inglês correto é a gíria dos pedantes que escre-

vem história e ensaios. E a gíria mais forte de todas é a gíria dos poe-

tas. PI

"Você dirá qualquer coisa, Fred, só para ter razão."

"Bem, pois esclareça-me se é gíria ou poesia chamar um boi de um

cruzador de pernas."
Claro que, se quiser, você pode dizer que isto é poesia."

"Rá-rá, Miss Rosy, vê-se que não faz distinção entre Hornero e a

116

GEORGE ELIOT

gíria! Vou inventar então outra brincadeira; vou escrever fragmentos de

gíria e de poesia em papeizinhos que darei para você separar."

"Meu Deus, como é divertido ouvir conversa de gente moça!" disse

Mrs. Vincy, com festiva admiração.

"Não tem mais nada para o meu desjejum, Pritchard?" disse Fred ao

criado que chegava, trazendo-lhe café e torradas com manteiga; ao mes-

mo tempo ele contornava a mesa a examinar o presunto, a carne em

conserva e outras sobras frias, com um ar de silenciosa rejeição e polida

paciência como sinais de desgosto.

"O senhor quer uns ovos?"

"Ovos, não! Traga-me uma costeleta grelhada."

"Realmente, Fred," disse Rosamond, quando o criado já saíra da

sala, "para ter coisas quentes no café da manhã, seria bom que você

descesse mais cedo. Para ir caçar, é capaz de se levantar às seis horas;

não consigo compreender por que acha tão difícil, nas outras manhãs,

sair da cama."

" por falta de compreensão sua, Rosy. Sou capaz de me levantar

para ir caçar porque é uma coisa de que eu gosto."

"O que pensaria você de mim, se eu descesse duas horas depois de

todos e pedisse uma costeleta grelhada?"

"Pensaria que você, para uma senhorita, era incomumente rápida,"

disse Fred, comendo suas torradas na mais absoluta tranqüilidade.

"Não entendo por que os irmãos têm de ser desagradáveis, mais que

as irmãs."
"Eu não sou desagradável; é você quem me vê assim. Desagradável

é uma palavra que descreve os seus sentimentos, e não as minhas açäes."

"Descreve, a meu ver, o cheiro de costeleta na grelha."

"Não, não. Descreve uma sensação no seu narizinho, associada a

uma porção de bobagens que são os clássicos da escola de Mrs. Lemon.

Olhe só minha mãe: você não a vê com objeçäes a tudo, exceto ao que

ela mesma faz. Para mim é a própria imagem da mulher agradávelf

"Que Deus os abençoe, meus filhos, e chega de briga!" disse Mrs,

Vincy, com maternal cordialidade. "Vamos lá, Fred, fale-nos do now

doutor. Como é, seu tio está gostando dele?"

"Penso que sim, e muito. Faz perguntas de todo o tipo a Lydgate e

depois torce a cara enquanto ouve as respostas, como se lhe espremes.

sem um dedinho do pé.  o jeito dele. Ah, mas aí vem minha coste.

leta!"

"Como pôde ficar fora até tão tarde, meu filho? Você disse que só i,

à casa de seu tio."

MIDDLEMARCH

117

110h, fui jantar no Plymdale"s, e jogamos uíste. Lydgate também es-

tava lá."

"E o que acha dele?  um homem muito educado, suponho. Dizem

que é de excelente família - que seus parentes são gente bem aqui do

condado."

" verdade," disse Fred. "Houve um Lydgate no John"s1 que gastava

dinheiro a rodo. Este homem, parece-me, é primo dele em segundo grau.

Mas homens ricos podem ter pobres-diabos como primos distantes."

"Sempre faz uma diferença, entretanto, ser de boa família," disse

Rosamond, com um tom de decisão que mostrava que ela já havia pen-
sado sobre o tema. Rosamond achava que poderia ser mais feliz se não

tivesse nascido como filha de um dono de fábrica de Middemarch. E

não gostava de nada que lhe trouxesse à lembrança que o pai da mãe

dela havia sido estalajadeiro. Certamente alguém que lembrasse o fato

poderia pensar que Mrs. Vincy tinha o ar de uma taberneira bonita e

muito bem humorada, acostumada às mais caprichosas ordens dadas

por cavalheiros.

"Achei estranho que o nome dele fosse Tertius," disse a senhora de

rosto muito vivo, "mas naturalmente é um nome da família. Agora, diga-

nos exatamente que tipo de homem ele é."

"Oh, alto, moreno, inteligente - fala bem - meio pedante, acho."

"Nunca consigo descobrir o que é para você um pedante," disse

Rosamond.

"Um sujeito que quer mostrar que tem opiniäes."

"Ué, meu filho, os médicos têm de ter opiniäes," disse Mrs. Vincy.

"Não é por isto que estão lá?"

"Sim, mãe, as opiniäes pelas quais são pagos. Mas um pedante é o

sujeito que está sempre a nos fazer presente de suas opiniäes."

"Desconfio que Mary Garth admira Mr. Lydgate," disse Rosamond,

sem disfarçar de todo a insinuação.

"Não sei dizer realmente," disse Fred, que ao sair da mesa tinha o

rosto um pouco fechado e, apanhando um romance que trouxera consi-

go lá de cima, jogou-se numa poltrona. "Se está com ciúmes dela, vá

você mesma a Stone Court mais vezes e tente eclipsá-la."

"Seria ótimo se você não fosse tão vulgar, Fred. Se já acabou, por

favor, toque a sineta."

" porém verdade - o que seu irmão está dizendo, Rosamond,"

começou Mrs. Vincy, já tendo o criado tirado a mesa. " uma pena me-

10 Saint john"s College, Canibridge.


118

GEORGE ELIOT

donha você não ter paciência de ir visitar seu tio mais vezes, ele que

gosta tanto de você, e até quis que você morasse com ele. Não há como

calcular o que poderia ter feito por você, e também pelo Fred. Deus sabe

que eu gosto de ter vocês em casa comigo, mas para o bem dos meus

filhos eu me separo deles. E agora tudo indica que seu tio Featherstone

vai fazer alguma coisa por Mary Garth."

"Mary Garth agüenta ficar em Stone Court, porque prefere isto a ser

uma governanta," disse Rosamond, dobrando o trabalho que fazia. "Pre-

feriria que não me deixassem nada, se para ganhar alguma coisa eu ti-

vesse de suportar a tosse e os horrendos amigos do meu tio."

"Ele não ficará por muito neste mundo, filha; não queira eu apres -

sar-lhe o fim, mas com aquela asma e aquelas dores por dentro, espere-

mos que um outro lhe reserve coisa melhor. Em relação a Mary Garth,

não é que eu tenha má vontade, mas há que se pensar em justiça. A

primeira esposa de Mr. Featherstone não lhe levou dinheiro algum, como

fez minha irmã. As sobrinhas e sobrinhos dela não podem pois ter o

mesmo direito que os de minha irmã. E devo dizer que Mary Garth pare-

ce-me moça terrivelmente banal - mais adequada de fato para ser

governanta."

"Nem todos, mãe, concordariam nisto com a senhora," disse Fred,

demonstrando que era capaz de ler e ouvir ao mesmo tempo.

"Bem, querido," disse Mrs. Vincy, fazendo ágil volteio, "se ela tivesse

herdado alguma fortuna; - um homem se casa com os parentes da es-

posa, e os Garths são muito pobres, vivem da maneira mais simples.

Mas vou deixá-lo em seus estudos, meu filho; tenho de ir fazer umas

compras."

"Não são muito profundos os estudos do Fred," disse Rosamond,


levantando-se com sua mãe, "ele apenas está lendo um romance."

"Bem, bem, aos pouquinhos ele irá para o seu latim e essas coisas,"

disse Mrs. Vincy, alisando, apaziguadora, a cabeça do filho. "Este é o

propósito do lume que está na sala para fumantes.  a vontade de seu

pai - sabe, Fred, meu filho - e sempre estou dizendo a ele que você vai

ser bom, que irá de novo para a escola para tirar seu diploma."

Fred puxou a mão da mãe até seus lábios, mas não disse nada.

"Suponho que você hoje não vá andar a cavalo," disse Rosamond,

demorando-se ali depois da mãe ter saído.

"Não; por quê?"

"Papai disse que eu agora posso montar o castanho."

"Se você quiser, pode ir comigo amanhã. Só que estou indo a Stone

Court, não se esqueça."

MIDDLEMARCH

119

"Estou querendo tanto dar uma volta, que aonde vamos para mim é

indiferente." Na verdade era a Stone Court, mais que a qualquer outro

lugar, que Rosamond queria ir.

"Ob, Rosy," disse Fred, nisto que ela passava para sair da sala, "se

você for para o piano, posso ir também para tocarmos umas cançäes

juntos?"

"Mas não me peça esta manhã."

"Por que não esta manhã?,,

"Realmente, Fred, seria ótimo se você desistisse de tocar flauta. Um

homem tocando flauta fica muito esquisito. E além do mais você toca

desafinado."

"Da próxima vez que alguém lhe fizer a corte, Miss Rosamond, direi

a ele como você é gentil."


"Por que há de esperar que eu seja gentil com você, ouvindo-o tocar

sua flauta, mais do que haveria eu de esperar que fosse gentil comigo,

não tocando-a?"

"E por que haveria de esperar você que eu a levasse para uma volta

a cavalo?"

Esta pergunta conduziu a um acordo, pois Rosamond já estava deci-

dida a dar a volta em questão.

Fred viu-se assim gratificado com quase uma hora de prática de "As-

sim era o nosso costurneV "Oh margens, oh ribanceiras!" e outras can-

çäes favoritas do seu "Manual de Flauta"; um espetáculo ofegante, no

qual pôs uma ambição muito grande e uma esperança irrepressível.

Trn irlandês no original: "Ar hyd y nos.

CAPITULO XII

"He had more tow on his distaffe

Than Gerveis knew."

- CHAUCER.

€"Ele tinha mais fio em sua roca

Do que Gerveis sabia.")

- CHAUCER."

A CAVALGADA PARA Stone Court, que Fred e Rosamond empreenderam

na manhã seguinte, evoluía por aprazível trecho de paisagem dos conda-

dos centrais, quase tudo campinas e pastagens, com sebes ainda deixa-

das a crescer livremente em tufos de beleza e a estender para os pássaros

frutas de coral. Pequenos detalhes davam a cada campo uma fisionomia


particular, cara aos olhos que os tinham contemplado desde a infância: o

açude num recanto onde a relva se conservava molhada e árvores

rumorejantes pendiam; o grande carvalho que sombreava no meio da

campina um lugar desnudo; o terrapleno alto onde cresciam freixos; a

brusca subida do barreiro velho de marga, um fundo vermelho para os

pés de bardana; as medas e os telhados da quinta num amontoado con-

fuso, sem caminho perceptível de acesso; o cinza da porteira e das cercas

contra a profundidade da mata bordejante; e a desgarrada choupana,

seu velho, velho teto de palha cheio de musgosos morros e vales com

fantásticas modulaçäes de luz e sombra como as que mais tarde na vida

viajamos longe para ver, e vemos maiores, porém não mais belas. São

as que criam a gama da alegria na paisagem para as almas

MIDDLEMARCH

121

criadas nos condados centraís - coísas em meio às quais camínharam,

ou que aprenderam talvez a conhecer de cor, plantando-se entre os joe-

lhos do pai enquanto ele conduzia sem pressa.

Mas a estrada, como a estrada secundária, era excelente; pois Lowick,

como já vimos, não era uma paróquia de vielas lamacentas e rendeiros

pobres; e foi na paróquia de Lowick que Fred e Rosamond entraram

depois de uma boa légua a cavalo. Pouco mais de um quilômetro os

levaria agora a Stone Court, e ao término da primeira metade já se avis-

tava a casa, parecendo tolhida em seu crescimento para chegar a ser

mansão de pedra por uma inesperada brotação de anexos rurais, no flanco

esquerdo, que a havia impedido de se tornar algo mais que a moradia

sólida de um fazendeiro distinto. Nem por isto ele era menos agradável

como objeto na distância, com aqueles montes e pináculos de palha de

milho cuja aglomeração se equilibrava com o belo renque de nogueiras


pelo lado direito.

Presentemente era possível distinguir alguma coisa que poderia ser

um cabriolé na estradinha circular diante da porta de entrada.

"Deus meu," disse Rosamond, "espero que não estejam por aí os

horríveis amigos do meu tio."

"Pois estão sim. Aquilo lá é o cabriolé de Mrs. Waule - o último

dos cabriolés amarelos, diria eu. Quando vejo Mrs. Waule nele, compre-

endo que o amarelo já possa ter sido usado como expressão de luto.

Este cabriolé me parece mais macabro do que um coche fiméreo. E de-

pois, que história é esta, Rosy, de Mrs. Waule andar sempre de crepe

preto? Os amigos dela não podem estar morrendo sempre."

"Não sei de nada. E ela nem mesmo é evangélica," disse Rosamond,

pensativamente, como se este ponto de vista religioso pudesse dar ao

crepe perpétuo plena justificação. "E nem é pobre," acrescentou após

momentânea pausa.

"Deveras, não é mesmo não! São ricos como judeus, estes Waules e

Featherstones; quero dizer, para pessoas como eles, que não querem

gastar nada. E no entanto vivem rodeando meu tio como abutres, te-

mendo que uma bagatela qualquer possa sair do seu lado da família.

Mas ele, penso, odeia a todos."

A Mrs. Waule que estava tão longe de ser admirável aos olhos des-

ses parentes distantes por acaso havia dito nesta mesma manhã (e não

de um jeito desafiador, mas num tom baixo, abafado, neutro, como o de

uma voz ouvida através de um pano de algodão) que não desejava "des-

frutar de sua boa opinião." Estava sentada, como observou, em casa de

seu irmão, e por vinte e cinco anos antes de ser Jane Waule ela havia

GEORGE EuoT

sido Jane Featherstone, o que a intitulava a falar quando o próprio nome

do irmão era posto em jogo por gente que a ele não tinha direito algum.
"Aonde você está querendo chegar?" disse Mr. Featherstone, que

segurava sua bengala entre os joelhos e ajeitou a cabeleira postiça en-

quanto lhe dirigia uma olhada, passageira e penetrante, que pareceu

ricochetear sobre ele como uma corrente de ar frio e o fez tossir.

Mrs. Waule teve de adiar a resposta até que a calma se instalasse de

novo, até que Mary Garth lhe tivesse administrado um pouco mais de

xarope e ele passasse a esfregar o castão de ouro da bengala, olhando

desgostoso para o fogo. Era um fogo forte, que todavia não fazia diferen-

ça para os desmaiados matizes violáceos da face de Mrs. Watile, tão

neutra quanto sua voz; tendo umas simples frestas, à guisa de olhos, e

lábios que ao falar mal se moviam.

"Não há médico, mano, que domine esta tosse.  igualzinha à que

eu tenho; afinal sou sua irmã, na constituição e tudo. Mas, como eu ia

dizendo, é uma pena que a família de Mrs. Vincy não possa ser melhor

conduzida."

"Não, você não disse nada disto! Disse que alguém tinha posto o

meu nome em jogo."

"E não mais do que se pode provar, se é verdade o que todos dizem.

Meu irmão Solomon contou-me que em Middemarch não se fala de

outra coisa, que o jovem Vincy é um desregrado e que desde que voltou

para casa ele só quer saber do bilhar, da jogatina."

"Que bobagem! Que tem de mais jogar bilhar?  um jogo bom, ade-

quado a cavalheiros, e o jovem Vincy não é nenhum labrego. Se o seu

filho John se afeiçoasse ao bilhar, aí sim, na certa ele seria um desastre."

"Seu sobrinho John nunca se afeiçoou ao bilhar nem a nenhum ou-

tro jogo, meu irmão, e está longe de perder centenas de libras, que, se é

verdade o que todos dizem, têm de ser encontradas noutra fonte que

não os bolsos de Mr. Vincy pai. Pois dizem que há anos ele vem perden-

do dinheiro, embora ninguém fosse pensar as-sim, ao vê-lo indo caçar

como sempre e mantendo casa aberta como eles fazem. E ouvi dizer que

Mr. BuIstrode reprova Mrs. Vincy acima de tudo por ser muito volúvel, e
por estragar seus filhos tanto."

"Que tenho a ver com Bulstrode? Eu não tenho conta com ele."

"Bem, Mrs. Buistrode é irmã de Mr. Vincy, e o que se diz é que Mr.

Vincy faz uso principalmente do dinheiro do Banco; e você pode ver,

irmão, que uma mulher de mais de quarenta, quando anda com cordäes

cor de rosa esvoaçando sempre, e tem um jeito meio fútil de sorrir para

tudo, isto não condiz mesmo não. Mas ser complacente com as crianças

MIDDLEMARCH

123

é uma coisa, e outra é encontrar o dinheiro para pagar suas dívidas. Diz-

se abertamente que o jovem Vincy levantou dinheiro com base nas ex-

pectativas que tem. Não digo que expectativas são estas. Miss Garth

está-me ouvindo, e será bem-vinda se quiser contar de novo. Eu sei que

os jovens são coerentes."

"Não, muito obrigada, Mrs. Waule," disse Mary Garth. "Não gosto

nada de ouvir escândalos, para não querer repeti-los."

Mr. Featherstone esfregou o castão de sua bengala e fez um esboço

de riso, convulsivo e breve, que tinha muito da autenticidade do contido

esgar de um velho jogador de uíste ante uma má cartada. Ainda olhando

para o fogo, disse:

"E quem pretende negar as expectativas de Fred Vincy? Ele é tão

bom sujeito, e com tanta energia, que o mais provável é que as tenha."

Houve ligeira pausa antes de Mrs. Waule replicar e, quando ela o

fez, sua voz parecia molhada ligeiramente de lágrimas, embora seu rosto

ainda estivesse seco.

"Seja lá como for, mano, naturalmente é doloroso para mim e para o

irmão Solomon ouvir seu nome posto em jogo, sendo sua moléstia de
tal ordem que de uma hora para outra pode levá-lo desta, e saber que há

pessoas, que não são mais Featherstones que o buflão da feira, contando

abertamente com a hipótese de que seus bens fiquem para elas. E eu

sendo sua irmã, e o Solomon, seu irmão! Se é assim que vai ser, por que

então ocorreu ao Todo-Poderoso fazer famílias?" Aqui as lágrimas de

Mrs. Waule caíram, mas com moderação.

"Vamos, Jane, chega disto!" disse Mr. Featherstone, olhando para ela.

"Você quer dizer que Fred Vincy conseguiu que alguém lhe adiantasse

dinheiro com base no que ele diz saber sobre o meu testamento, não é?"

"Eu nunca disse isto, meu irmão" (A voz de Mrs. Waule tornara-se

de novo seca e firme). "Isto me foi dito por meu irmão Solomon ontem

à noite, quando ele passou lá em casa ao voltar do mercado para me

aconselhar sobre o trigo velho, sendo eu uma viúva e meu filho John

tendo apenas vinte e três anos, embora ajuizado além da conta. E ele

ouviu isto de fonte muito autorizada; não uma, mas várias."

"Bobagem, absurdo! Não acredito numa só palavra.  tudo história

inventada. Mas olhe à janela, menina; acho que eu ouvi um cavalo. Veja

se é o médico que vem chegando."

"Não inventada por mim, mano, nem também por Solomon que, à

parte o que no mais possa ser - e eu não nego que ele tem suas esqui-

sítices, - fez seu testamento e dividiu seus bens igualmente entre os

parentes com os quais mantém amizade; por mim, acho no entanto que

GEORGE ELIOT

há épocas em que alguns devem ser mais considerados que outros. Mas

Solomon não faz segredo do que pretende fazer."

"Pois é ainda mais tolo!" disse Mr. Featherstone, com alguma difi-

culdade; entrando num acesso tão profundo de tosse que foi preciso

Mary Garth ir ficar perto dele, de modo a não poder descobrir de quem

eram os cavalos que neste instante paravam batendo as patas no casca-


lho em frente da porta.

Rosamond entrou antes de a tosse de Mr. Featherstone ter passado,

envergando com muita graça seu traje de montaria. Curvou-se cerimonio-

samente para Mrs. Waule, que disse rígida: "Como vai, senhorita?% sor-

riu e em silêncio inclinou a cabeça para Mary e se manteve de pé até a

tosse cessar e permitir que seu tio a visse.

"Ora viva, menina," disse ele por fim, "que beleza de cor a sua!

Onde está o Fred?"

"A cuidar dos cavalos. Logo vem vindo aí."

"Sente-se, sente-se. Mrs. Waule, é melhor ir agora."

Nem mesmo aqueles vizinhos pelos quais Peter Featherstone era

chamado de uma velha raposa jamais o haviam acusado de ser

insinceramente polido, e sua irmã estava bem acostumada à peculiar

falta de cerimônia com a qual ele marcava sua maneira de entender o

parentesco sangüíneo. Estava acostumada também, com efeito, a pensar

que a total liberdade da necessidade de se comportar gentilmente in-

cluía-se nas intençäes do Todo-Poderoso sobre as famílias. Levantou-se

pois devagar, sem nenhum sinal de ressentimento, e disse em seu tom

de praxe, abafado e invariável: "Espero que o novo médico, mano, seja

capaz de fazer alguma coisa por você. Diz Solomon que andam falando

muito bem da inteligência dele. Estou certa, desejo que você seja pou-

pado. E ninguém mais disposto a cuidar de você do que sua irmã e as

sobrinhas, bastando que nos mande chamar. Pode contar com a Rebecca,

a Joanna e a Elizabeth, como sabe."

"Ai, ai, lembro-me sim! - Você há de ver que eu me lembrei delas;

- todas são morenas e feias, vão precisar de ter algum dinheiro, não é?

Nas mulheres da nossa família nunca houve beleza; mas dinheiro os

Featherstones sempre tiveram algum, e os Waules também. Waule tam-

bém tinha dinheiro. Bom sujeito, o Waulei Ai, ai, o dinheiro é que nem

um ovo; e se você dispäe de algum para deixar para trás, ponha-o num

ninho bem quente. Adeus, Mrs. Waule!"


No que então Mr. Featherstone puxou de ambos os lados sua cabe-

leira postiça, como se quisesse tampar os dois ouvidos, e sua irmã foi-se

embora, ruminando sobre a fala oracular que ele pronunciara. Apesar do

MIDDLEMARCH

125

ciúme que ela sentia pelos Vincys e por Mary Garth, mantinha-se como

o sedimento mais baixo de seus estratos mentais a convicção de que seu

irmão Peter Featherstone nunca poderia deixar que sua principal proprie-

dade escapasse das mãos dos seus parentes de sangue: - se não, por

que teria o Todo-Poderoso levado sem filhos suas duas esposas, depois

de ele ter ganho tanto com o manganês e outras coisas, dando o ar de

sua graça quando ninguém esperava? - e por que havia uma igreja pa-

roquial em Lowick, e os Waules e os Powderells sentando-se por gera-

çäes todos no mesmo banco, e o banco dos Featherstones depois do

deles, se, no domingo seguinte à morte de seu mano Peter, todos vies-

sem a saber que a propriedade tinha saído da família? Nunca em ne-

nhum período o espírito humano aceitou um caos moral; e um resultado

assim tão disparatado não era a rigor concebível. Alarmamo-nos porém

com muitas coisas que a rigor não são concebíveis.

Quando Fred entrou no quarto, o velho olhou para ele piscando de

um jeito especial, que o jovem muitas vezes já tivera razão de interpre-

tar como orgulho pelos satisfatórios detalhes de sua própria aparência.

"Vocês, meninas, podem ir-se," disse Mr. Featherstone. "Quero falar

com o Fred."

"Vamos até meu quarto, Rosamond, por pouco tempo você não se

importará com o frio," disse Mary. As duas moças, além de se conhece-

rem desde a infância, haviam estado juntas na mesma escola provincial

(Mary como aluna-aprendiz), tendo assim muitas memórias em comum,


e gostavam à beça de conversar entre elas. De fato, este tête-à-tête era um

dos objetivos de Rosamond na vinda a Stone Court.

O velho Featherstone não daria início ao diálogo enquanto a porta

não tivesse sido fechada. Continuava a olhar para Fred com as mesmas

piscadelas e com uma de suas habituais caretas, apertando e abrindo

alternadamente a boca; quando falou, foi num tom baixo, passível de ser

tomado pelo tom de um informante pronto a se livrar de algum chanta-

gista, mais que pelo de um idoso ofendido. Não era homem de sentir

grande indignação moral, ainda que por causa de ofensas a ele mesmo.

Era natural que outros quisessem levar vantagem sobre ele, a quem con-

tudo não faltava, para enfrentá-los, certo quê de esperteza.

"Com que então o senhor tem pagado dez por cento por dinheiro

que promete quitar penhorando minhas terras quando eu tiver morrido

e ido, não é? Päe minha vida a doze meses, digamos. Mas olhe que

ainda posso alterar meu testamento."

Fred corou. Não havia pegado dinheiro deste modo, e por excelen-

tes razäes. Mas estava consciente de haver falado com alguma confiança

126

GEORGE ELIOT

(talvez mais do que exatamente lembrava) sobre esta hipótese de recor-

rer às terras de Featherstone como um meio futuro de saldar dívidas

atuais.

"Não sei ao que o senhor se refere. Eu certamente nunca fiz nenhum

empréstimo com base em tal insegurança. Explique-me, por favor."

"Não, quem tem de se explicar é o senhor. Ainda posso alterar meu

testamento, não se esqueça. E estou em meu são juizo - sou capaz de

calcular juros compostos de cabeça e de lembrar-me dos nomes de todos

os palermas, tão bem como há vinte anos atrás. Que diacho, estou com
menos de oitenta! Digo que o senhor deve contradizer esta história."

"Já a contradisse, senhor," respondeu Fred, com um toque de impa-

ciência, não lembrando que seu tio não discriminava verbalmente entre

contradizer e refutar, se bem ningém estivesse mais longe de confundir

as duas idéias do que o velho Featherstone, que se espantava com fre-

qüência de que tantos palermas tomassem suas próprias assertivas por

provas. "Contradigo-a porém de novo. Esta história é pura mentira."

"Não pode ser! Só se você trouxer documentos, porque ela vem de

boa fonte."

"Pois dê o nome da fonte, e faça-a dar o nome do homem de quem

tomei dinheiro emprestado, e eu então poderei refutar a história."

" fonte boa mesmo, acho eu - um homem que sabe quase tudo o

que acontece em Middemarch. Bondoso, religioso, caridoso. Aquele seu

tio, ora esta!" E um tremor interno que lhe era peculiar, e significava

regozijo, apossou-se aqui de Mr. Featherstone.

"Mr. Bulstrode?"

"Quem podia ser, hem?"

"Então a história desenvolveu-se nesta mentira a partir de algumas

palavras de reprovação que ele pode ter deixado escapar a meu respeito.

Dizem também se ele deu o nome do homem que me emprestou o di-

nheiro?"

"Se este homem existe, creia que BuIstrode o conhece. Mas, supon-

do-se que você só tenha tentado, e não obtido, o empréstimo - BuIstrode

saberia também. Traga-me pois uma declaração de BuIstrode, onde ele

diga por escrito não acreditar que você fez promessas de pagar suas dívi-

das com minhas terras por lastro. Vamos lá!"

O rosto de Mr. Featherstone precisou de todo seu lastro de caretas

como descarga muscular para seu silencioso triunfo na sanidade de suas

condiçäes mentais.

Fred se sentia num desagradável dilema.

"O senhor deve estar brincando. Mr. BuIstrode, como os homens em


MIDDLEMARCH

127

geral, acredita numa série de coisas que não são verdade, e ele tem um

preconceito contra mim. Facilmente eu poderia convencê-lo a escrever

que desconhece fatos capazes de comprovar o relato de que o senhor

fala, embora isto talvez causasse dissabor. Difícil seria eu pedir-lhe para

escrever no que acredita ou deixa de acreditar sobre mim." Fred fez uma

pausa, depois acrescentou, num apelo político à vaidade de seu tio: "Não

é bem uma coisa para um cavalheiro pedir."

O resultado porém desapontou-o.

"Ali, entendo sua intenção. Prefere ofender a mim que a BuIstrode. E

o que ele é? - não tem por aqui nenhuma banda de terra de que eu

tenha ouvido falar. Um especulador, isto sim! Um dia ele pode despen-

car de repente, se o demônio não mais lhe der retaguarda. E é isto o que

diz a religião lá dele: ele quer que Deus Todo-Poderoso interfira.  um

absurdo! Há uma coisa que eu deixava muito claro quando ainda tinha o

hábito de ir à igreja - e é isto: Deus Todo-Poderoso não larga a terra.

Promete terra e dá terra e faz os camaradas ricos com milho e gado. Você

porém fica do outro lado. Gosta mais de BuIstrode e a especulação do

que de Featherstone e a terra."

"Desculpe-me," disse Fred levantando-se, dando as costas para o

fogo e batendo com seu chicote na bota. "Não gosto de BuIstrode nem

de especulação." Falou de um jeito meio zangado, sentindo que não

tinha saída.

"Ora muito bem, você pode prescindir de mim, isto está claro," disse

o velho Featherstone, descontente porém no fundo com a possibilidade

de Fred vir a mostrar-se independente mesmo. "Nem quer um pedaço

de terra, para tornar-se um gentil-homem e não um pastor à mingua,


nem uma ajuda eventual de cem libras. Para mim é tudo uma coisa só.

Posso fazer cinco codicilos, se eu quiser, e minhas notas de banco hei de

guardar para um ninho. Para mim é tudo uma coisa só."

Fred corou de novo. Raramente Featherstone lhe havia feito presen-

tes em dinheiro, e neste momento parecia quase mais difícil despedir-se

com a perspectiva imediata das notas de banco do que com a perspecti-

va mais remota de terras.

"Não sou ingrato. Nunca quis demonstrar descaso por quaisquer boas

intençäes que o senhor possa ter a meu respeito. Pelo contrário."

"Muito bem. Então prove-o. Traga-me uma carta do BuIstrode dizendo

que ele não acredita que você quebrou e prometeu pagar suas dívidas

com minhas terras, e aí então, se houver alguma enrascada em que você

se meteu, vamos ver se eu posso ajudá-lo um pouco. Vamos lá!  um

trato. E agora, dê-me seu braço. Vou tentar andar pelo quarto."

128

GEORGE ELIOT

Fred, a despeito de sua irritação, tinha bondade bastante para con-

doer-se do velho, não amado nem venerado, que, com suas pernas

hidrópicas, parecia ao andar mais digno de pena que nunca. Dando-lhe

o braço, pensou que não gostaria nada de ser ele mesmo um camarada

velho com a constituição aos pedaços; e esperou com toda a calma, pri-

meiro diante da janela para ouvir as observaçäes de costume sobre as

galinhas-d"angola e o cata-vento, depois diante das minguadas pratelei-

ras de livros, onde as grandes glórias em couro negro eram o Josefol,

Culpepper2 - o Messias de Klopstock 3 e vários volumes do Gentleman"s

Magazine.

"Leia os nomes dos livros para mim, vamos! Você é um homem de

estudos."
Fred lhe deu os títulos.

"Que queria a menina com mais livros?  preciso você viver trazen-

do mais livros para ela?"

"Os livros a distraem. Ela adora ler."

"Um pouco demais," disse Mr. Featherstone, capeiosamente. "Quan-

do ela ficava comigo, queria ler. Mas eu pus um fim nisto. Ela já tem o

jornal para ler em voz alta, o que eu diria que, para um dia, basta. Não

agüento vê-la lendo sozinha. Peço pois que não lhe traga mais livros,

está-me ouvindo?"

"Sim, senhor, estou ouvindo." Fred já havia recebido esta ordem

antes, e em segredo a desobedecera. Pretendia desobedecê-la de novo.

"Toque a sineta," disse Mr. Featherstone. "Quero que a menina desça."

Rosamond e Mary tinham conversado mais rápido que seus amigos

homens. Nem pensando em sentar-se, puseram-se ao toucador perto da

janela, enquanto Rosamond tirava o chapéu, ajeitava o véu e com as

pontas dos dedos dava pequenos retoques no cabelo - um cabelo de

infantil formosura, não se sabe se dourado ou louro. Mary Garth parecia

ainda mais simples, plantada num ângulo entre as duas ninfas - a que

estava no espelho e a que ficara de fora, mirando-se as duas com olhos

de um azul celestial, suficientemente profundos para conter as intençäes

mais raras que um observador engenhoso neles pudesse pôr, e suficien-

temente profundos para ocultar as intençäes de sua dona, se estas

porventura fossem menos raras. Ao lado de Rosamond, só umas poucas

crianças de Middemarch pareciam louras, e a figura esbelta exibida por

IFláviojosefo (c. 38-10O), historiador judeu, autor de uma história de seu

povo.

2Sir Thomas Culpepper (1578-1662) e seu filho do mesmo nome (1626-1697)

escreveram

ambos sobre o tema da usura.

Triedrich Cottlieb Klopstock (1724-1803), poeta alemão.


MIDDLEMARCH

129

seu traje de montar tinha ondulaçäes delicadas. De fato, para a maioria

dos homens de Middemarch, à exceção de seus irmãos, a melhor garota

do mundo era Miss Vincy, que alguns até chamavam de anjo. Mary Garth,

ao contrário, tinha o aspecto de uma pecadora comum: era morena; seu

cabelo escuro e crespo era áspero, intratável; baixa era sua estatura; e

não seria verdade declarar, como antítese satisfatória, que ela possuía

todas as virtudes. A simplicidade, quase tanto quanto a beleza, tem seus

vícios e tentaçäes peculiares; está sujeita a fingir amabilidade ou, não o

fazendo, a mostrar toda a repulsa do descontentamento: de qualquer

modo, chamá-la de coisa feia, em contraste com a adorável criatura que

lhe faz companhia, tende a produzir certo efeito além do senso de real

veracidade e adequação na frase. Aos vinte e dois anos de idade Mary

certamente não atingira o perfeito bom senso e os bons princípios que

geralmente são recomendados à moça pouco afortunada, como se fos -

sem para ser obtidos em quantidades já misturadas, com um sabor de

resignação tal qual se exige. Sua argúcia tinha um traço de amargor satí-

rico continuamente renovado e nunca removido completamente de cena,

a não ser por uma forte corrente de gratidão por aqueles que, ao invés de

lhe dizerem que ela devia ficar contente, faziam alguma coisa para

contentá -la. A avançada transformação em mulher havia temperado sua

simplicidade, que era de boa qualidade humana, como a das mães de

nossa raça, muito comumente exibida em todas as latitudes sob algo

mais ou menos de acordo que lhes cobre a cabeça. Rembrandt a teria

pintado com prazer, fazendo decerto com seus traços grosseiros saltas-

sem com inteligente honestidade da tela. Pois a honestidade, o desejo

de dizer a verdade, era a principal virtude de Mary: ela não se empenha-


va por criar ilusäes, nem tampouco as cultivava em proveito próprio, e

quando estava em bom ânimo tinha humor suficiente para rir de si mes-

ma. Quando as duas, ela e Rosamond, foram casualmente refletidas jun-

tas no espelho, Mary disse risonhamente:

"A seu lado, Rosy, puxa! que mancha escura que eu sou! Você é a

companhia que menos me convém."

"Oh não! Ninguém pensa em sua aparência, Mary, tão sensata e útil

você é. A beleza na realidade tem muito pouca importância," disse

Rosamond, virando a cabeça para Mary, mas desviando ao mesmo tem-

po os olhos para a nova visão de seu pescoço no espelho.

"Você quer dizer a minha beleza," disse Mary, algo sardônica.

Rosamond pensou: "Coitada da Mary, leva a mal as coisas mais gen-

tis." E disse em voz alta: "Que anda você fazendo ultimamente?"

"Eu? Oh, cuidando da casa - dando xarope - aparentando ser

130

GEORGE ELIOT

amável e estar contente - aprendendo a ter de todos uma opinião

negativa."

" uma vida horrível para você."

"Não," disse sucintamente Mary, erguendo a cabeça não sem orgu-

lho. "Creio que minha vida é mais agradável que a de sua Miss Morgan."

"Sim; mas Miss Morgan é muito desinteressante, e não é jovem."

" interessante para si mesma, suponho; e não tenho a menor certe-

za de que tudo fique mais fácil à medida que ficamos mais velhos."

"Não," disse Rosamond pensativamente; "e a gente se pergunta o

que, sem nenhuma perspectiva, tais pessoas fazem. Certamente há a

religião como um suporte. Mas," acrescentou, sorrindo com suas covas,

Ideom você é muito diferente, Mary. Você pode ter uma proposta."

"Alguém lhe falou que pretende fazer-me uma?"


"Claro que não. Eu é que digo que há um cavalheiro bem capaz de

se apaixonar por você, vendo-a quase todos os dias."

Uma certa mudança no rosto de Mary foi determinada principal-

mente pela resolução de não mostrar mudança alguma.

"E isto sempre faz as pessoas se apaixonarem?" respondeu ela

descuidosa; "parece-me que com a mesma freqüência é uma razão para

que se detestem."

"Não quando elas são interessantes e agradávies. Ouço dizer que

Mr. Lydgate é ambas as coisas."

"Oh, Mr. Lydgate!" disse Mary, com inequívoca entrega à indiferen-

ça. "Você quer saber alguma coisa sobre ele," acrescentou, disposta a

não condescender com a indireta de Rosamond.

"Apenas se você gosta dele."

"Não se trata por ora de gostar. Meu querer bem sempre carece de

alguma pequena gentileza para abrasá-lo. Não sou suficientemente

magnãonina para gostar de pessoas que falam comigo sem aparentemen-

te me ver."

"Ele é assim tão altivo?" disse Rosamond, com satisfação ainda maior.

"Você sabe que ele é de boa família?"

"Não sabia; pois ele não deu razão para tanto."

"Mary! garota mais estranha do que você não há. Mas que aparencia

ele tem? Descreva-o para mim como homem."

"Como é possível descrever um homem? Posso é dar-lhe um inven-

tário: sobrancelhas espessas, olhos escuros, nariz reto, basto cabelo es-

curo, mãos brancas, grandes, sólidas - e - deixe-me ver - oh, um

finíssimo lenço de cambraia no bolso! Mas você vai vê-lo. Você sabe que

está quase na hora das visitas dele."

MIDDLEMARCH

131
Rosamond enrubesceu um pouco, mas com ar pensativo disse: "Eu

até que gosto de um jeito altivo. Não agüento os rapazes muito conver-

sadores."

"Eu não lhe disse que Mr. Lydgate era altivo; mas ily en a pour tous les

goúts,1 como a pequena Mainselle costumava dizer, e se há moça capaz

de escolher o tipo particular de presunção de que gostaria, eu diria que é

você, Rosy."

"Altivez não é presunção; eu chamo o Fred de presunçoso."

"Espero que ninguém tenha dito coisa pior sobre ele. Ele aliás deve-

ria ter mais cuidado. Mrs. Waule andou dizendo para o tio que o Fred é

muito desregrado." Mary falou por um impulso adolescente imbuído do

melhor de seu discernimento. Mas houve um vago mal-estar causado

pela palavra "desregrado", que ela esperou que Rosamond, dizendo al-

guma coisa, pudesse dissipar. E propositadamente se absteve de mencio-

nar a insinuação mais especial de Mrs. Waule.

"Oh, o Fred é horrível!" disse Rosamond. Não se teria permitido tão

inadequada palavra com mais ninguém além de Mary.

"Horrível como?"

" muito preguiçoso, deixa o meu pai furioso e diz que não acata

ordens."

"Acho que o Fred está muito certo."

"Como pode dizer que ele está muito certo, Mary? Eu julgava que

sua compreensão da religião fosse melhor."

"Ele não tem vocação para o clero."

"Pois deveria ter."

"Bem, então ele não é o que deveria ser. Conheço outras pessoas

que estão no mesmo caso."

"Ninguém porém as aprova. Eu não gostaria de me casar com um

clérigo; mas é preciso que haja clérigos."

"Daí não decorre que o Fred deva ser um."


"Mas com todos os gastos que o meu pai tem feito para educá-lo

para isto! E você já pensou, se ninguém deixar uma herança para ele?"

"Posso imaginar muito bem," disse Mary secamente.

"Espanta-me por isto que você possa defender o Fred," disse

Rosamond, disposta a levar adiante este ponto.

"Eu não o defendo," disse Mary rindo; "defenderia sim qualquer

paróquia de tê -lo como seu titular."

"Ern francês no original: "há gosto para tudo."

132

pessoa."

GEORGE ELIOT

"Mas é claro que, se ele fosse um clérigo, seria forçosamente outra

"Sim, seria um grande hipócrita; o que por enquanto ainda não é."

"Não adianta dizer nada para você, Mary. Você sempre fica do lado

do Fred."

"E por que eu não ficaria do lado dele?" disse Mary esquentando.

"Também ele ficaria do meu.  a única pessoa a se dar a algum incômo-

do para me agradar."

"Você me deixa muita constrangida, Mary," disse Rosamond, com a

doçura mais grave. "Por nada deste mundo eu contaria à mamãe."

"Não contaria o quê?" disse Mary, zangada.

"Por favor, não se entregue à raiva, Mary," disse Rosamond, doce

como sempre.

"Se a sua mãe tem medo de que o Fred me faça uma proposta, diga

a ela que eu não me casaria com ele, se ele me pedisse. Não há porém de
fazê-lo, tenho certeza. E certamente nunca me pediu."

"Mary, você é sempre tão violenta."

"E você é sempre tão exasperante."

"Eu? Mas que máculas vê em mim?"

"Oh, as pessoas imaculadas são sempre as mais exasperantes. A sineta

está tocando - acho que devemos descer."

"Eu não queria brigar," disse Rosamond, pondo seu chapéu.

"Brigar? Mas que absurdo; nós não brigamos. De que vale sermos

amigas, se de vez em quando não houver uma desavença entre a gente?"

"Posso repetir o que você disse?"

"Como quiser. Eu nunca digo o que tenho medo de ser repetido.

Mas vamos descendo."

Mr. Lydgate estava um pouco atrasado esta manhã, mas as visitas

demoraram-se a tempo de vê-lo; pois Mr. Featherstone pediu que

Rosamond cantasse para ele, e ela foi tão gentil que até propôs uma

segunda canção das favoritas dele - "Flui, ó cintilante rio!" - após ter

cantado "Lar, doce lar" (que ela detestava). Este velho e obstinado

OverreachI aprovava a canção sentimental como ornamento apropriado

às moças, e também como fundamentalmente boa, sendo o sentimento

a coisa certa para uma canção.

Mr. Featherstone ainda estava aplaudindo o último número, e ga-

rantindo à cantora que sua voz era clara como o canto do melro, quando

o cavalo de Mr. Lydgate passou pela janela.

ISir Giles Overreach, o vilão de A New Way to Pay Old Debts (1633), de

Philip Massinger.

MIDDLEMARCH

133
Sua morna expectativa da habitual e desagradável rotina com um

paciente idoso - o qual dificilmente acredita que a medicina não pudes-

se Ievantá-lo" se o doutor fosse inteligente mesmo, - somada à sua

geral descrença nos encantos de Middemarch, constituíram um fundo

duplo e eficaz para esta visão de Rosamond, a quem o velho Featherstone

apressou-se ostentosamente a apresentar como sua sobrinha, quando

nunca lhe ocorrera que valesse a pena falar de Mary Garth nesta condi-

ção. Nada escapou a Lydgate no airoso comportamento de Rosamond:

quão delicadamente ela pôs de lado, com uma serena gravidade, a indi-

cação que a falta de gosto do velho lhe impusera, não mostrando suas

covinhas na hora emada, mas sim logo depois, ao falar para Mary, a

quem ela se dirigiu com uma atenção de tão boa natureza que Lydgate,

após examinar Mary mais completamente do que havia feito antes, viu

uma adorável bondade nos olhos de Rosamond. Mas Mary, por alguma

razão, parecia estar com muita raiva.

"Miss Rosy andou cantando uma canção para mim - o senhor não

tem nada contra, não é, doutor?" disse Mr. Featherstone. "Gosto mais

disto que dos seus remédios."

"E isto me fez esquecer de que o tempo estava passando," disse

Rosamond, levantando-se para apanhar seu chapéu, que antes de cantar

ela deixara à parte, a modo de sua cabeça semelhante a uma flor na

haste branca ter sido vista à perfeição sobre o traje de montar. "Fred,

realmente temos de ir."

"Está bem," disse Fred, que tinha suas próprias razäes para não es-

tar em seus melhores momentos e já queria partir.

"Miss Vincy é uma musicista?" disse Lydgate, seguindo-a com os

olhos. (Cada nervo e cada músculo de Rosamond ajustava-se à consci-

ência de que ela estava sendo olhada. Era, por natureza, uma atriz de

papéis que se encaixavam no seu physique: ela representava até mesmo

o próprio personagem, e tão bem, que nem o sabia ser precisamente

seu.)
"A melhor de Middemarch, garanto," disse Mr. Featherstone, "e que

a segunda seja quem ela queira. Não é, Fred? Fale por sua irmã."

"Temo não estar num tribunal, senhor. Meu testemunho não serviria

para nada."

"Middemarch não tem um padrão muito alto, meu tio," disse

Rosamond, com uma linda leveza, indo para apanhar seu chicote, que jazia

a certa distância.

134

GEORGE ELIOT

Lydgate porém se antecipou com presteza. Alcançou o chicote e vi-

rou-se para entregá-lo a ela, que se inclinou e o olhou: ele, é claro, tam-

bém olhava para ela, e seus olhos descobriram-se neste peculiar encon-

tro que nunca é atingido por esforço, mas parece uma súbita iluminação

divina do ofuscamento. Penso que Lydgate ficou mais pálido que de cos-

tume, enquanto Rosamond, sentindo um certo pasmo, corava muito.

Depois disto, a ansiedade de partir a dominou realmente, e ela já nem

sabia de que tipo de tolice seu tio estava falando quando foi despedir-se

dele com um aperto de mãos.

Entretanto era justamente com este resultado, que ela tomou por

ser uma impressão mútua, chamada sentir amor, que Rosamond ha-

via contado de antemão. Desde aquela nova e importante chegada a

Middiemarch ela inventara um pequenino futuro, do qual alguma coisa

como esta cena era o necessário começo. Os estranhos, quer naufra-

gados e se agarrando a uma tábua, quer devidamente escoltados e

conduzindo maletas, sempre têm exercido um fascínio circunstancial

sobre a mente virgem, contra o qual o mérito nativo deblatera em

vão. E um estranho era absolutamente necessário ao romance social

de Rosamond, que sempre girara em torno de um amado e noivo que


não era de Middemarch e não tinha parentes como os dela: ultima-

mente, com efeito, tal construção parecia requerer que ele estivesse

de alguma forma ligado a um baronete. Agora, tendo ocorrido o en-

contro entre o estranho e ela, a realidade se provava muito mais

comovente que a antecipação, e Rosamond não podia senão admitir

que esta era a grande época de sua vida. Julgava seus próprios sinto-

mas como os do amor nascente, e soava-lhe até mais natural que Mr.

Lydgate pudesse ter-se apaixonado por ela à primeira vista. Se essas

coisas aconteciam com tal freqüência nos bailes, por que não então à

luz da manhã, quando a aparência se mostrava mais propícia a elas?

Rosamond, embora não mais velha que Mary, já estava bem acostu-

mada a que se apaixonassem por ela; mas mantivera-se por seu lado

indiferente e fastidiosamente crítica tanto do pimpolho viçoso quan-

to do emurchecido solteirão. E aqui estava Mr. Lydgate corres-

pondendo bruscamente ao seu ideal, pois que era estranho de todo a

Middemarch, possuía certo ar de distinção condizente com uma boa

família e tinha ligaçäes que ofereciam vistas deste paraíso da classe

média, a posição; um homem de talento, também, a quem seria espe-

cialmente delicioso escravizar: de fato, um homem que havia tocado

sua natureza de modo totalmente novo e infundido à sua vida um

MIDDLEMARCH

135

interesse vibrante, melhor que qualquer imaginário "talvez" como os

que ela tinha o hábito de opor ao real.

Assim, cavalgando para casa, tanto o irmão quanto a irmã esta-

vam preocupados e tendentes a ficar em silêncio. Rosamond, cuja

estrutura tinha como base a habitual leveza airosa, era de imaginação

notavelmente detalhada e realista desde que pressuposta a fundação;


mal andaram um quilômetro e ela já estava longe nas apresentaçäes e

roupas de sua vida de casada, tendo determinado sua casa em Mid-

demarch e antevisto as visitas que haveria de fazer, viajando, aos

parentes aristocráticos de seu marido, de cujas maneiras requintadas

poderia apropriar-se tão bem como ela havia na escola feito seus de-

veres, preparando-se assim para as elevaçäes mais vagas que deve-

riam vir por último. Nada havia de financeiro, e ainda menos de sór-

dido, em suas previsäes: precupava-se com o que eram considerados

refinamentos, e não com o dinheiro a pagar por eles.

A mente de Fred, por outro lado, estava tomada por uma ansiedade

que nem mesmo sua pressurosa esperança podia aquietar de imediato.

Não via como escapar do estúpido pedido de Featherstone sem incorrer

em conseqüências que lhe agradavam ainda menos que a obrigação de

atendê-lo. Seu pai já estava aborrecido com ele e o ficaria ainda mais, se

fosse ele o motivo de alguma frieza adicional entre sua família e os

BuIstrodes. E ele odiava ter de ir falar com o tio BuIstrode, e quem sabe se

após uns copos de vinho ele tivesse dito muitas tolices sobre a proprieda-

de de Featherstone, exageradas depois pelos relatos. Fred sentia-se fazen-

do pobre figura como um sujeito que se havia gabado de expectativas

partidas de um velho avarento e esquisito como Featherstone e que, a

pedido dele, teve de ir solicitar certificados. Ah - mas estas expectativas!

Realmente ele as tinha, e não via alternativa agradável se abrisse mão

delas; além do mais, havia feito recentemente uma dívida que o atormen-

tava muito, e que o velho Featherstone quase propusera um acordo para

quitar. Todo o caso era terrivelmente pequeno: suas dívidas eram peque-

nas, e nem mesmo suas expectativas eram lá assim tão grandes. Fred co-

nhecia homens aos quais se envergonharia de confessar a pequenez dos

seus farrapos de papel. Estas ruminaçäes produziram naturalmente um

traço de amargura mísantropa. Ter nascido filho de um dono de fábrica de

Middemarch, e inevitavelmente herdeiro de nada em particular, enquan-

to homens como Mainwaring e Vyan - decerto a vida era um mau


negócio, quando um jovem tão fogoso, com um bom apetite para o me-

lhor de tudo, tinha perspectivas tão medíocres.

136

GEORGE ELIOT

Não ocorrera a Fred que a introdução do nome de Buistrode no as-

sunto era uma ficção do velho Featherstone; nem isto teria feito diferen-

ça para a situação em que estava. Ele via com bastante clareza que o

velho queria exercer seu poder atormentando-o um pouco, e também

provavelmente obter alguma satisfação por vê-lo em maus termos com

BuIstrode. Fred supunha ver até o fundo a alma de seu tio Featherstone,

mas na realidade em metade do que via não havia mais que o reflexo das

suas inclinaçäes. A difícil tarefa de conhecer outra alma não é para os

cavalheiros jovens, cuja consciência é constituída principalmente por seus

próprios desejos.

Se deveria contar ao pai, ou tentar resolver o caso sem o conheci-

mento deste, eis o ponto principal no debate de Fred consigo mesmo.

Era provavelmente Mrs. Waule quem andara falando dele; e se Mary

Garth tivesse repetido para Rosamond o relato de Mrs. Waule, era cer-

to que ele alcançasse seu pai, assim como era certo que o pai o questio-

nasse a respeito. Disse pois para Rosamond, quando diminuíam o pas-

so:

mim?"

"Rosy, a Mary lhe falou de Mrs. Waule ter dito alguma coisa sobre

"Falou sim."

440 quê?"
"Que você era muito desregrado."

"Só isto?"

"A meu ver já foi bastante, Fred."

"Tem certeza que ela não disse mais coisas?"

"A Mary não mencionou mais nada. Mas realmente, Fred, creio que

você deva estar envergonhado."

"Ora bolas, não me venha com sermäes! E o que foi que a Mary

disse?"

"Não sou obrigada a lhe contar. Você se importa muitíssimo com o

que a Mary diz, e comigo é tão grosseiro que nem me deixa falar."

"Claro que me importo com o que a Mary diz. Ela é a melhor garota

que eu conheço."

"Nunca eu a teria tomado por uma garota por quem cair de amor."

"Como é que você sabe por quem os homens caem de amor? Nunca

as garotas sabem."

"Pelo menos, Fred, deixe-me aconselhar que você não caia de amor

por ela, porque diz ela que não se casaria com você, caso a pedisse."

"Bem que ela poderia ter esperado até que eu o fizesse."

MIDDLEMARCH

137

"Eu sabia que isto ia magoá-lo, Fred."

"Nem um pouco. Ela não o teria dito, se você não a tivesse pro-

vocado."

Antes de chegarem em casa, Fred concluiu que da maneira mais sim-

ples possível contaria todo o caso a seu pai, que talvez pudes se tornar a

si a desagradável tarefa de ir falar com BuIstrode.

LIVRO 11
Velhos ejovens

CAPÍTULO XIII

Ist Gent. How class your man? - as better than most,

Or, seeming better, worse beneath that cloak?

As saint or knave, pilgrim or hypocrite?

2nd Gent. Nay, tell me how you class yotir wealth of books,

The drifted relics of all time. As well

Sort them at once by size and livery:

Vellum, tall copies, and the comirion calf

Will hardly cover more diversity

Than all your labels cunningly devised

To class yotir unread authors.

19 Sr. Como classificar seu homem? - melhor que tantos,

Ou, parecendo melhor, pior sob este manto?

Como santo ou guerreiro, peregrino ou hipócrita?

29 Sr. Não, classifique-me só sua riqueza em livros,

Esta pilha de relíquias dos tempos. E também

Separe-os sem demora por tamanho e beldade:

O velino, os impressos e encadernaçäes

Dificilmente cobrirão mais diversidade

Que as engenhosas etiquetas concebidas

Para classificar os seus autores não lidos.

Em CONSEQšÊNCIA Do que tinha ouvido de Fred, Mr. Vincy resolveu ir

falar com Mr. BuIstrode em seu gabinete no Banco à uma e meia, quan-

do em geral ele estava livre. Outro visitante chegara porém à uma hora,

e Mr. Buistrode tinha tanto a dizer-lhe que havia escassa possibilidade


de a entrevista terminar em meia hora. A fala do banqueiro era fluente,

mas também copiosa, e ele gastava apreciável quantidade de tempo em

breves pausas meditativas. Não imagine que seu aspecto doentio fosse

142

GEORGi: ELIOT

do tipo que, além de amarelado, tem o cabelo preto: ele tinha a pele

pálida, mas branca, o cabelo castanho e ralo com esparsas manchas gri-

salhas, os olhos acinzentados e uma grande testa. Homens que falavam

alto diziam que seu tom moderado era um subtom, dando a entender às

vezes que ele era incompatível com a sinceridade; embora não pareça

haver razão para que um homem que fale alto não seja dado ao encobri-

mento de qualquer coisa exceto sua voz, a não ser que possa ser de-

monstrado que a Sagrada Escritura colocou nos pulmäes a sede da fran-

queza. Mr. BuIstrode tinha também uma atitude de se curvar para ouvir

com deferência e, nos olhos, uma aparente fixidez de atenção que leva-

vam as pessoas que se consideravam dignas de ser ouvidas a inferirem

que ele estava em busca do mais completo aproveitamento dos seus

discursos. Outros, que não esperavam fazer bela figura, não gostavam

nada dessa espécie de lanterna moral virada para eles. Quem não se

orgulhar de sua adega, não sentirá um pingo de satisfação ao ver seu

convidado erguendo o copo de vinho à luz, com ar judicioso. Tais ale-

grias se reservam ao mérito consciente. Donde a atenção fixa de Mr.

BuIstrode não agradar aos taberneiros e pecadores de MiddIernarc11; uns

a atribuíam ao fato de ser ele um fariseu, outros, ao fato de ele ser evan-

gélico. Os que entre eles raciocinavam menos superficialmente queriam

saber quem tinham sido seu avô e seu pai, observando que há vinte e

cinco anos atrás ninguém jamais ouvia falar de um BuIstrode em Mid-

demarch. Para seu atual visitante, Lydgate, o olhar perscrutador era in-
diferente: ele simplesmente formou uma opinião desfavorável sobre a

constituição do banqueiro, concluindo que o mesmo levava uma vida de

ansiedade, com pouco desfrutar de coisas tangíveis.

"Hei de ficar-lhe imensamente grato se de vez em quando o senhor

passar por aqui para me ver, Mr. Lydgate," observou o banqueiro, após

breve pausa. "Se, como atrevo-me a esperar, eu tiver o privilégio de tê-

lo como um auxiliar valioso na momentosa questão da administração

hospitalar, haverá muitos problemas que precisaremos discutir entre nós.

Quanto ao novo hospital, que está quase concluído, vou pensar no que

disse sobre as vantagens de destiná-lo apenas às febres. A decisão cabe-

rá a mim, pois Lord Medicote, embora tenha dado o terreno e madeira

para a construção, não está em condiçäes de dar ao projeto sua atenção

pessoal."

"Há poucas coisas tão merecedoras de esforço numa cidade de pro-

víncia como esta," disse Lydgate. "Um bom hospital da febre somado à

velha enfermaria pode ser o núcleo de uma escola de medicina aqui,

desde que tenhamos conseguido nossas reformas médicas; e o que faria

MIDDLEMARCH

143

mais pela educação médica que a disseminação de tais escolas pelo pais?

Um homem nascido na província, que tenha um mínimo de espírito pú-

lico, bem como algumas idéias, deve fazer o que pode para resistir à

maré de coisas que estão um pouco melhor do que o comum lá para os

lados de Londres. Quaisquer objetivos profissionais válidos podem mui-

tas vezes encontrar nas províncias um campo mais livre, quando não

mais rico."

Um dos dons de Lydgate era uma voz habitualmente profunda e

sonora, capaz contudo de se tornar gentil e muito baixa no momento


certo. Em seu porte costumeiro havia um certo abandono, uma destemi-

da expectativa de sucesso, uma confiança em sua própria força e integri-

dade muito fortalecida pelo desdém por pequenos obstáculos ou sedu-

çäes dos quais ele não tinha tido experiência. Mas esta sua orgulhosa

franqueza era tornada amável por uma expressão de boa vontade não

afetada. Mr. Bultstrode talvez gostasse ainda mais dele pela diferença

entre os dois de timbre e modos; e certamente gostava ainda mais dele,

tal como Rosamond, por ser ele um estranho em Middemarch. Pode-se

começar tantas coisas com uma pessoa nova! - inclusive começar a ser

um homem melhor.

"Para mim será uma alegria dar ao seu entusiasmo as oportunidades

mais amplas," Mr. BuIstrode respondeu; "ou seja, confiar-lhe a superin-

tendência do meu novo hospital, caso um conhecimento mais maduro

favoreça esta solução, pois já decidi que um projeto tão grandioso não

há de ser estorvado por nossos dois facultativos. Com efeito, encorajo-

me a considerar seu advento a esta cidade como clemente indicação de

que uma bênção mais manifesta há de agora ser concedida aos meus

esforços, que até aqui encontraram muita resistência. Com relação à

enfermaria velha, já ganhamos a fase inicial - ou seja, sua eleição. E

agora espero que o senhor não se intimide se despertar certa quantidade

de antipatia e ciúme em seus colegas de profissão por apresentar-se como

um reformador."

"Não hei de ostentar bravura," disse Lydgate, sorrindo, "mas reco-

nheço que há muito de prazer na luta, e de minha profissão eu nem faria

caso, se não acreditasse que há melhores métodos a serem descobertos

e aplicados nela, como de resto por toda parte."

"O nível desta profissão anda baixo em Middemarch, meu caro se-

nhor," disse o banqueiro. "Baixo, quero dizer, em conhecimento e perícia;

não em posição social, pois em sua maioria nossos médicos são aparenta-

dos a respeitáveis pessoas do lugar. Minha própria saúde, que não é muito

boa, induziu-me a dar alguma atenção a esses recursos paliativos que a


144

GEORGE ELIOT

misericórdia divina colocou ao nosso alcance. Consultei na metrópole

homens eminentes, e tenho penosa consciência do atraso no qual se en-

contra o tratamento médico em nossos distritos provinciais."

" verdade; - com as normas e a educação em vigor na medicina, já

é uma satisfação hoje em dia encontrar de vez em quando um praticante

correto. Quanto a todas as questäes superiores que determinam o ponto

de partida de um diagnóstico - quanto à filosofia da evidência médica

- qualquer vislumbre delas só pode provir de uma cultura científica da

qual os praticantes do campo geralmente não têm mais noção que do

homem na lua."

Mr. BuIstrode, curvando-se e olhando atentamente, não achou que

a forma dada por Lydgate a esta concordância fosse de todo adequada à

sua compreensão. Em tais circunstâncias, um homem judicioso muda de

assunto e ingressa em terreno onde suas aptidäes possam ser mais úteis.

"Estou ciente," disse ele, "de que a competência médica tem pecu-

liar inclinação por meios materiais. Não obstante, Mr. Lydgate, espero

que nossos sentimentos não variem no tocante a uma medida na qual o

senhor não deverá estar ativamente envolvido, mas onde sua simpática

cooperação pode ser uma ajuda para mim. Suponho que reconheça, em

seus pacientes, a existência de interesses espirituais, pois não?"

"Certamente que sim. Mas estas palavras estão sujeitas a cobrir di-

ferentes significados em diferentes cabeças!"

"Exatamente. E em tais questäes a instrução emônea é tão fatal quan-

to instrução nenhuma. Há um ponto que eu me empenho a fundo por

garantir, qual seja, um novo regulamento para a assistência religiosa na

enfermaria velha. O prédio fica na paróquia de Mr. Farebrother. O se-


nhor conhece Mr. Farebrother?"

"já estive com ele. Ele me deu seu voto, devo ir visitá-lo para agra-

decer. Parece um su eitinho muito brilhante e agradável. E pelo que sei é

um naturalista."

"Mr. Farebrother, meu caro senhor, é um homem muito doloroso de

se contemplar. Suponho que não haja neste país um clérigo que tenha

maiores talentos." Mr. Buistrode fez uma pausa, como se meditasse.

"Ainda não me dei ao trabalho de encontrar em Middemarch qual-

quer talento excessivo," disse Mr. Lydgate, rudemente.

"O que eu desejo," Mr. BuIstrode continuou, ficando ainda mais sé-

rio, "é que a assistência de Mr. Farebrother no hospital seja substituída

pela indicação de um capelão - de Mr. Tyke, na verdade - e que ne-

nhuma outra ajuda espiritual deva ser solicitada."

"Como médico eu não poderia ter opinião sobre este ponto, a me-

MIMUMARCH

145

nos que conhecesse Mr. Tyke, e mesmo então eu pediria para conhecer

os casos a que ele estivesse dedicado." Lydgate sorriu, mas estava deci-

dido a ser circunspecto.

"Naturalmente o senhor não pode entrar completamente nos méri-

tos desta medida por ora. Mas" - e aqui Mr. BuIstrode começou a falar

com uma ênfase mais cinzelada - "à assunto será provavelmente leva-

do ao conselho médico da enfermaria, e o que eu confio poder pedir ao

senhor é que, em virtude da cooperação entre nós que daqui para a

frente já diviso, o senhor não será, no que lhe disser respeito, influencia-

do por meus oponentes nesta questão."

"Espero que eu nada tenha a ver com disputas clericais," disse

Lydgate. "O caminho que escolhi é trabalhar bem em minha própria


profissão."

"Minha responsabilidade, Mr. Lydgate, é de um tipo mais amplo.

Comigo, de fato, esta é uma questão de responsabilidade sagrada; ao

passo que, com meus oponentes, tenho boa razão para dizer que é uma

simples ocasião para gratificarem seu espírito de oposição mundana. Mas

nem por isto hei de abrir mão de um mínimo que seja de minhas convic-

çäes, ou deixar de identificar-me com a verdade que uma pérfida geração

odeia. Devotei-me a este projeto de melhorias hospitalares, mas ouso

confessar-lhe, Mr. Lydgate, que eu não me interessaria por hospitais se

eu acreditasse que nada mais estivesse aí previsto que não a cura das

doenças mortais. Tenho outro motivo de ação e, em face de perseguição,

não irei escondê-lo."

A voz de Mr. BuIstrode saiu como um cochicho agitado, e alto, quan-

do ele disse as últimas palavras.

"Nisto nós certamente divergimos," disse Mr. Lydgate. Mas não la-

mentou que a porta agora fosse aberta, e anunciassem Mr. Vincy. Este

flórido e sociável personagem tornara-se mais interessante para ele des -

de que tinha visto Rosamond. Não que, como ela, ele andasse a tecer

algum futuro no qual suas sortes estariam unidas; mas naturalmente um

homem se recorda com prazer de uma garota atraente, e de bom grado

vai jantar onde possa vê-la de novo. Antes de ele despedir-se, Mr. Vincy

havia feito este convite pelo qual "não se apressara nada," pois Rosamond

no café da manhã mencionara sua crença de que o tio Featherstone ha-

via tomado o novo médico em grande favor.

Mr. BuIstrode, sozinho com seu cunhado, serviu-se de um copo d"água

e abriu uma caixa de sanduíche.

"Não consigo persuadi-lo a adotar meu regime, não é, Vincy?"

"Não, não; não tenho opinião sobre este sistema. A vida precisa de

146
GEORGE ELIOT

um bom recheio," disse Mr. Vincy, incapaz de omitir sua teoria portátil.

"Contudo," prosseguiu, acentuando a palavra, como que para excluir

toda irrelevância, "o que aqui me trouxe para conversar foi um pequeno

caso do meu jovem e incorrigível Fred."

"Este é um assunto sobre o qual você e eu devemos ter enfoques tão

diferentes como sobre dietas, Vincy."

"Espero que não desta vez." (Mr. Vincy estava decidido a ser bem

humorado.) "Bem, trata-se de um capricho do velho Featherstone. Al-

guém andou inventando uma história, por despeito, e foi contá-la para o

velho, na tentativa de jogá-lo contra o Fred. Ele adora o Fred, e é prová-

vel que lhe deixe alguma coisa polpuda; de fato, chegou mesmo a dizer

ao Fred que pensa deixar suas terras para ele, e isto causa ciúme em

outras pessoas."

"Vincy, devo repetir que você não obterá nenhuma concordância de

minha parte no tocante ao rumo que tem seguido com seu filho mais

velho. Foi por pura vaidade mundana que você o destinou à Igreja: com

uma família de três filhos e quatro filhas, não estava autorizado a consa-

grar dinheiro a uma educação dispendiosa que não deu em nada, a não

ser conferir-lhe hábitos ociosos e extravagantes. Você agora está colhen-

do as conseqüências."

Apontar os erros alheios era um dever de que Mr. Bulstrode rara-

mente se eximia, mas Mr. Vincy não estava igualmente preparado para

ser paciente. Quando um homem tem a perspectiva imediata de ser pre-

feito, e está pronto, em defesa dos interesses do comércio, a assumir

uma atitude firme na política de modo geral, naturalmente ele também

tem noção de sua importância num contexto de coisas que parece rele-

gar a segundo plano as questäes de conduta privada. E esta reprovaçao

em particular irritou-o mais que qualquer outra. Era eminentemente

supérfluo, para ele, ser lembrado de que estava colhendo as consequen-


cias. Mas sentia seu pescoço sob o jugo de Bulstrode; e, embora normal-

mente gostasse de emoçäes fortes, estava ansioso para se privar desta.

"Quanto a isto, Bulstrode, não adianta voltar atrás. Não sou um dos

seus homens-modelo, nem pretendo ser. Eu não podia prever tudo no

ramo; não havia em Middemarch melhor negócio que o nosso, e o garo-

to era inteligente. Meu pobre irmão estava na Igreja, e iria sair-se bem

- já fora até promovido, mas aquela febre estomacal o levou: se não, a

essa altura poderia ser um deão. Creio estar justificado no que tentei

fazer pelo Fred. E, como você toca em religião, parece-me que um ho-

mem não deveria querer cortar de antemão seu mirrado naco de carne:

- é preciso confiar um pouco na Providência e ser generoso.  um bom

MIDDLEMARCH

147

sentimento britânico, este de fazer um esforço para tentar criar sua famí-

lia: na minha opinião, é dever de um pai dar a seus filhos uma boa opor-

tunidade."

"Não desejo agir a não ser como o seu melhor amigo, Vincy, quando

eu digo que tudo isto que você manifesta agora é uma só massa de

mundanidade e incoerente toleima."

"Muito bem," disse Mr. Vincy, numa forte emoção, a despeito das

resoluçäes, "nunca eu professo ser outra coisa, que não mundano; e o

que é mais, não vejo ninguém que não seja mundano. Suponho que

voce não faça seus negócios com base no que chama de princípios não

mundanos. A única diferença que eu vejo é que uma mundanidade é um

pouco mais honesta que a outra."

"Este é um tipo de discussão infrutífera, Vincy," disse Mr. BuIstrode,

que, acabado seu sanduíche, jogara-se outra vez em sua cadeira, a prote-

ger os olhos como que cansado. "Você tinha um assunto em particular."


"Pois é. Para encurtar a conversa, alguém disse ao velho Featherstone,

mencionando você como fonte, que o Fred pegou ou vem tentando pe-

gar dinheiro emprestado por conta das terras dele.  claro que você nun -

ca disse um tal absurdo. Mas o velho insiste que o Fred lhe leve um

desmentido de seu próprio punho; ou seja, apenas uma simples nota

dizendo que você não acredita numa palavra desta bobagem, nem que

ele pegou nem que tenha tentado pegar desta maneira, como um bobo.

Não creio que possa ter objeçäes a fazê-la."

"Desculpe-me. Eu tenho uma objeção. De modo algum estou certo

de que seu filho, em sua inquietude e ignorância, - não usarei palavras

mais severas - não tenha tentado levantar dinheiro apregoando suas

perspectivas futuras, ou mesmo de que alguém não possa ter sido sufici-

entemente tolo para abastecê-lo de fundos com base em presunção tão

vaga: há tantos empréstimos por aí assim à matroca como há outras

loucuras no mundo."

"Mas o Fred me deu sua palavra de honra de que nunca conseguiu

dinheiro emprestado com base em qualquer acerto sobre as terras do

tio. Ele não mente. Não que eu o queira fazer melhor do que é. já o

espremi bastante - ninguém pode dizer que eu feche os olhos para suas

açäes. Ele porém não é um mentiroso. E deveria ter-me ocorrido - mas

posso estar enganado - que não há religião que impeça um homem de

pensar o melhor sobre um rapaz, quando não se conhece o pior. Quer-

me parecer que seria uma pobre espécie de religião se você se recusasse

a dizer, pondo uma pedra em seu caminho, que não acredita em tal

desmando dele, posto que não tenha uma boa razão para acreditar."

148

GEORGE ELIOT

"Não estou de todo certo de que eu deva apoiar seu filho aplainan-
do-lhe o caminho para a futura posse da propriedade de Featherstone.

Não posso olhar a riqueza como uma bênção para aqueles que a usam

simplesmente como colheita para este mundo. Sei que não gosta de

ouvir essas coisas, Vincy, mas nesta ocasião sinto-me obrigado a dizer-

lhe que não tenho motivos para favorecer uma disposição da proprieda-

de como esta a que você se refere. Não me furto a afirmar que ela não vai

servir ao bem-estar eterno de seu filho nem à glória de Deus. Por que

então você espera que eu redija esta espécie de testemunho, que não

tem objetivo senão amparar uma louca parcialidade e garantir um louco

legado?"

"Se você quer impedir todo mundo de ter dinheiro, a não ser os

evangelistas e santos, deve abrir mão de algumas lucrativas parcerias, e

nada mais tenho a dizerf explodiu Mr. Vincy, com muita aspereza. "Pode

ser para a glória de Deus, mas não é para a glória do comércio de

Middemarch, que a casa de Plymdale usa aqueles corantes, o azul e o

verde que lhe são fornecidos pela manufatura de Brassing; corantes que

estragam a seda, por tudo que eu sei. Se outras pessoas soubessem tão

bem assim que o lucro vai para a glória de Deus, talvez pudessem ficar

mais satisfeitas. Eu porém não me importo muito com isto - eu que, se

quisesse, poderia causar uma gritaria."

Mr. Bulstrode fez uma pausa antes de responder. "Você me magoa

muito falando desta maneira, Vincy. Não espero que compreenda meus

motivos de ação - não é mesmo coisa fácil trilhar um caminho por

princípios em meio às complicaçäes do mundo - e ainda menos que se

ponha a clarear o caminho para os descuidados e os zombeteiros. Tenha

em mente, por favor, que estendi minha tolerância a você como irmão de

minha esposa, e que pouco lhe convém queixar-se de mim por recusar

ajuda material para garantir a posição social de sua família. Devo lembrá-

lo que não foi sua prudência nem seu discernimento que o capacitou a

manter o seu lugar nos negócios."

"Bem provável que não; mas você por enquanto nada perdeu com
meu negócio," disse Mr. Vincy, profundamente irritado (um efeito que

raramente era muito retardado por resoluçäes prévias). "Quando você

se casou com Harriet, não vejo como pudesse esperar que nossas famí-

lias não passassem a estar juntas em quaisquer circunstâncias. Caso te-

nha mudado de opinião, e queira que minha família desça na escala

social, é melhor que o diga. Eu por mim nunca mudei: sou hoje um

simples membro da Igreja, como aliás já o era, antes da aparição das

doutrinas. Aceito o mundo como o encontro, nos negócios e em tudo o

MIDDLEMARCH

149

mais. Estou contente de não ser pior que os vizinhos. Mas diga-me, se

você quer mesmo que nós caiamos na escala. Eu saberei melhor o que

fazer então."

"Não faz sentido esta conversa. Vocês vão descer na escala social se

não houver esta carta sobre o seu filho?"

"Bem, se vamos ou não, considero mesmo assim muito descortês de

sua parte a recusa. Tais coisas podem ser alinhadas com a religião, mas

por fora têm uma aparência malvada, de desmancha-prazeres. Você tam-

bém poderia difamar o Fred: já é quase fazê-lo, quando se recusa a dizer

que não originou a calúnia. E esse tipo de coisa - esse espírito tirânico,

querendo bancar o bispo e o banqueiro em toda parte - é esse tipo de

coisa que compromete o nome de um homem."

"Vincy, se você insistir em ficar brigando comigo, vai ser extrema-

mente doloroso para Harriet e para mim também," disse Mr. BuIstrode,

com um pouco mais de avidez e palidez que de praxe.

"Eu não quero brigar.  do meu interesse - e talvez também do seu

- que nós sejamos amigos. Não lhe tenho rancor; não penso mal de

você, mais que de outras pessoas. Um homem que chega a quase se


matar de fome, que se entrega de todo às oraçäes familiares, e assim por

diante, como você, acredita em sua religião seja o que for que aconteça:

nada lhe impediria de girar seu capital com a mesma rapidez blasfeman-

do e rogando pragas: - há muita gente que o faz. Você gosta de dar as

ordens, não há como negar; no céu, terá de estar na primeira classe, ou

então não ficará satisfeito. Mas você é o marido de minha irmã, e nós

temos de nos manter unidos; e, se eu conheço a Harriet, ela há de consi-

derar culpa sua, se brigamos porque você se apega a ninharias, recusan-

do-se a prestar ao Fred uma boa ajuda. E não posso dizer que eu tam-

bém vá receber isto bem. Considero-o uma descortesia."

Mr. Vincy levantou-se, começou a abotoar seu sobretudo e olhou

com firmeza para seu cunhado, querendo demonstrar que aguardava uma

resposta definitiva.

Não era a primeira vez que Mr. BuIstrode começava por admoestar

Mr. Vincy e acabava por ver um reflexo muito insatisfatório de si mesmo

no espelho grosseiro e nada lisonjeiro que a mente deste dono de fábrica

apresentava às luzes e sombras mais sutis de seus semelhantes; e talvez

sua experiência já o devesse pôr de sobreaviso agora quanto ao desfecho

da cena. Mas uma fonte bem provida há de ser generosa com suas águas

até mesmo na chuva, quando as águas são mais que inúteis; de igual

modo, uma boa fonte de admoestaçäes tende a ser incontível.

A aquiescência direta em consequencia de sugestäes incômodas não

150

GEORGE EIAOT

fazia parte da natureza de Mr. BuIstrode. Antes que mudasse de rumo,

era-lhe sempre necessário formular seus motivos e pô-los em consonãon-

cia com seu padrão habitual. Por fim ele disse:

"Vou refletir um pouco, Vincy. Vou conversar sobre este assunto com
Harriet. Provavelmente mando para você uma carta."

"Está bem. O mais rápido que puder, por favor. Espero que tudo

esteja resolvido antes de eu lhe ver amanhã."

CAPITULO XIV

"Follows here the strict receipt

For that sauce to dainty meat,

Named Ideness, which many eat

By preférence, and call it sweet:

First watch for morsels, like a hound,

Mix well with buffiéts, stir them round

With good thick oil of flatteries,

And froth with mean selHauding lies.

Serve warm: the vessels you must choose

To keep it in are dead men"s shoes. -

("Segue-se a receita correta

Para o molho dessa iguaria

Que chamam de ócio e delicia

A tantos que a têm por meta:

junte, como um cão, seus bocados,

Misture bem com os nãos! levados.

No óleo espesso da falsidade

Pbnha o tempero da vaidade.

E, ao servir quente, use um sapato

de defunto à guisa de prato.")

A CONSULTA DE MR. BULSTRODE a Harriet pareceu ter tido o efeito dese-

jado, pois cedo na manhã seguinte veio uma carta que Fred poderia

levar a Mr. Featherstone como o testemunho exigido.


O idoso senhor ainda estava na cama, devido ao frio que fazia, e,

como Mary Garth não pudesse ser vista na sala em baixo, Fred foi logo

subindo a escada e apresentou a carta a seu tio que, comodamente apoia-

do numa guarda do leito, era tão capaz como sempre de deleitar-se com

152

GEORGE ELIOT

a consciência da própria sabedoria para desconfiar da humanidade e

frustrá-la. Ele pôs os óculos para ler a carta, franzindo os lábios e esti-

cando os cantos da boca.

"Nestas circunstâncias não declinarei de afirmar minha convicção - bah!

que belas palavras o homem usa!  tão bom como um leiloeiro! - de que

seu filho Frederic não obteve nenhum adiantamento em dinheiro por conta de

doaçäes testamentárias prometidas por Mr. Featherstone - prometidas? quem

disse que eu prometi algum dia? não prometi nada - e farei codicilos

enquanto eu bem quiser - e de que, considerando a natureza de um tal pro-

cedimento, é um absurdo presumir que um rapaz sensato e de bom caráter o

pudesse tentar - ah, mas o cavalheiro não diz que você é um rapaz sensato

e de bom caráter, atenção a isto, meu senhor! - "quanto à minha própria

preocupação com qualquer relato desta natureza, claramente eu afirmo que

nunca

fiz declaração alguma alegando que seu filho houvesse obtido empréstimos por

conta de quaisquer bens que lhe venham a caber em direito por legado de Mr.

Featherstone"- valha-me Deus! "bens" - em direito - e por legado! O

advogado Standish não é ninguém perto dele. Não poderia falar melhor,

se quisesse ele um empréstimo. Bem," e aqui Mr. Featherstone olhou

por cima dos óculos para Fred, enquanto lhe devolvia a carta com um

gesto desdenhoso, "você não pensa que eu acredite numa linha que seja,

só porque o BuIstrode escreve bonito, não é?"


Fred corou. "Tê-la, senhor, foi de seu desejo. Tendo a tomar por

muito provável que a negativa de Mr. BuIstrode seja tão boa quanto a

fonte que lhe informou o que ele desdiz."

"Tintim por tintim. Eu nunca disse que acreditava numa ou noutra.

E agora, o que espera você?" disse Mr. Featherstone rispidamente, con-

servando os óculos mas recolhendo as mãos sob seus cobertores.

"Não espero nada, senhor." Com dificuldade Fred se dominava para

não dar vazão à irritação que sentia. "Vim trazer-lhe a carta. Se me per-

mite, farei minhas despedidas."

"Não, não, ainda não. Toque a sineta; quero que a menina suba."

Foi uma criada quem veio em resposta ao chamado.

"Diga à menina que suba!" disse Mr. Featherstone, impaciente.

"Que negócio foi este de ela ter de sair?" Quando Mary chegou, ele

falou no mesmo tom.

"Será que não podia ficar sentada quieta aqui até eu mandar você

embora? Vamos, quero meu colete. Eu sempre lhe disse para deixá-lo na

cama."

Os olhos de Mary pareciam meio vermelhos, como se ela tivesse

chorado. Nesta manhã, estava claro que Mr. Featherstone se achava num

MIDDLEMARCH

153

dos seus momentos de maior rabugice, e Fred, embora contasse agora

com a perspectiva de receber o tão necessitado presente em dinheiro,

teria preferido ser livre para atirar-se sobre o velho tirano e dizer-lhe

que

Mary Garth era boa demais para ficar à sua mercê. Fred se levantou

quando ela entrou no quarto, no entanto ela mal o havia notado, pois se

mostrava como se seus nervos tremessem na expectativa de que lhe fos-


sem jogar alguma coisa em cima. Nunca porém teve a temer nada pior

que palavras. Nisto que ela ia apanhar num cabide o tal colete, Fred

passou-lhe à frente e disse: "Permita-me."

"Deixe-a que o faça! Traga-o, menina, e coloque aqui," disse Mr.

Featherstone. "Agora vá-se embora de novo até que eu chame você,"

acrescentou quando o colete já estava posto a seu lado. Era comum que

ele temperasse seu prazer em demonstrar estima a uma pessoa sendo

particularmente desagradável com outra, e Mary se achava sempre à mão

para propiciar o condimento. Só quando os parentes dele vinham em

visita era tratada melhor. Lentamente ele pegou no bolso do colete um

molho de chaves e lentamente fez surgir uma caixinha que estava em-

baixo das cobertas da cama.

"Está esperando que eu lhe dê uma pequena fortuna, não é?" disse

ele, olhando bem por cima dos óculos e, no ato de abrir a tampa, paran-

do um pouco.

"De modo algum. O senhor já foi muito bom quando outro dia falou

em me fazer um presente, porque se não, é claro, eu nem teria pensado

nisto." A disposição de Fred era porém esperançosa, e já se lhe apresen-

tara a visão de uma soma suficientemente elevada para livrá-lo de certa

ansiedade. Quando Fred fazia uma dívida, parecia-lhe altamente prová-

vel que uma coisa ou outra - não era obrigatório que ele soubesse o

quê - acabaria acontecendo para habilitá-lo a pagar no devido tempo.

E agora que esta ocorrência providencial dava a impressão de estar tão

próxima, seria um absurdo completo pensar que o suprimento pudesse

não ficar à altura da necessidade: tão absurdo como a fé que acreditava

em meio milagre, por falta de força para acreditar num inteiro.

Manuseando várias notas de banco, uma após outra, as mãos de

veias muito grossas empenharam-se então por esticá-las de novo, en-

quanto Fred se reclinava com desdém na cadeira, para não demonstrar

avidez. Tomava-se no fundo por um cavalheiro, e não gostava nem um

pouco de cortejar um sujeito velho por seu dinheiro. Finalmente Mr.


Featherstone olhou-o mais uma vez por cima dos óculos e presenteou-o

com um macinho de notas; Fred pôde ver nitidamente que eram apenas

cinco, quando as bordas, menos significativas, abriram-se em sua dire-

154

GEORGE ELIOT

ção. Mas talvez cada uma, quem sabe, fosse de cinqüenta libras. Pegou-

as, dizendo:

"Fico muito agradecido ao senhor," e já as ia enrolando sem aparen-

temente pensar em seu valor. Mas isto não agradou a Mr. Featherstone,

que o observava na maior atenção.

"Não acha que vale a pena contá-las? Você pega dinheiro como um

lorde; será que o perde como um lorde também?"

"Eu julgava, senhor, que a cavalo dado não se olhassem os dentes.

Sentir-me-ei porém muito feliz em contá-las."

Fred porém não ficou lá tão feliz, depois que as contou de fato. Pois na

verdade elas representavam o absurdo de serem menos do que sua esperan-

ça havia decidido que deveriam ser. O que pode significar a correspondência

das coisas, senão sua correspondência às expectativas de um homem? Fa-

lhando isto, o absurdo e o ateísmo o ameaçam por trás. Foi grave o golpe

para Fred, quando ele descobriu não ter mais que cinco notas de vinte, e sua

parte da educação superior deste país não parecia ajudá-lo. Não obstante

disse, com rápidas mudanças em sua loura aparência:

" muito generoso de sua parte, senhor."

"Creio que sim," disse Mr. Featherstone, trancando seu cofre, pondo-o

outra vez onde estava, depois então tirando os óculos, de um modo bem

decidido, e por fim repetindo, como se a meditação em seu íntimo o hou-


vesse convencido mais profundamente: "Sim, eu diria que é generoso."

"Manco-lhe senhor, que estou muito gratof disse Fred, que já ti-

"Como aliás devia estar. Você pretende fazer boa figura no mundo, e

eu acredito que Peter Featherstone é a única pessoa em quem pode ter

confiança." Aqui os olhos do velho brilharam com uma satisfação curio-

samente mesclada, na consciência de que este rapaz esperto se fiava

nele, e de que este rapaz esperto, por fazê-lo, na verdade era um tolo.

"Sim, de fato: não nasci com oportunidades muito maravilhosas.

Poucos homens têm sido mais tolhidos que eu," disse Fred, com certa

sensação de surpresa ante sua própria virtude, considerando-se a dureza

com que era tratado. "Realmente não é nada agradável ter de ir à caça

num cavalo sem fôlego, e ver homens, que não sabem sequer pela meta-

dejul ar tão bem como a evente canazes de Jogar dinheiro fora compran-

"Bem, agora você pode comprar um bom cavalo de caça. Oitenta

libras dão para isto, creio - e assim ainda lhe sobram vinte para você se

safar de nualauer pequena enrascada," disse Mr. Featherstone, com uma

MIDDLEMARCH

155

"O senhor é muito bondoso," disse Fred, bastante consciente do

contraste entre seu sentimento e as palavras.

"Ah, talvez melhor como tio que o seu bom tio BuIstrode, de cujas

especulaçäes, penso, você não vai tirar muito. Aliás, pelo que ouvi dizer,

ele amarrou seu pai pelo pé, e com corda forte, não foi?"

"Meu pai nunca me fala nada sobre seus negócios."

"Bem, nisto demonstra algum juízo. Mas outras pessoas os desco-

brem, sem que ele fale. Ele nunca terá muito o que lhe deixar: tudo indi-
ca que há de morrer sem testamento - é o tipo do homem para tanto -

por mais que eles o queiram fazer prefeito de Middemarch. Você porém

não ganhará grande coisa se ele morrer sem testamento, apesar de ser o

filho mais velho."

Fred pensou que Mr. Featherstone nunca havia sido tão desagradá-

vel antes. Em verdade, nunca antes ele lhe havia dado, de uma só vez,

tanto dinheiro.

"O senhor acha que eu devo destruir esta carta de Mr. BuIstrode;`

disse Fred, levantando-se com a carta como se a fosse queimar.

"Ah, sim, não a quero mesmo! Para mim não vale dinheiro algum."

Fred levou a carta ao fogo, no qual passou o atiçador com grande

satisfação. Estava doído para sair dali, mas sentia-se um pouco envergo-

nhado, quer perante seu ser interior, quer perante o tio, de se afastar do

quarto às carreiras logo depois de meter no bolso o dinheiro. Neste ins-

tante, o capataz da fazenda apareceu para dizer alguma coisa ao patrão,

e Fred, para seu indizível alívio, foi dispensado com a injunção de apare-

cer de novo em breve.

Doido por ver-se livre do tio, ele também o havia estado para encon-

trar Mary Garth. Ela agora se achava em seu lugar costumeiro perto da

lareira, com uma costura nas mãos e um livro aberto na mesinha ao

lado. Suas pálpebras tinham perdido parte da vermelhidão agora, e ela

ostentava seu costumeiro ar de autocontrole.

" para eu subir?" disse ela, que já se erguia quando Fred entrou.

"Não; eu é que fui dispensado, porque o Simmons foi até lá."

Mary voltou a se sentar e retomou seu trabalho. Certamente o esta-

va tratando com mais indiferença que de costume: ela não sabia o quan-

to de indignação e afeição ele havia sentido a seu respeito lá em cima.

"Posso ficar aqui um pouco, Mary, ou será que a incomodo?"

"Por favor, sente-se," disse Mary; "não há você de ser um incômodo

tão grave quanto Mr. John Waule, que esteve aqui ontem, e sentou-se

sem me pedir permissão."


"Pobre coitado! Penso que está tomado de amor por você."

156

GEORGE EnOT

"Pois eu não sabia. E para mim é uma das coisas mais odiosas na

vida de uma moça, que sempre tenha de haver alguma suposição sobre a

existência de amor entre ela e qualquer homem que é gentil com ela, e a

quem ela é grata. Agradar-me-ia pensar que eu, ao menos, pudesse ficar

a salvo disto. Não tenho motivos para a vaidade insensata de imaginar

que estão tomados de amor todos os que acercam de mim."

Mary não queria revelar sentimentos, mas terminou de falar, a des-

peito de si, num trêmulo tom de irritação.

"Que diabos o levem, este John Waule! Eu não queria. deixar você

zangada. Nem sabia que tivesse razäes para lhe ser grata. Esquecia-me

de que grande serviço pensa que é, se é alguém acende para você uma

vela." Fred também tinha o seu orgulho, e não ia demonstrar que sabia

o que havia originado esta explosão de Mary.

"Oh, não estou zangada, a não ser com as maneiras em voga. Gosto que

se dirijam a mim como se eu tivesse bom senso. Realmente sinto com fre-

qüência que eu poderia entender um pouco mais do que sempre ouço até

mesmo de rapazes que estiveram na faculdade." Mary havia-se recuperado,

e falou numa rumorejante subeorrente de riso reprimido, gostoso de ouvir.

"Não me importo que esta manhã você ainda ria à minha custa," disse

Fred, "achei que parecia tão triste quando esteve lá em cima.  uma ver-

gonha que você tenha de ficar aqui para ser maltratada desse modo."

"Oh, eu levo uma boa vida - em comparação. Já tentei ser professora,

mas não dou para isto: tenho a mente por demais afeiçoada a vagar a seu

próprio modo. Penso que qualquer padecimento é melhor do que fingir

fazer aquilo por que nos pagam, nunca realmente o fazendo. Aqui posso
desincumbir-me de tudo tão bem como qualquer outra; talvez até melhor

do que algumas - Rosy, por exemplo. Muito embora ela seja justamente

esse tipo de bela criatura que, nos contos de fadas, é aprisionada com

ogres."

"Rosy!" gritou Fred, num tom de profundo ceticismo de irmão.

"Ora esta, Fred!" disse Mary enfaticamente; "você não tem o direito

de ser tão crítico."

"Refere-se a alguma coisa em particular - agora?"

"Não, refiro-me a uma coisa generalizada - sempre."

"Oh, que eu sou ocioso e extravagante! Bem, eu não dou para ser

pobre. E não teria sido um mau sujeito, se fosse rico."

"Teria feito o seu dever nesta condição de vida à qual não aprouve a

Deus chamá-lo," disse Mary rindo.

"Bem, eu não poderia fazer o meu dever como clérigo, como você

não faria o seu como governanta. Nisto você devia ter um pouco de

sentimento de companheirismo, Mary."

MIDDLEMARCH

157

"Eu nunca disse que você devia ser clérigo. Há outros tipos de traba-

lho. O que a mim parece horrível é não se decidir por um rumo e agir de

acordo com ele."

"Assim faria eu, se -" Fred interrompeu e, levantando-se, apoiou-

se contra a lareira.

"Se estivesse certo de que não receberia uma fortuna?"

.Não disse isto. Você está querendo brigar comigo.  uma lástima

que se deixe levar pelo que outros falam a meu respeito."

"Como posso querer brigar com você! Eu deveria estar brigando é com

meus livros novos," disse Mary, erguendo o volume que estava na mesa.
"Você, por pior que tenha sido para outras pessoas, para mim é born."

"Porque eu gosto mais de você que qualquer outro. Sei porém que

me despreza."

"Sim, desprezo - um pouco," disse Mary, sorrindo com uma incli-

nação de cabeça.

"Você deve admirar é um camarada estupendo, desses que possam

ter doutas opiniäes sobre tudo."

", eu deveria." Mary cosia com ligeireza e parecia provocantemen-

te senhora da situação. Quando a conversa toma um rumo que não nos

convém, limitamo-nos a descer cada vez mais fundo no pântano do aca-

nhamento. Era assim que se sentia Fred Vincy.

"Suponho que uma mulher nunca sinta amor por alguém que ela

sempre conhece - desde que se possa lembrar; como um homem mui-

"U

tas vezes sente. E sempre algum sujeito novo que impressiona uma moça."

"Deixe-me ver," disse Mary, com os cantos da boca repuxados em

arcos; "tenho de retroceder em minha experiência. Há Julieta - que

parece um exemplo do que você diz. Mas também Ofélia, que provavel-

mente conhecia há um bom tempo Hamlet; e Brenda Troil - ela conhe-

cia Mordaunt Merton desde que os dois eram crianças; mas no mais

tendo ele sido, ao que parece, um estimável rapaz; já Minna estava ain-

da mais apaixonada por Cleveland, que era um estranho. Waverley era

uma novidade para Flora Maclvor; mas nem por isto ela se apaixonou

por ele." E há Olivia e Sophia Primrose e Corinne - destas, pode-se

dizer que elas caíram de amor por homens novos .2 Minha experiência,

no todo, é uma misturada."

"Brenda e Minna Troil, Mordaunt Merton e Clement Cleveland são personagens

de The Pirate

(1822), de Walter Scott; Edward Waverley e Flora Maclvor estão em Waverly

(1814), também
de Scott.

10livia e Sophia Primrose sãopersonagens de The Vicar of -efield (1766), de

Oliver GoIdsmith;

Corirme é a heroína que dá título a um romance de Madame de Staêl (1807).

158

GEORGE ELIOT

Foi com certa malícia que Mary olhou para Fred, e este olhar tão

dela, para ele era muito caro, embora os olhos nada fossem além de

claras janelas onde a observação se punha aos risos. Ele decerto era um

tipo afetuoso e, nisto que de garoto crescera a tornar-se homem, cresceu

o amor que ele sentia pela antiga amiguinha, não obstante aquela parte

da educação superior do país que levara suas opiniäes sobre renda e

classe a exacerbarem-se.

"Quando um homem não é amado, de nada lhe adianta dizer que ele

podia ser uma pessoa melhor - que podia fazer fosse o que fosse - se

estivesse certo de estar sendo amado em troca."

"Nada de menos útil no mundo, para ele, do que dizer que podia ser

melhor. Poderia, podia, deveria - são auxiliares desprezíveis."

"Não vejo como um homem possa ser bom de fato, a menos que

tenha uma mulher para o amar com carinho."

"Pois eu creio que a bondade deveria vir antes de ele esperar por

isto."

"E você ainda sabe mais, Mary. Não é pela bondade dos homens que

as mulheres têm amor por eles."

"Talvez não. Mas, se acaso os amam, nunca pensam que eles são

maus."

"Não é muito justo dizer que eu seja mau."

"Eu não disse rigorosamente nada sobre você."


"Eu nunca serei bom para nada, Mary, se você não disser que me

ama - se não prometer casar-se comigo - isto é, quando eu estiver em

condiçäes de casar."

"Se eu lhe amasse, não iria querer casar com você: certamente não

prometeria casar-me com você algum dia."

"Penso que isto é uma crueldade, Mary. Se você me amasse, devia

prometer casar-se comigo."

"Pelo contrário, penso que cruel de minha parte seria eu me casar

com você, mesmo lhe amando."

"Você quer dizer, assim como eu sou, sem meios de manter uma

esposa.  claro: eu não tenho senão vinte e três anos."

"Neste último ponto você há de alterar-se. Mas não estou assim tão

segura de qualquer outra alteração. Diz meu pai que um homem ocioso

nem devia existir, quanto menos ser casado."

"Devo então estourar os miolos?"

"Não; pensando bem, creio que faria melhor se passasse em seus exa-

mes. Ouvi Mr. Farebrother dizendo que são assustadoramente fáceis."

qw

MIDDLEMARCH

159

", é tudo ótimo. Qualquer coisa para ele é fácil. E não que a inteli-

gência tenha alguma coisa a ver com isto. Sou dez vezes mais inteligente

que muitos homens que passam."

"Deus meu!" disse Mary, incapaz de reprimir seu sarcasmo. "Isto

cai bem em coadjutores como Mr. Crowse. Divida sua inteligência

por dez, e o quociente - meu Deus! - fica apto a colar grau. Mas

isto na verdade só mostra que você é dez vezes mais vadio que os
outros."

"Bem, se eu passasse, você não ia querer que eu fosse para a Igreja?"

"Não é esta a questão - o que eu quero que você faça. Você tem sua

própria consciência, suponho eu. Mas olhe lá! lá vem Mr. Lydgate. Te-

nho de ir comunicar ao meu tio."

"Mary," disse Fred, pegando sua mão enquanto ela se levantava; "se

você não me der algum estímulo, ao invés de melhor hei de ficar pior."

"Não lhe darei nenhum estímulo," disse Mary, ruborizando-se. "Nem

seus amigos nem os meus gostariam. Meu pai consideraria uma desgra-

ça para mim se eu aceitasse um homem que contraísse dívidas e não

quisesse trabalhar!"

Fred, atingido pela ferroada, soltou-lhe a mão. Ela andou até a

porta, mas ai se virou e disse: "Fred, você foi sempre tão bom, tão

generoso para mim. Não sou uma ingrata. Mas nunca me fale deste

modo de novo."

"Está bem," disse Fred amuado, pegando seu chapéu e o chicote. Sua

tez mostrava manchas, umas de um rosa desmaiado, outras de um branco

cadavérico. Como muitos jovens cavalheiros reprovados e ociosos, ele

estava profundamente apaixonado, e por uma garota simples que não

tinha dinheiro! Mas, contando com as terras de Mr. Featherstone por trás,

e persuadido de que, dissesse Mary o que dissesse, realmente ela se inte-

ressava por ele, Fred não se entregou ao desespero.

Ao chegar em casa, deu à sua mãe quatro das notas de vinte, pé-

dindo-lhe que as guardasse para ele. "Não quero gastar este dinheiro,

mãe. Quero-o para pagar uma dívida. Ponha-o pois a salvo dos meus

dedos."

"Que Deus o abençoe," disse Mrs. Vincy. Ela amava extremosa-

mente seu filho mais velho e a filhinha mais nova (uma menina de seis

anos), que outros consideravam seus dois piores rebentos. Nem sem-

pre os olhos da mãe, em sua parcialidade, se enganam: ela ao menos

pode julgar melhor, dentre suas crianças, qual a mais terna e de cora-
ção mais filial. Certamente Fred adorava sua mãe. E talvez fosse sua

160

GEORGE ELIOT

adoração simultânea por uma outra pessoa que o deixara particular-

mente ansioso para obter alguma segurança contra sua própria tendên-

cia a esbanjar as cem libras. Pois o credor a quem ele devia cento e

sessenta dispunha de uma segurança mais firme - em forma de uma

letra assinada pelo pai de Mary.

CAPITULO XV

"Black eyes you have left, you say,

Blue eyes fail to draw you;

Yet you seern more rapt to-day,

Than of old we saw you.

Oh 1 track the fairest fair

Through new haunts of pleasure;

Footprints here and echoes there

Guide me to my treasure:

Lo! she turns - immortal youth

Wrought to mortal stature,

Fresh as starlight"s aged truth -

Many-namŠd NatureP"

CDe olhos negros basta, dizes,

E aos azuis já não te entregas.


Mas teus ares mais felizes

Não lembram velhas refregas.

Procuro o belo mais belo

Noutros antros de prazer;

Ecos e pegadas que apelo

Guiam-me ao meu bem-querer.

Ei-la que gira! - é imortal

Na perecível beleza,

Velha e jovem, tão plural

Nos seus nomes - Natureza!")

162

GEORGE ELIOT

UM GRANDE HISTORLADOR, como insistia ele em chamar-se, que teve a

felicidade de morrer há cento e vinte anos atrás, e assim de ocupar seu

lugar entre os colossos sob cujas pernas imensas nossas mediocridades

viventes são observadas andando, ufana-se de seus copiosos comentá-

rios e digressäes como a parte menos imitável de sua obra, e especial-

mente dos capítulos iniciais dos sucessivos livros de sua história, onde

ele parece trazer sua cadeira ao proscénio e conversar conosco em toda a

exuberante fluência do seu casto inglês. Mas Fielding viveu quando os

dias eram mais longos (pois o tempo, como o dinheiro, é medido por

nossas necessidades), quando as tardes de verão eram espaçosas e o

relógio, nas noites de inverno, tiquetaqueava sem pressa. Nós, historia-

dores tardos, não devemos imitar seu exemplo; e, se o fizéssemos, é

bem provável que nossa conversa fosse superficial e exaltada, como se

endereçada de um banco de acampamento num viveiro de papagaios.


Eu pelo menos tenho tanto a fazer, desembaraçando alguns destinos

humanos e vendo como eles foram tecidos e entretecidos, que toda a luz

que posso conduzir deve estar concentrada nesta trama específica, e não

ser dispersada por este tentador espectro de relevâncias que é chamado

universo.

No presente momento tenho de tornar o recém-chegado Lydgate

melhor conhecido por quem nele tinha interesse do que talvez ele pudes-

se ser mesmo por aqueles que o viram com maior freqüência desde o

seu aparecimento em Middemarch. Pois seguramente todos hão de

admitir que um homem pode ser incensado e enaltecido, invejado, ri-

dicularizado, tido como instrumento à mão e tomado por objeto de

amor, ou pelo menos escolhido como futuro marido, e no entanto per-

manecer virtualmente desconhecido - conhecido apenas enquanto um

feixe de sinais para as falsas suposiçäes dos seus vizinhos. Prevalecia

contudo uma impressão de que Lydgate não era um médico provincia-

no assim tão comum, e uma tal impressão em Middemarch, nesta épo-

ca, dava a entender que grandes coisas se esperavam dele. Pois o dou-

tor de todas as famílias era extraordinariamente inteligente, admitin-

do-se que tinha imensa capacidade para atacar e dominar as doenças

mais rebeldes e perniciosas. A prova de sua inteligência era de ordem

altamente intuitiva, jazendo na inarredável convicção das suas clien-

tes, e inatacável por qualquer objeção, a não ser que às intuiçäes das

clientes opunham-se outras igualmente fortes; pois cada uma das se-

nhoras que via verdade médica em Wrench e no "tratamento de forta-

lecimento" considerava Toller e o "rnétodo debilitante" como a perdi-

MIDDLEMARCH

163

ção médica. Pois os tempos heróicos das copiosas sangrias e vesicatórios


não estavam findos ainda, muito menos os tempos da rematada teoria,

quando a doença em geral recebia um nome maligno e era por conse-

guinte tratada sem hesitação - como se, por exemplo, recebendo o

nome de insurreição, não devesse abrir fogo com cartuchos sem bala,

mas sim ter o sangue, de imediato, tirado. Fortalecistas e debilitantistas

eram todos homens "inteligentes" na opinião de alguém, o que na rea-

lidade é tudo o quanto pode ser dito sobre quaisquer talentos vivos.

Mas nenhuma imaginação fora tão longe a ponto de conjecturar que

Mr. Lydgate poderia ter conhecido até mesmo o Dr. Sprague e o Dr.

Minchin, os dois únicos facultativos capazes de oferecer esperança quan-

do havia extremo perigo, e quando a menor das esperanças já valia um

guinéti. Ainda assim, repito, prevalecia a impressão de que Lydgate era

um tanto quanto mais incomum do que qualquer clínico-geral de

Middemarch. E era verdade. Tinha apenas vinte e sete anos, idade em

que muitos homens não são muito comuns - em que esperam realizar

grandes coisas, são resolutos ao evitarem outras, pensando que

Maminoril nunca haverá de dar -lhes de comer na boca e montar a cava-

lo em suas costas, mas sim que Mammon, se tiverem de tratar de algu-

ma coisa com ele, há de puxar-lhes o carro triunfal.

Recém-saído de uma escola secundária ele ficara órfão. Seu pai, um

militar, fizera pouca provisão para três filhos, e quando o jovem Tertius

pediu para estudar medicina, seus tutores julgaram mais fácil atender

seu desejo, colocando-o como aprendiz de um clínico da roça, do que

fazer quaisquer objeçäes com fundamento na dignidade da família. Ele

foi um desses raros adolescentes que bem cedo seguem uma inclinação

decidida e compreendem que há uma coisa em particular na vida que

eles gostariam de fazer por amor, e não porque seus pais a fizeram. Qua-

se todos, nós que nos damos aos assuntos amados, lembramo-nos de

alguma hora matinal ou noturna em que subíamos num tamborete para

apanhar no alto um volume ainda não saboreado, ou em que boquiaber-

tos nos sentávamos para ouvir a nova conversa ou, pela própria falta de
livros, começávamos a ouvir vozes interiores, o primeiro começo

ídentificável do nosso amor. Algo do gênero aconteceu a Lydgate. Ele

era rápido em tudo e, quando cansava de brincar, largava-se num canto

e em cinco minutos afundava em qualquer tipo de livro no qual podia

pôr as mãos: se fossem o Rasselas ou o Gulliver, tanto melhor, mas o

Talavra de que Cristo se serviu para referir-se à riqueza injustamente

adquirida, e que a

personifica.

164

GEORGE ELIOT

Dicionário de Bailey1 também servia, ou a Bíblia com os Apócrifos. Al-

guma coisa ele tinha de ler, quando não estava montando o pônei, nem

em corridas e caçadas, nem ouvindo a conversa dos mais velhos. Tudo

isto com ele, em seus dez anos de vida, era verdade; já havia lido a essa

altura, na integra, "Chrysal, ou as Aventuras de um Guinéu,"I que não

era leite de infantes, nem uma branquicenta mistura prevista para passar

por leite, e já lhe havia ocorrido que os livros eram uma boa droga, e a

vida era uma bobagem. Seus estudos na escola não modificaram muito

esta opinião, pois, embora ele tivesse Mado" matemática e.os clássicos,

em nenhuma das duas áreas foi preeminente. Dele era dito que Lydgate

poderia fazer qualquer coisa que quisesse, mas que certamente ele não

tinha ainda querido fazer alguma coisa notável. Era um animal vigoroso

dotado de compreensão muito viva, sem que alguma centelha já hou-

vesse acendido nele porém uma paixão intelectual; o conhecimento pa-

recia-lhe um negócio muito superficial, facilmente dominado: julgando

pelas conversas dos mais velhos, aparentemente ele já acumulara mais

que o necessário para a vida de adulto.  bem provável que este não
fosse um produto raro da educação dispendiosa nesse período de casa-

cos curtos na cintura e outras modas que ainda não voltaram. Mas, nu-

mas férias, um dia chuvoso o levou à pequena biblioteca da casa para

procurar mais uma vez algum livro que pudesse ter novo interesse para

ele: em vão! a não ser, de fato, que ele apanhasse uma série de volumes

cobertos de poeira, de capa cinza e com etiquetas encardidas - os volu-

mes de uma velha Enciclopédia em que nunca havia tocado. Estavam na

prateleira mais alta, e ele subiu numa cadeira para alcançá-los. Abriu

depois o volume que por primeiro pegara: de algum modo, tendemos a

ler numa atitude improvisada, justamente onde talvez não pareça con-

veniente fazê-lo. A página em que abriu trazia o título Anatomia, e a

primeira passagem a atrair seus olhos era sobre as válvulas do coração.

Não tinha muita intimidade com válvulas de nenhum tipo, mas sabia

que valvae eram portas de dois batentes, e por esta greta veio uma súbita

luz que lhe imprimiu sua primeira vívida noção do mecanismo perfeita-

mente regulado do organismo humano. Uma educação liberal deixara-o

naturalmente livre para ler as passagens indecentes nos clássicos escola-

res mas, além de uma impressão geral de segredo e obscenidade em

relação à sua estrutura interna, deixara sua imaginação desprevenida, de

"Respectivamente, Rasselas (1759), de SamueIjohnson; GuIliver"s Travels

(1726), de jonathan

Swift; e Dictionary (1721), de Nathan Bailey.

2 Chrysal, or the Adventures of a Guinea (1760-1765), narrativa satírica de

Chartes Johnston,

"N

MIDDLEMARCH

165
modo que por tudo quanto sabia seu cérebro ficava em pequenas bolsas

nas têmporas, e ele não tinha mais idéia de como representar para si

mesmo a circulação de seu sangue do que como se utilizava papel ao

invés de ouro. Mas o momento da vocação surgira e, antes que descesse

lá da sua cadeira, o mundo se lhe fez novo por um pressentimento de

processos infindos a preencher os vastos espaços, barrados à sua visão

por aquela ignorância palavrosa que ele havia suposto ser conhecimen-

to. A partir desta hora Lydgate sentiu o crescimento de uma paixão inte-

lectual.

Não tememos contar e recontar como acontece a um homem apai-

xonar-se por uma mulher e se tornar seu marido, ou então separar-se

fatalmente dela.  devido a um excesso de poesia ou de estupidez que

nós nunca nos cansamos de descrever o que o Rei Jaime chamou de

Cecompostura e belezura" de uma mulher, nunca nos cansamos de ouvir

o tanger das cordas do velho Trovador, e somos comparativamente de-

sinteressados por esse outro tipo de "compostura e belezura" a cortejar

com pensamento industrioso e paciente renúncia a pequenos desejos?

Na história desta paixão, também, o desenvolvimento varia: algumas

vezes é o casamento glorioso, outras a decepção e a despedida final. E

não raro a catástrofe se liga à outra paixão, cantada pelos Trovadores.

Pois na multidão de homens de meia-idade que cumprem suas vocaçäes

numa rotina diária, a elas determinados de modo bem semelhante ao do

nó de suas gravatas, sempre há um bom número que pretendeu alguma

vez dar forma às suas açäes e alterar o mundo um pouco. Raramente é

contada, mesmo na consciência deles, a história de como receberam da

média sua forma, tornando-se próprios para serem empacotados em blo-

co; pois talvez seu ardor na lida generosa e não paga tenha esfriado tão

imperceptivelmente quanto o ardor de outros amores juvenis, até que

um dia seu mais primevo ser entrou como um fantasma na antiga casa e

tomou medonho o novo interior. Nada mais sutil no mundo do que o


processo de sua gradual mudança! No começo a inalaram sem saber:

você e eu podemos ter mandado para infectá-los um pouco do nosso

bafo, quando proferimos nossas falsidades conformantes ou tiramos

nossas conclusäes apressadas: ou talvez ela tenha vindo com as vibra-

çäes do olhar de uma mulher.

Lydgate não pretendia ser um destes fracassos, e havia grande espe-

rança para ele, porque seu interesse científico logo tomou a forma de um

entusiasmo profissional: tinha uma crença juvenil no trabalho como seu

ganha-pão, que não seria sufocada por aquela iniciação provisória, os

chamados dias de aprendiz; e ele levou para seus estudos em Londres,

"1

166

GEORGE ELIOT

Edimburgo e Paris a convicção de que a profissão médica, como devia

ser, era a melhor do mundo; apresentando o mais perfeito intercâmbio

da ciência com a arte; oferecendo a aliança mais direta entre a conquista

intelectual e o benefício social. A natureza de Lydgate demandava esta

combinação: era uma criatura emotiva, com um sentido muito humano

de solidariedade e convívio que se opunha a todas as abstraçäes do es-

tudo pormenorizado. Não se preocupava apenas com os "casos," mas

com o John e a Elizabeth, especialmente Elizabeth.

Havia outra atração nesta profissão: como ela carecesse de reformas,

dava a um homem a oportunidade de alguma decisão indignada para

rejeitar-lhe as decoraçäes venais e outros embustes, tornando-se assim

possuidor de qualificaçäes genuínas, embora não solicitadas. Ele foi es-

tudar em Paris com a determinação de que ao voltar para casa iria esta-

belecer-se como clínico-geral em alguma cidade de província, e resistir à


irracional separação entre o conhecimento médico e o cirúrgico, tanto

no interesse de suas próprias investigaçäes científicas quanto no do pro-

gresso em geral: manter-se-ia fora de alcance das intrigas, dos ciúmes,

das amabilidades sociais de Londres, e conquistaria celebridade, ainda

que lentamente, como havia feito JennerI, pelo valor independente de

seu trabalho. Pois deve ser lembrado que este era um período de trevas;

e, a despeito das veneráveis faculdades que envidavam grandes esforços

para garantir a pureza do conhecimento tornando-o escasso, e para ex-

cluir o emo por uma rígida exclusividade em relação a taxas e compro-

missos, aconteceu que jovens cavalheiros bem ignorantes foram promo-

vidos nas cidades, enquanto muitos outros obtinham o direito legal de

praticar em grandes áreas do país. Também, o alto padrão mantido pe-

rante a opinião pública pelo Colégio de Facultativos, que dava sua san-

ção particular à instrução médica cara e altamente rarefeita obtida pelos

graduados em Cambridge e Oxford, não impediu a charlatanice de atra-

vessar então excelente fase; pois, como a prática profissional consistia

principalmente em dar grande quantidade de drogas, o público inferiu

que poderia talvez ter mais melhoras com mais drogas ainda, desde que

elas fossem baratas, e passou em consequencia a engolir grandes dosa-

gens cúbicas de medicamentos prescritos por uma ignorância ines-

crupulosa e que não colara o seu grau. Considerando-se que a estatística

não houvesse efetuado ainda um cálculo do número de doutores igno-

rantes ou falsos que deveria certamente existir ante o caudal de todas as

IEdward Jenner (1749-1823), médico inglês que descobriu a primeira das

vacinas, a que

imunizava contra a varíola.

MIDDLEMARCH

167
mudanças, pareceu a Lydgate que uma mudança nas unidades era o

modo mais direto de mudar os números. Pretendia ele ser uma unida-

de que faria certa parcela de diferença para essa mudança em expansão

que de um modo apreciável haveria de impor-se um dia sobre as médi -

as, e que teria enquanto isso o prazer de fazer vantajosa diferença para

as vísceras dos seus pacientes. Mas ele não visava somente a um tipo

de prática mais genuína do que era comum. Ambicionava um efeito

mais amplo: abrasava-o a possibilidade de que ele viesse a elaborar a

prova de uma concepção anôtämica e colocar um elo na cadeia das

descobertas.

Parece-lhe acaso incongruente que um cirurgião de Middemarch pu-

desse sonhar consigo mesmo como um descobridor? A maioria de nós,

com efeito, pouco sabe dos grandes originadores até que eles tenham sido

alçados em meio às constelaçäes e já governem nossos destinos. Mas esse

Herschel,1 por exemplo, que "rompeu as barreiras do céu," - certa vez

não tocou ele num órgão de igreja de província, e não deu aulas de música

para pianistas ainda em seus balbúcios? Cada uma dessas Brilhantes

Sumidades tinha de se mover pela Terra entre vizinhos que talvez pensas-

sem muito mais no seu jeito de andar e suas roupas do que em qualquer

outra coisa que estivesse para intitulá-la à duradoura fama: cada um deles

tinha sua historinha pessoal e local salpicada de pequenas tentaçäes e

sórdidos cuidados, que fazia a fricção de retardo no seu trajeto para atin-

gir a companhia final dos imortais. Lydgate não era cego aos perigos desta

fricção, mas tinha plena confiança em sua resolução de evitá-la o mais

possível: estando com vinte e sete anos, sentia-se experiente. E não iria

ter suas vaidades provocadas pelo contato com os sucessos mundanos

exibidos na capital, mas sim viver entre pessoas que não poderiam rivali-

zar com essa realização de uma grande idéia que seria um objetivo parale-

lo à assídua prática de sua profissão. Havia um fascínio na esperança de

que os dois objetivos viessem a se aclarar mutuamente: a observação cui-


dadosa e a inferência que eram seu trabalho diário, o uso das lentes, em

casos especiais, para dar mais alcance a seu discemimento dar-lhe-iam

mais alcance também ao pensamento como instrumento de maiores pes-

quisas. Não era esta a típica superioridade de sua profissão? Ele seria um

bom doutor de Middemarch, e exatamente deste modo se manteria na

pista de amplas investigaçäes. Num ponto ele já podia muito bem preten-

der aprovação nesta etapa particular de sua carreira; não queria imitar o

modelo dos filantropos que se mantêm com os lucros extraídos de conser-

ISir William Herschel (1738-1822), astrônomo inglês nascido na Alemanha.

68

GEORGE ELIOT

vãs estragadas, ao mesmo tempo em que fazem denúncias de adulteração,

ou que são sócios de um antro de jogatina a fim de terem tempo livre para

representar a causa da moralidade pública. Planejava dar início, em seu

próprio caso, a algumas reformas particulares que estavam certamente a

seu alcance e constituíam problema bem menor que a demonstração de

uma concepção anatämica. Uma destas reformas era agir em estrita obe-

diência a uma recente decisão legal, apenas receitando mas não preparan-

do remédios, nem recebendo porcentagem dos boticários. Para alguém

que tinha resolvido adotar o estilo de um clínico-geral em cidade de pro-

víncia, isto era uma inovação, e seria sentido como crítica ofensiva por

seus confrades. Mas Lydgate queria inovar também no tratamento, e era

bastante sensato para ver que sua maior garantia de uma prática honesta

e consonante com sua crença era livrar-se das sistemáticas tentaçäes em

contrário.

Talvez fosse este um tempo de mais júbilo para observadores e teó-

ricos do que o presente; inclinamo-nos a pensar que a melhor época do


mundo foi quando a América começava a ser descoberta, quando um

audaz marinheiro, ainda que o vitimasse um naufrágio, podia aportar a

um novo reino; e por volta de 1829 os umbrosos territórios da Patologia

eram uma bela América para um intrépido e jovem aventureiro. A prin-

cipal ambição de Lydgate era contribuir para o alargamento das bases

racionais e científicas de sua profissão. Quanto mais ele se interessava

por aspectos especiais da doença, como a natureza da febre ou das fe-

bres, mais agudamente percebia a necessidade desse conhecimento fun-

damental da estrutura que justamente no começo do século havia sido

iluminado pela breve e gloriosa carreira de Bichat,1 o qual estava com

apenas trinta e um anos quando morreu mas deixou, como um novo

Alexandre, um reino suficientemente grande para muitos herdeiros. Foi

este eminente francês quem por primeiro formulou a concepção de que

os corpos vivos, considerados em sua essência, não são associaçäes de

órgãos que possam ser compreendidos quando, de início, são estudados

à parte e, depois, por assim dizer, em estado federativo; mas devem ser

vistos como constituídos de certas membranas primárias ou tecidos, de

cuja compactação formam-se os vários órgãos - cérebro, coração, pul-

mäes etc., - assim como as várias partes de uma casa são construídas

com variadas proporçäes de madeira, ferro, pedra, tijolo, zinco e o res-

tante, tendo cada material sua composição e proporção específicas. Não

há homem, vê-se, que possa entender e calcular toda a estrutura ou suas

"Xavier Bichat (1771-1802), anatornista e fisiologista francês.

MIDDLEMARCH

169

partes - o que são suas fraquezas e o que seus reparos, sem conhecer a

natureza dos materiais. E a concepção elaborada por Bichat, com seu


estudo detalhado dos diferentes tecidos, necessariamente repercutiu nas

discussäes médicas como a chegada dos lampiäes a gás repercutiria numa

rua escura iluminada a óleo, revelando novas ligaçäes e fatos até então

ocultos do organismo que devem ser levados em conta no exame dos

sintomas das doenças e da ação dos medicamentos. Resultados que de-

pendam da consciência e inteligência humanas atuam porém bem deva-

gar, e agora, no final de 1829, em sua maioria a prática médica ainda

vinha arrastando os pés, ou a pavonear-se pelos velhos caminhos, e res-

tava a fazer todo um trabalho científico que poderia ser encarado como

seqüência direta do de Bichat. Este grande visionário não fora além de

considerar os tecidos como evidências últimas na constituição do orga-

nismo, marcando o limite da análise anatämica; esperava-se agora que

outra mente dissesse: não têm tais estruturas alguma base comum da

qual partiram todas, como o tafetá, o tule, a gaze, o cetim e o veludo

procedem do algodão em bruto? Ter-se-ia aqui outra luz, como a do oxi-

hidrogênio, mostrando o próprio grão das coisas e revendo todas as ex-

plicaçäes anteriores. Lydgate se deixara apaixonar por esta seqüência da

obra de Bichat, que já ecoava em muitas correntes do espírito europeu;

aspirava demonstrar as relaçäes mais íntimas da estrutura viva e ajudar

a definir com exatidão maior, segundo a ordem verdadeira, o pensamen-

to do homem. Trabalho que ainda não fora feito, mas somente prepara-

do para aqueles que soubessem como usar a preparação. Qual foi o teci-

do primitivo? Deste modo Lydgate se colocava a questão - não propria-

mente do modo requerido pela expectante resposta; mas esta ausência

da palavra certa atinge a muitos pesquisadores. E ele contava com inter-

valos tranqüilos, a serem avidamente aproveitados, para unir os fios da

investigação, - com muitos vislumbres a serem tidos por uma aplicação

diligente, não só do escalpelo, mas também do microscópio, cujo uso a

ciência retomara com um confiante entusiasmo. Tal era o plano de Lydgate

para o seu futuro: fazer um bom e modesto trabalho por Middemarch, e

uma grande obra para o mundo.


Certamente neste tempo ele era um homem feliz: tinha vinte e sete

anos, sem nenhum vício arraigado, com uma resolução generosa de que

sua ação fosse beneficente, e com idéias na cabeça que tornavam a vida

interessante mesmo sem o cultus dos cavalos e outros ritos místicos de

observância custosa, os quais certamente não conseguiria manter por muito

tempo com as oitocentas libras de que ainda dispunha após a compra de

sua clientela. Ele estava naquele ponto de partida que faz de muitas car-

70

GEORGE UM

reiras um objeto digno de aposta, no caso de haver cavalheiros dados a

esta diversão que pudessem apreciar as complicadas probabilidades de

um árduo objetivo, com todas as adversidades e avanços das circunstân-

cias, todas as dificuldades do equilíbrio interior, por onde o homem vai

nadando e chega ao ponto que queria ou é então arrastado, e de ponta-

cabeça. O risco continuaria a existir, mesmo com um conhecimento mais

íntimo do caráter de Lydgate; pois o caráter também é um processo e um

desdobramento. O homem ainda estava sendo feito, da mesma forma que

o doutor de Middemarch e o descobridor imortal, e continha tanto virtu-

des quanto defeitos capazes de encolher ou de se expandir. Que o leitor

não perca seu interesse por ele, espero, em razão dos defeitos! Em meio

aos nossos estimados amigos, não há sempre um ou outro que é um pou-

co autoconfiante e desdenhoso demais; cujo espírito brilhante tem lá suas

manchas de vulgaridade; que ora se aflige, ora se mostra todo cheio de si

com seus preconceitos congênitos; ou cujas melhores energias estão sujei-

tas a escoar pelo canal emado sob a influência de solicitaçäes transitórias?

Todas estas coisas podem ser alegadas contra Lydgate, mas considere-se

que elas são as perífrases de um pregador polido, que fala de Adão, mas

não gostaria de mencionar nada de penoso aos paroquianos que pagam

por seus bancos na igreja. Os defeitos particulares dos quais são destila-
das estas generalidades diáfanas têm fisionomia, dicção e trejeitos

distinguíveis; os quais preenchem seus papéis em dramas bem variados.

Nossas vaidades diferem como os nossos narizes: nem toda presunção é a

mesma, pois a presunção varia de acordo com as minúcias da constituição

mental que nos torna, a cada um de nós, diferente do outro. A presunção

de Lydgate era do tipo arrogante, nunca dada a impertinências, nem nun-

ca se desmanchando em sorrisos, mas sólida em suas pretensäes e bene-

volentemente sobranceira. Muito faria pelos tolos, condoendo-se deles, e

sentindo-se bem certo de que não conseguiriam ter poder sobre ele: tinha

pensado em juntar-se aos saint-simonistas, quando esteve em Paris, pen-

sando apenas em voltá-los contra suas próprias doutrinas. Todos os seus

defeitos eram marcados por traços de família, e eram os de um homem

que tinha uma bela voz de barítono, cujas roupas caíam bem e que mes-

mo em seus gestos ordinários tinha um ar de inata distinção. Onde esta-

vam então as manchas de vulgaridade? diz uma jovem dama enamorada

de seu descuidoso encanto. Como poderia haver vulgaridade num homem

tão bem nascido, tão ambicioso de distinção social, tão generoso e incornum

em suas opiniäes sobre o dever social? Tão simplesmente como pode

haver burrice num homem de gênio, se o abordamos, desprevenido, sobre

assunto que não domina, ou como um homem que, como tantos, tem a

MIDDLEMARCH

171

maior boa vontade para apressar o milênio social pode ser mal inspirado

ao imaginar-lhe os mais suaves prazeres; incapaz de ir além da música de

Offéribach, ou dos brilhantes trocadilhos da última burleta. As manchas

de vulgaridade de Lydgate jaziam na complexão dos seus preconceitos,

metade dos quais, a despeito de nobres intençäes e simpatia, eram como

os encontrados nos homens comuns do mundo: aquela distinção de espí-


rito que integrava seu ardor intelectual não lhe embebia porém a sensibi-

lidade e o discemimento sobre o mobiliário, ou as mulheres, ou a conve-

niência de ser sabido (sem que ele mesmo contasse) que era mais bem

nascido que outros cirurgiäes da província. Não pretendia, por ora, pensar

em móveis; mas, quando acaso o fizesse, seria de se temer que nem a

biologia nem seus projetos de reforma conseguissem erguê-lo acima do

sentimento vulgar de que haveria uma incompatibilidade se os seus mó-

veis não fossem dos melhores,

No tocante às mulheres, uma vez ele já fora arrastado, e de ponta-

cabeça, por impetuosa loucura que esperava fosse a última, posto que o

casamento, nalgum período distante, naturalmente não seria impetuo-

so. Para quem queira conhecer Lydgate será bom saber que caso de lou-

cura impetuosa foi este, pois o mesmo pode ficar como exemplo de uma

inconstância na direção das paixäes a que ele estava sujeito, junto com a

cavalheiresca bondade que contribuía para torná-lo moralmente louvá-

vel. A história pode ser contada em poucas palavras. Aconteceu quando

estudava em Paris, e nutria época em que, somando-os às demais tare-

fas, ele se ocupava de uns experimentos galvânicos. Certa vez, cansado

de tantas tentativas e não sendo capaz de obter os dados de que neces-

sitava, ele deixou seus sapos e coelhos repousando um pouco dos testes

e da misteriosa aplicação de inexplicados choques, e foi terminar a noite

no teatro da Porte Saint-Martin, onde se representava um melodrama

que já tinha visto várias vezes; não atraído pelo engenhoso trabalho dos

co-autores da peça, mas por uma atriz cujo papel era esfaquear seu aman-

te, tomando-o erradamente pelo duque de más intençäes. Lydgate esta-

va apaixonado por essa atriz, como um homem se apaixona por uma

mulher à qual jamais espera falar. Era uma Provençale, de olhos negros,

perfil grego, formas roliças e majestosas, tendo esse tipo de beleza que

em plena juventude já traz a doce presença da mulher vivida, e sua voz

era um arrulho suave. Acabara de chegar a Paris e gozava de reputação

virtuosa; o marido contracenava com ela como o amante infeliz. Seu


desempenho é que "não era melhor do que devia ser," mas o público

estava satisfeito. A única distração de Lydgate agora era ir olhar esta

mulher. como se sob a brisa do ameno sul ele se jogasse por um momen-

172

GEORGE ELIOT

to num canteiro de violetas, sem prejuízo do seu galvanismo, ao qual

retornaria em seguida. Mas esta noite o velho drama teve uma nova

catástrofe. No momento em que a heroína deveria fingir o esfaqueamento

do amante, e este cair graciosamente, a mulher na verdade esfaqueou

seu marido, que tombou como mandava a morte. Um grito feroz atra-

vessou a sala e a Provençale desmaiou: um grito e um desmaio eram

pedidos na peça, mas desta vez a perda dos sentidos fora real também.

De um salto Lydgate subiu, e nem bem soube como, para o palco, e foi

ativo na ajuda, passando a conhecer sua heroína ao localizar-lhe uma

contusão na cabeça e erguê-la gentilmente em seus braços." Paris vibrou

com a história desta morte: - foi crime? Alguns dos mais calorosos

admiradores da atriz inclinavam-se a crer em sua culpa e admiravam-na

ainda mais por isto (tal era o gosto da época); mas Lydgate não era um

deles. Empenhou-se veementemente por sua inocência, e a remota pai-

xão impessoal que antes sentira pela sua beleza transformara-se agora

numa devoção pessoal, e em ternos pensamentos por sua sorte. A idéia

de crime era absurda; não havia motivo a descobrir, entendido que o

jovem casal se amava muito; e não era coisa sem precedentes que um

escorregão acidental com o pé pudesse causar tão graves conseqüências.

A investigação legal concluiu pelo livramento de Madame Laure. A essa

altura Lydgate havia tido várias entrevistas com ela, e achado-a cada vez

mais adorável. Ela falava pouco; o que era um charme adicional. Andava

melancólica e parecia estar grata; sua presença já bastava, como a da luz


no entardecer. Lydgate enlouquecia de ansiedade pela sua afeição, com

ciúmes de que algum outro homem a conquistasse e pudesse pedi-la em

casamento. Mas, ao invés de reabrir sua temporada na Porte Saint-Martin,

onde teria sido ainda mais popular pelo fatal episódio, ela deixou Paris

sem nada avisar, abandonando sua pequena corte de admiradores. Nin-

guém talvez a procurou muito longe, a não ser Lydgate, que sentia toda

a ciência entrando em imobilidade quando imaginava a infeliz Laure

golpeada por uma dor sempre emática, e ela mesma em emanças, sem

que encontrasse um fiel consolador. Atrizes ocultas, todavia, não são tão

difíceis de localizar como determinados fatos ocultos, e não se passou

muito tempo antes de Lydgate juntar indicaçäes de que Laure tinha to-

mado a estrada de Lyon. Encontrou-a por fim a representar com grande

sucesso em Avignon sob o mesmo nome, mostrando-se mais majestosa

que nunca como uma mulher abandonada que levava o filho nos braços.

Falou com ela depois da peça, foi recebido com a quietude usual, que

lhe parecia tão bela quanto o fundo da água clara, e obteve permissão

para no dia seguinte ir visitá-la; quando estava inclinado a dizer que a

MIDDLEMARCH

173

adorava e a pedir que ela se casasse com ele. Bem sabia que era como o

brusco impulso de um louco - incongruente até mesmo com suas habi-

tuais fraquezas. Não importava! Era a coisa que estava resolvido a fazer.

Ele aparentemente tinha em seu íntimo dois seres, os quais deviam apren-

der a se ajustar um ao outro e a suportar suas dificuldades recíprocas. 

estranho como alguns de nós, com visão rápida e alternada, vemos além

de nossas impressäes de paixão e, mesmo em pleno delírio nas alturas,

divisamos a planície aberta onde o ser persistente nos espera parado.

Abordar Laure com uma proposta que não fosse de terna reverência
teria sido simplesmente uma contradição com todos os sentimentos que

nutria por ela.

"Pois então veio desde Paris para encontrar-me?" disse-lhe ela no

dia seguinte, sentada diante dele com os braços cruzados, e olhando

para ele com olhos que pareciam espantar-se tanto como se espanta

ruminando um animal não domado. "Todos os ingleses são assim?"

"Vim porque não podia viver sem tentar vê-la. Você está só; amo-a;

quero que consinta em ser minha esposa: hei de esperar, mas quero que

prometa que vai casar-se comigo - e não com outro."

Laure olhou-o em silêncio, com uma radiância melancólica a lhe

emergir das grandes pálpebras, até ele se encher de uma arrebatada cer-

teza, e ajoelhar-se perto dos joelhos dela.

"Vou-lhe dizer uma coisa," disse ela ao seu jeito de arrulhos, man-

tendo os braços cruzados. "Meu pé realmente escorregou."

"Eu sei, eu sei," disse Lydgate, como se protestasse. "Foi um aci-

dente fatal - um golpe terrível, uma calamidade que me ligou ainda

mais a você."

Laure fez uma pausa e disse então bem devagar: "Eufiz depropósito."

Lydgate, homem forte como era, ficou pálido e trêmulo: momentos pa-

receram transcorrer antes de ele se levantar e parar a uma distância dela.

"Havia então um segredo," disse por fim, não sem veemência. "Ele

era bruto com você: e você o odiava."

"Não! ele me cansava; era apaixonado demais: queria viver em Paris

e não na minha terra; o que a mim não agradava."

"Oh, Senhor Deus!" disse Lydgate num gemido de horror. "E você

planejou assassiná-lo?"

"Não planejei: me veio assim, na peça - eu fiz de propósito."

Lydgate quedou mudo e, enquanto olhava para ela, foi inconsciente-

mente enfiando seu chapéu na cabeça. Via aquela mulher - a primeira a

quem consagrara sua adoração juvenil - em meio a turbas de crimino-

sos broncos.
174

GEORGE ELIOT

"Você é um bom rapaz," disse ela, "mas eu não gosto de maridos.

Nunca mais quero outro."

Três dias depois Lydgate já estava de volta ao galvanismo na sua

residência em Paris, acreditando que para ele as ilusäes tinham-se aca-

bado. Foi salvo de efeitos que o endurecessem pela excessiva bondade

de seu coração e a crença de que tornar a vida humana melhor era possí-

vel. Mas tinha mais razão do que nunca para confiar em seu discernimento,

já tão marcado pela experiência agora; passaria portanto a considerar a

mulher de um ponto de vista estritamente científico, não alimentando

expectativas a não ser aquelas que, de antemão, se justificassem.

E bem provável que ninguém em Middemarch tivesse uma idéia do

passado de Lydgate tal como aqui rapidamente esboçado; os respeitá-

veis moradores locais, com efeito, não se davam mais do que os mortais

em geral a tentativas ciosas de exatidão na representação mental de algo

que não entrasse diretamente em contato com seus sentidos. Não só as

jovens virgens da cidade, como também homens de barba grisalha, pre-

cipitavam-se não raro em conjecturas para saber como um novo conhe-

cido poderia ser envolvido em seus planos, contentes com um conheci-

mento muito vago do modo pelo qual a vida o estivera até então forjan-

do para esta instrumentalidade. Middemarch, de fato, contava com en-

golir Lydgate e assimilá-lo da maneira mais cômoda.

CAPÍTULO XVI

"All that in wornan is adored


In thy fair self 1 find -

For the whole sex can but afford

The handsome and the kind."

- SIR CHARLES SEDLEY

("Tudo na mulher a adorar

Em ti, tão pura, admito -

Pois o teu sexo só pode dar

O que é bom e bonito.")

- SIR CHARLES SEDLEY.)

A QUESTÇO DE SABER se Mr. Tyke deveria ser nomeado capelão do hospi-

tal, fazendo jus a um salário, era um tópico excitante para os moradores

de Middemarch; e Lydgate ouviu-o discutido de um modo que lançou

muita luz sobre o poder exercido na cidade por Mr. BuIstrode. O ban-

queiro sem dúvida era um mandatário, mas havia um partido de oposi-

ção e, mesmo dentre os que o apoiavam, alguns permitiam ver que seu

apoio era um compromisso, e expunham francamente sua impressão de

que o estado geral das coisas, e em particular as flutuaçäes do comércio,

tornavam obrigatório acender velas ao diabo.

O poder de Mr. BuIstrode não provinha somente da sua condição de

banqueiro na cidade, que sabia dos segredos financeiros da maioria dos

negociantes locais e estava em contacto com suas fontes de crédito; flor-

talecia-se tal poder graças à sua beneficência, que a um só tempo era

Vo poema "Not, Celia, that 1 juster am" (1672).

176
GEORGE ELIOT

apressada e severa - apressada para atribuir obrigaçäes, severa para

conferir resultados. Como homem industrioso sempre em seu posto, ele

fora guindado a um papel de relevo na administração das obras de cari-

dade pública, e suas caridades privadas eram tão minuciosas quanto

abundantes. Dar-se-ia a grandes sofrimentos em relação à aprendiza-

gem de Tegg, o filho do sapateiro, e não deixaria de fiscalizar sua ida à

igreja; ou defenderia Mrs. Strype, a lavadeira, contra uma injusta recla-

mação de Stubb sobre o lugar onde ela estendia roupa, e até iria esmiu-

çar em pessoa uma calúnia contra Mrs. Strype. Seus pequenos emprésti-

mos confidenciais eram numerosos mas sujeitos, tanto antes quanto

depois, a uma estrita indagação das circunstâncias. Um homem passa a

ter deste modo, além de certo domínio sobre a esperança e o medo dos

vizinhos, sua gratidão; e o poder se propaga, desde que atingida essa

região sutil, expandindo-se em total desproporção com seus meios ex-

ternos. Era um princípio de Mr. BuIstrode conquistar tanto poder quan-

to possível, para que ele pudesse usá-lo para a glória de Deus. Passava

por grandes conflitos espirituais e debatia muito em seu íntimo a fim de

determinar seus motivos e deixar para si mesmo bem claro o que a glória

de Deus queria. Mas seus motivos, como vimos, nem sempre eram de-

vidamente apreciados. Havia em Middemarch muitas dessas mentes

grosseiras cujas balanças reflexivas só podem pesar por atacado as coi-

sas; e que tinham forte suspeita, sendo Mr. BuIstrode incapaz de gozar a

vida à mesma moda que elas, por comer e beber assim tão pouco, sem-

pre se molestando com tudo, de que ele devia dar-se a uma espécie de

festim de vampiro com aquela idéia de dominação.

A indicação do capelão foi um assunto discutido à mesa de Mr. Vincy

quando Lydgate estava jantando lá, e os vínculos da família com Mr.

BuIstrode não impediram certa liberdade ao falar, como ele pôde perce-

ber, até mesmo por parte do dono da casa, cujas razäes contra a solução
proposta giravam exclusivamente em torno de sua objeção aos sermäes

de Mr. Tyke, que eram pura doutrina, e sua preferência pelos de Mr.

Farebrother, que estavam livres de tal vício. Agradava bastante a Mr.

Vincy a idéia de o capelão ter um salário, supondo-se que o atribuíssem

a Farebrother, que era um homem bonzinho como poucos havia e o

maior pregador daquelas bandas, além de bom companheiro.

"Mas então que posição você vai assumir?" disse Mr. Chichely, o

perito legista, grande companheiro de caça de Mr. Vincy.

"Oh, ainda bem que eu não sou mais Diretor! Vou votar para que o

assunto seja submetido à Diretoria e ao Conselho Médico. Deixarei par-

te de minha responsabilidade sobre os seus ombros, Doutor," disse Mr.

MIDDLEMARCH

177

Vincy, olhando primeiro para o Dr. Sprague, o mais antigo facultativo da

cidade, e depois para Lydgate, que se sentava do outro lado. "Os senho-

res médicos é que terão de consultar-se sobre o remédio amargoso que

hão de prescrever, não é, Mr. Lydgate?"

"Pouco conheço de um ou outro," disse Lydgate; "mas as nomea-

çäes, de modo geral, costumam muito ser feitas por uma questão de

gosto pessoal. O homem mais indicado para um cargo nem sempre é

uma boa pessoa ou uma companhia agradável. ·s vezes, para se impor

uma reforma, constata-se que o único jeito seria aposentar as boas pes-

soas de quem não há quem não goste, e deixá-las fora de questão."

O Dr. Sprague, que era considerado o médico de mais "peso," se

bem geralmente se dissesse que o Dr. Minchin tinha mais "penetração,"

despiu de toda expressão seu rosto grande, pesado, e olhou para o seu
copo de vinho enquanto Lydgate falava. Algo mais, além do que havia

de problemático e suspeito neste rapaz - por exemplo, um certo

exibicionismo quanto a idéias estrangeiras, e a intenção de discordar do

que já fora acordado e consagrado pelos mais velhos, - era positiva-

mente mal recebido por um médico cuja reputação se firmara trinta anos

antes com um tratado sobre Meningite, um exemplar do qual ao menos,

marcado "próprio," subsistia encadernado em couro. De minha parte,

tenho certa simpatia pelo Dr. Sprague: a satisfação consigo mesmo é um

bem de espécie não taxada que não e nada agradável ver depreciado.

A observação de Lydgate, contudo, não se harmonizou com a idéia

do grupo. Mr. Vincy disse que, se pudesse resolver à sua maneira, não

colocaria sujeitos desagradáveis em lugar nenhum.

"· breca com essas suas reformas!" disse Mr. Chichely. "Não há maior

embuste no mundo. Se ouvir falar de uma reforma, pode contar que há

uma manobra para encaixar outros homens. Espero que o senhor não

seja um dos adeptos do "Lancet,"1 Mr. Lydgate - querendo tirar das

mãos dos advogados o cargo de perito legista: suas palavras parecem

apontar neste sentido."

"Discordo de Wakley," interpôs o Dr. Sprague, "e de ninguém mais:

é um camarada mal intencionado, capaz de sacrificar a própria respeita-

bilidade da profissão, que como todos sabem depende das Faculdades

de Londres, só para obter alguma notoriedade. Há homens que não se

importam de entrar na lista negra, desde que se tornem falados. Mas

Wakley está certo às vezes," acrescentou judicioso o Doutor. "Eu pode-

Tamoso periódico de medicina, fundado por Thomas Wakley em Londres em 1823 e

muito

lido por George Eliot como fonte para o preparo destes capítulos.

178
GEORGE ELIOT

ria mencionar um ou dois pontos nos quais Wakley está com toda a

razão."

"Oh, está bem" disse Mr. Chichely, "não acuso ninguém por querer

defender seus interesses; mas, voltando à questão, eu gostaria de saber

como um perito legista há de julgar os depoimentos, se não tiver recebi-

do formação jurídica."

"Em minha opinião," disse Lydgate, "a formação jurídica apenas

torna

um homem mais incompetente em questäes que requerem conhecimento

de outro tipo. As pessoas falam de depoimentos como se essas " coisas real-

mente pudessem ser pesadas na balança por uma justiça cega. Não há ho-

mem capaz de julgar o que seja um bom depoimento sobre qualquer assun-

to específico, a não ser que conheça a fundo este assunto. Um advogado

não é nada melhor do que uma velha senhora para um exame post-mortem.

Como pode ele saber a ação de um veneno? Seria o mesmo que dizer que

contando versos alguém há de aprender a contar sacos de batatas."

"O senhor está ciente, suponho, de que a tarefa do perito legista não

é realizar o Post-mortem, mas apenas tomar o depoimento da testemunha

médica," disse Mr. Chichely, com algum desprezo.

"A qual muitas vezes é quase tão ignorante quanto o próprio legista,"

disse Lydgate. "As questäes de jurisprudência médica não deveriam ficar

submetidas à hipótese de existir numa testemunha médica algum co-

nhecimento, nem o perito legista deveria ser homem capaz de acreditar

que a estricnina destrói as túnicas do estômago, se um médico ignoran-

te, por acaso, lho dissesse."

Lydgate de fato perdera toda lembrança de que Mr. Chichely era

perito legista de Sua Majestade, e inocentemente terminou com a per-

gunta: "Não concorda comigo, Dr. Sprague?"

"Até certo ponto - no que concerne aos distritos populosos, e na


metrópole," disse o Doutor. "Mas espero que tão cedo esta região não

venha a perder os serviços do meu amigo Chichely, ainda que possa ter

o melhor homem de nossa profissão para sucedê-lo. Estou certo de que

oVincy há de concordar comigo."

"Sem dúvida, para mim o bom legista é o que é perito na caça,"

disse Mr. Vincy, jovialmente. "E com um advogado, na minha opinião,

sempre se fica mais seguro. Ninguém pode saber tudo. E quase tudo é

uma"visitação de Deus." Quanto aos envenenamentos, ora essa, o que é

preciso é que se conheça a lei. Mas, venham cá, que tal se nos fôssemos

juntar às damas?"

A opinião pessoal de Lydgate era que Mr. Chichely poderia muito

bem ser o perito legista a quem as túnicas do estômago não diziam

MIDDLEMARCH

179

nada, mas sua intenção não fora ser pessoal. Esta era uma das dificulda-

des do trânsito na boa sociedade de Middemarch: era um perigo insistir

no conhecimento como qualificação para qualquer cargo assalariado. Fred

Vincy havia chamado Lydgate de pedante, e agora Mr. Chichely já se

inclinava a chamá-lo de orelhudo; especialmente quando, na sala de vi-

sitas, tudo deu a entender que ele se desmanchava em amabilidades

com Rosamond, a quem monopolizara facilmente num tête-à-tête, uma

vez que a própria Mrs. Vincy presidia a mesa de chá. Nunca ela renuncia-

va a uma função doméstica para atribuí-la à filha; e o rosto desta mãe de

família, bondoso e viçoso, com seus cordäes cor de rosa flutuando muito

voláteis de um bonito pescoço, e a maneira alegre como ela tratava o

marido e os filhos, encontrava-se sem dúvida entre as grandes atraçäes

da casa dos Vincys - atraçäes que tornavam fundamentalmente mais

fácil se apaixonar pela filha. Uma nota de vulgaridade despretensiosa e


inofensiva em Mrs. Vincy fazia sobressair ainda mais o refinamento de

Rosamond, que estava além do que Lydgate havia esperado.

Pés pequenos e ombros bem torneados contribuem decerto para a

impressão de requinte nas maneiras, e a coisa certa que é dita torna-se

admiravelmente certa quando a acompanham curvas primorosas feitas

nos lábios e pálpebras. Rosamond podia dizer a coisa certa; pois era

inteligente, desse tipo de inteligência que, excetuado o humorístico, capta

todos os tons. Felizmente nunca tentava fazer graça, e esta era talvez a

marca mais decisiva de sua inteligência.

A conversa entre ela e Lydgate fluiu logo. Lamentou este que a não

tivesse ouvido cantar no outro dia em Stone Court. Ir ouvir música era

o único prazer que ele se permitia durante a última parte de sua estada

em Paris.

"Provavelmente estudou música?" disse Rosamond.

"Não, conheço as notas de muitos pássaros, e sei de ouvido muitas

melodias; mas a música que ignoro de todo de que não tenho a menor

noção, me delicia - comove-me. Grande tolice é a sociedade não fazer

uso mais freqüente de um tal prazer a seu alcance!"

"Pois é, e Middemarch há de lhe parecer muito desafinada. Não há

bons músicos por aqui. Conheço apenas dois senhores que cantam ra-

zoavelmente."

"Suponho que a moda seja cantar cançäes humorísticas de um modo

rítmico, deixando-nos imaginar a melodia - mais ou menos como se

ela fosse batida num tambor?"

"Ah, o senhor ouviu Mr. Bowyer," disse Rosamond, com um de seus

raros sorrisos. "Mas nós estamos falando muito mal dos vizinhos."

180

GEORGE ELIOT
Já quase Lydgate se esquecia de que era preciso sustentar a conver-

sa, pensando quão adorável era a criatura ela mesma, dir-se-ia que ves-

tida do mais pálido azul celestial, e tão imaculadamente loura como se

as pétalas de alguma flor gigantesca a tivessem revelado, mal acabando

de abrir-se; e que no entanto demonstrava, com esta lourice pueril, um

encanto maduro de quem era senhora de si. Desde que vivera sua me-

mória de Laure, Lydgate tinha perdido totalmente a atração pelo silên-

cio dos olhos muito grandes: não mais o atraía a vaca divina, tipo do

qual Rosamond era o perfeito contrário. Ele porém chamou-se às falas:

"Espero que ainda me faça ouvir alguma coisa esta noite."

"Far-lhe-ei ouvir, se para tanto tiver gosto, minhas tentativas," disse

Rosamond. "Papai certamente há de insistir para que eu cante. Mas ficarei

trêmula diante do senhor, que já ouviu em Paris mestres da voz. Eu mes-

ma ouvi pouca coisa: só estive uma vez em Londres. Mas o organista da

nossa igreja de St. Peter é um bom músico, e continuo a estudar com ele."

"Diga-me o que viu em Londres."

"Muito pouco." (Uma garota mais ingênua teria dito: "Oh, tudo!"

Mas Rosamond era esperta.) "Algumas dessas coisas muito comuns, a

que as moças provincianas incultas sempre são levadas."

"Você se acha uma moça provinciana inculta?" disse Lydgate, olhan-

do-a com involuntária ênfase na admiração, o que fez Rosamond

enrubescer de prazer. Ela porém se manteve séria, simplesmente virou

um pouco o pescoço e ergueu a mão para tocar nas suas tranças fantás-

ticas - gesto que lhe era tão habitual e gracioso como qualquer movi-

mento de uma gatinha com a pata. Não que Rosamond fosse uma gata;

não: era um sílfide pegada jovem e instruída na escola de Mrs. Lemon.

"Garanto-lhe que minha mente é inculta," disse ela imediatamente.

"Aqui em Middemarch ainda passo. Não temo conversar com nossos

velhos vizinhos. Mas o senhor realmente me dá medo."

"Uma mulher completa quase sempre sabe mais do que os homens,

embora o conhecimento dela seja diferente na espécie. A senhorita, es-


tou certo, teria mil coisas a ensinar-me - como uma ave rara teria o que

ensinar a um urso, se houvesse entre eles uma língua em comum. Feliz-

mente, há uma língua em comum entre mulheres e homens, e assim os

ursos podem ser ensinados."

"Ah, Fred já começou a martelar no piano! Tenho de ir até lá impedi-

lo, se não vai-lhe fazer mal aos nervos," disse Rosamond e moveu-se

para o outro lado da sala, onde Fred, tendo aberto o piano a pedido do

pai, para que Rosamond lhes apresentasse um pouco de música, ia

entrementes tocando "Cereja MaduraV" a uma só mão. Homens capa-

MIDDLEMARCH

181

zes, desses que passam nos exames, às vezes fazem tais coisas, não meno

que o reprovado Fred.

"Por favor, Fred, adie para amanhã seu exercício; você vai deixar M

Lydgate doente," disse Rosamond. "Ele é bom de ouvido."

Fred riu e prosseguiu até o fim com sua música.

Rosamond virou-se para Lydgate, sorrindo gentilmente, e disse

"Como vê, nem sempre os ursos querem ser ensinados."

"Agora sim, Rosy!" disse Fred, que pulou fora do banco e girou-o

para ficar mais alto para ela, em calorosa expectativa de fruição. "Primei

ro umas coisas que animem bem."

Rosamond tocou admiravelmente. Seu professor na escola de Mrs

Lemon (próxima à pequena cidade de memorável história que tinha

sua igreja e castelo para guardar as relíquias) era um desses músicos

excelentes que aqui e ali se encontram pelas nossas províncias, dignos

de comparação com muitos mestres de capela de um país que oferece à

celebridade musical condiçäes mais férteis. Rosamond, com o instinto

do executante, pegara-lhe a maneira de tocar e reproduzia com a preci-


são de um eco sua vigorosa interpretação da música nobre. Era quase

de assustar, ouvido pela primeira vez. Uma alma oculta parecia emanar

dos dedos de Rosamond; e assim o era de fato, já que vivem as almas

em perpétuos ecos, e a toda bela expressão corresponde nalgum ponto

outra atividade geradora, mesmo que seja esta a de um intérprete ape-

nas. Lydgate, totalmente tomado, começou por sua vez a tomá-la por

algo muito incomum. Afinal de contas, pensava, não há por que sur-

preender-se quando se encontram raras conjunçäes de natureza sob

circunstâncias aparentemente desfavoráveis: onde quer que elas ocor-

ram, sempre dependem de condiçäes que nunca estão evidentes. A

olhar para ela, ficara pois ali sentado, e nem sequer se levantou para

lhe fazer elogios: deixou a tarefa para outros, agora que sua admiração

se aprofundara de todo.

No canto, ela era menos exímia, mas igualmente bem treinada e

doce de ouvir como um repique de sinos quando em harmonia perfeita.

 bem verdade que cantou "Encontre-me ao Luar" e "Andei Vagando

por Aí;" pois os mortais têm de partilhar modas de sua época, e nin-

guém, a não ser os próprios antigos, pode o tempo todo ser clássico.

Mas Rosamond poderia cantar "Susan de Olhos Negros," sem fazer feio,

ou ainda as cançonetas de Haydn, ou "Voi, che sapete," ou "Batti, batti"

bastava-lhe somente saber o que a audiência queria.

Seu pai, deliciando-se com a admiração dos presentes, corria os

olhos pela sala. A mãe, sentada com a filha mais nova no colo, como

182

GEORGE ELIOT

uma Níobe antes de seus padecimentos, ia batendo com as mãozin as

da criança de leve, ao compasso da música. Fred, não obstante seu

ceticismo generalizado em relação a Rosy, ouviu o recital a lhe render


vassalagem, e desejoso de fazer, com sua flauta, algo igual. Foi a mais

agradável reunião de família a que Lydgate havia assistido desde sua

chegada a Middemarch. Eram inerentes aos Vincys a disponibilidade

para o prazer, a rejeição de toda ansiedade e a crença na vida como um

quinhão feliz, que tornavam excepeional uma casa na maioria das cida-

dezinhas interioranas da época, quando o evangelismo já lançara certa

suspeita, como grassam as suspeitas de epidemia, sobre as poucas di-

versäes a sobreviver nas províncias. Na casa dos Vincys sempre havia

uíste, e ainda agora as mesas de jogo estavam postas, fazendo com que

alguns dos presentes, em segredo, sentissem-se impacientes com a

música. Antes que esta terminasse, chegou Mr. Farebrother - homem

bonito, de peito largo, se bem que de pequena estatura, e com seus

quarenta anos, cujo hábito negro estava muito surrado: todo seu bri-

lho procedia dos olhos, cinzentos e cheios de vivacidade. E ele chegou

como há na luz uma mudança agradável, interceptando com patemais

graçolas a pequenina Louisa, quando Miss Morgan já ia a retirá-la da

sala, saudando a todos com uma palavra para cada um e parecendo

condensar mais conversa, em apenas dez minutos, do que toda a já

mantida no transcurso da noite. De Lydgate, cobrou o cumprimento da

promessa de ir visitá-lo algum dia. "Não posso desobrigá-lo, sabe, por-

que tenho uns besouros a lhe mostrar. Nós, os colecionadores,

interessarrio-nos por todo novo conhecido até que ele tenha visto tudo

o que temos a lhe mostrar."

Mas sem demora ele se dirigiu à mesa de uíste, esfregando as mãos

e dizendo: "Bem, vamos então passar ao sério! Mr. Lydgate? não joga?

Ah, o senhor ainda é muito jovem e ágil para esse tipo de coisa."

Lydgate disse a si mesmo que neste ambiente decerto não muito

culto o clérigo cuja capacidade causava tanta aflição a Mr. BuIstrode pa-

recia ter encontrado um lugar que era compatível com ele. E em parte

entendia isto: o bom humor, a boa aparência dos idosos e jovens, as mil

maneiras de passar o tempo sem nenhuma aplicação da inteligência po-


deriam tornar a casa atraente para pessoas que não tinham uso específi-

co a dar às horas de ócio.

Tudo ali parecia alegre e viçoso, exceto Miss Morgan, que era more-

na, insípida, resignada e, no todo, como dizia muitas vezes Mrs. Vincy, o

tipo de pessoa para ser governanta. Lydgate não tencionava fazer muitas

visitas assim. Eram um modo deplorável de desperdiçar suas noites; e

MIDDLEMARCH

183

agora, quando já havia conversado um pouco mais com Rosamond, ten-

cionava desculpar-se e partir.

"Não gostará de nós em Middemarch, estou certa;" disse ela, tão

logo instalados os jogadores de uíste. "Somos muito ignorantes, e o

senhor se acostumou a coisas bem diferentes."

"Tomo as cidades de província, todas elas, por muito parecidas,"

disse Lydgate. "Mas já notei que cada qual sempre acha que não existe

cidade mais ignorante que a sua. Quanto a mim, decidi aceitar Midde-

march como ela é, e muito grato hei de estar se a cidade aceitar-me do

mesmo modo. Aqui sem dúvida já encontrei alguns encantos que são

muito maiores do que eu havia previsto."

"Refere-se às cavalgadas até Tipton e Lowick, das quais todos gos-

tam tanto?" disse Rosamond com simplicidade.

"Não, refiro-me a algo que está muito mais perto de mim."

Rosamond levantou-se, alcançou um trabalho de agulha e disse:

"Dançar por acaso lhe desperta algum interesse? Não sei ao certo se os

homens inteligentes costumam dançar de vez em quando."

"Eu dançaria com a senhorita, se me desse a honra."

"Oh!" disse Rosamond, como que se desculpando com um ligeiro

sorriso. "Eu ia apenas dizer que às vezes organizamos uns bailes e que-
ria saber se se sentiria ofendido, caso fosse convidado a um deles."

Não com a condição que mencionei."

Após a boa conversa, Lydgate resolveu ir embora, mas passando pelas

mesas de uíste interessou-se por observar o jogo de Mr. Farebrother,

que era o de um ás, e também seu rosto, que era uma mistura chocante

de mansidão e astúcia. ·s dez horas o jantar foi servido (tais eram os

hábitos em Middemarch), e bebeu-se ponche; Mr. Farebrother no en-

tanto quis um copo d"água somente. Ele estava ganhando, mas nada

levava a crer que a retomada de partidas completas fosse terminar, e

Lydgate por fim fez suas despedidas.

Não tendo ainda dado as onze, preferiu ir a pé no vento fresco em

direção à torre de St. Botolph, a igreja de Mr. Farebrother, que à luz das

estrelas assomava escura, quadrada e sólida. Era a mais antiga igreja de

Middemarch; mas o benefício eclesiástico a que seu pastor fazia jus

resumia-me a quatrocentas libras por ano. Era o que Lydgate tinha ouvi-

do dizer, perguntando-se ele agora se o dinheiro ganho nas cartas não

teria importância para Mr. Farebrother; pensava: "Ele parece uma pes-

soa muito agradável, mas BuIstrode pode ter lá suas razäes." Muitas

coisas ficariam mais fáceis para Lydgate se Mr. BuIstrode lhe acabasse

por parecer justificável de maneira mais ampla. "Que me importa sua

184

GEORGE Ei,,iOT

doutrina religiosa, se ele a faz acompanhar de algumas boas idéias? 

com as cabeças que existem que a gente deve contar."

Tais foram na realidade as primeiras meditaçäes de Lydgate ao andar

distanciando-se da casa de Mr. Vincy, e temo eu que algumas damas,

com base nisto, custem a considerá-lo doravante digno de sua atenção.

Só em segundo lugar ele pensou em Rosamond e sua música; e embora,


quando chegou a vez dela, tenha-lhe retido a imagem pelo restante da

andança, não sentiu a menor agitação, não teve impressão concreta de

que houvesse irrompido em sua vida alguma nova corrente. Por ora ele

não podia casar-se; por muitos anos não queria casar-se; não estava por

conseguinte em condiçäes de alimentar idéias de paixão por uma jovem

que admirou por acaso. Era enorme a admiração que sentia por

Rosamond; mas aquela loucura que por causa de Laure se apossara dele,

tempos atrás, não deveria voltar a ocorrer a seu ver em relação a nenhu-

ma outra mulher. Decerto, se o caso fosse apaixonar-se, seria garantido

fazê-lo por uma criatura assim como Miss Vincy, que possuía justamente

aquele tipo de inteligência desejável numa mulher - polida, refinada,

dócil, tendente à perfeição mais completa em todas as delicadezas da

vida e abrigada num corpo que exprimia isto com uma força de demons-

tração que excluía a necessidade de outras evidências. Lydgate estava

certo de que, se jamais se casasse, sua esposa teria esse fulgor de mu-

lher, essa feminilidade distintiva que deve ser classificada com as flores e

a música, essa espécie de beleza que por sua própria natureza era virtuosa,

sendo moldada apenas para alegrias delicadas e puras.

Mas - como ele não pretendia casar-se nos próximos cinco anos

- sua obrigação mais premente era dar uma olhada no novo livro de

Louis sobre Febre," no qual estava especialmente interessado, porque

ele havia conhecido Louis em Paris, e assistido a muitas demonstra-

çäes anatämicas que visavam definir as diferenças específicas entre o

tifo e a febre tifóide. Foi para casa e leu até o raiar da aurora, abordan-

do este estudo patológico com uma visão de análise das relaçäes e

detalhes bem mais profunda do que jamais ele julgara necessário apli-

car às complexidades do casamento e do amor, temas sobre os quais se

sentia amplamente informado pela literatura e por essa sabedoria tra-

dicional que se transmite nas conversas cordiais entre os homens. já a

febre tinha conotaçäes mais obscuras e o incitava a esse prazeroso tra-

balho da imaginação que não é mera arbitrariedade, mas sim o exercí-


cio de uma força disciplinada - combinar e construir com a mais clara

lRecherches sur Ia FiŠvre Typhoide (1828), do médico francês Pierre Charles

Louis.

MIDDLEMARCH

185

atenção às probabilidades e a obediência mais completa ao conheci-

mento; e depois, em aliança ainda mais vigorosa com a imparcial Na-

tureza, manter-se de parte na invenção de testes pelos quais pôr à

prova o trabalho feito.

Muitos homens têm sido louvados como altamente imaginativos

com base em sua prodigalidade em desenhos mediocres ou narraçoes

ordinárias: - rumores de conversas paupérrimas mantidas em órbitas

distantes; ou retratos de Lúcifer baixando às suas torpes emâncias como

um homenzarrão horroroso com asas de morcego e esguichos de

fósforência; ou exageros de licenciosidade que parecem refletir a vida

num sonho enfermo. Mas estes tipos de inspiração, Lydgate os consi-

derava antes vinolentos e vulgares, comparados com a imaginação que

revela açäes sutis inacessíveis a qualquer espécie de lente, mas

rastreadas na escuridão lá fora através de longos caminhos de impres -

cindível seqüência por essa luz interior que é o refinamento terminal

da Energia, capaz de banhar até etéreos átomos em seu espaço ideal-

mente iluminado. De sua parte ele havia rejeitado todas as invençäes

ordinárias onde a ignorância age e se compraz à vontade: apaixonava-

o, esta sim, a própria árdua invenção que é o modo de ver que a pesquisa

emprega, enquadrando provisoriamente seu objeto e corrigindo-o por

uma exatidão de relaçäes cada vez maior; queria penetrar na obscuri-

dade desses diminutos processos que preparam a dor e a alegria huma-

nas, dessas vias de comunicação invisíveis que a angústia, a mania e o


crime tomam como seus primeiros esconderijos, desse equilíbrio e tran-

sição delicados que determinam o crescimento da consciência feliz ou

infeliz.

Ao largar seu livro, esticar as pernas para as brasas do fogo e cruzar

as mãos na nuca, nesse gostoso crepúsculo da excitação quando do exa-

me de um objeto específico o pensamento deriva para um sentimento

difuso de suas conexäes com todo o resto da existência - parece pôr-se

de costas após um nado exaustivo, por assim dizer, para boiar no repou-

so de uma força intacta, - Lydgate sentiu um triunfante deleite em seus

estudos, e algo assim como pena dos homens de menor sorte que não

pertenciam à sua profissão.

"Se eu não tives se tornado este destino quando ainda era garoto,"

pensava ele, "talvez fosse acabar puxando um cavalo, ou noutro traba-

lho bem reles, e vivendo sempre de antolhos. Nunca me sentiria feliz

numa profissão que não exigisse o máximo de esforço intelectual, man-

tendo-me entretanto em caloroso contacto com meus vizinhos. Não há

nada para isto como a medicina: pode-se ter a vida científica exclusiva

186

GEORGE ELIOT

que se reporta à distância e também prestar ajuda aos fósseis humanos

da paróquia. O que, para um clérigo, é talvez mais difícil: Farebrother

parece ser uma anomalia."

Este último pensamento trouxe de volta os Vincys e todas as ima-

gens da noite. Imagens que lhe flutuavam na mente de modo bem agra-

dável e, enquanto ele apanhava a vela de cabeceira, seus lábios desenha-

ram um incipiente sorriso, desses que costumam acompanhar as boas

lembranças. Era um homem ardoroso, mas no momento seu ardor se

absorvia no amor por seu trabalho e na ambição de tornar sua vida reco-
nhecida como um fator de progresso para a vida de toda a humanidade

- tal como outros heróis da ciência, que tinham começado do nada a

não ser sua obscura prática numa província qualquer.

Pobre Lydgate! ou talvez deva eu dizer: Pobre Rosamond! Vivia

cada um no seu mundo, do qual nada sabia o outro. Não havia ocorri-

do a Lydgate ser ele o tema de ardentes meditaçäes de Rosamond, que

nem dispunha de razäes para encarar seu casamento tão-só como pers-

pectiva remota, nem de estudos patológicos que lhe desviassem a mente

desse hábito ruminativo, dessa repetição para dentro de palavras, fra-

ses e olhares que são parte ponderável na vida de quase todas as mo-

ças. Ele não tinha pretendido olhar para ela, nem falar-lhe, com mais

que a dose inevitável de admiração e atenção que um homem há de

conceder a uma menina bonita; parecia-lhe de fato que sua fruição da

música dela tinha passado quase em silêncio, pois temera incorrer em

grosseria se expressasse grande surpresa por vê-la possuindo tais dons.

Rosarriond porém havia registrado cada olhar e palavra, e estimava-os

como incidentes de abertura de um romance preconcebido - inciden-

tes que extraem seu valor da própria antevisão do desenvolvimento e

do clímax. No romance de Rosamond não era necessário imaginar muita

coisa sobre a vida interior do herói, nem de seus graves afazeres no

mundo: sem dúvida ele tinha uma profissão e era inteligente, bem como

suficientemente bonito; mas o fato instigante sobre Lydgate era seu

bom nascimento, que o distinguia de todos os admiradores de

Middiemarch e apresentava-lhe o casamento como uma perspectiva de

ascender na sociedade e chegar um pouco mais perto desse estado

celestial em que ela não teria de relacionar-se com pessoas vulgares,

associando-se por fim talvez a parentes no mesmo nível dos aristocra-

tas rurais que olhavam de cima os habitantes de Middemarch. Era

parte da perspicácia de Rosamond distinguir de modo muito sutil o

mais fraco aroma de classe, e certa vez, vendo as sobrinhas de Mr.


Brooke a acompanhar seu tio na sessão do tribunal no condado, e sen-

MIDDLEMARCH

187

tadas entre a aristocracia, ela as tinha invejado, apesar da simplicidade

com que estavam vestidas.

Se você julga inverossímil que só pensar em Lydgate como um afor-

tunado de berço já pudesse causar tremores de satisfação relacionados

de algum modo à impressão de que ela estava apaixonada por ele,

pedir-lhe-ei que use com um pouco mais de rigor seu poder de compa-

ração e considere se dragonas e uniformes vermelhos não hão de ter

tido alguma vez influência análoga. Nossas paixäes não vivem em com-

partimentos estanques, mas, vestidas por seus modestos guarda-rou-

pas de idéias, trazem suas provisäes para uma mesa comum e comem

juntas em desordem, alimentando-se da reserva comum segundo seu

respectivo apetite.

Rosamond, de fato, estava absorvida de todo, não propriamente

com Tertius Lydgate como ele era em si mesmo, mas em sua relação

para com ela; e era perdoável, numa garota acostumada a ouvir que

todos os rapazes podiam, queriam, iriam apaixonar-se por ela, ou na

realidade já a estavam amando, acreditar de imediato que Lydgate não

seria exceção. Seus olhares e palavras significavam mais para ela que

os de outros homens, porque ela lhes dava mais atenção: neles pensa-

va diligentemente, como diligentemente dedicava-se àquela perfeição

de aparência, conduta, sentimentos e todas as demais elegâncias que

encontrariam em Lydgate um admirador mais adequado que qualquer

outro de que já estivera ciente.

Pois Rosamond, embora jamais fizesse qualquer coisa que achasse

desagradável, era industriosa; e agora mais do que nunca mantinha-se


ativa desenhando suas paisagens e carroças do mercado e retratos de

amigos, praticando sua música e da manhã à noite sendo ela mesma seu

próprio padrão de perfeita dama, tendo sempre na própria consciência

um público, com o acréscimo eventual e não indesejado de um público

externo mais variável nos numerosos freqüentadores da casa. E ela ain-

da encontrava tempo para ler os bons romances, e até mesmo os que

não eram tão bons, e sabia de cor muitos poemas. Seu favorito era "Lalla

Rookh."I

"A melhor garota do mundo! Feliz será o homem que a tiver!" era o

sentimento dos cavalheiros mais velhos que visitavam os Vincys; e os

jovens rejeitados pensavam em tentar outra vez, como é a moda nas

pequenas cidades onde o horizonte não se adensa com rivais à vista.

Mrs. Plymdale porém achava que a educação de Rosamond fora levada a

Toema de Thomas Moore, publicado em 1817 e muito popular na época da ação do

romance.

188

GEORGE ELIOT

extremos de ridículo, pois de que serviriam tantos dons que seriam pos-

tos de lado tão logo ela estivesse casada? Já sua tia BuIstrode, que era de

uma lealdade fraterna com a família do irmão, tinha dois sinceros dese-

jos para Rosamond - que ela viesse a mostrar um espírito com inclina-

çäes mais graves, e que pudesse encontrar um marido cuja riqueza

correspondesse aos seus hábitos.

CAPÍTULO XVII

The clerkly person smiled and said,


Promise was a pretty maid,

But being poor she died. unwed.

(Sorrindo disse uma pessoa matreira:

Era a Promessa moça faceira

Que, sendo pobre, morreu solteira.)

O REVERENDO CAMDEN FAREBROTHER, a quem Lydgate foi visitar na

noite seguinte, morava num antigo presbitério, construído em pedra e já

bastante venerando para corresponder à igreja com a qual se defrontava.

Todos os móveis da casa eram antigos também, mas de outro grau de

ancianidade - o do pai e do avô de Mr. Farebrother. Havia umas cadei-

ras brancas pintadas, com festäes e dourados, e alguns remanescentes

estofos de damasco vermelho, com grandes rasgos. Havia retratos a bu-

ril de Lordes Chanceleres e outros renonados juristas do século passa-

do; e havia, nos panos das paredes, velhos espelhos para refleti-los, bem

como as mesinhas de pau-cetim e os sofás semelhantes a uma sucessão

de duras poltronas, tudo posto em relevo contra o lambris escuro. Tal

era o aspecto da sala de visitas a que Lydgate foi conduzido; e a recebê-

lo havia três senhoras que eram também de outra época e de uma res-

peitabilidade já murcha, mas genuína: Mrs. Farebrother, a mãe do Pas-

tor, de cabelos brancos, engomada em seus babados e embiocada com

caprichoso asseio, rápida no olhar, aprumada e ainda com menos de

setenta anos; Miss Noble, a irmã dela, uma velhinha minúscula de apa-

rência mais meiga, cujos babados e bioco decididamente mais gastos já

continham remendos; e Miss Winifred Farebrother, a irmã mais velha do

Pastor, de bela aparência como ele, mas tolhida e reprimida como as

ft

190

GEORGE ELIOT
mulheres solteiras costumam ser quando passam suas vidas em inin-

terrupta sujeição à família. Lydgate não esperava encontrar um grupo

tão singular: sabendo apenas que Mr. Farebrother era solteiro, tinha

pensado que o iriam levar a um gabinete de trabalho, ocupado princi-

palmente por livros e coleçäes de objetos naturais. O próprio Pastor

parecia estar com um ar diferente, como acontece à maioria dos ho-

mens, quando conhecidos feitos alhures os vêem pela primeira vez em

suas casas; alguns de fato se mostrando como um ator de lhanos pa-

péis desvantajosamente escolhido para fazer o grosseirão numa nova

peça. Não era este o caso com Mr. Farebrother: ele apenas se mostrava

um pouco mais silencioso e dócil, sendo sua mãe quem mais falava, e

resumia-se a fazer aqui e ali uma observação bem humorada e modera-

dora. A velha senhora estava evidentemente acostumada a dizer aos

seus circunstantes o que eles deveriam pensar, e a não considerar as-

sunto algum bem seguro sem ela estar ao comando. Sobrava-lhe tem-

po para preencher tal função por ter todas suas pequenas necessidades

atendidas por Miss Winifred. A minúscula Miss Noble, por seu turno,

levava no braço uma cestinha, para a qual desviou um torrão de açúcar

que ela primeiro havia posto, como que por distração, em seu pires; e

depois olhando furtivamente ao redor para volver à sua chávena com

um barulhinho inocente, como o de um minúsculo e tímido quadrúpede,

Mas não pense mal de Miss Noble, por favor! A cesta só continha uns

bocados de sua própria comida mais portátil, destinados às crianças de

amigos pobres em meio aos quais ela perambulava nas manhãs de bom

tempo; afeiçoar-se às criaturas carentes e cuidar de nutri-las era-lhe

um tão espontâneo prazer que ela chegava até a vê-lo como um vício

gostoso do qual já não sabia abrir mão. Talvez estivesse consciente de

ser tentada a roubar dos que tinham muito para poder dar aos que

nada tinham, e levava na consciência a culpa deste reprimido desejo. 

preciso ser pobre para conhecer a volúpia em dar!


Mrs. Farebrother deu as boas-vindas ao hóspede com lépida forma-

lidade e precisão. Informava-o agora não ser muito freqüente, nesta casa,

que precisassem de ajuda médica. Pela criação, ela mesma havia acostu-

mado seus filhos a usar flanela e a não comer demais, hábito este, o

último, que considerava a principal razão de os doutores se tornarem

necessários a tantos. Lydgate pôs-se em defesa daqueles cujos pais e

mães tinham comido demais, mas Mrs. Farebrother tomou por perigoso

este seu modo de ver: a Natureza era mais justa; seria fácil para qualquer

condenado dizer que seus ancestrais é que deveriam ter sido mandados

em seu lugar à forca. Se os que tiveram maus pais e mães foram maus

1 MIDDLEMARCH

191

também, foram enforcados por isto. Não havia necessidade de se voltar

a algo que não havia mais como ver.

"Minha mãe é como o velho Jorge III," disse o Pastor, "faz objeçäes

à metafísica."

"Faço objeçäes ao que está errado, Carriden. Como eu digo, tendo-

se algumas simples verdades, com elas se päem as coisas em ordem.

Quando eu era moça, Mr. Lydgate, nunca se discutia sobre o certo e o

errado. Nós sabíamos nosso catecismo, e era o bastante; aprendíamos

nossa fé e deveres. Todos os membros respeitáveis da Igreja tinham as

mesmas opiniäes. Mas agora, ainda que se digam palavras do próprio

Livro de Oraçäes, corre-se risco de contestação."

"O que torna a época razoavelmente interessante para os que gos-

tam de manter seus próprios pontos de vista," disse Lydgate.

"Minha mãe sempre cede um pouco," disse irônico o Pastor.

"Não, não, Carnden, você não deve induzir Mr. Lydgate a um erro

sobre mim. Nunca demonstrarei tal desrespeito para com meus pais, re-
nunciando ao que eles me ensinaram. Qualquer um pode ver no que vão

dar as mudanças. Se você muda uma vez, por que não vinte?"

"Um homem pode ter bons argumentos para mudar uma vez, sem

que os tenha porém para mudar de novo," disse Lydgate, divertindo-se

com dama tão decidida.

"Quanto a isto me desculpe. Já que quer falar de argumentos, eles

nunca estão em falta, quando um homem não tem constância de espíri-

to. Meu pai nunca mudou e pregava sermäes de moral simples, sem

nenhum argumento, e era um bom homem - como há poucos melho-

res. Se o senhor me conseguir um bom homem feito de argumentos,

lendo-lhe o livro de receitas apenas já lhe consigo eu um bom jantar.

Esta é a minha opinião, e penso que os estômagos de todos hão de me

dar apoio."

"quanto ao jantar, mãe, nem há dúvida," disse Mr. Farebrother.

"15 a mesma coisa, o jantar ou o homem. Tenho quase setenta anos,

Mr. Lydgate, e me baseio na experiencia. Não há muita hipótese de que

eu venha a seguir novas idéias, das quais aliás estamos cheios, tanto

aqui como alhures. E, como eu digo, elas vieram junto com esses tecidos

mesclados, que não são bons para usar nem de lavar. Nos meus tempos

de jovem não era assim: um homem de igreja era um homem de igreja, e

um pastor, pode ter plena certeza, era, quando não mais, um cavalheiro.

Mas hoje em dia pode estar reduzido a ser tão-só um Dissidente e, sob

pretexto de doutrina, querer pôr o meu filho de banda. Seja quem for

que o queira pôr de banda, tenho porém um grande orgulho em dizer,

192

GEORGE ELIOT

Mr. Lydgate, que ele é comparável a qualquer pregador do reino, para

não falar desta cidade, cujo padrão é muito baixo para servir de parâmetro;
pelo menos é assim que eu penso, eu que nasci e fui criada em Exeter."

"As mães nunca são parciais," disse Mr. Farebrother sorrindo. "O

que acha que a mãe do Tyke diz sobre ele?"

"Ah, pobre criatura! mas o que é?" disse Mrs. Farebrother, sua

acuidade neutralizada um momento pela confiança que tinha nos julga-

mentos maternos. "A si mesma ela sempre diz a verdade, não duvide."

"E qual é a verdade?" disse Lydgate. "Estou querendo saber."

"Oh, não é nada mau," disse Mr. Farebrother. "Ele é um sujeito de-

dicado: nem muito instruído nem muito sensato, segundo eu penso -

porque eu não me entendo com ele."

"Ora essa, Camden!" disse Miss Winifred. "Hoje mesmo o Griffin e

sua esposa me contaram que Mr. Tyke disse que eles não iriam mais ter

carvão, se viessem ouvir você pregar."

Mrs. Farebrother interrompeu seu tricô, que ela havia retomado após

a módica porção de chá com torradas, e olhou para o seu filho como se

quisesse dizer: "Ouviu só?" Miss Noble exclamou: "Oh, coitados! coita-

dos!" referindo-se provavelmente à dupla perda em carvão e pregão.

Mas o Pastor respondeu serenamente:

" só porque não são meus paroquianos. E não creio que meus ser-

mäes valham tanto para eles quanto uma porção de carvão."

"Mr. Lydgate," disse Mrs. Farebrother, que não podia deixar a opor-

tunidade escapar, "o senhor não conhece meu filho: ele sempre se subes-

tima. E sempre lhe digo que está subestimando Deus, que o fez, e que o

fez um pregador excelente."

" bem provável, mãe, que isto seja uma insinuação para que eu

saia com Mr. Lydgate para o meu gabinete," disse, gracejando, o Pastor.

"Prometi mostrar-lhe minha coleção," acrescentou, virando-se para

Lydgate; "vamos até lá?"

As damas, todas três, protestaram. Mr. Lydgate. não deveria ser afas-

tado assim às carreiras, sem nem poder aceitar uma outra xícara de chá:

Miss Winifred ainda tinha chá em quantidade no pote, e do bom. Por


que Camden se apressava tanto para arrastar uma visita à sua toca?

Nada de mais havia lá, além de pragas em conserva, de gavetas cheias de

mariposas e moscas-varej eiras, e no chão sequer um tapete. Que Mr.

Lydgate, por sinal, desculpasse! Seria muito melhor jogar uma partida

de cartas. Em resumo, ficava claro que um pastor podia ser adorado

pelas mulheres de sua família como o rei dos homens e dos pregadores,

e no entanto ser mantido ao mesmo tempo por elas em grande necessi-

MIDDLEMARCH

193

dade de seu comando. Lydgate, com a costumeira superficialidade de

um rapaz solteiro, estranhava que Mr. Farebrother não as tivesse con-

trolado mais.

"Minha mãe não está habituada a que eu receba visitas que possam

ter interesse por minhas ocupaçäes prediletas," disse o Pastor, abrindo a

porta de seu gabinete, que era de fato tão desprovido de luxúrias para o

corpo como as senhoras haviam dado a entender, desde que excluídos

um cachimbo curto de porcelana e uma tabaqueira.

"Geralmente os homens da sua profissão não fumam," disse ele.

Lydgate sorriu e concordou com a cabeça. "A rigor, os da minha também

não, suponho. O senhor há de ouvir falar deste cachimbo, como argu-

mento contra mim, por BuIstrode e Companhia. Eles não sabem como o

diabo gostaria, se eu o largasse."

"Eu entendo. O senhor tem um temperamento excitável e precisa de

um sedativo. já a mim, que sou mais lento, o fumo tornaria indolente.

Eu mergulharia na indolência e ai ficaria estagnado, com todas as mi-

nhas forças."

"E a todas deve querer para o seu trabalho, pois não? Eu, que sou
uns dez ou doze anos mais velho que o senhor, já cheguei a um compro-

misso. Alimento uma ou duas fraquezas para que elas não se tornem

muito exigentes. Veja," continuou o Pastor, abrindo várias gavetinhas,

"ouso imaginar que eu tenha feito um exaustivo estudo da entomologia

deste distrito. Ocupo-me da fauria e da flora; e pelo menos com meus

insetos fui bem. Somos particularmente ricos em ortópteros: não sei se

- Ah! mas o senhor já pegou aí este frasco - e o olha mais do que nas

minhas gavetas. Não se interessa mesmo por tais coisas?"

"Não ao lado deste portentoso monstro anencéfalo. Nunca tive mui-

to tempo para me dedicar à história natural. Desde cedo o que mais me

interessou foi a estrutura do corpo, que é o que mais diretamente concerne

à minha profissão. Além disso, não me dou a passatempos. Tenho de ir

às braçadas pelo mar em fora."

"Ah! o senhor é um homem feliz," disse Mr. Farebrother, girando

nos calcanhares para começar a encher seu cachimbo. "Não conhece esta

necessidade do tabaco espiritual - as incômodas correçäes de textos

antigos, ou breves tópicos sobre uma variedade de Aphis brassicae, com a

bem conhecida assinatura de Philomicron, para a "Revista dos Tagare-

las""; ou um tratado erudito sobre a entomologia do Pentateuco, com-

preendendo todos os insetos não mencionados, mas provavelmente en-

"No original: "Twadders Magazine."

194

GEORGE ELIOT

contrados pelos israelitas em sua passagem através do deserto; com uma

moriografia sobre a Formiga, tal como analisada por Salornão, mostran-

do a harmonia do Livro dos Provérbios com os resultados das pesquisas

modernas. Mas não estarei a incomodá-lo com esta fumaceira?"


Lydgate surpreendia-se mais com a franqueza desta conversa do que

com seu sentido latente - qual seja, que o Pastor não se sentia de todo

em sua vocação verdadeira. As gavetas e prateleiras bem arrumadas e a

estante cheia de livros de História Natural, ilustrados e caros, fizeram-no

pensar novamente nos ganhos com o baralho e sua destinação. Mas ele

estava começando a desejar que a maior verdade de todas fosse a própria

e cuidada construção de tudo aquilo a que Mr. Farebrother se entregava.

A franqueza do Pastor não parecia ser do tipo repulsivo que provém da

má consciência procurando antecipar-se aos julgamentos alheios, mas sim-

plesmente o alívio de um desejo de proceder com o mínimo de fingimento

possível. Ao que tudo indicava, não lhe faltava uma noção de que esta sua

liberdade ao falar poderia soar como intempestiva, pois no momento ele

disse:

"Eu ainda não lhe disse, Mr. Lydgate, que tenho a vantagem de

conhecê-lo melhor do que o senhor a mim. Lembra-se do Trawley, com

quem por algum tempo dividiu seu apartamento em Paris? Eu me

correspondia com ele, que muito me falou a seu respeito. Não tinha

certeza, quando o senhor apareceu por aqui, que fosse a mesma pessoa.

Mas fiquei muito contente ao descobrir que era. Só não esqueço é que

não teve a meu respeito um semelhante intróito."

Lydgate adivinhou aqui certa delicadeza de sentimento, embora só a

entendesse em parte. "Por falar nisso," disse, "o que foi feito do Trawley?

Perdi-o completamente de vista. Ele era um fervoroso adepto dos siste-

mas sociais franceses, e falava de ir para o mato para fundar uma espécie

de comunidade pitagórica. Foi mesmo?"

"Qual nada! Está praticando num balneário alemão, e casou-se com

uma paciente rica."

"Minhas opiniäes então, por enquanto, estavam certas," disse

Lydgate, com um risinho desdenhoso. "No entender dele, a medicina

era um sistema inevitável de embuste. já eu dizia que o problema estava

nos homens - homens que se sujeitam às mentiras e asneiras. Ao invés


de pregar contra o embuste extramuros, talvez fosse melhor montar por

dentro um aparelho de desinfecção. Em suma - estou relatando minha

própria conversa - pode estar certo de que todo o bom senso se achava

do meu lado."

"Contudo, seu plano é bem mais difícil de pôr em prática do que a

MIDDLEMARCH

195

comunidade pitagórica. Não só o senhor tem contra si o velho Adão que

está em sua pessoa, como também todos os descendentes daquele Adão

original que constituem a sociedade à sua volta. Veja bem, eu já paguei

doze ou treze anos a mais do que o senhor por meu conhecimento das

dificuldades. Mas" - Mr. Farebrother interrompeu-se um momento e

acrescentou em seguida: "eis que o senhor se päe de novo a examinar

este frasco. Quer fazer uma troca? Pois não há de consegui-lo sem uma

boa barganha."

"Tenho alguns afroditas - belos espécimes de anelídeos - em ál-

cool. E a isto eu acrescentaria o novo trabalho de Robert Brown -"Ob-

servaçäes Microscópicas sobre o Pólen das Plantas" - caso ainda não o

tenha."

"Vendo como quer tanto o monstro, bem que eu poderia pedir um

preço mais alto. Que tal se eu lhe propusesse dar uma olhada nas gave-

tas para se pôr de acordo comigo em relação às minhas novas espécies?"

O Pastor, enquanto falava assim, ora movia-se alguns passos de cachim-

bo na boca, ora voltava, não sem orgulho, a se debruçar nas gavetas.

"Seria uma boa disciplina, sabe, para um médico jovem que em

Middemarch tem de agradar aos seus pacientes. O senhor vai ter de

aprender a entediar-se, não se esqueça. Entretanto, o monstro há de ser

seu, e nos termos que bem quisen"


"Não lhe parece que os homens sobrestimarn a necessidade de

comprazer-se com as tolices alheias, até que sejam desprezados por aque-

les próprios tolos com os quais antes se compraziam?" disse Lydgate,

movendo-se para o lado de Mn Farebrother e, meio distraído, olhando

para os insetos dispostos numa arrumação caprichosa, com seus nomes

subscritos numa letra impecável. "O melhor caminho é tornar seu valor

reconhecido, para que as pessoas se sintam na obrigação de aceitá-lo,

quer lhes faça ou não lisonjas."

"De bom grado o admito. Mas é preciso estar seguro sobre o próprio

valor e não deixar de manter-se independente. Pouquíssimos homens

são capazes disto. Ou bem a gente cai fora do serviço de vez, e se torna

um inútil, ou bem se enfia nos arreios e tenta ir agüentando o batente

por onde os companheiros de canga nos empurram. Mas olhe só estes

ortópteros, como são delicados!"

Lydgate afinal teve de dar um pouco de atenção a cada uma das gave-

tas, enquanto o Pastor ria de si mesmo, persistindo contudo na exibição.

Ucroscopic Observations on thePollen ofMants (1828), de Robert Brown (1773-

1858), um dos

mais conhecidos botânicos britânicos da época.

196

GEORGE ELIOT

"A propósito do que disse sobre o uso de arreios," começou Lydgate,

depois que eles já estavam sentados, "faz um bom tempo que decidi

esquivar-me deles ao máximo. Foi por isto que em Londres eu não quis

tentar nada, ao menos por uns bons anos. Não me agradou o que vi

quando estive estudando lá - muita empáfia vazia e muita velhacaria

obstrutiva. No campo, as pessoas têm menos pretensäes ao conheci-


mento e são menos sociáveis, mas por isto mesmo atingem menos o

amour-propre da gente: havendo menos desavenças, cada qual pode se-

guir seu próprio caminho mais tranqüilamente."

"Bem - de acordo - o senhor teve um bom começo; está na profis-

são certa, no trabalho para o qual se sente mais indicado. Há quem se

engana quanto a isto e se arrepende mais tarde. Mas não esteja assim

tão seguro de manter sua independência."

"O senhor quer dizer, dos vínculos familiares?"

"Não propriamente.  claro que eles tornam muitas coisas mais difí-

ceis. Mas uma boa esposa - uma boa mulher nada mundana - pode

ajudar um homem de fato, e mantê-lo mais independente. Há um paro-

quiano meu - uma ótima pessoa, mas que dificilmente teria aberto seu

caminho, como ele fez, sem sua esposa. O senhor conhece os Garths?

Não me parece que eles fossem clientes do Peacock."

"Não; mas há uma Miss Garth em casa do velho Featherstone, em

Lowick."

"Filha deles: moça excelente."

" tão calma - quase não cheguei a notá-la."

"Entretanto ela o notou, creia-me."

"Não entendo," disse Lydgate; dificilmente ele poderia dizer: " claro."

"Oh, não há quem lhe escape ao crivo. Preparei-a para sua confirma-

ção - e ela é uma favorita minha."

Não se interessando Lydgate por saber mais sobre os Garths, Mr.

Farebrother, por alguns momentos, deu baforadas em silêncio. Por fim o

Pastor largou seu cachimbo, esticou bem as pernas e virou para Lydgate

seus olhos muito brilhantes, dizendo com um sorriso:

"Nós aqui em Middemarch não somos tão inofensivos como o se-

nhor imagina. Temos nossas intrigas, nossos partidos. Eu por exemplo

sou um homem de partido, e BuIstrode é outro. O senhor fará uma ofen-

sa a BuIstrode, se me der o seu voto."

"Que é que há contra Bulstrode?" perguntou enfaticamente Lydgate.


"Eu não disse que houvesse alguma coisa contra ele, exceto isto. Se

o senhor votar contra ele, estará fazendo um inimigo."

"Não vejo por que eu me preocupar com estas coisas," disse Lydgate,

MIDDLEMARCH

197

com uma ponta de arrogância; "mas sobre hospitais ele parece ter boas

idéias, e gasta grandes sornas em projetos de utilidade pública. Poderia

ajudar-me muito na realização dos meus planos. Quanto às noçäes reli-

giosas dele - bem, como disse Voltaire, os encantamentos só destroem

um rebanho de ovelhas quando administrados com uma pequena dose

de arsênico. Quero saber do homem que há de trazer o arsêníco, e não

ligo para os seus sortilégios."

"Muito bem. Mas o senhor então não deve ofender o homem do

arsênico. A mim, sabe que não há de ofender," disse Mr. Farebrother,

sem nenhuma afetação. "Não coloco como obrigação dos outros cuidar

do que a mim convém. Oponho-me a BuIstrode sob vários aspectos.

Não gosto do grupo ao qual ele pertence: um grupo estreito, de ignoran-

tes que mais fazem para causar desconforto a seus vizinhos do que para

torná-los melhores. O sistema deles é uma espécie de doutrina de sua

claque mundano-espiritual: olham realmente para o resto da humanida-

de como uma só carcaça condenada a alimentá-los para o céu. Mas,"

acrescentou sorrindo, "não digo que o novo hospital do BuIstrode seja

uma coisa ruim; quanto a ele querer tirar-me do velho - bem, ele ape-

nas me retribui o cumprimento, se me acha uma pessoa nociva. Não sou

um modelo de clérigo - tão-só um paliativo aceitável."


Estaria o Pastor a denegrir-se? Lydgate não tinha lá tanta certeza.

Um modelo de clérigo, como um médico modelar, há de pensar que sua

profissão é a melhor do mundo, e considerar todo o conhecimento como

mera nutrição de sua patologia moral e terapêutica. Não disse pois se-

não isto: "Que razão BuIstrode dá para afastar o senhor?"

"Que eu não transmito as opiniäes dele - o que ele chama de sua

religião espiritual; e que eu não tenho tempo sobrando. Ambas as afir-

maçäes procedem. Mas, se fosse o caso, eu poderia arranjar tempo, e as

quarenta libras me fariam feliz. Esta é que é a grande verdade sobre o

caso. Mas vamos deixar isto de lado. Eu somente lhe queria dizer que,

se o senhor der seu voto para o seu homem do arsênico, não estará por

conseqüência magoando-me. Não posso prescindir de sua pessoa. O

senhor é uma espécie de circunavegador que veio a se estabelecer entre

nós e há de manter a minha fé nos antípodas. Agora, conte-me tudo

sobre eles lá em Paris."

CAPITULO XVIII

"Oh, sir, the loftiest hopes on earth

Draw lots with meaner hopes: heroic breasts,

Breathing bad air, run risk of pestilence;

Or, lacking lime-juice when they cross the Line,

May languish with the scurvy."

€"Os mais altos desejos, entre nós,

Misturam-se aos mais vis: peitos de heróis,

Respirando um mau ar, contraem peste;

Ou, cruzando o equador sem sucos cítricos,

Arriscam-se ao escorbuto que elanguesce.")

PASSARAM-SE ALGUMAS semanas antes de esta questão da capelania as-


sumir para Lydgate importância prática e, sem se dizer objetivamente a

razão, ele adiou a decisão para saber a qual dos lados deveria dar seu

voto. Ser-lhe-ia na realidade um assunto de indiferença total - ou seja,

teria ele tomado o lado mais conveniente, e votado pela nomeação de

Tyke sem nenhuma hesitação, - se do ponto de vista pessoal não tives-

se consideração por Mr. Farebrother.

Mas sua simpatia pelo Pastor de St. Botolph aumentara com o co-

nhecimento crescente. Que Mr. Farebrother, compreendendo a posição

de Lydgate como um recém-chegado que tinha seus próprios objetivos

profissionais a resguardar se empenhasse mais por afastar que por lhe

obter a atenção, eis uma demonstração de delicadeza e generosidade

incomuns, a que a natureza de Lydgate foi vivamente sensível. Jungia-se

ela a outros pontos da conduta de Mr. Farebrother que eram excepeio-

nalmente dignos e faziam com que seu caráter se assemelhasse ao des-

sas paisagens meridionais que parecem divididas entre a grandeza natu-

MIMUMARCH

199

ral e o desmazelo social. Pouquíssimos homens poderiam ter sido tão

filialmente cavalheirescos como ele era com sua mãe, tia e irmã, cuja

dependência de si lhe modelara a vida a vários modos que, para ele

mesmo, não eram lá muito cômodos; poucos homens que sentem a pres-

são das pequenas necessidades são tão nobremente resolutos a não

mascarar seus desejos de interesse inevitavelmente próprio sob pretexto

de melhores motivos. Ele estava consciente, no tocante a tais questäes,

de que sua vida suportaria a averiguação mais detida; e esta consciência

estimulava talvez certa desconfiança em relação à severidade crítica de


pessoas cujas intimidades celestiais não pareciam melhorá-las no com-

portamento em família, e cujos excelsos anseios não eram necessários

para lhes justificar as açäes. E depois, sua pregação era tão engenhosa e

incisiva como a pregação da Igreja Inglesa em sua época de grande pu-

jança e seus sermäes ele os proferia sem livro. Gente que não pertencia

à sua paróquia ia ouvi-lo; e, uma vez que encher a igreja de gente era

sempre a parte mais difícil das funçäes de um clérigo, aqui estava outra

razão para um descuidado sentimento de superioridade. Além disso ele

era um homem simpático: doce de temperamento, fino na sagacidade,

franco, sem risos falsos de amargura retida nem outros condimentos de

conversa que fazem da metade de nós, para os nossos amigos, uma afli-

ção. Lydgate gostava muito dele e desejava ter-lhe a amizade.

Dominado por este sentimento, continuava a pospor a questão da

capelania e a persuadir-se de que o assunto não só não lhe dizia respei-

to, como também provavelmente nunca chegaria a molestá-lo com um

pedido de voto. Lydgate, por solicitação de Mr. Bulstrode, já se achava a

traçar planos para as disposiçäes internas do novo hospital, e os dois se

viam em freqüentes consultas. O banqueiro estava sempre pressupondo

que poderia contar com Lydgate, de modo geral, como um auxiliar seu,

mas não fazia referências à vindoura decisão entre Tyke e Farebrother.

Quando o Conselho Geral da Enfermaria se reuniu, entretanto, e Lydgate

tomou ciência de que a questão da capelania fora repassada a uma co-

missão de diretores e médicos, a reunir-se na sexta -feira seguinte, teve

uma molesta impressão de que devia resolver-se de vez quanto a este

assunto banal de Middemarch. Não havia como ele não ouvir em seu

íntimo uma declaração peremptória de que Bulstrode era o primeiro-

ministro e, o caso Tyke, uma questão de poder ou não poder; e ele não

tinha também como impedir-se um desagrado igualmente forte em abrir

mão de uma perspectiva de poder. Pois suas observaçäes constantemen-

te confirmavam a certeza de Mr. Farebrother de que o banqueiro não

toleraria oposição. "Maldita seja esta politicagem deles!" foi um dos


20O

GEORGE ELIOT

seus pensamentos, por três manhãs, no meditativo processo de fazer a

barba, quando começou a sentir que lhe urgia realmente reunir sobre o

caso o próprio tribunal de sua consciência. Certamente havia coisas vá-

lidas a se dizer contra a eleição de Mr. Farebrother: ele já tinha muito em

mãos, considerando-se especialmente o grande tempo que gastava em

ocupaçäes não clericais. Ademais era um choque continuamente repeti-

do, a perturbar a estima de Lydgate, que o Pastor obviamente jogasse

por dinheiro, gostando do jogo sim, mas sem sombra de dúvida também

gostando dos fins a que seus ganhos serviam. Mr. Farebrother " sustenta-

va em teoria a conveniência de todos os jogos e dizia que, por falta

deles, a acuidade do espírito inglês se estagnava; mas Lydgate estava

certo de que ele jogaria bem menos, não fosse o dinheiro. Havia um

salão de bilhar no Green Dragon que algumas mães e esposas ansiosas

consideravam a pior tentação de Middemarch. O Pastor era um ás do

taco e, muito embora não freqüentasse o Green Dragon, havia rumores

de que algumas vezes ele andara por lá à luz do dia e teria ganho dinhei-

ro. Quanto ao cargo de capelão, não aparentava dar-lhe importância, a

não ser por causa das quarenta libras. Lydgate não era um puritano, mas

o jogo não lhe apetecia, e o dinheiro que nele se ganhava sempre lhe

soara como desprezível; além disso, tinha um ideal de vida que tornava

esta submissão da conduta à conquista de pequenas sornas totalmente

odiosa para ele. Até então em sua vida as necessidades haviam sido

supridas sem que as preocupaçäes o envolvessem, e seu primeiro impul-

so era sempre ser liberal com suas meias-coroas, bagatelas sem nenhu-

ma importância para um gentil-homem; nunca lhe ocorrera formular um

plano para amealhar tais moedas. De maneira genérica, tinha sempre


sabido que não era rico, porém nunca se sentira pobre, e carecia de todo

poder de imaginar o papel que a falta de dinheiro representa para deter-

minar os homens na ação. Para ele o dinheiro nunca fora um móvel.

Donde não ser propenso a conceber desculpas para essa caça deliberada

aos pequenos ganhos. Era-lhe ela totalmente repulsiva, a ele que nunca

se inquietara em calcular a relação entre a renda do Pastor e seus dispên-

dios mais ou menos necessários. Possivelmente em seu próprio caso ele

não teria feito tal cálculo.

E agora, quando se apresentava a questão da votação, esse fato re-

pulsivo depunha contra Mr. Farebrother ainda com mais força que antes,

A gente saberia bem melhor o que fazer se o caráter dos homens fosse

mais coerente e, especialmente, se os nossos amigos todos, de modo

invariável, estivessem sempre aptos para as funçäes que almejassem!

Lydgate estava convencido de que, não havendo objeçäes válidas a Mr,

MIDDLEMARCH

201

Farebrother, ele teria votado no seu nome, independentemente do que

BuIstrode pensasse sobre o assunto: ser um vassalo de BuIstrode não se

incluía em seus planos. Por outro lado, havia Tyke, homem que se dava

de todo à função clerical, que era apenas coadjutor numa capela da paró-

quia de St. Peter e dispunha de tempo para outras obrigações. Ninguém

tinha nada o que dizer contra Mr. Tyke, a não ser que agüentá-lo era

impossível e que havia suspeitas de ele ser um hipócrita. Com efeito

BuIstrode, do seu ponto de vista, estava plenamente justificado.

Fosse qual fosse o lado para o qual pendia Lydgate, havia porém

alguma coisa que o levava a claudicar; e ele, sendo homem cheio de

orgulho, por ser forçado a claudicar exasperava-se um pouco. Desagra-

dava-lhe frustrar-se em seus melhores propósitos, se não ficasse em bons


termos com Bulstrode; desagradava-lhe outrossim votar contra

Farebrother e ajudar a despojá-lo do cargo e dos vencimentos; e uma

questão se colocava, se aquelas quarenta libras a mais não poderiam

libertar o Pastor da ignóbil preocupação de ganhar no jogo. A coroar

tudo isto, não agradava a Lydgate a consciência de que votando em Tyke

ele estaria votando no partido que obviamente mais lhe convinha. Mas

sua própria conveniência haveria de ser de fato o fim? Não faltaria quem

dissesse que sim, alegando que ele procurava cair nas boas graças de

BuIstrode só para se tornar importante e garantir seu caminho. E daí?

De sua parte ele sabia que, se estivessem simplesmente em causa suas

perspectivas pessoais, não ligaria nem um pingo para a amizade ou ini-

mizade do banqueiro. O que realmente lhe importava era um meio para

o seu trabalho, um veículo para as suas idéias; e, afinal de contas, não se

impunha que ele preferisse por desígnio ter um bom hospital, onde pu-

desse demonstrar as distinções específicas da febre e testar resultados

terapêuticos, antes de qualquer outra coisa ligada à tal capelania? Pela

primeira vez Lydgate estava sentindo a filifórme e embaraçosa pressão

das pequenas contingências sociais, e sua complexidade frustradora. Ao

término deste debate em seu íntimo, quando ele saiu para o hospital,

sua esperança residia na hipótese de que as discussões pudessem de

algum modo dar à questão novo aspecto, fazendo com que a oscilação

da balança finalmente excluísse a necessidade do voto. Penso que ele

confiou também um pouco na energia engendrada pelas circunstâncias

- num sentimento que em caloroso fluir tomasse mais fácil sua decisão,

quando o debate a sangue-frio não a tomara senão mais dificultosa. Fos-

se como fosse, não se disse com clareza de que lado iria votar; e o tempo

todo ressentia-se interiormente da sujeição que lhe havia sido imposta.

Ter-se-la de antemão afigurado como um ridículo exemplo de imperfeita

202
GEORGE ELIOT

lógica que ele, com suas isentas resoluções de independência e sua in-

tenção seleta, acabasse por se achar, no desfecho, sob o jugo de alterna-

tivas mesquinhas e todas igualmente repugnantes a si. Era de modo

bem distinto que, em seu quarto dos tempos de estudante, ele havia

prefixado sua ação social.

Lydgate saiu portanto atrasado, mas o Dr. Sprague, os outros dois

cirurgiões e vários dos diretores haviam chegado cedo; Mr. Bulstrode,

tesoureiro e presidente, estava entre os ainda ausentes. Davam a en-

tender as conversas que o desfecho era problemático e que uma maioria

por Tyke não estava tão garantida como em geral se havia suposto.

Os dois facultativos, por milagre, demonstraram-se unãonimes, ou me-

lhor, embora de opiniões diferentes, concordaram na maneira de agir.

O Dr. Sprague, pesadão e desabrido, era, como todos previam, um

adepto de Mr. Farebrother. O Doutor era mais do que suspeito de

não ter religião, mas Middemarch dava um jeito de tolerar esta sua

deficiência como se fosse ele um Lorde Chanceler; é de fato provável

que seu peso profissional fosse o mais digno de crédito, consideran-

do-se que a associação da esperteza com o princípio do mal, tão ve-

lha quanto o mundo, era ainda bem forte até nas mentes das clientes

que tinham sobre os modos de sentir e os babados as mais estritas

idéias. Era quiçá essa negação no Doutor que movia os vizinhos a

chamá-lo de secarrão e cabeçudo; condições de contextura que eram

tidas também por favoráveis à armazenagem de julgamentos relaciona-

dos a remédios. Em todo caso, o certo é que se surgisse em Midde-

march algum médico com a reputação de ter opiniões religiosas mui-

to bem definidas, de ser dado à prece e a demonstrar de outras manei-

ras uma devoção ativa, haveria uma presunção comum contra sua

capacidade médica.

Sob este aspecto era (profissionalmente falando) uma felicidade para


o Dr. Minchin que suas simpatias religiosas fossem de um tipo bem ge-

nérico, e de tal ordem a dar uma distante sanção médica a todos os

modos sérios de sentir, quer da Igreja ou do Dissenso, mais do que qual-

quer adesão a dogmas particulares. Se Mr. Bulstrode insistia, como ti-

nha propensão a fazer, na doutrina luterana da justificação como aquela

pela qual se processa a permanência ou queda de uma Igreja, o Dr.

Minchin tinha plena certeza, em contrapartida, de que o homem não era

mera máquina nem uma fortuita conjunção de átomos; se era Mrs.

Wimple que insistia numa providência particular em relação a uma dor

de estômago, o Dr. Minchin propendia, por seu turno, a manter abertas

as janelas da mente, opondo-se aos limites prefixados; se o sectário unita-

MIDDLEMARCH

203

rista fazia algum gracejo sobre o Credo Atanasiano,1 o Dr. Minchin cita-

va o "Ensaio sobre o Homem" de Pope.2 Opunha-se ao estilo algo livre

da anedota no qual incorria o Dr. Sprague, preferindo as citações bem

abalizadas, e gostava de refinamentos de toda espécie: era sabido que

ele tinha certo grau de parentesco com um bispo e que às vezes, em suas

folgas, passava uns dias "em palácio."

Mãos finas, tez pálida e arredondado nas formas, o Dr. Minchin não

se distinguia na aparência de um clérigo amável: ao passo que o Dr.

Sprague era superfluamente alto; suas calças encolhidas nos joelhos

mostravam parte exagerada das botas, num tempo em que suas botas de

alças eram das tidas por indispensáveis à dignidade do porte; ouviam-no

chegando e partindo, e para cima e para baixo, como se tivesse vindo

para consertar o telhado. Em suma, ele tinha peso, sendo de se esperar

que tomasse a doença a peito e a esmagasse; quanto ao Dr. Minchin, o

previsível seria que a detectasse na espreita, para então vencer pela as-
túcia. Ambos desfrutavam era doses mais ou menos iguais do misterioso

privilégio da reputação médica, cada qual disfarçando com bastante eti-

queta o desprezo que sentia pela capacidade do outro. Considerando-se

a si mesmos como instituições de Middemarch, estavam prontos a ali-

ar-se contra todos os inovadores, e contra os não profissionais dados a

interferência. Com base nisto, eram ambos igual e intimamente avessos

a Mr. BuIstrode, embora o Dr. Minchin nunca tivesse entrado em hosti-

lidade aberta com ele, nem nunca divergisse dele sem uma elaborada

explicação a Mrs. BuIstrode, a qual já havia chegado à conclusão de que

só o Dr. Minchin entendia sua constituição. Um leigo que se intrometia

na conduta profissional dos médicos e estava sempre impondo suas re-

formas, - ainda que fosse menos diretamente um estorvo para os dois

facultativos que para os boticários-cirurgiões que atendiam aos indigen-

tes por contrato, era não obstante uma ofensa às narinas de profissio-

nais tão decentes; e o Dr. Minchin partilhava de todo da nova mágoa

contra BuIstrode, excitada por sua aparente determinação em patrocinar

Lydgate. Os práticos estabelecidos de há muito, Mr. Wrench e Mr. Toller,

achavam-se justamente agora em pé e à parte num amistoso colóquio,

no qual se punham de acordo falando sobre Lydgate, um camarada pe-

tulante, feito para servir às intenções de BuIstrode. Com amigos não

médicos já se haviam também posto de acordo nos elogios ao outro

"Enquanto os unitaristas mantinham a unidade de Deus, o credo atanasiano

reafirmava a

doutrina cristã da Santíssima Trindade.

"Essay on Man (1733), de Alexander Pope (1688-1744).

204

GEORGE ELIOT
jovem prático, que chegara à cidade após a aposentadoria de Mr. Peacock

sem outra recomendação além de seus próprios méritos e este argumen-

to que depunha por uma sólida formação profissional, o fato de ele apa-

rentemente não ter perdido tempo em outros ramos do conhecimento.

Claro estava que Lydgate, não dando remédios, pretendia lançar impu-

tações a seus pares, e também obscurecer o limite entre sua própria

posição como clínico-geral e a dos facultativos, os quais, no interesse da

profissão, sentiam-se obrigados a manter os vários graus da hierarquia.

Especialmente contra um homem que, não tendo estado em nenhuma

das duas universidades inglesas, gabava-se de lá não ter feito o acompa-

nhamento de cabeceira nem o estudo da anatomia, e ainda vinha com

uma pretensão injuriosa de experiência em Edimburgo e Paris, onde a

observação, de fato, poderia ser muita, mas era sempre algo suspeita.

Deu-se assim que nesta ocasião BuIstrode foi identificado com

Lydgate e Lydgate com Tyke; e, devido a esta diversidade de nomes

intercarribiáveis para a questão da capelania, várias mentes foram capa-

citadas a formular a respeito o mesmo julgamento.

O Dr. Sprague, ao entrar, disse sem maiores delongas ao grupo reu-

nido: "Eu estou com Farebrother. Um salário, sim, de muito bom grado.

Mas por que tirá-lo do Pastor?  quase nada o que a ele toca - ele que

tem de garantir sua vida, além de manter a casa e cumprir com suas

caridades. Ponham-lhe quarenta libras no bolso que não lhe estarão fa-

zendo mal.  um bom sujeito, o Farebrother, e que aliás não tem muito

de pastor, apenas o imprescindível para exercer sua prédica."

"Alto lá, Doutor!" disse o velho Mr. Powderell, um negociante do

ramo de ferragens, já aposentado mas não sem importância, - com uma

interjeição que ficava a meio-termo entre a discordância parlamentar e

uma gargalhada. "Deixá-lo falar é obrigação nossa. Mas o que temos de

considerar não são os rendimentos de alguém - são as almas das po-

bres pessoas adoentadas" - e nem à voz nem ao rosto de Mr. Powderell

faltaram aqui sinceros laivos patéticos. "Mr. Tyke é um verdadeiro pre-


gador do Evangelho. Eu votaria contra a minha consciência se votasse

contra Mr. Tyke - sem dúvida alguma."

"Os adversários de Mr. Tyke não pediram que ninguém votasse con-

tra a própria consciência, creio eu," disse Mr. Hackbutt, um rico dono de

curtume, fluente na fala, cujos óculos brilhantes e cabelo espetado volvi-

am-se com certa severidade para o inocente Mr. Powderell. "Mas a meu

modo de ver compete a nós, Diretores, saber se iremos julgar que todo o

nosso trabalho se reduz a executar propostas procedentes de uma única

fonte. Entre os membros da comissão, há alguém capaz de afirmar que

MIMUMARCH

205

teria alimentado a idéia de deslocar o homem que sempre exerceu aqui

as funções de capelão, se esta idéia não lhe fosse sugerida por outros,

cuja disposição é considerar todas as instituições desta cidade como sim-

ples mecanismos para a realização de seus planos? Não incrimino nin-

guém por seus motivos: estes, que fiquem entre a própria pessoa e um

Poder mais alto; digo porém que há influências em jogo, as quais são

incompatíveis com a autêntica independência, e que um servilismo

rastejante é ditado em geral por circunstâncias que os cavalheiros que

assim se conduzem não poderiam suportar moralmente, nem financeira-

mente honrar. De minha parte, sou um leigo, mas não é pouca a atenção

que eu tenho dado às divisões da Igreja e..."

"Oh, que se danem as divisões!" explodiu Mr. Frank Hawley, advo-

gado e secretário da Câmara Municipal, que raramente comparecia a

estas reuniões e agora, de rebenque na mão, parecia estar apressado.

"Não temos nada aqui a ver com elas. Farebrother vinha fazendo o tra-

balho - o que havia a ser feito - sem pagamento e, a se pagar alguma

coisa, o benefício deve ser para ele. Tirar a oportunidade de Farebrother


é a meu ver um golpe abominável."

"Penso eu que a cavalheiros ficaria muito bem não dar às suas obser-

vações uma entonaçao pessoal," disse Mr. Plymdale. "Vou votar pela

nomeação de Mr. Tyke, mas jamais teria sabido, não fosse a insinuação

de Mr. Hackbutt, que sou um Rastejante Servil."

"Repudio alusões a quem quer que seja. O que eu disse expressa-

mente, se me for permitido repetir, ou mesmo concluir o que eu estava

dizendo -"

"Ah, cá está o Minchin!" disse Mr. Frank Hawley; ao que todos des-

viaram a atenção de Mr. Hackbutt, deixando-o sentir a inutilidade de

dons superiores em Middemarch. "E então, Doutor, posso contar com o

senhor do lado certo, pois não?"

"Espero que sim," disse o Dr. Minchin, cumprimentando com a ca-

beça e trocando aqui e ali algum aperto de mãos. "Custe o que custar

aos meus sentimentos."

"Se há sentimentos em questão aqui, a meu ver é pelo homem que

estão querendo dispensar," disse Mr. Frank Hawley.

"Confesso que tenho sentimentos do outro lado também. Tenho uma

estima dividida," disse o Dr. Minchin, esfregando as mãos. "Considero

Mr. Tyke um homem exemplar - não mais nem menos - e acredito que

o nome dele é proposto por motivos não discutíveis. Bem que eu gosta-

ria de lhe poder dar meu voto. Mas sou forçado a um exame do caso que

toma preponderantes as pretensões de Mr. Farebrother. Este é um ho-

206

GEORGE ELIOT

mem gentil, um pregador competente, e já se encontra em nosso meio

há mais tempo."

Silencioso e triste, o velho Mr. Powderell olhou em tomo. Mr.


Plymdale, pouco à vontade, ajeitava a gravata.

"Espero que não me façam Farebrother passar por um modelo de

clérigo," disse Mr. Larcher, o ilustre dono da companhia de transportes,

que acabara de chegar. "Não tenho nenhuma má vontade para com ele,

mas acho que em relação a essas nomeações devemos alguma satisfação

à opinião pública, para não falar de coisas mais elevadas. Farebrother,

para um clérigo, em minha opinião é relaxado demais. Não desejo colo-

car nada em particular contra ele; mas qualquer servicinho aqui ele há de

esticar ao máximo para fazer render."

"Melhor, diabos, do que fazer além da conta," disse Mr. Hawley,

cuja linguagem grosseira era notória nesta parte do condado. "Gente

doente não agüenta muita oração e pregação. E essa espécie metodista

de religião faz mal ao ânimo - faz mal por dentro, não é?" acrescentou,

virando-se rapidamente para os quatro profissionais da medicina, que

estavam juntos.

Qualquer resposta foi tolhida porém pela entrada de três senhores,

com os quais houve uma troca de cumprimentos mais ou menos cordial.

Eram eles o Reverendo Edward Thesiger, Reitor de St. Peter, Mr. BuIstrode

e o nosso amigo de Tipton, Mr. Brooke, que ultimamente havia concor-

dado em ser feito membro da diretoria, mas que nunca assistira a uma

reunião antes, só comparecendo agora graças a insistentes apelos de Mr.

BuIstrode. A única pessoa ainda esperada era Lydgate.

Sob a presidência de Mr. BuIstrode, pálido e comedido como de cos-

tume, todos pois se sentaram. Mr. Thesiger, um evangélico moderado,

desejava a nomeação de seu amigo Mr. Tyke, homem capaz e zeloso

que, oficiando numa capela secundária, não era um cura de almas sobre-

carregado e assim dispunha de bastante tempo para as novas obriga-

ções. Seria desejável que as capelanias desse tipo fossem assumidas com

intenção fervorosa: pois com elas se criavam ocasiões bem propícias à

influência espiritual; e, conquanto fosse bom que se estipulasse um salá-

rio, maior era a necessidade de uma vigilância cuidadosa, para que o


cargo não viesse a ser pervertido, transformando -se em mera questão de

vencimentos. Foi tão serena e adequada a exposição de Mr. Thesiger,

que os que a ela se opunham não puderam senão guardar silêncio, fre-

mentes de indignação.

Mr. Brooke acreditava nas boas intenções de todo mundo. Pessoal-

mente ele não participara dos problemas da Enfermaria, muito embora

MIDDLEMARCH

207

tivesse grande interesse por tudo o que visava beneficiar Middemarch, e

sentia-se feliz por reunir-se com os cavalheiros presentes na discussão

de quaisquer questões de interesse público - "quaisquer questões de

interesse público, sabem," repetiu Mr. Brooke, com seu meneio de cabe-

ça tão típico, indicação do perfeito entendimento. "Vivo muito ocupado

como magistrado, e com minha coleta de provas documentais, mas con-

sidero meu tempo à disposição do público - e, em suma, meus amigos

convenceram-me de que um capelão com um salário - um salário, sa-

bem, - é uma coisa muito boa, e estou feliz de poder estar aqui e votar

pela nomeação de Mr. Tyke que, pelo que percebo, é um homem

inatacável, apostólico, eloqüente e tudo o mais que o seja - e eu seria o

último a lhe negar meu voto, sabem - nas atuais circunstâncias."

"Tenho a impressão de que lhe meteram na cabeça, e à força, somente

um lado da questão, Mr. Brooke," disse Mr. Frank Hawley, que não tinha

medo de ninguém, mas era um conservador receoso de manobras eleitoreiras.

"Parece até que o senhor não sabe que um dos homens mais dignos que nós

temos vem fazendo o trabalho de capelão aqui há anos, e sem pagamento,

e que a proposta em discussão é substituí-lo por Mr. Tyke."

"Desculpe-me, Mr. Hawley," disse Mr. BuIstrode, "rnas Mr. Brooke

foi devidamente informado do caráter e da situação de Mr. Farebrother."


"Pelos inimigos dele," disparou Mr. Hawley.

"Estou certo de que entre nós não há hostilidades pessoais em cau-

sa " disse Mr. Thesiger.

"Pois eu juro que há," retrucou Mr. Hawley.

"Senhores," disse Mr. BuIstrode, num tom contido, "os méritos da

questão podem ser expostos em poucas palavras e, se algum dos presen-

tes desconfiar de que há um cavalheiro que esteja a ponto de dar seu

voto sem ter sido devidamente informado, posso recapitular agora as

considerações que devem pesar de cada lado."

"Não vejo por quê," disse Mr. Hawley. "Acho que todos nós já sabe-

mos em quem vamos votar. Ninguém que queira fazer justiça espera até

o último minuto para ouvir os dois lados da questão. Eu, que não tenho

tempo a perder, proponho que a matéria seja posta logo em votação."

Seguiu-se breve mas ainda assim acalorada discussão antes de cada

qual escrever "Tyke" ou "Farebrother" num pedacinho de papel, para

depois depositá-lo numa jarra de vidro; entrementes, Mr. BuIstrode viu

Lydgate entrar.

-cPelo que eu vejo, os votos estão igualmente divididos por ora,"

disse Mr. BuIstrode, numa voz clara e penetrante. E aí, erguendo os

olhos para Lydgate:

208

GEORGE ELIOT

"Mas há um voto decisivo ainda a ser dado.  o do senhor, Mr.

Lydgate: quer ter a bondade de escrevê-lo?"

"Então a coisa está resolvida," disse Mr. Wrench, levantando-se.

"Todos nós sabemos como irá votar Mr. Lydgate."

"Parece que o senhor fala com alguma suposição em mente," disse

Lydgate, não sem um ar de desafio, mantendo o lápis suspenso.


"Eu simplesmente quis dizer que o esperado é que o senhor vote

com Mr. BuIstrode. Considera ofensiva esta suposição?"

"Pode ser ofensiva para outros. Mas nem por isto eu desistiria de

votar com ele."

E Lydgate imediatamente escreveu "Tyke."

Assim o Reverendo Walter Tyke tomou-se capelão da Enfermaria, e

Lydgate continuou a trabalhar com Mr. BuIstrode. Realmente ele ainda

se perguntava se Tyke não era o candidato mais indicado, não obstante

sua consciência dizer-lhe que teria votado em Mr. Farebrother, se esti-

vesse mesmo livre de influência indireta. A questão da capelania ficou

em sua memória como um ponto doloroso, como um caso no qual o

ambiente medíocre de Middiemarch, para ele, fora forte demais. Como

poderia um homem sentir-se satisfeito com uma decisão entre tais alter-

nativas e em tais circunstâncias? Não mais do que poderia sentir-se sa-

tisfeito com o seu chapéu, escolhido por ele entre os modelos que os

recursos do tempo lhe oferecem, e usado da melhor forma possível com

uma resignação que se apóia, principalmente, nas comparações.

Mr. Farebrother reencontrou-o porém com a mesma amizade já de-

monstrada. O cazzzráter do publicano e pecador nem sempre é praticamen-

te incompatível com o do Fariseu moderno, pois muito raro é a maioria

de nós ver as imperfeições de nossa conduta com mais clareza que as

imperfeições dos argumentos que usamos, ou a falta de brilho de nossos

próprios gracejos. Mas o Pastor de St. Botolph havia certamente escapa-

do à mais leve tintura de farisaísmo e, à força de admitir para si mesmo

que era por demais igual aos outros homens, tomara-se extraordinaria-

mente diferente por isto - por ser capaz de perdoar os outros, quando

pensavam mal dele, e de julgar-lhes imparcialmente a conduta, mesmo

quando voltada contra si.

"O mundo para mim foi muito forte, sei disso," disse ele um dia a

Lydgate. "E eu não tenho a mesma força - nunca serei um homem de


renome. A escolha de Hércules é uma bela fábula; mas Pródico facilita os

trabalhos do herói, como se as primeiras resoluções bastassem. Outra

VI,

MIDDLEMARCH

209

história diz que ele acabou por manejar a roca, e finalmente vestiu a

túnica de Nesso.1 Suponho que uma boa resolução possa manter um

homem certo, se a resolução de cada um dos demais o ajudar."

A conversa do Pastor nem sempre era muito inspiradora: ele escapa-

ra de ser um Fariseu, mas não havia escapado a essa baixa estimativa

das possibilidades a que chegamos meio às carreiras, como inferência de

nosso próprio fracasso. Lydgate pensou que havia uma lamentável do-

ença da vontade em Mr. Farebrother.

Tródico, sofista grego do século V a.C., é célebre por seu mito de Hércules

(Héracles) a

escolher entre a Virtude e o Vício. A túnica de Nesso, envenenada com o

sangue deste

centauro, causou a morte de Hércules, ao lhe ser erroneamente enviada por

sua esposa, que

tomara aquele sangue por um filtro de amor.

CAPÍTULO XIX

"Ealtra vedete ch"ha fatto alla guancia

Della sua palma, sospirando, letto."


- Purgatorio, vii.

€A outra, vede, havia feito da palma

da própria mão um leito, suspirando.")

- Purgatório, vii.

QUANDO JORGE IV AINDA reinava sobre as privacidades de Windsor, quan-

do o Duque de Wellington era Primeiro-Ministro, e Mr. Vincy era prefeito

da velha comarca de Middemarch, Mrs. Casaubon, nascida Dorothea

Brooke, empreendia em Roma sua viagem de núpeias. Nesse tempo, o

mundo em geral era mais ignorante sobre o bem e o mal, por quarenta

anos, do que hoje em dia. Nem sempre os viajantes levavam plena informa-

ção, fosse na cabeça ou no bolso, sobre a arte cristã; e até mesmo o mais

brilhante crítico inglês da época tomou a tumba florida da Virgem em ascen-

são por um vaso ornamental procedente da fantasia do pintor." O romantis-

mo, que ajudou a preencher algumas lacunas obscuras com conhecimento e

amor, ainda não havia misturado seu fermento na época, e assim se tornado

parte da alimentação para todos; efervescia ainda ele no entusiasmo clara-

mente vigoroso de alguns artistas alemães de basta cabeleira em Rorna," e

jovens de outras nações, que a seu redor trabalhavam ou flanavam, eram

muitas vezes engolfados no movimento em expansão.

"Alusão a um engano que William Hazlitt cometeu ao escrever sobre "A

coroação da Virgern%

de Rafael, no livro Notes of a journey through France and Italy (1826).

2AIusão aos pintores nazarenos, alemães que buscavam, como os pré-rafaelitas

ingleses da

mesma época, um retorno à pureza da arte medieval.

MIDDLEMARCH
211

Uma bela manhã, um jovem cujo cabelo não era desmedidamente

longo, mas sim abundante e cacheado, e que no mais, por sua indumentária,

era bem inglês, tinha acabado de dar as costas para o Torso do Belvedere,

no Vatícano, e estava olhando a magnífica vista das montanhas que se

descortina do arredondado vestíbulo adjacente. E estava tão completa-

mente absorto que nem notou a aproximação de um alemão animado, de

olhos escuros, que chegou junto dele e, colocando-lhe a mão no ombro,

disse com um forte sotaque: "Warnos, rápido! se não ela terá mudado de

pose."

Não se fez a rapidez de rogada, e logo as duas figuras passavam

lepidamente pelo Meléagro em direção à sala onde a Ariadne em re-

pouso, então chamada de Cleópatra, jaz na voluptuosidade marmórea

de sua beleza, envolta num panejamento que a cinge na mais suave

carícia, como que de pétala. Chegaram lá ainda a tempo de ver outra

figura, que, perto do mármore recumbente, apoiava-se num pedestal:

uma arfante menina em flor cujas formas, não ofuscadas pelas de

Ariadne, cobriam-se de um panejamento cinzento à moda quacre; sua

capa comprida, abotoada no pescoço, caía-lhe para trás dos braços, e

uma bonita mão sem luva amparava-lhe a face, tendo empurrado um

pouco para o alto o chapéu branco de castor que, em tomo do cabelo

castanho-escuro simplesmente preso com uma fita, fazia para o seu

rosto uma espécie de halo. Não só ela não olhava a escultura, como

provavelmente nem pensava nela: seus olhos grandes mantinham-se

sonhadoramente cravados numa réstia de sol que batia de través no

piso. Apercebeu-se porém dos dois estranhos, que pararam de repente

como que a fim de contemplar a Cleópatra, e sem olhar para eles vi-

rou-se de imediato para ir juntar-se a uma acompanhante e um guia

que flanavam pela sala a pequena distância.


"Que acha deste pedacinho de antítese?" disse o alemão, procuran-

do no rosto do amigo uma admiração como a sua, mas indo em frente

voluvelmente sem esperar qualquer resposta. "Lá repousa a beleza anti-

ga, que nem na morte é cadavérica, mas apreendida no contentamento

completo de sua perfeição sensual: e aqui se ergue a beleza viva, a que

respira, com a consciência dos séculos cristãos em seu âmago. Ela porém

deveria estar vestida de freira; acho-a bem parecida com o que vocês

chamam de quacre; em meu quadro eu a vestiria de freira. No entanto, é

casada; vi a aliança que tem na mão esquerda, tão linda, e teria até

pensado, não fosse isto, que o lívido Geisdicherl era o pai. Vi-o quando

"Em alemão no original: "clérigo."

212

GEORGE EiAOT

ainda há pouco se despediam, e agora acabo de encontrá-la nessa pose

fantástica. Quem sabe ele é rico, imagine só, e queira que pintem o re-

trato dela? Ah! não adianta mais procurar - lá se vai ela! Vamos segui-

Ia até em casa!"

"Não, não," disse seu companheiro, mostrando algum desagrado.

"Você é estranho, Ladislaw. Parece que ficou abalado. Por acaso sabe

quem é ela?"

"Sei que é casada com meu primo," disse Will Ladislaw, caminhan-

do devagar pela sala com um ar preocupado, enquanto seu amigo ale-

mão ia a seu lado e o observava atentamente.

"O quê, o Geisfficher? Parece mais ser um tio - grau de parentesco

aliás mais útil."

"Pois não é meu tio. Ele é meu primo em segundo grau," disse

Ladislaw, com certa irritação.


"Schon, schon.I Vamos, não fique zangado. Não se aborreça comigo

por achar que a Senhora Prima-em-Segundo é a mais jovem e perfeita

Madona que eu já vi!"

"Zangado? Absurdo! Eu antes só a tinha visto uma vez, por alguns

minutos, quando meu primo a apresentou a mim, pouco antes de eu sair

da Inglaterra. Eles ainda não estavam casados. Nem eu sabia que acaba-

riam vindo a Roma."

"Mas agora há de estar com eles - há de descobrir o endereço onde

estão -já que sabe o nome. Que tal se formos ao correio? E você pode-

ria falar sobre o retrato."

"Não me amole, Naumann! Não sei o que eu vou fazer. Não sou tão

atrevido como você."

"Bah! isto porque é um diletante, um amador. Se você fosse tim

artista, pensaria na Senhora Prima-em-Segundo como uma forma an ti ga

animada pelo sentimento cristão - uma espécie de Antígona cristã - a

força sensual controlada pela paixão espiritual."

"Sim, e que a razão central da existência dela era ser pintada por

você - a divindade passando a um completamento mais alto e por pou-

co não se exaurindo no ato de cobrir o seu pedaço de tela. Sou amador,

se você quiser: eu não penso que todo o universo se mova em direção à

obscura significação dos seus quadros."

"Mas ora se não, meu caro! - e na medida em que se move por

intermédio de mim, Adolf Naumann: que agüenta firme," disse o pintor

de bom gênio, pondo a mão no ombro de Ladislaw e nem um potico

Tru alemão no original: "Está bem, está bem."

MIDDLEMARCH

213
incomodado com a inexplicável nota de mau humor em seu tom. "Veja

bem! Minha existência pressupõe a existência de todo o universo - não

é? e minha função é pintar - e eu como pintor tenho uma concepção,

que é de todo genialisch, 1 de sua tia-avó ou de sua tataravó como tema de

uma pintura; por conseguinte, o universo se move em direção a tal pin-

tura por meio desse determinado gancho ou garra que cresceu em forma

de mim - não é verdade?"

"Mas e se outra garra, esta em forma de mim, também mover-se em

sentido contrário? - o caso então é um pouco menos simples."

"Nada disto: o resultado da luta é a mesma coisa - na pintura ou

fora dela - logicamente." Will não podia resistir a este temperamento

imperturbável, e a nuvem que lhe toldava o rosto se dissipou num riso

ensolarado.

"Vamos lá, amigo - será que você me ajuda?" disse Naumann, num

tom esperançoso.

"Não; é um absurdo, Naumann! As damas inglesas não se põem

como modelos a serviço de todos. E é muito o que com a sua pintura

você quer exprimir. Faria apenas um retrato, que poderia sair melhor ou

pior, com um fundo que por diferentes razões agradaria ou não aos en-

tendidos. E um retrato de mulher, o que é? Sua pintura e as Artes Plás-

ticas -2 em suma, pobre coisa elas são! Perturbam e obscurecem as con-

cepções, ao invés de elevá-las. Mais digna como meio é a linguagem."

", para quem não sabe pintar," disse Naumann. "Nisto você tem

toda a razão. Eu nunca lhe recomendei que pintasse, meu amigo."

O amável artista desprendeu seu veneno, mas Ladislaw não quis

mostrar que havia sentido a ferroada. Continuou como se não tivesse

escutado:

"A linguagem dá uma imagem mais completa, tanto melhor quanto

mais vaga. Afinal, a visão verdadeira está por dentro; e a pintura o que

faz é olhar-nos com uma imperfeição insistente. Sinto-o de um modo

todo especial com as representações de mulheres. Como se uma mulher


fosse apenas simples planos de cor! E o movimento e o tom que a gente

deve esperar? Até na respiração delas há uma diferença: as mulheres

mudam de momento a momento. - Esta mesma que você viu ainda há

pouco, por exemplo: como haveria de pintar-lhe a voz, hem? No entan-

to a voz dela é mais divina, muito mais, que tudo o que você pôde ver."

"Entendo, entendo. Você está é com ciúmes. Não há quem possa

"Em alemão no original: "genial, origina]."

"Em alemão no original: Plastik,

214

GEORGE ELIOT

presumir-se capaz de pintar o seu ideal.  sério, amigo! Sua tia-avó! "Der

Neffe als OnkeV num sentido trágico - ungelimerP" 1

"Nós vamos acabar brigando, Naumann, se você chamar esta senho-

ra de minha tia outra vez."

"Como devo então chamá-la?"

"Mrs. Casaubon."

"Está bem. Pois suponhamos que eu venha a conhecê-la, apesar de

você, e descubra que ela adoraria ser pintada?"

"Sim, suponhamosV" disse Ladislaw, num subtom desdenhoso, re-

solvido a encerrar o assunto. Tinha consciência de se deixar irritar por

causas de uma insignificância ridícula, que em grande parte eram de sua

criação. Por que fazia ele tanta confusão acerca de Mrs. Casaubon? Sen-

tia-se entretanto como se algo lhe tivesse acontecido em relação a ela.

Há personagens assim, constantemente criando para si tramas e encon-

tros em dramas que ninguém está preparado para representar com eles.

Suas susceptibilidades hão de se chocar com objetos que se mantêm

inocentemente tranqüilos.
"Em alemão no original: "O Sobrinho como Tio... monstruoso."

"1

CAPÍTULO XX

A child forsaken, waking suddenly,

Whose gaze afeard on all things round doth rove,

And seeth orily that ít carinot see

The meeting eyes of love.

Criança largada, que brusco desperta,

Pelas coisas que a cercam corre o olhar alarmado,

E vê que apenas não consegue ver

Olhos de amor ao lado.

DUAS HORAS MAIS tarde, Dorothea estava sentada na elegante sala íntí-

ma ou boudoir de um belo apartamento na Via Sistina.

Lamento acrescentar que se dava a desgostosos soluços, nesse aban-

dono para o alívio de um coração oprimido que uma mulher habitual-

mente controlada por orgulho de si e consideração com os outros há de

se permitir às vezes quando se sente seguramente sozinha. E era certo

que Mr. Casaubon ainda ficaria algum tempo fora, no Vaticano.

Entretanto Dorothea não tinha alguma dor definida, de nítida con-

formação, que ao menos pudesse revelar a si mesma; e em meio ao con-

fuso estado de seu pensamento e paixão, o ato mental que relutava em

passar à claridade era um grito de auto-acusação de que a culpa por

aquele desolado sentimento provinha da própria pobreza de seu espíri-

to. Casara-se com o homem de sua escolha, e com a vantagem, sobre a

maioria das moças, de haver contemplado o casamento, principalmente,


como o começo de novas obrigações: desde os primeiros dias, pensara

que Mr. Casaubon, tendo a mente tão acima da sua, muitas vezes teria

de ser solicitado por estudos que ela não poderia partilhar totalmente;

além disto, após a breve e acanhada experiência de sua meninice ela

216

GEORGE ELIOT

estava em face de Roma, a cidade da história visível, onde o passado de

todo um hemisfério parece mover-se em cortejo fúnebre com estranhas

imagens e troféus ancestrais vindos de longe.

Mas este fragmentarismo estupendo acentuava a estranheza de so-

nho da sua vida de recém-casada. Dorothea já estava em Roma há cinco

semanas e, nas manhãs amenas quando outono e inverno pareciam ir de

mãos dadas como um casal de velhos felizes, um dos quais se quedaria

para sobreviver atualmente no frio da solidão, ela a princípio percorrera

a cidade com Mr. Casaubon, fazendo-o mais ultimamente, contudo, com

Tantripp e seu tarimbado guia. Tinha sido levada aos melhores museus,

conduzida para apreciar as mais belas vistas, para ver as grandes ruínas

e as igrejas mais gloriosas, e na maioria das vezes terminava preferindo

sair para uma volta na Campagna, onde podia se sentir sozinha com a

terra e o céu, longe da opressiva mascarada dos tempos na qual sua

própria vida parecia tomar-se uma comédia também, com enigmáticos

costumes.

Para aqueles que contemplaram Roma com a força vivificante de um

conhecimento que insufla alma às formas históricas, e retraça as transi-

ções suprimidas que unem todos os contrastes, Roma ainda pode ser o

centro espiritual e a intérprete do mundo. Mas deixemo-los que conce-

bam mais um contraste histórico: as gigantescas e acidentadas revela-

ções desta cidade Imperial e Papal lançadas abruptamente sobre as no-


ções de uma moça criada no puritanismo inglês e suíço, nutrida de medío-

cres histórias protestantes e uma arte que em geral se resumia ao artesa-

nato de adornos; moça cuja natureza ardente transformava todo seu

pequeno quinhão de conhecimento em princípios, pelo molde dos quais

vazava suas ações, e cujas emoções muito intensas davam às coisas mais

abstratas uma qualidade de prazer ou de dor; moça que ultimamente se

transformara em esposa e que, por sua aceitação entusiasmada que um

dever que não conhecia, via-se mergulhada agora numa preocupação

tumultuosa com sua sorte, O peso da ininteligível Roma bem que podia

repousar com leveza sobre essas ninfas vivazes que a tomavam por um

fundo para os brilhantes piqueniques da sociedade anglo-estrangeira;

mas Dorothea não tinha tal defesa contra impressões profundas. Ruínas

e basílicas, palácios e colossos, postos no meio de um presente sórdido,

onde tudo o que existia de vivente e sangüíneo parecia estar imerso na

degradação de uma superstição divorciada da reverência; a vida titânica,

indistinta no entanto ávida, a espreitar e debater-se pelas paredes e te-

tos; as longas vistas de formas brancas em cujos olhos de mármore dir-

se-la retida a luz monótona de um mundo alheio a quem somos: todos

MIDDLEMARCH

217

esses vastos destroços dos ideais mais ambiciosos, sensuais e espiri-

tuais, confusamente misturados com as marcas do esquecimento e da

decadência em processo, atingiram-na a princípio como um choque elé-

trico, precipitando-se a seguir sobre ela com essa dor intrinseca a uma

indigestão de idéias confusas que impede o fluxo da emoção. Quer lívi-

das, quer fulgurantes, tais formas se apossaram de seus jovens sentidos


e fixavam-se em sua memória mesmo quando ela não pensava nelas,

preparando estranhas associações que permaneceriam pelos anos ulterio-

res. Nossos estados de espírito tendem a trazer-nos imagens que vão

passando em sucessão como as figuras de lanterna-mágica vistas num

cochilo; e em certos estados de sombrio desalento Dorothea continuou

por toda a vida a ver a vastidão de São Pedro, o imenso baldaquim de

bronze, a intenção exacerbada nas atitudes e vestes dos profetas e evange-

listas nos mosaicos acima e os panos vermelhos que estavam sendo pen-

durados para o Natal a desdobrarem-se por toda parte como uma doen-

ça da retina.

Não que este pasmo no íntimo de Dorothea fosse coisa das mais

excepeionais: muitas almas em sua jovem nudez são atiradas em meio a

incongruências e aí deixadas para "tomar pé," enquanto os mais velhos

vão-se ocupar dos seus negócios. Tampouco posso eu supor que, quan-

do Mrs. Casaubon é descoberta num ataque de choro seis semanas após

seu casamento, a situação haja de ser considerada trágica. Certo

desencorajamento, com o coração a retrair-se ante o futuro novo e real

que substitui o imaginário, não é incomum, e não esperamos que as

pessoas se comovam a fundo com o que não é incomum. Esse elemento

de tragédia que reside na própria idéia de freqüência ainda não se

entreteceu à emoção crua da humanidade; e talvez nosso arcabouço mal

o conseguisse suster. Se tivéssemos uma visão e uma percepção acuradas

de toda a vida humana ordinária, seria como ouvir o crescimento da

grama, ou as batidas de coração do esquilo, e morreríamos daquele fragor

que há no outro lado do silêncio. Tal como é, o mais rápido de nós vai a

chapinhar como pode, atolado na ignorância.

Contudo, Dorothea estava chorando e, se fosse instada a declarar a

causa, quando muito poderia fazê-lo com palavras tão vagas como as

que eu já usei: ser impelida a entrar em pormenores seria como tentar

empreender uma história que narrasse luzes e sombras; pois este futuro

novo e real que estava substituindo o imaginário ia buscar substância


nas infindas minúcias pelas quais suas opiniões sobre Mr. Casaubon e

sua relação conjugal, agora que era a esposa dele, mudavam gradual-

mente com os movimentos furtivos de um ponteiro de relógio, afastan-

218

GEORGE ELIOT

do-se do que haviam sido no seu sonho de moça. Ainda era muito

cedo para ela reconhecer plenamente ou pelo menos admitir a mudan-

ça, e ainda mais para que tivesse recomposto aquele devotamento, uma

parte tão necessária de sua vida mental que era quase certo que ela

acabaria por recuperá-la em dado momento. A rebelião permanente, a

desordem de uma vida sem uma resolução de amor reverente, não lhe

era possível; mas ela agora estava num intervalo em que a própria for-

ça de sua natureza aumentava sua confusão. Deste modo, os primeiros

meses de casamento são com freqüência tempos de tumulto crítico -

seja num lago raso ou em águas profundas - que depois se acomodam

no regozijo da paz.

Mas não era Mr. Casaubon tão erudito como antes? Tinham suas

formas de expressão se alterado, ou seus sentimentos se tornado menos

louváveis? Ah, os caprichos das mulheres! sua cronologia o traía, ou sua

capacidade de expor não só uma teoria, mas também os nomes dos que

a defendem; ou sua rapidez para fornecer a pedido os principais tópicos

de qualquer assunto? E não era Roma o lugar mais indicado do mundo

para dar a tanto talento expansão plena? Ademais, o entusiasmo de

Dorothea não havia residido particularmente na perspectiva de aliviar o

peso e quiçá a tristeza que as grandes tarefas jogam sobre os ombros de

quem tem de realizá-las? - E ainda estava mais claro do que antes que

este peso oprimia Mr. Casaubon.

Todas estas perguntas machucam muito; mas, seja o que for que
permanece o mesmo, a luz mudou, e não se pode encontrar ao meio-dia

o nácar do amanhecer.  inalterável o fato de que um pobre mortal com

cuja natureza você só toma contacto durante as breves entradas e saídas

de umas poucas semanas imaginativas chamadas de namoro possa, quan-

do visto na continuidade do companheirismo conjugal, revelar-se pior

ou melhor do que havia você preconcebido, mas certamente não há de

parecer mais o mesmo. E seria espantoso constatar em quanto tempo a

mudança é notada, se não tivéssemos mudanças análogas às quais

compará-la. Partilhar um recinto com um brilhante companheiro de mesa,

ou ver seu político favorito no Ministério, pode ocasionar mudanças na

mesma rapidez: nestes casos também começamos sabendo pouco e acre-

ditando muito, e às vezes terminamos invertendo as quantidades.

Contudo, tais comparações podem causar confusão, pois não havia

homem mais incapaz de ostentosos fingimentos do que Mr. Casaubon:

personagem tão autêntico quanto qualquer ruminante, ele nunca se

empenhara ativamente por criar ilusões a seu respeito. Como foi que

nas semanas de após o casamento Dorothea não notou nitidamente,

MIDDLEMARCH

219

porém sentiu numa depressão sufocante, que as amplas vistas e os no-

vos e vastos ventos que ela sonhara encontrar na mente do marido ha-

viam sido substituídos por ante-salas e corredores sinuosos que pare-

ciam levar a parte alguma? Suponho que porque no namoro tudo é visto

como preliminar e provisório, e a menor amostra de virtude ou prenda é

tomada como garantia de deliciosas reservas que o espaçoso lazer do

casamento há de revelar. Porém, uma vez cruzada a soleira do casamen-

to, a expectativa se concentra no presente. Tendo embarcado em sua

viagem marital, é impossível você não perceber que nunca consegue abrir
caminho e que o mar nem mesmo está à vista - que na realidade você

está explorando uma bacia fechada.

Em suas conversas de antes do casamento, muitas vezes Mr.

Casaubon se demorara nalguma explicação ou pormenor questionável

cujo sentido Dorothea não alcançava; mas esta coerência imperfeita pa-

recia devida à intermitência das suas relações e, amparada pela fé no seu

futuro em comum, ela havia escutado com paciência férvida uma recita-

ção dos possíveis argumentos a serem levantados contra a visão inteira-

mente nova que Mr. Casaubon tinha do deus filisteu Dagon e outros

deuses-peixes, pensando que doravante ela deveria ver este tema, que o

apaixonava tanto, quase a partir do elevado nível onde o mesmo se tor-

nara sem dúvida tão importante para ele. Por outo lado, o tom de impo-

sição e rejeição com que ele tratava o que eram para ela os pensamentos

mais excitantes podia ser facilmente atribuído àquele clima de pressa e

preocupação de que ela também participara durante o tempo de noiva-

do. Mas agora, desde que haviam chegado a Roma, com as profundezas

de sua emoção alçadas a uma atividade tumultuosa, e com a vida feita

um novo problema por novos elementos, cada vez mais ela passava a

perceber, não sem terror, que sua mente dava contínuas guinadas para

acessos calados de repulsa e raiva, quando não se entregava a uma lassi-

dão sem consolo. Até que ponto o judicioso Hooker ou qualquer outro

herói da erudição seria o mesmo no tempo de vida de Mr. Casaubon, ela

não tinha como saber, e ele portanto não podia ter a vantagem da com-

paração; mas o modo de seu marido comentar os objetos estranhamente

impressivos que os rodeavam havia começado a afetá-la com uma espé-

cie de arrepio mental: quiçá tinha ele a melhor das intenções de desem-

penhar condignamente seu papel, mas não mais que desempenhar. O

que era novo para ela, era, para ele, cediço; e aquela capacidade de pen-

sar e sentir, tal como outrora estimulada nele pela vida geral da humani-

dade, estava reduzida de há muito a uma espécie de preparado seco, um

inerme embalsamamento do saber.


220

GEORGF FLIOT

Quando ele dizia: "Está interessada, Dorothea? Vamos ficar mais

um pouco? Se você quiser, eu fico," - a ela parecia que partir ou ficar

era igualmente triste. Oti: "Quer ir até a Farnesina, Dorothea?  lá que

estão os célebres afrescos desenhados ou pintados por Rafael, que no

entender da maioria são dignos de uma visita."

"Mas pessoalmente você tem interesse?" perguntava como sempre

Dorothea.

"São tidos em alta estima, creio eu. Alguns deles representam a fá-

bula de Cupido e Psiquê, que provavelmente é a invenção romântica de

um período literário e não pode, penso, ser reconhecida como um pro-

duto mítico autêntico. Mas, se você gosta de pinturas murais, será fácil

nós darmos uma chegada lá; e haverá de então ter visto, creio eu, as

principais obras de Rafael, qualquer uma das quais seria uma pena dei-

xar de visitar em Roma. Ele é o pintor que foi tido por combinar o mais

completo encanto da forma com a sublimidade de expressão. Tal é ao

menos, pelo que infiro, a opinião dos conoscentU"

Este tipo de resposta em comedido tom oficial, como o de um pastor

lendo de acordo com os ritos, não contribuía para justificar as glórias da

Cidade Eterna, nem para dar a Dorothea a esperança de que, se acaso

soubesse mais sobre elas, o mundo se lhe tomaria repleto de alegria e

luz. Dificilmente pode haver contacto mais deprimente para uma criatu-

ra jovem e ardorosa do que o mantido com um espírito no qual os anos

preenchidos de conhecimento parecem ter desembocado numa ausência

impérvia de simpatia ou de interesse.

Sobre outros assuntos Mr. Casaubon mostrava graus de tenacidade

e envolvirriento como os que normalmente são tomados por efeitos do


entusiasmo, e Dorothea se abria à ânsia de seguir nesta direção espontâ-

nea de seus pensamentos, ao invés de ser levada a sentir que o afastava

dela. Mas gradualmente ela cessava de esperar com a confiança deleito-

sa de antes que ainda viesse a ver aonde o seguia uma abertura ampla

qualquer. O pobre do Mr. Casaubon estava por, sua vez perdido entre

minúsculos compartimentos e tortuosas escadas, e numa obscura agita-

ção sobre os Cabeiri, ou num desmascaramento dos paralelos mal con-

siderados de outros mitologistas, perdendo facilmente de vista todos os

objetivos que o haviam impulsionado ao labor. Com sua vela plantada

no nariz, já se esquecera da ausência de janelas e, em amargas notas

manuscritas quanto às noções de outros homens sobre as divindades

solares, tomara-se indiferente à luz do sol.

"Deuses da fertilidade, na Sarriotrácia.

MIMUMARCH

221

Estas características, fixas e imutáveis como o osso em Mr. Casaubon,

poderiam ter passado mais tempo despercebidas por Dorothea, houves -

se ela sido estimulada a dar vazão aos seus sentimentos de menina e

mulher - se ele lhe tivesse tornado as mãos entre as dele, para ouvir

com o prazer da ternura e da compreensão todas as pequenas histórias

de que sua experiência era feita, e a ela dado em retribuição uma intimi-

dade da mesma espécie, para que a vida anterior de cada um pudesse ser

incluída em seu mútuo conhecimento e afeição - ou se ela pudesse ter

nutrido sua própria afeição com essas carícias pueris para que todas as

mulheres carinhosas têm queda, desde que começam a cobrir de beijinhos

o quengo duro de sua descabelada boneca, criando-lhe com a riqueza de

seu amor, dentro do corpo de madeira, uma alma feliz. Para isto, Dorothea
tinha sua queda. Com toda aquela ânsia de saber o que estava a grande

distância e de ser benévola ao máximo, tinha porém suficiente ardor

para o que estava perto, para beijar a manga do casaco de Mr. Casaubon,

por exemplo, ou acariciar-lhe o cordão do sapato, caso ele tivesse dado

qualquer outro sinal de aceitação além de a declarar, com sua retidão

infalível, de natureza afetuosa ao extremo e verdadeiramente feminina,

indicando ao mesmo tempo, ao polidamente alcançar uma cadeira para

ela, que considerava tais manifestações algo primitivas e assustadoras.

Tendo feito sua toalete clerical com o devido cuidado pela manhã, ele só

estava preparado para aquelas amenidades da vida que correspondiam à

gravata apertada e engomada da época e a uma mente sobrecarregada

de matérias não publicadas.

E, por uma triste contradição, as idéias e resoluções de Dorothea

assemelhavam-se a um bloco de gelo que se fundia e perdia na torrente

quente da qual elas não tinham sido senão uma outra forma. Humilha-

va -a descobrir-se simples vítima dos sentimentos, como se nada ela pu-

desse saber a não ser por este meio: todo seu vigor se esvaía na agitação,

nas lutas, no abatimento que a acometiam em ondas, e então de novo

em visões da mais completa renúncia, transformando em dever todas as

duras condições. Pobre Dorothea! sem dúvida ela era um incômodo -

principalmente para si mesma; mas nesta manhã pela primeira vez ela

estava sendo um incômodo para Mr. Casaubon.

Havia começado, enquanto os dois tomavam café, pela determina-

ção de se livrar do que ela considerava seu egoísmo, e foi um semblante

cheio de alegre atenção que voltou para o marido quando ele disse: "Minha

querida Dorothea, devemos pensar agora em tudo o que ficou por fazer,

como preliminar à nossa partida. De bom grado eu teria regressado mais

cedo para que pudéssemos estar em Lowick para o Natal; mas minhas

222
GEORGE ELIOT

pesquisas prolongaram-se além do prazo previsto. Acredito contudo que

o tempo aqui passado não lhe foi desagradável. Entre as glórias da Eu-

ropa, Roma foi sempre tida como uma das mais impressionantes e, sob

certos aspectos, edificantes. Lembro-me bem que considerei uma gran-

de ocasião de minha vida, quando a visitei pela primeira vez; após a

queda de Napoleão, fato que abriu o Continente aos viajantes. Creio

com efeito que ela é uma dentre várias cidades às quais tem sido aplica-

da uma hipérbole exagerada -"Ver Roma e depois morrer:" mas em seu

caso eu proporia uma emenda e diria: Ver Roma como recém-casada e

depois viver como uma esposa feliz."

Mr. Casaubon pronunciou este pequeno discurso com a mais consci-

enciosa das intenções, piscando um pouco, abaixando e levantando a

cabeça, e concluindo com um sorriso. Não se lhe afigurara o casamento

um estado de muito enlevo, mas a idéia de poder ser outra coisa que não

um marido irrepreensível, capaz de dar a uma mulher encantadora e

jovem toda a felicidade que ela merecia, nunca lhe ocorrera também.

"Espero que você esteja plenamente satisfeito com nossa estada -

quero dizer, com o resultado obtido no tocante aos seus estudos," dis-

se Dorothea, tentando manter a mente fixa no que mais afetava seu

marido.

"Sim," disse Mr. Casaubon, naquele tom de voz peculiar que toma

a palavra uma meia negação. "Fui levado além do que eu havia antevis-

to, e apresentaram-se-me para anotação vários assuntos que, apesar

de eu não ter necessidade direta deles, não podia deixar de lado. A

tarefa, não obstante a ajuda do meu amanuense, foi algo estafante,

mas felizmente sua companhia salvou-me do que era a cilada da minha

vida solitária, o contínuo prolongamento do pensar além das horas de

estudo e trabalho."

"Que alegria saber que minha presença fez diferença para você," dis-
se Dorothea, com vívida memória das noites em que ela havia suposto

que o espírito de Mr. Casaubon fora fundo demais durante o dia para ser

capaz de voltar à superfície. Temo que houvesse em sua resposta um

certo quê de irritação. "Espero que, quando chegarmos a Lowick, eu

venha a ser mais útil para você, e capaz de participar um pouco mais dos

seus interesses."

"Sem dúvida, minha querida," disse Mr. Casaubon, com uma ligeira

curvatura. "As notas que eu tomei ainda têm de ser peneiradas, e você,

se quiser, pode passá-las a limpo sob minha direção."

"E todas as suas notas," disse Dorothea, cujo coraçao ja se ocupara

tanto deste assunto que no momento ela não tinha senão como botar

MIDDLEMARCH

223

para fora o que lhe ardia no íntimo. "Todas aquelas fileiras de volumes -

você agora não vai fazer com elas o que costumava dizer que ia? - não

vai decidir que partes há de usar, e começar a escrever o livro que tomará

seu vasto conhecimento útil para o mundo? Pois eu hei de escrever o que

você ditar, ou de extrair e copiar o que me mande fazer: não sirvo para

outra coisa." Da maneira mais inexplicável, obscura e feminina, Dorothea

terminou com alguns soluços e os olhos cheios de lágrimas.

Só a excessiva manifestação de sentimento já teria sido para Mr.

Casaubon muito perturbadora, mas havia outras razões para que as pa-

lavras de Dorothea lhe soassem como as mais ferinas e irritantes dentre

as que ela poderia ser compelida a empregar. Estava tão cega para os

problemas dele, de fato, como ele para os dela; ainda não tomara cons-

ciência dos conflitos internos de seu marido, que clamam por nossa com-

paixão. Ainda não escutara com paciência o coração bater-lhe, sentindo

apenas que o seu próprio batia violentamente. Aos ouvidos de Mr.


Casaubon, a voz de Dorothea deu alta e enfática iteração a certas suges-

tões abafadas da consciência que era possivel explicar como mera fanta-

sia, a ilusão de uma susceptibilidade exagerada: sempre que inequivoca-

mente repetidas desde fora, estas sugestões encontram resistência, sen-

do tomadas por cruéis e injustas. Se somos encolerizados até mesmo

pela plena aceitação de nossas confissões humilhantes - quanto mais

por ouvir dos lábios de um observador próximo, em sílabas duras e dis-

tintas, os murmúrios confusos que tentamos rotular de mórbidos e com-

bater com energia, como se fossem eles os primeiros sinais de algum

profundo torpor! E este cruel acusador externo ali estava em forma de

esposa - não, em forma de uma jovem recém-casada que, ao invés de

observar seus copiosos rabiscos e a amplidão de suas resmas com o te-

mor respeitoso e jamais crítico de um canário tendente à elegância de

espírito, parecia apresentar-se como espiã, tudo observando com um

maligno poder de inferência. Aqui, no tocante a este determinado ponto

do círculo, a susceptibilidade de Mr. Casaubon correspondia à de

Dorothea, como igual era sua rapidez para imaginar mais que o fato. A

capacidade de adoração que ela tinha pelo objeto correto já havia sido

observada por ele, antes, com aprovação; e ele agora antevia com súbito

terror que tal capacidade poderia ser substituída pela presunção, esta

adoração pela mais exasperante de todas as críticas - a que vagamente

distingue um grande número de belos objetivos e não tem a menor idéia

de quanto custa alcançá-los.

Pela primeira vez desde que Dorothea o conhecia, o rosto de Mr.

Casaubon foi tingido por um célere rubor de zanga.

224

GEORGE ELIOT

"Meu amor," disse ele, com sua irritação sofreada pelo comedimento,
você pode confiar em mim para saber o tempo e as estações mais ade-

quados às diferentes etapas de uma obra que não é para ser medida

pelas conjecturas singelas de ignorantes espectadores. Para mim teria

sido fácil causar um efeito temporário por meio de uma miragem de

opiniões sem fundamento; mas a provação do explorador escrupuloso é

sempre ser saudado pelo desprezo impaciente dos gárrulos que não ten-

tam senão as realizações mais insignificantes, já que de fato para outras

não estão preparados. E seria bom se todos eles pudessem ser exortados

a estabelecer distinção entre os julgamentos cujo verdadeiro objeto jaz

inteiramente fora de seu alcance e aqueles cujos elementos podem ser

apreendidos por um exame superficial e restrito."

Este discurso foi pronunciado por Mr. Casaubon com uma energia e

presteza que lhe eram bem incomuns. Com efeito, não chegava a ser um

improviso, mas tomara forma num colóquio interior, sendo expelido como

as sementes de um fruto cuja casca de repente é rachada pelo calor.

Dorothea não era somente sua esposa: era uma personificação desse

mundo insípido a circundar o autor que desanima ou é mal apreciado.

Dorothea por sua vez ficou indignada. Não havia ela reprimido tudo

em si mesma, exceto o desejo de participar de alguma forma dos princi-

pais interesses de seu marido?

"Meu julgamento foi muito superficial - tal como eu sou capaz de

fazer," respondeu ela, com um ressentimento imediato que prescindia

de ensaios. "Você me mostrou toda a série de cadernos de notas - sem-

pre me falou deles - sempre disse que ainda faltava digeri-los. Mas eu

nunca lhe ouvi falar da obra a ser publicada. Eis que eram fatos muito

simples, e meu julgamento jamais foi além disso. Eu apenas lhe pedi

que me deixasse ser de alguma utilidade a você."

Dorothea levantou-se para sair da mesa e Mr. Casaubon nada repli-

cou, apanhando uma carta que jazia a seu lado como que para fazer uma

releitura. Ambos estavam chocados com a situação na qual se viam -

que cada um houvesse demonstrado raiva do outro. Se fosse em casa,


com os dois instalados em Lowick na sua vida ordinária entre os vizi-

nhos, o confronto teria sido menos embaraçoso: mas numa viagem de

núpeias, cuja finalidade expressa é isolar duas pessoas com base na su-

posição de que cada uma é para a outra o mundo todo, a impressão de

desacordo é, para não dizer muito, algo que estultifica e confunde. Ter

mudado radicalmente de longitude, e se colocado numa solidão moral

só para ter pequenas explosões, para achar difícil conversar e passar sem

olhar um copo d"água, nem mesmo às mentes mais grosseiras pode pa-

MIDDLEMARCH

225

recer realmente uma consumação adequada. · inexperiente susceptibi-

lidade de Dorothea, pareceu uma catástrofe, mudando todas as perspec-

tivas; e para Mr. Casaubon foi uma nova dor, pois nunca ele havia estado

antes numa viagem de núpeias, nem se encontrado numa união assim

tão íntima que era uma sujeição maior do que pudera imaginar, já que

esta jovem esposa encantadora não só lhe impunha muita consideração

para com ela (o que assiduamente ele demonstrara), mas também se

revelava capaz de o inquietar cruelmente, logo onde ele mais precisava

ser apaziguado. Ao invés de conseguir uma cerca que o protegesse com

meiguice da audiência sombria, fria e sem aplausos de sua vida, não lhe

teria ele apenas dado uma presença mais substancial?

Nenhum dos dois sentia ser possível falar de novo por ora. Alterar

uma combinação prévia e recusar-se a sair teria sido uma demonstração

de raiva persistente a que a consciência de Dorothea se furtou, vendo que

ela mesma já começava a se sentir culpada. Por mais justa que sua índig-

nação pudesse ser, seu ideal não era pedir justiça, mas dar carinho. Assim,

quando chegou à porta a carruagem, ela foi com Mr. Casaubon para o

Vaticario, com ele andou pelas lajotas do caminho das inscrições e, após
despedir-se dele na entrada da Biblioteca, pôs-se a vagar pelo Museu,

totalmente indiferente a tudo o que a rodeava. Não tinha ânimo para

voltar e dar ordens de ser levada alhures. E foi quando Mr. Casaubon se

separava dela que Naumann a viu pela primeira vez, e ele havia entrado

na longa galeria de esculturas ao mesmo tempo que ela; mas Naumann

teve então de esperar por Ladislaw, com quem iria apostar uma garrafa de

champanhe a propósito de uma enigmática figura de aspecto medieval

que lá estava. Examinada esta figura, andaram eles a encerrar sua disputa

e se separaram depois, ficando Ladislaw para trás enquanto Naumann ia

para o Salão das Estátuas, onde ele viu Dorothea outra vez, e viu-a na-

quela abstração meditativa que lhe tomava extraordinária a pose. Ela na

realidade não via o raio de sol no piso mais do que via as estátuas: via,

olhando para dentro, a luz dos anos que estavam por vir em sua própria

casa e pelos campos e olmos e estradas margeadas por sebes da Inglater-

ra; e sentia que o modo de preenchê-los com um devotamento jubiloso já

não era tão claro para ela quanto havia sido. Na mente de Dorothea havia

contudo uma corrente na qual mais cedo ou mais tarde tendiam a fluir

todos os sentimentos e idéias - um avanço abrangente de toda a consci-

ência para a mais completa verdade, o bem menos parcial. Seguramente

havia algo melhor do que raiva e abatimento.

CAPITULO

"Hire facouríde eke full womanly and plain,

No contrefeted termes had she

To semen wise."

- CHAUCER.

("Sendo sua facúridia feminil e singela,

Termos afetados não tinha ela


Para dar impressão de sábia.")

- CHAUCER.1

AsSIM FOI QUE Dorothea se entregou aos soluços, tão logo estar segura-

mente sozinha. Mas uma batida na porta tirou-a do torpor neste instan-

te, fazendo-a enxugar os olhos às pressas antes de dizer: "Entre." Tantripp

trouxe-lhe um cartão e anunciou que havia um senhor à espera na entra-

da. O guia lhe informara que só Mrs. Casaubon estava em casa, mas ele

disse que era parente de Mr. Casaubon: iria ela recebê-lo?

"Sim," disse Dorothea, sem vacilar. "Mande-o entrar no salão." Suas

maiores impressões do jovem Ladislaw eram ter tomado ciência, quan-

do o viu em Lowick, da generosidade de Mr. Casaubon para com ele, e

ter-se interessado pela hesitação do rapaz quanto à sua própria carreira.

Ela era aberta a tudo que lhe dava uma oportunidade de simpatia ativa,

e no momento esta visita parecia ter vindo para arrancá-la daquela ab-

sorção em seu descontentamento - para lembrá-la da bondade do ma-

rido e fazê-la sentir que ela agora tinha o direito de ser sua companheira

em todas as ações caridosas. Esperou um minuto ou dois mas, quando

The Physician"s Tale, linhas 50-52.

MIDDLEMARCH

227

passou para a outra sala, os sinais de que estivera chorando eram sufici-

entes ainda para tomar-lhe o rosto franco mais juvenil e atraente que de

hábito. E foi com um desses raros sorrisos de boa vontade a que a vaida-

de não se mistura que ela encontrou Ladislaw, e estendeu-lhe a mão. Ele

era vários anos mais velho, mas pareceu neste instante bem mais moço
que ela, pois sua pele transparente avermelhou-se de súbito, e ele falou

com uma timidez que não lembrava a indiferença desenvolta com que se

dirigira ao seu companheiro, enquanto Dorothea ia sendo acalmada por

um desejo atônito de o colocar à vontade.

"Até hoje de manhã, quando a vi com Mr. Casaubon no Museu do

Vaticano, eu não sabia que estivessem em Roma," disse ele. "Logo a

reconheci - mas - quero dizer, deduzi que o endereço de Mr. Casaubon

poderia ser obtido na Poste Restante, e eu estava ansioso para render-

lhes homenagem a ambos o mais cedo possível."

"Sente-se, por favor. Ele não está, mas estou certa de que gostará de

saber notícias suas," disse Dorothea, sentando-se irrefletidamente entre

a lareira e a luz de uma alta janela e apontando uma cadeira oposta, com

a quietude de uma amável dona de casa. Os sinais de mágoa adolescente

em seu rosto ainda causavam espanto. "Mr. Casaubon anda cheio de

compromissos; mas pode deixar seu endereço - não é? - e ele há de

lhe escrever."

"Muita bondade de sua parte," disse Ladislaw, começando a perder

seu acanhamento pelo interesse com o qual observava os sinais de choro

que haviam alterado o rosto dela. "Meu endereço está no meu cartão.

Mas, caso me permita, eu voltarei aqui amanhã numa hora em que haja

possibilidade de Mr. Casaubon estar em casa."

"Todos os dias ele vai ler na Biblioteca do Vaticano e, a não ser que

marque com ele mesmo, vai ser dificil que consiga vê-lo. Sobretudo ago-

ra, Nossa partida de Roma é para breve, e ele está muito ocupado. Ge-

ralmente fica fora do café da manhã até o jantar. Mas estou certa de que

teria prazer em convidá-lo para jantar conosco. ""

Ladislaw quedou-se mudo por alguns momentos. Nunca gosta-

ra muito de Mr. Casaubon e, não fosse o que a gratidão lhe impunha,

ter-se-la rido dele como um Morcego da erudição. Mas a idéia desse

pedante árido, desse elaborador de pequenas explicações quase tão im-

portantes quanto o estoque excedente de antigüidades falsas no quarti-


nho dos fundos de um vendedor, primeiro tendo arranjado uma criatura

assim tão adorável para se casar, e depois indo passar longe dela a sua

lua-de-mel, pulando atrás de suas bolorentas futilidades (Will era dado

à hipérbole) - este quadro súbito fê-lo estremecer numa espécie de

228

GEORGE ELIOT

desgosto cômico: ele estava dividido entre o impulso de dar uma garga-

lhada e o impulso igualmente inoportuno de explodir em invectivas des-

denhosas. Sentiu por um instante que aquela luta ia movimentando seus

traços numa contorção muito estranha, mas com um bom esforço pôde

resolvê-la em nada mais ofensivo que um sorriso alegre.

Dorothea alarmou-se; mas o sorriso era irresistível, e refletiu-se no

seu rosto também. O sorriso de Will Ladislaw era um prazer, a não ser

que de antemão houvesse zanga com ele: era um jorro de luz interior

que iluminava a pele transparente, bem como os olhos, e brincalhão se

espargia por cada linha e curva, como se algum Ariel lhes infundisse

novo encanto e banisse para sempre do rosto todos os vestígios de amuo.

O reflexo de um tal sorriso não poderia senão conter também sua pe-

quena alegria, mesmo sob pálpebras tristes, e ainda úmidas, quando

Dorothea indagou: "Está achando alguma coisa engraçada?"

"Sim," disse Will, rápido em encontrar saídas. "Estou pensando na

cara que eu devo ter feito na primeira vez em que a vi, quando arrasou

com suas críticas um dos meus pobres esboços."

"Minhas críticas?" disse Dorothea, espantando-se ainda mais. "Não

pode ser. Sempre me senti muito ignorante em pintura."

"Eu supunha que entendesse muito, pois soube justamente dizer o

que tinha mais cabimento. Disse - ouso crer que não se lembre mais do

que eu - que a relação do meu esboço com a natureza lhe escapava de


todo. Pelo menos, foi o que deu a entender." Will podia agora gargalhar

ou sorrir.

"Por ignorância minha, realmente," disse Dorothea, admirando o

bom humor de Will. "Devo ter falado isto só porque nunca pude ver

beleza nos quadros dos quais meu tio me dizia que todos achavam mui-

to bons. E continuei mais ou menos na mesma ignorância em Roma. Há

relativamente poucas pinturas que eu realmente aprecie. A princípio

quando eu entro numa sala onde as paredes estão cobertas de afrescos,

ou de quadros raros, sinto uma espécie de temor respeitoso - como o

de uma criança presente a grandes cerimônias onde há trajes de gala e

paradas; sinto-me em presença de uma vida superior à minha. Mas, quan-

do começo a examinar os quadros um a um, a vida que havia neles se

esvai, ou então é algo violento e estranho que me acontece. Eu é que

devo ser obtusa. Estou vendo muita coisa de uma vez só, e não enten-

dendo a metade. Isto sempre faz com que a pessoa se sinta ignorante. 

horrível ouvir dizer que uma coisa é muito boa e simplesmente não po-

der sentir que ela é boa - mais ou menos como ser cego, quando os

outros falam do céu."

MIDDLEMARCH

229

"Oh, há muito o que aprender no tocante à sensibilidade para a arte,"

disse Will. (Era impossível pôr em dúvida agora o sentido direto da

confissão de Dorothea.) "A arte é uma velha linguagem, com muitos

estilos artificiais e afetados, e às vezes o maior prazer que se tem em

conhecê-los é a simples noção deste conhecimento. Aprecio aqui imen-

samente todos os tipos de arte; mas suponho que, se eu pudesse decom-

por minha apreciação, veria que ela é constituída por muitos e diferentes

fios.  preciso aventurar-se um pouco a fazer seus próprios borrões, para


se ter idéia do processo."

"Talvez então queira ser pintor?"disse Dorothea, com uma nova dire-

ção em seu interesse. "Talvez queira fazer da pintura sua profissão? Mr.

Casaubon há de gostar de saber que já tem uma profissão escolhida."

"Não, oh! não," disse Will, com alguma frieza. "Contra isto já tenho

uma decisão tomada.  uma vida muito estanque. Tenho estado

freqüentemente com artistas alemães aqui: viajei de Frankfurt com um

deles. Alguns são ótimos sujeitos, às vezes até brilhantes -mas não me

agradaria partilhar de seu modo de olhar o mundo unicamente do ponto

de vista de um estúdio."

"Sou capaz de entender isto," disse Dorothea, cordialmente. "E em

Roma parece haver bem mais coisas mais necessárias ao mundo do que

quadros. Mas, se tem talento para a pintura, não seria correto tomar isto

como indicação? Talvez possa fazer coisas melhores do que estas - ou

diferentes, para que assim não haja, num mesmo lugar, tantas pinturas

quase iguais."

Não havia como enganar-se com tal simplicidade, que corisquistou

Will para a franqueza. "Um homem tem de ter um talento muito raro

para fazer mudanças desse tipo. Temo que o meu não me conduza

sequer à altura de fazer bem o que já foi feito, pelo menos não tão bem

para que valha a pena fazê-lo. E eu nunca teria êxito em nada à força

de escravidão. Para mim ou as coisas vêm fáceis, ou nunca as tenho."

"Ouvi Mr. Casaubon dizer que ele lamenta sua falta de paciência,"

disse Dorothea, gentilmente. Ela estava um pouco chocada com esta

maneira de encarar a vida como um feriado.

"Sim, conheço a opinião de Mr. Casaubon. Ele e eu divergimos."

O leve traço de desdém em sua apressada resposta ofendeu Dorothea,

que foi ainda mais susceptível no tocante a Mr. Casaubon por causa de

seu problema pela manhã.

"Certamente que divergem," disse Dorothea, não sem orgulho. "Não

pensei em compará-los: a força da perseverança devotada ao trabalho


por Mr. Casaubon não é comum."

230

GEORGE ELIOT

notou que ela estava ofendida, mas isto apenas deu um impul-

so adicional à nova irritação de sua antipatia latente por Mr. Casaubon.

Era absolutamente intolerável que Dorothea estivesse idolatrando um

marido desses: tal fraqueza numa mulher nunca agrada a homem ne-

nhum, a não ser o marido em questão. Os mortais, facilmente tentados

a tirar a vida da propalada glória de seus vizinhos, pensam que um as-

sassínio assim não é crime.

"Não, de fato," respondeu ele prontamente. "E por conseguinte é

uma pena que tudo acabe sendo posto de lado, como é freqüente com a

erudição inglesa, por falta de conhecimento do que se faz no resto do

mundo. Se Mr. Casaubon lesse alemão, ele se pouparia muito trabalho."

"Não lhe entendo," disse Dorothea, sobressaltada e ansiosa.

"Quero apenas dizer," disse , sem fazer cerimônia, "que os ale-

mães tomaram a dianteira nas pesquisas históricas, e riem dos resulta-

dos obtidos em perambulações pelos bosques com uma bússola, en-

quanto eles constroem boas estradas. Quando estive com Mr. Casaubon,

vi que ele nem queria saber desta orientação: foi quase contra a própria

vontade que leu um tratado escrito por um alemão em latim. Lamentei

muito."

Will só tinha pensado em dar uma boa alfinetada para arrasar com a

apregoada dedicação ao trabalho, e foi incapaz de imaginar como

Dorothea se sentiria ofendida. O jovem Mr. Ladislaw também não era

nada versado nos autores alemães; mas muito pouca realização se re-

quer para lamentar-se o pouco que foi feito por outrem.

A pobre Dorothea sentiu uma grande dor, ao pensar que o trabalho


de toda a vida de seu marido poderia ser inútil, e nem teve mais energia

para indagar-se se este jovem parente que tanto lhe devia não teria feito

melhor se reprimisse a observação. Nem mesmo falou nada, apenas fi-

cou sentada olhando para as próprias mãos, absorta no lastimoso pen-

samento.

Will, contudo, tendo dado a alfinetada arrasadora, envergonhou-se

um pouco, imaginando pelo silêncio de Dorothea que a havia ofendido

ainda mais; e tendo também certa consciência de que estava a arrancar

as plumas de um benfeitor.

"Lamentei-o sobretudo," retomou ele, indo pelo caminho habitual

da detração ao elogio insincero, "devido à minha gratidão e ao respeito

pelo meu primo. Isto não significaria tanto num homem cujo talento e

caráter fossem menos notáveis."

Dorothea ergueu os olhos, mais brilhantes que de costume com a

excitação de seus sentimentos, e no recitativo mais triste disse:

"Como

MIDDLEMARCH

231

eu gostaria de ter aprendido alemão quando estive em Lausanne! Havia

lá muitos professores alemães. Mas agora não posso ser de utilidade."

Para Will, havia uma luz nova, mas ainda assim misteriosa, nas últi-

mas palavras de Dorothea. A questão de como ela viera a aceitar Mr.

Casaubon - que ele havia posto de lado quando a viu pela primeira

vez, dizendo-se que apesar das aparências ela devia ser bem desagradá-

vel - não podia ser respondida agora por método tão curto e fácil. Fos-

se lá o que ela fosse, desagradável não era. Nem era friamente sagaz e

indiretamente satírica, mas adoravelmente simples e cheia de sentimen-

to. Era um anjo iludido. Que prazer único seria se manter à espreita dos
melodiosos fragmentos em que sua alma e coração afluíam de modo tão

direto e ingênuo! A idéia da harpa eólia veio outra vez à mente dele.

Era provável que ela houvesse imaginado algum romance original

para si neste casamento. E se Mr. Casaubon fosse um dragão que a tives-

se arrastado para a toca só ao poder das próprias garras e sem proclamas

legais, que inevitável gesto de heroismo seria libertá-la e se lançar aos

seus pés! Mas ele era uma outra coisa, mais intratável ainda que um

dragão: era um benfeitor que trazia a sociedade nas costas e que estava

entrando neste instante na sala, em toda a inatacável correção de suas

maneiras, enquanto Dorothea olhava animada por um alarme e um la-

mento recém-despertos, e Will olhava animado por sua especulação

admirativa sobre os sentimentos dela.

Mr. Casaubon sentiu uma surpresa em nada mesclada de prazer, mas

não se desviou da polidez que sempre mantinha nas saudações, quando

Will se levantou para explicar-lhe sua presença. Não estando Mr.

Casaubon tão contente como de hábito, era isto o que o tomava talvez

ainda mais pálido e sombrio; um efeito que podia decorrer facilmente,

no entanto, do contraste com a aparência do seu jovem primo. A primei-

ra impressão quando se via Will era de um brilho solar a acentuar a

indefinição de seu mutável semblante. Até mesmo seus traços mudavam

seguramente de forma; a boca às vezes parecia grande, mas às vezes,

pequena; e a discreta ondulação no nariz era uma preparação à meta-

morfose. Quando ele virava muito depressa a cabeça, seu cabelo parecia

espargir luz, coruscação na qual certas pessoas julgavam ver indisputável

mostra de gênio. Mr. Casaubon, pelo contrário, nada irradiava.

Quando os olhos de Dorothea fixaram-se ansiosamente em seu ma-

rido, o contraste não há de a ter deixado insensível, mas isto apenas se

mesclou a outras causas para tomá-la mais consciente do novo alarme

que nele se manifestava, primeiro movimento de uma compadecida ter-

nura alimentada pelas realidades de seu próprio quinhão, e não pelos


232

GEORGE ELIOT

sonhos dela. Entretanto, a presença de Will foi para ela uma fonte de

maior liberdade; ele era igualmente jovem, o que muito a agradava, e

também talvez de espírito aberto. Ela sentia uma imensa necessidade de

alguém com quem falar, e nunca antes tinha visto ninguém tão perspicaz

e flexível assim, tão aparentemente capaz de entender tudo.

Mr. Casaubon desejou gravemente a Will que sua temporada em

Roma estivesse sendo proveitosa e agradável - havia pensado que a

intenção dele fosse ficar na Alemanha do Sul - mas pediu-lhe que vol-

tasse para jantar amanhã, quando poderia conversar mais tranqüilamen-

te: no momento ele estava um pouco cansado. Ladislaw compreendeu e,

aceitando de imediato o convite, fez suas despedidas.

Os olhos ansiosos de Dorothea foram seguindo seu marido, enquan-

to ele despencava exausto no fundo de um sofá e, com um cotovelo

encostado para apoiar a cabeça, punha-se a olhar para o chão. Um pou-

co corada, e os olhos brilhando muito, ela sentou-se a seu lado e disse:

"Perdoe-me a brusquidão com que hoje de manhã eu me dirigi a

você. Eu estava errada. Temo que lhe tenha magoado e tomado seu dia

ainda mais cansativo!"

"Que bom saber que você pensa assim, querida," disse Mr. Casaubon.

Falou com calma, arriando um pouco a cabeça, mas ainda havia uma

ponta de intranqüilidade em seus olhos quando os ergueu para ela.

"Mas você me perdoa?" disse Dorothea, com um breve soluço. Na

necessidade em que estava de alguma manifestação de sentimento ela

se predispunha a exagerar seu erro. Não reconheceria o amor de longe a

penitência em regresso, para atirar-se-lhe ao pescoço e beijá-la?

"Minha querida Dorothea -"quem não se contenta com o arrepen-

dimento, não é do céu nem da terra:" - não creio que me julgue digno
de ser banido por esta grave sentença," disse Mr. Casaubon, empenhan-

do-se por atingir um timbre solene, e também por esboçar um sorriso.

Dorothea ficou quieta, não obstante uma lágrima, que viera com o

soluço, insistisse em cair.

"Você está muito nervosa, querida. E eu também sinto algumas de-

sagradáveis conseqüências do excesso de agitação mental," disse Mr.

Casaubon. Na realidade, tinha pensado em dizer-lhe que ela não deve-

ria ter recebido o jovem Ladislaw em sua ausência; disto ele porém se

absteve, em parte pela impressão de que seria indelicado fazer uma nova

queixa num momento em que ela se confessava arrependida, em parte

"Citação de Two Gentlemen of Verona, de Shakespeare: "Who with repentance is

not satisfied, is not

of heaven nor earth" (Ato V, Cena 4, linha 79).

MIDDLEMARCH 233

porque queria evitar maior agitação para si mesmo falando, e em parte

ainda porque era muito orgulhoso para mostrar sua predisposição a um

ciúme que, não se esgotando ante seus confrades de erudição, ainda

sobrava para tomar outras direções. Há uma espécie de ciúme que ne-

cessita de muito pouco fogo: que, não sendo uma paixão, é uma simples

doença produzida no desânimo enevoado e úmido do egoísmo inquieto.

"Acho que é hora de nos vestirmos," acrescentou ele, olhando em

seu relógio. Ambos se levantaram, e nunca mais houve entre eles qual-

quer alusão ao que ocorreu neste dia.

Mas Dorothea guardou -o até o fim na lembrança, com essa clareza

com a qual nos recordamos das épocas de nossa experiência em que

uma grande esperança morre, ou um novo motivo nasce. Hoje ela come-

çara a ver que havia estado numa ilusão desmedida, esperando que Mr.

Casaubon correspondesse aos seus sentimentos, e sentira em gestação


um pressentimento, o de que na vida de seu marido poderia existir uma

consciente tristeza que fazia exigências igualmente grandes a ambos,

tanto a ele mesmo quanto a ela.

Todos nós nascemos na ignorância moral, tomando o mundo por um

ubre para nutrir nossos insignes seres: Dorothea começou ainda cedo a

emergir desta ignorância, apesar de lhe ter sido mais fácil conceber como

iria devotar -se a Mr. Casaubon, tomando-se ela mesma sábia e forte

com sua força e sapiência, do que imaginar com aquela nitidez que já

não é reflexo, mas sentimento - uma idéia que se entrelaça de volta

com o imediatismo da percepção, como a solidez dos objetos, - que ele

tinha um centro equivalente de existência própria, donde as luzes e as

sombras deviam sempre provir com alguma diferença.

CAPITULO XXII

"Nous causâmes longtemps; elle était simple et bonne.

Ne sachant pas le mal, elle faisait le bien;

Des richesses du coeur elle me fit l"aumône,

Et tout en écoutant corrime le coeur se dorme,

Sans oser y penser, je lui dormait le mien;

Elle emporta ma vie, et n"en sut jamais rien."

- ALFRED DE MUSSET

("Conversamos bastante; era simples e boa.

Não conhecendo o mal, fazia o bem aos seus;

Das riquezas do coração me fez esmola

E eu, escutando como o coração se doa,

Sem nisto ousar pensar, já lhe entregava o meu;

Ela levou-me a vida; e nada mais soube eu.")


- ALFRED DE MUSSEV

WILL LADIsLAw desmanchou-se em gentilezas no jantar do dia seguinte,

não dando a Mr. Casaubon uma oportunidade que fosse de manifestar

desagrado. A impressão de Dorothea, pelo contrário, foi que Will tinha

um modo muito hábil de puxar conversa com seu marido e de escutá-lo

com deferência, como ela antes nunca observara em ninguém. Com toda

a certeza, os ouvintes de Tipton não eram tão bem dotados assim! O

próprio Will falou bastante, mas lançava o que dizia com uma tal rapi-

dez, e com um ar tão desimportante de o dizer tão-só de passagem, que

era como se fosse um repique alegre e mais baixo vindo depois do sino

""Une Bonne Fortune," XXXIX (1834).

MIDDLEMARCH

235

principal. Se Will nem sempre era perfeito, sem dúvida estava num de

seus grandes dias. Descreveu cenas de incidentes entre os pobres de

Roma, visíveis apenas a quem pudesse circular livremente pela cidade;

pôs-se de acordo com Mr. Casaubon quanto às idéias inexatas de

Middeton 1 sobre as relações entre o judaísmo e o catolicismo; e passou

com facilidade a um quadro entre entusiástico e jocoso do prazer por ele

extraído da própria miscelânea de Roma, que tomava a mente flexível

com as constantes comparações, e nos livrava de olhar as eras do mundo

como uma série de compartimentos estanques sem conexão vital. Os

estudos de Mr. Casaubon, observou Will, sempre haviam sido de um

tipo muito abrangente para isto, nunca lhe permitindo talvez sentir tais

bruscos efeitos, mas quanto a si ele confessava que Roma lhe dera uma

nova compreensão da história como um todo; os fragmentos estimula-


vam sua imaginação e o tomavam construtivo. De quando em quando,

mas nunca em demasia, ele se endereçava a Dorothea e discutia o que

era dito por ela, como se o que ela achasse fosse um item a ser conside-

rado mesmo no julgamento final da Madona de Foligno e do Laocoonte.

Uma impressão de contribuir para formar a opinião do mundo toma a

conversa particularmente animada; e Mr. Casaubon também não deixa-

va de se sentir orgulhoso de sua jovem esposa, que falava melhor que a

maioria das mulheres, como de fato ele percebera ao escolhê-la.

Como as coisas estavam indo tão bem, a declaração de Mr. Casaubon

de que seu trabalho na Biblioteca seria interrompido por alguns dias, e

de que após uma breve retomada ele não teria mais motivos para conti-

nuar em Roma, encorajou Will a sugerir que Mrs. Casaubon não deveria

partir sem visitar um ou dois estúdios. Não gostaria Mr. Casaubon de

levá-la? Esse tipo de coisa não se podia perder: era algo muito especial:

era uma forma de vida que crescia como uma vegetação pequena e viço-

sa com sua população de insetos sobre imensos fósseis. Para Will seria

uma alegria guiá-los - e a nada de muito cansativo, tão-só uns poucos

exemplos.

Mr. Casaubon, vendo que Dorothea o olhava com ansiedade, não

teve senão como perguntar-lhe se ela estaria interessada nestas visitas:

ele agora ia ficar à sua disposição o dia todo; foi então combinado que

no dia seguinte Will voltaria para conduzi-los.

Will não podia deixar de fora Thorwaldsen -2uma celebridade viva

"Conyers Middeton (1683-1750), teólogo inglês.

2AIbert BerteIThorwaldsen (1770-1844), escultor dinamarquês ativo em Roma,

influenciado

pelo purismo dos pintores nazarenos e pré-rafaelitas.

236
GEORGE ELIOT

por quem até mesmo Mr. Casaubon perguntara, mas antes de o dia já

estar muito avançado ele os levou ao estúdio de seu amigo Adolf

Naumann, que mencionou como um dos principais renovadores da arte

cristã, um dos que não só tinham revivido mas também expandido essa

grande concepção dos eventos supremos como mistérios de que as eras

sucessivas eram espectadores, e em relação aos quais as grandes almas

de todos os períodos tomam-se por assim dizer contemporâneas. Will

acrescentou que ele mesmo se fizera discípulo de Naumann em virtude

disto.

"Tenho feito uns trabalhos a óleo orientado por ele," disse Will.

"Detesto copiar.  forçoso que eu sempre ponha algo de mim. Naumann

pintou os Santos puxando o Carro da Igreja, e eu ando fazendo um

esboço de Tamerlão Conduzindo em seu Carro os Reis Vencidos, de

Marlowe. Não sou tão eclesiástico quanto Naumann, e o critico às vezes

por seu excesso de significados. Mas desta vez pretendo ultrapassá-lo na

amplidão da intenção. Tomo Tamerlão em seu carro pela disparada fre-

nética da história física do mundo a açoitar as dinastias atreladas. Em

minha opinião, é uma boa interpretação míticaf Aqui Will olhou para

Mr. Casaubon, que recebeu de modo muito intranqüilo este improvisa-

do tratamento do simbolismo, e se curvou com um ar neutro.

"Deve ser um esboço muito grande, para exprimir tanta coisa," disse

Dorothea. "Eu precisaria de alguma explicação dos significados que atri-

bui. Porventura o seu Tamerlão representa os vulcões e terremotos?"

"Oh, sem dúvida," disse Will sorrindo, "e as migrações de raças e as

derrubadas de florestas - e a América e a máquina a vapor. Tudo que

puder imaginar!"

"Que espécie complicada de estenografia!" disse Dorothea, sorrindo

para o marido. "Seria preciso todo o seu conhecimento para se conse-

guir decifrá-la."
Mr. Casaubon piscou furtivamente para Will. Suspeitou que estives-

sem rindo dele. Mas não era possível incluir Dorothea na suspeita.

Encontraram Naumann pintando com todo o ardor, mas sem mo-

delo; seus quadros estavam muito bem dispostos e sua própria pessoa,

vivaz e simples, bem arrumada numa camisa cinza-chumbo e uma boi-

na de veludo marrom, de modo que tudo era tão propício como se ele

estivesse esperando a bela e jovem dama inglesa exatamente naquela

hora.

O pintor fez pequenas dissertações em seu inglês confiante sobre os

temas findos e infindos, parecendo observar Mr. Casaubon quase tanto

quanto a Dorothea. Will acudia aqui e ali com ardentes palavras de lou-

MIDDLEMARCH

237

vor, assinalando méritos particulares na obra de seu amigo; e Dorothea

sentia que estava a adquirir noções bem novas quanto à significação das

Madonas sentadas sob inexplicáveis baldaquins, com o campo simples

por fundo, e dos santos com modelos arquitetonicos na mão ou um pu-

nhal cravado acidentalmente no crânio. Certas coisas que lhe haviam

parecido monstruosas passavam a ter inteligibilidade e até mesmo um

significado natural; mas tudo indicava que este era um ramo do conheci-

mento pelo qual Mr. Casaubon nunca se interessara.

"Penso que eu tenderia mais a sentir que a pintura é bela do que a

ler como um enigma; mas eu aprenderia a entender esta pintura mais

cedo do que a sua, com significados muito amplos," disse Dorothea,

falando para Will.

"Não fale de minha pintura na frente do Naumann," disse Wil]. "Ele

há de dizer que é tudo pfuschereí," que é o maior opróbrio que usa!"

"Verdade?" dise Dorothea, volvendo seus olhos sinceros para


Naumann, que fez uma ligeira careta e disse:

"Oh, ele não leva a pintura a sério. Seu caminho deve ser as belles-

lettres. Isto sim é que é am-plo!"

A pronúncia da palavra por Naumann pareceu alongá-la de maneira

satírica. Will não gostou muito, mas deu um jeito de rir; e Mr. Casaubon,

malgrado sentisse algum desagrado pelo sotaque alemão do artista, co-

meçou a nutrir certo respeito por sua severidade judiciosa.

Respeito este que não diminuiu quando Naumann, após puxar Will

à parte por um momento e olhando, primeiro para uma grande tela,

depois para Mr. Casaubon, veio ao centro de novo e disse:

"Meu amigo Ladislaw acha que o senhor não me levará a mal se eu

lhe disser que um esboço de sua cabeça me seria valioso para o Santo

Tomás de Aquino que eu tenho aqui no meu quadro.  pedir muito, eu

sei; mas é muito raro que eu veja justamente o que quero - o ideal na

realidade."

"O senhor muito me espanta," disse Mr. Casaubon, sua aparência

aprimorada por um fulgor de prazer; "mas se minha pobre fisionomia,

que me habituei a considerar como das mais comuns, puder ser de

serventia para fornecer-lhe alguns traços para o seráfico doutor, sentir-

me-ei muito honrado. Quer dizer, desde que a operação não seja muito

demorada; e se Mrs. Casaubon não fizer objeções à demora."

No tocante a Dorothea, nada a teria deixado mais feliz, a menos que

fosse uma voz declarando ser Mr. Casaubon o mais sábio e o mais digno

"Em alemão no original: "trabalho mal feito."

238

GEORGE ELIOT

dentre os filhos do homem. Neste caso, sua fé vacilante tomar-se-la fir-


me de novo.

Todos os apetrechos de Naumann estavam perfeitamente à mão, e o

esboço foi logo sendo feito, enquanto se prolongava a conversa. Dorothea

sentou-se e imergiu num calmo silêncio, sentindo-se feliz como há tem-

pos não se sentia. Todos a seu redor lhe pareceram bons, e de si para si

disse que Roma, se ela ao menos não fosse tão ignorante, se teria reve-

lado cheia de beleza; à tristeza, ter-lhe-la a esperança dado asas. Não

havia natureza menos desconfiada que a dela: quando criança, acredita-

va na gratidão das vespas e na honorável susceptibilidade dos pardais,

indignando-se proporcionalmente quando sua baixeza se manifestava.

O desembaraçado artista ia fazendo perguntas sobre a política ingle-

sa a Mr. Casaubon, as quais geravam longas respostas, e Will entrementes

já se havia empoleirado nuns degraus ao fundo, de onde via tudo.

De repente Naumann disse: "Se eu pudesse parar agora por uma

meia hora e depois pegar de novo - venha ver, Ladislaw - acho que até

aqui está perfeitof

Will desdobrou-se nessas interjeições eloqüentes pelas quais se

extravaza uma admiração mais forte que a sintaxe; e Naumann disse,

num tom de quem lamenta a fundo:

"Ah - bem - se eu pelo menos pudesse ter tido mais - mas vocês

têm outros compromissos - eu não poderia pedir - nem mesmo para

voltarem amanhã."

"Vamos ficar um pouco mais!" disse Dorothea. "Não temos nada a

fazer hoje a não ser vagar por aí, não é?" perguntou ela, olhando

suplicantemente para Mr. Casaubon. "Seria uma pena não retratar a ca-

beça o melhor possível."

"Estou às suas ordens, meu senhor, quanto à questão," disse Mr.

Casaubon, com polida condescendência. "Tendo eu consagrado ao lazer

o interior de minha cabeça, é até melhor que o exterior possa trabalhar

deste modo."

"O senhor é indizivelmente bom - como estou contente!" disse


Naumann, que depois prosseguiu em alemão para Will, apontando aqui

e ali no esboço, como que a considerá-lo. Após deixá-lo por um momen-

to de lado, olhou ao redor de um modo vago, como se procurasse uma

ocupação para as visitas, e por fim virou-se para Mr. Casaubon e disse:

"Quem sabe sua bela esposa, dama de tanto encanto, não se oponha

a deixar-me aproveitar o tempo para tentar fazer um esboço dela -

claro que não para este quadro - apenas uma coisa ligeira, um estudo à

parte."

MIDDLEMARCH

239

Mr. Casaubon, inclinando-se, não duvidou de que Mrs. Casaubon

aquiescesse ao desejo, enquanto Dorothea dizia incontinente: "Onde

me devo pôr?"

Naumann se desmanchou em desculpas ao pedir que ela ficasse de

pé e lhe permitisse corrigir a postura, ao que ela se submeteu sem os

risos e ares afetados freqüentemente tidos por necessários em tais oca-

siões, quando o pintor disse: "Quero que pose como Santa Clara -

apoiando-se assim, com a mão no rosto, - assim, - e olhando para

este tamborete, por favor, assim mesmoM

Will se dividia entre a vontade de jogar-se aos pés da Santa, para

beijar-lhe as vestes, e a tentação de avançar contra Naumann, que ia

ajeitando o braço dela, para o jogar no chão. Tudo aquilo era profanação

e impudência, e arrependeu-se de a ter trazido.

O artista era diligente e Will recuperou seu controle, passando a se

mover pelo estúdio e a ocupar-se tão engenhosamente quanto podia de

Mr. Casaubon; mas por fim não impediu que o tempo soasse longo de-

mais a este senhor, como ficou patente quando ele expressou seu temor

de que Mrs. Casaubon já pudesse estar cansada. Naumann se valeu da


insinuação e disse:

"Bem, se o senhor me fizesse novamente o favor, eu liberaria sua

esposa."

A paciência de Mr. Casaubon agüentou assim mais um pouco e, quan-

do afinal se tornou claro que a cabeça de Santo Tomás de Aquino ficaria

mais perfeita com outra sessão de pose, a mesma foi marcada para o dia

seguinte. Dia em que a Santa Clara também foi retocada mais de uma

vez. O resultado de tudo esteve tão longe de desagradar a Mr. Casaubon,

que ele se dispôs a adquirir a pintura na qual Santo Tomás de Aquino se

sentava entre os doutores da Igreja numa controvérsia muito abstrata

para ser representada, mas seguida com atenção maior ou menor pela

audiência acima. Com a Santa Clara, da qual se falou depois, Naumann

declarou não estar satisfeito - não poderia, em sã consciência, compro-

meter-se a fazer dela um quadro que valesse a pena; e assim quanto à

Santa Clara a transação foi feita sob condições.

Não me atardarei nas graçolas de Naumann esta noite sobre Mr.

Casaubon, nem nos seus ditirambos aos encantos de Dorothea, contan-

do em tudo com a participação de Will, apesar de uma diferença. Basta-

va Naumann mencionar qualquer detalhe da beleza de Dorothea para

que sua presunção exasperasse Will: sua escolha das palavras mais ordi-

nárias era uma grosseria, e o que tinha ele de falar dos lábios dela? Não

era uma mulher de quem se falar, como outras havia. Will não conseguia

240

GEORGE ELIOT

dizer ao certo o que pensava, mas tomara-se irritável. Entretanto, quan-

do depois de certa resistência havia concordado em levar os Casaubons

ao estúdio de seu amigo, deixara-se seduzir pela gratificação de seu or-

gulho em ser ele a pessoa que podia dar a Naumann uma tal oportunida-
de de estudar a beleza dela - ou melhor, a divina perfeição, já que as

frases banais que possam ser aplicadas aos meros atrativos físicos não

lhe seriam condignas. (Certamente toda Tipton e seus arredores, bem

como a própria Dorothea, surpreender-se-lam com tal exaltação de sua

beleza. Nesta parte do mundo Miss Brooke fora tida somente por "Uma

moça bonita.")

"Vamos mudar de assunto, Naumann, por favor. Não convém ficar

falando de Mrs. Casaubon como se ela fosse um modelo," disse Wili.

"Schon! Pois então vou falar do meu Aquino. A cabeça, afinal de

contas, não é nada má. Ouso dizer que o próprio grande escolástico

ficaria lisonjeado, se solicitado a posar para um retrato. Não há vaidade

comparável a desses cerimoniosos doutores! Foi bem como eu pensei:

ele estava mais interessado no seu próprio retrato que no dela."

"Ele é um maldito de um pedante sem sangue e todo cheio de si,"

disse Will, com impetuoso ranger de dentes. Seu ouvinte não sabia das

dívidas de gratidão que ele tinha com Mr. Casaubon, mas o próprio Will

pensava nelas, desejoso de que pudesse com um cheque se livrar de

todas.

Naumann deu de ombros e disse: "Ainda bem que partirão dentro

em breve, porque eles estão tirando o seu bom humor."

Toda a esperança e capacidade inventiva de Will concentraram-se

então no seu desejo de estar a sós com Dorothea. Queria apenas deixar-

lhe uma impressão mais profunda; queria apenas ficar em sua lembrança

como algo mais especial do que até então se julgava capaz de ser.

Impacientava-o um pouco aquela boa vontade ardente e franca que ele

tomava pelo estado habitual de Dorothea. A adoração remota de uma

mulher entronizada fora de alcance desempenha papel preponderante

no dia-a-dia dos homens, mas na maioria dos casos o admirador anseia

por algum reconhecimento da rainha, algum sinal de aprovação pelo

qual a alma de sua soberana o possa rejubilar, sem ela descer do pedes-

tal. Era precisamente isto o que Will queria. Mas suas fantasiosas de-
mandas estavam cheias de contradições. Era bonito ver como os olhos

de Dorothea se viravam num nervosismo súplice de esposa para Mr.

Casaubon: parte de seu halo se teria perdido, caso ela não cultivasse

esta preocupação com o dever; no entanto no momento seguinte a are-

nosa absorção de um tal néctar pelo marido era-lhe intolerável também;

MEMARCH

241

e a tentação de sobre ele dizer coisas ofensivas não se tornava para Will

menor tormento devido às razões mais fortes que sentia para refreá-la.

Will não foi convidado para jantar no dia seguinte. Donde se ter

persuadido de que devia ir fazer uma visita, e de que a única hora acon-

selhável era pelo meio do dia, quando provavelmente Mr. Casaubon não

estaria em casa.

Dorothea, sem saber que a acolhida que antes dera a Will já havia

desagradado ao marido, não hesitou em recebê-lo, sobretudo porque

ele poderia ter vindo para dizer adeus. Estava a examinar uns carnaféus

que andara comprando para Celía quando ele entrou. Cumprimentou

W. como se sua visita fosse uma coisa muito natural e disse sem demo-

ra, tendo na mão um bracelete de carnaféu:

"Que bom que tenha aparecido! Talvez entenda de camaféus e possa

dizer se estes aqui são realmente bonitos. Bem que eu quis tê-lo conosco

para ajudar na escolha, mas Mr. Casaubon objetou: achou que não havia

tempo. Amanhã ele já acaba o trabalho, e em três dias nós estaremos

partindo. Ando muito preocupada com estes camaféus. Por favor, sente-

se e dê uma olhada neles."

"Não sou grande entendedor, mas com estas pequenas maravilhas

homéricas não há como errar: são de rara beleza. E a cor é linda: há de

lhe assentar muito bem."


"Oh, são para a minha irmã, cuja cor de pele é muito diferente. O

senhor a viu comigo em Lowick: ela é loura e muito bonita - pelo me-

nos eu acho. Nunca nos separamos antes por tanto tempo na vida. Ela é

um mimo, nunca foi dada a fazer maldades. Antes de eu viajar descobri

que ela queria que eu comprasse uns carnaféus para ela, e eu só teria a

lamentar se eles não fossem bonitos - no seu gênero." Dorothea acres-

centou com um sorriso as últimas palavras.

"A senhora mesma não parece ligar para camafeus," disse Will, sen-

tando-se a pequena distância e observando-a enquanto ela fechava as

caixinhas.

"Não, francamente, não creio que possam constituir um objetivo na

vida."

"Temo que seja uma herética em relação à arte em geral. Como é

possível? Minha expectativa seria de que fosse muito sensível ao belo

que está por toda parte."

"Há muitas coisas, suponho, que eu não consigo captar," disse

Dorothea com simplicidade. "Gostaria era de fazer bela a vida - quero

dizer, a vida de todo mundo. E todo esse dispêndio imenso da arte, que

de certa forma parece estar fora da vida e não a toma melhor para as

242

GEORGE ELIOT

pessoas, é doloroso. Meu prazer com o que eu vejo se esvai quando sou

levada a pensar que a maioria é mantida à margem dele."

" o que eu chamo de fanatismo da simpatia," disse Will num ím-

peto. "Da paisagem, da poesia, de todos os refinamentos a senhora

poderia dizer o mesmo. Se o levasse a extremos, tomar-se-la infeliz

em sua própria bondade, e por fim má, por não poder ter vantagem

sobre os outros. A melhor compaixão é sentir prazer - quando se


pode.  assim que se faz mais para preservar as qualidades da Terra

como um planeta agradável. E o prazer se irradia. Não adianta querer

tomar conta do mundo inteiro; porque isto já está sendofeito quando

nós sentimos prazer - na arte ou em qualquer outra coisa. Transfor-

maria a senhora toda a juventude do mundo num coro trágico, a lasti-

mar-se e fazer pregações sobre os sofrimentos humanos? Suspeito que

tenha alguma falsa crença nas virtudes do sofrimento, e queira fazer de

sua vida um martírio." Tendo ido mais longe do que imaginava, Will

então se controlou. Mas o pensamento de Dorothea não estava se-

guindo na mesma direção que o dele, e foi sem nenhuma emoção em

particular que ela respondeu:

"O senhor se engana a meu respeito. Não sou uma criatura triste,

melancólica. Nunca me sinto infeliz por muito tempo. Sou raivosa e

malvada - ao contrário de Celia: tenho uma grande explosão, depois

tudo me parece glorioso de novo. Não consigo deixar de acreditar, de

uma maneira quase cega, em coisas gloriosas. De bom grado eu desfru-

taria aqui do prazer da arte, mas há tanta coisa cuja razão me escapa -

tanta coisa que me parece mais uma consagração da feiúra que da bele-

za. A pintura e a escultura podem ser maravilhosas, mas com freqüência

o sentimento é brutal e baixo, e às vezes até ridículo. Só aqui e ali vejo

algo que me arrebata pela sua nobreza - algo que eu possa comparar

aos Montes Albanos ou ao pôr do sol sobre o Pincio; e que grande lásti-

ma é haver tão pouco do que há de melhor nessa maçaroca de coisas por

que os homens têm labutado tanto!"

"Claro que há sempre enormidades de trabalho medíocre: as coisas

raras só dão em solo raro também."

"Deus meu!" disse Dorothea, absorvendo esta última idéia na cor-

rente central de sua inquietude, "deve ser muito difícil mesmo, pelo que

vejo, fazer coisas de valor. Desde que estou em Roma tenho sentido que

em sua maioria nossas vidas pareceriam mais feias e mais mal acabadas

do que os quadros, se pudessem ser postas na parede."


Dorothea entreabriu os lábios ainda, como se fosse continuar falan-

do, mas mudou de idéia e calou-se.

MIDDLEMARCH

243

"A senhora é muito jovem - é um anacronismo de sua parte ter tais

idéias," disse Will com energia, sacudindo bruscamente a cabeça como

lhe era típico. "Fala como se nunca tivesse tido mocidade.  monstruoso

- como se tivesse tido na infância uma visão de Hades, tal qual o efebo

na mitologia. Sua educação se perfez sob alguns desses horríveis princi-

pios que escolhem as mulheres mais doces para devorar - como

Minotauros. E agora a senhora parte para se trancar naquela prisão de

pedra em Lowick: onde será enterrada viva. Só de pensar já me enfure-

ço! Preferiria nunca a ter visto a imaginá-la em tal perspectiva."

Will temeu outra vez ter ido longe demais; mas o sentido que damos

às palavras depende do que nós estamos sentindo, e seu tom de lamen-

to enraivecido trazia em si tanta ternura pelo coração de Dorothea, sem-

pre se dando com ardor e nunca recebendo muito dos seres vivos em

tomo, que ela teve uma nova impressão de gratidão e respondeu com

um sorriso gentil.

"Muita bondade sua, inquietar-se por minha causa. Mas é porque o

senhor mesmo não gostou de Lowick: tinha a alma voltada para outro

tipo de vida. Lowick porém é minha terra de escolha."

A última sentença foi dita numa cadência quase solene, e Will não

soube o que retrucar, pois de nada adiantaria ele abraçar-lhe as chinelas

e dizer que daria a vida por ela: estava claro que o que ela pedia não

eram coisas do gênero; e ambos ficaram em silêncio por um momento

ou dois, até que Dorothea retomou a conversa, como se finalmente dis-

sesse o que já tinha de antemão em mente.


"Queria fazer-lhe uma pergunta de novo sobre algo que o senhor

disse outro dia. Pode ter sido em parte pelo seu modo impetuoso de

falar: notei que gosta de enfatizar bem as coisas; eu mesma exagero às

vezes quando falo correndo."

"Que foi?" disse Will, observando que ela falara com uma timidez

que lhe era nova. "Eu tenho uma língua hiperbólica: que logo vai pegan-

do fogo. Ouso crer que terei de me desculpar."

"Refiro-me ao que disse sobre a necessidade de saber alemão -

quero dizer, para os assuntos aos quais Mr. Casaubon se dedica. Andei

pensando sobre isto; e entendi que para seus estudos Mr. Casaubon

deve ter à mão os mesmos materiais que os sábios alemães - não é

isto?" A timidez de Dorothea se devia a uma consciência indistinta de

ela estar na estranha situação de consultar uma terceira pessoa sobre o

valor da erudição de Mr. Casaubon.

"Não exatamente os mesmos materiais," disse Wil], pensando em

manter toda a reserva. Ele não é um orientalista, como a senhora sabe

MIDDLEMARCH

245

foi talvez um perigo para mim, e pretendo renunciar à liberdade que ela

me permitiu. Pretendo voltar para a Inglaterra em breve e abrir meu

próprio caminho - sem depender de ninguém senão de mim."

"Isto é ótimo - é uma posição que eu respeito," disse Dorothea,

retribuindo o tom gentil. "Mas Mr. Casaubon, estou certa, nunca pen-

sou em nada sobre o assunto que não fosse o mais propício para o seu

bem-estar."

"Não lhe faltam obstinação e orgulho, ao invés de amor, para dar,

agora que ela se casou com ele," disse Will para si mesmo. Em voz alta,

levantando-se, disse:
"Não voltarei a vê-la."

"Oh, fique até que Mr. Casaubon chegue," disse Dorothea, sincera-

mente. "Achei tão bom nos encontrarmos em Roma. Eu queria conhecê-

lo."

,,E eu a fiz zangar-se," disse Will. "Fi-la pensar mal de mim."

"Oh, não! Minha irmã já me disse que eu sempre fico zangada quan-

do as pessoas não dizem o que eu quero ouvir. Mas espero que eu não

chegue a pensar mal delas. Geralmente no fim sou obrigada a pensar mal

de mim mesma, por ser tão impaciente."

"Ainda assim eu sei que não lhe agrado; tomei-me para a senhora

uma idéia incômoda."

"De modo algum," disse Dorothea, com a mais franca simpatia. "Gos-

to muito do senhor."

Will não ficou muito contente, julgando mais provável que passasse

a ter mais importância se fosse alvo de antipatia, Não falou nada, mas

assumiu um ar sombrio, para não dizer emburrado.

" estou muito interessada em ver o que fará," disse Dorothea ale-

gremente. "Creio firmemente numa diferença natural de vocação. Se não

fosse esta crença, suponho que eu seria uma pessoa estreita demais -

pois há muitas coisas, além da pintura, em que a minha ignorância é

total. Mal há de acreditar o senhor quão pouco me enfronhei em música

e literatura, de que tanto sabe. Pergunto-me aliás qual há de se mostrar

sua vocação: será talvez um poeta?"

"Depende. Ser poeta é ter a alma tão rápida para discemir, que ne-

nhuma nuance de qualidade lhe escape, e tão rápida para sentir, que o

discernimento seja tão-só a mão que toca em variedade perfeitamente

ordenada as cordas da emoção - uma alma na qual o conhecimento

transforme-se instantaneamente em sentimento, e este brilhe de volta

como um novo órgão daquele. Só por instantes pode alguém viver tal

estado."
246

GEORGE ELIOT

"Esquece-se o senhor dos poemas," disse Dorothea. "Penso que eles

são necessários para completar o poeta. Entendo o que quer dizer sobre

a transformação do conhecimento em sentimento, pois parece-me ser o

que eu mesma experimento. Mas estou certa de que eu nunca poderia

produzir um poema."

"A senhora é um poema - e isto é ser a melhor parte do poeta - o

que constitui a consciência do poeta em seus melhores momentos," dis-

se Wíli, mostrando a mesma originalidade de que todos nós somos ca-

pazes com a manhã e a primavera e outras renovações perpétuas.

"Alegro-me de ouvi-lo," disse Dorothea, externando suas palavras

em risos numa modulação de pássaro, e olhando para Will com uma

alegre gratidão nos olhos. "Que coisas tão gentis o senhor me diz!"

"Desejaria sempre poder fazer alguma coisa que correspondesse ao

que chama de gentil - que eu sempre lhe pudesse prestar o menor ser-

viço que fosse. Mas temo que eu jamais venha a ter a ocasião." Will

falou com ardor.

"Oh, há de ter!" disse Dorothea cordialmente. "A ocasião há de sur-

gir; e hei de lembrar-me do bem que me deseja. Eu já queria muito que

ficássemos amigos desde que o vi pela primeira vez - devido ao seu

parentesco com Mr. Casaubon." Havia nos olhos dela certo brilho líqui-

do, e Will tinha consciência de que os seus já lá se iam umedecendo

também, obedecendo a uma lei da natureza. A alusão a Mr. Casaubon

teria estragado tudo, se alguma coisa pudesse estragar neste momento a

força dominadora, a doce dignidade de sua inexperiencia não suspeitosa

e nobre.

"E há uma coisa que já pode fazer por mim agora mesmo," disse

Dorothea, levantando-se para dar alguns passos sob a ação de um im-


pulso recorrente. "Trometa-me que não há de falar de novo com nin-

guém deste assunto - quero dizer, dos escritos de Mr. Casaubon -

nem, quero dizer, deste modo. Fui eu que levei a isto. Foi culpa minha.

Mas me prometa."

Voltando de seu deambular ela ficou de frente para Will, olhando

gravemente para ele.

"Claro que lhe prometo," disse WílI, corando contudo um pouco. Se

ele nunca dissesse uma palavra ofensiva sobre Mr. Casaubon de novo e

abrisse mão de seus favores, seria claramente permissível odiá-lo ainda

mais. O poeta deve saber odiar, diz Goethe; e para isto pelo menos o

talento de Will já se aprimorara. Disse ele que deveria ir-se agora sem

esperar por Mr. Casaubon, de quem viria despedir-se no último momen-

to. Dorothea estendeu-lhe a mão e eles trocaram um simples "Adeus."

MIDDLEMARCH

247

Mas ao sair pela porte cochŠrel ele encontrou Mr. Casaubon, e este,

expressando os melhores votos por seu primo, polidamente se furtou ao

prazer de quaisquer novas despedidas para o dia seguinte, que estaria

todo tomado com os preparativos para o embarque.

"Tenho uma coisa a lhe dizer do seu primo, Mr. Ladislaw, que acre-

dito há de melhorar sua opinião sobre ele," disse Dorothea ao marido

no decorrer da noite. Tão logo ele chegara ela lhe havia informado que

Will tinha acabado de sair, mas Mr. Casaubon disse por sua vez: "En-

contrei-o na saída, e acho que já nos dissemos adeus," falando isto com

o ar e a entonação pelos quais indicamos que qualquer assunto, seja ele

particular ou público, não nos interessa o bastante para que queiramos

novas observações a respeito. Assim Dorothea tinha esperado.

"O que é, meu amor?" disse Mr. Casaubon (ele sempre dizia "meu
amor," quando seu jeito era o mais frio).

"Ele resolveu interromper de imediato a vida errante que leva, e sair

da dependência de sua generosidade. Pretende voltar para a Inglaterra

em breve, e abrir seu próprio caminho. Pensei que tomaria isto por um

bom sinal," disse Dorothea, com um olhar interrogador para a face neu-

tra do marido.

"Por acaso ele mencionou o tipo preciso de ocupação ao qual iria

dedicar-se?"

"Não. Mas disse que percebia o perigo que havia para ele em sua

generosidade. Naturalmente há de lhe escrever sobre isto. Ele não cres-

ce em sua estima pela resolução que tomou?"

"Vou esperar que se comunique comigo sobre o assunto," disse Mr.

Casaubon.

"Falei-lhe da minha convicção de que era sempre o bem-estar dele o

que você mais considerava em tudo o que fazia por ele. Lembrei da sua

bondade no que disse sobre ele quando o vi pela primeira vez em

Lowick," disse Dorothea, pondo a mão na do marido.

"Eu tinha um dever para com ele," disse Mr. Casaubon, pousando

sua outra mão sobre a de Dorothea, em conscienciosa aceitação da carí-

cia, mas com uma olhada que ele não tinha como esconder que era

íntranqüila. "Este jovem, confesso, afora isto não é para mim objeto de

interesse, nem precisamos nós, creio, discutir o futuro dele, que não é

problema nosso determinar além dos limites que eu já indiquei com

clareza!"

Dorothea não voltou a mencionar o nome de Will.

"Em francês no original: "entrada para carruagens."

LivRo 111
A Espera a Morte

CAPÍTULO XxII

"Your horses of the Sun" he said,

"And first -rate whip Apollo,

Whate"er they be, 111 eat my head,

But I will beat them hollow."

€"Teus cavalos do Sol, Apolo,

E o valioso chicote,

Hei de os vencer a fundo, anote,

Nem que eu quebre a cabeça.")

FRED VINCY, COMO ViMOS, tinha uma dívida na cabeça e, se bem nenhum

peso assim tão incorpóreo pudesse deprimir por muitas horas seguidas

este jovem senhor de alma esfuziante, havia circunstâncias ligadas à tal

dívida que tomavam sua lembrança incomumente inoportuna. O credor

era Mr. Barribridge, um alquilador das vizinhanças, de companhia muito

procurada em Middemarch por jovens sabidamente "dados aos praze-

res." Durante as férias, Fred naturalmente quis ter mais distrações do

que lhe permitia o dinheiro que tinha, e Mr. Bambridge fora bastante

accessível, não só para confiar nele pelo aluguel de cavalos e o prejuízo

acidental de algum estrago a uma montaria de caça, mas também para

adiantar-lhe uma pequena soma que o poria em condições de atender às

suas perdas no bilhar. O montante da dívida era de cento e sessenta

libras. Bambridge não se inquietava por seu dinheiro, estando certo de

que o jovem Vincy tinha quem o amparasse; mas mesmo assim pedira

mostra disto, e Fred a princípio lhe dera uma promissória com sua pró-

pria assinatura. Três meses depois renovou-a com a assinatura de Caleb


Garth. Em ambas as ocasiões Fred estivera confiante de que honraria ele

mesmo o compromisso, posto que em sua própria esperança dispunha

252

GEORGE ELIOT

de amplos recursos. Sua confiança, ninguém há de pedir que ela estives-

se baseada na exterioridade dos fatos; como sabemos, esta confiança é

algo menos materialista e grosseiro: é uma disposição muito cômoda

que nos leva a esperar que a sabedoria da providência ou a loucura dos

nossos amigos, os mistérios da sorte ou o mistério ainda maior de nosso

grande valor individual no universo, hão de trazer desfechos agradáveis,

em perfeita consonãoncia com nosso bom gosto no trajar e nossa predile-

ção genérica pelo que há de melhor em tudo. Fred se sentia seguro de

que receberia um presente de seu tio, de que ainda daria um golpe de

sorte, de que a poder de "barganha" iria gradativamente metamorfosear

um cavalo de quarenta libras num outro que mais cedo ou mais tarde

valeria cem - já que o "critério" é sempre equivalente a uma quantia

não especificada em dinheiro. Em todo caso, mesmo supondo negações

que só uma mórbida desconfiança podia imaginar, Fred sempre tinha

(nesta época) o bolso de seu pai como um último recurso, de modo que

em tomo dos seus haveres de esperança pairava uma espécie de suntuo-

sa superfluidade. De qual poderia ser a capacidade do bolso de seu pai,

Fred não tinha a menor idéia: os negócios não eram sempre elásticos?

As perdas de um ano não seriam compensadas pelos ganhos de um ou-

tro? Os Vincys levavam uma vida profusamente folgada, não com qual-

quer nova ostentação, mas segundo os hábitos e tradições da família, e

os filhos não eram submetidos assim a um padrão de economia, en-

quanto os mais velhos retinham também parte de sua idéia infantil de

que o pai se quisesse poderia pagar tudo. O próprio Mr. Vincy cultivava
os hábitos dispendiosos de Middemarch - gastava muito com as caça-

das, com sua adega e para dar seus jantares, enquanto mamãe mantinha

com os comerciantes essas contas em aberto que dão a alegre impressão

de se poder ter tudo o que se quer sem nem pensar em pagamento. Mas

era da natureza dos pais, Fred o sabia, repreender quanto aos gastos:

sempre havia uma pequena tempestade sobre suas extravagâncias, se

ele tivesse de revelar uma dívida, e a Fred não agradava o mau tempo

em casa. Ele era muito filial para mostrar-se desrespeitoso com o pai, e

suportava as tormentas com a certeza de serem transitórias; mas en-

quanto elas duravam era desagradável ver sua mãe chorando, e também

ser obrigado a fazer cara de amuo, ao invés de se divertir; pois Fred tinha

um tal bom humor que, se parecesse acabrunhado ao ouvir uma

reprimenda, era principalmente para manter as aparências. A saída mais

fácil, claro estava, seria renovar a promissória com o aval de um amigo.

Por que não? Com as garantias supérfluas da esperança sob seu coman-

do, não havia razão que o obstasse de aumentar a seu bel-prazer os

MIDDLEMARCH

253

compromissos financeiros alheios, a não ser o fato de que os homens

cujos nomes tinham peso na praça eram em geral pessimistas, indispos-

tos a crer que a ordem universal das coisas seria necessariamente agra-

dável a um rapaz agradável.

Com um favor a pedir, nós revemos nossa lista de amigos, fazemos

justiça às suas características mais amáveis, perdoamos suas pequenas

ofensas e, no tocante a cada um deles em turno, tentamos chegar à con-

clusão de que todos ficarão ansiosos para nos prestar um favor, sendo a

ansiedade que temos por recebê-lo tão comunicável quanto qualquer

calor. Ainda assim, e até que outros tenham recusado, há sempre alguns
que dispensamos por não serem senão moderadamente ansiosos; e as-

sim foi que Fred eliminou seus amigos todos, à exceção de um, por jul-

gar que recorrer a eles iria ser desagradável; e estando implicitamente

convencido de que ele ao menos (não importando o que fosse mantido

sobre a humanidade em geral) tinha o direito de estar livre das coisas

desagradáveis. Que jamais caísse numa posição realmente incômoda -

usar calças encolhidas pela lavagem, comer costeletas frias, ter de ir a pé

por falta de um cavalo, ou de "abaixar a cabeça" de algum modo - era

um absurdo inconciliável com as alegres intuições nele implantadas pela

natureza. E Fred estremecia só de pensar em ser olhado de cima por

falta de fundos para pequenas dividas. Deu-se pois que o amigo a quem

ele resolveu recorrer era ao mesmo tempo o mais bondoso e o mais

pobre - qual seja, Caleb Garth.

Os Garths gostavam muito de Fred, sendo a recíproca verdadeira;

pois quando ele e Rosamond eram pequenos, e os Garths viviam bem

melhor, os vínculos entre as duas famílias pelo duplo casamento de Mr.

Featherstone (o primeiro com a irmã de Mr. Garth, o segundo com a de

Mrs. Vincy) conduziram a relações que se mantinham mais entre as cri-

anças que por seus pais: crianças que tomavam chá nos aparelhos de

mentirinha e passavam dias inteiros brincando juntas. Mary era danada

da breca, e Fred aos seis anos, quando a achava a menina mais bonita do

mundo, tomou-a sua esposa com um anel de latão por ele arrancado de

uma sombrinha. Ao longo de todas as etapas de sua criação, conservara

a amizade pelos Garths e o hábito de freqüentar-lhes a casa como um

segundo lar, apesar de as relações entre seus pais e eles já estarem há

muito interrompidas. Até mesmo quando Caleb Garth era próspero, os

Vincys o tratavam e à esposa em termos condescendentes, pois havia

nítidas distinções de posição social em Middernarch; e, embora os ve-

lhos proprietários de manufaturas não se pudessem ligar senão aos seus

iguais, tal qual os duques, tinham consciência de uma inerente superio-


254

GEORGE EuOT

ridade social que era definida com grande precisão na prática, se bern

que de difícil expressão em termos teóricos. Mr. Garth, desde que fracas-

sara no ramo da construção, que ele havia infelizmente acrescentado às

suas ocupações como agrimensor, avaliador e corretor de imóveis, por

um tempo desempenhara estas atividades em exclusivo benefício de seus

credores, e passara a viver muito apertado, esforçando-se ao máximo

para pagar tudo em dia, com os juros correspondentes. Agora que con-

seguira isto, e da parte daqueles que o não julgavam mau precedente,

seus horioráveis esforços lhe haviam granjeado a devida estima; mas não

há lugar no mundo onde as visitas distintas acorram só por estima, na

ausência de móveis adequados e de um aparelho de jantar completo.

Mrs. Vincy nunca se sentira à vontade com Mrs. Garth e freqüentemente

se referia a ela como uma mulher que tinha tido de trabalhar para ganhar

seu pão - querendo dizer com isto que Mrs. Garth fora professora antes

de se casar; neste caso, uma intimidade com Lindey Murray e as Ques-

tões de Mangria era algo como a capacidade de reconhecer marcas de

morim de um negociante de tecidos, ou a familiaridade de um guia com

países estrangeiros: uma mulher em boa situação não tinha necessidade

desse tipo de coisa. E, desde que Mary passara a tomar conta da casa de

Mr. Featherstone, a falta de interesse de Mrs. Vincy pelos Garths havía-

se convertido em algo mais positivo, no medo de que Fred viesse a com-

prometer-se com esta menina sem nada, cujos pais "viviam tão modes-

tamente." Fred, sabendo disto, nunca falava em casa de suas visitas a

Mrs. Garth, que ultimamente se haviam tomado mais freqüentes, já que

o ardor em crescendo de sua afeição por Mary o inclinava ainda mais

pelos de sua família.

Mr. Garth tinha um pequeno escritório na cidade, aonde Fred foi


com seu pedido. Conseguiu sem muita dificuldade o que queria, pois as

grandes dosagens de experiência penosa não bastaram para tomar Caleb

Garth cauteloso quanto a seus próprios negócios, nem desconfiado dos

seus semelhantes antes que se revelassem indignos de confiança; e ele

tinha as melhores opiniões sobre Fred, estava "claro que o garoto ia

sair-se bem - um sujeito aberto e afetuoso, com um caráter de base

sólida - com quem sempre se podia contar." Tal era a argumentação

psicológica de Caleb. Era um desses raros homens que, sendo rígidos

com eles mesmos, são indulgentes com os outros. Envergonhava-se um

pouco dos erros de seus vizinhos, e nunca de bom grado falava deles;

ILindIey Murray (1745-1826) e Mrs. Richmal Mangnall (1769-1820), autores de

livros didá-

ticos adotados na época na C rã-Bretanha.

MIDDLEMARCH

255

não era pois de se esperar que desviasse sua atenção do melhor método

de endurecer madeira e outros engenhosos procedimentos para precon-

ceber tais erros. Se tivesse de censurar alguém, era preciso ele arrumar

todos os papéis ao seu alcance, ou descrever com a bengala vários diagra-

mas, ou calcular o quanto tinha em moedas no bolso, antes de poder

começar; e preferiria fazer trabalho alheio a encontrar defeito no que os

outros faziam. Temo que fosse um mau chefe de disciplina.

Quando Fred expôs as circunstâncias de sua dívida, a vontade que

tinha de saldá-la sem incomodar seu pai e a certeza de que o dinheiro

viria em breve para não criar para ninguém uma situação embaraçosa,

Caleb puxou os óculos para cima, ouviu, fitou os olhos claros e jovens

de seu favorito e acreditou nele, não fazendo distinção entre a confiança


no futuro e a veracidade quanto ao passado; mas sentiu que a ocasião

era propícia a uma amistosa alusão à conduta, e que antes de dar seu

aval ele também devia dar uma descompostura. Por conseguinte, apa-

nhou o papel e abaixou os óculos, calculou o espaço de que dispunha,

alcançou a pena e examinou-a, mergulhou-a no tinteiro examinando-a

de novo e então arredou um pouco o papel, ergueu outra vez os óculos,

deixou à mostra no ângulo externo de suas grossas sobrancelhas uma

ligeira depressão que lhe imprimia à face peculiar brandura (perdoe-me

o leitor tais detalhes - passaria a apreciá-los melhor se tivesse conheci-

do Caleb Garth em pessoa) e finalmente disse num tom consolador:

"Que azar, hem, quebrar as pernas do cavalo? E depois essas trocas

não dão certo, quando se tem de lidar com gente astuta. Da próxima

vez, meu jovem, você há de ter mais juízo."

Dito o quê, Caleb abaixou os óculos e preparou-se para fazer sua

assinatura com o cuidado que sempre consagrava a este ritual; pois tudo

o que ele tinha de fazer, fazia bem. Contemplou as grandes letras bem

proporcionadas e o arabesco final, pondo por um instante a cabeça meio

de lado, devolveu o papel a Fred, disse "Adeus" e sem demora voltou à

sua absorção numa planta para novas construções na fazenda de Sirjames

Chettam.

Fosse porque seu interesse pelo trabalho lhe excluísse da lembrança

o incidente da assinatura, fosse por alguma outra razão de que Caleb

estivesse mais consciente, o fato é que Mrs. Garth permaneceu na igno-

râncía do assunto.

Pouco tempo depois, uma mudança nos horizontes de Fred veio a

alterar suas noções de distância, tendo sido a razão pela qual o presente

em dinheiro de seu tio Featherstone foi suficientemente importante para

fazer o sangue aflorar-lhe ao rosto e sumir, primeiro numa expectativa

256
GEORGE ELIOT

muito concreta, depois numa proporcional decepção. Seu fracasso nos

exames tomara o acúmulo de suas dívidas durante a escola ainda mais

imperdoável para o pai, e tinha havido em sua casa uma tormenta sem

precedentes. Mr. Vincy jurara que, se mais alguma coisa da espécie ainda

viesse a envolvê-lo, Fred seria posto porta afora, tendo de se sustentar

como bem pudesse; e até então ele não havia recuperado seu bom hu-

mor costumeiro ao falar com o filho, que o enraivecera particularmente

por dizer àquela altura das coisas que ele não queria ser clérigo e prefe-

ria "desistir daquilo." Fred sabia que seria tratado ainda com mais seve-

ridade, se sua família e ele mesmo não o vissem secretamente como

herdeiro de Mr. Featherstone; servindo o orgulho que o velho tinha dele,

e a aparente simpatia que lhe votava, para suprir sua falta de uma con-

duta mais exemplar - assim como, quando um rapaz da nobreza prati-

ca um roubo de jóias, falamos de um ato de cleptomania, abordamos o

assunto com um sorriso filosófico e não pensamos jamais em mandá-lo

para o reformatório como se ele fosse um qualquer, um menino maltra-

pilho que andasse roubando nabos. De fato, as expectativas tácitas do

que seria feito por ele pelo Tio Featherstone determinavam o ângulo

pelo qual a maioria das pessoas viam Fred Vincy em Middemarch; e, em

sua própria consciência, o que o Tio Featherstone poderia fazer por ele

numa emergência, ou simplesmente em termos de sorte incorporada,

sempre formava uma profundidade imensurável de perspectiva aérea.

Mas o presente feito em notas, tão logo feito, foi mensurável, e contra-

posto sem delongas ao montante da dívida acusou um déficit que resta-

va ser preenchido, quer pelo "critério" de Fred quer por outro tipo de

sorte. Pois o breve episódio do alegado empréstimo, no qual ele induzi-

ra seu pai a agir como intermediário para obter a declaração de BuIstrode,

era um novo motivo para não ir pedir dinheiro ao pai a fim de quitar sua

verdadeira dívida. Fred era bastante esperto para antever que a raiva
embaralharia as distinções, e que uma negativa sua de ter conseguido

um empréstimo dando por garantia o testamento do tio seria tomada

como falsidade. Ele já tinha ido falar com seu pai sobre um assunto

molesto, deixando um outro às ocultas: a revelação completa, nestes

casos, sempre causa uma impressão de duplicidade prévia. Por outro

lado, Fred se gabava de se furtar às mentiras e até a simples lorotas;

muitas vezes dava de ombros e fazia uma expressiva careta ao que ele

próprio chamava as lorotas de Rosamond (só mesmo um irmão para

associar tal idéia a uma garota adorável); a sofrer uma acusação de falsi-

dade, preferiria portanto até sofrer com alguma preocupação e auto-

controle. Foi sob forte pressão interior desta espécie que Fred dera o

MIDDLEMARCH

257

sensato passo de depositar com sua mãe as oitenta libras. E pena foi que

as não tivesse entregue a Mr. Garth logo; com mais sessenta ele queria

porém fazer a soma completa, e para tanto deixara vinte libras no bolso

como uma espécie de semente que, plantada pelo bom senso e aguada

pela sorte, poderia render mais de três vezes - um baixíssimo índice de

multiplicação quando o campo é o infinito fervor de um homem jovem,

com todos os números a seu comando.

Fred não era um jogador: não tinha esta doença específica na qual o

condicionamento de toda a energia nervosa a uma probabilidade ou ris-

co se torna tão necessário quanto o trago para o ébrio; tinha apenas

tendência a uma forma difusa do prazer nas apostas, a qual está despro-

vida de intensidade alcoólica, mas desenvolve-se com o sangue rico em

linfa e saudável, mantendo uma alegre atividade imaginativa que mode-

la os fatos pelo desejo e, livre de medo do seu próprio mau tempo, só vê

vantagens para outros que embarquem nela também. A esperança reple-


ta tem prazer em seus lances, faça-os de que tipo for, porque a perspec-

tiva de sucesso é certa; e um prazer ainda mais generoso se oferece, a

tantos quantos puder, participar das disputas. Fred gostava de jogar,

principalmente bilhar, como gostava de caçar ou de entrar numa corrida

de cavalos com obstáculos; e no fundo gostava mais ainda porque queria

dinheiro e esperava ganhar. A semente das suas vinte libras tinha sido

porém plantada em vão no sedutor campo verde - tudo ao menos que

restara de sua dispersão à beira da estrada - e Fred foi-se aproximando

do dia do vencimento sem outra quantia a seu dispor além das oitenta

libras que havia depositado com a mãe. O cavalo sem fôlego que ele

montava era um presente que seu tio Featherstone lhe fizera há um bom

tempo atrás: seu pai sempre lhe permitira ter um cavalo, já que os pró-

prios hábitos de Mr. Vincy forçavam-no a considerar razoável este requi-

sito, mesmo em se tratando de um filho que o exasperava bastante. O

cavalo, portanto, era um bem que pertencia a Fred, e em sua ansiedade

de fazer face ao pagamento iminente ele resolveu sacrificar um património

sem o qual com certeza a vida não valeria tanto a pena. Foi com uma

ponta de heroísmo que tomou tal decisão - um heroísmo que lhe im-

punham seu pavor de não manter a palavra com Mr. Garth, seu amor por

Mary e o medo dos julgamentos dela. Partiria ele para a feira de cavalos

de Houndsley, a ser realizada na manhã seguinte, e - simplesmente

venderia seu cavalo, trazendo o dinheiro de volta pela diligência? Bem,

era difícil que o cavalo desse mais de trinta libras, e não havia como

saber o que poderia acontecer: seria pura loucura descrer da sorte antes

da hora. Era probabilíssimo que uma boa chance surgisse em seu cami-

258

GEORGE EuoT

nho: quanto mais pensava nisto, menos lhe parecia possível que a não
tivesse, e menos razoável não se munir de pólvora e cartuchos para abatê-

Ia ao passar. Iria a Houndsley com Bambridge e Horrock, "o veteriná-

riof e sem nada lhes perguntar diretamente contaria na prática com as

opiniões que expressassem. Antes de partir, Fred apanhou com sua mãe

as oitenta libras.

Quase todos os que o viram saindo de Middiemarch a cavalo, em

companhia de Bambridge e Horrock, a caminho da feira de Houndsley,

naturalmente pensaram que o jovem Vincy andava em busca de prazer

como sempre; e ele próprio, não fosse a consciência infreqüente de graves

questões em mãos, ter-se-la sentido à dissipação de fato, fazendo o que

era de se esperar de um rapaz alegre. Considerando-se que Fred não era

nada grosseiro, que até olhava com desdém para as maneiras e a fala dos

rapazes que não haviam estado na universidade, e que ele já escrevera

estrofes tão pastoris e sem volúpia como o som da flauta em seus lábios,

sua atração por Bambridge e Horrock era um fato interessante que nem o

amor por cavalos explicaria de todo sem essa influência misteriosa dos

Nomes, que ao serem dados às coisas determinam grande parte da esco-

lha humana. Sob qualquer outro nome que não "prazer," decerto, o con-

vívio com Messieurs Bambridge e Horrock teria sido visto como monóto-

no; e chegar com eles a Houndsley na garoa da tarde, apear no Red Lion

numa rua negra de fuligem, jantar num recinto decorado por um imundo

mapaesmaltado do condado, um mau retrato de um anônimo cavalo numa

cocheira, Sua Majestade Jorge IV de botas e gravata, e ainda várias

escarradeiras de chumbo, teria parecido uma ocasião penosa, não fosse a

força de sustentação da nomenclatura, a qual determinava ser "alegre" a

procura das coisas deste tipo.

Em Mr. Horrock existia sem dúvida uma insondabilidade aparente

que dava tratos à imaginação. Seu traje, já num bater de olhos, eviden-

ciava-o em excitante associação com cavalos (basta mencionar a aba do

chapéu, que subia no menor ângulo possível, apenas para escapar à sus-

peita de se dobrar para baixo), e o rosto que a natureza lhe dera, por
força dos seus olhos mongóis e de um nariz, boca e queixo que pareciam

acompanhar o chapéu em moderada inclinação para cima, dava por seu

turno a impressão de um sorriso cético, imutável, contido, de todas as

expressões a mais tirânica para uma mente susceptível e, quando acom-

panhada de adequado silêncio, capaz de criar a reputação de um conhe-

cimento imbatível, de um infinito fundo de humor - seco demais para

fluir e provavelmente em estado de crosta permanente - e deuma ca-

pacidade de julgamento crítico que, tivesse você tido a felicidade de

MIDDLEMARCH

259

conhecê-la, seria o ponto final.  uma fisionomia vista em todas as voca-

ções, mas que talvez nunca tenha causado tanta impressão à juventude

inglesa quanto num conhecedor de cavalos.

Mr. Horrock, a uma pergunta de Fred sobre o boleto de sua montaria,

pôs-se de lado sobre a sela e acompanhou por três minutos o andar do

cavalo, depois virou-se para a frente, puxou as rédeas e permaneceu em

silêncio, com um perfil nem mais nem menos cético que anteriormente.

A parte assim representada em diálogo por Mr. Horrock foi de uma

eficácia terrível. Uma mistura de paixões excitou-se em Fred - um desejo

louco de arrancar à força a opinião de Horrock, contido pela ansiedade de

reter os benefícios de sua amizade. Sempre havia a possibilidade de que

Horrock dissesse alguma coisa valiosíssima no momento certo.

Mr. Bambridge era mais aberto em seus modos e, ao expressar suas

idéias, não economizava palavras. Espalhafatoso e robusto, dele às ve-

zes se dizia que era "dado a excessos" - principalmente ao beber, blas-

femar e bater na mulher. Certas pessoas já lesadas por ele chamavam-no

de degenerado; já o próprio porém considerava a compra e venda de

cavalos o melhor negócio do mundo, e bem que poderia sustentar de


modo plausível que a moralidade não entrava em causa no ramo. Inega-

velmente ele era um homem próspero, agüentava mais a bebida do que

outros agüentavam a própria moderação e, no todo, florescia como um

loureiro verde. Mas o alcance de sua conversação era limitado e, como a

velha e bela balada "Gotas de Conhaque," dava em pouco tempo a im-

pressão de retornar sobre si mesma a um modo capaz de deixar zonzas

as cabeças mais fracas. Notava-se contudo que uma ligeira infusão de

Mr. Bainbridge dava o tom e o espírito a vários círculos em Middemarch;

e ele era uma figura de proa no bar e no salão de bilhar do Green Dragon.

Sabia casos sobre os heróis do turfe, como sabia de muitos golpes esper-

tos de Marqueses e Viscondes, os quais aparentemente provavam que a

preeminência do sangue era afirmada até mesmo entre os trapaceiros;

mas a minuciosa capacidade de retenção de sua memória evidenciava-se

principalmente em relação aos cavalos que ele havia vendido e compra-

do; o número de léguas que podiam cobrir em pouco tempo sem perder

nem um pêlo ainda era, após um lapso de anos, um tema de afirmaçao

apaixonada com o qual ele alimentaria a imaginação de seus ouvintes,

jurando que jamais tinham visto nada igual. Mr. Bambridge, em suma,

homem dado ao prazer, era um companheiro animado.

Fred era sutil, e não havia falado a seus amigos que iria a Houndsley

com a intenção de pôr seu cavalo à venda: queria descobrir indiretamen-

te que verdadeira opinião eles tinham sobre seu valor, não sabendo que

260

GEORGE ELIOT

uma opinião verdadeira era a última coisa a poder ser extraída de tão

eminentes críticos. Desmanchar-se gratuitamente em louvores não era

uma fraqueza de Mr. Bambridge. E nunca lhe havia impressionado tanto

o fato de este infeliz cavalo baio ter um grau de ronqueira do qual só a


palavra mais perfeita para dizer condenação absoluta poder-lhe-la dar

uma idéia.

"Você deu um passo errado quando resolveu fazer negócio com ou-

tro e não comigo, Vincy! Porque nunca você teve entre as pernas um

cavalo mais completo do que aquele castanho, e foi trocá-lo por este

pangaré. Este, se a gente o põe a meio galope, sai logo bufando tanto

quanto uma turma de serradores no eito. Em toda a minha vida só ouvi

um cavalo mais roncador, e era um ruão: pertencia a Pegwell, o cerealista;

há uns sete anos atrás ele ainda o atrelava no seu cabriolé, e bem que

quis que eu ficasse com a raridade, mas eu disse: "Não, Peg, muito obri-

gado, não negocio com instrumentos de sopro." Pois é, foi o que eu

disse. E a chacota correu por toda a região. Mas o cavalo, que diacho!,

era uma trombeta de um tostão, comparado com este seu roncador."

"Ora esta, você acaba de dizer que o dele era pior do que o meu,"

disse Fred, mais irritadiço que de costume.

"Então eu disse uma mentira," disse Mr. Bambridge, enfaticamente.

"Não havia nem um tostão de diferença entre os dois."

Fred esporeou seu cavalo, e eles trotaram mais um pouco adiante.

Quando outra vez refrearam, Mr. Bambridge disse:

"Nada, a não ser que o tal ruão era melhor de trote que o seu."

"Pois sei é que estou muito satisfeito com o passo dele," disse Fred,

forçado a recorrer à plena consciência de achar-se em companhia anima-

da para suportá-lo; "ouso até dizer que seu trote é um dos mais regula-

res, não é, Horrock?"

Mr. Horrock olhou à frente com uma neutralidade tão completa como

se fosse um retrato por um grande mestre.

Fred desistiu da falaciosa esperança de obter uma opinião verdadei-

ra; mas ao refletir ele achou que tanto a depreciação de Bambridge quanto

o silêncio de Horrock eram ambos virtualmente encorajadores, indican-

do que eles davam mais valor ao cavalo do que resolviam dizer.

Nesta mesma noite, de fato, antes de iniciar-se a feira, Fred julgou


ter visto uma oportunidade favorável a um vantajoso negócio com seu

cavalo, a qual de resto fê-lo parabenizar-se por sua antevisão em trazer

consigo as oitenta libras. Um jovem fazendeiro, conhecido de Mr.

Bambridge, apareceu no Red Lion e logo puxou conversa sobre sua in-

tenção de desfazer-se de um cavalo de caça que ele apresentou como

MIDDLEMARCH

261

Diamond, dando a entender que era uma celebridade. Para si mesmo

não queria senão um bom matungo que, havendo necessidade, pudesse

ser atrelado; pois ele estava para se casar e desistir das caçadas. O cavalo

se achava perto dali, na cocheira de um amigo; e ainda havia tempo de

vê-lo antes do escuro, se os cavalheiros quisessem. A cocheira do amigo

teve de ser alcançada por uma rua nos fundos onde seria tão fácil alguém

se envenenar sem precisar tomar drogas como em qualquer ruela tene-

brosa desta época alheia às condições de higiene. Fred não saíra fortale-

cido pelo conhaque contra o nojo, como seus companheiros, mas a cren-

ça de afinal ter visto o cavalo que o habilitaria a ganhar dinheiro foi

suficientemente animadora para conduzi-lo pelo mesmo caminho, logo

que acordou de manhã. Estava certo de que, se não chegasse a fazer

negócio com o fazendeiro, Bambridge o faria; pois a força das circuns-

tâncias, Fred sentia, andava a aguçar-lhe a perspicácia, dotando-o do

poder construtivo da suspeita. Bambridge havia menosprezado Diamond

de um modo como nunca o teria feito (sendo de um amigo o cavalo), se

ao mesmo tempo não quisesse comprá-lo; todos que tinham visto o ani-

mal - até mesmo Horrock - impressionaram-se evidentemente com

seus méritos. Para obter plena vantagem da companhia de homens des-

ta espécie, é preciso saber extrair as próprias inferências, e não, como

um boboca, tomar tudo ao pé da letra. A cor do cavalo era um cinza


malhado, e Fred sabia que um homem de Lord Medicote andava justa-

mente à procura de um cavalo assim. Depois de tanto menosprezo,

Bambridge passou à sobrestima no decurso da noite, ausente agora o

fazendeiro, quando disse que cavalos piores ele já tinha visto vendidos

por oitenta libras. Claro está que se contradisse vinte vezes, mas, quan-

do se tem alguma idéia do que há de ser a verdade, podese pôr à prova

as afirmações de um homem. E Fred não podia senão reconhecer sua

própria capacidade de saber quanto valia um cavalo. O tempo que o

fazendeiro ficara diante do animal de Fred, respeitável malgrado o fôle-

go curto, tinha dado para mostrar que ele o julgava digno de considera-

ção, e parecia provável que se decidisse a aceitá-lo, com vinte e cinco

libras de quebra, numa troca pelo Diamond. Neste caso Fred, quando se

desfizesse do seu novo cavalo por pelo menos oitenta libras, e tendo

cinqüenta e cinco no bolso com a transação, ficaria com cento e trinta e

cinco libras para o pagamento da dívida; de modo que o saldo devedor

sob responsabilidade temporária de Mr. Garth seria no máximo de vinte

e cinco. Enquanto punha apressadamente sua roupa, pela manhã, viu

com tal clareza a importância de não perder esta chance rara que, se

Bambridge e Horrock quisessem dissuadi-lo, ele não se iludiria com uma

262

GEORGE EuoT

interpretação direta do objetivo deles: ter-se-la dado conta de que aque-

las mãos cavas não sopesavam propriamente os interesses de um jovem,

mas outra coisa. Em relação aos cavalos, sempre a desconfiança se im-

punha. Mas o ceticismo, como sabemos, nunca pode ser aplicado na

íntegra, pois senão a vida acabaria por ir à paralisação: fazer e acreditar

nalguma coisa é forçoso e, seja qual for o nome que se der a esta coisa,

virtualmente ela é o nosso próprio bom senso, mesmo quando pareça a


mais cativa confiança em outrem. Fred acreditava que a sua era uma

excelente barganha e, antes mesmo de a feira estar abertaJá ele entrara

na posse do malhado cinza, pelo valor de seu cavalo velho mais trinta

libras de quebra - apenas cinco a mais do que contava dar.

Sentia-se porém um pouco preocupado e cansado, talvez em decor-

rência do debate mental, e sem esperar pelos divertimentos ulteriores da

feira ele partiu sozinho para a viagem de mais de vinte quilômetros, dis-

posto a fazê-la com toda a calma e a manter seu cavalo em boa forma.

CAPÍTULO XXIV

"The offender"s sorrow brings but sinall relief

To him who wears the strong offénce"s cross."

- SHAKESPEARE: Sonnets.

€A dor do ofendedor traz pouco alívio

A quem carrega a cruz da ofensa feita.")

- SHAKESPEARE: Sonetos."

LAMENTO DIZER QUE logo no terceiro dia após os auspiciosos aconteci-

mentos em Houndsley, Fred Vincy já havia caído num abatimento pro-

fundo, pior que tudo que já conhecera na vida. Não que se decepeionas-

se quanto à possível venda de seu cavalo, mas sim que, antes de ser

fechado o negócio com o valete de Lord Medicote, o tal do Diamond,

no qual fora investida uma esperança de oitenta libras, sem dar sinal de

advertência tinha exibido na cocheira uma viciosa energia para escoicear,

por pouco tendo escapado de matar o palafreneiro para afinal ter-se gra-

vemente ferido ao ficar com a perna presa numa corda pendurada na

lateral da cocheira. E era irremediável a coisa, tal como após o casamen-


to a descoberta de que existe um mau gênio - do qual os velhos amigos

já sabiam decerto antes da cerimônia. Por esta ou por aquela razão, Fred

não teve sua habitual elasticidade diante do golpe de má sorte: simples-

mente estava advertido de que só tinha cinqüenta libras, de que não

havia hipótese de conseguir mais no momento e de que a conta no valor

de cento e sessenta lhe seria apresentada em cinco dias. Mesmo que

recorresse ao seu pai, pretextando que era imperioso salvaguardar Mr.

"Soneto 34.

264

GEORGE ELIOT

Garth de perdas, Fred sabia e até muitíssimo bem que o pai se recusaria

colérico a livrar Mr. Garth das conseqüências do que em suas próprias

palavras seria considerado um estímulo à extravagância e à fraude. Tão

deprimido estava ele que era incapaz de vislumbrar outra saída a não ser

ir diretamente a Mr. Garth e lhe contar a triste verdade, levando consigo

as cinqüenta libras e pelo menos tirando em segurança de suas mãos

esta soma. O pai, estando no armazém, ainda não sabia do acidente:

quando soubesse, ficaria uma fera com aquele monstro perverso em seu

estábulo; e Fred, antes de enfrentar este incômodo menor, queria despa-

char-se com toda a sua coragem para se haver com o maior. Pegou por-

tanto o cavalo do pai, tendo decidido que, após conversar com Mr. Garth,

iria até Stone Court para confessar tudo a Mary. De fato, não fosse a

existência de Mary e o amor que ele nutria por ela, é provável que a

consciência de Fred tivesse sido muito menos ativa, tanto em ficar repi-

sando no seu pensamento a dívida quanto a depois o impelir a não se

esquivar, como era seu hábito, pospondo sempre uma desagradável ta-

refa, mas sim a agir tão simples e diretamente quanto pudesse. Até mor-
tais muito mais fortes do que Fred Vincy mantinham sua retidão com o

pensamento voltado para o ser que eles mais amavam. "O teatro de

todas as minhas ações ruiu," disse um antigo personagem quando seu

melhor amigo morreu; e felizes são os que têm um teatro onde a audiên-

cia lhes pede o máximo. Certamente teria feito considerável diferença

para Fred na época se Mary Garth não dispusesse de noções bem claras

sobre o que havia a admirar no caráter.

Mr. Garth não estava no escritório, e Fred foi para a residência dele,

que ficava um pouco fora da cidade - uma casa bem simples com um

pomar na frente, uma velha e desordenada construção com vigas de

madeira aparentes, que antes da expansão da cidade havia sido uma

sede de fazenda, mas agora estava rodeada pelas hortas particulares dos

moradores do centro. Gostamos mais de nossas casas quando elas têm

fisionomia própria, como nossos amigos. A família Garth, que não era

nada pequena, pois Mary tinha quatro irmãos e uma irmã, adorava sua

velha casa, cujos melhores móveis de há muito haviam sido vendidos.

Fred também gostava dela e a conhecia de cor até o sótão, com um

cheiro delicioso de maçã e marmelo, e até hoje nunca fora ali sem agra-

dáveis expectativas; mas seu coração batia agora intranqüilo porque ele

talvez tivesse de fazer sua confissão diante de Mrs. Garth, que lhe inspi-

rava mais temor que o marido. Não que ela se inclinasse, como Mary, ao

sarcasmo e aos ditos impulsivos. Ao menos na sua idade atual, como

mãe de família, Mrs. Garth não se permitia jamais ser afobada ao falar;

MIDDLEMARCH

265

tendo estado no jugo na juventude, como dizia, e aprendido a se contro-

lar. Possuía ela esse sentido raro que discerne o que é inalterável e se

submete sem queixume. Adorando as virtudes do marido, muito cedo se


apercebera de sua incapacidade para cuidar dos seus próprios interesses,

e alegremente agüentara as conseqüências. Suficientemente magnãoni-

ma, renunciara a toda vaidade por coisas como bules de chá ou vestidinhos

de crianças, e nunca havia despejado confidências patéticas nos ouvidos

das vizinhas sobre a falta de prudência de Mr. Garth e as somas que ele

poderia ter ganho, se fosse como os outros homens. Donde as boas vizi-

nhas julgarem-na orgulhosa ou excêntrica, mencionando-a às vezes,

quando falavam dela com seus maridos, como "a tal da Mrs. Garth."

Esta não deixava de as criticar por seu turno, tendo tido instrução mais

completa que a maioria das matronas de Middemarch e - onde está a

mulher inatacável? - tendendo a ser um pouco severa com seu próprio

sexo, o qual na sua opinião estava constituído para subordinar-se de

todo. Por outro lado, mostrava-se desproporcionalmente indulgente com

as fraquezas dos homens, e ouviam-na dizer com freqüência que eram

naturais. Mas deve-se admitir também que Mrs. Garth abusava da ênfa-

se em sua resistência ao que sustentava serem loucuras: a passagem de

preceptora para dona de casa tinha ficado impressa muito a fundo em

sua consciência e raramente ela se esquecia de que, embora sua pronún-

cia e gramática estivessem acima da média na cidade, ela usava uma

simples touca, cozinhava para a família e cerzia todas as meias. Tivera

algumas vezes alunos a um modo peripatético, fazendo-os andar pela

cozinha atrás dela, com seu livro ou sua lousa. Julgava bom para eles

que vissem como ela podia fazer uma excelente espuma de sabão en-

quanto corrigia seus erros "sem olhar," - como uma mulher que arrega-

çava as mangas acima dos cotovelos podia saber tudo sobre o Modo

Subjuntivo ou a Zona Tórrida - como, em suma, ela podia ter "educa-

ção" e outras boas coisas terminadas em "ção", e que mereciam ser pro-

nunciadas com ênfase, sem ser uma boneca inútil. Ao fazer observações

com esta intenção edificante, franzia um pouco, mas com firmeza, as

sobrancelhas, o que não privava seu rosto do ar de benevolência, e as

palavras que lhe afluíam como em cascata eram pronunciadas numa voz
de contralto, agradável e férvida. Certamente a exemplar Mrs. Garth os-

tentava seus aspectos cômicos, mas o caráter lhe mantinha as bizarrices,

assim como um vinho muito bom mantém o sabor do odre.

Para com Fred seus sentimentos eram matemais, e ela estava sem-

pre disposta a perdoar-lhe os erros, embora provavelmente não perdoasse

Mary caso se comprometesse com ele, estando sua filha incluída na-

266

GEORGE ELIOT

quele julgamento rigoroso que ela aplicava a seu próprio sexo. Mas já o

fato de sua excepeional complacência em relação a ele tomava mais difí-

cil para Fred a possibilidade de ele agora inevitavelmente baixar no seu

conceito. E as circunstâncias desta visita revelaram-se ainda mais desa-

gradáveis do que havia esperado; pois Caleb Garth saíra cedo para visto-

riar umas obras, não muito longe. Mrs. Garth em certas horas estava

sempre na cozinha, e nesta manhã lá se livrava ela a várias ocupações ao

mesmo tempo - fazendo suas tortas na mesa de tábuas muito limpa a

um lado do cômodo tão bem arejado, vigiando por uma porta aberta os

movimentos de Sally a pôr a massa no forno, e ainda dando lições para

seu filho e a filha mais novos, ambos em pé do outro lado da mesa,

diante dos seus livros e lousas. No extremo oposto da cozinha, uma tina

e um varal indicavam que intermitentemente uma ou outra coisinha era

também lavada.

Mrs. Garth, com as mangas dobradas acima dos cotovelos, metendo

com jeito a mão na massa - a aplicar-lhe o rolo e a dar-lhe puxões

ornamentais enquanto expunha com fervor gramatical as regras certas

sobre a concordância de verbos e pronomes com "os nomes coletivos ou

que significam muitos," constituía deveras cena das mais interessantes.

Tinha o mesmo rosto anguloso e o cabelo cacheado de Mary, sendo po-


rém mais bonita, com feições mais delicadas, pele muito clara, sólida

compleição mulheril e, no olhar, uma firmeza notável. Em sua alva touca

de babados ela trazia à lembrança uma dessas deleitosas francesas que

todos já pudemos ver indo às compras, de cestinha no braço. Era de se

esperar, vendo-se a mãe, que a filha fosse ficar que nem ela, perspectiva

vantajosa e equivalente a um dote - já que no mais das vezes a mãe

avulta por detrás da filha como uma profecia maligna - "Tal como eu

sou, ela há de ser em breve."

"Agora vamos repetir outra vez," disse Mrs. Garth, preparando um

folheado de maçã que parecia distrair a atenção de Ben, um jovenzito

cheio de energia e de bastas sobrancelhas, e o não deixava acompanhar

devidamente a lição. ""Não sem levar em conta a importância da palavra

que transmite unidade ou pluralidade de idéia" - explique-me de novo

o que quer dizer isto, Ben."

(Mrs. Garth, à semelhança de educadores mais aplaudidos, tinha seus

velhos caminhos prediletos e, num naufrágio geral da sociedade, esfor-

çar-se-la por manter acima d"água o seu "Lindey Murray".)

"Oh - quer dizer - que a gente tem de pensar no que quer di-

zer," disse Ben, visivelmente enjoado. "Detesto gramática. Pra quê

que serve?"

MIDDLEMARCH

267

"Para lhe ensinar a falar e escrever corretamente, de modo a se fazer

compreender," disse Mrs. Garth, com uma severa precisão. "Você gosta-

ria de falar como o velho Job?"

"Gostaria sim," disse Ben, resoluto; "é mais gozado. Quando ele diz

"Ocê vai" - é o mesmo que "Você vai.`

", mas ele diz "Tem uma velha no jardim," ao invés de "uma ove-
lha,` disse Letty, com ar de superioridade. "A gente podia achar que era

uma velha de foraf

"Só não podia se voce não fosse enjoada," disse Ben. "Como que

uma velha de fora ia aparecer no jardim?"

"Tudo isto só se relaciona à pronúncia, que é a parte menos impor-

tante da gramática," disse Mrs. Garth. "Estas cascas de maçã, Ben, são

para os porcos; se você comê-las, terei de dar para eles o seu pedaço de

torta. O Job só precisa falar das coisas simples da vida. Mas você, como

acha que vai conseguir escrever ou falar sobre assuntos mais difíceis, se

não souber mais gramática que ele? Decerto vai usar palavras erradas,

ou dizê-las nos momentos errados, e as pessoas se afastarão de você

como de um tipo cansativo, ao invés de entendê-lo. E o que fará neste

caso?"

"Eu? Darei o fora sem ligar para nada," disse Ben, convencido de

que em relação à gramática até que seria uma saída agradável.

"Pelo que vejo, o cansaço já o deixou meio bobo, Ben," disse Mrs.

Garth, acostumada com os embaraçosos argumentos de seu pimpolho.

Terminadas as tortas, ela se aproximou do varal e disse: "Venham cá,

crianças, e contem-me aquela história que eu contei quarta-feira, sobre

Cincinato."I

"Eu sei! Ele era um fazendeirof disse Ben.

"Que isso, Ben, era um romano! - deixe que eu contof disse Letty,

a usar contenciosamente seu cotovelo.

"â sua enjoada, era um fazendeiro romano, e que estava arando a

terraf

"Sim, mas antes disto - não foi assim que começou - primeiro o

pessoal queria ele," disse Letty.

"Está bem, mas primeiro a gente tem de dizer que tipo de homem

que ele era," insistiu Ben. "Era um homem que sabia muito, como meu

pai, e por isto o povo queria seus conselhos. E era um homem valente,

não fugia da luta. Meu pai também não - não é, mãe?"


"Lúcio Quinto Cincinato, eleito cônsul em 458 a.C., posteriormente foi

chamado a Roma de

volta para se tornar ditador.

268

GEORGE ELIOT

"Peraí, Ben, deixe eu logo contar a história toda, como mamãe con-

tou pra gente," disse Letty, já fazendo cara feia. "Por favor, mãe, diga ao

Ben pra não falar."

"Você me envergonha, Letty," disse a mãe, torcendo toucas que tira-

va da tina. "Quando seu irmão começou, você deveria ter esperado para

ver se ele seria capaz de contar a história. Que grosseira você parece que

é, empurrando e fazendo cara feia como se quisesse vencer pelos cotove-

los! Estou certa de que Cincinato lamentaria muito, se visse a filha dele

se comportar assim." (Esta frase horrorosa foi dita por Mrs. Garth com

muito da imponência que há num enunciado, e Letty sentiu que entre a

loquacidade reprimida e a desestima de todos, inclusive a dos romanos,

a vida para ela já era coisa penosa.) "E então, Ben?"

"Bem - aí - bem - daí que houve uma brigalhada medonha, e eram

todos uns broncos, e - não, não sei contar como você contou - mas sei

que eles queriam um homem para ser comandante e rei e tudo -"

"Faltou ditador," disse Letty, com um olhar ofendido, e não sem

desejo de fazer sua mãe arrepender-se.

"Muito bem, ditador!" disse Ben, desdenhosamente. "Mas a palavra

não é boa: ele nunca mandou eles escreverem na lousa."

"Que isso, Ben, você não é tão ignorante assim," disse Mrs. Garth,

com cuidado para não sair do sério. "Mas ouçam, estão batendo na por-

ta! Corra, Letty, vá abrir."


A batida era de Fred; e quando Letty disse que seu pai ainda não

tinha voltado, mas a mãe estava na cozinha, Fred não teve alternativa.

Não poderia abster-se de seu hábito de ir cumprimentar Mrs. Garth onde

por acaso ela estivesse ao trabalho. Em silêncio ele passou o braço pelos

ombros de Letty e com ela foi para a cozinha, sem seus carinhos e brin-

cadeiras de praxe.

Mrs. Garth surpreendeu-se por ver Fred àquela hora, mas a surpresa

não era um sentimento que fosse dada a expressar, e ela apenas disse,

continuando a trabalhar calmamente:

"Você, Fred, já tão cedo assim? E está tão pálido. Aconteceu alguma

coisa?"

"Quero falar com Mr. Garth," disse Fred, ainda não preparado para

dizer mais - "e também com a senhora," acrescentou após breve pausa,

pois não tinha dúvida de que Mrs. Garth sabia tudo sobre a promissória,

e ele acabaria tendo de falar diante dela, se não só para ela.

"Caleb há de voltar dentro de poucos minutos," disse Mrs. Garth,

que imaginou algum problema entre Fred e o pai dele. " certo que não

se demore, porque há um trabalho em sua mesa que ainda tem de ser

MIDDITMARCH

269

feito esta manhã. Você se importa de ficar comigo, enquanto acabo aqui

meus afazares?"

"Mas não vamos ter de continuar com o Cincinato, vamos?" disse

Ben, que havia tomado da mão de Fred o chicote e o experimentava,

com eficiência, no gato.

"Não, agora vá para fora. Mas largue este chicote aí. Que maldade,

bater no coitado do Tortoise! Tome o chicote dele, Fred, por favor."

"Vamos, amigo, dê-me isto," disse Fred, estendendo a mão.


"Você me deixa andar no seu cavalo hoje?" disse Ben, entregando o

chicote com um ar de não estar sendo obrigado a fazê-lo.

"Hoje não - outro dia. O cavalo com que eu estou não é meu."

"Você vai ver a Mary hoje?"

"Acho que sim," disse Fred, sentindo uma desagradável pontada.

"Diz a ela pra vir aqui em casa logo, pra gente brincar e fazer um

jogo de prendas."

"Chega, Ben, chega! vá dar uma volta," disse Mrs. Garth, ao ver que

Fred estava incomodado.

"Letty e Ben são os seus únicos alunos agora, Mrs. Garth?" disse

Fred, tendo as crianças já saído e sendo então necessário dizer alguma

coisa para passar o tempo. Ele não tinha ainda certeza se deveria esperar

por Mr. Garth, ou valer-se de uma oportunidade que a conversa propicias-

se para fazer sua confissão à própria Mrs. Garth, entregar-lhe o dinheiro

e ir-se embora.

"Uma - só uma aluna. Fanny Hackbutt vem às onze e meia. Não

tenho feito muito dinheiro," disse Mrs. Garth, com um sorriso. "No to-

cante a alunos, a maré anda baixa. Mas consegui juntar minhas econo-

mias para a aprendizagem do Alfred: tenho noventa e duas libras. Ele

agora já pode começar com Mr. Harimer; está bem na idade."

Não, não era uma boa introdução à notícia de que Mr. Garth estava

à beira de perder mais do que tal quantia. Fred ficou calado. "Com os

rapazes que vão para o colégio o gasto é ainda maior," prosseguiu ino-

centemente Mrs. Garth, enquanto descosia o debrum de uma touca. "E

o Caleb acha que o Alfted vai acabar virando um grande engenheiro:

quer dar uma boa oportunidade ao garoto. Aliás, ele está chegando! Já

posso até ouvir seus passos. Vamos lá para a sala para encontrá-lo?"

Quando eles entraram na sala, Caleb, tendo tirado seu chapéu, já

estava sentado à escrivaninha.

"E então, meu jovem!" disse ele num tom de leve surpresa, manten-

do em suspenso a pena por molhar. "Chegou cedo mesmo, hem?" Mas,


como faltasse ao rosto de Fred a costumeira expressão de saudação

270

GEORGE ELIOT

efusiva, imediatamente ele acrescentou: "Há alguma coisa em sua casa

- que foi que houve?"

"Bem, Mr. Garth, vim para lhe dizer uma coisa que eu temo venha a

levá-lo, a não pensar bem de mim. Vim dizer ao senhor e a Mrs. Garth

que eu não posso manter a minha palavra. Não consigo arranjar dinhei-

ro para liqüidar a dívida. Não tive sorte; para pagar as cento e sessenta,

só disponho destas cinqüenta libras."

Enquanto ia falando, Fred foi tirando as notas e colocou-as diante

de Mr. Garth na escrivaninha. Após a explosão que o fizera ir diretamen-

te ao assunto, sentia-se uma criança infeliz e sem recursos verbais. Mrs.

Garth, em perplexo mutismo, olhou para seu marido à cata de explica-

ção. Caleb corou, esperou um pouco e disse:

"Pois é, eu não lhe havia dito nada, Susan: avalizei uma promissória

para o Fred; era de cento e sessenta libras. Ele me garantiu que ia poder

pagar."

Houve uma evidente mudança no rosto de Mrs. Garth, mas foi como

uma mudança embaixo d"água, mantendo-se a superfície tranqüila. Com

os olhos fixados em Fred, ela disse:

"Suponho que você tenha pedido o resto do dinheiro a seu pai, e ele

há de ter recusado!"

"Não," disse Fred, mordendo o lábio e falando com mais dificuldade

ainda; "mas sei que de nada adianta pedir a ele; e, mesmo que adiantas-

se, eu não gostaria de mencionar o nome de Mr. Garth em relação a este

assunto."

"Bem, aconteceu numa hora muito imprópria," disse Caleb, com sua
hesitação costumeira, baixando os olhos para as notas e tocando nervo-

samente no papel com os dedos. "O Natal já está às portas - e eu, no

momento, ando meio apertado. Tenho de ir cortando tudo com medidas

bem justas, como um alfaiate. Que podemos fazer, Susan? Vou ter de

raspar a conta no banco. São cento e dez libras, caramba!"

"Posso dar-lhe as noventa e duas que eu guardei para a aprendiza-

gem do Alfred," disse Mrs. Garth, decidida e grave, embora ouvidos apu-

rados pudessem ter discernido aqui e ali nas palavras um ligeiro tremor.

"E não duvido de que a Mary, a essa altura, já conte com vinte libras que

poupou do salário. Ela há de adiantá-las."

Mrs. Garth não voltara a olhar para Fred, mas não calculava nem um

pouco que palavras deveria empregar para deixá-lo sem graça. Mulher

excêntrica que era, ela agora se aborvia em pensar o que precisava ser

feito, e nem sequer imaginava que por meio de observações amargas ou

explosões fosse possível chegar ao fim mais depressa. Contudo, pela

MIDDLEMARCH

273

primeira vez ela fizera Fred sentir como o remorso dói. Curiosamente, a

dor que antes ele havia sentido em relação ao problema quase que se

resumia à idéia de ter de se mostrar desonroso, baixando no conceito

dos Garths: não se preocupara com os inconvenientes e o eventual dano

que sua falta de palavra poderia ocasionar para eles, pois este exercício

da imaginação sobre as necessidades alheias não é comum entre os ca-

valheiros jovens e ainda cheios de esperança. Com efeito, somos em

grande maioria criados pela noção de que o motivo mais nobre para não

cometer um erro é algo desvinculado dos seres que poderiam sofrer com

a nossa falta. Neste momento porém ele se viu subitamente como um

lamentável patife a extorquir de duas mulheres suas reservas feitas.


"E claro, Mrs. Garth, que eu irei pagar tudo - mais tarde," conse-

guiu gaguejar.

"Sim, mais tarde," disse Mrs. Garth, que, tendo particular aversão

por palavras bonitas em momentos de horror, não pôde agora reprimir

um epigrama. "Só que os rapazes mais tarde já não aprendem bem: de-

vem começar a aprender aos quinze anos." Nunca ela estivera tão pouco

inclinada a perdoá-lo.

"O erro maior foi meu, Susan," disse Caleb. "Fred garantiu que ia

arranjar o dinheiro. Mas eu não tinha por que botar as mãos nestas

notas. Suponho que você tenha andado por aí e tentado todos os meios

honestos," acrescentou, fixando em Fred seus olhos cinzentos e compa-

decidos. Caleb era delicado demais para especificar Mr. Featherstone.

"Sim, eu tentei tudo - realmente tentei. E era para eu ter cento e

trinta libras na mão, não fosse o azar que tive com um cavalo que já

estava quase vendendo. Meu tio me havia dado oitenta libras e eu, en-

trando com meu cavalo velho pelo valor de trinta, pude ficar com um

outro que iria vender por oitenta ou mais - só que agora ele mostrou

ser cheio de manhas e se machucou. Que bom se eu fosse carregado pelo

diabo, com os cavalos juntos, antes de lhe trazer este problema! Não há

ninguém que me importe tanto: o senhor e Mrs. Garth sempre foram

muito bons para mim. Mas dizer isto, eu sei, não adianta. Vocês agora

vão sempre me considerar um patife."

Fred virou-se e precipitou-se para fora da sala, consciente de estar-

se tornando algo efeminado, e sentindo de maneira confusa que de pou-

co valia para os Garths ele se desculpar. Puderam vê-lo montar e trans-

por rapidamente a porteira.

"Estou decepeionada com Fred Vincy," disse Mrs. Garth. "Nunca te-

ria acreditado que ele o fosse envolver em suas dívidas. Eu sabia que ele

era extravagante, mas não pensava que chegasse a ser tão indigno a

272
GEORGE ELIOT

ponto de se pendurar com seus riscos no mais velho amigo que tinha, e

o que menos se podia permitir prejuízos."

"Eu fui um tolo, Susan."

"Foi mesmo," disse a esposa, concordando com a cabeça e sorrin-

do. "Mas eu não iria proclamar isto em praça pública. Por que você

tem de esconder as coisas de mim?  tal e qual como com seus botões;

quando eles caem, não me diz nada, e depois sai por aí com os punhos

soltos. Se ao menos eu tivesse sabido, talvez pudesse encontrar uma

melhor solução."

"Foi um golpe, Susan, eu sei, e você está muito triste," disse Caleb,

olhando compadecidamente para ela. "E eu não me conformo que voce

perca o dinheiro que conseguiu juntar para o Alfred."

"Ainda bem que eu consegui juntá-lo; e quem tem a sofrer é você

mesmo, que é quem tem de ensinar ao garoto. Você precisa largar os

seus maus hábitos. Assim como há homens que dão para beber, você

deu para trabalhar de graça. Você devia ser um pouco menos condescen-

dente com isto. E agora deve dar um pulo na Mary e perguntar quanto

ela tem disponível."

Caleb tinha empurrado a cadeira para trás e se inclinava para a fren-

te, balançando lentamente a cabeça e com perfeita exatidão juntando as

pontas dos dedos.

"Pobre MaryV" disse ele. "Susan," prosseguiu em tom mais baixo,

tdeu desconfio que ela gosta do Fred."

"Oh, não! Ela está sempre rindo dele; e nada indica que ele pense

nela a não ser de um modo fraterno."

Caleb não replicou, mas abaixou os óculos, puxou a cadeira para a

mesa e disse: "Com os diabos a promissória - quem dera ela estivesse

em Hanover! Tais coisas são uma triste interrupção para o trabalho!"


A primeira parte desta fala compreendia toda sua reserva de expres-

são blasfernatória e foi pronunciada com uma ligeira rosnadela, fácil de

imaginar. Difícil seria transmitir, a quem nunca o ouviu pronunciar a

palavra "trabalho," o tom peculiar de férvida veneração, de respeito re-

ligioso, em que ele a envolvia, como um simbolo consagrado é envolto

no seu linho de franjas áureas.

Era freqüente que Caleb Garth balançasse a cabeça ao meditar sobre

o valor, a indispensável pujança desse afã com miríades de mãos e cabe-

ças pelo qual o corpo social é nutrido, vestido e posto sob um teto. Afã

que ainda na infância lhe havia tomado a imaginação. Os ecos do grande

malho onde uma quilha ou um telhado eram feitos, os gritos de sinaliza-

ção dos operários, o fragor da fornalha, o troar e o resfolegar da máquina

MIDDLEMARCH

273

eram para ele uma sublime música; o abate e transporte da madeira, e o

imenso tronco pela estrada a vibrar como estrela na distância, o guin-

daste em ação no cais, os produtos empilhados nos entrepostos, a preci-

são e variedade do esforço muscular por onde quer que um trabalho

exato devesse ser realizado - todas estas visões de sua juventude ti-

nham agido sobre ele como uma poesia sem a ajuda dos poetas, feito-

lhe uma filosofia sem a ajuda dos filósofos, uma religião sem ajuda da

teologia. Sua primeira ambição fora ter uma participação tão ativa quan-

to possível neste sublime afã que era particularmente dignificado por ele

sob o nome de "trabalho;" e, apesar do pouco tempo que passara com

um mestre, tendo aprendido mais por conta própria, ele entendia mais

de terra, mineração e construção que a maioria dos especialistas do con-

dado.
Sua classificação das ocupações humanas era um pouco primária e,

como as categorias de homens mais festejados, não seria aceitável em

nossa época de tantos avanços. Ele as dividia em "trabalho, política,

pregação, estudo e diversão." Nada tinha a dizer contra as quatro últi-

mas; considerava-as porém como um reverente pagão considerava ou-

tros deuses que não os seus. Da mesma forma, pensava muito bem de

todas as posições sociais, mas não gostaria para si de uma qualquer na

qual ele não tivesse com o "trabalho" esse contacto íntimo que tantas

vezes o decorava honrosamente com marcas de poeira e argamassa, o

borrifo das máquinas ou o solo doce das florestas e campos. Embora

nunca se tivesse considerado senão como um cristão ortodoxo, capaz de

sustentar uma discussão sobre a graça preveniente, caso lhe propuses-

sem o tema, eu acredito que suas divindades virtuais eram os bons pla-

nos práticos, a execução acurada e a fiel conclusão dos empreendimen-

tos: seu príncipe das trevas era o trabalhador negligente. Mas não havia

espírito de negação em Caleb, e o mundo lhe parecia tão maravilhoso

que ele estava pronto a aceitar quaisquer sistemas, como quaisquer

firmamentos, desde que obviamente eles não interferissem com a me-

lhor drenagem de terras, a construção mais sólida, as medições corretas

e as perfurações criteriosas (para o carvão de pedra). Sua alma reverenciosa

associava-se de fato a uma grande inteligência prática. O domínio das

finanças lhe escapava porém: ele tinha ciência dos valores, mas era des-

provido de imaginação sagaz para em termos de lucros e perdas calcular

resultados: e, tendo-se certificado disto por experiência própria, decidi-

ra-se a renunciar a todas as formas de seu amado "trabalho" que reque-

ressem tal talento. Dera-se por inteiro aos muitos tipos de atividade que

podia desempenhar sem empatar capital e era um dos homens precio-

274

GEORGE ELIOT
sos, nos limites de seu próprio distrito, a quem todos queriam dar traba-

lho, porque fazia tudo bem feito, cobrava muito pouco e às vezes mes-

mo nem chegava a cobrar. Não espanta portanto que os Garths fossem

pobres, e "vivessem modestamente." Eles contudo não se importavam

com isto.

CAPÍTULO XXV

"Love seeketh not itself to please,

Nor for itself hath any care,

But for another gives its ease,

And builds a heaven in hell"s despair.

Love seeketh only self to please,

To bind another to its delight,

Joys in another"s loss of ease,

And builds a hell in heavens"s despite."

- W BLAKE: Songs of Experience.

€"Não busca o amor se contentar,

Nem tem por si cuidados seus,

Mas seu sossego a outro quer dar

E faz do horror do inferno um céu.

Só busca o amor saciar o ego

E, unindo o outro ao seu prazer,

Gozar-lhe a perda do sossego

E, alheio ao céu, um inferno ter.")


- W BLAKE: Canções da experíência.1

FRED VINCY QUERIA chegar a Stone Court quando Mary não pudesse

estar a esperá-lo e seu tio não se encontrasse no térreo: era provável

neste caso que ela estivesse sozinha na sala revestida por lambris de

madeira. Deixou pois seu cavalo no terreiro, para evitar fazer barulho no

I"The Ciod and the Pebble. *

276

GEORGE EuoT

cascalho da frente, e entrou na sala sem nenhum outro aviso que não o

girar da maçaneta na porta. Mary se achava no seu canto de sempre,

divertindo-se muito com as lembranças de Johnson por Mrs. Piozzi,1 e

ergueu os olhos ainda com alegria no rosto. Uma alegria que porém se

dissipou pouco a pouco quando ela viu que Fred se aproximava sem

falar para se plantar diante dela com o cotovelo apoiado na lareira e um

ar dos mais infelizes. Ela também guardou silêncio, e apenas o olhava

indagadoramente:

"Mary," começou ele, "eu sou um mandrião e um canalha."

"Eu diria que um só destes epítetos de cada vez já bastava," disse

Mary, tentando sorrir mas se sentindo alarmada.

"Sei que você nunca mais há de pensar bem de mim. Vai-me achar

um mentiroso. Vai-me achar desonesto. Vai achar que não me importei

com você, nem com sua mãe e seu pai. Você sempre me torna pelo pior,

eu sei."

"Não posso negar que hei de pensar tudo isto a seu respeito, Fred,

se para tanto me der boas razões. Mas, por favor, diga-me logo o que foi

que você fez. Prefiro saber a dolorosa verdade a ter de imaginá-la."


"Eu devia um dinheiro - cento e sessenta libras. E pedi ao seu pai

para assinar uma promissória. Eu pensava que isto, para ele, não teria

conseqüências. Estava certo de que eu mesmo conseguiria pagar, e ten-

tei todo o possível. Mas agora, meu azar foi tanto - deu tudo errado

com um cavalo - que só posso pagar cinqüenta libras. Não adianta

pedir dinheiro ao meu pai: ele não me daria um tostão. E meu tio ainda

há pouco me deu cem. Que posso fazer então? Como seu pai agora não

dispõe da quantia, sua mãe terá de entrar com noventa e duas libras que

havia juntado, e diz ela que o que você guardou vai ser preciso também.

Veja só que -"

"Oh, coitada da minha mãe, coitado do pai!" disse Mary, com os

olhos a encherem-se de lágrimas e um ligeiro soluço que ela tentou re-

primir mal se formava. Olhava reto para a frente e sem ligar para Fred,

enquanto todas as conseqüências em casa se lhe faziam presentes. Ele,

mantendo-se calado por alguns momentos, sentia-se mais infeliz do que

nunca.

"Por nada no mundo, Mary, eu ia querer magoá-la tanto," disse por

fim. "Você nunca poderá perdoar-me."

"Que importância teria eu perdoá-lo?" disse Mary, muito exaltada.

lHester Lynch Piozzi, autora de Anecdotes of the Late Samuei Johnson, During

the Last Twenty

Years of his Life (1786).

MIMUMARCH

277

"Por acaso isto alteraria o fato de minha mãe perder o dinheiro que ela

ganhou dando aulas por quatro anos seguidos, a fim de colocar o Alfred

com Mr. Hanmer? Você acha que a situação se tornaria mais agradável,
se eu o perdoasse?"

"Diga o que quiser, Mary. Eu bem que mereço."

"Não tenho nada a dizer," disse Mary, já mais calma; "minha raiva é

de todo vã." E enxugou as lágrimas, pôs o livro de lado, levantou-se e

pegou sua costura.

Fred acompanhou-a com os olhos, na esperança de que eles encon-

trassem os dela e assim abrissem caminho para seu súplice arrependi-

mento. Mas não! Era fácil para Mary evitar olhar para cima.

"Preocupo-me muito com o dinheiro de sua mãe a ir-se embora,"

disse ele, quando de novo já sentada ela cosia rápido. "E queria pergun-

tar-lhe, Mary - você não acha que Mr. Featherstone - se você dissesse

a ele - se lhe falasse, quero dizer, da aprendizagem do Alfred - pode-

ria adiantar o dinheiro?"

"Minha família não é dada a esmolar, Fred. Preferimos trabalhar por

nosso dinheiro. Além disso, você acaba de dizer que Mr. Featherstone

lhe deu recentemente cem libras.  muito raro que ele faça presentes; a

nós nunca fez. Tenho certeza de que meu pai não vai pedir nada a ele; e,

mesmo que eu concordasse em pedir, não adiantaria nada."

"Minha infelicidade não tem fim, Mary - se você soubesse como eu

estou infeliz, teria pena de mim."

"Há outras coisas de que se ter mais pena. Mas as pessoas egoístas

sempre acham que seu desconforto é mais importante que tudo mais no

mundo: dia a dia eu vejo isto."

"Não é justo me chamar de egoísta. Se você soubesse das coisas que

outros rapazes fazem, veria que eu não sou dos piores."

"O que eu sei é que quem gasta muito consigo mesmo, sem saber

como irá pagar, deve ser egoísta. As pessoas assim estão sempre pensan-

do no que podem conseguir para si, e não no que os outros podem per-

der."

. Qualquer homem pode dar um azar, Mary, e ver-se em condições

de não poder pagar, quando esta era a intenção que tinha. Não há no
mundo homem melhor que seu pai, e no entanto ele se viu em apuros."

"Como ousa fazer comparação entre meu pai e você, Fred?," disse

Mary, em profundo tom de indignação. "Ele nunca se viu em apuros por

pensar em seus próprios prazeres ociosos, mas porque estava sempre

pensando no trabalho que fazia para outras pessoas. Agüentou muita

coisa e trabalhou duro para evitar que outros perdessem."

278

GEORGE ELIOT

"E você acha que eu nunca vou tentar evitar nada, Mary. Não é gene-

roso pensar o pior de um homem. Quando se tem algum poder sobre

ele, creio que se deva tentar usá-lo para o tornar melhor; mas isto é o

que você nunca faz. Pois bem, então vou-me embora," concluiu Fred,

languidamente. "Nunca vou-lhe falar de novo sobre nada. Sinto muitís-

simo todo o problema que causei - e isto é tudo."

Mary deixara a costura cair de suas mãos e ergueu os olhos. Mesmo

no amor de uma garota há com freqüência algo maternal, e a dura expe-

riência de Mary forjara-lhe a natureza para uma impressibilidade muito

distinta dessa coisa impiedosa e fútil que julgamos ser uma garota. Corri

as últimas palavras de Fred ela sentiu uma pontada instantânea, algo

como o que sente a mãe ao imaginar os gritos e soluços de um filho

travesso e gazeteiro, capaz de se perder e se machucar. Quando seus

olhos, ao se erguerem, deram assim com os dele, baços, desesperados, a

pena que ela sentiu de Fred se sobrepôs à raiva e a todas as suas preocu-

pações.

"Oh, Fred, você parece estar sofrendo! Sente-se um pouco. Não se

vá tão cedo. Deixe-me avisar ao tio que você está aqui. Ele já estranhava

não o ter visto por toda uma semana." Mary falou correndo, dizendo as

palavras que por primeiro lhe vinham, sem saber muito bem quais elas
eram, mas dizendo-as num tom para acalmá-lo, e ao mesmo tempo de

rogo, enquanto se levantava como se fosse avisar Mr. Featherstone. Na-

turalmente, para Fred, foi como se as nuvens se dissipassem e surgisse

um clarão: ele deu alguns passos e barrou-lhe o caminho.

"Diga uma palavra, Mary, que eu faço não importa o quê. Diga que

não vai pensar mal de mim - que não me abandonará."

"Como se eu pudesse ter prazer em pensar mal de você," disse Mary,

num tom pesaroso. "Como se já não fosse muito penoso para mim vê-lo

como pessoa ociosa e frívola. Não sei como agüenta ser tão desprezível,

quando outros trabalham, se esforçam tanto, e há tantas coisas por fazer

- como agüenta não estar dando para nada que seja útil na vida? Com

tudo o que há de bom em você, Fred, - você poderia ser de grande valia."

"Tentarei ser o que você quiser, Mary, qualquer coisa, se disser que

me ama."

"Eu teria vergonha de dizer que amava um homem que vive depen-

dendo dos outros e contando com o que fariam por ele. Que será você

aos quarenta? Como Mr. Bowyer, suponho - um vadio que nem ele,

vivendo na saleta de Mrs. Beck - gordo e esmolambado, esperando que

alguém lhe convide para jantar - passando a manhã aprendendo uma

canção cômica - oh não! aprendendo uma toada na flauta."

MIDDLEMARCH

279

Os lábios de Mary haviam começado a se repuxar num sorriso, tão

logo ela colocara a questão sobre o futuro de Fred (as almas jovens são

volúveis), e antes de ela parar de falar seu rosto já estava iluminado pela

alegria mais plena. Para ele foi como a cessação de uma dor que Mary

ainda pudesse rir dele e, com uma espécie passiva de sorriso, tentou

pegar na mão dela; mas ela se escapuliu para a porta, e disse: "Vou
avisar o tio. Você deve falar com ele um pouquinho."

Fred sentiu secretamente que seu futuro estava garantido contra a

realização das sarcásticas profecias de Mary, à parte daquela "qualquer

coisa" que estava pronto a fazer se ela definisse o que era. Nunca ele

ousava na presença de Mary abordar o tema das expectativas que tinha

em relação a Mr. Featherstone, e ela sempre as ignorava, como se tudo

dependesse só dele mesmo. Mas se realmente ele viesse a entrar em

posse da herança, ela teria de reconhecer a mudança em sua posição.

Tudo isto lhe veio frouxamente à cabeça antes de ele subir para ver seu

tio. Lá não se demorou quase nada, desculpando-se por estar resfriado;

e Mary não reapareceu antes de ele partir. No caminho para casa, Fred

começou a notar que era mais doente do que melancólico que ele se

sentia.

Quando Caleb Garth chegou a Stone Court logo depois de escurecer,

Mary não se espantou, embora ele raramente tivesse tempo de visitá-la,

e não gostasse nem um pouco de conversar com Mr. Featherstone. O

velho, por sua vez, não se sentia muito à vontade com um cunhado que

ele não podia atormentar, que não se importava de ser considerado po-

bre, não tinha nada a pedir-lhe e entendia de todas as questões de agri-

cultura e mineração mais do que ele. Mary tinha certeza de que seus pais

iam querer vê-la e. se seu pai não tivesse vindo, haveria de conseguir

uma folga para passar uma ou duas horas no dia seguinte em sua casa.

Após uma discussão sobre preços, durante o chá com Mr. Featherstone,

Caleb levantou-se para despedir-se e disse: "Quero falar com você, Mary."

Ela foi com uma vela para um outro salão que o fogo não aclarava e,

pousando a fraca luz na escura mesa de mogno, e passando-lhe os bra-

ços no pescoço, beijou-o com beijos infantis que o deliciaram, - ado-

çando-se a expressão de suas grandes sobrancelhas como se adoça a

expressão de um grande e belo cachorro quando o acariciam. Mary era

sua filha predileta e, pouco importando o que dissesse Susan, e certa

como ela estava em tudo o mais, Caleb achava natural que Fred ou qual-
quer outro pudesse achar Mary mais gostável do que outras moças.

"Tenho uma coisa a lhe dizer, minha filha," disse Caleb a seu modo

hesitante. "Não é notícia muito boa; mas bem que podia ser pior."

280

GEORGE ELIOT

" sobre dinheiro, papai? Acho que eu sei o que é."

"Ah, como pode ser? Pois então é isto, fui meio tolo outra vez e pus

meu nome numa promissória, e o jeito agora é pagar; e sua mãe resolveu

entrar com as economias dela, e o pior é isto, e nem mesmo assim vai

dar para chegar à quantia. Precisamos de cento e dez libras: sua mãe tem

noventa e duas, e eu, nada disponível no banco; e ela pensa que você

teria alguma reserva."

"Oh, tenho sim; tenho mais de vinte e quatro libras. Eu achei que

você viria, pai, e até pus tudo na bolsa. Veja! belas notas novas e moedas

de ouro."

Mary tirou o dinheiro da sua bolsinha de crochê e o pôs na mão de

seu pai.

"Bem, mas como - só precisamos de dezoito - aqui, guarde o res-

to de novo, minha filha - mas como você sabia disto?" disse Caleb que,

com sua invencível indiferença por dinheiro, começava a se preocupar

sobretudo com a relação que este assunto poderia ter com os sentimen-

tos de Mary.

"O Fred me contou de manhã."

"Ah! Veio aqui para isto?"

"Sim, acho que sim. Estava muito abatido."

"Temo que o Fred não seja digno de confiança, Mary," disse o pai,

com hesitante ternura. " melhor nas intenções que nos atos, talvez.

Mas penso eu que seria uma lástima para a felicidade de alguém se en-
volver com ele, e o mesmo pensa sua mãe."

"E eu também, papai," disse Mary, não erguendo os olhos, mas pon-

do o dorso da mão do pai contra a própria face.

"Não quero ser indiscreto, minha filha. Mas eu temia que pudesse

haver alguma coisa entre você e o Fred, e queria preveni-la. Veja bem,

Mary" - e aqui a voz de Caleb se tornou mais suave; andara a empurrar

o seu chapéu sobre a mesa e a olhar para ele, mas finalmente virou os

olhos para sua filha - "uma mulher, por melhor que possa ser, tem de

agüentar a vida que o marido lhe dá. Sua mãe tem tido de agüentar

muito por minha causa.

Mary levou o dorso da mão do pai a seus lábios e sorriu para ele.

"Bem, bem, ninguém é perfeito, mas" - aqui Mr. Garth balançou a

cabeça como que para compensar a inadequação das palavras - "o que

estou pensando é - bem, o que deve ser para uma esposa quando ela

nunca tem confiança no marido, quando não há um princípio nele que o

faça mais temeroso de não andar junto de outros na linha que de levar

uma pisada no pé. Em resumo isto é tudo, Mary. Dois jovens podem

MIDDLEMARCH

281

encantar-se um pelo outro, antes de saberem o que é a vida, e pensar

que ela é um feriado sem fim, se ao menos conseguem ficar bem juntos;

mas logo a vida vira dia de trabalho, querida. Você no entanto tem mais

bom senso que a maioria e não foi criada em berço de seda: talvez não

seja a ocasião para eu dizer isto, mas um pai se inquieta por sua filha, e

você aqui vive entregue a você mesma."

"Não tema por mim, papai," disse Mary, olhando-o séria nos olhos;

O Fred foi sempre muito bom comigo; é bom de coração e afetuoso, e

não é falso, acredito, malgrado sua auto-lndulgência. Mas nunca me com-


prometerei com alguém que não tem a independência de um homem, e

que vive por aí a esperdiçar seu tempo, na esperança de que outros se

ocupem dele. Você e minha mãe me ensinaram muito orgulho para isto."

"Correto - correto. Agora então estou tranqüilo," disse Mr. Garth,

apanhando seu chapéu. "Mas é duro evadir-me com seus ganhos, filha."

"Papai!" disse Mary, em seu tom mais profundo de protesto. "Leve

além disto para todos lá em casa o bolso cheio de amor" foi sua última

frase, antes de ele sair e fechar a porta de fora.

"Seu pai queria o seu dinheiro, suponho," disse o velho Mr. Fea-

therstone, com seu usual poder de conjecturas grosseiras, quando Mary

voltou para junto dele. "Ele vive passando apertos, eu sei. E você agora

já está na idade; deve juntar um pouco para você mesma."

"Considero meu pai e minha mãe como a melhor parte de mim,

senhor meu tio," disse Mary com frieza.

Mr. Featherstone grunhiu: não podia negar que de uma moça assim

tão comum era de se esperar que fosse útil, e pensou pois noutra ques-

tão, suficientemente desagradável para vir a calhar. "Se o Fred Vincy

voltar aqui amanhã, não o retenha com suas conversinhas: mande ele

subir para cá."

CAPÍTULO XXVI

"He beats me and 1 rail at him: O worthy satisfaction! would

it were otherwise - that 1 could beat him while he railed

at me."

- Troílus and Cressída.

("Ele me bate e eu ralho com ele: Oh satisfação condigna!

se pudesse ser de outro modo - ele a ralhar comigo e eu

batendo nele.")
- Troilo e Créssida.1

NO DIA SEGUINTE Fred Vincy não foi porém a Stone Court, por razões

que eram peremptórias. De suas incursões pelas ruelas insalubres de

Houndsley à procura do Diamond ele voltara não só com este cavalo,

que havia sido um mau negócio, mas também com a desgraça adicional

de uma doença que por um ou dois dias pareceu ser simples desânimo e

dor de cabeça, mas que piorou tanto quando ele retornou da visita a

Stone Court que, atirando-se num sofá logo depois de entrar na sala,

disse em resposta a uma intranqüila pergunta de sua mãe: "Estou muito

mal: acho que você deve mandar chamar o Wrench."

Wrench veio mas não descobriu nada de grave, falou de uma "ligeira

indisposição" sem falar de voltar no dia seguinte. Tinha a devida consi-

deração pela família Vincy, mas a rotina costuma embotar até os homens

mais ponderados que, em manhãs de azáfama, às vezes livram-se às

suas ocupações com o mesmo entusiasmo diário com que o sineiro

bimbalha. Mr. Wrench era um homem baixo, limpo, bilioso, com uma

"Ato II, Cena 3, linhas 3-4.

MIDDLEMARCH

283

bem posta cabeleira postiça: tinha uma prática laboriosa, um tempera-

mento irascível, uma mulher linfática e sete filhos; e já estava um pouco

atrasado para ir fazer os mais de seis quilômetros que o levariam ao

encontro do Dr. Minchin no outro extremo de Tipton, já que com a

morte de Hicks, o clínico da zona rural, a clientela dos profissionais de

Middemarch se expandira naquela direção. Se os grandes estadistas er-


ram, por que não os pequenos médicos? Mr. Wrench não se esqueceu de

mandar os papelotes brancos de praxe, cujo conteúdo, desta vez, era

negro e drástico. Seu efeito não trouxe alívio algum ao pobre Fred, que

no entanto, não querendo acreditar como disse que estava "atacado de

doença mesmo," levantou-se à hora de sempre na manhã seguinte e

desceu para tomar seu café, mas não conseguiu senão sentar-se à beira

do fogo, tremendo muito. Mr. Wrench, chamado de novo, já partira em

sua rotina, e Mrs. Vincy, vendo a aparência tão mudada e o estado de

sofrimento do filho, começou a chorar e disse que ia mandar chamar o

Dr. Sprague.

"Bobagem, mãe! Não é nada," disse Fred, estendendo-lhe a mão

ardente e seca, "vou ficar bom logo. Devo ter-me resfriado quando eu

vinha a cavalo, porque a umidade era terrível."

"Mamãe!" disse Rosamond, que estava sentada perto da janela (as

janelas da sala de jantar davam para a rua altamente respeitável chama-

da Lowick Gate), Iá vai Mr. Lydgate, parando para falar com alguém. Se

eu fosse você, mandava chamá-lo. Ele curou a Ellen BuIstrode. Dizem

que cura todo mundo."

Mrs. Vincy se precipitou à janela e abriu-a num instante, pensando

apenas em Fred e não em etiqueta médica. Lydgate estava a menos de

dois metros, do outro lado de uma paliçada de ferro, e ao brusco barulho

da janela virou-se antes mesmo de ser chamado. Em dois minutos ele

estava na sala, de onde Rosamond saiu após esperar só o bastante para

mostrar uma preocupação graciosa, conflitante com o que sabia ser o

certo a fazer.

Lydgate teve de ouvir uma narrativa na qual a mente de Mrs. Vinci

insistiu com extraordinário instinto em todos os pontos de menor im-

portância, e principalmente no Mr. Wrench havia dito e não dito sobre

vir outra vez. Lydgate percebeu logo que poderia surgir algum problema

com Wrench; mas o caso era bem sério para levá-lo a afastar tal conside-

ração: ele estava convencido de que Fred se achava na fase de incubação


da febre tifóide e havia tomado o remédio errado. Tinha de ir para a

cama logo, de ter uma enfermeira constante, e impunham-se várias pre-

cauções e cuidados, quanto aos quais Lydgate era exigentíssimo. O ter-

284

GEORGE ELIOT

ror da pobre Mrs. Vincy ante estas indicações de perigo expressou-se nas

palavras que lhe ocorreram mais facilmente. Ela achou que era "muito

má prática da parte de Mr. Wrench, por tantos anos o médico da casa em

preferência a Mr. Peacock, se bem que Mr. Peacock fosse igualmente um

amigo. Como podia Mr. Wrench se esquecer mais de seus filhos que de

outros, por nada nessa vida ela conseguia entender. Não se esquecera

dos de Mrs. Larcher, quando eles tiveram sarampo, nem iria Mrs. Vincy

querer que ele os tivesse esquecido. E se acontecesse alguma coisa..."

Aqui o espírito de Mrs. Vincy se desmontou de vez, e seu pescoço de

Niobe e o rosto bem humorado foram tomados por triste convulsão.

Estavam na saleta e longe dos ouvidos de Fred, mas Rosamond tinha

aberto a porta da sala de visitas, pela qual avançava intranqüilamente.

Lydgate desculpava Mr. Wrench, dizia que os sintomas na véspera pode-

riam ainda estar latentes e que este tipo de febre era muito enganador a

princípio: ele iria imediatamente ao boticário e mandaria aviar uma re-

ceita para não perder tempo, mas escreveria a Mr. Wrench e dir-lhe-la o

que havia sido feito.

"Mas o senhor deve voltar - deve continuar a atender o Fred. Não

posso deixar meu filho entregue a alguém que ora pode, ora não pode vir,

Não quero mal a ninguém, graças a Deus, e Mr. Wrench me salvou de uma

pleurisia, mas teria sido melhor que me deixasse morrer - se - se -"

"Virei então encontrar-me com Mr. Wrench aqui, está bem?" disse

Lydgate, realmente acreditando que Wrench não estava bem preparado


para enfrentar um caso desta espécie.

"Combine, por favor, este encontro, Mr. Lydgate," disse Rosamond,

vindo em ajuda da mãe e amparando-a pelo braço para a levar para

dentro.

Mr. Vincy ao chegar em casa ficou furioso com Wrench, pouco ligan-

do se ele nunca mais voltasse a vir ali. Lydgate agora,- gostasse ou não

Wrench, devia tocar a coisa. Não era uma brincadeira ter febre em casa.

Desde já ter-se-la de avisar todo mundo para não, vir jantar terça-feira. E

Pritchard não precisava trazer vinho da adega: a melhor coisa contra

infecção era o conhaque, "Vou tomar um conhaque," acrescentou Mr,

Vincy enfaticamente - com a ênfase de quem diria que a ocasião não

era para atirar sem munição. "Ele é um garoto incomumente azarado, o

Fred. Vai precisar de um pouco de sorte de vez em quando para compen-

sar tudo isto - senão, quem vai querer um primogênito assim eu não

sei."

.Não diga isto, Vincy," disse a mãe com os lábios trêmulos, "se não

quer que ele me seja levado."

MIMUMARCH

285

"Você há de se afligir até a morte, Lucy; já estou vendo tudo," disse

Mr. Vincy, mais suavemente. "No entanto, Wrench saberá o que eu pen-

so desta questão." (O que Mr. Vincy confusamente pensava era que a

febre poderia ter sido impedida de algum modo se Wrench houvesse

demonstrado a solicitude adequada à sua - à do Prefeito - família.)

"Eu seria o último a aderir a essa grita sobre novos médicos ou novos

pastores - sejam ou não homens do BuIstrode. Mas o Wrench há de

saber o que eu penso, receba-o como quiser."

Wrench não recebeu nada bem. Lydgate foi tão polido quanto podia
à sua moda pouco cerimoniosa, mas a polidez num homem que nos

coloca em desvantagem é apenas um exaspero a mais, sobretudo se ele

já era de antemão objeto de antipatia. Os clínicos de província consti-

tuíam normalmente uma espécie muito irritável, susceptível até o ponto

de honra; e dentre eles Mr. Wrench era um dos mais irritáveis. Não se

recusou a encontrar-se com Lydgate à noitinha, sendo seu controle na

ocasião posto à prova. Teve de ouvir Mrs. Vincy dizer.

"Oh, Mr. Wrench, que foi que eu fiz para tratar-me assim? - Ir-se

embora e nem voltar! E meu garoto que agora poderia ser um defunto!"

Mr. Vincy, que mantivera um fogo cerrado contra o inimigo Infecção,

e em conseqüência estava um pouco esquentado, começou quando ou-

viu Wrench chegando, e foi para a saleta de entrada para fazê-lo saber o

que pensava.

"Tois bem, Wrench, digo-lhe que é mais que uma brincadeira," dis-

se o Prefeito, que ultimamente tinha de admoestar infratores com um ar

oficial, e que agora se alargava com os polegares postos sob as axilas. -

"Deixar a febre se instalar assim numa casa, sem se dar conta. Há certas

coisas que deviam ser objeto de ação, e que não são - eis o que eu

penso."

Mas a reprimenda irracional foi mais fácil de engolir que a impressão

de ser instruído, ou melhor, a impressão de que um homem mais moço,

como Lydgate, considerava-o necessitado de instrução, pois "a grande

verdade," disse mais tarde Mr. Wrench, é que Lydgate alardeava passa-

geiras noções vindas de fora que não iriam pegar. No momento ele en-

goliu a raiva, mas depois escreveu para declinar de continuar acompa-

nhando o caso. Boa podia ser a casa, mas Mr. Wrench não se iria humi-

lhar ante ninguém numa questão profissional. Refletiu, com grande pro -

babilidade de acerto, que pouco a pouco Lydgate viria a ser surpreendi-

do em erro também, e que sua tentativa nada cavalheiresca de desacre-

ditar a venda de remédios pelos colegas de profissão iria pouco a pouco

voltar-se contra ele mesmo. Lançou acerbos diatribes contra as artima-


286

GEORGE ELIOT

nhas de Lydgate, que eram dignas de um charlatão em busca da reputa-

ção fáctível junto a pessoas crédulas. Aquela bela cantilena sobre curas

nunca era entoada por profissionais respeitáveis.

Era um ponto que atingia Lydgate tão a fundo quanto Wrench podia

desejar. Ser acusado de ignorância era não só humilhante, mas também

perigoso, e não mais invejável que a reputação do previsor do tempo.

Impacientavam-no as loucas expectativas em meio às quais todo o tra-

balho teria de ser feito, e era bem provável que ele se causasse algum

dano, tal como queria Mr. Wrench, por usar de muita franqueza, coisa

que na profissão não se usava.

Entretanto, Lydgate foi admitido como o médico oficial dos V-lncys,

fato que em Middemarch deu muito assunto de conversa. Alguns di-

ziam que o comportamento dos Vincys havia sido escandaloso, que Mr.

Vincy ameaçara Wrench e que Mrs. Vincy o acusara de estar envenenan-

do seu filho. já outros tendiam a opinar que a passagem de Lydgate por

lá fora providencial, que ele era de fato uma sumidade em febres e que

BuIstrode estava certo quando lhe dava um empurrão na vida. Muitos

acreditavam que a própria vinda de Lydgate para a cidade era devida na

realidade a Bulstrode; e Mrs. Taft, que estava sempre a contar os pontos

das malhas e recolhia sua informação em fragmentos confusos que apreen-

dia enquanto ia tricotando, tinha posto na cabeça que Mr. Lydgate era

filho bastardo de BuIstrode, o que parecia justificar suas suspeitas sobre

os leigos evangélicos.

Um dia ela comunicou esta grande novidade a Mrs. Farebrother, que

não deixou de a transmitir a seu filho, observando:

"Da parte de BuIstrode, nada me espantaria, mas pensar isto de Mr.


Lydgate me deixaria triste."

"Ora esta, mamãe," disse Mr. Farebrother, após uma gargalhada ex-

plosiva, "você sabe muito bem que Lydgate é de uma boa família do

Norte. Ele nunca tinha ouvido falar de BuIstrode antes de vir para cá."

"No tocante a Mr. Lydgate, Camden, isto me satisfaz," disse a velha

senhora, com ar de precisão. "Mas quanto ao BuIstrode - vai ver que o

rumor procede, só que o filho é outro."

CAPÍTULO XXVII

"Let the high Muse chant loves Olympian:

We are but mortals, and must sing of man."

("Cante a alta Musa olímpicos amores:

a nós mortais cabe cantar o homem.")

UM EMINENTE FILóSOFO dentre os meus amigos, capaz de dignificar até

mesmo um móvel feio em sua casa, quando o eleva à serena luz da ciên-

cia, mostrou-me este fato simples, contudo instrutivo. Seu espelho, ou

esta grande superfície de aço polido que é feita para uma criada limpar,

será minuciosa e abundantemente esfregado em todas as direções; mas se

você puser contra ele, como centro de iluminação, uma vela acesa, todas

as marcas logo passarão a ser vistas como se se dispusessem numa bela

série de círculos concêntricos em tomo deste pequeno sol.  demonstrável

que as marcas partem inintencionalmente nas direções mais diversas, e

que só a vela produz a lisonjeira ilusão de uma disposição concêntrica,

propagando-se sua luz com uma exclusiva seleção óptica. Tais coisas são

uma parábola. As marcas das esfregadelas são fatos e a vela é o egoísmo

de alguma pessoa agora ausente - de Miss Vincy, por exemplo. Rosamond

tinha uma Providência só dela, que bondosamente a fizera mais sedutora

que outras moças e parecia haver determinado a doença de Fred e o erro


de Mr. Wrench com a finalidade de a pôr com Lydgate em proximidade

efetiva. Teria sido transgredir estas determinações se Rosamond houvesse

concordado em isolar-se em Stone Court ou alhures, como seus pais ti-

nham querido, e principalmente porque Mr. Lydgate julgara a precaução

inútil. Assim, enquanto Miss Morgan e as crianças foram mandadas para

uma fazenda na manhã seguinte à doença de Fred se manifestar, Rosamond

ficou com papai e mamãe, recusando-se a deixá-los.

288

GEORGE ELIOT

A pobre mãe, para qualquer criatura nascida de um ventre de mu-

lher, era de fato digna de pena; e Mr. Vincy, que adorava a esposa, alar-

mava-se mais por sua causa que pelo estado de Fred. Não fosse a insis-

tência dele, jamais ela teria tido descanso: todo seu brilho se toldara;

indiferente às suas roupas, antes sempre tão alegres e limpas, ela era

agora uma ave enferma com a plumagem desgrenhada e olhos lângui-

dos, com os sentidos bloqueados para os sons e visões que mais lhe

despertavam de habitual o interesse. O delírio de Fred, no qual ele pare-

cia vagar fora do alcance dela, lacerava-lhe o coração. Apó.s sua primeira

explosão com Mr. Wrench, ela passara a se mover em silêncio: seu rogo

contínuo a Lydgate era expressado em voz baixa. Ela o seguia para fora

do quarto e, pondo-lhe a mão no ombro, sussurrava: "Salve meu filho."

Um dia implorou: "Ele sempre foi tão bom para mim, Mr. Lydgate: nun-

ca disse nada grosseiro para sua mãe," - como se o sofrimento do po-

bre Fred fosse uma acusação contra ele. Todas as fibras mais profundas

da memória da mãe eram tangidas, e o jovem, cuja voz assumia um tom

mais brando quando se dirigia a ela, formava um só com o bebê que ela

havia amado, com um amor que lhe era novo, antes de ele nascer.

"Tenho multa esperança, Mrs. Vincy," Lydgate dizia. "Desça comigo


para falarmos da alimentação." Deste modo ele a conduzia até a sala de

visitas onde Rosamond já estava e a distraía um pouco, fazendo-a tomar

de surpresa um caldo ou um chá preparados expressamente para ela.

Havia um entendimento constante entre Rosamond e ele quanto a estas

questões. Quase sempre ele a via antes de entrar no quarto do doente, e

ela o consultava sobre alguma coisa que pudesse fazer por sua mãe.

Eram admiráveis a presença de espírito e o desembaraço com que a moça

executava o que ele sugeria, e não espanta que a idéia de estar com

Rosamond começasse a se mesclar a seu interesse no caso. Especial-

mente quando, tendo passado a fase crítica, ele se encheu de confiança

na melhora de Fred. Nas horas mais duvidosas, aconselhara a chamar o

Dr. Sprague (o qual, se pudesse, preferiria manter-se neutro por causa

de Wrench); mas depois de duas consultas a condução do caso fora en-

tregue a Lydgate, dando-lhe todas as razões para ser assíduo. De manhã

e à noite ele ia à casa de Mr. Vincy e pouco a pouco as visitas se tornaram

mais prazerosas, à medida que Fred se tornava simplesmente fraco e

jazia não só carente mas também cônscio dos mais extremos agrados:

Mrs. Vincy pôde sentir assim que a doença, ao fim e ao cabo, tinha sido

um festival para o seu carinho.

Tanto o pai quanto a mãe tiveram uma razão a mais para alegrar-se

quando o velho Featherstone mandou por Lydgate um recado, dizendo

MIDDLEMARCH

289

que Fred devia ficar bom bem depressa porque ele, Peter Featherstone,

não prescindia de sua companhia e já sentia a falta das visitas. O velho,

por seu turno, ficava cada vez mais preso à cama. Mrs. Vincy deu o reca-

do quando Fred estava podendo ouvir, e ele virou para ela seu delicado

rosto macilento, com todo o espesso cabelo louro cortado, e onde os


olhos pareciam ter ficado maiores, ansiando por alguma palavra sobre

Mary - pensando no que ela sentiria sobre sua doença. Não lhe saiu

uma palavra da boca; mas "ouvir com os olhos faz parte da finura do

amor,"" e a mãe, na inteireza de seu coração, não só adivinhou qual o

desejo de Fred, como também se sentiu pronta a qualquer sacrifício para

satisfazê-lo.

"Se ao menos eu puder ver meu filho forte de novo," disse ela, em

sua louca adoração; "e, quem sabe? - talvez senhor de Stone Court! e

podendo então se casar com quem quiser."

"Não se não me aceitarem, mamãe," disse Fred. A doença o deixara

meio infantil, e foi com lágrimas nos olhos que ele falou.

"Oh, coma um pouco de geléia, meu filho," disse Mrs. Vincy,

secretamente incrédula de uma tal recusa.

Ela nunca saía da cabeceira de Fred quando o marido não estava em

casa, e assim Rosamond se via na situação incomurn de ficar muito sozi-

nha. Naturalmente Lydgate nunca pensou em permanecer com ela por

mais tempo, não obstante parecesse que as breves e impessoais conver-

sas pelos dois mantidas estivessem criando essa peculiar intimidade que

se constitui de recato. Quando se falavam, eram forçadQs a olhar um

para o outro, e de algum modo este olhar não podia ser sustentado

como a coisa natural que realmente era. A consciência do que estava

ocorrendo começou a ser desagradável para Lydgate, que um dia olhou

para baixo, ou para qualquer lugar, como uma marionete mal manobra-

da. E o resultado foi pior: no dia seguinte, quem olhou para baixo foi

Rosamond, e em conseqüência, quando seus olhos se encontraram de

novo, ambos estavam mais conscientes que antes. Nisto a ciência não

podia ajudar e, como Lydgate não queria flertar, nem a loucura parecia

poder. Foi por conseguinte um alívio quando a vizinhança não mais con-

siderou a casa em quarentena, pois reduziram-se em muito desde então

as chances de estar com Rosamond a sós.

Mas a intimidade do embaraço mútuo, na qual um sente que o outro


está sentindo alguma coisa, uma vez tendo existido não cessa em seus

efeitos. Falar do tempo e de outros temas polidos costuma soar como

"No original: "To hear with eyes belongs to love"s fine wit" (Shakespeare,

Soneto 23).

290

GEORGE ELIOT

saída vã, e dificilmente o comportamento pode tomar-se espontâneo

sem reconhecer com franqueza um mútuo fascínio - que não significa

necessariamente, é claro, alguma coisa séria ou profunda. Foi deste modo

que Rosamond e Lydgate deslizaram graciosamente para a espontanei-

dade, dando vida outra vez aos seus encontros. Como de hábito as visi-

tas vinham e iam-se, voltou a haver música no salão e toda a hospitali-

dade extra de prefeito de Mr. Vincys reinstalou-se na casa. Lydgate, sem-

pre que podia, tomava assento ao lado de Rosamond, abandonava-se a

ouvir sua música e se declarava cativo - mas não dando a entender que

quisesse ser seu escravo. A idéia absurda de que de imediato ele pudes-

se criar uma situação satisfatória como homem casado era uma boa ga-

rantia contra o perigo. já fazer-se de um pouco enamorado era uma brin-

cadeira gostosa, que não interfiria com objetivos mais graves. O flerte,

afinal de contas, não era necessariamente um processo de combustão.

Rosamond, por sua vez, nunca antes na vida se deleitara tanto com seus

dias: tinha certeza de ser admirada por alguém que valia a pena cativar,

e não distinguia o amor do flerte, fosse no outro ou em si mesma. Pare-

cia vogar com um vento favorável até o mais longe que pudesse ir, e seus

pensamentos ocupavam-se muito de uma casa em Lowick Gate, uma

bela casa que ela esperava ia vagar em breve. Estava firmemente decidi-
da, quando se casasse, a se livrar de todas as visitas que em casa de seu

pai não lhe causavam agrado; e imaginava a sala da casa de seus sonhos,

com móveis de estilos variados.

 claro que seus pensamentos também se ocupavam muito do pró-

prio Lydgate; ele lhe parecia quase perfeito: se entendesse um pouco de

música, para que o encantamento que o possuía ao ouvi-la não lembras-

se tanto o de um emotivo elefante, e se fosse capaz de reparar melhor os

requintes do gosto dela ao vestir-se, dificilmente poderia apontar uma

deficiência nele. Como era diferente do jovem Plymdale ou de Mr. Caius

Larcher! Rapazes estes que não tinham a menor noção de francês, não

podiam falar de nada com conhecimento de causa, a não ser talvez os

ramos de tinturaria e transportes, os quais naturalmente eles se enver-

gonhavam de mencionar; eram gente da alta em Middemarch, exultantes

com seus rebenques de castão de prata, suas gravatas de cetim, mas

embaraçados nos modos e timidamente engraçados: até o Fred estava

acima deles, tendo pelo menos a pronúncia e os hábitos de um universi-

tário. Ao passo que Lydgate era sempre ouvido, portava-se com a poli-

dez negligente da superioridade cônscia de si e parecia estar com as

roupas certas por uma espécie de afinidade natural, sem jamais ter de

pensar nelas. Rosamond se enchia de orgulho quando ele entrava no

MIDDLEMARCH

291

salão e, quando se aproximava dela, tinha a impressão deliciosa de que

era o objeto de invejáveis louvores. Se Lydgate houvesse sabido de todo

o orgulho que excitava em peito tão delicado, ter-se-la gratificado muito

como qualquer outro homem, mesmo os mais crassamente ignorantes

da patologia humoral ou dos tecidos fibrosos: era a seu ver uma das

mais belas atitudes do espírito feminino adorar a preeminência do ho-


mem sem um conhecimento preciso daquilo em que consistia.

Mas Rosamond não era uma moçoila indefesa, dessas que involun-

tariamente se traem e cujo comportamento é canhestramente ditado por

seus impulsos, ao invés de ser governado pelo prudente encanto e o deco-

ro. Imagina você que aquela rápida antecipação e ruminação que a fez

pensar nos móveis da casa e nas companhias alguma vez se tornou per-

ceptivel nas conversas que tinha, mesmo com sua mãe? Pelo contrário, ela

expressaria a mais viva das surpresas e a maior desaprovação se ouvisse

falar de uma outra moça entregue a cogitações tão imodestas e prematu-

ras - e provavelmente se negaria até mesmo a crer na possibilidade. Pois

Rosamond nunca demonstrava nenhum conhecimento inadequado e era

sempre aquela combinação de sentimentos corretos, música, dança, dese-

nho, caligrafia elegante, álbum íntimo para coleta de versos e perfeita e

loura beleza que constituía a mulher irresistivel para a sina dos homens

desta época. Mas não pense injustamente mal dela, por favor: não era

dada a complôs maliciosos, a nada de mercenário ou de sórdido; com

efeito, nunca pensava em dinheiro a não ser como uma coisa necessária

que outras pessoas sempre providenciariam. Não tinha o hábito de inven-

tar falsidades e, se suas declarações não iam diretamente ao ponto, ora,

não era também sob esta luz que elas eram pensadas - estavam entre

suas realizações elegantes, pensadas para agradar. A natureza havia inspi-

rado muitas artes no acabamento da aluna favorita de Mrs. Lemon, que

por consenso geral (à exceção de Fred) era uma rara mistura de beleza,

inteligência e amabilidade.

Lydgate achou cada vez mais gostoso estar com ela, e não havia

agora coerção alguma, havia uma deliciosa troca de influência em seus

olhos, e o que diziam tinha para eles essa superfluidade de sentido que

é observável como se fosse simples platitude por uma terceira pessoa; se

bem que não tivessem encontros nem conversas à parte, de que uma

terceira pessoa precisasse ser excluída. Na verdade, flertavam; e Lydgate

sentia-se seguro na crença de que mais do que isto eles não faziam. Se
um homem não podia amar e ser prudente, certamente poderia sê-lo e

flertar ao mesmo tempo? Na realidade, os homens de Middemarch,

exceto Mr. Farebrother, eram uns grandes maçantes, e Lydgate não se

292

GEORGE ELIOT

interessava por política comercial nem por cartas: que faria então para

relaxar? Freqüentemente convidavam-no à casa dos Bulstrodes; mas lá

as meninas mal tinham saído da idade escolar; e a maneira naive como

Mrs. BuIstrode conciliava a devoção religiosa e a mundanidade, o nada

desta vida e o desejo de cristais bem talhados, a consciência simultânea

de trapos imundos e do melhor damasco, não era um suficiente alívio

para o peso da seriedade invariável do seu marido. A casa dos Vincys,

com todos os seus defeitos, era por contraste a mais agradável; além

disso, nela vicejava Rosamond - doce de olhar como uma rosa entrea-

berta, e adornada de dons voltados para o divertimento refinado de um

homem.

Contudo ele fez alguns inimigos, além dos da área médica, por seu

sucesso com Miss Vincy - Uma noite chegou um pouco tarde, quando

várias visitas já se achavam na sala. Com os mais velhos atraídos pela

mesa de jogo, Mr. Ned Plymdale (um dos bons partidos de Middemarch,

embora não uma de suas boas cabeças) estava em tête-à-tête com

Rosamond. Trouxera o último "Keepsake," magnífica e lustrosa publica-

ção que marcava na época o progresso moderno; e considerava-se muito

afortunado por poder ser o primeiro a folheá-lo com ela, detendo-se nos

cavalheiros e damas com brilhantes bochechas e brilhanteis sorrisos de

gravura em cobre, e a apontar versos cômicos como fundamentais, e

histórias sentimentais como interessantes. Rosamond se mostrava gen-

til e Mr. Ned satisfeito de ter o que havia de melhor em literatura e arte
para "render homenagens" - a coisa certa para agradar a uma garota

bonita. E tinha também razões, mais profundas que ostensivas, para

estar satisfeito com sua própria aparência. A observadores superficiais

seu queixo se mostrava algo evanescente, dando a impressão de ter sido

gradualmente reabsorvido. O que de fato lhe causava certa dificuldade

para encaixar a gravata de cetim muito alta, finalidade à qual os queixos

eram úteis na época.

"Acho que a Honorável Mrs. S. se parece um pouco com você," disse

Mr. Ned. Mantendo o livro aberto no cativante retrato, ele o olhava não

sem langor.

"Saiu com as costas muito grandes; parece até que ela posou de

costas," disse Rosamond, não com intenção de sátira, mas pensando em

como as mãos do jovem Plymdale eram vermelhas e perguntando-se por

que Lydgate ainda não tinha chegado. Enquanto isto, prosseguia com a

renda que ela estava fazendo.

"Eu não disse que era tão bonita como você," disse Mr. Ned, que se

aventurou a olhar do retrato para a rival.

MIMUMARCH

293

"Sua habilidade na lisonja parece ser desenvolta," disse Rosamond,

certa de que teria de rejeitar o jovem cavalheiro uma segunda vez.

Mas Lydgate entrou neste instante; o livro foi fechado antes de ele

chegar ao canto dela e, quando todo confiante de si tomou assento do

outro lado de Rosamond, o queixo do jovem Plymdale caiu como um

barômetro para o lado sem graça da mudança. Rosamond deleitou-se

não só com a presença de Lydgate, mas também com seu efeito: ela

gostava de provocar ciúme.

"Que retardatário é o senhor!" disse ela, nisto que se apertavam as


mãos. "Mamãe ainda há pouco já nem contava mais que viesse. Como

está o Fred?"

"Como sempre; indo bem, mas devagar. Quero que ele vá para fora -

para Stone Court, por exemplo. Mas sua mãe parece fazer certa objeção."

"Coitado dele!" disse Rosamond com todo seu donaire. "Há de achar

o Fred tão mudado," acrescentou, virando-se para o outro admirador;

(ícontamos com Mr. Lydgate como nosso anjo da guarda durante sua

doença."

Mr. Ned sorriu nervosamente, enquanto Lydgate, puxando para si o

"Keepsake" e abrindo-o, deu uma breve risada de desdém e ergueu o

queixo, como que assombrado ante a loucura humana.

"Por que a risada tão profana?" disse Rosamond, com meiga neutra-

lidade.

"Eu me pergunto o que seria mais tolo - se as gravuras ou o que

aqui vem escrito," disse Lydgate, em sua entonação mais convicta, en-

quanto passava rapidamente as páginas, parecendo ver de uma só vez

todo o livro e, como pensou Rosamond, mostrando de modo bem van-

tajoso suas grandes mãos brancas. "Olhe só este noivo que vai saindo da

igreja: porventura já viu "invenção mais açucarada" - como diziam os

elisabetanos? Jamais um dono de armarinho assumiu ar mais presumi-

do? Garanto no entanto que a história o toma um dos mais finos cava-

lheiros de sua terra."

"O senhor é tão rigoroso, chega a assustar-me," disse Rosamond,

moderando-se para não demonstrar que se divertia com aquilo. O pobre

do jovem Plymdale detivera-se com admiração sobre a mesma gravura, e

seu espírito agitou-se.

"Há muita gente de renome firmado, seja como for, que escreve no

"Keepsake," disse ele, entre ofendido e tímido. " a primeira vez que o

ouço dado por tolo."

"Acho que me voltarei contra o senhor e o acusarei de vândalo,"

disse Rosamond, olhando para Lydgate com um sorriso. "Desconfio que


-ql

294

GEORGE ELIOT

nada saiba sobre Lady Blessington e L.E.U"I A própria Rosamond tinha

lá o seu fraco por estas escritoras, mas não se dava irrefletidamente à

admiração, e estava sempre muito atenta a qualquer insinuação de que

alguma coisa não era, segundo Lydgate, do gosto mais apurado.

"Sir Walter Scott porém - suponho que Mr. Lydgate conheça," dis-

se o jovem Plymdale, um pouco animado pela vantagem.

"Oh, não leio mais literatura," disse Lydgate, fechando o livro e o

afastando de si. "Li tanto quando era garoto, que acho que já tenho para

o resto da vida. Eu sabia de cor os poemas de Scott."

"Eu gostaria de saber quando foi que parou," disse Rosamond, "por-

que assim posso conhecer alguma coisa que o senhor não conheça."

"mr. Lydgate diria que não valia a pena conhecer," disse Mr. Ned,

intencionalmente cáustico.

"Pelo contrário," disse Lydgate, não se mostrando ofendido, mas

sorrindo com exasperante confiança para Rosamond. "Valeria a pena

conhecer pelo fato de ser Miss Vincy quem me falaria a respeito."

O jovem Plymdale sem demora foi olhar o jogo de uíste, pensando

que Lydgate era um dos sujeitos mais presunçosos e desagradáveis que

ele já tinha tido a má sorte de encontrar.

"Quanta imprudência a sua!" disse Rosamond, por dentro muito

contente. "Não percebe que o deixou magoado?"

"O quê - o livro era de Mr. Plymdale? Peço desculpas. Eu nem pen-

sei nisto."

"Vou acabar admitindo o que o senhor disse de si mesmo quando


veio aqui pela primeira vez - que é um urso, e necessita ser ensinado

por pássaros."

"Bem, há um pássaro que me pode ensinar o que bem quiser. Não o

escuto sempre com a maior atenção?"

Para Rosamond era como se Lydgate e ela já estivessem até compro-

metidos. Que algum dia fossem estar comprometidos era uma idéia de

há muito em sua mente; e as idéias, como sabemos, tendem a uma espé-

cie de existência mais sólida quando os materiais necessários estão à

mão.  verdade que Lydgate tinha a contra-ldéia de não assumir com-

promisso; mas esta era um mero negativo, uma sombra lançada por ou-

tras resoluções capazes de por sua vez se alterarem. As circunstâncias,

era quase certo, pendiam para o lado da idéia de Rosamond, que tinha

uma atividade formadora e se projetava por atentos olhos azuis, ao pas-

"MargueritePower, condessade Blessington (1789-1849), eLetitiaE]izabeth

Landon (1803-

1838), romancistas populares das décadas de 1820 e 1830.

MIDDLEMARCH

295

so que os de Lydgate jaziam cegos e indiferentes como uma água-viva

que já vai a desfazer-se sem se dar conta.

Esta noite, ao voltar para casa, foi com inabalado interesse que ele

examinou seus frascos para ver como estava indo um processo de

maceração; e escreveu suas notas diárias com a mesma exatidão de

costume. Os devaneios dos quais tinha dificuldade em se distanciar

eram construções ideais de alguma coisa que não as virtudes de

Rosamond, e em grande parte o tecido primitivo ainda lhe escapava.

Além disso, ele estava começando a tomar gosto por sua rixa crescente
mas disfarçada com os outros médicos locais, que provavelmente se

tomaria mais manifesta, agora que o método de BuIstrode para a ad-

ministração do novo hospital estava para ser divulgado; e havia vários

sinais indicadores de que a não aceitação dele por alguns dos pacientes

de Peacock poderia ser contrabalançada pela impressão que ele havia

causado noutras partes. Apenas poucos dias depois, quando casual-

mente se encontrou com Rosamond na estrada de Lowick e apeou do

cavalo para andar ao lado dela até a ter protegido de um rebanho que

passava, ele foi abordado por um serviçal a cavalo com um recado que

o chamava a uma casa de relativa importância e que Peacock nunca

havia atendido; já era o segundo caso do tipo. O serviçal era de Sir

James Chettam: a casa, Lowick Manor.

CAPÍTULO XXVIII

Ist Gent. All times are good to seek your wedded home

Bringing a mutual delight.

2nd Gent. Why, true.

The calendar hath not an evil day

For souls made one by love, and even death

Were sweetness, if it carne like rolling waves

While they two clasped each other, and foresaw

No life apart.

11 Sr.  sempre tempo de buscar um lar casado

Para o deleite mútuo.

2- Sr. Sim, correto.

O calendário não tem maus dias para

Almas que o amor fez uma, e até a morte

Far-se-la doçura, se viesse rolando como ondas

Enquanto um estreita o outro, sem jamais antever


Uma vida à parte.

MR. E MRS. CASAUBON, regressando da viagem de núpeias, chegaram a

Lowick Manor em meados de janeiro. Caía uma leve neve quando de-

sembarcaram à porta e, pela manhã, quando Dorothea passou do seu

quarto de vestir para o boudoir verde e azul que conhecemos, viu a longa

alameda de tílias a erguer da terra branca seus troncos e a abrir os galhos

brancos contra o céu cinzento e imóvel. A distante planície encolhia-se

numa brancura uniforme, sob a baixa uniformidade das nuvens. E até o

mobiliário do quarto parecia ter encolhido desde que ela o vira pela

última vez: o cervo da tapeçaria dava agora a impressão de um ser

fantasmal em seu mundo verde-azulado de fantasma; na estante, os vo-

lumes de literatura elegante pareciam mais imitações inamovíveis de

MIDDLEMARCH

297

livros. O fogo intenso de ramos secos de carvalho a arder sobre os ferros

da lareira parecia uma incongruente renovação de vida e fulgor - como

a própria figura de Dorothea quando ela entrou com os estojos de couro

avermelhado que continham os camaféus para Celía.

Ela estava fulgurante em sua toalete matinal, como somente fulgura

a juventude sadia; havia um brilho de pedra preciosa em seu cabelo

enrolado e nos olhos cor de avelã; havia nos seus lábios a vida quente e

vermelha; a garganta tinha uma arfante brancura por cima do diferente

branco da peliça que parecia enroscar-se em seu pescoço e descer para

aninhar-se na capa cinza-azulada com uma ternura arrancada dela mes-

ma, uma inocência mesclada e senciente que mantinha sua beleza con-

tra a pureza cristalina da neve. Ao pôr os estojos dos carnaféus na mesa

junto da janela em torrinha, inconscientemente ela conservou as mãos


sobre eles, absorvendo-se de imediato em olhar os limites brancos e

imóveis do seu mundo visível.

Mr. Casaubon, que se levantara cedo queixando-se de palpitações,

estava reunido na biblioteca com seu coadjutor, Mr. Tucker. Dentro em

breve Celia viria em sua dupla condição de dama de honor e irmã, e nas

semanas seguintes haveria visitas de casamento a receber e fazer; tudo

em prosseguimento daquela vida de transição tomada por corresponder

à excitação da felicidade conjugal, e em tudo a impressão de uma atare-

fada ineficácia, como a de um sonho do qual o sonhador começa a sus-

peitar- As obrigações de sua vida de casada, antevistas como tão gran-

des, pareciam encolher junto com os móveis e a paisagem murada em

branca névoa. As claras alturas por onde esperara andar em comunhão

plena haviamse tornado dificeis de ver mesmo em sua imaginação; o

delicioso repouso de uma alma em outra, superior e completa, converte-

ra-se abalado em esforço incômodo, e se alarmava com pressentimentos

sombrios. Quando começariam os dias daquela ativa devoção de esposa

que deveria revigorar a vida de seu marido e exaltar-lhe a própria? Nun-

ca talvez, tal como os preconcebera; mas de algum modo - de algum

modo ainda. Nesta união de sua vida em juramento solene, o dever se

apresentaria numa nova forma de inspiração e ainda daria um novo sen-

tido ao amor de mulher.

Enquanto isto havia a neve e a arcada baixa e densa de bruma -

havia a sufocante opressão daquele mundo de senhora distinta, onde

faziam tudo para ela e ninguém pedia sua ajuda - onde o sentido de

ligação com uma existência multifária e fecunda tinha de ser penosa-

mente mantido como visão interior, ao invés de vir de fora em exigências

que pudessem dar forma às suas energias. - "O que vou fazer?" "O que

298

GEORGE ELIOT
bem quiser, querida:" esta era a sua breve história desde que ela havia

desistido das lições matinais e da prática de melodias bobocas no odia-

do piano. O casamento, que deveria trazer orientação para ocupações

imperiosas e dignas, ainda não a livrara de sua opressiva liberdade de

senhora distinta: nem mesmo lhe preenchera o tempo livre com a alegria

natural de uma ternura não reprimida. Sua juventude cheia de viço e

florescente estava ali num aprisionamento moral que se tornava uma

coisa só com a paisagem fria, comprimida, incolor, com os móveis enco-

lhidos, os livros nunca lidos e o cervo fantasmal de um mundo esmaecido

e fantástico que parecia fugir da luz do dia.

Nos primeiros minutos em que olhou para fora, Dorothea nada sen-

tiu além da lúgubre opressão; veio-lhe a seguir uma lembrança pungen-

te e, saindo da janela, ela andou em volta do quarto. As idéias e espe-

ranças que viviam em sua mente quando ela viu pela primeira vez este

quarto quase três meses antes só se faziam presentes agora como me-

mórias: ela as julgava como julgamos nós as coisas fugazes que já se

foram. Toda a existência parecia pulsar num ritmo mais lento que o dela,

e sua fé religiosa era um grito solitário, a luta para sair de um pesadelo

no qual um a um os objetos iam minguando, encolhendo, distanciando-

se dela. Cada coisa lembrada ali no quarto era desencantada, morta como

uma transparência sem luz, até que seu olhar pervagante deu com o

grupo de miniaturas, onde por fim ela viu alguma coisa que fazia sentido

e era um sopro novo: a miniatura da tia Julia de Mr. Casaubon, a que

tinha feito um casamento infeliz - a avó de Will Ladislaw. I)orothea foi

capaz de a imaginar como viva agora - o delicado rosto de mulher que

no entanto tinha um olhar decidido, peculiaridade difícil de interpretar.

Seriam só os amigos dela que achavam seu casamento infeliz? ou teria

ela mesma descoberto que havia sido um engano, e provado o amargo

sal de suas lágrimas no silêncio piedoso da noite? Que extensão de ex-

periência Dorothea parecia já ter ultrapassado desde que por primeiro


olhara esta miniatura! Sentiu uma nova impressão de companheirismo

com ela, como se ela lhe prestasse atenção e pudesse ver como a estava

olhando. Ali estava uma mulher que tinha conhecido alguma dificuldade

no casamento. Porém de brusco as cores se avivaram, os lábios e o quei-

xo pareceram crescer, o cabelo e os olhos pareceram espargir luz, o rosto

era masculino e cintilou sobre ela com esse olhar direto que diz àquela

em quem bate que ela é muito interessante para que o mais leve movi-

mento de suas pálpebras passe despercebido e livre de interpretação. A

vívida apresentação surgiu a Dorothea como um fulgor agradável: ela

sentiu que sorria e, afastando-se da miniatura, sentou-se e olhou para

MIDDLEMARCH

299

cima como se estivesse de novo conversando com uma figura em frente

Mas o sorriso desapareceu, nisto que ela foi meditando e por fim diss(

em voz alta:

"Oh, foi cruel falar assim! Foi triste - foi terrível!"

Levantou-se às pressas e saiu do quarto e correu pelo corredor com

o impulso irresistível de ir ver seu marido e perguntar se podia fazer

alguma coisa por ele. Talvez Mr. Tucker já tivesse ido embora e Mr.

Casaubon se achasse sozinho na biblioteca. Ela sentia que toda a sua

tristeza da manhã desapareceria, se visse o marido contente com a sua

presença.

Mas, quando alcançou o topo da escura escada de carvalho, Celia

vinha subindo, e embaixo estava Mr. Brooke, a trocar cumprimentos

com Mr. Casaubon e dando-lhe as boas-vindas.

"Dodo!" disse Celia, em seu tranqüilo staccato; depois beijou a irmã,

que a recebeu em seus braços, e não disse mais nada. Penso que todas

duas choraram um pouquinho de maneira furtiva, enquanto Dorothea


corria escada abaixo para estar com seu tio.

"Nem preciso perguntar como vai, querida," disse Mr. Brooke após

beijá-la na testa. "Vejo que Roma lhe fez bem - a felicidade, os afrescos,

o antigo - esse tipo de coisa. Mas que ótimo tê-la por aqui novamente,

e agora você entende tudo de arte, não é? O Casaubon é que anda um

pouco pálido, eu disse a ele - um pouco pálido, sabe. Trabalhar durante

as férias já é um certo exagero. Eu mesmo fiz esta imprudência uma

vez"- Mr. Brooke conservava a mão de Dorothea na sua mas virara o

rosto para Mr. Casaubon - "estudando a topografia, ruínas, templos -

pensei até ter uma pista, mas vi que ela me levaria longe demais, e tal-

vez fosse dar em nada. Nesse tipo de coisa, sabe, a gente às vezes se

aprofunda, e não dá em nada mesmo."

Os olhos de Dorothea estavam postos também no rosto de seu ma-

rido, inquietos com a idéia de que quem o via de novo após a ausência

fosse capaz de perceber sinais que ela não tinha notado.

"Nada para alarmá-la, querida," disse Mr. Brooke, observando-lhe

a expressão. "Logo a carne de carneiro e a carne de boi inglesas hão de

fazer diferença. Para posar para o retrato do Aquino, a palidez até que

convinha - sua carta, sabe, nos chegou a tempo. Mas o Aquino hoje

- ele era um pouco sutil demais, concorda? E alguém lê o Aquino

hoje?"

"Realmente ele não é um autor adequado a espíritos superficiais,"

disse Mr. Casaubon, suportando as intempestivas questões com a paciên-

cia mais digna.

30O

GEORGE ELIOT

"Gostaria de um café no seu quarto, tio?" disse Dorothea, vindo em

sua ajuda.
"Sim; e você deve ir falar com Celia: ela tem grandes novidades para

você, sabe? Vou deixar que conte tudo."

O boudoir verde-azulado tomava um ar muito mais alegre com Celia

sentada ali numa capa exatamente igual à da irmã, a examinar os carriaféus

com plácida satisfação enquanto a conversa ia passando para outros as-

suntos.

"Você acha que Roma é bom mesmo para uma lua-de-mel?" disse

Celia, com aquele brusco e delicado rubor a que Dorothea estava acos-

tumada nas menores ocasiões.

"Não para todo mundo - não para você, por exemplo," disse cal-

mamente Dorothea. Ninguém jamais saberia o que ela achava de uma

lua-de-mel em Roma.

"Mrs. Cadwallader diz que é uma bobagem, as pessoas fazerem,

quando se casam, uma viagem muito longa. Diz que elas se cansam

mortalmente uma da outra e não podem brigar à vontade, como quando

estão em casa. Lady Chettam diz que foi a Bath." A cor de Celia ia

mudando sempre - parecia

"Ir e vir com as novas do coração,

Como se fosse um mensageiro a correr.""

Deveria significar mais do que os rubores habituais de Celia.

"Celia! aconteceu alguma coisa?" disse Dorothea, num tom cheio

de sentimento fraterno. "Você realmente tem uma grande notícia para

me dar?"

"Foi só porque você viajou, Dodo. Porque assim não havia ninguém

a não ser eu com quem Sir James conversar," disse Celia, não sem um

pouco de malícia nos olhos.

"Entendo. Foi como eu sempre acreditei e esperei," disse Dorothea,

tomando entre suas mãos o rosto da irmã, e olhando-a com certa ansie-

dade. O casamento de Celia parecia ser mais a sério que antes.


"Foi apenas há três dias atrás," disse Celia. "E Lady Chettam é mui-

to boa."

"E você, muito feliz?"

", estou. Mas o casamento vai demorar, porque ainda falta prepa-

"No original: "To come and go with tidings fro, n the heart, / As à a

running messenger had been.

(Edrnund Spenser [1552-1599], The Facrie Queene, Canto IX, 51, 6-7).

MIDDLEMARCH

301

rar tudo. E eu não quero casar-me logo, porque acho muito bom ficar

noiva. Toda a vida depois vamos ser casados, não é?"

"Acredito que você não poderia se casar melhor, Kitty. Sir james é

um homem bom e honrado," disse Dorothea, com entusiasmo.

"Ele deu andamento às casas, Dodo. Há de lhe falar sobre elas, quando

vier. Você gostaria de estar com ele?"

"Claro que sim! Nem faz sentido perguntar."

"Eu só temia que você estivesse ficando muito sabida," disse Celia,

considerando a sabedoria de Mr. Casaubon como uma espécie de vapor

capaz, em devido tempo, de saturar o corpo de um vizinho.

CAPÍTULO XXIX

1 fourid that no genius in another could please me. My

unfortunate paradoxes had entirely dried up that source of

comfort."

- GOLDSMITH.
("Constatei que o gênio alheio jamais podia agradar-me.

Meus infelizes paradoxos haviam secado inteiramente esta

fonte de consolo.")

- GOLDSMITH.

UMA MANHÃ, ALGUMAS semanas depois de sua chegada a Lowick,

Dorothea - mas por que sempre Dorothea? Porventura o ponto de vis-

ta dela era o único possível em relação a este casamento? Protesto con-

tra todo o nosso interesse, todo o nosso esforço de compreensão ser

dirigido apenas para pessoas jovens que parecem sempre em flor,

malgrado suas preocupações; pois elas também hão de murchar, hão de

conhecer os padecimentos mais corrosivos da idade, que estamos aju-

dando a esquecer. A despeito de piscar muito os olhos e de suas man-

chas na pele, coisas a que Celia fazia objeção, e de uma falta de curvas

musculares que era realmente penosa para Sir James, Mr. Casaubon ti-

nha em seu íntimo uma consciência intensa, e era tão sedento de

espiritualidade como o restante de nós. Nada fizera de excepeional ao

casar-se - nada a não ser o que a sociedade autoriza e considera uma

ocasião para buquês e grinaldas. Ocorrendo-lhe que não deveria adiar

por mais tempo sua intenção de matrimônio, ele havia refletido que, no

tocante a esposa, cabia a um homem de boa posição esperar e cuidado-

samente escolher moça na flor da idade - quanto mais nova melhor,

MIDDLEMARCH

303

porque mais submissa e educável - que fosse da mesma classe que a

sua, de princípios religiosos, disposição virtuosa e bom nível de compre-


ensão. A tal moça ele garantiria os mais distintos cuidados, e não se

esqueceria de nada para fazê-la feliz: em troca, receberia os prazeres da

família e deixaria para trás o exemplar de si que parecia tão necessário a

um homem - para os sonetistas do século XVI que o reclamavam. Mas

os tempos mudaram desde então, e nenhum sonetista já havia insistido

com Mr. Casaubon para que ele deixasse um exemplar de si mesmo;

ademais, nem chegara ele a imprimir os exemplares de sua chave mito-

lógica; a questão do casamento, porém, sempre tinha querido resolver, e

a impressão de estar deixando os anos para trás muito rápido, de que o

mundo escurecia e a solidão aumentava, foi razão para ele não perder

tempo em alcançar os prazeres domésticos antes de eles também serem

deixados para trás pelos anos.

Quando viu Dorothea, acreditou ter encontrado até mais do que es-

perava: ela realmente poderia ser uma companheira tão boa que o dis-

pensaria inclusive de contratar uma secretária, auxiliar de que Mr. Casau-

bon tinha um temor suspeitoso e a que nunca dera emprego. (Mr. Ca-

saubon tinha também uma consciência irritável de ser expectativa alheia

que ele manifestasse um poderoso espírito.) A Providência, na sua bon-

dade, enviou-lhe a mulher de que necessitava. Uma esposa, uma jovem

modesta, com as qualidades de seu sexo, que são de pura apreciação,

nunca de ambição, certamente há de tomar por poderoso o espírito de

seu marido. Já se a Providência havia tido com Miss Brooke o mesmo

cuidado, ao enviar-lhe Mr. Casaubon, era uma idéia que dificilmente

ocorreria a ele. A sociedade nunca impôs a absurda exigência de que um

homem deva pensar em suas próprias qualificações para fazer feliz uma

encantadora jovem tanto quanto pensa nas dela para fazer feliz a ele

mesmo. Como se um homem pudesse escolher não só sua esposa, mas

também o marido de sua esposa! Ou como se ele fosse obrigado a pro-

videnciar encantos para sua posteridade em sua própria pessoa! - Quan-

do Dorothea o aceitou com efusão, pareceu-lhe muito normal; e Mr.

Casaubon acreditou que sua felicidade ia começar.


Não chegara a provar muita felicidade em sua vida prévia. Para se

conhecer a alegria intensa sem uma sólida estrutura corpórea, é preciso

possuir alma entusiástica. Mr. Casaubon nunca teve sólida estrutura

corpórea; e sua alma era sensível, porém não entusiástica: lânguida de-

mais para arrojar-se da consciência de si ao apaixonado deleite, ela ade-

java no solo pantanoso onde fora incubada, pensando em suas asas e

nunca alçando vôo. Sua prática de vida era de um tipo digno de pena

304

GEORGE ELIOT

mas que se esquiva à compaixão e teme sobretudo dar-se a conhecer:

era essa susceptibilidade orgulhosa e estreita que não dispõe da massa

necessária para a transformação em simpatia, e treme como fios em pe-

quenas correntes de preocupação consigo mesmo ou, na melhor das hi-

póteses, de uma escrupulosidade egoísta. E Mr. Casaubon tinha muitos

escrúpulos: era capaz de um severo autocontrole; resoluto em ser um

homem de bem segundo os códigos; inatacável pelos padrões de opi-

nião admitidos. Em sua conduta estes objetivos haviam sido atingidos;

mas a dificuldade de tomar a Chave de Todas as Mitologias inatacável

pesava como chumbo em sua mente; e os panfletos - ou "Parerga,"

como os chamava - com os quais ele testava o seu público e depositava

pequenos marcos monumentais de seu percurso, estavam longe de ter

sido vistos em toda a sua significação. Mr. Casaubon desconfiava que o

Arquidiácono nem os tivesse lido; tinha uma dúvida atroz sobre o que

realmente pensavam deles as melhores cabeças de Brasenose,1 e a amar-

ga convicção de que seu velho conhecido Carp havia sido o autor daque-

la resenha depreciativa que estava trancada numa gavetinha da sua mesa

de trabalho, como também num compartimento escuro de sua memória

verbal. Impressões muito fortes, contra as quais era preciso lutar, e que
causavam essa amargura melancólica que é conseqüência de todas as

pretensões excessivas: até sua fé religiosa vacilava com a vacilante confi-

ança em sua realização como autor, e os consolos da esperança cristã na

imortalidade pareciam depender da imortalidade da Chave de Todas as

Mitologias, ainda por escrever. De minha parte lamento muito por ele.

Na melhor das hipóteses é uma sina incômoda ser o que nós considera-

mos altamente letrado e disto porém não desfrutar: estar presente ao

grande espetáculo da vida e nunca se libertar de um eu pequeno, trêmu-

lo, faminto - nunca ser totalmente possuído pela glória avistada, nunca

ter a consciência arrebatadoramente transformada no fulgor de um pen-

samento, no ardor de uma paixão, na energia de uma ação, mas sempre

ser desinspirado e livresco, ambicioso e tímido, escrupuloso e curto de

visão. Tornar-se deão ou mesmo bispo faria pouca diferença, temo, para

os incômodos de Mr. Casaubon. Algum grego antigo observou sem dú-

vida que por trás da grande máscara e do megafone hão de sempre estar

os nossos pobres olhinhos como sempre espiando e nossos lábios

timoratos mais ou menos sob ansioso controle.

A este estado mental planejado um quartel de século antes, e à sen-

sibilidade assim resguardada, Mr. Casaubon tinha pensado em anexar a

Vma das faculdades de Oxford.

MIDDLEMARCH

305

felicidade com uma mulher bonita e jovem; mas mesmo antes do casa-

mento, como já vimos, caiu numa nova depressão ao constatar que a

nova ventura não era venturosa para ele. Sua inclinação mais legítima

ansiava pelos velhos e mais cômodos hábitos. E quanto mais se afunda-

va na dornesticidade, mais a impressão de estar cumprindo um dever e


agindo com correção se sobrepunha a qualquer satisfação. O casamento,

como a religião e a erudição, como até a condição de autor, estava fada-

do a ser uma exigência externa, e Edward Casaubon tendia a atender

inatacavelmente a todas as exigências. Mesmo utilizar Dorothea em seu

trabalho, conforme sua própria intenção antes do casamento, era um

esforço que ele era sempre tentado a adiar, e que talvez nunca tivesse

tido início, não fosse a suplicante insistência dela. Mas ela logrou ter

como coisa acertada que ocuparia seu lugar bem cedo na biblioteca para

ler em voz alta ou copiar o que lhe fosse pedido. O trabalho foi fácil de

definir porque Mr. Casaubon tinha tomado uma decisão imediata: have-

ria um novo Parergon, uma pequena monografia sobre recentes indica-

ções concementes aos mistérios egípeios segundo as quais certas

assertivas de Warburton1 poderiam ser comgidas. As referências eram

extensas mesmo aqui, mas não ilimitadas; e as sentenças deveriam ser

redigidas em forma a ser vasculhada por Brasenose e uma posteridade

menos temível. Estas monumentais produções menores sempre deixa-

vam Mr. Casaubon agitado: sua digestão se tornava difícil pela interfe-

rência das citações, ou pela rivalidade das frases dialéticas que soavam

uma contra a outra em seu cérebro. E desde o início havia uma dedicató-

ria em latim sobre a qual tudo era incerto, a não ser que ela não era para

ter sido feita a Carp: era um amargo arrependimento de Mr. Casaubon

que certa vez ele tivesse feito uma dedicatória a Carp na qual incluíra

este membro do mundo animal entre os viros nuflo aevo perituros um erro

que infalivelmente iria expor o dedicador ao ridículo, nas próximas eras,

e poderia até ser motivo de chacota, no presente, para qualquer um.

Assim Mr. Casaubon estava numa de suas épocas mais atarefadas e,

como eu ia começando a dizer há pouco, Dorothea foi encontrá-lo ainda

cedo na biblioteca, onde ele tomara sozinho o seu café. Celia fazia então

uma segunda visita a Lowick, provavelmente a última antes de seu casa-

mento, e achava-se na sala de visitas à espera de Sir Jarnes.

Dorothea já sabia interpretar os sinais do estado de espírito de seu


marido, e viu que a manhã ali havia-se enevoado mais durante a última

"Provavelmente o bispo William Warburton (1698-1779), autor de obras

teológicas.

2"Homens que nunca hão de perecer."

306

GEORGE ELIOT

hora. Ia ela indo em silêncio para sua mesa quando ele disse, num tom

distante e indicador de que ele apenas se livrava de um desagradável

dever:

"Dorothea, há uma carta para você, que veio anexa a uma endereçada

a mim."

Era uma carta de duas páginas, e imediatamente ela olhou a assina-

tura.

"Mr. Ladislaw! Que pode ter a me dizer?" exclamou em tom de agra-

dável surpresa. "Mas," acrescentou, olhando para Mr. Casaubon, "pos-

so imaginar sobre o que ele lhe escreveu."

"Se quiser, pode ler a carta," disse Mr. Casaubon, que gravemente a

apontou com sua pena de escrever, sem olhar para a esposa. "Mas posso

também dizer de antemão que devo declinar da proposta nela contida

de uma visita à nossa casa. Acredito que eu possa ser desculpado por

desejar um intervalo de liberdade completa, livre das distrações que até

hoje têm sido inevitáveis e especialmente de visitas cuja vivacidade

dessultória torna sua presença uma fadiga."

Não tinha havido um só atrito entre Dorothea e seu marido desde

a pequena explosão em Roma, a qual deixara em sua mente vestígios

tão fortes que desde então lhe era mais cômodo dominar a emoção do

que arcar com as conseqüências de a extravasar. Mas esta pressuposi-


ção rabugenta de que ela pudesse desejar visitas que seriam desagra-

dáveis ao marido, esta defesa gratuita dele mesmo contra uma queixa

egoísta da parte dela, era uma alfinetada violenta demais para que após

ser sentida fosse objeto de reflexão ainda. Dorothea até já pensara que

poderia ter sido paciente com John Milton, mas nunca o imaginara se

comportando desta maneira; e por um momento Mr. Casaubon pare-

ceu-lhe estupidamente cego e odiosamente injusto. A piedade, essa

44criança recém-nascida" que pouco a pouco iria dominar muitas tor-

mentas em seu íntimo, não emitiu na ocasião nem "um simples so-

pro."" Com suas primeiras palavras, pronunciadas numa entonação que

o abalou, ela forçou Mr. Casaubon a olhar surpreso para ela e a encon-

trar o brilho de seus olhos.

"Por que me atribuir este desejo de algo que para você seria um

aborrecimento? Fala-me como se eu fosse uma coisa com a qual tinha de

entrar em contenda. Espere ao menos que eu demonstre só tomar em

consideração meu prazer, independentemente do seu."

"No original: "newborn babe" e -stride the blast" - alusão a uma passagem do

Macbeth de

Shakespeare (Ato 1, Cena 7, linhas 21-23).

MIDDLEMARCH

307

"Você é muito precipitada, Dorotheaf respondeu Mr. Casaubon ner-

voso.

Decididamente esta mulher era muito jovem para estar no nível de

uma esposa ideal - para tanto teria de ser pálida, ter o rosto inexpressivo

e aceitar tudo sem discutir.


"Creio que o primeiro a ser precipitado foi você, com suas falsas

suposições sobre os meus sentimentos," disse Dorothea do mesmo modo.

O fogo ainda não se dissipara e ela julgava ignóbil de seu marido não lhe

pedir desculpas.

"Por favor Dorothea, não falemos mais neste assunto. Não tenho

tempo nem energia para este tipo de discussão."

Aqui Mr. Casaubon mergulhou a pena no tinteiro e fez como se

fosse retornar à escrita, embora sua mão tremesse tanto que as pala-

vras pareciam grafar-se em caracteres desconhecidos. Há respostas que,

desviando a cólera, apenas a enviam para o outro extremo da sala, e ter

uma discussão cortada secamente, quando a pessoa sente que a justiça

está toda do seu lado, é ainda mais exasperador no casamento que em

filosofia.

Dorothea deixou as duas cartas de Ladislaw sem ler sobre a escriva-

ninha de seu marido e foi para seu lugar, rejeitando a leitura de tais

cartas com a indignação e o desprezo que levava por dentro, tal como

repelimos qualquer escória que nos pareça ter feito suspeitos de reles

cupidez por ela. Nem de leve adivinhava as sutis fontes do mau humor

de seu marido sobre estas cartas; sabia apenas que elas o haviam moti-

vado a ofendê-la. Lançou-se de imediato ao trabalho, e sua mão não

tremia; pelo contrário, ao transcrever as citações de que havia sido en-

carregada na véspera, sentiu que ia formando suas letras com grande

apuro, e pareceu-lhe perceber a construção do latim que copiava, e que

ela estava começando a entender, mais claramente que de hábito. Havia

em sua indignação um sentimento de superioridade, que porém se ex-

travasava por ora na firmeza dos traços, e não se comprimia numa voz

articulada por dentro para declarar o outrora "afável arcanjo" uma infe-

liz criatura.

A aparente calma durou uma meia hora e Dorothea ainda não havia

erguido os olhos de sua mesa quando ouviu o barulho forte de um livro

que caía no chão e, virando-se rapidamente, viu Mr. Casaubon que se


dobrava para a frente na escadinha da biblioteca, como se estivesse pas-

sando mal. Num instante ela correu para ele, que manifestava grande

dificuldade em respirar. Pulando sobre um escabelo, ficou na altura dos

seus braços e disse, com a alma derretida em terno alarme:

308

GEORGE ELIOT

"Pode apoiar-se em mim, querido?"

Ele ficou parado por dois ou três minutos, que a ela pareciam não ter

fim, tomando fôlego e incapaz de falar ou se mexer. Quando finalmente

desceu os três degraus e afundou na poltrona que Dorothea pusera ao

pé da escada, já nem mais ofegava, mas parecia sem forças e a ponto de

desmaiar. Dorothea tocou em desespero a sineta, e Mr. Casaubon já era

agora ajudado a se espichar no sofá: não desmaiou, e pouco a pouco ia

melhorando quando Sir James Chettam chegou, após ter sido recebido

no vestíbulo com a notícia de que Mr. Casaubon "tinha tido um ataque

na biblioteca."

"Meu Deus! era justamente o que se podia esperar," foi seu pensa-

mento imediato. Se sua alma profética houvesse sido instada a parti-

cularizar, parecia-lhe que "ataque" teria sido a expressão definitiva en-

contrada. Perguntou a seu informante, o mordomo, se o doutor já ti-

nha sido chamado. O mordomo nunca soubera que seu patrão preci-

sasse de um doutor antes; mas o bom não seria mandar chamar um

facultativo?

Quando Sir James entrou na biblioteca, contudo, Mr. Casaubon pôde

dar alguns sinais de sua polidez costumeira, e Dorothea, que em reação

a seu terror do início mantinha-se ajoelhada e soluçante a seu lado, er-

gueu-se então e propôs que alguém partisse a cavalo para chamar um

médico.
"Recomendo chamar o Lydgate," disse Sir James. "Minha mãe o cha-

mou e achou-o fora do comum. Desde a morte do meu pai que ela tinha

os médicos em baixa estima."

Dorothea consultou seu marido, que fez um gesto mudo de aprova-

ção. Foram pois em busca de Mr. Lydgate e ele veio na maior presteza,

pois o mensageiro, que o conhecia, era o empregado de Sir James Chettam

que o encontrara puxando seu cavalo pela estrada de Lowick e dando o

braço a Miss Vincy.

Celia, na sala de visitas, não soube nada do que se passava até Sir

James contar-lhe. Após a descrição de Dorothea, ele já não considerava

a indisposição um ataque, mas ainda assim algo "desta natureza."

"Coitada da Dodo - que horror!" disse Celia, sentíndo-se tão pe-

nalizada quanto sua própria felicidade perfeita o permitia. Suas mãos,

pequenas, estavam juntas e envolvidas pelas de Sir James como um bo-

tão de flor é cingido por seu grande cálice. " mesmo um horror que Mr.

Casaubon esteja doente; mas eu nunca gostei dele. E penso que ele não

gosta nem a metade de Dorothea; e deveria gostar, pois estou certa de

que ninguém mais ia querê-lo - você não acha?"

MIMUMARCH

309

"Sempre achei um horrível sacrifício de sua irmã," disse Sir James.

"Pois é. Mas a coitada da Dodo nunca fez o que os outros fazem, e

acho que nunca há de fazer."

"E uma nobre criatura," disse o bondoso e sincero Sir james. Ele

acabara de ter tido uma impressão desta espécie quando viu Dorothea

esticando o braço com ternura pelo pescoço de seu marido e olhando

para ele com indizível dor. Mas quanto de arrependimento havia nesta

dor ele não sabia.


"Sim," disse Celia, pensando que ficava bem para Sir james dizer

isto, mas que ele não ficaria bem com Dodo. "Devo ir falar com ela? Você

acha que eu poderia ajudá-la?"

"Acho que seria bom você apenas ir vê-la antes de Lydgate chegar,"

disse Sir james, condescendentemente. "Só não fique muito tempo."

Com a saída de Celia, pôs-se ele a dar passadas a esmo, lembrando-

se do que havia originalmente sentido sobre o noivado de Dorothea e

sentindo renascer seu desgosto pela indiferença de Mr. Brooke. Se

Cadwallader - se todo mundo tivesse encarado a questão como ele, Sir

James, havia feito, o casamento poderia ter sido evitado. Era uma lásti-

ma deixar menina ainda tão nova decidir cegamente seu destino assim

deste modo, sem nenhum esforço para salvá-la. Sir james de há muito

cessara de ter qualquer remorso: seu coração estava muito contente com

o compromisso com Celia. Tinha contudo uma natureza cavaleiresca.

(pôr-se desinteressadamente a serviço de uma mulher não era uma das

glórias ideais da antiga cavalaria?): seu amor desconsiderado não se trans-

formou em amargura; deixara ao morrer doces fragrâncias - flutuantes

memórias que aderiam com um efeito de consagração a Dorothea. Ele

poderia manter-se como seu amigo fraterno, interpretando-lhe com ge-

nerosa confiança as ações.

CAPÖTULO =

"Qu! veut délasser hors de propos, lasse."

- PASCAL.

€"Quem quer descansar sem ter razão, cansa.")

- PASCAL.
MR. CASAUBON NÃO teve um segundo ataque de gravidade igual à do

primeiro, e em poucos dias começou a voltar às condições de costume.

Mas o caso, no entender de Lydgate, merecia muita atenção. Não só ele

usou o estetoscópio (que ainda não se tornara na época de emprego

generalizado), como também se manteve ao lado do paciente a observá-

lo em silêncio. ·s perguntas de Mr. Casaubon sobre seu estado, respon-

deu que a causa da doença era o erro comum dos intelectuais - uma

aplicação muito diligente e monótona: o remédio era satisfazer-se com

moderação no trabalho e procurar relaxar de vários modos. Mr. Brooke

que se sentava por perto na ocasião, sugeriu que Mr. Casaubon deveria

ir pescar, como Cadwallader, e ter uma oficina com torno, fazer brinque-

dos, pernas de mesas, esse tipo de coisa.

"Recomenda-me em suma que eu antecipe o advento de minha se-

gunda infância," disse o pobre Mr. Casaubon, com algum azedume. "Tais

coisas seriam tão relaxantes para mim," acrescentou, olhando para

Lydgate, "quanto o preparo de fibras para cordas para os prisioneiros de

uma casa de correção."

"Confesso," disse Lyd -gte sorrindo, "que a distração é uma receita que

não satisfaz plenamente. E mais ou menos como recomendar às pessoas

que se mantenham contentes. Talvez seja melhor lhe dizer que mais con-

vém o senhor submeter-se a um certo tédio que continuar trabalhando."

MIDDLEMARCH

311

"Sim, sim," disse Mr. Brooke. "Ponha a Dorothea para jogar gamão

com você à noite. E também peteca - não há nada melhor do que pete-

ca para jogar durante o dia. Lembro-me de quando era moda.  bem

verdade que os seus olhos talvez não agüentassem, Casaubon. Mas você

tem de espairecer, homem. Talvez dedicar-se, quem sabe, a um estudo


leve: a concologia, por exemplo: eu sempre a julgo um estudo leve. Ou

então mandar que a Dorothea leia para você coisas leves, Smollett - o

"Roderick Randorn," o "Humphrey Clinker:"1 são um pouco fortes, mas

ela agora, não é?, sendo casada pode ler qualquer coisa. Lembro-me que

me fizeram rir além da conta - há uma hilariante passagem sobre as

calças de um postilhão. Agora não temos tal humor. São coisas pelas

quais eu já passei, mas que para você ainda podem ser novas."

"Tão novas como comer cardos" teria sido uma resposta para repre-

sentar o que Mr. Casaubon sentia. Mas ele apenas se inclinou resignada-

mente, com o devido respeito pelo tio da esposa, e observou que sem

dúvida as obras mencionadas por este tinham "servido como um recurso

a uma certa classe de espíritos."

"Veja só," disse o hábil magistrado a Lydgate, quando já estavam

fora do quarto, "o Casaubon é limitado demais: fica meio perdido quan-

do o senhor o proíbe de tocar seu trabalho de especialista, que creio ser

profundo mesmo - coisa na linha das pesquisas, sabe? Eu nunca passa-

ria por isto; sempre fui versátil. Mas um clérigo é assim, vive todo amar-

rado. Agora, se eles o fizessem bispo! - ele escreveu um panfleto muito

bom por Peel. Sua vida teria mais movimento, mais animação; talvez até

ele engordasse. Mas aconselho-o a conversar com Mrs. Casaubon. Ela é

muito esperta para tudo, minha sobrinha. Diga a ela que seu marido

precisa de diversão, de vida: sugira-lho táticas de distração."

Mesmo sem o conselho de Mr. Brooke, Lydgate já havia decidido ir

falar com Dorothea. Quando seu tio enumerara aquelas sugestões agra-

dáveis sobre os modos possíveis de alegrar a vida em Lowíck, ela não se

achava presente, mas em geral estava ao lado do marido, e os sinais

inalterados de ansiedade intensa em sua face e na voz, sobre tudo o que

dizia respeito à disposição e à saúde dele, constituíam um drama que

Lydgate era levado a observar. Dizía-se ele que apenas cumpria seu de-

ver comunicando-lhe a verdade sobre o futuro provável de seu marido,

mas certamente também pensava que seria interessante conversar confi-


dencialmente com ela. Um médico é dado a fazer observações psicológi-

cas e às vezes, ao empreender tais estudos, facilmente é tentado a profé-

livros de Tobias Smollett, o primeiro de 1748 e o segundo de 1771.

312

GEORGE ELIOT

cias momentâneas que a vida e a morte facilmente desprezam. Lydgate

satirizara não raro esta predição gratuita, e agora queria resguardar-se.

Perguntou por Mrs. Casaubon e, ac saber que ela saíra para dar uma

volta, já se ia afastando quando apareceram Dorothea e Celia, ambas

refulgentes da luta contra o vento de março. Mal Lydgate pediu para

falar a sós com ela, Dorothea abriu a porta da biblioteca, por acaso a

mais próxima, sem pensar em nada no momento a não ser o que ele

poderia ter a dizer sobre Mr. Casaubon. Era a primeira vez que entrava

ali desde a doença do marido, e a criada tinha resolvido não abrir as

cortinas. Mas a luz que entrava pelas estreitas vidraças acima das janelas

dava para ler.

"Não estranhe a pouca luz," disse Dorothea, postada ao meio da

sala. "Desde que o senhor proibiu os livros, a biblioteca está fora de

questão. Mas espero que Mr. Casaubon em breve volte a estar aqui. Ele

está melhorando, não é?"

"Sim, uma melhora muito mais rápida do que eu esperava a princí-

pio. Na verdade ele já está quase em seu estado normal."

"O senhor não teme uma recaída?" disse Dorothea, cujo ouvido apu-

rado parecia ter percebido algum sentido especial na entonação de

Lydg -te.

"E particularmente difícil pronunciar-se sobre tais casos," disse

Lydgate. "O único ponto sobre o qual posso ter certeza é que será dese-
jável vigiar muito bem Mr. Casaubon, para impedi-lo de submeter a ten-

sões o seu sistema nervoso."

"Peço-lhe falar claramente," disse Dorothea, em tom de imploração.

"Não agüento pensar que possa haver alguma coisa que eu não sabia e

que, se tivesse sabido, me teria feito agir de outro modo." Escaparam-

lhe as palavras como um grito: era evidente que estavam dando voz a

uma experiência mental nada remota.

"Sente-se," acrescentou ela, acomodando-se na cadeira mais próxi-

ma e tirando afobada o chapéu e as luvas, com um esquecimento instin-

tivo da formalidade, já que uma grande questão do destino estava em

causa.

"O que a senhora diz justifica meu próprio ponto de vista," disse

Lydgate. "Penso que impedir remorsos desta espécie, na medida do pos-

sível, é uma das funções do médico. Peço-lhe observar porém que o caso

de Mr. Casaubon é precisamente do tipo em que o desfecho é mais difícil

de prever. Pode ser que ele viva uns quinze anos ou mais, sem que seja

sua saúde pior do que a teve até hoje."

Dorothea havia ficado muito pálida e, quando Lydgate fez uma pau-

MIMUMARCH

313

sa, ela disse em voz baixa: "O senhor quer dizer, se tornarmos muito

cuidado."

9sto mesmo - cuidado contra todos os tipos de agitação mental, e

contra a aplicação excessiva."

"Seria uma infelicidade para ele, se tivesse de renunciar ao traba-

lho," disse Dorothea, com uma rápida antevisão da desgraça.

"Sei disto. O único jeito é tentar por todos os meios, diretos e indi-

retos, moderar e variar suas ocupações. Com uma feliz conjunção de


circunstâncias, não há perigo imediato, como eu lhe dizia, apresentado

pela afecção cardíaca que creio ter sido a causa de seu ataque recente.

Mas, por outro lado, é possível que a doença se desenvolva mais rápido:

é um dos casos em que às vezes ocorre morte súbita. Para afastar esta

ameaça, não se pode esquecer de nada."

Houve uns momentos de silêncio. Dorothea sentava-se como que

transformada em mármore, embora a vida em seu íntimo fosse tão in-

tensa que nunca antes sua mente tinha abarcado em tão breve tempo

um igual repertório de motivos e cenas.

"Ajude-ine, por favor," disse ela enfim, na mesma voz baixa de an-

tes. "Diga-me o que eu posso fazer."

"Que pensa de uma viagem pelo exterior? Vocês estiveram recente-

mente em Roma, não foi?"

As memórias que tornavam este recurso definitivamente impensável

foram uma nova corrente a sacudir Dorothea, tirando-a da pálida imobi-

lidade.

"Oh, não daria certo - isto seria pior que tudo," disse ela num de-

sespero mais infantil, enquanto as lágrimas rolavam. "Nada de que ele

não goste vai adiantar."

"Desejaria poder ter-lhe evitado esta dor," disse Lydgate, profunda-

mente comovido, não obstante a pensar no casamento dela. Mulheres

como Dorothea não haviam entrado ainda em suas tradições.

"O senhor fez bem em contar-me. Agradeço-lhe por me dizer a ver-

dade."

"Espero que entenda que ao próprio Mr. Casaubon não direi nada

para esclarecê-lo. O desejável para ele, a meu ver, é que apenas saiba

que não deve trabalhar em excesso e que tem de obedecer certas regras.

Nada lhe seria tão desfavorável quanto a ansiedade, de qualquer tipo

que fosse."

Lydgate se levantou, e mecanicamente Dorothea se levantou ao

mesmo tempo, desabotoando e tirando sua capa como se esta a sufo-


casse. Inclinando-se, ele se despedia, quando um impulso que se teria

314

GEORGE ELIOT

convertido em prece, se ela estivesse sozinha, fê-la dizer com um solu-

ço na voz:

"Oh, o senhor é um homem sábio. Sabe tudo sobre a vida e a morte.

Aconselhe-me. Pense no que eu poderia fazer. Ele tem trabalhado a vida

inteira, sempre olhando em frente. Não liga para mais nada. E eu tam-

bém não

Anos depois Lydgate se lembraria ainda da impressão nele causada

por este apelo involuntário - este grito de alma a alma, sem outra cons-

ciência que não o próprio mover-se de duas naturezas idênticas no mes-

mo meio confuso, na mesma vida turbulenta e de iluminação tão instá-

vel. Mas o que poderia ele dizer agora, a não ser que voltaria amanhã

para ver Mr. Casatibon de novo?

Quando ele se foi, as lágrimas de Dorothea rolaram, aliviando-lhe a

asfixiante opressão. Depois ela enxugou os olhos, lembrando-se de que

seu sofrimento não devia transparecer ao marido; e olhou em volta da

sala, pensando que devia dar ordens para que a arrumassem como de

costume, já que agora Mr. Casaubon poderia querer vir ali a qualquer

momento. Sobre sua escrivaninha havia cartas que tinham ficado sem

tocar desde a manhã em que ele caíra doente, e entre elas, como Dorothea

bem se lembrava, estavam as do jovem Ladislaw, com a carta que lhe era

endereçada ainda por abrir. As associações destas cartas eram mais pe-

nosas ainda devido ao súbito ataque que a seu ver a agitação causada

por sua raiva poderia ter ajudado a provocar: haveria tempo de as ler,

quando lhe fossem novamente entregues, e o impulso de vir à biblioteca

buscá-las nunca lhe ocorrera. Ocorria-lhe porém agora que era bom sub-
traí-las à visão do marido: fossem quais fossem as origens de seu aborre-

cimento com elas, ele não devia, se possível, aborrecer-se de novo; e

primeiro ela passou os olhos pela carta endereçada a ele, para verificar

se seria necessário responder ou não a fim de desembaraçar-se da ofen-

siva visita.

Will escrevia de Roma, e começava dizendo que os favores que de-

via a Mr. Casaubon eram tão grandes que nem os maiores agradecimen-

tos pareceriam impróprios. Claro que ele, se não estivesse cheio de gra-

tidão, deveria ser o mais ordinário dos velhacos a jamais ter encontrado

um generoso amigo. Alongar-se em palavras de reconhecimento seria

como dizer: "Eu sou honesto." Mas Will tinha passado a perceber que

seus defeitos - defeitos que o próprio Mr. Casaubon freqüentemente

apontara - necessitavam para sua correção de uma situação mais dura,

que a generosidade de seu parente havia até então impedido de ser ine-

vitável. Confiava em dar o melhor retorno, se retorno fosse possível,

MIDDLEMARCH

315

demonstrando a eficácia da educação que lhe fora custeada e deixando

de necessitar no futuro de qualquer desvio para ele de fundos a que

outros talvez tinham mais direito. Estava vindo para a Inglaterra para

tentar sua sorte, como eram obrigados a fazer tantos outros jovens cujo

único capital era o próprio cérebro. E seu amigo Naumann manifestara o

desejo de que ele se incumbisse da "Disputa" - o quadro pintado para

Mr. Casaubon, com cuja permissão, e a de Mrs. Casaubon, Will o levaria

pessoalmente a Lowick. Uma carta enviada para a Poste Restante em

Paris nas duas próximas semanas evitaria, se necessário, que ele chegas-

se em hora inconveniente, Em anexo, mandava uma carta para Mrs.

Casaubon, na qual prosseguia uma discussão sobre arte, iniciada com


ela em Roma.

Abrindo sua própria carta, Dorothea viu que se tratava de uma exu-

berante continuação das objeções feitas por ele à sua simpatia fanática e

à sua falta de um prazer neutro e inflexível nas coisas como elas são -

um transbordamento da vivacidade do jovem que era impossível ler nes-

te momento. Ela tinha de pensar imediatamente no que precisava ser

feito em relação à outra carta: talvez ainda houvesse tempo de impedir

que Will viesse a Lowick. Dorothea acabou por entregar a carta a seu

tio, que ainda estava na casa e a quem pediu para comunicar a Will que

Mr. Casaubon havia estado doente e que as visitas lhe estavam proibi-

das por questão de saúde.

Ninguém mais disposto a escrever uma carta do que Mr. Brooke: sua

única dificuldade era escrevê-la curta, tendo suas idéias se expandido,

neste caso, por três páginas grandes e ainda as dobras internas. Simples-

mente ele disse a Dorothea:

"Claro que escrevo, minha filha.  um jovem muito brilhante - este

Ladislaw - ouso dizer que tem futuro.  uma boa carta, a dele, - deixa

claro que também tem noção das coisas, sabe? No entanto, hei de lhe

falar sobre o Casaubon."

Mas a ponta da pena de Mr. Brooke era um órgão pensante que

construía frases, especialmente as de tipo benévolo, antes que o resto de

sua mente as conseguisse alcançar; que pedia desculpas e indicava remé-

dios que, quando Mr. Brooke os lia, pareciam estar muito bem expres-

sos - diziam surpreendentemente a coisa certa e determinavam uma

seqüência na qual ele nunca havia antes pensado. Neste caso, sua pena

achou uma pena que o jovem Ladislaw não viesse à região nesta época,

para que Mr. Brooke pudesse passar a conhecê-lo melhor e juntos eles

vissem os desenhos italianos esquecidos de há muito, - e também ela

se tornou de um tal interesse por um rapaz que se lançava na vida já tão

316
GEORGE ELIOT

cheio de idéias - que ao fim da segunda página havia persuadido Mr.

Brooke a convidar o jovem Ladislaw, uma vez que ele não poderia ser

recebido em Lowick, a vir a Tipton Grange. Por que não? Poderiam en-

contrar muitas coisas para fazerem juntos, e este era um período de

peculiar desenvolvimento - o horizonte político se expandia, e - em

suma, a pena de Mr. Brooke enveredou por uma breve arenga que ela

recentemente havia redigido para esse órgão imperfeitamente editado, o

-Pioneiro de Middemarch." Ao fechar sua carta, Mr. Brooke se sentiu

elevado por um influxo de vagos projetos - um jovem capaz de dar

forma a idéias, o "Pioneiro" comprado a fim de abrir caminho para um

novo candidato, seus documentos utilizados - quem sabia no que isto

podia dar? já que Celia ia casar-se imediatamente, seria muito agradável

ter um jovem companheiro à mesa com ele, ao menos por algum tempo.

Foi-se embora porém sem dizer a Dorothea o que havia posto na

carta, pois ela estava ocupada com o marido, - e estas coisas, de fato,

eram-lhe desimportantes.

CAPÍTULO =I

How will you know the pitch of that great bell

Too large for you to stir? Let but a flute

Play "neath the fine-mixed metal: listen close

Till the right note flows forth, a silvery rill:

Then shall the huge bell tremble - then the mass

With myriad waves concurrent shall respond

In low soft unison.

("Como saber o timbre deste sino, grande demais


Para você tanger? Apenas deixe que uma flauta

Toque por baixo do seu fino metal: e atento ouça

Até fluir a nota certa, um prateado arroio-

O imenso sino então há de tremer - então a massa

Numa miríade de ondas confluentes responderá

Em suave e baixo uníssono.")

NESTA NOITE LYDGATE falou a Miss Vincy de Mrs. Casaubon, dando ênfa-

se ao forte sentimento que a parecia ligar àquele homem formal e estu-

dioso trinta anos mais velho do que ela.

"Naturalmente é dedicada ao marido," disse Rosamond, dando a

entender uma noção de corolário que o homem de ciência considerou

como a mais linda possível numa mulher: mas ela estava ao mesmo tem-

po pensando que não era assim tão melancólico ser senhora de Lowick

Manor com um marido previsto para morrer em breve. "Acha-a por aca-

so muito bonita?"

"Sem dúvida ela é bonita, mas eu nunca tinha pensado nisto," disse

Lydgate.

"Suponho que não seria muito profissional," disse Rosamond, pon-

318

GEORGE ELIOT

do suas covinhas à mostra. "Mas como sua clientela está aumentando!

Antes os Chettams já o haviam chamado, se não me engano; e agora são

os Casaubons."

" verdade," disse Lydgate, num tom de admissão compulsória. "Mas

realmente eu prefiro atender os pobres do que a estas pessoas. Seus

casos são mais monótonos, e a gente tem de suportar o espalhafato que

fazem e de ouvir com mais educação as bobagens."


"Não mais do que em Middemarch," disse Rosamond. "Mas o se-

nhor ao menos anda por amplos corredores e encontra por toda parte

um perfume de rosas."

"E verdade, Mademoiselle de Montmorenci,"I disse Lydgate, incli-

nando a cabeça para a mesa e levantando com o dedo indicador, como

que a aspirar-lhe o perfume, enquanto olhava para ela e sorria, seu lenço

delicado que saía pela abertura da bolsa.

Mas esta liberdade agradável, típica de dia de folga, com a qual Lydgate

evoluía a rodear a flor de Middemarch, não poderia continuar indefini-

damente. O isolamento social não sendo mais possível, não mais nesta

cidade que alhures, duas pessoas num flerte persistente não poderiam

escapar aos "vários emaranhados, pesos, golpes, choques, moções pelos

quais as coisas vão sendo separadas sempre." Tudo o que Miss Vincy

fazia era observado, e justamente agora ela se achava mais em evidência

perante os admiradores e críticos porque Mrs. Vincy, depois de alguma

resistência, tinha ido com Fred passar uns dias em Stone Court, não

havendo outra maneira de ao mesmo tempo contentar o velho Feathers-

tone e ficar de olho em Mary Garth, que parecia ser uma nora menos

tolerável à medida que a doença de Fred desaparecia.

A tia BuIstrode, por exemplo, vinha com um pouco mais de freqüência

a Lowick Gate para ver Rosamond, agora que ela estava sozinha. Pois

Mrs. BuIstrode tinha por seu irmão um sincero sentimento fraterno; sem-

pre achando que ele poderia ter-se casado melhor, mas querendo muito

bem a seus filhos. Mrs. BuIstrode, por outro lado, mantinha longa intimi-

dade com Mrs. Plymdale. No tocante a sedas, modelos para roupas de

baixo, porcelanas e pastores, suas preferências eram praticamente as mes-

mas; as duas trocavam confidências sobre os respectivos problemas de

saúde e condução da casa, e alguns pontinhos de superioridade em favor

de Mrs. BuIstrode, quais fossem, uma seriedade mais decidida, maior ad-

míração pelo espírito e uma casa fora da cidade, serviam às vezes para dar
"Provável referência a Jearme de Montmorenci, heroína do romance La

solitaíre des Pyrénées

(1802), de Sabatier de Castres.

MIDDLEMARCH

319

coloração à sua conversa, sem as dividir: mulheres bem intencionadas

ambas, que muito pouco sabiam de seus próprios motivos.

Mrs. BuIstrode, fazendo a Mrs. Plymdale uma visita matinal, por

acaso disse que não podia ficar mais tempo, porque iria ver a pobre

Rosamond.

"Por que diz "a pobre Rosamond"?" disse Mrs. Plymdale, mulherzi-

nha p -erspícaz e de olhos muito redondos, como um falcão amestrado.

"E tão bonita, e foi criada de um modo tão impensado! A mãe, como

você sabe, sempre foi um pouco volúvel, e isto me deixa inquieta quanto

aos filhos dela."

"Bem, Harriet, se for para eu falar com franqueza," disse Mrs.

Plymdale enfaticamente, Mevo dizer que todo mundo há de supor que

você e Mr. BuIstrode estarão muito felizes com o que aconteceu, pois

fizeram tudo para levar Mr. Lydgate à frente."

"O que está querendo dizer, Selina?" disse Mrs. BuIstrode em genu-

ína surpresa.

"Nada a não ser que estou sinceramente agradecida pelo que se refe-

re ao Ned," disse Mrs. Plymdale. "Sem dúvida ele poderia manter uma

mulher assim muito melhor do que outros; mas meu desejo é que vá

procurar alhures. Não há mãe livre de ansiedade, e alguns rapazes, em

conseqüência, às vezes dão para uma vida errada. Além do mais, se eu

fosse obrigada a falar, diria que nunca gostei de estranhos entrando numa

cidade."
"Não sei não, Selina," disse Mrs. BuIstrode, com alguma ênfase no

tom. "Houve época em que Mr. BuIstrode era um estranho aqui. Abraão

e Moisés eram estranhos no reino, e nos foi dito para receber os estra-

nhos. E principalmente," acrescentou ela, após breve pausa, "quando

eles são inatacáveis."

"Eu não falava num sentido religioso, Harriet. Eu falava como mãe."

"Selina, tenho certeza de que você nunca me ouviu dizer nada con-

tra uma sobrinha minha se casar com seu filho."

"Oh, é o orgulho de Miss Vincy - estou certa de que não é outra

coisa," disse Mrs. Plymdale, que ainda não havia posto toda sua confi-

ança na "Harriet" sobre este assunto. "Nenhum rapaz de Middemarch

era bom para ela: e ouvi sua mãe dizer o mesmo. Onde estaria o espírito

cristão nisto? Mas agora, pelo que eu ouço, ela encontrou um homem

tão orgulhoso quanto ela mesma."

"Você não está querendo dizer que há alguma coisa entre Rosamond

e Mr. Lydgate?" disse Mrs. BuIstrode, algo mortificada por constatar sua

própria ignorância.

320

GEORGE ELIOT

" possível que você não saiba, Harriet?"

"Oh, eu saio tão pouco; e não gosto de mexericos; verdade, não dou

ouvidos a nada. Você vê tantas pessoas que eu não veja nunca! Seu

círculo é um pouco diferente do nosso."

"Berri mas sendo a sua própria sobrinha e o grande favorito de Mr.

Bulstrode - e seu também, Harriet, tenho certeza! Eu até pensei certa

vez que você o quisesse para a Kate, quando ela estivesse um pouco

mais velha."

"Não creio que haja nada sério por ora," disse Mrs. BuIstrode. "Meu
irmão certamente me teria contado."

"Bem, cada qual tem seu jeito, mas pelo que me consta não há quem

veja Miss Vincy e Mr. Lydgate juntos sem pensar que já existe um com-

promisso entre eles. Isto porém não é da minha conta. Ou será que eu

devo ficar cheia de dedos para tocar neste assunto?"

Depois disto Mrs. Bulstrode foi visitar sua sobrinha com um peso

novo na mente. Estava muito bem vestida ela mesma, mas com um pou-

co mais de pesar que de costume notou que Rosamond, que acabara de

chegar e veio encontrá-la em traje de passeio, usava roupas quase tão

caras quanto as suas. Mrs. Bulstrode era uma edição menor e feminina

do irmão, sem nenhum vestígio da sussurrante palidez de seu marido.

Não usava de circurilóquios e tinha um olhar honesto e bom.

"Vejo que está sozinha, minha filha," disse ela, olhando com gravi-

dade ao redor, quando entraram juntas na sala de visitas. Rosamond

sentiu que sua tia tinha alguma coisa em particular a dizer, e elas se

sentaram uma perto da outra. Não obstante, a tira pregueada do chapéu

de Rosamond era tão bonitinha que era impossível não desejar uma do

mesmo tipo para Kate, e os olhos de Mrs. Buistrode, que enxergavam

bastante bem, iam rolando por aquele amplo circuito de pregas enquan-

to ela falava.

"Acabei de ouvir uma coisa a seu respeito que me deixou muito sur-

presa, Rosamond."

"O que foi, tia?" Os olhos de Rosamond vagavam por sua vez pela

grande gola bordada de sua tia.

"Mal consigo acreditar - que você se tenha comprometido sem eu

saber, sem seu pai me avisar." Finalmente os olhos de Mrs. Bulstrode

fixaram-se aqui nos de Rosamond, que foi tomada por profundo rubor e

disse:

povo?"
"Eu não estou comprometida, tia."

"Como é então que todo mundo diz isto - que isto está na boca do

MEMARCH

321

"O que está na boca do povo, para mim, tem muito pouca importân-

cia," disse Rosamond, intimamente gratificada.

"Oh, minha filha, seja mais ponderada; não despreze assim seus vi-

zinhos. Lembre-se que agora já está com vinte e dois anos e não terá

fortuna: seu pai, tenho certeza, não vai poder deixar-lhe nada. Mr. Lydgate

é muito inteligente, é um intelectual; eu sei que nisto há uma atração.

Eu mesma gosto de conversar com tais homens; e seu tio o julga muito

útil. Mas a profissão dele aqui é bem fraca. Claro que esta vida não é

tudo; mas também é raro um médico ter autênticas convicções religiosas

- há muito orgulho do intelecto. E você não foi feita para se casar com

um homem pobre."

"mr. Lydgate não é pobre, tia. Tem parentes muito bem situados."

"Ele me disse que era pobre."

9sto porque está acostumado a pessoas que têm um alto padrão de

vida."

"Minha querida Rosamond, você não deve pensar em viver em altos

padrões."

Rosamond baixou os olhos e brincou com sua bolsinha. Não tinha o

ânimo belícoso nem respostas afiadas, mas era moça decidida a viver

como bem quisesse.

"Então é mesmo verdade?" disse Mrs. BuIstrode, olhando séria para

sua sobrinha. "Você está pensando em Mr. Lydgate: há algum entendi-

mento entre vocês dois, embora seu pai não saiba. Seja franca, minha
querida Rosamond: Mr. Lydgate realmente lhe fez uma proposta?"

A pobre Rosamond se viu numa situação bem incômoda. Até então

estivera muito tranqüila quanto aos sentimentos e intenções de Lydgate,

mas agora que sua tia lhe fazia a pergunta não era nada agradável não

poder dizer Sim. Seu orgulho estava ferido, mas seu habitual autodomí-

nio ajudou-a.

"Desculpe-me, tia, mas eu prefiro não falar deste assunto."

"Acredito que sem uma situação definida você não daria seu coração

a um homem, querida. E pense nas duas excelentes propostas que eu sei

quejá recusou! - uma das quais ainda ao seu alcance, se não insistir em

desdenhá-la. Conheci mulher de grande beleza que, por agir assim, aca-

bou fazendo mau casamento. Mr. Ned Plymdale é um ótimo rapaz -

para algumas talvez até bonito; e é filho único; e um grande negócio

como o dele é melhor que uma profissão. Não que o casamento seja

tudo. A meu ver, você primeiro deveria procurar o reino de Deus. Mas

uma moça deve saber manter seu coração sob seu próprio controle."

"Se fosse o caso, eu nunca daria o meu a Mr. Ned Plymdale. Já o

322

GEORGE ELIOT

recusei. Se eu amasse, amaria desde o primeiro instante e sem mudan-

ça," disse Rosamond, dominada pela impressão de ser uma heroína ro-

mântica, e desempenhando muito bem seu papel.

"Sei como é, minha querida," disse Mrs. BuIstrode, numa voz me-

lancólica, levantando para ir-se embora. "Você permitiu que seus senti-

mentos se envolvessem, sem esperança de retorno."

"De modo algum, tia," disse Rosamond, com ênfase.

"Tem então plena confiança num sério interesse de Mr. Lydgate por

você?"
Rosamond, cuja face a essa altura ardia de maneira contínua, sentiu-

se mortificada. Preferiu ficar calada, e sua tia retirou-se ainda mais

convencida.

Nas coisas mundanas e desimportantes Mr. BuIstrode estava sempre

disposto a fazer o que a mulher lhe pedia, e agora, sem dar suas razões,

ela queria que ele, na primeira ocasião que surgisse, descobrisse em con-

versa com Mr. Lydgate se havia de sua parte alguma intenção de se casar

em breve. O resultado da missão foi uma negativa cabal. Mr. BuIstrode,

ao ser inquirido, demonstrou que Lydgate havia falado como não falaria

nenhum homem que tivesse uma ligação qualquer capaz de levar ao

matrimônio. Mrs. BuIstrode sentiu então que tinha pela frente um grave

dever; conseguiu sem demora um tête-à-tête com Lydgate, no qual pas-

sou das perguntas sobre a saúde de Fred Vincy, e das expressões de sua

sincera preocupação com a grande família de seu irmão, a observações

genéricas sobre os perigos que se antepõem aos jovens quando eles es-

tão para instalar-se na vida. Os rapazes eram não raro desregrados e

causavam decepção, dando pouco em troca do dinheiro gasto com eles,

e uma moça expunha-se a muitas circunstâncias que poderiam interferir

com suas perspectivas.

"Sobretudo quando ela tem grandes atrativos e seus pais recebem

muita gente," disse Mrs. BuIstrode. "Há homens que a cercam de aten-

ções e a monopolizam, pelo prazer de um simples momento, e com isto

os outros se afastam. Creio que é grave responsabilidade, Mr. Lydgate,

interferir com as perspectivas de uma moça." Aqui Mrs. BuIstrode fixou

seus olhos nele, com inequívoca intenção de advertência, senão de re-

preensão.

"Sem dúvida," disse Lydgate, olhando para ela - talvez até olhan-

do firme também. "Por outro lado, deve ser um grande presunçoso o

homem que anda por aí achando que não pode dar atenção a uma moça

sem que ela se apaixone por ele, ou sem que outros pensem que deveria

apaixonar-se."
MIDDLEMARCH

323

"Oh, Mr. Lydgate, o senhor bem sabe quais são suas vantagens. Sabe

que os rapazes daqui não estão na mesma altura. O fato de o senhor

freqüentar assiduamente uma casa pode militar, e muito, contra a ob-

tenção de uma situação desejável por uma moça, impedindo-a de acei-

tar propostas, mesmo quando são feitas."

Mais do que se envaidecer pelas vantagens que levava sobre os

Orlandos1 de Middemarch, Lydgate aborreceu-se por perceber o que

Mrs. BuIstrode tinha querido dizer. Ela sentia que falara com a necessá-

ria firmeza e que ao usar a palavra "militar," tão superior, havia jogado

um nobre véu sobre uma massa de detalhes já em si muito óbvios.

Lydgate, meio com raiva, puxou o cabelo para trás com uma das

mãos, com a outra procurou qualquer coisa num bolso do colete, e de-

pois se curvou para brincar com o cachorrinho, um spaniel preto que

declinou por instinto de suas falsas carícias. Não ficaria bem sair agora,

porque ele jantara com outros convidados e tinha acabado de tomar o

seu chá. Mas Mrs. BuIstrode, não tendo dúvida de que havia sido enten-

dida, desviou a conversa.

Os Provérbios de Salornão, creio, omitiram isto: assim como o pala-

to irritado sente os grãos que machucam, a consciência intranqüila ouve

insinuações que incomodam. No dia seguinte Mr. Farebrother, quando

se despedia de Lydgate na rua, supôs que à noite eles iriam encontrar-se

em casa dos Vincys. Mas Lydgate respondeu rispidamente que não -

estava cheio de trabalho - tinha de parar de sair à noite.

"Pois então vai amarrar-se ao mastro, não é, e tampar os ouvidos?"

disse o Pastor. "Bem, se realmente não quer render-se às sereias, faz

bem em tomar suas precauções a tempo."


Dias antes, Lydgate não teria notado nada demais nestas palavras,

tomando-as pela maneira habitual como o Pastor colocava as coisas. Mas

agora elas pareciam conter uma insinuação que comprovava a impressão

de que ele, fazendo um papel ridículo, comportara-se de modo a ser mal

interpretado: não, acreditava, pela própria Rosamond; estava certo de que

ela aceitava aquilo como a simples brincadeira que ele queria que fosse.

Era dotada de visão e um tato raro em relação aos costumes; mas as pes-

soas em meio às quais vivia, muito intrometidas, só diziam bobagens.

Contudo, não havia por que insistir no erro. Ele resolveu - e manteve a

decisão - que não mais iria à casa de Mr. Vincy, a não ser a trabalho.

Rosamond ficou muito infeliz. A preocupação despertada pelas per-

guntas de sua tia foi crescendo com o tempo e, transcorridos dez dias

" Comoo Orlando que ama Rosafind, na peça de Shakespeare As You Like It

(1599).

324

GEORGE Ei-ioT

sem ela ver Lydgate, transformou-se em terror ante o vazio que podia

ter pela frente - em antevisão da esponja fatal sempre disposta a lavar

tão facilmente as esperanças dos mortais. O mundo, tal qual um ermo

descampado que os truques de um mágico houvessem transformado em

jardim só por um pouco, teria para ela uma nova aridez. Ela sentiu que

começava a conhecer a dor do amor desiludido e que nenhum outro

homem daria ocasião às deleitosas construções aéreas com que se havia

enlevado nos últimos seis meses. A pobre Rosamond perdeu o apetite e

sentiu-se tão desamparada como Ariadrie - como uma encantadora

Ariadrie do palco, deixada para trás com suas malas cheias de figurinos e

nenhuma esperança de um flacre.


Há no mundo muitas maravilhosas misturas que são chamadas igual-

mente de amor e aspiram aos privilégios de um frenesi sublime que é

uma desculpa para tudo (na literatura e no drama). Felizmente

Rosamond não pensou em cometer nenhum ato desesperado: pentean-

do sua cabeleira loura com o mesmo apuro de sempre, soube manter um

calmo orgulho. Sua suposição mais agradável era que a tia BuIstrode

houvesse interferido de algum modo para impedir as visitas de Lydgate:

tudo era melhor do que uma indiferença espontânea dele. Quem quer

que imagine dez dias um tempo curto demais - não para entregar-se ao

langor e emagrecer, ou manifestar outros efeitos mensuráveis da paixão,

mas - para todo o circuito espiritual da conjectura alarmada e da de-

cepção, não faz idéia do que possa estar havendo no elegante ócio da

mente de uma garota.

Entretanto, no décimo primeiro dia, quando Lydgate ia saindo de

Stone Court, Mrs. Vincy pediu-lhe para comunicar a seu marido que

havia uma sensível mudança no estado de saúde de Mr. Featherstone, e

que ela desejava que ele viesse a Stone Court ainda naquele dia. Lydgate

poderia ter ido procurá-lo no local de trabalho, ou arrancar uma folha do

seu bloco para escrever um recado e deixar na porta. Mas, como estas

soluções tão simples aparentemente não lhe ocorreram, podemos con-

cluir que ele não tinha objeções mais profundas a ir bater na própria

residência, numa hora em que Mr. Vincy não estava em casa, e deixar o

recado com Miss Vincy. Um homem pode, por diferentes motivos, decli-

nar de se dar em companhia, mas talvez nem um sábio fique muito con-

tente se ninguém sentir sua falta. Seria um modo gracioso e fácil de

enxertar novos hábitos nos velhos, trocar com Rosamond umas palavras

jocosas sobre sua resistência à dissipação e sua firme resolução de fazer

longas abstinências - até dos mais doces sons. Deve-se confessar tam-

bém que as especulações passageiras sobre todos os possíveis motivos

MIMUMARCH
325

para as insinuações de Mrs. BuIstrode já haviam conseguido enredar-se,

como leves pêlos pegadiços, na teia mais substancial dos seus pensa-

mentos.

Miss Vincy estava sozinha, e foi tão forte seu rubor quando Lydgate

chegou que ele sentiu um correspondente embaraço e, ao invés de qual-

quer jocosidade, começou a dizer de imediato o motivo que o trazia e

pediu-lhe, quase formalmente, para dar o recado ao pai. Rosamond, tendo

suposto no primeiro momento que sua felicidade voltava, magoou-se

muito com os modos de Lydgate; desaparecido seu rubor, ela assentiu

friamente, sem acrescentar uma desnecessária palavra, e valeu -se do tri-

vial tricô que tinha em mãos para evitar olhar Lydgate além do queixo.

Em todos os fracassos, o começo é certamente a metade do todo. Após

sentar-se por dois longos momentos, durante os quais balançava seu

chicote sem poder dizer nada, Lydgate se levantou para ir -se. Rosamond,

enervada pelo conflito entre sua mortificação e a ansia de a disfarçar,

deixou cair seu trabalho, como que assustada, e mecanicamente levan-

tou-se também. No mesmo instante Lydgate se abaixou para apanhar o

tricô. Ao reerguer-se ficou junto de um rostinho adorável a coroar um

pescoço longo e alvo que ele se acostumara a ver girando sob o mais

perfeito controle da graça satisfeita de si. Mas agora, mal levantou os

olhos, viu um certo tremor de desamparo que o comoveu de modo total-

mente novo e o fez fitar Rosamond com um brilho interrogador. Neste

momento ela estava tão natural como sempre estivera aos cinco anos de

idade: sentiu que as lágrimas brotavam e era inútil tentar fazer qualquer

coisa, senão deixar que elas caíssem numa flor azul como gotas, ou que

rolassem pela face, como bem quisessem.

Este momento de naturalidade foi o toque mágico da cristalização:

transformou o flerte em amor. Lembre-se que o homem ambicioso que


contemplava aqueles miosótís sob a água era caloroso e arrojado. já

nem sabia onde o tricô foi parar; uma idéia que lhe percorrera os mais

íntimos recessos teve o efeito milagroso de ressuscitar a força do amor

apaixonado que aí jazia, não sob a laje de um sepulcro, mas sob terra

bem solta e fácil de transpor. Suas palavras foram abruptas e desairosas;

mas a entonação as fez soar como uma confissão ardente e súplice.

"Qual é o problema? você parece estar sofrendo. Diga-me - por

favor."

Nunca ninguém falara a Rosamond assim neste tom. Nem eu tenho

certeza de que ela soubesse que palavras foram usadas; mas olhou para

Lydgate, e duas lágrimas grandes lhe caíram no rosto. Resposta mais

completa do que seu silêncio era impossível, e Lydgate, esquecendo-se

326

GEORGE ELIOT

de tudo o mais, completamente dominado por um impulso de ternura

ante a crença súbita de que a alegria desta jovem e doce criatura depen-

dia dele, cingiu-a nos braços, envolveu-a protetora e delicadamente -

já se acostumara a ser delicado com quem estava fraco e sofrendo - e

deu em cada lágrima um beijo. Um estranho caminho, sem dúvida, para

chegar a um entendimento, mas um caminho curto. Rosamond não se

zangou, moveu-se um pouco para trás numa felicidade tímida, e Lydgate

então pôde sentar-se a seu lado e falar menos incompletamente.

Rosamond teve de fazer sua pequena confissão, enquanto ele se des-

manchava em palavras de gratidão e ternura com uma profusão impulsi-

va. Meia hora depois ele sairia da casa como um homem comprometido:

sua alma não mais lhe pertencia, mas sim à mulher à qual já estava

ligado.

Voltou à noite para falar com Mr. Vincy, o qual se sentia convencido,
tendo retornado há pouco de Stone Court, de que a notícia do passamento

de Mr. Featherstone não tardaria a lhe ser dada. A palavra "passamento,"

que lhe ocorrera como feliz e oportuno achado, deixava-o ainda mais

animado do que em geral ele estava à noite. A palavra certa é sempre

uma força, e comunica à nossa ação sua exatidão. Considerada como

passamento, a morte do velho Featherstone assumia um aspecto mera-

mente legal, e assim Mr. Vincy podia abrir sua caixa de rapé e ir pensan-

do a respeito sem deixar de ser jovial, e sem qualquer afetação intermi-

tente de solenidade; coisas, tanto a solenidade quanto a afetação, que

Mr. Vincy detestava. Quem já se encheu de reverência ante um testador,

ou entoou cânticos por causa de um título de propriedade de terras? Mr,

Vincy inclinava-se esta noite a aceitar com jovialidade tudo: chegou a

observar a Lydgate que Fred enfim já voltara à constituição de família e

em breve seria novamente o rapaz saudável de sempre; e, quando lhe foi

solicitada sua aprovação para o compromisso de Rosamond, ele a deu

com espantosa facilidade, passando logo a observações genéricas sobre

a conveniência do matrimônio para rapazes e moças, e aparentemente

deduzindo do todo a conveniência de um pouco mais de ponche.

CAPÍTULO =H

"They"ll take suggestion as a cat laps milk."

- SHAKESPEARE: Tempest.

("Tomarão a sugestão como um gato lambe leitef)

- SHAKESPEARE: A tempestade."

A TRIUNFANTE CONFIANçA do Prefeito, baseada nos insistentes pedidos

de Mr. Featherstone para que Fred e sua mãe não o deixassem, era até
pouca emoção, se comparada à que se agitava no peito dos parentes con-

sangüíneos do velho, os quais naturalmente manifestavam mais apreço

pelo vínculo familiar e eram mais visivelmente numerosos, agora que ele

se achava preso ao leito. Naturalmente: pois quando o "pobre Peter" ain-

da ocupava sua poltrona na sala de visitas com lambris de madeira, nem

mesmo insetos contumazes, para os quais a cozinheira prepare água fer-

vendo, poderiam ser menos bem-vindos a uma casa que não sem razão

preferissem do que aquelas pessoas cujo sangue Featherstone era mal

nutrido, não por sovinice, mas por pobreza. O irmão Solomon e a irmã

jane eram ricos, e a candura familiar e total abstinência de falsa polidez

com que eram sempre recebidos não lhes parecia demonstrar que seu

mano, no ato solene de fazer seu testamento, fosse desconsiderar as altas

pretensões da riqueza. Nunca pelo menos ele fora tão desnaturado a pon-

to de os banir de sua casa, se bem não causasse espanto que mantivesse à

distância o irmão Jonah, a irmã Martha e os demais, que não tinham nem

sombra destas pretensões. Conheciam a máxima de Peter, de que o di-

nheiro era um bom ovo e precisava ser posto num ninho quente.

"Ato 11, Cena 1, linha 288.

328

GEORGE ELIOT

Mas o irmão jonah, a irmã Martha e todos os exilados carentes sus-

tentavam outro ponto de vista. As probabilidades são tão várias quanto

as faces que se pode ver à vontade em ornatos de talha ou em papéis

pintados: todas as formas lá estão, de Júpiter a Judy,1 desde que se olhe

com inclinação criativa. Os mais pobres e menos favorecidos tomavam

por provável que Peter, nada tendo por eles feito em vida, acabaria por

lembrar-se deles no fim. Jonah argumentava que os homens gostam de


surpreender com seus testamentos, enquanto Martha dizia que ninguém

deveria estranhar muito se ele deixasse a parte mais polpuda para os

que menos a esperavam. Era também de se pensar que um irmão da

gente "ali jogado" com hidropisia nas pernas devesse vir a sentir que o

sangue é mais espesso que a água e, caso não alterasse o testamento, ele

talvez tivesse dinheiro em casa. De qualquer jeito convinha que alguns

parentes de sangue ficassem pelo local, de sobreaviso contra os que na

verdade nem bem parentes eram. Sabidamente havia coisas como os

testamentos forjados e controvertidos que pareciam ter a prerrogativa

áurea e brumosa de dar a não legatários a capacidade de viver por conta

deles. Quem não era parente de verdade, além disso, bem que podia ser

pegado desaparecendo com coisas - e o coitado do Peter "Jogado ali"

indefeso! Alguém tinha de ficar de olho, sem dúvida. Mas nesta conclu-

são todo mundo concordava com Solomon e Jane; também alguns sobri-

nhos, sobrinhas e primos, argumentando com sutileza ainda maior so-

bre o que poderia ser feito por um homem dado a rasgos de estranheza

e capaz de Iegar ao léu" seus bens, sentiam de um modo magnãonimo

que havia um interesse familiar a resguardar, e pensavam em Stone Court

como um lugar que era até de seu dever visitar. A irmã Martha, Mrs.

Cranch pelo casamento, asmática e morando nos Chalky Flats, não po-

dia empreender a viagem; mas seu filho, como sobrinho legítimo do

pobre Peter, poderia representá-la vantajosamente e ficar de olho, para

que o tio Jonali não fizesse uso injusto das coisas improváveis que pa-

reciam estar por acontecer. De fato havia uma impressão generalizada a

correr pelo sangue dos Featherstones: se todos tinham de ficar de olho

uns nos outros, seria bom se cada um refletisse que o Todo-Poderoso o

vigiava também.

Assim foi que Stone Court assistiu a um movimento incessante de

parentes apeando e partindo, enquanto a Mary Garth cabia a desagradá-

vel tarefa de levar seus recados a Mr. Featherstone, que nunca queria ver

ninguém e a mandava de volta dizer isto, tarefa ainda mais incômoda.


Tersonagem de Punch and Judy, espetáculo cômico de marionetes.

MIDDLEMARCH

329

Como responsável pela administração da casa, ela se sentia obrigada, à

boa moda da provincia, a convidá-los a ficar e comer alguma coisa; e a

propósito deste consumo extra no térreo, agora que Mr. Featherstone se

achava acamado, resolveu ir consultar Mrs. Vincy.

"Oh, minha filha, é preciso fazer tudo bem feito, quando se trata de

doença terminal e de herança. Deus sabe que eu nunca brigaria com eles

pelos presuntos da casa - mas guarde o melhor para o funeral. Convém

ter sempre de reserva uma carne recheada e um bom queijo em fatias.

Quando há doença terminal, deve-se contar com a casa cheia de gente,"

disse a liberal Mrs. Vincy, de novo a emitir notas alegres e com a pluma-

gem brilhante.

Depois do belo tratamento de vitela e presunto, algumas das visitas

que apeavam não partiam porém. O irmão Jonah, por exemplo (na maioria

das famílias há sempre alguém desagradável assim; talvez até na mais

alta aristocracia haja espécimes de Brobdingnag,1 gigantescamente

endividados e que a um custo ainda maior incham de gordos), - o ir-

mão Jonah, dizia eu, tendo decaído na vida, tirava seu principal sustento

de um ofício do qual, por suficiente modéstia, ele jamais se gabava,

embora fosse melhor do que trapacear na bolsa ou no turfe, mas que não

exigia sua presença em Brassing enquanto ele encontrasse um bom can-

to para se sentar e comer à larga. Optou pelo canto da cozinha, em parte

porque foi de onde mais gostou, e em parte porque não queria ir sentar-

se com Solomon, sobre quem tinha drástica opinião de irmão. Instalado

numa ótima cadeira de braços e no seu melhor traje, desfrutando de


ampla e constante visão dos acepipes, sentia-se com a consciência tran-

qüila por se fazer presente ali, uma impressão que se mesclava a fugazes

sugestões de domingo e do bar do Green Man; e informou a Mary Garth

que ele não deveria sair de perto do irmão enquanto o pobre do Peter

ainda estivesse sobre a terra. Os engraçados ou os idiotas são geralmen-

te, numa família, os que mais perturbam. Jonah, que era o engraçado

entre os Featherstones, sempre mexia com as criadas quando elas se

aproximavam do fogo, mas parecia considerar Miss Garth uma persona-

gem suspeita, e com olhos frios a seguia.

Mary até teria podido suportar com relativa facilidade este par de

olhos, mas ainda havia o jovem Cranch, que, tendo feito toda a viagem

desde Chalky Flats para representar sua mãe e montar guarda ao tio

Jonah, também julgou de sua obrigação ficar, e ficar principalmente na

cozinha para fazer companhia ao outro. O jovem Cranch não era exata-

IA terra dos gigantes em Guiliver"s Traveis, de Swift.

330

GEORGE ELIOT

mente o ponto de equilíbrio entre o engraçado e o idiota - tendendo

um pouco para o último tipo, era vesgo e assim deixava tudo em dúvida

sobre os seus sentimentos, exceto não serem eles de natureza muito

convincente. Quando Mary Garth entrava na cozinha e Mr. Jonah

Featherstone começava a segui-la com seus frios olhos de detetive, o

jovem Cranch, virando a cabeça na mesma direção, parecia insistir para

que ela notassse como ele ficava vesgo, como se o fizesse de propósito,

tal qual os ciganos quando Borrow1 leu para eles o Novo Testamento.

Não, já era demais para a pobre Mary; aquilo às vezes a -deixava posses-

sa, mas às vezes a tirava um pouco do sério. Num dia em que teve uma
oportunidade ela não pôde resistir a descrever as cenas na cozinha a

Fred, que por seu turno não se pôde furtar à tentação de ir logo ver de

perto, fingindo que estava apenas passando. Mas bastou ele dar com os

quatro olhos para sair a correr pela primeira porta, a qual levava por

acaso à queijaria, onde, sob o alto telhado e em meio aos vasilhames,

desatou numa grande gargalhada de ressonãoncia abafada, perfeitamente

audível na cozinha. Depois fugiu por outra porta, mas Mr. Jonah, a quem

Fred aparecia pela primeira vez com suas pernas compridas, sua pele

branca e seu rosto de traços delicados, partiu para a formulação de sar-

casmos onde estes pontos da aparência combinavam-se humoristicamen-

te aos atributos morais mais baixos.

"Ué, Tom, você não usa essas calças de homem fino - você não tem

nem a metade dessas pernas compridas, bonitas," disse Jonah a seu sobri-

nho, e ao mesmo tempo piscou o olho para ele, dando a entender que

havia alguma coisa a mais nestas declarações, além de sua indiscutibilidade.

Tom olhou para as próprias pernas, mas deixou incerto se preferia suas

vantagens morais a uma extensão mais viciosa dos membros e, nas calças,

um repreensível requinte.

Na grande sala de visitas com lambris de madeira também havia

pares de olhos numa espreita constante e parentes de verdade a postos

como "sentinelas." Muitos vinham, comiam e partiam, mas o irmão

Solomon e a dama que, antes de ser Mrs. Waule, por vinte e cinco anos

havia sido Jane Featherstone achavam bom ficar ali diariamente por ho-

ras, sem outra ocupação previsível que não observar a esperta Mary Garth

(tão esperta que não podia ser pegada em nada) e dar rugosas indica-

ções ocasionais de um choro seco - como se em estação mais úmida

fossem capazes de chorar em torrente - ante a idéia de não terem per-

"George Borrow, autor de The Zincali: or an Account ot the Gypsies in Spain

(1841) e The Bible in

Spain (1843).
MIDDLEMARCH

331

missão para entrar no quarto de Mr. Featherstone. Pois a aversão do

velho por sua própria família parecia aumentar à medida que sua capaci-

dade de se divertir dizendo-lhes coisas mordazes ia diminuindo. Lân-

guido demais para dar suas ferroadas, ele tinha mais veneno a refluir em

seu sangue.

Não acreditando de todo no recado mandado através de Mary Garth,

os dois se apresentaram juntos na entrada do quarto, ambos de preto -

Mrs. Waule com um lenço branco que já se desdobrava na mão - e

ambos violáceos no rosto, numa espécie de luto parcial; enquanto Mrs.

Vincy, com suas bochechas cor de rosa e suas fitas esvoaçantes na mes-

ma cor das bochechas, estava a administrar um tônico ao próprio irmão

deles, e o branquelo do Fred, seu cabelo curto enrolando-se como seria

de se esperar num libertino, refestelado numa poltrona.

Tão logo o velho Featherstone bateu o olho nestas figuras funéreas,

que apareciam a despeito de suas ordens, a raiva passou a revigorá-lo

com mais eficácia que o tônico. Apoiado contra a guarda da cama, ele

mantinha sua bengala de castão de ouro sempre ao alcance da mão.

Pegou-a agora e brandiu-a pela maior área que pôde, aparentemente

para expulsar aqueles feios espectros, berrando numa espécie de grito

rouco:

"Fora, fora, Mrs. Waule! Fora, Solomon!"

"Mano Peter," começou Mrs. Waule - mas Solomon estendeu a

mão para reprimi-la. Era um homem de quase setenta anos, bochechudo

e com uns olhinhos furtivos, não só de temperamento bem mais brando

mas que também se achava mais profundo do que o seu irmão Peter; não

predisposto com efeito a enganar-se com nenhum de seus semelhantes,


que nunca poderiam ser mais enganadores e gananciosos do que ele

desconfiava que fossem. Até as forças invisíveis, pensava, podiam ser

acalmadas por um parênteses brando aqui e ali - vindo de um homem

de fortuna e talvez tão ímpio como os outros.

"Mano Peter," disse ele, num tom de adulação contudo gravemente

oficial, "não é senão obrigação minha vir falar com você sobre o Manganês

e os Três Terrenos. O Todo-Poderoso sabe o que eu tenho em mente..."

"Pois então Ele sabe mais do que eu quero saber," disse Peter, pon-

do a bengala na cama numa demonstração de trégua que ainda continha

ameaças, pois deitou-a ao contrário, para que em caso de luta mais de

perto ele pudesse usar como maça o castão de ouro, e fixou com dureza

a calva de Solomon.

"Há coisas de que se pode arrepender, meu irmão, por não querer

falar comigo," disse Solomon, sem porém avançar. "Posso passar esta

332

GEORGE ELIOT

noite sentado aqui a seu lado, e a Jane de bom grado comigo, e voc

pode escolher a hora que bem quiser para falar ou me deixar falar."

", vou escolher a minha hora - não me precisa oferecer das suas,"

disse Peter.

"Você porém não pode escolher a hora de morrer, meu irmão," co

meçou Mrs. Waule, em seu tom roufenho de hábito. "E, quando estivei

sem fala, talvez se canse dos estranhos que o cercam, e aí então se lem

bre de mim e dos meus filhos" - mas aqui ela teve a voz sufocada pel(

comovente pensamento que estava atribuindo ao irmão sem fala; poi

naturalmente já nos comovemos só por virmos à baila.

"Pois não vou não," contradisse o velho Featherstone. "Não vol

lembrar de nenhum de vocês. Eu já fiz meu testamento e está dito, já f,


meu testamento e pronto." E então ele virou a cabeça para Mrs. Viney

engoliu mais um pouco do seu tônico.

"Há gente que se envergonharia de ocupar um lugar que por direit

pertence a outros," disse Mrs. Watile, virando na mesma direção set

estreitos olhos.

"Oh, minha irmã," disse Solomon, com irônica brandura, "você e E

não somos tão bonitos, inteligentes e finos: devemos ser humildes

deixar que quem é esperto passe à nossa frente."

Fred não foi capaz de agüentar; levantando-se e olhando para N

Featherstone, disse: "O senhor quer que minha mãe e eu saiamos

quarto, para que possa ficar a sós com seus amigos?"

"Não, não, sente-se aí," respondeu com azedume o velho Fe

therstone. "Fique aí onde está. E você, Solomon, adeus," acrescentc

tentando empunhar de novo a bengala sem porém conseguir, já que

nha invertido a posição do cabo. "Adeus, Mrs. Watile, e não me voltE

mais aqui!"

"Seja como for, meu irmão, vou ficar lá embaixo," disse Solom(

"Vou cumprir com o meu dever, e resta ver o que o Todo-Poderoso há

permitir."

"Sim, quando as propriedades saem das famílias," disse Mrs. Wai

em prosseguimento, - "e há rapazes ajuizados para assumir o encar

já os rapazes que não são assim me dão pena, como também suas mCE

Adeus, meu irmão."

"Lembre-se, Peter, de que eu sou o mais velho depois de voc

prosperei desde o início, como você, mas já possuía terras graças

nome Featherstone," disse Solomon, confiante em que esta reflexão

voltasse, nas vigílias da noite, a ocupar a mente. "Mas por ora eu t -

bém lhe digo adeus."

MIDDLEMARCH
333

Sua saída foi apressada porque ambos viram o velho Mr. Featherstone

fechar os olhos e puxar a peruca dos dois lados para tampar as orelhas,

enquanto abria numa careta a boca, como se estivesse decidido a ser

cego e surdo.

Não obstante eles vinham diariamente a Stone Court e sentavam-se

no térreo em seu posto de plantão, mantendo às vezes um lento diálogo

em subtom, no qual havia um tal intervalo entre a observação e a res-

posta que, ao ouvi-los, alguém poderia imaginar -se a escutar autômatos

falantes, meio na dúvida se o engenhoso mecanismo iria realmente ficar

funcionando, ou preparar-se por um bom tempo para afinal parar e si-

lenciar. Serem rápidos, para Solomon e jane, seria uma lástima: isto só

os levaria ao que podia ser visto do outro lado da parede, a pessoa do

irmão jonali.

Mas sua vigília na sala de visitas com lambris de madeira era anima-

da às vezes pela presença de outras visitas vindas de longe ou de perto.

Agora que Peter Featherstone estava no andar de cima, era possível pôr

seus bens em discussão com todo aquele esclarecimento local que se

achava à mão: alguns vizinhos de Middemarch e da zona rural concor-

davam com a família e manifestavam simpatia por seus interesses contra

os Vincys, e entre as visitas houve mulheres que se comoveram às lágri-

mas em conversa com Mrs. Waule, por lembrarem-se de que em tempos

remotos elas mesmas se haviam decepeionado com casamentos e

codicilos, por despeito e ingratidão da parte de cavalheiros idosos que,

era de se supor, tivessem sido poupados para coisa melhor. Estas con-

versas se interrompiam bruscamente, como um órgão quando se larga o

fole, se Mary Garth entrasse na sala; e todos os olhos se voltavam para

ela como uma possível herdeira, ou alguém que poderia ter acesso aos

cofres de ferro.

Mas os homens mais novos, dentre os parentes e conhecidos da fa-


mília, dispunham-se a admirá-la, nesta luz problemática, como uma moça

que demonstrava muito boa conduta e que, em meio a todas as chances

que esvoaçavam ali, poderia vir a ser pelo menos um prêmio de consola-

ção. Donde ela receber sua parte de cumprimentos e polida atenção.

Particularmente de Mr. Borthrop Trumbull, distinto celibatário e lei-

loeiro daquelas bandas, muito tarimbado na venda de terrenos e gado:

um homem público, na realidade, cujo nome era visto em placas de ampla

distribuição e que não poderia senão lamentar que alguém não soubesse

quem ele era. Era primo em segundo grau de Peter Featherstone e por

este fora tratado com mais amenidade que qualquer outro parente, por

ser útil em questões de negócios: na programação de seu funeral, que o

334

GEORGE ELIOT

próprio velho ditou, havia sido indicado para Carregador. Não havia em

Mr. Borthrop Trumbull uma cupidez odiosa - nada além de uma cons -

ciência sincera de seus próprios méritos que, ele estava certo, em caso

de rivalidade poderiam depor contra os competidores; assim se Peter

Featherstone, que, no tocante ao que a ele, Trumbull, dizia respeito,

sempre se comportara como a mais bondosa das almas, houvesse feito

alguma coisa boa por ele, tudo o que teria a dizer era que nunca o tratara

com adulações, apenas o havia aconselhado com base na experiência

que tinha, a qual já se estendia agora por mais de vinte anos, desde os

tempos de sua aprendizagem aos quinze, e não seria um conhecimento

de tipo sub-reptício o que teria deixado. Longe de confinar-se a si mes-

mo, sua admiração se acostumara, tanto na profissão quanto na vida

privada, a deleitar-se com o mais alto valor na estimativa das coisas.

Amante de frases elevadas, nunca ele usava uma linguagem pobre sem

comgir-se imediatamente - e ainda bem, porque falava um pouco alto


e tendia a predominar, levantando-se ou andando freqüentemente ao

redor, puxando o colete como um homem muito apegado à sua opinião,

endireitando-se rapidamente com o indicador e ainda brincando com a

corrente do relógio o tempo todo, como a marcar cada nova série destes

movimentos. De quando em quando havia uma certa violência em seus

modos, mas voltada principalmente contra as opiniões errôneas, cujo

montante a comgir no mundo era tão grande que um homem de certa

experiência e leitura tinha sua paciência necessariamente posta à prova.

Sabia ele que de maneira geral a família Featherstone era de compreen-

são limitada mas, sendo pessoa mundana e um homem público, tomou

tudo com naturalidade e foi até conversar com Mr. Jonah e o jovem

Cranch na cozinha, não duvidando de que havia impressionado muito

este último com suas perguntas capeiosas sobre Chalky Flats. Se

porventura alguém observasse que Mr. Borthrop Trumbuil, sendo um

leiloeiro, era obrigado a conhecer a natureza de tudo, ele teria sorrido e

se empertigado, com a sensação de que chegava bem perto. No todo, e à

moda de um leiloeiro, era um homem horiorável, que não se envergo-

nhava de sua profissão e achava que "o célebre Peel, agora Sir Robert,"I

não deixaria de reconhecer sua importância se fosse apresentado a ele.

"Não me cairiam nada mal, Miss Garth, se me permitisse, um copo

de cerveja e uma fatia daquele presunto," disse ele, entrando na sala às

onze e meia, após ter tido o excepeional privilégio de estar com o velho

10 político britânico Robert Peel, primeiro-ministro de 1834 a 1835 e de

1841 a 1846, assu-

miu o título de Sir em 1830, após a morte do pai.

MIDDLEMARCH

335
Featherstone, e pondo-se de costas para a lareira entre Mrs. Waule e

Solomon. "Não precisa sair; - deixe que eu toco a sineta."

"Obrigada," disse Mary. "Eu tenho mesmo de ir fazer uma coisa."

"E então, Mr. Trumbull, acha-se em grande favor, não é?" disse Mrs.

Waule.

"Por ver o velho?" disse o leiloeiro, brincando calmamente com a

corrente de seu relógio. "Ah, pois é, como vê a senhora, em mim ele tem

confiado bastante." Neste ponto ele apertou bem os lábios e franziu o

sobrolho, meditativamente.

"Poderia alguém perguntar o que o seu próprio irmão andou dízen-

do?" disse Solomon, num submisso tom de humildade que a ele mesmo

deu uma impressão de luxuriosa astúcia, Já que era um homem rico e

sem necessidade daquilo.

"Oh, claro, qualquer um pode perguntar," disse Mr. Trumbull, com

sarcasmo bem humorado e ruidoso, se bem cortante. "Qualquer um pode

interrogar. Quem quer que seja pode dar às suas observações um tom

interrogador," prosseguiu, enquanto juntos se elevavam sua sonoridade

e o estilo. "Bons oradores constantemente o fazem, mesmo quando não

antecipam respostas.  o que chamamos de uma figura de linguagem -

a linguagem, digamos, fazendo bela figura." O eloqüente leiloeiro sorriu

de sua própria candura.

"Eu não lamentaria saber que ele se lembrou do senhor, Mr. Trumbull,

disse Solomon. "Nunca fui contra quem merece.  contra quem não

merece que eu sou."

"Ah, aí está, aí está," disse Mr. Trumbull, como se dissesse grandes

coisas. "Não se pode negar que pessoas não merecedoras têm sido feitas

legatários e até herdeiros universais. Com as disposições testamentá-

rias, é assim mesmo." De novo ele franziu um pouco o sobrolho e aper-

tou os lábios.

"Como? o senhor quer dar por certo, Mr. Trumbull, que meu irmão

deixou as terras dele para alguém de fora da família?" disse Mrs. Waule,
em quem, como mulher desesperançada, aquelas longas palavras tinham

um efeito depressivo.

" melhor um homem doar suas terras para caridade de vez do que

deixá-las para certas pessoas," observou Solomon, vendo que a pergun -

ta da irmã não obtinha resposta.

"O quê, terras para caridade?" voltou à carga Mrs. Waule. "Oh, Mr.

Trumbull, não pode ser isto o que o senhor está querendo dizer. Seria

uma verdadeira ofensa ao Todo-Poderoso que o tornou próspero."

Enquanto Mrs. Waule estava falando, Mr. Borthrop Trumbull andou

336

GEORGE ELIOT

da lareira para a janela, a patrulhar com o indicador o interior de sua

gravata, antes de o passar pelas costeletas e as ondas do cabelo. A seguir

andou até a mesa de trabalho de Miss Garth, abriu um livro que lá esta-

va e leu em voz alta o título, com pomposa ênfase como se o oferecesse

à venda:

"Anne de Geierstein" (pronunciado jirstiin) "ou A Senhora das Bru-

mas, pelo autor de Waverley.` Depois, virando a página, começou so-

noramente: "já se passaram bem quatro séculos desde que a série de

acontecimentos relatados nos capítulos que se seguem ocorreu no Con-

tinente." Pronunciou esta última e verdadeiramente admirável palavra

acentuando a última sílaba, não como se desconhecesse o uso corrente,

mas sentindo que o modo novo de a dizer realçava a beleza que sua

leitura havia dado ao conjunto.

E, como a criada entrava agora com a bandeja, os momentos para

responder à pergunta de Mrs. Waule já haviam passado em segurança,

enquanto ela e Solomon, observando os movimentos de Mr. Trumbull,

pensavam que a alta erudição interferia tristemente com os negócios


sérios. Mr. Borthrop Trumbull na realidade não sabia nada sobre o testa-

mento do velho Featherstone; mas dificilmente seria levado a declarar

sua ignorância, a menos que fosse preso por crime por omissão.

"Só vou querer um pouquinho de presunto e um copo de cerveja,"

disse ele, em tom de quem tranqüiliza. "Como homem que sempre vive

fora em função dos negócios, quando posso eu como aqui e ali qualquer

coisa. Aposto que não há nos três reinos," acrescentou, depois de engo-

lir alguns bocados com uma pressa alarmante, "nenhum presunto como

este. Em minha opinião é melhor até que os de Freshitt Hall - e acho

que eu sou um juiz aceitável."

"Há quem não goste de muito açúcar no presunto," disse Mrs. Waule.

"Mas o pobre do meu irmão sempre adorou."

"Se alguém quiser melhor que isto, nada o impede de querer; mas

que aroma, meu Deus! Bem que eu gostaria de um fornecimento desta

qualidade lá em casa. Há uma certa satisfação para um cavalheiro" - e

aqui a voz de Mr. Trumbull expressou uma reclamação emotiva - "em

ter na sua mesa um presunto assim tão gostosof

E afastou seu prato, encheu seu copo de cerveja e puxou sua cadeira

um pouco mais para a frente, aproveitando a ocasião para olhar as per-

nas de sua calça pelo lado de dentro, e nelas dar uns aprovadores tapi-

nhas - Mr. Trumbull tinha todos esses ares e gestos menos frívolos que

distinguem as raças predominantes do norte.

"Vejo que tem aí uma obra interessante, Miss Garth," observou ele,

MIDDLEMARCH

337

quando Mary reapareceu. " do autor de Waverley": ou seja, Sir Walter

Scott. Eu mesmo comprei um dos seus livros - uma coisa ótima, uma

publicação muito superior, intitulada Ivanhoe." Não há um só escritor


que o vença numa comda - ele não será, na minha opinião, rapidamen-

te ultrapassado. Eu acabo de ler um trecho do início de Anne de jirstiin."

já se inicia bem." (As coisas nunca começavam para Mr. Borthrop

Trumbull: elas sempre se iniciavam, quer na vida privada, quer nos seus

prospectos.) "Gosta de ler, pelo que vejo. A senhorita é assinante da

biblioteca de Middemarch?"

"Não," disse Mary. "Foi Mr. Fred Vincy quem me trouxe este livro."

"Pois eu também adoro livros," replicou Mr. Trumbull. "Tenho não

menos de duzentos volumes encadernados em couro, e orgulho-me de

os ter selecionado eu mesmo. E também quadros de Murilo, Rubens,

Têniers, Ticiano, Van Dyck e outros. Para mim seria uma alegria empres-

tar-lhe qualquer obra que queira mencionar, Miss Garth."

"Fico-lhe muito agradecida," disse Mary, apressando-se para sair de

novo da sala, "mas tenho pouco tempo para ler."

"Eu diria que o meu irmão fez alguma coisa por ela no testamento,"

disse Mr. Solomon num subtom muito baixo, nisto que ela fechava atrás

de si a porta, apontando com a cabeça na direção da ausente Mary.

"E no entanto a primeira mulher, para ele, foi um péssimo negócio,"

disse Mrs. Waule. "Não lhe trouxe nada: e esta menina é apenas sobri -

nha dele. E muito orgulhosa. E meu irmão sempre a pagou por seus

serviços."

"Mas é moça sensata, na minha opinião," disse Mr. Trumbull, aca-

bando sua cerveja e se levantando com um enfático ajustamento do co-

lete. "Observei-a quando pingava gotas de remédio no copo. Ela presta

atenção no que está fazendo. E isto é um ponto importante numa mu-

lher, e importantíssimo para o nosso amigo lá em cima, pobre alma ve-

lha tão querida. Um homem cuja vida tenha algum valor deve pensar em

sua esposa como uma enfermeira: era o que eu faria, se me casasse; e

creio já ter vívido bastante como solteiro para não cometer um erro nes-

ta linha. Há homens que precisam casar-se para elevarem-se um pouco,

mas eu, quando estiver necessitado disto, espero que alguém mo diga -
espero que algum indivíduo me dê ciência do fato. Desejo-lhe um bom

dia, Mrs. Waule. Bom dia, Mr. Solomon. Espero voltar a vê-los em cir-

cunstâncias menos melancólicas."

Depois de Mr. Trumbull se retirar com uma elegante mesura, Solomon,

inclinando-se para ficar mais perto da irmã, observou: "Pode estar certa,

Jane, de que o meu irmão deixou para esta moça uma dinheirama."

338

GEORGE ELIOT

"Qualquer um pensaria o mesmo, pelo modo como fala Mr. TrumbulI,"

disse jane. E aí, depois de uma pausa: "Ele fala como se as minhas filhas

não fossem de confiança para dar gotinhas."

"Os leiloeiros falam pelos cotovelos," disse Solomon. "Mas mesmo

assim esse Trumbull ficou rico."

CAPÍTULO =111

"Uose up his eyes and draw the curtain close;

And let us all to meditation."

- 2 Henry VI.

("Feche-lhe os olhos e então feche a cortina;

E entremos em meditação todos nós.")

- 2 Henrique VM

Jµ PASSAVA DA MEIA-NOrrE, neste mesmo dia, quando Mary Garth foi re-

vezar-se no quarto de Mr. Featherstone, para lá ficar sozinha até o rom-


per da manhã. Assumia com freqüência e de bom grado a tarefa, na qual

encontrava algum prazer, não obstante as rabugices do velho, sempre

que ele lhe pedia atenções. Havia intervalos em que ela podia sentar-se

perfeitamente quieta, desfrutando do silêncio lá fora e da suavidade da

luz. O fogo rubro, com seu delicado e audível mover-se, parecia-lhe ser

uma existência solene, serenamente à parte das mesquinhas paixões,

dos desejos imbecis, do grande esforço por incertezas sem valor, que no

dia-a-dia lhe inspiravam tanto desprezo. Para Mary, pensar era muito

bom, e ali sentada à meia-luz, com as mãos pendendo no colo, já ela se

distraía bastante; pois, tendo tido ainda cedo forte razão de acreditar

que as coisas não pareciam dispor-se para sua satisfação pessoal, nem

por isto perdia tempo a espantar-se ou incomodar-se com o fato. E já

passara a ver a vida como em grande parte uma comédia na qual ela

tomara a resolução orgulhosa, ou melhor, generosa, de não representar

a parte pérfida ou vil. Mary poderia ter-se tornado cínica, não fossem os

Me Shakespeare (Ato 111, Cena 3, linhas 32-33).

340

GEORGE ELIOT

pais que ela venerava e um poço de afetuosa gratidão em seu íntimo, o

qual estava ainda mais cheio porque ela havia aprendido a não fazer

despropositados pedidos.

Sentada ali esta noite, ela revia as cenas do dia, como era seu hábito,

e muitas vezes seus lábios pareciam sorrir das bizarrices às quais sua

fantasia ainda acrescentava novos traços cômicos: como eram ridículas

as pessoas, com suas ilusões, com aquelas carapuças de bobo que leva-

vam sem perceber, achando opacas suas próprias mentiras, enquanto as

dos outros eram transparentes, e considerando-se exceções a tudo, como


se, estando o mundo todo amarelo à luz de uma lâmpada, só elas fos-

sem cor de rosa. No entanto aos olhos de Mary surgiam certas ilusões

que não eram nada cômicas. Ela estava intimamente convencida, se bem

que por um único motivo, sua atenta observação da natureza do velho

Featherstone, de que, apesar do contentamento deste em ter os Vincys a

rodeá-lo, eles provavelmente ficariam tão desapontados como os paren-

tes que eram mantidos ao largo. Desdenhava, e muito, a evidente preo-

cupação de Mrs. Vincy em não querer que ela e Fred ficassem juntos a

sós, mas isto não a impedia de pensar ansiosamente no modo como

Fred iria ser afetado, se viesse a comprovar-se que seu tio o havia deixa-

do tão pobre como sempre. Fred, quando presente, podia ser tomado

por ela como alvo de críticas, mas suas loucuras, quando ausente, não

lhe agradavam nada.

Agradavam-lhe, sim, seus pensamentos: uma mente vigorosa e jo-

vem, não desequilibrada pela paixão, tira proveito do conhecimento que

vai travando com a vida, e com interesse observa a própria força que

tem. Mary tinha doses imensas dessa alegria interior.

Seu pensamento não era marcado por traços solenes ou patéticos

em relação ao velho na cama: tais sentimentos são mais fáceis de fingir

que sentir, estando em causa uma criatura de idade cuja vida não é visi-

velmente senão um remanescente dos vícios. Sempre ela vira o lado

mais desagradável de Mr. Featherstone: ele não,se orgulhava dela, e ela

apenas lhe era útil. Inquietar-se pela alma de alguém que nos trata sem-

pre às patadas é algo a ser deixado para os santos da Terra; e Mary não

era santa. jamais lhe respondera com palavras ásperas, e o atendia com

toda a lealdade: era o máximo que podia fazer. Nem o próprio Feathers-

tone, de resto, estava preocupado com sua alma, pois não tinha querido

receber Mr. Tucker para discutir este assunto.

Esta noite ele não dera porém uma patada sequer, e pelas primeiras

uma ou duas horas permaneceu extraordinariamente quieto, até que por

fim Mary o ouviu fazer barulho com seu molho de chaves contra o baú
MIDDLEMARCH

341

de estanho que ele guardava sempre na cama a seu lado. Por volta das

três horas disse, com extraordinária nitidez: "Menina, venha cá."

Mary obedeceu e notou que ele mesmo já havia retirado o baú de

sob as cobertas, o que em geral pedia para alguém fazer; e já achara a

chave. Abriu agora o baú e, dele tirando uma outra chave, fixou-a bem

com seus olhos que pareciam ter recuperado toda a acuidade e disse:

"Quantos estão na casa?"

"O senhor quer dizer, dos seus parentes?" disse Mary, já acostumada

com o jeito de falar do velho. Ele fez que sim com a cabeça e ela pros-

seguiu.

"Mr. Jonah Featherstone e o jovem Cranch estão dormindo aqui."

"Oh, eles grudaram mesmo, não é? e o resto - vêm todos os dias,

garanto - Solomon e Jane e a garotada toda? Vêm olhar, contar, fazer

cálculos?"

"Todos os dias, todos não. Mr. Solomon e Mrs. Waule sim, estão

aqui todos os dias, mas os outros só vêm às vezes."

Enquanto ela falava, o velho ouviu com uma careta, e depois, rela-

xando a face, disse: "Pois são uns bobos. Ouça aqui, menina. São três

horas da manhã, e eu estou de posse de todas as minhas faculdades,

como em qualquer outro momento da vida sempre estive. Conheço to-

dos os meus bens, sei onde o dinheiro está colocado e tudo o mais. E

deixei tudo pronto para eu poder mudar de idéia, e fazer como bem

quiser no fim. Está ouvindo, menina? Estou de posse das minhas facul-

dades."

"Pois sim, senhor."

Ele então abaixou a voz, com um ar de astúcia maior. "Eu fiz dois
testamentos, e um deles eu vou queimar. Quero que faça o que lhe vou

dizer. Esta é a chave do meu cofre de ferro, ali no armário. Empurre bem

a placa de bronze que há por cima, até ela correr como um ferrolho: aí

então basta meter a chave na fechadura da frente e abrir. Pois então faça

isto; e pegue o documento que está por cima - última Vontade e Testa-

mento - em letras grandes."

"Não, senhor," disse Mary, numa voz firme, "não posso fazer isto."

"Não pode? Pois eu lhe digo que deve," disse o velho, sua voz já

começando a tremer sob o impacto da resistência dela.

"Não posso tocar no seu cofre nem no seu testamento. Devo negar-

me a qualquer coisa que possa despertar suspeitas a meu respeito."

"Garanto que estou no meu juízo perfeito. Não posso fazer como eu

bem queira no fim? Fiz dois testamentos de propósito. Vamos, tome a

chave."

342

GEORGE ELIOT

"Não, senhor, recuso-me," disse Mary, ainda mais resolutamente.

Sua resistência já se transformava em repulsa.

"Digo-lhe que não há tempo a perder."

"Sinto muito, mas não posso ajudá-lo. Não vou deixar que o fim de

sua vida manche o começo da minha. Não tocarei nem no seu cofre nem

no seu testamento." E ela se pôs a uma pequena distância da cabeceira

da cama.

Segurando erecta no molho a chave em questão, o velho, olhar para-

do, ficou um instante em silêncio; depois em gestos agitados passou a

esvaziar com a ossuda mão esquerda o baú de estanho à sua frente.

"Menina," começou a dizer muito afobado, "olhe aqui! pegue o di-

nheiro - as notas, o ouro - pegue - pode ficar com tudo - faça o que
eu estou mandando."

E fez um esforço para estender a chave até onde ela estava, e Mary

retraiu-se de novo.

"Não tocarei nesta chave nem no seu dinheiro. Por favor, não me

peça isto de novo. Se o fizer, terei de ir chamar seu irmão."

Ele aí deixou a mão esquerda cair, e pela primeira vez em sua vida

Mary viu o velho Peter Featherstone chorar feito criança. E ela disse, no

tom mais delicado que lhe foi possível: "Vamos, por favor, guarde o seu

dinheiro"; depois, afastando-se, foi sentar-se junto à lareira, com a es-

perança de que isto contribuísse para convencê-lo de que era inútil dizer

mais coisas. Mas ele se recompôs e disse com veemência:

"Então olhe aqui. Chame o rapaz. Chame o Fred Vincy."

O coração de Mary começou a bater mais rapidamente. Idéias vá-

rias precipitaram-se por sua mente em relação ao que a queima de um

testamento poderia acarretar. Ela tinha de tomar às pressas uma deci-

são difícil.

"Chamo-o, se o senhor deixar que eu chame também Mr. Jonah e os

outros."

"Não, não, ninguém mais. Só o rapaz. Vou fazer como eu quero."

"Espere até clarear, quando todos já estiverem de pé. Ou então dei-

xe-me chamar o Simmons para ele ir buscar o advogado, que poderá

estar aqui em menos de duas horas."

"Advogado? Que quero eu com o advogado? Ninguém vai saber -

garanto, ninguém vai saber. Vou fazer como eu quero."

"Deixe-me chamar mais alguém," disse Mary, persuasivamente. Sua

situação não lhe agradava nada - sozinha com o velho, o qual parecia

mostrar-se numa estranha explosão de energia nervosa que o capacitava

a falar seguidamente sem começar a tossir como de hábito; entretanto

MIDDLEMARCH
343

ela não queria prolongar desnecessariamente a contradição que o agita

va. "Por favor, deixe-me chamar mais alguém."

"Eu é que digo, deíxe-me em paz. Olhe aqui, moça. Pegue o dinhei-

ro. Você nunca terá de novo esta chance. São umas duzentas libras -

tem mais no baú e ninguém sabe ao certo quanto havia. Pegue-o e faça o

que eu mandei."

Mary, em pé ao lado da lareira, via a luz vermelha do fogo que batia

no velho, apoiado em travesseiros contra a guarda da cama, com sua mão

ossuda segurando a chave, e o dinheiro espalhado na colcha diante dele.

Nunca se esqueceu desta visão de um homem que se obstinava até o fim

a fazer o que queria. Mas a maneira como ele havia oferecido o dinheiro

impeliu-a a falar com resolução ainda mais firme que antes.

"Não adianta. Não farei o que o senhor quer. Guarde o seu di-

nheiro. Não tocarei no seu dinheiro. Hei de fazer qualquer outra coi-

sa para confortá-lo; mas não tocarei nas suas chaves nem no seu di-

nheiro."

"Qualquer outra coisa - qualquer outra coisa!" disse o Velho

Featherstone, rouco de raiva como se, tal qual num pesadelo, a raiva

tentasse extravasar-se em grito, e no entanto apenas fosse audível. "Ou-

tra coisa eu não quero. Mas venha aqui - venha aqui."

Mary, que o conhecia muito bem, aproximou-se com cautela. Viu-o

largando as chaves e tentando pegar sua bengala, enquanto a olhava

como uma hiena velha, deformando-se os músculos de sua face com o

esforço empreendido pela mão. Ela parou a uma distância segura.

"Deíxe-me dar-lhe um pouco de tônico," disse ela, serenamente, "e

tentar ajeitar o senhor melhor. Quem sabe agora durma um pouco? E

amanhã, à luz do dia, pode fazer como preferir."

Ele ergueu a bengala e, embora a moça estivesse fora de seu alcance,

arremessou-a com um grande esforço que era pura impotência: a benga-


la caiu, deslizando pelo pé da cama. Mary deixou que ela lá ficasse e

retirou-se para sua cadeira junto ao fogo. Dentro em pouco iria até ele

com a poção. O cansaço o tornaria passivo. A hora mais fria da madruga-

da vinha chegando, o fogo estava baixo e ela podia ver pelas frestas das

cortinas de lã a luz que entrava esbranquiçada. Tendo posto mais lenha

na lareira e jogado um xale nos ombros, sentou-se pois na esperança de

que Mr. Featherstone afinal pegasse no sono, Se ela se aproximasse dele,

sua irritação talvez persistisse. Depois de atirar a bengala ele não dissera

mais nada, mas ela o vira apanhando suas chaves de novo e mexendo no

dinheiro com a mão direita. Não o guardara, contudo, e ela pensou que

ele já ia dormir.

344

GEORGE ELIOT

Mas era Mary quem agora se sentia mais agitada pela lembrança

daquilo por que havia passado do que antes o fora pela própria realida-

de - questionando-se em todos os seus atos que ocorreram de modo

imperativo e excluíam a dúvida nos momentos críticos.

E agora a lenha seca disparava uma chama que iluminou cada greta,

e Mary viu que o velho estava deitado muito quieto, com a cabeça virada

um pouco de lado. Com passos inaudíveis ela caminhou até ele, e achou

seu rosto estranhamente imóvel; mas no momento seguinte o movimen-

to da chama, comunicando-se aos próprios objetos, deixou-a incerta. O

violento bater de seu coração tornava-lhe as percepções"tão duvidosas

que ela não pôde confiar nas conclusões que tirou, nem mesmo quando

tocou nele e se pôs a ouvir sua respiração. Indo até a janela ela abriu

delicadamente as cortinas, para que a luz serena do céu fosse bater na

cama.

Logo em seguida ela correu à sineta para a tocar com energia. E


dentro em pouco não havia mais dúvida de que Peter Featherstone esta-

va morto, com a mão direita agarrada em suas chaves, e a esquerda caída

sobre o monte de notas e moedas de ouro.

LivRo IV

Três Problemas de Amor

CAPÍTULO =IV

1st Gent. Such men as this are feathers, chips, and straws,

Carry no weight, no force.

2nd Gent. But levíty

Is causal too, and makes the sum of weight.

For power finds its place in lack of power;

Advance is cession, and the driven ship

May run aground because the helmsman"s thought

Lacked force to balance opposites.

"19 Sr. Homens assim são plumas, palha, lascas,

Não têm peso nem força.

22 Sr. Mas a leveza,

Que também é causal, se soma ao peso.

Só à falta de outra é que uma força se instala.

Avançar é ceder, e a nau ao largo pode vir

A encalhar na terra, se à razão do timoneiro faltar

Força para equilibrar os contrários."

FOI NUMA mANHÃ de maio que Peter Featherstone foi enterrado. Nas vizi-

nhanças prosaicas de Middemarch, nem sempre maio era quente e

ensolarado, e nesta específica manhã o vento frio que soprava ia espa-


lhando flores dos jardins circundantes sobre os montículos verdes do ce-

mitério de Lowick. Só de vez em quando as nuvens rápidas permitiam a

um raio iluminar algum objeto, bonito ou feio, porventura ao alcance de

seu brilho dourado. E no cemitério da igreja os objetos eram notavelmen-

te diversos, pois havia uma pequena multidão de província à espera de ver

o funeral. A notícia de que seria "um grande enterro" se espalhara ao

348

GEORGE ELIOT

redor; o velho deixara orientação por escrito para tudo, e queria um fune-

ral "melhor que os de seus superiores." Era verdade; porque o velho

Featherstone não tinha sido um HarpagonI cujas outras paixões houves-

sem sido, todas elas, devoradas pela paixão da avareza, sempre faminta e

sempre magra, e que tentasse de antemão regatear no preço com seu agente

funerário. Adorava o dinheiro, mas também gostava de gastar para satis-

fazer seus gostos peculiares, e talvez o adorasse sobretudo como um meio

de fazer os outros sentirem seu poder, de modo mais ou menos desagra-

dável. Se alguém aqui contestar-me, dizendo que deveria haver traços de

bondade no velho Featherstone, não me atreverei a negá-lo; mas devo

observar que a bondade é de natureza modesta, facilmente desencorajada

- quando vícios indómitos no começo da vida a acotovelam muito, tende

a retirar-se à extrema privacidade, - e assim é mais fácil que acredite nela

quem teoricamente constrói um velho cavalheiro egoísta do que quem

forma os julgamentos mais minuciosos baseados em seu conhecimento

das pessoas. Seja como for, ele quis ter um belo enterro, e com "convida-

dos" que haveriam de preferir ficar em casa. Desejara até mesmo que as

mulheres da família o acompanhassem ao túmulo, e a pobre da irmã Martha

submeteu-se para tanto a uma penosa viagem desde os Chalky Flats. Ela

e Jane ter-se-iam pois alegrado (de uma maneira lacrimosa) com este si-
nal de que o irmão, que enquanto vivo não gostava de vê-las, fazia poten-

cialmente questão de sua presença quando já transformado em testador,

caso o sinal não se tornasse equívoco por ter sido estendido a Mrs. Vincy,

cujo dispêndio em belo crepe parecia dar a entender as esperanças mais

presunçosas, agravadas pelo frescor de sua pele, uma indicação muito cla-

ra de que ela não era uma parenta de sangue, mas parte dessa classe em

geral objetável que é chamada de família da esposa.

Somos todos imaginativos, de uma forma ou de outra, pois as ima-

gens são chocadas pelo desejo; e o pobre do velho Featherstone, que ria

tanto de como os outros se enganavam, não escapou em vida da compa-

nhia da ilusão. Ao redigir o programa de seu enterro, certamente não per-

cebeu com clareza que seu prazer no breve drama do qual aquilo era parte

estava confinado à antecipação. Exultando com as afrontas que ele pode-

ria fazer pelo rígido fechar-se de sua finada mão, inevitavelmente mistura-

ra sua consciência com essa presença estagnada e lívida e, se alguma preo-

cupação tinha com a vida futura, era a de estar gratificado dentro do cai-

xão. Assim o velho Featherstone, à sua moda, era imaginativo.

Entretanto as três carruagens de acompanhamento se encheram se-

"Urn avarento na peça de MoflŠre VAvare (1668).

MIMUMARCH

349

gundo as ordens escritas do falecido. Havia homens a cavalo para carregar

o ataúde, com as mais ricas vestimentas e fitas nos chapéus, e até os que

ajudavam a pé tinham atavios de luto que eram de boa qualidade e caros.

O negro cortejo, quando desmontaram, devido à pequenez do cemitério

pareceu maior; as faces cheias de pesar e os panos pretos tremulando ao

vento pareciam falar de um mundo estranho, incongruente com as flores


que caíam de leve pelo chão e o brilho de alguns raios de sol nas margari-

das. Mr. Cadwallader era o pastor que conduzia o séquito - também

segundo expresso desejo de Peter Featherstone, movido como sempre por

razões bem peculiares. Desprezando os coadjutores, aos quais chamava

de subalternos, ele havia resolvido ser enterrado por um clérigo beneficia-

do. Mr. Casaubon estava fora de questão, não só porque declinava dos

deveres desta espécie, mas também porque Featherstone nutria particular

antipatia por ele, quer como reitor de sua própria paróquia, alguém que

em forma de dízimo detinha um direito sobre as terras, quer como, em

seus sermões matinais, um pregador que o velho, sentado em seu banco

sem um pingo de sono, era obrigado a ouvir até o fim, sempre rosnando

para dentro. Não lhe agradava nada, acima dele, um pastor presunçoso a

lhe fazer pregações. Mas suas relações com Mr. Cadwallader haviam sido

de outro tipo: o ribeiro de trutas que percorria as terras de Mr. Casaubon

passava também pelas de Featherstone, e assim Mr. Cadwallader era um

pastor que tinha, ao invés de pregar, de pedir um favor. Ademais ele era

parte da pequena nobreza mais distinta que vivia a seis quilômetros de

Lowick, sendo alçado por isto a um mesmo patamar de grandeza que o

xerife do condado e outros dignitários vagamente tidos por indispensá-

veis ao sistema do mundo. Haveria certa satisfação em ser enterrado por

Mr. Cadwallader, cujo próprio nome já dava uma boa oportunidade para a

pronúncia errada, se lhe agradasse.

Esta distinção conferida ao Reitor de Tipton e Freshitt era a razão

pela qual Mrs. Cadwallader fazia parte do grupo que assistia ao funeral

do velho Featherstone de uma janela nos altos do solar. Não gostava de

visitar esta casa, mas gostava, como dizia ela, de ver coleções de estra-

nhos animais como os que estariam neste funeral; e havia persuadido Sir

James e a jovem Lady Chettam a conduzi-la com o Reitor a Lowick, a

fim de que a visita se tornasse mais agradável.

"Com a senhora eu vou a qualquer parte, Mrs. Cadwallader," tinha

dito Celia; "mas não gosto de enterros."


"Oh, filha, quando se tem na família um clérigo, não há jeito senão

amoldar os gostos: o que fiz desde cedo. Quando me casei com o

Humphrey, eu decidi que ia gostar de sermões, e comecei gostando mui-

350

GEORGE ELIOT

to do fim. Mas logo também gostei do meio e do início, porque sem eles

não ppderia ter o fim."

"E, decerto que não," disse Lady Chettam, a viúva, com pomposa

ênfase.

A janela no alto, da qual se podia ver o enterro, era no quarto ocupa-

do por Mr. Casaubon quando o trabalho lhe havia sido proibido; mas ele

agora praticamente já retomara seu modo habitual de vida, a despeito

das prescrições e advertências, e depois de polidamente cumprimentar

Mrs. Cadwallader se enfiou de novo na biblioteca para pensar em erudi-

tos enganos sobre Cush e Mizraim.

Se não fossem as visitas, Dorothea poderia também estar trancada

na biblioteca e não testemunhar esta cena do funeral do velho Feathers-

tone, que, distante como parecia do curso de sua vida, sempre lhe volta-

ria depois, tangidos certos pontos sensíveis na memória, tal como a vi-

são da basílica de São Pedro em Roma se entrelaçava a sentimentos de

desânimo. Cenas que no destino dos vizinhos fazem mudanças vitais,

para o nosso não são senão um fundo; entretanto, como um aspecto

particular dos campos e árvores, tornam-se associadas para nós a épocas

de nossa própria história, e são parte da unidade que jaz na seleção de

nossa consciência mais aguda.

A associação, como que de sonho, de alguma coisa alheia e mal com-

preendida aos mais profundos segredos de sua experiência parecia espelhar

um sentimento de solidão que era devido ao próprio ardor da natureza


de Dorothea. A pequena nobreza rural dos velhos tempos vivia numa

atmosfera social rarefeita: encastelada à parte em seus postos de obser-

vação na montanha, olhava para baixo sem distinguir muito bem os

cinturões de vida aglomerada no plano. E Dorothea não se sentia à von-

tade na perspectiva e no frio desta altura.

"Eu não vou olhar mais," disse Celia, depois que o cortejo entrou na

igreja, colocando-se um pouco por trás de seu marido, de modo a poder

encostar o rosto, dissimuladamente, no casaco dele. "Dodo, ouso dizer,

gosta disto: ela adora coisas melancólicas e gente feia."

"Gosto de saber alguma coisa sobre as pessoas com as quais convivo,"

disse Dorothea, que andara observando tudo com o interesse de um mon-

ge em sua torre festiva. "Parece-me que nada sabemos sobre os nossos

vizinhos, excluídos os aldeões dos casebres. A gente sempre se pergunta

que tipo de vida os outros levam, e como tomam as coisas. Devo agrade-

cer a Mrs. Cadwallader por ter ido chamar-me e tirar da biblioteca."

"Faz bem em agradecer-me," disse Mrs. Cadwallader. "Estes fazen-

deiros ricos de Lowick são tão interessantes quanto bisontes ou búfalos,

-1

MIDDLEMARCH

351

e garanto que a metade deles você não vê na igreja. São muito diferentes

dos rendeiros do seu tio ou de Sirjames - uns monstros - fazendeiros

sem senhorios - a gente nem sabe como os classificar."

"A maioria dos acompanhantes não são pessoas de Lowick," dis-

se Sir James; "Suponho que sejam legatários de longe, ou de

Middemarch. Lovegood me disse que o velho deixou muito dinhei-

ro, além das terras."


"Ora vejam só! e isto quando tantos filhos mais novos não podem

jantar à própria custa," disse Mrs. Cadwallader. "Ah," virando-se ao som

da porta que era aberta, "aí está Mr. Brooke. Eu sentia que estávamos

incompletos antes, e aqui está a explicação. Veio ver este estranho fune-

ral, naturalmente?"

"Não, vim ver o Casaubon - ver como ele tem passado, sabe? E

trago uma novidade - uma novidadezinha, querida," disse Mr. Brooke,

balançando a cabeça para Dorothea, que dele se aproximava. "Eu já fui

à biblioteca, vi o Casaubon debruçado nos seus livros. E disse a ele que

assim não dava: eu disse: Assim nunca vai dar, sabe: pense na sua espo-

sa, Casaubon." E ele me prometeu que ia subir. Não lhe contei minha

novidade: só disse que ele devia vir até aqui."

"Ah, agora eles estão saindo da igreja," exclamou Mrs. Cadwallader.

"Meu Deus, que misturada mais maravilhosa! Mr. Lydgate, suponho, na

condição de médico. Mas aquilo lá sim que é uma mulher bonita, e o

rapaz louro deve ser filho dela. Quem são eles, Sir James, o senhor os

conhece?"

"Estou vendo o Vincy, o prefeito de Middemarch; provavelmente

são a esposa e o filho dele," disse Sir James, com um olhar interrogador

para Mr. Brooke, que concordou com a cabeça e disse:

"Isto mesmo, uma família muito digna - o Vincy é ótima pessoa;

honra a classe manufatureira. A senhora o viu em minha casa, não se

lembra?"

"Ah, sim: é um dos que estão no seu comitê secreto," disse Mrs.

Cadwallader, fazendo uma provocação.

"Um amante da caça, ademais," disse Sir James, com um desagrado

de caçador de raposas.

"E um dos que vivem de sugar o sangue dos miseráveis tecelões

dos teares manuais de Tipton e Freshitt. Por isto que a família dele

tem esta aparência tão fina," disse Mrs. Cadwallader. "E aqueles lá, de

preto e com a cara assim meio roxa, que contraste chocante! Meu Deus,
parecem um par de jarras! E olhem só o Humphrey: poderiam tomá-lo

por um arcanjo feioso a pairar sobre eles em sua sobrepeliz branca."

352

GEORGE ELIOT

"Um funeral, contudo, é uma coisa solene," disse Mr. Brooke, "Se a

gente o toma por este prisma."

"Mas eu não o estou tomando por este prisma. Não posso usar mi-

nha solenidade demais, senão ela vai ficar em farrapos. já era hora de o

velho morrer, e nenhuma destas pessoas está condoída de fato."

"Que deplorável!" disse Dorothea. " a coisa mais horrorosa que eu

já vi, este enterro.  um borrão de tinta na manhã. Não agüento pensar

que alguém possa morrer sem nada deixar de amor."

Ela ia falar mais, porém viu seu marido entrar e sentar-se um pouco

ao fundo. Nem sempre era feliz a diferença que a presença dele fazia

para ela, que muitas vezes o sentia a se opor por dentro às suas palavras.

"Positivamente," exclamou Mrs. CadwalIader, "lá vem uma cara nova,

atrás daquele homenzarrão que é o mais esquisito de todos: uma cabecinha

redonda com os olhos muito saltados - uma cara de sapo - vejam só.

Acho que ele não deve ser da família."

"Deixe-me ver!" disse Celia que, em pé por trás de Mrs. Cadwallader,

se inclinou para a frente e debruçou sobre ela ao ter a curiosidade des-

pertada. "Oh, que rosto mais singular!" E aí, com uma rápida mudança

para outra espécie de expressão surpresa, ela acrescentou: "Ora essa,

Dodo, você nunca me disse que Mr. Ladislaw estava de volta."

Dorothea sentiu um choque de alarme: todos notaram sua palidez

repentina quando imediatamente ela olhou para o seu tio, enquanto Mr.

Casaubon a olhava.

"Veio comigo, sabe; ele é meu hóspede - está comigo lá na granja,"


disse Mr. Brooke, com a maior naturalidade possível e balançando a

cabeça para Dorothea, como se a informação fosse justamente o que ela

poderia esperar. "E nós trouxemos o quadro no teto da carruagem. Eu

sabia que a surpresa haveria de lhe agradar, Casaubon. Lá está você tal e

qual - como o Aquino, não é? Melhor seria impossível. E você há de

ouvir o jovem Ladislaw falar acerca do quadro. Como ele fala

incomumente bem - assinala isto, aquilo, aquiloutro - entende de

arte e de tudo que lhe diga respeito - e é ótima companhia, sabe - vai

com a gente a qualquer canto - bem o que há tempos eu andava que-

rendo."

Mr. Casaubon inclinou-se com fria polidez, dominando sua irritação,

mas apenas a ponto de se manter em silêncio. Lembrava-se, tão bem

como Dorothea, da carta de Will; notando que ela não se encontrava

entre as que foram guardadas para ele até sua recuperação, secretamente

concluiu que Dorothea havia escrito a Will para não vir a Lowick, e com

orgulhosa susceptibilidade evitava tocar de novo no assunto. Inferiu agora

MIDDLEMARCH

353

que ela pedira ao tio para convidar Will à granja; e ela achou impossível,

no momento, dar alguma explicação.

Os olhos de Mrs. Cadwallader, desviando-se do cemitério, viram

partes de uma cena muda que não lhe era tão inteligível quanto o teria

desejado, e ela não pôde reprimir a pergunta: "Quem é Mr. Ladislaw?"

"Um jovem parente de Mr. Casaubon," respondeu Sirjames pronta-

mente. Sua boa índole não raro o tornava perspicaz e rápido nas ques-

tões pessoais, e pelo olhar de Dorothea para o marido ele havia adivi-

nhado, no espírito dela, certa inquietude.

"Um rapaz excelente - o Casaubon tem feito tudo por ele," expli-
cou Mr. Brooke. "E ele retribui seus gastos com ele, Casaubon," pros-

seguiu, com gestos de encorajamento. "Espero que ele fique um bom

tempo comigo, e haveremos de fazer alguma coisa a partir dos meus

documentos. Tenho montes de idéias e dados, como vocês sabem, e

pelo que vejo ele é justamente o homem para lhes dar forma - lem-

bra-se das citações adequadas, omne tulitpunctum,1 e esse tipo de coisa

- torneando por assim dizer os temas que aborda. Convideí-o há al-

gum tempo atrás, Casaubon, quando você estava doente: Dorothea

disse que você não queria ninguém em casa, não é, e me pediu para

escrever."

A pobre Dorothea sentiu que cada palavra de seu tio era quase tão

agradável quanto um grão de areia no olho de Mr. Casaubon. Seria total-

mente descabido explicar agora que ela não desejara que o tio convidasse

Will Ladislaw. Era incapaz de aclarar para si mesma as razões da aversão

de seu marido pela presença dele - uma aversão que nela fora penosa-

mente impressa pela cena na biblioteca; mas percebeu a inconveniência

de dizer qualquer coisa que pudesse transmitir aos outros uma idéia dis-

to. Nem o próprio Mr. Casaubon, de fato, já representara para si por com-

pleto estas razões mescladas; já que nele o sentimento irritado, como em

todos nós, buscava mais as justificações que o autoconhecimento. Mas ele

queria reprimir os sinais exteriores, e só Dorothea pôde distinguir as mu-

danças no rosto do marido quando ele observou com uma curvatura mais

digna e trauteando mais que de hábito-

" por demais hospitaleiro, meu caro senhor; e devo agradecê-lo por

exercer sua hospitalidade para com um parente meu."

O funeral estava agora acabado, e o cemitério da igreja ia ficando

vazio.

lHorácio, Arts poetica: "Omne tulit punctum qui miscuit utile dulci" €"Quem

junta o útil ao

agradável obtém êxito").


GEORGE ELIOT

"Agora a senhora pode vê-lo, Mrs. Cadwallader," disse Celia. "Ele é

igualzinho a uma miniatura da tia de Mr. Casaubon que está pendurada

no boudoir da Dorothea - e que é muito bonita."

"Belo rapaz," disse secamente Mrs. Cadwallader. "Que pretende ser

seu sobrinho, Mr. Casaubon?"

"Desculpe-me, mas não é meu sobrinho. Ele é meu primo."

"Bem, sabe," interpôs Mr. Brooke, "ele está ensaiando o vôo.  bem

o tipo do rapaz para voar alto. E eu gostaria de dar-lhe uma oportunida-

de. Poderia ser um bom secretário, como Hobbes, Milton, Swift - esse

tipo de homem."

"Compreendo," disse Mrs. Cadwallader. "Alguém que possa escre-

ver discursos."

"Pois então vou lá pegá-lo, não é, Casaubon?" disse Mr. Brooke.

"Ele não queria vir antes de eu o ter anunciado, sabe? E nós vamos

descer para ver o quadro.  você tal e qual: um tipo profundo e sutil de

pensador com o dedo indicador numa página, enquanto São Boaventura

ou um outro, meio gordo e flórido, ergue o olhar para a Trindade. Tudo

é simbólico, sabe - no estilo artístico mais elevado: gosto disto até um

certo ponto, mas sem ir longe demais - exige muito esforço da gente,

não é mesmo? Mas você, Casaubon, aí você está em casa. E a carnadura

do seu pintor é boa - solidez, transparência, tudo do gênero. Certa vez

eu me aprofundei bastante nisto. Agora porém vou lá buscar o Ladislaw."

CAPÍTULO =V

"Non, je ne comprends; pas de plus charmant plaisir

Que de voir d"héritiers une troupe affligée,

Le maíntien interdit, et Ia mine allongée,


Lire un long testament oà pâles, étonnés,

On leur laisse un bonsoir avec un pied de nez.

Pour voir au naturel leur tristesse profônde,

Je reviendrais, je crois, exprŠs de Pautre monde."

- REGNARD: Le Légataíre Universel.

("Não, eu não conheço prazer mais deleitoso

Que ver um bando de herdeiros atordoados

Perder a compostura e, com o rosto alongado,

Ler um testamento no qual, surpresos, pálidos,

Sabem o que lhes foi deixado: um adeus e nada.

Para ver in natura seu pesar profundo,

Eu de bom grado voltaria do outro mundo.")

- REGNARD: O legatário universal."

QUANDO OS ANIMAIS entraram aos casais na Arca, pode-se imaginar que

as espécies juntadas fizeram umas sobre as outras muitas observações

particulares, sendo tentadas a pensar que toda aquela diversidade de

formas a alimentar-se da mesma provisão de forragem era eminente-

mente supérflua, por tender a diminuir as rações. (Temo que para a arte

seria muito penoso representar o papel desempenhado na ocasião pelos

abutres, já que estas aves têm o pescoço desvantajosamente pelado e

não dispõem, ao que parece, de ritos e cerimônias.)

Ijean François Regnard, Le Légataíre Universel (170O).

356

GEORGE ELIOT
Uma tentação de igual tipo apossou-se dos Carnívoros Cristãos que

constituíram o cortejo fúnebre de Peter Featherstone; posto que a maio-

ria tivesse a mente voltada para uma provisão limitada da qual cada um

gostaria de tirar o máximo. Os parentes consangüíneos e os aparentados

por casamento reconhecidos de há muito já formavam um grupo nume-

roso que, multiplicado pelas possibilidades, oferecia um vasto campo a

ciumentas conjecturas e esperanças patéticas. O ciúme dos Vincys tinha

criado uma confraria de hostilidade entre todas as pessoas de sangue

Featherstone e assim, na ausência de qualquer indicação mais precisa de

que um deles teria mais que o resto, o temor de que o pernudo Fred

Vincy fosse ficar com as terras era necessariamente dominante, embora

deixando folga e sentimento abundantes para ciúmes mais vagos, como

os nutridos em relação a Mary Garth. Solomon encontrava tempo para

refletir que Jonah não merecia nada, e Jonah, para difamar Solomon

como ganancioso; Jane, a irmã mais velha, achava que os filhos de Martha

não deveriam esperar tanto quanto os jovens Waules; e Martha, mais

relaxada sobre a questão da primogenitura, lamentava ter de pensar que

Jane fosse tão "ávida." Estes parentes mais próximos impressionavam-

se naturalmente com a irracionalidade das expectativas dos primos em

primeiro e segundo graus, e usavam sua aritmética para calcular as gran-

des somas a que os pequenos legados poderiam chegar, se fossem muito

numerosos. Dois primos estiveram presentes à leitura do testamento,

além de um primo em segundo e de Mr. Trumbull. Este primo em segun-

do grau era um negociante de tecidos de Middemarch, de maneiras gen-

tis e aspirações supérfluas. E os dois primos mais velhos eram de Brassing,

um deles cônscio de suas pretensões devido aos gastos incômodos com

que tinha tido de arcar para presentear seu rico primo Peter com ostras e

comestíveis diversos; o outro inteiramente saturnino, apoiando numa

bengala as mãos e o queixo, e cônscio de suas pretensões não com base

em realizações de somenos, mas no próprio mérito em si: ambos


inatacáveis cidadãos de Brassing, que prefeririam quejonah Featherstone

não vivesse lá. O espirituoso de uma família em geral entre estranhos é

mais bem recebido.

"Ué, o próprio Trumbull está com toda a certeza de quinhentas li-

bras - pode contar com isto - e não me espantaria que meu irmão as

tenha prometido a ele," disse Solomon ao abordar o tema com as irmãs,

na noite da véspera do funeral.

"Meu Deus, meu Deus!" disse a irmã Martha, pobretona cuja imagi-

nação das centenas havia sido reduzida por hábito à importância do

aluguel por pagar.

MIDDLEMARCH

357

Mas de manhã todas as correntes ordinárias de conjecturas foram

perturbadas pela presença de um estranho enlutado que caiu no meio

deles como que vindo da Lua. Era o estranho descrito por Mrs.

Cadwallader como cara de sapo: um homem de trinta e dois ou trinta e

três anos talvez, cujos olhos proeminentes, lábios finos, boca puxada

para baixo e cabelo lustrosamente escovado, desde uma testa que afun-

dava de brusco por cima do ressalto das sobrancelhas, davam certamen-

te ao seu rosto uma imutabilidade batráquia de expressão. Ali, sem dú-

vida, estava um novo legatário: porque senão por que viria ele ao veló-

rio? Ali estavam novas possibilidades, levantando uma nova incerteza

que, nas carruagens do séquito, quase impediu as observações. Todos

nós somos humilhados pela súbita descoberta de um fato que existia

muito comodamente e talvez até nos fitasse na intimidade enquanto

íamos a construir nosso mundo completamente sem ele. Ninguém tinha

visto este questionável estranho antes, a não ser Mary Garth, e tudo que

ela sabia a seu respeito era que por duas vezes ele estivera em Stone
Court, quando Mr. Featherstone ainda descia ao térreo, e sentara-se com

ele a sós por várias horas. Ela havia tido ocasião de mencionar o fato a

seu pai, e os olhos de Caleb eram talvez os únicos, além dos do advoga-

do, a examinar o estranho com mais curiosidade do que aversão ou sus-

peita. Caleb Garth, tendo poucas expectativas e ainda menos cupidez,

estava interessado em verificar suas próprias suposições, e a calma com

a qual ele coçava o queixo sorrindo e dava olhadas inteligentes, meio

como se estivesse calculando o valor de uma árvore, punha-se em nítido

contraste com a inquietação ou o desprezo visíveis nos outros rostos

quando o desconhecido de luto, cujo nome já se entendera ser Rigg,

entrou na sala de visitas com lambris de madeira e sentou-se perto da

porta para fazer parte da audiência durante a leitura do testamento. No

mesmo instante, Mr. Solomon e Mr. Jonali tinham subido com o advo-

gado para ir buscá-lo; e Mrs. Waule, vendo dois lugares vagos entre ela

e Mr. Borthrop Trumbull, teve a presença de espírito de chegar mais para

perto desta grande autoridade, que estava brincando com a corrente de

seu relógio e pondo em ordem seus planos com a determinação de não

demonstrar nada tão comprometedor para um homem de capacidade

como espanto ou surpresa.

"Suponho que o senhor saiba tudo sobre o que fez meu pobre irmão,

Mr. Trumbullf disse Mrs. Waule, no mais baixo de seus tons rotifenhos,

enquanto virava para a orelha dele seu chapeuzinho enegrecido de crepe.

"Minha boa senhora, tudo que me foi dito o foi em confiança," disse

o leiloeiro, pondo a mão como um biombo para ocultar o segredo.

358

GEORGE ELIOT

"Quem já está muito certo de sua boa sorte ainda pode ficar desa-

pontado," prosseguiu Mrs. Waule, encontrando nesta comunicação al-


gum alívio.

"As esperanças são com freqüência enganosas," disse Mr. Trumbull,

ainda em confiança.

"Ah!" disse Mrs. Waule, dando uma olhada para os Vincys e depois

voltando para o lado de Martha, sua irmã.

" incrível como o pobre do Peter se fechava," disse ela, nos mes-

mos subtons. "Nenhum de nós sabe o que ele pode ter tido na cabeça.

Só espero e confio que ele não fosse alma pior do que nós pensamos,

Martha."

A pobre Mrs. Cranch, volumosa e de respiração asmática, tinha um

motivo a mais para tornar suas observações irrecusáveis e dar-lhes um

sentido genérico, pois até mesmo seus sussurros eram altos e sujeitos a

jorros bruscos, como os de um realejo quebrado.

"Eu nunca fui ambiciosa, Jane," respondeu ela; "mas tenho seis fi-

lhos e enterrei três, e o casamento não me trouxe dinheiro. O mais ve-

lho, sentado aí, só tem dezenove anos - e assim você pode imaginar.

Os suprimentos sempre escassos, a terra das mais ingratas. Mas, se ja-

mais pedi e orei, foi para Deus que está no alto; apesar de ter um irmão

solteiro e outro sem filhos depois de dois casamentos - pode alguém

pensar!"

Entrementes, Mr. Vincy tinha dado uma olhada no passivo rosto de

Mr. Rigg, e tirado sua caixa de rapé e tamborilado nela, guardando-a

porém de novo sem abri-la, como um prazer que, conquanto lhe aclaras-

se as idéias, era incompatível com a ocasião. "Eu não me surpreenderia

se os sentimentos de Featherstone fossem melhores que os que lhe são

atribuídos por qualquer um de nós," observou ele, bem no ouvido da

esposa. "Este funeral mostra que ele pensou em todos: é um bom sinal

que um homem queira ser acompanhado por seus amigos e, caso sejam

humildes, que não se envergonhe deles. Agradar-me-ia ainda mais se ele

tivesse deixado um monte de pequenos legados. Podem ser incompara-

velmente úteis para pessoas que tenham seus probleminhas."


"Está tudo o mais perfeito possível, o crepe, as sedas, tudo," disse

toda contente Mrs. Vincy.

Mas sinto muito dizer que Fred se viu em certa dificuldade para re-

primir uma risada, que teria sido mais incompatível ainda do que a caixa

de rapé de seu pai. Fred entreouvira Mr. Jonah insinuando alguma coisa

sobre "um filho do amor," e com esta idéia na cabeça o semblante do

estranho, que por acaso estava à sua frente, lhe pareceu por demais risí-

MIDDLEMARCH

359

vel. Mary Garth, percebendo seu aperto pelas contrações que ele fez

com a boca, e a tosse a que apelou como recurso, sabiamente veio em

sua ajuda pedindo-lhe para trocar de lugar com ela, o que permitiu que

ele fosse ficar num canto escuro. Fred se sentia na melhor disposição

para com todos, aí incluído Rigg; e, compadecendo-se um pouco das

pessoas que eram menos sortudas do que pensava ser ele mesmo, por

nada deste mundo haveria de comportar-se mal; rir, ainda assim, era

singularmente fácil.

A entrada do advogado e dos dois irmãos chamou porém a atenção

de todos.

O advogado era Mr. Standish, que chegara a Stone Court esta ma-

nhã crendo saber perfeitamente bem quem ficaria satisfeito e quem se

decepeionaria antes de o dia acabar. O testamento que ele contava ler

era o último de três que havia feito para Mr. Featherstone. Mr. Standish

não era um homem dado a variar de modos: com a mesma voz profunda,

portava-se com todos com civilidade espontânea, como se não visse ne -

nhuma diferença entre eles, e falava principalmente da colheita do feno,

que seria "ótima, por Deus!% dos últimos boletins sobre o Rei e do

Duque de Clarence, que era um marinheiro da cabeça aos pés e o ho-


mem certo para governar uma ilha como a Grã-Bretanha.

Muitas vezes o velho Featherstone pensara, quando se sentava olhan-

do para o fogo, que Standisli ainda haveria de surpreender-se um dia: é

verdade que, se ele tivesse por fim feito o que queria, e queimado o

testamento redigido por outro advogado, não teria garantido este desfe-

cho menor; mas bem que tinha tido prazer em ruminar sobre ele. E

certamente Mr. Standish ficou surpreso, mas sem nada a lamentar; pelo

contrário, até deleitou-se um pouco com aquela ponta de curiosidade

em seu espírito, que a descoberta de um segundo testamento somava ao

espanto em perspectiva por parte da família Featherstone.

Solomon e jonah, no tocante a seus sentimentos, eram mantidos em

completo suspense: parecia-lhes que o testamento velho teria certa vali-

dade também, e que poderia haver um emaranhado tremendo das pri-

meiras e últimas intenções do pobre Peter, capaz de dar origem a ínfini-

tas "pendências" antes de alguém pegar o que era seu - inconveniente

que pelo menos teria uma vantagem, a de tudo se manter dando voltas.

Donde os irmãos demonstrarem uma gravidade totalmente neutra quando

reingressaram na sala com Mr. Standish; mas Solomon tirou seu lenço

branco, com o sentimento de que, fosse como fosse, haveria passagens

comoventes, e de que chorar nos funerais, mesmo sem lágrimas, era algo

visto costumeiramente em gramados.

360

GEORGE ELIOT

Neste momento, ninguém talvez mais palpitasse de expectativa do

que Mary Garth, consciente de ter sido ela quem virtualmente determi-

nara a apresentação do segundo testamento, que poderia ter efeitos

momentosos para o destino de algumas das pessoas presentes. Não ha-

via alma a não ser ela que soubesse o que havia acontecido naquela
noite final.

"O testamento que tenho em mãos," disse Mr. Standish que, senta-

do à mesa no meio da sala, tomava tempo para tudo, inclusive a tosse

com a qual mostrava uma disposição para aclarar sua voz; "foi redigido

por mim mesmo e validado por nosso falecido amigo em 9 de agosto de

1825. Mas constato a existência de um instrumento subseqüente e até

então ignorado por mim, que leva a data de 20 de julho de 1826, quase

um ano depois do anterior. E, pelo que vejo, há mais" - Mr. Standish

focava os óculos cautelosamente por sobre o documento - "há um

codicilo a esta última vontade, datado de 1Q de março de 1828."

"Oh, meu DeusP" disse Martha, não com a intenção de ser audível,

mas impelida a articular qualquer coisa sob o peso de tantas datas.

"Vou começar lendo o primeiro testamento," continuou Mr. Standish,

"já que esta, ao que parece, por não ter ele destruído o documento, foi a

intenção do falecido."

O preâmbulo deu a impressão de ser meio longo, e muitos, além de

Solomon, mantiveram-se pateticamente balançando a cabeça e olhando

para o chão: todos os olhos evitavam encontrar outros olhos, e fixavam-

se principalmente nas manchas na toalha da mesa, ou na calva de Mr.

Standish; excetuando-se os de Mary Garth. Quando os restantes, no

fundo, tentavam todos não olhar para nada, era seguro para ela olhar

para eles. E ao som do primeiro "dou e lego" pôde ver as expressões se

alterando sutilmente, como se uma suave vibração passasse por todas

elas, menos a de Mr. Rigg. Este sentava-se em calma imperturbável, e de

fato o grupo, preocupado com problemas mais importantes, e com a

complicação de estar ouvindo legados que poderiam ou não ser revoga-

dos, havia deixado de pensar nele. Fred corou, e Mr. Víncy verificou que

era impossível se haver sem sua caixa de rapé nas mãos, embora a con-

servasse fechada.

Vieram por primeiro os legados mais modestos, e nem mesmo a lem-

brança de que havia outro testamento, e de que o pobre Peter poderia


ter pensado melhor, pôde abafar a crescente repulsa e indignação. Gos-

tamos de ser bem tratados em todos os tempos, passado, presente e

futuro. E eis que Peter se mostrava capaz de há cinco anos atrás deixar

tão-só duzentas libras para cada um dos seus irmãos e irmãs, e aos so-

MIDDLEMARCH

361

brinhos e sobrinhas nada mais de cem para cada: os Garths não foram

mencionados, mas tanto a Mrs. Vincy quanto a Rosamond cabiam tam -

bém cem. Mr. Trumbull ficaria com a bengala de castão de ouro e cin-

qüenta libras; cada um dos outros primos em primeiro ou segundo graus

ali presentes teria idêntica e tão bela quantia, a qual, segundo observou

o primo saturnino, era o tipo do legado que não levava ninguém a parte

alguma; e ainda havia muito mais destas migalhas ofensivas em favor de

pessoas não presentes - gente de parentesco problemático e, era de se

temer, baixa extração. No todo, calculando por alto, cerca de três mil

libras estavam sendo doadas. Para onde então tinha querido Peter que o

restante do dinheiro fosse - para quem as terras? e o que foi e o que

não foi revogado - e seria para melhor ou pior a revogação? Toda emo-

ção deve ser condicional, e pode por fim revelar-se errada. Os homens

foram bem fortes para calar o bico e agüentar a confusão e o suspense;

uns deixando que o lábio inferior caísse, outros a repuxá-lo para cima,

conforme o hábito dos próprios músculos. Mas jane e Martha, que afun-

daram no caudal de questões, não puderam conter o choro; Mrs. Cranch,

coitada, por um lado era comovida pelo consolo de conseguir algum sem

ter de trabalhar para tanto, mas por outro se dava conta de que o seu

quinhão era exíguo; ao passo que a mente de Mrs. Waule foi totalmente

inundada pela impressão de ganhar tão pouco para quem era uma irmã,

quando havia gente de fora que ficaria com muito. A expectativa geral
agora era que o,ígmuito" ia caber a Fred Vincy, mas os próprios Vincys se

surpreenderam ao ser ali declarado que dez mil libras em investimentos

especificados eram legadas a ele; - e as terras, será que também viriam?

Fred mordeu os lábios: era dificil conter o riso, e Mrs. Vincy sentiu-se a

mais feliz das mulheres - enquanto uma possível revogação, ante esta

visão deslumbrante, desaparecia de vista.

Havia ainda um resíduo de pertences pessoais, bem como as terras,

mas o todo foi deixado para uma só pessoa, e esta pessoa era - Oh

possibilidades! Oh expectativas baseadas nos favores de velhos cava-

lheiros "fechados"! Oli vocativos infindáveis que ainda deixariam a ex-

pressão a escapar-se indefesa de aquilatar a loucura dos mortais! - este

legatário residuário era Joshua Rigg, que era também o executor testa-

mentário e deveria doravante assumir o nome Featherstone.

Fez-se ouvir um sussurrar que foi como um tremor que atravessasse

a sala. Todos olharam de um modo novo para Mr. Rigg, que aparente -

mente não experimentou surpresa.

"Uma disposição testamentária das mais singulares!" exclamou Mr.

Tkumbull, preferindo que o tomassem, desta vez, por ignorar o passado.

362

GEORGE ELIOT

"Mas existe um segundo testamento - um outro documento. Nós ain-

da não ouvimos as vontades finais do falecido."

Mary Garth sentia que o que eles ainda tinham de ouvir não eram as

vontades finais. O segundo testamento revogava tudo, exceto os lega-

dos às pessoas humildes antes mencionadas (algumas alterações nos

quais deram origem ao codicilo), e a doação de todas as terras na paró-

quia de Lowick, com o que nelas existia e os móveis da casa, a Joshua

Rigg. O resíduo dos bens devia ser consagrado à ereção e provisão de


um asilo para velhos pobres, a se chamar Asilo Featherstone e a ser

construído num terreno perto de Middernarch já comprado para isto

pelo testador, desejando ele - assim o documento declarava - agradar

a Deus Todo-Poderoso. Nenhum dos presentes recebia um vintém; mas

Mr. Trumbull continuava com a bengala de ouro. Foi preciso algum tem-

po para que o grupo recobrasse seu poder de expressão. Mary não ousa-

va olhar para Fred.

Mr. Vincy foi o primeiro a falar - depois de usar com energia sua

caixinha de rapé - e falou com enfática indignação. "O mais inconcebí-

vel testamento que eu já ouvi! Eu diria que ele não estava em seu juízo

perfeito quando o fez. Diria que este segundo testamento é nulo," acres-

centou Mr. Vincy, sentindo que esta expressão punha toda a questão sob

uma luz verdadeira. "Não é, Standish?"

"Nosso falecido amigo sempre soube o que queria, penso eu," disse

Mr. Standish. "Tudo está na mais perfeita ordem. Há inclusive esta carta

de Clerrimens de Brassing anexada ao testamento. Quem o fez foi ele.

Um profissional muito respeitável."

"Nunca notei nenhuma alienação mental - nenhuma aberração do

intelecto no falecido Mr. Featherstone," disse Borthrop Trumbuil, "mas

considero este testamento excêntrico. Eu sempre estive de bom grado a

serviço de sua boa alma; e ele na intimidade testemunhava-me uma gra-

tidão muito grande, que teria de aparecer em seu testamento. A bengala

de ouro é uma ridicularia, vista como um reconhecimento à minha pes-

soa; mas felizmente estou acima dessas considerações mercenárias."

"Nada consigo ver de tão surpreendente assim na questão," disse

Caleb Garth. "Todos teriam mais razão de espanto se o testamento fosse

o que se pode esperar de um homem aberto e sem rodeios. De minha

parte, eu preferia que essa coisa chamada testamento nem existisse."

"Que sentimento mais estranho, por Deus, para partir de um cris-

tão!" disse o advogado. "Eu gostaria de saber como você defenderia

isto, GarthV"
"Oh," disse Caleb, inclinando-se para a frente, juntando os dedos à

MIDDLEMARCH

363

perfeição pelas pontas e olhando o chão com ar meditativo. Parecia-lhe

sempre que a parte mais difícil dos "negócios" eram as palavras.

Mas Mr. Jonali Featherstone fez-se então ouvir. "Pois aí é que está,

meu irmão Peter sempre foi um grande hipócrita. Mas este testamento

acabou com tudo. Se eu soubesse, nem uma carruagem com seis cavalos

iria arraricar -me lá de Brassing. Amanhã mesmo vou botar um chapéu

branco e um casaco cinza."

"Oh, Senhor!" chorava Mrs. Cranch, "e a despesa que a gente fez

com a viagem, e este pobre garoto sentado aqui tanto tempo à toa! Pela

primeira vez ouvi meu irmão Peter querendo tanto agradar a Deus Todo-

Poderoso; mas ainda que seja para eu cair desamparada devo dizer que

é muito duro - não posso pensar senão assim."

"Para ele o lugar para onde foi não vai fazer diferença, é a minha

crença," disse Solomon, com uma amargura que era notavelmente genuí-

na, embora o tom de sua voz não deixasse de ser malicioso. "O Peter era

um malvado, e não há asilo que encubra isto, quando ele tiver o atrevi-

mento de afinal o mostrar."

"E o tempo todo ele teve sua família legítima - irmãos e irmãs e

sobrinhos e sobrinhas - e sentava-se no mesmo banco com eles sempre

que achava bom ir à igreja," disse Mrs. Waule. "E poderia ter deixado

sua respeitável fortuna para quem nunca se deu a nenhuma extravagân-

cia ou qualquer desregramento - e não era tão pobre para que não

pudesse poupar os seus centavos e transformá-los em mais. E eu -

quanta preocupação tive eu, de quando em quando, para vir até aqui e

proceder como irmã - e ele o tempo todo com umas coisas na cabeça de
arrepiar qualquer um. Mas, se o Senhor o permitiu, há de o punir por

isto. Quanto a mim já me vou, mano Solomon, se você me levar."

"Não tenho a menor vontade de pôr meus pés aqui de novo," disse

Solomon. "Tenho minha própria terra e meus bens para legar aos outros."

"Triste história, como a sorte se distribui pelo mundo," disse Jonah.

"A ninguém adianta ter um pouco de espírito, é melhor você ser um

desmancha-prazeres. Mas quem fica na Terra pode aprender uma lição.

Um testamento de doido numa família já basta."

"Há muitos modos de ser doido," disse Solomon. "Não vou deixar que

meu dinheiro vaze pelo ralo, nem que ele fique para os órfãos da µfrica.

Gosto dos Featherstones que o são por nascimento, não dos que se tornam

Featherstones pela apropriação do nome."

Solomon dirigiu estas observações como um aparte em voz alta a

Mrs. Watile, quando se levantava para acompanhá-la. O irmão Jonah.

sentia-se capaz de alfinetadas muito mais espirituosas, mas refletiu que

364

GEORGE ELIOT

não havia por que ofender o novo proprietário de Stone Court, antes de

ter certeza de que ele não alimentaria intenções de hospitalidade para

com os homens espirituosos cujo nome ia passar a usar.

Mr. Joshua Rigg, com efeito, pouco parecia importar-se com estas

indiretas, mas mostrou-se com modos muito mudados, andando fria-

mente até Mr. Standish e com idêntica frieza pondo-se a discutir os ne-

gócios. Tinha uma voz alta e álacre e um sotaque vulgar. Fred, a quem

não mais ele fazia rir, julgou-o o mais ínfimo dos monstros que já tinha

visto. Mas Fred não estava se sentindo bem. O negociante de tecidos de

Middemarch ficou à espera de uma oportunidade para puxar conversa

com Mr. Rigg: ninguém sabia para quantos pares de pernas o novo pro-
prietário poderia querer ceroulas, e mais valia confiar nos lucros que nos

legados. Além disso, o comerciante, sendo primo em segundo grau, era

desapaixonado bastante para sentir curiosidade.

Mr. Vincy, após sua única explosão, mantivera-se em orgulhoso si-

lêncio, embora muito preocupado com sentimentos incômodos para

pensar em sair, até notar que sua esposa tinha ido para o lado de Fred e,

segurando a mão do pimpolho, estava chorando baixo. Imediatamente

ele se levantou, deu as costas para o grupo e disse-lhe num tom de

sussurro: "Não se entregue, Lucy; não se torne ridícula diante destas

pessoas," já agora falando alto como costumava fazer: "Vá chamar o

fâeton, Fred; não tenho tempo a perder."

Antes disto Mary Garth tinha ido aprontar-se para ir para casa com

seu pai. No vestíbulo ela se encontrou com Fred, e agora pela primeira

vez teve coragem de olhar para ele. Era de um tipo definhante, que às

vezes vem à face dos jovens, a palidez que o cobria; e sua mão estava

muito fria quando ela a apertou. Mary estava agitada: sentia que fatal-

mente, e não por vontade própria, ela já devia ter feito para o destino de

Fred uma diferença bem grande.

"Adeus," disse ela, com afetuosa tristeza. "Coragem, Fred. Eu real-

mente acho que você sem o dinheiro é melhor. De que valeu o dinheiro

para Mr. Featherstone?"

"Está tudo muito bemf disse Fred, bem irritado. "Que pode um

camarada fazer? Acho que agora eu devo entrar para a Igrejaf (Ele sabia

que isto apoquentaria Mary: muito bem; pois então ela devia dizer-lhe

que outra alternativa ele tinha.) "E eu que pensei que seria capaz de

pagar seu pai logo e acertar tudo. E você, a quem nem sequer ele deixou

cem libras. Que fará agora, Mary?"

"Vou arranjar uma outra situação, é claro, e o mais rápido possível.

Meu pai tem muito a fazer para cuidar do resto sem mim. Adeus."

MIDDLEMARCH
365

Em curtíssimo tempo Stone Court foi desertada pelos Featherstones

de boa cepa e seus visitantes de praxe. Um novo estranho vinha estabe-

lecer-se nas vizinhanças de Middemarch, mas no caso de Mr. Rigg

Featherstone houve mais descontentamento com as conseqüências ime-

diatas visíveis do que especulação quanto ao efeito que sua presença

poderia ter no futuro. Alma alguma era suficientemente profética para

formular um presságio sobre o que poderia aparecer no rastro de Joshua

Rigg.

E aqui sou naturalmente levado a refletir sobre os meios de elevar

uma pessoa reles. Os paralelos históricos, a propósito, são de extrema

eficiência. A maior objeção a eles é que o narrador diligente pode carecer

de espaço, ou (o que às vezes é a mesma coisa) pode não ser capaz de

pensar neles com algum grau de particularidade, ainda que disponha de

uma confiança filosófica que, se conhecida, os tomaria ilustrativos. Pare-

ce um caminho mais curto e fácil para a dignidade observar que -já que

nunca houve uma história verdadeira que não pudesse ser contada em

parábolas onde caiba pôr um símio no lugar de um margrave, e vice versa

- tudo o que foi ou há de ser narrado por mim sobre pessoas reles é

passível de ser enobrecido se for considerado parábola; assim, se maus

hábitos e desagradáveis conseqüências aparecerem em cena, o leitor pode

ter o alívio de os ver como não mais do que figurativamente descorteses,

e sentir-se virtualmente em companhia de pessoas de certa classe. En-

quanto conto a verdade sobre os lerdos, a imaginação de meu leitor,

desta forma, não necessita eximir-se inteiramente de se ocupar com

lordes; e as reles somas com que qualquer falido de alta posição lamen-

taria ter de se retirar dos negócios podem ser erguidas ao nível das gran-

des transações comerciais pela adição pouco dispendiosa de cifras pro-

porcionais.
Como qualquer história provinciana na qual todos os agentes são de

elevada estatura moral, esta deve ser de uma data bem posterior à pri-

meira Lei de Reforma, e Peter Featherstone, como você há de ter nota-

do, morreu e foi enterrado alguns meses antes de Lord Grey assumir o

governo."

Iord Grey tornou-se primeiro-ministro da Grã-Bretanha em 1830, sendo a

primeira grande

Lei de Reforma apresentada por seu governo em 1831.

CAPITULO =VI

-Tis strange to see the humours of these men,

These great aspiring spirits, that should be wise:

For being the nature of great spirits to love

To be where they may be most eminent;

They, rating of themselves so farre above

Us in conceit, with whom they do frequent,

Imagine how we worider and esteeme

All that they do or say; which makes them strive

To make our admiration more extreme,

Which they suppose they carmot, "less they give

Notice of their extreme and highest thoughts."

- DANIEL: Tragedy of Philotas-

(-Como é estranho ver as venetas desses homens,

Esses grandes espíritos que deveriam ser sábios:

Já que é natural que um grande espírito goste


De estar onde consiga ser o mais eminente,

Eles, que a presunção coloca tão acima

De nós, tomados como companhia freqüente,

Tanto nos imaginam ouvir com espanto e estima

Suas palavras ou façanhas, que se esforçam

Para fazer nossa admiração mais extrema,

O que acham não poder senão nos dando conta

Dos mais altos e extremos dos seus pensamentos.")

- DANIEL: Tragédia de Filotas1

lSamuel Daniel (1562-1619).

MIDDLEMARCH

367

DA LErruRA DO TESTAMENTO Mr. Vincy foi para casa com seus pontos de

vista consideravelmente mudados em relação a vários assuntos. Era um

homem de espírito aberto, mas dado a modos indiretos de se expressar:

quando não se saía bem num negócio com suas fitas de seda, esbravejava

com o empregado; quando seu cunhado BuIstrode o apoquentava, fazia

observações mordazes sobre o metodismo; e agora ficava claro que cri-

carava a vagabundagem de Fred com um súbito aumento de severidade,

quando da sala de fumantes ele jogou no piso do vestíbulo seu chapéu

com enfeites.

"Muito bem," observou, quando o rapaz estava indo deitar-se, "es-

pero que o senhor já tenha pensado em cursar o próximo período e

prestar seu exame. Eu já tomei minha decisão, e aconselho-o a não per-

der tempo para tomar a sua."

Fred não deu resposta: estava deprimido demais. Vinte e quatro


horas antes ele havia pensado que, ao invés de precisar saber o que

devia fazer, já deveria a essa altura saber que não precisava fazer nada:

só ir à caça em belos trajes com seu cavalo de raça, mas andando para

disfarçar num bom matungo, e por fazê-lo ser respeitado por todos;

além disso, que deveria ser capaz de pagar de vez Mr. Garth, e que

Mary não poderia mais ter razoes para não se casar com ele. E tudo

isto esteve por advir sem nenhum estudo ou incômodo, somente por

favor da Providência sob forma do capricho de um velho. Mas agora,

vinte e quatro horas depois, todas estas esperanças ruíram. Era "muita

dureza" que ele, enquanto sofria com a decepção, fosse tratado como

se a pudesse ter evitado. Mas afastou-se em silêncio, e a mãe interce-

deu em seu favor.

"Coitado, Vincy, não seja assim tão duro com ele. O rapaz vai acabar

por ser bem sucedido, embora aquele velho perverso o tenha decepeio-

nado.  tão certo como eu estar sentada aqui, o Fred vai dar-se bem -

porque senão por que ele foi trazido de volta, quando já tinha um pé na

cova? Para mim é um roubo: como dar-lhe as terras, prometer que ia

dar, o que é prometer, se fazer com que todos acreditem não for prome-

ter? Pois veja que, depois de deixar para ele dez mil libras, o velho as

tomou de volta."

"Tomou-as de volta!" disse rabugentamente Mr. Vincy. "Pois saiba

que o seu filho é um rapaz azarado, Lucy, e você sempre o mimou de-

mais."

"Bem, Vincy, ele foi o primeiro, e você bem que fez um grande alarde

quando ele veio ao mundo. Ficou que era puro orgulho," disse Mrs.

Vincy, logo recobrando seu alegre sorriso.

368

GEORGE ELIOT
"Quem sabe no que vão dar os bebês? , eu fui mesmo muito tolo,"

disse o marido, - já porém com mais brandura.

"Mas quem tem filhos mais bonitos e melhores que os nossos? O

Fred está muito acima dos outros rapazes: pelo seu modo de falar,

sabe-se que esteve na faculdade. E Rosamond - onde há uma moça

como ela? Pode ser posta ao lado de qualquer dama da terra, e ainda

se sobressai. Veja bem - Mr. Lydgate andou por toda parte, sempre

em ótimas companhias, e logo se tornou de amores por ela. Bem que

eu até desejaria que a Rosamond não se comprometesse já. Talvez

durante uma visita ela encontrasse alguém que pudesse ser muito me-

lhor partido; falo de uma visita a Miss Willoughby, que foi colega de

escola dela. Os parentes desta família são quase tão bons quanto os de

Mr. Lydgate."

"Malditos parentes!" disse Mr. Vincy; "já estou cheio deles. Quero

eu lá saber de um genro que não tem nada a recomendá-lo a não ser seus

parentes?"

"Mas querido," disse Mrs. Vincy, "você parecia tão contente com

tudo. Verdade é que eu não estava em casa; mas Rosamond me disse

que você não fazia nenhuma objeção ao noivado. E ela até já começou a

comprar o que há de melhor em linho e cambraia para suas roupas de

baixo."

"Não por vontade minhaf disse Mr. Vincy. "já vou ter muito o que

fazer este ano, com um filho que é um vadio e um tratante, sem pagar

por roupas de enxoval. Os tempos são duros; há muita gente se arrui-

nando; e eu não acredito que Lydgate tenha alguma coisa. Não darei

meu consentimento a este casamento. Que eles esperem, como os mais

velhos fizeram antes deles."

"Rosamond não vai gostar nem um pouco, Vincy, e você sabe que

nunca poderia agüentar contrariá-la."

"Poderia sim. Quanto mais cedo for rompido o compromisso, me-

lhor. Não acredito que ele jamais ganhe dinheiro, do modo como está
indo. Ele faz inimigos; e isto é tudo o que eu sei que anda fazendo."

"Mas, meu querido, com o BuIstrode ele está muitíssimo bem. A

meu modo de ver, o casamento agradaria a ele."

"Pois que agrade ao diabo!" disse Mr. Vincy. "Buistrode não vai que-

rer sustentá-los. E se Lydgate pensa que eu vou soltar dinheiro para que

eles montem e mantenham sua casa, está redondamente enganado. Eu

mesmo acho que em breve vou ter de renunciar aos meus cavalos. E é

bom que você conte à Rosy o que eu disse."

Não era este um procedimento incomum de Mr. Vincy - precipitar-

MIDDLEMARCH

369

se numa aceitação jovial e, tomando subseqüentemente consciência de

que fora precipitado, usar os outros para fazer uma retratação ofensiva.

Contudo, Mrs. Vincy, que nunca se opunha voluntariamente ao marido,

na manhã seguinte não perdeu tempo para comunicar a Rosamond o

que ele havia dito. Rosamond, que examinava um trabalho em musselina,

ouviu em silêncio, mas por fim esticou um pouco seu gracioso pescoço,

num gesto que só a longa experiência nos poderia indicar que traduzia a

obstinação mais perfeita.

"Que diz você, minha filha?" disse sua mãe, com a deferência mais

afetuosa.

"Papai não pensa nada disto," disse Rosamond, com toda a calma.

"Ele sempre disse que queria que eu me casasse com o homem por quem

tivesse amor. E hei de me casar com Mr. Lydgate. Já são sete semanas

desde que papai deu o seu consentimento. E eu espero que possamos

ficar com a casa de Mrs. Bretton."

"Bem, querida, pois então eu vou deixar que voce manobre seu pai.

Você sempre consegue manobrar todo mundo. Agora, se nós formos


mesmo comprar daíriasco algum dia, o lugar é no Sader - bem melhor

que no Hopkins. Com a casa de Mrs. Bretton há porém um senão, ela é

muito grande: eu até que adoraria que viesse a ser sua; mas ela pede

muitos móveis - tapetes e tudo, além das louças e cristais. E fique

sabendo que seu pai diz que não vai dar dinheiro. Você acha que Mr.

Lydgate conta com algum?" 1

"Você não há de imaginar que eu pergunte a ele, não é, mamãe? E

claro que ele entende dos seus negócios.

"Mas podia andar atrás de dinheiro, minha filha, e nós todos pensá-

vamos que você fosse ter um belo legado, bem como o Fred; - e agora

é tudo tão terrível - nem dá prazer pensar em nada, com este pobre

rapaz desapontado como ele está."

"Isto não tem nada a ver com meu casamento, mamãe. O Fred

deve é deixar de ser preguiçoso. Vou lá em cima levar esta costura para

Miss Morgan: ela faz bainha aberta muito bem. Quem sabe a Mary

Garth podia fazer umas coisas para mim agora? A costura dela é ótima;

pelo que eu sei é o que a Mary tem de melhor. Eu queria que todos os

meus babados de cambraia fossem de bainha dupla. E isto toma muito

tempo."

A convicção de Mrs. Vincy de que Rosamond podia manobrar o

pai tinha fundamento. · parte seus jantares e caçadas, Mr. Vincy,

vociferante como era, impunha sua vontade tão pouco como se fosse

um primeiro -ministro: a força das circunstâncias facilmente o

370

GEORGE ELIOT

engolfava, como à maioria dos homens flóridos e amantes do prazer;

e a circunstância chamada Rosamond tinha particular eficácia graças

à branda persistência que, como sabemos, capacita uma substância


clara, mole e viva a abrir seu caminho malgrado a resistência da pe-

dra. Papai não era uma pedra: não tinha outra fixidez além dessa

fixidez de impulsos alternantes às vezes chamada hábito, e isto era

de todo desfavorável a que tomasse a única linha de conduta decisiva

em relação ao compromisso de sua filha - qual seja, averiguar em

minticias as condições de Lydgate, declarar sua própria incapacidade

de fornecer dinheiro e proibir tanto um casamento apressado quanto

um noivado muito longo. Dito em palavras isto parece simples e fá-

cil; mas uma resolução desagradável formada nas horas frias da ma-

nhã tinha pela frente tantas condições adversas quanto a primeira

geada, e raramente persistia sob as influências cada vez mais quentes

do dia. A expressão indireta porém enfática de opiniões a que Mr.

Vincy era propenso sofreu muita repressão neste caso: Lydgate era

um homem cheio de orgulho em relação ao qual as insinuações eram

obviamente arriscadas, e jogar seu chapéu no chão estava fora de ques-

tão. Mr. Vincy estava com um pouco de medo dele, um pouco envai-

decido de que quisesse casar-se com Rosamond, pouco inclinado a

tocar numa questão de dinheiro na qual sua própria posição não era

vantajosa, temeroso um pouco de ser vencido num diálogo com um

homem que pelo nascimento e a educação lhe era superior, e enfim

com um pouco de receio, se fizesse alguma coisa, de desagradar sua

filha. O papel que Mr. Vincy preferia representar era o de um anfitrião

generoso que ninguém critica. Na primeira parte do dia os negócios

impediam qualquer comunicação formal de uma resolução contrária;

na segunda havia o jantar, o vinho, o uíste e a satisfação dos presen-

tes. De permeio as horas que, deixando cada qual seu pequenino re-

síduo, gradualmente iam formando a razão final da inação, qual seja,

que para agir já era tarde demais.

O pretendente aceito passava a maioria de suas noites em Lowick

Gate, e um namoro que em nada dependia da ajuda financeira de um

sogro, nem dos ganhos em potencial de uma profissão, continuou a


florescer sob os olhos de Mr. Vincy. Um namoro de jovens - que teia

de aranha! Até os pontos a que adere - as coisas donde se tecem seus

entrelaçados sutis - dificilmente são perceptíveis; dedos que de re-

pente se tocam pelas pontas, raios vindos de olhos negros e azuis que

se defrontam, frases que ficam pelo meio, as mais tênues mudanças

nas maçãs do rosto e nos lábios, os mais ligeiros tremores. A própria

MIDDLEMARCH

371

teia é feita de crenças espontâneas e indefiníveis alegrias, anseios de

uma vida por outra, visões de completamento, confiança ilimitada. E

Lydgate abandonou-se a ir tecendo com uma rapidez espantosa aquela

que lhe vinha do ser interior, a despeito de uma prática que suposta-

mente se encerrara com o drama de Laure - a despeito também da

medicina e da biologia; pois o exame de um músculo macerado, ou de

olhos apresentados num prato (como os de Santa Lúcia), e outras ocor-

rências da investigação científica revelam-se menos incompatíveis com

o amor poético do que uma obtusidade congênita ou um vício irrefreável

pela prosa mais reles. Quanto a Rosamond, ela estava tal qual a mara-

vilha em expansão do nenúfar em sua vida mais plena, e a teia mútua

era também tecida industriosamente por ela. Tudo isto acontecia no

canto da sala de visitas onde ficava o piano e a luz, tênue como era,

originava uma espécie de arco-íris visivel a muitos observadores além

de Mr. Farebrother. A certeza de que Miss Vincy e Mr. Lydgate estavam

comprometidos generalizou-se em Middiemarch sem a necessidade de

um anúncio formal.

A ansiedade da tia BuIstrode voltou com toda a força; mas desta vez

ela se dirigiu a seu irmão, indo ao depósito para expressamente evitar a

volatilidade de Mrs. Vincy. As respostas dele não eram porém satisfa-


tórias.

"Você então não quer reconhecer, Walter, que permitiu tudo isto

sem se informar das perspectivas de Mr. Lydgate?" disse Mrs. BuIstrode,

abrindo os olhos com a maior gravidade para o irmão, o qual estava em

seu impertinente humor de armazém. "Pense nesta menina criada com

todo o luxo - de um modo até muito mundano, devo dizer - o que

fará esta menina com uma renda modesta?"

"Oh, Harriet, com a breca! o que posso fazer quando há homens que

entram na cidade sem que eu tenha pedido? Por acaso você fechou sua

casa a Lydgate? BuIstrode o empurrou para a frente mais que qualquer

outro. E eu, eu nunca fiz nenhuma confusão por causa deste rapaz. Você

deve ir falar disto é com seu marido, não comigo."

"Ora essa, Walter, comopode culpar Mr. Bulstrode? Tenho certeza

de que ele não desejava este compromisso."

"Oh, se o BuIstrode não o tivesse pegado pela mão, eu nunca o teria

convidado."

"Mas você o chamou para atender o Fred, e estou certa de que foi

uma bênção," disse Mrs. BuIstrode, perdendo a orientação no emara-

nhado do tema.

"Nada sei de bênçãos," disse, ranzinza, Mr. Víncy. "Sei é que estou

372

GEORGE ELIOT

preocupado, e mais do que gosto, com a minha família. Fui um bom

irmão para você, Harriet, antes que se casasse com o BuIstrode, e devo

dizer que nem sempre ele demonstra para com sua família o espírito de

amizade que dele seria de esperar-se." Mr. Vincy pouco tinha de um

jesuíta, mas nenhum jesuíta consumado teria revertido a questão com

mais astúcia. Ao invés de se queixar do irmão, Harriet teve de defender


o marido, e a conversa foi terminar num ponto muito distante do come-

ço, uma recente altercação entre os dois cunhados durante uma reunião

do conselho paroquial.

Mrs. Bulstrode não repetiu as queixas de seu irmão ao marido, mas

no decurso da noite falou-lhe de Lydgate e Rosamond. Ele porem não

partilhou de seu ardente interesse; e só falou com resignação dos riscos

que rondam o começo de uma prática médica e de como a prudência era

conveniente.

"Creio que é nossa obrigação rezar por esta menina estouvada -

criada como ela foi," disse Mrs. Bulstrode, querendo despertar os senti-

mentos do marido.

" verdade, querida," disse Mr. Bulstrode, concordando com ênfa-

se. "Pouco mais podem fazer os que não são mundanos para coibir os

erros dos que o são obstinadamente. E é isto que temos de nos acostu-

mar a reconhecer em relação à família do seu irmão. Eu poderia ter

expressado o desejo de que Mr. Lydgate não se desse a essa união; mas

minhas relações com ele limitam-se ao uso de seus dons para o serviço

de Deus, que nos é ensinado pelo governo divino a cada dispensação

das graças."

Mrs. BuIstrode nada mais disse, atribuindo certa dessatisfação que

sentia à sua própria falta de espiritualidade. Ela achava que o marido

fosse um daqueles homens cujas vidas deviam ser escritas, quando mor-

riam.

Quanto ao próprio Lydgate, ele estava preparado, tendo sido aceito,

para aceitar todas as conseqüências que acreditava antever com a mais

perfeita clareza. Naturalmente haveria de estar casado em um ano -

talvez até em seis meses. Não era esta a intenção que tinha tido, mas

seus outros planos não iriam encontrar obstáculos: teriam simplesmen-

te de se ajustar às novas circunstâncias. E naturalmente era preciso pre-

parar o casamento conforme a praxe mandava. Ao invés dos quartos que

atualmente ocupava, precisaria de arranjar uma casa; e Lydgate, tendo


ouvido Rosamond falar com admiração da casa de Mrs. Bretton (situada

em Lowick Gate), imediatamente entrou em negociações para consegui-

Ia, ao saber que ela ficara vazia aDós a morte desta velha senhora.

MIDDLEMARCH

373

Fê-lo de maneira episódica, quase como mandava o alfaiate cum-

prir suas pequenas exigências para uma roupa perfeita, sem noção de

estar sendo extravagante. Pelo contrário, qualquer ostentação nos gas-

tos lhe inspiraria desprezo; sua profissão o familiarizara com toda a

escala da pobreza, e ele se preocupava muito com os que sofriam

privações. Portar-se-ia adequadamente a uma mesa onde o molho

era servido em vasilha de alça quebrada, e era capaz de nada se lem-

brar de um grande jantar, a não ser um homem que lá estava e falava

bem. Mas jamais lhe ocorrera levar senão um modo simples de vida,

como ele mesmo teria dito, com copos verdes para o vinho do Reno e

um excelente serviço à mesa. Ele se aquecera nas teorias sociais fran-

cesas, mas não saiu chamuscado. Podemos ter impunemente até mes-

mo opiniões extremadas, enquanto nossos móveis, os jantares que

oferecemos e a preferência por nossos próprios brasões familiares li-

gam-nos de modo índissolúvel à ordem estabelecida. E a tendência

de Lydgate não era para as opiniões extremadas: ele desdenhava as

doutrinas dos descalços, já que dava muita importância às próprias

botas: não era um radical em relação a nada, exceto as reformas mé-

dicas e a dedicação à pesquisa. No restante da vida prática, andava

por hábito hereditário; meio por aquele orgulho pessoal e egoísmo

irrefletido que eu já chamei de comuns, meio por uma naiveté relativa


a idéias favoritas.

Todas as discussões íntimas de Lydgate sobre as conseqüências des-

se compromisso que se lhe impusera giravam em tomo da escassez de

tempo, mais que de dinheiro. Decerto que estar amando, e sendo cons-

tantemente esperado por alguém que sempre se mostrava mais bela do

que podia representá-la a memória, interferia com o uso diligente de

suas horas de folga, do que poderia aproveitar-se algum "alemão perse-

verante" para fazer a grande e iminente descoberta. Este era de fato um

bom argumento para não adiar o casamento muito, como ele deu a en-

tender a Mr. Farebrother, um dia em que o Pastor veio à sua casa para

examinar num microscópio melhor que o dele algumas larvas de insetos

e, encontrando na mesa de Lydgate uma grande confusão de aparelha-

gens e espécimes, disse sarcasticamente:

"Eros degenerou; começou por introduzir harmonia e ordem, e ago-

ra é o caos que ele traz de volta."

"Em certas etapas, sim," disse Lydgate, sorrindo e erguendo as so-

brancelhas enquanto se punha a arrumar seu microscópio. "Mas uma

ordem melhor há de vir depois."

"Em breve?" quis saber o Pastor.

374

GEORGE ELIOT

"Espero realmente que sim. Do jeito desordenado como vão as coi-

sas, vai-se também o tempo, e para quem lida com a ciência cada mo-

mento é uma ocasião preciosa. Creio que o casamento deve ser o que há

de melhor para um homem que deseje trabalhar com constância. Porque

ele então tem tudo em casa - sem nenhuma amolação com especula-

ções pessoais. Pode ter calma e liberdade."

"Você é um camarada invejável," disse o Pastor, "por ter tais pers-


pectivas - Rosamond, calma e liberdade, tudo ao seu dispor. Pois cá

estou eu sem coisa alguma, a não ser meu cachimbo e os animálculos

aquáticos. Mas, e então, tudo pronto?"

Lydgate não mencionou ao Pastor outra razão que ele tinha para

querer abreviar o período de namoro. Era-lhe algo irritante, mesmo com

o vinho do amor nas veias, ser obrigado a se fazer tão presente na vida

familiar dos Vincys, participando tanto dos mexericos, das alegrias pro-

longadas, das partidas de uíste e da futilidade geral de Middemarch.

Tinha de ser condescendente quando Mr. Vincy decidia questões com

uma ignorância incisiva, particularmente sobre as bebidas alcoólicas que

eram os melhores aperitivos para nos proteger dos efeitos do ar pesti-

lento. A simplicidade e franqueza de Mrs. Vincy nem de leve eram

marcadas pela suspeita das ofensas sutis que poderiam fazer ao gosto de

seu futuro genro; e de resto Lydgate era forçado a confessar a si mesmo

que ao relacionar-se com a família de Rosamond ele se rebaixava um

pouco. Mas esta própria criatura tão linda sofria de modo igual: - ao

menos era uma idéia maravilhosa que, casando-se com ela, ele a subme-

teria a um transplante bem necessário.

"Querida!" disse ele para ela uma noite, em seu tom mais delicado,

ao sentar-se ao lado dela e olhando-a bem de perto no rosto -

Antes porém devo dizer que ele a encontrara sozinha na sala de

visitas, onde o janelão antiquado, quase tão grande quanto a própria

parede, abria-se para os perfumes veranis do jardim atrás da casa. O pai

e a mãe haviam ido a uma festa, e os outros, sumido como as borboletas

lá fora.

"Querida! você está com os olhos vermelhos."

"Estou?" disse Rosamond. "Não sei por quê." Não era de sua natu-

reza externar desejos nem queixas, coisas que só lhe vinham a rogo, e

jamais sem encanto.

"Como se pudesse esconder de mim!" disse Lydgate, pondo cari-

nhosamente a mão sobre as dela. "E esta gotinha que estou vendo em
sua pestana? Há alguma coisa a incomodá-la, e você não me diz. Isto

não é amor."

MIDDLEMARCH

375

"Por que haveria de dizer o que voce não pode alterar? São coisas do

dia-a-dia: - talvez tenham piorado um pouco ultimamente."

"problemas de família. Não tenha medo de falar. Posso imaginá-los."

"Papai tem andado muito irritável. O Fred o deixa zangado, e hoje

mesmo de manhã houve uma nova briga, porque o Fred ameaça largar

toda sua educação para ir fazer uma coisa muito abaixo dele. Além

disto -"

Rosamond hesitava, e um ligeiro rubor lhe vinha ao rosto. Lydgate

nunca voltara a vê-la intranqüila, desde a manhã de seu noivado, e nun-

ca se sentira tão apaixonado por ela como neste momento. Carinhosa-

mente, beijou os lábios que hesitavam, como que para encorajá-los.

"Acho que papai não está muito satisfeito com o nosso noivado,"

continuou Rosamond, quase num murmúrio; "e na noite passada ele

disse que sem dúvida ia falar com você e dizer que era melhor desman-

char."

"Você desmancharia?" disse Lydgate com uma brusca energia- quase

com raiva.

"Nunca desisto de nada que eu mesma escolho fazer," disse Rosa-

mond, recuperando sua calma ao tocar nesta corda.

"Pois que Deus a abençôe!" disse Lydgate, beijando-a de novo. Esta

constância da intenção era adorável. Ele prosseguiu:

"Agora já é tarde demais para seu pai dizer que nós devemos des-

manchar o noivado. Você é maior de idade, e eu a pretendo minha. Se

alguma coisa a está fazendo infeliz - eis uma razão a mais para apres-
sarmos o nosso casamento."

Um prazer inconfundível brilhou nos olhos azuis que foram ao

encontro dos dele, e a radiância era como um brilho solar que parecia

iluminar todo o seu futuro. A felicidade ideal (do tipo conhecido nas

Mil e Uma Noites, na qual você é convidado a passar da labuta e da

discórdia das ruas para um paraiso onde tudo lhe é dado sem que

nada lhe exijam) parecia poder ser atingida em questão de poucas

semanas.

"Por que deveríamos demorar mais?" disse ele, com ardorosa ínsis-

tência. "Eu já consegui a casa - e o resto logo se arranja, não é mesmo?

Espero que você não ligue para roupas novas, que podem ser compradas

depois."

"Vocês, homens tão sabidos, têm noções muito originais das coi-

sas!" disse Rosamond, mostrando ainda mais suas covinhas ao sorrir da

engraçada incongruência. " a primeira vez que ouço falar de um enxo-

val comprado depois do casamento."

376

GEORGE ELIOT

"Mas você não quer dizer que insistiria comigo para esperar meses

só por causa de roupas, não é?" disse Lydgate, por um lado achando um

pouco que Rosamond só o atormentava, por outro um pouco receoso de

que ela se esquivasse de fato a um casamento rápido. "Lembre-se que

olhamos para o futuro pensando numa felicidade ainda maior do que

esta - estarmos constantemente juntos, independentes dos outros e

levando nossa vida como bem quisermos. Vamos, querida, diga-me quão

breve você poderá ser somente minha."

Havia uma grave súplica na entonação de Lydgate, como se ele sen-

tisse que com fantásticos adiamentos ela o estaria ferindo. Rosamond


ficou séria também, e levemente meditativa; na verdade ela andava mui-

to perdida no seu emaranhado de debruns com rendas, saias plissadas,

roupas de malha, para poder dar uma resposta que ao menos fosse apro-

ximada.

"Seis semanas seriam um bom tempo - não concorda, Rosamond?"

insistiu Lydgate, soltando-lhe as mãos para passar o braço em torno

dela.

Imediatamente ela ajeitou o cabelo com a mãozinha, enquanto dava

ao pescoço uma meditativa torção, e depois disse muito séria:

"E ainda é preciso cuidar dos móveis e da roupa de cama. Mas

bem que minha mãe podia ficar por conta disto quando estivéssemos

fora."

"Pois é, sem dúvida. Devemos ficar fora mais ou menos uma semana."

"Oh, mais!" disse Rosamond, com convicção. Ela estava pensan-

do em suas roupas para a noite para a visita a Sir Godwin Lydgate, à

qual secretamente esperava consagrar, já prevendo deliciosa a oca-

sião, pelo menos um quarto da sua lua-de-mel, ainda que isto adias-

se sua apresentação ao tio que era doutor em teologia (posição mais

sóbria, se bem também interessante quando amparada pelo sangue).

Olhou pois para o noivo com um ar surpreso de reprovação ao falar, e

ele compreendeu logo que ela desejaria prolongar o doce tempo da

solidão a dois.

"Como você quiser, meu amor, quando o dia for marcado. Mas va-

mos tomar uma decisão e pôr fim ao desconforto por que esteja passan-

do. Seis semanas! - sem dúvida seria um bom prazo."

"Certamente eu poderia apressar o trabalho," disse Rosamond. "Você

falaria então com meu pai? - Penso que é melhor dizer-lhe por carta."

Ela corou e olhou para ele como as flores do jardim nos olham quando

felizes vamos andando entre elas na transcendente luz do anoitecer: não

existe uma alma além da expressão, meio ninfa e meio criança, nessas
MIDDLEMARCH

377

pétalas suaves que brilham e respiram ao redor dos centros de cor mais

forte?

Ele a tocou com os lábios na orelha, e no pedacinho de pescoço por

baixo, e ambos ficaram muito quietos por diversos minutos que fluíram

por eles como um regato que murmura sob os beijos do sol. Rosamond

pensava que ninguém poderia estar mais apaixonada que ela; e Lydgate

pensava que, depois de todos os seus erros crassos e credulidade absur-

da, ele havia encontrado a feminilidade perfeita -já se sentia como que

bafejado pela afeição conjugal tão preciosa a lhe ser concedida por uma

criatura perfeita que venerava suas meditações e importantes trabalhos

e nunca iria interferir com eles; que iria pôr ordem na casa e nas contas,

como que por passes de mágica, mantendo porém os dedos prontos para

tocar o alaúde e transformar a vida em romance a qualquer momento;

que era instruída dentro do estrito limite feminino e nem um fio de

cabelo adiante - dócil, por conseguinte, e disposta a cumprir ordens

que vinham d"além deste limite. Estava agora mais claro do que nunca

que sua idéia de conservar-se celibatário por mais tempo tinha sido um

erro* o casamento não seria um entrave, mas um estímulo. No dia se-

guinte, acompanhando por acaso um paciente a Brassing, ele viu um

aparelho de jantar que lhe pareceu ter vindo a calhar e correspondia

tanto a seu gosto que de imediato o comprou. Ganhava-se tempo fazen-

do as coisas quando nelas se pensava, e Lydgate detestava louça feia. O

aparelho de jantar era caro, mas isto era talvez intrínseco à natureza dos

aparelhos de mesa. Era necessariamente caro apetrechar uma casa; mas

isto só se fazia uma vez.

"Deve ser lindo," disse Mrs. Vincy, quando Lydgate mencionou sua

compra com alguns toques descritivos. "Justamente o que a Rosy tem


de ter. Queira Deus que não se quebre."

 preciso arranjar empregados que não quebrem coisas," disse

Lydgate. (Certamente era um raciocínio com uma visão imperfeita das

conseqüências. Mas neste período não havia espécie de raciocínio que

não fosse mais ou menos sancionada por homens de ciência.)

Foi desnecessário, é claro, adiar a comunicação de qualquer coisa

à mamãe, em quem sempre prevalecia o lado otimista e que, sendo

ela mesma uma esposa feliz, mal tinha outro sentimento além do

orgulho pelo casamento da filha. Mas Rosamond tinha boas razões

Sra que o papai recebesse a solicitação por escrito. Na manhã se-

guinte, preparou-o para a chegada da carta acompanhando-o até o

armazém, e dizendo-lhe aos poucos, a caminho, que Lydgate deseja-

va casar-se logo.

378

GEORGE ELIOT

"Tolice, minha filha," disse Mr. Vincy. "Com o que é que ele conta

para se casar? Muito melhor você romper este compromisso. Eu já lhe

disse isto antes com a maior clareza. Para que toda a educação que voce

teve, se for casar-se com um homem pobre?  uma coisa cruel para um

pai ver."

"Mr. Lydgate não é pobre, papai. Ele comprou a clientela de Mr.

Peacock, que, dizem, lhe garante de oitocentas a novecentas libras por

ano."

"Tolice, tolice pura! O que é isto, comprar uma clientela? Poderia

igualmente ter comprado as andorinhas do ano que vem. Tudo pode

vazar entre seus dedos."

"Pelo contrário, papai, ele vai aumentar a clientela. Veja bem, os

Chettams e os Casaubons já o chamaram em casaf


"Espero que ele saiba que eu não hei de dar nada - depois dessa

decepção com o Fred, e com o Parlamento a ser dissolvido, quebra-que-

bras de máquinas por toda parte e as eleições que logo virão -"

"Papai, querido! mas o que isto tem a ver com o meu casamento?"

"Tem tudo a ver! Pelo que eu sei podemos arruinar-nos todos -

com o país nesta situação! Alguns dizem que é o fim do mundo, e a

meu ver, caramba, não é que parece mesmo? Seja como for, não é hora

de eu tirar dinheiro dos meus negócios, e gostaria que o Lydgate sou-

besse disto."

"Sei que ele não conta com nada, papai. E depois, tem parentes

muito importantes: ele está certo de subir na vida, seja de uma maneira

ou de outra. Dedica-se a fazer descobertas científicas."

Mr. Vincy ficou quieto.

"Não posso romper com minha própria expectativa de felicidade,

papai. Mr. Lydgate é um cavalheiro. Eu nunca poderia amar um homem

que não fosse um perfeito cavalheiro. O senhor não vai querer que eu

pegue uma tuberculose, como aconteceu com Arabella Hawley, não é? E

o senhor sabe que eu nunca mudo de idéia."

Papai continuava em silêncio.

"Prometa-me, papai, que há de consentir com a nossa vontade. Não

vamos nunca desistir um do outro; e o senhor sabe que sempre fez obje-

ção aos namoros longos e aos casamentos muito demorados."

Houve um pouco mais de pressão neste sentido, até que Mr. Vincy

dissesse: "Pois bem, minha filha, então que ele me mande uma carta,

para que eu possa dar uma resposta a ele" - e Rosamond viu que ela

acertara em cheio.

A resposta de Mr. Vincy consistiu principalmente num pedido para

MIDDLEMARCH

379
que Lydgate fizesse um seguro de vida - pedido que logo foi aceito. A

suposição de que Lydgate fosse morrer era uma idéia que trazia uma

tranqüilidade prazerosa, mas que por enquanto não se sustentava. Com

isto, mesmo assim, tudo parecia satisfatório e a gosto em relação ao

casamento de Rosamond; e as compras necessárias continuaram a ser

feitas com engenho. Não sem prudência, contudo. Uma noiva (que irá

em visita à casa de um baronete) precisa de alguns lencinhos da me-

lhor qualidade; mas Rosamond, contentando-se com a meia dúzia

absolutamente indispensável, prescindiu dos de bordado mais precio-

so e com renda de Valenciennes. Também Lydgate, constatando que a

soma de oitocentas libras reduzira-se consideravelmente desde sua

chegada a Middemarch, refreou seu interesse por uns pratos de estilo

antigo que lhe mostraram no Kibble, uma loja em Brassing aonde ele

foi comprar colheres e garfos. Era muito orgulhoso para agir na pressu-

posição de que Mr. Vincy adiantaria dinheiro para os móveis; algumas

contas iam ficar pendentes, já que não seria preciso pagar tudo de uma

só vez, mas nem por isto ele perdia tempo conjecturando quanto seu

sogro poderia dar como dote, facilitando o pagamento. Não faria nada

de extravagante, mas as coisas essenciais tinham de ser compradas, e

comprá-las de baixa qualidade seria uma economia inútil. Todas estas

questões eram porém secundárias. Lydgate antevia que sua profissão e

a ciência eram os únicos objetivos que ele devia perseguir com entusias-

mo; mas não conseguia imaginar-se a persegui-los numa casa como a

de Wrench - com as portas escancaradas, o oleado com manchas, as

crianças com seus aventais lambuzados, o almoço esparramado na mesa

sob a forma de ossos, facas de cabo imundo e imitações de porcelana

chinesa. Mas Wrench tinha uma infeliz esposa linfática que se transfor-

mara dentro de casa numa múmia de xale; e era provável que ele tives-

se iniciado tudo aquilo com uma escolha mal feita dos aparelhos do-

mésticos.
De sua parte, Rosamond entretanto se ocupava muito com conjec-

turas, mas sua rápida percepção imitativa a impedia de as revelar com

crueza.

"Vou gostar de conhecer a sua família," disse ela um dia, quando a

viagem de núpeias estava em discussão. "Talvez possamos tomar um

rumo que nos permita ir vê-los quando estivermos de volta. Qual dos

seus tios você prefere?"

"Oh! - o tio Godwin, eu acho.  um velhote muito boa-praça."

"Nos seus tempos de criança, você ia com freqüência à casa dele

em Quallingham, não é? Ali, eu gostaria de conhecer o lugar, e tudo a

380

GEORGE EuoT

que antigamente você estava ligado. Ele já sabe do nosso casamen-

to

"Não," disse Lydgate, virandO-se na sua cadeira e passando a mão

no cabelo, com indiferença.

"Mas que sobrinho mais desatencioso! Mande logo avisar a ele. Tal-

vez lhe peça para levar-me a Quallingham; e aí você poderia mostrar-me

como é tudo lá, e eu poderia imaginá-lo quando ainda um garoto. Lem-

bre-se que me vê em minha própria casa, tal qual tem sido desde minha

infância. Não é justo que eu ignore tudo da sua. Mas talvez você se

envergonhasse um pouco de mim. Esquecia-me disto."

Lydgate sorriu para ela com ternura, e realmente aceitou a sugestão

de que o orgulhoso prazer de apresentar uma esposa tão encantadora

valia algum sacrificio. E a idéia de rever com Rosamond aqueles velhos

lugares lhe agradou.

"Pois então vou escrever para ele. Mas os meus primos são muito
enjoados."

Ser capaz de falar com tanta naturalidade assim sobre a família de

um baronete, para Rosamond, era magnífico, e grande o contentamento

que ela sentia com a perspectiva de ser capaz de estimá-los sobranceí-

ramente também.

Mas mamãe quase estragou tudo, um ou dois dias depois, quando

disse: "Espero que seu tio Godwin não olhe a Rosy de cima. Mas sim

que ele faça um belo gesto. Um ou dois mil, para um baronete, não é

nada, não é?"

"Mamãe!" disse Rosamond, tomada pelo mais forte rubor; e

Lydgate sentiu tanta pena dela que se manteve calado e foi para o

outro lado da sala examinar com atenção uma gravura, como se nem

tivesse ouvido. Mamãe mais tarde é que teve de ouvir umas lições

filiais, e se mostrou como sempre dócil. Mas Rosamond refletiu que,

se algum desses primos bem nascidos que eram muito enjoados vies-

se a ser convidado a visitar Middemarch, veria não poucas coisas em

sua própria família que o poderiam chocar. Donde parecer desejável

que Lydgate com o tempo pudesse obter uma boa posição nalgum

outro lugar que não ali; e isto não seria assim tão difícil em se tratan-

do de um homem que tinha um tio com título de nobreza e a capaci-

dade de fazer descobertas. Lydgate, como você já deve ter percebido,

tinha falado com muito ardor a Rosamond das esperanças que nutria

em relação aos mais altos objetivos de sua vida, e achado delicioso

ser ouvido por uma criatura que lhe iria trazer o doce amparo de uma

afeição que satisfaz - beleza - repouso - uma ajuda como a que os

MIDDLEMARCH

381

nossos pensamentos recebem dos campos margeados de flores e do


céu do verão.

Lydgate confiava muito na diferença psicológica entre o que, por

amor à variedade, eu chamarei de gansa e ganso: especialmente na bela

corresvondência entre a submissão inata da férnea e a forca do macho.

CAPÍTULO =VII

"Thrice happy she that ís so well assured

Unto herself, and settled so in heart,

That neither will for better be allured

Ne fears to worse with any chance to start,

But like a steddy ship doth strongly part

The raging waves, and keeps her course aright;

Ne aught for tempest doth from it depart,

Ne aught for fairer weather"s false delight.

Such self-assurance need not fear the spíght

Of grudging fões; ne favour seek of friends;

But in the stay of her own stedfast might

Neíther to one herself nor other bends.

Most happy she that most assured doth rest,

But he most happy who such one loves best."

- SPENSER.

("Feliz três vezes ela, tão segura

De si, e com o coração tão tranqüilo,

Que por algo melhor não se deslumbra

Nem o pior que for teme enfrentar,

Mas como nau constante e forte parte

Mantendo o rumo no furor do mar;

Que não foge à tormenta nem se ilude


Com as falsas delícias do bom tempo.

Tal segurança nunca irá encontrar

Inimizades; nem pedir a amigos;

Do modo firme como vai a avançar,

jamais se dobra aos outros, nem a si.

Feliz pois ela, que segura descansa,

E ele ainda mais, que não se cansa de a amar.")

- SPENSER.1

"Edmund Spenser (1552-1599), soneto LIX dos Amoretú (1595).

MIDDLEMARCH

383

A DúVIDA suscitada por Mr. Vincy, se eram apenas as eleições gerais ou

o fim do mundo o que se aproximava, agora que Jorge IV estava morto,

o Parlamento dissolvido, Wellington e Peel em generalizado descrédito

e o novo Rei apologético, era um pálido exemplo das incertezas de opi-

nião que grassavam pelas províncias na época. Como podiam os ho-

mens, à luz dos vaga-lumes nos lugares rurais, distinguir seus próprios

pensamentos na confusão reinante, quando um ministério conservador

aprovava medidas liberais, quando nobres e eleitores conservadores

mostravam-se ansiosos para eleger liberais e não amigos dos ministros

traidores, quando os clamores por ordem, que pareciam ter uma relação

misteriosamente remota com o interesse privado, eram tornados suspei-

tos por serem sustentados por desagradáveis vizinhos? Os leitores dos

jomais de Middemarch encontravam-se numa situação anômala: du-


rante a agitação sobre a Questão Católica muitos haviam parado de com-

prar o "Pioneiro" - que tinha um lema de Charles James FoxI e se ali-

nhava com o progresso - porque ele tomou o lado de Peel sobre os

papistas, maculando assim seu liberalismo com uma tolerância de

jesuitismo e Baal; mas os leitores também estavam insatisfeitos com a

"Trombeta," que - depois de trombetear contra Roma, e na generaliza-

da flacidez do espírito público (ninguém sabia quem apoiaria quem) -

havia esmorecido no sopro.

Era uma época, segundo um notável artigo no "Pioneiro," em que as

gritantes necessidades do país bem poderiam contrapor-se a uma relu-

tância à vida pública por parte de homens cujos espíritos haviam por

longa experiência adquirido largueza de vistas e também concentração,

determinação no julgamento e também tolerância, serenidade e tam-

bém energia - enfim, todas essas qualidades que na melancólica expe-

riencia da humanidade eram as mais raramente encontradas juntas.

Mr. Hackbutt, cuja fala fluente fluía então mais espaçosa que nunca,

deixando grande incerteza quanto a seu último canal, foi ouvido dizen-

do no escritório de Mr. Hawley que o artigo em questão "era da lavra"

de Brooke de Tipton, e que Brooke havia comprado o "Pioneiro" em

segredo, alguns meses atrás.

"Com segundas intenções, não é?" disse Mr. Hawley. "Ele agora

pegou a mania de ser um homem popular, depois de andar sem destino

por aí como uma tartaruga perdida, Pior para ele. Há algum tempo que

estou de olho nele.  um danado de um mau proprietário, vai acabar

IQ Fox (1719-1806), político inglês, foi um líder reformista dos Whigs ou

liberais-conser-

vadores.

384
GEORGE ELIOT

sendo espremido. Que história é esta de um velho do condado vir a

público para querer agradar a um reles grupo de cidadãos de azul-escu-

ro? Quanto ao seu jornal, eu só espero que ele mesmo escreva tudo. Aí

sim, valeria a pena pagar."

"Pelo que eu sei ele arranjou para editá-lo um jovem muito brilhan-

te, capaz de escrever no melhor estilo qualquer artigo de fundo, como

tudo o que se vê nos jomais de Londres. E pretende tomar uma posição

bem firme sobre as Reformas."

"Seria bom o Brooke começar reformando seu rol de rendas. Ele é

um maldito de um velho explorador, e todas as construções em suas

terras estão caindo aos pedaços. O tal jovem, suponho que seja um

biscateiro vindo de Londres?"

"O nome dele é Ladislaw. Dizem que é de extração estrangeira."

"Conheço a espécie," disse Mr. Hawley; "deve ser algum agente se-

creto. Vai começar com floreados sobre os Direitos do Homem e termi-

nar assassinando uma rapariga. Este é o estilo."

"Mas você há de reconhecer que há abusos, Hawley," disse Mr.

Hackbutt, já antevendo uma discordância política com o advogado da sua

família. "Eu mesmo nunca endossaria opiniões extremadas - na verdade

eu fico na posição de HuskissonI - mas não posso fechar os olhos para a

evidência de que a não representação das grandes cidades..."

"As grandes cidades que se danem!" disse Mr. Hawley, impaciente por

se manifestar. "Eu entendo um pouco de eleições em Middemarch. Se

amanhã eles suprimirem os bolsões de votos de cabresto, trocando-os

pelo voto das cidades em expansão no reino - só aumentarão as despe-

sas para chegar ao Parlamento. Baseio-me nos fatos."

O desagrado de Mr. Hawley com o fato de o "Pioneiro" ser editado

por um agente secreto e Brooke passar a atuar politicamente - como se

uma tartaruga de andanças desencontradas ambiciosamente esticasse a


cabecinha e se tornasse rampante - mal se equiparava ao incômodo

sentido por alguns membros da própria família de Mr. Brooke. O resul-

tado transpirara gradualmente, como a descoberta de que seu vizinho

instalou uma molesta espécie de manufatura que permanentemente há

de estar no seu nariz, sem solução legal. O "Pioneiro" fora comprado em

segredo antes mesmo da chegada de Will Ladislaw, tendo-se oferecido a

oportunidade esperada com a pressa do proprietário para se desfazer de

um bem de grande valor, mas não rentável; e no intervalo, desde que Mr,

Milliam Huskisson (1770-1830), político conservador que, como Peel, só

aderiu às reformas

quando elas já eram inevitáveis.

MIDDLEMARCH

385

Brooke fizera seu convite, aquelas idéias germinais de induzir sua mente

a comunicar ao mundo em geral o que nele estava presente desde a

mocidade, mas até então jazia meio obstruído, foram brotando sob pro-

teção.

Viram-se os fatos favorecidos, e muito, pelo prazer que o convidado

lhe dava, maior ainda do que ele havia previsto. Pois Will parecia não só

estar em casa em todos aqueles temas artisticos e literários de que o

próprio Mr. Brooke já se ocupara uma vez, mas também era assombro-

samente rápido para apreender as coordenadas da situação política e

abordá-las com esse espírito amplo que, auxiliado pela adequada lem-

brança, presta-se a citações e a uma eficácia geral de tratamento.

"Para mim ele é uma espécie de Shelley, sabe," Mr. Brooke encon-

trou uma oportunidade de dizer, para a satisfação de Mr. Casaubon.

"Não em relação a nada de objetável - nem frouxidão nem ateísmo,


nada do gênero, sabe, - mas sob todos os aspectos Ladislaw tem bons

sentimentos; - de fato, na noite passada nós dois ficamos conversando

um bom tempo. Ele tem o mesmo tipo de entusiasmo pela liberdade, a

independência, a emancipação - ótima coisa quando há direção - quan-

do há direção, não é? Penso que sou capaz de o colocar na trilha certa; e

fico ainda mais feliz por saber que ele é seu parente, Casaubonf

Se a trilha certa implicasse alguma coisa mais profunda do que o

resto da fala de Mr. Brooke, silenciosamente Mr. Casaubon desejou que

ela se referisse a uma ocupação qualquer a grande distância de Lowick.

Nem no tempo em que o ajudava ele gostava de Will, mas passara a

gostar ainda menos depois de Will ter declinado da ajuda.  o que se dá

conosco, havendo em nossa disposição algum ciúme que incomode: se

tendemos por aptidão natural ao tipo dos cavadores, nosso primo nutri-

do a sorvos de mel (a quem temos boas razões para fazer objeções) há

de provavelmente nutrir um desdém secreto por nós, e quem quer que o

admire já nos faz uma crítica indireta. Tendo os escrúpulos da retidão na

alma, estamos acima da vileza de prejudicá-lo - antes, correspondemos

com lucrativo proveito ao direito que ele tem sobre nós; e para ele o

preenchimento de cheques, sendo uma superioridade que há de reco-

nhecer, dá à nossa amargura um teor mais brando. Mas agora Mr.

Casaubon havia sido privado desta superioridade (como algo mais que

uma recordação) de uma maneira brusca e caprichosa. Sua antipatia por

W. não emanava do ciúme comum de um marido já gasto pelo tempo:

era uma coisa mais profunda, gerada pelas pretensões e insatisfações de

toda sua vida; mas Dorothea, agora que ela estava presente, - Dorothea,

como jovem esposa que já demonstrara ela mesma uma ofensiva capaci-

386

GEORGF, ELioT
dade de crítica, necessariamente dava concentração ao desassossego que

antes era vago.

Will Ladislaw, por sua vez, sentia sua aversão florescer a expensas de

sua gratidão e empenhava-se em longas discussões consigo mesmo para

justificá-la. Casaubon o detestava - ele sabia disto muito bem; desde a

primeira entrada em cena, pôde distinguir-lhe um traço amargo na boca e

uma virulência no olhar que quase equivaliam a uma declaração de guerra,

a despeito dos beneficios já feitos. Ele fora muito grato a Casaubon no

passado, mas casar-se com tal esposa era um ato que realmente se contra-

punha à gratidão. A questão era saber se a gratidão referente ao que se faz

por nós não acaba por dar lugar à indignação com o que se faz contra os

outros. Casaubon tinha feito mal a Dorothea, casando-se com ela. Era obri-

gação de um homem conhecer-se melhor e, se sua escolha consistia em

definhar numa caverna a ran -er os ossos, não lhe cabia atrair uma donzela

para lhe fazer companhia. "E o mais horrível dos sacrificios de virgens,"

dizia-se Will; e retratava para si mesmo, como se estivesse escrevendo uma

lamentação para um coro, o que seriam os sofrimentos íntimos de Dorothea.

Mas ele nunca a perderia de vista: iria zelar por ela - se desistisse de

tudo

o mais na vida, continuaria a zelar por ela, que assim saberia que dispunha

de um escravo no mundo. Will tinha - para usar uma frase de Sir Thomas

Browne - uma "apaixonada prodigalidade" de expressão para consigo

mesmo e com os outros. A simples verdade é que nada o convidava então

com tal força como a presença de Dorothea.

Convites do tipo formal faziam falta, contudo, pois nunca haviam

requerido a Will sua presença em Lowick. Apesar disto Mr. Brooke,

crente de tornar a vida agradável com iniciativas nas quais o pobre

Casaubon, de tão absorto, nem podia pensar, dera um jeito de levar

Ladislaw a Lowick várias vezes (não se esquecendo entrementes de

apresentá-lo por toda parte e a cada oportunidade como "um jovem

parente de Casaubon"). Embora Will não tivesse visto Dorothea a sós,


seus contactos haviam sido o bastante para nela. restaurar a primeira

impressão de jovem companheirismo com alguém que, apesar de ser

mais inteligente, inclinava-se a lhe dar supremacia. Antes de seu casa-

mento Dorothea nunca encontrara muito espaço noutras mentes para

o que mais gostaria de dizer; nem havia desfrutado da superior instru-

ção de seu marido, como sabemos, tanto quanto desejara. Se falasse

com alguma empolgação a Mr. Casaubon, ele a ouvia com um ar de

paciência como se ela fizesse uma citação do DelectusI que lhe era

"Nome genérico das seletas de autores greco-latinos para tradução.

MIDDLEMARCH

387

familiar desde a mais tenra idade, e às vezes afirmava abruptamente

que antigas seitas ou personagens haviam tido idéias similares, como

se já houvesse um excedente no estoque do gênero; outras vezes ele

lhe informaria que ela estava enganada, reafirmando o que sua obser-

vação tinha questionado.

Mas Will Ladislaw sempre parecia ver mais no que ela dizia do que

ela mesma. Dorothea era pouco vaidosa, mas tinha essa necessidade

ardente de mulher de dominar beneficentemente fazendo a alegria de

outra alma. Donde a simples possibilidade de ver Will de vez em quan-

do como uma abertura na parede da sua prisão, dando-lhe um vislum-

bre do ar ensolarado; e este prazer começou a anular sua preocupação

inicial com o que o marido poderia pensar sobre a vinda de Will como

convidado de seu tio. Mr. Casaubon se mantivera calado sobre este as-

sunto.

Will queria falar com Dorothea a sós, e impacientava-se porque as

circunstâncias tardavam. Conquanto tão etéreas as relações terrenas entre


Dante e Beatriz, ou Petrarca e Laura, o tempo muda a proporção das

coisas, e nos dias atuais é preferível que se tenha menos sonetos e mais

conversas. A necessidade admitiria um estratagema, mas este era limita-

do pelo medo de ofender Dorothea. Por fim ele decidiu que queria fazer

um esboço de uma determinada vista em Lowick; e certa manhã, quan-

do Mr. Brooke teria de passar pela estrada de Lowick a caminho da sede

do condado, Will pediu para ser levado com seu álbum de desenho e seu

banquinho dobrável até Lowick e, sem se fazer anunciar no solar, sen-

tou-se para trabalhar num ponto de onde deveria ver Dorothea se ela

saísse para dar uma volta - sabendo que era hábito dela andar de ma-

nhã por uma hora.

Mas o estratagema foi derrotado pelo tempo. Nuvens juntaram-se

com desleal rapidez, a chuva caiu e Will se viu forçado a buscar refúgio

na casa. Pretendia, a tanto intitulado pelo seu parentesco, entrar na sala

de visitas para lá esperar sem ser anunciado; e vendo no vestíbulo o

mordomo, seu velho conhecido, disse: "Não avise que eu estou aqui,

Pratt; vou esperar até o almoço; sei que Mr. Casaubon não gosta de ser

incomodado quando está na biblioteca."

"Ele saiu, meu senhor; só quem está na biblioteca é Mrs. Casaubon.

Acho melhor ir dizer a ela que o senhor está aqui," disse Pratt, homem

de bochechas vermelhas dado a animadas conversas com Tantripp, e

concordando freqüentemente com ela que a vida para Madame devia ser

enfadonha.

t(Oh, está bem; esta maldita chuva me impediu de desenhar," dis-

388

GEORGE ELioT

se Will, sentindo-se tão feliz que fingiu indiferença com deliciosa fa-

cilidade.
No minuto seguinte ele já estava na biblioteca, e Dorothea o rece-

beu com seu sorriso doce e espontâneo.

"Mr. Casaubon foi estar com o Arquidiácono," disse ela sem tardan-

ça. "Não sei se voltará muito antes do jantar. Não sabia bem quanto

tempo ia ficar fora. Tem algo em particular para dizer a ele?"

"Não; vim desenhar, mas a chuva me empurrou para cá. Não fosse

isto não a teria incomodado. julgava que Mr. Casaubon estivesse em

casa, e sei que ele não gosta de interrupções a esta hora."

"Pois então devo agradecer à chuva. Estou muito feliz em vê-lo."

Dorothea pronunciou estas palavras tão comuns com a sinceridade sim-

ples de uma criança infeliz, visitada na escola.

"E eu realmente vim pela oportunidade de a ver sozinha," disse Will,

misteriosamente forçado a ser tão simples quanto ela. Não podia parar

para se perguntar por que não? "Gostaria de conversar sobre as coisas,

como nós fizemos em Roma. E sempre há certa diferença quando outros

estão presentesf

"Verdade," disse Dorothea, em seu claro e cheio tom de concordân-

cia. "Sente-se." Sentando-se por sua vez numa otornaria escura, com os

livros pardacentos por trás, ela dava a impressão, em seu vestido liso de

um tecido branco e fino de lã, sem nenhum enfeite no corpo a não ser a

aliança de casada, de estar sob um voto de ser diferente de todas as

mulheres; e Will sentava-se em face dela a menos de dois metros, caindo

a luz nos seus brilhantes cachos e no perfil delicado mas algo petulante,

com desafiadoras curvas nos lábios e no queixo. Um olhava para o outro

como se fossem eles duas flores que houvessem desabrochado ali e en-

tão. Momentaneamente Dorothea se esqueceu da misteriosa irritação

de seu marido com Will: parecia água fresca em seus sedentos lábios

falar sem medo com a única pessoa que ela constatara ser receptiva; pois

olhando para trás através de sua tristeza ela exagerava um consolo pas-

sado.

"Muitas vezes pensei que eu gostaria de conversar com o senhor de


novo," disse ela imediatamente. "Tarece-me estranho quantas coisas lhe

disse."

"Lembro-me de todas elas," disse Will, com a indizível presença em

sua alma do sentimento de ele estar em presença de uma criatura digna

de ser perfeitamente amada. Penso que seus próprios sentimentos neste

momento eram perfeitos, pois nós mortais temos nossos momentos di-

vinos, quando o amor se satisfaz no completamento do objeto amado.

MIMUMARCH

389

"Tentei estudar bastante depois que nós estivemos em Roma," disse

Dorothea. "já consigo ler em latim e estou começando a entender um

pouco de grego. Agora posso ajudar melhor Mr. Casaubon. Posso locali-

zar referências para ele e poupar-lhe de muitos modos a vista. Mas ser

culto não é tarefa fácil; tem-se a impressão de que as pessoas se exaurem

no encalço dos grandes pensamentos, dos quais jamais desfrutam, por

que já estão muito cansadas."

"Quando um homem se inclina aos grandes pensamentos, é prová-

vel que os alcance antes de estar decrépito," disse Wíll, com uma rapi-

dez irreprimível. Mas através de certas cordas sensíveis Dorothea era

tão rápida quanto ele, que, vendo o rosto dela mudar, acrescentou ime-

diatamente: "Mas é bem verdade que os melhores espíritos são muitas

vezes levados à estafa no esforço de elaborar suas idéias."

"O senhor me comge," disse Dorothea. "Expressei-me mal. Deveria

ter dito que os que têm grandes pensamentos exaurem -se muito para

elaborá-los. Mesmo quando menina pequena eu já sentia isto; e sempre

tive a impressão de que gostaria de dedicar minha vida para ajudar al-
guém que fizesse uma grande obra, alíviando-lhe o fardo."

Dorothea foi impelida a este trecho de autobiografia sem a menor

idéia de estar fazendo uma revelação. Mas nunca dissera nada a Will que

lançasse luz tão forte sobre o seu casamento. Ele não deu de ombros; e

à falta desta descarga muscular pensou com mais irritação ainda em lá-

bios belos a beijar crânios santos e outras vacuidades eclesiasticamente

entesouradas. Tinha pois de tomar cuidado para que o pensamento em

questão não transparecesse em suas palavras.

"Pode porém levar a ajuda longe demais," disse ele, "e estafar-se a

senhora mesmo. Não anda muito trancada? já parece mais pálida. Acho

que seria melhor para Mr. Casaubon ter um secretário; facilmente há de

encontrar um homem que lhe faça a metade do trabalho. Poupar-se-ia

assim muito mais, e a senhora só precisaria ajudá-lo nas tarefas mais

leves."

"Como pode pensar nisto?" disse Dorothea, em tom de franca re-

provação. "Eu não teria felicidade alguma se o não ajudasse em seu

trabalho. Que faria eu então? Não há em Lowick o que fazer de útil. A

única coisa que desejo é ajudá-lo ainda mais. E ele tem suas objeções a

um secretário: por favor, não toque nisto de novo."

"Certamente que não, agora sei como pensa. Mas ouvi tanto Mr.

Brooke quanto Sir James Chettam externarem a mesma opinião.pp

"De fato," disse Dorothea, "mas eles não compreendem - querem

que eu ande muito a cavalo, e faça reformas no jardim e mais estufas de

390

GEORGE ELIOT

plantas, para encher meus dias. Creio que o senhor compreende que o

espírito de uma pessoa tem outras necessidades," acrescentou ela, meio

impaciente - "e além do mais Mr. Casaubon nem agüenta ouvir falar de
um secretário."

"Meu erro é perdoável," disse Will. "Já tive outrora ocasião de ouvir

Mr. Casaubon falando como se pensasse algum dia em ter um secretário.

Com efeito ele chegou a abrir-me a perspectiva desta função. Mas eu

não me revelei à altura - como ficou patente."

Dorothea tentou extrair daí uma explicação para a evidente aversão

de seu marido, enquanto dizia, com um sorriso jocoso: "O senhor não

era de trabalhar muito."

"Não," disse Will, jogando a cabeça para trás um pouco à moda de

um cavalo espantado. E aí, como o velho e irritável demônio o incitasse

a dar mais uma boa espremida nas asas de mariposa da glória do pobre

Mr. Casaubon, ele continuou: "E desde então pude ver que Mr. Casaubon

não gosta que olhem seu trabalho e que alguém saiba exatamente o que

ele anda fazendo. Duvida muito - é muito inseguro de si. Posso não ser

bom para nada, mas é porque eu discordo dele que ele não gosta de

mim."

Will não deixava de ter suas intenções de sempre ser generoso, mas

nossa língua é um gatilho que geralmente dispara antes que as boas

intenções possam detê-la. E era intolerável que a antipatia de Casaubon

por ele não fosse razoavelmente explicada a Dorothea. Mas depois de

falar ele ficou um pouco intranqüilo quanto ao efeito de suas palavras

sobre ela.

Dorothea manteve-se estranhamente quieta - e não de imediato

indignada, como estivera em Roma numa ocasião semelhante. E a causa

jazia fundo. Ela não mais estava lutando contra a percepção dos fatos,

mas sim ajustando-se à sua percepção mais clara; quando agora ela olhava

de frente o fracasso de seu marido, e ainda mais a possível consciência

que ele tinha deste fracasso, parecia seguir no rumo certo, onde o dever

se transformava em ternura. A falta de sutileza de Will poderia ter des-

pertado maior severidade, se a tendência dela a perdoá-lo já não fosse

suscitada pela antipatia do marido, que à falta de melhores razões have -


ria de parecer-lhe injusta.

Ela não respondeu logo, mas olhou pensativa para o chão e depois,

não sem convicção, disse: "Mr. Casaubon há de ter superado a antipatia

pelo senhor com os gestos que fez em seu benefício: e isto é admirável."

"Sim; nas questões de família ele demonstrou ter senso de justiça,

Foi algo abominável que minha avó tenha sido deserdada porque fez o

MIDDLEMARCH

391

que eles chamavam de uma mésaffiance, embora não houvesse nada a ser

dito contra o marido dela, a não ser que ele era um refugiado polonês

que ganhava a vida dando aulas."

"Ah, se eu soubesse tudo sobre ela!" disse Dorothea. "Tergunto-me

como ela agüentou a mudança da riqueza à pobreza: pergunto-me se era

feliz com o marido!  muito o que sabe sobre eles?"

"Não: só que meu avô era um patriota - homem brilhante - falava

muitas línguas - musical - garantia seu sustento ensinando todo tipo

de coisa. Os dois morreram meio cedo. E eu nunca soube muito sobre

meu pai, além do que minha mãe me contava; mas ele herdou o talento

musical. Lembro-me de seu andar lento e das mãos compridas e finas; e

sobretudo de um dia em que ele estava doente, e eu, com muita fome e

tendo apenas um pedacinho de pão."

"Ah, que vida mais diferente da minha!" disse Dorothea, batendo as

mãos no colo com o mais vivo interesse. "Eu sempre tive tudo em exces-

so. Mas conte-me como foi - Mr. Casaubon não podia saber sobre o

senhor então."

"Não; mas meu pai deu-se a conhecer a Mr. Casaubon, e este foi o

meu último dia de fome. Meu pai morreu logo depois, e eu e minha mãe

fomos amparados por ele. Mr. Casaubon sempre reconheceu expressa-


mente que era de seu dever cuidar de nós devido à dura injustiça com

que a irmã de sua mãe havia sido tratada. Mas agora já estou contando

o que para a senhora não é novo."

Will estava cônscio em seu íntimo de que queria dizer a Dorothea

algo que não deixava de ser novo em sua própria maneira de ver as

coisas - ou seja, que Mr. Casaubon nunca havia feito mais do que pagar

uma dívida com ele. Mas Will era muito boa pessoa para sentir-se à

vontade se se sentisse ingrato. E quando a gratidão se transforma em

objeto de raciocínio há numerosas maneiras de escapar a seus vínculos.

"Não," respondeu Dorothea; "Mr. Casaubon sempre evitou falar

muito de seus próprios atos louváveis." Ela não sentia que a conduta de

seu marido estivesse sendo depreciada; mas esta noção de que a justiça

entrara em causa nas relações dele com Will Ladislaw calou fundo em

sua mente. Após breve pausa, acrescentou: "Ele nunca me havia dito

que ajudava sua mãe. Ela ainda está viva?"

"Não; morreu num acidente - uma queda - há quatro anos atrás.

E o curioso é que minha mãe também fugiu de casa, mas não por causa

do marido. Nunca me dizia nada sobre a família dela, a não ser que a

deixara para viver sua própria vida - na verdade, foi para o palco. Era

uma mulher de olhos negros, cabelo crespo e anelado, que parecia não

392

GEORGE ELIOT

envelhecer nunca. Como vê, de ambos os lados eu tenho sangue rebel-

de," concluiu Will, com umsorriso brilhante para Dorothea, enquanto

ela continuava a olhar atenta e séria para a frente, como uma criança que

pela primeira vez assiste a um drama.

Mas também na face dela se abriu um sorriso, quando disse: " a

sua desculpa, suponho, por ter sido o senhor mesmo algo rebelde; quero
dizer, em relação à vontade de Mr. Casaubon. O senhor há de estar lem-

brado de que não fez o que ele achou que era melhor para si. E se ele lhe

tem antipatia - ainda há pouco o senhor falava de antipatia - mas eu

preferiria dizer, se ele já lhe demonstrou algum sentimento constrange-

dor, considere o quão susceptível à fadiga o estudo o tem deixado. Tal-

vez," prosseguiu ela, e já passando a um tom de súplica, "meu tio não

lhe tenha dito como a doença de Mr. Casaubon foi grave. Seria feio de

nossa parte, nós que estamos bem e podemos suportar qualquer coisa,

ficar pensando muito nas pequenas ofensas de quem já se encontra sob

o peso de uma provação."

", tem toda a razão," disse Will, "não voltarei a trazer este assunto

à baila." A delicadeza de tom com que falou vinha da inexprimível satis-

fação de perceber - e disto Dorothea mal tinha consciência - que ela

se movia nos remotos limites da pura piedade e da fidelidade ao marido.

Will estava pronto a adorar todas duas, a piedade e a fidelidade, se ela o

associasse à sua própria pessoa ao manifestá-las. "Eu às vezes tenho

sido realmente perverso," prosseguiu, "rnas nunca mais, se eu puder

evitar, vou dizer ou fazer alguma coisa que não conte com sua aprova-

ção.PP

"àtima atitude de sua parte," disse Dorothea, com outro sorriso

franco. "Terei então um pequeno reino, onde ditarei as leis. Mas imagi-

no que o senhor há de logo ir-se embora, escapando ao meu controle.

Logo há de se cansar de ficar na granja."

"Pois eis um ponto que eu gostaria de discutir com a senhora - uma

das razões por que lhe queria falar a sós. Mr. Brooke propõe que eu

fique por aqui. Comprou um dos jomais de Middemarch e quer que eu

o dirija e, também, que o ajude de outras maneiras."

"Não seria para o senhor sacrificar perspectivas mais interessantes?"

disse Dorothea.

"Talvez; mas sempre fui acusado de só pensar em perspectivas, sem

me fixar em nada. E aqui há uma coisa que me oferecem. Se a senhora


não quiser que eu a aceite, direi que não. De outro modo preferiria esta-

belecer-me nesta parte do país a ir-me embora. Não há ninguém que me

prenda a parte alguma."

MIDDLEMARCH

393

"Gostaria muito que o senhor ficasse," disse Dorothea sem pestane-

jar, com a mesma simplicidade e presteza com que havia falado em Roma.

Em sua mente não havia sombra de razão no momento para que não

dissesse isto.

"Então vou ficar," disse Ladislaw, jogando a cabeça para trás, levan-

tando-se e indo até a janela, como se para ver se a chuva tinha parado.

Mas no momento seguinte Dorothea, segundo um hábito que já se

ia tomando cada vez mais forte, começou a refletir que o sentimento do

seu marido era diferente do seu, e enrubesceu profundamente sob o

duplo embaraço de haver expressado o que poderia estar oposto ao sen-

timento dele e de haver sugerido esta oposição a Will. Este não tinha o

rosto virado para ela, o que a fez dizer com mais facilidade:

"Mas minha opinião é de pouca importância neste caso. Penso que

deva ser orientado por Mr. Casaubon. Falei sem pensar em nada, a não

ser meu próprio sentimento, que nada tem a ver com a verdadeira ques-

tão. Mas agora me ocorre - quem sabe Mr. Casaubon possa achar que a

proposta não é boa? O senhor não pode esperar para falar com ele?"

"Hoje não dá para esperar," disse Will, temendo por dentro a possi-

bilidade de Mr. Casaubon chegar de repente. "A chuva agora já passou.

Eu disse a Mr. Brooke para não me buscar: prefiro fazer a pé os seis

quilômetros. Vou passar por Halsell Common, e hei de ver os reflexos

do sol nas plantas molhadas. Uma coisa que me encanta."

Aproximou-se, muito apressado, para apertar-lhe a mão, querendo


mas não ousando dizer: "Não toque neste assunto com Mr. Casaubon."

Não, ele não ousava, não era capaz de dizer isto. Pedir a ela para ser

menos simples e direta seria como respirar num vidro onde você quer

ver a luz atravessando. E sempre havia o outro grande temor - o de ele

mesmo se tornar, aos olhos dela, desprovido para sempre de brilho.

"Lamento que não possa ficar," disse Dorothea, com um toque de

profunda tristeza, ao levantar-se e estender-lhe a mão. Ela também ti-

nha um pensamento que não se inclinava a expressar: - Certamente

Will não deveria perder tempo para consultar Mr. Casaubon, mas pode-

ria parecer uma injunção indevida se ela insistisse nisto.

Assim eles apenas se disseram "Adeus," e Will se afastou da casa

rompendo através dos campos, para não correr o risco de encontrar a

carruagem de Mr. Casaubon, a qual contudo não apareceu no portão

senão às quatro da tarde. Uma hora imprópria, deveras, para chegar em

casa: muito cedo para obter apoio moral sob o ennui de vestir sua pessoa

para o jantar, e muito tarde para desvestir sua mente das frívolas cerimô-

nias e questões do dia, de modo a estar preparado para um mergulho

394

GEORGE ELIOT

profundo nas tarefas sérias do estudo. Nestas ocasiões ele em geral arriava

numa poltrona na bilioteca e permitia que Dorothea lesse para si os

jomais de Londres, fechando enquanto isto seus olhos. Hoje contudo

declinou deste alívio, observando já ser em demasia a quantidade de

assuntos públicos nos quais se vira envolvido; mas falou com mais ani-

mação que de hábito, quando Dorothea perguntou por sua fadiga, e

acrescentou com aquele ar de esforço formal que não o abandonava nem

mesmo se ao falar ele estivesse sem colete e gravata:

"Tive o grande prazer de hoje encontrar meu velho conhecido, o Dr.


Spanning, e de ser elogiado por alguém que é muito digno por sua vez de

elogios. Ele falou maravilhas do meu mais recente tratado sobre os Misté-

rios Egípeios - usando palavras, de fato, que não me ficaria bem repetir."

Ao enunciar a última cláusula, Mr. Casaubon se debruçou no braço da

poltrona e balançou a cabeça para cima e para baixo, como se com esta

descarga muscular compensasse aquela recapitulação que não ficava bem.

"Fico muito contente em saber desta alegria que teve," disse Dorothea,

encantada em ver seu marido menos cansado do que em geral nesta hora.

"Lamentei muito, antes de sua volta, que tivesse passado o dia fora."

"Mas por que, querida?" disse Mr. Casaubon, jogando-se para trás

de novo.

"Porque Mr. Ladislaw esteve aqui; e referiu-se a uma proposta do meu

tio sobre a qual eu gostaria de saber sua opinião." Ela sentiu que o marido

se preocupou realmente com a questão. Mesmo em sua ignorância do

mundo ela tinha uma vaga idéia de que o lugar oferecido a W111 conflitava

com suas ligações de família, e certamente era um direito de Mr. Casaubon

ser consultado. Sem nada dizer, ele apenas inclinou a cabeça.

"Meu querido tio, como você sabe, tem muitos projetos. Ao que

parece, ele comprou um dos jomais de Middemarch, e pediu a Mr.

Ladislaw que ficasse por aqui e dirigisse para ele o jornal, além de o

ajudar de outras maneiras."

Ao falar, Dorothea olhava para o marido, que a princípio porém pis-

cou os olhos e finalmente fechou-os, como se os quisesse poupar; en-

quanto seus lábios se tornavam mais tensos. "Qual é sua opinião?" acres-

centou ela, meio tímida, depois de ligeira pausa.

"Mn Ladislaw veio com a intenção específica de saber minha opi-

nião?" disse Mr. Casaubon, abrindo só uma brecha dos olhos para lan-

çar a Dorothea um olhar de gume de faca. Ela realmente se sentiu pouco

à vontade com a pergunta feita por ele, mas apenas se tornou um pouco

mais séria, sem desviar os olhos.

"Não," respondeu imediatamente, "ele não disse que tinha vindo


MIDDLEMARCH

395

para saber sua opinião. Mas, quando mencionou a proposta, natural-

mente esperava que eu fosse comunicá-la a você."

Mr. Casaubon ficou quieto.

"Eu temia que você pudesse fazer alguma objeção. Mas certamente

um rapaz de tanto talento poderia ser muito útil ao meu tio - ajudan-

do-o a fazer o bem de um modo mais eficaz. E Mr. Ladislaw deseja ter

uma ocupação fixa. Tem sido acusado, segundo diz, de não procurar algo

do gênero, e gostaria de ficar aqui pelas redondezas porque ninguém se

importa com ele noutra parte."

Todas estas considerações, Dorothea sabia, eram para abrandar seu

marido. Ele entretanto não falou, e ela então apelou para o Dr. Spanning

e o desjejum do Arquidiácono. Mas não havia mais nenhum brilho solar

nestes assuntos.

Na manhã seguinte, sem o conhecimento de Dorothea, Mr. Casaubon

despachou a carta que se segue, iniciada com um "Prezado Mr. Ladislaw"

(a quem sempre ele se dirigia antes como "Will"):

"Mrs. Casaubon me informa que uma proposta lhe foi feita e

(segundo uma inferência que não requer grande esforço) de sua

parte não foi mal recebida de todo, a qual acarreta sua residência

nestas redondezas numa situação que sou forçado a dizer não sem

justeza afeta de tal modo minha própria posição que torna não só

natural e desejável em mim, quando este efeito é visto sob a influ-

ência de um sentimento legítimo, mas também de minha obriga-

ção, quando o mesmo efeito é considerado à luz de minhas res-

ponsabilidades, declarar de imediato que sua aceitação da proposta


acima indicada seria altamente ofensiva a mim. Que eu aqui tenha

algum direito ao poder de veto, creio, não seria negado por nenhu-

ma pessoa de bom senso e conhecedora das relações que nos unem:

relações que, embora relegadas ao passado por seu procedimento

recente, nem por isto se anulam em seu determinante caráter como

antecedentes. Não farei aqui reflexões sobre os julgamentos alheios.

Basta-me assinalar-lhe que há certas regras e convenções sociais

que deveriam impedir alguém que me é aparentado de se tornar de

alguma forma notório nestas redondezas numa posição não so-

mente muito inferior à minha, mas também associada se muito ao

parco saber de aventureiros literários ou políticos. De qualquer

modo, a solução contrária deverá excluí-lo de toda nova recepção

em minha casa. - Atenciosamente,

"EDWARD CASAUBON."

396

GEORGE ELIOT

Enquanto isso a mente de Dorothea trabalhava inocentemente para

aumentar ainda mais o amargor de seu marido; demorando-se, com uma

simpatia que já virava pura agitação, no que Will lhe havia dito sobre os

pais e avós dele. Todas as horas íntimas de seu dia eram geralmente

passadas no boudoir azul-esverdeado, cuja desmaiada singularidade aca-

bara por agradar-lhe muito. Externamente nada se alterara ali; mas, en-

quanto o verão fora avançando pouco a pouco por sobre os campos a

oeste além da alameda de tílias, o quarto quase vazio passara a ser ocu-

pado por essas memórias da vida interior que preencherno espaço com

uma nuvem de anjos bons ou maus, as formas invisíveis entretanto ati-

vas de nossos triunfos espirituais ou nossas quedas espirituais. Ela esta-


va tão acostumada a refletir sobre suas decisões e encontrá-las enquanto

olhava pela alameda na direção do arco de luz do poente que esta visão

em si mesma já adquirira poder de comunicação. Até o pálido cervo

parecia lançar reminiscentes olhares e querer dizer em silêncio: "Sim,

nós sabemos." E o grupo de miniaturas de delicada fatura havia consti-

tuído uma audiência como que de seres não mais preocupados com sua

própria sorte terrena, mas ainda assim humanamente interessados. Es-

pecialmente a misteriosa "Ma Júlia," sobre quem Dorothea nunca se

sentira à vontade para indagar seu marido.

E agora, depois de sua conversa com Will, muitas imagens novas

reuniam-se em torno desta tia Júlia que era avó dele; e a presença da

delicada miniatura, tão parecida com um rosto vivo que ela conhecia,

facilitava a concentração dos seus sentimentos. Que erro, privar a moça

da proteção familiar e de herança só porque ela havia escolhido um

mem pobre! Dorothea, que desde cedo vivia perturbando seus pais com

perguntas sobre os fatos a seu redor, chegara a formular por si mesma

uma explicação independente e clara quanto às razões históricas e polí-

ticas por que os filhos mais velhos tinham mais direitos, e por que as

terras eram vistas como bens vinculados: tais razões, que lhe infundiam

temeroso respeito, talvez fossem mais fortes do -que ela pensava, mas a

questão de vínculos que ali estava não implicava transgredi-las. Ali esta-

va uma filha cujo filho - mesmo segundo o macaqueamento corrente

das instituições da nobreza por pessoas que não são mais aristocráticas

do que um merceeiro aposentado, e que não têm mais terras para "man-

ter juntas" do que um gramado e um pastinho, - teria um direito pré-

vio. Era a herança uma questão de simpatia ou de responsabilidade?

Toda a energia da natureza de Dorothea pendia para o lado da responsa-

bilidade - o atendimento de direitos fundamentados por nossas pró-

prias realizações, como o casamento e a família.

MIDDLEMARCH
397

Era verdade, . dizia-se ela, que Mr. Casaubon tinha um débito para

com os Ladislaws - tinha de devolver-lhes o que lhes fora erroneamen-

te tomado. E daí ela passou a pensar no testamento do seu marido, feito

nos tempos do casamento e que lhe deixava o montante dos bens, com

uma cláusula para a hipótese de ela vir a ter filhos. Era preciso alterar

isto; e não havia tempo a perder. O próprio problema que ainda há pou-

co surgira sobre a ocupação de Will Ladislaw era um bom motivo para

dispor as coisas de um modo novo e correto. O marido, ela tinha certe-

za, a julgar por toda sua conduta prévia, não hesitaria em olhar, se ela o

propusesse, pelo ângulo certo - ela, em cujo benefício uma injusta con-

centração de bens fora estipulada. O senso de justiça dele havia suplan-

tado e haveria de suplantar qualquer coisa que pudesse ser tachada de

antipatia. Ela desconfiava que o plano de seu tio seria desaprovado por

Mr. Casaubon, o que tornava ainda mais oportuno dar logo início a uma

nova compreensão, para que Will, ao invés de começar sem nada e ten-

do de aceitar o primeiro emprego surgido, tivesse legalmente garantida

a posse de uma renda, que deveria ser paga por seu marido enquanto ele

vivesse e, por uma imediata alteração do testamento, continuasse após

a morte dele. A visão de tudo isto como aquilo que precisava ser feito foi

como uma brusca irrupção da luz do dia para Dorothea, despertando-a

de sua prévia estupidez, da ignorância autocentrada e indiferente em

que ela vivia sobre as relações de seu marido com os outros. Will Ladislaw

havia recusado toda ajuda futura de Mr. Casaubon com base num moti-

vo que ela não julgava mais certo; e Mr. Casaubon nunca havia entendi-

do claramente que exigências lhe eram feitas. "Mas ele há de entender!"

disse Dorothea. "Aí está a grande força de seu caráter. E o que estamos

nós fazendo com o nosso dinheiro? Metade da nossa renda, nós não

gastamos. Meu próprio dinheiro nada me compra além de uma consciência


intranqüila."

Havia um peculiar fascínio para Dorothea nesta divisão dos bens

previstos só para ela, e sempre considerados por ela como excessivos.

Era cega, como vêem, a muitas coisas óbvias para os outros - tendia a

pisar no lugar errado, como Celia já a advertira; entretanto sua cegueira

a tudo que não estava incluído nos seus propósitos puros levava-a em

plena segurança pela beira de precipícios onde o medo poderia inspirar

uma visão de perigo.

Os pensamentos cuja vivacidade crescia na solidão de seu boudoír

ocuparam-na incessantemente durante todo o dia no qual Mr. Casaubon

mandou sua carta a Will. Em tudo ela só via empecilhos, enquanto não

encontrasse ocasião de abrir o coração com o marido. Todos os assuntos

398

GEORGE ELIOT

com ele, presa de preocupações como era, tinham de ser abordados pru-

dentemente e, desde a doença que o prostrara, nunca mais se apagara da

consciência dela o medo de o deixar agitado. Mas, quando o ardor juve-

nil se põe a matutar premeditando uma ação imediata, a própria ação

parece emergir com vida independente, dominando os obstáculos men-

tais. O dia transcorreu de um modo sombrio, não incomum, embora Mr.

Casaubon estivesse talvez incomumente calado; mas havia horas notur-

nas que podiam ser levadas em conta como ocasiões de conversa; pois

Dorothea, ciente da eventual falta de sono do marido, adquirira o hábito

de levantar-se, acender uma vela e ler para fazê-lo dormir de novo. E

nesta noite quem estava sem sono desde o começo era ela, excitada por

suas resoluções. Ele dormiu como sempre algumas horas, mas ela já se

levantara quietinha e se sentava no escuro há quase já uma hora quando

ele disse:
"Dorothea, já que está acordada, será que você acende uma vela?"

"Você está passando mal?" foi sua primeira pergunta, tão logo ela o

obedeceu.

"Não, nem um pouco; mas ficarei grato, já que está acordada, se me

quiser ler umas páginas de Lowth."I

"Posso conversar um pouco com você, ao invés disto?" disse

Dorothea.

"Certamente."

"Andei pensando o dia todo em dinheiro - que eu sempre tive de-

mais e, especialmente, que tenho a perspectiva de ter demais."

"Estes, minha querida Dorothea, são desígnios da Providência."

"Mas, se alguém tem demais em decorrência de outros serem lesa-

dos, parece-me que a voz divina que nos manda comgir o erro feito deve

ser obedecida."

"Qual o fundamento de sua observação, meu amor?"

"Que você foi por demais liberal nas disposições a meu respeito -

quero dizer, em relação aos seus bens; e isto me deixa infeliz."

"Mas como? Pois se eu só tenho parentes relativamente distantes."

"Fui levada a pensar em sua tia Julia, em como ela foi deixada na

pobreza só porque se casou com um homem pobre, fato em si nada

desabonador, já que indigno este homem não era. Sei que foi por este

motivo que você assumiu a educação de Mr. Ladislaw e amparou a mãe

dele."

Villiam Lowth (1660-1732) ou então seu filho Robert Lowth (1710-1787), ambos

autores

de livros religiosos.

MIDDLEMARCH

399
Por alguns momentos Dorothea esperou uma resposta que a ajudas-

se a avançar. Nenhuma veio, e as palavras que ela disse a seguir parece-

ram-lhe mais fortes ainda, caindo claras no silêncio das trevas.

"Mas certamente deveríamos considerar que ele tem direito a muito

mais coisas, até mesmo à metade dos bens que eu sei que você me desti-

nou. E penso que o convém prover desde já, com base nesta compreen-

são. Não é justo que a pobreza o ponha em dependência enquanto nós

somos ricos. E, se houver objeções à proposta que ele mencionou, o fato

de lhe serem dados seu verdadeiro lugar e sua verdadeira parte afastaria

todos os motivos para que venha a aceitá-la."

"Mr. Ladislaw provavelmente andou falando com você sobre este

assunto?" disse Mr. Casaubon, com uma rapidez mordaz que não lhe

era habitual.

"Claro que não!" disse convictamente Dorothea. "Como pode ima-

ginar isto, se ele acaba de renunciar a tudo que vinha de você? Temo que

haja muito rigor de sua parte, querido, quando pensa nele. Ele apenas

me falou um pouco sobre seus pais e avós, e quase sempre em resposta

a perguntas minhas. Você é tão bom, tão justo - você fez tudo que

pensou ser o certo. Mas a mim parece claro que o certo é mais do que

isto; e tenho de me manifestar a respeito, já que sou eu a pessoa que há

de auferir o beneficio, como se diz, se aquele "mais" não for feito."

Houve uma pausa perceptível antes de Mr. Casaubon replicar, não

com a rapidez de antes, mas com ênfase ainda mais mordaz.

"Dorothea, meu amor, não é esta a primeira ocasião, mas seria bom

que fosse a última, em que você emite um julgamento sobre assuntos

fora de seu alcance. Não vou entrar na questão de quanto a conduta,

particularmente em se tratando de uniões, pode levar à perda dos direi-

tos de família. Basta saber por ora que você não está qualificada a díscri-

minar neste caso. Quero que compreenda que eu não aceito nenhuma

revisão, ainda mais ditada, na esfera de negócios sobre os quais já deli-


berei por serem distinta e propriamente meus. Não lhe compete inter-

por-se a mim e Mr. Ladislaw, nem muito menos dar estimulo a comuni-

cações dele com você que constituam criticas ao meu procedimento."

A pobre Dorothea, amortalhada nas trevas, viu-se num tumulto de

emoções conflitantes. O alarme ante possíveis efeitos sobre ele mesmo

da ira violentamente manifestada por seu marido teria controlado qual-

quer expressão de seu próprio ressentimento, ainda que ela estivesse

livre de dúvida e compunção pela consciência de que na última insinua-

ção dele havia certa justeza. Ouvindo-o respirar muito rápido depois

que tinha falado, ela ficou ouvindo, assustada, infeliz - com um grito

40O

GEORGE ELIOT

mudo por dentro, uma vontade de pedir socorro para agüentar o pesa-

delo de uma vida onde todas as energias eram bloqueadas pelo medo.

No dia seguinte, Mr. Casaubon recebeu a seguinte resposta de Will

Ladislaw:

"CARO MR. CASAUI30N, - dei toda a devida atenção à sua carta de

ontem, mas sou incapaz de perceber com clareza sua maneira de

encarar nossa mútua situação. Com total reconhecimento de sua

generosa conduta para comigo no passado, devo ainda assim sus-

tentar que uma gratidão desta espécie não me pode praticamente

acorrentar, como parece ser sua expectativa. Admito que as vonta-

des de um benfeitor possam constituir um direito; mas sempre

deve haver certos limites quanto às características destas vonta-

des, que eventualmente podem ir de encontro a considerações mais

imperiosas. Ora, o veto de um benfeitor é capaz de impor tal nega-

ção à vida de um homem que o vazio resultante talvez seja mais


cruel do que generoso foi o benefício feito. Estou simplesmente

usando a força das ilustrações. No caso presente não consigo per-

ceber seu ponto de vista sobre a relação que minha aceitação de

um emprego - que decerto não enriquece, mas também não é

desonroso - possa ter com sua própria posição, que me parece

por demais sólida para ser afetada de tão insignificante maneira. E,

embora eu não acredite que alguma mudança em nossas relações

venha a ocorrer (certamente nenhuma até agora ocorreu) para anu-

lar as obrigações que o passado me impõe, perdoe-me por não j ul-

gar que estas obrigações devam conter-me de usar a liberdade or-

dinária de viver onde eu queira, e mantendo-me por qualquer ocu-

pação legal que eu escolha. Lamentando que exista esta diferença

entre nós, numa relação em que a concessão de benefícios tem

estado sempre a seu lado, - aproveito para reafirmar-lhe minha

gratidão mais constante,

WILL LADISLAW."

O pobre Mr. Casaubon sentiu (e não devemos sentir um pouco com

ele, sendo imparciais?) que homem algum tinha mais justas causas para

o desgosto e a suspeita do que ele. O jovem Ladislaw, ele se convenceu,

queria desafiá-lo e atormentá-lo, queria conquistar a confiança de

Dorothea e encher-lhe a cabeça de desrespeito, talvez até de aversão,

pelo seu próprio marido. Algum motivo encoberto tinha sido preciso

para levar à súbita mudança de procedimento de Will ao rejeitar a ajuda

MIDDLEMARCH

401

de Mr. Casaubon e parar de viajar; e esta resolução desafiadora de ele se


fixar nas redondezas, para fazer uma coisa que destoava tanto de sua

escolha original como os projetos de Mr. Brooke em Middemarch, reve-

lava com bastante clareza que o motivo não declarado tinha relação com

Dorothea. Nem por um momento Mr. Casaubon suspeitou de alguma

duplicídade de Dorothea: não tinha suspeitas dela, mas tinha (o que era

pouco menos incômodo) o conhecimento positivo de que sua tendência

a formar opiniões sobre a conduta do marido era acompanhada por uma

disposição favorável em relação a Will Ladislaw e influenciada pelo que

este dizia. Suas próprias e orgulhosas reticências impediram-no de ja-

mais desenganar-se da suposição de que Dorothea inicialmente havia

pedido ao tio que convidasse Will à casa dele.

E agora, recebida a carta de Will, era forçoso a Mr. Casaubon consi-

derar seu dever. Nunca se sentiria à vontade para dar às suas ações qual-

quer outro nome que não dever; mas, neste caso, motivos contraditórios

lançavam-no de volta às negações.

Deveria ele dirigir-se diretamente a Mr. Brooke, e solicitar deste

perturbador cavalheiro que retirasse sua proposta? Ou deveria ir con-

sultar Sir James Chettam, e conquistar-lhe a adesão na reprovação de

um fato que afetava toda a família? Em qualquer dos casos Mr.

Casaubon sabia que o fracasso era tão provável quanto o êxito. Ele

não poderia envolver o nome de Dorothea no assunto e, não havendo

urgência alarmante, o mais provável era que Mr. Brooke, depois de

receber com aparente concordância todas as alegações, terminasse di-

zendo: "Não tema nada, Casaubon, não tenha dúvida! O jovem

Ladíslaw há de honrá-lo. Não tenha dúvida, eu toquei no ponto certo."

Por outro lado, Mr. Casaubon nervosamente se continha de comunicar

o assunto a Sir Jarnes Chettam, com quem ele nunca havia estado em

muita intimidade e que imediatamente pensaria em Dorothea, mesmo

que ela não fosse citada.

O pobre Mr. Casaubon desconfiava dos sentimentos de todos a seu

respeito, especialmente na condição de marido. Deixar no ar a suposi-


ção de que ele estava com ciúmes seria admitir o ponto de vista (sob

suspeita) deles sobre suas desvantagens: deixá-los saber que ele não

encontrara no casamento uma felicidade completa seria admitir sua

conversão à desaprovação anterior deles (provavelmente). Seria tão

negativo como deixar Carp, e todo mundo em Brasenose, saber como

ele estava atrasado na organização do material para sua "Chave de

Todas as Mitologias." Ao longo de toda a vida Mr. Casaubon havia

tentado não admitir nem mesmo para si próprio as feridas internas da

402

GEORGE ELIOT

insegurança e do ciúme. E, sobre o mais delicado de todos os assuntos

pessoais, foi o hábito de sua orgulhosa e suspicaz reserva que falou

dobrado.

Mr. Casaubon se manteve assim orgulhosa e amargamente em silên-

cio. Mas ele havia proibido Will de vir a Lowick Manor, e mentalmente

já preparava outras medidas para o frustrar de todo.

CAPíTULO XXXV

"Vest beaucoup que le jugement des homines sur les

actions humaines; tôt ou tard iI devient efficace."

- GUIZOT.

C muito como o julgamento dos homens sobre as ações

humanas; cedo ou tarde ele se torna eficaz.,,)

- GUIZOT.1
SIR JAMES CHETTAM não poderia olhar com satisfação para as novas ini-

ciativas de Mr. Brooke; mas objetar era mais fácil que impedir. Um dia,

Sirjarnes justificou-se por ter ido almoçar sozinho com os Cadwalladers

dizendo:

"Não posso falar com vocês, como eu quero, diante de Celia: pode-

ria feri-la. De fato, não estaria certo."

"Sei o que quer dizer - o "Pioneiro" na granja, não é?" disparou

Mrs. Cadwallader, quase antes de a última palavra escapar da boca de

seu amigo. " um horror - essa mania de sair comprando apitos e assoprá-

los nos ouvidos alheios. Ficar na cama o dia todo e jogando dominós,

como o pobre Lord Plessy, seria mais decoroso e suportável."

"Vejo que estão começando a atacar nosso amigo Brooke na "Trom-

beta," disse o Reitor, recostando-se bem e sorrindo despreocupadamen-

te, tal qual o faria se porventura fosse ele mesmo o atacado. "Há tremen-

dos sarcasmos contra um proprietário das redondezas de Middemarch,

que embolsa o dinheiro dos seus arrendamentos e nunca retribui com

benefício algum."

Trançois Pierre Guizot (1787-1874), historiador francês.

404

GEORGE ELIOT

"Seria ótimo se o Brooke desistisse disto," disse Sir James, com seu

ligeiro franzir de sobrancelhas que era sinal de aborrecimento.

"Mas será que ele realmente vai querer ser candidato?" disse Mr.

Cadwallader. "Estive ontem com o Farebrother - que é meio liberal-

conservador, apóia Brougham e o Conhecimento útil;" é o que eu sei

de pior a seu respeito; - e ele diz que o Brooke está conquistando


muitas adesões. BuIstrode, o banqueiro, é o seu grande eleitor. Mas

ele também acha que numa escolha de candidaturas o Brooke se sairia

mal."

"Exatamente," disse Sir James, com convicção. "Eu andei a me in-

formar sobre a coisa, pois nunca entendi nada da política de Middemarch

antes - meu negócio é o condado. O que o Brooke acha é que eles vão

rejeitar o Oliver por ele ser a favor de Peel. Mas o Hawley me garantiu

que, se escolherem de fato um liberal-conservador, com toda a certeza

será Bagster, um desses candidatos que só os céus sabem de onde vêm,

mas que têm experiência parlamentar e fazem guerra aos Ministros.

Hawley foi até meio rude: esqueceu-se de que falava comigo. Disse que,

se o que o Brooke quer é ser escorraçado, pode conseguir isto sem gastar

tanto quanto concorrendo às eleições."

"Eu adverti vocês todos disto," disse Mrs. CadwaIIader, agitando as

mãos estendidas. "Há muito que eu disse para o Humphrey, Mr. Brooke

vai dar com a cara na lama. Pois não é que o fez?"

"Bem, poderia ter metido na cabeça casar-se," disse o Reitor. "Daria

uma confusão bem mais grave do que um flerte ligeiro com a política."

"Olhem que depois ainda pode," disse Mrs. Cadwallader - "quan-

do ele sair do outro lado da lama com um febrão."

"O que mais me preocupa é sua própria dignidade," disse Sirjames.

"E claro que me preocupa mais por causa da família. Ele é um homem já

bem entrado em anos e não me agrada pensar que se exponha assim.

Vão revolver contra ele tudo o que for possível."

"Julgo inútil qualquer tentativa de persuasão," disse o Reitor. "Há

uma estranha mistura de obstinação e mutabilidade no Brooke. já con-

versou com ele sobre o assunto?"

"A bem dizer, não," disse Sir James; "temo ser indelicado, dando

idéia de fazer uma imposição. Mas conversei com esse jovem Ladislaw

que o Brooke está transformando em factótum. Ladislaw, seja para o

que for, parece ser bem esperto. Achei que era bom ouvir o que ele tinha
lHenry, Lord Brougham (1778-1868), foi um dos fundadores da influente The

Edinburgh

Review (1802) e da Sociedade para a Difusão do Conhecimento útil (1825).

MIDDLEMARCH

405

a dizer; e ele é contra o Brooke concorrer desta vez. Acho que ele o fará

mudar de idéia: acho que a candidatura ainda pode ser evitada."

"Entendo," disse Mrs. Cadwallader, balançando a cabeça. "O candi-

dato independente ainda não sabe exatamente seus díscuros de cor."

"Mas sobre esse Ladislaw - há um outro assunto que aborrece,"

disse Sir James. "Ele veio jantar conosco no castelo umas duas ou três

vezes (aliás vocês já o encontraram lá) como hóspede do Brooke e pa-

rente do Casaubon, pensando nós que estivesse apenas numa visita pas-

sageira. Mas acabo de descobrir que o seu nome está na boca do povo

em Middemarch como o editor do "Pioneiro." Contam-se histórias a

seu respeito em que ora ele é um escriba alienigena, ora um espião es-

trangeiro e não sei mais o quê."

"Casaubon não vai gostar nada disto," disse o Reitor.

"Na verdade, há um pouco de sangue estrangeiro em Ladislaw," re-

plicou Sir James. "Espero que ele não se dê a opiniões extremadas e

arraste o Brooke junto."

"Oh, este Mr. Ladislaw é um perigoso peralta," disse Mrs. Cadwallader,

44com suas árias de ópera e sua língua afiada. Uma espécie de herói

byroniano

- um conspirador amoroso, o que me inquieta. Tomás de Aquino não

gosta nada dele. Pude perceber isto no dia em que trouxeram o quadro."

"Não me apraz tocar no assunto com o Casaubon," disse Sir James.


"Ele tem mais direito de interferir do que eu. Mas em tudo por tudo o

problema é bem desagradável. Que papel para nele se mostrar alguém

que tenha um parentesco decente! - um mero escriba de jornal! Basta a

gente olhar para o Keck, que é quem toca a "Trombeta." Outro dia eu o

vi com o Hawley. Ele até que escreve bem, admito, mas é um sujeito tão

vulgar que eu preferia que estivesse do outro lado."

"Que se pode esperar desses pasquins venais de Middemarch?" dis-

se o Reitor. "Não creio que em parte alguma se encontre um homem de

classe para escrever, e por um salário que mal dá para o manter vivo, na

defesa de interesses que na realidade em nada lhe interessam."

"Exatamente: daí ser tão desagradável que o Brooke queira para uma

função desta espécie um homem que não deixa de ser aparentado à farru-

fia. A meu modo de ver, penso que para Ladislaw é uma loucura aceitar."

"A culpa é do Aquino," disse Mrs. Cadwallader. "Por que ele não

usou sua influência para fazer de Ladislaw um attaché ou mandá-lo à

Öndia?  assim que as famílias se livram dos rapazes peraltas."

,,Não há como saber até onde pode o mal se estender," disse ansio-

samente Sir James. "Mas, se o Casaubon não diz nada, o que eu posso

fazer? "

406

GEORGE ELIOT

"Oh, meu caro Sir James," disse o Reitor, "não vale a pena dar im-

portância a isto. Provavelmente tudo vai acabar em fumaça. Depois de

um ou dois meses o Brooke e este Mestre Ladislaw hão de se cansar um

do outro; Ladislaw vai bater asas; o Brooke vai vender o "Pioneiro," e

tudo voltará a ser como era."

"Há porém uma chance - ele não vai gostar de ver seu dinheiro se

evaporando," disse Mrs. Cadwallader. "Se eu conhecesse a extensão dos


gastos eleitorais, poderia fazer-lhe medo. Não adianta importuná-lo com

palavras grandiosas como Desembolso: eu não iria falar de flebotornia,

mas sim esvaziar sobre ele um pote de sanguessugas. Gente bem ava-

renta como a gente não gosta nada que lhe suguem suas moedinhas."

"Nem ele há de gostar que se levantem coisas contra ele," disse Sir

James. "Há a administração de sua propriedade. já estão falando disto.

E para mim realmente é doloroso de ver.  algo que incômoda aos olhos.

A meu ver é uma obrigação que se tem, fazer todo o possível pela terra

e os rendeiros, particularmente nestes tempos dificeis."

"Talvez a"Trombeta" consiga instigá-lo a uma mudança, e algum bem

possa advir disto tudo," disse o Reitor. "Eu bem que ficaria contente. Eu

ouviria menos reclamações quando o dízimo me é pago em gêneros.

Aliás eu nem sei o que faria se em Tipton não houvesse também o paga-

mento em dinheiro."

"Eu queria que ele tivesse um homem decente para cuidar de tudo

- que ele pegasse o Garth novamente," disse Sir James. "Ele dispensou

o Garth há doze anos atrás, e desde então tudo tem dado errado. Eu

mesmo penso em contratar o Garth como administrador - as plantas

que ele fez para as minhas construções são ótimas; e o Lovegood não

corresponde lá tanto assim. Mas o Garth não assumiria de novo a pro-

priedade de Tipton, a não ser que o Brooke a deixasse totalmente por

conta dele."

"E seria para o bem dela," disse o Reitor. "Garth é um homem inde-

pendente: um homem original e de espírito simples. Um dia, quando

estava fazendo uma avaliação para mim, ele me disse à queima-roupa

que os clérigos em geral não entendiam nada de negócios e só faziam

confusão quando se intrometiam; disse-o porém com tal serenidade e

respeito como se me estivesse a falar de marinheiros. Ele faria de Tipton

uma nova paróquia, se o Brooke o pusesse na administração. Espero

que, com a ajuda da "Trombeta," o senhor venha a conseguir isto."

"Se a Dorothea tivesse ficado perto do tio, as perspectivas seriam


bem melhores," disse Sir James. "Passaria com o tempo a ter poder so-

bre ele, ela que sempre se preocupou tanto com a propriedade. Ela tinha

MIDDLEMARCH

407

excelente noção de tudo. Agoraprém o Casaubon a absorve por com-

pleto. A Celia se queixa muito. E uma dificuldade conseguirmos que ela

venha jantar conosco, desde que ele teve aquele ataque." Sir James ter-

minou com um olhar de piedoso desagrado, e Mrs. Cadwallader deu de

ombros, como se quisesse dizer que para ela nada neste sentido parecia

ser novo.

"Coitado do Casaubon!" disse o Reitor. "Foi um ataque feio. Ele me

pareceu estar caindo aos pedaços, outro dia, lá no Arquidiácono."

4415m sua defesa," retomou Sirjames, resolvido a não se atardar nos

"ataques," "diga-se que o Brooke não quer mal a seus rendeiros nem

quer mal a ninguém, mas ele tem essa mania de estar sempre cortando

aqui e ali para reduzir as despesas."

"Ora pois, isto é uma bênção!" disse Mrs. Cadwallader. " bom para

ajudá-lo a se encontrar de manhã. Pode ser que ele nem saiba que opi-

niões são as suas, mas saberá o estado de seu bolso."

"Não acredito que alguém encha o bolso sendo avarento com a sua

propriedade," disse Sir James.

"Oh, é possível abusar da avareza como de outras virtudes: manter

magros os próprios porcos ninguém há de querer," disse Mrs. Cadwallader,

que se levantou para olhar pela janela. "Mas basta a gente falar de um

político independente para que ele apareça."

"O quê, o Brooke?" disse o marido dela.

"Ele mesmo. Agora então você o atormenta com a "Trombeta,"

Humphrey; e eu lhe aplico as sanguessugas. Que fará o senhor, Sirjames?"


"Na verdade não me agrada puxar o assunto com o Brooke, devido à

posição em que estamos; toda esta coisa é tão desagradável! Meu gran-

de desejo é que as pessoas se portassem como cavalheiros," disse o

bondoso baronete sentindo que isto já era um programa abrangente e

simples para o bem-estar social.

.Então estão todos aqui, não é?" disse Mr. Brooke, apertando ao

redor as mãos de cada um. "Pouco a pouco eu pensava mesmo em che-

gar até o castelo, Chettam. Mas que alegria encontrá-los juntos! Bem,

que acham vocês das coisas? - vai tudo rápido demais!  a pura verda-

de o que disse Lafittel - "Desde ontem já se passou um século:" lá do

outro lado da água eles já estão no próximo século. Indo mais rápido

que nós."

" verdade," disse o Reitor, apanhando o jornal. "A própria "Trom-

beta" o acusa aqui de estar atrasado - o senhor viu?"

ljacques Lafitte (1767-1844), um dos líderes da revolução de 1830 na França.

408

GEORGE ELIOT

"Eu? não," disse Mr. Brooke, jogando as luvas no chapéu e ajeitan-

do apressadamente o monóculo. Mas Mr. Cadwallader continuava com

o jornal nas mãos, dizendo, com um sorriso nos olhos:

"Veja aqui! é sobre um proprietário das redondezas de Middemarch,

que recebe pelas terras que arrenda. Estão dizendo que ele é o homem

mais retrógrado do condado. São vocês que devem ter ensinado esta

palavra a eles no "Pioneiro.""

"Oh, isto é coisa do Keck - que é um analfabeto, como vocês sa-

bem. Retrógrado, não é? Ora, esta é muito boa! Ele pensa que quer

dizer destrutivo: querem fazer-me passar por destrutivo, sabem?" disse


Mr. Brooke, com essa alegria que geralmente se apóia na ignorância de

um adversário.

"Acho que ele sabe o sentido da palavra. Eis aqui um pouco do vene-

no. Se tivéssemos de descrever um homem que é retrógrado no pior sentido da

palavra - diríamos que é alguém que se intitula um reformista de nossa

consti-

tuição, enquanto tudo o que lhe pertence e pelo que ele é diretamente

responsável se

encontra em decadência: um filantropo que não agüenta ver um canalha ser

enfor-

cado, mas que não se incômoda com cinco honestos rendeiros quase à mingua:

um

homem que brada contra a corrupção, e arrenda suas terras a preços

extorsivos:

que fica vermelho de clamar contra os burgos podres," e não se importa de

saber

que por toda parte em suas terras há uma porteira podre: um homem de coração

muito aberto para Leeds e Manchester, sem dúvida; que concordaria com

qualquer

número de representantes que pagassem do próprio bolso por seus lugares no

Par-

lamento: mas que não concorda em dar um pequeno desconto no arrendamento

para ajudar um rendeiro a comprar gado, nem com um gasto em reformas para

proteger contra o tempo o celeiro deste rendeiro, ou fazer com que sua casa

se

pareça menos com uma choupana irlandesa. Mas todos nós sabemos a definição

que um trocistajá deu de filantropo: um homem cuja caridade aumenta na razão

direta do quadrado da distância. E assim por diante. Todo o resto é para

mostrar que espécie de legislador um filantropo daria," concluiu o Rei-

tor, largando o jornal de lado e cruzando as mãos na nuca, enquanto

olhava para Mr. Brooke com ar de divertida neutralidade.


"Ora pois, é uma muito boa mesmo," disse Mr. Brooke, pegando o

jornal e tentando tomar o ataque com aquela tranqüilidade com que o

fez seu vizinho, mas enrubescendo e sorrindo meio nervoso; "esta de

ficar vermelho de clamar contra os burgos podres - eu nunca fiz um

discurso sobre burgos podres na minha vida. Quanto a ficar eu mesmo

IBurgos que, por privilégios da tradição britânica, tinham poucos eleitores

e muitos represen-

tantes no Parlamento.

MIDDLEMARCH

409

vermelho e esse tipo de coisa - estes homens não entendem jamais o

que é a boa sátira. A sátira, não é, deve ser verdadeira até um certo

ponto. Nalgum lugar na "Revista de Edinburgh" se dizia isto, lembro-me

bem - deve ser verdadeira até um certo ponto."

"Bem, mas esta das porteiras foi realmente uma boa alfinetada,"

disse Sirjames, preocupado em avançar com cuidado. "Outro dia o Dagley

se queixava comigo de que não tem uma porteira decente em sua terra.

O Garth inventou um novo tipo de porteira - eu gostaria que o senhor

o experimentasse. Pode-se usar madeira da própria propriedade para

fazer. "

"Sua idéia de fazenda, Chettam, é sempre meio fantasista," disse

Mr. Brooke, parecendo correr os olhos pelas colunas da "Trombeta." "

o seu passatempo, e os gastos não lhe preocupam."

"Eu achava que o passatempo mais dispendioso do mundo fosse

concorrer ao Parlamento," disse Mrs. Cadwallader. "Dizern que o últi-

mo candidato mal sucedido em Middemarch - Giles, não era este o

nome dele? - gastou dez mil libras e não se elegeu porque não subor-
nou o suficiente. Que amarga reflexão para um homem!"

"Alguém já me disse," disse o Reitor, sorrindo, "que East Retford

não era nada, no tocante a suborno, em comparação com Middemarch."

"Nada do gênero," disse Mr. Brooke. "Os conservadores subornam,

sabem? Hawley e sua turma subornam com festejos, com maçãs assadas

e esse tipo de coisa; e levam os eleitores embriagados para a votação.

Mas não hão de continuar no futuro com estas suas práticas - no futuro

não, sabem? Reconheço que Middernarch é um pouco atrasada - que

os cidadãos sio um pouco atrasados. Mas nós haveremos de educá-los

- de ajudá-los a progredir, sabem? As melhores pessoas estão do nosso

lado."

"Diz o Hawley que há pessoas do seu lado que irão prejudicar vocês,"

observou Sir James. "Diz que o banqueiro BuIstrode é um dos que pre-

judicam."

"E que, se vocês forem apedrejados," interpôs Mrs. Cadwallader,

"metade dos ovos podres serão jogados por ódio ao organizador do co-

initê. Deus do céu! já pensaram só nisto, ser apedrejado por ter opiniões

erradas? E ainda me lembro da história de um homem que eles preten-

diam carregar em triunfo para deixá-lo cair, de propósito, num monte de

lama! "

"Pior do que ser apedrejado é a devassa que fazem à procura de

senões na vida alheia," disse o Reitor. "Confesso que eu teria medo, se

nós pastores tivéssemos de concorrer a eleições para obter promoção.

410

GEORGE ELIOT

Teria medo de como iriam considerar todos os meus dias de pesca. Pala-

vra, creio que a verdade é o projétil mais duro com que alguém pode ser

apedrejado."
"O fato é que," disse Sir James, "o homem que ingressa na vida

pública deve estar preparado para as conseqüências. Deve fazer-se imu-

ne à calúnia."

"Meu caro Chettam, tudo isto é muito bonito, sabe," disse Mr. Brooke.

"Mas como alguém há de manter-se imune à calúnia? Tente ler na histó-

ria - veja o ostracismo, as perseguições, os martírios e esse tipo de

coisa. Coisas que sempre acontecem aos melhores homens, não é? Como

é mesmo aquela frase de Horácio? - fiat justitia, ruat ... 1 ou algo seme-

lhante."

"Exatamente," disse Sir James, com um pouco mais de calor que o

habitual. "O que eu quero dizer com ser imune à calúnia é ser capaz de

mostrar que o fato apontado é uma contradição."

"E que não é martírio algum pagar os débitos em que a própria pes-

soa incorre," disse Mrs. Cadwallader.

Mas foi o óbvio aborrecimento de Sir James o que mais inquietou

Mr. Brooke. "Bem, você sabe, Chettam," disse ele, levantando-se, apa-

nhando seu chapéu e se apoiando na bengala, "nós dois temos sistemas

diferentes. Você é por não medir as despesas com suas terras. E eu não

pretendo demonstrar que o meu sistema é bom em todas as circunstân-

cias - em todas as circunstâncias, sabe?"

" preciso fazer de tempos em tempos uma nova avaliação," disse

Sirjames. "Os rendimentos eventuais são ótimos, mas sou partidário de

uma avaliação justa. Que diz a respeito, Cadwallader?"

(Concordo com seu ponto de vista. Se eu fosse o Brooke, silenciava

de imediato a "Trombeta" contratando o Garth para fazer uma nova ava-

liação das terras, e dava-lhe carte blanche para porteiras e obras de refor-

ma: esta é a maneira como vejo a situação política," disse o Reitor, enfi-

ando seus polegares sob as axilas para fazer-se mais largo, e rindo para

Mr. Brooke.

"Alguma coisa para dar na vista, não é?" disse Mr. Brooke. "Mas eu

gostaria que me apontassem outro proprietário que já tenha atazanado


seus rendeiros tão pouco quanto eu por causa de pagamentos atrasados,

Deixo os velhos rendeiros continuarem na terra. Sou incomumente fácil

de levar, garanto a vocês - incomumente fácil, Tenho minhas próprias

IA frase completa, que não é de Horácio, mas foi comum na Inglaterra da

época, é "Ratjustitia

et ruat mundus €"Que a justiça se faça e o mundo rua").

MIDDLEMARCH

411

idéias e, como sabem, é nelas que me baseio. Um homem que assim

procede é sempre acusado de excentricidade, de incoerência e esse tipo

de coisa. Eu, se mudo minha linha de ação, hei de estar seguindo minhas

próprias idéias."

Depois disto, Mr. Brooke se lembrou de que havia uma encomenda

na granja que ele se esquecera de despachar, e despediu-se apressada-

mente de todos.

"Eu não quis tomar muitas liberdades com o Brooke," disse Sirjames;

ddveio que ele está numa enrascada. Quanto ao que diz sobre seus velhos

rendeiros, a verdade é que nenhum rendeiro novo arrendaria terras de

sua propriedade no estado atual."

"Tenho a impressão de que ele será levado a recuperar o juízo a

tempo," disse o Reitor. "Mas você, Elinor, estava puxando para um lado,

e nós, para o outro. Você queria amedrontá-lo para evitar despesas, e

nós, amedrontá-lo para que as faça. Melhor deixar ele tentar ser popular

e ver que sua própria condição de proprietário lhe bloqueia o caminho.

Penso que nem o "Pioneiro," nem Ladislaw, nem os discursos do Brooke

têm a menor importância para os habitantes de Middemarch. Mas é

muito importante para os paroquianos de Tipton ter seu bem-estar ga-


rantido."

"Desculpem-me, mas vocês dois é que estão na trilha errada," disse

Mrs. Cadwallader. "Deveriam ter-lhe provado que com a má administra-

ção ele está perdendo dinheiro, e assim nós puxaríamos juntos. Se o

querem a cavalgar na política, atenção para as conseqüências! Era muito

melhor ele montar em pernas de pau em casa e chamá-las de idéias."

ljohn Donne (1572-1631), "The Undertaking."

CAPÍTULO =IX

1f, as 1 have, you also doe,

Vertue attired in wornan see,

And dare love that, and say so too,

And fórget the He and She;

And if this love, though placed so,

From profane men you hide,

Which will no faith on this bestow,

Or, if they doe, deride:

Then you have done a braver thíng

Than all the Worthies did,

And a braver thence will spring,

Which is, to keep that hid.11

- DR. DONNE.

€"Se podes, como eu, notar

Na mulher virtudes belas,

Se isto amando ousas falar


E esquecer o Ele e Ela;

E se o amor, posto a tal modo,

Escondes do homem profano,

Que nisto não crê de todo

Ou, se crê, sai gargalhando:

Então fazes mais portento

Que qualquer Enaltecido,

Lavrando um mais bravo tento,

Que é manter isto escondido.")

- DR. DONNE.1

MIDDLEMARCH

413

SIR JAMES CHETTAm não tinha uma cabeça particularmente engenhosa,

mas sua crescente ansiedade para "atuar sobre o Brooke," associada à

sua crença constante na capacidade de influência de Dorothea, torna-

ram-se formadoras de uma pequena estratégia; qual seja, invocar uma

indisposição de Celia como um motivo para mandar buscar Dorothea e

trazê-la ao castelo sozinha, deixando-a de carruagem na granja no cami-

nho de volta, após lhe dar ciência da situação em que estava a adminis-

tração da fazenda.

Deste modo aconteceu que um dia, aberta a porta pelas quatro da

tarde, quando Mr. Brooke e Ladislaw se achavam na biblioteca, Mrs.

Casaubon foi anunciada.

Will, até o momento anterior, estivera imerso nas profundezas do

tédio e, obrigado a ajudar Mr. Brooke a cuidar de "documentos" sobre


a execução na forca de ladrões de carneiros, ia exemplificando o poder

que têm nossas mentes de cavalgar ao mesmo tempo em vários cava-

los, pois internamente ele cuidava de medidas para obter uma moradia

em Middemarch e encerrar sua temporada de residência na granja;

enquanto por estas imagens mais constantes perpassava a divertida

visão da epopéia de um roubo de carneiros escrita com pormenores

homéricos. Quando Mrs. Casaubon foi anunciada, algo como um cho-

que elétrico o fez tremer, e ele sentiu nas pontas de seus dedos um

formigamento. Qualquer um que o observasse teria visto uma mudan-

ça na sua cor de pele, na contração de seus músculos faciais, na vivaci-

dade de seu olhar, sendo por isto capaz de imaginar que cada molécula

de seu corpo havia recebido a mensagem de um toque mágico. E havia

mesmo. Pois mágica eficaz é a transcendente natureza; e quem há de

medir a sutileza desses toques que transmitem uma qualidade da alma

e também do corpo, e que fazem com que a paixão de um homem por

uma mulher difira de sua paixão por outra como a alegria na luz da

manhã por sobre um vale e o rio e o cume branco da montanha difere

da alegria entre espelhos e lanternas chinesas? Will, também, era feito

de matéria muito impressionável. O arco de um violino, tocando perto

e primorosamente, poderia de uma só nota modificar para ele a apa-

rência do mundo, e seus pontos de vista variavam tão facilmente quan-

to seus estados de espírito. A entrada de Dorothea foi o frescor da

manhã.

"Ora viva, querida, que agradável surpresa!" disse Mr. Brooke, indo

a seu encontro e beijando-a. "Suponho que tenha deixado o Casaubon

com seus livros. Fez muito bem. Não nos convém que você, sendo mu-

lher, se torne culta demais."

414

GEORGE ELIOT
"Não há perigo, meu tio," disse Dorothea, que se virou para Will,

apertou-lhe com franca cordialidade a mão e, sem nenhuma outra forma

de saudação, continuou dando resposta ao tio. "Sou muito lenta. Mui-

tas vezes, quando minha intenção é me ocupar dos livros, deixo-me

levar por pensamentos vadios. Constato que ser culta não é tão fácil

quanto projetar casinhas."

Sentou-se ao lado do tio, e de frente para Will, e evidentemente

estava preocupada com algo que quase a fazia não dar por sua presença.

E ele ficou ridiculamente desapontado, como se houvesse imaginado

que a vinda dela ali tinha algo a ver com sua própria pessoa.

"Ah, sim, desenhar plantas era o seu passatempo predileto, não é,

querida? Mas foi bom deixá-lo um pouco de lado. Os passatempos

tendem a arrastar-nos longe; e ser arrastado não convém a ninguém.

Devemos manter as rédeas. Eu mesmo nunca me deixei arrastar; sem-

pre as tive a meu comando.  isto que eu digo ao Ladislaw. Ele e eu,

sabe, somos parecidos: ele se interessa por tudo. Agora estamos traba-

lhando com apenade morte. Vamos fazermuitas coisasjuntos, Ladislaw

e eu."

"Sim," disse Dorothea, da maneira bem direta que lhe era típica,

"Sir James me andou dizendo que ele tem a esperança de ver uma

grande mudança feita em breve na administração da sua propriedade

- que o senhor está pensando em mandar avaliar as terras, fazer

melhorias e reformar as casas, e Tipton será assim um lugar total-

mente diferente. Oh, que alegria! "- prosseguiu ela, juntando as mãos

com espalhafato como se voltasse àqueles modos mais impetuosos e

na aparência infantis que estavam amortecidos desde o seu casamen-

to. "Se eu ainda estivesse em casa, voltaria a andar a cavalo para

poder acompanhá-lo por aí e ver essa transformação! E Sirjames tam-

bém disse que o senhor vai contratar Mr. Garth, que elogiou minhas

casas."
"Chettam foi um pouco apressado, minha filha," disse Mr. Brooke,

corando ligeiramente. "Um pouco apressado, sabe? Eu nunca disse que

faria tais coisas. Eu nunca disse que não faria, entende?"

"Ele apenas tem confiança de que o senhor as fará," disse Dorothea,

numa voz tão clara e sem hesitação como a de uma jovem corista can-

tando um credo, "porque pretende ingressar no Parlamento como al-

guém que se preocupa com melhorias para o povo, e uma das coisas

que por primeiro têm de ser melhoradas é a situação da terra e dos

trabalhadores. Pense no Kit Downes, titio, que vive com a mulher e

sete filhos numa casa com uma salinha e um quarto que é pouco maior

MIDDLEMARCH

415

do que esta mesa! - e nos pobres Dagleys, naquela casa de fazenda

em ruínas onde só ocupam a cozinha nos fundos, deixando os outros

cômodos para os ratos! Pois esta é uma das razões por que eu não

gostava dos seus quadros, meu tio - fato que o senhor atribuía à mi-

nha ignorância. Eu costumava vir da aldeia com toda aquela sujeira e a

rude feiúra como uma dor em meu intimo, e na sala de visitas as sorri-

dentes pinturas pareciam-me uma tentativa imoral de encontrar prazer

no que é falso, quando não nos incômoda saber como a verdade é

dura, fora das paredes que nos protegem, para os nossos vizinhos. Creio

que não temos o direito de dar um passo à frente e exigir maiores

mudanças pelo bem, se não tivermos tentado alterar os males que es-

tão ao alcance de nossas mãos."

Dorothea se enchera tanto de emoção ao falar que se esquecera de

tudo, exceto o alívio de dar livre vazão aos próprios sentimentos: ex-

periência freqüente para ela outrora, mas de raríssima ocorrência des-

de seu casamento, que vinha sendo uma refrega perpétua da energia


com o medo. Neste momento, a admiração de Will foi acompanhada

por uma impressão de distanciamento que o deixou mais frio. Rara-

mente um homem se envergonha de sentir que não pode amar uma

mulher tão bem quando vê que ela tem certa grandeza: já que a natu-

reza previu a grandeza para os homens. Mas a natureza cometeu às

vezes tristes descuidos ao pôr suas intenções em prática; como no caso

do bom Mr. Brooke, cuja consciência masculina viu-se então reduzida

a uma situação gaguejante em face da eloqüência da sobrinha. Ele não

pôde encontrar de imediato outro modo de expressão senão levantar-

se, ajustar seu monóculo e remexer nos papéis à sua frente. Por fim

disse:

"Há alguma coisa no que diz, minha filha, alguma coisa no que diz

- mas não tudo - não é, Ladislaw? Nem você nem eu gostamos de que

nossos quadros e estátuas sejam criticados. As jovens senhoras são um

pouco ardorosas - um pouco parciais, querida. As belas-artes, a poesia,

esse tipo de coisa, elevam uma nação - emoffit mores" - você agora já

entende um pouco de latim. Mas - o que é, hem?"

Esta última pergunta foi endereçada ao lacaio, o qual veio dizer que

o guardador apanhara um dos garotos do Dagley com um filhote de le-

bre que ele tinha acabado de matar.

"já vou, já vou. Logo, logo, o libero, sabe?" disse Mr. Brooke à parte

para Dorothea, desaparecendo a seguir em grande animação.

"Em latim no original: "Suaviza os costumes."

416

GEORGE ELIOT

"Espero que o senhor entenda quão justa é esta mudança que eu -

que Sir James deseja," disse Dorothea para Will, logo depois de seu tio
ter saído.

"Entendo sim, agora que a ouvi falar a respeito. Não me esquecerei

de suas palavras. Ser-lhe-á porém possível, neste momento, pensar em

algo diferente? Pode ser que eu não tenha outra oportunidade de con-

versar com a senhora sobre o que aconteceu," disse Will, levantando-se

com um movimento de impaciência, e apoiando-se no espaldar de sua

cadeira com as duas mãos.

"Diga-me, por favor, o que é," disse Dorothea, que também se le-

vantou ansiosa e se dirigiu para a janela aberta pela qual o Monk olhava,

abanando o rabo e arfando. Ela se debruçou para fora e afagou a cabeça

do cachorro; pois embora, como sabemos, não gostasse dos bichos de

estimação que ou são levados nas mãos ou esmagados nos pés, sempre

era atenciosa com os sentimentos dos cães, e muito polida se tivesse de

declinar de seus avanços.

Will seguiu-a só com os olhos e disse: "Suponho que saiba que Mr.

Casaubon me proibiu de ir à sua casa."

"Não, eu não sabia," disse Dorothea, após momentânea pausa. Es-

tava visivelmente abalada. "Sinto muito, muito mesmo," acrescentou

pesarosamente. Pensava em algo de que Will não tinha conhecimento -

a conversa entre ela e seu marido no escuro; e de novo era invadida pela

desesperança de poder influenciar as ações de Mr. Casaubon. Mas Will

se convenceu, com a marcada expressão de seu sofrimento, de que este

não se ligava diretamente a si, e de que Dorothea não fora assaltada pela

idéia de que o ciúme e a aversão de Mr. Casaubon por ele giravam em

torno dela. Ele sentiu uma mistura esquisita de deleite e aflição: de de-

leite porque tinha um lugar e era tratado com carinho no pensamento

dela, como numa pura morada, sem suspeita e sem restrição, - e de

aflição porque era muito pouco importante para ela, não a impressiona-

va tanto assim e era tratado com uma hesitante benevolência que em

nada o lisonjeava. Mas seu temor de uma mudança em Dorothea era

ainda mais forte que seu descontentamento, e ele começou a falar de


novo num tom de mera explicação.

"A razão de Mr. Casaubon é o desprazer com que me vê assumindo

uma função aqui que ele julga inadequada à minha posição como seu

primo. E eu já lhe disse que não abro mão deste ponto. Para mim seria

um pouco demais que o rumo de minha vida viesse a ser entravado por

preconceitos que considero ridículos. A gratidão pode ser exagerada e

até se transformar simplesmente numa marca de escravidão gravada em

MID=MARCH

417

nós quando ainda somos muito jovens para entender seu sentido. Eu

não teria aceito o emprego se minha intenção não fosse fazê-lo útil e

honroso. Sob nenhum outro prisma sinto-me obrigado a considerar a

dignidade familiar."

Dorothea sentíti-se muito infeliz. julgava o marido totalmente er-

rado, e por mais razoes que as mencionadas por WiII.

" melhor não falarmos deste assunto," disse ela, com a voz inco-

mumente trêmula, "Já que há uma discordância entre o senhor e Mr.

Casaubon. Pretende ficar?" Ela olhava para o gramado lá fora, em me-

lancólica meditação.

"Sim; mas agora mal poderei vê-la," disse WilI, quase no tom de um

garoto que se queixa.

"Pois é," disse Dorothea, virando os olhos bem para ele, "quase

nunca. Mas terei notícias suas. Saberei do que anda fazendo por meu

tio."

"já eu quase nada hei de saber da senhora," disse WiII. "Ninguém

me dirá nada."

"Oh, minha vida é muito simples," disse Dorothea, curvando os lá-

bios num precioso sorriso que irradiou sua melancolia. "Eu estou sem-
pre em Lowick."

:,Uma prisão horrorosa," disse Will impetuosamente.

"Não, não pense assim," disse Dorothea. "Eu não tenho aspira-

ções."

Ele nada falou, mas ela reagiu a certa modificação em sua expressão.

"Quero dizer, para mim mesma. A não ser que eu não gostaria de ter

muito mais que o meu quinhão sem fazer nada pelos outros. Mas eu

tenho uma crença bem minha, e que me consola."

"Qual é?" disse WilI, meio enciumado da crença.

"De que desejando o que é perfeitamente bom, mesmo sem saber

muito bem no que consiste e sem poder fazer o que queremos, nós so-

mos parte do poder divino contra o mal - alargando as fronteiras da luz

e dando às trevas um mais cerrado combate."

"Mas isto é um belo misticismo - é um -"

"Não lhe aplique, por favor, nome algurnf disse Dorothea, esten-

dendo as mãos em súplica. "Há de o senhor dízê-lo persa, ou de outra

procedência geográfica.  a minha vida. Uma coisa que eu mesma des-

cobri e da qual não me posso separar. Sempre andei descobrindo minha

religião desde que eu era menina. Costumava rezar muito - agora não

rezo quase nunca. Tento não ter desejos apenas para mim, porque eles

podem não ser bons para os outros, e os que eu tenho iá são em derna-

418

GEORGE ELIOT

sia. Se lhe digo isto, é apenas para que o senhor saiba exatamente como

se passam em Lowick os meus dias."

"Pois que Deus a abençoe por me dizer!" disse Will com ardor, e

admirando-se um pouco pela ousadia. Eles estavam olhando um para o

outro como duas crianças enlevadas que conversassem confidencialmente


sobre passarinhos.

"Qual a sua religião?" disse Dorothea. "Digo - não o que sabe so-

bre religião, mas a crença que mais o ajuda?"

"Amar o que é bom e belo quando o vejo," disse WilL "Mas eu sou

um rebelde: não me sinto obrigado, como a senhora, a submeter-me

àquilo de que não gosto."

"Mas, se gosta do que é bom, vem a dar no mesmo," disse Dorothea,

sorrindo.

"Agora torna-se a senhora sutil," disse Will.

"Sim; Mr. Casaubon costuma dizer que eu sou muito sutil. Não sin-

to porém que o tenha sido," disse Dorothea, jocosamente. "Mas como

meu tio está demorando! Tenho de ir procurá-lo. Tenho realmente de ir

até o castelo. Celia está à minha espera."

Will se oferecia para ir chamar Mr. Brooke quando este apareceu e

disse que aproveitaria a carruagem para ir com Dorothea até a casa do

Dagley, falar do garoto delinqüente que fora pegado com a lebre. A cami-

nho Dorothea retomou o tema da propriedade, mas Mr. Brooke, já não

sendo tomado de surpresa, conseguiu manter a conversa sob seu controle.

"Pois então o Chettam, minha querida," disse ele, "acha que estou

errado; mas eu não preservaria a minha caça, se não fosse para o Chettam,

e ele não pode dizer que esta despesa seja a favor dos rendeiros, não é?

 um pouco contra os meus sentimentos: - mas a caça ilícita, se a gente

a examina bem - tenho pensado muito em levantar este assunto. Não

faz muito tempo, Flavell, o pregador metodista, foi levado a juízo por

abater com uma paulada uma lebre que atravessou seu caminho quando

ele e a esposa estavam dando um passeio. Tinha sido muito rápido, e

acertara na nuca."

"Uma brutalidade, penso eu," disse Dorothea.

"Bem, a mim pareceu-me um pouco tétrico, confesso, em se tratan-

do de um pregador inetodista, não é? E o Johnson disse: "O senhor pode

julgar como ele é hipócrita." E eu, palavra, achei que o Flavell parecia
muito pouco ser do "estilo superior de homem"- como alguém define o

cristão - Yoting, o poeta Yoting, creio, - você conhece Young?" Bem,

IEdward Yoting (1683-1765).

MIDDLEMARCH

419

mas o Flavell, em suas botinas pretas surradas, alegando ter pensado

que o Senhor mandara um bom jantar para ele e a esposa, e que ele

tinha o direito de sentar-lhe o pau, embora em face do Senhor não fosse

um caçador emérito como Nimrod,1 - garanto que era bem engraçado:

Fielding tiraria dali alguma coisa - ou Scott, quem sabe? - Scott teria

desenvolvido o tema. Mas realmente, quando refleti sobre o caso, não

pude deixar de querer que o camarada tivesse um prato de carne pelo

qual dar graças. Tudo é uma questão de preconceito - preconceito que

tem a lei a seu lado, sabe? - sobre as botinas e o pedaço de pau, e assim

por diante. Entretanto, não adianta raciocinar sobre as coisas; e lei é lei.

Mas eu consegui manter o Johnson calado e resolvi a questão. Duvido

que a severidade do Chettam não tivesse sido maior, apesar de ele me

desancar como se fosse eu o homem mais duro do condado. Bem, mas

cá estamos no Dagley."

Mr. Brooke apeou à porteira de uma chácara, enquanto Dorothea

seguia em frente.  incrível como as coisas hão de parecer bem mais

feias, se apenas suspeitarmos de que somos censurados por elas. Até

mesmo nossas próprias pessoas podem mudar de aparência para nós

no espelho depois de termos ouvido alguma observação sincera sobre

seus pontos menos admiráveis; e por outro lado é espantoso o quanto

nossa consciência se apraz com o modo como abusamos dos que nun

ca se queixam ou não têm ninguém para queixar-se por eles. A morada

de Dagley nunca parecera tão horrorosa como hoje a Mr. Brooke, com
seu espírito ferido pelas acusações da "Trombeta," às quais Sir Jarnes

fizera eco.

Verdade é que um observador, sob aquela influência suavizante das

belas-artes que torna pitorescos os sofrimentos alheios, ter-se-ia delei-

tado talvez com esta morada chamada O Limite dos Livres: na casa ve-

lha, com janelas de água-furtada no telhado vermelho -escuro, a hera

cobria totalmente duas chaminés, o grande alpendre estava entulhado

de montinhos de varas e metade das janelas fechada, com os postigos

cinzentos carcomidos rodeados por ramos de jasmim que cresciam com

exuberância selvagem; o muro podre do jardim, com a malva-rosa a olhar

por cima, era um perfeito estudo em meias tintas altamente mescladas,

e havia também um bode velho (mantido sem dúvida por interessantes

razões supersticiosas) deitado junto da porta aberta da cozinha. A palha

musguenta que cobria o estábulo, as portas quebradas do celeiro, os

camponeses indigentes em calças esfarrapadas que tinham quase acaba-

"Bisneto de Noé, renomado como caçador,

420

GEORGE ELIOT

do de descarregar no celeiro uma carroça de milho para ser debulhado;

as apoucadas vacas sendo amarradas para a ordenha num canto e dei-

xando em metade da coberta um pardacento vazio; os próprios porcos e

os patos brancos que pareciam vagar em grande abatimento pela baixa

qualidade das sobras de que se alimentavam - todos estes objetos à luz

tranqüila de um céu marmorizado por nuvens altas nos poderiam pare-

cer "um encanto," como certas pinturas que todos nós já paramos para

contemplar, tocando em outras cordas sensíveis que não as atingidas

pela depressão que se abate sobre a agricultura, com a tri . ste falta de
capitais para o campo, como se vê constantemente nos jomais da época.

Mas justamente agora estas perturbadoras associações faziam-se com

toda a força presentes para Mr. Brooke, estragando-lhe a cena. Mr. Dagley

em pessoa se afigurou na paisagem, carregando um forcado e com seu

chapéu de leiteiro - um castor muito velho e achatado na frente. Seu

casaco e a calça eram os melhores que tinha, e ele não os estaria usando

nesta ocasião e em dia de semana se não tivesse ido ao mercado e

retornado mais tarde que de hábito, após se permitir o raro luxo de ir

comer no Blue Bull a refeição mais comum. Como incorrera nesta extra-

vagância era talvez um tema com o qual ele mesmo se espantaria ama-

nhã; mas antes do jantar alguma coisa na situação do país, uma ligeira

pausa na colheita antes de se definirem os preços, as histórias sobre o

novo Rei e os numerosos cartazes nas paredes pareciam até justificar

uma pequena imprudência. Era uma máxima em Middemarch, e consi-

derado como coisa óbvia, que um bom repasto pedia boa bebida, o que

Dagley ultimamente interpretava como um monte de cervejas na mesa e

depois rum com água. Tais bebidas contêm tanta verdade que não pude-

ram ser suficientemente falsas para tornar alegre o pobre Dagley: apenas

tornaram menospresa a língua de seu descontentamento. Ele também

afundara muito no lamaçal das discussões políticas, um estimulante que

ameaçava perturbar seu conservadorismo rural, o qual consistia em sus-

tentar que tudo o que havia era ruim, e que qualquer mudança seria

provavelmente para pior. Estava muito vermelho, e era um olhar decidi-

do e desafiador que ainda segurando o forcado ele lançava, enquanto o

senhorio se aproximava com seu andar desajeitado e frajola, uma das

mãos metida num dos bolsos da calça, a outra rodopiando no ar leve

bengala de passeio.

"Dagley, meu bom amigo," começou Mr. Brooke, consciente de que

ia ser bem amistoso em relação ao garoto.

"Oh, eu, um bom amigo, é? Muito, mas muito obrigado mesmo,"

disse Dagley, com uma ironia tão ruidosa e rosnante que fez o cão de
MIDDLEMARCH

421

pastoreio, Fag, levantar-se de onde estava e levantar as orelhas; mas,

vendo o Monk avançar pelo terreiro depois de zaranzar ao redor, o Fag

se sentou novamente numa atitude de observação. " uma alegria saber

que eu sou bom amigo."

Mr. Brooke refletiu que era dia de mercado, e que seu digno rendeiro

havia provavelmente jantado, mas não viu nenhum motivo para não ir

adiante, já que poderia tomar a precaução de repetir a Mrs. Dagley o que

tinha a dizer.

"O seu filho Jacob foi pegado matando um filhotinho de lebre, Dagley:

mandei que o Johnson o trancasse no estábulo vazio por uma ou duas

horas, só para dar um susto nele, sabe? Mas a qualquer momento ele

será trazido em casa, antes de anoitecer; e você vai cuidar dele, não é,

vai passar-lhe uma boa reprimenda, pois não?"

"Num vou mesmo, nem morto num vou batê no menino pr"agradá o

sinhô ou quem que seja, nem que invez de um só viesse uns vinte assim

que nem o sinhô pra reclamá que ele é ruim."

As palavras de Dagley foram suficientemente altissonantes para con-

vocar sua esposa à porta da cozinha - a única entrada usada, e sempre

aberta a não ser com mau tempo, - e Mr. Brooke, dizendo apaziguado-

ramente: "Bem, bem, vou conversar com sua esposa - não estou falan-

do em bater, sabe," virou-se para aproximar-se da casa. Mas Dagley,

ainda mais inclinado a "dizer umas coisas" a um cavalheiro que fugia ao

confronto, incontinente foi-lhe atrás, com o Fag a segui-lo pelos calca-

nhares e a evadir-se intratável aos pequenos e provavelmente caridosos

avanços que o Monk já ensaiava.

"Como vai, Mrs. Dagley?" disse Mr. Brooke, visivelmente apres-


sado. "Vim para lhe falar do seu filho: mas não quero que o faça en-

trar na vara, entende?" Teve o cuidado desta vez de se expressar com

clareza.

Estafada pelo trabalho, Mrs. Dagley - mulher magra e muito gasta

de cuja vida o prazer se evolara tão completamente que ela nem mais

tinha roupas de domingo que lhe pudessem dar a satisfação de se prepa-

rar para a igreja - já havia tido um desentendimento com seu marido,

depois de ele voltar para casa, e estava bem deprimida, esperando pelo

pior. O marido passou à frente dela para dar a resposta.

. "Pode o sinhô querê ou num querê, entrá na vara é que o menino

num vai," prosseguiu Dagley, alteando ainda mais a voz como que para

se impor sem discussão. "Num me venha o sinhô falá de vara com nós,

quando num dá nem um pedaço de pau para um conserto. Vai preguntá

lá em Middemarch quem é que é o sinhô."

422

GEORGE ELIOT

"Melhor conter sua língua, Dagley," disse a mulher, "pois chega de

se botar para fora. Um homem que é pai de família, quando esbanja seu

dinheiro no mercado e ainda por cima enche a cara de bebida, já fez

bastante mal por um dia. Mas eu gostaria de saber o que foi que o meu

filho fez, Mr. Brooke."

"O que ele fez num te interessa," disse Dagley, ainda mais furioso,

4(sou eu que tem de falá, num é ocê. E vou falá o que bem quero - ceie-

se ou não. O que eu tenho a dizê é que eu vivo aqui nessa terra do sinhô,

como antes de mim o meu pai e o meu avô, e que a gente meteu nosso

dinheiro nela, e que eu e meus filhos vamo acabá apodrecendo na terra

pra virá o adubo que nós num tem com que comprá, se o Rei num dê um

jeito nisso."
"Meu bom amigo, você está embriagado, sabe?" disse Mr. Brooke,

confidencial mas não judiciosamente. "Outro dia, outro dia," acrescen-

tou, virando-se como se fosse embora.

Mas imediatamente Dagley se pôs à sua frente e o Fag grunhiu em

seus calcanhares, à medida que a voz do dono se tornava mais alta e

insultuosa, enquanto o Monk também chegava perto, em silenciosa e

digna observação. Os camponeses da carroça, por sua vez, iam parando

para ouvir. Parecia mais sensato ser totalmente passivo do que tentar

uma ridícula fuga, perseguido por um homem aos berros.

"Eu num tô mais embriagado que o sinhô, nem tanto," disse Dagley.

"Sei segurá minha bebida e também sei o que eu quero. Quero é que o

Rei dê um jeito nisso, porque tão dizendo por aí, tão sabendo, que vai

havê uma Reforma e os senhorios que nunca fizeram nada direito pros

seus rendeiros vão ser tratados com dureza e vão ter de cair fora. Tão

dizendo: "Eu sei quem é seu senhorio." E eu digo: "Tornara ocê sabê mais

que eu, que num sei." E aí eles diz: " um muito irião-fechada." Ai, ai,"

digo eu. "Pois ele é pela Reforma," eles diz. Isso é o que eles tão dizendo.

E já deu pra mim entendê que Reforma é essa - que com ela o sinhô e

os seus iguais vão ter de corrê e muito; é com coisas bem fedorentas que

ocês vão ser enxotados. E agora o sinhô pode fazê como bem quisé,

porqu"eu num tenho medo do sinhô. E é melhor deixá meu filho em paz

e ir cuidá da sua vida antes que venha essa Reforma cair nas suas costas.

Pois era o quê qu"eu tinha a dizê," concluiu Mr. Dagley, enfiando seu

forcado na terra com uma firmeza que se mostrou excessiva, quando ele

tentou puxá-lo de novo.

A este último gesto o Monk começou a latir, e era um bom momento

para Mr. Brooke escapar. Ele saiu o mais depressa que pôde do terreiro,

meio surpreso ante o ineditismo da situação em que estava. Nunca an-

MIDDLEMARCH
423

tes insultado em suas próprias terras, inclinava-se a considerar-se um

favorito geral (tendência que temos todos, quando pensamos mais em

nossa amabilidade do que naquilo que as pessoas provavelmente que-

rem de nós). Quando ele brigou com Caleb Garth, doze anos atrás, ha-

via pensado que os rendeiros iam ficar contentes com o proprietário das

terras tomando tudo em suas próprias mãos.

Alguns dos que acompanham a narrativa de sua experiencia podem

espantar -se com a escuridão absoluta em que Mr. Dagley vivia; mas

nada era mais fácil na época do que um homem do campo de seu nível

e origem ser ignorante, apesar de ele contar com um reitor na paróquia

vizinha que era um cavalheiro perfeito, um coadjutor ainda mais à mão

que pregava com sapiência maior que a do reitor, um senhorio versado

em tudo, particularmente no tocante ao desenvolvimento social e às

belas-artes, e todos os luminares de Middemarch a menos de cinco

quilômetros dali. Quanto à facilidade com a qual os mortais escapam

da instrução, pegue um conhecido seu de médio brilho, no esplendor

intelectual de Londres, e imagine como se portaria num jantar esta

qualificada pessoa, se tivesse aprendido pouco a "fazer resumos" com

o pastor da paróquia de Tipton e lido um capítulo da Bíblia com imen-

sa dificuldade, porque nomes como Isaías e Apolo se mantinham indó-

ceis depois de duas vezes soletrados. O coitado do Dagley nas noites

de domingo às vezes lia uns versículos, e o mundo para ele pelo menos

não era mais escuro do que fora antes, havia coisas que ele sabia muito

bem, quais fossem, os hábitos desmazelados da chácara e os imprevis-

tos do tempo, colheitas e provisões no Limite dos Livres - nome dado

aparentemente por sarcasmo e implicando que um homem era livre

para o deixar, se assim quisesse, mas que nenhum "além" terreno esta-

va aberto para ele.


CAPíTULO XL

Wise in bis daily work was he:

To fruits of diligence,

And not to faiths or polity,

He plied bis utmost sense.

These perfect in their littie parts,

Whose work is all their prize -

Without them how could law, or arts,

Or towered cities rise?

("No labor diário era um sábio:

Aos frutos da diligência,

Não credos ou mandatários,

Prestava mais obediência.

Perfeitos nas simples partes,

Premiados só em fazer -

Sem estes como iriam as artes,

as urbes, as leis se erguer?")

Ao OBSERV -OS os efeitos, mesmo que apenas de uma pilha elétrica,

muitas vezes é necessário mudarmos de lugar e examinar uma particular

mistura ou grupo a alguma distância do ponto onde o movimento no

qual estamos interessados teve início. O grupo em direção ao qual me

movo agora acha-se ao redor da mesa do café da manhã em casa de

Caleb Garth, no salão onde ficavam também a escrivaninha e os mapas:

o pai, a mãe e cinco dos filhos. Mary continuava com a família à espera

de uma situação para ela, ao passo que Christy, o rapaz a seu lado,

obtinha na Escócia uma módica instrução e um passadio barato, tendo

dado para os livros, para a decepção de seu pai, e não para a sagrada

vocação dos "negócios."


MIDDLEMARCH

425

Cartas tinham chegado - nove cartas bem caras, pelas quais foram

pagos ao carteiro três xelins e dois pences, e Mr. Garth já até se esquece-

ra de seu chá com torradas enquanto lia suas cartas e as punha abertas

uma sobre a outra, ora balançando lentamente a cabeça, ora fazendo

muxoxos que eram sinais de cogitações internas, mas nem por isto se

esquecendo de recortar sem quebrar um grande lacre vermelho, que Letty

pegou correndo como uma cachorrinha levada.

Entre os outros corria solta a conversa, pois nada perturbava a con-

centração de Caleb, a não ser balançarem a mesa quando ele estava

escrevendo.

Duas das nove cartas eram para Mary. Depois de as ler, ela as passou

para sua mãe, e absorta pôs-e a brincar com a colherzinha, por algum

tempo, até que a uma lembrança repentina voltou à sua costura, conser-

vada no colo durante todo o café.

"Não vai costurar não, Mary!" disse Ben, puxando-a pelo braço. "Faça

um pavão pra mim com este miolo de pão." Ele já havia preparado para

tanto um bocadinho de massa.

"Oh, não, nada disto!" disse Mary com bom humor, ao mesmo tem-

po em que espetava a mão dele, mas de leve, com a agulha. "Tente você

mesmo sozinho: já me viu fazendo tantas vezes! Tenho de acabar a cos-

tura, que é para a Rosamond Vincy: ela se casa na semana que vem, mas

sem este lencinho não pode haver casamento." Mary concluiu entre ri-

sos, divertindo-se com esta última idéia.

"Por que não pode, Mary?" disse Letty, seriamente interessada no

mistério e avançando tanto para encostar sua cabeça na irmã que Mary

então lhe apontou para o nariz a ameaçadora agulha.


"Porque ele é um de uma dúzia, e sem ele só haveria onze," disse

Mary, com um grave ar de explicação que fez Letty recuar com a ímpres-

são de ter entendido.

"já tomou sua decisão, minha filha?" disse Mrs. Garth, pondo as

cartas sobre a mesa.

"Vou para a escola de Yorkf disse Mary. "Sou mais indicada para

ensinar numa escola do que numa família. Gosto mais de lecionar para

turmas. E, como vê, tenho de dar aulas: não há outra opção para mim."

"Pois dar aulas parece-me o trabalho mais prazeroso do mundo,"

disse Mrs. Garth, com um leve toque de reprovação. "Eu compreenderia

sua objeção, Mary, se você não tivesse a instrução necessária, ou se não

gostasse de crianças."

"Acho que nós nunca entendemos por que há gente que não gosta

do que nós gostamos, mãe," disse Mary, sem primar pela delicadeza. "A

426

GEORGE ELIOT

sala de aula não me agrada: prefiro o mundo exterior.  uma falha mi-

nha, de resto muito inoportuna."

"Deve ser um horror ficar o tempo todo numa escola de moças,"

disse Alfred. "Um monte de bobalhonas, como as alunas de Mrs. Ballard

andando duas a duas."

"E as brincadeiras delas nunca valem a pena. Não podem dar pulos,

jogar coisas, nada disso. Eu entendo por que a Mary não gosta."

"Do que é que a Mary não gosta, hem?" disse o pai, olhando por

cima dos óculos e fazendo uma pausa antes de abrir a carta seguinte.

"De ficar no meio de um monte de bobalhonas," disse Alfred.

" a situação de que lhe haviam falado, Mary?" disse Caleb, gentil-

mente, olhando para sua filha.


t, papai: a escola de York. Resolvi aceitar.  de longe o melhor.

Trinta e cinco libras por ano, e um pagamento extra para ensinar a dedi-

lhar o piano."

"Coitada da minha filha! Eu preferia que ela ficasse conosco em casa,

Susan," disse Caleb, com um olhar de lamentação para a esposa.

"Mary não estaria feliz sem fazer sua obrigação," disse Mrs. Garth,

consciente de ter dado uma decisão, e professoral.

"Pois eu não me sentiria feliz fazendo uma obrigação tão nojenta,"

disse Alfred - ao que Mary e seu pai riram silenciosamente, enquanto

Mrs. Garth, muito séria, dizia:

"Veja se arranja uma palavra melhor do que nojento, meu querido

Alfred, para tudo o que toma por desagradável. E suponha que com o

dinheiro que ela ganhe a Mary possa ajudá-lo a ir para Mr. Hanmer."

"Para mim seria uma grande vergonha. Mas ela é boa pra diacho!"

disse Alfred, levantando-se de sua cadeira e puxando a cabeça de Mary

para trás, para dar-lhe um beijo.

Mary ruborizou-se e riu, mas não pôde disfarçar as lágrimas que lhe

afloraram. Caleb, ainda a olhar por cima dos óculos, com os cantos das

sobrancelhas caídos, tinha uma expressão de deleite e dor misturados,

nisto que voltava a ocupar-se de abrir sua carta; e até mesmo Mrs. Garth,

cujos lábios se curvaram num calmo contentamento, permitiu que pas-

sasse sem correção a inadequada linguagem, da qual no entanto Ben se

apropriou imediatamente para cantar: "Ela é boa pra diacho, pra diacho,

pra diacho!" numa cadência animada, que ele marcava batendo com o

punho no braço de Mary.

Os olhos de Mrs. Garth voltavam-se agora para seu marido, já mer-

gulhado fundo na leitura da carta. Seu rosto tinha uma expressão de

grave surpresa, que a alarmou um pouco, mas ele não gostava de ser

MIMUMARCH
427

interrompido por perguntas ao ler, e ela se manteve ansiosa a observá-lo

até que o viu subitamente sacudido por uma risadinha feliz quando ele

voltou para o começo da carta e, olhando-a por cima dos óculos, disse

em voz baixa: "Que lhe parece, Susan?"

Ela foi ficar por trás dele, pondo-lhe a mão no ombro enquanto liam

juntos a carta. Era de Sirjames Chettam, oferecendo a Mr. Garth a admi-

nístração das propriedades da família em Freshitt e cercanias, e acres-

centando que Sir James fora solicitado por Mr. Brooke de Tipton a inda-

gar se Mr. Garth estaria disposto ao mesmo tempo a reassumir o coman-

do da propriedade de Tipton. O baronete acrescentava também, e em

termos muito gentis, que ele próprio tinha o particular desejo de ver as

propriedades de Freshitt e Tipton sob a mesma administração, e espera-

va ser capaz de mostrar que a dupla função poderia ser exercida em

termos interessantes para Mr. Garth, a quem ele teria o prazer de rece-

ber no castelo, no dia seguinte, às doze horas.

"Como ele escreve bem, não é, Susan?" disse Caleb, virando os olhos

para a esposa, que tirou a mão de seu ombro e a pôs na orelha dele,

enquanto apoiava o queixo em sua cabeça. "O Brooke em pessoa não

iria querer fazer-me o convite, já vi tudo," prosseguiu ele, rindo em si-

lêncio.

"Crianças, é uma honra para o seu pai i " disse Mrs. Garth, percorren-

do os cinco pares de olhos que se fixavam nos pais. "Ele é chamado para

reassumir um emprego pelos que tempos atrás o dispensaram. Isto mos-

tra que ele fazia bem seu trabalho, e estão sentindo sua falta.

" ComoCincinato - viva!" disse Ben, cavalgando sua cadeira com a

confortadora confiança de que a disciplina fora relaxada.

"Vão vir buscá-lo, mãe?" quis saber Letty, pensando no Prefeito e

nas Autoridades Municipais em suas vestes.

Mrs. Garth passou a mão na cabeça de Letty e riu mas, vendo que
seu marido ajuntava as cartas e provavelmente logo estaria fora de al-

cance no santuário dos "negócios," ela lhe deu uma espremida no om-

bro e disse enfaticamente:

"Pense bem em pedir um pagamento justo, Caleb."

440h, é claro!" disse Caleb, num profundo tom de assentimento, como

se fosse ilógico esperar dele outra coisa. "Devem dar de quatrocentas a

quinhentas libras, as duas juntas." Depois, com um ligeiro sobressalto de

recordação, acrescentou: "Mary, faça uma carta e desista dessa escola. Fique

aqui para ajudar sua mãe. Estou feliz como Polichinelo, só em pensar."

Nenhuma aparência lembraria menos a de Polichinelo triunfante que

a de Caleb, cujo talento não estava porém em fazer frases, se bem ele

428

GEORGE ELIOT

fosse muito cuidadoso ao redigir suas cartas e considerasse a própria

esposa um tesouro da linguagem correta.

Entre as crianças houve então uma ameaça de algazarra, e Mary em

súplica ergueu para sua mãe o bordado de cambraia, a fim de o pôr fora

de alcance enquanto seus irmãos a arrastavam numa dança. Mrs. Garth,

em plácida alegria, começou a recolher pratos e xícaras, enquanto Caleb

arredava sua cadeira da mesa, como se fosse passar para a escrivaninha,

mas continuava sentado: segurando na mão direita suas cartas, ele olha-

va meditativamente para o chão e ia esticando os dedos. da esquerda,

segundo uma linguagem muda que lhe era típica. Por fim disse:

" uma pena que o Christy não seja dado aos negócios, Susan. Logo,

logo, vou precisar de ajuda e o Alfred deve ir para a aprendizagem de

engenharia - já me decidi quanto a isto." De novo ele meditou e incor-

reu na retórica dos dedos, antes de prosseguir: - "Vou propor ao Brooke

fazer novos acordos com os rendeiros, e vou estabelecer uma rotação de


lavouras. E aposto que se pode conseguir bons tijolos com o barro tira-

do lá pros lados de Bott. Tenho de pensar a respeito: as reformas, com

isto, sairiam mais baratas.  um belo trabalho, Susan! Um homem sem

família ficaria feliz de o fazer por nada."

"Não caia nesta porém," disse-lhe, de dedo em riste, a esposa.

"Não, não; mas é coisa muito boa de acontecer a um homem já

enfronhado na natureza do trabalho ter a oportunidade de dar um jeito

num pedaço de terra, como eles dizem, e de orientar os homens em sua

prática agrícola, conseguir levantar algumas construções bem concebi-

das e sólidas - para o bem dos que estão vivos e dos que virão no

futuro. Prefiro isto a uma fortuna. Para mim é o trabalho mais honroso

que existe." Aqui Caleb colocou as cartas na mesa, enfiou os dedos por

entre os botões de seu colete e sentou-se todo aprumado, para declarar

com a voz timbrada de respeito e a cabeça em lenta inclinação para um

lado: " uma grande dádiva de Deus, Susan."

"Serri dúvida alguma, Caleb," disse sua esposa, fervorosa na respos-

ta. "E será uma bênção para os seus filhos ter tido um pai que fez este

trabalho: um pai cujo bom trabalho fica, ainda que seu nome possa ser

esquecido." Depois disto, era impossível que ela voltasse a lhe falar do

salário.

No entardecer, quando Caleb, algo cansado da labuta do dia, senta-

va-se calado com sua caderneta de anotações nos joelhos, enquanto Mrs.

Garth e Mary faziam suas costuras e, num canto, Letty mantinha com

sua boneca um sussurante diálogo, Mr. Farebrother apareceu pelo cami-

nho do pomar, dividindo com os tufos de grama e os galhos de macieira

MIDDLEMARCH

429

as luzes e sombras muito intensas de agosto. Como sabemos, ele gosta-


va de seus paroquianos, os Garths, e havia pensado que valia a pena

mencionar Mary a Lydgate. Usava ao máximo seu privilégio de clérigo

de ignorar a discriminação social em Middemarch, e sempre dizia à sua

mãe que Mrs. Garth era uma senhora mais fina que muitas madarnes da

cidade. Apesar disto, vejam só, passava suas noites na residência dos

Vincys, onde a madame, embora menos fina, presidia a um salão com

muitas luzes e uíste. Nestes dias as relações humanas não eram determi-

nadas apenas por respeito. Mas o Pastor respeitava sinceramente os

Garths, e uma visita dele não chegava a constituir surpresa para a famí-

lia. Entretanto, para explicá-la, foi logo dizendo, nisto que cumprimen-

tava os presentes: "Venho como emissário, Mrs. Garth: tenho uma coisa

sobre o Fred Vincy para dizer à senhora e ao Garth. O fato é que o pobre

rapaz," continuou, sentando-se e dirigindo seu olhar muito forte aos

três que o ouviam, "me confidenciou seus problemas."

O coração de Mary bateu um pouco mais rápido: ela se perguntava

quão longe teriam ido as confidências de Fred.

"Não o vemos há meses," disse Caleb. "Eu nem sequer imaginava o

que foi feito dele."

"Esteve fora fazendo uma visita," disse o Pastor, "porque o tempo

em sua casa tinha esquentado um pouco demais, e Lydgate falou para

sua mãe que ainda era cedo para o pobre coitado começar a estudar. Mas

ontem ele apareceu e se abriu comigo. Acho ótimo que o tenha feito,

porque o vi crescer desde os quatorze anos, e lá com eles me sinto tão

em casa que as crianças para mim são como sobrinhos. O caso é dificil de

aconselhar. Mas, seja como for, ele me pediu para dizer-lhes que está de

partida, mas sofre tanto com a dívida que tem com vocês, e a incapacida-

de em que se encontra de saldá-la, que não agüentaria nem mesmo vir

fazer pessoalmente suas despedidas."

"Tois diga-lhe que isto já não significa nada," disse Caleb, agitando

a mão. "Nós passamos pelo aperto e o superamos. E eu agora vou ser

rico como um judeu."


"O que quer dizer," disse Mrs. Garth, sorrindo para o Pastor, "que

vamos ter o suficiente para educar os meninos bem e manter a Mary em

casa."

"E onde foi descoberto o tesouro?" disse Mr. Farebrother.

"Vou ser encarregado de duas propriedades, Freshitt e Tipton; e tal-

vez também de um belo pedacinho de terra em Lowick: em tudo há as

mesmas ligações de família, e o trabalho flui como água depois que a

gente o inicia. Estou muito feliz, Mr. Farebrother," - aqui Caleb jogou

430

GEORGE ELIOT

um pouco para trás a cabeça e esticou bem os braços nos braços da

cadeira - Me ter de novo uma oportunidade de lidar com a terra e pôr

em prática uma ou duas idéias de melhoria.  de fazer mal à gente, e

muito, como eu vivo dizendo para a Susan, ir montado a cavalo e ver por

cima das sebes que as coisas andam erradas, sem poder meter o dedo

para endireitá-las. Não consigo imaginar o que fazem as pessoas que

vão para a política: eu já fico quase louco só de ver a má administração

por aí numas centenas de acres."

Era raro Caleb aventurar-se a uma fala tão longa, mas sua felicidade

tinha o efeito do ar das montanhas: seus olhos brilhavam muito, e as

palavras lhe vinham sem esforço.

"Minhas mais sinceras congratulações, Garth," disse o Pastor. " a

melhor notícia que eu poderia ter para levar ao Fred Vincy, pois ele insis-

tia muito no mal que lhes tinha feito ao forçá-los a desembolsar um di-

nheiro - roubando vocês, segundo disse - que pretendiam destinar a

outros fins. Se o Fred não fosse o mandrião que é, eu ficaria muito conten-

te; ele tem alguns pontos ótimos, e o pai o trata com excessiva dureza."

"Para onde ele está indo?" disse Mrs. Garth, com certa frieza.
"Vai tentar colar grau de novo, e está indo preparar-se para o início

das aulas. Fui eu que o aconselhei a fazê-lo. Não insisto com ele para

entrar para a Igreja - pelo contrário. Mas, se realmente ele for para

estudar e passar, já dará certa garantia de que tem energia e força de

vontade; o fato é que embarcou na onda; não sabe que outra coisa fazer.

Por ora há de agradar ao pai, e eu prometi que entrementes tentaria

sensibilizar o Vincy para a idéia de seu filho seguir alguma outra carreira.

O Fred diz com franqueza que não tem vocação para ser pastor, e eu

faria qualquer coisa que pudesse para impedir um homem de dar o pas-

so fatal de escolher a profissão errada. Ele repetiu para mim o que a

senhorita lhe disse, Miss Garth - lembra-se?" (Mr. Farebrother costu-

mava dizer "Mary" ao invés de "Miss Garth," mas era parte de sua deli-

cadeza tratá-la com maior deferência desde que, segundo a frase de Mrs.

Vincy, ela trabalhava para ganhar seu pão.)

Mary sentiu-se pouco à vontade, mas, determinada a abordar o as-

sunto de leve, respondeu de imediato: "Eu já disse tanta coisa impensa-

da para o Fred - nossa amizade vem de tanto tempo!"

"A senhorita disse, segundo palavras dele, que ele seria um desses

pastores ridículos que contribuem para tornar o próprio clero ridículo.

Foi realmente tão feriria que eu mesmo me senti arranhado."

Caleb riu. "Foi de você, Susan, que ela herdou esta língua," disse

ele, não sem certo regozijo.

19

MIDDLEMARCH

431

cgMas não a leviandade, meu pai," disse Mary com presteza, temen-

do que sua mãe se ofendesse. "E não fica nada bem para o Fred repetir a
Mr. Farebrother minhas frases levianas."

"Foi certamente uma frase irrefletida, minha filha," disse Mrs. Garth,

para quem falar mal de dignitários era um grave delito. "Não devemos

subestimar o nosso Pastor se por acaso na paróquia vizinha houver um

coadjutor que é ridículo."

"No que ela disse há porém alguma coisa," disse Caleb, não queren-

do que a agudeza de Mary fosse menosprezada. "Um mau trabalhador,

em qualquer área, coloca seus colegas sob suspeita. As coisas andam

juntas," acrescentou ele, olhando para o chão e mexendo com os pés

sem jeito, sob a impressão de que as palavras eram mais limitadas que o

pensamento.

-"Claro," disse o Pastor, achando graça. "Sendo desprezíveis, nós afi-

namos pelo tom do desprezo a mente humana. Certamente concordo

com o modo de ver de Miss Garth, quer eu seja condenado por ele ou

não. já no tocante ao Fred Vincy, seria de todo justo desculpá-lo um

pouco: o comportamento enganoso do velho Featherstone contribuiu

para estragá-lo. Não lhe deixar afinal nem um centavo foi coisa bem

diabólica. Mas o Fred tem o bom gosto de não insistir neste assunto. E

o que mais o preocupa é que a tenha ofendido, Mrs. Garth; ele acha que

a senhora nunca mais pensará bem dele."

"O Fred me decepeionou," disse Mrs- Garth, com decisão. "Mas es-

tarei pronta a pensar bem dele de novo quando ele me der boas razões

para isto."

Neste ponto Mary saiu da sala, levando Letty consigo.

"Oh, devemos perdoar os jovens quando eles se arrependem," disse

Caleb, vendo Mary fechar a porta. "E, como diz o senhor, Mr. Farebrother,

era o próprio diabo que estava naquele velho. Agora que a Mary já se

foi, devo-lhe dizer uma coisa - que só eu e a Susan sabemos, e o senhor

não há de repetir. O velho patife, na própria noite em que morreu, que-

na que a Mary queimasse um dos seus testamentos, quando só ela esta-

va à sua cabeceira, e ofereceu-lhe para o fazer uma quantia em dinheiro


que ele tinha num baú a seu lado. Mas a Mary, entende, não podia fazer

uma coisa dessas - não iria tocar no cofre de ferro dele, nem nada. Pois

agora fique sabendo que o testamento que ele queria queimar era o

último, e assim, se a Mary houvesse cumprido seu desejo, o Fred Vincy

teria tido dez mil libras. No fim o velho se voltou para ele. Tudo isto

comove a Mary muito; não havia outro jeito - ela foi corretíssima ao

fazer o que fez, mas ficou com a forte impressão, como ela mesma diz,

432

GEORGE ELIOT

de ter despojado alguém de seus bens, contra a própria vontade, quando

estava apenas e acertadamente se defendendo. Como, de certo modo,

eu compartilho desta impressão, ficaria muito contente se pudesse fazer

alguma coisa pelo pobre rapaz, ao invés de guardar ressentimento pelo

problema que ele criou para nós. Qual a sua opinião, Pastor? A Susan

não concorda comigo. Ela diz que - bem, diga você mesma, Susan."

"Mary não poderia agir de outra maneira, nem se ela estivesse sa-

bendo quais seriam as consequencias para o Fred," disse Mrs. Garth,

interrompendo seu trabalho e olhando para Mr. Farebrot , her. "E ela não

sabia de nada. Uma perda que atinge alguém porque nós agimos certo,

ao que me parece, não é para nos pesar na consciência."

O Pastor não respondeu logo, e Caleb disse: " a impressão. A me-

nina ficou com esta impressão, e eu compartilho do que ela sente. Nin-

guém quer que seu cavalo esmague um cachorro, quando o faz retroce-

der no caminho; mas, quando isto acontece, puxa, como dói!"

"Estou certo de que nisto Mrs. Garth há de concordar com você,"

disse Mr. Farebrother, que por alguma razão parecia mais inclinado a ru-

minar que falar. "Dificilmente se poderia dizer que a impressão sobre o

Fred é errada - ou melhor, falsa - embora ninguém deva querer tê-la."


"Bem, bem," disse Caleb; "isto é um segredo. O senhor não dirá ao

Fred."

"Certamente que não. Mas vou levar-lhe a outra boa notícia - que

você tem como agüentar a perda que foi causada por ele."

Mr. Farebrother saiu logo depois da casa e, vendo Mary no pomar

com Letty, foi dizer-lhe adeus. As duas formavam um belo quadro na

luz crepuscular que realçava o brilho das maçãs nos velhos galhos qua-

se sem folhas - Mary no seu vestido roxo riscadinho e com fitas pretas

segurando uma cesta, enquanto Letty numa roupa surrada de algodão

amarelo ia apanhando as maçãs caídas. Se você quiser saber mais exa-

tamente como era Mary na aparência, há uma chance em dez de que

veja um rosto como o dela na rua cheia amanhã, se lá se puser à esprei-

ta: ela não estará entre essas filhas de Sion tão altivas que andam de

pescoço esticado e têm os olhos lascivos, requebrando-se ao passa-

rem: deixe que estas se afastem, e ponha os olhos numa pessoinha

arnorenada e roliça, de postura firme e serena, que olha à volta de si

mas não supõe que haja alguém olhando-a. Se ela tiver o rosto grande

e a testa quadrada, sobrancelhas bem marcadas, o cabelo preto e cres-

po, certa expressão de regozijo no olhar, o segredo do qual sua boca

guarda, e no mais uns traços totalmente insignificantes - tome essa

pessoa comum mas não desinteressante por um retrato de Mary Garth.

MIDDLEMARCH

433

Caso você a faça rir, ela há de lhe mostrar que tem dentinhos perfeitos;

caso a ponha zangada, não há de erguer a voz, mas é provável que diga

uma das coisas mais amargas que você já tenha provado; caso lhe faça

uma gentileza, ela nunca esquecerá. Mary admirava o Pastor, bonito,

baixo, de rosto forte, de roupas batidas mas sempre bem escovadas,


mais que qualquer homem que já tivera ocasião de conhecer. Nunca o

ouvira dizer uma coisa tola, embora ela soubesse que ele fazia tolices;

e talvez as frases tolas fossem mais objetáveís para ela do que qual-

quer das insensatas ações de Mr. Farebrother. Era de se notar, pelo

menos, que as imperfeições concretas do caráter clerical do Pastor nunca

pareceram despertar-lhe o mesmo desagrado e desprezo que ela antes

mostrara pelas imperfeições previstas no caráter clerical vinculado a

Fred Vincy. Estas irregularidades de julgamento, imagino eu, encon-

tram-se até mesmo em espiritos mais maduros que o de Mary Garth:

nossa imparcialidade é mantida por mérito e demérito abstratos que

nenhum de nós nunca viu. Há de alguém adivinhar por qual desses

homens tão diferentes Mary sentia sua peculiar ternura de mulher? -

por aquele com o qual se inclinava a ser severa, ou o contrário?

"Tem algum recado para o seu velho amigo, Miss Garth?" disse o

Pastor, nisto que pegava uma cheirosa maçã da cesta que ela lhe esten-

dia e a punha no bolso. "Alguma coisa que abrande aquele impiedoso

julgamento? Vou estar com ele agora mesmo."

"Não," disse Mary, sorrindo e balançando a cabeça. "Se eu fosse

dizer que ele não seria ridículo como pastor, teria dito que seria alguma

coisa pior do que ridículo. Mas fico muito contente em saber que ele

parte para trabalhar."

"Por outro lado, se você não parte para trabalhar, sou eu que fico

muito contente. Minha mãe, tenho certeza, ficará feliz da vida se vier

visitá-la no presbitério: como sabe, ela adora conversar com gente jo-

vem, e tem muito o que contar sobre os velhos tempos. Seria realmente

uma bondade sua."

"Terei grande prazer, se puder," disse Mary. "Tudo de repente parece

bom demais para mim. Eu pensava que sempre seria parte de minha

vida sentir saudade de casa e, ao perder este motivo de queixa, sinto-me

um pouco vazia: suponho que isto servisse, em lugar do bom senso,

para encher minha mente?"


"Posso ir com você, Mary?" sussurrou Letty - criança das mais in-

convenientes, que ouvia tudo. Mas ela se tornou exultante quando Mr.

Farebrother a pegou pelo queixo e beijou-lhe a face - fato que ela con-

tou ao pai e à mãe.

434

GEORGE ELIOT

Quando o Pastor foi andando para Lowick, qualquer um que o ob-

servasse de perto poderia ter visto que, por duas vezes, ele deu de om-

bros. Penso que os raros ingleses que fazem este gesto nunca são pesadões

- por medo de algum exemplo esmagador em contrário, eu direi quase

nunca; geralmente têm bom temperamento e muita tolerância para com

os pequenos erros dos homens (inclusive eles próprios). De si para si o

Pastor ia travando um diálogo no qual se disse que provavelmente havia

algo mais entre Fred e Mary Garth do que a simples afeição de velhos

amigos, e retrucou com uma pergunta, se aquele pedaço de mulher não

seria um tanto precioso demais para um jovem cavalheiro tão cru. A

resposta a isto foi o primeiro dar de ombros. Depois ele riu de si mesmo

por provavelmente ter sentido ciúme, como se fosse um homem capaz

de se casar, o que, acrescentou, está tão claro como qualquer balancete

que eu não sou. Donde o segundo dar de ombros ter-se seguido.

O que dois homens tão diferentes um do outro podiam ver naquela

"mancha morena," como dizia Mary de si mesma? Certamente não era

sua singeleza o que os atraía (e que todas as jovens damas singelas se

previnam contra o perigoso encorajamento que a Sociedade lhes dá para

confiarem em sua falta de beleza). Um ser humano nesta nossa velha

nação é um todo maravilhoso, a lenta criação de uma longa troca de

influências; e o charme é um resultado de dois todos assim, o que ama e

o que é amado.
Quando Mr. e Mrs. Garth achavam-se sentados a sós, Caleb disse:

"Susan, adivinhe no que eu estou pensando."

"Na rotação de lavouras," disse Mrs. Garth, sorrindo para ele por

cima do seu tricô, "ou então nas portas dos fundos dos casebres de

Tipton."

"Não," disse Caleb, gravemente; "estou pensando que eu poderia

dar uma grande oportunidade ao Fred Vincy. O Christy se foi, o Alfred se

irá em breve, e só daqui a uns cinco anos o Jim estará na hora de come-

çar a trabalhar. Vou precisar de ajuda, e o Fred poderia vir e aprender o

funcionamento das coisas e agir sob minha orientação, e com isto talvez

se torne um homem útil, caso desista de ser pastor. Que lhe parece?"

"Acho difícil haver outra coisa honesta a que a família dele faça mais

objeções," disse sem hesitar Mrs. Garth.

"Que me importam as objeções que façam?" disse Caleb, com uma

firmeza que costumava mostrar sempre que tinha opinião formada. "O

rapaz é de maior idade e tem de ganhar seu pão. Tem bastante bom

senso, e é rápido; gosta de viver no campo, e eu acredito que faria um

perfeito aprendizado, se realmente se interessasse pelo trabalho."

MIDDLEMARCH

435

"E iria ele? O pai e a mãe queriam-no um cavalheiro distinto, e creio

que o mesmo tipo de sentimento o possui. Todos eles nos julgam abaixo

de seu nível. E eu estou certa, se partir de você esta proposta, que Mrs.

Vincy vai dizer que nós queremos o Fred para a Mary."

"Que história mais sem graça é a vida, se se resolve por absurdos do

gênero," disse Caleb, desgostoso.

"Sim, mas há um orgulho que é adequado, Caleb."

"Pois eu considero orgulho inadequado deixar que idéias de tolos


nos impeçam de fazer uma boa ação. Não há espécie de trabalho," disse

Caleb, com fervor, estendendo a mão e movendo-a para cima e para

baixo como a marcar sua ênfase, "que jamais possa ser bem feita se se

der importância ao que os tolos dizem. O que é preciso é convicção de

que o plano que se tem está certo, e urge segui-lo."

"Não me hei de opor a nenhum plano que você tenha em mente,

Caleb," disse Mrs. Garth, que era uma mulher firme, mas sabia da existên-

cia de pontos nos quais seu meigo marido era ainda mais firme. "Mesmo

assim, parece já estar decidido que o Fred volta para a faculdade: não seria

melhor esperar e ver o que depois disto ele resolve fazer? Não é fácil

segurar as pessoas se elas não estão com vontade. E você ainda nem sabe

direito em que situação vai ficar, nem sabe do que irá precisany)

", talvez seja melhor esperar um pouco. Mas que eu vou ter muito

trabalho para dois, não tenho dúvida. Vivi sempre com as mãos cheias

das questões mais diversas, e sempre está aparecendo uma coisa nova.

Pois é, ainda ontem - espero que esta eu não lhe tenha contado! - foi

meio estranho que dois homens me chamassem cada qual de seu lado

para eu fazer a mesma avaliação. E quem você pensa que eram?" disse

Caleb, pegando uma pitada de rapé para mantê-la erguida entre os de-

dos, como se fosse parte de sua exposição. Ele gostava de fungar quando

lhe vinha a idéia, mas em geral não se lembrava de que esta indulgência

estava sob seu comando.

Sua esposa pousou no colo o tricô e olhou com toda a atenção.

"Bem, um era esse Rigg, ou Rigg Featherstone. Mas o primeiro foi o

BuIstrode, e é para este portanto que eu fazer o trabalho. Mas se é de

hipoteca ou de compra que se trata lá entre eles, ainda não posso dizer."

"Será que este homem já vai vender as terras que acabou de herdar

- e das quais tomou o nome?" disse Mrs. Garth.

"Só o diabo sabe," disse Caleb, que nunca atribuía o conhecimento

de feitos desonrosos a potências mais altas que o diabo. "Mas há tem-

pos que o BuIstrode vem querendo deitar mãos num bom pedaço de
terra - disto sei eu. E não é coisa fácil de arranjar, nesta parte do país."

436

GEORGE ELIOT

Caleb espalhou com todo o cuidado seu rapé, ao invés de aspirá-lo,

e então disse: "Os vaivéns da sorte são curiosos. Cá temos as terras que

o tempo todo eles contavam que seriam do Fred, quando parece que o

velho nunca pensou em deixar-lhe nem um palmo sequer, destinadas a

este filho bastardo que ele mantinha na sombra e que nelas se instalan-

do, conforme deve ter pensado, iria aborrecer todo mundo tal qual faria

ele mesmo se pudesse continuar vivo. Seria engraçado, digo eu, se afinal

estas terras fossem parar nas mãos do BuIstrode. O velho o detestava, e

nunca quis trabalhar com seu banco."

"Que razão podia ter a miserável criatura para detestar um homem

com o qual não mantinha nenhum trato?" disse Mrs. Garth.

"Bah! de que adianta indagar pelas razões desses camaradas? A alma

de um homem," disse Caleb, com o tom profundo e a grave inclinação

de cabeça que sempre lhe vinham quando ele usava esta frase - "a alma

de um homem, quando apodrece mesmo, espalha à sua volta todos os

tipos de cogumelos venenosos, e olho algum consegue ver de onde pro-

cedem eles."

Era uma das esquisitices de Caleb que, em sua dificuldade de dar

voz a seu pensamento, ele se apropriava, por assim dizer, de rasgos de

dicção que associava a diferentes pontos de vista ou estados de espírito;

sempre que sentia medo, era invadido por um jorro de fraseologia bíbli-

ca, embora mal pudesse fazer uma citação correta.

CAPITULO XLI
"By swaggering could 1 never thrive,

For the rain it raineth every day."

- TweIfth Night.

€Tu não podia vicejar com bazófias,

Pois a chuva chovia a cada dia.")

- A noite de Reis."

AS TRANSA€õES A QUE Caleb Garth se referiu, e que estariam sendo

efetuadas entre Mr. BuIstrode e Mr. Joshua Rigg Featherstone em rela-

ção às terras vinculadas a Stone Court, já haviam ocasionado de fato a

troca de algumas cartas entre estes dois personagens.

Quem há de prever o efeito de um escrito? Se por acaso ele foi grava-

do em pedra, ainda que fique séculos de face para baixo numa praia

deserta, ou que "repouse em silêncio sob os tambores e tropéis de nu-

merosas conquistas," pode terminar por revelar-nos o segredo de

usurpações e outros escândalos que eram motivo de bisbilhotices sobre

antigos impérios: - sendo aparentemente este mundo uma galeria cir-

cular por onde os sons murmurados vão a grande distância. Tais condi-

ções se acham às vezes minuciosamente representadas em nosso exíguo

tempo de vida. Assim como a pedra em que pisam gerações de ignoran-

tes pode vir a cair, por um encadeamento de pequenos elos causais, nos

olhos de um erudito, graças a cujo empenho ela pode enfim fixar a data

de invasões e desvendar religiões, assim um pedaço de papel com tinta,

que serviu por longo tempo de calço ou para um inocente embrulho,

Me Shakespeare (Ato V, Cena 1, linhas 40O-401),

438
GEORGE ELIOT

pode enfim ser aberto justamente sob os olhos que têm conhecimento

bastante para o transformar na abertura de uma catástrofe. Para Urie11 a

observar o progresso da história planetária desde o Sol, qualquer um

dos resultados seria uma coincidência tão grande quanto o outro.

Tendo feito esta comparação algo pomposa, fico mais à vontade para

chamar atenção para a existência da plebe por cuja interferência, por

menos que nós gostemos disto, o curso do mundo é em grande parte

determinado. Decerto seria bom se pudéssemos contribuir para a redu-

zir em número, e algo talvez fosse factível para não lhe dar facilmente

ocasião à existência. Do ponto de vista social, joshua Rigg seria declara-

do por todos uma coisa supérflua. Mas aqueles que, como Peter

Featherstone, nunca tiveram uma cópia de si solicitada, são com efeito

os últimos a esperar por um tal pedido, seja em prosa ou em verso. A

cópia no caso tinha mais semelhança externa com a mãe, em cujo sexo a

aparência de sapo, associada a bochechas coradinhas e a uma figura bem

arredondada, são compatíveis com o grande encanto para uma certa or-

dem de admiradores. O resultado às vezes é um homem que tem cara de

sapo e não inspira desejo, decerto, a nenhuma ordem de seres inteligen-

tes. Ainda mais se de súbito ele é posto em evidência para frustrar ex-

pectativas alheias - justamente o aspecto mais baixo sob o qual uma

superfluidade social pode apresentar-se.

Mas as características plebéias de Mr. Rigg Featherstone eram to-

das do tipo sóbrio, que só bebe água. Da primeira à última hora do dia

ele estava sempre lustroso, limpo e frio como o sapo com o qual se

parecia, e o velho Peter havia rido às escondidas com esse rebento

quase mais calculista, e muito mais imperturbável, do que ele mesmo,

Devo acrescentar que suas unhas eram primorosamente tratadas e sua

pretensão casar-se com uma senhorita bem educada (não se sabendo


ainda qual) que fosse também boa pessoa e tivesse, numa sólida pers-

pectiva de classe média, vínculos familiares incontestáveis. Suas unhas

e modéstia eram pois comparáveis às da maioria dos nossos cavalhei-

ros; muito embora sua ambição fosse de formação limitada pelas opor-

tunidades que tem um contador e escriturário nas menores firmas co-

merciais de um porto de mar. Ele achava os Featherstones, gente do

campo, muito simples e absurdos; estes, em contrapartida, considera-

vam sua "criação" numa cidade portuária como um exagero da mons-

truosidade que era o mano Peter, e ainda mais a propriedade de Peter,

terem de ter tais pertences.

"No Paradise Lost, de Milton, Uriel é o regente do Sol.

MIDDLEMARCH

439

O jardim e o caminho de cascalho, tal como vistos das duas janelas

da sala com lambris de madeira de Stone Court, nunca haviam conheci-

do melhor estado que agora, quando Mr. Rigg Featherstone, de pé e

com as mãos cruzadas por trás, divisava estes domínios como seu se-

nhor.  porém duvidoso se ele apenas olhava para fora pelo prazer da

contemplação, ou se para dar as costas a uma pessoa que se achava bem

no meio da sala, com as pernas consideravelmente apartadas e as mãos

nos bolsos da calça: uma pessoa que sob todos os aspectos contrastava

com o lustroso e frio Rigg. Era um homem obviamente a caminho dos

sessenta anos, cabeludo e flórido, com as bastas costeletas e a espessa

cabeleira anelada já bem grisalhas, um corpo robusto, que punha em

desvantajosa evidência as costuras meio gastas de suas roupas, e o ar de

um fanfarrão que tudo faria para ser notado, mesmo numa queima de

fogos, e para o qual suas próprias observações sobre o desempenho de

outras pessoas provavelmente eram mais interessantes que o desempe-


nho em si mesmo.

Seu nome era John Raffies, e ele às vezes, por brincadeira, escrevia

WA.G. depois de sua assinatura, comentando ao fazê-lo que quando

jovem fora aluno de Leonard Lamb, de Finsbury, o qual depois do pró-

prío nome escrevia B.A., e que com ele, Raffies, se originara a gracinha

de chamar de Ba-LambI o renomado diretor de escola. Tais eram a apa-

rência e o conteúdo mental de Mr. Raffies, ambos dando a impressão de

terem o odor mofado dos quartos para caixeiros -víajantes nos hotéis

comerciais do período.

"Vamos lá, Josh," dizia ele, num tom grave e retumbante, "veja bem

por este ângulo: sua pobre mãe que se embrenha pelo vale dos anos, e

você agora em condições de oferecer alguma coisa para garantir o con-

forto dela."

"Não enquanto o senhor for vivo. Nada há de garantír-lhe o conforto

enquanto o senhor for vivo," retrucou Rigg, em sua voz fria e alta. "O

que eu der para ela, o senhor toma."

"Você tem mágoas contra mim, Josh, eu sei. Mas falando francamen-

te - de homem para homem - sem farsa - um pequeno capital me

permitiria fazer do meu negócio uma coisa de grande categoria. O co-

mércio de tabaco está crescendo. Seria uma besteira danada se disto eu

não tirasse o melhor proveito possível. Tenho de estar sempre à altura

da situação, grudado nas oportunidades como uma pulga. E nada have-

10 substantivo wag define uma pessoa vadia ou metida a engraçada; BA é o

título do bacharel

em artes; Lamb é Cordeiro.

440

GEORGE ELIOT
ria de deixar sua pobre mãe mais feliz. já vivi muito bem minha mocida -

de - já fiz cinqüenta e cinco anos. Estou querendo sossegar no meu

cantinho à lareira. E eu, se estiver bem preparado para negociar com

tabaco, posso fazer pesar neste comércio um tirocínio e experiência que

não são fáceis de encontrar por aí na mesma proporção. Não quero ter

de incômodá-lo toda vez que for preciso, mas sim pôr as coisas para

sempre no canal certo. Pense nisto, Josh - de homem para homem - e

na tranqüilidade de sua pobre mãe por toda a vida. Eu sempre gostei

muito da velha, por Júpiter!"

"O senhor já acabou?" disse Mr. Rigg, serenamente, sem deixar de

olhar pela janela.

"Sim, eu acabei," disse Raffies, apanhando seu chapéu, que estava

diante dele na mesa, e dando-lhe uma espécie de tapinha retórico.

"Pois então me ouça. Quanto mais o senhor diz uma coisa, menos

eu acredito. Quanto mais queira que eu faça alguma coisa, mais razões

terei eu de a não fazer jamais. Pensa que pretendo esquecer dos ponta-

pés que me dava quando eu era criança, e de que comia o que havia de

melhor longe de minha mãe e de mim? Pensa que me esqueço de o ver

sempre entrando em casa para meter tudo no bolso e vender e sumir de

novo deixando-nos no maior aperto? Minha mãe foi uma louca com o

senhor: ela não tinha o direito de me dar um padrasto, e foi punida por

isto. Ela vai receber toda semana um dinheiro para se manter, e mais

nada: e esta ajuda será interrompida se o senhor ousar por os pés aqui

de novo, ou se voltar a andar pela região à minha procura. Da próxima

vez em que aparecer dentro dos meus portões, saiba que será expulso

pelos cachorros e a chicotadas do cocheiro."

Ao pronunciar as últimas palavras, Rigg se virou e olhou para Raffies

com seus proeminentes olhos gelados. O contraste era tão marcante

quanto poderia ter sido dezoito anos antes, quando Rigg era um rapazola

nada atraente, que bem pedia uns pontapés, e Raffies era o Adônis já

meio barrigudo das tabernas e reservados. A vantagem agora porém es-


tava com Rigg, e ouvintes desta conversa poderiam ter esperado que

Raffies se retirasse com o ar de um infeliz derrotado. De modo algum.

Ele fez foi a careta que lhe era usual sempre que ficava "por baixo"

nalgum jogo; depois desatou numa gargalhada e tirou do bolso um fras-

co de conhaque.

"Vamos, Josh," disse ele, num tom de adulação, "dê-nos então um

pouco de conhaque e um soberano para pagar minha viagem de volta,

que eu vou-me embora. Palavra de honra! Vou partir como uma bala, por

Júpiter.

MIDDLEMARCH

441

"Lernbre-se," disse Rigg, puxando um molho de chaves, "que, se eu

voltar a vê-lo algum dia, não falarei com o senhor. Não o reconheço mais

do que se visse um corvo; e o senhor nada conseguirá, se quiser reconhe-

cer-me, a não ser a reputação de ser o que é - um velhaco malévolo,

descarado e fanfarrão."

"Pois é uma pena, Josh," disse Raffies, fingindo que coçava a cabe-

ça e erguia as sobrancelhas como se estivesse embaraçado. "Eu gosto

muito de você; por Júpiter, como gosto! Não há nada de que eu goste

tanto como lhe atormentar - você é tão parecido com a sua mãe! já

que agora vou ser privado disto, o conhaque e o soberano são uma

barganha."

Ele aí levou o frasco à frente mostrando-o, e Rigg se aproximou com

suas chaves de uma antiga e bonita escrivaninha em carvalho. Mas Raffies

foi advertido por seu movimento com o frasco de que este já ameaçava

soltar-se do revestimento de couro e, vendo um papel dobrado caído no

guarda-fogo da lareira, apanhou-o e fez um calço com ele para firmar o

frasco no couro.
A essa altura Rigg já voltava com uma garrafa de conhaque, encheu

o frasco e deu a Raffies a moeda de uma libra, mas sem olhar para ele

nem dizer-lhe nada. Após trancar novamente a escrivaninha, andou até

a janela e pôs-se a olhar para fora, do mesmo modo impassível como o

fizera no início da conversa, enquanto Raffies já dava uma bicada no

frasco, antes de o arrolhar e guardar no bolso corri uma lentidão provo-

cante, e uma careta pelas costas do enteado.

"Adeus, Josh - e então para sempre!" disse Raffies, virando só a

cabeça quando ele abriu a porta.

Rigg viu-o sair da propriedade e pegar seu caminho. Do dia cinzento

acabara resultando uma garoa fina que molhava as cercas-vivas e as beí-

ras verdes das estradinhas, e apressava os lavradores, ainda às voltas

com seus últimos montões de milho. Raffies, andando todo desajeitado

como um estróina urbano que é obrigado a vencer a pé uma distância no

campo, parecia tão incongruente naquela úmida atmosfera rural de tran-

qüilidade e labor como se fosse um babuírio fugido de uma coleção de

animais. Mas não havia ninguém para olhar para ele, a não ser os bezer -

ros já desmamados, e ninguém para mostrar desagrado pela sua aparên-

cia, a não ser os ratinhos-d"água que fugiam à sua aproximação.

Quando já estava na estrada principal ele teve a sorte de ser alcança-

do pela diligência, que o transportou até Brassing; e de lá prosseguiu

pela recém-concluída estrada de ferro, observando aos passageiros em

torno que a seu ver o trem agora estava no ponto, depois do que tinha

442

GEORGE ELIOT

feito com Huskisson.I Mr. Raffies, na maioria das ocasiões, sentia-se

como se tivesse sido educado numa academia e fosse capaz de causar

boa impressão por toda parte, a seu bel-prazer; com efeito, não havia
um só de seus semelhantes que ele não se considerasse em condições de

ridicularizar e atormentar, confiante na diversão que assim propiciaria

ao restante da companhia.

E desempenhou agora este papel com a mesma animação que teria

se a sua viagem de fato houvesse sido um sucesso, apelando a freqüen-

tes intervalos para seu frasco. O papel com o qual fizera um calço para

ele era uma carta assinada Nicholas Bulstrode, mas Raffies não tinha por

que removê-lo de sua presente e útil posição.

10 primeiro morto num acidente de trem na Grã-Bretanha, em 15 de setembro de

1830.

CAPÍTULO XLII

"How much, methinks, 1 could despise this man,

Were 1 not bound in charity against it!"

- SHAKESPEARE: Henry VIII.

("Como, creio, eu desprezaria este homem,

Não me impedisse a tanto a caridade!")

- SHAKESPEARE: Henrique VIII.1

UmA DAs cDAs profissionais a que Lydgate atendeu logo depois de

ter voltado da viagem de núpeias foi a Lowick Manor, em decorrência de

uma carta em que lhe era solicitado marcar hora para sua visita.

Mr. Casaubon nunca fizera a Lydgate nenhuma pergunta concernente

à natureza de sua doença, nem jamais tinha mostrado, sequer para

Dorothea, a menor ansiedade em saber quão grave ela poderia tornar-se

para interromper seus trabalhos ou sua vida. Neste ponto, como em


todos os outros, ele se esquivava à compaixão; e, se a suspeita de dar

pena por alguma coisa em seu fado, presumida ou sabida malgrado sua

intenção, era amarga, a idéia de suscitar mostras de compaixão, admi-

tindo com franqueza um sofrimento ou uma apreensão, era-lhe forçosa-

mente intolerável. Todo espírito orgulhoso conhece algo desta experiên-

cia, e talvez apenas para ser dominado por um senso de companheírismo

suficientemente profundo para fazer com que todos os esforços de isola-

mento pareçam triviais e vis ao invés de exaltadores.

Mas Mr. Casaubon andava agora cismarento, sobre uma coisa com a

qual a questão de sua vida e saúde assombrava seu silêncio com uma

"Ato 111, Cena 2, linhas 298-299.

444

GEORGE ELIOT

importunação que o inquietava ainda mais que a imaturidade outonal

de sua condição de autor. Verdade é que esta última poderia ser tomada

por sua principal ambição; mas há alguns tipos de autoria nos quais de

longe o maior resultado é a incômoda susceptibilidade acumulada na

consciência do autor - reconhece-se o rio por uns poucos sulcos em

meio a desagradáveis depósitos de lama acumulados de há muito. Tal

era o trajeto dos árduos labores intelectuais de Mr. Casaubon. Seu resul-

tado mais característico não era a "Chave de Todas as Mitologias," mas

uma consciência mórbida de que os outros não lhe davam. o lugar que

ele não havia demonstravelmente merecido - uma perpétua e suspei-

tosa conjectura de que as opiniões mantidas a seu respeito não lhe eram

nada vantajosas - uma melancólica ausência de paixão em seus esfor-

ços de realização e uma resistência apaixonada à confissão de que ele

não tinha realizado nada.


Assim sua ambição intelectual, que aos outros parecia tê-lo absorvi-

do e secado, realmente não o punha a salvo de feridas, sobretudo se

estas partissem de Dorothea. E agora ele havia começado a vislumbrar

possibilidades para o futuro que lhe eram de algum modo mais amargas

ainda do que tudo em que seu espírito se detivera antes.

Era indefeso contra certos fatos: contra a existência de Will Ladislaw,

sua desafiadora permanência nas vizinhanças de Lowick e seus modos

desrespeitosos em relação a quem possuía uma erudição autêntica e bem

cunhada: contra a natureza de Dorothea, que sempre tomava alguma

nova forma de ardente atividade e mesmo em submissão e silêncio con-

tinha férvidas razões nas quais pensar era irritante: contra certas noções

e gostos que se haviam apossado da mente dela em relação a temas que

ele não podia absolutamente discutir com ela. Não havia como negar

que Dorothea era uma jovem dama virtuosa e amável, a melhor para ele

conseguir como esposa; mas uma jovem dama revelava-se algo mais

perturbador do que ele havia imaginado. Ela cuidava dele, lia para ele,

previa suas necessidades e era solícita em relação a seus sentimentos;

mas na cabeça do marido havia entrado a certeza de que ela o julgava, e

de que sua devoção de esposa era como uma expiação penitente de pen-

samentos incrédulos - acompanhava -se de um poder de comparação

pelo qual ele e seus feitos eram vistos com excessiva clareza como parte

das coisas em geral. Seu descontentamento passava vaporosamente atra-

vés de todas as doces manifestações de amor de Dorothea, e aderiam

àquele mundo indiferente que ela apenas pusera mais perto dele.

Pobre Mr. Casaubon! Seu sofrimento era mais duro de suportar por-

que parecia ser uma traição: a jovem criatura que o havia adorado com

MIDDLEMARCH

445
uma confiança completa transformara-se rapidamente na esposa crítica;

e os primeiros exemplos de critica e ressentimento tinham causado uma

impressão que nenhuma ternura ou submissão posterior poderia apagar.

Pela interpretação suspeitosa dele, o silêncio de Dorothea agora era uma

rebelião reprimida; uma observação dela que de algum modo ele não

previsse era uma afirmação de superioridade consciente; suas respostas

gentis traziam em si uma irritante prudência; e, quando ela aquiescia,

era um esforço de tolerância pelo qual ela mesma se felicitava. A tenaci-

dade com a qual ele lutava para ocultar esse drama interior tornava-o

para ele mais vívido; como ouvimos com mais acuidade o que queremos

que os outros não ouçam.

Ao invés de eu me espantar com as conseqüências da desdita de Mr.

Casaubon, tomo-as por muito comuns. Uma manchinha muito próxima

à visão não borra a glória do mundo, deixando apenas uma margem pela

qual vemos o borrão? Não sei de mancha mais perturbadora que o ser. E

quem, se Mr. Casaubon resolvesse expor seus descontentamentos -

suas suspeitas de não mais ser adorado sem críticas - poderia negar

que eles se fundamentavam em boas razões? Pelo contrário, havia uma

forte razão a ser acrescentada, que ele mesmo não havia tomado explici-

tamente em conta - qual seja, a de ele não ser de todo adorável. Sus-

peitava disto, contudo, como suspeitava de outras coisas, sem o confes-

sar, e como o resto de nós sentia quão consolador seria ter um compa-

nheiro que nunca o descobrisse.

Esta dorida susceptibilidade em relação a Dorothea já estava total-

mente preparada antes de Will Ladislaw ter regressado a Lowick, e o

que desde então ocorrera havia colocado o poder de construções sus-

peitosas de Mr. Casaubon em exasperada atividade. A todos os fatos

que já conhecia ele somou fatos imaginários, quer presentes, quer fu-

turos, que para ele se tornavam mais reais do que aqueles, porque

suscitavam uma aversão mais forte, um amargor mais predominante. A

suspeita e ciúme das intenções de W111 Ladislaw, a suspeita e ciúme


das impressões de Dorothea estavam constantemente a tecer seu tra-

balho. Seria injusto para com ele supor que pudesse ter partido para

qualquer interpretação grosseira e falsa de Dorothea: seus próprios

hábitos de pensar e conduzir-se, tanto quanto a aberta elevação da

natureza dela, poupavam-no de um tal erro. Ele tinha ciúme das opi-

niões, da inclinação que poderia ser dada aos julgamentos do espírito

ardente de sua esposa, e das possibilidades a que estes eventualmente

a levariam. No tocante a Will, muito embora nada tivesse de concreto,

até sua última carta desafiadora, para alegar contra ele, sentia-se justi-

446

GEORGE ELIOT

ficado na crença de que era capaz de qualquer desígnio que pudesse

fascinar um temperamento rebelde e uma impulsividade indisciplinada.

Estava certo de que Dorothea era a causa do regresso de Will de Roma,

e da determinação dele de se fixar nas vizinhanças; e ia tão fundo a

ponto de imaginar que Dorothea havia inocentemente encorajado este

plano. Tão claro quanto possível ela estava disposta a se ligar a Will e

dobrar-se a sugestões que partissem dele: eles nunca tinham tido um

tête-à-tête sem que daí ela voltasse trazendo alguma nova impressão

perturbadora, e a última entrevista de que sabia Mr.. Casaubon

(Dorothea, voltando de Freshitt Hall, havia pela primeira vez silencia-

do sobre ter visto Will) tinha levado a uma cena que lhe despertou

contra ambos um sentimento ainda mais raivoso que tudo que ele sen-

tira antes. O extravasamento, na escuridão da noite, das idéias de

Dorothea sobre o dinheiro não servira senão para incutir no espírito de

seu marido uma mistura de presságios mais odiosos.

E o choque que havia abalado a saúde dele, não fazia muito, man-

tinha-se tristemente presente em seu espírito. Decerto ele estava muito


melhor; já havia recuperado sua capacidade habitual de trabalho: a

doença bem que podia ter sido mera estafa, como podia à sua frente

ainda haver vinte anos de realizações, que justificariam os trinta de

preparo. Esta perspectiva era tornada mais doce por um sabor de vin-

gança contra as expressões escarninhas e apressadas de Carp & Com-

panhia; pois, enquanto Mr. Casaubon avançava com sua lamparina

por entre as tumbas do passado, estas figuras modernas vinham de

través pela pouca luz e interrompiam sua exploração diligente. Conven-

cer Carp de seu engano, obrigando-o a comer suas próprias palavras

com uma boa indigestão, seria um agradável momento da autoria

triunfante, que a perspectiva de viver pelo futuro na Terra e por toda

a eternidade no céu não podia excluir de contemplação. Posto que,

assim, a previsão de sua felicidade infinita não podia anular os sabo-

res amargos do ciúme e rancor que se exacerbavam, surpreende me-

nos que a probabilidade de uma felicidade terrena transitória para

outras pessoas, quando ele mesmo já ingressasse na glória, não tives-

se um efeito potencialmente adoçante. Na hipótese de ser verdade

que alguma solapante moléstia atuava em seu organismo, haveria uma

boa oportunidade para que certas pessoas se sentissem mais felizes

quando ele tivesse partido; e era tão forte a objeção de Mr. Casaubon

à idéia de que uma dessas pessoas fosse Will Ladislaw, que chegava a

parecer que este incômodo se tornaria parte de sua existência desen-

carnada.

MIDDLEMARCH

447

Mas este é um modo muito simples e portanto muito incompleto de

colocar as coisas. A alma humana move-se por numerosos canais, e Mr.

Casaubon, como sabemos, tinha um senso de retidão e um honroso or-


gulho em satisfazer as exigências da honra, que o compeliam a encontrar

outras razões para sua conduta que não as do ciúme e rancor. Foi o

seguinte o modo como Mr. Casaubon colocou as coisas:

"Desposando Dorothea Brooke era obrigação minha pensar em seu

bem-estar caso eu venha a falecer. Mas não é a posse ampla e independen-

te de bens que há de garantir bem-estar; pelo contrário, podem surgir

ocasiões em que esta posse a exponha a um perigo maior. Ela é presa fácil

para qualquer homem que saiba como atingir com habilidade seu ardor

afetuoso ou seu entusiasmo quixotesco; e há um homem por perto com

esta intenção na cabeça - um homem cujo único princípio são seus capri-

chos fugazes e que tem uma animosidade pessoal para comigo - estou

certo disto - uma animosidade que é alimentada pela consciência de sua

ingratidão e que ele põe constantemente em expressões de ridículo, das

quais estou tão seguro como se as tivesse escutado. Mesmo que eu viva,

não o farei sem intranqüilidade quanto ao que ele possa tentar por influ-

ência indireta. Este homem já conquistou o ouvido de Dorothea; fasci-

nou-lhe a atenção; evidentemente tentou impressionar seu espírito com a

idéia de que tem direitos além de tudo o que eu fiz por ele. E se eu morrer

- e ele está aqui à espera disto - vai persuadi-la a se casar com ele. Para

ela, uma calamidade; para ele, o sucesso. Ela não acharia uma calamidade:

ele a faria crer em qualquer coisa; ela tem tendência a uma ligação

imoderada, no íntimo me reprova por não corresponder a isto, e já se

preocupa com o destino dele. Ele pensa numa conquista fácil e em se

enfiar no meu ninho. Mas isto é que eu não vou permitir! Um tal casa-

mento seria fatal para Dorothea. Alguma vez, a menos que fosse por con-

tradição, persistiu ele nalguma coisa? Sempre procurou ser brilhante sem

fazer grande esforço, no tocante ao conhecimento. E em religião poderia

ser, enquanto isto lhe conviesse, um eco fácil para as divagações de

Dorothea. O conhecimento superficial já se dissociou. alguma vez da falta

de firmeza? Desconfio profundamente da moralidade dele, e é meu dever

impor uma barreira à realização de seus desígnios."


As disposições feitas por Mr. Casaubon quando de seu casamento

deixavam-lhe aberto o caminho para medidas drásticas, mas refletindo

sobre elas sua mente inevitavelmente se detinha tanto nas suas próprias

probabilidades de vida que o desejo de ter a avaliação mais fiel se sobre-

pôs afinal às hesitações orgulhosas, determinando-o a pedir a opinião

de Lydgate sobre a natureza da doença.

448

GEORGE ELIOT

Ele havia comunicado a Dorothea que Lydgate viria às três e meia

para a visita marcada em casa, e em resposta a uma aflita pergunta dela,

se ele havia passado mal, respondeu: "Não, só quero saber o que ele

pensa de alguns sintomas habituais. Você não precisa estar com ele, que-

rida. Darei ordens para que vá encontrar-me na alameda do Teixo, onde

farei meu exercício de praxe."

Quando Lydgate entrou na alameda do Teixo, viu Mr. Casaubon

que se afastava lentamente com as mãos cruzadas nas costas, como era

seu hábito, e de cabeça inclinada para a frente. Era uma tarde admirá-

vel; folhas das tílias altaneiras silenciosamente caíam por entre as sem-

pre-verdes sombrias, enquanto luzes e sombras dormiam lado a lado:

não se ouvia barulho, senão o grasnar das gralhas, que para o ouvido

acostumado é uma canção de ninar ou este último e solene acalento,

um canto fúnebre. Lydgate, consciente de estar na flor dos anos e cheio

de energia, sentiu certa compaixão quando a figura que ele já ia ultra-

passar se virou e, avançando lentamente em sua direção, mostrou mais

acentuadamente que nunca os sinais de velhice prematura - os om-

bros curvados do estudioso, os membros descarnados, as linhas me-

lancólicas da boca. "Coitado," pensou ele, "há homens de sua idade

que ainda são uns leões; não se pode saber quantos anos têm, apenas
que são adultos."

"Mr. Lydgate," disse Mr. Casaubon, com seu ar invariavelmente

polido, "fico-lhe imensamente grato por sua pontualidade. Poderemos

conversar, se o senhor não se importa, enquanto vamos por aqui cami-

nhando."

"Espero que seu desejo de me ver não se deva a um retorno de desa-

gradáveis sintomas," disse Lydgate, após uma pausa.

"Não - não diretamente. A fim de justificar tal desejo devo mencio-

nar - pois de outro modo seria inútil falar-lhe - que minha vida, insig-

nificante em todos os aspectos colaterais, deriva uma eventual impor-

tância de trabalhos inacabados que se estenderam por seus melhores

anos. Em suma, de há muito deitei mãos a uma obra que eu me resigna-

ria a deixar pelo menos em estado de ser mandada à impressão por -

outros. Tendo eu a garantia de que isto é o máximo com que posso

realmente contar, tal garantia será útil para circunscrever meus esforços

e guiar-me na determinação tanto positiva quanto negativa de minhas

atitudes."

Mr. Casaubon fez aqui uma pausa, tirou uma de suas mãos das

costas e enfiou-a entre os botões de seu paletó não trespassado. Para

um espírito largamente instruído no destino humano, pouca coisa se-

MIDDLFMARCH

449

ria mais interessante do que o conflito interior subentendido em seu

discurso medido e formal, feito com a cadência e os meneios de cabeça

usuais. Ora, haverá muitas situações mais sublimemente trágicas do

que a luta da alma com a demanda de renunciar a uma obra que foi

toda a sígníficação de sua vida - uma significação que há de desapare-

cer como há águas que vêm e vão por onde ninguém precisa delas?
Mas em Mr. Casaubon nada havia que aos outros parecesse sublime, e

Lydgate, bastante desdenhoso da erudição fútil, sentiu uma vontade

de rir que se misturava com a pena. Ele estava por ora muito mal

enfronhado na desgraça para entender o que há de patético num desti-

no onde tudo está abaixo do nível da tragédia, a não ser o apaixonado

egoísmo do sofredor.

"O senhor se refere aos possíveis obstáculos por falta de saúde?"

disse ele, desejoso de ajudar Mr. Casaubon a vencer a hesitação, que

parecia paralisá-lo, para chegar a seu objetivo.

"Sim. O senhor nunca me deu a entender que os sintomas que -

forçoso me é reconhecê-lo - observou com tanto escrúpulo fossem de

uma doença fatal. Mas se assim fosse, Mr. Lydgate, eu desejaria saber a

verdade sem reservas, e apelo para que me faça um relato exato de suas

conclusões: peço-o como um serviço de amigo. Se puder dizer-me que

minha vida não se acha ameaçada por nada mais que os acidentes co-

muns, hei de rejubilar -me, pelos motivos que indiquei ainda há pouco.

Se não, o conhecimento da verdade é ainda mais importante para mim."

"Então não posso mais hesitar em minha atitude," disse Lydgate;

umas primeiro devo convencê-lo de que minhas conclusões são dupla-

mente incertas - incertas não só por causa de minha falibilidade, mas

também porque as doenças cardíacas são particularmente difíceis de

permitir previsão. Seja como for, mal se pode aumentar apreciavelmente

a tremenda incerteza da vida."

Mr. Casaubon deu a perceber que estremecia, mas inclinou-se.

"Eu acredito que o senhor esteja sofrendo do que é chamado de

degeneração adiposa do coração, doença descoberta e por primeiro

estudada por Laennec,1 o homem que nos deu o estetoscópio, não faz

assim tanto tempo. O assunto ainda requer mais acúmulo de experiên-

cia - e observações mais detidas. Mas, depois do que o senhor disse,

é meu dever comunicar-lhe que muitas vezes esta doença provoca

morte súbita. Ao mesmo tempo, não se pode prever tal conseqüên-


cia. Seu estado pode ser compatível com uma vida razoavelmente

"Renê Laennec (1781-1826), cardiologista francês.

450

GEORGE Ei,iOT

tranqüila por uns quinze anos ainda, ou mesmo mais. Eu não poderia

acrescentar outras informações a isto, além de detalhes anatomicos

ou médicos que iriam deixar sua expectativa exatamente no mesmo

ponto."

O instinto de Lydgate foi suficientemente apurado para dizer-lhe

que a linguagem direta, totalmente livre de ostentatória cautela, seria

sentida por Mr. Casaubon como um tributo de respeito.

"Agradeço-lhe muito, Mr. Lydgate," disse Mr. Casaubon, após mo-

mentânea pausa. "Tenho ainda uma coisa a perguntar: o senhor comuni-

cou a Mrs. Casaubon o que me está dizendo agora?"

"Em parte - ou seja, quanto às possíveis eventualidades." Lydgate

já ia explicar o que havia dito a Dorothea, mas Mr. Casaubon, com ine-

quívoco desejo de pôr fim à conversa, esboçou com a mão um aceno e

disse de novo: "Agradeço-lhe muito," daí partindo para referir-se à bele-

za rara do dia.

Lydgate, certo de que seu paciente queria ficar sozinho, deixou-o

logo; e a figura negra de mãos nas costas e cabeça caída continuou a

vagar pela alameda onde os escuros teixos faziam-se de muda compa-

nhia para sua tristeza, enquanto as sombras de passarinho ou folha que

vagavam por entre as ilhas de sol iam passando por ele no mais comple-

to silêncio, como em presença de uma dor. Aqui estava um homem que

se via pela primeira vez olhando a morte nos olhos - que estava pas-

sando por um desses raros momentos da experiência quando sentimos a


verdade de um lugar-comum, que é tão diferente do que julgamos ser

conhecê-lo como a visão das águas sobre a terra é diferente da visão

delirante da água que não pode ser tida para esfriar a língua ardente.

Quando o lugar-comum "Todos temos de morrer um dia" subitamente

se transforma na consciência aguda "Eu estou para morrer - e em bre-

ve," a morte então nos agarra, e seus dedos são cruéis; depois, pode vir

a nos tomar em seus braços como o fez nossa mãe, e nosso último mo-

mento de obscuro discernimento terreno pode ser como o primeiro. Para

Mr. Casaubon agora, era como ele se achar de repente na beira escura do

rio e ouvir o bater do remo a aproximar-se, não discernindo as formas,

mas aguardando o chamado. Numa tal hora o espírito não se desvia de

sua inclinação de toda a vida, mas leva-a em imaginação para o outro

lado da morte e olha para trás - talvez com a divina calma da benefi-

cência, talvez com as mesquinhas ansiedades da auto-afirmação. Os atos

de Mr. Casaubon é que nos dão uma pista para saber qual era sua incli-

nação. Com algumas eruditas e secretas reservas, ele acreditava ser um

cristão convicto, quer em face do presente, quer das esperanças futuras.

MIMUMARCH

451

Mas o que nós nos empenhamos por gratificar, ainda que o chamemos

de esperança remota, é um desejo imediato; o estado futuro pelo qual

nas vielas da cidade se afadigam os homens já existe em sua imaginação

e amor. E o desejo imediato de Mr. Casaubon não era pela comunhão

divina e a luz destituída das condições terrenas; seus apaixonados anseios,

pobre homem, mantinham-se baixa e nebulosamente apegados a luga-

res muito sombrios.

Dorothea, ao perceber que Lydgate já partia a cavalo, andou até o

jardim, movida pelo impulso de logo ir ter com seu marido. Mas hesi-
tou, temendo irritá-lo se o importunasse; pois seu ardor continuamente

repelido servia, com a forte memória, para aumentar seu medo, como a

energia frustrada se resolve em tremor; e assim ela se pôs lentamente a

rodear pelo arvoredo mais próximo até que o viu avançando. Dirigiu-se

então para ele, como se representasse um anjo vindo do céu com uma

promessa de que as breves horas remanescentes deveriam ser preenchi-

das por um amor fiel que se apegava ainda mais a um sofrimento com-

preendido. O olhar com o qual ele respondeu ao dela foi tão frio que

Dorothea sentiu sua timidez aumentando; não obstante virou-se e pas-

sou-lhe a mão pelo braço.

Mr. Casaubon, ainda de mãos cruzadas nas costas, mal deixou que o

braço dela, tão flexível, fosse aderir à rigidez do seu.

Havia algo horrível para Dorothea na sensação que esta dureza

indiferente lhe infligia. Palavra forte, mas decerto nem tanto: é nos

atos chamados de trivialidades que as sementes da alegria se estra-

gam para sempre, até que homens e mulheres olhem com faces con-

turbadas em torno para a devastação que seu próprio estrago fez e

digam que a terra não produz safras de doçura - intitulando sua

negação de conhecimento. Alguém pode perguntar por que, em nome

da masculinidade, Mr. Casaubon tinha de se comportar deste modo.

Considere então que seu espírito era do tipo que se esquiva à com-

paixão: você já notou, ao observar um desses espíritos, que o efeito

de uma suspeita que o oprime como uma dor pode na realidade ser

uma fonte de contentamento, atual ou futuro, para a pessoa que já

ofende por compadecer-se? Além do mais, ele pouco sabia das sensa-

ções de Dorothea, e não havia refletido que numa ocasião como esta

elas eram comparáveis pela intensidade aos seus próprios melindres

sobre as críticas de Carp.

Dorothea não retirou seu braço, mas também não se aventurava a

falar. Mr. Casaubon não dizia: "Quero ficar sozinho," mas dirigia seus

passos em silêncio para a casa, e quando eles entraram pela porta de


452

GEORGE ELIOT

vidro, que dava para este lado leste, Dorothea afinal puxou o braço e

deixou-se ficar um pouco de lado, para que o marido, por sua vez, ficas-

se bem à vontade. Ele entrou na biblioteca e trancou-se, sozinho com o

seu sofrimento.

Ela subiu para o seu boudoir. Aberta, a janela em torrinha deixava

entrar aquela glória serena da tarde na alameda, onde as tílias lançavam

longas sombras. Mas Dorothea nada percebia da cena. jogou-se numa

cadeira, nem reparando que se punha sob fortes raios de sol: se nisto

havia desconforto, como dizer-se ela que o mesmo não era parte de seu

próprio infortúnio?

Ela agia em reação a uma raiva rebelde, mais forte que nunca desde

o seu casamento. Ao invés de lágrimas, vieram-lhe palavras:

"Que foi que eu fiz - que sou eu - para que ele me trate assim?

Nunca ele sabe o que me passa pela cabeça - nunca se interessa em

saber. De que adianta eu fazer alguma coisa? Ele gostaria de nunca se ter

casado comigo."

Mas ela começou a se ouvir, e logo a dominou o silêncio. Como

alguém que cede ao cansaço após perder seu caminho, ali sentada ela

viu de um só relance todas as sendas de sua juvenil esperança que ja-

mais haveria de reencontrar. E com a mesma clareza, naquela luz desdi-

tosa, viu a solidão em que viviam ela e o marido - como eles andavam

à parte, sendo ela obrigada assim a examiná-lo. Se ele a tivesse puxado

para junto de si, ela nunca o teria examinado - nunca teria dito: "Vale a

pena viver por ele?" mas simplesmente o sentiria como parte de sua

própria vida. Agora disse amargamente: "A culpa é dele, não minha." No

seu ser todo em conflito, a Piedade foi destronada. Era culpa dela que
tivesse acreditado nele - acreditado em seu valor? - E o que, exata-

mente, ele era? - Ela estava em condições de estimá-lo - ela que trê-

mula aguardava seus olhares, que trancava na prisão o melhor de sua

alma, fazendo-lhe apenas umas visitas furtivas a fim de se tornar bem

insignificante para agradar ao marido.  numa crise como esta que algu-

mas mulheres começam a odiar.

O sol já estava baixo quando Dorothea decidiu não descer de novo,

mas sim mandar um recado comunicando ao marido que ela não se sen-

tia bem e preferia ficar em seus aposentos em cima. Nunca ela havia

permitido que o ressentimento a governasse assim deste modo, mas

agora acreditava que não poderia vê -lo outra vez sem lhe dizer a verda-

de sobre os seus sentimentos, e convinha-lhe esperar até que o conse-

guisse fazer sem interrupções. Ele talvez se surpreendesse e magoasse

com o recado dela. Era bom ele surpreender-se e magoar-se. Sua raiva

MIMUMARCH

453

lhe dizia, como é comum que a raiva o faça, que Deus estava com ela -

que todo o céu, com sua multidão de espíritos a observá -los, devia estar

do seu lado. Ela já havia resolvido que ia tocar a sineta, quando ouviu

uma batida na porta.

Mr. Casaubon mandava dizer que ia jantar na biblioteca. Ele queria

ficar sozinho esta noite, porque estava muito ocupado.

"Eu então não vou jantar, Tantripp."

"Oh, madame, posso trazer uma coisinha para a senhora então?"

"Não; não estou bem. Deixe tudo arrumado no meu quarto e, por

favor, não me perturbe mais."

Dorothea sentou-se quase imóvel em seu meditativo combate, en-


quanto o fim de tarde lentamente tendia à escuridão da noite. Mas seu

combate processava-se em contínua mudança, como o de um homem

que, após iniciar um movimento para dar um golpe, acaba por conquis-

tar a própria vontade de bater. A energia que ativaria um crime não é

mais que a necessária para inspirar uma submissão decidida, quando o

nobre hábito da alma se reafirma. Este pensamento com o qual Dorothea

havia saído para encontrar seu marido - sua convicção de que ele anda-

ra a informar-se sobre a possível interrupção de seu trabalho, e de que a

resposta deveria ter sido de lhe partir o coração, não poderia demorar a

erigir-se ao lado da imagem dele como um monitor taciturno olhando

com triste reprovação para sua raiva. Custou-lhe uma litania de soffi-

inentos retratados e de mudos prantos para poder condoer-se destes

sentimentos - mas por fim a decidida submissão chegou; e quando a

casa já estava quieta, e sabendo ela que era quase a hora habitual de Mr.

Casaubon se recolher, abriu a porta com cuidado e pelo lado de fora

ficou na escuridão à espera de que ele aparecesse na escada com uma

vela na mão. Se o não fizesse logo, pensava ela em descer e até em correr

o risco de suportar outra dor. já não contava aliás senão com isto. Mas

ouviu que a porta da biblioteca se abria, e a luz, sem barulho de passos

no tapete, lentamente veio avançando escada acima. Quando o marido

chegou à sua frente, ela viu que o rosto dele estava mais perturbado.

Ele, por vê-la, sobres saltou-se, e ela o olhou com ar de súplica, sem falar

nada.

"Dorothea!" disse ele, num tom de delicada surpresa. "Você estava

à minha espera?"

:,Estava sim, eu não queria incômodá-lo."

"Venha, minha querida, vamos. Você é tão jovem que não precisa de

vigílias para alongar sua vida."

454
GEORGE ELIOT

Quando a melancolia bondosa e calma desta frase bateu nos ouvi-

dos de Dorothea, o sentimento que ela teve foi como a gratidão que

pode ser despertada em nós quando por pouco escapamos de ferir uma

criatura já toda estropiada. Ela deu a mão ao marido, e pelo vasto corre-

dor os dois lá se foram juntos.

LiVRO V

A Mão do Morto

CAP44TULO XM1I

This figure hath high price: "twas wrought with love

Ages ago in finest ivory;

Nought modisli in it, pure and noble lines

Of generous womanhood that fits all time.

That too is costly ware; majolica

Of deft design, to please a lordly eye:

The smile, you see, is perfect - woriderfúl

As mere Faíence! a table ornament

To suit the richest mouriting.

("Grande valor tem a figura: foi talhada com amor,

Eras atrás, no melhor marfim;

Suas linhas puras e nobres, nada à moda,

De generosa feminilidade, aos tempos falam.

Isto também é louça rara; majólica

De fina execução que agrada a um lorde:

O sorriso é perfeito, como vêem - fantástico


Como a mera Faiança! um ornamento de mesa

Que arremata a mais rica arrumação.")

RAMMENTE DOROTHEA saía de casa sem seu marido, mas de vez em

quando ela tomava a carruagem para ir a Middemarch sozinha, fosse

para fazer umas compras, fosse em missão de caridade, como acontece

com qualquer senhora rica cuja casa diste da cidade uns cinco quilôme-

tros. Dois dias após a cena na alameda dos Teixos, ela resolveu aprovei-

tar uma dessas ocasiões para ver se era possível estar com Lydgate, e

dele saber se seu marido havia tido realmente uma mudança de sinto-

mas, que o deprimia e ele escondia dela, e se insistira em maiores infor-

mações sobre o seu caso. Sentia-se quase culpada de ir fazer a um outro

458

GEORGE ELIOT

indagações sobre ele, mas o medo de não ter esse conhecimento - o

medo dessa ignorância que a tornaria injusta ou dura - triunfou sobre

seus escrúpulos. Estava certa de que o espírito de seu marido havia atra-

vessado uma crise: já no dia seguinte ele dera início a um novo método

para classificar suas notas, associando-a de um modo também novo à

execução de seu plano. A pobre Dorothea precisou de acumular reservas

de paciência.

Eram quase quatro horas quando ela chegou à casa de Lydgate em

Lowick Gate, pensando, na dúvida instantânea de encontrá-lo ou não,

que deveria antes ter escrito. E ele de fato não estava.

"E Mrs. Lydgate está?" disse Dorothea, que não tinha lembrança de

já ter visto Rosamond, mas recordava-se agora do casamento dela. Sim,

Mrs. Lydgate estava em casa.

"Pois então vou falar com ela, se ela me permitir, Pergunte-lhe se


pode receber-me - receber Mrs. Casaubon por alguns minutos."

Quando a criada se afastou para levar o recado, Dorothea pôde ouvir

sons de música através de uma janela aberta - algumas notas de uma

voz de homem e depois um piano que prorrompia em volatas. Mas brus-

camente as volatas se interromperam, e a criada voltou para dizer que

seria um grande prazer para Mrs. Lydgate estar com Mrs. Casaubon.

Quando a porta da sala de visitas se abriu e Dorothea entrou, produ-

ziu-se uma espécie de contraste nada infreqüente na vida provinciana

quando os hábitos das diferentes classes se misturavam menos que hoje.

Que fique ao encargo de quem sabe, dizer-nos exatamente de que tecido

era a roupa que Dorothea usava nesses dias de meados do outono -

uma lãzinha fina e branca, macia para o tato e suave aos olhos. Sempre

parecia acabada de lavar, e recendia às doces sebes - seu modelo era

sempre o de uma capa comprida com mangas largas e já fora de moda.

Entretanto se ela tivesse entrado perante uma silenciosa audiência como

Imogene ou como a filha de Catão, sua roupa poderia parecer adequada:

dignidade e graça desciam-lhe pelo pescoço e os membros; e em volta

do cabelo simplesmente repartido e dos seus olhos cândidos, o grande

chapéu com pala arredondado, então imposto ao fado das mulheres,

não parecia mais estranho para cobrir a cabeça do que a bandeja doura-

da que nós chamamos de halo. Ante a presente audiência de apenas

duas pessoas, nenhuma heroína dramática teria sido aguardada com maior

expectativa do que Mrs. Casaubon. Para Rosamond ela era uma das di-

vindades do condado, que não se misturavam com os mortais de

Middiemarch e cujas menores particularidades, nas maneiras ou na apa-

rência, eram merecedoras de estudo; não pouca era a satisfação de

MIMUMARCH

459
Rosamond, por outro lado, com a oportunidade que Mrs. Casaubon te-

ria para estudar a ela. De que adianta ser requintado, se os melhores

juizes não nos vêem? e Rosamond, desde que em casa de Sir Godwin

Lydgate recebera os cumprimentos mais lisonjeiros, sentia-se muito con-

fiante na impressão que ela devia causar às pessoas bem nascidas.

Dorothea estendeu a mão com sua bondade costumeira e simples, e

olhou com admiração a jovem e encantadora esposa de Lydgate - cien-

te de que à distância havia um cavalheiro de pé, mas vendo-o tão-só,

num ângulo mais largo, como figura encasacada. O cavalheiro já estava

muito ocupado com a presença da primeira mulher para refletir sobre o

contraste entre as duas - um contraste que um observador calmo julga-

ria decerto bem marcante. Ambas eram altas, situando-se no mesmo

nível seus olhos; mas imagine a coroa maravilhosa de tranças e a lourice

nfantil de Rosamond, com seu vestido azul-pálido de caimento e corte

perfeitos que costureira alguma o poderia olhar sem emoção, uma

orme gola bordada cujo preço era de se esperar que todos os circuns-

tes soubessem, suas mãozinhas enfeitadas devidamente de anéis, e

ssas maneiras autoconscientes e controladas que são o dispendioso

bstituto da simplicidade.

"Muito obrigada por permitir-me incômodá-la," foi logo dizendo

orothea. "Estou ansiosa para falar com Mr. Lydgate, se possível, antes

e eu voltar para casa, e pensei que a senhora me diria onde posso

contrá-lo ou me permitiria esperá-lo, caso ele não demore."

"Ele está no Novo Hospital," disse Rosamond; "se pretende voltar

go, não sei muito bem. Mas posso mandar chamá-lo."

"Termite-me que eu vá buscá-lo?" disse Will Ladislaw, andando mais

a frente. Ele já havia apanhado o seu chapéu antes de Dorothea

trar. Surpresa, ela enrubesceu, mas cumprimentou-o corri um sorriso

prazer inequívoco, dizendo:

"Não sabia que era o senhor: não esperava encontrá-lo aqui."

"Posso ir ao Hospital e dizer a Mr. Lydgate que a senhora quer vê-


P" disse W111.

"Seria mais rápido mandar a carruagem ir apanhá-lo," disse Dorothea,

ie o senhor fizesse a bondade de dar este recado ao cocheiro."

Will já se movia para a porta quando Dorothea, a cuja mente acudi-

a de súbito várias memórias conectadas, virou-se rapidamente e dis-

"Eu mesma vou, muito obrigada. Não quero perder tempo antes de

ltar para casa. Irei até o Hospital, e lá mesmo eu falo com Mr. Lydgate.

culpe-me, Mrs. Lydgate. Fico-lhe muito agradecida."

-sSua mente fora evidentemente assaltada por algum brusco pensa-

460

GEORGE ELIOT

mento, e ela saiu da sala sem nem saber direito o que a rodeava de perto

- sem nem saber direito que Will abria a porta para ela e lhe dava o

braço para levá-la até a carruagem. Ela aceitou o braço, mas nada disse.

Will, sentindo-se contrariado e infeliz, nada encontrou para dizer tam-

bém. Em silêncio ele a ajudou a subir na carruagem, disseram-se adeus e

Dorothea partiu.

Nos cinco minutos que levou até o Hospital ela teve tempo para

algumas reflexões que lhe eram de todo novas. A decisão de ir ela mes-

ma, e sua preocupação em sair da sala, tinham vindo da repentina idéia

de que já seria um engano se por vontade própria cedesse a qualquer

novo contacto entre ela e Will que não lhe fosse possível mencionar ao

marido, e até sua errância à procura de Lydgate já era coisa escondida.

Isto era tudo o que estivera explícito em sua mente; mas um vago des-

conforto a impelira também. Agora que ela ia sozinha, ouviu as notas da

voz de homem e do piano que a acompanhava, para as quais na hora

não dera muita atenção, voltando-lhe à consciência alerta; e ela se viu a

pensar, não sem espanto, que Will Ladislaw passava um tempo com
Mrs. Lydgate na ausência de seu marido. Era impossível não lembrar

que com ela também ele já havia passado tempo nas mesmas circuns-

tâncias, por que então estranhar o fato? Mas Will, sendo parente de Mr.

Casaubon, era alguém com quem era de sua obrigação ser benevolente.

Houve todavia sinais, que ela deveria talvez ter captado, dando a enten-

der que Mr. Casaubon não gostava das visitas do primo em sua ausên-

cia. "Talvez eu me tenha enganado em muitas coisas," disse a pobre

Dorothea para si mesma, enquanto lhe rolavam lágrimas que foi preciso

enxugar às pressas. Sentia-se confusamente infeliz, e a imagem de Will,

antes tão clara para ela, turvara-se de um modo misterioso. Mas a carrua-

gem parou diante do portão do Hospital. Logo ela se pôs a andar com

Lydgate contornando o gramado, e seus sentimentos recuperaram a for-

te motivação que a tinham feito querer esta conversa.

Will Ladislaw, enquanto isso, se mortificava, e sabia claramente por

que razão. Suas chances de encontrar-se com Dorothea eram raras; e aqui

pela primeira vez tinha aparecido uma chance que o deixara em desvanta-

gem. Não só ela não estava sumamente interessada nele, como havia an-

tes estado, mas também o viu em circunstâncias nas quais ele podia pare-

cer não estar sumamente interessado nela. W111 sentia-se à distância, a

uma nova distância dela, ao se lançar nos círculos de Middemarch que

não faziam parte de sua vida. Ele porém não tinha culpa: desde que fixara

moradia na cidade, é claro, vinha fazendo o maior número de conhecidos

possível, já que a profissão lhe exigia conhecer tudo e todos. Nenhum

MIDDLEMARCH

461

outro morador das redondezas realmente merecia tanto ser conhecido

como Lydgate, que por acaso tinha uma esposa musical e que em tudo por

tudo merecia ser freqüentada. E aqui estava toda a história da situação em


que Diana baixou inesperadamente demais diante do adorador. Era mes-

mo de mortificar. Will tinha consciência de que não estaria em Middemarch

se não fosse por causa de Dorothea; a situação em que ele aí se encontra-

va, entretanto, ameaçava separá-lo dela pela barreira dos modos de sentir

arraigados, que são mais fatais para a persistência do interesse mútuo que

toda a distância entre Roma e a Grã-Bretanha. Era fácil desafiar os precon-

ceitos de classe e profissão vindos em forma de uma carta tirânica de Mr.

Casaubon; mas os preconceitos, como os corpos odoríferos, têm uma du-

pla existência, sólida e sutil - sólida como as pirâmides, sutil como o

vigésimo eco de um eco, ou a lembrança de jacintos que outrora perfuma-

vam a noite. E o temperamento de Will o induzia a sentir nitidamente a

presença de sutilezas: um homem de percepção menos apurada não teria

notado, como ele o fez, que pela primeira vez a idéia de certa inadequação

na perfeita liberdade ao tratá-lo aflorara à mente de Dorothea, e que o

silêncio de ambos, quando ele a conduziu para a carruagem, continha

certa frieza. Talvez Casaubon, com seu ódio e ciúme, tivesse convencido

Dorothea de que Will se pusera, na escala social, abaixo dela. Maldito

Casaubon!

Will retornou à sala de visitas, pegou seu chapéu e, irritado na apa-

rência enquanto andava em direção a Mrs. Lydgate, que se sentara à sua

mesa de trabalho, disse:

" fatal que a poesia e a música sejam sempre interrompidas. Posso

voltar outro dia, só para acabar de interpretar "Lungi dal caro bene"?I

"Oh, eu adoraria aprender," disse Rosamond. "Mas o senhor há

de convir que desta vez a interrupção foi linda. Admiro-o por suas

relações com Mrs. Casaubon. Ela é muito inteligente? Bem que pare-

ce ser."

"Na realidade eu nunca pensei nistof disse Will, amuado.

"Foi a mesma resposta que o Tertius me deu, quando perguntei se

ele a achava bonita. No que será então que vocês homens pensam, quando

estão com Mrs. Casaubon?"


"Nela mesma," disse Will, não se abstendo de provocar a atraente

Mrs. Lydgate. "Quando se vê uma mulher perfeita, nunca se pensa em

seus atributos - apenas se torna consciência da presença dela."

"Vou ficar com ciúme quando o Tertius for a Lowick," disse Rosamond,

"Em italiano no original: "Longe do meu bem."

462

GEORGE ELIOT

falando com a leveza do ar, e pondo suas covinhas à mostra. "Quando ele

voltar para casa, não serei ninguém para ele."

"Não parece ter sido este, até agora, o efeito sobre Lydgate. Mrs.

Casaubon é muito diferente das outras mulheres para que estas lhe se-

jam comparadas."

"O senhor, pelo que percebo, é um adorador fervoroso. Costuma ir

vê-la com freqüência?"

"Não," disse Will, já impaciente. "Em geral a adoração é mais uma

questão de teoria que de prática. Mas neste exato momento eu já estou

a praticá-la em excesso - tenho de me retirar realmente.32

"Venha de novo, por favor, uma noite dessas: Mr. Lydgate vai gostar

de ouvir a música, e eu, sem ele, nunca a aprecio tanto."

Quando seu marido voltou para casa, Rosamond disse, plantando-

se diante dele para alisar-lhe a gola do casaco: "Eu estava cantando com

Mr. Ladislaw quando Mrs. Casaubon veio aqui. Parece que ele ficou abor-

recido. Você acha que ele não gostou de que ela o visse em nossa casa?

Certamente nossa posição social é mais do que igual à dele - seja qual

for seu parentesco com os Casaubons."

"Não, não; deve ter sido uma outra coisa, se realmente ele se abor-

receu. Ladislaw é meio cigano; não faz distinção pela aparência."


"Música à parte, nem sempre ele é muito agradável. Você gosta dele?"

"Gosto: acho que ele é um bom camarada: meio uma miscelânea e

um bric-à-brac, mas gostável."

"Sabe, eu acho que ele adora Mrs. Casaubon."

"Pobre-diabo!" disse Lydgate, sorrindo e bulindo nas orelhas da es-

posa.

Rosamond sentia-se no início de uma aprendizagem da vida, espe-

cialmente por descobrir - o que em seus tempos de solteira lhe teria

sido inconcebível, a não ser numa obscura tragédia com indumentárias

de outras eras, - que as mulheres, mesmo depois de casadas, podem

fazer conquistas e escravizar os homens. As mocinhas provincianas da

época, ainda que educadas na escola de Mrs. Lemon, liam pouca litera-

tura francesa posterior a Racine, e a atual e magnífica iluminação da

imprensa sobre os escândalos da vida não havia sido lançada. Mesmo

assim a vaidade, com uma cabeça de mulher a trabalhar o dia todo por

ela, pode partir das sugestões mais ligeiras para erigir à larga suas cons-

truções, sobretudo se for a possibilidade de ilimitadas conquistas o

que lhe é sugerido. Que delícia fazer cativos do alto do trono do casa-

mento e com o marido como príncipe consorte a seu lado - ele mes-

mo de fato um súdito - enquanto os cativos erguem desesperançados

MIDDLEMARCH

463

seus olhos, perdendo provavelmente o sono e, se também o apetite,

melhor ainda! Mas o romantismo de Rosamond voltava-se agora mais

para o seu príncipe consorte, bastando-lhe desfrutar de sua sujeição

garantida. Quando ele disse: "Pobre-diabo!" ela perguntou, com joco-

sa curiosidade:

"Por quê?"
"Ora, o que pode um homem fazer, quando se torna de adoração por

uma dessas sereias que vocês são? Apenas se esquece do trabalho e de

pagar suas contas."

"Tenho certeza de que você não se esquece do seu trabalho. Está

sempre no Hospital, ou vendo pacientes pobres, ou pensando nalguma

briga de médicos; e depois, em casa, está sempre por conta do seu mi-

croscópio e seus frascos. Confesse que gosta mais destas coisas do que

de mim."

"Você não tem ambição suficiente para desejar que o seu marido

seja algo mais do que um médico de Middemarch?" disse Lydgate, dei-

xando que suas mãos caíssem sobre os ombros da esposa, e olhando-a

com afetuosa gravidade. "Vou-lhe ensinar meus versos favoritos de um

velho poeta:

"Why should our pride make such a stir to be

And be Jorgot? What good is like to this,

To do worthy the writing, and to write

Worthy the reading and the world"s delight?"

("Por que tanto se agita nosso orgulho em ser

E cair no olvido? Que melhor que fazer

O que é digno de ser escrito, e escrever,

Para o deleite do mundo, o que é bom de ler?)

O que eu quero, Rosy, é fazer o que é digno de ser escrito, - e

escrever eu mesmo o que eu fiz. E para isto um homem tem de trabalhar,

meu bem."

"Naturalmente desejo que faça descobertas: ninguém desejaria mais

que eu que conquistasse uma posição mais alta nalgum lugar melhor

que Middemarch. Você não pode dizer que eu já tenha tentado impedi-

lo de trabalhar alguma vez. Mas não podemos viver como ermitães. Por
acaso está descontente comigo, Tertius?"

"Não, querida, nem por sombra. Estou absolutamente contente."

464

GEORGE ELIOT

"Bem, e o que era que Mrs. Casaubon tinha para lhe dizer?"

"Apenas perguntar pela saúde do marido dela. Mas acho que ela vai

ser ótima para o nosso Novo Hospital: acho que nos dará duzentas li-

bras por ano."

CAPÍTULO XLIV

1 would not creep along the coast, but steer

Out in mid-sea, by guidance of the stars.

("Nunca rastejar pela costa, mas lançar-me

Para o meio do mar e por estrelas guiar-me.")

QUANDO SOUBE POR Lydgate, ao andar com ele por entre os pés de lou-

reiro plantados no jardim do Novo Hospital, que não havia nenhum

sinal de mudança no estado de saúde de Mr. Casaubon, além do sinal

mental de sua ansiedade em saber a verdade sobre sua doença, Dorothea

se calou por momentos, perguntando-se se teria dito ou feito alguma

coisa para despertar esta nova ansiedade. Lydgate, não querendo perder

uma oportunidade de introduzir um de seus temas diletos, aventurou-se

a dizer:

"Não sei se a senhora ou Mr. Casaubon já tiveram a atenção desper-

tada para as necessidades do nosso Novo Hospital. As circunstâncias

fazem com que seja quase um egoísmo de minha parte abordar este
assunto; mas não é culpa minha; é que está havendo uma luta contra

ele, travada pelos outros médicos. Creio que tais coisas, de modo geral,

lhe interessam, pois lembro-me de que, quando tive pela primeira vez o

prazer de a ver em Tipton Grange antes de seu casamento, a senhora me

fez algumas perguntas sobre a influência na saúde dos pobres de suas

condições deploráveis de moradia."

"Sim, de fato," disse Dorothea, animando-se. "Fico-lhe muito grata

se me disser como poderei ajudá-lo a melhorar as coisas um pouco. Des-

de que me casei, as oportunidades de atuação me escaparam. Quero

dizer," disse ela, após um momento de hesitação, "que as pessoas em

nossa aldeia vivem razoavelmente bem, e minhas preocupações sempre

466

GEORGE ELIOT

foram muitas para que eu pudesse pesquisar mais a fundo. Mas aqui -

num lugar como Middemarch - deve haver muita coisa por fazer."

"Está tudo por fazer," disse Lydgate, com abrupta energia. "E este

Hospital é uma obra de capital importância, totalmente devida aos es-

forços de Mr. BuIstrode e, em grande parte, ao seu dinheiro. Mas um

homem sozinho não pode fazer tudo num projeto desta envergadura.

Naturalmente ele esperava que lhe dessem apoio. Mas agora há uma

celeuma mesquinha e desprezível contra o Hospital na cidade, movida

por pessoas que querem que ele seja um fracasso."

"Que razões podem ter?" disse Dorothea, com uma surpresa naive.

"Principalmente a impopularidade de Mr. BuIstrode, para começar.

Metade da cidade se daria trabalho pelo simples prazer de contrariar

seus planos. Neste mundo estúpido, a maioria nunca acredita que uma

coisa boa possa ser feita senão pelo seu próprio grupo. Eu não mantinha

nenhuma relação com o BuIstrode antes de vir para cá. Olho-o de um


modo totalmente imparcial e vejo que ele tem suas idéias - que já fez

algumas coisas andarem - e que eu posso destiná-las para o bem de

todos. Se um razoável número dos homens mais bem educados fosse

trabalhar com a convicção de que suas observações poderiam contribuir

para a reforma da doutrina e prática médicas, logo veríamos uma mu-

dança para melhor. Este é o meu ponto de vista. Sustento que, recusan-

do-me a trabalhar com Mr. BuIstrode, eu deixaria de lado uma oportuni-

dade de tornar minha profissão, de modo geral, mais útil."

"Concordo totalmente com o senhor," disse Dorothea, de imediato

fascinada pela situação que as palavras de Lydgate delineavam. "Mas o

que há contra Mr. Buistrode? Sei que o meu tio é amigo dele."

"Sua entonação religiosa não agrada muito," disse Lydgate, inter-

rompendo-se nisto.

"Razão ainda mais forte para desdenhar a oposição que lhe fazem,"

disse Dorothea, olhando as questões de Midiemarch à luz das grandes

perseguições.

"Para falar com toda a franqueza, fazem-lhe outras objeções: ele é

autoritário e pouco sociável, e além disso lida com o comércio, que tem

lá suas queixas das quais eu nada entendo. Mas faz sentido pôr em dú-

vida, por causa disto, que seria uma boa coisa instalar aqui um hospital

superior a qualquer outro já existente no condado? O motivo imediato

da oposição, contudo, é o fato de o Buistrode ter posto em minhas mãos

a direção médica. E eu, é claro que estou contente. Para mim é uma

oportunidade de fazer um bom trabalho - e sei que eu tenho de cor-

responder à escolha feita por ele. Mas toda a classe médica de MiddIe-

MIDDLEMARCH

467

march, em conseqüência, armou-se de unhas e dentes contra o Hospital,


e não só se recusa a cooperar, como também tenta denegrir o projeto e

impedir contribuições."

"Quanta mesquinharia!" exclamou Dorothea, indignada.

"Suponho que só lutando é que alguém abre seu caminho: de outra

maneira quase nada se faz. E a ignorância das pessoas daqui é estupen-

da. Não pretendo senão ter aproveitado algumas oportunidades que não

estavam ao alcance de todos; mas não há como calar a ofensa de ser

jovem, e um recém-chegado, e por acaso saber um pouco mais que os

moradores antigos. Ainda assim, se me julgo capaz de estabelecer um

método de tratamento melhor - se me julgo capaz de prosseguir com

certas observações e pesquisas que poderão trazer um beneficio dura-

douro para a prática médica, só mesmo sendo um sujeito indigno, um

fraco, eu deixaria que qualquer consideração de conforto pessoal me

estorvasse. E o propósito é ainda mais claro porque, não havendo um

salário em questão, não há como pôr minha persistência sob uma luz

equívoca."

"Que bom que me contou tudo isto, Mr. Lydgate," disse Dorothea,

cordialmente. "Estou certa de que posso ajudar um pouco. Tenho algum

dinheiro, não sei o que fazer com ele - e muitas vezes me atormento

quando penso a respeito. Estou certa de que posso garantir duzentas

libras por ano para um nobre propósito como este. Como o senhor deve

sentir-se feliz, sabendo coisas das quais tem plena certeza que farão

grande bem! Quem me dera acordar cada manhã com este saber tam-

bém! São tantas as preocupações que nos tomam, ao que me parece,

sem que nem saibamos bem para quê!"

Quando Dorothea disse estas últimas palavras, havia em sua voz

uma cadência melancólica. Mas logo ela crescentou, mais animada: "Ve-

nha a Lowick, por favor, nos falar mais disto. Vou abordar o assunto com

Mr. Casaubon, mas agora tenho de correr para casa."

Abordou-o de fato ao cair da noite, e disse que gostaria de contri-

buir com duzentas libras por ano - ela tinha setecentas por ano como
o equivalente de sua própria fortuna, fixada para ela quando de seu

casamento. Mr. Casaubon não fez nenhuma objeção além de observar

que a quantia poderia ser desproporcional em relação a outros bons

objetivos, mas quando Dorothea, em sua ignorância, resistiu à suges-

tão, ele aquiesceu. Ele mesmo não ligava para gastar dinheiro, nem

tinha relutância em dá-lo. Se jamais alguma questão de dinheiro o in-

comodou, foi por meio de outra paixão que não o amor dos bens mate-

riais.

468

GEORGE ELIOT

Dorothea disse-lhe que havia estado com Lydgate, relatando o es-

sencial da conversa com ele sobre o Hospital. Mr. Casaubon não pergun -

tou. mais nada, mas ficou com a certeza de que ela tinha querido saber o

que se passara entre Lydgate e ele. "Ela sabe que eu se!," dizia dentro

dele a voz que não sossegava; mas este aumento de conhecimento tácito

só tomava menor o grau de confiança entre os dois. Ele desconfiava da

afeição dela; e que solidão é mais só que a desconfiança?

CAPÍTULO XLV

It is the humour of many heads to extol the days of their

forefathers, and declaim against the wickedness of times

present. Whích notwithstanding they cannot handsomely

do, without the borrowed help and satire of times past;

condemning the vices of their own times, by the expressions

of vices in times wich they commend, which cannot but

argue the community of vice in both. Horace, therefore,

Juvenal, and Persius, were no prophets, although their lines


did seem to indigitate and point at our times."

- SIR THOMAS BROWNE: Pseudodoxia Epidemica.

€" idéia que vem a muitas cabeças exaltar os dias de seus

antepassados, e deblaterar contra a ruindade dos tempos

presentes. Isto entretanto não podem fazer bem feito sem

recorrer à ajuda e sátira dos tempos passados; condenando

os vícios de seus próprios tempos pelas expressões dos ví -

cios nos tempos que enaltecem, o que apenas consegue

demonstrar em ambos a comunhão pelo vício. Horácio, por

conseguinte, juvenal e Pérsio não foram profetas, muito

embora seus versos parecessem indigitar e apontar para os

nossos tempos.")

- SIR THOMAS BROWNE: Pseudodoxía Epidemica.

A oposiçÃo Ao Novo HoSPrrAL DAs FEBREs, delineada por Lydgate a

Dorothea, era passível de ser vista, como todas as oposições, sob dife-

rentes aspectos. Ele a considerava uma mistura de inveja com preconcei-

tos estúpidos. Já Mr. BuIstrode aí via não só a inveja dos médicos, mas

também a vontade de contrariá-lo, alimentada sobretudo pelo ódio da-

470

GEORGE ELIOT

quela religião vital de que ele lutava para ser um ativo representante

leigo - um ódio que certamente encontrava seus pretextos à margem


da religião, sabido como é fácil descobri-los no emaranhado das ações

humanas. Tais seriam os aspectos, digamos assim, ministeriais. Mas as

oposições têm a seu comando um ilimitável espectro de objeções, que

não necessitam de parar de repente na fronteira do conhecimento, mas

podem ir-se arrastando para sempre pelas vastidões da ignorância. No

que a oposição dizia em Middemarch sobre o Novo Hospital e sua ad-

ministração havia certamente uma grande parte de eco, pois por prudên-

cia dos céus a nem todos foi dado o poder de engendrar; as diferenças

em causa representavam toda a gama social entre a polida moderação

do Dr. Minchin e a enérgica asserção de Mrs. Dollop, a proprietária do

Tankard, na Slaughter Lane.

Mrs. Dollop foi ficando cada vez mais convencida, por suas próprias

assertivas, de que o Doutor Lydgate pretendia deixar que as pessoas

morressem no Hospital, quando não envenená-las, para dissecar-lhes o

corpo sem dizer se tinha ou não permissão; pois era um "fato" sabido

que ele quis abrir Mrs. Goby, mulher tão respeitável quanto qualquer

outra da Parley Street e que tinha dinheiro à guarda antes de se casar -

triste história para um médico que, se servisse para alguma coisa, deve-

ria saber qual era o seu problema antes de você morrer, e não querer

escarafunchar seu corpo por dentro, depois de morto. Não sendo esta a

razão, Mrs. Dollop desejava então saber qual era; mas prevalecia na

audiência a impressão de que sua opinião era um baluarte e, se este

fosse derrubado, não haveria mais limites para a dissecação de corpos,

como se viu no sinistro caso de Burke e Harel - ninguém queria em

Middemarch um caso que terminasse na forca como este!

E não se pense que a opinião corrente no Tankard da Slaughter Lane

fosse desimportante para a profissão médica: esta antiga e autêntica ta-

berna - o Tankard original mais conhecido pelo nome de Dollop"s -

era o ponto de encontro de uma grande Associação de Beneficência, que

alguns meses antes havia posto em votação se seu médico de longo tem-

po, o "Doutor Gambit," não deveria ser substituído por "esse Doutor
Lydgate," que era capaz de realizar as curas mais espantosas e de salvar

pessoas já desenganadas por outros profissionais. Mas a decisão fora

contra Lydgate devido ao voto de dois membros, que achavam que seu

poder de ressuscitar pessoas dadas por mortas era uma recomendação

"Criminosos da década de 1820 na Grã-Bretanha, que asfixiavam suas vítimas e

vendiam o

corpos para dissecação.

MIDDLEMARCH

471

duvidosa, e poderia interferir com os desígnios da Providência. No de-

curso do ano, contudo, houve uma mudança no sentimento público, da

qual a unanimidade no Dollop"s era um índice.

Bem mais de um ano antes, quando ainda nada se sabia da capacida-

de de Lydgate, os julgamentos a seu respeito naturalmente se dividiam,

dependendo de um senso de semelhança, situado talvez na boca do es-

tômago ou na glândula pineal, e diferindo nos veredictos, mas não me-

nos valiosos como um guia no déficit total de evidências. Pacientes com

doenças crônicas ou cujas vidas vinham-se arrastando de há muito, como

o velho Featherstone, inclinaram-se de imediato a experimentá-lo; mui-

tos também, que não pagavam de bom grado as contas de seu médico,

julgaram oportuno abrir conta com um novo doutor e chamá-lo sem

cerimônia desde que o gênio das crianças precisasse de ser dosado, oca-

siões em que os velhos profissionais costumavam ser muito ríspidos; e

todos que assim se inclinavam a se tratar com Lydgate tomavam por

provável que ele fosse capaz. Alguns julgavam-no capaz de fazer mais

do que os outros "se fosse coisa de figado;" - não havia mal pelo me-

nos em conseguir uns frascos da "droga" dele, já que, se esta se mostras-


se ineficaz, sempre seria possível voltar para as Pílulas Purificativas, que

mantinham a gente viva, ainda que não removessem a amarelice. Mas

essas eram pessoas de menor importância. As boas famílias de Midde-

march naturalmente não iriam trocar de médico sem uma razão aparen-

te; e ninguém que houvesse sido cliente de Mr. Peacock se sentia obriga -

do a aceitar um recém-chegado só pelo fato de este ser seu sucessor, ga-

rantindo não ser provável "que ele se igualasse a Peacock."

Mas não fazia muito que Lydgate estava na cidade e já havia um

bom número de pormenores a seu respeito para aumentar ainda mais as

expectativas específicas e intensificar as diferenças em tomada de posi-

ção; sendo alguns dos pormenores daquela espécie impressiva cuja sig-

nificação se acha totalmente oculta, como uma quantidade estatistica

sem um padrão de comparação, mas com um ponto de exclamação no

fim. Os metros cúbicos de oxigênio anualmente engolidos por um ho-

mem adulto - que estremecimento poderiam ter causado nalguns cír-

culos de Middemarch! "O oxigênio! ninguém sabe o que possa ser isto

é de estranhar-se que o cólera tenha chegado a Dantzig? E ainda há

quem diga que a quarentena é inútil!"

Um dos fatos logo comentados era que Lydgate não receitava remé-

dios. Isto tanto ofendia os facultativos, cuja distinção exclusiva parecia

infringida, quanto os cirurgiões-boticários entre os quais ele próprio se

dassificava; pouco tempo antes, eles ainda contariam com a lei a seu

472

GEORGE ELIOT

lado contra um homem que, não sendo um médico formado em Lon-

dres, ousava pedir um pagamento sem dar remédios em troca. Mas

Lydgate não tinha tanta experiência assim para prever que seu novo

método iria ser para os leigos ainda mais ofensivo; e a Mr. Mawmsey,
um importante comerciante de secos e molhados do Mercado Central,

que, apesar de não ser seu paciente, lhe fez amavelmente uma pergunta

a respeito, ele teve a imprudência de dar uma explicação apressada e

popular de seus motivos, assinalando que o caráter dos profissionais

deveria enfraquecer-se, e que seria para o povo um malefic " io constante,

se seu único modo de obter pagamento por seu trabalho fosse fazerem

contas enormes por poções, pílulas e preparados.

" deste modo que médicos que trabalham duro podem tomar-se tão

perniciosos quanto charlatães," disse Lydgate, meio sem pensar. "Para ga-

nhar seu pão eles têm de encher de remédios os vassalos do rei; e é um tipo

ruim de traição, Mr. Mawmsey - isto mina o organismo de maneira fataV

Mr. Mawmsey era não só provedor dos indigentes (essa sua conver-

sa com Lydgate foi por causa de uma questão de pagamento externo),

mas também asmático, e tinha uma família que estava sempre aumen-

tando: assim, de um ponto de vista médico, e também do seu próprio,

era um homem importante; um excepeional comerciante, de fato, cujo

cabelo se dispunha qual flamejante pirâmide e cuja deferência de vare-

jista era do tipo cordial e incentivador - com cumprimentos jocosos e

certa premeditada abstinência em revelar toda a força do que lhe vinha à

cabeça. O modo amistoso e jocoso de Mr. Mawmsey lhe fazer a pergunta

foi que determinou o tom da resposta de Lydgate. Mas que os sábios se

previnam contra as explicações demasiado rápidas: elas multiplicam as

fontes de erro, aumentando o montante para quem calcula e certamente

há de se enganar.

Lydgate sorriu quando acabou de falar, pondo o pé no estribo, e Mr.

Mawmsey riu mais do que o faria se soubesse quem eram os vassalos do

rei, dando o seu "Bom-dia doutor, bom-dia doutor" com um ar de quem

via tudo bem claro. Mas na verdade ele ficara confuso. Durante anos

vivera pagando contas com itens rigorosamente especificados, e assim

por cada meia-coroa e dezoito pences estava certo de que alguma coisa

mensurável havia sido entregue. Fazia isto com satisfação, incluindo-o


entre suas responsabilidades como marido e pai, e considerando que

uma conta maior que o habitual era uma honraria digna de mencionar.

Havia ademais desfrutado, além do grande benefício dos remédios "para

si e a família," do prazer de formar um bom julgamento quanto a seus

efeitos imediatos, de modo a dar uma descrição inteligente para orientar

MIDDLEMARCH

473

Mr. Gambit - que na escala profissional vinha logo abaixo de Wrench

ou Toller e era particularmente estimado como parteiro; de sua capaci-

dade Mr. Mawmsey tinha a pior opinião possível em todos os outros

pontos, mas no tratamento, dizia ele sem relutar em voz baixa, punha o

Gambit acima de qualquer um.

Ali havia outras razões mais profundas do que a conversa superficial

de um novato, que pareceu ainda mais inconsistente na sala por cima do

armazém, quando referida a Mrs. Mawmsey, mulher acostumada a ser

tida em grande respeito como mãe fértil - em geral sob os cuidados

mais ou menos freqüentes de Mr. Gambit, e dada de quando em quando

a uns achaques que requeriam o Dr. Minchin.

"Então esse tal de Mr. Lydgate quer dizer que é inútil tomar remé-

dios?" disse Mrs. Mawmsey, que tinha a fala um pouco arrastada. "Pois

eu gostaria que ele me dissesse como eu me agüentaria na época da

Feira, se por um mês antes eu não tomasse os meus fortificantes. Pense

só, querida, no que tenho de fazer para agradar os fregueses!" - aqui

Mrs. Mawmsey virou-se para uma amiga íntima que se sentava a seu

lado - "um empadão de vitela - um filé recheado - carne enroladinha

- presunto, língua et cetera, et cetera! Mas o que mais me mantém de

pé é o preparado rosa, não o marrom. Muito me espanta, Mr. Mawmsey,

que, com sua experiência, tenha tido paciência de ouvir. Eu logo teria

dito a ele que já sabia um pouco das coisas."


"Não, não, não," disse Mr. Mawmsey; "eu não daria a ele minha

opinião. Ouvir tudo e julgar por si mesmo é o meu lema. Mas ele não

sabia com quem estava falando. De nada adiantava levantar o dedo para

mim. Muita gente às vezes pretende dizer-me coisas, quando poderiam

simplesmente afirmar. "Mawmsey, você é um tolo."Mas eu sorrio: eu sei

ser condescendente com o ponto fraco dos outros. Se os medicamentos

tivessem feito mal, a mim e à minha família, a essa altura eu já saberia."

No dia seguinte Mr. Gambít foi informado de que Lydgate andava

dizendo que os remédios eram inúteis.

" mesmo?" disse ele, erguendo as sobrancelhas com cautelosa sur-

presa. (Era um homem taludo e vigoroso, com um grande anel no quar-

to dedo.) "Mas como então vai curar seus pacientes?"

" isto o que eu me pergunto," replicou Mrs. Mawmsey, que habitu-

almente carregava nos pronomes para dar peso às frases. "Por acaso ele

acha que as pessoas vão pagar-lhe só para sentar-se um pouco com elas

e depois ir-se embora?"

Mr. Gambit já se sentara por muitas horas em companhia de Mrs.

Mawmsey, dando-lhe inclusive pormenorizados relatos de seus cuida-

474

GEORGE ELIOT

dos com o corpo e outros assuntos; mas naturalmente ele sabia que não

havia uma indireta na observação feita por ela, já que nunca cobrara por

seus momentos de folga e narrativas pessoais. Assim retrucou com bom

humor:

"Bem, Lydgate é um rapaz muito bem apessoado, não é?"

"Não para que eu seja cliente dele," disse Mrs. Mawmsey. "Outros

que façam como bem queiram."

Mr. Gambit portanto podia sair da casa do grande negociante sem


temer rivalidade, mas não sem a impressão de que Lydgate era um des-

ses hipócritas que fazem propaganda da própria honestidade para tentar

desacreditar os outros, e que talvez valesse a pena tomar o tempo de

alguém para desmascará-lo. Mr. Gambit, contudo, tinha uma boa clien-

tela, muito impregnada de odores do comércio varejista e que sempre

propunha uma redução para pagar à vista. Não, pensou ele, não valia a

pena perder seu tempo desmascarando Lydgate, enquanto não soubesse

como. Seus recursos de educação não eram de fato grandes, e ele tinha

tido de abrir seu caminho contra largas dosagens de desprezo profissio-

nal; não era porém pior parteiro só pelo fato de chamar de "pumões" o

aparelho respiratório.

Outros médicos se sentiam mais capazes. Mr. Toller partilhava da

melhor clientela da cidade e pertencia a uma velha família de Middemarch:

havia Tollers na advocacia e em tudo mais que se achava acima da linha

do comércio varejista. Ao contrário de nosso irascível amigo Wrench, ele

encarava com a maior serenidade do mundo as coisas supostamente ca-

pazes de aborrecê-lo, sendo um homem bem educado e faceto que leva-

va uma boa vida, gostava muito e sempre que possível de um pouquinho

de esporte, era grande amigo de Mr. Hawley e hostil a Mr. BuIstrode.

Pode parecer estranho que com seus hábitos tão sofisticados ele se hou-

vesse dado ao tratamento heróico, sangrando e vesicando e deixando os

pacientes à míngua, com desapaixonada falta de consideração por seu

exemplo pessoal; mas a incongruência fortalecia a estima por sua capaci-

dade entre os pacientes, os quais comumente observavam que Mr. Toller

era lento em seus modos, mas seu tratamento era o mais ativo que se

podia desejar: - homem algum, diziam eles, punha na profissão tanta

seriedade: custava um pouco para vir mas, quando vinha, ele fazia algu-

ma coisa. Era um grande favorito em seu próprio círculo, e suas menores

insinuações em desfavor de alguém tomavam duplo valor por seu tom

negligente e irônico.

Naturalmente ele se cansou de sorrir e repetir "Ah!" toda vez que


lhe diziam que o sucessor de Peacock era avesso a receitar remédios; e

mo-

MIDDLEMARCH

um dia em que Mr. Hackbutt o mencionou num jantar, entre um gole e

outro de vinho, Mr. Toller disse sorrindo: "O Dibbitts então vai-se livrar

de todos os seus remédios velhos. Gosto muito do Dibbitts - e me

alegro pela sorte dele."

"Entendo o que quer dizer, Toller," disse Mr. Hackbutt, "e é exata-

mente a mesma minha opinião. Valho-me da ocasião para manifestar-

me a respeito. Um médico deveria ser responsável pela qualidade dos

remédios consumidos pelos seus pacientes. Esta é a lógica do sistema de

mandar pôr na conta que prevaleceu até hoje; e nada é mais ofensivo do

que essa ostentação de reforma, quando não há nenhum progresso pal-

pável. )P

-Ostentação, Hackbutt?" disse ironicamente Mr. Toller. "Isto eu

não vejo não. Não há como um homem fazer ostentação de algo em

que ninguém acredita. E não se trata de reforma; a questão é saber se

o lucro sobre os remédios é pago ao médico pelo farmacêutico ou

pelo paciente, e se deve haver um pagamento extra pela assistência

dada."

"Ah, sem dúvida; uma de suas novas e malditas versões da velha

impostura," disse Mr. Hawley, passando a garrafa para Mr. Wrench.

Mr. Wrench, em geral abstêmio, às vezes numa festa exagerava um

pouco no vinho, tornando-se em conseqüência mais irritável.

"Impostura, HawIey," disse ele, "é uma palavra muito fácil de lançar

à roda. O que eu combato são esses modos de médicos que estão sujan-

do o próprio ninho, e clamando pelo país, como se um clínico-geral que

prescreve medicamentos não pudesse ser um cavalheiro. Refuto a impu-


tação com desprezo. Digo que a tramóia menos cavalheiresca de que um

homem pode ser culpado é aparecer entre seus colegas de profissão com

inovações que são um libelo contra os procedimentos destes, já consa-

grados pelo tempo. Esta é a minha opinião, e estou pronto para sustentá-

Ia contra quem quer que seja que me contradiga." A voz de Mr. Wrench

tomara-se extremamente aguda.

"Não posso forçá-lo a isto, Wrench," disse Mr. Hawley, enfiando as

mãos nos bolsos da calça.

475

"Meu caro amigo," disse Mr. Toller, intervindo pacificamente e olhan-

do para Mr. Wrench, "às facultativos levam mais pisadas nos calos do

que nós. Quando a dignidade entra em causa, é uma questão para Minchin

e Sprague,"

"A jurisprudência médica não prevê nada contra essas infrações?"

disse Mr. Hackbutt, com um desejo desinteressado de oferecer suas lu-

zes. "O que diz a lei, hem, Hawley?"

476

GEORGE ELIOT

"Não há nada a ser feito neste caso," disse Mr. Hawley. "Eu já dei

uma olhada para o Sprague. Você apenas quebraria a cara contra a mal-

dita decisão de um juiz."

"Bah! nada de lei," disse Mr. Toller. "No que concerne à prática, a ten-

tativa é um absurdo. Nenhum paciente vai concordar - certamente não os

do Peacock, que foram acostumados à depleção. Passe-me o vinho."

A predição de Mr. Toller verificou-se em parte. Se Mr. e Mrs.

Mawmsey, que não pretendiam ser clientes de Lydgate, haviam-se inco-

modado com suas supostas declarações contra os medicamentos, era


inevitável que quem recorresse a seus préstimos ficasse numa ansiosa

espreita para ver se ele usaria no caso "todos os meios possíveis." Até

mesmo o bondoso Mr. Powdereil, que em sua constante caridade de

interpretação se inclinava a estimar Lydgate ainda mais pelo que parecia

ser a procura conscienciosa de uma melhor solução, foi assaltado por

dúvidas, durante o ataque de erisipela de sua esposa, e não se pôde

abster de mencionar-lhe que em ocasião semelhante Mr. Peacock havia

administrado umas pílulas que não eram definíveis senão por seu efeito

notável para curar Mrs. Powderell, nas vésperas do Dia de São Miguel,

de uma doença que tinha começado num mês de agosto particularmente

quente. Por fim, de fato, no conflito entre seu desejo de não ferir Lydgate

e sua ansiedade de não faltarem "meios," ele induziu a esposa a tomar

por conta própria as Pílulas Purificativas de Widgeon, um estimado me-

dicamento de Middemarch, que interrompia todas as moléstias na fon-

te por agir de imediato no sangue. Esta medida paliativa não era para ser

mencionada a Lydgate, e nem o próprio Mr. Powderell tinha nela grande

confiança, esperando apenas que se fizesse acompanhar de uma bênção.

Mas nessa etapa duvidosa de sua chegada ali Lydgate foi favorecido

pelo que a nós mortais ocorre chamar de sorte. Suponho que nunca um

médico recém-chegado a um lugar tenha deixado de efetuar curas que

surpreendessem a todos - curas que podem ser tomadas por testemu-

nhos da sorte e merecem tanto crédito quanto os do tipo escrito ou

impresso. Vários pacientes ficaram bons enquanto Lydgate tratava de-

les, e alguns até com doenças graves; e observou-se que o novo doutor,

com seus novos meios, tinha pelo menos o mérito de trazer de volta

para a vida gente que estava à beira da morte. Os boatos que circulavam

nessas ocasiões aborreciam Lydgate ainda mais porque eram precisa-

mente a espécie de prestígio que um homem incompetente e ines-

crupuloso poderia desejar, o que decerto lhe seria imputado pelo fre-

mente desagrado dos outros médicos como um estímulo de sua pessoa a

um falatório de ignorantes. Mas mesmo sua orgulhosa franqueza foi con-


MIDDLEMARCH

477

tida pelo discernimento de que era tão inútil lutar contra as interpreta-

ções da ignorância quanto chicotear a neblina; e a "sorte" insistia em

usar tais interpretações.

Mrs. Larcher, fazia pouco, preocupara-se caridosamente com alguns

sintomas alarmantes em sua tarefeira e, quando o Dr. Minchin apareceu,

pediu-lhe que a visse ali mesmo na hora e lhe desse um atestado para a

Enfermaria; donde após examiná-la ele ter diagnosticado o caso, por

escrito, como um tumor, recomendando a paciente, Nancy Nash, como

paciente externa. Nancy, passando em casa a caminho da Enfermaria,

permitiu que o espartilheiro e esposa, em cuja água-furtada ela morava,

lessem o papel do Dr. Minchin, e tomou-se deste modo tema de compa -

decidas conversas nas vendas da Churchyard Lane, por estar com um

tumor que a princípio foi dito tão grande e duro como um ovo de pato,

mas que lá pelo fim do dia já era quase do tamanho de "um punho." Os

ouvintes concordavam, em sua maioria, que ele teria de ser cortado fora,

mas um sabia de um óleo, outro, de uma espécie de "rnordente," que

eram ótimos para acabar com qualquer caroço no corpo quando ingeri-

dos em boa quantidade - o óleo o "empapando e secando," o mordente

carcomendo-o.

Por acaso era um dos dias de plantão de Lydgate, quando Nancy se

apresentou na Enfermaria. Depois de examiná-la e fazer-lhe algumas

perguntas, Lydgate disse para o interno em voz baixa: "Não é um tu-

mor: é cãibra." A ela, a quem receitou um vesicatório e uma poção

fortificante, disse que fosse para casa e fizesse repouso; ao mesmo tempo,

deu-lhe uma breve carta para Mrs. Larcher, que ela mencionara como

sua principal patroa, atestando que a mulher necessitava de boa ali-


mentação.

Mas dentro em pouco o estado de Nancy, em sua água-furtada, tor-

nou-se portentosamente pior: o suposto tumor cedeu de fato ao vesicatório,

mas a dor passou para outro lado e aumentou. A esposa do espartilheiro

foi chamar Lydgate, que continuou por umas duas semanas a cuidar de

Nancy em casa, até que o tratamento a deixasse completamente curada e

ela voltasse ao trabalho. O caso porém nunca deixou de ser visto como se

fosse mesmo um tumor na Churchyard Lane e outras ruas - nem mesmo

por Mrs. Larcher; pois quando a notável cura de Lydgate foi relatada ao

Dr. Minchin, ele naturalmente não quis admitir.- "Não era um caso de

tumor, eu me enganei no meu diagnósticof mas respondeu: " mesmo?

ah! para mim era um caso de cirurgia, nunca fatal." No entanto, ele ficara

um pouco ofendido quando, ao perguntar na Enfermaria pela mulher que

havia recomendado dois dias antes, ouviu do jovem interno, nada descon-

478

GEORGE ELIOT

tente de perturbar com impunidade Minchin, o relato exato do aconteci-

do: e mais tarde, tendo declarado reservadamente que era uma grande

afronta um clínico-geral contradizer o diagnóstico de um facultativo assim

tão abertamente, ele concordou com Wrench que o desrespeito de Lydgate

à etiqueta era bem desagradável. Lydgate não transformou a questão em

motivo para valorizar-se ou (muito em particular) desvalorizar Minchin,

já que tal retificação de julgamentos errôneos acontece com freqüência

entre homens de iguais qualificações. Mas espalhou-se uma boataria tre-

menda sobre o caso desse tumor espantoso, que não se distinguia clara-

mente de um câncer e era tido por mais horrível ainda por ser do tipo que

andava; até que boa parte do preconceito contra o método de Lydgate em

relação aos remédios foi vencida pela demonstração de sua maravilhosa


perícia na rápida recuperação de Nancy Nash, depois de ela ter rolado

tanto de dor pela presença de um tumor obstinado e duro, não obstante

compelido a ceder.

O próprio Lydgate, que podia fazer?  ofensivo dizer a uma senhora,

quando esta expressa admiração por sua capacidade, que ela está de

todo enganada e é até meio tola em tanto pasmo. E entrar na natureza

das doenças seria apenas mais uma de suas transgressões ao decoro

médico. Ele assim foi obrigado a ceder ante a promessa de sucesso feita

por esse louvor ignorante que está sempre passando ao largo das quali-

dades válidas.

No caso de um paciente mais conspícuo, Mr. Borthrop Trumbull,

Lydgate estava cônscio de ter-se revelado um pouco melhor que o co-

mum dos médicos, embora também aqui a vantagem conquistada por

ele fosse duvidosa. O eloqüente leiloeiro pegou uma pneumonia e, ten-

do sido cliente de Mr. Peacock, mandou chamar Lydgate, a cujos servi-

ços, antes, já expressara intenção de recorrer. Mr. Trumbull era um ho-

mem robusto, uma boa cobaia para pôr à prova a teoria expectante -

observar a evolução de uma doença de interesse que, sendo deixada em

paz o mais possível, permitisse anotar seus estágios para orientação fu-

tura; e Lydgate deduziu, pelo ar com o qual ele descreveu suas sensa-

ções, que lhe agradaria entrar na confiança de seu médico e ser feito um

parceiro da própria cura. O leiloeiro ouviu, sem muita surpresa, que seu

organismo (sempre com a devida observação) poderia ficar à própria

sorte, para oferecer um belo exemplo de uma doença com todas as fases

claramente delineadas, sendo provável ele ter o vigor mental necessário

para servir de voluntário ao teste de um procedimento racional, e assim

fazer da desordem de suas funções pulmonares um benefício para toda a

sociedade.

MIDDLEMARCH
479

Mr. Trumbull aquiesceu de imediato, conquistado pela idéia de que

uma doença dele não era uma ocasião ordinária para a ciência médica.

"Nada tema; o senhor não está falando com alguém de todo igno-

rante da vis medicatrix,"I disse ele, com sua usual superioridade de ex-

pressão, tornada algo patética pela dificuldade em respirar. E sem esmo-

recer enfrentou sua abstinência de remédios, muito amparado pela apli-

cação de um termômetro que indicava a importância de sua temperatu-

ra, pela impressão de estar fornecendo materiais para o microscópio e

por aprender não poucas palavras novas que pareciam adequadas à dig-

nidade de suas secreções. Pois Lydgate era bastante arguto para em con-

descendentes conversas propiciar-lhe alguns detalhes técnicos.

Pode-se imaginar que Mr. Trumbull deixou o leito de enfermo dis-

posto a falar de uma doença na qual havia manifestado tanto o vigor de

sua mente quanto o de seu organismo; e não se fez de rogado para dar

crédito ao médico que havia discemido a qualidade do paciente que ele

tinha a tratar. O leiloeiro, a quem não faltava generosidade, gostava de

dar aos outros o que lhes era devido, sentindo que tinha os meios. Cap-

tara as palavras "método expectante," e esmerava-se em variações sobre

esta frase e outras tão eruditas para acompanhar a assertiva de que

Lydgate "sabia umas coisinhas a mais do que o resto dos doutores - era

muito mais versado nos segredos da profissão do que a maioria de seus

colegas. "

Foi antes da questão sobre a doença de Fred Vincy ter dado à inimi-

zade de Mr. Wrench por Lydgate um motivo pessoal mais concreto que

isso aconteceu. O recém-chegado ameaçava ser um incômodo, em ter-

mos de rivalidade, e já era certamente um incômodo pelas críticas ex-

pressas e reflexões sobre os confrades mais velhos, homens que tinham

muito a fazer para ficar perdendo tempo com idéias não comprovadas. A

clientela dele já se expandira bastante, e a notícia de seu bom nascimen-


to, desde o início, fora razão de o convidarem a toda parte e muito:

quando jantavam nas melhores casas, os outros médicos tinham assim

de encontrá-lo; e ter de encontrar alguém de quem a gente não gosta,

pelo que se observa, nem sempre termina em ligação mútua. Pratica-

mente nunca houve tanta unanimidade entre eles quanto na opinião de

que Lydgate era um rapaz arrogante, no entanto pronto, para em última

instância predominar, a mostrar-se em rastejante subserviência a

BuIstrode. O fato de Mr. Farebrother, cujo nome era a principal bandeira

Ms medicatrix naturae (em latim no original): a "Ma medicarnentosa da

natureza," ou seu

podercurativo.

480

GEORGE ELIOT

do partido anti-Bulstrode, sempre defender Lydgate e tê-lo feito amigo

seu era atribuído ao inexplicável jeito de Farebrother de combater dos

dois lados.

Houve pois amplo preparo para a explosão da repulsa profissional

quando do anúncio das normas instituídas por BuIstrode para a direção

do Novo Hospital, as quais eram mais exasperantes por não haver pos-

sibilidade concreta de opor-se a seu bel-prazer e vontade; todos, exceto

Lord Medicote, recusaram-se a ajudar na construção, alegando que pre-

feriam contribuir para a Velha Enfermaria. Mr. BuIstrode fez face a todos

os gastos, e logo deixou de lamentar-se por estar adquirindo o direito de

realizar suas noções de progresso sem obstáculos erguidos por colabora-

dores preconceituosos; fora forçado entretanto a dispender grandes so-

mas e a construção se arrastou. Caleb Garth, que pegara a empreitada,

faliu durante a execução, retirando-se da administração da obra antes de


começar o acabamento interno; quando se referia ao Hospital, freqüen-

temente ele afirmava porém que BuIstrode não era de todo desprovido

de idéias, queria os trabalhos de carpintaria e alvenaria bem sólidos, e

tanto de lareiras quanto da instalação de esgotos entendia um pouquinho.

De fato, o Hospital tornara-se objeto de intenso interesse para BuIstrode,

que de bom grado teria continuado a destinar-lhe uma grande soma por

ano para poder governá-lo ditatorialmente sem Diretoria nenhuma; mas

ele tinha um outro grande objetivo que também dependia de dinheiro

para sua realização: queria comprar, nas cercanias de Middemarch, uma

terra, e por conseguinte queria contribuições de relevo para a manuten-

ção do Hospital. Entrementes ele formulava seu plano de administração.

O Hospital seria reservado à febre em todas as suas formas; Lydgate

seria o superintendente médico, de modo a ter completa autoridade para

dar seguimento às investigações comparativas que seus estudos, parti-

cularmente em Paris, lhe haviam demonstrado ser importantes, cabendo

aos outros médicos uma influência consultiva, mas não o poder de con-

testar as decisões finais de Lydgate; e a administração geral ficaria ex-

clusivamente em mãos de cinco diretores associados a Mr. BuIstrode,

cada qual com um poder de voto proporcional à sua contribuição, com a

própria Diretoria a preencher a ocorrência eventual de uma vaga, e nun-

ca a massa de pequenos contribuintes sendo admitida a participar do

governo.

Houve imediata recusa, por parte de todos os médicos da cidade, em

integrar a equipe do Hospital das Febres.

"Muito bem," disse Lydgate para BuIstrode, "temos um interno e

manipulador, que é fundamental, um tipo de cabeça clara e mãos lim-

MIDDLEMARCH

481
pas; vamos conseguir que o WŠbbe, um clínico do campo tão bom quan-

to qualquer um deles, venha de Crabsley duas vezes por semana e, em

caso de alguma operação excepeional, Protheroe virá de Brassing. Terei

de trabalhar mais, isto é tudo, e já larguei meu posto na Enfermaria. O

plano há de vingar, apesar deles, e eles então vão aderir de bom grado.

As coisas não podem ficar assim como estão: as reformas por fazer são

de todo tipo e urgentes, para que os jovens depois possam gostar de vir

estudar aqui." Lydgate estava no auge do entusiasmo.

"Não hei de recuar, pode estar certo, Mr. Lydgate," disse Mr.

BuIstrode. "Enquanto o vir a realizar suas nobres intenções com vigor, o

senhor há de contar com meu apoio constante. E tenho a humilde confian-

ça de que as bênçãos que até hoje protegeram meus esforços contra o

espírito do mal nesta cidade não deixarão de ser dispensadas. Não te-

nho dúvida, arranjarei bons diretores que me auxiliem. Mr. Brooke de

Tipton já me deu sua concordância, e comprometeu-se a uma contribui-

ção anual: não especiácou a quantia - provavelmente não muito gran-

de. Mas como membro da Diretoria bem que ele pode ser útil."

O diretor útil era talvez para se definir como um que a nada daria

origem, e sempre votaria com Mr. BuIstrode.

A aversão dos médicos por Lydgate já quase não se disfarçava agora.

Nem o Dr. Sprague nem o Dr. Minchin jamais disseram discordar do

conhecimento de Lydgate ou de sua disposição de aperfeiçoar os méto-

dos de tratamento: discordavam, sim, da arrogância dele, que todos per-

cebiam ser inegável. E insinuavam que ele era insolente, pretensioso e

dado a inovações insaciáveis só para fazer barulho e aparecer, o que era

a própria essência do charlatão.

A palavra charlatão, desde que lançada no ar, não podia senão surtir

efeito. O mundo era agitado na época pelas incríveis façanhas de Mr. St.

John Long,1 tendo "cavalheiros e nobres" atestado a extração por ele

feita, das têmporas de um paciente, de um fluido como o mercúrio.

Mr. Toller observou um dia, sorrindo, para Mrs. Taft, que "Bulstrode
tinha encontrado em Lydgate um homem que se adequava a ele; um char-

latão em religião certamente há de gostar dos charlatães de outros tipos."

"Sim, é mesmo, posso imaginar," disse Mrs. Taft, prestando toda a

atenção, ao mesmo tempo, no número de trinta pontos; "há tantos no

gênero. Lembro-me de Mr. Cheshire, com seus ferros, tentando endirei-

tar pessoas que Deus tinha feito tortas."

"Curandeiro ativo em Londres em 1827, processado pela morte de duas pessoas

sob seus

cuidados.

482

GEORGE ELIOT

"Não, não," disse Mr. Toller, "Cheshire era correto - era lícito e à

claras o que ele fazia. St. John Long sim - este é o camarada que pode

mos chamar de um típico charlatão, anunciando suas curas por meio

dos quais ninguém nada sabe; um camarada que quer fazer barulho

pretendendo ir mais a fundo do que as outras pessoas. Ainda outro dia

não pretendia ele ter extraído do cérebro de um homem o mercúrio qu

dizia ter aí encontrado?"

"Meus Deus! como se brinca com o corpo dos outros, que horror!"

disse Mrs. Taft.

Depois disso, em várias partes se chegou a dizer que até com cor

pos respeitáveis Lydgate brincava para atender a seus objetivos, sendo

assim ainda mais provável que em suas experiências levianas ele aca

basse por fazer gato e sapato dos pacientes do Hospital. Era em parti

cular esperado, como havia dito a proprietária do Tankard, que se afer

rasse sem descanso a retalhar seus cadáveres. Pois Lydgate, tendo tra

tado de Mrs. Goby, que aparentemente morrera de um ataque cardíaco


não expresso em seus sintomas com bastante clareza, teve a audácia

de pedir a permissão dos parentes para lhe abrir o corpo, fazendo uma

ofensa que logo se espalhou além da Parley Street, onde por longo

tempo residira esta senhora, com uma renda que tornava a associação

de seu corpo com as vítimas de Burke e Hare um flagrante insulto à sua

memória.

Achavam-se as coisas nesse ponto quando Lydgate abordou o tema

do Hospital com Dorothea. Com muita fleugma ele suportava, pelo que

vemos, as inimizades e os conceitos falsos e tolos, certo de que eram

criados, em parte, por sua boa dose de sucesso.

"Não conseguirão afastar-me," disse ele, falando confidencialmente

no gabinete de Mr. Farebrother. "Tive uma boa oportunidade aqui para

os fins que eu mais almejo; e estou seguro de conseguir bastante dinhei-

ro para as nossas necessidades. Dentro em breve começarei a agir em

silêncio: nada agora me seduz, fora de minha casa e trabalho. E estou

cada vez mais convencido de que será possível demonstrar a origem

homogênea de todos os tecidos. Raspaill e outros estão na mesma pista,

e eu já perdi muito tempo."

"Não tenho o poder de profetizar em tais casos," disse Mr. Fare-

brother, que estivera apitar seu cachimbo enquanto Lydgate falava; "mas,

no tocante à hostilidade local, você há de se sobrepor a ela se for pru-

dente."

Trançois-Vincent Raspaíl (1794-1878), químico, físiologista e ativista

político francês.

MIDDLEMARCH

483

"Como ser prudente," disse Lydgate, "se apenas faço o que en-
contro para fazer à frente? Não posso impedir a ignorância e o des-

peito alheios, assim como o não pôde Vesalius.1 Não é possível en-

quadrar a conduta de uma pessoa por tolas conclusões que ninguém

pode prever."

" verdade; não foi isto o que eu quis dizer. Só quis dizer duas coi-

sas. Uma, que você se mantenha o mais separado que puder do Bulstrode:

pode continuar a fazer seu bom trabalho, é claro, com a ajuda dele; mas

não se deixe amarrar. Ao falar assim eu talvez pareça movido por um

sentimento pessoal - e disto, confesso, aí há muito - mas nem sempre

o sentimento pessoal se engana, se o reduzimos às impressões que o

fazem mera opinião."

"Bulstrode não é nada para mim," disse Lydgate, despreocupada-

mente, "à margem do interesse público. Quanto a unir-me com ele mui-

to intimamente, não o estimo tanto assim para isto. Mas qual era a

outra coisa que queria dizer-me?" perguntou Lydgate, acariciando mui-

to à vontade a própria perna, sem sentir grandes necessidades de con-

selho.

"Bem, é o seguinte. Tenha cuidado - experto crede2-tenha cuidado

para não ser envolvido em questões de dinheiro. Sei, por uma frase que

deixou escapar um dia, que você não aprova que eu jogue tanto baralho

por dinheiro. No que está muito certo. Mas tente não se entregar ao

desejo das pequenas quantias de que não dispõe. O que estou falando é

talvez um pouco supérfluo; mas um homem se compraz em assumir cer-

ta superioridade em relação a si mesmo, quando passa sermões sobre o

mau exemplo que dá."

Lydgate aceitou corri muita cordialidade as sugestões de Mr. Fare-

brother, que dificilmente ele teria suportado, se partissem de outra pes-

soa. Era impossível não lembrar-se de que ultimamente ele havia feito

umas dívidas, mas tomou-as por inevitáveis, e agora sua intenção era

apenas manter com simplicidade a casa. Os móveis que ficara devendo

não precisariam ser renovados; nem, por um bom tempo, a reserva de


vinho.

Muitos pensamentos alegravam-no então - e com razão. Um ho-

mem cheio de entusiasmo por nobres objetivos é sustentado ante as

hostilidades de somenos pela memória dos grandes homens que luta-

]Andreas Vesalius (1514-1564), flamengo ativo na Itália, fundador da

anatomia moderna,

cuja obra foi mal recebida pelos seguidores de Galeno.

"Em latim no original: "creia em quem tem experiência."

484

GEORGE ELIOT

ram para abrir seu caminho e realizar seu trabalho, não sem escoria-

ções, e que lhe pairam no espírito como santos patronos, ajudando

invisivelmente. Em casa, nessa mesma noite em que esteve conversan-

do com Mr. Farebrother, ei-lo que no sofá já esticava suas pernas com-

pridas, com a cabeça jogada para trás e as mãos cruzadas na nuca, sua

posição predileta para meditar, enquanto Rosamond se sentava ao pia-

no, tocando uma atrás da outra canções das quais o marido sabia ape-

nas (como o elefante emocional que ele era!) que elas se harmoniza-

vam com seu estado de espírito como se fossem melodiosas brisas ma-

rinhas.

Havia então algo de muito especial na expressão de Lydgate, e

que encorajaria qualquer um a apostar que ele lograria seu fim. Nos

seus olhos escuros, na sua boca e na testa havia essa placidez que de-

corre da plenitude do pensar contemplativo - quando a mente não

procura, mas vê, e o olhar parece preenchido pelo que está por trás

dele.

Presentemente Rosamond se levantou do piano e foi sentar-se numa


cadeira perto do sofá e em face do marido.

"já basta, meu senhor, o que ouviu de música?" disse ela, juntando

suas mãos no colo e assumindo um leve ar submisso.

"Sim, querida, se você já se cansou," disse gentilmente Lydgate,

virando os olhos para pousá-los nela, mas no mais não se mexendo. A

presença de Rosamond nesse momento talvez equivalesse apenas a

uma gota d"água no oceano, e seu instinto feminino era apurado para

saber disto.

"O que o faz tão absorto?" disse ela, dobrando-se um pouco para

aproximar o rosto do dele.

Ele, movendo as mãos, tomou-a pelos ombros delicadamente.

"Estou pensando num grande homem, que há trezentos anos atrás

tinha mais ou menos a idade que eu tenho hoje, e já dera início a uma

nova era na anatomia."

"Sou incapaz de adivinhar," disse Rosamond, balançando a cabeça.

"Na escola de Mrs. Lemon, costumávamos brincar de adivinhar nomes

de personagens históricos, mas não de anatomistas."

"Pois eu digo quem é. Chamava-se Vesalius. E o único meio que

encontrou, para poder conhecer a anatomia como o fez, foi surripiar

corpos à noite de cemitérios e locais de execução."

"Oh!" disse Rosamond, com uma expressão de horror no belo rosto,

"acho ótimo que você não seja Vesalius. Inclino-me a pensar que ele

poderia ter encontrado um meio menos horrível."

MIMUMARCH

485

"Não, não poderia," disse Lydgate, prosseguindo com muito ardor

para dar importância à resposta dela. "Só podia conseguir um esqueleto

completo surripiando do patíbulo os ossos branqueados de um crimino-


so, enterrando -os e indo buscá-los pouco a pouco em segredo, na escu-

ridão da noite."

"Espero que ele não seja um dos seus grandes heróis," disse Ro-

samond, meio na brincadeira, mas também meio ansiosa, "porque se-

não ainda vou vê-lo levantando-se à noite para ir ao cemitério de St.

Peter. Foi você mesmo quem me disse que se zangaram muito com você

por causa de Mrs. Goby. Bastam-lhe os inimigos que já tem."

"Vesalius também os tinha, Rosy. Não espanta que os médicos

caturras de Middemarch sintam inveja, quando alguns dos maiores

doutores então vivos se enfureceram contra Vesalius, porque haviam

acreditado em Galeno, e ele mostrou que Galeno estava errado. Cha-

maram-no de mentiroso, de monstro envenenador. Mas as evidências

da constituição humana estavam de seu lado; e assim ele conseguiu

convencê-los."

"E o que aconteceu com ele depois?" disse Rosamond, com algum

interesse.

"Oh, teve de lutar muito até o fim. Atormentaram-no tanto certa vez

a ponto de levá-lo a queimar boa parte de sua obra. E mais tarde ele

naufragou, quando vinha de Jerusalém para assumir uma importante

cátedra em Pádua. Morreu de modo desditoso."

Houve uma pausa antes de Rosamond dizer: "Sabe, Tertius, que eu

muitas vezes desejo que você não fosse médico?"

"Ora, Rosy, não diga isto," disse Lydgate, puxando-a mais para si.

" como dizer que desejaria ter-se casado com outro homem."

"De modo algum; você tem inteligência bastante para qualquer coi-

sa: poderia facilmente fazer uma outra escolha. E todos os seus primos

de Quallingliam julgam-no abaixo deles pela profissão que seguiu."

"Os primos de Quallingliam que vão para o inferno!" disse Lydgate,

com desprezo. "Só mesmo a insolência deles para dizer a você alguma

coisa do gênero."

"Seja como for, querido," disse Rosamond, "eu não penso que seja
uma boa profissão." Sabemos com que tranqüila perseverança ela man-

tinha suas opiniões!

" a melhor profissão do mundo, Rosamond," disse Lydgate, com

toda seriedade. "E dizer que você gosta de mim, sem gostar do médico

que eu sou, é o mesmo que dizer que gosta de comer um pessego, mas

não gosta do cheiro. Não diga isto de novo, querida, que me faz sofrer."

486

GEORGE ELIOT

"Muito bem, Doutor Homem Sério," disse Rosy com as covinhas à

mostra, "hei de declarar no futuro que eu sou louca por esqueletos, e

ladrões de cadáveres, e amostras em frascos, e brigas com todo mundo,

que terminarão por levá-lo a morrer de um modo desditoso."

"Não, não, não é assim tão horrível," disse Lydgate, desistindo da

admoestação para, resignado, acariciá-la.

CAPÍTULO XLVI

"Pues no podemos haber aquello que queremos, queramos

aquello que podremos."

- Spanish Proverb.

€"já que não podemos ter aquilo que queremos, queiramos

aquilo que pudermos.")

- Provérbío espanhol.

ENQuANTo LYDGATE, seguro no casamento e com o Hospital sob seu


comando, sentia-se em luta contra Middemarch pela Reforma Médica,

Middemarch se sentia cada vez mais consciente da luta nacional por

outro tipo de Reforma.

Pela época em que se discutiam na Câmara dos Comuns as medidas

propostas por Lord John Russell, havia em Middemarch uma nova ani-

mação política, e uma nova definição de partidos que poderia mostrar

uma decisiva mudança de equilíbrio, se viesse nova eleição. Alguns já

previam tal desfecho, declarando que um projeto de Lei de Reforma

jamais seria aprovado pelo atual Parlamento. E era por isto que Will

Ladislaw se alongava em conversa com Mr. Brooke, vendo uma razão

para congratulá-lo por ele ainda não ter testado sua força na escolha de

candidaturas.

"As coisas vão crescer e madurar como se fosse ano de cometa," disse

Will. "Dentro em breve a vontade popular há de atingir um calor cometário,

agora que a questão da Reforma está em pauta.  bem provável que uma

nova eleição venha por aí sem demora, e a essa altura Middemarch já

haverá de ter posto mais idéias na cabeça. Nosso trabalho tem de se con-

centrar por ora no "Pioneiro" e nos encontros políticos."

488

GEORGE ELIOT

"Muito bem dito, Ladislaw; faremos da opinião aqui uma coisa nova,"

disse Mr. Brooke. "Só que eu, sabe, quero manter-me independente

quanto à Reforma: não quero ir longe demais. Quero seguir a linha de

Wilberforce e Romilly, sabe, e trabalhar pela Emancipação dos Negros, a

Legislação Penal - esse tipo de coisa. Mas é claro que eu apoiaria o

Grey."

"Se o senhor for pelo princípio da Reforma, deve estar preparado

para aceitar o que a situação ofereça," disse Will. "Se cada um puxar
para o seu lado, uns contra os outros, tudo vai acabar aos panda-

recos."

"Sim, sim, concordo - este também é o meu ponto de vista. Eu

veria por este prisma, eu apoiaria o Grey, sabe? Mas não quero alterar o

equilíbrio da Constituição, nem penso que Grey o queira."

"Mas é isto o que o país quer," disse Will. "Se não, não haveria

sentido nas ligas políticas, nem em nenhum movimento que saiba o que

de fato pretende. O país quer ter uma Câmara dos Comuns que não seja

dominada por homens da classe latifundiária, mas inclua representantes

dos demais interesses. Quanto a pugnar por uma Reforma que não che-

gue a isto, é como querer que de uma avalanche que já começou a

estrondear caia somente um cisco."

"Esta foi ótima, Ladislaw: é a mais correta das colocações. Ponha

isto por escrito, e logo. Temos de começar a obter documentos sobre o

que está sentindo o país, bem como sobre os quebra-quebras de máqui-

nas e a aflição generalizada."

"Uma simples fichaf disse Will, "dará para conter montes de docu-

mentos. Basta anotar alguns números para deles se deduzir a miséria, e

uns poucos mais hão de mostrar o índice pelo qual a determinação po-

lítica do povo está crescendo."

"ótimo: desenvolva um pouco mais isto, Ladislaw.  uma bela idéia:

ponha-a em letra de forma no "Pioneiro." Ponha os números e deduza a

miséria, como disse; e depois ponha outros números, deduza - e as-

sim por diante. Você sabe colocar as coisas. Agora, o Burke: - quando

eu penso no Burke, não posso deixar de desejar que alguém tivesse um

curral eleitoral e o destinasse a você, Ladislaw. Você nunca seria eleito,

não é? E na Câmara nós sempre vamos precisar de talentos: por mais

reformas que façamos, sempre vamos precisar de talentos. Essa

avalanche e o estrondo, bem, foi realmente um pouco como o Burke.

Eu quero é esse tipo de coisa - não as idéias, sabe, mas um modo de

colocá-las."
"Os currais eleitorais seriam uma boa coisa," disse Ladislaw, "se

MIDDLEMARCH

489

eles sempre estivessem bem cercados, e sempre houvesse um Burke à

mão."

A comparação lisonjeira, mesmo partindo de Mr. Brooke, não de-

sagradou a Wili; pois e por um pouco demais à prova a carne huma-

na, ter consciência de expressar-se melhor que os outros sem nunca

ser percebido, e na escassez geral de admiração pela palavra certa até

mesmo um clangor casual de aplauso, irrompendo no momento pro-

pício, é algo que fortalece. Will sentia que seus refinamentos literári-

os estavam geralmente além dos limites de percepção de Middemarch;

todavia, já principiava ele a gostar, e muito, do trabalho que o levara

a se indagar a princípio, não sem certa languidez: "Por que não?" -

e o interesse com o qual estudava a situação política era tão vibrante

como o que outrora ele havia consagrado aos nietros poéticos ou ao

medievalismo.  inegável que, a não ser pelo desejo de estar onde

Dorothea estava, e talvez por não saber o que fazer além disto, Will

não andaria a meditar nessa ocasião sobre as necessidades do povo

inglês, nem a criticar a política inglesa: provavelmente andaria a

perambular pela Itália, esboçando planos para vários dramas, tentan-

do a prosa e descobrindo-a insípida, tentando os versos para achá-

los artificiais em excesso, começando a copiar "detalhes" de pinturas

antigas, abandonando-os porque "não prestavam," e observando que,

feitas as contas, o ponto principal era a cultura própria; em política,

andaria a simpatizar calorosamente com a liberdade e o progresso em

geral. Nosso senso do dever, não poucas vezes, deve contar com al-

gum trabalho que há de tomar o lugar do diletantismo e nos fazer


sentir que a qualidade da ação que praticamos não pode ser relegada

à indiferença.

Ladislaw tinha aceito agora sua parcela de trabalho, que não era

porém aquela coisa indeterminada e mais grandiosa com a qual ou-

trora ele sonhara como a única digna de esforço contínuo. Sua natu-

reza se esquentava facilmente na presença de assuntos a que a vida e

a ação se mesclavam de maneira visível, e a rebelião que logo nele se

agitava era favorável ao brilho do espírito público. A despeito de Mr.

Casaubon e de seu banimento de Lowick, ele estava razoavelmente

feliz; obtendo um grande montante de conhecimento direto, de modo

vívido e para objetivos práticos, e tornando o "Pioneiro" famoso até

os limites de Brassing (não importa a pequenez da área; a escrita não

era muito pior que grande parte da que alcança os quatro cantos do

mundo).

Mr. Brooke às vezes era um pouco irritante; mas a impaciência de

490

GEORGE ELIOT

Will era aliviada pela divisão de seu tempo entre visitas à granja e

retiradas a seu refúgio de Middemarch, que lhe davam variedade à

vida.

"Basta a roda girar um pouco," dizia-se ele, "para que Mr. Brooke

esteja no Gabinete e eu seja um Subsecretário.  a ordem comum das

coisas: as ondas grandes, quem as produz são as pequenas, que têm o

mesmo padrão. Estou melhor aqui do que no tipo de vida para o qual

Mr. Casaubon queria preparar-me, onde toda a ação já estaria traçada

por precedentes muito rígidos para eu poder enfrentar. Não ligo para

prestígio nem para belos salários."

Ele era uma espécie de cigano, como a seu respeito dissera Lydgate,
que extraía até certo prazer da sensação de não ser de classe alguma;

sabendo do que em sua situação havia de romanesco, tinha a agradável

consciência de causar, aonde quer que fosse, sempre um bocado de sur-

presa. Tal desfrute fora porém contrariado quando ele percebeu entre ele

mesmo e Dorothea uma nova distância, em seu encontro inesperado em

casa de Lydgate, e a irritação de Will foi projetada em Mr. Casaubon,

que havia de antemão declarado que ele iria baixar de categoria. "Pois

nunca fui de categoria nenhuma," teria ele respondido, se lhe fosse a

profecia soprada, enquanto rápido como o sopro o sangue lhe haveria de

aflorar e sumir na pele transparente. Mas uma coisa é gostar de desafios,

outra é agüentar suas conseqüências.

Entrementes, a opinião da cidade sobre o novo editor do "Pioneiro"

tendia a confirmar a de Mr. Casaubon. O parentesco de Will com esta

distinta família não servia, como os vínculos de Lydgate com a alta, de

introdução vantajosa: se se dizia que o jovem Ladislaw era sobrinho ou

primo de Mr. Casaubon, dizia-se também que "Mr. Casaubon não que-

ria nem saber dele."

"Brooke contratou-o," disse Mr. Hawley, "porque ninguém dotado

de bom senso o faria. São danadas de boas as razões do Casaubon,

creiam-me, para dar as costas a um rapaz cuja educação foi custeada por

ele.  tal qual o Brooke - um desses camaradas que vendem gato por

lebre."

E algumas das bizarrices de Will, mais ou menos poéticas, pareci-

am vir em apoio a Mr. Keck, o editor da "Trombeta," nas afirmações de

que Ladislaw, se a verdade fosse sabida, era não só um espião polonês

mas um desmiolado também, o que explicava a rapidez e o desemba-

raço preternaturais de sua fala quando ele subia a um palanque - como

fazia sempre que tinha oportunidade, expressando-se com uma facili-

dade que lançava reflexos sobre os ingleses genericamente sólidos. Para

MIDDLEMARCH
491

Keck era lamentável ver um tipo desvalido, cheio de cachos na cabeça,

levantar-se para deitar falação sobre instituições "que já existiam quando

ele ainda estava no berço." E num artigo de fundo na "Trombeta,"

Keck caracterizara o discurso de Ladislaw num encontro pela Reforma

como "a violência de um energúmeno - um esforço infeliz para disfar-

çar no brilho de fogos de artifício a audácia de declarações irresponsá-

veis e a pobreza de uma instrução que era da espécie mais reles e re-

cente."

"O artigo de ontem, Keck, teve multa repercussão," disse-lhe o

Dr. Sprague, com sarcásticas intenções. "Mas o que é um energú-

meno?"

"Oh, é um termo que surgiu na Revolução Francesa," disse Keck.

Este aspecto perigoso de Ladislaw contrastava estranhamente com

outros hábitos que se tornaram objeto de observação. Ele tinha uma

queda, meio artística, meio emotiva, pelas criancinhas - quanto meno-

res fossem, sobre pernas razoavelmente ativas, e quanto mais engraça-

das suas roupas, mais gostava Will de diverti-las e fazer-lhes surpresas.

Sabemos que em Roma ele era dado a incursões entre os pobres, um

hábito que em Middemarch não o abandonara.

Acabara por ajuntar um bando de crianças gozadas, moleques de

cabeça descoberta usando calças surradas e por camisa uns farrapos,

meninas que, para poder enxergá-lo, primeiro tinham de tirar a cabe-

leira dos olhos, mais uns irmãos protetores da madura idade de sete

anos. Este bando fora carregado por ele, no tempo de nozes, até o

Bosque de Halsell e, tendo chegado o frio, num dia claro os levou à

cata de lenha para fazer uma fogueira na reentrância de uma encosta

de morro, onde os regalou com um festim de pão de gengibre e impro-

visou uma pecinha sobre Polichinelo e Esposa com marionetes pró-


prias e de fabricação caseira. Aqui estava uma das bizarrices. Outra era

que, nas casas onde fizera amizade, ele era dado a se estender completa-

mente no tapete enquanto conversava, e passível de ser descoberto

nesta atitude por eventuais visitantes, aos quais tal irregularidade de-

via confirmar os rumores sobre a perigosa mistura de seu sangue e sua

generalizada lassidão.

Mas os artigos e discursos de Will recomendavam-no naturalmente

junto às famílias postas ao lado da Reforma pelos novos rigores da divi-

são partidária. Foi convidado à casa de BuIstrode; mas lá não pôde es-

tender-se no tapete, e Mrs- BuIstrode achou que seu modo de falar sobre

os países católicos, como se houvesse uma trégua com o Antícristo, ilus-

trava a usual tendência à insensatez nos intelectuais,

492

GEORGE ELIOT

Contudo, em casa de Mr. Farebrother, a quem a ironia dos fatos

havia posto no mesmo lado de BuIstrode no movimento nacional, Will

tornou-se um favorito das senhoras; especialmente da pequena Miss

Noble, que era uma de suas bizarrices acompanhar, quando a encontra-

va na rua de cestinha, dando-lhe o braço aos olhos da cidade e insistin-

do em ir junto para alguma visita em que ela distribuiria os bocados

desviados das suas próprias porções de guloseimas.

Mas a casa que ele mais visitava e onde mais se estendia no tapete

era a de Lydgate. Se não eram nada iguais, nem por isto os dois homens

concordavam menos. Lydgate era abrupto mas não irritável, pouco li-

gando para uma dor de cabeça em pessoas sadias; e Ladislaw não costu-

mava lançar suas susceptibilidades sobre quem não ligava para elas. Com

Rosamond, por outro lado, ele se dava a amuos e era desobediente - às

vezes até deselegante, e de modo a deixá-la muito surpresa; não obstante,

tornava-se pouco a pouco necessário ao entretenimento dela, por acom-


panhá-la na música, por sua variada conversa e pela ausência das graves

preocupações que no marido, malgrado a ternura e indulgência com que

ele a tratava, muitas vezes tornavam-lhe insatisfatórios os modos e a

confirmavam no desinteresse pela profissão médica.

Lydgate, inclinado ao sarcasmo pela crença supersticiosa do povo na

eficácia da Iei," quando ninguém se preocupava com o péssimo estado

da patologia, às vezes investia sobre Will com inquietantes perguntas.

Ao cair da noite, num dia de março, Rosamond se encontrava à mesa de

chá, em seu vestido cor de cereja com acabamento de flanela na gola;

Lydgate, tendo voltado tarde e cansado do trabalho fora, estava perto da

lareira, de través numa poltrona em cujo braço jogara a perna, e denota-

va no semblante a preocupação que o tomava ao percorrer com os olhos

as colunas do "Pioneiro," enquanto Rosamond, notada sua inquietude,

evitava olhar para ele e interiormente dava graças a Deus por não estar

também num mau momento. Will Ladislaw, estendido no tapete, con-

templava distraidamente o pau da cortina, e bem baixinho ia entoando

as notas de "Quando eu vi pela primeira vez o teu rosto;" o spaniel da

casa, também estendido, mas não com muito espaço à escolha, olhava

por sua vez por entre as patas para o usurpador do tapete, em objeção

silenciosa mas forte.

Levando Rosamond a Lydgate sua chávena, este pôs de lado o jornal

e disse para Will, que se levantara e fora até a mesa:

" inútil você apregoar que o Brooke é um proprietário reformista,

Ladislaw: eles apenas, na "Trombeta," vão expondo cada vez mais seus

pontos fracos."

MIDDLEMARCH

493

"Não faz mal; quem lê o "Pioneiro" não lê a "Trombeta,` disse Will,


engolindo seu chá e andando em volta. "Você acha que o público lê, já

pensando em se converter? Teríamos então uma infusão de feitiço e uma

vingança -"Mistura, mistura, mistura bem, tu que podes misturar" - e

ninguém saberia que lado iria tomar."

"Farebrother diz não acreditar que o Brooke se elegesse, caso sur-

gisse a ocasião: os mesmos homens que se proclamam a seu favor iriam

na hora preferir na uma outro representante."

"Não custa nada tentar.  bom ter representantes residentes."

"Por quê?" disse Lydgate, que era muito dado a usar esta inconveni-

ente palavra num tom curto.

"Eles representam melhor a estupidez local," disse Will, rindo e sa-

cudindo seus cachos; "e são mantidos em sua mais perfeita conduta na

região. Brooke não é um mau sujeito, mas jamais teria feito certas coisas

boas que fez em sua propriedade, não fosse a ambição parlamentar que

o mordeu."

"Ele não tem porte de homem público," disse Lydgate, com desde-

nhosa decisão. "Seria uma decepção para todos que contassem com ele:

posso ver isto no Hospital. Só que lá o BuIstrode mantém as rédeas e o

guia."

"Depende do padrão de homem público que se estabeleça," disse

Will. "Para a ocasião, ele até que não deixa a desejar: quando as pessoas

tomam sua decisão como agora andam fazendo, não é um homem que

querem - mas apenas um voto."

" como vocês, Ladislaw, os escribas políticos, costumam fazer -

clamar por uma medida, como se ela fosse uma cura universal, e clamar

por homens que são parte da própria doença que exige cura."

"Por que não? Os homens podem ajudar a curar-se para que sejam

erradicados do campo sem que o saibam," disse Will, capaz de encon-

trar razões extemporâneas quando não havia analisado uma questão

previamente.

"Isto não é desculpa para encorajar a exageração supersticiosa de


esperanças sobre tal medida específica, facilitando a grita para a engolir

por inteiro e para mandar à votação uns papagaios que não servem se-

não para passá -la adiante. Você combate a podridão, e não há nada de

mais completamente podre que fazer o povo acreditar que a sociedade

pode ser curada por uma fórmula política mágica."

"No original: "Wingle, mingle, mingie, mingle, YOu that mingle may." Canção

tradicional, que

surge também em outras obras, como a peça The Witch (c. 1610), de Thomas

Middeton.

494

GEORGE ELIOT

"Muito bem, meu caro amigo. Mas sua cura tem de começar nal

gum ponto, e creia que há mil coisas que degradam a população e não

podem ser reformadas sem que se comece por essa reforma específi

ca. Veja o que o Stanley disse outro dia - que a Câmara andou a

remexer muito tempo em questiúnculas de suborno, investigando se

este ou aquele votante tinha levado um guinéti, quando todo mundo

sabe que as cadeiras foram vendidas no atacado. Esperar por sabedo

ria e consciência nos representantes do povo - que disparate! A úni

ca consciência em que nos podemos fiar é o senso maciço de injustiça

numa classe, e a melhor sabedoria, para efeito prático, é a do equilí

brio dos pleitos. Este é o meu tema - qual dos lados sai lesado? Eu

apóio o homem que lhes apóia os pleitos; não o virtuoso defensor da

injustiça."

"Estas generalidades sobre um caso específico são só para ali

mentar a questão, Ladislam Quando eu digo que sou pela dose que

cura, disto não decorre que eu seja pelo ópio num determinado caso
de gota."

"Não estou alimentando a questão, é a que nós temos - se vamos

fazer um esforço por nada até encontrarmos homens imaculados com os

quais trabalhar. A você assentaria bem este plano? Se houvesse um ho-

mem para levar-lhe à prática uma reforma médica, outro para se opor a

ela, você procuraria saber qual tinha o melhor motivo, ou mesmo a me-

lhor cabeça?"

"Oh, é claro," disse Lydgate, vendo-se acuado por uma tática que

ele mesmo já havia usado muitas vezes, "se não se trabalhar com os

homens que estão à mão, as coisas podem chegar a um impasse. Ainda

que a pior opinião na cidade sobre o BuIstrode seja verdadeira, não é

menos verdade que ele dispõe de resolução e tirocínio para fazer o que

eu julgo que precisa ser feito nas áreas que mais conheço e mais me

preocupam; mas este é o único terreno em que me ponho ao lado dele,"

acrescentou Lydgate, não sem orgulho, tendo em mente as observações

de Mr. Farebrother. "Ele não é nada para mim de outro modo; não tenho

nenhum motivo pessoal para o enaltecer - e sempre me eximiria dis-

to.O

.Você está querendo dizer que eu enalteço o Brooke por algum mo-

tivo pessoal?" disse Will Ladislaw, atingido e se virando de súbito. Pela

primeira vez ele se sentia magoado com Lydgate; e não menos, talvez,

porque teria declinado de qualquer exame mais detido do desenvolvi-

mento de suas relações com Mr. Brooke.

MIDDLEMARCH

495

"De jeito nenhum," disse Lydgate. "Eu estava simplesmente expli-

cando meu próprio modo de agir Quis dizer que um homem pode traba-

lhar para um fim especial com outros cujos motivos e conduta geral são
duvidosos, desde que bem seguro de sua independência pessoal, sem

que esteja trabalhando por seu interesse particular - seja distinção ou

dinheiro."

"Por que você então não estende sua liberalidade aos outros?" disse

Will, ainda ofendido. "Minha independência pessoal é tão importante

para mim quanto para você a sua. Você não tem mais razões para imagi-

nar que eu tenha expectativas pessoais em relação ao Brooke, do que eu

para imaginar o mesmo de você em relação ao BuIstrode. Os motivos,

suponho, são pontos de honra - ninguém pode prová-los. Quanto a

dinheiro e distinção na sociedade," concluiu Will, jogando a cabeça para

trás, Venso estar muito claro que eu não sou determinado por conside-

rações desta espécie."

"Você não me entendeu bem, Ladislaw," disse Lydgate, surpreso.

Preocupado em se justificar ele mesmo, não lhe ocorrera pensar no que

Ladislaw poderia inferir a seu respeito. "Perdoe-me por aborrecê-lo sem

nenhuma intenção. De fato eu lhe atribuiria, antes, uma despreocupa-

ção romântica pelos interesses mundanos. Sobre a questão política, ré-

feri-me simplesmente à influência intelectual."

"Como vocês dois estão desagradáveis hoje!" disse Rosamond. "Não

posso conceber por que veio o dinheiro à tona. já bastam as enjoadas

querelas que a política e a medicina provocam. Qualquer um de vocês é

capaz de brigar com o mundo todo, e entre os dois, só por causa destes

tópicos."

Rosamond mostrou-se docemente neutra ao dizer isto, levantando-

se para tocar a sineta, depois cruzando a sala para se dirigir à sua mesa

de trabalho.

"Pobre Rosy!" disse Lydgate, estendendo-lhe a mão quando ela pas-

sava por ele. "Discussões não divertem querubins. Então, música! Peça

ao Ladislaw para cantar com você."

Depois de Will ter ido embora, Rosamond disse para seu marido:

"Que foi que lhe fez perder o controle hoje à noite, Tertius?"
"Eu não. Quem perdeu o controle foi Ladislaw. Ele se inflama à toa."

"Mas digo antes. Alguma coisa o aborreceu antes, pois quando che-

gou aqui você parecia zangado. E foi por isto que começou a discutir

com Mr. Ladislaw. Você me machuca muito quando fica assim, Tertius."

"E mesmo? Pois então eu sou um bruto," disse Lydgate, acarician-

do-a penitentemente.

496

GEORGE ELIOT

"Que foi que o aborreceu?"

"Oh, coisas de fora - negócios."

Na realidade era uma carta que insistia no pagamento de uma conta

de móveis. Mas Rosamond já estava esperando um bebê, e Lydgate que-

ria poupá-la de todas as preocupações.

CAPÍTULO XLVII

Was never true Jove loved in vaíri,

For truest love is highest gain.

No art can make it: it must spring

Where elernerits are fôstering.

So in heaven"s spot and hour

Springs the líttle native flower,

Downward root and upward eye,

Shapen by the earth and sky.

€"O vero amor não se ama em vão,

Pois o amor vero é o ganho então.


Arte o não faz: deve irromper

Onde há elementos a crescer.

Assim em tal lugar e hora

Nativa flor irrompe à glória,

Raiz ao fundo, acima o olhar,

Formada pela terra e o ar.")

Foi POR AcAso numa noite de sábado que Will Ladislaw teve aquela

ligeira discussão com Lydgate. Os efeitos, quando ele se recolheu aos

seus aposentos, deixaram-no acordado metade da noite a pensar sem

parar, premido por nova irritação, em tudo que já havia pensado sobre

como se instalara em Middemarch atrelando-se a Mr. Brooke. As hesi-

tações de antes de ele dar este passo transformaram-se depois em sus-

ceptibilídade a qualquer insinuação de que mais sábio seria o não ter

dado; daí sua exasperação com Lydgate - daí a veemência que o manti-

nha ainda inquieto. Não estava ele então bancando o tolo? - e numa

época em que era maior que nunca sua consciência de ser algo mais que

um tolo? E com que finalidade?

498

GEORGE ELIOT

Bem, para nenhuma finalidade certa. Verdade é que tinha visões

oníricas das possibilidades: não há ser humano que, tendo suas paixões

e pensamentos, não pense sob influência das paixões - não encontre

imagens que lhe sobem à mente e acalmam a paixão com esperança ou a

acicatarn com medo. Mas isto, que acontece a todos nós, a alguns acon-

tece com grande diferença; e Will não era um daqueles cujo espírito

tísegue pela estrada:" ele tomava seus atalhos, onde havia pequenas ale-

grias de sua própria escolha, que aos homens que passavam pela estrada
a galope podiam parecer meio bobas. O modo pelo qual ele fazia de seu

sentimento por Dorothea uma espécie de felicidade para si era exemplo

disto. Pode soar estranho, mas o fato é que a perspectiva ordinária e

vulgar de que Mr. Casaubon o suspeitava - qual seja, que Dorothea

poderia enviuvar, podendo pois o interesse que ele lhe incutira no espi-

rito converter-se em sua aceitação como marido - não tinha sobre ele o

poder de uma tentação irresistível; não vivia ele no cenário de um tal

evento, levando-o às últimas conseqüências, como fazemos todos com

o imaginado "outro modo" que para nós é um céu prático. Não só que

não se dispusesse a entreter pensamentos passíveis da acusação de bai-

xeza - ele que já andava intranqüilo por ter de justificar-se da acusação

de ingratidão: a consciência latente de muitas outras barreiras entre ele

e Dorothea, além da existência do marido, contribuíra para desviar sua

imaginação das especulações sobre o que poderia acontecer a Mr.

Casaubon. E havia ainda outras razões. Will, como sabemos, não supor-

tava a idéia de haver em seu cristal qualquer mancha: exasperava-se e se

deliciava a um só tempo com a calma liberdade de Dorothea, quando ela

lhe falava e olhava para ele, e havia um quê tão precioso em pensá-la tal

como era que um desejo de mudança, capaz de algum modo de mudá-la

também, nunca lhe ocorria. Não nos esquivamos à versão das ruas de

uma boa melodia? - ou evitamos a notícia de que a raridade - talvez

alguma obra de um cinzel ou um buril - na qual nos atardamos até com

exultação, pela preocupação que nos deu dela ter vislumbres, na realida-

de não é uma coisa incomum, e pode ser obtida como uma coisa qual-

quer do dia-a-dia. Nosso bem depende da qualidade e do fôlego de nos-

sa emoção; e para Will, criatura que pouco se importava com o que são

considerados os bens palpáveis da vida, mas que ligava, e muito, para

suas mais sutis influências, conter no peito um sentimento como o que

ele nutria por Dorothea era como a herança de uma fortuna. O que ou-

tros poderiam ter chamado a futilidade de sua paixão constituía para sua

imaginação um deleite a mais: ele estava cônscio de um movimento ge-


neroso, e de verificar em sua própria experiência aquela poesia do amor

MIMUMARCH

499

mais alto que lhe havia encantado a fantasia. Dorothea, dizia-se ele,

fora-lhe entronizada para sempre na alma: acima dela, nenhuma outra

mulher sentar-se-ia; e, se lhe fosse possível transpor em sílabas imor-

redouras os efeitos que ela provocara em seu íntimo, ter-se-ia ele gaba-

do, pelo exemplo do velho Drayton, de que

"Queens hereafter might be glad to live

Upon the alms of her superfluous praise.

("Rainhas então podem gostar de viver

Da esmola contida em seu supérfluo louvor.")"

Mas este resultado era questionável. E o que mais ele podia fazer

por Dorothea? De que valia a ela sua devoção? Era impossível saber,

mas ele se manteria por perto. Entre os amigos dela, não via ninguém a

quem pudesse crer que ela falava com a mesma simples confiança. E ela

havia dito uma vez que gostaria, se ele ficasse; pois bem, ele ficaria, por

mais dragões que a rodeassem, bufando e cuspindo fogo.

Esta era sempre a conclusão das hesitações de Will. Mas não era sem

contradições nem revolta que ele encarava sua própria decisão. Havia-se

freqüentemente irritado, como nesta determinada noite, com alguma de-

monstração externa de que suas atividades públicas com Mr. Brooke por

chefe poderiam não parecer tão heróicas como ele gostaria que fossem, e

isto sempre se associava a outro motivo de irritação - que, não obstante

o sacrificio de sua dignidade por causa de Dorothea, ele a mal podia ver.
Donde, não sendo capaz de contradizer estes desagradáveis fatos, contra-

disse suas próprias inclinações mais fortes dizendo-se: "Eu sou um tolo."

Mas como o debate interior, necessariamente, girava em torno de

Dorothea, ele apenas terminou, como o havia feito antes, com uma im-

pressão ainda mais viva do que seria para si a presença dela; e sendo o

dia seguinte, como de súbito se lembrou, um domingo, resolveu ir à

igreja de Lowick para vê -la. Dormiu com esta idéia, mas quando já se

vestia, na luz racional da manhã, a Objeção lhe disse:

"Será um desafio virtual à proibição de ir a Lowick, imposta por Mr.

Casaubon, e Dorothea não vai gostar."

"Bobagem!" sustentou a Inclinação, "seria uma monstruosidade da

parte dele impedir-me de ir a uma bela igreja rural numa manhã de pri-

mavera. E Dorothea ficará contente."

IMichael Drayton, "How Many Paltry, Foolish Things" (1594).

50O

GEORGE ELIOT

"Para Mr. Casaubon, ficará claro que você foi para provocá-lo ou

para ver Dorothea."

"Não é verdade que eu vá para provocá-lo, e por que não iria para

ver Dorothea? Então é tudo só para ele, que sempre estará bem confor-

tável? Que ele sofra um pouco, como é a sina de tantos outros. Sempre

gostei da singularidade da igreja e da congregação; além disso, eu co-

nheço os Tuckers: vou ficar no banco deles."

Tendo a Objeção silenciado à força de desrazão, Will foi a pé para

Lowick como se estivesse a caminho do Paraíso, atravessando Halsell

Common e contornando os bosques, onde o sol que se espargia por sob

os galhos brotando trazia à luz a beleza do musgo e liquens, das gemas


verdes a tranpor a casca marrom. Tudo parecia saber que era domingo e

aprovar sua ida à igreja de Lowick. Will se sentia facilmente feliz quando

nada lhe contrariava o humor, e a essa altura a idéia de aborrecer Mr.

Casaubon já se tornava até engraçada, fazendo-lhe o rosto abrir-se em

seu alegre sorriso, tão gostoso de ver como o brilho do sol que bate n"água

- muito embora a ocasião não fosse exemplar. Mas em geral tendemos a

dispor dentro de nós que o homem que nos barra o caminho é odioso, e

não nos importamos de causar-lhe um pouco do desgosto que sua perso-

nalidade nos inspira. W111 ia levando um livrinho sob o braço, e em cada

bolso uma das mãos enfiada, não lendo nunca, mas cantando um pouco, à

medida que imaginava as cenas na igreja, e na saída. Experimentava mú-

sicas para uma letra de sua própria autoria, às vezes recorrendo a uma

melodia já existente, às vezes improvisando. A letra, ainda que não fosse

exatamente um hino, decerto era adequada à sua experiência dominical:

O me, O me, what frugal cheer

My love doth feed upon!

A touch, a ray, that is not here,

A shadow that is gone:

A dream of breath that might be near,

An inly-echoed tone,

The thought tho one may think me dear,

The place where one was known,

The tremor of a banished fear,

An ill that was not done -

O me, O me, whatfrugal cheer

My love doth feed upon!

MIDDLEMARCH
rA

("Ah, de que frugal passadio

Meu amor se alimenta!

Um toque, um não visível raio

E a nuvem que se ausenta:

Sonho, talvez perto, de um sopro,

Timbres dentro de si,

A idéia a que acham que me dobro,

O lugar onde a vi.

O tremor de um medo banido,

Um mal que nem se tenta -

Ah, de que frugal passadio

Meu amor se afimentaP)

Às vezes, quando ele tirava o chapéu e sacudia a cabeça para trás,

mostrando ao cantar seu delicado pescoço, parecia uma encarnação da

primavera cujo espirito preenchesse o ar - uma criatura brilhante, ple-

na de promessas incertas.

Os sinos ainda estavam tocando quando ele chegou a Lowick e foi

para o banco do coadjutor antes de entrar mais alguém. Mas lá deixa-

ram-no ainda sozinho, já reunida logo após a congregação. O banco do

coadjutor ficava oposto ao do reitor da paróquia, na entrada do pequeno

sacrário, e Will teve tempo para temer que Dorothea talvez não viesse,

enquanto olhava ao redor o grupo de fisionomías rurais que de ano para

ano imprimia à congregação, contida nas paredes caiadas, nos antigos,

escuros bancos, pouco mais mudanças que as que vemos nos galhos de

uma árvore aqui e ali quebrada pela idade, contudo com brotos novos. A
cara de sapo de Mr. Rigg soava estranha e inexplicável, mas, a despeito

desta ofensa à ordem natural das coisas, sempre havia os Waules e o

ramo rural dos Powderells, em seus bancos lado a lado; mano Samuel

estava como sempre com as bochechas coradas, e as três gerações de

honestos camponeses vinham como sempre com um senso de dever em

relação aos seus superiores - as crianças menores olhando para Mr.

Casaubon, que usava a veste negra e ocupava o lugar mais destacado,

como o chefe de todos os superiores, e o que ofender seria mais terrível.

Mesmo em 1831 Lowick estava em paz, não mais agitada pela Reforma

que pelo solene teor do sermão dominical. Em dias idos, a congregação

se acostumara a ver Will na igreja, e ninguém lhe deu muita atenção, a

não ser o coro, que esperou que ele tomasse parte no canto.

502

GEORGE ELIOT

Dorothea por fim apareceu neste cenário estranho, andando pel

nave lateral com seu chapéu de castor branco e sua capa cinza - o

mesmos que ela usava no Vaticano. Como seu rosto, desde a entrada

estava virado para o sacrário, seus olhos míopes logo distinguiram Will

mas ela não deu nenhuma demonstração externa de seus sentimentos

além de leve palidez e de um grave cumprimento com a cabeça ao passa

por ele. Para sua própria surpresa, Will sentiu-se bruscamente sem jeit

e não mais a ousou olhar, depois de corresponder ao cumprimento.

Dois

minutos mais tarde, quando Mr. Casaubon saiu da sacristia e, instalan

do-se no banco, sentou-se em face de Dorothea, Will sentiu-se aind

mais paralisado. Não conseguia olhar senão para o coro, na pequen

galeria por cima da porta da sacristia: Dorothea estava magoada talvez

e ele cometera um desastrado erro. Agora não havia graça nenhuma em


apoquentar Mr. Casaubon, que provavelmente tinha a vantagem d

observá-lo e ver que ele não se atrevia a virar a cabeça. Por que não

imaginara isto antes? - mas ele não podia esperar que fosse ficar sozi

nho naquele banco quadrado, sem o amparo de nenhum dos Tuckers

todos ao que tudo indicava já partidos de Lowick, pois no púlpito havia

um novo ministro. Ainda assim considerou-se um estúpido por não pre

ver que dali não lhe seria possível olhar para Dorothea - pior, que ela

poderia considerar sua vinda uma impertinência. Não havia como, en

tretanto, ele sair de sua jaula; e Will ia procurando as passagens e olhan

do em seu livro como se fosse uma professora, sentindo que o ofício

matinal jamais havia sido tão imensuravelmente longo, e que ele era

extremamente ridículo, descontrolado e infeliz. Era ao que chegava um

homem, por adorar a visão de uma mulher! O coadjutor leigo, observan

do surpreso que Mr. Ladislaw não se juntava à música de Hanover, refle

tiu que ele talvez estivesse resfriado.

Mr. Casaubon não pregou nessa manhã, e não houve mudança na

situação de Will até ser pronunciada a bênção e todos se levantarem. A

moda em Lowick era que saíssem primeiro os "superiores." Com uma

brusca determinação de quebrar o encanto que o havia atingido, Wil

olhou direto para Mr. Casaubon. Mas os olhos deste senhor estavam na

maçaneta da portinhola do banco, a qual ele abriu para Dorothea passar,

seguindo-a de imediato sem erguer suas pálpebras. O olhar de Will cru-

zou com o de Dorothea, quando ela se virou para sair do banco e fez de

novo uma inclinação de cabeça, mas desta vez com uma aparência agita-

da, como se estivesse reprimindo lágrimas. Will saiu andando atrás de-

les, que porém continuaram em frente e passaram pelo portãozinho do

pátio para sumir no arvoredo sem nunca olhar ao redor.

MIDDLEMARCH

503
Como era impossível segui-los, restava-lhe apenas regressar triste-

mente ao meio-dia pelo mesmo caminho que esperançosamente havia

de manhã trilhado. Todas as luzes, tanto por fora quanto por dentro,

estavam nara ele mudadas.

CAPÍTULO XLVIII

surely the golden hours are turning grey

And dance no more, and vainly strive to run:

I see their white locks streaming in the wind -

Each face is haggard as it looks at me,

Slow tuming in the constant clasping round

Storm driven.

€7orríam-se cinza decerto as horas áureas,

Que não mais dançam e em vão tentam correr:

Vejo suas mechas brancas fluindo ao vento -

E as faces que me fitam são macilentas,

Girando lentas na roda em choque constante

Que a tempestade impele.")

O SOFRIMENTO DE DOROTHEA ao sair da igreja vinha-lhe principalmente

da percepção de que Mr. Casaubon estava decidido a não falar com seu

primo, e de que a presença de W111 na igreja havia servido para marcar de

modo ainda mais forte o afastamento entre eles. A ela a vinda de Will

parecia de todo desculpável, ou melhor, a seu ver era um gesto amável da

parte dele, por uma reconciliação que ela mesma havia constantemente

desejado. Ele provavelmente imaginara, como ela, que, se ele e Mr.

Casaubon se encontrassem sem maiores problemas, trocariam um aperto

de mãos, e o intercâmbio cordial poderia recomeçar. Mas Dorothea se


sentia despojada desta esperança agora. O banimento de Will fora mais

longe que nunca, pois Mr. Casaubon deve ter-se amargurado ainda mais

com aquela imposição de uma presença que ele se recusou a admitir.

Não passara muito bem a manhã, sofrendo de certa dificuldade res-

piratória, e em conseqüência disto não fizera o sermão; ela assim não

MIMUMARCH

505

estranhou que ele passasse o almoço quase calado, sem nenhuma alu-

são a Will Ladislaw. Por sua vez, Dorothea sabia que nunca poderia

abordar o assunto de novo. Em geral eles passavam à parte, no domin-

go, as horas entre o almoço e o jantar: Mr. Casaubon na biblioteca, qua-

se sempre cochilando, e ela em seu boudoir, de bom grado ocupada com

algum dos seus livros prediletos. Em cima de uma mesa na janela em

torrinha havia uma pilha deles - de tudo um pouco, desde Heródoto,

que ela estava aprendendo a ler com Mr. Casaubon, até seu velho com-

panheiro Pascal e o "Ano Cristão" de Keble.1 Hoje porém ela abria um

atrás do.outro, e não se fixava em nenhum. Tudo parecia insosso: os

portentos anteriores ao nascimento de Ciro - as antiguidades judias -

oh meu Deus! - os epigramas devotos - a sagrada harmonia dos hinos

favoritos - tudo era igualmente tão desenxabido como a percussão de

um som na madeira: até nas flores da primavera e na relva continha-se

um tremor melancólico sob as nuvens da tarde que tapavam totalmente

o sol: até nos pensamentos que amparavam e se haviam tornado hábitos

parecia conter-se a desolação dos longos dias futuros que ela iria viver,

com apenas eles por companheiros. E era de um outro, ou melhor, de

um tipo mais completo de companheirismo que a pobre Dorothea sen -

tia fome, uma fome que o esforço permanente exigido por sua vida de

casada ainda tornava maior. Sempre tentando ser o que o marido queria,
era incapaz de se tranqüilizar por sabê-lo contente com o que ela era. O

que a ela interessava, o que espontaneamente ela gostaria de ter, parecia

ser excluído sempre de sua vida; pois se fosse só concedido, e não parti-

lhado por seu marido, seria o mesmo que ter sido negado. No tocante a

Will Ladislaw houve desde o início uma diferença entre eles, a qual ter-

minou, depois de Mr. Casaubon ter reprovado com tal rigor a grande

simpatia de Dorothea pelos direitos de seu parente aos bens da família,

por deixá-la convencida de estar certa, e o marido, errado, mas nada

poder fazer. Nessa tarde a impotência a entorpecia e infelicitava mais do

que nunca: ela ansiava por objetos a quem pudesse querer bem, e que a

pudessem querer também. Ansiava por trabalhos que causassem benefí-

cios diretos como a chuva e o sol, e agora parecia que ela iria viver cada

vez mais numa tumba virtual, onde havia a aparelhagem de um labor

fantasmagórico a produzir o que nunca veria a luz. Hoje ela assomara à

porta da tumba e vira Will Ladislaw, que retrocedia para o mundo dis-

tante do calor da ação e do companheirismo, - voltando o rosto para

ela ao se ir.

V Christian Year. editado r)or lohn Keble em 1827. coletânea muito Donular

de hinos relieinços.

506

GEORGE ELIOT

Livros não resolviam. Pensar também não resolvia. Era domingo, e

ela não podia contar com a carruagem para ir à casa de Celia, que tivera

um bebê recentemente. Não havia agora como refugiar-se do vazio espi-

ritual e da insatisfação, e Dorothea teve de suportar seu abatimento

como teria suportado uma dor de cabeça.

Depois do jantar, na hora em que geralmente ela começava a ler em


voz alta, Mr. Casaubon propôs que fossem para a biblioteca, onde, dis-

se, já mandara acender a lareira e as luzes. Parecia que ele havia revivido,

e que pensava intensamente.

Na biblioteca Dorothea notou que ele havia feito uma nova arruma-

ção de seus cadernos na mesa, e logo ele apanhou para entregar-lhe em

mãos um volume bem conhecido, que era o sumário dos outros.

"Eu lhe agradeceria, querida," disse ele, sentando-se, "se ao invés

de outra leitura esta noite você lesse isto aí em voz alta, com um lápis na

mão para fazer uma cruz em cada ponto, quando eu disser "marque."  o

primeiro passo para dar uma peneirada na qual venho cogitando de há

muito e, à medida que avançarmos, poderei indicar-lhe certos principios

de seleção pelos quais você terá, espero, uma inteligente participação

em meu plano."

A proposta era apenas mais um sinal que se somava a muitos, desde

a memorável conversa dele com Lydgate, de que a relutância original de

Mr. Casaubon em deixar Dorothea trabalhar consigo cedera vez à dispo-

sição contrária, ou seja, exigir-lhe grande interesse e trabalho.

Depois de ela ter lido e marcado por duas horas, ele disse: "Vamos

levar o volume para cima - e o lápis, por favor - e, se formos ler duran-

te a noite, podemos prosseguir com o trabalho. Não está sendo cansati-

vo para você não, Dorothea?"

"Prefiro sempre ler o que você mais gosta de ouvir," respondeu

Dorothea, dizendo a simples verdade; pois o que ela mais temia era

esforçar-se para ler ou por qualquer outra coisa que o deixasse tão des-

contente como sempre.

Era uma prova da força com a qual certas características de Dorothea

impressionavam os que a rodeavam, que seu marido, malgrado todo o

ciúme e suspeitas, havia acumulado uma confiança implícita na integrida-

de de suas promessas e no poder que ela tinha de devotar-se à sua idéia

sobre o certo e o bom. Ultimamente ele começara a sentir que estas qua-

lidades eram posse bem peculiar para si, e queria açambarcá-las.


Chegou a hora da leitura noturna. Dorothea, em seu jovem cansaço,

dormira rápida e profundamente: foi uma sensação de luz que a desper-

tou, parecendo-lhe a princípio a súbita visão de um crepúsculo após ela

MIDDLEMARCH

507

ter galgado o topo de uma colina íngreme: ao abrir os olhos, viu o mari-

do todo agasalhado na poltrona perto da lareira onde os tições ainda

ardiam. Havia acendido duas velas, à espera de que Dorothea acordasse,

mas não querendo despertá-la ele mesmo por outros meios mais di-

retos.

"Você está passando mal, Edward?" disse ela, levantando-se imedia -

tamente.

"Fiquei um pouco incomodado da posição na cama. Vou sentar-me

aqui por um tempo." Ela botou lenha no fogo, agasalhou-se e disse:

"Quer que eu leia para você?"

"Seria um grande favor de sua parte, Dorothea," disse Mr. Casaubon,

com uma nota mais doce que de hábito em sua polidez formal. "Estou

bem desperto, e meu espírito, extraordinariamente lúcido."

"Temo que a excitação possa ser muito forte para você," disse

Dorothea, lembrando-se das precauções de Lydgate.

"Não, não estou cônscio de excitações indevidas. O pensamento está

calmo." Dorothea não ousou insistir, e leu por uma hora ou mais do

mesmo modo como o fizera à tarde, mas passando mais rapidamente

pelas páginas. Mr. Casaubon tinha a mente mais alerta e parecia anteci-

par o que se seguia a uma ligeíríssima indicação verbal, dizendo: "Isto

está bom - marque isto" - ou "Passe ao tópico seguinte - omito a

segunda digressão sobre Creta." Dorothea admirava-se da velocidade

de ave com a qual a mente do marido esquadrinhava o solo no qual


andara a se arrastar por anos. Finalmente ele disse:

"Bem, querida, feche o livro agora. Retomaremos nosso trabalho

amanhã. Adiei-o demais, e gostaria muito de o ver terminado. Mas você

nota que o princípio no qual minha seleção se baseia é dar ilustração

adequada, e não desproporcional, a cada um dos temas enumerados em

minha introdução, tal como ora esboçada. Você percebeu isto claramen-

te, Dorothea?"

"Sim," disse Dorothea, algo trêmula, e apreensiva em seu íntimo.

"Tenso que agora posso repousar um pouco," disse Mr. Casaubon.

Foi deitar-se novamente e pediu-lhe que apagasse as luzes. Quando ela

também se deitou, e só o brilho fraco do fogo rompia a escuridão reínan-

te, ele disse:

"Antes de eu dormir, tenho um pedido a lhe fazer, Dorothea."

"O que é?" disse ela, cheia de temor.

"Que me faça saber, deliberadamente, se, em caso de minha morte,

você há de cumprir minhas vontades: se há de evitar o que eu reprove, e

aplicar-se em fazer o que seria de meu desejo."

508

GEORGE ELIOT

Dorothea não foi pegada de surpresa: muitos incidentes já a vinham

trazendo à conjectura de que seu marido tivesse alguma intenção que

poderia significar para ela um novo jugo. Não respondeu de imediato.

"Você se nega?" disse Casaubon, num tom mais incisivo.

"Não, eu não me nego," disse Dorothea, numa voz clara, com a ne-

cessidade de liberdade lhe sendo imposta por dentro; "mas é muito so-

lene - penso não ser correto - eu fazer uma promessa quando não sei

ao que ela me obrigará. Tudo que a afeição sugerisse eu faria sem prome-

ter."
,,Mas você usaria então sua própria capacidade de julgamento: peço-

lhe que obedeça à minha; e você se nega."

"Não, querido, não!" disse Dorothea, suplicante, esmagada por te-

mores opostos. "Posso esperar e refletir um pouco? Desejo de toda mi-

nha alma que minhas ações sejam para confortá-lo; mas não posso assu-

mir um compromisso assim tão bruscamente - ainda mais um compro-

misso de fazer alguma coisa que eu não sei o que é."

"Então não pode confiar na natureza dos meus desejos?"

"Dê-me até amanhã," disse Dorothea, ainda a implorar.

"Até amanhã então," disse Mr. Casaubon.

Logo ela pôde ouvir que ele já estava dormindo, mas para ela não

havia mais sono. Enquanto se forçava a ficar bem quieta para não perturbá-

lo, sua mente ia travando um conflito no qual a imaginação punha suas

forças a princípio de um lado e depois do outro. Não tinha ela nenhum

pressentimento de que o poder que o marido desejava estabelecer sobre

seu futuro tivesse relação com qualquer outra coisa que não o trabalho

dele. Mas estava bem claro para ela que ele contava com seu devotamento

para peneirar aquelas pilhas de materiais misturados, que deveriam ser

a ilustração duvidosa de princípios ainda mais duvidosos. A pobre crian-

ça tornara-se de todo incrédula quanto à validade dessa Chave que ha-

via constituído a ambição e o labor da vida de seu marido. Não era de

espantar que, a despeito de sua instrução sumária, seu julgamento na

matéria fosse mais verdadeiro que o dele: pois era com o juízo sadio e

comparações imparciais que ela contemplava probabilidades nas quais

ele arriscara todo seu egoísmo. E agora ela já antevia na imaginação os

dias, os meses, os anos que teria de passar para pôr em ordem o que

eram, por assim dizer, múmias despedaçadas e fragmentos de uma tradi-

ção que era ela própria um mosaico montado com cacos de ruínas -

pondo-os em ordem para alimentar uma teoria mirrada desde o nasci-

mento, como uma criança dos elfos. Sem dúvida um erro vigoroso perse-

guido vigorosamente tem mantido a respiração dos embriões da verda-


MIDDLEMARCH

os anseios desta fome?" Seria recusar-se a fazer por ele morto o que ela

estava quase certa de fazer por ele vivo. Se ele vivesse, como Lydgate

dissera que era possível, por quinze anos ou mais, sua vida certamente

se consumiria em obedecer a ele e ajudá-lo.

Ainda assim, havia uma diferença profunda entre esta devoção ao

vivo e aquela indefinida promessa de devoção ao morto. Enquanto vi-

509

de: sendo a busca do ouro, ao mesmo tempo, uma investigação de subs-

tâncias, o corpo da química está preparado para sua alma, e nasce

Lavoisier. Mas a teoria de Mr. Casaubon sobre os elementos que consti-

tuíam a semente de toda a tradição não iria provavelmente chocar-se,

por inadvertência, contra as descobertas: ela flutuava em meio a flexí-

veis conjecturas, sem maior solidez que aquelas etimologias que pare-

ciam fortes por causa de uma semelhança de som, até ser demonstrado

que era justamente tal semelhança que as tornava impossíveis: era um

método de interpretação não testado pela necessidade de formar qual-

quer coisa sujeita a colisões mais graves que uma elaborada noção de

Gog e Magog: era tão livre de interrupção como um plano para fazer

uma enfiada de estrelas. E Dorothea muitas vezes tinha tido de contro-

lar sua impaciência e cansaço sobre essa questionável adivinhação de

enigmas, como tudo se lhe revelava e impunha em lugar da parceria num

conhecimento elevado que tornaria a vida mais válida! Agora, era capaz

de compreender muito bem por que o marido tinha vindo agarrar-se a

ela, como talvez a única esperança restante de que seus esforços pudes-

sem tomar ainda uma forma sob a qual serem apresentados ao mundo.

A impressão inicial fora que ele queria vedar até mesmo a ela um conhe-
cimento mais íntimo daquilo que ele estava fazendo; mas pouco a pouco

a terrível premência das necessidades humanas - a perspectiva da mor-

te inesperada -

A piedade de Dorothea voltou-se de seu próprio futuro para o pas-

sado do marido - ou melhor, para a luta atual e dura que ele travava

com um fado desenvolvido a partir do passado: o labor solitário e a

ambição, pressionada pela falta de confiança em si próprio, respirando

mal; o objetivo ficando cada vez mais distante, os membros enrijecendo;

e agora por fim a espada, que visivelmente tremia sobre ele! Ela não

tinha querido se casar com ele para poder ajudá-lo no labor de sua vida?

- Mas pensara que a obra fosse uma coisa maior, a que pudesse

devotadamente servir pelo que era. Era correto, mesmo que para lhe

mitigar o sofrimento, - seria possível, mesmo que ela prometesse, -

trabalhar improficuamente como um condenado?

No entanto, como dizer não a ele? Como dizer: "Recuso-me a saciar

510

GEORGE ELIOT

vesse, nada ele poderia exigir que ela afinal não fosse livre de contestar

ou mesmo recusar. Mas - a idéia passou-lhe mais de uma vez pela ca-

beça, sem ela acreditar porém, - não poderia ele querer pedir mais do

que ela já conseguira imaginar, uma vez que pretendia comprometê-la

com a execução de seus desejos sem lhe dizer exatamente quais eram?

Não; seu coração só estava ligado em seu trabalho: este era o fim pelo

qual sua vida que se extinguia seria prolongada na dela.

Por outro lado, se ela dissesse: "Não, se você morrer, não ponho as

mãos no seu trabalho!" - estaria causando ainda mais dor a um coração

já magoado.

Durante quatro horas Dorothea quedou neste conflito, até sentir-se


desnorteada e mal, incapaz de decidir-se e rezando em silêncio. Indefesa

como uma criança que muito houvesse soluçado à procura, ela afinal de

manhã caiu num sono profundo e, quando acordou, Mr. Casaubon já

estava de pé. Tantripp comunicou-lhe que ele, após dizer suas orações e

tomar seu desjejum, fora para a biblioteca.

"Nunca vi a senhora assim tão pálida," disse Tantripp, mulher de

sólida figura que havia estado com as irmãs em Lausanne.

"Alguma vez já fui muito corada, Tantripp?" disse Dorothea, com

um tênue sorriso.

"Bem, muito corada não se pode dizer, mas viçosa como uma rosa

chinesa, sim. Só que, sempre cheirando aqueles livros de couro, que se

pode esperar? Descanse um pouco esta manhã, madame. Deixe-me di-

zer que está doente e não pode ir ficar trancada na biblioteca."

"Oh, não, não! tenho de me apressar," disse Dorothea. "Mr. Casaubon

precisa particularmente de mim."

Sentia-se segura, ao descer para o térreo, de que devia prometer

cumprir as vontades dele; isto porém só aconteceria mais tarde - não

por ora.

Quando Dorothea entrou na biblioteca, Mr. Casaubon disse, viran-

do-se da mesa na qual estava a arrumar uns livros:

"Eu só esperava você aparecer, querida. Tinha esperança de me pôr

a trabalhar logo cedo, mas constato sentir certa indisposição, provavel-

mente pelo excesso de excitação de ontem. Como o ar está mais brando,

vou dar agora uma volta no arvoredo."

"Acho uma boa idéia," disse Dorothea. "Temo que sua mente, na

noite passada, tenha estado ativa demais."

"Eu me daria por contente se a pudesse acalmar sobre o ponto do

qual lhe falei por último, Dorothea. Espero que agora você já tenha uma

resposta a me dar."

MIMUMARCH
"Daqui apouco vou encontrá-lo nojardim, está bem?" disse Dorothea,

ganhando tempo para respirar.

"Durante uma meia hora eu estarei na Alameda do Teixo," disse Mr.

Casaubon, e a deixou então.

Dorothea, sentindo-se muito extenuada, chamou por Tantripp e pe-

diu que lhe trouxesse um agasalho. Sentara-se imóvel por alguns minu-

tos, mas não, de modo algum, em renovação do prévio conflito: ela sim-

plesmente sentia que iria dizer "Sim" à sua própria condenação: era

muito fraca, muito temerosa da idéia de atingir seu marido com um gol-

pe cortante, para fazer qualquer coisa que não se submeter por comple-

to. Continuou imóvel, enquanto Tantripp lhe punha o chapeuzinho e o

xale, numa passividadea que não estava habituada, pois ela gostava de

cuidar de si mesma.

"Deus a abençoe, madame!" disse Tantripp, com um movimento

irreprimível de amor para com a bela e meiga criatura pela qual ela se

sentia incapaz de fazer qualquer coisa mais, agora que já havia acabado

de lhe amarrar o chapéu.

Foi um pouco demais para a retesada emoção de Dorothea, que ex-

plodiu em lágrimas, apoiando-se no braço de Tantripp para soluçar. Mas

logo ela recuperou seu controle, enxugou os olhos e saiu para o arvore-

do pela porta de vidro.

"Pois eu espero que com os livros daquela biblioteca construa-se

uma catacumba para o vosso senhor," disse Tantripp a Pratt, o mordomo,

quando o encontrou na sala de jantar. Ela havia estado em Roma, como

sabemos, e visitou as antiguidades; e sempre se referia a Mr. Casaubon

apenas como "vosso senhor," quando falava com os outros empregados.

Pratt riu. Bem que ele gostava de seu patrão, mas gostava mais da

Tantripp.

Ao andar pelos caminhos de cascalho, Dorothea se atardava por en-

tre as árvores aglomeradas mais perto, hesitando como já fizera uma


vez, se bem que por diferente razão. Antes ela havia temido que seu

esforço de união fosse mal recebido; agora sentia medo de chegar ao

lugar em que teria de se comprometer para sempre, como antevia, com

uma união da qual se esquivava. Nem as leis nem a opinião da socieda-

de compeliam-na a isto - só a natureza de seu marido e sua própria

compaixão, só o ideal, e não o jugo real do casamento. Ela via toda a

situação com bastante clareza, no entanto estava amarrada: não podia

ferir a alma já combalida que fazia à dela uma súplica. Se isto fosse

fraqueza, Dorothea era fraca. Mas a meia hora estava passando e ela não

podia mais demorar-se. Não avistou o marido, assim que entrou na Ala-

512

GEORGE ELIOT

meda do Teixo; mas o caminho era em curvas e ela foi adiante, com a

expectativa de achar sua figura envolta num capote azul que, com um

gorro bem quente de veludo, era a roupa que ele usava para sair pelo

jardim nos dias frios. Ocorreu-lhe que ele talvez repousasse no pavilhão,

para o qual havia um curto desvio. Ao fazer a volta ela pôde vê-lo, sen-

tado num banco junto a uma mesa de pedra. Na mesa, apoiava os bra-

ços, e nestes mantinha a fronte arriada, com o capote puxado para a

frente a proteger de ambos os lados seu rosto.

"Ontem à noite ele se exauriu," disse consigo Dorothea, pensando a

princípio que ele estivesse dormindo, e que o pavilhão do jardim era um

lugar muito úmido para se repousar. Mas logo ela se lembrou de o ter

visto ultimamente, quando lia para ele, nesta mesma atitude, como se a

julgasse mais cômoda que qualquer outra; e lembrou-se de que ele às

vezes falava, ou então ouvia, com o rosto virado assim para baixo. Quando

ela entrou no pavilhão, disse: "Aqui estou, Edward; estou pronta."

Ele não se mexeu, e ela achou que ele houvesse pegado mesmo no
sono. Pôs a mão no ombro dele, e repetiu: "Estou pronta!" Ele continuava

imóvel; e ela, com um medo brusco e confuso, debruçou-se sobre ele,

tirou-lhe o gorro de veludo, apertou bem o rosto contra sua cabeça e,

num tom de grande aflição, gritou:

"Acorde, querido, acorde! Ouça-me. Eu vim dar a resposta."

Mas Dorothea nunca o fez.

Mais tarde, no decorrer do dia, Lydgate sentava-se à sua cabeceira e

ela era presa do delírio, pensando em voz alta e revivendo o que na

noite anterior lhe acudira à mente. Ela o reconheceu, tratou-o pelo nome,

mas parecia pensar que estava certo, mesmo assim, explicar tudo a ele; e

pediu-lhe uma, duas, repetidas vezes que explicasse tudo ao marido.

"Diga a ele que irei encontrá-lo em breve: estou pronta para prome-

ter. Só que pensar na questão foi um horror - e me fez doente. Mas não

muito doente. Logo estarei melhor. Pode ir dizer a ele."

Mas nos ouvidos de seu marido o silêncio nunca mais foi quebrado.

CAPÍTULO XLIX

A task too strong for wizard spells

This squire had brought about;

"Tis easy dropping stones in wells,

But who shall get them out?

€" tarefa para mágico esforço,

A que o senhor quis abordar;

Se é fácil jogar pedras no poço,

Quem depois as vai tirar?")

"POR DEUS, O BOM seria se pudéssemos impedir que Dorothea soubesse

distof disse Sirjames Chettam, com seu ligeiro franzir de sobrancelhas

e uma expressão de grande desgosto ao redor da boca.


De pé no tapete da lareira, na biblioteca de Lowick Grange, ele esta-

va falando com Mr. Brooke. Era o dia seguinte ao enterro de Mr. Casaubon,

e Dorothea ainda não era capaz de sair do quarto.

"Seria difícil, sabe, Chettam, porque ela é a executora e gosta de

mexer com estas coisas - os bens, as terras, esse tipo de coisa. E tem lá

suas noções a respeito," disse Mr. Brooke, ajeitando nervosamente o

inonóculo e explorando as bordas de um papel dobrado na mão; "e ela

gostaria de agir - pode crer no que lhe digo, como executora testamen-

tária Dorothea gostaria de agir. Fez vinte e um anos em dezembro pas-

sado, sabe? Não há nada que eu lhe possa impedir."

Por um minuto Sir Jamés olhou para o tapete em silêncio, depois,

erguendo os olhos de repente, fixou-os em Mr. Brooke e disse: "Já sei o

que podemos fazer. Até Dorothea ficar boa, todo este assunto lhe há de

ser ocultado, e, assim que puder ser transportada, deve vir ficar conosco.

Estar com a Celia e o bebê será a melhor coisa do mundo para ela, e

514

GEORGE ELIOT

assim o tempo passa rápido. Enquanto isso o senhor deve livrar-se do

Ladislaw: deve mandar que ele saia da região." A expressão de desgosto

de Sir James voltou aqui com toda a intensidade.

Mr. Brooke, mãos cruzadas por trás, andou até a janela e endireitou

as costas com uma ligeira sacudida antes de responder:

"Muito fácil de dizer, Chettam, muito fácil, sabe?"

"Meu caro senhor," persistiu Sir James, contendo sua indignação em

formas respeitosas, "foi sua a iniciativa de trazê-lo, e o senhor quem o

manteve aqui - pela ocupação que lhe deu."

"Sim, mas não posso demiti-lo assim sem mais nem menos sem apon-

tar as causas, meu caro Chettam. Ladislaw me tem sido valiosíssimo,


plenamente satisfatório. Penso ter prestado um serviço a esta parte do

país por trazê-lo aqui - sim, por trazê-lo aqui." Mr. Brooke concluiu

com uma inclinação de cabeça, para fazer a qual se virou.

" uma pena que esta parte do país não pudesse passar sem ele, e

isto é tudo o que eu tenho a dizer. Mas, como cunhado de Dorothea,

seja como for, creio que me é permitido contrapor-me, e muito, a que ele

seja mantido aqui por qualquer empenho da parte de amigos dela. O

senhor há de admitir, espero, que tenho o direito de falar sobre o que diz

respeito à dignidade da irmã de minha esposa?"

Sir James estava inflamando-se.

" claro, meu caro Chettam, é claro. Mas você e eu temos idéias

diferentes - diferentes -"

"Não sobre este ato do Casaubon, espero," interrompeu Sir James.

"A meu ver ele comprometeu Dorothea do modo mais injusto possível.

A meu ver nunca houve um gesto mais mesquinho, mais indigno de um

cavalheiro que este - um codicilo desta espécie a um testamento que

ele fez na época de seu casamento, com o conhecimento e a confiança da

família dela - positivamente é um insulto a Dorothea!"

"Bem, o Casaubon tinha lá seus problemas com o Ladislaw, sabe? Foi

este que me disse a razão - não gostava do rumo que ele tomou, sabe?

- e o Ladislaw por sua vez não dava muita importância às idéias do

Casaubon, Thoth e Dagon1 - esse tipo de coisa: e penso eu que o

Casaubon também não gostava da posição independente que o Ladislaw

havia assumido. já vi cartas trocadas pelos dois, sabe? O pobre do Casaubon

vivia muito enterrado nos livros - não conhecia a vida."

"Thoth, deus da sabedoria e da ciência, no antigo Egito; Dagon, deus da

ferdidade, entre os

filisteus.

MIDDLEMARCH
515

"Uma versão colorida dos fatos, digamos, que convém ao Ladislaw,"

disse Sir Jarnes. "Mas eu acredito que o Casaubon apenas tinha ciúme

dele, por causa da Dorothea, e todo mundo há de supor que ela lhe dera

razão; e é isto o que torna tudo tão abominável - associar o nome dela

ao deste rapazola."

"Meu caro Chettam, por aí não chegaremos a nada, sabe?" disse Mr.

Brooke, sentando-se e endireitando de novo o seu monóculo. "Tudo faz

parte das bizarrices do Casaubon. Ora pois este papel, o "Quadro Sinótico"

e o que se segue, "para o uso de Mrs. Casaubon," estava trancado na

escrivaninha com o testamento. Suponho eu que ele

Dorothea publicasse suas pesquisas, não é? e ela o fará,

pois participou incomumente dos estudos dele."

"Meu caro senhor," disse impacientemente Sir Jarnes, "nada disto

vem ao caso. O problema é saber se não concorda comigo quanto à ne-

cessidade de se afastar daqui o jovem Ladislaw."

"Bem, não, não assim com tanta urgência. Pouco a pouco, talvez,

pode ser que sim. Quanto ao disse-me-disse, sabe, mandá-lo embora

não é que o irá impedir. As pessoas dizem o que bem querem, não o

capitulo e versículo que lhes são dados," disse Mr. Brooke, tornando -se

arguto quanto às verdades que se achavam ao lado de seus próprios

desejos. "Posso livrar-me do Ladislaw até um certo ponto - tirar-lhe o

Tioneiro," e esse tipo de coisa; mas não poderia afastá-lo da região caso

ele não quisesse - caso ele não quisesse ir-se, sabe?"

Mr. Brooke, persistindo com a mesma tranqüilidade com que estaria

a discutir apenas a natureza do tempo ano passado, e inclinando no final

a cabeça, em sua postura amena de praxe, era uma forma exasperadora

de obstinação.

"Meu Deus!" disse Sirjames, com o máximo de paixão que era capaz
de mostrar, "vamos arranjar-lhe um posto; vamos então gastar dinheiro

com ele. Se ele pudesse entrar para o serviço de algum Governador Colo -

nial! Grampus talvez o queira - e eu poderia escrever sobre isto ao Fulke."

"O Ladislaw porém não se deixaria embarcar como cabeça de gado,

meu caro amigo; o Ladislaw tem idéias próprias. Na minha opinião, se

amanhã mesmo ele se separar de mim, você apenas há de ouvir por aqui

ainda falarem mais dele. Com seu talento para discursar e redigir docu-

mentos, há poucos homens que se lhe comparem como agitador - um

agitador, sabe?"

"Um agitador!" disse Sir James, com amarga ênfase, sentindo que as

sílabas desta palavra, adequadamente repetidas, eram exposição suficien-

te do que nelas se continha de ódio.

quisesse que

tenha certeza,

516

GEORGE ELIOT

"Seja razoável, Chettam. Pois então, a Dorothea. Como você diz, o

melhor seria que, tão logo possível, ela fosse ficar com a Celia. Com ela

sob seu teto, as coisas, entrementes, podem ir-se resolvendo tranqüila-

mente. Não nos convém atirar às cegas e gastar toda a munição, não é?

O Standish há de guardar nosso segredo, e a notícia será velha antes de

ser conhecida. Pode acontecer um monte de coisas para afastar o Ladislaw

daqui - sem que eu faça nada."

"Devo então concluir que o senhor declina de fazer alguma coisa?"

"Declino, Chettam? - não - eu não disse que declino. Mas real-

mente não vejo o que eu pudesse fazer. O Ladislaw é um cavalheiro."

"Que bom saber disto!" disse Sir James, levado pela irritação a per-
der um pouco o controle. "O Casaubon, tenho certeza, não era."

"Bem, pior seria se ele tivesse aposto o codicilo proibindo-a de todo

de se casar novamente, não é?"

"Não sei não," disse Sir James. "Teria sido menos indelicado."

"Uma das maluquices do pobre Casaubon! Aquele ataque afetou

um pouco seu cérebro. E tudo por nada. Ela não quer se casar com o

Ladislaw."

"Mas o codicilo foi redigido para induzir todo mundo a crer que o

quisesse. Não acredito em nada desta espécie sobre a Dorothea," disse

Sirjames - e ai, franzindo as sobrancelhas, "mas suspeito do Ladislaw.

Digo-lhe com toda a franqueza, eu suspeito do Ladislaw."

"Não é motivo que me possa levar a alguma ação imediata, Chettam.

Na verdade, se fosse possível empacotá-lo - despachá-lo para a ilha de

Norfolk - e esse tipo de coisa, - no tocante a Dorothea, para quem

soubesse da história, ainda seria pior. Ia parecer que nós não confiamos

nela - não confiamos, sabe?"

Mr. Brooke havia dado com um argumento irrefutável, mas nem por

isto Sir James se acalmou. Ele estendeu a mão para apanhar seu chapéu,

dando a entender que não queria mais discussão, e ainda algo acalorado

disse:

"Bem, só me resta dizer que a Dorothea já foi sacrificada uma vez,

porque seus amigos foram descuidados demais. Farei o que eu puder,

como seu irmão, para protegê-la agora."

"Nada será melhor do que levá-la para Freshitt assim que você pu-

der, Chettam. Concordo inteiramente com a idéia," disse Mr. Brooke,

satisfeito por ter ganho a contenda, Ser-lhe-ia altamente inoportuno se-

parar-se de Ladislaw àquela altura, quando a dissolução do Parlamento

poderia acontecer a qualquer dia, impondo a necessidade de convencer

MIDDLEMARCH
517

os eleitores sobre o rumo a tomar para melhor servir aos interesses nacio-

nais. Mr. Brooke acreditava sinceramente que este fim podia ser garanti-

do por sua própria eleição para o Parlamento: ele oferecia honestamente

à nação sua pujança de espírito.

CAPíTULO L

""This Loller here wol prechen us somewhat."

"Nay by my father"s soule! that schal he nat,"

Sayde the Schipman, "here schal he not preche,

He schal no gospel glosen here ne teche.

We leven all in gret God," queid he.

He wolden sowen some difficultee."

- Canterbury Tales.

(""O Tagarela aqui tem algo a nos pregar."

"Pela alma do meu pai, não! não o conseguirá,"

Disse o Marujo, "pregar não há de ele aqui,

Nunca um evangelho há de glosar nem difundir

Na grandeza de Deus vivemos todos nós."

Ele iria semear muitos quiproquós.")

Contos de Canterbury. 1

DOROTHEA Jµ ESTAVA em segurança em Freshitt 11a11 há quase uma se-

mana, antes de ter feito perguntas arriscadas. Todas as manhãs ela agora

se sentava com Celia num dos mais bonitos salões do andar de cima,

que se abria para um pequeno jardim de inverno - Celia toda de branco


e roxo, como um buquê de violetas misturadas, a observar os extraordi-

nários atos do bebê, tão dúbios à sua mente inexperiente que a conversa

era sempre interrompida por apelos à sua interpretação lançados à ora-

cular ama-seca. A expressão de Dorothea, ao lado, em seu traje de viú-

va, quase chegava a exasperar Celia, por ser triste em demasia; pois não

"De Geoffrey Chaucer (c. 1343-140O). O trecho citado está em The Shipman"s

Prologue, linhas

1177-82.

MIDDLEMARCH

519

só o bebê estava ótimo, mas realmente, quando um marido em vida era

assim tão entediante e incômodo, e além disto havia - bem, bem! Sir

James, naturalmente, havia contado tudo a Celia, com a forte recomen-

dação de como era importante que Dorothea não soubesse de nada an-

tes de ser inevitável.

Mas Mr. Brooke estivera certo ao prever que Dorothea não se man-

teria por muito tempo passiva onde e quando lhe competisse agir; ela

conhecia o teor do testamento feito por seu marido na época do casa-

mento, e sua mente, tão logo ela tomou consciência clara da situaçao em

que estava, passou a se ocupar em silêncio do que ela deveria fazer como

proprietária da herdade de Lowick, à qual se agregava o benefício da

paróquia.

Certa manhã em que o tio lhe fazia sua costumeira visita, com desa-

costumada alacridade em seus modos, que ele explicou dizendo ser cer-

to agora que o Parlamento seria mesmo dissolvido em breve, Dorothea

disse:

"Já está na hora de eu pensar, meu tio, sobre a quem deve caber o
benefício eclesiástico de Lowick. Depois de Mr. Tucker ter tido sua sub-

sistência garantida, nunca ouvi meu marido dizer que já tinha em mente

algum clérigo para sucedê-lo. Acho que agora seria bom eu apanhar as

chaves e ir a Lowick para examinar os papéis do meu marido. Pode ha-

ver alguma coisa que lance um pouco de luz sobre as vontades dele."

"Não há pressa, querida," disse tranqüilamente Mr. Brooke. "Den-

tro em breve, não é, você, se quiser, já pode ir. Mas eu dei uma olhada

nas mesas e gavetas - não havia nada - nada a não ser aquelas coisas

profundas, sabe? - além do testamento. Tudo pode ser feito a seu tem-

po. Quanto ao beneficio, já me foi feita uma indicação de interesse -

devo dizer, bastante boa. Recomendaram-me muito bem Mr. Tyke -

certa vez eu pude fazer alguma coisa para arranjar uma nomeação para

ele.  um homem apostólico, creio eu, - um tipo para se dar bem com

você, querida."

"Gostaria de conhecê-lo melhor, meu tio, e de julgar por mim mes-

ma, caso Mr. Casaubon não tenha deixado nenhuma expressão de sua

vontade. Quem sabe ele fez algum acréscimo ao testamento - quem

sabe haja instruções para mim?" disse Dorothea, que em relação ao tra-

balho do marido vinha o tempo todo com esta conjectura em mente.

"Nada a propósito da reitoria, querida, - nada," disse Mr. Brooke,

levantando-se para sair e estendendo a mão às sobrinhas: "nem a pro-

pósíto de suas pesquisas, sabe? Nada no testamento."

Os lábios de Dorothea tremeram.

520

GEORGE ELIOT

"Vamos, não convém pensar nessas coisas por enquanto, minha fi-

lha. Dentro em breve, não é?"

"já estou muito bem, tio: e quero agir."


"Bem, bem, então vamos ver. Mas eu agora tenho de correr - eu

agora vivo numa trabalheira sem fim - é uma crise - uma crise política,

sabe? E aí estão Celia e seu homenzinho - você agora já é tia, não é

mesmo?, e eu, uma espécie de avô," disse Mr. Brooke, com pacífica afo-

bação, ansioso de se safar e dizer a Chettam que não seria culpa dele

(Mr. Brooke) se Dorothea insistisse em examinar coisa por coisa.

Dorothea voltou a afundar na poltrona, quando seu tio saiu da sala,

e pousou meditativamente os olhos em suas mãos cruzadas.

"Olhe só, Dodo! olhe só isto aqui! Você já viu coisa mais linda que

ele?" disse Celia, em seu agradável tom staccato.

"O quê, Kitty?" disse Dorothea, erguendo os olhos, mas meio au-

sente.

"O quê? ora essa, o lábio superior do bebê; veja como ele o está

repuxando, como se quisesse fazer uma careta. Não é fantástico? Pode

ser que ele já tenha seus pensamentozinhos, não é? Ah, que bom se a

ama estivese aqui! Olhe só, Dodo."

Uma grande lágrima, que já se vinha acumulando há algum tempo,

rolou pela face de Dorothea quando, olhando para cima, ela tentou sor-

rir.

,,Não fique triste, Dodo; dê um beijinho nele. Em que é que anda

pensando tanto? Tenho certeza de que você fez tudo, e mesmo até de-

mais. Devia agora estar feliz."

"Pergunto-me se Sir James me levaria até Lowick. Quero olhar bem

as coisas - para ver se há instruções por escrito para mim."

"Você não deve ir enquanto Mr. Lydgate não disser que pode. E ele

ainda não disse (ah! cá está a ama; vamos, pegue o bebê e passeie com

ele pelo corredor). Além do mais, você meteu na cabeça, como sempre,

alguma idéia equivocada, Dodo, - posso até ven e isto me aborrece."

"Onde estou equivocada, Kitty?" disse Dorothea, na maior doçura.

já estava quase disposta a pensar que Celia era mais sensata que ela, e

se indagava realmente, não sem temor, que idéia equivocada era a sua.
Celia, percebendo a vantagem que tinha, decidiu-se a usá-la. Nenhum

deles conhecia Dodo tão bem quanto ela, nem sabia como tratá-la. Após

o nascimento de seu filho, Celia passara a ter uma nova consciência de

sua solidez mental e calma sabedoria. Agora havia um bebê, estava cla-

ro, as coisas iam muito bem, e o equívoco, de modo geral, era a simples

falta desta força central de equilíbrio.

MIDDLEMARCH

521

"Posso ver muito bem no que está pensando, Dodo," disse Celia.

"Está querendo descobrir se há alguma coisa bem desagradável para

você fazer agora, só porque Mr. Casaubon quis. Como se sua vida antes

já não fosse bem desagradável! Mas ele não merece isto, como você vai

constatar. Ele se comportou muito mal. O James ficou uma fúria com

ele. E é melhor que eu lhe conte, para você se preparar,"

"Celia," disse Dorothea, suplicante, "você me aflige. Diga logo o

que quer dizer." Passou-lhe pela cabeça que Mr. Casaubon poderia ter

legado seus bens a outro que não ela - o que não seria afinal tão aflitivo

assim.

"Bem, ele fez um codicilo ao testamento, determinando que você

perderia toda a herança se se casasse - quero dizer -"

"Ora, isto não tem nenhuma importância," disse Dorothea, inter-

rompendo-a impetuosamente.

"Mas só se você se casasse com Mr. Ladislaw, não com qualquer

outro," continuou Celia com perseverante serenidade. "Decerto não tem

nenhuma importância num sentido - você nunca iria casar-se com Mr.

Ladislaw; mas isto apenas torna pior o gesto de Mr. Casaubon."

O sangue afluiu doridamente pelo pescoço e à face de Dorothea.

Mas Celia lhe estava administrando o que a seu ver era uma dose mode-
radora de objetividade. Ter tido idéias é que fizera tanto mal à saúde de

Dorothea. Ela assim prosseguiu em seu tom neutro, como se tecesse

comentários sobre a roupinha do bebê.

" o que o James diz. Diz que é um gesto abominável, e indigno de

um cavalheiro. E nunca houve melhor juiz do que o James.  como se Mr.

Casaubon quisesse fazer os outros acreditarem que você desejaria casar-

se com Mr. Ladislaw - o que é ridículo. Só que o James também diz que

isto foi para impedir Mr. Ladislaw de querer casar-se com você pelo seu

dinheiro - como se alguma vez ele pensasse em lhe fazer uma propos-

ta. Mrs. Cadwallader disse que seria o mesmo que se casar com um

italiano, desses que exibem por aí ratos brancos! Bem, mas eu tenho de

irvero bebê," acrescentou Celia, sem amenormudançana voz, jogando

um xale nos ombros e escapulindo-se.

Dorothea a essa altura já recuperara a calma de antes, mas foi sen-

tindo-se indefesa que se abandonou de vez na poltrona. Poderia compa -

rar sua experiência desse momento à vaga e alarmada consciência de

que sua vida estava assumindo uma nova forma, de que ela sofria uma

metamorfose na qual a memória não se ajustaria à atuação dos novos

órgãos. Tudo ia mudando de aspecto: a conduta de seu marido, seu pró-

prio senso do dever em relação a ele, cada desavença entre os dois - e,

522 GEORGE ELIOT

em ritmo ainda mais acelerado, toda sua relação com Will Ladislaw. Seu

mundo atravessava uma fase de mutação convulsiva; só uma coisa ela

podia dizer para si mesma com a devida clareza, que devia esperar e

repensar tudo aquilo. Uma mudança a aterrava como se fosse um peca-

do; era uma violenta onda de repulsa contra seu finado marido, que

havia tido pensamentos ocultos, talvez pervertendo tudo que ela dizia e

fazia. Depois, tomou consciência de uma outra mudança que a deixava

igualmente trêmula; era um abrupto e estranho anseio do coração em


relação a Will Ladislaw. Nunca lhe havia passado pela cabeça, antes, que

ele pudesse, em quaisquer circunstâncias, ser seu amante- pense pois no

efeito da brusca revelação de que outra pessoa o considerara por este

ângulo, - de que talvez ele próprio sempre houvesse estado cônscio de

uma tal possibilidade, - somado à visão tumultuosa e afobada de con-

dições que não se adequavam, de questões que tão cedo não iriam ser

resolvidas.

Um bom tempo - não sabia quanto - pareceu ter-se passado antes

de ela ouvir a voz de Celia dizendo: "Está bem, babá; ele agora vai

sossegar no meu colo. Você pode ir almoçar, mas diga à Garratt para ficar

no quarto ao lado." "O que eu acho, Dodo," prosseguiu Celia, limitan-

do-se a observar que Dorothea estava afundada na poltrona e provavel-

mente tendia a ser passiva, "é que Mr. Casaubon foi rancoroso. Eu nun-

ca gostei dele, nem o James. Nos cantos da boca, a meu ver, ele tinha um

rancor horrível. E agora que se comportou desse modo, estou certa de

que a religião não requer que você se torne infeliz por causa dele.  uma

bênção, se ele foi levado, e cabe-lhe apenas agradecer. Nós não temos o

que lamentar, não é, bebê?" disse Celia confidencialmente para este cen-

tro inconsciente e equilíbrio do mundo, que tinha os punhos mais lin-

dos, tinha unhas e tudo, e realmente até cabelo bastante, quando se lhe

tirava a touquinha, para fazer - não se sabia o quê: - que era o próprio

Buda, em suma, sob uma forma ocidental.

Em plena crise, anunciaram Lydgate, e uma das primeiras coisas que

ele disse foi esta: "Temo que não esteja tão bem quanto já esteve, Mrs.

Casaubon, tem andado agitada? deixe-me tomar seu pulso." A mão de

Dorothea tinha a frieza do mármore.

"Ela quer ir a Lowick para olhar uns papéis," disse Celia. "Ela não

deve, não é?"

Lydgate se manteve por um momento calado. Depois disse, olhando

para Dorothea: "Não sei não. Em minha opinião Mrs. Casaubon deveria

fazer o que lhe desse mais tranqüilidade de espírito. Nem sempre o re-
pouso decorre da proibição de agir."

MIDDLEMARCH

523

"Obrigada, doutor," disse Dorothea, tentando revigorar-se, "é sen-

sato o que diz, tenho certeza. Há tantas coisas que eu preciso fazer. Por

que haveria de ficar sentada aqui e ociosa?" Depois, com um esforço

para lembrar-se de assuntos não relacionados à sua agitação, acrescen-

tou abruptamente: "O senhor conhece todo mundo em MiddIemarch,

suponho, Mr. Lydgate. Vou pedir-lhe para me dizer muitas coisas. Tenho

sérias providências a tomar. Tenho um benefício eclesiástico para trans-

ferir. O senhor conhece Mr. Tyke e todos os -" mas o esforço de Dorothea

foi demais para ela, que ao interromper-se prorrompeu em soluços.

Lydgate fê-la tomar uma dose de sal volátil.

"Deixe Mrs. Casaubon fazer o que ela quiser," disse ele para Sir

James, a quem pediu para ver antes de sair da casa. "Ela quer a perfeita

liberdade, penso eu, mais do que qualquer prescrição."

A assistência a Dorothea, quando ela estava com a mente conturba-

da, permitira-lhe formar algumas conclusões verdadeiras em relação às

provações de sua vida. Tinha certeza de que ela andara sofrendo por

causa das tensões e conflitos da auto-repressão; e de ser bem provável

que agora apenas se sentisse numa outra prisão, só diferente pela espé-

cie daquela da qual fora libertada.

O conselho de Lydgate foi ainda mais fácil para Sir James seguir,

quando ele soube que Celia já havia contado a Dorothea a desagradável

verdade sobre o testamento. Não havia como evitar isto agora - nem

nenhuma razão para adiar ainda mais a execução das coisas. No dia

seguinte, quando ela lhe pediu que a conduzisse a Lowick, Sir James

condescendeu pois de imediato.


"Não tenho nenhuma vontade de ficar lá no mornentof disse

Dorothea; "eu talvez nem agüentasse. Estou muito mais feliz em Freshitt

com Celia. Serei capaz de pensar melhor no que fazer em Lowick olhan-

do para lá à distância. E eu gostaria de passar uns dias com meu tio na

granja, para vagar ao redor nos velhos passeios e em meio ao pessoal do

aldeia."

"Ainda é cedo, creio eu. Seu tio tem tido muitas visitas políticas,

coisas das quais é melhor você ficar afastada," disse Sir James, que no

momento pensou principalmente na granja como um refúgio do jovem

Ladislaw. Mas nenhuma palavra foi trocada entre ele e Dorothea sobre a

parte questionável do testamento; com efeito, cada qual sentiu à parte

que mencionar o assunto lhe seria impossível. Sirjames era tímido, mesmo

com os homens, diante de temas desagradáveis; e o que Dorothea teria

a declarar, se de todo ela abordasse a questão, era-lhe vedado na hora

porque pareceria ser expor ainda mais a injustiça de seu marido. Entre-

524

GEORGE ELIOT

tanto ela desejava que Sir James soubesse do que se passara entre o

marido e ela sobre o direito moral de Will Ladislaw à herança: tornar-se-

ia então claro para ele, como já estava para ela, que a estranha e

indelicada

estipulação do marido tinha origem sobretudo em sua amarga resistên-

cia à idéia deste direito, e não apenas em sentimentos pessoais sobre os

quais era mais difícil falar. Admita-se ainda que Dorothea desejava que

isto fosse sabido por causa de W111, já que os amigos dela pareciam pen-

sar nele como um simples objeto da caridade de Mr. Casaubon. Por que

deveria ser ele comparado a um italiano que exibia ratos brancos? Esta

graçola atribuída a Mrs. Cadwallader soava como uma paródia grossei-


ra, urdida nas trevas por mãos maliciosas.

Em Lowick, Dorothea vasculhou gavetas e escrivaninhas - vascu-

lhou todos os lugares onde o marido guardava seus documentos, mas

não encontrou um só papel particularmente endereçado a ela, exceto

aquele "Quadro Sinótico" que provavelmente era apenas o começo de

muitas indicações previstas para orientá-la. Para legar este trabalho a

Dorothea, Mr. Casaubon havia sido, como em tudo o mais, hesitante e

lento, oprimido no plano de transmitir sua obra, tal qual o fora ao executá-

Ia, pela impressão de se mover dificilmente num meio escuro e obstrutivo:

a desconfiança na competência de Dorothea para organizar o que ele

havia preparado só era suplantada pela desconfiança em outro redator

qualquer. Por fim ele acabara conquistando porém certa confiança na

natureza de Dorothea: ela poderia fazer o que ela bem resolvesse: e de

bom grado a imaginava labutando sob os grilhões de uma promessa para

erigir-lhe um túmulo com o nome em relevo. (Não que Mr. Casaubon

considerasse um túmulo os futuros volumes; considerava-os a Chave de

Todas as Mitologias.) Mas os meses, sobrepujando-o, foram deixando

para trás seus planos: só tivera tempo de pedir aquela promessa, pela

qual pretendia ainda manter sob seu frio domínio a vida de Dorothea.

O domínio afrouxara. Submetida a um penhor manifesto das

profundezas de sua compaixão, ela teria sido capaz de realizar um árduo

trabalho que seu julgamento lhe sussurrava ser inútil para todos os fins,

exceto a consagração da fidelidade, que é um fim supremo. Mas agora

seu julgamento, ao invés de controlado pela devoção submissa, foi ati-

vado pela amarga descoberta de que em sua união passada a alienação

do segredo e da suspeita havia-se movido às ocultas. O homem que

vivia e sofria já não estava mais diante dela para lhe dar pena: restava

tão-só o retrospecto da sujeição dolorosa a um marido cujas idéias se

mostraram abaixo do que ela havia suposto, cujas pretensões exorbitantes

o cegaram até no escrupuloso cuidado com seu caráter e o fizeram der-


MIDDLEMARCH

525

rotar seu próprio orgulho, ao horrorizar homens de honra comum. Quanto

à propriedade, que era a marca do vínculo partido, ela bem que gostaria

de se livrar do seu jugo e não contar com mais nada, além da fortuna

originalmente fixada para ela, não fossem as obrigações do proprietário,

das quais não se poderia eximir. Muitas questões inquietantes sobre a

propriedade insistiam em vir à tona: não estava ela certa, quando pen-

sou que a metade deveria caber a Will Ladislaw, - mas agora já não era

impossível ela fazer este ato de justiça? Mr. Casaubon havia encontrado

um meio cruelmente eficaz de a tolher na ação: mesmo indignada no

coração com ele, qualquer ato que parecesse um esquivamento triunfan-

te à sua intenção a revoltava.

Após juntar os papéis de negócios que queria examinar, trancou de

novo escrivaninhas e gavetas - todas sem uma só palavra pessoal para

ela - sem um sinal de que o marido, em meditação solitária, houvesse

orientado seu coração para ela, em explicação ou desculpa; e ela voltou

para Freshitt com a sensação de que, em torno do último e duro pedido

dele e da última e injuriosa afirmação de seu poder, o silêncio era

inviolável.

Dorothea então tentou dirigir seus pensamentos para as obrigações

imediatas, uma das quais, devido ao tipo, outros estavam decididos a

lhe trazer à lembrança. Os ouvidos de Lydgate haviam captado com in-

teresse sua menção ao beneficio eclesiástico e, assim que pôde, ele reto-

mou este assunto, vendo aqui uma possibilidade para comgir o voto

que já dera uma vez, com a consciência não de todo tranqüila.

"Ao invés de lhe dizer alguma coisa sobre Mr. Tyke," disse ele, "eu

gostaria de falar de outra pessoa - Mr. Farebrother, o Pastor de Saint

Botolph. Seu beneficio é muito baixo e mal chega a garantir-lhe o sus-


tento para si e a família. A mãe, uma tia e a irmã moram com ele, e todas

dependem dele. Acho que foi por causa delas que ele não se casou. Eu

nunca ouvi um pregador tão bom - com uma eloqüência tão despojada

e espontânea. Poderia ter pregado perante a Cruz de Saint Paul depois

do velho Latimer.1 Fala igualmente bem de todos os assuntos: é original,

simples, claro. Consídero-o um homem notável; e que poderia ter feito

mais do que fez."

"Mas por que não fez mais?" disse Dorothea, agora interessada por

todos que haviam ficado aquém de sua própria intenção.

"Esta é uma pergunta complexa," disse Lydgate. "Eu mesmo cons-

tato que é extremamente difícil fazer um bom trabalho dar certo: são

lHugh Latimer (1485-1555), pregador inglês famoso pela simplicidade.

526

GEORGE ELIOT

tantos os cordões puxados ao mesmo tempo! Farebrother às vezes des-

confia que ingressou na profissão errada; quer um campo mais vasto que

o de um pobre clérigo, e suponho que ninguém se interesse por ajudá-

lo. Ele é muito chegado à História Natural e a várias questões científicas,

e conciliar estes gostos com sua situação não lhe é nada fácil. Não tem

dinheiro para tanto - se mal tem para o gasto; e isto o levou ao jogo de

cartas - Middemarch é um grande centro de uíste. Ele joga a dinheiro,

e ganha muito. Claro que isto o faz tomar por companhia pessoas abai-

xo de seu nível, e que o torna desleixado quanto a certas.coisas; entre-

tanto, olhando-o como um todo, apesar disto tudo, considero-o um dos

homens mais inatacáveis que já conheci. Não tem veneno nem hipocri-

sia, que tantas vezes vão com quem é mais correto por fora."

"Pergunto-me se o hábito não o leva a sofrer na consciência," disse


Dorothea "se ele não desejaria poder largá-lo."

"Largá-lo-ia, nem tenho dúvida, se fosse transplantado à fartura: e

com tempo para outras coisas ficaria feliz."

"Diz meu tio que se fala de Mr. Tyke como um homem apostólicof

disse Dorothea, meditativamente. Seu desejo era que fosse possível res-

taurar os tempos do fervor primitivo, e no entanto ela pensava em Mr.

Farebrother com um forte desejo de salvá-lo da tentação desse dinheiro

que dependia da sorte.

"Não pretendo dizer que Farebrother seja apostólico," disse Lydgate.

"Sua situação não é nada semelhante à dos Apóstolos: ele é apenas um

pastor entre paroquianos, cujas vidas tem de tentar melhorar. Constato

na prática que o que hoje se considera ser apostólico é a impaciência

ante tudo onde o pastor não banque a principal figura. Vejo um pouco

disto em Mr. Tyke no Hospital: boa parte de sua doutrina é uma espécie

de forte estratagema para chamar a atenção sobre si, causando incômo-

do aos outros. Além do mais, um homem apostólico em Lowick! -

deveria pensar, como fez São Francisco, que é necessário pregar aos pas-

sarinhos."

"Verdade," disse Dorothea. " difícil imaginar que noções nossos

fazendeiros e trabalhadores têm do que esses homens pregam. Já folheei

um volume com os sermões de Mr. Tyke: sermões que em Lowick não

teriam nenhuma utilidade - porque falam da retidão imputada e das

profecias do Apocalipse. Sempre andei pensando nas diferentes manei-

ras como o cristianismo é ensinado e, sempre que eu encontro alguma

que mais que as outras o torna uma bênção ampla, a ela me agarro como

a mais verdadeira - isto é, a que aceita o maior bem, seja de que espé-

cie for, e leva o maior número de pessoas a dele serem partícipes. Segu-

MIDDLEMARCH

527
ramente é melhor perdoar muito que condenar em excesso. Mas eu gos -

taria de ver Mr. Farebrother e de ouvi-lo pregar."

"Faça-o," disse Lydgate; "eu confio no efeito. Ele é muito querido,

mas também tem inimigos: sempre há pessoas que não podem perdoar

um homem capaz por ele ser diferente. E essa maneira de ganhar dinhei-

ro é realmente uma mácula. A senhora decerto não mantém muitas rela-

ções em Middemarch: mas Mr. Ladislaw, que está em permanente

contacto com Mr. Brooke, é um grande amigo das velhinhas de Mr.

Farebrother, e de bom grado entoaria loas ao Pastor. Uma das velhas

senhoras - Miss Noble, a tia - é uma imagem maravilhosa e bizarra da

bondade alheia a si própria, e o Ladislaw se compraz em acompanhá-la

às vezes. Outro dia encontrei-os numa rua pobre: a figura do Ladislaw, a

senhora conhece - uma espécie de Dáfnis de paletó e colete; e com a

velhinha se esticando para alcançar-lhe o braço - os dois pareciam um

casal evadido de uma comédia romântica. Mas a melhor evidência sobre

o Farebrother é ir vê-lo e ouvi-lo."

Felizmente Dorothea se achava em sua sala íntima quando esta con-

versa ocorreu, e não havia ninguém presente para tornar dolorosa para

ela a inocente menção a Ladislaw feita por Lydgate. Este, como lhe era

típico quando se falava dos outros, tinha esquecido por completo a ob-

servação de Rosamond, de que a seu ver Will adorava Mrs. Casaubon. E

só estava preocupado, no momento, em recomendar a família

Farebrother; a fim de prevenir objeções, dera ênfase de propósito ao que

se podia dizer de pior sobre o Pastor. Nas semanas transcorridas desde a

morte de Mr. Casaubon, ele mal tinha visto Ladislaw, e não ouvira coisa

alguma que o advertisse de que o secretário particular de Mr. Brooke era

um assunto delicado com Mrs. Casaubon. Quando ele se foi, sua descri-

ção de Ladislaw continuou a ocupar-lhe a mente, disputando terreno

com aquela questão do beneficio de Lowick. Que estaria Will Ladislaw

pensando sobre ela? Teria ele sabido do fato que lhe fazia a face arder
como nunca dantes? E como reagiria, se viesse a sabê-lo? - Mas tão

bem quanto possível ela o via curvar-se e sorrir para a velhinha. Um

italiano com ratos brancos! - não, pelo contrário, ele era uma criatura

que entrava nos sentimentos dos outros, e que podia calcular a pressão

de seu pensamento, ao invés de impor-lhes a própria com resistência

férrea.

CAPITULo LI

Party ís Nature too, and you sha11 see

By force of Logic how they both agree:

The Many in the One, the One in Many;

A11 is not Some, nor Some the same as Any:

Genus holds species, both are great or small;

One genus highest, one not high at all;

Each species has its differentia too,

This is not That, and He was never You,

Though this and that are AYES, and you and he

Are like as one to one, or three to three.

("Sendo a parte Natura, você há de notar

Como a força da Lógica as faz concordar:

Há Muitos em Um só, e Um em Muitos é;

Todo não é Algum, nem Algum é Qualquer:

Há no gênero espécies, quer pequenas ou não;

Se há um gênero alto, outro nem sai do chão;

Cada espécie tem suas diferenças também,

Isto não é Aquilo, Ele em Você não vem,

Porém isto e aquilo são SINS, e vocês

Dois são iguais como um e um, ou três e três.")


NENHUM RUMOR SOBRE o testamento de Mr. Casaubon havia ainda al-

cançado Ladislaw: toda a atmosfera parecia tomada pela dissolução do

Parlamento e a vindoura eleição, como tomadas eram as velhas feiras e

quermesses pelo clangor rival dos espetáculos itinerantes; e pouca aten-

ção se dava a barulhos mais particulares. Aproximava-se a célebre "elei-

ção seca," na qual a profundidade do interesse popular poderia ser me-

dida pela baixa quantidade de bebida ingerida. Will Ladislaw era então

MIDDLEMARCH

529

homem dos mais ocupados; embora a viuvez de Dorothea surgisse

continuamente em seu pensamento, ele estava tão longe de desejar que

lhe falassem do assunto que, quando Lydgate o procurou para contar o

que se passava com o beneficio de Lowick, respondeu meio melindrado:

"Ora, por que quer você envolver-me nisto? Eu nunca estou com

Mrs. Casaubon, nem é provável que venha a estar, já que ela se encontra

em Freshitt, e que eu lá nunca vou.  território conservador, onde eu e o

"Pioneiro" não somos mais bem-vindos do que um caçador clandestino

com sua arma."

O fato era que Will fora tornado mais suceptivel por observar que

Mr. Brooke, ao invés de desejar, como antes, que ele fosse com mais

freqüência à granja, mais até do que-ele mesmo queria, agora parecia

tramar para evitar ao máximo que ele aparecesse por lá. Era uma conces-

são tergiversatória de Mr. Brooke à indignada admoestação de Sir James

Chettam; e Will, sensível à mais leve insinuação neste sentido, concluíra

que ele devia ser mantido longe da granja por causa de Dorothea. Os

amigos dela, então, olhavam -no com alguma suspeita? Pois as lágrimas
que derramavam eram supérfluas: eles estavam muito enganados, se o

imaginavam capaz de rebaixar-se a avanços, como um aventureiro ne-

cessitado tentando conquistar os favores de uma rica mulher.

Até agora Will não tinha visto de todo o abismo entre ele e Dorothea

- até agora, quando já estava à beira e a via do outro lado. Começou, e

não sem raiva por dentro, pensando em se afastar das redondezas: seria

impossível para ele demonstrar qualquer novo interesse por Dorothea

sem sujeitar-se a desagradáveis imputações - talvez até na mente dela,

que outros poderiam tentar envenenar.

"Estarnos separados para sempre," disse-se Will. "Eu poderia igual-

mente estar em Roma; e ela não estaria mais distante de mim." Mas o

que vemos como nosso desespero é muitas vezes tão-só a avidez dolo-

rosa de uma esperança não nutrida. Suas razões para não partir eram

numerosas - a começar pelas de ordem pública, pois ele não poderia

abandonar seu posto em plena crise, deixando Mr. Brooke em apuros,

quando era mister o "treinar" para a eleição e havia tantas cabalas, dire -

tas e indiretas, a serem feitas. Will tampouco gostaria de abandonar

seus parceiros de xadrez no calor de um jogo; e qualquer candidato do

lado certo, ainda que de cérebro e medula bem moles, como convinha

ao porte de um fidalgo, poderia ajudar a obter maioria. Treinar Mr. Brooke

e mantê-lo firme na idéia de que deveria comprometer-se a votar pela

verdadeira Lei de Reforma, ao invés de insistir em sua independência e

capacidade de decidir na hora, não era tarefa fácil. A profecia de Mr.

530

GEORGE ELIOT

Farebrother sobre um quarto candidato "no bolso" ainda não se cumpri-

ra, nem a Sociedade dos Candidatos ao Parlamento nem outra força à

espreita para assegurar uma maioria reformista viam alguma complica-


ção digna de interferência quando havia um segundo candidato refor-

mista como Mr. Brooke, que poderia ser eleito à sua própria custa; e a

luta ficava totalmente entre Pinkerton, o velho parlamentar conserva-

dor, Bagster, o novo parlamentar liberal eleito na última eleição, e Brooke,

o futuro parlamentar independente, que somente para essa ocasião se

alinharia a um bloco. Mr_ Hawley e seu partido concentrariam todas as

suas forças na eleição de Pinkerton, e o sucesso de Mr. Brooke teria de

depender ou dos votos para um só candidato, que deixariam Bagster na

retaguarda, ou da nova migração de votos conservadores para candida-

tos reformistas. A última hipótese, naturalmente, seria preferível.

Esta perspectiva de conversão de votos era uma distração perigosa

para Mr. Brooke: sua impressão de que os indecisos se deixariam prova-

velmente atrair por declarações também indecisas, bem como a inclina-

ção de sua mente para se atrapalhar com argumentos opostos, ao passo

que a memória os trazia, davam a Will Ladislaw muito trabalho.

"Nessas coisas há táticas, como você sabe," dizia Mr. Brooke; "en-

contrar pessoas a caminho - moderar suas idéias - dizer: "Bem, não

deixa de ser interessante isto," e assim por diante. Concordo com você

que esta é uma ocasião peculiar - o pais com vontade própria - ligas

políticas - esse tipo de coisa - mas nós às vezes somos muito rigoro-

sos ao separar as partes, Ladislaw. Essas dez libras para os pais de famí-

lia, por exemplo: por que dez?  preciso estabelecer um limite - certo:

mas por que justamente dez? O problema é dificil, se se vai a fundo

nele."

"Claro que é," disse Will, impaciente. "Mas se o senhor for esperar

até nós termos um projeto de lei lógico, terá de lançar-se como um

revolucionista, e neste caso Middemarch, imagino, não o elegeria. Quanto

a ficar no meio-termo para agradar a todos, a época não é para isto."

Mr. Brooke sempre acabava concordando com Ladislaw, que ainda

lhe parecia uma espécie de Burke com uma pitada de Shelley; mas após

um intervalo a sapiência de seus próprios métodos se reafirmava, e no-


vamente ele era compelido a usá-los, todo cheio de esperança. A essa

altura das coisas sua animação era tanta que até o fazia suportar grandes

avanços em dinheiro; pois seu poder de convencer e persuadir ainda não

havia sido testado por nada mais difícil do que um discurso de presiden-

te de mesa, apresentando outros oradores, ou um diálogo com um elei-

tor de Middemarch, do qual ele saíra com a impressão de ser, por natu-

MIDDLEMARCH

531

reza, um estrategista, e de que era uma pena não se ter dado há mais

tempo a esse tipo de coisa. Conscientizava-se um pouco da derrota,

contudo, com Mr. Mawmsey, um dos principais representantes em

Middemarch desta grande força social, o comércio varejista, e natural-

mente um dos eleitores mais dúbios do distrito - disposto de sua parte

a fornecer chás e açúcares de igual qualidade a reformistas e anti-refor-

mistas, bem como a concordar imparcialmente com todos, e achando

como os burgueses de outrora que essa necessidade de eleger represen-

tantes era um grande ônus para uma cidade; pois mesmo que não hou-

vesse perigo em previamente dar esperança a todos os partidos, haveria

por fim a necessidade penosa de desapontar pessoas respeitáveis cujos

nomes figuravam no seu cadastro. Ele estava acostumado a receber gran-

des encomendas de Mr. Brooke de Tipton; mas no comitê de Pinkerton

havia muitos em cujas opiniões o ramo dos secos e molhados tinha grande

peso. Mr. Mawmsey, pensando que Mr. Brooke, não sendo "muito es-

perto de cabeça," propendia ainda mais a perdoar um merceeiro que

desse sob pressão um voto hostil, havia-se tornado confidencial, em sua

sala nos fundos do armazém.

"Quanto à Reforma, veja-a à luz da famíla, Mr. Brooke," disse ele,

chacoalhando suas moedinhas no bolso e sorrindo afavelmente. "Vai ela


garantir o sustento de Mrs. Mawmsey, e permitir-lhe criar seis crianças

quando não mais dispuser de mim? Ponho a questão ficticiamente, sa-

bendo qual deve ser a resposta. Muito bem. Mas pergunto ao senhor,

como marido e como pai, o que eu devo fazer quando há cavalheiros que

me vêm dizer: Taça como bem quiser, Mawmsey; mas, se você votar

contra nós, vou comprar minhas mercadorias alhures; gosto de saber,

quando estou adoçando minha bebida, que eu presto um beneficio ao

país por manter comerciantes do partido certo." Pois estas mesmas pala-

vras me foram ditas, nesta mesma cadeira onde o senhor está agora sen-

tado. Não por sua honorável pessoa, é claro, Mr. Brooke."

"Não, não, não - isto é mesquinharia, sabe? Enquanto meu

mordomo não se queixar de seus produtos, Mr. Mawmsey," disse Mr.

Brooke, apaziguadoramente, 9(enquanto eu não souber que o senhor

mandou açúcar, especiarias - esse tipo de coisa - de má qualidade,

nunca direi a ele para ir a outro lugar."

"Sou seu humilde servidor, e penhorado agradeço-lhe," disse Mr.

Mawmsey, sentindo que a política já se aclarava um pouco. "Não deixaria

de ser um prazer votar num cavalheiro que fala de tão honrosa maneira."

"Pois bem, Mr. Mawmsey, o senhor há de constatar que o correto é

colocar-se ao nosso lado. Esta Reforma com o tempo vai afetar a todos

532

GEORGE ELIOT

- é uma medida altamente popular - uma espécie de ABC, sabe?, que

tem de vir primeiro antes de o resto seguir-se. Concordo com seu ponto

de vista, de que é preciso olhar a coisa à luz da família: mas e o espírito

público? Somos todos uma só família - não é? - tudo é uma trama de

interesses. Pegue algo tão simples como um voto; pois bem, ele pode

contribuir para que homens enriqueçam na cidade do Cabo - não há


como saber qual seja o efeito de um voto," concluiu Mr. Brooke, com a

impressão de estar um pouco à deriva, o que ainda assim achava

desfrutável. Mas Mr. Mawmsey respondeu num tom de fiscalização de-

cidida.

"Queira o senhor me desculpar, mas disto discordo. Quando dou um

voto, devo saber o que estou fazendo; devo pensar, falando com o devi-

do respeito, nos efeitos futuros sobre meu livro-razão e a gaveta da cai-

xa. Os preços, admito, são algo cujo mérito ninguém consegue saber; e

as quedas bruscas depois de se ter feito uma compra de passas de Corinto,

uma mercadoria que não dura, - nem eu nunca penetrei no vaivém

dessas flutuações; o que é uma ofensa ao orgulho humano. Mas, quanto

a sermos uma só família, existem o devedor e o credor, suponho; e isto

eles não vão poder reformar; caso contrário, eu votaria para que as coi-

sas fiquem como estão. Pouca gente tem menos necessidade de clamar

por mudança do que eu, falando pessoalmente, - ou seja, por mim e

minha família. Não sou daqueles que nada têm a perder; refiro-me à

respeitabilidade, quer nos negócios particulares, quer nos paroquiais, e

de modo algum a respeito de sua ilustre pessoa e proceder, o senhor que

teve a bondade de dizer-me que não sairá de minha freguesia, com ou

sem voto, enquanto os artigos enviados forem satisfatórios."

Depois desta conversa Mr. Mawmsey subiu a escada para jactanciar-

se com sua esposa de ter sido um pouco duro demais com Mr. Brooke de

Tipton, e de que agora ele já não ligava tanto assim para a questão de

seu voto.

Mr. Brooke nesta ocasião absteve-se de jactanciar-se de suas táticas

com Ladislaw, o qual por sua vez, de tão contente, persuadiu-se de que

nada tinha a ver com a cabala de votos, exceto a de tipo puramente

argumentativo, e de que ele manejava um instrumento dos menos des-

prezíveis, o conhecimento. Mr. Brooke, necessariamente, tinha seus agen-

tes, que conheciam a natureza do eleitor de Middemarch e os meios de

alistar sua ignorância no lado a favor da Lei - que eram notavelmente


similares aos meios de alistá-la no lado contrário à Lei. Will não quis

saber disto. Na prática o Parlamento, como o restante de nossas vidas,

até mesmo a nutrição e o vestuário, mal poderia existir se nossas imagi-

MIDDLEMARCH

533

nações fossem ativas demais em relação aos processos. Para fazer negó-

cios sujos já havia no mundo um bando de homens de mãos sujas; e wíli

prometeu a si mesmo que sua participação na campanha de Mr. Brooke

seria totalmente inocente.

Era-lhe muito duvidoso, porém, saber se deste modo ele contribui-

ria para garantir maioria para o lado correto. Havia escrito vários discur-

sos e anotações para discursos, mas começou a perceber que a mente de

Mr. Brooke, caso forçada a se lembrar da seqüência de um pensamento,

deixava-a pairar no ar, para sair correndo em sua busca e custar a vir de

volta. Colecionar documentos era um modo de servir ao pais, lembrar-

se do conteúdo de um documento era outro. Não! o único modo de

induzir Mr. Brooke a pensar nos argumentos certos na hora certa era

torná-lo saturado deles, até que lhe ocupassem todo o espaço do cére-

bro. Mas aqui surgia o problema de encontrar espaço, tantas eram as

coisas já ali instaladas de antemão. O próprio Mr. Brooke observou que

suas idéias o atrapalhavam um pouco em seu avanço, quando ele estava

falando.

Contudo, o adestramento feito por Ladislaw seria em breve posto à

prova, pois antes do dia da escolha de candidaturas Mr. Brooke iria ex-

plícar-se aos dignos eleitores de MiddIemarch da sacada do White Hart,

que se projetava vantajosamente de um ângulo da praça do mercado,

comandando uma grande área na frente e duas ruas convergentes. Era

uma bela manhã de maio e tudo parecia esperançoso: havia uma pers-
pectiva de entendimento entre o comitê de Bagster e o de Brooke, à qual

Mr. Buistrode, Mr. Standish, na condição de advogado liberal, e homens

do ramo manufatureiro como Mr. Plymdale e Mr. Vincy davam uma so-

lidez que quase contrabalançava a de Mr. Hawley e seus companheiros,

que se reuniam por Pinkerton no Green Dragon. Mr. Brooke, consciente

de ter enfraquecido as cometadas da "Trombeta" contra ele, pelas refor-

mas que, como senhorio, havia feito nos últimos seis meses, e ouvindo

algumas aclamações quando entrou de carruagem na cidade, sentiu seu

coração toleravelmente leve sob o colete cor de camurça. Mas, em rela-

ção às ocasiões críticas, acontece muitas vezes que todos os momentos

pareçam comodamente remotos até o último.

"Não está nada mal, não é?" disse Mr. Brooke quando a multidão se

ajuntou. "Vou ter uma boa audiência, seja como for. Eu gosto disto, sabe?

- este tipo de público constituído pelos próprios vizinhos, não é?"

Os tecelões e curtidores de Middemarch, ao contrário de Mr.

Mawmsey, nunca haviam pensado em Mr. Brooke como um vizinho, e

ligavam tanto para ele como se o houvessem enviado de Londres numa

534

GEORGE ELIOT

caixa. Mas ouviram sem muita agitação os oradores que apresentavam o

candidato, se bem que um deles - um figurão político de Brassing que

viera dizer a Middemarch seu dever - falasse tanto que já era alarman-

te pensar no que o candidato poderia encontrar para dizer depois dele.

Entrementes a multidão se adensava e, quando o figurão político se

aproximava do fim de seu discurso, Mr. Brooke percebeu uma notável

mudança em suas sensações enquanto ele ainda ia ajeitando o monóculo,

mexendo nos documentos à sua frente e trocando observações com seu

comitê, como um homem para quem o momento da convocação era in-


diferente.

"Vou tomar mais um copo de xerez, Ladislaw," disse ele, muito à

vontade, para Will, que estava bem nas suas costas e sem tardar lhe

serviu o suposto fortificante. Não foi uma boa idéia; pois Mr. Brooke era

abstêmio, e beber um segundo copo de xerez, a um pequeno intervalo

logo após o primeiro, foi uma surpresa para seu organismo, que tendeu

a dissipar suas energias, e não a concentrá-las. Por favor, tenham pena

dele: tantos ingleses tornam-se desagradáveis discursando por razões

inteiramente particulares! ao passo que Mr. Brooke desejava servir à sua

pátria candidatando-se ao Parlamento - o que de fato também pode

ser feito por razões particulares mas, uma vez empreendido, exige abso-

lutamente certa discurseira.

Não era por causa do começo de seu discurso que Mr. Brooke se

sentia ansioso; isto, tinha certeza, sairia bem; fá-lo-ia na medida, talha-

do com a mesma precisão que uma seqüência de dísticos de Pope. Em-

barcar seria fácil, mas a visão do mar aberto que poderia vir depois era

alarmante. "E depois as perguntas," insinuou o demônio recém-desper-

tado em seu estômago, "alguém pode fazer perguntas sobre o programa

- Ladislaw," continuou ele, em voz alta, "passe-me aí o memorando do

programa."

Quando Mr. Brooke se apresentou na sacada, os aplausos foram bem

fortes para contrabalançar os gritos, grunhidos, zurros e outras expressões

de teoria adversa, tão moderados que Mr. Standish (decididamente uma

velha raposa) observou no ouvido mais próximo: "Isto me parece arrisca-

do, por Deus! O Hawley conseguiu um plano muito melhor." Ainda as-

sim, os aplausos eram animadores, e nenhum candidato poderia parecer

mais amável do que Mr. Brooke, com o memorando no seu bolso do pei-

to, a mão esquerda na grade da sacada e a direita mexendo no monóculo.

Os detalhes mais notáveis em sua aparência eram o colete cor de camurça,

o cabelo louro cortado curto e a fisionomia neutra. Ele começou com certa

segurança. "Meus senhores - eleitores de MiddiernarchV"


MIDDLEMARCH

535

Era tão bem dito que parecia natural, depois disto, uma ligeira pausa.

"Estou incomumente feliz de estar aqui - nunca estive tão orgulho-

so e feliz em minha vida - nunca tão feliz, sabem?"

Foi uma ousada figura de linguagem, mas não exatamente a mais

adequada; pois, infelizmente, a abertura na medida se lhe escapara -

até os dísticos de Pope podem não ser senão "partes de nós que caem,

se desvanecem," quando o medo se apossa de nós e um copo de xerez

circula como fumaça em meio às nossas idéias. Ladislaw, plantado na

janela por trás do orador, pensou: "Pronto, está tudo perdido. A única

chance, já que o melhor nem sempre é o que se imagina, é que os deba-

tes possam pela primeira vez dar certo." Mr. Brooke, enquanto isto,

tendo perdido as outras pistas, recorreu à sua própria pessoa e suas

qualificações - sempre um tema apropriado e gracioso para um candi-

dato.

"Sou um vizinho de vocês, meus bons amigos, - não é de hoje que

conhecem minha atuação em juízo - sempre estive muito enfronhado

nas questões públicas - a das máquinas, e também a dos quebra-quebras

de máquinas, - muitos de vocês estão preocupados com as máquinas, e

ultimamente eu tenho pensado nisto. Sair quebrando máquinas, sabem,

não resolve nada: tudo tem de progredir - os oficios, a manufatura, o

comércio, o intercâmbio de produtos básicos - esse tipo de coisa - des-

de Adam. Smith que tudo tem de progredir. Devemos olhar em todo o

globo: - "Uma observação com amplitude de vista," olhar em todas as

partes, "da China ao Peru," como disse alguém - Johnson, penso eu, "O

Passeante," não sabem?" Pois é o que eu tenho feito, até um certo ponto

- não tão longe como o Peru; mas não fiquei sempre em casa - vi que
não daria certo. Estive no Levante, para onde vão alguns dos produtos de

Middemarch, - e também no Báltico. Pois é, no Báltico."

Vagando em meio às suas recordações deste modo, Mr. Brooke po-

deria ter ido sem dificuldade em frente, e regressaria incólume dos ma-

res mais remotos; mas um golpe diabólico havia sido preparado pelo

inimigo. Sem mais nem menos, acima dos ombros da multidão ergueu-

se, quase em face de Mr. Brooke, e a uns dez metros dele, sua própria

efígie; o colete cor de camurça, o monóculo, a fisionomía neutra pinta-

dos num pedaço de pano; e concomitantemente se erguia aos ares, como

as notas de um cuco, um eco apapagaiado de suas palavras, lembrando

"Alusão às linhas iniciais do poema "The Vanity of Human Wishes" €A vaidade

dos desejos

humanos"), do escritor e moralista inglês Samuel Johnson (1709-1784), e não,

como está

dito, a seus ensaios reunidos em The Rambler (O passeante).

536

GEORGE ELIOT

uma voz de Polichinelo. Todos olharam para as janelas abertas das casas

nos ângulos opostos das ruas convergentes; que ou estavam vazias, ou

cheias de ouvintes achando graça. O mais inocente dos ecos contém um

escárnio maldoso, quando acompanha um orador persistente e grave, e

este não era de modo algum inocente; se não acompanhava com a preci-

são de um eco natural, fazia porém uma escolha pérfida das palavras que

repetia. Na hora em que disse: "Pois é, no Bálticof o riso que já percor-

ria a audiência tornou-se uma gargalhada em uníssono e, não fossem os

efeitos moderadores do partidarismo e da grande causa pública que o

emaranhado das coisas havia identificado com "Brooke de Tipton," a


risadaria poderia ter atingido até seu comitê. Mr. BuIstrode perguntou,

repreensivamente, o que estava fazendo a nova polícia; mas não havia

muito como controlar uma voz, e um ataque à efigie do candidato teria

sido grande erro, já que Hawley provavelmente pretendia que lhe atiras-

sem pedras.

O próprio Mr. Brooke não se achava em condições de rapidamente

tomar consciência de qualquer coisa, a não ser um esvaziamento genera-

lizado de idéias em si mesmo: o que lhe chegou aos ouvidos foi aliás

uma cançãozinha, sendo ele a única pessoa que ainda não se dera conta

distintamente do eco nem distinguira a imagem caricata. Poucas coisas

mantêm as percepções mais completamente cativas do que a ansiedade

sobre o que temos a dizer. Mr. Brooke ouviu as gargalhadas; mas já

esperava algumas tentativas de perturbação por parte dos conservado-

res, e neste momento ele estava ainda mais excitado pela sensação ar-

dente e deleitosa de que seu exórdio perdido já vinha voltando para

resgatá-lo do Báltico.

"Isto me lembra," prosseguiu ele, pondo, com ar de estar à vontade,

uma das mãos no bolso, "se eu precisasse de um precedente, não é? -

mas nunca precisamos de precedentes para uma causa justa - mas en-

fim há Chaffiam, ora; não posso dizer que eu teria apoiado Chaffiam, ou

Pitt, o jovem Pitt1 - ele não era um homem de idéias, e nós precisamos

de idéias, não é?"

"Que se danem suas idéias! nós queremos a Lei," disse uma voz alta

e rude da multidão embaixo.

Imediatamente o Polichinelo invisivel, que vinha acompanhando Mr.

Brooke, repetiu: "Que se danem suas idéias! nós queremos a Lei." Os

risos foram mais fortes que nunca, e Mr. Brooke, estando agora calado,

"William Pitt, primeiro conde de Chatham (1708-1778), político liberal cujo

filho de igual

nome foi primeiro-ministro de 1783 a 1801 e de 1804 a 1806.


MIDDLEMARCH

537

ouviu distintamente o eco zombeteiro, o qual, parecendo-lhe tornar ri-

dículo quem o interrompia, pareceu-lhe por conseguinte encorajador; e

ele assim replicou serenamente:

"Há algo no que diz, meu bom amigo, e por que nos reunimos, se-

não para dizer o que pensamos - pela liberdade de opinião, a liberdade

de imprensa, os direitos - esse tipo de coisa? A Lei, pois bem - os

senhores terão a Lei" - aqui Mr. Brooke fez uma pausa para fixar o

monóculo e tirar o papel que estava no seu bolso do peito, com a im-

pressão de ser prático e entrar em detalhes. O Polichinelo invisivel

remedou:

"O senhor terá a Lei, Mr. Brooke, por impugnação devido às cabalas,

e uma cadeira fora do Parlamento, por cinco mil libras, sete xelins e

quatro pences contra a entreb-aa."

Mr. Brooke, em meio aos ataques de riso, ficou vermelho, deixou

cair seu monóculo e, olhando confusamente ao redor, viu sua própria

imagem, que chegara mais para perto. No momento seguinte, viu-a do-

lorosamente enxovalhada de ovos. Seu espírito ergueu-se um pouco,

sua voz também.

"A palhaçada, os golpes, ridicularizar o teste da verdade - tudo isto

está muito bem" - aqui um ovo mais incômodo veio quebrar-se no

ombro de Mr. Brooke, enquanto o eco dizia: "Tudo está muito bem;"

veio depois uma saraivada de ovos, visando principalmente a imagem,

mas acertando ocasionalmente o original, como que por acaso. Uma

corrente de homens novos surgiu aos empurrões entre a multidão; seus

berros, assobios, bramidos e pífáros causaram confusão ainda maior

porque houve gritos e esforços para contê-los. Voz alguma se elevaria


tão alto para sobrepor-se à baderna, e Mr. Brooke, ungido tão desagra-

davelmente, desistiu de defender seu terreno. A decepção seria menos

exasperante, se menos zombeteira e infantil houvesse sido a interven-

ção: um ataque sério, do qual o repórter do jornal pudesse afirmar que

"pôs em risco as costelas do erudito senhor," ou respeitosamente teste-

munhar que "as solas das botas deste senhor puderam ser vistas acima

da grade," tinha talvez mais consolações vinculadas.

Mr. Brooke recuou para a sala do comitê, dizendo do modo mais dis-

plicente possível: ", não foi nada bom, não é? Eu deveria ter ganho logo

a atenção do povo - mas eles nem me deram tempo. Eu deveria ter

entrado logo na Lei, não é?" acrescentou, olhando para Ladislaw. "Contu-

do, as coisas acabarão dando certo, quando da indicação dos candidatos."

Mas não foi decidido por unanimidade que as coisas iam dar certo; o

comitê, pelo contrário, se mostrava algo soturno, e o figurão político de

538

GEORGE ELioT

Brassing escrevia atarefadamente, como se estivesse concebendo novos

estratagemas.

"Foi o Bowyer quem fez aquilo," disse Mr. Standish, de modo evasi-

vo. "Sei-o tão bem como se o anunciassem. Ele é um grande ventrílo-

quo, e diga-se, por Deus, que fez um excelente trabalho! Recentemente

ele andou jantando com o Hawley: este Bowyer é um poço de talento!"

"Ora essa, Standish, você nunca me falou dele, porque senão eu o

teria convidado a jantar," disse o pobre Mr. Brooke, que pelo bem de

seu país já havia tido de fazer pencas de convites.

"Não há em Middemarch tipo mais desprezível do que o Bowyer,"

disse Ladislaw, indignado, "mas parece que os tipos desprezíveis sem-

pre acabam pesando na balança."


Will estava cheio de raiva, tanto de si quanto do "chefe," e foi tran-

car-se em seus aposentos com a resolução qua se tornada de desistir logo

de vez do "Pioneiro" e Mr. Brooke. Ficar por quê? Para tapar o abismo

intransponível entre ele e Dorothea, se jamais possível, talvez fosse

melhor partir e procurar uma colocação totalmente diferente do que fi-

car e ser alvo de imerecido desprezo como um subalterno de Brooke.

Veio a seguir o sonho jovem das maravilhas que ele poderia fazer - em

cinco anos, por exemplo: os escritos políticos, os discursos políticos ad-

quiririam valor mais alto, agora que a vida pública já se ia a tornar mais

nacional e ampla, e poderiam conferir-lhe tal distinção que ele não pare-

ceria ter de pedir a Dorothea que descesse a seu nível. Cinco anos: - se

ao menos pudesse certificar-se de que interessava a ela mais do que

outros; se ao menos pudesse fazê-la entender que ficaria ao longe até

estar em condições de lhe declarar seu amor sem se rebaixar - então

poderia partir tranqüilamente e começar uma carreira que, aos vinte e

cinco anos, mostrava-se bastante provável na ordem geral das coisas,

onde o talento traz fama, e a fama, tudo o mais que é prazeroso. Poderia

discursar e poderia escrever; poderia dominar qualquer assunto que es-

colhesse, e pretendia tomar sempre o lado da razão e da justiça, no qual

poria todo seu ardor. Por que não haveria ele de um dia ser erguido nos

ombros da multidão, sentindo que consquistara esta eminência por bem?

Sem dúvida sairia de Middiemarch, iria para a capital e se prepararia

para a celebridade "indo a seus jantares.`

"Exigia-se dos estudantes destinados à advocacia que, antes de serem

admitidos no foro,

jantassem algumas vezes numa das quatro sociedades ou escolas de direito de

Londres,

genericamente conhecidas como ffins of Court (Inner Temple, MíddIe Temple,

Lincoin"s Inn e

Gray"s Inn).
MIDDLEMARCH

539

Mas não de imediato: não até que algum tipo de sinal fosse trocado

entre ele e Dorothea. Não sossegaria até ela saber por que, mesmo que

ele fosse o seu escolhido, não se casava com ela. Donde lhe ser necessá-

rio conservar o emprego e agüentar Mr. Brooke mais um pouco.

Logo porém teve razão para suspeitar de que Mr. Brooke se anteci-

para a ele no desejo de desfazer sua união. Deputações externas e vozes

interiores haviam convergido para induzir este filantropo a tomar uma

medida mais forte que de costume para o bem da humanidade; qual

fosse, retirar-se em favor de outro candidato, ao qual deixava as vanta-

gens de sua máquina eleitoral. Ele próprio a chamou de medida forte,

mas observou que sua saúde, ao contrário do que havia imaginado, não

agüentava tanta excitação.

"Venho sentindo uma dorzínha no peito - não há como levar muito

longe isto," disse ele a Ladislaw ao lhe explicar a questão. "Tenho de

cair fora. O Casaubon, coitado, foi uma advertência, sabe? Fiz despesas

pesadas, mas abri um canal.  um trabalho muito bruto - esse negócio

de eleição, não é, Ladislaw? Ouso dizer que você já se cansou. Contudo,

nós abrimos um canal com o "Pioneiro"- mostramos um caminho a se-

guir. Um homem mais comum que você poderia continuar agora - mais

comum, sabe?"

"O senhor quer que eu me demita?" disse Ladislaw, logo o sangue

lhe aflorando à face, quando se levantou da escrivaninha e deu três pas-

sos em torno, com as mãos nos bolsos. "Estou pronto a fazê-lo, sempre

que o queira."

"Quanto a querer ou não, meu caro Ladislaw, tenho de sua capaci-

dade, como bem sabe, a melhor opinião. Quanto ao "Pioneiro," porém,


andei consultando um pouco alguns dos nossos companheiros, e eles se

inclinaram a tomá-lo em mãos - indenizando-me de certa forma - e

levá-lo adiante mesmo. Nestas circunstâncias, você talvez queira demi-

tir-se - queira encontrar um melhor campo. As pessoas em pauta po-

dem não tê-lo em tão alta estima como sempre o tive, como um alter ego,

um braço direito - se bem que eu também sempre pensasse em você

fazendo outra coisa, no futuro. Pretendo dar uma chegada à França. Mas

prontífico-me às cartas de apresentação que quiser, sabe? - para o

Althorpe e gente desta estirpe. Eu conheço o Althorpe."I

"Fico-lhe imensamente agradecido," disse, com muito orgulho,

Ladislaw. "Já que o senhorvai desligar-se do "Pioneiro," não preciso inco-

ljohnCharlesSpencer, visconde Althorpe, lider da oposição dos antigos

liberais (os whigs) ao

governo conservador (1828-1830) que teve como primeiro-ministro o general

Wellington.

540

GEORGE ELIOT

modá-lo sobre os passos que eu hei de dar. Posso resolver continuar

aqui por enquanto."

Após Mr. Brooke o ter deixado, disse Will para si mesmo: "O resto

da família andou instando com ele para livrar-se de mim, e ele pouco se

importa agora com o meu destino. Pois vou ficar enquanto eu quiser.

Hei de agir por moto próprio, e não porque eles estão com medo de

mim."

CAPÍTULo LII
"His heart

The lowEest duties on itself did lay."

- WORDSWORTH.

€"Seu coração

Aos deveres mais baixos sujeitou -se.")

- WORDSWORTH.1

NA NOITE DE JUNHO em que Mr. Farebrother soube que ele ficaria com o

beneficio eclesiástico de Lowick, houve alegria em sua sala antiquada,

onde até os retratos dos grandes jurisconsultos pareciam olhar com sa-

tisfação. A mãe nem tocou no chá com torradas; mas, sentada com seu

ar costumeiro, de superioridade um pouco afetada, só demonstrava sua

emoção por esse rubor nas faces e o brilho do olhar, que dão a uma velha

senhora uma tocante identificação momentânea com seu ser juvenil já

tão remoto, e dizendo com decisão:

"A maior satisfação, Carnden, é que você o mereceu."

"Quando um homem tem um bom emprego, mãe, metade do que é

merecido deve vir a seguir," disse o filho, transbordante de prazer, e não

tentando esconder isto. O contentamento em seu rosto era do tipo ati-

vo, que parece ter energia bastante não só para brilhar por fora, mas

também para aclarar a atarefada visão interior: dir -se-ia que, além de

deleite, havia pensamentos à mostra em seus olhares.

"Agora, tia," prosseguiu ele, esfregando as mãos e olhando para Miss

Noble, a qual lá estava a fazer uns barulhinhos de castor bem discretos,

"Do poema "London, 1802," de William Wordsworth (1770-1850).

542
GEORGE ELIOT

Ir(sempre haverá açúcar-cande na mesa para a senhora roubar e distribuir

com as crianças, além de muitas meias novas para dar de presente, en-

quanto continua a cerzir mais do que nunca as que tem!"

Miss Noble concordou com a cabeça, dirigindo ao sobrinho um sor-

riso meio alarmado e contido, consciente de já ter deixado cair mais um

torrão de açúcar, por conta da nova promoção, em sua cesta.

"Quanto a você, Winny," - continuou o Pastor - "não criarei difi-

culdades para que se case com algum solteirão de Lowick - Mr. Solomon

Featherstone, por exemplo, tão logo eu saiba que tem amor por ele."

Miss Winifred, que o tempo todo estivera a olhar para o irmão, cho-

rando para valer, o que era seu modo de alegrar-se, sorriu por entre as

lágrimas e disse: "Você deve dar-me o exemplo, Cam: deve você casar-se

agora."

"Não me oponho em nada. Mas quem tem amor por mim? Eu sou

um velho enferrujado," disse o Pastor, erguendo-se, arredando sua ca-

deira e olhando-se de cima a baixo. "Que diz a senhora, mãe?"

"Você é um homem bonito, Camden: embora não tenha uma figura

tão bem talhada quanto a de seu pai," disse a velha senhora.

"Bom seria se se casasse com Miss Garth, meu irmão," disse Miss

Winifred. "Ela animaria tanto nossa vida em Lowick!"

"Muito bem! Você fala como se as senhoritas estivessem amarradas

à escolha, como galinhas no mercado; como se bastasse eu pedir para

que qualquer uma me aceitasse," disse o Pastor, não se preocupando em

especificar.

"Nós não queremos qualquer uma," disse Miss Winifred. "Mas a

senhora gostaria de Miss Garth, não gostaria, mamãe?"

"A escolha de meu filho há de ser a minhaf disse Mrs. Farebrother,

com majestática discrição, "e uma esposa seria muito bem-vinda, Carriden.
Você há de querer seu uíste em casa, quando nós formos para Lowick, e

Henrietta Noble nunca foi uma jogadora de uíste." (Mrs. Farebrother

sempre chamava sua irmã tão miudinha por este magnificente nome.)

"O uíste agora não me faz mais falta, mãe."

"Por que não, Cainden? Em minha época o uíste era considerado

uma diversão inatacável para um bom clérigo," disse Mrs. Farebrother,

que nada sabia do que o uíste significava para seu filho, e falando em

tom meio brusco, como se em uma perigosa aprovação de nova dou-

trina.

"Estarei muito ocupado para jogar uíste; vou ter duas paróquias,"

disse o Pastor, preferindo não discutir as virtudes deste jogo.

Ele já havia dito a Dorothea: "Não me sinto obrigado a renunciar a

MIDDLEMARCH

543

Saint Botolph. Já será uma forma de protesto contra o pluralismo que

eles querem reformar, se eu deixar para um outro a maior parte do di-

nheiro. O mais importante não é renunciar ao poder, mas usá-lo bem."

"Tensei nisto," respondera Dorothea. "No que conceme à própria

pessoa, julgo que renunciar ao poder e ao dinheiro seria mais cômodo

do que conservá-los. Estranho muito que o poder de conceder este be-

neficio esteja em minhas mãos, no entanto senti que eu não deveria

permitir que outro que não eu mesma o usasse."

"Eu é que sou obrigado a agir de modo a que a senhora não venha a

lamentar seu poder," dissera Mr. Farebrother.

Sua natureza era uma dessas nas quais a consciência se torna mais

ativa quando o jugo da vida cessa de esfolá-las. Ele não fez nenhuma

demonstração de humildade acerca disto, mas sentiu-se meio envergo-

nhado em seu coração porque sua conduta havia revelado negligências


de que outros, os que não recebiam benefícios, estavam livres.

"Muitas vezes já desejei ser outra coisa na vida que não clérigo,"

disse ele a Lydgate, "mas talvez seja melhor tentar fazer de mim um

bom clérigo, na medida em que o puder. Este é o ponto de vista de quem

já tem seu benefício, percebe?, onde as dificuldades se simplificam mui-

to," concluiu, sorrindo.

O Pastor não sentia então que sua cota de obrigações fosse ser cô-

moda. Mas o Dever tem a mania de se comportar de modo inesperado

- meio como um amigo pesadão que gentilmente convidamos a visitar-

nos, e que quebra a perna em nossa casa.

Mal transcorrida uma semana, o Dever apresentou-se em seu gabi-

nete disfarçado em Fred Vincy, que agora regressava do Omníbus College

com seu grau de bacharel.

"Fico sem jeito de incomodá-lo, Mr. Farebrother," disse Fred, cujo

rosto formoso e franco era propiciatório, "mas o senhor é o único amigo

que eu posso consultar. já lhe contei tudo antes, e o senhor foi tão bon -

doso que me sinto forçado a procurá-lo de novo."

"Sente-se, Fred, estou pronto para ouvi-lo e fazer o que puder," dis-

se o Pastor, que estava ocupado, embrulhando para a mudança alguns

pequenos objetos, e continuou na tarefa.

"Eu queria dizer-lhe -" Fred hesitou um instante, mas prosseguiu

com decisão, "que agora eu poderia entrar para a Igreja; e realmente,

por mais que olhe ao redor, não vejo outra coisa para fazer. Não gosto da

carreira, mas seria um duro golpe para meu pai dizer-lhe isto, depois de

ele ter gasto tanto dinheiro, educando-me para ela." Fred fez de novo

uma pausa, depois repetiu: "Não vejo outra coisa para fazer."

544

GEORGE ELIOT
"Eu conversei com seu pai sobre isto, Fred, mas não fui muito longe.

Ele disse que era tarde demais. Mas você agora já atravessou uma ponte:

que outras dificuldades tem?"

"Simplesmente que eu não gosto. Não gosto de teologia, nem de

sermões, nem de me sentir obrigado a uma aparência séria. Gosto de

sair a cavalo pelo campo, de fazer como os outros homens. Não é que eu

queira ser um mau sujeito, não, de modo algum; mas o tipo de coisa que

se espera de um clérigo não me apraz. Entretanto, o que mais posso

fazer? Meu pai não tem capital para me fornecer, porque senão eu me

dedicaria à agricultura. Nem tem lugar para mim no negócio dele. E é

claro que eu não posso começar a estudar direito ou medicina agora,

quando meu pai quer que eu já ganhe alguma coisa. Está muito certo

dizer que, entrando para a Igreja, eu cometo um erro; mas quem diz isto

estaria certo também se então me mandasse ir viver no mato."

A voz de Fred assumira um tom de reclamação rabugenta, e Mr.

Farebrother poderia ter-se inclinado a sorrir, não estivesse sua mente

por demais ocupada, imaginando mais do que lhe falara Fred.

"Você tem alguma dificuldade em relação à doutrina - em relação

aos Artigos" disse ele, tentando considerar a questão somente pelo

ângulo do próprio Fred.

"Não; suponho que os Artigos estejam certos. Não estou munido de

argumentos para desaprová-los e, melhor ainda, há gente muito mais

capacitada que eu que concorda com eles integralmente. Penso que seria

meio ridículo de minha parte insistir com escrúpulos do gênero, como se

eu fosse um juiz," disse Fred, na maior simplicidade.

"Parece-me pois ter-lhe ocorrido que talvez você possa ser um pas-

tor de paróquia razoável, sem ser exatamente um teólogo?"

"Claro que, sendo forçado ao sacerdócio, hei de tentar cumprir meu

dever, ainda que o mesmo não me agrade. A seu ver, terão razão para

queixar-se de mim?"

"Por entrar para a Igreja nestas circunstâncias? Isto depende da sua


consciência, Fred, - de até que ponto considerou o custo e viu o que

sua posição há de exigir de você. Só lhe posso falar sobre mim mesmo,

eu que sempre fui muito frouxo e, em conseqüência, tenho vivido

intranqüilo."

"Mas há um outro obstáculof disse Fred, corando. "Não lhe disse

antes, embora eu talvez tenha dito coisas que o levassem a adivinhar. Há

alguém de quem gosto muito: que amo e sempre amei desde criança."

"Miss Garth, suponho?" disse o Pastor, examinando com extrema

atenção umas etiquetas.

MIMUMARCH

545

"Sim. Eu não me importaria com nada, se ela me aceitasse. E sei que

eu então seria um bom homem."

"Este seu sentimento é correspondido?"

"Ela nunca o dirá; e há um bom tempo fez-me prometer não lhe falar

de novo a respeito. Ela é particularmente contrária, sei disto, a que eu

seja um clérigo. E eu não desisto dela, não posso, e sei que ela se inte-

ressa por mim. Ontem à noite conversei com Mrs. Garth e ela me disse

que a Mary estava passando uns dias com Miss Farebrother no reitorado

de Lowick."

"Pois é, tem sido muito boa, ajudando minha irmã. Você quer ir

até lá?h*

"Não, quero pedir um grande favor de sua parte. Fico sem jeito de

incomodá-lo assim deste modo, mas talvez a Mary lhe ouça se o senhor

tocar no assunto com ela - quero dizer, no meu ingresso na Igreja."

" uma tarefa um pouco delicada, meu caro Fred. Eu terei de pressu-

por sua ligação com ela; e tocar no assunto, como você deseja que eu

faça, será pedir que ela me diga se corresponde ou não."


"Pois é o que eu quero que ela lhe diga," disse Fred, de supetão.

"Não saberei o que fazer, a menos que saiba os sentimentos dela."

e Quer dizer que se guiaria por isto para decidir se entra ou não para

a Igreja?"

"Se a Mary dissesse que nunca iria aceitar-me, eu poderia igualmen-

te errar por este ou por aquele caminho."

"Tolice, Fred. Os homens sobrevivem ao seu amor, mas não às con-

seqüências de sua própria imprudência."

"Não meu tipo de amor: nunca deixei de sentir amor por Mary. Se eu

tivesse de desistir dela, seria como ter de viver andando em pernas de

pau."

"Se eu me intrometer, ela não vai ficar ofendida?"

"Não, estou seguro que não. Ela o respeita mais que a qualquer

outro, e não o afastaria com gracejos, como faz comigo. Claro que eu

não poderia ter contado isto a ninguém, nem pedido a ninguém para

falar com ela, a não ser o senhor. Não há ninguém capaz de ser tão

amigo, ao mesmo tempo, de nós dois." Fred fez uma pausa, depois dis-

se, em tom algo queixoso: "E ela devia reconhecer que eu suei muito

para ser aprovado. Devia acreditar que, por causa dela, sou capaz de

qualquer esforço."

Houve um momento de silêncio antes de Mr. Farebrother interrom-

per seu trabalho e dizer, estendendo a mão a Fred:

"Está bem, meu jovem. Vou fazer o que você quer."

546

GEORGE ELIOT

Nesse mesmo dia Mr. Farebrother foi ao presbitério de Lowick no

pônei que ele havia acabado de comprar. "Eu sou um galho velho," pen-

sava, "e os brotos novos estão me pondo de lado."


Encontrou Mary no jardim, colhendo rosas e espalhando pétalas

numa folha de papel. O sol já estava baixo, e árvores altas lançavam suas

sombras pelos caminhos gramados por onde Mary se movia sem chapéu

nem sombrinha. Não notando a aproximação de Mr. Farebrother, que

vinha pela grama, ela acabara de curvar-se para ralhar com um cachorri-

nho preto e castanho, que insistia em pisar no papel e farejar as pétalas

de rosa, à medida que Mary as arrumava. Tomando-lhe numa das mãos

as patas da frente, ela levantou o indicador da outra, enquanto o cão

franzia o cenho e parecia embaraçado. "Que vergonha, Fly, que vergo-

nha!" dizia Mary numa grave voz de contralto. "Um cachorro ajuizado

não se comporta assim deste modo; podem até pensar que você é um

rapazinho travesso."

"Quanta inclemência com os rapazes, Miss Garth," disse o Pastor, já

a uns dois metros dela.

Mary se assustou e enrubesceu. "Sempre dá certo raciocinar com o

Fly," disse ela, sorrindo.

"Mas com os rapazes, não?"

"Com alguns acho que sim; já que alguns se transformam em exce-

lentes homens."

"Alegra-me que o admita, pois neste exato momento quero chamar

sua atenção para um rapaz."

"Não um travesso, espero," disse Mary, começando a apanhar rosas

de novo e sentindo desagradavelmente seu coração bater.

"Não; se bem que a sabedoria possa não ser seu ponto forte, que são

talvez a sinceridade e a afeição. Contudo, a sabedoria reside mais nestas

duas qualidades do que as pessoas em geral imaginam. Por estas indica-

ções, espero que já saiba de que rapaz estou querendo falar."

"Sim, acho que sim," disse Mary, intrepidamente, tornando-se-lhe o

rosto mais sério, e as mãos, mais frias; "deve ser o Fred Vincy."

"Ele me pediu para consultá-la sobre seu ingresso na Igreja. Es-

pero que não pense que eu me permiti muita liberdade, prometendo


fazê-lo."

"Pelo contrário, Mr. Farebrother," disse Mary, desistindo de suas ro-

sas e cruzando os braços, mas incapaz de erguer os olhos, "sempre me

sinto honrada quando o senhor tem alguma coisa a dizer-me."

"Mas, antes de eu entrar no assunto, permita-me tocar num ponto

do qual vim a saber, confidencialmente, pelo seu pai; aliás, foi naquela

MIDDLEMARCH

547

mesma noite em que certa vez eu me desincumbi de uma missão para o

Fred, logo depois de ele ter ido para a faculdade. Mr. Garth me contou o

que aconteceu na noite da morte do Featherstone - como você se recu-

sou a queimar o testamento; e disse que o fato a levou a sentir certo

remorso, porque você havia sido o meio inocente a impedir que o Fred

recebesse suas dez mil libras. Tenho pensado sobre isto, e eu soube de

uma coisa que lhe pode trazer alívio - que lhe pode mostrar que ne-

nhuma expiação de sua parte é exigida."

Mr. Farebrother fez uma pausa e olhou para a moça. Ele queria dar a

Fred o maior relevo possível, mas seria bom, pensou, livrar a mente de

Mary das superstições a que as mulheres às vezes se sujeitam, quando

fazem a um homem o mal de se casar com ele como um ato de sacrifício.

As faces de Mary já ardiam um pouco, e ela se mantinha calada.

"Quero dizer que sua atitude não fez nenhuma diferença real para o

destino do Fred. Eu soube que o primeiro testamento não teria validade

legal após a queima do último; que ele não se sustentaria, se fosse con-

testado, e não tenha a menor dúvida de que de fato o seria. Assim, sobre

este ponto, você pode tranqüilizar seu espírito."

"Muito obrigada, Mr. Farebrother," disse Mary, gravemente. "Fico-

lhe grata por se lembrar dos meus sentimentos."


"Bem, então eu posso prosseguir. O Fred, sabe, já colou grau. Abriu

seu caminho até aqui, e agora surge a questão, o que ele há de fazer? 

uma questão tão difícil que o Fred está inclinado a seguir a vontade do

pai e ingressar na Igreja, embora antes se opusesse de todo a isto, como

você sabe melhor do que eu. Interroguei-o sobre o assunto e confesso

que, no pé em que estão as coisas, não vejo objeções intransponíveis a

que se torne um clérigo. Diz ele que poderia orientar seu espírito para

dar o melhor de si na vocação, porém sob uma condição. Se a condição

for preenchida, farei tudo o que eu puder para ajudá-lo. Depois de al-

gum tempo - não, é claro, logo no começo - ele poderia ficar comigo

como meu coadjutor, e teria tanto a fazer que receberia um estipêndio

quase igual ao que me coube como pastor da paróquia. Mas repito que

há uma condição sem a qual este bem não poderá ocorrer. Ele me abriu

seu coração, Miss Garth, e pediu-me que intercedesse por ele. A condi-

ção está na dependência direta dos seus sentimentos."

Mary se mostrou tão comovida que ele disse após um momento:

"Vamos andar um pouco;" quando já o faziam, acrescentou: "para falar

com toda a franqueza, o Fred não dará nenhum passo que diminua as

chances de você consentir em ser sua esposa; mas, com esta perspectiva,

tentará fazer o máximo em qualquer coisa que você aprove."

548

GEORGE ELIOT

"Não me é possível dizer que jamais serei sua esposa, Mr. Farebrother:

mas certamente eu nunca serei esposa dele caso se torne um clérigo. O

que o senhor está dizendo é muito gentil e generoso; por nada me cabe

querer comgir seu julgamento. Mas é que eu tenho um jeito meu, bem

de menina, de levar as coisas na caçoada," replicou Mary, com um

lampejo de jocosidade em sua resposta que apenas tornava mais encan-


tadora a modéstia da mesma.

"Ele me pediu que lhe relatasse exatamente o que voce pensa," dis-

se Mr. Farebrother.

"Eu não seria capaz de amar um homem ridículo," disse Mary, sem

pretender ir mais além. "O Fred tem bom senso e conhecimento sufici-

entes para se tornar respeitável, caso queira, nalgum ramo leigo, mas

não consigo imaginá-lo pregando, exortando, dando bênçãos e rezando

pelos doentes, sem a impressão de estar vendo uma caricatura. Ele só se

tornaria um clérigo para obter uma distinção social, e penso que não há

nada mais desprezível que esta distinção imbecil. Eu pensava assim de

Mr. Crowse, com seu rosto apático, seu guarda-chuva bem posto, seus

discursinhos delambidos. Que direito têm esses homens de representar

a Cristandade - como se ela fosse uma instituição para elevar distin-

tamente uns idiotas - como se -" Mary se controlou. Tinha sido arras-

tada como se falasse com Fred, e não com Mr. Farebrother.

"As moças são muito severas; não sentem como os homens a pres-

são da ação, se bem que eu talvez deva fazer de você uma exceção quan-

to a isto. Mas é tão baixo assim o nível no qual põe o Fred Vincy?"

"Não, não mesmo; ele tem bastante bom senso, mas a meu ver, como

um clérigo, não o demonstraria. Seria um simples modelo de afetação

profissional."

"Então a resposta já está decidida. Como clérigo, nenhuma esperan-

ça para ele, não é?"

Mary balançou a cabeça.

"Mas se ele enfrentar todas as dificuldades para ganhar seu pão de

outra maneira - você lhe dará o apoio da esperança? Pode ele contar

com conquistá-la?"

"Acho que não é preciso dizer novamente ao Fred o que eu já disse a

ele," respondeu Mary, com um traço de ressentimento em seu jeito.

"Quero dizer que ele não devia colocar tais questões antes de ter feito

alguma coisa digna, ao invés de afirmar que a poderia fazer."


Mr. Farebrother guardou silêncio por um minuto ou mais, e aí, quan-

do eles se viraram, parando sob a sombra de um bordo no final de um

caminho no gramado, disse: "Eu compreendo que resista a qualquer

MIDDLEMARCH

549

tentativa de ser acorrentada, mas ou bem seu sentimento por Fred Vincy

exclui a hipótese de você manter outra ligação, ou bem não: portanto,

ou ele conta que permaneça solteira até se pôr à altura de sua mão ou,

seja como for, pode ficar desapontado. Desculpe-me, Mary, - era assim

que eu a chamava, não é? no catecismo - mas quando o estado das

afeições de uma mulher interfere com a felicidade de outra vida - de

mais de uma vida - creio que a postura mais nobre, para ela, é ser

perfeitamente franca e direta."

Mary ficou por sua vez em silêncio, surpreendendo-se não com o

jeito de Mr. Farebrother, mas com seu tom de voz, que continha uma

emoção refreada e grave. Quando lhe acudiu a estranha idéia de que as

palavras ditas por ele referiam-se a ele próprio, sentiu-se incrédula e

envergonhada de as estar acolhendo. Ela nunca havia pensado que al-

gum homem pudesse amá-la, a não ser Fred, que a desposara com o anel

de guarda-chuva, quando ela ainda usava peúgas e sapatinhos de presi-

lha; e ainda menos que pudesse ter alguma importância para Mr.

Farebrother, o homem mais inteligente em seu círculo íntimo. Só teve

tempo de sentir que aquilo tudo era brumoso e talvez ilusório; mas uma

coisa era clara e decidida - a resposta dela.

"Já que julga de meu dever, Mr. Farebrother, vou-lhe dizer que o

sentimento que nutro pelo Fred é muito forte para que eu renuncie a ele,

por quem quer que seja. Nunca eu seria totalmente feliz, se o soubesse

infeliz por me perder.  algo que lançou fundas raízes em mim - a


gratidão que ele me inspira por me ter preferido sempre e se preocupar

tanto, desde que éramos bem pequenos, para que eu não me machucas-

se. Não consigo imaginar um novo sentimento nascendo para enfraque-

cer este. Nada me agradaria mais do que vê-lo merecedor do respeito de

todos. Mas diga-lhe, por favor, que até então não prometerei casar-me

com ele; eu causaria vergonha e dissabor aos meus pais. E ele é livre

para escolher uma outra."

"Minha missão então está cumprida," disse Mr. Farebrother, esten-

dendo a mão para despedir-se de Mary, "e eu já volto para Middemarch.

Tendo ele esta perspectiva à frente, nós colocaremos o Fred, de alguma

forma, no lugar certo, e espero ainda viver para juntar suas mãos. Que

Deus lhe abençoe!"

"Oh, fique mais um pouco, por favor, permita-me servir-lhe um chá,"

disse Mary. Seus olhos se encheram de lágrimas, pois algo indefinível,

algo como a resoluta supressão de uma dor na postura de Mr. Farebrother,

fê-la sentir-se bruscamente infeliz, como se sentira uma vez ao ver as

mãos de seu pai tremendo num momento de agitação.

550

GEORGE ELIOT

"Sinto muito, não posso. Tenho de estar de volta."

Em três minutos o Pastor já estava novamente a cavalo, tendo en-

ftentado magnanimamente uma obrigação mais penosa do que a renún-

cia ao uiste, ou mesmo a redação de meditações penitentes.

CAPÍTULo LIII

It is but a shallow haste which concludeth ínsinceríty from

what outsiders call inconsistency - putting a dead me-


chanism of "ifs" and "therefores" to the living myriad of

hidden suckers whereby the belief and the conduct are wrou-

ght into mutual sustainment.

("Meramente superficial é a precipitação que infere

insinceridade do que quem, estando de fora, considera incoe-

rência - anexando um mecanismo morto de "ses" e "por-

tantos" à miríade viva de rebentos por meio dos quais a cren-

ça e a conduta se entrelaçam em mútua sustentação.")

MR. BULSTRODE, QUANDo esperava adquirir um novo interesse por

Lowick, havia naturalmente tido um especial desejo de que o novo pas-

tor fosse alguém que ele aprovasse de todo; e tomou por ser uma adver-

tência e um castigo dirigidos às suas próprias fraquezas e às da nação em

geral que, bem no momento em que ele entrava na posse dos títulos de

propriedade de Stone Court, Mr. Farebrother "se extravasasse" na bi-

zarra igrejinha e fizesse seu primeiro sermão para a congregação de fa-

zendeiros, camponeses e artesãos da vila. Não que Mr. BuIstrode pre-

tendesse freqüentar a igreja de Lowíck ou residir em Stone Court tão

cedo: comprara a excelente fazenda e o belo casarão simplesmente como

um refúgio que pouco a pouco ele poderia aumentar, no tocante à terra,

e embelezar, no tocante à moradia, até que fosse conducente à glória

divina que ele ali se instalasse em residência, retírando-se parcialmente

de sua atual labuta na administração dos negócios, e pondo mais cons-

picuamente ao lado da verdade evangélica o peso da posse de terras no

local, que a Providência poderia tornar maior por imprevisíveis ocasiões

552

GEORGE ELIOT
de compra. Uma forte tendência neste sentido parecia ter sido dada pela

surpreendente facilidade de adquirir Stone Court, quando todos espera-

vam que Mr. Rigg Featherstone se apegasse a ela como o jardim do

den. Era o que o pobre do velho Peter, ele também, tinha esperado;

tendo tantas vezes, na imaginação, olhado para as glebas que se suce-

diam e, livre de perspectivas, visto o herdeiro com sua cara de sapo a

desfrutar da antiga e aprazível vivenda para a perpétua surpresa e desa-

pontamento de outros sobreviventes.

Mas quão pouco sabemos do que constitui um paraíso para os nos-

sos vizinhos! Julgamos a partir dos nossos próprios desejos, e os pró-

prios vizinhos nem sempre são bastante abertos para fazer sequer uma

insinuação sobre os deles. O frio e judicioso Joshua Rigg não havia per-

mitido a seu pai perceber que Stone Court era algo menos que o princi-

pal bem na sua estima, e certamente havia desejado considerá-la sua.

Mas se Warren Hastings, olhando o ouro, pensava em comprar Daylesford,

Joshua Rigg, olhando Stone Court, só pensava em comprar ouro. Tinha

uma visão muito distinta e intensa de seu bem principal, pois a avidez

vigorosa que ele herdara já havia assumido uma forma especial à força

das circunstâncias: e o bem principal, para ele, era ser cambista. Desde

seu primeiro emprego, como moleque de recados num porto de mar,

olhava pelas janelas dos cambistas como os outros meninos olhavam

pelas vitrines das confeitarias; e este fascínio se forjou pouco a pouco

numa paixão especial e profunda; tencionava, quando fosse homem de

posses, fazer muitas coisas, sendo uma delas casar-se com uma gentil

senhorinha; mas tais acasos e alegrias, todos eles, a imaginação bem que

podia dispensar. A grande alegria pela qual sua alma anelava era ter uma

loja de câmbio num cais muito movimentado, ter em toda a sua volta

fechaduras das quais ele tivesse as chaves, e manusear com a mais subli-

me frieza as moedas de todas as nações a proliferar, enquanto a Cupidez

impotente, do outro lado de uma grade de ferro, o ia olhando com inve-

ja. A força desta paixão o compelira a capacitanuse para dominar o co-


nhecimento necessário a gratificá-la. E quando outros pensavam que ele

se estabelecera em Stone Court para a vida toda, o próprio joshua esta-

va pensando que agora já se aproximava o momento para ele se estabe-

lecer no Cais do Norte com o que havia de melhor em fechaduras e

cofres.

Basta. Nosso interesse pela venda das terras de Joshua Rigg parte do

ponto de vista de Mr. BuIstrode, que a interpretou como encorajadora

disposição a lhe trazer talvez uma sanção a um propósito que ele havia

por algum tempo nutrido sem estímulo externo; interpretou-a assim,

MIDDLEMARCH

553

mas não com confiança excessiva, e ofereceu suas devidas graças numa

fraseologia contida. Suas dúvidas não surgiam das possíveis relações do

fato com o destino de Joshua Rigg, que pertencia a regiões não mapeadas

nem tomadas sob o governo da Providência, exceto talvez de um modo

colonial imperfeito; surgiam, isto sim, das suas reflexões de que esta

disposição poderia também ser um castigo para ele, como a indução de

Mr. Farebrother ao beneficio eclesiástico claramente o era.

Isto não era o que Mr. BuIstrode dizia a qualquer um com a intenção

de o enganar: era o que dizia a si mesmo - era o modo como explicava

os fatos, tão genuíno como qualquer teoria sua talvez seja, se por acaso

você não concordar com ele. Pois o egoísmo que entra em nossas teorias

não lhes afeta a sinceridade; antes, quanto mais se satisfaz nosso egois-

mo, mais robusta é a crença.

Entretanto fosse por sanção ou castigo, Mr. BuIstrode, mal passa-

dos quinze meses da morte de Peter Featherstone, havia-se tornado pro-

prietário de Stone Court, e o que Peter diria, "se pudesse saber," torna-

ra-se um tema inesgotável e consolador de conversa para seus desapon-


tados parentes. O feitiço, para o querido irmão falecido, virava agora

contra o feiticeiro, e contemplar o fracasso de sua astúcia diante da astú-

cia superior das coisas em geral era uma delícia para Solornon. Já Mrs.

Waule tinha um triunfo melancólico na prova de que não adiantava cons-

tituir falsos Featherstones e prejudicar os legítimos; e a irmã Martha, ao

receber a notícia nos Chalky Flats, disse: "Oh, então o Todo-Poderoso,

no final das contas, não ficaria muito satisfeito com os asilos de pobres!"

A afetuosa Mrs. BuIstrode sentiu-se particularmente feliz pelas van-

tagens que a saúde de seu marido iria provavelmente auferir da compra

de Stone Court. Poucos dias se passavam sem que ele desse umas voltas

a cavalo, fiscalizando partes da fazenda com o seu capataz, e o entardecer

era delicioso naquele lugar tranqüilo, quando as medas de feno recém-

amontoadas exalavam um odor que se mesclava aos sopros do jardim

velho e exuberante. Urna tarde, quando ainda acima do horizonte o sol

ardia em clarões dourados por entre os ramos das grandes nogueiras,

Mr. BuIstrode, parado a cavalo na porteira da frente, esperava por Caleb

Garth, que viera a seu encontro, como combinado, opinar sobre um pro-

blema de drenagem no estábulo, e agora dava uns conselhos ao capataz

no terreiro.

Mr. BuIstrode tinha consciência de achar-se num bom estado de es-

pirito, e mais sereno que de hábito, sob a influência de sua recreação

inocente. Estava doutrinariamente convencido de que havia em si mes-

mo uma total ausência de mérito; mas esta convicção doutrinária pode

554

GEORGE ELIOT

ser tida sem dor, quando o senso de deméríto não assume uma forma

distinta na memória e revive a ardência da vergonha ou a aflição do

remorso. Mais ainda, pode ser tida com intensa satisfação, quando a
profundidade de nossos pecados não é senão uma medida para a pro-

fundidade do perdão, e uma prova cabal de que somos instrumentos

peculiares da intenção divina. A memória é de ânimo tão variável quan-

to o gênio, e muda seus cenários como um diorama. Nesse momento

Mr. BuIstrode se sentia como se aqueles raios de sol formassem uma só

coisa com os das tardes tão remotas em que, ainda um rapazola, ele

costumava sair em pregações por além de Highbury. De bom grado acei-

taría fazer este trabalho de exortação agora. Os textos lá estavam sem-

pre, bem como sua capacidade de expô-los. Mas seu breve devaneio foi

interrompido pela chegada de Caleb Garth que, ele também a cavalo, já

ia soltando as rédeas para partir, quando exclamou:

"Benza-me Deus! quem é este sujeito de preto que vem ai pelo

caminho? Parece um homem daqueles que depois das comdas a gente

vê perambulando ao redor." Mr. BuIstrode virou seu cavalo e olhou

para a estradinha, mas não deu resposta. O recém-chegado era um nosso

conhecido distante, Mr. Raffies, cuja aparência não apresentava mu-

danças além da provocada pelo negrume do traje e uma faixa de crepe

em seu chapéu. Estava agora a uns três metros dos cavaleiros, que

puderam ver em seu rosto o brilho do reconhecimento quando, bran-

dindo no ar sua bengala e olhando o tempo todo para Mr. BuIstrode,

ele por fim exclamou;

"Por Júpiter, Nick, é você! Não havia como eu me enganar, apesar de

todo o estrago que esses vinte e cinco anos hão de ter feito em nós dois.

Mas então como vai, homem? Você não esperava ver a mim por aqui, não

é? Vamos, deixe-me apertar esta mão!"

Dizer que Mr. Raffies se portava de modo algo alvoroçado seria

apenas um modo de dizer que a noite estava chegando. Caleb Garth

pôde ver que houve um momento de luta e hesitação em Mr. Buls-

trode, ao término do qual ele estendeu friamente a mão a Raffies,

dizendo:

"De fato eu não esperava vê-lo nesta remota zona rural."


"Bem, é que isto aqui pertence a um enteado meu," disse Raffies,

compondo-se numa atitude jactanciosa. "Já vim antes aqui para estar com

ele. E estar com você, meu velho amigo, não me surpreende tanto assim

porque eu recebi uma carta - o que se poderia chamar de coisa provi-

dencial.  uma felicidade rara que o encontre, porém; pois não me impor-

to em ver meu enteado: não é um tipo afetuoso, e agora sua pobre mãe já

MIMUMARCH

555

se foi. Para falar a verdade, vim movido pelo meu amor por você, Nick:

vim para apanhar seu endereço, pois - olhe aqui!" Raffies tirou do bolso

um papel todo amarfanhado.

Praticamente qualquer homem que não Caleb Garth se sentiria ten-

tado a continuar por ali com a intenção de ouvir o que pudesse sobre um

homem cuja intimidade com BuIstrode parecia implicar passagens na

vida do banqueiro tão diferentes do que dele se sabia em Middemarch

que deviam ser da natureza de um segredo que aguça a curiosidade.

Caleb era porém singular: certas tendências humanas que em geral são

fortes quase não se faziam presentes em seu espírito; sendo uma delas a

curiosidade sobre assuntos pessoais. Em caso de haver algo desonroso a

ser descoberto em relação a outro homem, Caleb preferia não saber; e,

se tivesse de comunicar a algum subordinado que suas más ações ha-

viam sido descobertas, ele ficava mais sem jeito do que o culpado. Espo-

reou portanto seu cavalo e, dizendo: "Bem, Mr. BuIstrode, tenho de ir

para casa; uma boa-noite," saiu a trote.

"Você não pôs seu endereço completo nesta carta," continuou Raffies.

"O que nem lembra o homem de negócios tão bom que outrora foi. "O

Arvoredo," - bem, isto existe em toda parte: mas você vive aqui por

perto, não é? - cortou de vez as relações com Londres - tornou-se


talvez um gentil-homem - e possui no campo uma mansão à qual me

convidar. Meu Deus, quantos anos atrás! A velha senhora, presumo, há

de estar morta há muito tempo - terá entrado na glória sem a dor de

saber quão infeliz foi a filha, não é? Mas você, Nick, por Júpiter, está tão

pálido e alquebrado! Se for agora para casa, vamos, deixe-me ir andando

a seu lado."

A costumeira palidez de Mr. BuIstrode atingira de fato uma intensi-

dade quase mortal. Cinco minutos antes, a extensão de sua vida sub-

mergira em seu brilho crepuscular, que recuava iluminando até a manhã

relembrada: o pecado parecia ser uma questão de doutrina e penitência

interior; a humilhação, uma prática secreta; o sentido de seus atos, um

problema de visão pessoal regulado tão-somente por relações espiri-

tuais e concepções dos desígnios divinos. E agora, como que por horro-

rosa magia, esta figura avermelhada e ruidosa tinha surgido à sua frente

em solidez ingovernável - a própria encarnação de um passado que não

entrara nos castigos imaginados por ele. Mas o pensamento de Mr.

BuIstrode estava em ação, e ele não era homem de agir ou falar inopinada-

mente.

", eu estava indo para casa," disse ele, "mas posso atrasar-me um

pouco. E você, se quiser, pode ficar aqui."

556

GEORGE ELioT

"Muito obrigado," disse Raffies, fazendo uma careta. "Não faço a

menor questão de estar com meu enteado. Prefiro ir com você para casa."

"Seu enteado, se é que ele era Mr. Rigg Featherstone, não está mais

por aqui. O dono agora sou eu."

Raffies arregalou os olhos e deu um longo assobio de surpresa, antes

de dizer: "Bem, então não tenho objeções a fazer. já andei muito, desde
a estrada das diligências. Aliás nunca fui muito de andar, nem de mon-

tar. Gosto mesmo é de um bom veículo e um cavalinho fogoso. Sempre

fui meio desajeitado na sela. Mas que agradável surpresa deve ser para

você me rever, meu velho amigo!" continuou ele, enquanto avançavam

para a casa. "Você não o confessa; mas nunca encarou de peito aberto

sua sorte - estava sempre pensando em tirar partido da ocasião - ti-

nha tais dons para aumentar sua sorte!"

Mr. Raffies parecia embevecido de sua própria espirituosidade, e ati-

rava as pernas de um modo bem arrogante, que era um pouco demais

para a judiciosa paciência de seu companheiro.

"Se bem me lembro," observou Mr. BuIstrode, com uma cólera

gélida, "nosso conhecimento de tantos anos atrás não tinha o tipo de.

intimidade que o senhor se permite agora, Mr. Raffies. Caso deseje

algum serviço de mim, ele lhe será prestado com maior presteza se o

senhor evitar um tom de familiaridade que nunca existiu em nossas

relações de outrora, e mal pode ser justificado por mais de vinte anos

de separação."

"Você não gosta de ser chamado de Nick? Ora essa, pois de Nick

sempre o chamei em meu coração, tendo-o perdido de vista, mas con-

servado na memória com zelo. Por Júpiter! os sentimentos que eu nutro

por você se apuraram como um conhaque bem envelhecido. Espero que

tenha algum aí na casa agora. Da última vez, bem que o Josh encheu

meu frasco."

Mr. BuIstrode ainda não entendera de todo que nem mesmo o dese-

jo de conhaque era mais forte em Raffles do que o desejo de atormentar,

e que uma alusão desagradável sempre lhe servia como uma nova deixa.

Mas pelo menos estava claro que outras objeções eram inúteis, e Mr

BuIstrode, dando ordens à governanta para a acomodação do hóspede,

tinha um ar resoluto de quietude.

Era um consolo pensar que a governanta também havia estado a

serviço de Rigg e poderia aceitar a idéia de que Mr. BuIstrode só alberga-


va Raffies na condição de amigo de seu antigo patrão. Quando a comida

e a bebida já se dispunham à frente da visita, na sala com lambris de

madeira, e não havendo testemunhas ali, Mr. BuIstrode disse:

MIDDLEMARCH

557

"Seus hábitos e os meus são tão diferentes, Mr. Raffies, que é dificil.

que possamos desfrutar da companhia um do outro. Portanto, o mais

sensato para ambos será nos despedirmos o mais cedo possível. Como

diz o senhor que desejava encontrar-me, provavelmente tinha em vista

algum negócio para discutir comigo. Mas, diante das circunstâncias, con-

vido-o a passar a noite aqui, e aqui virei a cavalo amanhã bem cedo -

antes mesmo do desjejum, para ouvir qualquer comunicação que tenha

a me fazer."

"Perfeitamente," disse Raffies; "o lugar é confortável - e meio insí-

pido para uma temporada; mas por uma noite eu me arranjo, com esta

bela bebida e a perspectiva de o rever de manhã. Você é muito melhor

do que o meu enteado como anfitrião; mas o Josh tinha uma certa birra

comigo porque eu me casei com a mãe dele; e entre nós dois nunca

houve nada senão muita afeição."

Mr. BuIstrode, na esperança de que a peculiar mistura de jovialidade

e escárnio nas atitudes de Raffies fosse em grande parte efeito do álcool,

havia resolvido aguardar que ele voltasse a estar sóbrio, antes de gastar

suas palavras à toa. Mas cavalgou para casa com uma visão terrivelmen-

te lúcida da dificuldade que haveria para chegar com aquele homem a

um resultado que fosse confiável. Era inevitável ocorrer-lhe o desejo de

se livrar de John Raffies, cujo ressurgimento não podia porém ser visto

como se jazesse fora do planejamento divino. O espírito do mal tê-lo-ia

quiçá mandado para fazer uma ameaça de destruição de Mr. BuIstrode


como instrumento do bem; mas a ameaça havia sido permitida, decerto,

e era um castigo de nova espécie. Para ele era uma hora de angústia,

muito diferente das horas em que sua luta se travava em segurança pri-

vada, e terminava com a impressão de que suas iniqüidades secretas

eram perdoadas e seus serviços aceitos. Estas, mesmo quando cometi-

das, - não iam sendo meio santificadas pela singularidade de seu dese-

jo de devotar a si mesmo e a tudo que possuía à execução do esquema

divino? E iria ele se tornar afinal uma simples pedra de tropeço e uma

pedra de escândalo? Pois quem compreenderia o trabalho em seu inti-

mo? Quem não iria, quando houvesse um pretexto para o cobrir de ver-

gonha, confundir toda sua vida e as verdades que ele havia esposado

num só montão de calúnias?

Em suas meditações mais íntimas, os hábitos mentais de Mr. BuIstrode,

vida afora arraigados, envolviam seus terrores mais egoístas em referên-

das doutrinárias a finalidades super-humanas. Mas, quando estamos fa-

lando ou meditando sobre a órbita da Terra e o sistema solar, aquilo que

nós de fato sentimos, e pelo que regulamos nossos movimentos, são o

558

GEORGE ELIOT

solo estável e o dia em mutação. E agora, dentro de toda a sucessão auto-

mática de frases teóricas - distinta e funda como o tremor e o mal-estar

de uma febre já a irromper quando se discute a dor abstrata, - estava a

antevisão da desonra na presença dos vizinhos e até de sua esposa. Pois a

dor, bem como a desonra na estima pública, depende da quantidade de

alguma prévia manifestação. Para homens que só almejam escapar dos

crimes capitais, nada inferior ao banco dos réus é desonra. Mas Mr.

BuIstrode

havia almejado ser um eminente cristão.


Não eram mais de sete e meia da manhã quando de novo ele chegou

a Stone Court. A antiga e bela vivenda nunca havia parecido ser mais

deliciosa, como moradia, do que nesse momento; os grandes lírios bran-

cos floriam, e o nastúrcio, com suas folhas tão bonitas prateadas de or-

valho, alastrava-se por sobre o muro baixo de pedras; os próprios baru-

lhos em todo o derredor continham timbres de paz. Mas nada apresen-

tava interesse para o proprietário, que andava pelo cascalho, diante da

fachada, aguardando a descida de Mr. Raffies, com quem ele estava con-

denado ao desjejum.

Não demorou para os dois se sentarem juntos, na sala com lambris

de madeira, diante de um chá com torradas, tudo o que apetecia a

Raffies em hora assim matutina. As diferenças em sua pessoa, entre o

anoitecer e a manhã, não eram tão grandes como seu companheiro

havia imaginado que deveriam ser; seu prazer de atormentar talvez até

fosse mais forte, porque seu espírito não se afinava então em tom tão

alto. E é claro que à luz da manhã seus modos pareciam mais desagra-

dáveis ainda.

"Como o tempo de que disponho é pouco, Mr. Raffies," disse o ban-

queiro, que mal pôde ir além de sorver uns goles de chá e quebrar, sem

comer, sua torrada, "agradeço-lhe que mencione logo o motivo pelo qual

era de seu desejo encontrar-me. Presumo que o senhor tenha nalgum

lugar sua casa e queira dar-se à alegria de voltar para ela."

"Mas ora só, quem tem bom coração, não quer sempre rever um

velho amigo, Nick? - sou obrigado a chamá-lo de Nick - era de Nick

Novo que a gente sempre o chamava, quando soubemos que queria ca-

sar-se com a velha viúva. Alguns diziam que você tinha uma bela parecença

de família com o Nick Velho, e a culpa era de sua mãe, sendo ela que o

chamou de Nicholas. Pois então, está contente por me ver de novo? Eu

contava com um convite para ficar com você num bom lugar. Eu mesmo

estou sem residência, agora que minha esposa morreu. Nada em parti-

cular me liga a canto algum; tanto eu poderia estabelecer-me aqui como


alhures."

MIDDLEMARCH

559

"Posso indagar por que voltou da América? Julgava eu que seu dese-

jo expresso e forte de partir para lá, quando uma soma adequada lhe foi

fornecida, equivalia a um compromisso de lá permanecer para sempre."

"Não me consta que o desejo de ir a um lugar seja o mesmo que a

vontade de ficar. Mas eu fiquei bem uns dez anos; mais do que isto não

me convinha. E lá, Nick, eu não volto mais." Aqui Mr. Raffies piscou

lentamente o olho ao encarar Mr. Bulstrode.

"Pretende estabelecer-se nalgum ramo? Qual o seu interesse agora?"

"Meu interesse é divertir-me à larga, tanto quanto puder. Não quero

mais saber de trabalhar. Se eu fizesse alguma coisa, seria viajar um pouco,

com tabaco, quem sabe, - ou algo do mesmo gênero, que leva um ho-

mem a agradáveis companhias. Mas não sem ter garantida certa inde-

pendência.  isto o que eu quero: já não sou mais tão forte, Nick, apesar

de estar com o rosto mais corado que o seu. Eu quero uma independên-

cia."

"Isto lhe pode ser concedido, se o senhor assumir o compromisso de

se manter à distância," disse Mr. Bulstrode, talvez com um pouco de

ansiedade demais no seu subtom.

"Mas tem de ser como me for conveniente," disse, com frieza, Raffies.

"Não vejo razão para eu não fazer por aqui uns conhecidos. Não me

envergonho de mim como companhia para ninguém. Deixei minha vali-

se na barreira do pedágio quando desembarquei - com a roupa branca

- linho legítimo - palavra! - melhor do que os peitilhos e punhos de

camisa; e com este traje de luto, correia e tudo, duvido que eu não o

honre entre os fidalgos daqui." Mr. Raffies tinha arredado sua cadeira e
olhado para si de alto a baixo, detendo-se em particular na correia. Sua

principal intenção era amolar Bulstrode, mas realmente ele pensava que

sua aparência agora causaria boa impressão, pois que não só era espiri-

tuoso e bonito, mas também se vestia por um estilo enlutado que indi-

cava vínculos sólidos.

"Se pretende contar comigo de algum modo, Mr. Raffles," disse

BuIstrode, após uma pausa, "prepare-se para atender aos meus desejos."

"Ah, sem dúvida," disse Rafiles, com uma cordialidade escarninha.

"Eu não fiz isto sempre? Oh, Senhor, de quão pouca valia me fizestes, e

quão pouco obtive! Desde então penso às vezes que talvez tivesse sido

melhor se eu contasse à velha que eu havia encontrado sua filha e a neta:

isto corresponderia mais aos meus sentimentos; pois tenho um coração

meio mole. Mas a essa altura, suponho, você já enterrou a velha - para

ela, agora, dá tudo na mesma. E com esse proveitoso negócio, que foi

uma verdadeira bênção, você fez sua fortuna. Transformou-se num fidal-

560

GEORGE ELIOT

go, comprando terras, transformou-se num paxá de província. E sempre

na linha do Dissenso, não é? Sempre piedoso? Ou levado à Igreja de um

modo mais elegante?"

Desta vez o lento piscar de Mr. Raffies e a ligeira protrusão de sua

língua foram pior do que um pesadelo, porque traziam a certeza de ser,

não um pesadelo, mas uma indigência desperta. Mr. Bulstrode, estreme-

cendo de náusea, não falou nada, mas diligentemente pôs-se a conside-

rar se ele não deveria deixar Raffies fazer como bem quisesse, e simples-

mente desaflá-lo como um difamador. O homem logo se mostraria tão

desprezível que ninguém lhe daria crédito. "Mas não se ele contar sobre

você alguma verdade pavorosa," disse a consciência em alerta. E de novo:


não parecia errado manter Raffies à distância, mas Mr. BuIstrode se fur-

tava à falsidade direta de negar declarações verdadeiras. Uma coisa era

olhar para velhos pecados perdoados, ou melhor, explicar uma confor-

midade questionável a costumes frouxos, e outra, entrar deliberadamente

na necessidade de falsear.

Como BuIstrode não falou, Raffies seguiu em frente, como forma de

usar ao máximo o tempo.

"Não tive tanta sorte como você, por Júpiter! Para mim, em New

York foi tudo abominável; aqueles ianques são frios que só vendo, e um

homem de sentimentos nobres não tem chances com eles. Casei-me

quando voltei para cá - boa mulher do ramo do tabaco - muito ligada

em mim - mas o ramo era restrito, como se diz. Um amigo dela cuidara

de a estabelecer, havia já vários anos; mas havia também, no caso, um

filho de quebra. O Josh e eu nunca nos demos. No entanto, tirei da

situação o melhor partido possível, e sempre tomei meus tragos em boa

companhia. Tudo comigo é muito honesto; sou tão aberto como o dia.

Não pense mal de mim por não o ter procurado antes; sofro de uma

doença que me torna um pouco lerdo. Eu ainda o julgava em Londres,

negociando e fazendo pregações, e não o encontrei por lá. Mas, como

vê, o destino me trouxe até você, Nick - para uma bênção talvez para

nós dois."

Mr. Raffies terminou com uma fungadela jocosa: ninguém sentia

seu intelecto mais superior à hipocrisia religiosa. E, se a esperteza

que calcula sobre os mais baixos sentimentos humanos puder ser cha-

mada de intelecto, deste ele tinha seu quinhão, pois sob o impulsivo

tom de troça com que falara a Bulstrode havia uma evidente seleção

de assertivas, como se fossem, todas elas, tantas jogadas de xadrez.

Entrementes BuIstrode resolvera como iria jogar, e disse, com comedi-

da decisão:

MIDDLEMARCH
561

"Convém refletir, Mr. Raffies, que um homem pode sair logrado quan-

do se esforça por obter uma indevida vantagem. Embora não tendo ne-

nhuma obrigação com o senhor, estou disposto a conceder-lhe uma pen-

são anual - pagável por trimestre - desde que me faça e cumpra a

promessa de manter-se longe destas paragens. Cabe-lhe a escolha. Se

insistir em permanecer por aqui, mesmo por pouco tempo, não terá nada

de mim. Vou declinar conhecê -lo."

"Ha, ha!" disse Raffies, numa afetada explosão, "isto me lembra de

um singular cachorro de ladrão, que declinava conhecer o guarda."

"Suas alusões não me atingem, caro senhor," disse Buistrode, bran-

co de raiva; "seja por seu intermédio, ou de qualquer outro, a lei não me

ameaçaf

"Ora, meu bom amigo, não entende um gracejo? Só quis dizer que

eu nunca iria declinar conhecê-lo. Mas, falando a sério, seus pagamen-

tos trimestrais não me convêm lá muito. Gosto de ter minha liber-

dadef

Raffies levantou-se e deu então várias passadas pela sala, balançan-

do as pernas e assumindo um ar de meditação magistral. Por fim parou

diante de BuIstrode e disse: "Já sei o quê! Dê-nos aí umas duzentas

libras - coisa modesta, pois não? - que eu vou-me embora - palavra

de honra! - pego minha valise e me vou. Mas não abrirei mão de minha

liberdade por uma anuidade imunda. Quero ir e vir como eu bem quiser.

Talvez me interesse ficar fora e me corresponder com um amigo; talvez

não. Você tem o dinheiro com você?"

"Não, só tenho cem," disse BuIstrode, sentindo que livrar-se dele

imediatamente era um alivio muito grande para ser rejeitado com base

em incertezas futuras. "Mando-lhe o restante se o senhor me der um

endereço."
"Não, espero aqui até que o traga," disse Raffies. "Vou dar um pas-

seio, comer qualquer coisa, e enquanto isso você já estará de volta."

O corpo enfermiço de Mr. BuIstrode, dilacerado pela agitação que

desde a noite da véspera ele havia sofrido, fê-lo sentir-se abjetamente

em poder deste homem ruidoso e invulnerável. E ele aspirou nesse mo-

mento a um temporário repouso, a ser conquistado em quaisquer ter-

mos. Quando já se punha de pé para fazer o que Raffies sugerira, este

último disse, erguendo o dedo como que em súbita lembrança:

"Andei de novo à procura de Sarah, embora eu não lhe tenha con-

tado; esta moça tão bonita causou-me forte impressão. Não a encon-

trei, mas descobri o nome do marido dela, e até cheguei a anotá-lo. Só

que a caderneta eu perdi. No entanto, se o ouvir por acaso, hei de re-

562

GEORGE ELIOT

conhecê-lo. Gozo de minhas faculdades como na flor dos anos, mas os

nomes me escapam, por Júpiter! ·s vezes não sou melhor do que um

maldito formulário de impostos antes que o preencham com os nomes.

Se eu ouvir falar dela, ou da família dela, você no entanto há de saber,

Nick. Sei que gostaria de fazer alguma coisa por ela, já que é sua entea-

da. "

Sem dúvida," disse Mr. BuIstrode, encarando-o com a habitual fir-

meza de seus olhos cinzentos; "se bem que isto possa reduzir minha

capacidade de ampará-lo."

Enquanto ele saía da sala, Raffies, nas suas costas, piscou lentamen-

te os olhos, depois foi pôr-se à janela para observar o banqueiro que se

afastava a cavalo - virtualmente sob seu comando. Seus lábios curva-

ram-se num leve sorriso, depois se abriram numa gargalhada breve e

triunfante.
"Mas qual era mesmo o nome, diacho?" disse ele então, quase em

voz alta, coçando a cabeça e franzindo ao máximo a testa. Na realida-

de não havia pensado nem se importado com este ponto de esqueci-

mento até o mesmo lhe ocorrer na sua invenção de provocações a.

BuIstrode.

"Começava com L; e era cheio de Is, acho," continuou, com a im-

pressão de estar chegando ao nome que lhe escapava. Mas a aproxima-

ção foi ligeira, e ele logo se cansou desta perseguição mental; pois pou-

cos homens eram mais impacientes por ocupação pessoal ou mais ne-

cessitados de se fazerem continuamente ouvidos do que Mr. Raffies.

Preferiu usar seu tempo em agradáveis conversas com o capataz e a

governanta, dos quais extraiu tudo o que queria saber sobre a situação

de Mr. BuIstrode em Middiemarch.

Feito isto, contudo, houve um monótono espaço de tempo que re-

queria um refrigério de pão com queijo e cerveja, e ele, quando já estava

em paz com tais recursos, sentado na sala com lambris de madeira, brus-

camente exclamou, batendo a mão no joelho: "Ladislaw!" A ação da

memória que ele havia tentado disparar, e abandonara em desespero,

completara -se de súbito sem esforço consciente - uma experiência co-

mum, agradável como um espirro completo, mesmo que o nome recor-

dado não tenha o menor valor. Raffies imediatamente pegou sua cader-

neta e escreveu-o, não porque tencionasse usá-lo, mas apenas para ga-

rantir-se de não ficar em apuros, se alguma vez precisasse deste nome.

Não iria mencioná-lo a Bulstrode: não havia nisto nenhum proveito real,

e para uma mente como a de Mr. Raffies sempre existe num segredo

algum proveito provável.

MIDDLEMARCH

563
Ele estava satisfeito com seu sucesso atual, e pelas três da tarde do

mesmo dia já havia pegado sua valise na barreira do pedágio e tomado a

diligência, livrando o olhar de Mr. BuIstrode de uma horrorosa mancha

negra na paisagem de Stone Court, mas não do pavor de que esta mancha

reaparecesse e se tornasse inseparável até da visão de seu próprio lar.

LiVRO VI

Viúva e a Esposa

CAPÖTULO LIV

"Negli occhi porta Ia mia donna Amore;

Per che si fa gentil ció ch"ella mira:

Ov"ella passa, ogni uom ver lei si gira,

E cui saluta fa tremar lo core.

SicchŠ, bassando il viso, tutto smore,

E d"ogni suo difetto allor sospira:

Fuggon dinanzí a lei Superbia ed Ira:

Affitatemi, donne, a farle onore.

Ogni dolcezza, ogni pensiero umile

Nasce nel core a chi parlar Ia sente;

Ond"Š beato chi prima Ia vide.

Quel ch"ella par quand"un poco sorride,

Non si puà dicer, nŠ tener a mente,

Si é nuovo miracolo gentile."

- DANTE: La Víta Mova.

€"Leva nos olhos minha amada o Amor

E assim gentil se faz tudo o que mira:


Onde quer que ela passe um homem se vira,

No coração do que saúda há um tremor.

Este, abaixando o rosto, se descolore

E por ter tantos defeitos suspira:

Em face dela se vão Soberba e Ira:

Ajudem-me, amigas, a que eu a honore.

Nascem doçura e um pensamento humilde

No coração de quem falar a escuta;

Onde bendito é quem primeiro a vir.

O que ela parece, se um pouco sorrir,

Não se pode dizer nem ter em mente,

Sendo um gentil milagre novamente.")

- DANTE: A Vida Nova.

568

GEORGE ELIOT

NAQUELA MANHÃ DELICIOSA, quando os montes de feno em Stone Court

perfumavam imparcialmente o ar, como se Mr. Raffies fosse um hóspede

digno do mais fino incenso, Dorothea já estava novamente instalada no

seu solar em Lowick. Depois de três meses, Freshitt se tornara um pou-

co opressiva: não daria certo sentar-se por várias horas do dia, como um

modelo de Santa Catarina, a olhar em êxtase para o bebê de Celia, e

manter-se em presença deste portento com desinteresse persistente era

uma atitude que não iriam tolerar numa irmã sem filhos. Dorothea bem

que seria capaz de carregá-lo alegremente por até mais de um quilôme-

tro, caso houvesse necessidade, e de amá-lo com mais ternura ainda,

tendo em vista o esforço; mas para uma tia que não reconhece como

Buda seu sobrinho infante, e nada tem a fazer por ele, a não ser admirá-
lo, o comportamento de um bebê pode parecer monótono, e o interesse

em observá-lo, esgotável.

Esta possibilidade jamais se colocava a Celia, a qual julgava que

para a viuvez sem filhos de Dorothea o nascimento do pequeno Arthur

(o bebê recebeu o nome de Mr. Brooke) era uma correspondência per-

feita.

"Dodo é o tipo de pessoa que não liga para ter nada de seu - seja

crianças, seja lá o que for!" disse Celia a seu marido. "E, se ela tivesse

tido um bebê, não poderia jamais ser bonitinho como o Arthur. Poderia,

James?"

"Não se ele se parecesse com o Casaubon," disse Sir James, consci-

ente de certa sinuosidade em sua resposta, e de manter opinião estrita-

mente pessoal quanto às perfeições de seu primogénito.

"Não! Imagine só! realmente foi uma bênção," disse Celia; "e eu

acho que é muito bom para Dodo ser viúva. Ela pode querer ao nosso

bebê como se fosse dela, e ainda pode ter tantas idéias originais quanto

quiser."

"Pena que ela não fosse uma rainha," disse o devoto Sir James.

"Mas então o que seríamos nós? Teríamos de ser outra coisa," disse

Celia, contrapondo-se a vôo de imaginação tão laborioso. "Gosto mais

dela como ela é."

Assim, quando soube que Dorothea já fazia preparativos para voltar

em definitivo a Lowick, Celia, desapontada, ergueu as sobrancelhas e, a seu

modo tranqüilo e desprovido de ênfase, lançou uma farpa de sarcasmo:

"O que vai fazer em Lowick, Dodo? Você mesma diz que não há

nada a fazer lá: todos estão tão bem, tão arrumados, que a melancolia

acaba por vencê-la. E aqui se ve que tem andado contente, indo por toda

Tipton com Mr. Garth, e até nos cantos mais sórdidos. Agora que o

MIDDLEMARCH
569

nosso tio está fora, você e Mr. Garth podem agir à vontade; e tenho

certeza de que o James faz tudo o que você lhe diz."

"Eu virei sempre aqui, e hei de ver ainda melhor como o bebê vai

crescendo," disse Dorothea.

"Mas nunca o verá tomando banho," disse Celia: "o que sem dúvida

é o melhor momento do dia." já estava quase zangada: parecia-lhe mui-

ta dureza de Dodo afastar-se, quando podia ficar junto do bebê.

"Virei de propósito para passar a noite, querida IGtty," disse Dorothea;

(mas agora quero ficar sozinha, e na minha casa. Quero conhecer me-

lhor os Farebrothers, e conversar com Mr. Farebrother sobre o que pre-

cisa ser feito em Middemarch."

A inata força de vontade de Dorothea já não se transmudava de todo

em submissão resoluta. Com um grande desejo de estar em Lowick, ela

estava simplesmente decidida a partir, não se sentindo obrigada a dar

suas razões. Mas ninguém a seu redor a aprovava. Sirjames, muito pe-

saroso, propôs que todos migrassem para Cheltenham, por alguns me-

ses, com a arca sagrada, conhecida igualmente como berço: e nessa fase

mal sabia o que propor um homem, se Cheitenham fosse rejeitada.

Lady Chettam, a velha viúva, recém-chegada de uma visita à sua

filha na capital, queria que ao menos se mandasse uma carta a Mrs.

Vigo, instando-a a aceitar a função de dama companhia de Mrs. Casaubon:

não era crível que Dorothea, uma viúva ainda tão jovem, pensasse em

viver sozinha em sua casa em Lowick. Mrs. Vigo havia sido leitora e

secretária de personagens da realeza e, em termos de sensibilidade e

saber, nem mesmo Dorothea poderia ter algo a objetar contra ela.

Mrs. Cadwallader disse-lhe em particular: "Sozinha naquela casa,

minha filha, você decerto há de enlouquecer. Há de ter visões. Nós todos

temos de nos esforçar um pouco para manter a sanidade, chamando as

coisas pelos mesmos nomes que as demais pessoas empregam. Sem


dúvida, para as mulheres e os filhos mais novos que não têm dinheiro,

enlouquecer é uma espécie de solução: neste caso, tomam conta deles.

Mas você não deve ir por aí. Ouso dizer que aqui parece um pouco enjoada

da nossa velha e boa viúva; mas pense no enjôo que você mesma pode-

ria tornar-se para os seus semelhantes, se estivesse sempre a representar

a rainha da tragédia e tomando as coisas pelo lado sublime. Sentada

sozinha, na biblioteca de Lowick, você pode imaginar que comanda o

tempo; é preciso haver gente à sua volta que porém não o creia, se você

lhes disser. E isto já constitui um bom calmante."

"Eu nunca chamei as coisas pelos mesmos nomes que as pessoas à

minha volta," disse Dorothea, resolutamente.

570

GEORGE ELIOT

"Mas suponho que tenha descoberto seu erro, minha filha," disse

Mrs. Cadwallader, "e isto é uma prova de sanidade."

Dorothea percebeu a alfinetada, que porém não a feriu. "Não," disse

ela, "eu ainda penso que a maior parte do mundo está errada sobre

muitas coisas. Seguramente alguém pode ser são e pensar assim, posto

que a maior parte do mundo tantas vezes tenha sido forçada a rever sua

opinião."

Mrs. Cadwallader nada mais disse a respeito para Dorothea, mas

comentou com seu marido: "Será bom para ela se casar de novo assim

que seja decente, se se puder colocá-la entre as pessoas certas. Claro

que os Chettams não o desejariam. Mas vejo com clareza que um mari-

do é a melhor coisa para mantê-la em ordem. Se não fôssemos tão po-

bres eu iria convidar Lord Triton. Algum dia ele há de ser marquês, e

ninguém pode negar que ela daria uma marquesa ótima: de luto, está

mais linda que nunca."


"Minha querida Elinor, deixe a pobre mulher em paz. Estes arranjos

não adiantam nada," disse o afável Reitor.

"Não adiantam? Como se formam os casais, se não juntando-se ho-

mens e mulheres? E é uma vergonha que o tio dela tenha partido às

pressas e fechado a granja justamente agora. Deveriam era convidar um

monte de bons partidos a Freshitt e à granja. Lord Triton é exatamente o

homem: cheio de planos para fazer as pessoas felizes através de meios

pacíficos. Isto viria muito a calhar para Mrs. Casaubon."

"Deixe Mrs. Casaubon escolher por ela mesma, Elinor."

"Este é o absurdo que vocês, homens sábios, dizem! Como pode

escolher, se ela não tem uma variedade de escolha? A escolha de uma

mulher geralmente se resume a ficar com o único homem que ela conse-

gue arranjar. Ouça bem o que eu digo, Humphrey. Se os amigos dela não

se esforçarem, vamos ter um problema ainda pior que o do Casaubon."

"Pelo amor de Deus, não toque neste assunto, Elinor!  um ponto

muito delicado para Sirjames. Se você o abordasse sem necessidade, ele

ficaria profundamente ofendido."

"Nunca o abordei," disse Mrs. Cadwallader, espalmando as mãos.

"Foi Celia quem me contou tudo sobre o testamento, sem que eu nada

perguntasse."

"Sim, sim; mas eles querem que a coisa seja abafada, e pelo que eu

entendi o rapaz vai-se afastar das redondezas."

Mrs. Cadwallader não disse nada, mas, tendo nos olhos escuros uma

expressão bem sarcástica, fez três significativos sinais com a cabeça para

seu marido.

MIMUMARCH

571

Dorothea persistiu calmamente, apesar dos protestos e tentativas


de persuasão. Lá pelo fim de junho, assim, as janelas já estavam todas

abertas no solar de Lowick, e a manhã se punha tranqüilamente à es-

preita na biblioteca, brilhando sobre as pilhas de cadernos como brilha

sobre uma terra estéril com enormes pedras plantadas - mudo memorial.

de alguma crença esquecida; já o crepúsculo, carregado de rosas, entrava

silenciosamente pelo boudoir azul e verde onde Dorothea preferia o mais

das vezes sentar-se. A princípio ela andava por toda a casa, questionan-

do-se sobre os dezoito meses de sua vida de casada e conduzindo seus

pensamentos como se fossem um discurso para ser ouvido pelo marido.

Depois, passou a ficar mais tempo na biblioteca, e não podia sossegar

enquanto não arrumasse cuidadosamente os cadernos como ela imagi-

nava que ele os desejaria, todos numa seqüência ordeira. A piedade, o

motivo que a continha e constrangia em sua vida com ele, ainda se lhe

aderia à imagem, mesmo quando ela o censurava, com o pensamento

indignado, e lhe dizia que ele era injusto. Um de seus atos talvez soe

risível, por supersticioso. O Quadro Sinótico para uso de Mrs. Casaubon ela

guardou e lacrou com todo esmero, escrevendo no envelope: "Não pude

usá-lo. Você não vê agora que eu não podia submeter minha alma à sua, traba-

lhando sem esperança em algo em que não acredito? - Dorothea." Depois foi

colocar o papel em sua própria mesa.

Este silencioso colóquio talvez tivesse mais gravidade porque por

baixo e através dele havia sempre o anseio profundo que realmente a

determinara a voltar para Lowick. O anseio de ver Will Ladislaw. Não

sabia que bem poderia advir de seu encontro: pois ela estava sem ação;

suas mãos haviam sido amarradas para impedi-la de reparar qualquer

injustiça a ele imposta. Mas a sede de o ver lhe possuía a alma. Como

poderia ser de outro jeito? Se uma princesa, nos dias de encantamento,

visse porventura um quadrúpede, de entre aqueles que vivem em mana-

das, vez e outra procurá-la com um olhar humano, que nela pousasse

decidido e súplice, o que iria ela pensar durante sua viagem, o que iria

procurar quando as manadas passassem? Certamente o olhar que a ti-


nha encontrado, e que ela reconheceria. A vida não seria mais que um

falso brilho, à luz de velas, e uma grande bobagem, à luz do dia, se

nossos espíritos não fossem tocados pelo que se foi, em questões de

desejo e de constância. Era verdade que Dorothea queria conhecer me-

lhor os Farebrothers, e em particular conversar com o novo reitor, mas

também era verdade que, lembrando-se do que Lydgate lhe havia dito

sobre Will Ladislaw e a pequena Miss Noble, ela contava que Will viesse

a Lowick para visitar a família Farebrother. Logo no primeiro domingo,

572

GEORGE ELIOT

antes de entrar na igreja, ela o viu tal como o vira, na última vez em que

ele ali tinha estado, sozinho no banco do pastor; mas, quando ela entrou,

sua figura havia desaparecido.

Nos dias de semana, quando visitava as senhoras no Reitorado, em

vão ela as escutava à espera de que dissessem sobre Will uma palavra

qualquer; parecia-lhe que Mrs. Farebrother falava de todos nas vizinhan-

ças, exceto dele.

"Provavelmente alguns dos ouvintes de Mr. Farebrother em Middemarch

virão às vezes para ouvi-lo em Lowick. A senhora não acha?" disse Dorothea,

desprezando-se um pouco por ter um motivo oculto para fazer a pergunta.

"Se forem sensatos, virão sim, Mrs. Casaubon," disse a velha se-

nhora. "Vejo que atribui um valor certo à pregação do meu filho. O

avô dele, pelo meu lado, era um excelente pastor, mas o pai fez advo-

cacia: homem, contudo, dos mais honestos e exemplares, razão pela

qual nunca fomos ricos. Dizem que a Fortuna é mulher, e caprichosa.

Mas às vezes ela é uma boa mulher e dá a quem o merece, como foi

seu caso, Mrs. Casaubon, que deu a meu filho um benefício eclesiás-

tico."
Mrs. Farebrother retomou seu tricô com uma honrada satisfação por

seu breve e claro esforço de oratória, mas não era isto o que Dorothea

queria ouvir. Pobre coitada! ela nem mesmo sabia se Will Ladislaw ain-

da estava em Middemarch, e não havia ninguém a quem se atrevesse a

perguntar, à exclusão de Lydgate. Mas ela agora não podia ver Lydgate,

a menos que o mandasse chamar ou fosse à sua procura. Talvez Will

Ladislaw, tendo sabido da estranha proibição contra ele deixada por Mr.

Casaubon, julgasse melhor os dois não se encontrarem de novo, e talvez

ela estivesse errada em desejar"um encontro contra o qual os outros

poderiam alegar muitas e boas razões. Ainda assim, "eu quero vê-lo"

vinha sempre no fim de cada uma de suas reflexões sensatas, com a

mesma naturalidade de um soluço, depois que se prende a respiração. E

o encontro acabou acontecendo, mas de um modo formal inteiramente

inesperado por ela.

Certa manhã, por volta das onze horas, Dorothea estava sentada em

seu boudoir, com uma planta das terras agregadas ao solar e outros docu-

mentos à frente, que deveriam ajudá-la a fazer para si mesma um levan-

tamento exato de sua renda e negócios. Não tendo ainda se lançado ao

trabalho, mantinha-se sentada, com as mãos cruzadas no colo, olhando

pela alameda de tílias para os campos distantes. Ao brilho do sol, nem

uma folha se mexia, o cenário familiar era imutável e parecia representar

a perspectiva de sua vida, cheia de um ócio desmotivado - desmotivado,

MIMUMARCH

573

se sua própria energia não buscasse razões para a ação ardente. A touca

de viúva, nesse tempo, fazia uma moldura oval para o rosto, com uma

coroa no alto; o vestido era um experimento com a mais profusa utiliza-

ção de crepe; mas a pesada solenidade do traje tornava-lhe o rosto ainda


mais jovem, com seu viço recuperado, e a candura doce e inquiridora

dos olhos.

Seu devaneio foi interrompido por Tantripp, que veio dizer que Mr.

Ladislaw estava embaixo e pedia permissão para ver Madame, se não

fosse muito cedo.

"Mande que o levem para a sala de visitas," disse Dorothea, levan-

tando-se imediatamente, "que já irei estar com ele."

A sala de visitas era para ela o lugar mais neutro da casa - o que

menos se associava às provações de sua vida de casada: o damasco com-

binava com a ornamentação de madeira, toda em branco e ouro; havia

dois espelhos altos e mesas com nada em cima - era uma sala, em

suma, onde não havia razão para sentar-se neste canto ou naquele. Fica-

va embaixo do boudoir e tinha também uma janela em torrinha dando

para a alameda. Porém, quando Pratt para lá levou W111 Ladislaw, a jane-

la estava aberta; e um visitante alado, que ora entrava, ora saía zumbin-

do sem ligar para os móveis, tornava a sala menos fria, formal e desabi-

tada.

"Que bom ver o senhor por aqui de novo," disse Pratt, que se atardava

a ajeitar o transparente de uma janela.

"Vim só para me despedir, Pratt," disse Will, desejoso de que até

mesmo o mordomo soubesse que ele era muito orgulhoso para se pen-

durar em Mrs. Casaubon, agora que ela era uma viúva rica.

"Lamento muito sabê-lo," disse Pratt, retirando-se. Claro que ele,

como um criado a quem nada se devia dizer, já sabia do fato que Ladislaw

ainda ignorava, e tirara suas conclusões; com efeito, não havia discorda-

do de sua noiva Tantripp quando ela disse: "O seu patrão era ciumento

como um demônio - e sem motivo. Ou bem não a conheço, ou Madame

olharia muito acima de Mr. Ladislam Diz a empregada de Mrs.

Cadwallader que vem vindo por aí um lorde para casar-se com ela, quando

acabar o luto."

Não houve muitos momentos para W111 andar de um lado para o


outro de chapéu na mão, antes de Dorothea entrar. Foi um encontro

muito diferente do primeiro, aquele em Roma, quando Will se sentira

embaraçado, e Dorothea, calma. Desta vez ele se sentia infeliz, mas de-

cidido, enquanto ela se achava num estado de agitação impossível de ser

dissimulado. já na porta ela se deu conta de que este encontro tão dese-

574

GEORGE ELIOT

jado, era afinal bem difícil e, quando viu Will avançando em sua direção,

o profundo rubor que lhe era raro veio-lhe com rapidez dolorosa. Ne-

nhum dos dois soube por quê, mas nenhum também falou. Por um mo-

mento ela estendeu a mão, e foram então sentar-se perto da janela, ela

num canapé, ele noutro, à sua frente. Will estava particularmente sem

jeito: estranhava em Dorothea que o simples fato de ela ser viúva cau-

sasse uma tal mudança na maneira como o recebia; e não sabia de ra-

zões concretas que pudessem ter afetado as relações que previamente

mantinham - a não ser que, como a imaginação já lhe dissera uma vez,

os amigos dela andassem a envenenar seu espírito com as suspeitas que

nutriam dele.

"Espero não ser liberdade demais de minha parte vir procurá-laf

disse Will; "eu não suportaria partir da região e começar vida nova sem

vê-la para dizer adeus."

"Liberdade demais? Decerto que não. Eu julgaria indelicado de sua

parte, isto sim, se não tivesse desejado ver-me," disse Dorothea, seu há-

bito de falar com perfeita autenticidade impondo-se através de sua agita-

ção e incerteza. "Parte de imediato?"

"Muito em breve, creio. Pretendo ir para Londres e iniciar-me como

advogado, já que este, pelo que dizem, é o melhor preparo para a vida

pública. Haverá um grande trabalho político a se fazer dentro em pouco, e


quero tentar participar de alguma coisa. Outros homens já conseguiram

conquistar para si uma posição honrosa, sem família nem dinheiro."

"O que torna a conquista ainda mais honrosa," disse Dorothea, cheia

de ardor. "Além disso, o senhor é tão talentoso! Eu soube por meu tio

que fala muito bem em público, a tal ponto que todos lamentam quando

termina, e é capaz de explicar as coisas com enorme clareza. Como se

preocupa com que se faça justiça a todos, fico muito contente. Quando

estávamos em Roma, pensei que só se preocupasse com poesia e arte e

essas coisas que adornam a vida para nós que estamos bem. Mas já sei

que o senhor pensa no restante da humanidade."

· medida que falava, Dorothea foi perdendo o embaraço, e já se

mostrava agora como a pessoa de antes. Lançava a Will um olhar direto,

cheio de deleitada segurança.

"Aprova pois que eu parta por uns anos, nunca voltando aqui até

que tenha obtido alguma distinção no mundo?" disse Will, tentando

muito conciliar o mais profundo orgulho com o esforço mais profundo

para extrair de Dorothea uma expressão de forte sentimento.

Ela nem percebeu quanto tempo se passou antes de responder. Ti-

nha virado a cabeça e olhava pela janela as roseiras, nas quais pare-

MIMUMARCH

senhor precisa ter paciência. Isto talvez demore muito tempo."

Will nunca soube como lhe foi possível poupar-se de se atirar a seus

pés quando aquele "muito tempo" soou com delicado tremor. Costuma-

va dizer que a horrível cor e a aparência de seu vestido de crepe haviam

sido provavelmente a força capaz de o controlar. Sentado e imóvel, ele

disse portanto apenas:

"Nunca terei notícias suas. E a senhora há de esquecer tudo a meu

respeito."

"Não," disse Dorothea, "nunca o esquecerei. Nunca me esqueci de

ninguém que eu tenha alguma vez conhecido. Nunca houve muita gente
em minha vida, nem parece que vá haver. E o espaço de memória que

me cabe em Lowick é bem grande, não é?" Ela sorriu.

"Oh, meu Deus!" exclamou apaixonadamente Will, levantando-se

de chapéu na mão e andando até uma mesa de mármore, contra a qual,

num giro súbito, se apoiou de costas. O sangue lhe subira ao pescoço e

à face, e ele se mostrava quase zangado. Viera-lhe a impressão de serem

os dois como dois seres que lentamente eram transformados em már-

more na presença um do outro, enquanto seus corações permaneciam

cientes e os olhos, cheios de desejo. Não havia porém como evitá-lo.

Nem nunca seria exato dizer que neste encontro, ao qual comparecera

com amarga resolução, ele fosse terminar com uma declaração passível

de ser interpretada como interesse pela fortuna dela. Ademais, era de

todo exato que ele se achava temeroso do efeito que as declarações des-

te gênero eventualmente teriam sobre Dorothea.

575

ciam vir encerrados os verões de todos os anos que Will passaria lon-

ge. Não era uma atitude ponderada. Mas Dorothea nunca pensava em

estudar seus modos: pensava apenas em se curvar à triste necessidade

que a separava de Will. As primeiras palavras dele sobre as intenções

que o moviam pareceram tornar-lhe as coisas claras: supôs que ele já

soubesse de tudo sobre a conduta final de Mr. Casaubon em relação a

si, que teria causado a ambos a mesma espécie de choque. Nunca ele

sentira mais do que amizade por ela - nunca lhe passara pela cabeça

qualquer coisa que justificasse o que era para ela uma afronta de seu

marido aos sentimentos dos dois: e esta amizade, ele ainda a sentia.

Algo que poderia ser descrito como um silencioso soluço interior per-

correu Dorothea antes de ela dizer numa voz pura que só tremeu nas

últimas palavras, como que em decorrência de sua própria flexibilida-

de e fluidez:
"Sim, fazer o que diz há de ser o melhor para si. Ficarei muito feliz

quando eu souber que conseguiu tornar seu valor reconhecido. Mas o

576

GEORGE ELIOT

De longe e um pouco perturbada ela olhou para ele, imaginando que

em suas palavras tivesse podido haver alguma ofensa. O tempo todo

porém a percorria uma idéia sobre a provável necessidade de dinheiro

dele, e sua impossibilidade de ajudá-lo. Por intermédio de seu tio, se ele

estivesse em casa, alguma coisa poderia ser feita! Foi esta preocupação

com as agruras financeiras de Wili, quando ela possuía o que deveria ter

sido a parte dele, que a levou dizer, vendo que ele se mantinha em silên-

cio e desviava o olhar:

"Pergunto-me se não gostaria de ficar com aquela miniatura que há

lá em cima - quero dizer, aquela bela miniatura de sua avó. Não creio

que me seja correto conservá-la, caso a deseje ter. A semelhança com o

senhor é incrível."

" muita bondade sua," disse W111, irritado. "Mas não, não me inte-

resso por ela. Não há grande consolo em possuir o que a nós se asseme-

lha. Mais consolador seria se outros quisessem tê-lo."

"Pensei que talvez gostasse de lhe cultuar a memória, pensei

Dorothea se interrompeu um instante, brusca e instintivamente adverti-

da de que era melhor passar ao largo da história de tia Júlia - "que

decerto lhe agradaria ter a miniatura como lembrança de família."

"Por que haveria de tê-la, se eu não tenho mais nada?  na própria

cabeça que um homem que só dispõe de uma valise para suas coisas

deve guardar as lembranças."

Will falava ao acaso: dava apenas vazão à sua impertinência; e era

mesmo de exasperá-lo um pouco que em tal momento lhe fosse ofereci-


do um retrato da avó. Para os sentimentos de Dorothea, suas palavras

equivaliam porém a uma ferroada. Foi pois com um misto de indignação

e altivez que ela se ergueu e disse:

"O senhor é de longe o mais feliz de nós dois, Mr. Ladislaw, por não

ter nada."

Will se sobressaltou. Fossem quais fossem as palavras, o tom parecia

ser de despedida; e ele, deixando seu encosto na mesa, deu alguns passos

para ela. Os olhos de ambos se encontraram com gravidade estranha e

indagadora. Alguma coisa em seus espíritos mantinha os dois apartados,

e cada um se perdia em conjecturas sobre o que se passava no outro. Na

realidade Will jamais pensara em ter algum direito de herança sobre os

bens cuja posse Dorothea detinha, e seria preciso toda uma narrativa para

fazê-lo entender os sentimentos que então a possuíam.

"Até agora eu nunca havia sentido que não ter nada fosse um infor-

túnio," disse ele. "Mas a pobreza pode ser tão horrível como a lepra, se

nos separa do que mais nos interessa."

MIMUMARCH

577

A tais palavras, o coração de Dorothea partiu-se, levando-a a enter-

necer-se e a responder num tom de triste companheirismo.

"São tantos os modos por que a dor se revela! Há dois anos atrás eu

nem tinha idéia disto - quero dizer, do modo inesperado como os pro-

blemas surgem, atam-nos as mãos e nos impõem o silêncio quando de-

sejamos falar. Eu costumava desprezar um pouco as mulheres por não

darem mais forma às suas vidas e fazerem coisas melhores. Agradava-

me, e muito, agir como eu bem queria, mas agora já quase desisti,"

concluiu ela, com um sorriso irônico.

"Pois eu não desisti de agir como bem quero, mas é muito raro que
o consiga fazer," disse Will. Plantado a uns dois metros dela, ele tinha a

mente repleta de resoluções e desejos contraditórios - ansiando por

alguma prova inequívoca de que ela o amava, no entanto temendo a

situação em que tal prova talvez o colocasse. "Aquilo a que mais aspira-

mos pode estar cercado de condições que nos seriam intoleráveis."

Nesse momento Pratt entrou e disse: "Sir James Chettam está na

biblioteca, madame."

"Peça-lhe que venha para cá," disse Dorothea, imediatamente. Dir-

se-ia que um mesmo choque elétrico havia passado por Will e ela. Am-

bos sentiram-se a resistir com orgulho, mas nenhum olhou para o outro,

enquanto aguardavam pela chegada de Sir James.

Este, após um aperto de mãos com Dorothea, inclinou-se o mais

ligeiramente possível para Ladislaw, que retribuiu com exatidão a ligei-

reza e aí, dirigindo-se a Dorothea, disse:

"Devo dizer-lhe adeus, Mrs. Casaubon; e talvez por longo tempo."

Dorothea deu-lhe a mão e se despediu cordialmente. A impressão

de que Sirjames estava menoscabando Will e procedendo impolidamente

com ele ativou-lhe a decisão e a dignidade: não havia nos seus gestos

nenhum sinal de embaraço. Quando Will saiu da sala, ela olhou para Sir

James com tal calma e segurança, perguntando: "Como vai a Celia?%

que ele foi obrigado a comportar-se como se nada o houvesse incomo-

dado. E por que se comportaria de outro modo? Com efeito, Sir James

se retraía com um desgosto tão grande de associar Dorothea a Ladislaw,

mesmo em pensamento, como seu possível amante, que ele próprio há

de ter querido evitar qualquer demonstração exterior que viesse a reco-

nhecer a existência da desagradável possibilidade. Se alguém lhe per-

guntasse por que se retraía assim, não estou certo de que a princípio ele

dissesse alguma coisa mais precisa ou completa do que "esse tal de

Ladislaw!" - muito embora depois talvez insistisse, ao refletir, que o

codicilo de Mr. Casaubon, impedindo o casamento de Dorothea com


578

GEORGE ELIOT

Will, a não ser sob penalidade, era suficiente para tornar impróprias

quaisquer relações entre eles dois. E sua aversão era mais forte ainda

porque ele se sentia incapaz de interferir.

Mas em certo sentido Sir james era uma potência ignorada até por si

mesmo. Entrando nesse momento, foi ele uma corporificação das razões

mais sólidas pelas quais o orgulho de Will se tornou uma força repelen-

te, mantendo-o à distância de Dorothea.

CAPÍTULo LV

Hath she her faults? I would you had them too.

They are the fruity must of soundest wine

Or say, they are regenerating fire

Such as hath turned the dense black element

Into a crystal pathway for the sun.

("Ela tem defeitos? Você também, diria eu.

Do bom vinho eles são o espesso mosto

Ou o fogo que regenera, digamos,

E do elemento negro e denso já fez

Uma senda de cristal para o sol.")

SE A JUVENTUDE  A estação da esperança, não raro o é tão-somente

porque os mais velhos são muito esperançosos em relação a quem so-

mos; pois não há idade tão dada como a juventude a pensar que suas

emoções, separações e resoluções sejam as últimas de sua espécie. Cada

crise parece definitiva, simplesmente porque é nova. Contam-nos que


os mais antigos habitantes do Peru não cessam de se inquietar com os

terremotos, mas é provável que eles vejam além de cada abalo e reflitam

que ainda há muitos por vir.

Para Dorothea, ainda naquela etapa da juventude em que os olhos,

depois de alguma chuva de lágrimas, mostram-se imaculados e frescos,

com suas longas e abundantes pestanas, como uma flor-da-paixãol ré-

cém-aberta, a separação de Will Ladíslaw nessa manhã foi como o tér-

mino de suas relações pessoais. Lá se ia ele à distância de ignotos anos

e, se jamais voltasse, já seria outro homem. O estado real de seu espírito

IA flor do maracujá, ou Passiflora

580

GEORGE ELIOT

- sua orgulhosa decisão de desmentir de antemão qualquer suspeita de

que ele bancaria o aventureiro necessitado no encalço de uma rica mu-

lher - era inimaginável para ela, que facilmente havia interpretado toda

sua conduta pela suposição de que o codicilo de Mr. Casaubon lhe pare-

cia, como a ela mesma parecera, uma crassa e cruel interdição a qualquer

amizade assídua entre os dois. O jovem prazer que tinham em conversar

um com o outro, dizendo-se o que a mais ninguém interessaria ouvir,

achava-se findo para sempre e transformado numa relíquia do passado.

Por esta própria razão ela o nutrira sem nenhum entrave interior. Tal

felicidade única estava morta também e, no seu nicho silencioso e obs-

curo, ela podia dar vazão ao apaixonado pesar do qual se admirava ela

mesma. Pela primeira vez tirou a miniatura da parede e a manteve ante

si, comprazendo-se em associar a mulher que fora julgada com excessi-

vo rigor ao neto que seu próprio juízo e coração defendiam. Pode al-

guém que já se rejubilou com a ternura de uma mulher reprová-la por


colher e acamar nas mãos em concha o pequeno retrato oval, e sobre ele

inclinar a face, como se nisto houvesse uma lisonja à criatura que havia

sofrido uma condenação injusta? Não sabia ela então que era o Amor

que lhe vinha, fugaz como um sonho antes do despertar, com as cores da

manhã em suas asas - que ao Amor é que ela consagrava seus soluços

de adeus, enquanto a imagem dele próprio era banida pelo inocente

rigor do dia irresistível. Ela apenas sentia haver algo irrevogavelmente

perdido e que fazia falta em sua sorte, e seus pensamentos sobre o futu-

ro mais prontamente se moldavam em resoluções. As almas ardentes,

dispostas a construir sua existência vindoura, tendem a se comprometer

com a realização de suas próprias visões.

Um dia em que ela foi a Freshitt para cumprir sua promessa de pas-

sar a noite e ver o bebê tomando banho, Mrs. Cadwallader aí veio jantar,

tendo o Reitor partido para uma pescaria. Era uma noite quente e, mes-

mo na aprazível sala de visitas, donde pela janela aberta o belo e velho

gramado descia em direção a um lago com plantas e a canteiros bem

cuidados, o calor era tanto que fez Celia, vestida, em seus leves cachos,

de musselina branca, refletir pesarosa sobre como devia Dodo sentir-se,

de vestido preto e touca justa. Tal porém só se deu depois que alguns

episódios com o bebê, chegando ao término, deixaram-lhe a mente li-

vre. Ela já se tinha sentado e abanado por algum tempo com um leque,

antes de dizer em sua voz gutural:

"Tire a touca, Dodo. Esta sua roupa, querida, só lhe pode fazer mal,

tenho certeza."

"Estou tão acostumada - que a touca para mim já quase se tornou

MIMUMARCH

581

uma concha," disse Dorothea, sorrindo. "Até me sinto, se a não ponho,


desnuda e exposta."

"Tenho de ver você sem isto; ela abafa a todos nós," disse Celia,

largando o leque e partindo para cima de Dorothea. Era um quadro bo-

nito, ver aquela dama miúda, em musselina branca, a desamarrar a tou-

ca de viúva da irmã mais majestosa, para a atirar numa cadeira. As ondas

e tranças de seu cabelo castanho-escuro mal tinham ficado soltas quan-

do entrou na sala Sir James. Ao ver a cabeça agora livre, num tom de

satisfação ele disse: "Ah!"

"Fui eu, James, eu quem o fiz," disse Celia. "Não tem por que a

Dodo fazer de seu luto um cativeiro; não tem por que, entre amigos, ela

continuar a usar esta touca."

"Uma viúva, minha querida Celia," disse Lady Chettam, "deve usar

luto por pelo menos um ano."

"Não se antes disto ela se casa de novo," disse Mrs. Cadwaliader,

que tinha certo prazer em alarmar a velha senhora, sua boa amiga. Sir

James, nada contente, abaixou-se para brincar com o cachorro maltês de

Celia.

"Isto é muito raro, creio eu," disse Lady Chettam, num tom previsto

para afastar tal hipótese. "Nenhuma de nossas amigas nunca se compro-

meteu deste modo, a não ser Mrs. Beevor, e foi muito doloroso para

Lord Grinsell, quando ela o fez. Seu primeiro marido era discutível, o

que tornava o fato ainda mais espantoso. E ela foi severamente punida.

Diziam que o Capitão Beevor a arrastava pelos cabelos e lhe apontava a

pistola carregada."

"Oh, se ela escolheu o homem errado!" disse Mrs. Cadwallader, numa

disposição de ânimo decididamente maldosa. "O casamento neste caso,

seja pela primeira, seja pela segunda vez, sempre é ruim. A prioridade é

recomendação insatisfatória, para um marido que não conta com outras.

Eu preferiria ter um bom segundo marido a um primeiro que fosse indi-

ferente."

"Sua língua sagaz a arrasta, minha querida," disse Lidy Chettam.


"Estou certa de que você seria a última mulher a se casar de novo pre-

maturamente, se o nosso caro Reitor se fosse desta."

"Oh, não faço votos; isto talvez se tornasse necessário ao governo

da casa. Casar-se de novo, suponho, está dentro da lei; caso contrário,

bem poderíamos, ao invés de cristãos, ser hinduístas. Claro está que, se

uma mulher aceita o homem errado, deve agüentar as conseqüências, e

a que o faz por duas vezes merece seu destino. Mas, se ela puder casar-

se com berço, beleza e bravura, - quanto mais cedo, melhor."

582

GEORGE ELIOT

"Acho que o tema de nossa conversa foi muito mal escolhido," disse

Sír James, com um olhar desgostoso- "Que tal mudarmos de assunto?"

"Não por minha causa, Sir Jamesf disse Dorothea, decidida a não

perder a oportunidade de livrar-se de certas referências veladas aos bons

particios. "Se é para meu bem que está falando, posso assegurar-lhe que

nada me é mais indiferente e impessoal do que um segundo casamento.

 mais ou menos o mesmo, para mim, que falar das mulheres que vão à

caça à raposa: quer elas sejam por isto admiráveis ou não, eu não as

imitaria. Por favor, deixe Mrs. Cadwallader se distrair com este assunto,

como com qualquer outro."

"Minha querida Mrs. Casaubon," disse Lady Chettam, a seu mais

soberbo modo, "espero que não tenha pensado que houvesse alguma

alusão à sua pessoa, quando me referi a Mrs. Beevor. Foi apenas um

exemplo que me ocorreu. Ela era enteada de Lord Grinsell, que se casou

com Mrs. Teveroy em segundas núpeias. De modo algum podia haver

uma alusão à senhora."

"Oh, não," disse Celia. "Ninguém escolheu o assunto; tudo veio a

propósito da touca da Dodo. Mrs. Cadwallader só disse a pura verda-


de. Com uma touca de viúva, James, não haveria como uma mulher se

casar."

"Boca calada, querida!" disse Mrs. Cadwallader. "Não voltarei a ofen-

der ninguém. Nem mesmo hei de fazer menção a Dido ou Zenóbia. Mas

sobre o que então vamos conversar? De minha parte, oponho-me à dis-

cussão da Natureza Humana, porque esta é a natureza das esposas de

reitores."

Mais tarde na noite, após a partida de Mrs. Cadwallader, Celia disse

em particular para Dorothea: "Ter tirado sua touca, Dodo, realmente fez

você se parecer de novo com quem é, e em mais de um aspecto. Você

falou tal qual falava antes, quando alguma coisa que não lhe agradava

era dita. Mas eu mal pude perceber se era o James ou Mrs. Cadwallader

quem a seu ver estava errado."

"Nenhum dos dois," disse Dorothea. "O James falou por delicadeza

por mim, embora se equivocasse ao supor que eu me importava com o

que Mrs. Cadwallader dizia. Eu só me importaria se houvesse uma lei

que me obrigasse a aceitar qualquer espécime de berço e beleza reco-

mendado por ela, ou quem quer que fosse."

"Mas você sabe, Dodo, que, se algum dia se casasse, até que ter

berço e beleza seria muito melhor," disse Celia, refletindo que Mr.

Casaubon não havia sido ricamente contemplado com estes dons, e que

era bom advertir Dorothea a tempo.

MIDDLEMARCI-

583

"Não fique aflita, Kítty; são bem outras as idéias que tenho sobre

minha vida. Nunca me casarei de novo," disse Dorothea, pegando no

queixo da irmã e olhando para ela com indulgente afeição. Celia ninava

seu bebê, e Dorothea ali estava para lhe dizer boa-noite.


"Bem outras - realmente?" disse Celia. "Ninguém mesmo então -

nem mesmo se fosse uma maravilha?"

Lentamente Dorothea fez que não com a cabeça. "Ninguém mesmo.

Tenho uns planos que me encantam. Eu gostaria de pegar um bom peda-

ço de terra, drená-lo e criar uma pequena colônia, onde todos trabalhas-

sem e o trabalho fosse sempre bem feito. Conhecendo a todos, de todos

eu me faria amiga. Vou pedir a Mr. Garth uma porção de conselhos: ele é

capaz de me dizer quase tudo o que eu preciso saber."

"Você então será feliz, Dodo, se já tem uma intenção," disse Celia.

"O Arthurzinho talvez goste dos planos, quando crescer, e poderá então

ajudá-la."

Nessa mesma noite Sirjames foi informado de que Dorothea estava

resolvida a não se casar com ninguém e que pretendia ocupar-se de "pla-

nos de todo tipo," tal como outrora de seu hábito. Sir James não fez

nenhuma observação. A seu modo íntimo de ver, havia algo de repulsivo

no segundo casamento de uma mulher, e nenhum partido o impediria de

o sentir como uma espécie de profanação para Dorothea. Ele estava ci-

ente de que a sociedade consideraria tal sentimento absurdo, principal-

mente em relação a uma mulher de vinte e um anos de idade; já que

tomar por certo e talvez próximo o segundo casamento de uma jovem

viúva era o costume da "sociedade," que sorria significativamente quan-

do ela agia de acordo com isto. Mas, se a escolha de Dorothea havia sido

desposar sua solidão, ele achava que a decisão, para ela, era de fato

adequada.

CAPÍTuLo LVI

"How happy is he born and taught

That serveth not another"s will;

Whose atmour is his honest thought,

And simple truth his only skill!


This man is freed from servile bands

Of hope to rise, or fear to fall;

Lord of himself, though not of lands;

And having nothing, yet hath all."

- SIR HENRY WOTTON.

("Feliz quem nasce e a quem se instrui

A não servir a alheio mando;

Cuja couraça é o pensar probo,

Só com a verdade a seu comando!

Homem sem vínculos servis,

Não quer subir nem teme a queda;

Senhor sem terras, mas de si,

Este tem tudo, sem ter nada.")

- SIR HENRY WOTTON.1

A CONFIAN€A DE DoROTHEA nos conhecimentos de Caleb Garth, que

havia começado quando ela soube que ele aprovava suas casinhas, au-

Mo poema "The Character of a Happy Lifé." Henry Wotton (1568-1639) foi

contemporâneo e

amigo de john Dorme em Oxford.

MIDDLEMARCH

585
mentara rápido durante sua estada em Freshitt, pois Sir James a induzi-

ra a cavalgadas pelas duas propriedades em companhia dele e de Caleb,

que lhe retribuíra de todo a admiração e dissera à sua esposa que Mrs.

Casaubon tinha uma cabeça íncomumente boa, sendo mulher, para os

negócios. Convém lembrar que por "negócios" Caleb nunca se referia a

transações com dinheiro, mas sim à competente aplicação no trabalho.

4glncomum mesmo!" repetiu Caleb. "Ela disse uma coisa que eu

mesmo quando garoto havia muitas vezes pensado: "Mr. Garth, eu gos-

taria de sentir, se chegasse à velhice, que eu havia transformado uma

grande extensão de terra e construído um bom número de casas para os

trabalhadores, porque o trabalho é de natureza sadia enquanto vai sen-

do feito, e com ele, quando está pronto, os homens passam a ter vida

melhor." Foram estas as palavras que usou: é desta maneira que ela vê as

coisas."

"Mas como mulher, espero," disse Mrs. Garth, meio desconfiada de

que Mrs. Casaubon poderia não manter o verdadeiro princípio da subor-

dinação.

"Oh, você não pode imaginar!" disse Caleb, meneando a cabeça.

"Você gostaria de a ouvir falando, Susan. Ela fala com as palavras mais

simples, e numa voz que é como música. Até me lembra, meu Deus, de

umas passagens do"Messias"-"e ato contínuo apareceu uma multidão

das hostes celestiais, falando e louvando a Deus;" é um tom que satisfaz

aos ouvidos."

Caleb adorava música e, sempre que se podia permitir, ia ouvir um

oratório pelas redondezas, dele voltando com uma reverência profunda

por aquela estrutura poderosa de sons que o fazia sentar-se meditativa-

mente, olhando para o chão e lançando em suas mãos estendidas uma

grande parcela de indizivel linguagem.

Com esse bom entendimento entre eles, era natural que Dorothea

pedisse a Mr. Garth para incumbir-se de quaisquer negócios ligados às

três fazendas e às numerosas casas de moradia agregadas à herdade de


Lowick; sua expectativa de ter trabalho para dois estava de fato sendo

preenchida. Como dizia ele, "Negócio gera negócio." E um tipo de ne-

gócio que bem então começava a gerar outros era a construção de estra-

das de ferro. Uma linha projetada deveria atravessar a paróquia de Lowick,

por onde o gado ainda pastava numa paz inviolada devido à ausência de

espanto; e assim aconteceu que os incipientes esforços do sistema férreo

passaram a figurar entre as preocupações de Caleb Garth, determinando

o curso desta história em relação a duas pessoas que lhe eram caras.

A estrada de ferro submarina pode ter suas dificuldades; mas o leito

586

GEORGE ELIOT

do mar não está dividido entre vários proprietários de terras com exi-

gências por danos não somente mensuráveis, mas também sentimen-

tais. No subeondado a que Middemarch pertencia, as estradas de ferro

constituíam tópico tão excitante quanto a Lei de Reforma ou os horrores

iminentes do Cólera, e quem tinha sobre o assunto as opiniões mais

decididas eram as mulheres e os proprietários rurais. Novas. ou velhas,

as mulheres consideravam a locomoção a vapor audaciosa e arriscada, e

contra ela se manifestavam dizendo que nada iria convencê-las a embar-

car num vagão; ao passo que os proprietários, divergindo um do outro

em seus argumentos, tanto quanto Mr. Solomon Featherstone divergia

de Lord Medicote, eram porém unãonimes na opinião de que vendendo

terras, fosse para o Inimigo da humanidade ou uma companhia que se

comprometia a comprar, tais perniciosas agências deveriam ser forçadas

a pagar um preço bem alto pela permissão de fazer mal às pessoas.

Mas as cabeças mais lentas, como a de Mr. Solomon e a de Mrs.

Waule, ambos instalados em terras próprias, levaram um longo tempo

para chegar a esta conclusão, já que pensando se detinham ante a vívida


concepção do que seria cortar ao meio o Grande Pasto e transformá-lo

em nesgas triangulares que iam ser "o mesmo que nada;" ao passo que

as pontes de serviço e os altos pagamentos lhes pareciam remotos e

inacreditáveis.

"Todas as vacas vão abandonar seus bezerros, mano," disse Mrs

Waule, num tom de melancolia profunda, "se a estrada de ferro passa

pelo Cercado de Cá; e eu também fico pensando na égua, se ela estive

prenhe. Que coisa horrível, retalhar a propriedade de uma viúva sem

que a lei diga nada! Desde que eles comecem, o que há de impedi-lo

de cortar a torto e a direito? Eu, como é bem sabido, não tenho com

lutar."

" melhor não dizer nada e deixar alguém de sobreaviso par

despachá-los com a pulga atrás da orelha, quando eles vierem espionar

fazer suas medições," disse Solomon. "Foi o que pessoal fez em Brassing

pelo que me consta. Se a gente soubesse mesmo a verdade, veria que

puro fingimento, isto de que eles sempre são forçados a seguir por um

rumo. Pois que cortem então noutra paróquia! E eu não acredito qu

paguem indenização nenhuma por trazerem um bando de desordeiro

para estragar nossas plantações. De que fundos dispõe uma companhia?"

"O mano Peter, que Deus o tenha, tirou dinheiro de uma compa

nhia," disse Mrs. Waule. "Mas foi pelo manganês. Não por uma linha d

trem que destruísse a gente em pedaços."

"Bem, há uma coisa a ser dita, Jane," concluiu Mr. Solomon, abai

MIMUMARCH

587

xando prudentemente a voz, "quanto mais atrapalharmos seus planos,

mais eles hão de nos pagar para deixarmos que avancem, se é que vêm

mesmo."
Este raciocinio de Mr. Solomon era talvez menos profundo do que

ele imaginava, pois sua esperteza em relação ao andamento das estradas

de ferro equivalia mais ou menos à de um diplomata em relação ao

esfriamento total ou aos eventuais resfriados do sistema solar. Mas ele

resolveu agir de um modo profundamente diplomático, tal qual pensa-

va, estimulando a suspeita. No seu cantão em Lowick, o mais afastado

da vila, as casas dos trabalhadores ou bem eram moradias reles e esparsas,

ou bem se aglomeravam na aldeola chamada Frick, onde uma roda-d"água

e algumas pedreiras constituiam um pequeno centro de trabalho lento e

penoso,

Na ausência de qualquer idéia precisa sobre o que fosse uma estrada

de ferro, a opinião pública em Frick a condenava, pois a mente humana,

neste recanto no mato, não tinha a proverbial tendência a admirar o

desconhecido, crendo ao contrário que ela seria provavelmente contra

os pobres, e que a suspeita era a única atitude sensata em relação ao

problema. Nem o rumor sobre a Reforma havia ainda despertado quais-

quer milenárias expectativas em Frick, por não conter uma promessa

concreta, fosse de grãos gratuitos para engordar o porco de Hiram Ford,

ou de um taberneiro que a troco de nada preparasse cerveja no "Weights

and Scales," ou mesmo de uma oferta dos três fazendeiros locais para

aumentar durante o inverno os salários. E, sem benefícios distintos des-

ta espécie no que prometia, a Reforma parecia igualar-se às bazófias dos

bufarinheiros, de que toda pessoa advertida encontrava uma razão para

desconfiar. Os homens de Frick, não sendo mal alimentados, eram me-

nos dados ao fanatismo do que a uma forte suspeição muscular; menos

inclinados a acreditar que o céu se incumbia particularmente deles do

que a considerar o céu como disposto de certo modo a enganá-los -

disposição observável de resto nas variações do tempo.

O espírito de Frick era assim exatamente de um tipo favorável ao

trabalho de Mr. Solomon Featherstone, tendo ele idéias mais copiosas da

mesma ordem, com uma suspeição de céu e terra que se nutria ainda
melhor e tinha mais tempo livre. Solomon era na época o administrador

das estradas e, em seu cavalo robusto de andadura lenta, costumava vagar

por Frick para inspecionar os trabalhadores na extração de pedras, paran-

do às vezes com uma determinação misteriosa que poderia levar alguém a

erroneamente supor que ele tivesse outras razões para ali estar, além da

mera falta de impulsos para se mover. Depois de olhar por longo tempo

588

GEORGE ELIOT

algum trabalho em curso, era comum que ele erguesse um pouco os olhos

para contemplar o horizonte; finalmente soltava as rédeas, tocava com

seu chicote o cavalo e o punha lentamente a avançar. O ponteiro das horas

de um relógio era rápido, em comparação com Mr. Solomon, homem do-

tado da impressão agradável de poder permitir-se a lentidão. Era também

de seu hábito parar para uma charla precavida e vagamente intrigante com

cada podador de sebe ou limpador de vala que encontrava a caminho,

mostrando-se especialmente disposto a ouvir até novidades que já ouvira

antes e sentindo que levava vantagem sobre os narradores, por não acre-

ditar de todo neles. Um dia, contudo, envolveu-se num diálogo com Hiram

Ford, um carroceiro, no qual foi ele mesmo quem deu informação. Quis

saber se Hiram tinha visto uns camaradas com instrumentos e varas de

medição a esquadrinhar as cercanias: diziam-se da estrada de ferro, mas

não havia como saber quem eram essas pessoas, nem as intenções que as

moviam. O mínimo que pretendiam era retalhar toda a Paróquia de Lowick,

estabelecendo a desordem.

"A gente antão num vai poder se mexer de um lugar pro outro,"

disse Hiram, pensando em sua carroça e seus cavalos.

"Não mesmo," disse Mr. Solomon. "E retalhar terras tão boas como

as desta paróquia! Melhor eles irem lá para Tipton, como eu digo. Mas
ninguém sabe o que é que está por trás disto. Eles querem desenvolver

os transportes; mas farão mal, a longo prazo, à terra e aos pobres."

", são esses gajos de Londi, eu acho," disse Hiram, que tinha uma

imprecisa idéia de Londres como um centro de hostilidade ao campo.

"Decerto que sim. E lá pras bandas de Brassing, pelo que ouvi dizer,

o povo deu em cima deles, quando estavam espionando, quebrou as

lunetas que levavam e os fez sair em disparada, pra que perdessem toda

a vontade de voltar."

"Deve mesmo de ter sido engraçado," disse Hiram, cuja própria gra-

ça era muito restringida pelas circunstâncias.

"Bem, eu mesmo não me meteria com eles," disse Solomon. "Mas

há quem diga que esta região já conheceu melhores dias, e sinal disto

são esses gajos que a percorrem pisando a torto e a direito, querendo

cortá-la toda com suas linhas de trem; e tudo para que o grande trans-

porte engula logo os pequenos, de modo a não deixar sobre a terra nem

mais uma junta de animais, nem um chicote a estalar."

"Pois ó que eu faço meu chicote estalar na cara deles, antes que eles

cheguem a istof disse Hiram, enquanto Mr. Solomon, soltando as ré-

deas, seguia em frente.

Semente de urtiga não precisa de cova. A ruma daquela zona rural

MIMUMARCH

589

por linhas férreas foi discutida não só no "Weights and Scalesf mas

também nas plantações de feno, onde as turmas de trabalho tiveram

ocasiões de conversa que raramente se lhes ofereciam durante o ano

campestre.

Certa manhã, não muito após a entrevista em que Mary Garth con-

fessou a Mr. Farebrother os sentimentos que nutria por Fred Vincy, acon-
teceu de seu pai ter um assunto a resolver que o levou até a fazenda de

Yoddrell, na direção de Frick: sua tarefa era medir e avaliar uma retirada

faixa de terra que pertencia à herdade de Lowick, a qual Caleb esperava

pôr vantajosamente à venda para Dorothea (deve-se confessar que sua

tendência era obter da estrada de ferro os melhores termos possíveis).

Ao andar com seu ajudante e a cadeia de agrimensor para o local de

trabalho, após deixar seu cabriolé na fazenda, ele encontrou um grupo

de agentes da companhia, ocupados em ajustar um nível de bolha. De-

pois de rápida conversa os deixou, observando que dentro em pouco o

alcançariam no ponto em que ele ia fazer suas medições. Era uma dessas

manhãs cinzentas, depois de uma chuva fina, que se tornam deliciosas

por volta do meio-dia, quando as nuvens já se dissipam e, junto às sebes

e ao longo das veredas, é doce o cheiro de terra.

Cheiro que teria sido ainda mais doce para Fred Vincy, que montado a

cavalo vinha pelas veredas, se sua mente não estivesse agitada por malo-

grados esforços para imaginar o que ele iria fazer, com seu pai, de um

lado, contando com seu ingresso imediato na Igreja, Mary, do outro, amea-

çando abandoná-lo se isto de fato ocorresse, e com o mundo cotidiano do

trabalho não demonstrando nenhuma necessidade ávida por um jovem

cavalheiro sem capital e sem capacítações específicas. Situação ainda pior

para Fred porque o pai, satisfeito de ele não mais ser um rebelde, mostra-

va-se bem humorado com ele, tendo-o mandado nessa agradável cavalga-

da à procura de uns galgos. Mesmo quando ele se decidisse sobre o que

deveria fazer, restaria a tarefa de o dizer a seu pai. Forçoso é admitir que

decisão, que tinha de vir primeiro, era porém a mais díficil tarefa: que

ocupação secular havia na Terra para um jovem (cujos amigos não lhe

podiam conseguir uma "nomeação") que ao mesmo tempo fosse lucrativa

e nobre, sem exigir em sua prática um conhecimento especial? Cavalgan-

do neste estado de espírito pelas veredas de Frick, e refreando o passo ao

pensar se deveria aventurar-se a passar pelo presbitério de Lowick para


estar com Mary, era-lhe possível enxergar sobre as sebes entre um campo

e outro. Um barulho repentino lhe chamou a atenção e, na extremidade

de um campo à sua esquerda, ele viu seis ou sete homens em roupas de

camponês que, empunhando forcados, agressivamente se acercavam dos

GEORGE ELIOT

quatro agentes da estrada de ferro que a eles se contrapunham, enquanto

Caleb e seu ajudante apressavam-se a cruzar o terreno para juntar-se ao

grupo ameaçado. Fred, atrasando-se uns momentos porque ainda teve de

encontrar a porteira, não conseguiu galopar até o ponto antes de os cam-

poneses, cujo trabalho de revirar o feno não era mais tão premente após a

cerveja engolida ao meio-dia, já estarem a expulsar com seus forcados os

homens mais bem vestidos; enquanto o ajudante de Caleb Garth, um

rapazola de dezessete anos, que por ordem de Caleb fora apanhar o nível

de bolha, tinha sido derrubado e parecia jazer no chão indefeso. Os ho-

mens encasacados levaram vantagem na comda, e Fred cobriu sua retira-

da ao se pôr na frente dos outros e intimá-los com a brusquidão necessá-

ria a desbaratar a perseguição. "Que estão querendo, seus malditos lou-

cos?" gritou Fred, lançando-se em ziguezague no encalço do grupo dividi-

do e dando chicotadas a esmo. "Vou depor perante o juiz contra vocês

todos. Pelo que vejo, vocês mataram por espancamento o rapaz. Pois fi-

quem sabendo que, na próxima sessão do tribunal, serão todos mandados

para a forca," disse Fred, que depois, ao se lembrar das próprias frases,

riria a mais não poder.

Os trabalhadores já haviam sido repelidos pela porteira para seu

campo de feno, e Fred, controlado seu cavalo, quando Hiram Ford se

virou, vendo-se a uma distância desafiadora e segura, para gritar num

repto que, embora ele o não soubesse, era homérico:

"Ocê é mesmo um covarde, né? Se descer do cavalo, patrãozinho,

vem que eu acerto as contas contigo. Mas sem esse cavalo e o chicote
ocê num se atreve a vir, eu sei. Porque eu te tiro logo o fôlego, ouviu?"

"Espere ai que daqui a pouco já vou e, se vocês quiserem, eu acerto

as contas com todos, um depois do outro," disse Fred, que se sentia

confiante em seu poder de trocar murros com os irmãos bem amados.

Mas agora o que ele queria era voltar às carreiras para junto de Caleb e

do jovem prostrado.

O rapaz, tendo torcido o tornozelo, estava sentindo muita dor, mas

não sofrera mais que isto, e Fred o pôs no cavalo para ir até a fazenda de

Ybddrell à procura de quem cuidasse dele.

"Mande deixarem o cavalo na estrebaria e diga aos agrimensores

que eles podem voltar para apanhar seus troços," disse Fred. "O terreno

agora está limpo."

"Não, não," disse Caleb, "Já houve uma interrupção. Eles vão ter de

desistir por hoje, e é melhor assim. Olhe, leve estas coisas com você no

cavalo, Tom. Eles vão ver você chegando e hão de dar para trás."

"Fiquei contente de estar aqui por acaso no momento certo, Mr.

MIDDLEMARCH

591

Garth," disse Fred, depois de Tom ter partido. "Não se sabe o que pode-

ria ter acontecido se a cavalaria não chegasse a tempo."

" mesmo, foi uma sorte," disse Caleb, um pouco distraído ao falar

e olhando para o lugar onde ele estava trabalhando no momento da

interrupção. "Mas - que diacho! - é nisto que dá serem os homens tão

loucos. Não posso continuar sem que alguém me auxilie com a cadeia de

agrimensor. Entretanto!" Já ia ele a dirigir-se para o local em questão,

com uma expressão aborrecida, como que já meio esquecido da presen-

ça de Fred, quando de brusco se virou e disse rapidamente: "E você,

rapaz, que é que tem para fazer hoje?"


"Nada, Mr. Garth. Ajudá-lo seria para mim um prazer - posso?"

disse Fred, com a impressão de que estaria cortejando Mary, se a seu pai

prestasse ajuda.

"Sem, se você não se importar com o calor, nem com ter de se abai-

xar -"

"Não me importo com nada. Mas primeiro quero acertar as contas

com aquele grandalhão que se virou para desafiar-me. Para ele seria uma

boa lição. Não levo nem cinco minutos."

"Bobagem!" disse Caleb, com sua entonação mais peremptória. "Eu

mesmo vou até lá falar com os homens. Tudo isso é pura ignorância.

Alguém andou a lhes contar mentiras. Os pobres tolos nada entendem."

"Pois então eu vou com o senhor," disse Fred.

"Não, não; fique aqui onde está. Posso prescindir de seu sangue jo-

vem. Eu mesmo sei tomar conta de mim."

Homem forte, Caleb pouco sabia o que era medo, se se excluem o

medo de ferir os outros e o de ter de discursar. Mas julgou de seu dever,

nesse momento, fazer uma breve arenga. Em relação aos trabalhadores

havia nele uma curiosa mistura - provinda de ele sempre ter sido um

homem que encarava a sério o batente - de princípios rigorosos e in-

dulgência prática. Considerava que fazer bem feito e contente o trabalho

de um dia era parte do bem-estar de todos, pois isto era a principal parte

de sua própria felicidade; mas nutria por eles um forte sentimento de

fraternidade. Quando se aproximou, os trabalhadores não tinham volta-

do a trabalhar, mas estavam plantados naquela forma de agrupamento

rural que consiste em ficarem um de costas para o outro, a uma distância

de dois ou três metros, Todos olhavam meio zangados para Caleb, que

andava rápido com uma das mãos no bolso e a outra enfiada entre os

botões do colete, e manteve a aparência calma de sempre quando parou

perto deles.

"Então, amigos, como é possível?" começou ele, optando como de


592

GEORGE ELIOT

hábito por frases curtas, e significativas a seu ver para si, já que tinha

po

baixo muitos pensamentos, como as raízes abundantes de uma planta

que mal conseguem despontar sobre a água. "Conio é possível você

cometerem um erro desses! Alguém andou a lhes contar mentiras. Você

acharam que aqueles homens queriam fazer-lhes mal."

"!" foi a resposta, lançada a intervalos por cada um, de acordo com

seu grau de lentidão.

"Bobagem! Não é nada disto! Eles estão olhando para ver por onde

a linha do trem deve passar. E vocês não podem impedir a estrada de

ferro, rapazes: queiram ou não, ela será construída. Lutando contra, só

arrumarão encrenca. Esses homens estão autorizados por lei a vir aqui

O dono da terra não pode dizer nada e, se vocês se meterem com eles

vão-se ver às voltas com o delegado, com o juiz Blakesley, com as alge

mas e a cadeia de Middemarch. Já podem estar correndo risco, aliás, se

alguém deu queixa de vocês."

Caleb fez aqui uma pausa, e talvez nem o maior dos oradores pudes-

se escolher tão bem para a ocasião sua pausa, ou suas imagens.

"Eu porém sei que não tinham más intenções. Alguém lhes disse

que a estrada de ferro era uma coisa ruim. Pois foi mentira. Ela pode

causar aqui e ali algum dano, a isto ou aquilo; tal como o sol que está no

céu. Mas a estrada de ferro é uma coisa boa."

"Ah, boa pros cabras graúdos fazer dinheiro com ela," disse o velho

Timothy Cooper, que havia ficado para trás, revirando seu feno, quando

os outros fizeram sua patuscada; - "já vi muita coisa acontecendo des-

de que eu era um fedelho - a guerra e a paz, o carvão oleoso, o velho

Rei Jorge e o Regente, e o novo Rei Jorge e depois o outro que tomou
nome novo - e pro pobre tem sido sempre o mesmo. Que é que ele

ganha com o carvão-de-pedra oleoso? Isso num dá carne nem toucinho

pra ele, num dá salário pra economizar e, se ele guardar algum dinheiro,

é se matando de fome. O tempo foi ficando pior pro pobre desde que eu

era um fedelho. E assim vai ser com a estrada de. ferro. Ela só vai deixar

o pobre ainda mais pra trás. Mas quem se mete com isso é doido, con-

forme eu disse aqui pros meus companheiros. Isso é coisa de gente graúda,

é o mundo deles. Mas o senhor fica com a gente graúda, Master Garth."

Timothy era um camponês velho e rijo, de um tipo remanescente na

época - que guardava suas economias num pé de meia, vivia num case-

bre isolado e não se deixava levar pela eloqüência, tendo tão pouco do

espirito feudal e nele acreditando tão pouco como se não fosse total-

mente desinformado sobre a Era da Razão e dos Direitos do Homem.

Caleb se viu numa dificuldade enfrentada por qualquer pessoa que ten-

MIDDLEMARCH

593

ta, em período de trevas e sem contar com milagres, raciocinar com rús-

ticos que estão de posse de uma inegável verdade que eles conhecem

por um duro processo de sentimento e podem deixar cair, como a clava

de um gigante, sobre sua argumentação primorosa por um benefício so-

cial que eles não sentem. Caleb não teve a seu comando uma saída hipó-

crita, ainda que pudesse ter pensado em usá-la; e fora acostumado a

enfrentar todas essas dificuldades de uma só maneira, fazendo fielmente

seus "negócios." Respondeu assim:

"Se você não pensa bem de mim, Tim, não importa; não é disto que

se trata agora. Pode não estar bom para o pobre - e não está mesmo

não; mas aqui o que eu quero é que os rapazes não façam o que ainda

vai tornar tudo pior para eles. As bestas podem levar um fardo pesado,
mas não adiantaria jogá-lo na valeta da estrada, já que parte da carga é

sua própria forragem."

"A gente só estava se divertindo um pouco," disse Hiram, que come-

çava a ver as conseqüências. "Era tudo brincadeira."

"Bem, prometam não se meter de novo com eles, e cuidarei de que

ninguém dê queixa contra vocês."

"Como eu nunca me meti, não tenho porque prometer nada," disse

Timothy.

"Não, mas o resto. Vamos, eu hoje estou tão cheio de trabalho como

qualquer um de vocês, e não posso perder tempo. Digam-me que vão

ficar sossegados sem o delegado."

"Tá, num vamos se meter - pela gente eles pode fazer como qui-

ser" - foram as formas pelas quais Caleb obteve suas promessas; ele

então voltou às pressas para junto de Fred, que o havia seguido e o

observava lá da porteira.

Puseram-se a trabalhar, e Fred ajudou para valer. Revigorado em seu

ânimo, até riu muito quando deu uma escorregada na lama, junto de uma

cerca-viva, que sujou sua calça de verão tão perfeita. Era o vitorioso

começo

que o alegrava, ou a satisfação de ajudar o pai de Mary? Algo mais. Os

incidentes da manhã haviam auxiliado sua imaginação frustrada a vislum-

brar uma ocupação para si que tinha vários atrativos. Não estou certo de

que algumas fibras na mente de Mr. Garth não tivessem retomado sua an-

tiga vibração pelo mesmo fim que agora se revelava a Fred. Pois o incidente

efetivo é tão-só o contacto do fogo com onde houver estopa e óleo; e a Fred

sempre pareceu que a estrada de ferro trazia o necessário contacto. Eles

porém prosseguiram em silêncio, a não ser quando o trabalho exigia que se

falassem. Por fim, quando já haviam terminado e caminhavam de volta, Mr.

Garth disse:

594
GEORGE ELIOT

"Um rapaz não precisa ser bacharel para fazer esse tipo de trabalho,

não é, Fred?"

"Gostaria de já o ter praticado, antes de pensar em ser bacharel,"

disse Fred. Fez uma pausa e, mais hesitante, acrescentou: "O senhor

acha que eu já estou muito velho para aprender sua profissão, Mr. Garth?"

"Minha profissão é muito variada, meu jovem," disse Mr. Garth, sor-

rindo. "Muito do que eu sei só pode vir com a experiência: não dá para

você aprender como aprende as coisas de um livro. Mas você ainda é

bem jovem para lançar as bases." Caleb pronunciou a última frase com

ênfase, mas certa incerteza o fez parar. Sua mais recente impressão era

que Fred já estava decidido a ingressar na Igreja.

"O senhor crê que eu pudesse ser útil nela, se tentasse?" disse Fred,

agora mais ansioso.

sto depende," disse Caleb, virando a cabeça para um lado e abai-

xando a voz, com o ar de um homem que se sente dizendo alguma coisa

profundamente religiosa. "Você tem de estar seguro de duas coisas: de

gostar do seu trabalho, e não ficar olhando sempre adiante, querendo

que sua folga comece. A outra é que voce não se deve envergonhar do

seu trabalho e pensar que lhe seria mais honroso estar fazendo outra

coisa. Você tem de se orgulhar do seu trabalho, e de aprender a fazê-lo

bem, e não ficar dizendo sempre: Há isto e aquilo - se eu tivesse isto ou

aquilo para fazer, eu poderia conseguir alguma coisa. Não importa o que

um homem seja - eu não daria nem dois pences por ele" - aqui a boca

de Caleb revelava-se amarga, e ele estalou os dedos, - "fosse ele um

primeiro-ministro ou um fazedor de cabana, se não fizesse bem feito o

que se pôs a fazer."

"Nunca consigo sentir que, sendo um clérigo, eu agisse assim," disse

Fred, disposto a se valer do argumento.


"Então esqueça isto, meu jovem," disse Caleb, abruptamente, "por-

que senão nunca será feliz. Ou, se você for feliz, será um verdadeiro

estafermo."

" mais ou menos o que a Mary pensa a respeito," disse Fred, coran-

do. "Acho que o senhor sabe o que eu sinto pela Mary, Mr. Garth: e

espero não desagradar-lhe, se sempre a amei mais que a qualquer outra

pessoa, e se nunca hei de amar ninguém como a amo."

No semblante de Caleb a expressão foi visivelmente adoçando-se

enquanto Fred falava. Mas ele meneou a cabeça, com solene lentidão, e

disse:

"As coisas tornam-se mais sérias então, Fred, se você quer tomar à

sua guarda a felicidade de -"

MIDDLEMARCH

"Sei disto, Mr. Garth," disse Fred, impaciente, "e eu faria qualquer

coisa por ela. Ela diz que nunca me aceitará se eu entrar para a Igreja; e

eu serei o mais infeliz dos pobres-diabos deste mundo se eu perder mi-

nha esperança por Mary. Realmente, se eu pudesse arranjar uma outra

profissão, algum negócio - qualquer coisa em que me encaixasse, eu

iria trabalhar duro, faria por merecer sua admiração. Gostaria de lidar

com alguma coisa ao ar livre. já entendo bastante de terra e gado. Não

sei se sabe - embora o senhor vá me tornar por um tolo por causa disto

- que já cheguei a pensar em ter minha própria terra. Estou certo de

que os conhecimentos necessários me viriam com facilidade, sobretudo

se eu pudesse estar, de alguma forma, a seu lado."

"Vamos com calma, meu jovenif disse Caleb, tendo a imagem de

"Susan" ante seus olhos. "Que foi que você disse ao seu pai sobre isso

tudo?"
"Por enquanto nada; mas tenho de dizer. Só estou esperando para

ver o que é que eu posso fazer ao invés de entrar para a Igreja. Lamento

muito decepeionar meu pai, mas um homem de vinte e quatro anos tem

de ter a liberdade de julgar por si mesmo. Como eu poderia saber, quan-

do tinha quinze anos, o que me seria bom fazer agora? Minha educação

foi um erro."

"Mas preste atenção, Fred," disse Caleb. "Você tem certeza de que a

Mary gosta de você, ou de que o aceitaria algum dia?"

"Pedi a Mr. Farebrother que falasse com ela, porque ela me proibira

- eu não sabia que outra coisa fazer," disse Fred, justificando-se. "E diz

ele que minha esperança tem pleno fundamento, se eu for capaz de me

pôr numa posição honrosa - quero dizer, fora da Igreja. Ouso pensar

que o senhor tome por indesculpável de minha parte, Mr. Garth, estar a

incomodá-lo e a expor inoportunamente meus desejos por Mary, antes

de eu ter, por mim mesmo, feito alguma coisa.  claro que eu não tenho

o menor direito - na realidade, tenho uma divida com o senhor que

nunca há de ser quitada, mesmo quando eu me vir em condições de

pagá-la em forma de dinheiro."

"Sim, meu jovem, você tem um direito," disse Caleb, com a voz

cheia de sentimento. "Os jovens sempre têm o direito de contar com a

ajuda dos velhos. Eu tive de me arranjar sem muita ajuda, quando era

jovem; mas de bom grado a teria recebido, nem que só fosse pelo senti-

mento de companheirismo que traz. Mas eu tenho de pensar. Venha ao

meu escritório amanhã, às nove horas. ·s nove horas, ouviu?"

Mr. Garth não daria nenhum passo importante sem consultar Susan,

mas confesse-se que, antes de chegar em casa, ele já tinha sua decisão

595

596

GEORGE ELIOT
tomada. Em relação a um grande número de assuntos sobre os quais os

outros são decididos ou obstinados, ele era o homem mais manejável do

mundo. Nunca sabia o que queria comer e, se Susan lhe dissesse que

eles teriam de morar num casebre de quatro cômodos, para fazer econo-

mia, ele haveria de dizer: "Pois então vamos," sem pedir maiores deta-

lhes. Mas Caleb impunha seu domínio, nos pontos em que seu senti-

mento e julgamento adquiriam realce; e, a despeito de sua brandura e

timidez para reprovar, todos a seu redor sabiam que, em ocasiões excep-

cionais, quando resolvia, era absoluto. Mas nunca de fato ele resolvia

ser absoluto, a menos que por causa de outrem. Em noventa e nove

pontos Mrs. Garth decidia, mas no centésimo ela em geral sabia que

teria de realizar a tarefa singularmente dificil de cumprir seu próprio

principio, e se fazer subordinada.

"Aconteceu como eu pensava, Susan," disse Caleb, quando os dois,

de noite, sentavam-se a sós. Ele já havia narrado a aventura que levara

Fred a participar de seu trabalho, omitindo porém o resultado final. "Os

jovens se gostam, quero dizer, o Fred e a Mary."

Mrs. Garth pôs seu trabalho nos joelhos e ansiosamente fixou no

marido seus olhos penetrantes.

"Quando acabamos o trabalho, o Fred me contou tudo. Não agüenta

a idéia de ser clérigo, e a Mary diz que não o aceitará, caso ele seja; e o

rapaz gostaria de ficar comigo e se dedicar à profissão. E eu estou decidi-

do a orientá-lo e fazer dele um homem."

"Caleb!" disse Mrs. Garth, em contralto profundo, expressão de es-

panto resignado.

" uma boa solução," disse Mr. Garth, ajeitando-se firmemente con-

tra o encosto da cadeira e agarrado em seus braços. "Vou ter problemas

com ele, mas acho que conseguirei superá-los. O rapaz tem amor por

Mary, Susan, e um amor verdadeiro por uma boa mulher é uma grande

coisa. Põe até os desordeiros na linha."


"A Mary lhe falou sobre o assunto?" disse Mrs. Garth, meio ofendida

por dentro por não ter sido informada.

"Nem uma palavra. Uma vez eu lhe perguntei pelo Fred; fiz-lhe uma

pequena advertência. Mas ela me garantiu que nunca iria casar-se com

um homem vadio e indulgente consigo mesmo - e desde então mais

nada. Mas parece que o Fred pediu a Mr. Farebrother que falasse com

ela, que o proibira de falar em pessoa, e Mr. Farebrother constatou que

ela de fato gosta do Fred, só que não o quer como clérigo. O coração

dele está fixado em Mary: posso ver isto, o que me deixa uma boa opi-

nião do rapaz - e nós sempre gostamos dele, Susan."

MIMUMARCH

597

"Para a Mary, a meu ver, é uma pena," disse Mrs. Garth.

"Como - uma pena?"

"Porque ela, Caleb, poderia arranjar um homem que valesse vinte

Fred Vincys."

"Ah?" disse Caleb, com surpresa.

"Acredito firmemente que Mr. Farebrother se interessa por ela e pre-

tendia fazer-lhe uma proposta; mas é claro que agora que o Fred o usou

como emissário esta perspectiva melhor chegou ao fim." Havia na decla-

ração de Mrs. Garth uma precisão severa. Ela estava decepeionada e

aborrecida, mas também decidida a se abster de inúteis palavras.

Caleb, num conflito de sentimentos, ficou alguns instantes calado.

Olhava para o chão e movia a cabeça e as mãos em acompanhamento de

alguma argumentação interna. Finalmente disse:

"Isto me teria deixado muito orgulhoso e feliz, Susan, e eu ficaria con-

tente por sua causa. Seus bens, sempre senti, não são compatíveis com o

seu nível. Mas você me aceitou, embora eu fosse um homem simples."


"Aceitei o melhor e mais inteligente homem que eu já conheci," dis-

se Mrs. Garth, convencida de que ela, abaixo desta marca, jamais teria

amado um qualquer.

"Bem, outros talvez achassem que você poderia ter agido melhor.

Mas para mim teria sido pior. E é isto o que me toca muito em relação ao

Fred. Ele no fundo é um bom rapaz, e bastante esperto para dar certo, se

for posto no bom caminho; gosta da minha filha e a honra acima de

tudo, e ela lhe fez uma espécie de promessa, condicionada ao que ele

venha a ser. Tenho portanto em minhas mãos, posso dizer, a alma deste

rapaz; e farei por ele o que eu puder, pedindo a Deus que me ajudei 

meu dever, Susan."

Mrs. Garth não era dada a lágrimas, mas uma de bom tamanho já lhe

descia pela face antes de o seu marido acabar. Provinha da pressão de

vários sentimentos, entre os quais muita ternura e um certo desconten-

tamento. Rapidamente ela a enxugou, dizendo:

"Poucos além de você tomariam por um dever tomar maior deste

modo a ansiedade deles, Caleb."

Isto nada significa - o que haveriam os outros de pensar. Tenho

dentro de mim um sentimento claro, e hei de seguí-lo; e espero que seu

coração me acompanhe, Susan, para facilitar para a Mary, coitadinha,

tudo o que for possivel."

Caleb, recostando-se outra vez na cadeira, olhou para sua esposa

num apelo ansioso. Ela se ergueu, beijou-o e disse: "Deus o abençoe,

Caleb! Nossos filhos têm um bom pai."

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GEORGE ELIOT

Quando saiu, deu-se porém a um choro forte, que compensasse a

supressão de suas palavras. Estava certa de que a conduta de seu marido


seria mal interpretada e, no tocante a Fred, ela era racional e não nutria

esperanças. Onde haveria de existir mais antevisão afinal - em sua

racionalidade ou na ardente generosidade de Caleb?

Na manhã seguinte, quando Fred se apresentou no escritório, já ha-

via um teste a ser feito, para o qual ele não estava preparado.

"Agora, Fred," disse Caleb, "um trabalhinho de escritório. Eu mes-

mo sempre fiz grande parte da escrita, mas não posso prescindir de aju-

da e, como quero que você compreenda os cálculos e se familiarize com

os valores, não pretendo ter outro escriturário. Pode portanto se prepa-

rar. Como estão sua escrita e aritmética?"

Fred sentiu no coração uma pontada esquisita; em trabalho de escri-

tório ele nem havia pensado; mas, de ânimo resoluto como estava, não

ia tirar o corpo fora. "Não temo a aritmética, Mr. Garth, para a qual

sempre tive facilidade. E minha escrita, acho que o senhor conhece."

"Bem, vejamos," disse Caleb, pegando uma pena, examinando-a com

atenção e passando-a para Fred, bem molhada na tinta, com uma folha

de papel pautado. "Copie-me uma ou duas linhas desta avaliação, com

os números no fim."

Prevalecia nessa época a opinião de que era indigno de um cavalhei-

ro escrever legivelmente, ou com uma letra que pudesse lembrar a de

um escriturário. Fred escreveu as linhas pedidas numa letra tão cavalhei-

resca quanto a de qualquer visconde ou bispo do dia: as vogais eram

todas iguais e as consoantes só se distinguiam por virar para cima ou

para baixo, as penadas tinham uma solidez de borrão e as letras desde-

nhavam seguir a linha - em suma, era um manuscrito daquela venerá-

vel espécie fácil de interpretar quando você já sabe de antemão o que

pretende dizer quem escreveu.

Caleb o olhava, demonstrando seu rosto uma depressão crescente, e

quando Fred lhe entregou o papel ele emitiu uma espécie de rosnado,

batendo com as costas de sua mão exaltadamente na folha. Toda a bran-

dura de Caleb se dissipava com um trabalho assim tão mal feito.


"Que diacho!" exclamou ele ainda a rosnar. "E pensar que este é um

país onde a educação de um homem pode custar centenas de libras, e o

transforma nisto!" Depois, num tom mais patético, tirando os óculos e

olhando o infortunado escriba: "Que Deus tenha piedade de nós, Fred,

não consigo entender nada!"

"Que posso fazer, Mr. Garth?" disse Fred, cujo moral baixara mui-

to, não só pela avaliação de sua caligrafia, mas também pela visão de si

599

mesmo como passível de ser classificado com os empregados de escri-

tório.

"Fazer? Ora essa, deve aprender a grafar suas letras e seguir a linha.

De que há de valer a escrita, se ninguém puder entendê-la?" perguntou

Caleb, com energia, realmente preocupado com a má qualidade do tra-

balho. "Há assim tão poucos negócios no mundo para que você ainda

tenha de mandar quebra-cabeças pelo país afora? Mas é deste modo que

as pessoas são educadas. Eu nem chegaria a perder tempo com algumas

cartas que me mandam, se a Susan não as decifrasse para mim.  um

horror." E Caleb " aqui, arredou de si o papel.

Qualquer estranho que nesse instante desse uma olhada no escritó-

rio poderia não entender qual era o drama entre o profissional indigna-

do e o jovem de bela estampa e louro cuja pele clara ia mudando aqui e

ali de tom, enquanto, mortificando-se, ele mordia o lábio. Fred lutava

com muitos pensamentos. Mr. Garth havia sido tão bondoso e encorajador,

no começo de sua entrevista, que a gratidão e a esperança chegaram a

um patamar elevado, e a queda foi proporcional. Nunca ele pensara em

trabalho de escritório - de fato, como a maioria dos jovens cavalheiros,

queria uma ocupação totalmente livre de coisas desagradáveis. Não sei

dizer quais poderiam ter sido as consequencias, se ele não houvesse

prometido a si mesmo que iria a Lowick para estar com Mary e dizer-lhe
que fora contratado para trabalhar com seu pai. Não queria causar-se

uma decepção quanto a isto.

"Sinto muito" foram as únicas palavras que conseguiu articular. Mas

Mr. Garth já estava amolecendo.

"Temos de tirar disto o melhor partido possível, Fred," começou ele,

de retorno a seu tom tranqüilo de praxe. "Qualquer homem pode apren-

der a escrever. Eu aprendi sozinho. Dedique-se a isto com afinco e, se o

dia não for bastante, faça serões à noite. Vamos ter paciência, meu jo-

vem. Nossos livros por ora continuam com o Callum, enquanto você

aprende. Mas eu agora tenho de sair," disse Caleb, levantando-se. "Você

deve conversar com seu pai sobre o nosso acerto. Com voce, quando

estiver escrevendo bem, poupo o salário do Callum; e posso permitir-

me pagar-lhe oitenta libras pelo primeiro ano, e mais depois."

Quando Fred fez a seus pais a revelação necessária, o efeito corres-

pondente sobre os dois, uma surpresa, entranhou-se-lhe a fundo na

memória. Do escritório de Mr. Garth ele foi direto para o armazém, sen-

tíndo acertadamente que a maneira mais respeitosa de se conduzir com

seu pai era fazer a penosa comunicação com toda a gravidade e formali-

dade possíveis. Além disso, era mais certo a decisão ser entendida como

60O

GEORGE ELIOT

definitiva se a conversa ocorresse durante as horas mais graves de seu

pai, sempre as que ele passava em sua sala privativa no armazém.

Fred entrou diretamente no assunto, e declarou de modo conciso o

que havia feito e estava resolvido a fazer, expressando no final seu Ia-

mento por ser causa de uma decepção para o pai, e pondo a culpa em

suas próprias deficiências. O lamento, sendo genuíno, inspirou-lhe pala-

vras simples e fortes.


Mr. Vincy ouviu profundamente surpreso, sem pronunciar sequer uma

exclamação, num silêncio que em seu temperamento impaciente era si-

nal de emoção incomum. Não estivera muito animado com os negócios,

nessa manhã, e o leve amargor que já trazia nos lábios tornou-se intenso

enquanto ouvia. Quando Fred terminou, houve uma pausa de quase um

minuto, durante o qual Mr. Vincy substituiu um livro em sua mesa e

virou a chave com força. Depois olhou com firmeza para o seu filho, e

disse:

"Então o senhor finalmente se decidiu, não é?"

"Sim, meu pai."

"Muito bem; pois siga o seu rumo. Nada mais tenho a dizer. O se-

nhor jogou fora sua educação e desceu um degrau na vida, quando eu

lhe propiciara os meios de subir, e isto é tudo."

"Lamento muito, mas pensamos de modo diferente, meu pai. Penso

que posso ser um cavalheiro, tanto na profissão que escolhi quanto se

eu me tivesse tornado um ministro da Igreja. Mas fico-lhe muito grato

por ter querido fazer o melhor por mim."

"Muito bem; nada mais tenho a dizer. A seu respeito, lavo minhas

mãos. Só espero que, quando você também tiver um filho, ele lhe dê

uma melhor recompensa pelos sofrimentos que suportou por ele.

Isto, para Fred, foi muito ofensivo. Seu pai usava essa vantagem

desleal que possuímos nós todos quando estamos numa situação patéti-

ca e vemos nosso próprio passado como se ele simplesmente fosse parte

do pathos. Na realidade, nos desejos de Mr. Vincy sobre seu filho havia

grandes doses de orgulho, irreflexão e doidice egoísta. O pai desaponta-

do, ainda assim, tinha em mãos uma alavanca forte; e Fred se sentiu

como se estivesse sendo banido com uma maledição.

"Espero que o senhor não faça objeções a que eu continue em casa?"

disse ele, depois de se levantar para sair; "vou ter um salário suficiente

para pagar minha pensão, como naturalmente é de meu desejo fazer."

"Tensão? - para o inferno com ela!" disse Mr. Vincy, recuperando-


se em seu desgosto ante a idéia de que a ajuda de Fred faria falta em sua

mesa. "Claro que sua mãe vai querer que você fique. Mas cavalo para

MIDDLEMARCH

601

você não mantenho mais, entende?, e suas contas de alfaiate é você

quem há de pagar. Suponho que se ajeite com um ou dois temos a me-

nos, quando tiver de pagar por eles."

Fred atardava-se; ainda tinha alguma coisa a dizer, que por fim lhe

veio.

"Espero que o senhor me aperte a mão, meu pai, e me perdoe pelo

aborrecimento que lhe causei."

Mr. Vincy, de sua cadeira, deu uma rápida olhada em direção a seu

filho, que avançara para perto dele, e então estendeu a mão, dizendo

afobadamente: "Sim, sim, não se fala mais nisto."

Fred passou por maior número de narrações e explicações com sua

mãe, que entretanto ficou inconsolável, tendo ante os olhos o que ao

marido talvez nunca ocorrera, a certeza de que Fred se casaria com Mary

Garth, de que sua vida seria doravante estragada por uma perpétua mis-

tura com os Garths e respectivas maneiras, e de que o filho tão querido,

com seu rosto bonito e o ar garboso, "incomparável ao do filho de quem

quer que fosse em Middemarch," certamente ficaria igual àquela família

na singeleza da aparência e na falta de cuidado com suas roupas. Para

ela, parecia estar havendo uma conspiração dos Garths para apossar-se

do desejável Fred, ponto de vista que porém não se atreveu a explorar,

porque bastou aludir a isto para que ele "voasse" sobre ela como nunca

antes. Era de gênio muito doce para mostrar-se zangada; mas sentia que

sua felicidade recebera um golpe, e durante vários dias simplesmente

olhar para Fred já a fazia chorar um pouco, como se ele fosse objeto de
alguma profecia funesta. Talvez ela tenha sido mais lenta para recuperar

sua alegria costumeira porque Fred lhe pediu para não reabrir a desagra-

dável questão com o pai, que havia aceito sua decisão e o perdoara. Se

seu marido houvesse usado de veemência com Fred, ter-se-ia ela saído

em defesa de seu filho querido. já no fim do quarto dia, Mr. Vincy lhe

disse:

"Varrios, minha querida Lucy, não fique assim tão abatida. Como

você sempre estragou o menino, deve continuar ainda a estragá-lo."

"Nunca nada me fez sofrer tanto, Vincy," disse a esposa, com seu

pescoço e o queixo claros começando a tremer, "a não ser a doença dele."

"Bah, nada disto interessa!  normal que a gente espere ter proble-

mas com os filhos. Mas não torne a coisa pior, fazendo-me vê-la em tal

desânimo."

"Bem, vou reagir," disse Mrs. Vincy, despertada pelo apelo e arru-

mando-se de uma sacudida, como um pássaro que ajeita sua arrepiada

plumagem.

602

GEORGE ELIOT

"Não adianta começar a fazer confusão por causa de um," disse Mr.

Víncy, desejoso de associar um pouco seus resmungos à alegria domésti-

ca. "Nós não temos só o Fred, mas também a Rosamondf

"Pois é, coitada. Sei o que eu sofri com a decepção dela com o bebê;

ela porém enfrentou tudo muito bem."

"Bah, bebê! já vi que o Lydgate anda a fazer de sua prática uma

grande bagunça e, pelo que ouço, a endividar-se também. Um desses

dias a Rosamond há de vir por aí com uma bela história para me contar.
Mas eles não me arrancarão dinheiro, garanto. A família deleque o aju-

de. Eu nunca gostei deste casamento. Mas é bobagem falar. Toque a

sineta para pedir limão, Lucy, e não fique mais tão triste. Amanhã, levo

você e a Louisa de carruagem a Riverston."

CAPÖTULo LVII

They numbered scarce eight summers when a name

Rose on their souls and stirred such motions there

As thrill the buds and shape their hidden frame

At penetration of the quickening air:

His name who told of loyal Evan Dhu,

Of quaint Bradwardine, and Vich lan Vor,

Making the little world their childhood knew

Large with a land of mountain, lake, and scaur,

And larger yet with wonder, love, belief

Toward Walter Scott, who livíng far away

Sent them this wealth of joy and noble grief.

The book and they must part, but day by day,

In lines that thwart like portly spiders ran,

They wrote the tale, from Tully Véolan.

("Eles contavam nem bem oito verões quando um nome

Ergueu-se em suas almas e lá fez tais moçoes

Como as que fremem nos botões e moldam sua oculta forma

Ante a penetração do ar vivificante:

Um nome que falava de um leal Evan Dhu,

De singular Bradwardine e de Vich Ian Vor,

Tornando seu mundinho conhecido da infância

Grande com a terra de montanhas, lagos, abismos,

E ainda maior com todo o assombro, o amor, a crença


Em Walter Scott, que morando tão longe

Mandava-lhes aquela riqueza de nobre dor e alegria.

O livro e eles apartaram-se, mas dia a dia,

Em linhas obstinadas como as da aranha ao tecer,

Puderam escrever uma história, a de Tully Veolan.")"

,%ferŠncia a Waverley (1814), um dos "romances escoceses" de Walter Scott

(1771-1832),

4ue GE lia na infância.

604

GEORGE ELIOT

NA TARDE EM QUE FRED VINCY caminhou até o Presbitério de Lowick

(havia começado a ver que este era um mundo no qual até mesmo um

jovem cheio de brio, por falta de um cavalo que o carregue, às vezes tem

de andar a pé), ele saiu às cinco horas e passou antes em casa de Mrs

Garth, querendo certificar-se de que ela aceitava de bom grado suas no

vas relações.

Encontrou o grupo familiar, incluídos os cachorros e gatos, embaixo

de uma grande macieira no pomar. Era um dia de festa para Mrs. Garth,

pois seu filho mais velho, Christy, seu maior orgulho e alegria, tinha vindo

em casa para uma breve folga - Christy, para quem a coisa mais desejável

do mundo era ser professor, estudar todas as literaturas e tomar-se um

novo Porson,1 e que se tornara a própria encamação das críticas ao pobre

Fred, uma espécie de lição com modelo vivo que a mãe educativa lhe

dava. O próprio Christy, uma edição masculina de sua mãe, de testa qua-

drada e espáduas largas, mas que mal chegava aos ombros de Fred -

razão a mais para se estranhar que o julgassem superior - era sempre tão

simples quanto possível, indiferente ao desinteresse de Fred pelo estudo


como ao de uma girafa e desejando, isto sim, ser um pouco mais da mes-

ma altura. Nesse momento, ele estava por terra, perto da cadeira da mãe,

com seu chapéu de palha puxado bem sobre os olhos, enquanto Jim, do

outro lado, lia em voz alta trechos daquele amado autor que constituiu

parte tão importante da vida feliz de muitos jovens. O volume era

Ivanhoe% e Jim estava na grande cena do torneio de arqueiros, mas so-

fria muita interrupção de Ben, que havia pegado seu velho arco e suas

flechas e se fazia extremamente desagradável, no entender de Letty, pe-

dindo a todos os presentes que observassem suas flechadas a esmo, coisa

que a ninguém apetecia senão a Brownie, o vira-lata de espírito ativo mas

provavelmente limitado, enquanto o terra-nova cinzento, deitado ao sol,

olhava com a baça neutralidade da velhice extrema. Letty, mostrando pela

boca e o avental alguns ligeiros sinais de que participara da colheita das

cerejas agora sobre a mesa de chá, num montículo. coral, sentava-se por

sua vez na grama, ouvindo de olhos arregalados a leitura.

Mas o centro de interesse mudou para todos com a chegada de Fred

Vincy. Quando, sentando-se este num banco de jardim, ele disse que

estava a caminho do Presbitério de Lowick, Ben, que já havia despreza-

do seu arco e agarrava agora um relutante gatinho, foi-se esgueirando

por entre as pernas de Fred e disse: "Me leva junto!"

IRichard Porson (1759-1808), filólogo inglês, pioneiro dos métodos de edição

crítica e espe-

cialista em autores da Grécia antiga.

MIMUMARCH

"Não, meu querido filho, não convém irmos em bando ao presbité-

rio. E este seu terno velho de Glasgow não está nada adequado. Além

disto, seu pai já vem para casa. Devemos deixar o Fred ir sozinho. Ele

dirá a Mary que você está aqui, e amanhã ela vem."


O olhar de Christy saltou de seus joelhos puídos para a bela calça

branca de Fred. Certamente todo seu trajar sugeria os benefícios de uma

universidade inglesa, e até ao sentir calor, e ajeitar o cabelo para trás

com seu lenço, Fred tinha modos graciosos.

"Crianças, afastem-se!" disse Mrs. Garth; "está muito quente para ficar

se pendurando nos amigos. Levem seu irmão para ele ver os coelhos."

O mais velho compreendeu, e imediatamente carregou as crianças.

Fred sentiu que Mrs. Garth quis dar-lhe uma oportunidade de dizer o

que ele tinha a dizer, mas só conseguiu começar observando:

"A senhora deve estar muito contente, com o Christy em casa."

"Ah, sim! ele veio mais cedo do que eu esperava. Desceu da diligên -

cia às nove horas, pouco depois do pai dele ter saído. Estou doida para

o Caleb chegar e ouvir que grandes progressos o Christy anda fazendo.

No ano passado ele pagou suas despesas dando aulas e, ao mesmo tem-

po, estudando à beça. Espera obter uma colocação como preceptor, em

breve, e viajar para fora."

"Ele é um grande sujeito," disse Fred, para quem estas alegres ver-

dades tinham um sabor medicinal, "e nunca um problema para os ou-

tros." Após breve pausa, acrescentou: "Mas temo que a senhora pense

que eu vou ser um grande problema para Mr. Garth."

"O Caleb gosta de problemas: ele é um desses homens que sempre

fazem mais do que alguém jamais pensaria em lhes pedir que fizessem,"

respondeu Mrs. Garth. Ela estava tricotando e, à sua escolha, podia olhar

ou não para Fred - sempre uma vantagem quando a intenção de quem

605

"Oh, me leva também!" disse Letty.

"Você não consegue acompanhar o passo do Fred, nem o meu," dis-

se Ben.

"Consigo sim. Mãe, por favor, diz que eu posso ir," pediu Letty, cuja
vida era muito tabulada pela resistência à sua depreciação enquanto

menina.

" Eu vou ficar corri o Christy," observou Jim; mais ou menos como se

dissesse que ficava em vantagem sobre aqueles patetas; e nisto Letty

pôs as mãos na cabeça, olhando de um para o outro numa indecisão

ciumenta.

"Vamos todos nós ver a Mary," propôs Christy, abrindo os braços.

falaé sobrecarregar o discurso com uma significação salutar; e Mrs. Garth,

606

GEORGE EuOT

embora pretendesse ser bem reservada, queria dizer algumas coisas que

eram talvez apropriadas a Fred.

"Sei que me considera muito indigno, Mrs. Garth, e com boa razão,"

disse Fred, tomando um pouco de coragem ao perceber no ar a tendên-

cia a lhe fazer um sermão. "Conduzi-me da pior maneira possível com as

pessoas de quem, a despeito de minha própria vontade, eu m *ais espero.

Mas, enquanto homens como Mr. Garth e Mr. Farebrother não desisti-

rem de mim, não vejo por que deva eu fazê-lo." Fred pensou que cairia

bem sugerir estes exemplos masculinos a Mrs. Garth.

"Certamente," disse ela, com exagerada ênfase. "Um jovem por quem

os pais que ele tem se dedicaram tanto seria com efeito culpável, se se

largasse por aí e tornasse seus sacrificios inúteis."

Fred assustou-se um pouco ante linguagem tão forte, mas disse ape-

nas: "Espero que não seja assim comigo, Mrs. Garth, já que fui encoraja-

do a crer que eu talvez possa conquistar a Mary. Mr. Garth lhe falou

sobre isto? E a senhora não ficou surpresa, pois não?" concluiu Fred,

reportando-se apenas a seu amor, com toda a inocência, como provavel-


mente muito óbvio.

"Não surpresa por Mary o ter encorajado?" replicou Mrs. Garth, que

pensou que seria bom para Fred aperceber-se mais do fato de que os

pais de Mary não poderiam absolutamente ter desejado isto de ante-

mão, fosse o que fosse o que supunham os Vincys. "Sim, confesso que

eufiquei surpresa."

"Nunca ela me deu esperança - por nada deste mundo, quando eu

mesmo conversei com ela," disse Fred, rápido na defesa de Mary. "Mas,

quando pedi a Mr. Farebrother que falasse por mim, ela o autorizou a

dizer-me que havia alguma."

A força de admoestação que passara a agitar-se em Mrs. Garth ainda

não se descarregara de todo. Era uma provocaçao meio excessiva, mes-

mo para o autocontrole dela, que este rapazola que mal desabrochava

viesse a florescer sobre as decepções de pessoas mais sensatas e

desgostosas - fazendo, sem o saber, muita confusão - e que o tempo

todo a família dele pensasse que a dela estava em ansiosa necessidade

do rebento; o descontentamento de Mrs. Garth fermentou ainda mais

por ter sido totalmente reprimido em relação ao marido. Mulheres exem-

plares encontram às vezes deste modo seus bodes expiatórios. Com enér-

gica decisão, ela agora disse: "Você cometeu um grande erro, Fred, pe-

dindo a Mr. Farebrother que falasse em seu nome."

"Foi?" disse Fred, avermelhando-se instantaneamente. Sobressalta-

ra-se, embora sem entender o que queria Mrs. Garth dizer, e, em tom de

MIDDLEMARCH

607

quem se desculpa, acrescentou: "Mr. Farebrother foi sempre muito ami-

go nosso; e a Mary, eu já sabia, iria ouvi-lo com atenção; e ele aceitou a

incumbência sem hesitar."


"E, os jovens geralmente são cegos para tudo que não seus próprios

desejos, e é raro imaginarem quanto estes desejos custam para os ou-

tros," disse Mrs. Garth. Sem pretender ir além desta doutrina geral e

salutar, ela lançou sua indignação a um supérfluo desembaraçar do seu

fio, para o qual enrugava com grandes ares a testa.

"Não posso conceber que sofrimento isto poderia causar a Mr.

Farebrother," disse Fred, sentindo não obstante que novas e surpreen-

dentes concepções já se formavam ali.

"Exatamente; você não pode conceber," disse Mrs. Garth, escandindo

suas palavras com a maior precisão possível.

Por um momento Fred olhou para o horizonte, num misto de aflição

e medo, e aí, virando-se num movimento brusco, disse com bastante

firmeza:

"A senhora quer dizer, Mrs. Garth, que Mr. Farebrother gosta da

Mary?"

"E se assim fosse, Fred, acho que você é a última pessoa que deveria

surpreender-se," replicou Mrs. Garth, pondo de lado seu tricô e cruzan-

do os braços. Era um sinal involuntário de emoção, nela, que tivesse de

tirar das mãos seu trabalho. Seus sentimentos estavam divididos, de

fato, entre a satisfação de impor uma disciplina a Fred e a impressão de

ela ter ido um pouco longe demais. Fred apanhou sua bengala e o cha-

péu e se levantou rapidamente.

"Então a senhora pensa que eu estou no caminho dele, e também no

da Mary?" disse ele, num tom que parecia pedir resposta.

Mrs. Garth não pôde falar de imediato. Pusera-se ela mesma na de-

sagradável posição de ter de dizer o que realmente sentia, entretanto

tinha fortes razões para encobrir o que sabia. E para ela a consciência de

ter-se excedido em palavras foi particularmente mortificante. Ademais,

uma inesperada eletricidade havia emanado de Fred, que ainda agora

acrescentou: "Mr. Garth parecia contente com a idéia de Mary se ligar a

mim. Não devia saber de nada distof


· menção a seu marido, Mrs. Garth sentiu uma pontada de dor, pois

o medo de que Caleb a pudesse supor em erro não era facilmente supor-

tável. Desejosa de sondar as conseqüências não intencionais, ela res-

pondeu:

"Falei só por inferência. Não estou ciente de que a Mary saiba algu-

ma coisa a respeito."

608

GEORGE ELIOT

Mas ela, não estando acostumada a se rebaixar assim deste modo,

hesitou em pedir que ele mantivesse o mais completo silêncio sobre um

assunto que ela mesma trouxera desnecessariamente à baila; e, enquan-

to ela hesitava, embaixo da macieira, onde estavam as coisas para o chá,

uma torrente de conseqüências não intencionais se precipitava. Ben,

pulando pelo gramado com o Brownie em seus calcanhares, e vendo o

gatinho que arrastava o tricô puxando um fio esticado, gritava e batia as

mãos; Brownie latiu, e o gato, desesperado, pulou na mesa de chá e

derramou o leite, depois pulou no chão outra vez e, com o. salto, espa-

lhou metade das cerejas; Ben, pegando a meia tricotada pela metade,

enflou-a na cabeça do gato como uma nova forma de tormento, enquan-

to Letty vinha gritando para sua mãe contra a crueldade - era uma

história tão sensacional, em suma, como "Esta é a casa construída por

Jack." Mrs. Garth foi obrigada a intervir, as outras crianças apareceram

também e o tête-à-tête com Fred chegou ao fim. Este se foi assim que

pôde, e Mrs. Garth não pôde insinuar que se retratava um pouco de sua

severidade senão dizendo "Deus o abençoe" quando apertou a mão dele.

Tinha a desagradável consciência de haver estado à beira de falar

(icomo qualquer doida"" - primeiro falando, depois rogando segredo.

Ela porém não chegara a tanto e, para evitar uma censura de Caleb,
decidiu-se a censurar-se ela mesma e confessar-lhe tudo nessa noite ain-

da. Curioso, que tribunal terrível, sempre que ele entrava em ação, vira-

va para ela o manso Caleb! Mas ela pretendia observar-lhe que a revela-

ção poderia fazer grande bem a Fred Vincy.

Seu efeito sobre ele, enquanto caminhava para Lowick, sem dúvida

já era forte. A natureza leve e esperançosa de Fred nunca se magoara

tanto como com aquela sugestão de que, não estivesse ele atrapalhando

o caminho, Mary poderia ter feito realmente um bom casamento. E ele

estava aborrecido também por ter agido, como disse, qual um grande

palerma ao pedir a intervenção de Mr. Farebrother. Mas não era da natu-

reza do amante - não da de Fred - que a nova ansiedade surgida sobre

os sentimentos de Mary não se sobrepusesse a qualquer outra. Não

obstante sua confiança na generosidade de Mr. Farebrother, não obstante

o que Mary havia dito dele, Fred não tinha como se impedir de sentir

que possuía um rival: era uma nova impressão, que lhe despertou obje-

ções extremas, pois ele não estava nem um pingo disposto a desistir de

Mary pelo bem dela, mas sim a lutar por ela, fosse com que homem

fosse. Mas uma luta com Mr. Farebrother teria de ser de tipo metafórico,

IA citação é do Livro de jó, 2: 10.

MIDDLEMARCH

609

muito mais difícil para Fred do que a muscular. Para Fred esta experiên-

cia era decerto uma mortificação quase tão grande quanto sua decepção

com o testamento do tio. O ferro não lhe entrara ainda na alma, mas ele

já começara a imaginar quão afiado seria o gume. Não lhe ocorreu uma

só vez que Mrs. Garth poderia estar enganada sobre Mr. Farebrother, se

bem a suspeitasse de engano em relação a MW Ultimamente ela per-


manecia mais no presbitério, e sua mãe talvez soubesse muito pouco do

que tinha em mente.

Fred não se sentiu mais tranqüilo quando a encontrou, alegre na

aparência, com as três senhoras na sala de visitas. Estas se envolviam

numa discussão animada, sobre um assunto interrompido quando ele

entrou, e Mary estava copiando, com uma letra minúscula na qual era

exímia, as etiquetas de uma série de gavetinhas. Mr. Farebrother estava

nalgum lugar da vila, e as três senhoras nada sabiam da relação particu-

lar de Fred com Mary: era impossível uma delas propor que fossem to-

das dar uma volta no jardim, e Fred previu que acabaria tendo de ir-se

embora sem lhe dizer uma palavra a sós. Falou-lhe primeiro da chegada

de Christy e depois de sua contratação pelo pai dela; e consolou-se ao

ver que esta última noticia a comovia muito. "Folgo em sabê-lo," disse

ela precipitadamente, debruçando-se em sua escrita para impedir que

alguém lhe notase a face. Mas aqui estava um assunto que Mrs.

Farebrother não podia deixar passar em branco.

"Não quer dizer, minha querida Miss Garth, que folga em saber que

há um jovem desistindo da Igreja para a qual foi educado: quer dizer

apenas, já que as coisas são assim, que folga em sabê-lo sob a direção de

um excelente homem como o seu pai, não é?"

"Não, realmente, Mrs. Farebrother, folgo em saber das duas coisas,

temo," disse Mary, sagazmente se livrando de uma rebelde lágrima. "Te-

nho a mente terrivelmente profana. Nunca gostei de nenhum clérigo,

exceto o Vigário de Wakefleld e Mr. Farebrother,"

"Mas por quê, querida?" disse Mrs. Farebrother, parando de mover

suas grandes agulhas de tricô de madeira e olhando para Mary. "Você

sempre tem uma boa razão para suas opiniões, mas isto me espanta.

Claro que os que pregam nova doutrina eu ponho fora de questão. Mas

por que haveria você de não gostar de clérigos?"

"Oh, meu Deus!" disse Mary, estampando-se a alegria em seu rosto

enquanto ela parecia refletir um instante, "não gosto dos lenços que eles
põem no pescoço."

"Bem, então não gosta dos de Camden?" disse Miss Winifred, não

sem certa ansiedade.

610

GEORGE ELiOT

"Dos dele, sim," disse Mary. "Não gosto dos lenços de pescoço dos

outros clérigos, porque são eles que os usam."

"Que coisa mais intrigante!" disse Miss Noble, sentindo que seu

próprio intelecto provavelmente não chegava à altura.

"Querida, você está brincando. Há de ter razões melhores para me-

nosprezar esta classe de homens tão respeitáveis," disse Mrs. Farebrother,

majestosamente.

"Miss Garth tem idéias tão severas do que as pessoas deveriam ser

que é dificil satisfazê-la," disse Fred.

"Bem, pelo menos fico feliz de que ela faça uma exceção ao meu

filhof disse a velha senhora.

Mary ainda se indagava sobre o porquê do tom aborrecido de Fred

quando Mr. Farebrother chegou e teve de ouvir a novidade sobre a

contratação por Mr. Garth. No fim ele disse, com uma calma satisfação:

"Isto é ótimo;" e depois se inclinou para olhar as etiquetas de Mary e

elogiar sua caligrafia. Fred sentiu um ciúme horrível - contente, natu-

ralmente, de Mr. Farebrother ser tão estimável, desejou todavia que ele

fosse feio e gordo como os homens de quarenta às vezes são. Estava

claro qual seria o fim, já que Mary abertamente punha Farebrother aci-

ma de todos, e aquelas mulheres evidentemente estavam estimulando o

namoro. já se certificava de que não encontraria uma chance para falar

com Mary, quando Mr. Farebrother disse:

"Fred, ajude-me a carregar estas gavetas para o meu gabinete -


você ainda não viu que beleza, meu gabinete novo. Miss Garth, por fa-

vor, venha também. Quero que veja a aranha estupenda que eu achei

hoje cedo."

Mary entendeu de imediato a intenção do Pastor. Desde a noite

memorável, ele nunca se desviara de sua velha bondade pastoral para

com ela, cuja surpresa e dúvida momentâneas já estavam de todo ador-

mecidas. Acostumada a pensar, não sem rigor, no que era provável, Mary,

se uma convicção adulava sua vaidade, sentia-se, impelida a rejeitá-la

como ridícula, tendo em tais rejeições precoce prática. Deu-se como ela

havia previsto: levado Fred a admirar a arrumação do gabinete, e ela, a

admirar a aranha, Mr. Farebrother disse:

"Olhem, vou buscar uma gravura para o Fred, que é bem alto, pen-

durar para mim. Esperem-me aqui, em poucos minutos estarei de vol-

ta." E saiu em seguida. A primeira coisa que Fred disse a Mary, no en-

tanto, foi:

"Seja o que for que eu fizer, Mary, não adianta nada. No fim você

certamente se casará com o Farebrother." Havia certo rancor em seu tom.

MIDDLEMARCH

611

"Que história é esta, Fred?" exclamou Mary indignada, corando muito

e tão surpreendida que lhe faltou presteza para retrucar.

" impossível você não estar vendo isto com bastante clareza -

você que vê tudo."

"Só vejo é que você se comporta muito mal, Fred, falando assim de

Mr. Farebrother depois de ele ter intercedido tanto por sua causa. Como

pôde ter tido tal idéia?"

Fred, a despeito de sua irritação, não era tolo. Se Mary realmente

não suspeitava de nada, era inútil dizer-lhe o que Mrs. Garth tinha dito.
"Veio-me assim sem mais nem menos," respondeu ele. "Com você

vendo continuamente um homem que é melhor do que eu em tudo, e a

quem coloca acima de todos, não posso ter grandes chancesf

"Você, Fred, é muito ingrato," disse Mary. "Gostaria de nunca ter

dito a Mr. Farebrother que eu sentia alguma inclinação por você."

"Não, não sou ingrato; eu seria o sujeito mais feliz do mundo, se

não fosse por isto. Disse tudo ao seu pai, e ele foi muito bom; tratou-me

como se eu fosse um filho. Eu poderia atirar-me com vontade ao traba-

lho, escrevendo e tudo, se não fosse por isto."

"Por isto? isto o quê?" disse Mary, imaginando agora que alguma

coisa específica houvesse sido dita ou feita.

"Esta certeza pavorosa de que eu serei derrotado por Farebrother."

Mary, inclinada ao riso, tranqüilizou-se.

"Fred," disse ela, esforçando-se para encontrar os olhos dele, que se

desviavam trombudamente dos seus, "você é por demais, deliciosamen-

te ridículo. Se não fosse um simplório tão encantador assim, seria uma

tentação para mim bancar a coquette pérfida e deixá-lo supondo que al-

gum outro, além de você, me fazia a corte."

"Você realmente gosta mais de mim, Mary?" disse Fred, virando para

ela os olhos cheios de afeição, e tentando pegar-lhe a mão.

"Não gosto nada de você neste momento," disse Mary, recuando e

escondendo as mãos nas costas. "Só disse que nenhum mortal, além de

você, jamais me fez a corte. E que não existe a hipótese de que um ho-

mem muito sensato venha algum dia a fazê-la," concluiu ela alegremente.

"Queria muito que você me dissesse que nunca poderia pensar nele,"

disse Fred.

"Não se atreva nunca mais a tocar nisto comigo, Fred," disse Mary,

ficando séria de novo. "Não sei se é mais estupidez ou falta de generosi-

dade de sua parte não ver que Mr. Farebrother nos deixou a sós de pro-

pósito para que pudéssemos falar livremente.  uma decepção para mim,

vê-lo tão cego à delicadeza de sentimentos dele."


612

GEORGE ELIOT

Não houve tempo de dizer mais nada, antes de Mr. Farebrother vol-

tar com sua gravura; e Fred teve de retornar à sala de visitas com um

temor ciumento em seu coração, se bem que com consoladores argu-

mentos partidos das palavras e conduta de Mary. O resultado da conver-

sa, no todo, foi ainda mais doloroso para Mary: sua atenção inevitavel-

mente foi despertada em novo sentido, e ela viu a possibilidade de no-

vas interpretações. Achava-se numa situação em que parecia estar des-

prezando Mr. Farebrother, e isto, em relação a um homem muito honra-

do, é sempre perigoso para a firmeza de uma mulher agradecida. Ter

uma razão para ir no dia seguinte à sua casa era um alívio, pois o desejo

mais sincero de Mary era estar sempre claro que ela gostava mais de

Fred. Quando meiga afeição vai-se armazenando em nós por muitos de

nossos anos, a idéia de que pudéssemos trocá-la por qualquer outra

coisa parece um barateamento de nossas vidas. E podemos manter guar-

da sobre nossas afeições e constância, tal como o podemos à roda de

outros tesouros.

"O Fred perdeu todas as expectativas; é bom que conserve ao menos

estaf disse Mary a si mesma, com um esboço de sorriso nos lábios. Era

impossível evitar fugazes visões de uma outra espécie - novas dignida-

des e um reconhecimento de valor cuja ausência não raro ela sentira.

Mas tais coisas, com Fred de fora, Fred abandonado e parecendo triste

por falta dela, nunca poderiam tentar seu deliberado pensamento.

CAPITULo LVIII

"For there can live no hatred in thine eye,


Therefore in that 1 cannot know thy change:

In many"s looks the fálse heart"s history

Is writ in. moods and frowns and wrinkles strange;

But Heaven in thy Creation did decree

That in thy face sweet love should ever dwell;

Whate"er thy thoughts or thy heart"s workings be,

Thy looks should nothing thence but sweetness tell.

- SHAKESPEARE: Sonnets.

("Se não pode em teus olhos viver ódio,

Não posso então saber quando tu mudas:

A história do falso coração, em muitos,

Escreve-se em estranhos modos e rugas;

O Céu na tua Criação decretou

Que teu rosto do amor fosse clausura;

O que pensas ou teu coração desejou

Não importa. Teu ar só fala de doçura.")

- SHAKESPEARE: Sonetos."

NA POCA EM QUE MR. VINCY expressou seu pressentimento sobre

Rosamond, ela mesma ainda nem suspeitava de que seria compelida a

fazer um pedido como aquele que ele então antevia. Ainda não conhece-

ra ansiedade sobre as despesas e os recursos da casa, embora sua vida

doméstica fosse cara e cheia de acontecimentos. Seu bebê havia nascido

prematuramente, e todas as toucas e roupinhas bordadas tiveram de

Soneto 93.

614
GEORGE ELIOT

ficar no abandono. A desgraça foi atribuída inteiramente à teimosia dela

em sair a cavalo, num dia em que seu marido se opusera a isto; mas não

se deve supor que ela tenha tido na ocasião uma explosão de cólera, ou

dito a ele rudemente que faria como bem entendesse.

O que particularmente a levara a desejar uma saída a cavalo foi uma

visita do Capitão Lydgate, terceiro filho do baronete, a quen. lamento

ter de dizer, nosso Tertius de igual nome detestou como um janota insí-

pido "que repartia o cabelo da testa à nuca numa moda abjeta" (não

seguida por Tertius) e demonstrava a ignorante segurança de sempre ter

algo importante a dizer sobre qualquer assunto, Lydgate maldisse por

dentro a própria irisânia, pois fora ele quem atraíra esta visita ao consen-

tir com a ida à casa de seu tio na viagem de núpeias, e tornou-se particu-

larmente desagradável com Rosamond, dizendo-lhe isto em particular.

Pois para Rosamond a visita era uma fonte de exultação sem preceden-

tes, se bem que graciosamente dissimulada. Era tão intensa sua consci-

ência de ter um primo que era filho de um baronete hospedado em casa,

que ela imaginava difundido através de todas as mentes o conhecimento

do que estava implícito pela presença dele; e, quando apresentava aos

convidados o Capitão Lydgate, tinha a plácida impressão de que o seu

posto, como um odor, impregnava a todos. A satisfação era suficiente

para o tempo dissipar certa decepção ante as condições de seu casamen-

to com um médico, ainda que de boa estirpe: parecia agora que o casa-

mento a fazia visível e idealmente pairar acima do nível de Middemarch,

e o futuro se mostrava brilhante, com cartas e visitas a e de Quallingham,

e vagas esperanças de avanço para Tertíus. Sobretudo porque, provavel-

mente por sugestão do Capitão, sua irmã casada, Mrs. Mengan, tinha

vindo com sua acompanhante, ao retornar da capital, e lá passara duas

noites. Valia pois claramente a pena, para Rosamond, empenhar-se ao


máximo na sua música e na cuidadosa seleção de suas rendas.

Quanto ao próprio Capitão Lydgate, sua testa estreita, seu nariz

aquilino, curvado para um lado, e seu modo de se expressar algo empo-

lado poderiam ser desvantajosos em qualquer jovem cavalheiro que não

tivesse um porte militar e o bigode para lhe dar o que certas cabecinhas

louras e em flor adoram como "estilo." Tinha ele, ademais, essa espécie

de boa educação que consiste em ser livre das pequenas solicitudes do

bom-tom da classe-média, e dos encantos femininos era um grande crí-

tico. Rosamond deleitou-se com sua admiração, ainda mais do que em

Quallingliam, e ele viu como era fácil ficar flertando com ela várias horas

por dia. A visita acabara por ser uma das diversões mais gostosas que ele

já havia tido, e mais talvez devido à sua suspeita de que o esquisito

MIDDLEMARCH

615

primo Tertius queria vê-lo à distância: se bem que Lydgate, que preferi-

ria morrer (hiperbolicamente falando) a faltar com a hospitalidade poli-

da, houvesse contido sua antipatia, fingindo apenas em geral não ouvir

o que o galante oficial dizia, e atribuindo a Rosamond a tarefa de

respondê-lo. Pois, não sendo nem um pouco um marido ciumento, ele

preferia deixar um jovem cavaleiro de cabeça de vento a sós com a espo -

sã do que lhe fazer companhia.

"Que bom seria se você conversasse mais com o Capitão no jantar,

Tertius," disse Rosamond, uma noite em que o importante hóspede ha-

via ido a Loainford para estar com oficiais, seus irmãos de armas, lá

estacionados. "Você às vezes parece tão ausente - parece que olha atra-

vés da cabeça dele para alguma coisa por trás, ao invés de olhar para

ele."

"Rosy, meu bem, suponho que você não espere que eu tenha muito
a conversar com um burro tão presunçoso como este," disse Lydgate,

com brusquidão. "Se ele quebrar a cabeça, posso até me interessar em

dar uma olhada, mas antes, não."

"-me inconcebível como você pode falar de seu primo com tama-

nho desprezof disse Rosamond, movendo-se-lhe os dedos em seu tra-

balho, enquanto ela falava, com uma gravidade suave que continha um

toque de desdém.

.Pergunte ao Ladislaw se ele não acha o seu Capitão o homem mais

enjoado que já conheceu. Ladislaw praticamente sumiu de casa, desde

que ele chegou."

Rosamond pensou que sabia perfeitamente bem por que Mr. Ladislaw

não pstava do Capitão: ele estava com ciúme, o que a ela dava prazer.

"E impossível dizer o que é capaz de agradar às pessoas excêntri-

cae," respondeu, "mas na minha opinião o Capitão Lydgate é um perfei-

to cavalheiro, e acho que você não devia, em respeito a Sir Godwin,

tratá-lo com descaso."

"Não, querida; mas nós já demos jantares para ele. E ele entra e sai

como bem quer nesta casa. Não precisa de mim."

,Ainda assim, quando ele está na sala, você podia dar-lhe mais aten-

ção. Talvez ele não seja uma fénix da inteligência, a seu modo de ver; é

de uma outra profissão; mas seria melhor, para você, conversar um pou-

co sobre os assuntos dele. julgo-lhe a conversa totalmente agradável. E

ele pode ser tudo, menos um homem sem princípios."

"O fato é que você gostaria que eu fosse um pouco mais como ele,

Rosy," disse Lydgate, numa espécie de murmúrio resignado, com um

sorriso que não era exatamente terno e certamente não era alegre.

616

GEORGE ELIOT
Rosamond ficou quieta e não retribuiu o sorriso; mas as curvas delicio-

sas de seu rosto, mesmo sem sorrir, pareciam bem humoradas,

Estas palavras de Lydgate foram como um triste marco a assinalar o

quanto ele se havia afastado de sua velha terra de sonhos, na qual

Rosamond Vincy parecia um belo espécime da mulher perfeita que reve-

renciaria a mente do marido à moda de uma sereia completa, só usando

seu pente e seu espelho e só cantando suas canções para o relaxamento da

adorada sapiência dele. Desta imaginada adoração ele já começara a dis-

tinguir a atração pelo talento de um homem porque ele lhe dá prestígio e

é como uma condecoração na lapela ou, antes do nome, um Honorável.

Poder-se-ia supor que também Rosamond se havia afastado, desde

que julgara perfeitamente cansativa a conversa sem graça de Mr. Ned

Plymdale; mas para a maioria dos mortais há uma estupidez que é insu-

portável e outra que até se aceita bem - porque senão o que seria, de

fato, dos vínculos sociais? A estupidez do Capitão Lydgate era levemen-

te perfumada, conduzia-se com "estilo," falava com uma boa pronúncia

e tinha parentesco direto com Sir Godwin. Rosamond julgou-a muito

agradável e pegou muitas de suas frases.

Por conseguinte, e já que Rosamond, como sabemos, adorava mon-

tar, houve várias razões para ela se sentir tentada a retomar suas caval-

gadas quando o Capitão Lydgate, que ordenara ao lacaio para segui-lo

com dois cavalos e instalar-se no Green Dragon, convidou-a para ir no

cinzento, que ele garantiu ser manso e treinado para transportar uma

dama, - comprara-o de fato para sua irmã, e o estava levando para

Quallingham. Rosamond saiu, da primeira vez, sem comunicar ao mari-

do, e voltou antes dele para casa; mas a cavalgada havia sido um tal

sucesso, e ela se reconheceu tão melhor em conseqüência, que acabou

por informá-lo a respeito, com plena confiança em seu consentimento

para ela sair outra vez.

Mas Lydgate, pelo contrário, ficou mais que ofendido - ficou abso-

lutamente perplexo por ela ter-se arriscado, sem submeter o assunto à


sua vontade, com um cavalo estranho. Após as primeiras e quase

trovejantes exclamações de espanto, que deram para advertir Rosamond

do que estava por vir, ele se calou por alguns momentos.

"Contudo, você voltou sã e salva," disse por fim, num tom decisivo.

"Mas não me faça isto de novo, Rosy, ouviu bem? Mesmo se fosse o

cavalo mais manso e mais conhecido do mundo, sempre haveria um ris-

co de acidente. Foi por isto, e você sabe muito bem, que eu quis que

parasse de montar no ruão."

"Mas dentro de casa também há risco de acidente, Tertius."

MIDDLEMARCH

617

"Não diga bobagens, meu bem," disse Lydgate, num tom suplican-

te; "certamente é a mim que cabe julgar por você. Digo que não deve ir

de novo, e penso que basta."

Rosamond estava ajeitando seu cabelo para o jantar, e a imagem de

sua cabeça no espelho não demonstrou mudança alguma de encanto,

além de uma ligeira virada de seu esguio pescoço. Lydgate, de mãos no

bolso, movendo-se até então por perto, parou agora junto dela, como se

esperasse uma garantia.

"Você poderia prender as minhas tranças, querido?" disse Rosamond,

deixando que seus braços caíssem com um ligeiro suspiro, de modo a

fazer um marido envergonhar-se de ficar plantado ali como um bruto.

Lydgate muitas vezes já prendera estas tranças, estando entre os mais

habilidosos dos homens, com seus dedos grandes e bem formados. Er-

gueu as macias voltas das tranças e prendeu-as no pente alto (para tais

coisas servem os homens!); e que podia então fazer, senão beijar a nuca

preciosa que se mostrava em todas as suas delicadas curvas? Mas é não

raro com uma diferença que nós fazemos o que já fizemos antes. Lydgate
ainda estava zangado e não esquecera o assunto.

"Direi ao Capitão que ele devia ter pensado melhor antes de lhe

oferecer seu cavalof disse enquanto se afastava.

ão, Tertius, por favor, não faça nada disto," disse Rosamond, olhan-

do para ele, e com algo de mais marcado que de costume na fala. "Seria

tratar-me como se eu fosse criança. Prometa-me que deixará este assun-

to por minha conta."

Parecia haver verdade na objeção dela. Lydgate disse: "Muito bem,"

com ríspida obediência, e assim a discussão terminou com ele prome-

tendo algo a Rosamond, e não ao contrário como havia querido.

Ela estivera decidida de fato a não prometer. Rosamond tinha essa

obstinação vitoriosa que nunca exaure sua energia no ímpeto da resis-

tência. O que gostava de fazer, para ela era o que estava certo, e toda sua

inteligência era dírigida para obter os meios de o fazer. Pretendia sair de

novo no cavalo cinza, e na primeira oportunidade, por ausência de seu

marido, saiu mesmo, não querendo que ele o soubesse senão depois de

já ser tarde para poder proibir. Certamente a tentação era grande: ela

adorava o exercício, e a gratificação de montar um bom cavalo, com o

Capitão Lydgate, filho de Sir Godwin, em outro bom cavalo a seu lado,

e de ser encontrada nesta situação por tantos, a não ser seu marido, era

uma coisa tão boa como seus sonhos de antes do casamento: além do

mais, ela estava estreitando as relações com a família em Quallingham,

o que devia ser coisa sensata a fazer.

618

GEORGE ELIOT

Mas o cavalo cinzento, manso, porém não preparado para uma ár-

vore que estava sendo derrubada na beira do bosque de Halsell, assus-

tou-se com ela e em Rosamond deu um susto ainda pior, levando-a fi-
nalmente a perder seu bebê. Lydgate, não sendo capaz de se demonstrar

irado com a esposa, foi porém quase grosseiro com o Capitão, cuja visita

naturalmente logo chegou ao fim.

Em todas as futuras conversas sobre o assunto, Rosamond manteve a

calma certeza de que o passeio a cavalo não fizera diferença, de que se ela

tivesse ficado em casa os mesmos sintomas teriam vindo e terminado do

mesmo modo, porque antes já havia sentido alguma coisa do gênero.

Lydgate só podia dizer: "Pobre querida!" mas intimamente se es-

pantava da terrível tenacidade desta mulher tão meiga. O sentimento

perplexo de sua falta de poder sobre Rosamond ia a se avolumar dentro

dele. Seu conhecimento e força mental superiores, ao invés de serem,

como ele havia imaginado, um altar para consultar em todas as ocasiões,

eram simplesmente postos de lado em todas as questões de ordem prá-

tica. A inteligência de Rosamond, considerara-a exatamente do tipo re-

ceptivo, como convém a uma mulher. Começava a descobrir agora o que

esta inteligência era - qual era a forma que tomara para, correndo numa

rede fechada, tornar-se distante e independente. Ninguém mais rápido

que Rosamond para ver causas e efeitos que estivessem na esfera de

seus próprios gostos e interesses: claramente ela tinha visto a proemi-

nência de Lydgate na sociedade de Middemarch e, imaginativamente,

poderia continuar a traçar efeitos sociais ainda mais agradáveis com os

avanços que lhe traria o talento; mas para ela a ambição profissional e

científica dele não guardava mais relação com estes desejáveis efeitos do

que se eles tivessem sido a feliz descoberta de um óleo já com mau

cheiro. E, à parte este óleo, com o qual não tinha o que fazer, claro está

que ela acreditava mais em sua própria opinião que na dele. Lydgate

descobriu, pasmo, em numerosas ocasiões banais, bem como neste últi-

mo e grave caso das cavalgadas, que a afeição não a tornava submissa.

Não tinha dúvidas de que a afeição lá estava, nem nenhum pressenti-

mento de ter feito alguma coisa para a repelir. De sua parte, disse-se ele

que ainda a amava com a ternura de sempre, e que seria capaz de adap-
tar-se às negativas dela; mas Lydgate - bem! Lydgate andava muito

preocupado, consciente de novos elementos em sua vida que lhe eram

tão nocivos quanto a lama de um charco para uma criatura acostumada

a nadar, respirar e lançar-se à presa iluminada na mais clara das águas.

Rosamond em breve mostrou-se mais encantadora que nunca em

sua mesa de trabalho, dando voltas prazerosas no fâeton de seu pai e

MIDDLEMARCH

619

pensando ser provável que a convidassem a Quallingharn. Sabia que ela

era um ornamento muito mais raro para o salão da casa que qualquer

filha da família e, refletindo que os cavalheiros estavam advertidos dis-

to, talvez não tenha considerado bastante se as damas gostariam de se

ver suplantadas.

Lydgate, aliviado da ansiedade a respeito da esposa, recaiu no que

ela chamava, de si para si, de sua melancolia - nome que aplicava à

sua preocupação pensativa com outros assuntos que não ela, bem como

àquele cenho caeregado e à aversão pelas coisas do cotidiano, como se

todas estivessem de mistura com ervas amargas, que realmente consti-

tuíam uma espécie de barômetro de suas contrariedades e presságios.

Estes últimos estados de espírito tinham, entre outras, uma causa que

generosa mas erroneamente ele evitou mencionar a Rosamond, não

querendo lhe afetar a saúde, nem o ânimo. Entre eles dois, com efeito,

havia uma total falta de contacto dos respectivos conteúdos mentais, o

que pode evidentemente ocorrer até mesmo entre pessoas que estão

continuamente pensando uma na outra. A Lydgate parecia que ele pas-

sara mês após mês sacrificando mais da metade de suas melhores in-

tenções e capacidade à ternura por Rosamond; suportando-lhe as pe-

quenas exigencias e interrupções sem impaciência e, acima de tudo,


suportando olhar sem revelar amargura, cada vez com menos ilusões a

interferir, para a superfície lisa e sem reflexos que o espírito dela apre-

sentava a seu ardor pelos fins mais impessoais de sua profissão e estu-

dos científicos, um ardor que a mulher ideal, segundo seus devaneios,

deveria de algum modo adorar como sublime, muito embora não sa-

bendo em absoluto por quê. Mas sua capacidade de suportar mescla-

va-se a um descontentamento de si que, se soubermos ser cândidos,

confessaremos constituir mais da metade da amargura que os sofri-

mentos impõem, quer se trate da esposa ou do marido. Sempre é ver-

dade que, se mais grandeza nós tivéssemos tido, as circunstâncias nos

pesariam menos. Lydgate estava ciente de que suas concessões a

Rosamond eram muitas vezes pouco mais do que o lapso das resolu-

ções postergadas, a insidiosa paralisia apta a se apoderar de um entu-

siasmo que não está bem ajustado a uma constante porção de nossas

vidas. E sobre o entusiasmo de Lydgate não era um simples fardo de

dor o que constantemente pesava, mas a presença corrosiva de uma

preocupação mesquinha e degradante, dessas que lançam a desgraça

da ironia sobre todo esforço mais alto.

Era esta preocupação que ele se abstivera até aqui de mencionar a

Rosamond; e acreditava, não sem espanto, que ela nunca lhe passara

620

GEORGE ELIOT

pela cabeça, embora nenhuma dificuldade, certamente, pudesse ser me-

nos misteriosa. Era uma inferência que saltava aos olhos de todos, e que

facilmente já havia sido feita por observadores indiferentes, que Lydgate

estava endividado; e ele não conseguia parar de pensar por muito tempo

que dia a dia ia afundando mais nesse pântano, uma tentação para os

homens com sua bela cobertura de flores e vegetação.  incrivel como


um homem ai se atola até o queixo na maior rapidez - numa situação

em que, a despeito de si, ele é forçado a pensar principalmente em sol-

tar-se, mesmo se tem um esquema do universo na alma,

Dezoito meses atrás Lydgate era pobre, mas nunca havia conhecido

a ansiosa necessidade de pequenas quantias, sentindo até um causticante

desprezo por qualquer um que, para as conseguir, dispunha-se a descer

um degrau. Agora ele experimentava alguma coisa pior do que um sim-

ples déficit; era assaltado pelas provações vulgares e odiosas de um ho-

mem que comprou e usou um monte de coisas, sem as quais podia pas-

sar, e que é incapaz de pagar por elas, embora a cobrança do pagamento

tenha-se tornado insistente.

Como isto aconteceu pode ser visto facilmente sem muita aritmética

ou conhecimento de preços. Quando um homem, instalando uma casa e

preparando-se para o casamento, constata que seus móveis e outras des-

pesas iniciais vão de quatrocentas a quinhentas libras a mais que seu capi-

tal disponível; quando no fim de um ano se evidencia que seus gastos

domésticos, cavalos e et caeteras chegam a quase mil, quando os ganhos

com a clientela, estimados nas velhas cadernetas em oitocentas por ano,

tinham baixado como um lago no verão e mal somavam quinhentas, prin-

cipalmente em contas a pagar, a clara inferência é que, quer ou não ele se

importe, o homem está endividado. As coisas nesse tempo eram mais

baratas que hoje, e a vida provinciana era relativamente modesta; mas a

facilidade com que um médico, que havia adquirido recentemente sua

clientela, que se sentia obrigado a manter dois cavalos, cuja mesa era

suprida à larga e que pagava um seguro de vida e um alto aluguel por sua

casa e jardim, podia constatar que suas despesas dobravam seus rendi-

mentos é concebível por qualquer um, bastando não crer que estes deta-

lhes estejam abaixo de consideração. Rosamond, acostumada desde a in-

fância a um trem de vida extravagante, achava que manter bem uma casa

consistia simplesmente em encomendar o melhor de tudo - nada mais

ífeorrespondia;" e Lydgate supunha que, "se era para se fazer uma coisa,
convinha fazer bem feito" - sem entender que eles pudessem viver de

outra maneira. Se cada item de despesa doméstica lhe fosse mencionado

de antemão, provavelmente ele diria que "não podia chegar a tanto," e se

MIMUMARCH

621

alguém lhe sugerisse economizar num determinado artigo - substituir o

peixe caro, por exemplo, por um mais barato - a idéia lhe pareceria so-

mente uma mesquinharia de nada. Rosamond, mesmo sem ocasiões como

a visita do Capitão Lydgate, adorava convidar gente em casa, e Lydgate,

se bem que muitas vezes julgasse cansativos os hóspedes, não interferia.

Esta sociabilidade parecia uma parte necessária da prudência profissional,

e o entretenimento devia ser adequado.  bem verdade que Lydgate ia

constantemente em visita às casas dos pobres e ajustava as prescrições de

dieta a seus magros recursos; mas, oh meu Deus! a essa altura já não

deixou de ser notável - não é de fato o que esperamos dos homens, que

eles tenham numerosas faixas de experiência jazendo lado a lado e nunca

estabeleçam comparação entre elas? O dispêndio - como a feiúra e os

erros - torna-se coisa totalmente nova quando a ele atrelamos nossa

personalidade e o medimos pela ampla diferença que se manifesta (em

nossas próprias sensações) entre nós e os outros. Lydgate se supunha

despreocupado com roupas e desdenhava um homem que calculasse os

efeitos de seu traje; parecia-lhe tão-só parte da rotina que ele tivesse uma

porção de roupas novas - coisas naturais que se achavam arrumadas em

pilhas. Convém lembrar que ele nunca havia sentido a pressão de uma

dívida importuna, e que andava a pé por hábito, não por autocritica. Mas

a pressão tinha chegado.

Sua novidade a tornou ainda mais irritante. Surpreendia-o e enoja-

va-o que condições tão estranhas a todos os seus propósitos, tão odio-
samente dissociadas dos assuntos de que ele pretendia ocupar-se, hou-

vessem feito uma emboscada para agarrá-lo assim desprevenido. Pois

não havia somente a dívida atual; mas também a certeza de que, na

situação em que se encontrava, ele teria de a aumentar sempre mais.

Dois negociantes de mobílias de Brassing, cujas contas datavam de an-

tes do seu casamento, e a quem as despesas correntes não calculadas o

haviam impedido desde então de pagar, repetidamente lhe mandaram

desagradáveis cartas que o deixavam sob forte impressão. Nada de mais

amargo para um temperamento como o de Lydgate, com seu intenso

orgulho - sua pouca inclinação para pedir ou dever favores a alguém.

Sempre desdenhara fazer conjecturas sobre as intenções de Mr. Vincy

nas questões financeiras, e nada a não ser um caso extremo poderia

induzilo a recorrer a seu sogro, ainda que não tivesse sido avisado, de

várias e indiretas maneiras desde seu casamento, que os negócios de Mr.

Vincy não floresciam, e que uma expectativa de ajuda da parte dele seria

ressentida. Há homens que tendem facilmente a confiar na presteza dos

amigos; nunca na parte anterior de sua vida ocorrera a Lydgate que ele

622

GEORGE ELioT

precisasse de fazer o mesmo: nunca havia pensado no que seria para ele

pedir dinheiro emprestado; mas agora que lhe vinha tal idéia à cabeça,

sentia-se mais propenso a enfrentar qualquer outra provação que não

esta. Enquanto isso ele não tinha dinheiro, nem perspectivas de o ter; e

sua clientela não se tornava mais lucrativa.

Não espanta pois que Lydgate fosse incapaz de suprimir ossinais de

que estava preocupado por dentro durante os últimos meses, e agora

que Rosamond voltava a uma bela saúde ele pensava em torná-la total-

mente em confidência sobre suas dificuldades. Uma nova. intimidade


com as contas dos fornecedores impeliu seu raciocínio para um novo

canal de comparação: ele havia começado a considerar de um novo pon-

to de vista o que era necessário e desnecessário, nas mercadorias enco-

mendadas, e a ver que tinha de ocorrer uma mudança de hábitos. Como

poderia uma tal mudança ser feita sem a participação de Rosamond? A

ocasião imediata para abordar com ela o desagradável fato surgiu-lhe

imposta.

Não tendo dinheiro, e tendo procurado conselhos, reservadamente,

sobre as garantias que um homem na sua situação poderia dar, Lydgate

tinha oferecido a única boa garantia em seu poder ao credor menos pe-

remptório, um joalheiro e prateiro que consentiu em ficar com a conta

do estofador também, aceitando juros por um prazo dado. A garantia

necessária era um instrumento de venda do mobiliário de sua casa, que

por um tempo razoável poderia tranqüilizar um credor sobre um débito

de montante abaixo de quatrocentas libras; e o prateiro, Mr. Dover, es-

tava disposto a reduzi-lo, aceitando de volta parte da baixela e qualquer

outro artigo ainda em bom estado. "Qualquer outro artigo" era uma

frase sutilmente aplicada a jóias e em particular a umas ametistas roxas

no valor de trinta libras, que Lydgate havia comprado como presente de

núpeias.

Podem-se dividir as opiniões quanto à sua sabedoria em fazer tal

presente: uns talvez achem que foi um gesto de atenção delicado, a se

esperar de um homem como Lydgate, e que a culpa por quaisquer mo -

lestas conseqüências jazia na tacanha estreiteza da vida provinciana na

época, que não oferecia condições aos profissionais cujas fortunas não

eram proporcionais a seus gostos; e também na recusa persistente e ridí-

cula de Lydgate em pedir dinheiro aos amigos.

A ele, contudo, a questão parecera sem nenhuma importância, na-

quela bela manhã em que foi dar uma palavra final sobre a baixela de

prata: na presença de outras jóias imensamente caras, e em acréscimo a

compras cujo montante não tinha sido exatamente calculado, trinta li-
MIDDLEMARCH

623

bras por adornos que ficariam tão bem no pescoço e nos braços de

Rosamond mal podiam parecer um excesso, quando não havia um paga-

mento em espécie para onerar. Mas a imaginação de Lydgate, nessa cri-

se, não tinha como não cogitar da hipótese de deixar que as ametistas

voltassem para seu lugar no estoque de Mr. Dover, embora ele se esqui-

vasse à idéia de fazer a proposta a Rosamond. Alertado para discernir

conseqüências, pensar nas quais nunca fora de seu hábito, ele se prepa-

rava para agir, baseado neste discernimento, com uma parte do rigor

(decerto não todo) que teria posto na realização de um experimento. A

tal rigor se encorajava, voltando de Brassing a cavalo, e refletia sobre as

alegações que teria de expor a Rosamond.

já estava escurecendo quando chegou em casa. Este homem forte,

de vinte e nove anos, e tão bem dotado, sentia-se imensamente infeliz.

Não dizia por dentro, enraivecido, que cometera um grande erro; mas o

erro agia nele como uma doença cronica reconhecida, fundindo suas

molestas importunações a cada projeto, e enfraquecendo cada idéia. Ao

atravessar o corredor para a sala de visitas, ele ouviu o plano e canto.

Naturalmente, Ladislaw estava lá. Will se despedira de Dorothea já há

algumas semanas, entretanto ainda se mantinha em seu velho posto em

Middemarch. Lydgate em geral não fazia objeção às vindas de Ladíslaw,

mas no momento sentiu-se aborrecido por não poder ter a casa livre.

Quando abriu a porta, os dois cantores, passando à tônica, ergueram os

olhos e o fitaram de fato, mas prosseguiram sem ver como interrupção

sua entrada. Para um homem esmagado por seu fardo como o pobre

Lydgate estava, não há consolo em ver duas pessoas a trautear para ele,

quando chega com a impressão de que o sofrido dia ainda reserva mais
sofrimentos. Seu rosto, já mais pálido que de costume, tomou um ar

carrancudo quando ele atravessou a sala e se atirou na poltrona.

Os cantores, sentindo-se desculpados pelo fato de só terem três bar-

ras para cantar, a essa altura se viraram de frente para ele.

"Conio vai, Lydgate?" disse Wili, adiantando-se para um aperto de

mãos.

Lydgate correspondeu ao gesto, mas não julgou que fosse necessário

falar.

"Você já jantou, Tertius? Eu o esperava bem mais cedo," disse

Rosamond, que já havia percebido que seu marido estava num "humor

horroroso." Ela se sentou, ao falar, em seu lugar costumeiro.

"Já jantei sim. Tomaria só um chá, por favor," respondeu secamente

Lydgate, ainda carrancudo e olhando muito para as próprias pernas, que

ele esticara para a frente.

624

Wili, que era muito rápido, não precisou de mais que isto. "Bem,

vou indof disse apanhando seu chapéu.

"O chá está vindo," disse Rosamond; "espere um pouco, por favor."

"Não, o Lydgate está entediado," disse Wili, que compreendia mais

Lydgate do que a própria Rosamond e não se ofendera com seus modos,

facilmente imaginando algum aborrecimento fora de casa.

"Maior então a necessidade de que ainda fiquef disse Rosamond,

brincando, e em seu tom mais leve; "ele não há de falar comigo a noite

toda."

"Hei sim, Rosamond," disse Lydgate em sua forte voz de barítono.

GEORGE ELioT

"Tenho um assunto sério para falar com você."


Nenhuma introdução do assunto poderia ser menos semelhante à

que Lydgate havia previsto; mas os modos indiferentes dela foram pro-

vocantes demais.

"Está vendo?" disse Will. "Vou à reunião sobre o Instituto de Mecâ-

nica. Adeus para vocês;" e rapidamente ele saiu da sala.

Rosamond, sem olhar para o marido, levantou-se e ocupou seu lu-

gar diante da bandeja de chá. Estava pensando que nunca o tinha visto

tão desagradável assim. Lydgate virou para ela os olhos negros e obser-

vou-a a manusear delicadamente, com seus finos dedos, o serviço de chá

e a olhar para os objetos logo à frente sem uma curva sequer que se

alterasse em seu rosto, entretanto com um inefável protesto no seu jeito

contra todas as pessoas de modos desagradáveis. Por um momento ele

esqueceu a razão de sua dor ao se perder numa especulação repentina

sobre esta nova forma de impassibilidade feminina que se revelava na

figura de sílfide por ele interpretada outrora como sinal de uma sensibi-

lidade viva e inteligente. Sua mente, vasculhando o passado, via Laure,

enquanto ele olhava para Rosamond e dizia a si mesmo: "Seria ela capaz

de me matar por eu a ter cansado?" e depois: "Com todas as mulheres é

sempre assim." Mas este poder de generalizar, que dá aos homens tanta

superioridade no erro sobre os mudos animais, frustrou-se imediata-

mente ao acudirem à memória de Lydgate erráticas impressões do com-

portamento de outra mulher - dos olhares e timbres de emoção de

Dorothea por seu marido, quando Lydgate começou a atendê-lo - de

seu pedido apaixonado para lhe ser dito o que mais confortaria aquele

homem, por quem ela parecia ter de sufocar todos os seus impulsos,

exceto os anseios de fidelidade e compaixão. Estas impressões revividas

sucediam-se rapida e sonhadoramente na mente de Lydgate enquanto o

chá era preparado. Ele havia fechado os olhos no último instante de

devaneio, ouvindo Dorothea dizer: "Aconselhe-me - pense no que eu

MIDDLEMARCH
625

posso fazer - ele passou a vida inteira trabalhando por este objetivo.

Não se interessa por mais nada - e eu por nada mais me interesso."

Esta voz desentranhada da própria alma da feminilidade havia perma-

necido em seu íntimo como aí permaneciam as concepções incendiárias

do gênio morto e consagrado (não há um gênio dos sentimentos nobres

que também reina sobre os espíritos humanos e suas conclusões?): os

tons compunham uma música, para longe da qual ele caía aos poucos -

ele que já estava realmente caído num momentâneo cochilo quando

Rosamond disse, a seu modo prateado e neutro: "Olhe o chá, Tertius,"

pondo-o na mesinha ao lado e então voltando, sem olhar para ele, para o

seu lugar. Lydgate fora muito apressado ao atribuir-lhe insensibilidade;

ela até que era bastante sensível, lá a seu jeito, e recebia impressões

dura-

douras. A que agora a dominava era de ofensa e repulsa. Contudo,

Rosamond não amarrava a cara, nem nunca havia alteado a voz: sentia-se

de todo segura de que ninguém poderia, com justiça, descobri-la em erro.

Talvez ela e Lydgate, antes, nunca se tivessem sentido tão afastados

assim; mas fortes razões eram as dele para não adiar sua revelação, mes-

mo que a não houvesse iniciado já, com aquela advertência abrupta;

com efeito, parte do desejo irritado de nela despertar mais sensibilidade

a seu respeito, que o impelira a falar antes da hora, ainda se mesclava à

sua dor, na perspectiva da dor causada a ela. Mas ele esperou a bandeja

ser levada, as velas serem acesas, e que se pudesse contar com a tranqüi-

lidade da noite: o intervalo dera tempo para a ternura repelida voltar ao

seu caminho normal. E foi gentil ao falar.

"Rosy, meu bem, deixe um pouco o trabalho e venha sentar-se aqui

comigo," disse, afastando a mesa e esticando o braço para puxar uma

cadeira para perto da sua.


Rosamond obedeceu. E ao andar para ele, coberta de musselina cla-

ra e transparente, sua figura esbelta mas de formas redondas nunca se

mostrou mais graciosa; ao sentar-se ao lado, pôr a mão no braço da

cadeira dele, olhá-lo por fim e encontrar-lhe os olhos, seu pescoço deli-

cado, sua face, seus lábios primorosamente talhados nunca tiveram mais

dessa beleza imaculada que nos comove na primavera e na infância e em

todo doce vigor. E que agora comoveu Lydgate, misturando os primeiros

momentos de seu amor por ela a todas as demais memórias que esta-

vam sendo revolvidas nessa crise profunda. Larga, sua mão baixou sua-

vemente na dela, quando ele disse:

"Querida!" com a expressão prolongada que o afeto dá à palavra.

Rosamond ainda estava também sob o poder do mesmo passado, e seu

marido ainda era em parte o Lydgate cuja aprovação havia ocasionado

626

GEORGE ELIOT

prazer. Afastando-lhe, com delicadeza, o cabelo da testa, ela pôs sua

outra mão sobre a dele, cônscia de que o perdoava.

"Sou obrigado a lhe dizer algo que vai magoá-la, Rosy. Mas há coi

sas em que marido e mulher devem pensar juntos. Ouso crer que já lhe

tenha ocorrido que eu ando em falta de dinheiro."

Lydgate fez uma pausa; mas Rosamond, virando um pouco o pesco

ço, olhou para um vaso em cima da lareira.

"Não pude pagar tudo o que nós tivemos de comprar antes de nos

casarmos, e desde então há as despesas que eu sou obrigado a agüentar.

O resultado é que há uma grande dívida em Brassing - trezentas e

oitenta libras - que me pressiona há um bom tempo, e nós estamos a

afundar de fato cada dia mais, pois as pessoas não me pagam mais de

pressa porque outros querem dinheiro. Fiz o que pude para você não
saber disto, quando não estava bem; mas agora nós devemos pensar

juntos, e conto com sua ajuda."

"O que eu posso fazer, Tertius?" disse Rosamond, virando os olhos

para ele de novo. Esta frase de só quatro palavras, como tantas outras

nas demais línguas, é capaz de expressar, por inflexões vocais variadas,

todos os estados de espírito, da imprecisão mais desvalida à exaustiva

percepção argumentativa, da simpatia mais completa e devotada à indi-

ferença mais neutra. A rarefeita dicção de Rosamond imprimiu às pala-

vras "O que eu posso fazer!" o máximo de neutralidade que elas podiam

conter. Na ternura desperta de Lydgate, tais palavras bateram como um

frio mortal. Mas ele não explodiu indignado - sentiu um abatimento

muito triste e profundo. Quando voltou a falar, foi mais no tom de um

homem que se força a cumprir uma tarefa.

" preciso que você saiba, porque eu tenho de dar uma garantia por

um tempo, e um homem deve vir aqui, para fazer o inventário do mobi-

liário."

Rosamond foi tomada por intenso rubor. "Você não pediu dinheiro

ao meu pai?" disse ela, tão logo foi capaz de falar.

"Não."

"Então eu devo pedir!" disse ela, desprendendo suas mãos das de

Lydgate para se pôr de pé a uns dois metros dele.

"Não, Rosy," disse Lydgate, decididamente. "Agora já é tarde de-

mais. O inventário vai começar amanhã. Mas, lembre-se, é uma simples

garantia: não fará nenhuma diferença: é uma questão temporária. Seu

pai, insisto, não deve saber de nada, a menos que decida eu mesmo

contar-lhe," acrescentou Lydgate, com ênfase mais peremptória.

Certamente, isto era indelicado, mas Rosamond o atirara de novo

MIDDLEMARCH

627
na expectativa malsã do que haveria ela de fazer em forma de desobe-

diência firme e tranqüila. A indelicadeza pareceu-lhe imperdoável: ela

não era dada a chorar, e nem gostava, mas agora seu queixo e os lábios

começaram a tremer, e as lágrimas brotaram mesmo. Talvez não fosse

possível a Lydgate, sob a dupla pressão das dificuldades materiais ex-

ternas e de sua própria e orgulhosa resistência às conseqüências humi-

lhantes, imaginar completamente o que esta brusca provação era para

uma criatura jovem que só havia conhecido indulgência e cujos sonhos,

todos, eram de uma nova indulgência, mais de acordo com seu gosto.

Mas ele tinha desejado poupá-la tanto quanto pudesse, e aquelas lá-

grimas cortaram-lhe o coração. Não conseguiu falar de novo, de imedi-

ato; se bem que Rosamond não se entregasse aos soluços: tentando

vencer sua agitação, ela enxugou as lágrimas e continuou a olhar para a

lareira em face.

"Tente não se afligir, querida," disse Lydgate, virando os olhos em sua

direção. Que ela tivesse resolvido afastar-se dele, a essa altura de seu

dissabor, tornava tudo mais difícil de dizer, mas era-lhe imperioso prosse-

guir. "Temos de concentrar energias para fazer o que é preciso. Fui eu que

errei: eu deveria ter visto que não estava em condições para viver desse

modo. Mas muitas coisas se opuseram a mim em minha clínica, que agora

declinou realmente para um ponto bem baixo. Posso recuperar-me, mas

entrementes temos de fazer um esforço - temos de mudar nosso trem de

vida. Nós agüentaremos o golpe. Depois que eu der a tal garantia, terei

tempo para olhar ao redor; e você é tão inteligente que, se dirigir sua

atenção para os negócios, há de ensinar-me a ser mais cuidadoso. Tenho

sido um leviano, um bom tratante, para pagar minhas contas - mas ve-

nha cá, querida, sente-se aqui e me perdoe."

Lydgate punha o pescoço sob a canga como uma criatura que tivesse

garras, mas que também tinha Razão, que nos conduz com freqüência à

mansidão. Expressas as últimas palavras em tom de quem implorava,


Rosamond voltou para a cadeira a seu lado. E disse, com alguma espe-

rança de que ele, por reconhecer a própria culpa, ouvisse sua opinião:

"Você pode adiar esse inventário, não pode? Amanhã, quando os

homens vierem, mande-os embora."

"Não os mandarei embora," disse Lydgate, reerguendo-se o tom

peremptório. Adiantaria alguma coisa explicar?

"Se saíssemos de Middemarch, faríamos naturalmente um leilão, o

que também daria certo."

"Mas nós não vamos sair de Middiemarch."

"Estou certa, Tertius, de que seria muito melhor. Por que não pode-

628

GEORGE ELIOT

mos ir para Londres? Ou para perto de Durham, onde sua família é co-

nhecida?"

"Não podemos ir a canto algum sem dinheiro, Rosamond."

"Seus amigos não vão querer que você fique sem dinheiro. E certa-

mente esses detestáveis negociantes poderiam ser levados a entender

isto, e esperar, se você tivesse uma conversa clara com eles.".

"Isto é inútil, Rosamond," disse Lydgate, irritado. "Você deve apren-

der a aceitar minhas decisões em questões das quais nada entende. já

tomei as providências necessárias, e as coisas têm de ser levadas a cabo.

Quanto aos amigos, eu deles nada espero, e a eles nada hei de pedir."

Rosamond se sentava perfeitamente imóvel. Uma idéia lhe ocupava

a cabeça: ela nunca se teria casado com Lydgate, se soubesse como ele

iria proceder.

"Não temos tempo para perder agora com palavras desnecessárias

meu bem," disse Lydgate, tentando ser gentil novamente. "Há uns deta

lhes que eu quero examinar com você. O Dover diz que aceita de volt
uma boa parte da baixela, e qualquer jóia que quisermos. Realmente

ele procede muito bem."

"Nós então vamos ficar sem garfos e colheres?" disse Rosamond

cujos lábios pareceram até se tornar mais finos, dada a finura da expres

são. Ela estava decidida a não mais opor resistência, nem a fazer mai

sugestões.

"Oh, querida, não!" disse Lydgate. "Mas olhe aqui," continuou, ti

rando um papel do bolso e abrindo-o; "aqui está a conta do Dover. Veja

eu marquei alguns artigos que, se nós devolvêssemos, reduziriam o

total

em até mais de trinta libras. Não marquei nenhuma jóia." Lydgate havi

realmente sentido que esta questão das jóias lhe era muito penosa;

mas

dominara o sentimento com uma argumentação rigorosa. Não podia pro

por a Rosamond que devolvesse algum presente dele, mas dissera-s

que estava obrigado a colocar-lhe a oferta de Dover, e ela, se a recebess

bem, poderia tornar a coisa fácil.

"É inútil que eu olhe, Tertius," disse Rosamond, calmamente; "você

há de devolver o que bem quiser." Ela se negava a olhar para o papel,

Lydgate, enrubescendo até a raiz dos cabelos, recolheu-o e largou sobr

o joelho. A seguir, Rosamond saiu tranqüilamente da sala, deixando-

desorientado e indefeso. Será que não voltaria? Pairava a impressão d

que ela não se identificara nada com ele, tal qual se fossem criaturas d

espécies diferentes e interesses opostos. Ele atirou a cabeça para trás

enfiou as mãos até o fundo dos bolsos, numa espécie de vingança. Res

tava-lhe contudo a ciência - restavam-lhe bons objetivos pelos quais

MIDDLEMARCH 629

trabalhar. Ele ainda tinha de fazer um esforço - e maior ainda porque as


outras satisfações se esvaíam.

Mas a porta se abriu e Rosamond reapareceu. Vinha com o estojo de

couro que continha as arnetistas, mais uma cestinha ornamental na qual

havia outras caixas, e com perfeita correção em seu porte, pondo-as na

cadeira onde estivera sentada, disse:

"Aqui estão todas as jóias que você já me deu. Pode devolver o que

quiser, e também da prataria. Naturalmente você não espera que eu fi-

que em casa amanhã. Vou para a casa do meu pai."

Para muitas mulheres o olhar lançado por Lydgate a ela teria sido

mais terrível que um olhar de cólera: trazia em si uma aceitação deses-

perada da distância que ela estava colocando entre eles.

"E quando pensa em voltar?" disse ele, com um travo amargo na voz.

"Oh, à noitinha. Claro que não vou falar no assunto com a mamãe."

Rosamond estava convencida de que mulher alguma poderia ter-se com-

portado mais irreprochavelmente que ela na ocasião; e foi sentar-se à sua

mesa de trabalho. Lydgate, sentado, refletiu por uns dois minutos, e o

resultado foi o que ele disse, com um pouco da antiga emoção em sua voz:

"Unidos como nós fomos, Rosy, você não deveria deixar-me entre-

gue a mim mesmo, na primeira dificuldade que surgiu."

"Decerto que não," disse Rosamond; "farei tudo o que me caiba

fazer."

"Não é bom que a coisa seja deixada ao encargo dos criados, nem

que eu tenha de lhes falar a respeito. E serei obrigado a sair cedo - não

sei bem a que horas. Entendo que você queira esquivar-se à humilhação

dessas questões de dinheiro. Mas, Rosamond, meu bem, por uma ques-

tão de orgulho, que eu sinto tanto quanto você, certamente é melhor

cuidarmos disto nós mesmos, e deixar que os criados vejam o mínimo

possível; já que você é minha esposa, não há como impedir sua partici-

pação em minhas desgraças - se é que são desgraças."

Rosamond não respondeu de imediato, mas por fim disse: "Muito

bem, ficarei em casa."


"Não vou tocar nestas jóias, Rosy. Guarde-as de novo. Mas farei

uma relação da prataria que nós podemos devolver, do que pode ser

empacotado e mandado logo."

"Disto os criados vão saber," disse Rosamond, com um leve toque de

sarcasmo.

"Bem, há que encarar certos dissabores como necessidades. Onde

está mesmo a tinta, hem?" disse Lydgate, levantando-se e jogando a

conta sobre a mesa maior, onde pretendia escrever.

630

GEORGE ELIOT

Rosamond foi apanhar o tinteiro e, depois de o pôr na mesa, já se ia

virando quando Lydgate, que estava bem perto, enlaçou-a com o braço e

a puxou para si, dizendo:

"Vamos, meu bem, encaremos tudo isto do melhor modo possível.

Só por uns tempos, espero, é que teremos de ser meticulosos e sovinas.

Dê -me um beijo."

Seu inato calor humano recebeu uma ducha fria, e é parte da virilida-

de de um marido sentir claramente o fato de uma moça ínexperiente se

envolver em problemas por casar-se com ele. Recebido o beijo dele, ela

o retribuiu friamente, e deste modo uma aparência de acordo foi recupe-

rada por ora. Mas Lydgate não se podia impedir de olhar à frente, te-

mendo futuras e inevitáveis discussões sobre gastos e a necessidade de

uma completa mudança em seu modo de vida.

CAPÍTULO LIX

They said of old the Soul had human shape,

But smaller, subtler than the fleshly self,


So wandered forth for airing when it pleased..

And see! beside her cherub-face there floats

A pale-lipped form aerial whispering

Its promptings ín that: little shell her ear.

€"Téria outrora a Alma forma humana,

porém, menor e mais sutil que o corpo,

dele saía a tomar ar, quando queria.

junto a seu rosto querubíneo, veja!,

A alada forma que flutua sopra-lhe,

Na conchinha da orelha, suas sugestões.")

MUITAS VEZES AS NOTíCIAS se espalham tão impensada e eficazmente

quanto o pólen que as abelhas carregam (não tendo idéia de como

ele é pulverulento) quando zumbem à cata de seu específico néctar.

Esta feliz comparação vem a propósito de Fred Vincy, que naquela

noite no Presbitério de Lowick ouviu uma animada discussão entre as

senhoras, sobre notícia, transmitida à velha criada delas por Tantripp,

concernente à estranha menção do nome de Mr. Ladislaw por Mr.

Casaubon num codicílo a seu testamento, feito não muito antes da

morte. Miss Winifred, pasma ao descobrir que seu irmão já tinha conhe-

cimento do fato, observou que Cainden era o mais incrível dos ho-

mens, por saber das coisas e não comentá-las; Mary Garth disse que

o codicilo talvez já estivesse agora em meio aos hábitos das aranhas,

mas Miss Winifred, a isto, jamais daria ouvidos. Mrs. Farebrother

achou que a notícia tinha alguma relação com o fato de elas só terem

632

GEORGE ELIOT
visto Mr. Ladislaw em Lowick uma vez; e Miss Noble emitiu muitos

miadinhos compadecidos.

Fred pouco sabia de Ladislaw e os Casaubons, menos ainda se impor-

tava com eles, e nunca esta discussão voltara à sua mente, até que um dia,

passando pela casa de Mary para dar um recado de sua mãe, por acaso ele

viu Ladislaw saindo, Entre Fred e Rosamond, pouco havia o que dizer um

ao outro, agora que o casamento a afastara e impedia de chocar-se com o

desprazer dos irmãos, e particularmente agora que ele dera o passo erra-

do, no entender dela, e até repreensível de desistir da Igreja para adotar

uma profissão tão simples como a de Mr. Garth. Donde Fred ter preferido

falar de notícias a seu ver indiferentes, mencionando inclusive, "à propos

do jovem Ladislaw," o que ele ouvira no Presbitério de Lowick.

Também Lydgate, como Mr. Farebrother, sabia muito mais do que

contava e, desde que levado pela primeira vez a pensar na relação entre

Will e Dorothea, já se pusera, em conjecturas, além do fato. Imaginou

que havia, de ambos os lados, uma paixão amorosa, e isto lhe pareceu

muito sério para merecer comentários. Lembrava-se da irritação de Will,

quando ele mencionara Mrs. Casaubon, e se tornara mais circunspecto.

Em suma suas suspeitas, somando-se ao que ele sabia do fato, aumen-

taram sua amabilidade e tolerância com Ladislaw, e fizeram-no entender

a vacilação que o mantinha em Middemarch após ter anunciado que

deveria partir. Era significativo do distanciamento entre as mentes de

Lydgate e Rosamond que ele não sentisse a menor vontade de lhe falar

sobre o assunto; de fato, não confiava muito nas reticências dela sobre

W111. E estava certo; embora não vislumbrasse de que modo sua mente

agiria para instá-la a falar.

Quando ela repetiu a Lydgate as novidades de Fred, ele disse: "Cui-

dado, Rosy, para que não lhe escape nem a mais leve insinuação ao

Ladislaw. Ele é capaz de sumir de vista, como se você o insultasse. E

naturalmente é uma questão penosa."

Rosamond deu uma esticada no pescoço e alisou seu cabelo, mos-


trando-se a imagem da indiferença plácida. Mas da vez seguinte em que

Will veio à sua casa na ausência de Lydgate, maliciosamente ela o inter-

pelou por não ter ido para Londres, como ameaçara fazer.

"Sei de tudo sobre isto.  um passarinho que me conta," disse, exi-

bindo-se, toda muito airosa, com a cabeça caída sobre um trabalho de

costura suspenso entre seus dedos ágeis. "Há um ímã muito forte aqui

pelas vizinhanças."

"Decerto que há. Ninguém melhor do que a senhora o sabe," disse

Wili, galante até certo ponto, mas, por dentro, já a ponto de se zangar.

MIDÖ3LEMARCH

633

" realmente um romance encantador. Mr. Casaubon, enciumado,

prevendo não haver senão um certo cavalheiro com quem Mrs. Casaubon

gostaria muito de se casar, e que também gostaria muito de se casar com

ela; e aí traçando um plano para estragar tudo com a determinação de

que ela perca seus bens se se casar com tal cavalheiro - e aí - e aí - e

aí - oh, não tenho dúvida de que o fim há de ser profundamente ro-

mântico."

"Meu Deus! o que está querendo dizer?", disse Will, corando até as

orelhas, mudando aparentemente de expressão como se tivesse sofrido

um violento abalo. "Vamos, não brinque; diga-me o que é."

"Realmente não sabe?" disse Rosamond, não mais brincando, e tam-

bém não desejando outra coisa senão falar a fim de produzir efeitos.

"Não!" respondeu ele, impaciente.

"Não sabe que Mr. Casaubon dispôs em seu testamento que, se Mrs.

Casaubon se casar com o senhor, ela há de perder todos os bens?"

"Como sabe que isto é verdade?" disse Will, ansioso.

"Meu irmão Fred soube pelos Farebrothers."


Will saltou da cadeira e apanhou seu chapéu.

"Ouso dizer que ela gosta mais do senhor que da fortuna," disse

Rosamond, olhando para ele de uma certa distância.

"Por favor, não diga nada mais sobre isto," disse Will, num subtorn

cavernoso e totalmente diverso de sua voz em geral tão clara. " um

insulto infame a ela e a mim." Com ar ausente, olhando para a frente,

porém não vendo coisa alguma, ele se sentou.

"Agora está zangado comigo, não é?" disse Rosamond. "Não está cer-

to guardar rancor a mim. Deveria era agradecer-me por lhe ter contado."

"E agradeço," disse Will abruptamente, falando com aquela espécie

de alma dupla pertencente aos sonhadores que respondem perguntas.

"Espero saber do casamento," disse Rosamond, sorridente.

"Nunca! Nunca a senhora saberá deste casamento!"

A estas palavras impetuosamente pronunciadas, Will se levantou,

deu a mão a Rosamond, sempre envolto no mesmo ar de sonãombulo, e

foi-se embora.

Ido ele, Rosamond deíxou sua cadeira e andou para o outro extremo

da sala, lá se debruçando numa chififonniŠrel para, enfastiada, pôr-se a

olhar pela janela. Sentia-se oprimida pelo tédio e por essa insatisfação

que, nas mentes femininas, continuamente se transforma num ciúme

banal, que não se refere a nenhum direito real, não nasce de uma paixão

im francês no original: côrnoda estreita e alta.

634

GEORGE ELIOT

mais profunda que as exigências vagas do egoísmo, entretanto é capaz

de impelir à ação, bem como à fala. "Realmente não há muito com que

se preocupar," disse a pobre Rosamond consigo mesma, pensando na


família em Quallingham, que não lhe escrevia; e que talvez Tertius, quan

do voltasse para casa, fosse reclamar das despesas. Ela já o desobedece-

ra em segredo, pedindo a seu pai que os ajudasse, e ele havia concluíd

dizendo decididamente: "O mais certo é que eu mesmo esteja precisan

do de ajuda."

CAPÍTuLo LX

"Good phrases are surely, and ever were, very commendable."

- Justice Shallow.

€"Boas frases são decerto, e sempre foram, muito louváveis.")

- juiz Shallow.1

POUCOS DIAS APóS - já era o fim de agosto - houve uma ocasião que

causou em Middemarch certo rebuliço: o público, se lhe aprouvesse,

ver-se-ia em condições de comprar, sob os distintos auspícios de Mr.

Borthrop Trumbull, os móveis, livros e quadros pertencentes a Mr. Edwin

Larcher, os quais, como todos podiam ver pelos prospectos, eram de

superior qualidade. Não se tratava de um leilão a indicar algum declínio

nos negócios; pelo contrário, este era devido ao grande sucesso de Mr.

Larcher no ramo dos transportes, que lhe permitira adquirir uma man-

são perto de Riverston, já mobiliada em grande estilo por um ilustre

facultativo de Spa - mobiliada inclusive com umas pinturas de nus tão

grandes e dispendiosas, emolduradas na sala de jantar, que Mrs. Larcher

ficou nervosa, antes de tranqüilizar-se ao achar que eram temas bíblicos.

Donde a bela oportunidade para os compradores, que estava bem res-

saltada nos prospectos de Mr. Borthrop Trumbull, capacitado por sua

intimidade com a história da arte a afirmar que o mobiliário do vestíbu-


lo, a ser leiloado sem preço mínimo, incluía uma obra de talha de um

contemporâneo de Gibbons.2

Em Middemarch nessa época um grande leilão era visto como uma

Tersonagem de Shakespeare em Henrique IV (Parte 2, Ato III, Cena 2, linha

76).

"Grinling Gibbons (1648-1721), mestre-entalhador da Coroa,

636

GEORGE ELIOT

espécie de festival. Numa mesa se dispunha o que havia de melhor em

comestíveis frios, como num funeral de primeira; e ofereciam-se os meios

para um generoso verter de alegres copos que poderiam conduzir a lan-

ces generosos e alegres por indesejáveis artigos. Com o bom tempo, o

leilão de Mr. Larcher tornou-se ainda mais atraente porque a casa, com

jardim e cavalariça, ficava nos confins da cidade, nessa agradável saída

de Middemarch chamada London Road, a mesma estrada que levava ao

Novo Hospital e à retirada residência de Mr. BuIstrode, conhecida como

O Arvoredo. O leilão era tão bom quanto uma feira, em suma, e todas as

classes que dispunham de lazer a ele acorriam: para alguns, que se arris-

cavam aos lances simplesmente a fim de elevar os preços, era quase

como apostar nos cavalos. No segundo dia, quando os melhores móveis

iam ser vendidos, "todo mundo" estava lá; até mesmo Mr. Thesiger, o

reitor da paróquia de Saint Peter, tinha aparecido para dar uma olhada,

desejando adquirir a mesa entalhada e, para tanto, acotovelando-se en-

tre Mr. Bambridge e Mr. Horrock. Um círculo de senhoras de Middemarch

acomodava-se em cadeiras em torno da grande mesa da sala de jantar,

onde Mr. Borthrop Trumbull sobressaía com sua banca e o martelo; mas

as fileiras de rostos principalmente masculinos por trás eram em geral


variadas, pelas entradas e saídas, quer pela porta interna, quer pela gran-

de, em ressalto na fachada, que abria para o gramado.

"Todo mundo" nesse dia não incluía Mr. BuIstrode, cuja saúde não

suportava as correntes de ar e as multidões. Mas Mrs. BuIstrode tinha

particular desejo de adquirir certo quadro - uma Ceia em Emaús, atri-

buída no catálogo ao Guido;I e na última hora, antes do dia do leilão,

Mr. BuIstrode fora à redação do "Pioneiro," do qual era agora um dos

proprietários, para pedir a Mr. Ladislaw o grande favor, a condescendên-

cia de usar seu extraordinário conhecimento de pinturas para ajudar Mrs.

BuIstrode e julgar o valor do quadro em questão - "se," acrescentou o

banqueiro escrupulosamente polido, "a presença no leilão não interferir

com os preparativos para sua partida, que sei iminente."

Aos ouvidos de Will, esta cláusula poderia ter soado satírica, caso

ele estivesse predisposto a se preocupar com tal sátira. Referia-se ela a

um entendimento feito várias semanas antes com os donos do jornal,

pelo qual ele deveria ficar em liberdade para, a qualquer dia que quises-

se, transferir a direção ao subeditor treinado sob seu comando; já que

seu desejo afinal era sair de Middemarch. Mas as visões indefinidas da

ambição são fracas, ao lado da facilidade de fazer o que é habitual ou

IGuido Reni (1575-1642), pintor italiano da escola bolonhesa.

MIDDLEMARCH

637

sedutoramente agradável; e nós todos sabemos a dificuldade em levar

uma resolução a termo quando ansiamos em segredo para que a mesma

acabe por ser desnecessária. A mais incrédula pessoa, em tais estados de

espírito, propende particularmente ao milagre: é impossível conceber

como nosso desejo pôde ser atendido, no entanto - coisas muito mara-
vilhosas aconteceram! Will, sem confessar esta fraqueza a si mesmo, foi-

se deixando ficar. De que adiantava ir para Londres nessa época do ano?

Os jogadores de rugby que se lembrariam dele não estavam lá; e, no que

dizia respeito aojornalismo político, era-lhe conveniente, por umas poucas

semanas, continuar no "Pioneiro." No presente momento, contudo, quan-

do Mr. BuIstrode lhe falava, a decisão revigorada de partir veio-lhe ao

mesmo tempo que outra, igualmente forte, de o não fazer antes de ver

mais uma vez Dorothea. Donde a resposta que ele deu: tendo razões

para adiar sua partida um pouco, de bom grado compareceria ao leilão.

Um espírito de desafio se apossara de Will, sendo sua consciência

atormentada pela idéia de que as pessoas que olhavam para ele provavel-

mente sabiam de um fato que equivalia a acusá-lo de ser um tipo qual-

quer, cheio de más intenções que eram frustradas por uma disposição so-

bre bens. Como a maioria dos que afirmam sua liberdade em relação à

distinção convencional, ele estava preparado para ver-se inopinadamente

às turras com qualquer um que insinuasse haver motivos pessoais para

esta afirmação - haver alguma coisa em seu sangue, sua conduta ou seu

caráter que ele mascarava com uma opinião. Sob uma impressão irritante

desta espécie, era capaz de passar dias com um olhar desafiador, mudan-

do-se a coloração de sua pele como se ele se encontrasse em estado de

alerta, à espreita de alguma coisa sobre a qual se lançar.

Tal expressão tornou-se particularmente perceptível no leilão, onde

quem só o conhecia nos seus momentos de gentil bizarrice ou de esfuzi-

ante alegria ficaria chocado com o contraste. Mas ele não achou nada

mau ter essa ocasião de aparecer em público diante das tribos de

Middemarch, os Tollers, os Hackbutts e todo o resto, que o olhavam de

cima como um aventureiro e viviam em estado de brutal ignorância so-

bre Dante - que desdenhavam seu sangue polonês, quando eles mes-

mos eram de uma raça muito necessitada de cruzamento. Plantou-se

num lugar de destaque, por perto do leiloeiro, com cada indicador num

bolso do colete e a cabeça jogada para trás, não ligando para se dirigir a
ninguém, embora houvesse sido cordialmente saudado como um

connaissor por Mr. Trumbull, o qual estava desfrutando do máximo de

atividade dos seus grandes dons.

E certamente, entre todos os homens cuja vocação requer que exi-

638

GEORGE ELIOT

bam. seu poder de oratória, o mais feliz é um próspero leiloeiro provin-

ciano que se deleita com seus próprios gracejos e se atribui conhecimen-

to enciclopédico. A certas pessoas, de sangue azedo e soturnas, talvez

causasse desagrado ter de insistir constantemente no mérito dos mais

diversos artigos, de descalçadeiras de botas a paisagens de Berghem;I

mas Mr. Borthrop Trumbull tinha nas veias um líquido benigno; era, por

natureza, um admirador, e gostaria de ter o próprio universo sob seu

martelo, sentindo que ele atingiria um valor mais alto com suas reco-

mendações.

Bastava-lhe por enquanto a mobília da sala de jantar de Mrs. Larcher.

Quando Will Ladislaw entrou, um segundo guarda-fogo, dado por ter

ficado esquecido em seu lugar, despertou subitamente o entusiasmo do

leiloeiro, por ele distribuído com base no eqüitativo princípio de louvar

mais as coisas que mais necessitassem de louvor. O guarda-fogo era de

aço polido, com a grade cheia de arcos e de beirada cortante.

"Bem, minhas senhoras," disse o leiloeiro, "devo chamar sua aten-

ção. Temos aqui um guarda-fogo que em qualquer outro leilão dificil-

mente seria oferecido sem preço mínimo, sendo, como posso dizer, pela

qualidade do aço e originalidade da forma, um tipo de coisa"- aqui Mr.

Trumbull baixou a voz, tornando-a meio anasalada, enquanto com um

dedo esquerdo marcava suas palavras - "que talvez não satisfaça ao

comum dos gostos. Pois permitam-me dizer-lhes que dentro em breve


este estilo de obra artesanal será o único em voga - meia coroa, foi o

que ouvi? muito obrigado - meia coroa, para começar, por este guarda-

fogo tão característico; e eu disponho de informação segura de que o

estilo antigo tem tido muita procura nas altas rodas. Três xelins - três e

seis pences - levante bem isto, Joseph! Vejam, senhoras, a pureza da

forma - não tenho nenhuma dúvida de que foi produzido no século

passado! Quatro xelins, Mr. Mawmsey? - quatro xelins."

"Não é coisa que eu gostasse de pôr na minha sala," disse Mrs.

Mawmsey, audivelmente, para advertência de seu atilado marido. "E

estranho-a na de Mrs. Larcher. Toda bendita cabeça de criança que ba-

tesse nisto seria cortada em duas, A beirada é como uma faca."

"Pura verdade," retrucou Mr. Trumbull, rapidamente, "e é utilíssimo

ter à mão um guarda-fogo que corte, se você tem uma tira de couro ou

um pedaço de corda para cortar e está sem faca: mais de um homem já

foi largado na forca por falta de uma faca para cortar a corda e arriá-lo.

Meus senhores, eis aqui um guarda-fogo que, se tiverem a desgraça de

Wicolaes Berghem (1620-1683), paisagista dinamarquês.

MIDDLEMARCH

639

se enforcar, há de os fazer descer sem perder tempo - com celeridade

espantosa - quatro e seis pences - cinco - cinco e seis pences - uma

coisa apropriada para um quarto de hóspedes com uma cama de pés

altos e uma visita um pouco ruim da cabeça - seis xelins - muito

obrigado, Mr. Clintup - vamos vender por seis xelins - vamos vender

- vendido!" O olhar do leiloeiro, que antes vasculhava ao redor, atento

com preternatural sensibilidade a todos os sinais de um lance, caiu aqui

no papel à sua frente, como sua voz também caiu num tom de indiferen-
te despacho quando ele disse: "Mr. Clintup. Cuide disto, Joseph."

"Vale a pena dar seis xelins para ter um guarda-fogo do qual sempre

se poderá dizer esta graçola," disse Mr. Clintup, rindo baixo, para se

justificar com seu vizinho mais próximo. Tímido, mas respeitado, ele era

dono de um viveiro de plantas, e temia que a audiência encarasse seu

lance como maluquice.

Joseph havia trazido, enquanto isso, uma bandeja cheia de peque-

nos artigos. "Agora, minhas senhoras," disse Mr. Trumbull, pegando um

deles, "esta bandeja contém um lote muito refinado - uma coleção de

miudezas para a mesa da sala de visitas - e as miudezas são a síntese

das coisas humanas - nada mais importante que as miudezas - (sim,

Mr. Ladislaw, sim, daqui a pouco) - mas passe a bandeja, Joseph -

estes bibelôs devem ser examinados, minhas senhoras. O que tenho na

mão é um invento bem engenhoso - uma espécie de enigma pitoresco,

como posso dizer: por um lado, vejam, parece uma caixinha portátil,

elegante, em forma de coração - para pôr no bolso; por outro, transfor-

ma-se numa esplêndida flor dobrada - num enfeite de mesa; e agora"

- Mr. Trumbull, causando sensação, deixou a flor cair e se abrir numa

série de folhas cordiformes - num livro de adivinhações! Nada menos

de quinhentas, impressas num primoroso vermelho. Meus senhores, se

eu tivesse menos consciência, não desejaria que oferecessem muito por

este lote - pois eu mesmo tenho um desejo por ele. O que melhor que

um bom enigma para promover o gáudio inocente e, se assim posso

dizer, a virtude? - é algo que obsta a toda linguagem profana, que liga

um homem ao convívio das mulheres mais refinadas. Somente este en-

genhoso artigo, sem a elegante caixa de dominós, o estojo de baralho

etc., justificaria um bom preço pelo lote. Levado no bolso, pode

tornar

um indivíduo bem-vindo em qualquer roda. Quatro xelins, senhor? -

quatro xelins por esta notável coleção de adivinhas com os et caeteras.

Eis aqui uma amostra: "Como se escreve grama, para fazê-la atrair as
borboletas? Resposta - grana." Ouviram bem? - borboletas - grama

-grana.  um divertimento que aguça o intelecto; é picante, tem o que

640

GEORGE EMOT

chamamos de sátira, e inteligência sem indecência. Quatro e seis pences

- cinco xelins."

A disputa desenvolveu-se com ardorosa rivalidade. Alguns lances

partiram de Mr. Bowyer, e eram de exasperar, pois ele não poderia honrá-

los, e queria apenas impedir outros homens de fazer bela figura. A cor-

rente arrastou até mesmo Mr. Horrock, mas sua entrega à opinião rei-

nante processou-se com tão pouco sacrifício de sua neutra expressão

que o lance talvez nem fosse detectado como dele, sem as imprecações

amistosas de Mr. Bambridge, que queria saber o que Horrock faria com

esta maldita porcaria de interesse somente para os donos de armarinhos

largados naquele estado de perdição que o próprio alquilador de cavalos

reconhecia tão cordialmente na maioria das existências terrenas. O lote

foi finalmente arrematado por um guinéti por Mr. Spilkins, um jovem

Bonitão das vizinhanças, imprudente com seu dinheiro e consciente da

sua falta de memória para os enigmas.

"Ora, Trumbull, assim não dá - você andou enfiando umas bugi-

gangas de velha no leilão," murmurou Mr. Toller, chegando perto do

leiloeiro. "Vamos com isto, porque eu quero ver as gravuras e tenho de

sair cedo."

"Imediatamente, Mr. Toller. Foi tão-só um ato de benevolência que

seu nobre coração aprovaria. Joseph! rápido com as gravuras - Lote

235. Agora, cavalheiros, os senhores que são connaissores hão de ver um

regalo. Aqui está uma gravura do Duque de Wellington rodeado por seu

estado-maior na Batalha de Waterloo; e, não obstante certos eventos


recentes que, por assim dizer, envolveram nosso grande Herói numa

nuvem, eu me atrevo a dizer - poi s- um homem da minha linha não se

deve deixar levar pelos ventos da política - que um mais belo tema -

do gênero moderno, pertencente à nossa época, aos nossos tempos, -

dificilmente o entendimento humano poderia conceber: os anjos sim,

talvez, mas os homens não, senhores, os homens não."

"Quem pintou isto?" disse Mr. Powderell, muito impressionado.

" uma prova de ensaio, Mr. Powderell - não se conhece o pintor,"

respondeu Trumbull, perdendo um pouco o fôlego nas últimas palavras,

após o que comprimiu os lábios e olhou à roda de si.

"Dou uma libra!" disse Mr. Powderell, em tom de resoluta emoção,

como a de um homem pronto a se atirar nas trincheiras. Fosse por medo

ou piedade, ninguém ofereceu preço mais alto que o dele.

Seguiram-se duas estampas holandesas pelas quais ansiava Mr. Toller,

que depois de as conseguir foi-se embora. Outras estampas, e depois

pinturas, foram vendidas a pessoas de destaque de Middemarch, que já

MIDI)LEMARCH

641

vinham com um desejo especial por elas, e a audiência se movimentou

num entra-e-saí mais ativo; alguns, tendo arrematado o que queriam, já

de partida, outros chegando agora ou voltando de uma rápida visita aos

comes e bebes, dispostos sob um toldo no gramado. Era este toldo que

Mr. Bambridge estava interessado em comprar, e freqüentemente ele

demonstrou deleitar-se a examiná-lo por dentro, como um antegosto da

posse. Da última vez em que voltava de lá foi visto a trazer consigo um

novo companheiro, um estranho para Mr. Trumbull e os demais, cuja

aparência, contudo, levava à suposição de que devia ser um parente do

alquilador - Mado aos prazeres" também. Seu bigodão, a postura ar


rogante, o modo como jogava as pernas tornavamno uma figura impo-

nente; mas seu terno preto, já bem puído nas beiradas, gerava a prejudi-

cial inferência de que ele não era capaz de se conceder tantos prazeres

como gostaria.

"Quem é que vem aí com você, Bam?" disse Mr. Horrock, de banda.

"Pergunte você mesmo," respondeu Mr. Bambridge. "Ele disse que

tinha acabado de chegar da estrada."

Mr. Horrock espiou para o desconhecido, que se apoiava para trás

em sua bengala e, com a outra mão, manejava um palito, olhando ao

derredor com uma certa inquietação, aparentemente devida ao silêncio

que as circunstâncias lhe impunham.

Lá pelas tantas foi trazida a Ceia em Emaús, para o imenso alívio de

W111, já tão cansado de tudo aquilo que recuara um pouco e se encostara

de ombro na parede, bem por trás do leiloeiro. Agora, quando chegava

para a frente outra vez, ele viu o ilustre desconhecido que, para sua

surpresa, o olhava insistentemente. Mas Will foi logo interpelado por

Mr. Trumbull.

"E então, Mr. Ladislaw, e então? Isto aqui lhe interessa como um

connaissor, penso eu.  um prazer," prosseguiu o leiloeiro com crescente

r, "ter um quadro como este para mostrar a tão seleto grupo de

as e cavalheiros - um quadro digno de qualquer preço para um

divíduo cujos meios estejam no nível de seu julgamento.  uma pintu-

da escola italiana - pelo celebrado Guydo, 1 o maior pintor do mundo,

principal dos Velhos Mestres, como eles são chamados - creio eu,

rque estavam além da maioria de nós em certas coisas - em posse de

redos hoje perdidos para o grosso da humanidade. Permitam-me di-

lhes, senhores, que eu já vi muitas pinturas dos Velhos Mestres, e

todas estão à altura desta - algumas são mais escuras do que tal-

usa itálico para mostrar que o leiloeiro pronuncia "Gaido," e não Guido.
642

GEORGE ELIOT

vez se aprecie, e seus temas não são familiares. Mas aqui temos um

Guydo - só a moldura já vale muitas libras - que qualquer senhora

pode orgulhar-se de pendurar em casa - e que também se adequaria ao

refeitório de uma instituição de caridade, se alguma das autoridades pre-

sentes quiser demonstrar sua munificência. Virar um pouco, meu senhor?

Pois não. Joseph, vire o quadro um pouco para Mr. Ladislaw - Mr.

Ladislaw, tendo estado no estrangeiro, entende o mérito dessas coisas,

como vêemf

Todos olharam para Will um instante, e ele, friamente, disse: "Cinco

libras." O leiloeiro protestou com a mais profunda energia:

"Ah! Mr. Ladislaw! só a moldura vale isto. Minhas senhoras e meus

senhores, pela honra da terra! Suponham que se descubra mais tarde

que uma jóia da arte esteve entre nós aqui nesta cidade, e ninguém em

Middemarch se deu conta disto. Cinco guinétis - cinco e sete xelins e

seis pences - cinco guinétis e dez xelins. Mais, minhas senhoras, mais!

 uma jóia, e já se permitiu que "não poucas jóias," como diz o poeta,

saíssem por um preço nominal só porque o público não entendia direito,

porque eram oferecidas em círculos onde havia - eu ia dizer pouca sen-

sibilidade, mas não! - Seis libras - seis guinétis - um Guydo de pri-

meira categoria saindo por seis guinétis - é um insulto à religião, mi-

nhas senhoras; afeta-nos a todos como cristãos, meus senhores, que um

tema como este seja arrematado por um preço tão baixo - seis libras e

dez - sete -"

A disputa era acirrada e Will continuou a participar, ciente de que

Mrs. BuIstrode tinha grande desejo pelo quadro e pensando que ele po-

deria chegar a oferecer até doze libras. Mas a obra lhe foi entregue por

dez guinétis, com o que ele abriu caminho em direção à porta do grama-
do e saiu. Como estava com calor e com sede, resolveu ir até o toldo,

onde não havia outros visitantes, para tomar um copo d"água: pediu-o à

mulher que lá atendia; mal ela o foi buscar, teve um instante de desprazer

ao ver entrar o flórido estranho que tinha ficado olhando para ele. Will

desconfiou que o homem fosse um parasita político, um daqueles inse-

tos de tipo inchado que uma ou duas vezes se considerara seu conhecido

por tê-lo ouvido falar sobre a questão da Reforma, e que talvez quisesse

contar uma novidade para ganhar um xelim. Sob esta luz sua pessoa,

que só de olhar, num dia de verão, já dava um pouco de calor, tornava-se

ainda mais desagradável; e Will, sentado de banda no braço de uma

cadeira de jardim, prudentemente desviou seu olhar do recém-chegado.

Mas isto pouco significava para o nosso velho conhecido Mr. Raffies,

que nunca hesitava em se lançar à observação indesejada, se o fazer

MIDDLEMARCH

643

conviesse a seus desígnios. Dando um ou dois passos até se pôr diant

de Will, ele disse de supetão em voz alta: "Desculpe-me, Mr. Ladisla-O

- mas o nome de sua mãe era Sarah Dunkirk?"

Will, pulando em pé, retrocedeu um pouco, franziu as sobrancelha,,

e, meio furioso, respondeu: "Sim, senhor, era. Mas o que isto lhe inte

ressa?"

Como bem típico da natureza de Will, a primeira fagulha solta era

uma resposta direta da pergunta e um desafio às conseqüências. Dizer

apenas e logo de saída "O que isto lhe interessa?" teria parecido uma

evasiva - como se ele ligasse para alguém que soubesse algo de sua

origem!

Raffies, por sua vez, não estava tão ansioso por um choque como o

ar ameaçador de Will dava a entender. O rapazinho magrela com sua


pele de moça parecia um gato-do-mato pronto a se atirar sobre ele. O

prazer de Mr. Raffies em atazanar os outros, nestas circunstâncias, foi

mantido em suspenso.

"Eu não quis ofendê-lo, meu caro senhor, não quis ofendê-lo! Sim-

plesmente eu me recordo de sua mãe - conhecia-a em garota. Mas o

senhor se parece é com seu pai. Tive o prazer de conhecê-lo também.

Seus pais estão vivos, Mr. Ladislaw?"

"Não!" berrou Will, na mesma atitude de antes.

"Seria um prazer prestar-lhe algum serviço, Mr. Ladislaw - seria

sim, por Júpiter! Espero encontrá-lo novamente."

Com o que Raffies, que às últimas palavras havia levantado o cha-

péu, virou girando numa perna para se afastar. Will seguiu-o por um

momento com os olhos e pôde ver que ele não regressava à sala do

leilão, mas parecia estar andando em direção à estrada. Por um instante

julgou-se um tolo por não deixar que o homem falasse mais; - mas

não! pensando bem, ele preferia passar sem um conhecimento provindo

de tal fonte.

No anoitecer desse dia, contudo, Raffies o abordou na rua e, pare-

cendo ter esquecido a aspereza de sua recepção prévia ou disposto a

vingá-la por uma familiaridade clemente, saudou-o ovialmente e se pôs

a caminhar a seu lado, logo comentando como a cidade e arredores eram

aprazíveis. Will suspeitou que o homem tivesse andado bebendo e só

pensava em como desembaraçar-se dele quando Raffies falou:

"Também estive no estrangeiro, Mr. Ladislaw - Ja vi o mundo - já

arranhei o meu francês. Foi em Boulogne que eu vi seu pai - que seme-

lhança extraordinária entre o senhor e ele, por Júpiter! boca - nariz -

à olhos - o cabelo repartido na testa deste jeito - um pouco à moda

644

GEORGE ELIOT
estrangeira. John Bull não produz muitos assim. Mas seu pai estava muito

doente quando o vi. Meu Deus! através das mãos dele quase se podia

enxergar. O senhor então era um garotinho. E ele - ficou bom?"

"Não," disse Will secamente.

"Ah! Bem! Muitas vezes me perguntei que fim levou sua mãe. Era

ainda uma moçoila quando fugiu da casa dos pais - uma moçoila de

espírito orgulhoso e, por Júpiter!, muito bonitinha. Eu sei a razão pela

qual ela fugiu," disse RafIles com uma piscadela, olhando Will de través.

"O senhor não sabe nada que a desonre," disse Will, já uma fúria ao

se virar para ele. Mas Mr. Raffies nessa hora não e-a sensível às variações

de aparência.

"Nada mesmo!" disse ele, balançando decididamente a cabeça. "Ela

é que era um pouco honrada demais para gostar dos pais - aí é que

está!" De novo, e lentamente, Raffles piscou os olhos. "Que Deus o

abençoe, eu sabia de tudo sobre eles - meio o que se pode chamar de

linha respeitável do roubo - uma casa de receptação em grande estilo

- não os antros e esquinas que há por aí - primeira classe. Loja muito

boa, de altos lucros, sem erro. Mas Sarah, por Deus, não devia saber de

nada - uma moça ousada - um pensionato distinto - própria para

esposa de um lorde - só que Archie Duncan, por despeito, porque ela

não quis saber de nada com ele, lhe pôs a culpa. E assim ela fugiu de

tudo aquilo. Eu, meu senhor, viajei para eles, de maneira decente -

com um alto salário. No começo nem ligaram para a fuga da moça -

gente devota, meu senhor, muito devota - e ela queria ir para o palco.

O filho ainda vivia na época, e a filha estava mal vista. Ora pois! cá

estamos nós no Blue Bull. Que lhe parece, Mr. Ladislaw, se entrássemos

para tomar qualquer coisa?"

"Não, não posso mais que lhe dizer boa-noite," disse Will, precipi-

tando-se por uma passagem que levava a Lowick Gate - quase corren-

do, de fato, para se ver livre do alcance de Raffies.


Caminhou muito tempo pela estrada de Lowick, distanciando-se da

cidade e feliz de estar sob estrelas, quando elas iluminaram o escuro.

Sentia-se como se lhe houvessem atirado imundícies em meio a gritos

de desprezo. E havia algo para confirmar as afirmações daquele sujeito

- sua mãe nunca lhe disse por que razão tinha fugido da família.

Pois bem! em que ele, Will Ladislaw, era pior, supondo-se que a

verdade sobre esta família fosse a mais hedionda? Sua mãe enfrentara

duros momentos, a fim de separar-se dela. Mas se os amigos de Dorothea

viessem a saber dessa história - se os Chettams soubessem - já teriam

uma base para dar às suas suspeitas, um motivo bem-vindo para

MIDDLEMARCH

645

considerá-lo indigno de aproximar-se dela. Eles, contudo, que suspei-

tassem o que bem quisessem, pois haveriam de descobrir-se em erro.

Haveriam de descobrir que o sangue que lhe corria nas veias era tão livre

de vestígios de inferioridade quanto o deles.

CAPÍTULO LXI

-lnconsistencies," answered Imlac, "cannot both be right,

but imputed to man they may both be true.""

- Rasselas.

(-Duas incoerências," respondeu Imlac, "não podem estar

certas ao mesmo tempo, mas imputadas ao homem ambas

talvez sejam verdadeiras.")


- Rasselas. 1

NA MESMA NOITE, quando Mr. Bulstrode retornou de uma viagem de

negócios a Brassing, a boa esposa encontrou-o já no vestíbulo e logo o

conduziu à sua sala íntima.

"Nicholas," disse ela, nele fixando ansiosamente os honestos olhos,

44 um homem muito desagradável esteve aqui a perguntar por você - e

eu fiquei muito abalada."

"Que tipo de homem, querida?" disse Mr. Bulstrode, já certo da te-

mível resposta.

"Um homem bigodudo, de cara vermelha e maneiras muito impu-

dentes. Garantiu que era um velho amigo seu e disse que você lamenta-

ria não estar com ele. Queria esperá-lo aqui, mas eu o aconselhei a

procurá-lo no Banco amanhã de manhã. Que descarado que era! - olhou

bem para mim e disse que seu amigo Nick dava sorte com esposas. Não

acredito que ele fosse embora, se o Blucher não arrebentasse a corrente

para vir pelo cascalho correndo - pois eu estava no jardim; e então eu

"Título pelo qual se tornou mais conhecido o livro The Choice of Lifé, or

the History of Rasselas,

Prince of Abíssinia, do poeta, crítico, ensaísta e lexicógrafo inglês Samuel

Johnson (1709-

1784).

MIDDLEMARCH

647

disse: " melhor o senhor se afastar - o cachorro é muito bravo e eu não

consigo detê-lo." Você realmente sabe alguma coisa de tal homem?"

"Acredito que eu saiba quem ele é, meu bem," disse Mr. BuIstrode,
em sua voz sob controle de hábito, "um desgraçado, um infeliz dissolu-

to a quem ajudei mais que devia, em dias idos. Contudo, presumo que

você não será mais incomodada por ele. Provavelmente ele virá ao Ban-

co - para pedir, sem dúvida."

Nada mais foi dito sobre o assunto até o dia seguinte, quando Mr.

BuIstrode, tendo voltado da cidade, se vestia para o jantar. Sua esposa,

sem saber ao certo se ele já estava em casa, olhou em seu quarto de

vestir e viu-o sem paletó e gravata, com um braço apoiado numa gaveta

da cômoda e olhando absortamente para o chão. Assustado e nervoso

ele ergueu os olhos quando ela entrou.

"Você parece que está passando mal, Nicholas. Há algum problema?"

"Estou com muita dor de cabeça," disse Mr. Bulstrode; era tanta a

freqüência com que ele assim se queixava que sua esposa já estava pre-

disposta a acreditar nesta causa de depressão.

"Sente-se e deixe-me borrifá-la com vinagre."

Se fisicamente Mr. BuIstrode não queria o vinagre, moralmente a

afetuosa atenção o acalmou. Embora sempre polido, era seu hábito re-

ceber tais serviços com marital frieza, como obrigação da mulher. Hoje

porém, enquanto ela se inclinava sobre seu corpo, ele disse: "Harríet,

voce é muito boa," num tom que para ela tinha alguma coisa de novo;

que novidade era, não sabia exatamente, mas sua solicitude de mulher

verteu-se na repentina idéia de que ele poderia estar com uma doença

incubada.

"Alguma coisa o deixou preocupado?" perguntou. "Aquele homem

foi procurá-lo no Banco?"

"Foi; e tal como eu havia suposto.  um homem que, em certa épo-

ca, poderia até ter-se dado bem. Contudo, afundou na embriaguez e na

devassidão."

"Ele já foi embora de vez?" disse Mrs. BuIstrode, ansiosa; por certas

razões ela se refreou porém de acrescentar: "Que coisa mais desagradá-

vel, ouvi-lo a se íntitular seu amigo!" Não gostaria de dizer nesse mo-
mento nada que implicasse sua habitual consciência de que as antigas

relações do marido não estavam no mesmo nível que as dela. Não que

soubesse muito sobre tais relações. Que seu marido havia sido de início

empregado de um banco, que depois tinha partido para fazer negócios

na praça, como ele mesmo dizia, e ganho uma fortuna antes dos trinta e

três anos, que se casara com uma viúva muito mais velha que ele - uma

648

GEORGE ELIOT

Dissidente e, sob outros aspectos, provavelmente dessa posição socia

desvantajosa em geral perceptível numa primeira esposa quando o jul

gamento desapaixonado da segunda a examina - era quase tudo o que

ela se interessara em saber, fora os vislumbres dados por Mr. Bulstrode

em ocasionais narrativas, de suas tendências religiosas na mocidade, sua

inclinação para ser um pregador e sua participação em projetos missio

nários e filantrópicos. Ela acreditava nele como um homem excelente

cuja piedade assumia singular eminência por partir de um leigo, cuja

influência lhe orientara para a seriedade a mente e cujo quinhão de bens

perecíveis havia constituído o meio de elevá-la em sua própria posição

Mas ela também se comprazia em pensar que em todos os sentidos fora

bom para Mr. BuIstrode ter conquistado a mão de Harriet Vincy; cuja

família era ótima à luz de Middemarch - uma luz seguramente melhor

que a lançada nas vias públicas ou nos pátios das capelas dissidentes de

Londres. A mente provinciana não reformada desconfiava de Londres; e,

enquanto a verdadeira religião salvava por toda parte, a honesta Mrs.

BuIstrode estava convencida de que ser salva na Igreja era mais respeitá-

vel. Ela queria tanto ignorar, diante dos outros, que seu marido havia

sido um Não-conformista em Londres, que preferia manter o assunto de

lado até mesmo quando conversava com ele. E ele sabia muito bem
disto; na verdade, sob alguns aspectos tinha até certo medo desta espo-

sa engenhosa, cuja piedade imitativa e cuja mundanidade inata eram

igualmente sinceras, que não tinha do que se envergonhar e com quem

ele se casara por uma inclinação profunda e ainda subsistente. Mas seus

temores eram bem típicos de um homem que se preocupa em manter

sua supremacia reconhecida: a perda da alta estima da esposa, como de

qualquer um que não o odiasse claramente por inimizade à verdade,

seria para ele como o princípio da morte. Quando ela disse:

"Ele já foi embora de vez?"

"Oh, creio que sim," ele respondeu com um esforço para conferir a

seu tom o máximo possível de sóbria despreocupação.

Mas na verdade Mr. BuIstrode andava muito longe de um estado de

tranqüilidade na crença. Na conversa no Banco, Raffies tinha deixado

patente que sua necessidade de atormentar era tão forte quanto qual-

quer cobiça. Dissera francamente que se desviara de seu caminho ape-

nas para vir a Middemarch indagar por ele e ver se lhe agradaria morar

na região. Naturalmente tivera uns débitos a mais a pagar, mas coisa

pouca, e das duzentas libras ainda lhe restavam algumas: mais vinte e

cinco, por ora, e só, bastar-lhe-iam para despachar-se dali. O que ele

mais tinha querido era ver seu amigo Nick e família, e saber tudo sobre

MIDDLEMARCH

649

a prosperidade de um homem a quem era tão ligado. Dentro em breve

talvez voltasse para uma permanência maior. Desta vez Raffies declina-

va de ser "visto abandonando o local," segundo sua própria expressão,

- declinava de partir de Middemarch sob os olhos de BuIstrode. Sua

idéia era pegar no dia seguinte a diligência - se resolvesse mesmo.

BuIstrode se sentiu sem saída. Nem ameaças nem afagos surtiriam


efeito: nem com algum medo persistente nem com alguma promessa ele

podia contar. Pelo contrário, bateu-lhe no coração a fria certeza de que

Raffies - a não ser que a providência mandasse a morte impedi-lo -

regressaria sem muita tardança a Middemarch. E esta certeza era um

terror.

Não que ele estivesse em perigo de punição legal ou penúria: só

estava em perigo de ver expostos ao julgamento dos vizinhos e à percep-

ção lastimosa de sua esposa certos fatos de sua vida pregressa que o

tornariam um alvo de desprezo e um opróbio para a religião à qual, tão

diligentemente, ele havia aderido. O terror de ser julgado aguça a me-

mória: lança um clarão inevitável sobre o passado de há muito não per-

corrido e que habitualmente só em frases genéricas é recordado. Mesmo

sem memória, a vida é limitada no ser por uma zona de dependência em

crescimento e declínio; mas a memória intensa força um homem a assu-

mir seu passado repreensível. Corri a memória em atividade como uma

ferida reaberta, o passado de um homem não é simplesmente uma his-

tória morta, uma exausta preparação do presente: não é um erro que

pelo arrependimento se tenha desprendido da vida: ainda é parte palpi-

tante dele, que traz os tremores e a ardência e o gosto amargo de uma

merecida vergonha.

Na segunda vida de BuIstrode emergira agora seu passado, cujos

prazeres pareciam no entanto ter perdido a qualidade. Noite e dia, sem

interrupção além do breve sono, que só entretece num presente fantás-

tico o retrospecto e o medo, ele sentia as cenas de sua vida primeira

interpondo-se a ele e tudo o mais, tão obstinadamente como, quando

olhamos pela janela de um quarto iluminado, os objetos aos quais da-

mos as costas ainda estão diante de nós, em lugar da relva e das árvores.

Os eventos sucessivos, internos e externos, lá estavam numa mesma

visão: embora cada um pudesse ser repisado a seu turno, o restante

ainda mantinha poder sobre a consciência.

Mais uma vez ele se viu quando ainda jovem bancário, agradável
como pessoa e tão esperto com os números quanto fluente em seu dis-

curso e che ado a uma definição teológica: membro eminente embora

moço de uma igreja calvinista dissidente em Highbury, com notável ex-

650

GEORGE ELIOT

periência na convicção do pecado, no sentido do perdão. De novo ele se

ouvia chamado de Irmão Bulstrode em reuniões de oração, falando em

assembléias religiosas, pregando em residências particulares. De novo

se sentia a pensar no sacedórcio como sua possível vocação e a inclinar-

se para o trabalho missionário. Foi o tempo mais feliz de sua vida: o

ponto no qual ele escolheria agora despertar, tomando o resto por so-

nho. As pessoas em meio às quais se distinguia o Irmão Bulstrode, se

eram muito poucas, estavam-lhe porém muito próximas, e aumentavam

sua satisfação ainda mais; seu poder se estendia por um espaço restrito,

cujo efeito o atingia entretanto com intensidade maior. Sem esforço ele

acreditava na singular ação da graça em seu íntimo e nos sinais de que

Deus o destinara a uma instrumentalidade especial.

Veio então o momento de transição; com a impressão de promoção

que o possuiu quando ele, um órfão educado numa escola comercial de

caridade, foi convidado a uma bela vivenda pertencente a Mr. Dunkirk,

o homem mais rico da congregação. Logo ele aí se tornou íntimo, respei-

tado por sua religiosidade pela dona da casa, notado por sua capacidade

pelo marido, cuja riqueza provinha de um florescente negócio no centro

e na zona leste de Londres. Formou-se assim um novo rumo para sua

ambição, que dirigiu suas perspectivas de "instrumentalidade" para a

união dos apurados dons religiosos com os negócios bem sucedidos.

Uma clara orientação externa apareceu dentro em breve: um ho-


mem de confiança e sócio minoritário morreu, e ao chefe ninguém pa-

receu mais indicado para preencher o lugar, cuja vacância era grave-

mente sentida, do que seu jovem amigo BuIstrode, se ele quisesse ser

o contador de confiança. O convite foi aceito. O negócio era uma casa

de penhores das mais grandiosas, quer pela extensão, quer pelos lu-

cros; e em pouco tempo de intimidade com ela Bulstrode ficou ciente

de que uma fonte de lucro grandioso era a fácil aceitação de quaisquer

bens oferecidos sem estrita averiguação da procedência. Mas havia uma

filial na zona chique, e nenhum sinal de coisa reles ou suja que pudes-

se causar vergonha.

Lembrava-se ele dos seus primeiros momentos de hesitação. Mo-

mentos íntimos, repletos de argumentos, alguns dos quais tomavam for-

ma de prece. O negócio, bem estabelecido, tinha velhas raízes; uma coi-

sa não é abrir uma taberna com decoração ostentosa, outra aceitar in-

vestir numa que já existe? Os lucros extraídos de almas perdidas - onde

traçar a linha na qual eles começam nas transações humanas? Até para

Deus, não foi esta a maneira de salvar Seus eleitos? "Sabeis," - o jo-

vem BuIstrode havia dito então, como agora dizia o BuIstrode mais ve-

MIDDLEMARCH

651

lho, - "sabeis que minha alma se assenta distante de tais coisas - que

a todas vejo como ferramentas para cuidar do Vosso jardim, ganho aqui

e ali ao descampado."

Metáforas e precedentes não faltavam; nem faltavam peculiares ex-

periências espirituais que por fim fizeram a retenção daquele emprego

parecer um serviço exigido dele: a perspectiva de uma fortuna já se abri-

ra a seus olhos, e a hesitação de BuIstrode permaneceu no plano íntimo.


Mr. Dunkirk nunca esperou que chegasse a haver hesitação: nunca ima-

ginou que os negócios tivessem alguma relação com a via da salvação. E

a verdade é que BuIstrode se viu levando duas vidas distintas; sua ativi-

dade religiosa não podia ser incompatível com seu trabalho, desde que

ele mesmo se convenceu a não sentir esta incompatibilidade.

Mentalmente assediado mais uma vez por seu passado, BuIstrode

tinha as mesmas desculpas - os anos, com efeito, haviam-nas perpetua-

mente fiado numa intricada espessura, como massas de teia de aranha,

amortecendo a sensibilidade moral; ou melhor, à medida que a idade

deixava o egoísmo mais ávido porém menos capaz de fruir, sua alma se

tornava mais saturada da crença de que ele fazia tudo por amor a Deus,

mantendo-se pessoalmente indiferente a tudo. Entretanto - se ele pu-

desse retornar àquele ponto distante de sua mocidade pobre - teria

escolhido ser, sem dúvida, um missionário.

Mas o encadeamento de causas em cujo interior ele se trancara teve

seguimento. Houve muitos problemas na bela vivenda de Highbury Anos

antes, a única filha tinha fugido de casa, afrontado seus pais e virado

atriz; o filho único por sua vez morreu, e depois de algum tempo Mr.

Dunkirk morreu também. A esposa, mulher simples e devota, deixada

com toda a riqueza das transaçoes magníficas, cuja exata natureza ela

nunca soube, acostumara-se a acreditar em BuIstrode e a inocentemente

adorá-lo, como as mulheres muitas vezes adoram seu padre ou seu mi-

nistro "feito homem." Era natural que, passado certo tempo, a idéia de

casamento se colocasse entre os dois. Mas Mrs. Dunkirk tinha remorsos

e anseios por sua filha, de há muito dada por perdida tanto para Deus

quanto para os pais. Sabia-se que a filha se casara, mas ela tinha sumido

completamente de vista. A mãe, perdido seu filho, imaginou um neto, e

por dupla razão quis reaver sua filha. Se ela fosse encontrada, haveria

um canal para os bens - talvez bem largo, com disposições para vários

netos. Antes de Mrs. Dunkirk se casar novamente, esforços para encontrá-

la deveriam ser feitos. BuIstrode concordou; mas, após tentativas por


anúncios e outros meios possíveis, a mãe acreditou que a filha não seria

encontrada, e consentiu em casar-se sem reserva de bens.

652

GEORGE ELIOT

A filha foi encontrada; mas só um homem, além de BuIstrode, sabia

disto, e foi pago para manter silêncio e sair de perto.

Eis aí o mero fato que agora BuIstrode era forçado a ver no rígido

contorno com o qual os atos se apresentam aos circunstantes. Mas para

ele mesmo, nesse tempo distante, e mesmo agora na ardente memória,

o fato se fragmentava em pequenas seqüências, cada qual justificada ao

surgir por raciocínios que pareciam prová -la certa. A conduta de Bulstrode

naquela época, pensava ele, tinha sido sancionada por providências no-

táveis, que pareciam indicar-lhe o caminho para ele ser o agente a fazer

bom uso de uma grande fortuna, livrando-a de perversão. Sobrevieram a

morte e outras disposições surpreendentes, como a confiança feminina,

e BuIstrode poderia ter adotado as palavras de Cromwell - "Chamas a

isto de meros acontecimentos? Que o Senhor tenha piedade de ti!" Os

acontecimentos eram comparativamente banais, mas a condição essen-

cial lá estava - qual seja, eram todos favoráveis a seus próprios fins.

Era-lhe fácil estabelecer o que dele era devido aos outros, procurando

saber quais as intenções de Deus a seu próprio respeito. Estaria

porventura a serviço de Deus que esta fortuna, em qualquer proporção

considerável, fosse parar com umajovem mulher e seu marido, que eram

dados às ocupações mais ligeiras e poderiam esbanjá-la em trivialidades

pelo estrangeiro - pessoas que pareciam estar à margem da via das

providências notáveis? Buistrode nunca se havia dito de antemão: "A

filha não será encontrada" - não obstante, quando chegou o momento,

manteve-lhe a existência oculta; e, quando outros momentos se segui-


ram, acalmou a mãe consolando-a com a probabilidade de que a desditada

jovem já não existisse.

Havia horas em que BuIstrode sentia que sua ação era incorreta; ma

como poderia voltar atrás? Submetia-se a exames de consciência, consi

derava-se desprezível, agarrava-se com a redenção e prosseguia em su

trajetória de instrumentalidade. Cinco anos mais tarde, de novo a Morte

sobreveio para alargar seu caminho ao levar-lhe a,esposa. Pouco a pouco

ele retirou seu capital, mas não fez os sacrifícios necessários para encer

rar o negócio, que ainda foi conduzido por treze anos, antes de final

mente vir abaixo. Enquanto isso Nicholas BuIstrode havia usado discre

tamente suas cem mil libras, e sólida e provincianamente se tornav

importante - um banqueiro, um homem da Igreja, um benfeitor públi

co; e também sócio de empreendimentos comerciais em que sua capaci

dade se voltava para a economia em matérias-primas, como no caso do

corantes que estragaram a seda de Mr. Vincy. E agora, quando esta rés

peitabilidade já se mantinha incólume há quase trinta anos - quand

MIDDLEMARCH

653

tudo o que a precedia já estava entorpecido na consciência - seu passa-

do assomava e lhe inundava o pensamento, como se com a terrivel

irrupção de uma sensação nova a esmagar a frágil criatura.

Entretanto, em sua conversa com Raffies, ele aprendeu alguma coisa

importante, uma coisa que entrou ativamente na luta dos seus anseios e

terrores. Ali, pensou, havia uma abertura para a libertação espiritual,

talvez para a material também.

A libertação de tipo espiritual era para ele uma necessidade legíti-

ma. Pode haver grandes hipócritas que conscientemente fingem crenças

e emoções só para enganar o mundo, mas BuIstrode não era um deles.


Era simplesmente um homem cujos desejos haviam sido mais fortes do

que suas crenças teóricas, e que gradualmente explicara a gratificação de

seus desejos em concordância satisfatória com tais crenças. Se isto for

hipocrisia, é um processo que eventualmente se mostra em todos nós,

seja qual for a nossa fé e quer acreditemos na futura perfeição de nossa

raça ou na última data fixada para o fim do mundo; quer consideremos a

Terra um ninho em decomposição para uns restos salvos, que nos in

cluem, ou tenhamos uma crença apaixonada na solidariedade entre os

homens.

O serviço que ele podia prestar à causa da religião tinha sido vida

afora o motivo que alegava a si mesmo para sua escolha no agir: o moti-

vo ao qual nas suas preces ele dera vazão. Quem usaria dinheiro e posi-

ção social melhor do que ele tencionava fazer? Quem poderia suplantá-

lo na execração de si mesmo e na exaltação da causa de Deus? E para

Mr. BuIstrode a causa de Deus era uma coisa distinta da sua própria

retidão de conduta: ela impunha uma discriminação dos inimigos de

Deus, que eram para ser usados meramente como instrumentos e aos

quais também seria bom, se possível, manter sem dinheiro e a conse-

qüente influência. De igual modo, investimentos lucrativos, em negó-

cios onde o poder do príncipe deste mundo mostrava seus mais ativos

engenhos, tornavam-se santificados por uma correta aplicação dos lu-

cros em mãos do servo de Deus.

Este raciocínio implícito essencialmente não é mais peculiar à convic-

ção evangélica do que o uso de frases amplas por motivos estreitos é pe-

culiar aos ingleses. Não há doutrina geral que não seja capaz de corroer

nossa moralidade, se irrefreada pelo hábito bem sedimentado de um sen-

timento de companheirismo direto com cada companheiro de per si.

Mas um homem que acredita em algo mais que sua cobiça necessaria-

mente tem uma consciência ou padrão a que de certo modo se adapta, O

padrão de BuIstrode havia sido sua dedicação aos serviços pela causa de
654

GEORGE ELIOT

Deus: "Sou um reles pecador, um vaso a ser consagrado pelo uso - mas

usai-me!" - era o molde no qual ele havia comprimido sua imensa ne-

cessidade de ser dominador e importante. E chegara agora um momento

em que este molde parecia em perigo de ser quebrado e abandonado de

todo.

Que seria se os atos com os quais se reconciliara, porque eles o ti-

nham feito um instrumento mais forte da divina glória, viessem a se

tornar motivo de chacota e uma ofuscação desta glória? Se tal fosse o

ditame da Providência, ele seria expulso do templo como alguém que

houvesse trazido oferendas impuras.

De há muito ele se derramava em expressões de arrependimento.

Mas hoje surgira um arrependimento de sabor mais amargo, e uma amea-

çadora Providência instava-o a um tipo de expiação que não era simples-

mente uma transação doutrinária. O tribunal divino tinha mudado de

aspecto; a auto-humilhação já não bastava, ele devia fazer uma repara-

ção com as próprias mãos. Era realmente diante de seu Deus que

BuIstrode estava a ponto de tentar a reparação que se mostrava possí-

vel: um grande terror já se apossara de sua constituição susceptível, e a

causticante aproximação da vergonha forjara-lhe uma nova necessidade

espiritual. Dia e noite, enquanto o passado recorrente e ameaçador ia

criando uma consciência em seu intimo, ele pensava em por que meios

poderia recuperar confiança e paz - por que sacrifício poderia agüentar

as bordoadas. Nesses momentos de terror, sua crença era que, se espon-

taneamente ele fizesse alguma coisa correta, Deus o livraria das conse-

qüências de sua má ação. Pois a religião só pode mudar quando as emo-

ções que a preenchem são mudadas; e a religião do medo pessoal per-

manece quase no nível do selvagem.


Ele tinha visto Raffies realmente partir na diligência de Brassing, o

que era um alivio temporário; o que afastava a pressão do terror imedia-

to, mas não punha termo ao conflito espiritual e à necessidade de obter

proteção. Por fim chegou a uma decisão difícil e escreveu uma carta a

W111 Ladislaw, solicitando-lhe que viesse ao Arvoredo essa noite, para

uma conversa em particular, às nove horas. O convite não causou sur-

presa a Will, que o associou a algumas novas idéias sobre o "Pioneiro";

mas ele, ao ser levado ao gabinete de Mr. BuIstrode, se impressionou

com a dorida e exausta expressão no rosto do banqueiro, e já ia dizendo:

"O senhor está doente?" quando, contendo-se em sua impetuosidade,

perguntou somente por Mrs. BuIstrode, e se ela ficara satisfeita com o

quadro que lhe fora comprado.

"Está muito satisfeita sim, obrigado; ela saiu com as filhas agora à

MIDDLEMARCH

655

noite. E eu lhe pedi que aqui viesse, Mr. Ladislaw, porque desejo fazer-

lhe uma comunicação de natureza muito particular - sagradamente con-

fidencial, diria eu mesmo. Nada, ouso crer, jamais esteve tão longe dos

seus pensamentos quanto a existência de importantes vínculos no pas-

sado que poderiam ligar sua história à minha."

Wili sentiu uma espécie de choque elétrico. já se achava num estado

de susceptibilidade aguçada e agitação mal contida, a propósito de vín-

culos no passado, e seus pressentimentos não eram bons. Tudo se asse-

melhava às flutuações de um sonho - como se a ação iniciada por aque-

le desconhecido loquaz e inchado fosse levada agora avante por este

espécime de respeitabilidade, com seu ar enfermiço e os olhos baços,

cujo tom controlado e fluente formalismo ao falar foram nesse momento

quase tão repulsivos para ele quanto seu lembrado contraste. Com
marcada mudança de coloração, respondeu:

"Não, de fato, nada."

"O senhor tem diante de si, Mr. Ladislaw, um homem muito abala-

do. Mas, não fosse o que a consciência me exige e a certeza de achar-me

em julgamento por Aquele que não vê como os homens, não me acharia

eu na compulsão de fazer a revelação que constitui o motivo de lhe ter

solicitado vir aqui esta noite. No que tange a leis humanas, não há direi-

tos que o senhor tenha a reclamar-me."

Will ficou ainda mais incomodado do que surpreso. Mr. BuIstrode,

tendo feito uma pausa, apoiava numa das mãos a cabeça e olhava para o

chão. Mas acabou por fixar em Will seu olhar perscrutador e dizer:

"Vim a saber que o nome de sua mãe era Sarah Dunkirk, que ela

fugiu da casa dos pais para aderir ao teatro e, também, que seu pai em

certa época foi muito castigado por doenças. Posso perguntar-lhe se o

senhor confirma estas informações?"

"Sim, todas são verdadeiras," disse Will, impressionado com a or-

dem na qual era feita uma inquirição que seria de se esperar houvesse

antecedido as primeiras insinuações do banqueiro. Mas Mr. BuIstrode

seguia nessa noite a ordem das suas emoçoes; não lhe restavam dúvidas

de que a oportunidade de reparação tinha chegado, e um impulso

irresistível o arrastava à expressão penitente com a qual ele tentava afas-

tar o castigo.

"Sabe o senhor de pormenores da família de sua mãe?"

"Não; ela nunca gostava de falar da família. Era uma mulher muito

honrada e generosa," disse Will, já meio zangado.

"Não tenho nada a alegar contra ela. Não será que alguma vez ela

lhe falou da mãe dela?"

656

GEORGE ELIOT
"Ouvi-a dizer que ela pensava que a mãe não sabia a razão de sua

fuga. Dizia "minha mãe, coitada," num tom de pena."

"Esta mãe tornou-se minha esposa," disse BuIstrode e, fazendo uma

pausa, acrescentou: "O senhor tem um direito sobre mim, Mr. Ladislaw:

como eu disse antes, não um direito legal, mas um que minha consciên-

cia reconhece. Tornei-me rico por este casamento - algo que provavel-

mente não teria ocorrido - e certamente não na mesma medida - se

sua avó pudesse ter descoberto a filha dela. Filha que, suponho, já não

vive mais."

"Não," disse W111, tomado por desconfiança e repugnãoncia tão fortes

que, sem saber direito o que fazia, pegou seu chapéu no chão e se levan-

tou. Rejeitar o parentesco revelado era o impulso que o movia.

"Sente -se, Mr. Ladislaw, por favor," disse BuIstrode, ansiosamente.

"A subitaneidade da descoberta deixa-o sem dúvida sobressaltado. Mas

rogo que tenha paciência com alguém que já se curvou ao sofrimento na

alma."

Will tornou a sentar-se, sentindo certa pena, mesclada de desprezo,

por esta humilhação voluntária de um idoso.

" meu desejo, Mr. Ladislaw, fazer reparações pela privação sucedi-

da a sua mãe. Sei que o senhor não tem fortuna e desejo dotá-lo adequa-

damente de fundos que provavelmente já seriam seus, se sua avó esti-

vesse certa da existência de sua mãe e fosse capaz de encontrá-la."

Mr. BuIstrode interrompeu-se. Sentia-se a representar um notável

ato de escrupulosidade, no julgamento de seu auditor, e um ato de peni-

tência, aos olhos de Deus. Não dispunha de pistas sobre o estado de

espírito de Will Ladislaw, magoado ainda com as claras alusões de Raffies,

e com sua natural rapidez de construção estimulada pela expectativa de

descobertas que ele teria de bom grado esconjurado de regresso às tre-

vas. Por vários momentos Will não deu resposta, até que Mr. BuIstrode,

o qual ao fim de seu discurso lançara os olhos no chão, agora voltasse a


erguê-los com um relance perquiridor a que Will correspondeu plena-

mente, dizendo:

"Suponho que o senhor soubesse da existência de minha mãe, e

onde ela poderia ser encontrada."

BuIstrode se encolheu todo - com um tremor que era visível em

suas mãos e no rosto. Estava totalmente despreparado para ter suas

propostas recebidas assim, ou para se ver instado a revelar mais do que

ele mesmo havia previamente decidido ser necessário. Mas, não ousan-

do dizer no momento uma mentira, de súbito se sentiu perdido no terre-

no que havia palmilhado com relativa segurança antes.

MIDDLEMARCH

657

"Não hei de negar que a conjectura está certa," respondeu com a voz

em falsete. "E desejo fazer uma reparação ao senhor, por ser a única

pessoa ainda viva que sofreu por minha causa uma perda. Confio em

que entenda meu propósito, Mr. Ladislaw, que se reporta a direitos mais

altos que os simplesmente humanos e, como eu já disse, é totalmente

independente de qualquer imposição legal. Estou pronto a reduzir meus

próprios recursos e as perspectivas de minha família comprometendo-

me a conceder-lhe quinhentas libras por ano, durante toda a minha vida,

e a deixar-lhe um capital proporcional ao morrer - aliás, a fazer ainda

mais, se mais for definitivamente necessário a qualquer louvável projeto

de sua parte." Mr. BuIstrode descera aos pormenores na expectativa de

que estes agissem com eficácia sobre Ladislaw, fundindo em agradecida

aceitação outros sentimentos.

Mas Will se mostrava o mais intratável possível, com os dedos nos

bolsos do colete e o beiço espichado. Nem um pouco comovido, disse

com firmeza:
"Antes de eu dar qualquer resposta a seu oferecimento, devo pedir-

lhe, Mr. BuIstrode, que me responda por seu turno a uma ou duas per-

guntas. O senhor estava ligado ao negócio pelo qual a fortuna de que

fala foi a princípio feita?"

"Raffies contou-lhe tudo," foi o que BuIstrode pensou. Como pode-

ria negar-se a responder, se ele mesmo havia antecipado o que gerou a

pergunta? Respondeu pois: "Sim."

"E este negócio era - ou não - totalmente desonesto - ou me-

lhor, um negócio que, se sua natureza fosse tornada pública, poderia

incluir os que se ligavam a ele na mesma categoria dos ladrões e crimi-

nosos?"

Havia no tom de Will uma amargura cortante: tanto quanto pudes-

se, ele estava decidido a esclarecer a questão.

BuIstrode enrubesceu com irreprimível raiva. Preparara-se para uma

cena em que teria de se humilhar, mas seu intenso orgulho e seu hábito

de supremacia antepuseram-se à penitência, e até ao medo, quando este

jovem, a quem pretendia ajudar, se virou para ele com um ar de juiz.

"O negócio, meu senhor, foi estabelecido antes de eu me ligar a ele;

não lhe cabe instituir uma inquirição deste tipo," respondeu sem erguer

a voz, mas falando como quem desafia, e rápido.

"Cabe-me sim," disse Will, levantando-se de novo com seu chapéu

na mão. "Cabe-me de todo fazer estas perguntas, já que tenho de deci-

dir se hei de entrar em transações com o senhor e aceitar seu dinheiro.

Minha honra intacta é importante para mim.  importante para mim

658

GEORGE ELIOT

não ter nódoas em meu nascimento e família. Mas agora eu descubro

que há uma nódoa contra a qual nada posso. Minha mãe, que a sentiu,
tentou manter-se livre dela tanto quanto pôde, e o mesmo farei eu. Pode

guardar seu dinheiro duvidoso. Se eu tivesse uma fortuna, de bom grado

a daria em pagamento a alguém capaz de refutar o que o senhor me

contou. Tenho de agradecer-lhe é por ter guardado o dinheiro até agora,

quando eu posso recusá-lo. O sentimento de ser um cavalheiro não deve

jamais abandonar um homem. Boa-noite, meu senhor."

BuIstrode ia falar, mas Will, com resoluta rapidez, saiu num instante

da sala, e no instante seguinte a porta do vestíbulo já se fechava atrás

dele. Estava por demais possuído por uma rebeldia exaltada, contra a

herança dessa mancha cujo conhecimento lhe impunham, para se pergun-

tar no momento se não tinha sido duro no seu proceder com BuIstrode -

muito impiedoso e arrogante para com um homem de sessenta anos, que

se dava a esforços de reparação quando o tempo já os tornara inúteis.

Ninguém mais, ouvindo a conversa, poderia entender perfeitamente

a impetuosidade da repulsa de Will ou o amargor de suas palavras. Nin-

guém senão ele sabia como tudo o que se ligava ao sentimento de sua

dignidade tinha reflexos imediatos em sua relação com Dorothea e a

maneira como Mr. Casaubon o tratara. Na torrente de impulsos com que

rechaçara a oferta de BuIstrode, mesclava-se a impressão de que sempre

lhe seria impossível comunicar a Dorothea que ele a havia aceitado.

Quanto a BuIstrode - ele teve uma reação violenta, depois de Will

sair, e chorou como uma mulher. Era a primeira vez que enfrentava uma

expressão ostensiva de desprezo por parte de algum homem superior a

Raffies; e, com este desprezo a lhe correr no sangue como um veneno, já

não havia consolo que lhe bastasse. Mas o alívio do choro teve de ser

controlado. Sua esposa e as filhas logo chegaram em casa, de volta de

uma palestra de um missionário no Oriente, e lamentaram muito papai

não ter ouvido, em primeira mão, as coisas interessantes que elas tenta-

vam repetir para ele.

Talvez, em meio a tantos pensamentos ocultos, o único a bafejar

mais consolo fosse o de que Will Ladislaw, ao menos, provavelmente


não iria publicar o que ocorrera essa noite.

CAPÍTULo LXII

"He was a squyer of lowe degre,

That loved the king"s daughter of Hungríe."

- Old Romance.

€"Era um homem de baixa companhia,

Que amava a filha do rei da Hungria.")

- Velha romança.

TODA A VONTADE de Will Ladislaw concentrava-se agora em estar mais

uma vez com Dorothea e, incontinente, partir de Middemarch. Na ma-

nhã seguinte à sua agitada cena com BuIstrode, escreveu-lhe uma breve

carta, dizendo que várias causas o haviam detido na região mais do que

ele esperava, e pedindo permissão para visitá-la de novo em Lowick, na

hora que ela marcasse para o dia mais próximo possível, já que ele tinha

pressa em partir, mas não desejava fazê-lo senão depois de recebido

para uma conversa com ela. Deixou a carta na agência, ordenando ao

mensageiro que a levasse a Lowick Manor e esperasse resposta.

Ladislaw se sentia muito sem jeito por estar propondo novas despe-

didas. Sua visita de adeusjá fora feita em presença de Sirjames Chettam,

e como definitiva comunicada até ao mordomo. Realmente é penoso

para a dignidade de um homem que ele reapareça quando não mais es-

perado: há pathos num primeiro adeus, mas a volta para um segundo

propicia um preâmbulo à comédia, e era mesmo possível que já houves-

se uma maldosa zombaria ao redor sobre os motivos por que Will se

atardava. Ainda assim, era mais satisfatório no todo, para seus senti-
mentos, usar o meio mais direto de procurar estar com Dorothea do que

recorrer a um estratagema que pudesse dar ar casual a um encontro que,

660

GEORGE ELIOT

por seu desejo, seria bom ela entender que ele queria muito. Quando se

despedira dela, antes, ainda estava na ignorância de fatos que conferiam

novo aspecto à relação entre eles e tornavam sua separação mais absolu

ta do que ele então acreditara. Nada sabia ele da fortuna pessoal de

Dorothea e, sendo pouco dado a pensar nessas questões, tomara po

certo que, segundo o disposto por Mr. Casaubon, o casamento com ele

Will Ladislaw, significaria para ela um consentimento à penúria. Ma

nem no mais íntimo de seu coração, nem mesmo se ela se dispusesse a

enfrentar tão duro contraste por sua causa, seria ele capaz de desejar-lhe

isto. Ademais, havia o recente golpe das revelações sobre a família de

sua mãe que, se conhecidas, tornar-se-iam uma razão a mais para os

parentes de Dorothea o olharem de cima, como alguém muito inferior a

ela. A esperança secreta de que, alguns anos mais tarde, ele pudesse

retornar com a impressão de que ele tinha ao menos um valor pessoal

equivalente à riqueza dela, agora parecia apenas a sonhadora continua-

ção de um sonho. Esta mudança o justificaria decerto ao pedir a Dorothea

que o acolhesse mais uma vez.

Mas Dorothea não estava em casa, nessa manhã, para receber a nota

de Wili. Em conseqüência de uma carta de seu tio anunciando sua inten-

ção de regressar dentro de uma semana, ela tomara a carruagem para

primeiro ir dar a notícia em Freshitt, depois continuar até a granja e

transmitir umas ordens de que o tio a incumbia - pensando, tais foram

palavras dele, que "era bom um pouco de ocupação mental desta espé-

cie para uma viúva."


Caso houvesse entreouvido alguma coisa das conversas em Freshitt

nessa manhã, Will Ladislaw teria confirmadas todas as suas suposições

quanto à precipitação de certas pessoas para desconfiar do prolonga-

mento de sua permanência. Sir James, com efeito, embora muito alivia-

do no tocante a Dorothea, mantivera-se em alerta para saber dos movi-

mentos de Ladislaw e tinha um informante gabaritado em Mr. Standish,

que necessariamente privava de sua confiança no assunto. Que Ladislaw

continuasse em Middemarch há quase dois meses, após haver declara-

do que partiria imediatamente, era um fato para agravar as suspeitas de

Sir Jarries ou, pelo menos, justificar sua aversão por um "rapaz" que ele

considerava tão fútil, volúvel e decerto tendente a mostrar sua impru-

dência como naturalmente era de se esperar numa situação que nem

vínculos familiares nem uma profissão definida delimitavam. Mas Mr.

Standish acabara de lhe dizer uma coisa que, se por um lado justificava

as suposições sobre Will, por outro propunha um meio de anular todo o

perigo em relação a Dorothea.

MIDDLEMARCH

661

Circunstâncias não desejadas fazem de qualquer um de nós, às ve-

zes, alguém um pouco diferente: há condições sob as quais a mais ma-

jestosa das pessoas se vê forçada a espirrar, e é da mesma maneira in-

congruente que nossas emoções tendem a se exprimir. O bom Sirjames

estava tão diferente dele mesmo, nessa manhã, que se irritava na ansie-

dade de comunicar uma coisa a Dorothea sobre um assunto que ele em

geral evitava, como se fosse, para todos dois, causa de vergonha. Não

podia usar Celia como intermediária, pois não queria que ela também

soubesse do tipo de boato que ele tinha em mente; e, antes de Dorothea

ter por acaso chegado, já vinha ele imaginando como, com sua timidez e
pouca eloqüência, poderia dar um jeito de lhe fazer a comunicação. A

inesperada presença dela levou-o à descrença mais profunda na sua for-

ça de dizer pessoalmente coisas desagradáveis; mas o desespero sugeriu

um recurso; e ele mandou um mensageiro pelo parque, num cavalo sem

sela, com um bilhete a lápis para Mrs. Cadwallader, que já sabia do

boato e não se importaria jamais em repeti-]o, tantas vezes quanto o

quisessem.

Dorothea foi retida com o bom pretexto de que Mr. Garth, com quem

ela gostaria de estar, era esperado na mansão na mesma hora, e ela aín-

da estava conversando com Caleb no cascalho da entrada quando Sir

James, à espreita da mulher do reitor, viu-a chegando e a encontrou com

as alusões necessárias.

"Basta! já entendi," disse Mrs. Cadwallader. "O senhor contínua a ser

inocente. Mas eu já estou tão queimada que não há mais como sujar-me."

"Não digo que isto tenha grande importância," disse Sirjames, avesso

a que Mrs. Cadwallader entendesse muito. "Apenas é desejável que

Dorothea saiba que há razões pelas quais ela não deveria recebê-lo ou-

tra vez; e eu realmente não posso dizer isto a ela. Vindo da parte da

senhora, será mais leve."

Foi de fato muito leve. Quando Dorothea se despediu de Caleb e se

virou para juntar-se a eles, parecia que Mrs. Cadwallader havia atraves-

sado o parque ao acaso, caminhando na maior tranqüilidade do mundo,

apenas para trocar idéias com Celia, como senhora experiente, sobre o

bebê. E Mr. Brooke então já estava voltando? Que ótimo! - voltando,

era de se esperar, totalmente curado da febre parlamentar e da pioneirite.

A propos do "Pioneiro" - alguém profetizou que ele há de estar dentro

em breve como um golfinho à morte, e de tomar todas as cores por não

saber como se defender, porque o protégé de Mr. Brooke, o jovem e bri-

lhante Ladislaw, estava de partida ou já havia partido. Sir James tinha

ouvido falar?
662

GEORGE ELIOT

Os três andavam lentamente pelo caminho de cascalho, e Sir James

virando-se de lado para chicotear um arbusto, disse que tinha ouvid

alguma coisa do gênero.

"Tudo falso!" disse Mrs. Cadwallader. "Ele não partiu, ao que pare

ce, nem está de partida; o "Pioneiro" se mantém da mesma cor e M

Orlando Ladislaw anda a fazer um baita e triste escândalo, dando-se

cantorias contínuas com a esposa de Mr. Lydgate, que, pelo que m

dizem, é o que há de mais bonita possível. Ao que parece, nunca nin

guém entra na casa sem encontrar este jovem cavalheiro deitado no ta-

pete ou garganteando ao piano. Mas nas cidades manufatureiras as pes

soas têm sempre uma reputação duvidosa."

"A senhora começou dizendo que uma informação era falsa, Mrs

Cadwallader, e eu acredito que esta o seja também," disse Dorothea,

com indignada energia; "tenho certeza, pelo menos, de que é falsa

interpretação. Recuso-me a ouvir falar mal de Mr. Ladislaw: basta toda

injustiça que ele já sofreu."

Dorothea, quando profundamente comovida, pouco ligava para

que os outros pensavam sobre seus sentimentos; e, ainda que tivess

podido refletir, consideraria indigno manter silêncio ante palavras injurio

sas a Will, por medo de ser, ela mesma, mal compreendida. Sua face s

abrasara e seus lábios tremiam.

Sir James, olhando-a, arrependeu-se de seu estratagema; mas Mrs

Cadwallader, sempre à altura de qualquer circunstância, mostrou as mão

espalmadas e disse: "Deus queira que sim, minha querida! - toda ma-

ledicência sobre quem quer que seja, a meu ver, pode ser falsa. Mas

uma pena que o jovem Lydgate tenha desposado uma dessas moças d

Middemarch. Considerando-se que é um fidalgo de linhagem, bem qu


ele poderia arranjar uma mulher de sangue nobre nas veias, e não tão

jovem, que o ajudasse a subir na profissão. Há a Clara Harfager, po

exemplo, com quem os pais não sabem o que fazer; e ela tem um dote

Quanto a nós, poderíamos tê-la então em nosso meio. De nada adiant

- contudo! - ser sensato pelos outros. Mas a Celia onde está? Que tal

entrarmos, hem?"

"Eu já estou de partida para Tipton," disse Dorothea, não sem alti

vez. "Adeus."

Sir James, acompanhando-a até a carruagem, não sabia o que dizer.

Estava profundamente descontente com os resultados de um plano qu

lhe valera de antemão certa humilhação secreta.

Passando por entre as sebes carregadas de frutas e os campos já cei

MIDDLEMARCH

663

vam e lhe desciam pelo rosto, mas ela não se dava conta. O mundo

parecia tornar-se feio e odioso, sem lugar para a sua confiança. A voz

interior que escutava só lhe dizia uma coisa: "Não é verdade - não é

verdade!" Uma recordação à qual sempre se ligara vago desconforto era

porém o tempo todo imposta à sua atenção - a recordação daquele dia

em que ela encontrara Will Ladislaw com Mrs. Lydgate, tendo ouvido a

voz dele acompanhada ao piano.

"Ele disse que nunca faria nada que eu desaprovasse - e bom seria

se eu lhe tivesse participado que não aprovava isso," disse a si mesma a

pobre Dorothea, sentíndo-se estranharnente alternar entre o aborreci-

mento com Will e uma defesa apaixonada dele. "Todos tentam denegri-

lo diante de mim; mas não hei de ligar para nenhuma dor, se ele não

tiver culpa. Sempre acreditei que era uma boa pessoa." - Estes foram

seus últimos pensamentos, antes de ela notar que a carruagem já estava


passando sob os arcos da entrada da granja, quando apressadamente

enxugou o rosto com o lenço e começou a pensar nos seus encargos. O

cocheiro pediu licença para sair por meia hora com os cavalos, pois havia

algo errado com uma ferradura; e Dorothea, tendo a impressão de que

iria descansar, tirou as luvas e o chapéu, encostada numa estátua na

saleta de entrada, enquanto conversava com a governanta. Por fim disse:

"Devo ficar aqui um pouco, Mrs. KelIMou até a biblioteca para co-

piar da carta do meu tio as instruções que ele lhe manda. Quer-me abrir

as janelas, por favor?"

"Já estão abertas, madame," disse Mrs. Kell, seguindo atrás de

Dorothea, que ao falar saíra andando. "Mr. Ladislaw está lá, procurando

uma coisa."

(Wíll viera apanhar um portfólío com seus desenhos, do qual dera

falta ao arrumar seus pertences na bagagem, e que ele preferia não dei-

xar para trás.)

O coração de Dorothea pareceu dar um salto, como que sob o efeito

de um golpe, mas o que ela sentiu não se fez perceptível: na verdade, a

idéia de que Will se encontrava ali era-lhe de todo satisfatória por ora,

como a visão de uma coisa preciosa supostamente perdida. Quando al-

cançou a porta, ela disse para Mrs. Kell:

"Entre primeiro e diga-lhe que estou aqui."

Will, tendo achado o portfàlio, pusera-o sobre uma mesa no canto

wais afastado da sala para rever seus esboços e deleitar-se na contem-

plação da memorável obra de arte que tinha uma relação com a nature-

za,ta, misteriosa demais para Dorothea. Sorria ainda para a obra e punha

seus desenhos em ordem, com a sensação de que poderia encontrar uma

664

GEORGE ELIOT
carta dela esperando por ele em Middemarch, quando Mrs. KelI, às suas

costas, lhe disse:

"Mrs. Casaubon está vindo aí."

Logo Will se virou, e no momento seguinte Dorothea entrava. Bas-

tou Mrs. Kell fechar a porta atrás de si para que os dois se encontrassem:

um olhava para o outro, mas algo que suprimia a expressão oral lhes

havia inundado a consciência. Não era o embaraço que os mantinha em

silêncio, pois ambos sabiam que a separação não tardava, e o acanha-

mento não vigora numa triste partida.

Automaticamente ela se moveu para a cadeira de seu tio junto à

escrivaninha, e Will, após arredá-la para ela, afastou-se um pouco para

postar-se à sua frente.

"Por favor, sente-se," disse Dorothea, cruzando as mãos no colo. "

uma grande alegria encontrá-lo aqui." Will achou que seu rosto tinha a

mesma expressão de quando, em Roma, ela lhe apertara a mão pela

primeira vez; pois sua touca de viúva, presa ao chapéu, saíra junto com

este, e ele pôde notar que ela, não fazia muito, havia vertido lágrimas.

Mas o traço de zanga em sua agitação desaparecera ao vê-lo; já era cos-

tume dela, quando estavam face a face, sentir sempre confiança e a feliz

liberdade que vem do entendimento mútuo; como as palavras de outras

pessoas poderiam de repente impedir tal coisa? Deixemos pois que soe

mais uma vez a música capaz de se apossar de nossa compleição e pre-

encher o ar de alegria - que importa se, na sua ausência, nos tenham

dito que continha defeitos?

"Mandei hoje uma carta a Lowick, pedindo licença para vê-la," disse

W111, sentando-se diante dela. "já estou de partida, mas não poderia ir

sem lhe falar novamente."

"Pois eu pensava que, quando esteve em Lowick muitas semanas

atrás, já houvéssemos feito nossas despedidas - sua idéia era partir

então," disse Dorothea, com a voz um pouco trêmula.

"De fato; mas naquela ocasião eu ignorava certas coisas que agora
sei - coisas que alteraram minhas idéias sobre o futuro. Quando a vi

antes, meu sonho era poder voltar algum dia. Não creio, agora, que ja-

mais o faça." Will aqui fez uma pausa,

"E desejava que eu soubesse as razões?" disse timidamente Doro-

thea.

"Sim," respondeu W111, impetuoso, jogando a cabeça para trás e des-

viando o olhar do dela, com irritação na face. "Claro que o devo desejar.

Fui grosseiramente insultado, aos olhos da senhora e de outros. Meu

caráter foi posto em dúvida por uma sórdida intriga. Quero que saiba

MIDDLEMARCH

665

que em nenhuma circunstância eu me teria rebaixado por - em nenhu-

ma circunstância daria aos homens a oportunidade de dizer que eu an-

dava atrás de dinheiro sob o pretexto de buscar - uma outra coisa. Não

havia necessidade de outra salvaguarda contra mim - a salvaguarda da

riqueza bastava."

· última palavra Will se levantou da cadeira e foi - ele mal sabia

aonde; mas era à janela que de si ficava mais próxima e que, como

agora, estava aberta na mesma estação há um ano atrás, quando ele e

Dorothea ali se haviam postado para conversar à vontade. Ela se pu-

nha no momento, de todo o coração, em concordância com a indigna-

ção de Will: queria apenas convencê-lo de que nunca lhe fizera injusti-

ça, a ele que parecia estar a evitá-la como se ela fosse também parte do

mundo hostil.

"Seria muito cruel de sua parte supor que eu jamais lhe houvesse

imputado alguma baixeza," começou ela. Depois, a seu modo ardente,

desejosa de argumentar, abandonou seu assento para ficar diante dele

em seu lugar de outrora à janela, dizendo-lhe: "Por acaso supõe que eu


tenha alguma vez deixado de acreditar no senhor?"

Num brusco impulso, ao ali vê-la, Will recuou para longe da janela,

sem lhe encontrar os olhos. Seu gesto, seguindo-se ao prévio tom de

cólera, magoou Dorothea, pronta a dizer que tudo aquilo era igualmen-

te duro para ambos e que ela estava indefesa; mas as estranhas particu-

laridades de sua relação, que nem um nem outro podia mencionar de

modo explícito, sempre a mantinha temerosa de falar demais. Não ten-

do nesse momento a crença de que Will realmente houvesse querido se

casar com ela, receava usar palavras que eventualmente a implicassem.

Disse apenas, bem séria, reportando-se às últimas palavras dele:

"Estou certa de que nenhuma salvaguarda contra o senhor jamais se

fez necessária."

Will não respondeu. Na tempestuosa flutuação de seus sentimen-

tos, estas palavras dela soaram cruelmente neutras para ele, que depois

da sua explosão de cólera já se mostrava acabrunhado e pálido. Enquan-

to Dorothea o olhava de longe, ele foi até a mesa para fechar o portfôlio.

Desperdiçavam assim, num silêncio deplorável, esses últimos momen-

tos juntos. O que podia ele dizer, se o que mais obstinadamente se ins-

talara em sua mente era o amor apaixonado por ela, que ele mesmo se

proibira declarar? E o que podia dizer ela, se não tinha como lhe ofere-

cer ajuda - se era forçada a conservar o dinheiro que deveria ter cabido

a ele? - se ele hoje não parecia corresponder como antes à sua simpatia

e confiança profundas?

666

GEORGE ELIOT

Mas W111 por fim se apartou de seu portfôlio e de novo se aproximou

da janela.

"Tenho de ir-me," disse, com essa expressão tão típica do olhar que
se associa às vezes a um sentimento amargo, como se ambos estivessem

abrasados e exaustos por fitarem de muito perto uma luz.

"Que há de fazer na vida?" disse timidamente Dorothea. "Suas in-

tenções se mantiveram porventura as mesmas de quando antes nos dis-

semos adeus?"

"Sim," disse Will, num tom que parecia afastar por desinteressante

o assunto. "Vou trabalhar por aí na primeira coisa que surja. Suponho

que a gente se habitue a viver sem felicidade e esperança."

"Oh, que palavras tristes!" disse Dorothea, com uma tendência peri-

gosa aos soluços. Depois, tentando sorrir, acrescentou: "já concordamos

certa vez que éramos parecidos por falarmos ambos com expressões muito

fortes."

"Eu não usei palavras fortes agora," disse W111, encostando-se na qui-

na da parede. "Há certas coisas pelas quais um homem só pode passar

uma vez na vida; e ele deve saber, mais cedo ou mais tarde, quando se

acaba o que é melhor para si. Esta experiência me ocorreu quando ainda

sou muito jovem - eis tudo. O que mais me interessa, mais que qualquer

coisa que possa vir a interessar-me ainda, me está de todo interdito -

não só por se achar fora do meu alcance, mas interdito também, mesmo se

estivesse em minha esfera de ação, por meu próprio orgulho e honra -

por tudo aquilo por que eu mesmo me respeito. Claro que continuarei a

viver como pode um homem que, num transe, tenha visto o céu."

Will fez uma pausa, imaginando que seria impossível Dorothea não

o entender; na realidade sentia-se a contradizer-se, colocando-se contra

a aprovação de si mesmo, por lhe falar de modo assim tão claro; contudo

- não se podia propriamente dizer que fosse cortejar uma mulher parti-

cipar-lhe que nunca a cortejaria.  forçoso admitir tratar-se de um tipo

espectral de corte.

Mas a mente de Dorothea rapidamente se embrenhava pelo passado

com uma visão bem diversa. A idéia de que pudesse ela própria ser o

que mais interessava a Wili fê-la vibrar um instante, mas logo surgiu a
dúvida: a lembrança do pouco que tinham vivido juntos empalideceu-se

e encurtou ante a lembrança que lhe sugeria quão mais completo have-

ria de ter sido o intercurso de Will e outra pessoa com a qual ele se

mantivera em companheirismo constante. Tudo o que ele havia dito

poderia referir-se a esta outra relação, e o que se passara entre eles era

totalmente explicável pelo que ela considerara sempre uma simples

IVEDDLEMARCH

667

amizade e pela cruel obstrução a isto imposta pelo ato injurioso de seu

marido. Dorothea se manteve em silêncio, baixando os olhos sonhado-

ramente, enquanto o tropel de imagens que lhe vinha trazia-lhe a revol-

tante certeza de que Will se referia a Mrs. Lydgate. Mas por que revol-

tante, se ele queria que ela soubesse que também aqui sua conduta de-

via estar acima de suspeitas?

O silêncio dela não causou surpresa a Will. Sua mente se achava

igual e tumultuosamente ocupada enquanto ele a observava e sentia, já

quase furioso, que era preciso acontecer alguma coisa para impedir esta

separação - algum milagre, e não decerto algo contido nas falas delibe-

radas de ambos. Entretanto, tinha ela afinal amor por ele? - era impos-

sível fingir para si mesmo que lhe seria melhor acreditar que ela estives-

se livre desta dor. Era impossível negar que na origem de suas próprias

palavras havia uma aspiração secreta pela certeza de que ela o amava.

Nenhum dos dois soube por quanto tempo eles permaneceram as-

sim. Dorothea já ia reerguendo os olhos, e estava a ponto de falar, quan-

do a porta se abriu e seu lacaio chegou para dizer:

"Os cavalos já estão prontos, madame, para quando a senhora quiser."

"Daqui a pouco," disse Dorothea. Depois, dirigindo-se a Will, co-

municou: "Tenho de escrever uns lembretes para a governanta."


"Pois então vou-me," disse Will, quando a porta se fechou nova-

mente - avançando para ela. "Depois de amanhã eu partirei de

Middemarch."

"Sob todos os pontos de vista o senhor agiu com correção," disse

Dorothea em voz baixa, sentindo no coração um aperto que lhe tornava

bem difícil falar.

E estendeu a mão, que Will reteve um instante sem dizer coisa algu-

ma, pois estas suas palavras lhe haviam parecido cruelmente frias, sem

combinar com ela. Quando seus olhos se encontraram, os dele estampa-

vam descontentamento, os dela apenas tristeza. Dando-lhe as costas e

alguns passos, ele enfiou sob o braço seu portfôlio.

"Nunca eu lhe fiz uma injustiça. Lembre-se de mim, por favor," disse

Dorothea, reprimindo um soluço.

"Por que precisa dizer isto?" retrucou Will, com irritação. "Como se

eu não corresse o perigo de esquecer tudo mais!"

Um movimento de raiva contra ela realmente o tomara no momen-

to, e o impeliu a sair sem mais delongas. Para Dorothea foi tudo como

um lampejo - as últimas palavras dele - a curvatura distante que lhe

fez ao alcançar a porta - a noção de que ele não mais estava ali. Afun-

dando na cadeira, aí ela ficou por instantes, sentada como uma estátua,

668

GEORGE ELIOT

enquanto a assaltavam emoções e imagens. Primeiro, a despeito das

ameaças que jaziam por trás, veio a alegria - uma alegria vinculada à

impressão de ser ela realmente que Will amava e a quem fazia renúncia,

de não haver realmente um outro amor menos lícito, mais reprovável,

do qual a honra o forçasse a afastar-se. Fosse como fosse eles se separa-

vam, mas - Dorothea respirou fundo e sentiu que lhe voltavam as for-
ças - ela poderia pensar sem constrangimento nele. Nesse momento

era fácil suportar a separação: a primeira impressão de amar e ser amada

já excluía o sofrimento. Dir-se-ia que, com a fusão de um duro bloco de

gelo que até então a oprimia, sua consciência tinha por onde expandir-

se; seu passado lhe voltava com mais largueza de interpretação. Não era

menor a alegria - talvez na hora fosse até mais completa - por causa

da irrevogável despedida; pois não havia nenhuma exprobração, nenhum

espanto desdenhoso a imaginar nos olhos ou nos lábios de alguém. Ele

havia agido de modo a desafiar a exprobração e a tornar respeitoso o

espanto.

Quem quer que a observasse poderia ter visto que um pensamento

revigorante já surgia em seu íntimo. Assim como, quando a força inven-

tiva age com alegre facilidade, uma pequena exigência à atenção é aten-

dida de todo como se fosse apenas uma fresta aberta à luz solar, agora

era fácil para Dorothea escrever seus lembretes. Foi em tons animados

que ela disse à governanta suas palavras finais e, quando se sentou na

carruagem, havia brilho em seus olhos e as maçãs de seu rosto estavam

cheias de viço sob o funesto chapéu. Puxando para trás o molesto "véu

de viúva," ela olhou à sua frente a indagar-se por qual caminho Will

teria ido. Era de sua natureza orgulhar-se por ele ser inculpável, e por

todos seus sentimentos perpassava esta crença - "Eu estava certa ao

defendê-lo."

O cocheiro tinha o hábito de manter seus cavalos a bom passo, pos-

to que Mr. Casaubon se impacientasse com tudo e em nada achasse

graça longe de sua escrivaninha, querendo logo chegar ao fim das via-

gens; e Dorothea assim foi transportada depressa. A corrida era agradá-

vel, pois de noite a chuva tinha assentado a poeira, e ao longe desponta-

va o céu azul, bem afastado da região das grandes nuvens que singravam

em massas. Sob a vastidão celeste, a terra parecia um lugar feliz, e lá se

ia Dorothea a desejar que pudesse alcançar Will e vê-lo ainda uma vez.

Depois de uma curva da estrada, ei-lo que aparecia com seu portfólio
embaixo do braço; mas no momento seguinte ela o ultrapassava, enquan-

to ele lhe erguia o chapéu, e ela sentiu uma pontada de dor por estar ali

sentada numa espécie de exaltação, deixando-o para trás. Não podia vi-

MIDDLEMARCH

669

rar-se para olhá-lo. Era como se um acúmulo de objetos indiferentes a

eles se interpusessem, forçando-os a seguirem por diferentes caminhos,

afastando-os cada vez mais um do outro e fazendo com que olhar para

trás fosse de todo inútil. Não só ela não mais podia fazer algum sinal que

parecesse dizer: " preciso nos separarmos?" como também não podia

parar a carruagem para esperar por ele. E ainda mais: que mundo de ra-

zões se lhe impunha contra qualquer movimento de seu pensamento na

direção de um futuro capaz de reverter a decisão desse dia!

"Eu só queria ter sabido mais cedo - e queria que ele soubesse -

pois então poderíamos ser totalmente felizes ao pensar um no outro,

ainda que separados para sempre. E se ao menos eu pudesse ter-lhe

dado o dinheiro, tomando as coisas mais fáceis para ele!" - eram seus

anseios que retomavam com maior persistência. No entanto, tal era o

peso do mundo que a oprimia, malgrado sua energia independente, que

a esta idéia de Will necessitado de ajuda e em desvantagem na esfera

social sempre se acrescentava a visão da impropriedade de uma relação

mais íntima entre eles, que residia na opinião de todos os seus parentes.

Ela sentia por inteiro o imperativo das razões que haviam determinado

a conduta de Will. Como poderia ele sonhar que ela desafiasse a barreira

colocada por seu marido entre eles? - como poderia ela jamais dizer a

si mesma que a desafiaria de fato?

já a certeza de Will, à medida que a carruagem ia diminuindo de

tamanho ao longe, trazia em si muita amargura. Questões insignifican-


tes bastavam para exasperá-lo em sua susceptibilidade, e a visão de

Dorothea a ultrapassá-lo em veículo, enquanto ele se sentia a arrastar-

se como um pobre-diabo à cata de um lugar no mundo, que em seu

estado atual pouco lhe oferecia do que ele almejava, fazia sua conduta

parecer mera imposição da necessidade, tirando-lhe os sustentáculos da

decisão. Afinal de contas, ele não tinha garantias de que ela o amava:

poderia algum homem fingir que se sentia mesmo contente, neste caso,

tendo todo o sofrimento só de seu lado?

Will passou essa noite com os Lydgates; e na noite seguinte já havia

partido.

LiVRO VII

Duas Tentações

CAPÍTULo LX111

"These little things are great to little man."

- GOLDSMITH.

"Se pequeno é o homem, grandes são as coisinhas."

- GOLDSMITH.1

"TEM visTo MUITO sua fénix da ciência, o Lydgate, nesses últimos tem-

pos?" disse Mr. Toller num dos seus jantares natalinos, falando para Mr.

Farebrother, sentado à sua direita.

"Não muito, lamento," respondeu o Pastor, acostumado a se esqui-

var das caçoadas de Mr. Toller sobre sua crença nos novos rumos da

medicina. "Eu moro um pouco longe e ele está sempre muito ocupado."
"Ocupado, ele? Folgo em sabê-lo," disse o Dr. Minchin, num misto

de urbanidade e surpresa.

"Grande parte de seu tempo ele dedica ao Novo Hospital," disse Mr.

Farebrother, que tinha boas razões para insistir no assunto: "Sei disto

pela minha vizinha, Mrs. Casaubon, que vai lá com freqüência. Diz ela

que o Lydgate é incansável e está transformando a instituição do Bulstrode

numa coisa ótima. Ele agora apronta um novo pavilhão, para a eventua-

lidade de o cólera chegar até nós."

"E apronta teorias de tratamento para testar nos pacientes, suponho

eu," disse Mr. Toller.

"Ora, Toller, seja sincero, vamos," disse Mr. Farebrother. "Você é

muito inteligente para não ver os benefícios de uma mente inovadora e

"Linha 43 do poerna pré-romântico The Traveller, do escritor inglês Oliver

Goldsmith (1728-

1774).

674

GEORGE ELIOT

ousada à medicina, como também a tudo mais; quanto ao cólera, imagi-

no que nenhum de vocês tenha certeza plena do que deveria fazer. Quan-

do um homem avança um pouco demais por um caminho novo, o mais

comum é que se machuque mais do que aos outros."

"Estou certo de que você e o Wrench devem sentir-se gratos a ele,"

disse o Dr. Minchin, olhando para Toller, "porque ele lhes mandou a

nata da clientela do Peacockf

"Para um jovem que ainda está começando, o Lydgate vive num pa-

tamar muito alto," disse Mr. Harry Toller, o fabricante de cerveja. "Su-

ponho que ele seja ajudado por seus parentes do Norte."


"Espero que sim," disse Mr. Chichely, "porque senão não deveria

ter-se casado com a bela moça de quem tanto gostávamos todos. E é

isto, ora bolas! Sempre se guarda algum rancor de um homem que con-

segue conquistar a moça mais bonita da cidade."

"E a melhor também, santo DeusV" disse Mr. Standish.

"Meu amigo Vincy não aprovava de todo o casamento, sei disto,"

disse Mr. Chichely. "Ele não ajudaria muito. Como os parentes do outro

lado hão de ter acorrido, não sei dizer." Havia uma espécie de reticência

enfática no modo de falar de Mr. Chichely.

"Oh, eu não diria que o Lydgate tenha algum dia pensado em sua

prática como um meio de vida," disse Mr. Toller, com uma ligeira nota

de sarcasmo; e com isto o assunto foi deixado de lado.

Não era a primeira vez que Mr. Farebrother ouvia alusões ao fato de

os gastos de Lydgate serem obviamente muito grandes para sua prática,

mas ele não julgava improvável haver uma reserva de expectativas que

justificasse o excesso de despesas quando de seu casamento, e que po-

deria obstar a quaisquer conseqüências negativas de decepção com a

clientela. Certa noite, quando se deu ao trabalho de ir a Middemarch

especialmente para conversar com Lydgate, como nos velhos tempos,

percebeu que ele denotava um ar de esforço excitado, contrário a seu

modo em geral tranqüilo de manter-se calado ou manifestar-se com uma

energia abrupta, sempre que tinha algo a dizer. Lydgate falava obstina-

damente, quando estavam em seu gabinete de trabalho, lançando argu-

mentos pró e contra a probabilidade de certos enfoques biológicos; mas,

para dizer ou mostrar, não tinha uma só daquelas coisas concretas que

constituem os marcos de uma pesquisa paciente e ininterrupta, e nas

quais ele mesmo costumava insistir, afirmando que "em toda investiga-

ção deve haver uma sístole e uma diástole" e que o -a mente de um ho-

mem deve expandir-se e retrair-se continuamente entre o horizonte hu-

mano como um todo e o horizonte de uma lente." Nessa noite ele pare-
MIDDLEMARCH

675

cia estar falando muito a fim apenas de evitar qualquer questão pessoal;

e não tardou que fossem para a sala de visitas, onde Lydgate, tendo

pedido a Rosamond um pouco de música, afundou numa poltrona em

silêncio, mas com uma estranha luz nos olhos. "Pode ser que ele tenha

tomado um opiato," foi a idéia que passou pela cabeça de Mr. Farebrother

- "talvez um tic-douloureux1 - ou preocupações médicas."

Não lhe ocorreu que o casamento de Lydgate pudesse não ser puro

prazer: como todos, ele achava Rosamond uma pessoa afável e dócil,

muito embora a julgasse um pouco desinteressante - o tipo por demais

bem acabado da educação para moças; e a mãe dele não podia perdoar

Rosamond porque ela nunca parecia dar-se conta de que Henrietta Noble

se encontrava na sala. "Contudo, Lydgate caiu de amores por ela," disse

a si mesmo o Pastor, "e ela deve corresponder ao seu gosto."

Mr. Farebrother sabia que Lydgate era um homem cheio de orgulho;

no entanto, pouco tendo de tal fibra em si mesmo, e talvez pouco ligan-

do para a dignidade pessoal, salvo a dignidade de não ser tolo nem vil,

mal podia admitir o modo como Lydgate se retraía, como em face do

fogo, de pronunciar qualquer palavra sobre seus assuntos privados. Logo

depois daquela conversa em casa de Mr. Toller, chegara ao conhecimen-

to do Pastor uma coisa que o deixou mais atentamente à espreita de

uma oportunidade para de modo indireto dar a saber a Lydgate que, se

ele quisesse abrir-se sobre uma dificuldade qualquer, havia um amigo

pronto a ouvi-lo.

A oportunidade surgiu na casa de Mr. Vincy, onde, no Dia de Ano

Novo, houve uma festa à qual Mr. Farebrother foi convidado com insis-

tência, sob o argumento de que ele não deveria abandonar os velhos

amigos no ano que começava e era o primeiro de sua nova importância,


como um duplo de Pastor e Reitor. A mais profunda amizade prevaleceu

nesta festa: todas as senhoras da família Farebrother se fizeram presen-

tes; todos os filhos dos Vincys sentaram-se para jantar à mesa, e Fred

havia convencido sua mãe que, se ela não convidasse Mary Garth, os

Farebrothers poderiam ver nisto uma desfeita a eles, de quem Mary era

amiga íntima. Mary compareceu, e Fred ficou todo animado, se bem que

seu contentamento fosse de um tipo não isento de sertões - pois o

triunfo que era sua mãe ver a importância de Mary junto às principais

figuras da festa foi em muito comprometido pelo ciúme, quando Mr.

Farebrother sentou-se ao lado dela. Já havia sido bem maior a tranqüili-

dade de Fred sobre suas próprias vantagens, nos dias em que ele não

"Em francês no original: nevralgia fácial.

676

GEORGE ELIOT

principiara ainda a se entregar ao temor de ser "preterido por Fare-

brother," um temor que ainda estava à sua frente. Mrs. Vincy, em pleno

desabrochar de matrona, contemplava a pessoinha de Mary, seu cabelo

grosso e ondeado, seu rosto tão simples, sem lírios nem rosas, e se es-

pantava, tentando em vão imaginar-se a cuidar da aparência da nora em

trajes nupeiais, ou a sentir sua complacência com netos que poderiam

díser a cara" dos Garths. Contudo, a festa se mostrou bem alegre, e Mary,

particularmente brilhante; contente, por causa de Fred, ante a maior

delicadeza com que seus pais a tratavam, e também nada avessa a que

notassem o quanto ela era estimada por pessoas cuja opinião devia ter

para eles grande peso.

Mr. Farebrother reparou que Lydgate parecia entediado e que Mr.

Vincy falava o mínimo possível com o genro. Rosamond era pura


graciosidade e calma, mas só uma observação mais sutil, que o Pastor

não se dispôs a aplicar-lhe, teria permitido perceber a total ausência

desse interesse pela presença do marido que uma esposa amorosa segu-

ramente revela, mesmo se a etiqueta a mantém distante dele. Quando

Lydgate participava das conversas, nunca ela olhava para ele, não mais

do que se fosse uma estátua de Psiquê moldada para olhar noutra dire-

ção: e quando, depois de chamado fora por uma ou duas horas, ele rea-

pareceu na sala, ela parecia inconsciente do fato, que dezoito meses

antes teria decerto o efeito de um outro algarismo antes de zeros. Na

realidade, contudo, estava intensamente advertida da voz e movimen-

tos de Lydgate; e seu ar de inconsciência, tão formoso e lhano, era uma

pose estudada pela qual ela satisfazia sua oposição a ele sem compro-

meter o decoro. Com as damas já na sala de visitas, depois de Lydgate,

durante a sobremesa, ter sido chamado fora, Mrs. Farebrother disse a

Rosamond, que por acaso se achava perto dela: "A senhora sempre tem

de estar abrindo mão da companhia de seu marido, não é, Mrs. Lydgate?"

"Sim, a vida de um médico é muito árdua; principalmente quando

ele é tão dedicado à sua profissão como Mr. Lydgate o é," disse Rosamond,

que estava em pé e com facilidade foi-se afastando ao fim de sua fala

curta e correta.

"Tudo é muito enfadonho para ela quando não tem companhia,"

disse Mrs. Vincy, sentada ao lado da velha dama. "Garanto-lhe que me

dei conta disto quando Rosamond esteve doente e fui ficar com ela. A

senhora sabe, Mrs. Farebrother, que a nossa é uma casa alegre. Eu mes-

ma tenho um temperamento alegre, e Mr. Vincy sempre gosta de que

alguma coisa aconteça. A Rosamond se acostumou com isto. Muito dife-

rente de um marido que sai fora de hora, sem que nunca se saiba quando

MIDDLEMARCH

677
voltará para casa, e é de gênio reservado e frio, penso eO - corri este

parêntese, a indiscreta Mrs. Vincy baixou ligeiramente seu tom de voz.

"Mas a Rosamond sempre teve um temperamento de anjo; seus irmãos

não costumavam muito agradá-la, mas nunca ela foi uma menina de

mostrar mau gênio; era sempre boazinha que só vendo, desde bebê, e de

uma natureza incomparável. Mas meus filhos, graças a Deus, todos têm

bom gênio."

Facilmente acreditaria nisto quem quer que olhasse Mrs. Vincy ago-

ra, quando ela puxou para trás as largas fitas de sua touca e sorriu na

direção de suas três filhinhas, entre sete e onze anos de idade. Só que na

olhadela sorridente ela foi obrigada a incluir Mary Garth, que as três

meninas haviam encurralado num canto para que ela lhes contasse his-

tórias. Mary acabava justamente a de Rumpelstiltskin, uma história de-

liciosa que ela sabia muito bem de cor, porque Letty nunca se cansava de

a comunicar aos mais velhos que a ignoravam, partindo de um volume

vermelho pelo qual tinha adoração. Louisa, a favorita de Mrs. Vincy,

correu então para ela, de olhos arregalados numa excitação muito séria,

gritando: "Mamãe, mamãe, o homenzinho pisou no chão com tanta for-

ça que não pôde levantar a perna de novo!"

"Deus a abençoe, meu querubim!" disse a mãe; "vá, vá ouvir, e ama-

nhã você me conta tudo!" Depois, enquanto acompanhava com os olhos

o retorno de Louisa ao atraente canto, ela pensou que, se Fred lhe pedis-

se para convidar Mary de novo, não teria nenhuma objeção a fazer, já

que as crianças ficavam tão contentes com ela.

Mas dentro em pouco o canto se tornou mais animado ainda, pois

Mr. Farebrother foi para lá, sentando-se por trás de Louisa para pegá -la

no colo; bastou isto para que todas as meninas insistissem com ele para

ouvir o Rumpelstiltskin e, com Mary, para contar a história outra vez.

Como ele também insistisse, Mary, sem se incomodar, de novo começou

a seu modo claro, usando exatamente as mesmas palavras de antes. Fred,


que viera também sentar-se perto, teria sentido a mais pura exultação

com a eficiência de Mary, caso Mr. Farebrother não a olhasse com óbvia

admiração enquanto afetava um interesse imenso pela história, para agra-

dar às crianças.

"Nunca mais vocês vão ligar para o Loo, o meu gigante de um só

olho," disse Fred no fim.

"Eu vou sim. Fale logo dele agoraf disse Louisa.

"Oh, eu não me atrevo; já fui posto para trás. Peça a Mr. Farebrother."

" mesmof acrescentou Mary; "peça a Mr. Farebrother para contar

a história das formigas que tiveram sua linda casa destruída por um gi-

678

GEORGE ELIOT

gante chamado Tom, o qual achava que elas não se importavam, porque

não as ouvia chorando nem conseguia vê-las a usar seus lencinhos."

"Por favor," disse Louisa, erguendo o olhar para o Pastor.

"Não, não, sou um pároco já velho e sem graça. Se eu tentar tirar

uma história da sacola, o que vai sair é um sermão. Que tal se eu lhe

pregasse um sermão?" disse ele, colocando seus óculos e franzindo os

lábios.

"Está bem," disse Louisa, meio na dúvida.

"Deixe-me ver então. Um sermão contra os bolos: que horror que

eles são, sobretudo quando levam muito açúcar e passas."

Louisa, tomando a coisa um pouco a sério, pulou do colo do Pastor

para ir ficar com Fred.

"Ah, já estou vendo que não dá para pregar no Dia de Ano Novo,"

disse Mr. Farebrother, levantando-se para afastar-se. Ultimamente ele havia

descoberto que causava ciúme a Fred e que sua própria preferência por

Mary, acima de todas as demais mulheres, não o estava abandonando.


"Que encanto de moça que é Miss Garth!" disse Mrs. Farebrother,

que estivera a observar os movimentos do filho.

"De fato," disse Mrs. Vincy, obrigada a resp?nder, posto que a velha

senhora, na expectativa, se virasse para ela. "E uma pena ela não ser

mais bonita."

"Eu não diria isto," disse, decidida, Mrs. Farebrother. "A compostu-

ra dela me agrada. Não nos cabe esperar beleza sempre, quando o bom

Deus julgou por bem sem beleza fazer uma excelente -Jovem. Em primei-

ro lugar eu coloco as boas maneiras, e Miss Garth há de saber conduzir-

se em qualquer situação que seja."

A velha senhora falou em tom meio áspero, estando afeita à hipóte-

se de Mary ainda vir a se tornar sua nora; pois havia uma desvantagem

na situação de Mary em relação a Fred, a de não ser conveniente torná-

Ia pública, e assim as três damas do Presbitério de Lowick viviam sem-

pre na esperança de que Camden por fim fosse escolhê-la.

Com a entrada de novos convidados, a sala de visitas foi destinada a

música e jogos, enquanto se arrumavam mesas de uíste na tranqüila

peça situada ao outro lado do vestíbulo. Mr. Farebrother jogou uma

partida completa para satisfazer sua mae, que considerava seu próprio e

ocasional uíste um protesto contra o escândalo dos novos modos de ver,

luz sob a qual até uma carta que não é posta na mesa tinha sua dignida-

de. Mas no final ele pediu a Mr. Chichely que lhe tomasse o lugar, e saiu

da sala. Quando atravessava o vestíbulo, Lydgate tinha acabado de che-

gar e estava tirando seu sobretudo.

MIDDLEMARCH

679

"Eis o homem a cuja procura eu ia," disse o Pastor; e os dois, ao

invés de entrarem na sala de visitas, andaram pelo vestíbulo e foram


postar-se junto à lareira, onde o ar muito frio ajudava a lenha a arder em

brasa. "Como vê, não me custa nada sair da mesa de uíste," prosseguiu

ele, sorrindo para Lydgate, "e agora eu não jogo mais por dinheiro. Se-

gundo Mrs. Casaubon, é a você que devo isto."

"Como assim?" disse secamente Lydgate.

"Ah, não queria que eu soubesse, não é? Pois eu diria que esta dis-

crição não é generosa. Convém deixar que um homem tenha o prazer de

sentir que se lhe fez algum bem. Não compartilho do desagrado de al-

guns por ficar devendo um favor; prefiro, palavra, ficar devendo um favor

a todos por se portarem bem comigo."

"Não sei do que está falando," disse Lydgate; "a não ser que se trate

do que eu disse sobre você certa vez a Mrs. Casaubon. Mas eu não pen-

sava que ela fosse quebrar a promessa de não comentar este assunto,"

disse Lydgate, encostando-se na quina do consolo da lareira, e não mos-

trando brilho algum em seu rosto.

"Foi o Brooke quem o deixou escapar, há poucos dias. Fez-me a

bondade de dizer-me que estava muito contente por eu ter ganho o

benefício, embora você se interpusesse à tática dele, louvando-me como

a um Ken ou um Tillotson,1 e esse tipo de coisa, até que Mrs. Casaubon

não quisesse saber de mais ninguém."

"Oh, o Brooke é um bobalhão muito indiscreto," disse Lydgate des-

denhosamente.

"Bem, neste caso a indiscrição me alegrou. Não entendo porque você

não queria que seu desejo de me dar uma ajuda fosse do meu conheci

mento, meu caro amigo. E uma ajuda que decerto se concretizou. Chega

a ser dura prova para a satisfação consigo mesmo constatar que o bem

que nós podemos fazer depende muito de não estarmos em falta de

dinheiro. Um homem não será tentado a rezar o Pai-Nosso de trás para

a frente, para agradar ao diabo, se não precisar de sua ajuda. Eu já não

careço agora de que a sorte me sorria."

"Não vejo como conseguir dinheiro sem sorte," disse Lydgate; "se-
guramente é só por sorte, mesmo numa profissão, que um homem ga-

nha dinheiro."

Mr. Farebrother pensou poder atribuir tal ponto de vista, que con-

trastava fortemente com a maneira como antes Lydgate falava, ao trans-

"Thornas Ken (1637-1711), bispo inglês, autor de livros religiosos; John

Tillotson (1630-

1694), teólogo e pregador inglês, foi arcebispo de Canterbury.

680

GEORGE ELIOT

torno que há de brotar com freqüência do desalento de um homem que

não vai bem nos negócios. E respondeu num tom de bem humorada

aprovação:

"Ah, o mundo, tal como anda, requer enorme paciência. Mas é me-

lhor que um homem espere pacientemente, quando tem amigos que o

amam e não pensam senão em ajudá-lo a avançar, tanto quanto está em

seu poder."

"Oh, sim," disse Lydgate, mudando despreocupadamente de atitude

e consultando seu relógio. "As pessoas tornam suas necessidades bem

maiores do que lhes seria necessário fazer."

Com a maior clareza possível ele compreendeu que Mr. Farebrother,

com aquela frase, se oferecia para ajudá-lo, coisa que não podia agüen-

tar. Os mortais, tão estranhamente determinados nós somos que, após

estar gratificado de há muito pela noção de ter prestado em segredo um

bom serviço ao Pastor, ele se encolheu numa invencível reserva ante a

insinuação de que o Pastor discernira a necessidade em que estava de

uma retribuição do favor. Além disto, o que mais devia vir, por trás de

toda oferta assim feita? Se ele "especificasse seu caso," forçoso lhe seria
dar a entender que necessitava de coisas específicas. E o suicídio, no

momento, lhe parecia mais fácil.

Mr. Farebrother era homem muito arguto para não captar o sentido

da resposta, e o jeito e o tom de Lydgate, em consonãoncia com seu

físico, eram tão maciços que pareciam pôr fora de questão, quando logo

de saída ele repelia os avanços, todos os ardis persuasivos.

"Que horas são?" disse o Pastor, absorvendo seu sentimento ferido.

"já passa das onze," disse Lydgate. E eles foram para a sala de visitas.

CAPÍTULo LXIV

st Gent. Where lies the power, there let the blame lie too.

2nd Gent. Nay, power is relative; you carmot fright

The coming pest with border fortresses.

Or catch your carp with subde argument.

All force ís twain in one: cause is not cause

Unless efléct be there; and action"s self

Must needs contain a passive. So command

Exísts but with obedience.

C12 Sr. Onde há poder, que também haja censura.

22 Sr.Não, o poder é relativo; não se pode espantar

A peste que se acerca com fortins na fronteira.

Nem pescar uma carpa com sutil argumento.

Toda força é sempre par: não há causa que o seja

Sem trazer em si o efeito; e o ser que atua

Tem de conter um ser passivo. Assim

Não existe comando sem obediência.")

MESMO QUE SE INCLINASSE a ser de todo sincero sobre seus negócios,

Lydgate sabia que era quase impossível estar ao alcance de Mr.


Farebrother dar-lhe a ajuda de que urgentemente ele necessitava. Com

as contas do ano chegando de seus fornecedores, com o ameaçador po-

der de Dover sobre seu mobiliário e com nada a contar, exceto o lento

pagamento em parcelas de pacientes que não deviam ser ofendidos -

pois os belos honorários que lhe tinham vindo de Freshitt Hall e Lowick

Manor foram sorvidos com facilidade - só mil libras pelo menos pode-

riarn livrá-lo do seu atual embaraço e deixar um resíduo que, segundo a

frase favorita da esperança em tais circunstâncias, lhe daria "tempo para

olhar ao redor."

682

GEORGE ELIOT

Naturalmente o feliz Natal, trazendo consigo o também feliz Ano

Novo, época em que os concidadãos esperam ser pagos pelo incômodo e

os bens com os quais sorrindo vão regalar seus vizinhos, tornara tão

maior a pressão das sórdidas preocupações sobre a mente de Lydgate

que mal lhe era possível pensar íninterruptamente em qualquer assunto,

mesmo os mais comuns e prementes. Não era ele um homem genioso;

sua atividade intelectual, a ardente bondade de seu coração e sua forte

constituição mantê-lo-iam sempre, em condições razoavelmente supor-

táveis, acima das susceptibilidades descontroladas e mesquinhas que

dão forma ao mau gênio. Mas agora ele era presa dessa irritação ainda

pior que provém não só dos aborrecimentos, mas também da consciên-

cia secundária, subjacente aos aborrecimentos, do desperdício de ener-

gia e de uma preocupação degradante, que era o reverso de todos os

seus prévios desígnios. " nisto que estou pensando; mas naquilo é que o

deveria estar" era o murmúrio incessante e amargo em seu íntimo, que

fazia de cada dificuldade uma dupla instigação à impaciência.

Alguns senhores fizeram bela figura na literatura por um desconten-


tamento geral com o universo como uma armadilha de insipidez na qual

suas grandes almas caíram por engano; mas a idéia de um ser estupendo

e um mundo insignificante pode ter suas consolações. O descontenta-

mento de Lydgate era muito mais duro de suportar; compunha-o a idéia

de haver uma grandiosa existência no pensar e na ação eficaz que à sua

volta jaziam, enquanto seu ser se constringia no isolamento deplorável

das apreensões egoístas e na vulgar ansiedade por fatos capazes de aquietar

estas apreensões. Seus problemas hão talvez de parecer desprezivelmente

sórdidos e indignos da atenção de pessoas excelsas que nada podem

saber de dívidas, a não ser numa escala grandiosa, Sem dúvida, eram

mesmo sórdidos; e para a maioria, que não é excelsa, não há como esca-

par à sordidez senão estando livre do anseio por dinheiro, com todas as

suas baixas tentações e esperanças, sua espreita da morte, suas solicita-

ções indiretas, seu desejo de alquilador de fazer passar um mau trabalho

por bom, sua avidez por funções que devem caber a outros, sua freqüen-

te compulsão de anelar pela Sorte sob a forma de uma desgraça qual-

quer.

Era por estorcer-se com a idéia de meter seu pescoço sob este jugo

vil que Lydgate havia caído num estado de soturna amargura que au-

mentava continuamente o afastamento de Rosamond em relação a ele.

Após a primeira revelação sobre o instrumento de venda, muitos esfor-

ços já fizera para atraí-la a concordar consigo sobre as possíveis medidas

para reduzir suas despesas, e, com a ameaçadora chegada do Natal, suas

MIDDLEMARCH

683

propostas se tornaram cada vez mais concretas. "Nós dois podemos vi-

ver com uma empregada só," dizia então, "e também com um só cavalo

eu me ajeito." Pois Lydgate, como já vimos, havia começado a pensar,


com uma visão mais clara, nas despesas domésticas, e qualquer parcela

de orgulho que tivesse concedido a aparências do gênero era pouca em

comparação com o orgulho que o fazia rebelar-se de expor-se como de-

vedor ou de ir pedir a outros homens a ajuda de seu dinheiro.

"Claro que se pode dispensar os outros dois criados, se você quiser,"

disse Rosamond; "quer-me parecer no entanto que seria muito prejudi-

cial à sua posição se nós vivêssemos de um modo pobre. Você deve

esperar que sua clientela então diminua."

"Não é uma questão de escolha, minha querida Rosamond. Nossos

gastos iniciais foram exagerados. O Peacock, como você sabe, vivia numa

casa muito menor do que esta.  culpa minha: eu deveria ter pensado

melhor, e mereço uma surra - se houvesse alguém com direito a dar-me

- por colocá-la na necesidade de viver de um modo pobre, ao qual você

não foi acostumada. Mas nós nos casamos porque nos amávamos, supo-

nho. E isto pode ajudar-nos a ir tocando o barco até que as coisas me-

lhorem. Agora, meu bem, deixe este trabalho de lado e venha para junto

de mim."

Na realidade ele se achava no momento numa fria indiferença em

relação a ela, mas, temendo um futuro sem afeto, estava determinado a

resistir à divisão que se estabelecia entre os dois. Rosamond obedeceu,

e ele a pôs no colo, se bem que ela estivesse, no mais íntimo de si mes-

ma, profundamente afastada dele. A pobrezinha via apenas que o mun-

do não se organizava a seu gosto, e Lydgate era parte deste mundo.

Com uma das mãos ele a pegou na cintura, e suavemente cobriu as dela

com a outra; pois este homem meio brusco denotava muita ternura nos

seus modos em relação às mulheres, como se na imaginação tivesse sem-

pre presente a fraqueza de suas constituições e, quer no corpo, quer na

mente, o delicado equilíbrio da saúde delas. E num tom persuasivo co-

meçou a falar de novo.

"Venho notando, Rosy, agora que eu olho um pouco as coisas, que

espantosa dinheirama se esvai no trem de vida que levamos. Os criados


a meu ver são negligentes, e temos recebido gente demais. Mas deve

haver muitos de nossa classe que com bem menos se ajeitam: devem-se

contentar com coisas mais modestas, suponho, e prestar atenção nas

sobras. O dinheiro, ao que parece, não é o que mais influi na questão,

pois tudo o que o Wrench tem é o mais simples possível, e a clientela

dele é enorme."

684

GEORGE ELIOT

"Oh, se você pensa em viver como os Wrenchs!" disse Rosamond,

torneando ligeiramente o pescoço. "Mas já o ouvi expressar seu desa-

grado por este modo de vida."

"De fato, em tudo eles têm mau gosto - tornam a economia feia.

Não é preciso que façamos o mesmo. Eu só quis dizer que eles evitam

despesas, embora o Wrench tenha uma clientela excelente."

"Mas por que sua clientela não há também de ser boa, Tertius? A de

Mr. Peacock era. Você devia ser mais cuidadoso para não melindrar as

pessoas, e receitar remédios como os outros fazem. Tenho certeza de

que seu começo foi bom, com a conquista de várias boas famílias. O que

não dá certo é ser excêntrico; você devia era pensar no que é do agrado

geral," disse Rosamond, num tom decidido, mas leve, de admoestação.

Lydgate se enfureceu; estava preparado para ser indulgente com a

fraqueza feminina, mas não com as prescrições femininas. A superficiali-

dade da alma de uma ninfa das águas pode ter seu encanto até que ela se

torne didática. Ele porém se controlou e, com um toque de firmeza des-

pótica, disse apenas:

"Cabe a mim julgar, Rosy, o que devo fazer em minha clínica. Não é

esta a questão entre nós. Basta você saber que nossa renda provavel-

mente será muito modesta - umas quatrocentas libras, se tanto, por


um bom tempo - e que devemos tentar reformular nossa vida de acor-

do com este fato."

Rosamond ficou calada por alguns momentos, olhando em frente, e

depois disse: "Meu tio BuIstrode deveria atribuir-lhe um salário pelo

tempo que você dedica ao Hospital: não está certo que tenha de traba-

lhar de graça."

"Foi acertado desde o início que meus serviços iam ser gratuitos. E

isto também não precisa entrar em nossa discussão. A única probabili-

dade foi a que eu já indiquei," disse Lydagte, com impaciência. Depois,

refreando-se, prosseguiu mais calmo:

"Acho que eu vejo uma saída que nos livraria de boa parte da dificul-

dade atual. Ouvi dizer que aquele rapaz, o Ned Plymdale, vai-se casar

com Miss Sophy Toller. Eles são ricos, e não é comum que haja em

Middemarch uma boa casa vazia. Tenho certeza de que eles gostariam

de ficar com a nossa, incluindo a maioria dos móveis, e de que estariam

dispostos a pagar muitíssimo bem por ela. Posso recorrer ao Trumbull

para falar com o Plymdale sobre isto."

Rosamond desceu do colo do marido e caminhou lentamente até a

outra extremidade da sala; quando se virou, vindo outra vez em sua

direção, era evidente que lágrimas lhe haviam brotado, pois de mãos

MIMUMARCH

685

entrelaçadas ela mordia os lábios para não se entregar ao choro. Lydgate

estava arrasado - tremia de raiva, sentindo indigno de um homem,

porém, ventilar agora esta raiva.

"Sinto muito, Rosamond; sei que é doloroso."

"Eu pensei, quando tive de suportar a devolução da baixela e o in-

ventário dos móveis que aquele homem andou fazendo, - pensei que
isto já seria o bastante."

"Eu lhe expliquei na época, meu bem. Isto foi só uma garantia, e por

trás desta garantia há uma dívida. E é uma dívida que precisa ser paga

dentro dos próximos meses, porque senão teremos nossa mobília vendi-

da. Se o Plymdale ficar com a casa e com a maioria dos móveis, seremos

capazes de pagar não só esta dívida, mas também algumas outras, e nos

livraremos de um lugar que para nós é caro demais. Podemos arranjar

uma casa menor: sei que o Trumbull tem uma muito decente para alugar

por trinta libras ao ano, e esta aqui sai por noventa." Lydgate proferiu seu

discurso martelando breve e rispidamente as palavras, do mesmo modo

como em geral tentamos incutir fatos imperiosos nalguma mente confusa.

Lágrimas silenciosas rolaram pelo rosto de Rosamond; de pé, limitando-

se a enxugá -las com o lenço, ela olhava para o grande vaso sobre o conso-

lo da lareira. Nunca ela havia sentido uma amargura tão intensa como a

desse momento. Por fim disse, sem pressa e com cuidadosa ênfase:

"Eu jamais poderia acreditar que lhe agradasse agir deste modo."

"Agradar-me?" exclamou Lydgate, levantando-se e enfiando as mãos

nos bolsos para com passos altivos se afastar da lareira; "não é disto que

se trata. Claro está que não me agrada; é a única coisa que me resta

fazer." Depois, girando sobre seus calcanhares ele se virou para ela.

"Quer-me parecer que há outras soluções que não esta," disse

Rosamond. "Podíamos levar tudo a leilão e sair de Middernarch de vez."

"Para fazer o quê? De que resolve eu deixar meu trabalho em

Middemarch e ir para um lugar onde não tenha nenhum? Quer aqui,

quer alhures, nós estaríamos na mesma penúria," disse Lydgate, ainda

mais zangado.

"Se for para ficarmos nesta situação, será inteiramente por Sua cau-

sa, Tertius," disse Rosamond, voltando-se para falar cheia de convicção.

"Você se nega a proceder como deveria com sua própria família. Você

ofendeu o Capitão Lydgate. Sir Godwin foi muito gentil comigo, quando

estivemos em Quallingham, e estou certa de que, se mostrasse a devida


consideração para com ele e lhe falasse dos seus problemas, ele faria

alguma coisa por você. Agrada-lhe porém, ao invés disto, dar a Mr. Ned

Plymdale nossa casa e os móveis."

686

GEORGE ELIOT

Dir-se-ia haver algo de ameaçador nos olhos de Lydgate, quando ele

respondeu com ainda mais violência: "Bem, se é assim então que voce

quer, isto me agrada. Admito que prefiro esta solução a fazer de mim

mesmo um parvo, indo pedir aonde não adianta. Entenda pois que é

isto o que me agrada fazer."

A última sentença foi proferida num tom que equivalia à pressão de

sua mão muito forte no braço delicado de Rosamond. A despeito de

tudo, sua vontade não era porém mais forte que a dela, nem um pouco.

Imediatamente ela saiu da sala em silêncio, mas determinada com fir-

meza a impedir o que a Lydgate agradaria fazer.

Por sua vez ele saiu de casa e, à medida que seu sangue esfriava,

sentiu que o principal resultado da discussão era um temor depositado

em seu íntimo ante a idéia de vir a abordar com a esposa, no futuro,

outros temas que poderiam arrastá-lo de novo a uma expressão violen-

ta. Era como se no delicado cristal uma rachadura tivesse tido início,

deixando-o receoso de qualquer movimento capaz de a tornar fatal. Seu

casamento seria um mero exemplo de amarga ironia se eles não continuas-

sem a se amar um ao outro. Há muito tempo ele havia chegado a uma

conclusão sobre o que entendia como um aspecto negativo dela - sua

falta de sensibilidade, que se revelava na desconsideração tanto pelos

desejos específicos quanto pelos objetivos gerais que ele tinha. A pri-

meira grande decepção fora suportada: era preciso renunciar à dedicação

carinhosa e à dócil adoração da esposa ideal, tomando a vida num grau


mais baixo de expectativa, tal como os homens que sofrem a amputação

de algum membro. Mas a esposa real, além de ter exigências próprias,

ainda tinha também um lugar em seu coração, e era de seu intenso dese-

jo que este lugar permanecesse importante. No casamento, a certeza de

que "ela nunca terá muito amor por mim" é mais fácil de agüentar do

que o medo de que "eu não terei mais amor por ela." Assim, depois

daquela explosão, seu esforço interior foi perdoá-la de todo e pôr a cul-

pa nas duras circunstâncias pelas quais ele em parte era o responsável.

Mimando-a nessa noite, ele tentou curar a ferida que abrira pela manhã,

e não estava na natureza de Rosamond dar-se à repulsão ou a amuos;

com efeito ela recebeu de bom grado os sinais de que o marido a amava

e estava sob controle. Isto porém era uma coisa bem distinta de sentir

amor por ele.

Lydgate teria preferido não voltar tão cedo ao plano de desfazer-se

da casa; resolvera colocá-lo em prática e dizer a respeito o mínimo pos-

sível. Mas a própria Rosamond, durante o desjejum, tocou no assunto,

dizendo em tom conciliador:

MIMUMARCH

"Você já conversou com o Trumbull?"

"Não," disse Lydgate, "mas vou procurá -lo esta manhã, quando pas-

sar pela casa dele. Não há tempo a perder." Tomando a pergunta de

Rosamond por um sinal de que ela não mais se opunha à idéia, ao levan-

tar-se para sair beijou-a carinhosamente na testa.

Assim que chegou a hora adequada para fazer uma visita, Rosamond

foi à casa de Mrs. Plymdale, mãe de Mr. Ned, onde logo se derramou em

congratulações pelo vindouro casamento. Pela óptica maternal de Mrs.

Plymdale, era bem possível que Rosamond agora tivesse vislumbres re-

trospectivos de sua própria tolice; e, sentindo que nas atuais circunstân-

cias a vantagem estava toda do lado de seu filho, era mulher muito gen-
til para não se portar com gentileza.

"Pois é, o Ned está feliz da vida, sabe? E a Sophy Toller é tudo o que

eu podia desejar como nora. Claro que o pai tem condições de fazer

alguma coisa bem significativa por ela - não se poderia esperar senão

isto, com uma cervejaria como a dele. A família corresponde aos nossos

anseios. Mas não é no que mais atento. Ela, sim, é que é uma ótima

moça - sem pretensões, sem grandes ares, se bem que num nível de

primeira grandeza. Não me refiro aos que têm titulos de nobreza. Não

vejo nada de muito bom nas pessoas que almejam sair de sua própria

esfera. Refiro-me ao fato de a Sophy igualar-se ao que há de melhor na

cidade e estar contente com istof

"Eu sempre a achei muito agradável," disse Rosamond.

"Vejo como uma recompensa ao Ned, que nunca foi de levantar de-

mais a cabeça, ele ter-se ligado a uma família excelente," continuou Mrs.

Plymdale, com sua mordacidade inata abrandada pela férvida impressão

de assumir uma postura correta. "E pessoas como os Tollers, exigentes

como são, poderiam fazer objeções porque alguns dos nossos amigos

não pertencem à sua roda.  bem sabido que sua tia Bulstrode e eu

somos íntimas desde a juventude, e Mr. Plymdale sempre esteve do lado

de Mr. Bulstrode. Eu mesma prefiro as opiniões sérias. Mas os Tollers,

mesmo assim, deram boa acolhida ao Ned."

"Bem sei que ele é um rapaz de bons princípios e muito merecedor,"

disse Rosamond, com um claro ar protetor, em retribuição às salutares

emendas de Mrs. Plymdale.

"Oh, ele não tem o jeito de um capitão do exército, não se comporta

como se todos estivessem abaixo dele, nem é do tipo que se exibe falan-

do cantando, mostrando seus dons intelectuais. Mas dou graças a Deus

que não o seja. Isto é um preparo que deixa a desejar, tanto para aqui

quanto para o Além."

687
688

GEORGE ELIOT

"Oh, sem dúvida; as aparências muito pouco têm a ver com a felici-

dade," disse Rosamond. "Tudo indica a meu ver que eles vão ser um

casal feliz. Em que casa irão morar?"

"Oh, terão de se ajeitar com a que conseguirem. Andaram olhando

aquela casa da Praça de Saint Peter, vizinha à de Mr. Hackbutt; ela tam-

bém pertence a ele, que a está reformando muito bem. Não penso ser

provável que saibam de uma melhor. Acho aliás que o Ned vai decidir

isto hoje."

" uma ótima casa, ao que me parece; eu gosto daquela praça."

"Bem, fica perto da Igreja e num lugar elegante. Mas as janelas são

estreitas, e ela é toda cheia de altos e baixos. Por acaso você sabe de

alguma que esteja livre?" disse Mrs. PIyrndale, fixando em Rosamond

seus olhos arredondados e negros, nos quais havia a animação de uma

idéia súbita.

"Oh, não; ouço falar tão pouco dessas coisas."

Rosamond não previra esta pergunta, nem a resposta, ao se preparar

para fazer a visita; tinha querido simplesmente obter alguma informação

que a pudesse ajudar a não se desfazer de sua própria casa em circuns-

tâncias que lhe eram profundamente desagradáveis. Quanto à inverdade

em sua resposta, nada ela pensou a respeito, como também não refletiu

sobre a falsidade que havia quando disse que as aparências pouco ti-

nham a ver com a felicidade. Seu objetivo, estava convencida, justifica-

va-se plenamente: a intenção de Lydgate é que era imperdoável; e ela

tinha um plano na cabeça que, uma vez executado à risca, provaria que

passo em falso teria sido para ele, se de fato descesse da posição em que

estava.
Ao voltar para casa, ela passou pelo escritório de Mr. Borthrop

Trumbull, a fim de falar com ele. Era a primeira vez em sua vida que

Rosamond pensava em se envolver com negócios, mas sentia-se à altura

da ocasião. Ser obrigada a fazer algo que lhe desagradava imensamente

era uma idéia que transformava sua tenacidade calma em invenção ati-

va. Aqui estava um caso no qual não poderia bastar apenas desobedecer

e ser serena, placidamente obstinada: ela tinha de agir segundo seu jul-

gamento, e a si mesma disse que seu julgamento estava correto - "se

não estivesse, com efeito, ela não teria desejado agir com base nele."

Mr. Trumbull estava numa sala nos fundos do escritório e recebeu

Rosamond com a maior distinção, não só porque era sensível demais

aos seus encantos, mas também porque as fibras de bondade que nele

havia foram tocadas pela certeza de que Lydgate estava em apuros e de

que esta mulher incomumente bonita - esta jovem senhora dos mais

MIDDLEMARCH

689

altos atrativos pessoais - ia provavelmente sentir o dissabor dos pro-

blemas - ver-se envolvida em circunstâncias além de seu controle. Após

pedir que ela lhe concedesse a honra de sentar-se, ele se pôs à sua frente

endireitando-se todo e comportando-se com uma solicitude ansiosa e

cheia de benevolência. A primeira pergunta de Rosamond foi se seu

marido havia estado com Mr. Trumbull esta manhã, falando em passar

sua casa.

"Sim, madame, ele esteve aqui; esteve aqui para isto," disse o bom

leiloeiro, tentando com sua repetição tranqüilizá -la. "Eu já ia hoje à

tarde, se possível, cumprir as ordens que deu. Ele quer que eu aja sem

maiores delongas."

"Vim procurá-lo para dizer-lhe que não dê nenhum passo, Mr.


Trumbull; e peço-lhe não mencionar a ninguém o que foi dito do assun-

to. O senhor me faria este favor?"

"Certamente que sim, madame, certamente. O sigilo para mim é

sagrado, nos negócios e em tudo o mais. Devo então considerar que a

incumbência fica suspensa?" disse Mr. Trumbuil, ajustando as longas

pontas de sua gravata azul com as duas mãos e olhando, cheio de defe-

rência, para Rosamond.

"Sim, por favor. Vim a saber que Mr. Ned Plymdale já arranjou uma

casa - a da Praça de Saint Peter, vizinha à de Mr. Hackbutt. Mr. Lydgate

ficaria aborrecido se suas ordens fossem cumpridas sem razão de ser.

Além disto, há outras circunstâncias que tornam desnecessária a pro-

posta."

"Muito bem, Mrs. Lydgate, muito bem. Ponho-me às suas ordens,

sempre que precisar dos meus serviços," disse Mr. Trumbull, que sentia

prazer em conjecturar que novas soluções teriam sido encontradas. "Tode

confiar em mim. O negócio não irá adiante."

Nessa noite Lydgate se consolou um pouco ao observar que

Rosamond estava mais cheia de vida do que em geral se mostrava ulti-

mamente, e até parecia interessada em fazer, sem ser solicitada, o que a

ele causasse agrado. Ele então pensou: "Se ela ficar feliz e eu me puder

agüentar, que significação terá tudo isto? Apenas a de um atoleiro es-

treito pelo qual temos de passar durante uma viagem longa. E eu o farei,

se conseguir ter minha mente clara de novo."

Estava tão animado que se pôs à procura de uma descrição de expe-

rimentos que de há muito vinha querendo examinar, mas da qual acaba-

ra por esquecer-se, em virtude desse desespero que se apossa da alma

na esteira das preocupações mais mesquinhas. Sentiu de novo algo da

antiga absorção prazerosa numa investigação de longo alcance, enquan-

690
GEORGE ELIOT

to Rosamond ia tocando a música serena que era tão útil às suas medi-

tações quanto as batidas de um remo na escuridão do lago. Era já um

pouco tarde; afastados de si todos os livros, ele olhava para o fogo com

as mãos cruzadas na nuca e se abstraía de tudo, menos a elaboração de

um novo experimento de controle, quando Rosamond, que saíra do pia-

no e se reclinava numa cadeira a observá-lo, disse:

"Mr. Ned Plymdale já conseguiu uma casa."

Lydgate, sobressaltado, por um momento ergueu em silêncio os olhos,

como um homem que fosse perturbado em seu sono. Depois, corando

por ter na consciência algo que incomodava, perguntou:

"Como você sabe?"

"Fui hoje de manhã à casa de Mrs. Plymdale, e ela me disse que ele

já havia ficado com a casa da Praça de Saint Peter que é vizinha à de Mr.

Hackbutt."

Lydgate ficou quieto. Tirou as mãos de trás da cabeça para com elas

ajeitar o cabelo que, como costumava ocorrer, caía-lhe em profusão na

testa, ao mesmo tempo em que apoiava nos joelhos seus cotovelos. Sentia

um amargo desapontamento, como se ao abrir uma porta para sair de

um lugar sufocante a tivesse encontrado emparedada; mas sentia-se tam-

bém convicto de que Rosamond estava contente com a causa de seu

desapontamento. Preferiu não olhar para ela, nem falar, antes de haver

superado o primeiro espasmo de irritação. Afinal de contas, dizia-se em

sua amargura, o que pode interessar a uma mulher mais do que a casa e

os móveis? sem isto, um marido é um absurdo. Quando, tendo puxado

o cabelo para trás, ele levantou a cabeça, a expressão impotente e infeliz

de seus olhos negros não denotava a menor expectativa de simpatia e,

friamente, ele disse apenas:

"Talvez apareça outra pessoa. Eu disse ao Trumbull para ficar de


olho, caso não fosse bem sucedido com o Plymdale."

Rosamond não fez nenhuma observação. Confiava no acaso para

que nada mais se passasse entre seu marido e o leiloeiro até surgir al-

gum fato novo que justificasse sua interferência; de qualquer modo, ela

havia impedido o desfecho que de imediato temia. Depois de uma pau-

sa, disse:

"A quanto monta o dinheiro que essas desagradáveis pessoas querem?"

"Que desagradáveis pessoas?"

"Aquelas que levaram a lista - e as outras. Pergunto qual a quantia

capaz de satisfazê-las, para que você não precise mais se preocupar?"

Lydgate examinou-a um instante, como que em busca de sintomas,

e então disse: "Oh, se eu conseguisse do Plymdale seiscentas libras, pela

MIDDLEMARCH

691

mobília e como luvas, eu me ajeitaria. Poderia pagar o Dover e dar aos

outros algum por conta, para fazê-los esperar com paciência enquanto

reduzíssemos as nossas despesas."

"Mas o que eu quero saber é de quanto você precisaria para nós

ficarmos na casa?"

"Mais do que provavelmente eu conseguiria arranjar em qualquer

parte," disse Lydgate, com uma nota algo dissonante de sarcasmo em

seu tom. Dava-lhe raiva perceber que a mente de Rosamond vagava em

meio a impraticáveis desejos, ao invés de encarar os esforços que era

possível fazer.

"Por que não mencionar a quantia?" disse Rosamond, com uma li-

geira indicação de que seus modos não lhe agradavam.

"Bem," disse Lydgate, em tom de quem calculava, "para eu ficar em

paz seria preciso pelo menos mil libras. Mas," acrescentou incisivamen-
te, "tenho de pensar no que fazer sem este dinheiro, não com ele."

Rosamond não disse mais nada.

Mas no dia seguinte ela pôs em prática seu plano de escrever a Sir

Godwin Lydgate. Após a visita do Capitão, havia recebido uma carta

dele e outra de Mrs. Mengan, sua irmã casada, consolando-a pela perda

do bebê e expressando vagamente a esperança de que voltassem a se ver

em Quallingham. Lydgate lhe tinha dito que esta polidez nada significa-

va; mas ela, intimamente convencida de que o eventual retraimento da

família de Lydgate em relação a ele era devido a seu comportamento

desdenhoso e frio, respondera as cartas com a maior delicadeza possível

e até certo ponto confiante de que um convite especifico se seguiria.

Houve porém um silêncio absoluto. O Capitão evidentemente não era

um ás da escrita, e Rosamond imaginou que talvez as irmãs dele estives-

sem no exterior. Contudo, chegara a estação na qual se pensa em ter

amigos em casa, e de qualquer modo Sir Godwin, que pegando-a pelo

queixo a declarou parecida com uma mulher de decantada beleza, Mrs.

Croly, a qual o conquistara em 1790, haveria de comover-se com um

apelo feito por ela e acharia até agradável, por sua causa, comportar-se

como deveria para com seu sobrinho. Rosamond estava ingenuamente

convencida do que caberia a um velho cavalheiro fazer para impedi-la de

expor-se a padecimentos. E assim escreveu o que considerava a carta

mais ponderada possivel - uma carta que impressionaria Sir Godwin

como prova de seu excepeional bom senso - assinalando quão desejá-

vel seria que Tertius se mudasse de um lugar feito Middemarch para

outro mais conforme à sua capacidade, como a índole desprazível dos

moradores havia obstado ao seu sucesso profissional e como em conse-

692

GEORGE ELIOT
qüência ele estava em dificuldades financeiras, para sair de vez das quais

necessitaria de mil libras. Ela não disse que Tertius ignorava sua decisão

de escrever; pois achava que, supondo-se que ele aprovasse a carta, isto

estaria de acordo com o que ela dizia da grande estima dispensada pelo

marido a seu tio Godwin como o parente que sempre fora seu melhor

amigo. Tal era a força das táticas da pobre Rosamond, agora que ela as

aplicava aos negócios.

Isto havia acontecido antes da festa do Dia de Ano Novo, e da parte

de Sir Godwin ainda não chegara resposta. Mas na manhã desse mesmo

dia Lydgate veio a saber que Rosamond havia revogado sua ordem a

Borthrop Trumbull. Sentindo ser necessário que gradativamente ela se

acostumasse à idéia de sair da casa em Lowick Gate, ele venceu sua

relutância em lhe falar de novo do assunto e, quando tomavam seu

desjejum, disse:

"Vou tentar estar com o Trumbull agora de manhã e dizer-lhe para

anunciar a casa no "Pioneiro" e na "Trombeta." Pode bem ser que alguém

que antes nem pensava em mudança se incline agora a ficar com ela,

desde que a coisa seja anunciada. Nessas regiões rurais, muita gente

continua a viver nas velhas casas de sempre, mesmo quando elas já não

comportam mais as famílias, só por falta de saber onde encontrar uma

outra. E ao que parece o Trumbull ainda não achou ninguém."

Rosamond viu que o momento inevitável tinha chegado. "Eu man-

dei que o Trumbull não procurasse mais," disse ela, com uma calma

cuidadosa que, evidentemente, era defensiva.

Em muda perplexidade Lydgate olhou para ela. Havia apenas meia

hora que ele estivera a amarrar suas tranças e a lhe falar na "linguazinha"

da afeição que Rosamond aceitava, se bem a não retribuísse, como se

ela fosse uma imagem encantadora e serena que ocasional e milagrosa-

mente sorria, mostrando suas covinhas, para o fiel devoto. Com tais

fibras fremindo ainda em seu corpo, o choque que ele recebeu não podia

ser logo e distintamente raiva; era uma dor confusa. Pondo de lado o
garfo e a faca que estava usando, e comprimindo-se contra o espaldar da

cadeira, finalmente ele disse, com uma ironia fria na voz:

"Posso perguntar quando e por que você fez isto?"

"Quando eu soube que os Plymdales já tinham conseguido uma casa,

procurei-o para dizer-lhe que não lhes falasse da nossa e, ao mesmo

tempo, para não ir adiante com o negócio. Sabia que seria muito preju-

dicial a você se se tornasse público que desejava desfazer-se de sua casa

e dos móveis, coisa a que eu fazia muita objeção. Creio que era razão

suficiente."

MIMUMARCH

693

"Então não adiantou nada eu lhe ter exposto razões imperiosas de

outra espécie; não adiantou nada eu ter chegado a uma conclusão diferen-

te, e dado uma ordem de acordo com ela?" disse Lydgate violentamente,

com um prenúncio de trovão e raio estampado em seu semblante.

Sobre Rosamond, o efeito da cólera de qualquer um sempre fora

fazê-la retrair-se em fria desaprovação e tornar-se ainda mais calma e

correta, na convicção de que não era ela pessoa a comportar-se mal,

fosse o que fosse o que os outros fizessem. Ela respondeu:

"Penso que eu tinha todo o direito de ir falar de um assunto que

interessa tanto a mim quanto a você."

"Claro - você tinha o direito de falar, mas só comigo. Não tinha o

direito de contrariar em segredo as minhas ordens e de tratar -me como

se eu fosse um tolo," disse Lydgate, no mesmo tom de antes. E aí, acres-

centando-lhe desprezo: "Será possível fazê-la compreender quais serão

as conseqüências? Adianta eu lhe dizer de novo por que devemos tentar

nos desfazer desta casa?"

"Não é preciso que me diga outra vez," disse Rosamond numa voz
que saiu pingada e soou como gotas de água fria. "Lembro-me do que

falou. E de que falou com a mesma violência de agora. Mas isto não

muda minha opinião de que você devia tentar todos os outros meios,

antes de dar um passo que me faz sofrer. Quanto a anunciar a casa,

penso que seria perfeitamente degradante para você."

"Suponha que eu desconsidere a sua opinião como você desconsiderou

a minha?"

"Pode fazê-lo, é claro. Mas penso que me deveria ter dito, antes de

nos casarmos, que seria capaz de deixar-me na pior posição, antes de

abrir mão da sua própria vontade."

Lydgate não disse nada, mas jogou a cabeça para um lado e espichou os

cantos da boca, em desespero. Rosamond, vendo que ele não estava olhan-

do para ela, levantou-se e colocou diante dele sua xícara de café; sem dar

atenção a isto ele prosseguiu em seu drama e argumentação interiores,

mexendo-se de quando em quando na cadeira, pondo um braço na mesa e

esfregando a mão no cabelo. A confluência de pensamentos e emoções em

seu íntimo nem lhe permitiria dar livre vazão à cólera nem perseverar na

simples rigidez da decisão. Rosamond tirou vantagem do silêncio dele.

"Quando nós nos casamos, todos achavam que sua situação era muito

boa. Eu não podia imaginar então que você chegaria a querer vender

nossos móveis e alugar uma casa em Bride Street, onde os cômodos são

umas gaiolas. Se for para viver deste modo, pelo menos vamos sair de

Middemarch."

694

GEORGE ELIOT

"Estas seriam considerações muito fortes," disse Lydgate, meio iro-

nicamente - mas havia uma acentuada palidez em torno de seus lábios

quando ele olhou para o café, e não bebeu - "seriam considerações


muito fortes se por acaso eu não estivesse endividado."

"Muita gente já esteve endividada, mas, se são pessoas responsá-

veis, os outros confiam nelas. Tenho certeza de ouvir papai dizer que os

Torbits andaram endividados e por fim se saíram bem. Não pode ser

bom agir precipitadamente," disse Rosamond, com serena sabedoria.

Lydgate foi paralisado por impulsos opostos: já que nenhum argu-

mento que ele apresentava parecia tendente a conquistar a aquiescência

de Rosamond, sentiu vontade de quebrar e esmagar algum objeto, para

com isto pelo menos causar uma impressão, ou então de dizer-lhe bru-

talmente que ele era o senhor, e ela tinha de obedecer. Mas ele não

somente temia o efeito de tais extremos sobre sua vida em comum -

tinha também um temor crescente da tranqüila e evasiva obstinação de

Rosamond, que não permitia que nenhuma afirmação de poder fosse

definitiva; e de novo ela o tocara num ponto de grande susceptibilidade,

dando a entender que havia sido enganada com uma falsa visão de feli-

cidade ao se casar com ele. Quanto a se dizer o senhor, isto não

correspondia à verdade. Como a própria decisão à qual ele se havia im-

pelido à força de lógica e honroso orgulho já começava a enfraquecer,

sendo torpedeada por ela, ele engoliu metade da xícara de café e levan-

tou-se para sair.

"Posso ao menos lhe pedir que não procure já o Trumbull - antes

de ser visto se não há outros meios?" disse Rosamond. Embora não

fosse muito sujeita ao medo, achou mais seguro não revelar que ela

havia escrito a Sir Godwin. "Prometa-me que não irá procurá-lo por al-

gumas semanas, nem sem falar comigo."

Lydgate deu uma risadinha. "Sou eu, creio, quem deve obter uma

promessa de que você nada fará sem falar comigo," disse ele, olhando-a

de modo bem penetrante, e depois se afastando para a porta.

"Não esqueça que nós vamos jantar no papai hoje," disse Rosamond,

à espera de que ele se virasse e lhe fizesse uma concessão mais clara.

Mas ele disse apenas: "Ah, é," impacientemente, e saiu. Ela considerou
muito odioso ele não ter pensado que as propostas que tivera de fazer-

lhe já eram tão dolorosas que dispensavam a demonstração de um hu-

mor tão desagradável. E cruel da parte dele, quando ponderadamente

ela lhe pediu para adiar sua volta ao Trumbull, nada assegurar das inten-

ções que tinha. Estava convencida de ter agido, sob todos os aspectos,

pelo melhor; e cada rosnada ou palavra irada de Lydgate servia apenas

MIDUEMARCH

695

como um acréscimo ao rol de ofensas já em sua mente. Fazia meses que

a pobre Rosamond havia começado a associar seu marido a sentimentos

de decepção, e a relação do casamento, terrivelmente inflexível, havia

perdido seu encanto de estimular sonhos de prazer. O casamento a li-

bertara do desconforto de estar na casa do pai, mas não lhe dera tudo o

que havia desejado e esperado. O Lydgate por quem sentira amor foi

para ela um conjunto de condições quiméricas, já desaparecidas em sua

maioria enquanto seu lugar era ocupado por detalhes cotidianos com os

quais viver lentamente, de hora em hora, e não por entre os quais flutuar

com uma rápida seleção de aspectos favoráveis. Os hábitos da profissão

de Lydgate, sua obsessão em casa com as questões científicas, quase

correspondentes para ela ao gosto de um vampiro mórbido, certos

enfoques particulares dele que nunca haviam surgido nos diálogos do

namoro - todas estas influências por uma alienação contínua, mesmo

sem o fato de ele se ter posto em desvantagem na cidade, mesmo sem

aquele primeiro choque da revelação sobre a dívida com Dover, já toma-

riam sua presença enfadonha para ela. Havia uma outra presença que,

desde os primeiros dias de seu casamento e sempre, até apenas quatro

meses atrás, perdurara como excitação agradável, mas já se fora:


Rosamond não confessaria a si mesma o quanto o conseqüente vazio

tinha a ver com seu nrofundo ennui- e narecia-lhe (talvez ela estivesse

certa) que um convite a Quallingham e uma perspectiva para Lydgate

instalar-se noutro lugar que não Middemarch - em Londres, ou algum

canto potencialmente livre de problemas - a deixariam de todo satisfei-

ta e a tomariam indiferente à ausência de Will Ladislaw, em relação ao

qual ela Quardava certo ressentimento, Dor sua exaltação de Mrs.

Casaubon

Tal era o estado de coisas entre Lydgate e Rosamond no Dia de Ano

Novo, quando jantaram no pai dela, ela se mostrando ligeiramente indi-

ferente em relação a ele, em lembranca de seu comportamento genioso

no desjejum, ele sob um efeito bem mais forte do conflito íntimo de que

a cena dessa manhã fora apenas um dos muitos episódios. Seu esforço

ruborizado ao conversar com Mr. Farebrother - seu esforço para pretextar

com cinismo que todos os meios de ganhar dinheiro são essencialmente

o mesmo, e que o acaso exerce um império que reduz a escolha à ilusão

de um tolo - foi avenas o sintoma de uma decisão abalada, uma rés-

posta entorpecida aos velhos estímulos do entusiasmo.

Que deveria ele fazer? Melhor até que a própria Rosamond, via

tristeza que seria levá-la para uma casinha em Bride Street, onde ela

teria escassos móveis em torno e um baita descontentamento Dor den-

696
GEORGE ELIOT

tro: uma vida de privações e a vida com Rosamond eram duas imagens

que se haviam tomado cada vez mais inconciliáveis, desde que a ameaça

de privações se revelara. Mas, mesmo que suas resoluções forçassem as

duas imagens a se combinar, as preliminares necessárias a esta dura

mudança não estavam visivelmente ao alcance. E ele, embora não hou-

vesse feito a promessa pedida por sua esposa, não voltou a estar com

Trumbull. Começou até a pensar numa rápida viagem ao Norte para fa-

lar com Sir Godwin. Acreditara noutras épocas que nada o forçaria a

fazer um pedido de dinheiro ao seu tio, mas então não conhecia a pres-

são completa de alternativas ainda mais desagradáveis. Não poderia

depender do efeito de uma carta; somente numa conversa pessoal, por

mais desagradável que fosse para ele, poderia dar uma explicação bem

dada e testar a eficácia do parentesco. Bastou Lydgate começar a pensar

neste passo como o mais fácil para advir-lhe uma reação raivosa de que

ele - ele que de há muito se determinara a viver longe de tais cálculos

abjetos, tais inquietações de interesse pelas inclinações e os bolsos de

homens com os quais ele se orgulhava de não ter um só objetivo em

comum - tivesse caído não só no nível deles, mas no nível de recorrer a

eles também.

CAPíTULo LXV

"One of us two must bowen douteless,

And, sith a man is more reasonable

Than wornan is, ye [men] moste be suffrable."

- CHAUCER: Canterbury Tales.

€"Sem dúvida um de nós tem de curvar-se


E, posto ser o homem mais pensante

Do que a mulher, seja ele o tolerante.")

- CHAUCER: Contos de Canterbury.1

A TENDêNCIA DA NATUREzA humana à lentidão na correspondência tri-

unfa até da presente aceleração do andamento geral das coisas: por

que então se espantar se em 1832 o velho Sir Godwin Lydgate foi lento

para escrever uma carta que interessava mais a outros do que a ele

mesmo? Passadas já quase três semanas do novo ano, Rosamond, es-

perando uma resposta a seu cativante pedido, a cada dia mais se desa-

pontava. Lydgate, em total ignorância das expectativas dela, via as con-

tas chegando e sentia iminente o uso a ser feito por Dover da vanta-

gem que este tinha sobre os outros credores. Nunca mencionara a

Rosamond seu plano de uma visita a Quallingham: não queria admitir

o que a ela pareceria uma concessão às suas vontades, após recusa

indignada até o último instante; mas na realidade ele esperava partir

em breve. Um ramal da estrada de ferro lhe permitiria fazer toda a

viagem e estar de volta em quatro dias.

Certa manhã, depois de Lydgate ter saído, chegou uma carta a ele

"The Wife of Baffis Prologue, finhas 446-448.

698

GEORGE ELIOT

endereçada que Rosamond logo viu, cheia de esperança, ser de Sir

Godwin. Talvez houvesse um bilhetinho para ela em anexo; mas natu-

ralmente Lydgate era contactado pela questão do dinheiro ou outra aju-

da, e o fato de lhe vir uma carta e, mais ainda, a própria demora desta
carta pareciam indicar uma resposta bem condescendente. Tais idéias a

deixaram muito excitada para fazer qualquer coisa que não um trabalhinho

de agulha num canto quente da sala de jantar, com a momentosa carta

posta à sua frente na mesa. Por volta do meio-dia ela ouviu os passos do

marido no corredor e, saltitando para abrir a porta, disse em seu tom

mais delicado: "Venha cá, Tertius - há uma carta para você aqui."

"Ah?" disse ele, nem tirando o chapéu, mas já a enlaçando pela cin-

tura com o braço para ir até onde se encontrava a carta. "Do tio Godwin!"

exclamou ele, enquanto Rosamond se sentava de novo e, à espera de o

ver surpreso, o observava a abri-la.

· medida que a breve missiva era às pressas percorrida pelo olhar do

marido, ela viu que seu rosto, em geral de um moreno pálido, ia toman-

do uma brancura sem viço; com os lábios e narinas tremendo ele jogou o

papel diante dela e disse com violência:

"Será impossível suportar viver com você, se for agir sempre em se-

gredo - se for agir contra mim e a me ocultar suas ações."

Controlando a fala, ele deu-lhe as costas - depois virou-se para ela

outra vez, andou uns passos a esmo, sentou-se e voltou a levantar-se

inquieto, enquanto bem no fundo de seus bolsos ia pegando em objetos

duros. Temia dizer alguma coisa irremediavelmente cruel.

Rosamond também mudou de cor ao ler. A carta estava vazada nos

seguintes termos:

"CARO TERTIUS, - Não mande sua esposa escrever-me quando

quiser pedir-me alguma coisa.  uma maneira enviesada de adular,

de que eu não o julgaria capaz. Nunca me dispus a escrever a uma

mulher sobre questões de negócios. Quanto à hipótese de lhe

fornecer mil libras, ou mesmo a metade desta quantia, não há

nada que eu possa fazer. Minha própria família já me suga até o

último vintém. Com dois filhos mais novos e três filhas, não é

possível que me sobrem recursos. Ao que parece, você deixou que


seu dinheiro se esgotasse muito depressa, e aí se encontra numa

grande enrascada; quanto mais cedo for para outro lugar, melhor

será. Mas eu, não mantendo relações com homens da sua profissão,

também nisto não lhe posso ajudar. Fiz tudo o que pude como seu

tutor e permiti que seguisse sua vontade, abraçando a medicina.

MIDDLEMARCH

Você poderia ter entrado para a Igreja ou o exército. Seu dinheiro

daria muito bem para isto, e haveria à sua frente uma perspectiva

de ascensão mais segura. Seu tio Charles ficou ressentido com

você por não ter seguido a profissão dele, mas não eu. Eu sempre

lhe quis bem, mas não se esqueça de que agora você tem de andar

por suas próprias pernas. Afetuosamente, seu tio

GODWIN LYDGATE."

699

Ao acabar de ler a carta, Rosamond se manteve sentada e imóvel,

com as mãos cruzadas à frente, reprimindo qualquer demonstração de

sua grande decepção para se entrincheirar numa silenciosa passividade

sob a ira do marido. Lydgate, ínterrompendo-se nos seus movimentos,

olhou de novo para ela e disse com severidade mordaz:

"Será que isto basta para convencê-la do mal que pode causar com

suas intromissões secretas? Terá você suficiente bom senso para reco-

nhecer agora sua incompetência em julgar e agir por mim - em interfe-

rir com sua ignorância em negócios nos quais a decisão me compete?"

As palavras foram duras; mas não era a primeira vez que ela deixava

Lydgate frustrado. Ela não olhou para ele, nem deu resposta.

"Eu já estava quase decidido a ir a Quallingliam. Ter-me-ia sido bem


custoso fazê-lo, entretanto poderia ser de alguma utilidade. Agora é inú-

til eu pensar no que quer que seja. Você tem sempre agido contra mim

em segredo. Ilude-me com uma falsa aquiescência, e fico eu, depois, à

mercê de seus estratagemas. Diga-o, se pretende resistir a todos os de-

sejos que expresso, e desafie-me. Eu pelo menos saberei então o que

estou fazendo."

Este é um momento terrível na existência dos jovens, quando a es-

treiteza dos vínculos do amor se converte em pura e forte mortificação.

A despeito do autocontrole de Rosamond, uma lágrima silenciosa caiu e

lhe rolou sobre os lábios. Nada ainda ela dizia; mas sob esta quietude se

ocultava uma impressão poderosa.- o marido inspirava-lhe um tão com-

pleto desgosto que ela até desejou nunca o ter visto na vida. A grosseria

de Sir Godwin para com ela e sua falta de sensibilidade punham-no na

mesma categoria de Dover e todos os demais credores - pessoas desa-

gradáveis que só pensavam em si e não ligavam nem um pouco para os

problemas que causavam a ela. Até seu pai, que poderia ter feito mais

por eles, era um desalmado. No mundo de Rosamond, de fato, não ha-

via senão uma pessoa que ela não via como repreensível, e esta era aquela

criatura mimosa, de tranças louras e mãozinhas entrecruzadas à frente,

que nunca se expressara em termos inconvenientes e agira sempre da

70O

GEORGE ELIOT

melhor maneira - sendo melhor, naturalmente, a que mais correspondia

ao seu gosto.

Lydgate, contemplando-a numa pausa, começou a ter essa impres-

são meio enlouquecedora de desamparo que se apossa das pessoas apai-

xonadas, quando sua paixão esbarra num silêncio de feição inocente

cujo ar vitimado, ao parecer convencê-las de que estão erradas, por fim


infesta até mesmo a mais justa das indignações com uma dúvida quanto

à sua justiça. Ele precisava recuperar, moderando suas palavras, a plena

certeza de que estava certo.

"Você não é capaz de ver, Rosamond," recomeçou ele, tentando ser

simplesmente grave, e não amargo, "que nada pode ser tão fatal quanto

a falta de sinceridade e confiança entre nós? já aconteceu repetidas ve-

zes de eu expressar uma vontade concreta com a qual você parece con-

cordar, para depois entretanto desobedecê-la em segredo. Deste modo

eu nunca posso saber no que irei confiar. Haveria alguma esperança para

nós, se você admitisse isto. Serei eu um bruto, assim tão insensato e

furioso? Por que não ser sincera comigo?"

Silêncio ainda.

"Por que não dizer tão-só que esteve errada, e que eu posso confiar

que no futuro você não agirá mais assim?" disse Lydgate, insistindo,

mas num tom algo solícito, que Rosamond percebeu sem demora para

então falar com frieza.

"Não posso absolutamente admitir nem prometer nada em resposta

a palavras como as que usa comigo. Não fui acostumada a uma lingua-

gem assim. Você falou de minhas "intromissões secretas," de minha"ig-

norância que interfere," de minha "falsa aquiescência." Eu nunca me ex-

pressei deste modo com você, e penso que deva desculpar-se. Disse tam-

bém que é impossível viver comigo. Certamente nesses últimos tempos

você não me tornou a vida agradável. Acho que seria de esperar que eu

tentasse evitar algumas das agruras que o casamento me impôs." Outra

lágrima caiu, nisto que Rosamond se calava, e ela a enxugou em silên-

cio, como à primeira.

Lydgate se jogou numa cadeira, sentindo-se acuado. Em que lugar

da mente de sua esposa se instalaria uma admoestação como esta? De-

pois largou seu chapéu, passou um braço pelo espaldar da cadeira e por

momentos ficou olhando para o chão sem falar. Rosamond levava sobre

ele uma dupla vantagem, a da insensibilidade quanto à justeza da cen-


sura que ouvira e a da sensibilidade quanto às inegáveis agruras ora

presentes em sua vida de casada. Embora a duplicidade dela na questão

da casa houvesse ultrapassado o que ele sabia, impedindo realmente os

MIDDLEMARCH

705

Plymdales de se inteirar do assunto, ela não tinha consiJaté lá. Prova-

sua ação pudesse justificadamente ser qualificada de falsa. Nãb -kçonaria,

mos obrigados a identificar nossos atos, não mais que os artigos dê inara

sa alimentação e vestuário, de acordo com uma classificação rigorosa.

Rosamond só sentia que ela estava magoada, e que era isto o que Lydgate

devia reconhecer.

Quanto a ele, a necessidade de acomodar-se à natureza dela, inflexí-

vel proporcionalmente às negações que continha, imobilizava-o como

que sob tenazes. Uma antevisão alarmada da irrevogável perda do amor

de Rosamond por ele, e da conseqüente aridez de sua vida em comum,

já começara a despontar em seu intimo. O transbordamento de suas

emoções fez com que este temor rapidamente se alternasse com os pri-

meiros movimentos violentos de sua cólera. Seguramente teria sido vã

jactância, de sua parte, dizer que era ele quem mandava.

"Nesses últimos tempos você não me tornou a vida agradável" -

dias agruras que o casamento me impôs" - estas palavras acicatavam-

lhe a imaginação, tal como a dor produz um sonho exagerado. E se ele

fosse cair, não só de sua altiva resolução, mas também nos hediondos

grilhões do ódio conjugal?

"Rosamond," disse, virando os olhos para ela numa expressão me-

lancólica, "você deveria relevar as palavras de um homem, quando ele se

decepeiona e é provocado. Não podemos, nós dois, ter interesses opos-

tos. Não posso separar minha felicidade da sua. Se estou zangado com
você, é porque parece que você não vê como qualquer dissimulação nos

aparta. Como poderia eu desejar fazer-lhe algum mal, quer por minhas

palavras, quer na conduta? Quando a magoo, é parte de minha própria

vida que estou magoando. Eu nunca me zangaria com você, se você fos-

se totalmente franca comigo."

"Eu quis apenas evitar que você nos precipitasse em desgraça sem

necessidade nenhuma," disse Rosamond, com lágrimas que agora lhe

vinham de um sentimento mais brando, já que seu marido se abrandara

também. "Cair em desgraça aqui, em meio a todos que conhecemos, e

viver de um modo miserável é muito duro. Antes eu tivesse morrido

com o bebê."

Ela falava e chorava com aquela meiguice que toma onipotentes,

para um homem de coração amoroso, tais palavras e lágrimas. Lydgate

aproximou sua cadeira da dela e comprimiu-lhe a delicada cabeça contra

o próprio rosto, com sua mão carinhosa e forte. Mas apenas acariciou-a;

não disse nada; pois o que havia a dizer? Não podia prometer protegê-la

da temida desgraça, pois não via meios seguros de o fazer. Quando a

702

GEORGE ELIOT

deixou para de novo sair, pensou porém que era tudo mais duro para

ela, dez vezes mais, que para si: ele tinha uma vida fora de casa e cons-

tantes apelos à sua atividade, vindos dos outros. Desejaria, se pudesse,

desculpar tudo nela - mas era inevitável que nesta sua inclinação à

desculpa ele a considerasse um animal de outra e mais fraca espécie.

Não obstante, ela o havia dominado.

CAPITuLo LXVI
`Tis one thing to be tempted, Escalus,

Another thing to fall."

Measure for Measure.

€"Uma coisa é ser tentado, Escalus,

Outra é cair.")

- Medida por medida."

LYDGATE CFRTAMFWE tinha boas razões para refletir sobre o serviço que

lhe prestava sua prática, contrabalançando suas preocupações pessoais.

Se ele não mais dispunha de suficiente energia livre para a pesquisa

espontânea e o pensamento especulativo, à cabeceira dos pacientes os

imperativos externos e diretos a seu discernimento e simpatia traziam-

lhe o impulso a mais necessário para fazê-lo sair um pouco de si. Não

era simplesmente essa obrigação beneficente da rotina que capacita ho-

mens tolos à vida respeitável e homens infelizes à vida calma - era uma

exigência incessante à aplicação imediata e vívida do pensamento, ba-

seada em considerações sobre as necessidades e padecimentos alheios.

Muitos de nós diriam, passando a própria vida em revista, que o mais

bondoso homem já conhecido foi um médico, ou talvez aquele cirurgião

cujo excelente tato, guiado por uma percepção profundamente adestra-

da, veio-nos em nossa necessidade com uma beneficência mais sublime

que a dos fazedores de milagres. Algo dessa misericórdia duplamente

abençoada sempre acompanhava Lydgate em seu trabalho no Hospital

ou nas residências, servindo-lhe mais que um opiato qualquer para o

"De Shakespeare (Ato 11, Cena 1, linhas 17-18).

704
GEORGE ELioT

acalmar e suster sob suas ansiedades e sua impressão de degenerescência

mental.

A suspeita de Mr. Farebrother quanto ao opiato, contudo, era verda-

deira. Ante a primeira mortificante impressão das dificuldades antevistas,

e a primeira compreensão de que seu casamento, para não ser um jugo

de solidão, deveria ser um esforço para continuar amando sem muita

preocupação com ser amado, uma ou duas vezes ele experimentara uma

dose de ópio. Mas não tinha tendências hereditárias e constitucionais a

tais fugas transitórias dos motivos de angústia. Sendo forte, podia beber

vinho à vontade, mas não ligava para isto; tomava água com açúcar,

quando havia a seu redor homens bebendo, e até das primeiras fases da

euforia causada pelo álcool ele sentia pena e desdém. Com o jogo, era a

mesma coisa. Em Paris tinha visto muito jogo, observando-o como se

fosse uma doença. A tentação do ganho não o afetava mais que a do

álcool. já dissera a si mesmo que o único ganho com o qual ele se impor-

tava devia ser conquistado por um processo consciente, de combinação

difícil e elevada, que levasse a um resultado benéfico. O poder a que

aspirava não podia equivaler à emoção dos dedos que se agitam para

agarrar um monte de moedas, nem ao olhar vitorioso, meio bárbaro e

meio idiota, de um homem que puxa para si com os braços o dinheiro

apostado por vinte companheiros frustrados.

Mas, assim como ele havia experimentado o ópio, seu pensamento

agora começou a se voltar para o jogo - não com apetite por sua excita-

ção, mas com uma espécie de cobiçosa contemplação interior desta ma-

neira fácil de ganhar dinheiro, que não acarretava um pedido nem impu-

nha nenhuma responsabilidade. Se ele se achasse em Londres ou em

Paris nessa época, era provável que tais pensamentos, secundados pela

ocasião, o tivessem arrastado a um cassino, não mais para observar os


jogadores, mas para vê-los, isto sim, em semelhante avidez. A imensa

necessidade de ganhar suplantaria a repugnãoncia, se acaso se dispusesse

a sorte a favorecê-lo. Um incidente, ocorrido pouco depois de afastada a

idéia vã de obter ajuda de seu tio, foi um forte sinal do efeito que pode-

ria ter sucedido a qualquer ocasião subsistente de jogo.

O salão de bilhar do Green Dragon era o ponto de encontro de uma

roda constituída em sua maioria por homens, como nosso conhecido Mr.

Bambridge, tidos por dados ao prazer. Aí o pobre Fred Vincy contraíra

parte de sua memorável dívida, obrigado que fora, após perder dinheiro

numa aposta, a pedir emprestado àquele alegre parceiro. Todo mundo

sabia em Middemarch que belas somas eram perdidas e ganhas deste

modo; e a conseqüente reputação do Green Dragon como um lugar de

MIDDLEMARCH

705

dissipação aumentava decerto para alguns a tentação de ir até lá. Prova-

velmente seus freqüentadores habituais, como os iniciados da maçonaria,

desejavam que houvesse alguma coisa um pouco mais formidável para

manter entre si sobre o local; não constituíam eles porém uma comunida-

de fechada, e muitos homens honestos, como também muitos jovens,

entravam no salão de bilhar, de quando em quando, para ver o que estava

acontecendo. Nos primeiros dias de sua chegada a Middemarch, Lydgate,

apto pela musculatura ao bilhar e afeiçoado a este jogo, uma ou duas

vezes havia pegado no taco no Green Dragon; mas depois não teve mais

folga para isto, nem nenhuma inclinação a conviver naquele ambiente.

Uma noite, contudo, viu-se impelido a procurar no local Mr. Bambridge.

O alquilador se comprometera a arranjar um freguês para o cavalo bom

que lhe restava e que Lydgate resolvera trocar por um mais barato, espe-

rando com esta redução de estilo ganhar talvez vinte libras; pois ele agora
se preocupava com as menores quantias como meios de ajudá-lo a manter

a paciência dos seus fornecedores. Dar uma subida ao salão de bilhar,

nisto que ia passando por lá, lhe pouparia tempo.

Mr. Bambridge ainda não havia chegado, mas certamente apareceria

em breve, informou seu amigo Mr. Horrock; e Lydgate ficou, jogando

uma partida só para passar o tempo. Nessa noite ele tinha o brilho pecu-

liar nos olhos e a inabitual vivacidade já percebidos certa vez por Mr.

Farebrother. O fato excepeional de sua presença foi muito notado no

salão, cheio de gente de Míddemarch; e muitos dos que assistiam, como

também alguns jogadores, faziam animadas apostas. Lydgate estava jo-

gando bem e se sentia confiante; à sua volta as apostas rolavam, e ele,

com um rápido vislumbre do provável ganho, capaz de dobrar a soma a

economizar com o cavalo, começou a apostar em si mesmo e várias ve-

zes ganhou. Mr. Bambridge já se fizera presente, mas Lydgate nem deu

por ele. Entusiasmavam-no não só as próprias jogadas, mas também a

perspectiva brilhante de no dia seguinte ir até Brassing, onde se jogaria

numa escala maior e onde, por uma entrega breve mas pujante à tenta-

ção do diabo, ele poderia vencer sem se deixar seduzir, e assim pagar por

seu resgate das importunações cotidianas.

Continuava ainda a ganhar quando dois novos freqüentadores en-

traram. Um deles era o jovem Hawley, recém-chegado da capital, onde

estudava direito, e o outro era Fred Vincy, que vinha de passar várias

noites neste seu velho antro. Hawley, exímio no taco, trouxe ao jogo de

bilhar novo alento. Mas Fred Vincy, surpreso ao ver Lydgate e ainda

mais surpreso por vê-lo, no auge da animação, fazendo apostas, mante-

ve-se de lado e afastado do círculo em torno da mesa.

" i,

706
GEORGE ELIOT

Ultimamente Fred recompensava com um certo relaxamento sua fir-

meza de ânimo. Por seis meses ele andara a trabalhar com afinco nas mais

diversas ocupações ao ar livre, sob as ordens de Mr. Garth, e à força de

severa aplicação já quase superara os defeitos de sua caligrafia, aplicação

que de resto se tornava talvez menos severa por ser posta muitas vezes

em prática, nas noites em casa de Mr. Garth, sob o olhar de Mary. Mas há

umas duas semanas que Mary estava no Presbitério de Lowick, fazendo

companhia às senhoras durante a permanência de Mr. Farebrother em

Middemarch, onde ele se dedicava à execução de alguns projetos da pa-

róquia; e Fred, nada vendo a fazer que lhe soasse melhor, fora entocaiar-

se no Green Dragon, em parte para jogar bilhar, em parte para saborear

como outrora os colóquios sobre cavalos, sobre esportes e sobre tudo

em geral, nunca considerados sob um ponto de vista que fosse

estrenuamente correto. Não saíra uma só vez para caçar nessa tempora-

da, nem contara com um cavalo seu para montar, tendo andado de um

lugar para o outro principalmente no cabriolé com Mr. Garth, ou no

pangaré muito manso que este lhe podia emprestar. Não era nada bom,

começara Fred a pensar, ser mantido ele atrelado com rigor ainda maior

do que se fosse da Igreja. "Uma coisa eu lhe digo, Dona Mary - apren-

der a medir terrenos e a desenhar plantas há de ser trabalho ainda mais

duro do que escrever sermões," havia dito, desejoso de que ela aprecias-

se o que, por sua causa, ele se submetia a fazer; "Teseu e Hércules,

comparados a mim, não eram nada. Eles bem que se divertiam, e nunca

tiveram de aprender a escrever como um guarda-livros." E agora, estan-

do Mary fora do caminho algum tempo, Fred, tal qual um cachorro forte

que não consegue livrar-se da coleira de vez, tinha esticado um pouco a

corda para uma breve escapada, sem pretender naturalmente ir muito

longe ou correr. Não poderia haver uma só razão que o impedisse de

jogar bilhar, mas ele estava decidido a não apostar. A essa altura, no
tocante a dinheiro, Fred tinha em mente o plano heróico de poupar ao

máximo, para ir restituindo-as, as oitenta libras, que Mr. Garth lhe pro-

pusera, coisa que lhe seria fácil fazer se se abstivesse de todas as despe-

sas fúteis, já que ele possuía roupas de sobra e nada gastava com seu

próprio sustento. Dentro de um ano, deste modo, ver-se-ia bem perto

de já ter pago na íntegra as noventa libras das quais ele privara Mrs.

Garth, infelizmente numa época em que ela necessitava mais do que

agora da quantia. Reconheça-se entretanto que nessa noite, que era a

quinta de suas recentes visitas ao salão de bilhar, Fred tinha em mente,

se as não tinha no bolso, as dez libras que tencionava reservar para si de

seu salário no semestre (tendo ainda pela frente o prazer de levar as

MIDDLEMARCH

707

trinta restantes para Mrs. Garth, quando Mary voltasse para casa) -

tinha em mente as tais dez libras como um fundo do qual poderia arris-

car alguma coisa, caso surgisse a oportunidade de uma boa aposta. Por

quê? Bem, por que não pegaria alguns soberanos, quando havia tantos

indo e vindo ao redor? Nunca ele iria longe demais por este caminho

outra vez; mas um homem gosta de saber, sobretudo quando se inclina

aos prazeres, que há uma hipótese de proceder pelo erro à sua escolha e

que não é por ser um pateta que ele se abstém de fazer mal a si mesmo,

de reduzir-se à miséria ou de conversar com o máximo de licenciosidade

que os limites estreitos da capacidade humana permitem. Fred não en-

trou em razões formais, que são um meio muito artíficial e inexato de

representar os ardentes retornos de um velho hábito e os caprichos da

mocidade: mas nele furtivamente se movia essa noite uma impressão

profética - a de que, quando começasse a jogar, começaria também a

apostar, e acabaria por beber um pouco de ponche, devendo de modo


geral preparar-se para sentir-se de manhã "meio moído." E é em tais

indefiniveis movimentos que a ação freqüentemente começa a ser dispa-

rada.

Mas a última coisa que seria capaz de entrar nas expectativas de

Fred era ele ver seu cunhado, Lydgate - um pedante tremendamente

ímbuido da própria superioridade, opinião inicial que nunca o abando-

nara de todo - a mostrar-se entusiasmado e apostando, tal qual ele

mesmo poderia ter feito. Fred levou um susto, tão grande que nem po-

deria explicar, porque sabia vagamente que Lydgate estava endividado e

seu pai se recusara a ajudá-lo; e sua própria inclinação a entrar no jogo

foi bruscamente refreada. Era uma estranha reversão de atitudes: o lou-

ro rosto e os olhos azuis de Fred, em geral brilhantes e despreocupados,

salvo para dar atenção a qualquer coisa que contivesse a promessa de

uma diversão, afigurando-se involuntariamente graves e quase embara-

çados, como que à visão de algo indecoroso; enquanto Lydgate, com seu

ar habitual de quem tinha sob controle a própria força e uma capacidade

de concentração que parecia residir por trás da mais escrupulosa aten-

ção, estava agindo, falando e olhando com essa consciência estrita e

excitada que faz pensar num animal de olhos ferozes e garras retrácteis.

Lydgate, apostando em suas próprias tacadas, havia ganho dezesseis

libras; mas com a chegada do jovem Hawley a situação já não era mais a

mesma. Este, dando também belas tacadas, pusera-se a competir com

Lydgate, cuja tensão nervosa trasladou-se assim da simples confiança

em seus próprios movimentos para o desafio a uma outra pessoa que os

colocava em dúvida.

desafia era mais excitante que a confiança, mas

708

GEORGE ELIOT
não tão seguro. Embora continuasse a apostar em si mesmo, Lydgate

começou a errar muitas vezes. Ainda assim foi em frente, pois seu espí-

rito já despencara de todo pela fenda precipitosa e estreita do jogo, como

se ele fosse o mais ignorante dos vadios presentes. Fred, notando a rapi-

dez com que perdia, viu-se na nova situação de ter de espremer o cére-

bro para pensar nalgum estratagema com o qual lhe fosse possível, sem

ser ofensivo, chamar a atenção de Lydgate e talvez sugerir a ele uma

razão para sair dali. Outros percebiam também, como pôde ver, quão

diferente de quem era Lydgate estava, e ocorreu-lhe que simplesmente

tocando em seu cotovelo e chamando-o por um momento" à parte ele

pudesse despertá-lo de sua absorção. Mas nada de mais brilhante lhe

veio que a arrojada improbabilidade de dizer que ele queria falar com

Rosy e desejava saber se ela estaria em casa essa noite; já ia colocando

em prática, desesperado, este estratagema tão frágil, quando um garçom

veio-lhe trazer um recado, dizendo que Mr. Farebrother achava-se lá

embaixo na entrada e pedia para dar-lhe uma palavra.

Fred surpreendeu-se e, se bem não muito à vontade, mandou dizer

que desceria logo, indo a seguir, com um novo impulso, para indagar de

Lydgate: "Posso falar-lhe um instante?" e arrastá-lo para um canto.

"O Farebrother acaba de me mandar um recado dizendo que quer

falar comigo. Ele está lá embaixo. Achei que você gostaria de saber dis-

to, caso quisesse estar com ele."

Fred havia simplesmente aproveitado o pretexto, porque não pode-

ria dizer: "Você perde de um modo vergonhoso, e deixa a todos que o

estão vendo perplexos; é melhor vir comigo." Melhor dificilmente lhe

teria servido a inspiração. Lydgate ainda não dera pela presença de Fred,

e seu súbito aparecimento, com a referência a Mr. Farebrother, teve o

efeito de uma comoção violenta.

"Não, não," disse Lydgate; "não tenho nada em particular para dizer

a ele. Mas - o jogo acabou - tenho de ir-me - só vim aqui para falar
com o Bambridge."

"Lá está o Bambridge, metido numa algazarra - não me parece que

possa discutir negócios agora. Venha, vamos descer e encontrar o

Farebrother. Espero que ele me passe uma descompostura, e assim você

me protege," disse Fred, não sem astúcia.

Lydgate sentiu vergonha, mas não agüentaria agir como se a sentisse

de fato, recusando-se a ver Mr. Farebrother; e desceu. Eles apenas troca-

ram um aperto de mãos, contudo, e falaram do frio gélido; ao alcança-

rem os três a rua, o Pastor não disfarçou a intenção de logo se despedir

de Lydgate. Seu objetivo presente, estava claro, era conversar a sós com

MIDDLEMARCH

709

Fred, e gentilmente ele disse: "Ousei incomodá-lo, meu jovem, porque

tenho um assunto urgente para tratar com você. Que tal nós caminhar-

mos um pouco até Saint Botolph?"

Era uma bela noite, com o céu coalhado de estrelas, e Mr. Farebrother

propôs que eles dessem uma volta pela estrada de Londres para chegar à

velha igreja. Logo a seguir falou:

"Eu pensava que o Lydgate nunca fosse ao Green Dragon."

"Eu também," disse Fred. "Mas ele disse que só foi para procurar o

Bambridge."

"Então ele não estava jogando?"

Fred não pretendia dizer isto, mas foi obrigado a admitir agora: "Es-

tava sim. Mas suponho que por mero acaso. Eu nunca o tinha visto lá

antes."

"Você mesmo então tem ido sempre, ultimamente?"

"Oh, umas cinco ou seis vezes."

"Julgo que tenha tido alguma boa razão para abrir mão do hábito?"
"Sim, como aliás o senhor bem sabe," disse Fred, não gostando de

ser catequizado assim. "Eu já lhe confessei tudo."

"Suponho que isto me dê um direito de falar agora do assunto. En-

tre nós ficou entendido - não é? - que estamos em termos de amizade

franca: assim como eu o ouvi, creio que você há de me ouvir de bom

grado. Posso por minha vez falar um pouco de mim?"

"Devo-lhe a gratidão mais profunda, Mr. Farebrother," disse Fred,

num estado de incômoda suposição.

"Não vou fingir e negar que me deva de fato certa obrigação. Vou

porém confessar-lhe, Fred, que fui tentado a me manter agora em silên-

cio, modificando radicalmente tudo. Quando alguém me disse: "O Jovem

Vincy voltou a estar à mesa de bilhar todas as noites - não vai agüentar

por muito tempo o freio," fui tentado a fazer o contrário do que estou

fazendo - a calar minha boca e esperar que você descesse a escada de

novo, primeiro apostando, depois -"

"Eu não fiz nenhuma aposta," disse Fred, açadadamente.

"Que bom saber disto! Mas meu primeiro impulso, garanto, foi ficar

na expectativa e vê-lo a dar o mau passo, a esgotar a paciência do Garth

e a perder a melhor oportunidade de sua vida - uma oportunidade que,

para ser agarrada, já exigiu de você não pouco esforço. Creio que imagi-

ne - estou certo de que sabe - que sentimento fez surgir esta tentação

em mim. Estou certo de que sabe que a satisfação dos seus sentimentos

se interpõe à dos meus."

Houve uma pausa. Mr. Farebrother parecia esperar um reconheci-

710

GEORGE ELIOT

mento do fato; e a emoção perceptivel nos tons de sua bela voz dera um

cunho solene às suas palavras. Mas nada era capaz de acalmar a apreen-
são de Fred.

"Não se pode esperar que eu desista dela," disse ele, após um mo-

mento de hesitação: o caso não admitia nenhuma simulação de genero-

sidade.

"Claro que não, já que os sentimentos dela correspondem aos seus.

Mas as relações desta espécie, mesmo quando duradouras, são sempre

passíveis de mudança. Posso facilmente conceber a hipótese de você agir

de um modo capaz de afrouxar o laço que a une à sua pessoa - convém

lembrar que ela só está ligada a você sob condições - e, neste caso, um

outro homem, que se gabe de merecerlhe um pouco a estima, poderia

conquistar este lugar estável, quer no amor, quer no respeito dela, que

você deixasse escapar. Posso facilmente conceber tal desfecho," repetiu

Mr. Farebrother, enfaticamente. "Há um senso de companheirismo fun-

dado na simples simpatia que é capaz de levar vantagem até sobre as

ligações mais antigas."

Pareceu a Fred que, mesmo se Mr. Farebrother tivesse garras e bico,

ao invés de sua língua tão hábil, dificilmente seu modo de atacar poderia

ser mais cruel. E uma terrível convicção possuiu-o, a de que por trás de

toda esta visão hipotética já havia o conhecimento de alguma real mu-

dança nos sentimentos de Mary.

"Decerto sei como é fácil que eu me dê por perdido," disse ele, numa

voz conturbada. "Se ela estiver começando a comparar -" Interrom-

peu-se porém, pois não queria revelar tudo o que sentia, e então disse,

auxiliado por ligeiro amargor: "Mas eu pensava que o senhor fosse meu

amigo."

"E sou; é por isto que nós estamos aqui. Mas tive forte tendência a

proceder de outro modo. Disse a mim mesmo: "Se existe a probabilidade

de que este rapaz queira fazer-se mal, por que há você de interferir? Você

não vale tanto quanto ele, e os dezesseis anos que tem a mais e vem

transpondo sempre meio sequioso não lhe dão um direito, maior que o

dele, à satisfação? Se existe uma ameaça a rondá-lo, deixe-o arruinar-se


- você talvez nem tenha como o impedir - e tire proveito disto.""

Houve uma pausa, e um calafrio dos mais desagradáveis tomou con-

ta de Fred. O que estaria ainda por vir? Seu grande medo era saber que

haviam contado alguma coisa a Mary - sentindo-se ele como se ouvisse

uma ameaça, e não uma advertência. Quando o Pastor recomeçou, nota-

va-se em sua voz uma mudança, como a de estimulante transição para

um tom maior.

MIDDLEMARCH 711

"Mas certa vez eu visara a algo melhor, e eis-me de volta à minha

antiga intenção. Nada poderia ser tão bom, Fred, pensei eu, para me

resguardar, quanto contar-lhe exatamente o que em mim mesmo se pas-

sava. E agora, espero que me compreenda, quero que você faça a felici-

dade dela e a sua também e, caso uma palavra de advertência minha

possa afastar do caminho qualquer ameaça em contrário - bem, já a

terei pronunciado."

Tornou-se a voz do Pastor menos altissonante, quando ele disse as

últimas palavras. A uma nova pausa - achando-se agora os dois sobre

uma nesga gramada, no ponto em que a estrada dava acesso à igreja de

Saint Botolph - ele estendeu a mão, como que para indicar que a con-

versa estava acabada. Uma emoção sem precedentes apoderou-se de Fred.

Alguém muito susceptível à contemplação de um belo gesto já disse que

este produz no organismo uma espécie de frémito regenerador, incutin-

do-nos a sensação de estarmos prontos a começar vida nova. Tal efeito,

em grau considerável, estava justamente presente, na ocasião, em Fred

Vincy.

"Tentarei ser digno," disse ele, interrompendo-se antes de poder

completar: "tanto do senhor quanto dela." Entrementes, Mr. Farebrother

havia recobrado seu fôlego para dizer algo mais.

"Você não deve imaginar que eu acredite que atualmente haja algum
declínio na preferência dela por você, Fred. Mantenha em paz seu cora-

çáo que, se você agir como deve, tudo o mais deve dar certo."

"Jamais me esquecerei do que o senhor fez," respondeu Fred. "Nada

posso dizer que me pareça digno de ser dito - só que hei de empenhar-

me para que sua bondade não se desperdice."

"Isto basta. Adeus, Fred, e que Deus o abençoe."

Assim separaram-se. Mas ambos caminharam por ainda um bom tem-

po, antes de cada qual se despedir da luz das estrelas. Grande parte das

ruminações de Fred poderia ser sintetizada nestas palavras: "Casar-se

com o Farebrother certamente seria muito bom para ela - mas se ela

gosta mais de mim, e eu for um bom marido?"

já as de Mr. Farebrother talvez pudessem condensar-se num simples

encolher de ombros seguido de uma frase sucinta: "Tal é o papel que a

uma mulher cabe representar na vida de um homem, que renunciar a ela

pode ser uma boa imitação do heroísmo, assim como conquistá-la pode

ser uma disciplina!"

CAPÍTULo LXVII

Now is there civil war within the soul;

Resolve is thrust from off the sacred throne

By clamorous Needs, and Pride the grand-vizier

Makes humble compact, plays the supple part

Of envoy and deft-tongue apologist

For hungry rebels.

("Dentro d"alma há agora uma guerra civil;

Do sacro trono a resolução é afastada

Pelas Necessidades clamorosas, e o Orgulho, grão-vizir,


Faz humildes acordos, assume o papel servil

De emissário e destro apologista que fala

Por famintos rebeldes.")

FELIZMENTE LYDGATE HAVIA terminado perdendo no salão de bilhar, de

onde não saiu com vontade de aventurar-se outra vez à sorte. Pelo con-

trário, sentiu grande desgosto de si quando no dia seguinte teve de pa-

gar uma perda, de quatro ou cinco libras, que se sobrepunha a seus

ganhos, e ser acompanhado aonde quer que fosse.pela desprazível visão

do papel que ele tinha feito, não só se acotovelando com os homens no

Green Dragon, mas também se comportando a seu modo. Um filósofo

que cede à tentação de apostar mal se distingue de um filisteu nas mes-

mas circunstâncias: a diferença há de encontrar-se sobretudo em suas

reflexões subseqüentes, e incômodas a mais não poder foram as que a

Lydgate acudiram. A razão mostrou-lhe como o caso poderia ter cresci-

do de vulto e descambado à ruína com uma ligeira mudança de cenário

- se por acaso ele houvesse entrado num cassino, onde a sorte era para

ser agarrada com as duas mãos, e não colhida entre o polegar e o indica-

MIDDLEMARCH

713

dor. Se a razão sufocava a atração pelo risco, permanecia-lhe não obstante

o sentimento de que, com uma certeza de sorte na dose necessária, ele

até que preferiria jogar a assumir a alternativa inevitável que se lhe im-

punha agora.

Esta alternativa era recorrer a Mr. BuIstrode. Lydgate já se gabara

tantas vezes, tanto a si quanto aos outros, de ser totalmente indepen-

dente de BuIstrode, a cujos planos só se prestara porque eles o habilita-

vam a pôr em prática suas próprias idéias de trabalho profissional e be-


neficência pública - tão constantemente em suas relações pessoais ele

tivera o orgulho sustentado pela idéia de que fazia bom uso social deste

poderoso banqueiro, cujas opiniões julgava desprezíveis e cujos moti-

vos lhe pareciam muitas vezes uma mistura absurda de impressões contra-

ditórias - que acabara por criar para si mesmo fortes obstáculos ideais a

lhe fazer qualquer pedido expressivo em proveito próprio.

Ainda assim, no início de março seus negócios achavam-se naquele

ponto em que os homens se põem a dizer que suas juras foram proferi-

das na ignorância, e a perceber que o ato antes tomado como impossível

para eles já se vai a tornar manifestamente possível. Com a vergonhosa

garantia de Dover prestes a entrar em vigor, com os rendimentos de sua

clínica a logo se esvaírem no pagamento de dívidas atrasadas, com a

hipótese, se o pior viesse a saber-se, de ter crédito negado para os forne-

cimentos diários e sobretudo com a visão do desesperado descontenta-

mento de Rosamond a obsedá-lo continuamente, Lydgate passara a ver

que seria inevitável dobrar-se a pedir ajuda a alguém. Considerou a prin-

cípio se deveria escrever a Mr. Vincy, ao colocar a questão a Rosamond,

descobriu porém, como aliás suspeitava, que ela já se dirigira a seu pai

duas vezes, sendo a última após a decepção com Sir Godwin; e o papai

tinha dito que cabia a Lydgate se safar sozinho. "Papai disse que, com

um ano ruim depois do outro, teve de negociar cada vez mais com capi-

tal emprestado e abrir mão de muitos regalos: devido aos seus encargos

de família, nem sequer de cem libras ele poderia dispor. E também disse:

"O Lydgate que vá pedir ao Buístrode, pois eles sempre foram unha e

carne.""

Com efeito, o próprio Lydgate havia concluído que, sendo-lhe for-

çoso afinal solicitar um empréstimo, suas relações com BuIstrode, mais

pelo menos que corri qualquer outro homem, permitiriam dar ao pedido

uma forma que não fosse estritamente pessoal. BuIstrode contribuíra,

de maneira indireta, para causar o fracasso de sua clínica, e também se

gratificara muito ao associar um médico a seus planos: mas qual dentre


nós jamais se reduziu ao tipo de dependência em que Lydgate se encon-

714

GEORGE ELIOT

trava agora sem se crer com direitos que diminuíssem a humilhação de

pedir?  bem verdade que nos últimos tempos parecia ter havido um

declínio do interesse de BuIstrode pelo Hospital; mas sua saúde piorara

e ele apresentava sinais de uma afecção nervosa profundamente instala-

da. Sob outros aspectos não se mostrava mudado: fora sempre muito

polido, mas nele Lydgate havia desde o início notado uma acentuada

frieza sobre seu casamento e outras circunstâncias de sua vida privada,

frieza que ele até então sobrepunha ao calor de qualquer intimidade

entre os dois. Lydgate adiou sua intenção dia a dia, pois seu hábito de

agir com base nas próprias conclusões era enfraquecido por sua repug-

nãoncia a qualquer conclusão possível e ao ato que dela decorresse. Via

Mr. BuIstrode com freqüência, mas nunca se tentava valer dessas oca-

siões para seus objetivos pessoais. Em dado momento, pensava: "Vou

escrever uma carta: prefiro isto a qualquer conversa indireta;" mas nou-

tro já mudava de idéia: "Não; se eu falasse com ele, ao primeiro sinal de

relutância eu poderia bater em retirada."

Os dias porém passavam sem que uma carta fosse escrita ou uma

conversa especial provocada. Retraindo-se da humilhação de uma ati-

tude dependente em relação a BuIstrode, deixou ele que sua imagina-

ção se acostumasse a uma solução que correspondia ainda menos aos

ditames de sua personalidade. Espontaneamente, começou a conside-

rar a possibilidade de pôr em prática aquela idéia pueril de Rosamond

que tantas vezes lhe causara irritação, qual fosse, que eles se mudas-

sem de Middemarch sem pensar nas conseqüências que poderiam advir

deste prólogo. A pergunta se impunha: "Há de alguém querer ficar com


minha clinica, mesmo agora que ela está valendo tão pouco? Como

preparativo para a partida, um leilão talvez então se tornasse necessá-

rio de fato."

Contra dar este passo, que além do mais ele sentia ser um vil aban-

dono de seu trabalho atual, um culposo desviar-se do que era um canal

real e possivelmente cada vez mais amplo de uma atividade meritória,

para recomeçar sem um justificado destino, havia no entanto um obstá-

culo, o de o eventual comprador, caso realmente surgisse, não o fazer

assim tão depressa. E depois? Numa pobre morada, ainda que na maior

ou na mais distante das cidades, Rosamond não encontraria uma vida

que a ela livrasse do abatimento e, a ele, do remorso de nela a ter mer-

gulhado. Pois um homem, quando em sua ventura acha-se ao sopé da

montanha, pode quedar-se aí longo tempo, a despeito de seu valor pro-

fissional. No clima britânico não há nenhuma incompatibilidade entre o

discemimento científico e uma modesta casa alugada: é principalmente

MIDDLEMARCH

entre a ambição científica e uma esposa que se opõe a este tipo de resi-

dência que existe, isto sim, incompatibilidade.

Mas coube à ocasião, em meio à sua hesitação, decidir por ele. Um

recado de Mr. BuIstrode solicitou a Lydgate que o procurasse no Banco.

Uma tendência hipocondríaca manifestara-se ultimamente na constitui-

ção do banqueiro, que tomou por sinal de ameaçadora insanidade sua

falta de sono, na realidade apenas um ligeiro agravamento de um sinto-

ma habitual de dispepsia. Sem perda de tempo, ele queria consultar-se

com Lydgate nessa manhã específica, muito embora nada tivesse a di-

zer-lhe além do que antes já havia dito. Ansioso ele ouviu as palavras de

Lydgate para dissipar seus temores, as quais também não passavam de

repetição; e esse momento, quando com uma noção de conforto BuIstrode

recebia uma opinião médica, parecia tornar a participação de uma neces-


sidade pessoal a ele mais fácil do que havia Lygate de antemão pensado.

Este já vinha de insistir que seria bom se Mr. BuIstrode desviasse um

pouco sua atenção dos negócios.

"Sabe-se que a tensão mental, por mais ligeira que seja, pode afetar

uma constituição delicada," disse Lydgate àquela altura da consulta em

que as observações tendem a passar do plano pessoal para o genérico,

Vela marca profunda que a ansiedade há de por algum tempo deixar até

mesmo nas pessoas vigorosas e jovens. Eu, por natureza, sou muito

forte; entretanto ultimamente tenho sido muito abalado por uma acu-

mulação de problemas."

"Tresuino que uma constituição em estado susceptível, como se en-

contra no momento a minha, seria particularmente passível de contrair

o cólera, caso esta moléstia vitimasse o nosso distrito. E, desde seu apa-

recimento nas proximidades de Londres, bem que nos convém, para nossa

proteção, assediar o trono do Senhor," disse Mr. BuIstrode, não preten-

dendo furtar-se à insinuação de Lydgate, mas realmente preocupado com

os alarmas sobre si mesmo.

"Em todo caso o senhor já fez sua parte, tomando boas precauções

para a cidade, e não há melhor maneira de pedir proteção," disse Lydgate,

com forte desagrado pela inconclusa metáfora e a lógica imperfeita da

religião do banqueiro, algo acentuado ademais pela aparente surdez da

simpatia dele. Mas sua mente já havia partido para o movimento de há

muito em preparo pela busca de ajuda, e ainda não fora sofreada. Acres-

centou pois: "A cidade agiu muito bem, no que tange à higiene e à ado-

ção de medidas sanitárias; e eu acho que, se o cólera de fato vier, até

mesmo nossos inimigos hão de admitir que as providências tomadas no

Hospital são um benefício para a população."

716

GEORGE ELIOT
"Verdade," disse Mr. BuIstrode, com certa frieza. "E em relação ao

que diz, Mr. Lydgate, sobre o relaxamento de meus esforços mentais, há

algum tempo que tenho alimentado neste sentido um propósito - um

propósito de natureza bem determinada. Cogito pelo menos de um afas-

tamento temporário da direção de tantos negócios, beneficentes ou co-

merciais. Penso também em mudar por uns tempos de residência: é pro-

vável que eu venha a fechar ou alugar O Arvoredo para fixar-me nalgum

lugar perto da costa - que me seja aconselhado, claro está, pela salubri-

dade. Seria esta a seu ver uma medida recomendável?"

"Oh, sim," disse Lydgate, largando-se no encosto da cadeira com

mal reprimida impaciência ante o olhar grave e baço do banqueiro e sua

intensa preocupação consigo mesmo.

"Tenho sentido ultimamente a necessidade de lhe colocar este as-

sunto, pelo que se relaciona ao nosso Hospital," prosseguiu BuIstrode.

"Nas circunstâncias que acabo de indicar, claro que devo abdicar de qual-

quer participação pessoal em sua administração, e é incompatível com a

maneira como encaro as responsabilidades que eu continue a destinar

tantos recursos a uma instituição que eu mesmo não possa fiscalizar e

gerir até certo ponto. Por conseguinte, desde que minha decisão de me

afastar de Middemarch se concretize, hei de pensar em me eximir de

outro apoio ao Novo Hospital, além do que irá subsistir pelo fato de ter

sido principalmente eu quem arcou com o ônus da construção e ademais

contribuiu com grandes somas para o seu bom funcionamento."

Quando, como de seu costume, BuIstrode fez uma pausa, o pensa-

mento de Lydgate foi este: "Talvez ele tenha andado perdendo muito

dinheiro." Era a explicação mais plausível para um discurso que havia

causado em suas expectativas uma modificação algo alarmante.

"A perda para o Hospital dificilmente poderá ser suprida, temo eu."

"Dificilmente," replicou BuIstrode, na mesma voz premeditada e

argentada; "a não ser com uma mudança nos planos. A única pessoa
disposta a aumentar suas contribuições com quem se pode certamente

contar é Mrs. Casaubon. Tive uma conversa com ela a este respeito e

assinalei-lhe, como agora ao senhor, que há de ser desejável uma mu-

dança de sistema para conquistar para o Novo Hospital um mais amplo

apoio."

Houve outra pausa, mas Lydgate não disse nada.

"A mudança que prevejo é uma fusão com a Enfermaria, a fim de que

se considere o Novo Hospital como uma espécie de anexo à instituição

mais antiga, tendo a mesma diretoria. Será também necessário que a

administração médica das duas se combine. Deste modo há de ser afas-

MIMUMARCH

717

tada qualquer dificuldade quanto à adequada manutenção de nosso novo

estabelecimento; e os interesses da cidade com respeito à beneficência

deixarão de estar divididos."

Mr. BuIstrode, ao fazer outra pausa, havia abaixado os olhos do ros-

to de Lydgate para os botões do seu casaco.

"Sem dúvida é uma boa solução quanto aos meios e aos fins," disse

Lydgate, com uma ponta de ironia em seu tom. "Mas não se pode espe-

rar que de imediato eu me alegre, pois uma das primeiras conseqüências

há de ser a inclinação dos outros médicos para atrapalhar ou

interrom-

per meus métodos, quando mais não seja apenas por serem meus."

"Como bem sabe, Mr. Lydgate, pessoalmente eu atribuo grande va-

lor à oportunidade dos novos procedimentos independentes que com

tanta diligência o senhor pôs em prática: confesso que me interessei a

fundo, submetido à Vontade Divina, pelos planos originais. Mas, posto

que as indicações da Providência exijam de mim uma renúncia, não me


resta senão renunciar."

BuIstrode demonstrava nessa conversa uma capacidade que chegava

a exasperar. A inconclusa metáfora e a lógica imperfeita do motivo que

havia ocasionado desdém em seu ouvinte eram perfeitamente coerentes

com um modo de colocar os fatos que tornava difícil para Lydgate mani-

festar sua própria indignação e desapontamento. Este, depois de rápida

reflexão, limitou-se a perguntar:

"O que disse Mrs. Casaubon?"

"Bem, este era o ponto a acrescentar ao que eu desejava comunicar

ao senhor," disse BuIstrode, que havia preparado minuciosamente sua

explanação ministerial. "Trata-se de uma mulher das mais generosas,

como é de seu conhecimento, e que tem a felicidade de possuir - não

creio que uma grande fortuna, mas fundos dos quais pode bem dispor.

Ela me informou que, embora já houvesse destinado a parte mais subs -

tancial destes fundos a um outro propósito, poderia estudar a hipótese

de assumir meu lugar em relação ao Hospital. Mas quer ter bastante

tempo para deixar que suas idéias sobre o assunto amadureçam, e eu

disse a ela que não é preciso apressar-se - que, de fato, meus próprios

planos não são definitivos ainda."

Lydgate esteve prestes a dizer: "Se Mrs. Casaubon assumisse seu

lugar, haveria ganho, e não perda." Mas ainda havia um peso em sua

mente que impedia esta jovial franqueza. Respondeu pois: "Suponho

então que eu possa abordar o assunto com Mrs. Casaubon."

"Exatamente; é este seu expresso desejo. Sua decisão, diz ela, vai

depender muito do que o senhor puder dizer-lhe. Mas não é para já:

718

GEORGE ELIOT

acredito que ela esteja em preparo para partir em viagem. Tenho aqui
sua carta " disse Mr. BuIstrode, apanhando-a para ler umas frases. "No

mais, estou presa a um compromisso, imediato," diz ela. "Vou até o

Yorkshire com Sir James e Lady Chettam; e as conclusões a que eu che-

gar sobre umas terras que lá tenho de ver podem repercutir em minha

capacidade de contribuir para o Hospital." Assim, Mr. Lydgate, o caso

não requer nenhuma urgência mesmo; mas eu queria deixá-lo de sobrea-

viso para o que venha eventualmente a ocorrer."

Mr. BuIstrode repôs a carta no bolso e mudou de atitude, como se o

assunto estivesse encerrado. Lydgate, cuja renovada esperança sobre o

Hospital apenas o tornava mais consciente dos fatos que envenenavam

sua confiança em si mesmo, sentiu que seu esforço para obter ajuda, se

de todo fosse feito, tinha de o ser agora, e com energia.

"Fico-lhe muito agradecido por inteirar-me de tudo," disse ele, ex-

pressando-se em tom de firme intenção, mas aos arrancos, a denotar

que só muito a contragosto falava. "Minha profissão para mim é o obje-

tivo mais alto, e identifiquei o Hospital com o melhor exercício que eu

dela possa atualmente fazer. Mas nem sempre o melhor exercício

corresponde ao sucesso financeiro. Tudo o que tornou impopular o Hos-

pital contribuiu com outras causas - todas, creio, vinculadas ao meu

zelo profissional - para impopularizar-me também em minha prática.

Consigo sobretudo pacientes que não me podem pagar. E eu bem que

gostaria muito deles, se não tivesse a quem pagar por meu turno." Lydgate

esperou um pouco, mas BuIstrode limitou-se a uma curvatura, e ele pros-

seguiu com a mesma dicção aos arrancos - como se estivesse engolindo

uma objetável afronta.

"Acabei por cair em dificuldades financeiras das quais não vejo como

possa sair, a menos que alguém que confie em mim e em meu futuro

adiante-me sem outra garantia uma determinada quantia. Bem pequeno

era o capital que me restava quando vim para aqui, e de minha própria

família não tenho perspectivas de dinheiro. Minhas despesas, em decor-

rência do casamento, foram muito superiores ao que eu havia esperado.


O resultado é que neste momento eu necessitaria de mil libras para me

safar. Ou seja, para livrar-me do risco de ter de vender todos os meus

bens já dados como garantia ao maior credor - e pagar ainda outras

dívidas - deixando antecipadamente alguma coisa para manter-nos com

nossa modesta renda. Verifico estar fora de questão que o pai de minha

esposa venha a fazer tal adiantamento.  por isto que relato minha situa-

ção ao - ao único homem que se pode considerar tenha alguma

vinculação pessoal com minha prosperidade ou ruína."

MIDDLEMARCH

719

Lydgate detestou ouvir-se. Mas agora já havia falado, e inequivoca-

mente falado sem circurilóquios. Mr. BuIstrode respondeu sem pressa,

mas também sem hesitação.

"Esta informação contrista-me, Mr. Lydgate, se bem, confesso, não

me surpreenda. De minha parte, lamentei sua aliança com a família do

meu cunhado, que sempre foi de hábitos pródigos e já se acha muito

endividada comigo para a manutenção de sua situação atual. Meu con-

selho, Mr. Lydgate, seria que o senhor, ao invés de contrair novas obri-

gações e continuar com uma luta duvidosa, simplesmente fizesse uma

declaração de insolvência."

"dlsto não melhoraria minhas perspectivas," disse Lydgate, levantan

do-se e falando com amargura, "ainda que em si mesmo fosse coisa mais

agradável."

" sempre uma provação," disse Mr. Bulstrode; "mas as provações,

meu caro senhor, são o quinhão que aqui nos cabe, e um corretivo ne-

cessário. Recomendo-lhe que pondere o conselho que eu lhe dei."

"Muito obrigado," disse Lydgate, sem saber direito o que dizia. "Já

tomei demais seu tempo. Bom-dia."


CAPÍTULo LXVIII

"What suit of grace hath Virtue to put on

lf Vice shall wear as good, and do as well?

If Wrong, if Craft, if Indiscretion

Act as fair parts with ends as laudable?

Which ali this mighty volume of everits

The world, the universal map of deeds,

Strongly controls, and proves from ali descerits,

That the directest course still best succeeds.

For should not grave and learn"d Experience

That looks with the eyes of ali the world beside,

And with ali ages holds intelligence

Go safer than Deceit without a guide!"

- DANIEL: Musophilus-

("Que traje de graça há de vestir a Virtude

Se o Vício tão bem se traja e mostra?

Se o mal, a astúcia, a indiscrição,

Atuam como partes justas, e que findam louváveis?

Qual toda esta possante massa de eventos

O mundo, o mapa universal das ações,

Fortemente controla, e prova com todas as descidas

Que inda o curso mais direto é que dá mais certo.

Pois não deveria a sábia e grave Experiência,

Que vê com os olhos de todo o mundo ao lado

E com todas as idades mantém inteligência,

Ir mais segura que o Engano sem guia!")


- DANIEL: Musophilus-1

"Samuel Daniel (1562M619), poeta Inglês; o "Musophilus" é um de seus poemas

mais

conhecidos.

MIDDLEMARCH

721

A MUDAN€A DE PLANOS e o deslocamento de interesse que Bulstrode

expos ou que deixou escapar na coriVersa com Lydgate haviam sido de-

terminados nele por uma dura experiência à qual se viu submetido des-

de a época do leilão de Mr. Larcher, quando Raffies reconhecera Will

Ladislaw e quando por sua vez o banqueiro tentara um gesto de repara-

ção capaz de induzir a Providência Divina a interromper dolorosas con-

seqüências.

Sua certeza de que Raffies, a não ser que estivesse morto, retornaria

a Middemarch, e sem tardança, era justificada. Na véspera do Natal ele

havia reaparecido no Arvoredo. BuIstrode estava em casa para recebê-

lo, e também para barrar-lhe a comunicação com o resto da família, mas

não pôde impedir completamente que as circunstâncias da visita o com-

prometessem e deixassem sua esposa alarmada. Raffies provou-se mais

incontrolável do que já se mostrara em suas prévias aparições, com seu

estado crônico de desassossego mental, um efeito crescente da habitual

intemperança, logo se desvencilhando de todas as impressões do que

lhe era dito. Insistiu em hospedar-se na casa, e BuIstrode, sopesando

dois males, sentiu que ao menos esta alternativa não seria pior do que o

ter pela cidade erradio. Manteve-o toda a noite em seu próprio quarto e

o viu recolher-se ao leito, enquanto Raffies se divertia com o incômodo

que estava causando a este seu companheiro de pecados tão decoroso e


próspero, diversão que facetamente ele expressava como simpatia pelo

prazer de seu amigo em receber um homem que já tão útil lhe fora e

ainda não tivera toda a sua paga. Havia um astucioso cálculo sob a estre-

pitosa galhofa - uma fria resolução de extorquir de Bulstrode um mon-

tante mais expressivo como pagamento, para livrá-lo desta nova aplica-

ção de tortura. Mas a astúcia havia ultrapassado um pouco as medidas.

Com efeito, Bulstrode foi mais torturado do que Raffies, com sua

fibra grosseira, seria capaz de imaginar. Dissera ele à sua esposa que

apenas estava tomando conta desta infeliz criatura, vítima do vício, que

de outro modo poderia fazer mal a si mesma; deu a entender, sem recor-

rer à falsidade em sua forma direta, que havia um laço de família que a

tanto o obrigava, bem como sinais de alienação mental em Raffies que

exigiam cautela. Ele mesmo iria conduzir para longe, na manhã seguin-

te, o infortunado homem. Com tais indicações, convenceu-se de forne -

cer a Mrs. Bulstrode informações preventivas, para suas filhas e empre-

gados, e de justificar sua ordem de que ninguém a não ser ele entrasse

no quarto, mesmo que fosse com comida e água. Mas, lá sentado, to-

mou-se de aflição pelo medo de Raffies ser entreouvido em suas referên-

cias claras e altas a fatos do passado - e de Mrs. Bulstrode ser eventu-

722

GEORGE ELIOT

almente tentada a vir escutar à porta. Como poderia impedi-la, como

não revelar seu terror se chegasse a abrir a porta para surpreendê-la?

Mulher honesta e direta em seus hábitos, era pouco provável que ela se

rebaixasse a tal ponto a fim de tomar ciência de uma verdade penosa;

mas o medo era mais forte que o cálculo das probabilidades.

Raffies deste modo, ao levar longe demais a tortura, produziu um

efeito que não estava em seus planos. Mostrando -se irremediavelmente


incontrolável, havia feito com que BuIstrode sentisse que o único recur-

so que lhe restava era um desafio enérgico. Após deixar Raffies essa

noite na cama, o banqueiro mandou que pusessem sua carru agem fecha-

da a postos às sete e meia da manhã seguinte. ·s seis horas, de há muito

já ele estava vestido, tendo passado parte de seu infortúnio a rezar e

alegar seus motivos para evitar o pior, se havia usado de falsidade em

algo e dito o que diante de Deus não correspondia à verdade. Pois

BuIstrode se esquivava a uma mentira direta com intensidade despro-

porcional ao número de suas maleficências mais indiretas. Mas muitas

destas maleficências eram como os movimentos musculares sutis de que

a consciência nem chega a se dar conta, muito embora eles objetivem o

fim por nós prefixado em nossa mente e desejo. E é tão-só aquilo de que

vividamente somos cônscios que nós podemos imaginar de igual modo

ser visto pela Onisciência.

BuIstrode se acercou com sua vela da cabeceira de Raffies, que pare-

cia imerso num sonho desagradável. Ficou imóvel e em silêncio, na es-

perança de que à presença da luz o dormente acordasse gradativa e tran-

qüilamente, pois temia uma barulheira qualquer, em conseqüência de

um despertar muito brusco. Por uma lenta sucessão de minutos já ob-

servava as palpitações e frémitos, cujo desfecho deveria ser o retorno à

vigília, quando Rafiles, com um longo gemido meio abafado, sobressal-

tou-se e olhou aterrorizado ao redor, arquejante e trêmulo. Não fez po-

rém mais barulho, e BuIstrode, pousando a vela, esperou que ele se

acalmasse.

Passou-se ainda mais um quarto de hora até que BuIstrode enfim, a

; um modo peremptório e frio que antes não revelara, disse: "Vim

acordá-

Io assim tão cedo, Mr. Raffies, porque mandei que a carruagem estivesse

atrelada às sete e meia, e pretendo conduzi-lo eu mesmo até llsely, onde

poderá pegar o trem ou aguardar a diligência!"

Raffies fez menção de falar, mas BuIstrode se antecipou a ele com


imperiosas palavras: "Fique quieto, meu senhor, e ouça o que eu tenho

a dizer. Hei de lhe dar dinheiro agora e de tempos em tempos de provê-

lo de uma razoável quantia, desde que se enderece a mim por carta; caso

MIDDLEMARCH

72

porém se apresente aqui de novo em pessoa, caso retorne a Middemarch,

caso use sua língua de modo que me seja injurioso, o senhor terá de

viver dos frutos eventuais que lhe traga a sua própria malícia, sem ne-

nhuma ajuda minha. Ninguém há de lhe pagar por difamar meu nome:

sei o que pode de pior contra mim, e hei de enfrentá-lo com a necessária

energia, se se atrever a lançar-se em meu caminho outra vez. Levante-se,

meu senhor, e faça sem barulho o que ordeno, porque senão mando

chamar a polícia para o tirar à força desta casa, e o senhor, ainda que

então se arraste por todas as tascas da cidade contando suas histórias,

não terá sequer meio xelim do meu bolso para pagar as despesas que lá

tenha."

Raramente em sua vida BuIstrode havia falado com tal energia ner-

vosa: durante boa parte da noite ele premeditara este discurso pensando

em seus prováveis efeitos; e, embora não confiasse nas palavras para

livrar-se em definitivo dos retornos de Raffles, chegara à conclusão de

que era isto o que tinha de melhor a fazer. A ameaça deu certo para

forçar à submissão o enfraquecido homem, cujo organismo intoxicado

se intimidou nesse momento ante a postura de BuIstrode, resoluta e

fria: e a carruagem o carregou em sossego antes da hora do desjejum da

família. Os lacaios, tomando-o por um parente pobre, não se surpreen-

deram com o fato de seu patrão, homem rigoroso, que sempre andava

de cabeça erguida no mundo, envergonhar-se de um tal primo e querer

ver-se livre dele. A viagem de mais de quinze quilômetros que o ban-


queiro fez com o odiado companheiro foi para o dia de Natal um começo

lúgubre; mas no fim do percurso Raffies já havia recobrado seu ânimo e

despediu-se num contentamento que tinha boa razão, a de o banqueiro

lhe ter dado cem libras. Vários motivos induziram BuIstrode a ser tão

mão-aberta, mas ele não se inquiriu com atenção sobre todos. Enquan-

to estivera a observar o intranqüilo sono de Raffies, havia por certo de

lhe ter ocorrido que o homem já se alquebrara muito desde a sua primei-

ra doação de duzentas libras.

Cuidara de repetir sua declaração incisiva de que não mais toleraria

ser transformado em joguete; e tentara também convencer Raffies de

que os riscos de suborná-lo eram no todo equivalentes aos riscos de

desafiá-lo, fato que julgava ter demonstrado. Mas quando, livre da re-

pulsiva presença, BuIstrode regressou à sua casa pacata, não trazia con-

sigo a confiança de se haver assegurado algo mais que uma trégua. Era

como ter tido um sonho abominável de cujo odioso elenco de sensações

ele não pudesse desenredar-se - como se por todo o ambiente aprazível

de sua vida um perigoso réptil houvesse deixado sua trilha viscosa.

724

GEORGE ELIOT

Qual de nós pode saber o quanto de sua vida interior mais recôndita

é constituído por idéias que acreditamos terem a nosso respeito os ou-

tros homens, até que a trama de opiniões assim erguida sofra ameaça de

ruína?

BuIstrode não se tornou senão mais consciente de haver na mente

da esposa um depósito de pressentimento intranqüilo, porque com mui-

to cuidado ela evitou qualquer alusão ao fato. Dia a dia ele se habituara

a saborear o gosto da supremacia e do tributo à deferência completa; e a

certeza de que era observado e medido com uma oculta suspeita de que
guardava algum segredo desabonador fazia sua voz titubear quando ele

se punha a falar em termos edificantes. Antever, para homens de tempe-

rarnento ansioso como o de Bulstrode, muitas vezes é pior do que ver; e

sua imaginação aumentava sem cessar a angústia de uma desgraça imi-

nente. Iminente, sim; pois se o desafio a Raffles não mantivesse o ho-

mem ao longe - e, apesar de rezar por este resultado, ele mal podia

esperá-lo - a desgraça era certa. Em vão ele se dizia que, se permitido,

isto seria uma punição divina, um castigo, um preparo; ante a imaginada

queimação, recuava; e julgava que se escapasse à desonra não poderia

senão ser para a maior glória de Deus. Tal recuo o impeliu por fim a fazer

preparativos para abandonar Middemarch. Se tristes verdades a seu res-

peito devessem ser propaladas, neste caso ele estaria a uma distância

onde o desprezo de seus velhos vizinhos não o chamuscaria tanto; e

num novo cenário, onde sua vida não acumulasse a mesma vasta sensi-

bilidade, o atormentador, se o perseguisse, seria menos terrível. Sair da

cidade acabaria por ser, como bem sabia, extremamente doloroso para

sua esposa, e por outras razões ele também preferiria ficar onde criara

raízes. Donde ter feito seus preparativos, a princípio, de modo condicio-

nal, desejando deixar todas as portas abertas para seu retorno depois de

breve ausência, se alguma intervenção favorável da Providência lhe dis-

sipasse os temores. Preparava-se pois para transferir a administração de

seu Banco, e abrir mão do ativo controle de outros interesses comerciais

nas redondezas, sob pretexto de estar com a saúde abalada, sem excluir

porém a hipótese de retomar no futuro estes encargos. A medida acarre -

taria um acréscimo em seus gastos e certa redução de rendimentos além

da que ele já havia sofrido com a depressão geral no comércio; e o Hos-

pital se apresentava como objeto fundamental de despesa que por eco-

nomia ele bem podia cortar.

A situação que assim o afetava é que havia determinado sua conver-

sa com Lydgate. Mas a maior parte de suas providências, àquela altura,

não fora muito além de um ponto em que as poderia cancelar ainda,


MIDDLEMARCH

caso se mostrassem desnecessárias. Os passos decisivos ele contínua-

mente adiava; em meio às suas apreensões lhe vinha, como a um ho-

mem em perigo de naufrágio ou de ser expelido de uma carruagem por

cavalos desembestados, uma renitente impressão de que alguma coisa

talvez acontecesse para evitar o pior, e de que estragar sua vida com um

transplante tardio poderia ser precipitado - sobretudo porque era diri-

cil explicar satisfatoriamente à sua esposa o projeto de um exílio indefi-

nido do único lugar em que a ela apetecia viver.

A administração da fazenda de Stone Court estava entre os negócios

que davam preocupação a BuIstrode, caso sua ausência se concretizasse;

e sobre isto, bem como sobre todos os assuntos relacionados às terras e

casas que ele possuía em Middemarch ou nas cercanias, já havia consul-

tado Caleb Garth. Como todos os que tinham negócios desta espécie,

queria trabalhar com o agente que mais zelava pelos interesses do em-

pregador que pelos próprios. Em relação a Stone Court, já que BuIstrode

desejava continuar com o gado em seu poder e fazer um tipo de acordo

que lhe permitisse, se assim resolvesse, reassumir a superintendência

como sua ocupação predileta, Caleb o aconselhara a não confiar num

mero capataz, mas sim a arrendar as terras por ano, com os implementos

e o gado, e garantir-se uma participação proporcional nos lucros.

"Posso pedir-lhe que me arranje um arrendatário nestas condições,

Mr. Garth?" disse BuIstrode. "E que me diga por quanto sairiam por ano

os seus serviços, por supervisionar os negócios que nós discutimos?"

"Vou pensar nisto," disse Caleb, a seu modo brusco. "Vou ver como

posso resolver."

Não fosse por ele ter de pensar no futuro de Fred Vincy, Mr. Garth

provavelmente não ficaria contente de aumentar seu trabalho, que sua

esposa já temia ser demais para ele, devido ao peso dos anos. Mas ao se
separar de BuIstrode, depois daquela conversa, ocorreu-lhe uma idéia

muito atraente sobre o dito arrendamento de Stone Court. E se BuIstrode

concordasse em lá colocar Fred Vincy, entendido que ele, Caleb Garth,

se responsabilizaria pela supervisão? Seria um aprendizado excelente

para Fred que, além da possibilidade de auferir um rendimento modes-

to, ainda teria tempo de sobra para aumentar seu conhecimento ajudan-

do noutras tarefas. Tão patente foi a alegria com a qual ele mencionou a

idéia a Mrs. Garth que ela não pôde nem pensar em arrefecer-lhe o pra-

zer expressando como sempre o temor de que ele se comprometesse em

excesso.

"O garoto ficaria duplamente feliz," disse ele, reclinando-se em sua

cadeira com uma expressão radiante, "se eu pudesse dizer-lhe que esta-

725

726

GEORGE ELIOT

va tudo arranjado. Pense só, Susan! Durante anos ele andou com este

lugar na cabeça, antes do velho Featherstone morrer. Seria o melhor

desfecho possível se de modo bem industrioso - com ele se lançando

ao trabalho - o lugar ao fim e ao cabo ainda viesse a caber-lhe. Pois é

bem possível que o Buistrode o deixasse ir em frente, e até, pouco a

pouco, comprar o gado. Ele ainda não decidiu, pelo que vejo, se irá ou

não estabelecer-se de modo duradouro alhures. Nunca uma idéia me

causou tal agrado em minha vida. E assim os jovens, Susan, dentro em

breve poderiam casar-se."

"Será você capaz de não tocar no assunto com o Fred, enquanto não

tiver certeza de que o BuIstrode concordaria com o plano?" disse Mrs.

Garth, num tom de dócil prudência. "Quanto ao casamento, nós, mais


velhos, não precisamos contribuir para apressá-lo, Caleb."

"Oh, não sei," disse Caleb, deixando pender de lado a cabeça. "O

casamento amansa. E as rédeas e freio em que mantenho o Fred não lhe

fariam mais tanta falta. Contudo, nada direi até que eu saiba em que

terreno estou pisando. Vou falar novamente com o Bulstrode."

Aproveitou a primeira oportunidade para de fato fazê-lo. Se apenas

moderado era o interesse de BuIstrode por seu sobrinho Fred Vincy, forte

era o seu desejo de garantir-se os serviços de Mr. Garth, tendo em vista

vários pontos esparsos em negócios que certamente lhe infligiriam conside-

ráveis perdas, se ficassem sob administração menos conscienciosa. Por isto

ele não fez objeções à proposta de Mr. Garth; e havia também outra razão

para que não lamentasse dar um consentimento que iria beneficiar um mem-

bro da família Vincy. Era que Mrs. BuIstrode, ao tomar conhecimento das

dívidas de Lydgate, mostrara-se ansiosa em saber se seu marido não pode-

ria fazer alguma coisa pela pobre Rosamond, preocupando-se muito ao

ouvir dele que os negócios de Lydgate não eram facilmente resolviveis e que

a solução mais sensata era deixá-los "seguir seu curso." Mrs. BuIstrode dis-

sera então pela primeira vez: "Acho-o sempre um pouco duro para com

minha família, Nicholas. E estou certa de não ter uma razão que seja para

renegar qualquer um dos meus parentes. Podem ser muito mundanos, mas

ninguém nunca disse que eles não fossem respeitáveis."

"Minha querida Harriet," replicara Mr. BuIstrode, esquivando-se de

olhar nos olhos da esposa, que se enchiam de lágrimas, "é bem vultoso

o capital já por mim fornecido ao seu irmão. Não se pode esperar agora

que eu me encarregue dos seus filhos casados."

Como isto parecia ser verdade, a reclamação de Mrs. BuIstrode con-

verteu-se em simples pena da pobre Rosamond, cuja extravagante edu-

cação dera frutos que ela sempre havia previsto.

MIDDLEMARCH 727
Mas Mr. BuIstrode, ao se lembrar deste diálogo, percebeu que ficaria

contente, quando tivesse de expor detalhadamente à esposa seu plano

de sair de Middemarch, dizendo-lhe que tomara uma providência que

poderia ser benéfica ao seu sobrinho Fred. Por ora ele só comunicara

que pretendia fechar por alguns meses O Arvoredo, alugando uma casa

na Costa Sul.

Daí Mr. Garth ter obtido a garantia que queria, ou seja, que Fred

Vincy, caso o afastamento de BuIstrode de Middemarch fosse por tem-

po indefinido, ficaria habilitado a arrendar Stone Court nos termos an-

tes propostos.

Com sua esperança de que as coisas pudessem tomar "bom rumo,"

Caleb alvoroçou-se tanto que, se seu autocontrole não fosse envigorado

por ligeira e afetuosa repreensão da esposa, ele teria revelado tudo a

Mary, no desejo de Mar algum consolo à menina." Contudo, conse-

guiu refrear-se, e manteve estritamente ocultas de Fred certas visitas

que andava fazendo a Stone Court, a fim de examinar com atenção o

estado dos animais e das terras, para chegar a uma avaliação prelimi-

nar. Sua pressa em tais visitas era certamente maior do que a própria

velocidade dos fatos lhe exigiria talvez; mas ele era estimulado pelo

paterno deleite de ocupar sua mente com esta parcela de felicidade

provável que mantinha em reserva como um presente de casamento

escondido para Fred e Mary.

"Mas e se todo este projeto vier por fim a revelar-se um castelo de

areia?" disse Mrs. Garth.

"Bem, bem," replicou Caleb; "o castelo não desabará neste caso so-

bre a cabeça de alguém."

CAPÍTULO LXIX

"If thou hast heard a word, let it die with thee."


- Ecclesiasticus.

"Se ouvires uma palavra, deixa-a morrer contigo."

- Eclesiástico."

MR. BULSTRODE AINDA estava sentado em sua sala de gerente no Banco,

por volta das três horas do mesmo dia em que aí recebera Lydgate, quando

um funcionário entrou para dizer que seu cavalo o esperava, e também

que Mr. Garth, achando-se presente, pedia para falar com ele.

"Perfeitamente," disse Bulstrode; e Caleb entrou. "Sente-se, por fa-

vor, Mr. Garth," continuou o banqueiro, em seu tom mais cortês. "Que

bom que tenha chegado a tempo de me encontrar aqui. Sei que o senhor

conta os seus minutos."

"Oh," disse Caleb, virando gentil e lentamente a cabeça de lado, ao

sentar-se e pousar seu chapéu no chão. E para o chão ao mesmo tempo

olhou, corpo inclinado para a frente, deixando que por entre as pernas

caíssem-lhe seus dedos compridos, os quais se moviam em sucessão,

cada um de per si, como a partilhar alguma idéia abrigada em sua testa

larga e serena.

Mr. BuIstrode, como todos os que conheciam Caleb, estava acostu-

mado à pachorra com que ele começava a falar sobre qualquer assunto

que lhe parecesse importante, e chegou a esperar que fosse referir-se de

novo à compra de umas casas em Blindman"s Court, apenas para deitá-

las abaixo, um sacrifício de imóveis que haveria de ser recompensado

119:10.

MIDDLEMARCH

729
pelo influxo de ar e luz no local. Era por propostas do gênero que Caleb

às vezes se tornava incômodo para os seus patrões; mas BuIstrode geral-

mente se mostrava receptivo aos projetos de melhoria que ele apresen-

tava, e até então os dois iam-se dando bem. Contudo, quando ele vol-

tou a falar, baixando um pouco a voz, foi para dizer.

"Acabo de chegar de Stone Court, Mr. Bulstrode."

"Espero que não tenha encontrado nada de errado por lá," disse o

banqueiro; "eu também estive lá ontem. O Abel este ano fez um bom

trabalho com os cordeiros."

", é sim," disse Caleb, erguendo gravemente os olhos, "há algo de

errado - um estranho que, penso eu, está muito doente. Ele quer um

médico, e vim aqui dizer-lhe isto. Chama-se Raffies."

Ele viu que o choque de suas palavras transpunha o corpo de

BuIstrode. O banqueiro havia pensado que suas apreensões quanto a

este assunto mantinham-se por demais em alerta para ele ser tomado de

surpresa; mas equivocara-se.

"Pobre infeliz!" disse num tom compadecido, tendo porém um tre-

mor nos lábios. "Como ele chegou até lá? O senhor sabe?"

"Fui eu mesmo que o levei," disse Caleb tranqüilamente - Ievei-o

em meu cabriolé. Ele saltou da diligência e já ia andando um pouco além

da barreira do pedágio quando passei por ele. Lembrou-se de me ter

visto com o senhor uma vez, em Stone Court, e me pediu que o levasse.

Vendo que ele estava adoentado, pareceu-me que era o mais correto a

fazer: dar-lhe um abrigo. E agora acho que o senhor, sem perda de tem-

po, deveria pedir ajuda médica." Caleb apanhou seu chapéu no chão, ao

terminar, e lentamente se levantou da cadeira.

"Certamente," disse BuIstrode, cuja mente entrou no momento em

grande atividade. "Talvez queira fazer-me o favor, Mr. Garth, de chamar

Mr. Lydgate ao passar por lá - ou melhor, não! é provável que a esta

hora ele esteja no Hospital. Primeiro vou mandar que o meu lacaio leve-
lhe a cavalo um recado, neste instante, e depois irei eu mesmo a Stone

Court."

BuIstrode escreveu rapidamente o bilhete e saiu para transmitir a

incumbência ao portador. Quando voltou, Caleb continuava em pé como

antes, com uma das mãos no espaldar da cadeira e a outra a segurar o

chapéu. Na mente de BuIstrode, este era o pensamento dominante: "Tal-

vez o Raffies só tenha falado de sua doença ao Garth. Este pode espan-

tar-se, como há de lhe ter ocorrido outrora, com um tipo assim tão reles

a pretender intimidade comigo; mas de nada saberá. Tem-se mostrado

meu amigo - e eu posso ser útil a ele."

730

GEORGE ELIOT

Desejava uma confirmação desta conjectura esperançosa, mas per-

guntar alguma coisa sobre o que Raffies teria dito ou feito seria trair seu

medo.

"Fico-lhe imensamente grato, Mr. Garth," disse ele, com sua habi-

tual polidez. "Meu lacaio há de estar de volta dentro de poucos minu-

tos, e então irei ver o que se pode fazer por este pobre coitado. Talvez o

senhor ainda tenha outro assunto a tratar comigo. Sente-se de novo, por

favor, se for o caso."

"Obrigado," disse Caleb, fazendo um ligeiro gesto com a mão direi-

ta para declinar do convite. "O que desejo, Mr. BuIstrode, é solicitar-lhe

que confie seus negócios a outras mãos que não as minhas. Sou-lhe

grato pela boa acolhida que me deu - sobre o arrendamento de Stone

Court e todas as demais questões. Mas tenho de desistir do trabalho."

Brutal como uma punhalada, uma certeza penetrou na alma de

BuIstrode.

"Assim tão de repente," foi tudo o que a princípio ele pôde dizer.
"Pois é," disse Caleb; "mas já está decidido. Tenho de desistir do

trabalho."

A despeito de haver em sua voz uma firmeza por demais delicada,

ele notou que a própria delicadeza parecia fazer BuIstrode encolher-se,

murcho se mostrando seu rosto e seus olhos evitando a mirada nele

cravada. Caleb sentiu muita pena, mas não teria como recorrer a pretex-

tos para justificar a decisão, ainda que eles pudessem ser úteis.

"O senhor foi levado a isto, deduzo, por calúnias a meu respeito

lançadas por aquele infeliz," disse Buistrode, ansioso em saber de tudo.

" verdade. Não nego que estou agindo com base no que dele ouvi."

"O senhor é um homem consciencioso, Mr. Garth - um homem,

creio, que se sente responsável perante Deus. Não haveria de querer

prejudicar-me por acreditar sem mais nem menos numa calúnia," disse

BuIstrode, à procura de argumentos que pudessem corresponder à men-

te do interlocutor. "Trata-se de uma razão muito fraca para desistir de

uma associação que, penso poder dizer, haveria de ser-nos mutuamente

benéfica."

"Eu nunca prejudicaria ninguém, se o pudesse evitar," disse Caleb;

mesmo se pensasse que Deus não estava vendo. Espero ser sempre

compassivo para com meus semelhantes. Porém - sou obrigado a acre-

ditar que este Raffies me contou a verdade. E não posso ser feliz traba-

lhando com o senhor, nem recebendo benefícios que do senhor prove-

nham, pois isto me fere a consciência. Devo pedir-lhe que procure outro

agente."

MIDDLEMARCH

731

"Muito bem, Mr. Garth. Mas ao menos devo tentar saber que horro-

res ele lhe disse. Devo saber de que sórdido falatório eu fui transforma -
do em vítima," disse BuIstrode, já se mesclando uma certa dose de raiva

à humilhação que ele sentia diante daquele homem tranqüilo que re-

nunciava aos seus benefícios.

" inútil," disse Caleb, fazendo um sinal com a mão, inclinando li-

geiramente a cabeça e não se desviando do tom no qual estava contida

sua piedosa intenção de poupar tão deplorável pessoa. "O que ele me

disse jamais há de passar por meus lábios, a não ser que algo, por ora

desconhecido, o extraia à força de mim. Se por cobiça o senhor levou

uma vida perniciosa e se, com a intenção de obter mais para si, a outros

privou de seus direitos por dolo, ouso crer que se arrependa - que

queira voltar atrás e não possa: e isto deve ser um horror," - Caleb,

meneando a cabeça, fez uma pausa - "mas não me cabe tornar-lhe a

vida mais dura."

"Entretanto a torna - torna-me a vida mais dura," disse BuIstrode,

constringido a uma genuína exclamação suplicante. "O senhor me torna

a vida mais dura ao virar-me as costas."

"Sou forçado a fazê-lo," disse Caleb, ainda mais delicadamente, er-

guendo a mão. "Sinto muito. Não o julgo dizendo: ele é mau e eu sou

virtuoso. Deus me livre! Eu não sei de tudo. Um homem pode agir mal

e sua vontade, depois disto, sair purificada, embora ele não possa mais

purificar sua vida. Eis aí uma triste punição. Se tal se dá com o senhor -

bem, lamento muito. Tenho porém em meu íntimo a sensação de que

não posso continuar a trabalhar com o senhor.  só isto, Mr. BuIstrode.

Quanto ao mais, no que depender da minha vontade, tudo está encerra-

do. Bom-dia, pois."

"Um momento, Mr. Garth!" disse precipitadamente BuIstrode. "Pôsso

então confiar na sua garantia solene de que o senhor não irá repetir a

nenhum homem, a nenhuma mulher, o que - ainda que contivesse al-

guma dose de verdade - é entretanto uma versão maldosa dos fatos?"

Excitada a ira de Caleb, ele se indignou e disse:

"Por que iria eu dizer isto, se tal não fosse minha intenção? Não tenho
medo do senhor. E histórias como esta nunca me tentarão a falar."

"Desculpe-me - eu estou muito nervoso - sou vítima deste ho-

mem depravado."

"Pois controle-se um pouco! e pense se o senhor mesmo não contri-

buiu para torná-lo pior, quando tirou proveito de seus vícios."

"O senhor é injusto comigo por assim tão de pronto acreditar nele,"

disse BuIstrode, oprimido, como num pesadelo, por sua incapacidade de

732

GEORGE ELIOT

negar claramente o que Raffies poderia ter dito; e entretanto vendo uma

saída no fato de Caleb não o haver relatado de modo a lhe pedir uma

negativa bem categórica.

"Não," disse Caleb, com um gesto de discordância; "estou pronto a

acreditar em coisa melhor, mas que possa ser comprovada. Não o privo

das ocasiões a tanto propícias. Quanto a falar, para mim é um crime

expor pecados de um homem, a não ser que haja certeza de que é preci-

so fazê-lo para salvar um inocente.  o meu modo de pensar, Mr.

BuIstrode, e eu não tenho necessidade de jurar o que digo, Desejo-lhe

bom-dia."

Horas mais tarde, quando já se achava em casa, Caleb disse casual-

mente à sua esposa que havia tido umas pequenas diferenças com

BuIstrode, que em conseqüência desistira de vez da idéia de assumir

Stone Court e que, na realidade, já não estava fazendo mais nada

para ele.

"Ele queria interferir demais, não é?" disse Mrs. Garth, imaginando

que o marido fora atingido no seu ponto sensível por não receber per-

missão de fazer o que julgava correto, no tocante a materiais e métodos

de trabalho.
"Oh," disse Caleb, gravemente meneando a cabeça e sacudindo a

mão. E Mrs. Garth entendeu que este sinal indicava que ele não preten-

dia continuar a falar do assunto.

BuIstrode, por sua vez, montou quase de imediato a cavalo e partiu

para Stone Court, desejoso de lá chegar antes de Lydgate.

Tinha a mente povoada por conjecturas e imagens que eram a lin-

guagem de suas esperanças e medos, tal como nós ouvimos timbres que

partem das vibrações de todo o nosso organismo. A profunda humilha-

ção com a qual ele se encolhera tremendo diante de Caleb Garth, pelo

conhecimento de seu passado e a rejeição de seu patronato por este,

alternavam-se e quase davam lugar à impressão de estar em segurança

pelo fato de ser Garth, e não outro, o homem a quem Raffies havia fala-

do. Parecia-lhe isto um bom sinal de que a Providência tencionara livrá-

lo de conseqüências piores; já que assim ficava aberto o caminho para a

esperança de segredo. Que Raffies fosse atingido por doença, que tives-

se sido levado para Stone Court e não a outro lugar - eis aí ocorrências

que evocavam uma visão de probabilidades perante a qual palpitava o

coração de BuIstrode. Se viesse a positivar-se que ele estava a salvo dos

riscos de desgraça - se pudesse respirar em perfeita liberdade - sua

vida deveria, mais do que nunca, ser consagrada a Deus. Mentalmente

ele formulava este voto como se o mesmo fosse propiciar o resultado

MIDDLEMARCH

pelo qual aspirava - tentava acreditar na potência da pia resolução -

potente até para determinar a morte. Sabia que devia dizer: "Que seja

feita a Vossa vontade;" e de fato freqüentemente o dizia. Mas restava-

lhe o intenso desejo de que a vontade de Deus pudesse ser a morte do

homem tão odiado.

Entretanto quando chegou a Stone Court ele não pôde ver sem um

choque a mudança em Raffies. Mas, não fossem sua palidez e fraqueza,


BuIstrode haveria de tomar por inteiramente mental esta mudança. Ao

invés de se mostrar loquaz e atormentador como de hábito, mostrava

ele um terror intenso e vago, parecendo querer aplacar a raiva de BuIstrode

porque o dinheiro tinha acabado - ele tinha sido roubado - metade

lhe tinha sido tomada. Só viera ali porque estava doente e alguém anda-

va atrás dele - havia alguém no seu encalço: mas ele não tinha dito

nada a ninguém, tinha calado a boca. BuIstrode, sem entender a signifi-

cação dos sintomas, transformou esta nova excitabilidade nervosa num

meio de alarmar Raffles e arrancar-lhe confissões verdadeiras, tachando-o

de falsidade por dizer que não falara nada, já que ele acabara de contar

ao homem que o havia trazido a Stone Court em seu cabriolé; o que

Raffies negou com juras solenes, pois o fato é que ocorriam uns claros

no encadeamento de sua consciência, e a narrativa a Caleb Garth, deta-

lhada e aterrorizada, fora feita por impulsos delirantes já agora recolhi-

dos de novo à escuridão.

E de novo deprimiu-se o coração de BuIstrode a este sinal de que

da mente do infeliz ele nada conseguiria, e não podia confiar em ne-

nhuma palavra de Raffles sobre o que mais queria saber, ou seja, se ele

não havia falado a mais ninguém nas redondezas além de Caleb Garth.

A governanta informara sem constrangimento que, depois de Mr. Garth

sair, Raffies lhe pediu cerveja e acabou ficando em silêncio, como se

estivesse muito doente. Concluía-se que deste lado, portanto, não ti-

nha havido traição. Mrs. Abel pensava, como os criados do Arvoredo,

que o estranho era um dos desagradáveis "parentes" que sempre estão

entre os incômodos dos ricos; de início ela atribuía o parentesco a Mr.

Rigg e, onde quer que havia herança, a presença dessas moscas zum-

bindo em torno parecia bem natural. Como ele também podia ser "pa-

rente" de BuIstrode não estava tão claro, mas Mrs. Abel concordou

com seu marido não haver "sabência alguma," proposição que lhe soou

tão rica em nutrientes mentais que ela se limitou a balançar a cabeça

sem mais especular.


Em menos de uma hora Lydgate chegou. BuIstrode foi encontrá-lo

fora da sala com lambris de madeira, onde estava Raffies, e disse:

734

GEORGE Ei,ioT

"Chamei-o, Mr. Lydgate, para ver um infeliz que foi meu empregado

há muitos anos atrás. Depois esteve na América, de onde voltou, temo,

para uma vida ociosa e dissoluta. Estando desprovido, recorre a mim.

Tem um ligeiro parentesco com Rigg, o antigo dono da propriedade, e

em conseqüência encontrou seu caminho até aqui. Creio que está muito

doente: aparentemente teve a mente afetada, sinto-me obrigado a fazer

tudo por ele."

Lydgate, ainda muito ressentido à lembrança de sua última conversa

com BuIstrode, não estava disposto a lhe dizer desnecessárias palavras,

por isto só se curvou ligeiramente em resposta; porém, pouco antes de

entrar na sala, virou-se automaticamente e disse: "Como se chama ele?"

- saber o nome sendo parte tão comum à prática da medicina como à

da política.

"Raffies, John Raffies," disse BuIstrode, com a esperança de que,

fosse qual fosse o fim de Raffies, por ele Lydgate nunca soubesse mais

nada.

Depois de examinar o paciente e refletir sobre o caso, Lydgate man-

dou que o pusessem de cama, mantido em repouso absoluto, e aí se

dirigiu com BuIstrode a uma outra sala.

"O caso é grave, deduzo," disse o banqueiro, antes de Lydgate co-

meçar a falar.

"Não - e sim," disse Lydgate, meio na dúvida. " difícil chegar a

uma decisão quanto ao possível efeito das complicações; mas era ho-

mem que no começo tinha constituição vigorosa. Eu não esperaria que o


ataque fosse fatal, embora seu organismo naturalmente se encontre em

estado precário. Ele exige bons cuidados e atendimento constante."

"Ficarei aqui eu mesmo," disse BuIstrode. "Mrs. Abel e o marido

não têm experiência. Posso muito bem passar esta noite aqui, se me

fizer o favor de levar um recado para Mrs. Bulstrode."

"Não creio que seja necessário," disse Lydgate. "Parece que ele sos-

segou e está amedrontado. Poderia, sim, tornar-se mais intratável, mas

há um homem na casa - pois não?"

"Já passei algumas noites aqui por voluntário isolamento," disse

Buistrode, indiferentemente; "estou pronto a fazê-lo agora também. Mrs.

Abel. e o marido poderão revezar-se comigo ou me ajudar, se necessário."

"Muito bem. Darei minhas instruções então apenas ao senhor," dis-

se Lydgate, não se surpreendendo com uma pequena singularidade em

BuIstrode.

"O senhor acha então que o caso tem esperança?" disse BuIstrode,

quando Lydgate acabou de dar as ordens.

MIMUMARCH

"A não ser que haja complicações posteriores, como por ora ainda

não detectei - sim," disse Lydgate. "Ele pode passar para um estado

pior; mas eu não me admiraria se, seguindo o tratamento que precrevi,

melhorasse em poucos dias.  preciso firmeza. Se ele pedir qualquer

bebida alcoólica, lembre-se bem, não permita. Em minha opinião, ho-

mens neste estado são mais freqüentemente mortos pelo tratamento do

que pela doença. Novos sintomas, ainda assim, podem manifestar-se.

Voltarei amanhã de manhã."

Depois de esperar pelo recado para Mrs. BuIstrode, Lydgate se afas-

tou a cavalo, a princípio não fazendo conjecturas sobre a história de

Raffies, mas lembrando-se de toda a discussão recentemente provocada

pela publicação da vasta experiência do Dr. Ware na América, quanto ao


modo correto de tratar casos de intoxicação alcoólica como este. Lydgate,

quando no exterior, já se interessara pela questão: por firme convicção

era contra a prática predominante de permitir o álcool e ir administran-

do grandes doses de ópio; e à base desta convicção tinha agido várias

vezes com resultados promisores.

"O homem está muito combalido," pensava ele, "mas suas forças

ainda não se esgotaram. Suponho que ele seja objeto da caridade do

BuIstrode. Curioso como zonas de dureza e ternura se situam lado a

lado nas disposições humanas. BuIstrode parece o mais antipático dos

homens que eu já vi, em relação a certas pessoas, no entanto tem tido

montes de problemas e gasto muito dinheiro em objetivos filantrópicos.

Acho que ele faz algum teste pelo qual descobre por quem o Céu se

interessa - e comigo, já decidiu, não é o caso."

Este filete de amargura vinha de fonte abundante e continuou a alar-

gar-se na corrente de seu pensamento à medida que ele se aproximava

de Lowick Gate. Desde sua primeira conversa com BuIstrode, pela ma-

nhã, não voltara lá, tendo sido encontrado no Hospital pelo mensageiro

do banqueiro; e pela primeira vez vinha para casa sem a visão de algum

expediente ao fundo que lhe deixasse a esperança de arranjar o dinheiro

necessário para salvá-lo da iminente perda de tudo que tornara sua vida

conjugal tolerável - tudo que salvara a ele e a Rosamond de um isola-

mento despojado no qual seriam forçados a reconhecer quão pouco con

forto eles podiam dar um ao outro. Era mais suportável haver-se sem

ternura por si mesmo do que ver que sua própria ternura não podia dar

satisfações, pela falta de outras coisas, a ela. Os padecimentos de seu

orgulho, por humilhações passadas e por vir, se eram bem fortes, no

entanto mal se distinguiam para ele daquela dor mais aguda que os do-

minava a todos - a dor de antever que Rosamond passaria a considerá-

736
GEORGE ELIOT

lo a principal causa de decepção e infelicidade para ela. Nunca se sentira

inclinado pelos paliativos da pobreza, que nunca haviam entrado em

suas perspectivas pessoais; mas começava a imaginar agora como duas

criaturas que se amavam, e tinham idéias em comum, podiam rir da sua

reles mobília, e dos cálculos para saber até quando daria para comprar

manteiga e ovos. Mas o vislumbre de tal poesia parecia tão distante

quanto a despreocupação da idade de ouro; na mente da pobre Rosamond

não havia espaço suficiente para as luxúrias se mostrarem pequenas. Foi

assim muito triste que ele desceu do cavalo e entrou em casa, não espe-

rando ser animado a não ser por seu jantar e refletindo que, antes do fim

da noite, seria bom falar a Rosamond de sua solicitação a BuIstrode e de

seu fracasso. Seria bom não perder tempo em prepará-la para o pior.

Mas seu jantar o esperou longamente, antes de ele ser capaz de comê-

lo. Pois ao entrar constatou que o agente de Dover já havia posto um

homem na casa e, quando perguntou por Mrs. Lydgate, foi informado de

que ela estava em seu quarto de dormir. Subiu e achou -a estirada na

cama, silenciosa e pálida, não respondendo nem pela expressão suas

palavras e olhares. Sentou-se à beira da cama e, debruçando-se sobre

ela, disse quase como se fizesse uma súplica:

"Perdoe-me por esta infelicidade, minha pobre Rosamond! E apenas

pensemos no nosso amor."

Ela o olhou em silêncio, ainda com o mais apático desespero na face;

mas seus olhos azuis logo se encheram de lágrimas, e seus lábios treme-

ram. O homem forte tinha tido que agüentar demais nesse dia. Perto da

dela, deixou sua cabeça cair e prorrompeu em soluços.

De manhã cedo, não a impediu de ir à casa do pai - achava agora

que não devia impedi-la de fazer o que bem quisesse. Em meia hora ela

foi e voltou e disse que papai e mamãe queriam que ela ficasse com eles

enquanto as coisas estivessem nessa situação deplorável. Papai disse,


sobre a dívida, que nada poderia fazer - se pagasse a atual, mais uma

meia dúzia viria. Era melhor ela voltar para casa até Lydgate conseguir

para ela uma boa residência. "Você concorda, Tertius?"

"Faça como quiser," disse Lydgate. "Mas não estamos à beira de

uma crise imediata. Não há ainda essa pressa toda."

"Então eu fico até amanhã," disse Rosamond; "vou ter de arrumar

minhas roupas para levar."

"Oh, eu esperaria mais um pouco - não há como saber o que pode

acontecer," disse Lydgate, com amarga ironia. "Posso quebrar o pesco-

ço, e isto pode facilitar as coisas para você."

Para a desgraça de Lydgate, e também de Rosamond, sua ternura

MIDDLEMARCH

737

para com ela, que era tanto um impulso emocional quanto uma bem

considerada resolução, inevitavelmente era interrompida por suas ex-

plosões de indignação, fossem irônicas ou de reprovação. Ela as tomava

por totalmente injustificadas, e a repulsão que severidade assim tão ex-

cepeional lhe excitava já ameaçava tornar inaceitável a ternura mais per-

sistente.

"Vejo que não deseja que eu vá," disse ela, com fria doçura; mas

por que não o diz sem um acesso de violência? Ficarei lá até você me

pedir para eu fazer outra coisa."

Lydgate nada mais falou, mas saiu às suas visitas. Sentia-se despe-

daçado e magoado, trazendo uma linha escura sob os olhos, que

Rosamond nunca havia notado. Nem olhar para ele, agora, ela agüenta-

va. Tertius tinha um jeito de encarar as coisas que as tornava muito


piores para ela.

CAPÍTULO LXX

Our deeds still travel with us from afar,

And what we have been makes us what we are.

("Nossas ações vêm de longe viajar conosco,

E o que nós fomos faz o que nós somos.")

A PRIMEIRA PROVIDêNCIA de Bulstrode, depois de Lydgate sair de Stone

Court, foi examinar os bolsos de Raffies, que ele imaginava conter sinais

seguros, em forma de contas de hotel, dos lugares onde o camarada

tinha parado, se não falara a verdade dizendo que viera direto de

Liverpool porque estava doente e sem dinheiro. Havia várias contas

socadas em sua carteira, mas nenhuma de data posterior ao Natal de

outro lugar, a não ser uma datada dessa manhã. Esta, amassada junto

com um prospecto de uma feira de cavalos num dos seus bolsos de trás,

referia-se ao valor de três dias numa estalagem em Bilkley, local da feira

- cidade que ficava pelo menos a uns setenta quilômetros de

Middemarch. A conta era alta e, como Raffies não trazia bagagem, era

provável que tivesse deixado a mala em pagamento, guardando algum

dinheiro para comprar a passagem; pois sua bolsa estava vazia, e nos

bolsos nada havia além de uns meios xelins e uns pences esquecidos.

BuIstrode sentiu-se um pouco seguro com estas indicações de que

Raffies realmente se mantivera à distância de Middemarch desde sua

memorável visita no Natal. · distância e em meio a pessoas que eram

para Bulstrode estranhos, que satisfação poderia ter Raffies, com seu

pendor a atormentar e exagerar, contando velhas histórias escandalosas

sobre um banqueiro de Middemarch? E daí, se tivesse contado? Agora,

o que importava era o manter sob guarda, enquanto houvesse algum


perigo de seu inteligível delírio, seu inexplicável impulso para falar que

MIDDLEMARCH

739

parecia ter agido em relação a Caleb Garth; pois BuIstrode sentia grande

ansiedade de que este impulso o dominasse à vista de Lydgate. Assim,

passou a noite sozinho sentado junto de Raffies, mandando apenas que

a governanta se deitasse vestida, pronta para atender se ele a chamasse,

e dando por pretextos sua própria falta de sono e sua preocupação em

cumprir as ordens do médico. Cumpriu-as à risca, se bem o homem não

parasse de pedir conhaque e afirmar que estava afundando - que a terra

estava afundando a seus pés. Mostrava-se inquieto e sem sono, mas

ainda assim intimidado e dócil. Devido à oferta da comida prescrita por

Lydgate, que ele recusou, e à negativa de outras coisas que pediu, pare-

ceu concentrar todo seu terror em BuIstrode, procurando, súplice, afas-

tar sua cólera, sua vingança que o deixava à míngua, e afiançando com

solenes juras que nunca a nenhum mortal tinha dito uma palavra contra

ele. Nem isto BuIstrode achou que gostaria que Lydgate ouvisse; mas

um sinal mais alarmante da volúvel alternação do delírio foi que, ao

raiar do dia, Raffies pareceu imaginar sem mais nem menos a presença

de um médico que se dirigia a ele e declarava que BuIstrode o queria

matar de fome por haver falado, quando ele nunca o havia feito.

A imperiosidade inata de BuIstrode e sua força de determinação ser-

viram-lhe adequadamente. Este homem delicado na aparência, mas ner-

vosamente perturbado, encontrou o necessário estímulo em suas cir-

cunstâncias estrênuas e, através dessas dificeis noite e manhã, quando

tinha o ar de um cadáver animado que sem calor voltasse a se movimen-

tar, mantendo domínio pela fria impassibilidade, sua mente esteve in-

tensamente em ação, pensando contra o que teria de se proteger e no


que lhe propiciaria segurança. Malgrado as preces que ele erguesse, as

declarações eventuais em seu íntimo sobre a lamentável situação espiri-

tual daquele homem, seu dever de submeter-se à punição divina apon-

tada para si próprio, ao invés de desejar mal a um outro, malgrado tudo

- este esforço para condensar palavras num estado mental sólido era

invadido e permeado pelo vigor írresistível das imagens dos fatos que

ele realmente queria. E na esteira destas imagens vinha sua apologia.

Não podia senão ver a morte de Raffies, e nela ver sua libertação. O que

era a remoção desta infeliz criatura? Ele era um impenitente - mas

impenitentes não eram os criminosos públicos? - entretanto a lei deci -

dia seu destino. Se a Providência neste caso concedesse a morte, não

havia pecado em contemplar a morte como o desfecho desejável - se

ele poupasse suas mãos de apressá-la - se escrupulosamente fizesse o

que estava prescrito. Mas mesmo assim poderia haver um erro: as pres-

crições humanas são falíveis: Lydgate dissera que certo tratamento havia

740

GEORGE ELIOT

apressado a morte - por que então seu próprio método não o faria

também? Na questão do certo e do errado, naturalmente a intenção era

tudo.

E BuIstrode decidiu-se a manter sua intenção separada do seu dese-

jo. Declarou a si mesmo que pretendia obedecer as ordens. Por que ha-

veria de colocar em discussão a validez de tais ordens? Este era o ardil

habitual do desejo - que se serve de qualquer ceticismo irrelevante

para encontrar mais espaço para si em toda incerteza sobre efeitos, em

toda obscuridade parecida com uma ausência de lei. Sem embargo, ele

obedeceu.

Suas inquietudes projetavam-se continuamente em direção a Lydgate,


e sua recordação do que se passara entre eles, na manhã anterior, era

acompanhada de sensações que não lhe haviam de modo algum ocorri-

do durante a cena real. Pouco então se preocupara com as penosas im-

pressões de Lydgate sobre a mudança sugerida no Hospital, ou com a

maneira como ele recebera sua recusa, a seu ver a atitude justificável que

um pedido exorbitante podia requerer. Voltava agora à cena com a com-

preensão de provavelmente ter transformado Lydgate em seu inimigo e

com um ativo desejo de conquistar-lhe as boas graças, ou melhor, de

nele criar um forte sentido de obrigação pessoal. Lamentou não ter feito

logo um sacrifício em dinheiro, por desarrazoado que fosse. Pois em

caso de desagradáveis suspeitas ou mesmo de conhecimento obtido pelo

delírio de Rafiles, BuIstrode poderia encontrar na mente de Lydgate uma

defesa, por lhe ter concedido um benefício momentâneo. Mas o remorso

tinha vindo talvez tarde demais.

Estranho, lamentável conflito na alma deste homem infeliz, que du-

rante anos desejou ser melhor do que era - que havia imposto às suas

paixões egoístas uma disciplina e, tendo-as vestido de roupagens seve-

ras, trouxera-as em sua companhia como um coro devoto até que agora,

quando o terror se estabelecia em meio a elas, não mais podiam cantar,

só lançavam seus gritos ern comum por salvação.

já ia o dia quase em meio quando Lydgate chegou: queria ter vindo

bem mais cedo, mas fora detido, disse ele; e BuIstrode percebeu sua

derreada aparência. Mas imediatamente ele se deu a considerações so-

bre o paciente e a minuciosas perguntas sobre tudo o que havia aconte-

cido. Raffies estava pior, recusava a comida, mantinha-se o tempo todo

desperto e em agitado delírio; porém ainda não violento. Ao contrário

da alarmada expectativa de Buistrode, ele pouco ligou para a presença

de Lydgate e continuou a falar ou murmurar incoerentemente.

"Que achou dele, Doutor?" disse BuIstrode, à parte.

MIDDLEMARCH
741

"Os sintomas pioraram."

"O senhor está menos esperançoso?"

"Não; ainda penso que ele pode reagir. O senhor vai ficar aqui?"

disse Lydgate, olhando para Bulstrode com esta pergunta abrupta que o

deixou intranqüilo, embora na realidade não se devesse a nenhuma

conjectura suspeitosa.

"Sim, acho que sim," disse BuIstrode, controlando-se e falando com

decisão. "Mrs. Bulstrode está sabendo das razões que me prendem. Mrs.

Abel e o marido não têm muita experiência para que fiquem sozinhos, e

este tipo de responsabilidade, de resto, mal se inclui no serviço que eles

me prestam. O senhor, presumo, há de ter novas instruções?"

A principal nova instrução de Lydgate era administrar doses extre-

mamente moderadas de ópio, em caso de insônia prolongada por várias

horas. Tivera ele a precaução de trazer ópio no bolso, e deu minuciosas

orientações a Bulstrode quanto às doses, e sobre o ponto em que era

preciso interrompê-las. Insistiu no risco, se a interrupção não fosse feita;

e repetiu sua ordem de que o álcool não devia em absoluto ser dado.

"Pelo que eu veio do caso," concluiu, "só o narcotismo me causaria

grande temor. Ele é capaz de resistir até sem muita comida. Ainda tem

boas reservas."

"Aliás, Mr. Lydgate, não me parece que esteja bem o senhor - fato

incomum e posso até dizer sem precedentes pelo que sei a seu respei-

tof disse BuIstrode, demonstrando uma solicitude tão desigual de sua

indiferença na véspera quanto sua presente inquietude sobre a própria

fadiga era desigual de sua habitual ansiedade auto-acalentadora. "Temo

que esteja em dificuldades?"

"Sim, estou," disse bruscamente Lydgate, apanhando seu chapéu e

pronto para sair.


"Alguma coisa nova, temo," disse BuIstrode, inquirindo-o. "Por fa-

vor, sente-se."

"Não, muito obrigado," disse Lydgate, com certa hauteur. "Mencio-

nei-lhe ontem qual era a situação dos meus negócios. Não há nada a

acrescentar, a não ser que desde então minha casa já foi posta em execu-

ção de fato. Uma frase curta basta para transmitir muito incômodo. Dir-

lhe-ei apenas bom-dia."

"Espere, Mr. Lydgate, espere um pouco," disse BuIstrode; "estive

reconsiderando este assunto, que ontem me pegou de surpresa e exami-

nei superficialmente. Mrs. Bulstrode preocupa-se com sua sobrinha, e a

mim mesmo afligiria uma mudança desastrosa em sua situação. São nu-

merosas as solicitações que me chegam, mas, reconsiderando, julgo mais

742

GEORGE ELIOT

certo eu incorrer num pequeno sacrifício do que o deixar sem ajuda. O

senhor disse que mil libras o livrariam do aperto, capacitando-o a recu-

perar seu equilíbrio, não foi?"

"Sim," disse Lydgate, com um grande jorro de alegria sobrepondo-

se em seu íntimo a todos os demais sentimentos; "isto daria para pagar

todas as dívidas, deixando-me ainda um pouco em mãos. Eu poderia

fazer economias em nosso modo de vida. E minha clientela, pouco a

pouco, talvez melhore."

"Se esperar um momento, Mr. Lydgate, farei um cheque desta quan-

tia. Estou ciente de que a ajuda, nestes casos, para ser efetiva tem de ser

completa."

Enquanto BuIstrode escrevia, Lydgate virou-se para a janela pensan-

do em sua casa - pensando em sua vida com seu bom começo salvo da

frustração, seus bons objetivos ainda incólumes.


"Basta que por isto o senhor me assine um recibo, Mr. Lydgate,"

disse o banqueiro, avançando para ele com o cheque. "E espero que

dentro em breve já esteja em condições de começar a me pagar pouco a

pouco. Entrementes, alegra-me pensar que estará a salvo de ainda mais

dificuldades."

1 "Fico-lhe imensamente agradecido," disse Lydgate. "Seu gesto res-

tabelece para mim a perspectiva de um trabalho feliz e com alguma pos-

sibilidade de acerto."

Parecia-lhe muito natural que BuIstrode houvesse reconsiderado a

recusa: isto correspondia ao lado mais generoso de seu caráter. Mas des-

de que ele pôs seu pangaré a galope, para poder chegar mais cedo em

casa, dar a boa notícia a Rosamond e ir ao banco buscar o necessário

para pagar o agente de Dover, passou-lhe pela cabeça, com uma impres-

são desagradável, como a de um vôo de mau agouro a passar asas negras

pela sua visão, a idéia deste contraste em si mesmo que poucos meses

haviam provocado - que ele estivesse cheio de alegria por dever um

favor pessoal de monta - que ele estivesse cheio de alegria por arranjar

com BuIstrode dinheiro para o seu sustento.

O banqueiro sentiu ter feito alguma coisa para anular uma causa de

sua inquietude, entretanto não ficou assim tão mais calmo. Não medira

a quantidade de motivos malsãos que o tinha feito desejar a benevolên-

cia de Lygate, mas nem por isto ela estava menos ativa em seu sangue

como um agente de irritação. Um homem faz uma promessa, todavia

não se liberta dos meios pelos quais a pode quebrar. Será esta claramen-

te a intenção que tem? Não, de modo algum; mas os desejos que ten-

dem ao descumprimento acham-se em obscura ação dentro dele, abrem

MIDDLEMARCH

743
caminho para sua imaginação e lhe relaxam os músculos nos próprios

momentos em que ele uma vez mais se repete as razões de sua promes-

sa. Raffies logo se recuperando, retomando ao livre uso de suas odiosas

forças - como poderia BuIstrode ansiar por isto? A imagem que dava

alívio era a de Raffies morto, e indiretamente ele orava por este meio de

alívio, rogando para que o resto de seus dias na Terra, se possível, ficasse

livre da ameaça de uma ignomínia que o afetaria extremamente como

instrumento da vontade de Deus. A opinião de Lydgate não concorria

com a esperança de esta prece ser atendida; e BuIstrode, à medida que o

dia ia avançando, foi-se irritando com a vida que persistia em tal ho-

mem, a quem veria de bom grado afundando no silêncio da morte: uma

imperiosa vontade já suscitava impulsos homicidas em relação a vida

tão bruta, sobre a qual a vontade, por si mesma, não tinha poder algum.

E ele se disse que estava muito esgotado; não ficaria com o doente esta

noite, deixá-lo-ia aos cuidados de Mrs. Abel que, se necessário, poderia

chamar por seu marido.

·s seis horas, como Raffies só havia tido uns momentos espasmódi-

cos e perturbados de sono, dos quais despertava ainda mais agitado e

com gritos perpétuos de que estava afundando, BuIstrode começou a

administrar-lhe o ópio, segundo as instruções de Lydgate. Cerca de meia

hora depois, chamou Mrs. Abel e disse-lhe que já não tinha condições

de se manter em vigília. Devia agora confiar o paciente aos cuidados

dela; e repetiu-lhe as instruções de Lydgate sobre a quantidade de cada

dose. Mrs. Abel nada sabia até então das prescrições de Lydgate; sim-

plesmente havia preparado e trazido tudo o que BuIstrode pedia, fazen-

do o que ele lhe mandava. Resolveu pois perguntar o que mais ela deve-

ria fazer, além de administrar o ópio.

"Nada por ora, a não ser oferecer-lhe sopa ou água de soda: preci-

sando de novas indicações, pode vir pedir-me. Não voltarei aqui ao quarto

esta noite, se não houver nenhuma alteração importante. Caso necessá-

rio, peça ajuda ao seu marido. Eu devo ir cedo para a cama."


"Sem dúvida precisa disto," disse Mrs. Abel, "e de alimentar-se

melhor do que vem fazendo, para revigorar-se."

BuIstrode afastou-se então sem se preocupar com o que Raffies

poderia dizer em seu delírio, que tomara a forma de murmúrios incoe-

rentes, os quais por certo não dariam margem a perigosas conjecturas.

Em todo caso ele teria de correr este risco. Desceu primeiro até a sala

com lambris de madeira, onde se pôs a pensar se não mandava selar

logo o cavalo e ia para casa ao luar, largando suas preocupações com as

conseqüências terrenas. Depois, desejou ter pedido a Lydgate que vol-

, W11

744

GEORGE ELIOT

tasse esta noite. Talvez ele manifestasse uma opinião diferente, achas-

se o estado de Raffies menos esperançoso agora. Convinha-lhe mandar

chamar Lydgate? Se Raffies estivesse piorando, morrendo pouco a pou-

co, BuIstrode sentiu que poderia ir para a cama e dormir, dando graças

à Providência. Mas ele estava mesmo pior? Lydgate, se viesse, talvez

dissesse simplesmente que estava indo como ele havia esperado, ou

talvez previsse que o paciente cairia em breve num bom sono e ficaria

bom. De que adiantava pois mandar chamá-lo? Bulstrode recuou desta

hipótese. Nem opiniões nem idéias o impediriam de ver a grande pro-

babilidade temida, que Raffies recuperado seria exatamente o mesmo

homem de antes, com a força de atormentador renovada, obrigando-o

a arrastar sua esposa para passar seus últimos anos longe da terra e

dos amigos, com uma suspeita contra ele que levaria seu coração a

estranhá-lo.

Somente hora e meia depois de entrar neste conflito, sentado junto


à lareira, a uma súbita lembrança ele se levantou e acendeu a vela do

quarto, que trouxera consigo para baixo. Lembrou-se de não ter dito a

Mrs. Abel quando as doses de ópio deveriam cessar.

Apossou-se do candelabro, mas mesmo em pé permaneceu sem se

mexer um bom tempo. Ela já poderia ter dado, a essa altura, mais do

que havia Lydgate prescrito. Esquecer parte de uma ordem, em seu pre-

sente estado de exaustão, era porém compreensível nele. Subiu a esca-

da, vela na mão, sem saber se ia direto ao seu quarto e lá se punha na

cama, ou se virava para o quarto do doente e retificava a omissão. No

corredor, fez uma pausa, com o rosto voltado para o quarto de Raffies, e

pôde ouvi-lo gemendo e murmurando. Assim, já que ele não estava dor-

mindo, já que o sono persistia em não vir, quem sabe não seria melhor,

ao invés de cumpri-la, desobedecer a prescrição de Lydgate?

E BuIstrode foi para o seu quarto. Antes que acabasse de desvestir-

se, Mrs. Abel bateu na porta; abriu-lhe apenas uma fresta, de modo a

poder ouvi-la em voz baixa.

"O senhor não me daria, por favor, um pouco de conhaque ou qual-

quer outra coisa para o pobre infeliz? Ele diz que está afundando e nada

quer saber de engolir - nada que o fortaleça um pouco - a não ser o

ópio. E repete cada vez mais que está afundando terra adentro."

Para surpresa dela, Mr. BuIstrode não respondeu. Travava-se uma

luta em seu intimo.

"Acho que ele vai morrer por falta de sustento, se continuar assim

deste jeito. Eu, quando cuidei do coitado do meu patrão, Mr. Robisson,

tinha de lhe dar constantemente vinho do Porto e conhaque, e de cada

MIMUMARCH

745

vez um copázio,11 acrescentou Mrs. Abel, com uma nota de reprovaçao


em seu tom.

Mas nem assim Mr. BuIstrode respondeu logo, e ela continuou. "Não

é hora de poupar, quando há gente à beira da morte, nem isto seria de

seu desejo, estou certa. De outro modo, eu teria de lhe dar do nosso

rum, de uma garrafa que guardamos conosco. Mas como o senhor tem

tomado conta dele e feito tudo o que pode -"

A essa altura uma chave foi passada pela fresta da porta, enquanto

Mr. BuIstrode dizia asperamente: "Eis a chave da adega, onde a senhora

pode ir ver que o que não falta é conhaque."

De manhã cedo - por volta das seis horas - BuIstrode se levantou

e ficou rezando algum tempo. Supõe alguém que a prece solitária seja

necessariamente sincera - que necessariamente desça às raízes da ação?

A prece solitária é um inaudível discurso, e este, o discurso, é represen-

tativo: quem pode representar-se tal como é, mesmo em suas próprias

reflexões? BuIstrode ainda não havia desenredado em seu pensamento

as confusas instigações das últimas vinte e quatro horas.

No corredor, prestando atenção, pôde ouvir o estertor de uma respi-

ração a esvair-se. Andou então até o jardim, vendo a geada matinal que

cobria a grama e as folhas novas da primavera. Quando voltou a entrar

na casa, sobressaltou-se ao encontrar Mrs. Abel.

"Como vai o doente - dormindo, penso?" disse ele, tentando falar

num tom animado.

"Está bem prostrado," disse Mrs. Abel- "Foi-se apagando pouco a

pouco entre as três e as quatro horas. Não daria o senhor, por favor, uma

olhada nele? Não pensei que eu fizesse mal em deixá-lo. Meu marido já

saiu para os campos e a menina está na cozinha."

BuIstrode subiu. E num relance percebeu que Raffies não estava no

sono que restaura a vida, mas no sono que corre cada vez mais fundo

para o golfo da morte.

Olhando ao redor do quarto, viu uma garrafa com um resto de co-


nhaque e, quase vazio, o frasco de ópio. Este, ele tratou de subtrair à

visão, e a garrafa de conhaque levou escada abaixo consigo, trancando-

a novamente na adega.

Tomou seu desjejum pensando se deveria ir logo para Middemarch

ou esperar pela chegada de Lydgate. Decidido a esperar, disse a Mrs.

Abel que ela podia ir cuidar do seu trabalho - ele mesmo ficaria com o

doente no quarto.

Lá sentado, vendo o inimigo de sua paz a imergir num irrevogável

silêncio, sentiu-se em grande sossego, como não se sentia há muitos

746

GEORGE ELIOT

meses. As envolventes asas do segredo, tal qual um anjo mandado a lhe

trazer alívio, aquietavam sua consciência. Ele então tirou do bolso a

carteira, para rever vários papéis referentes a providências em que havia

pensado e já tomara em parte, diante da perspectiva de abandonar

Middemarch, e considerou se as revogava ou mantinha até certo ponto,

agora que sua ausência deveria ser breve. Uma ocasião propícia a algu-

mas economias, a seu ver desejáveis, poderia surgir com seu afastamen-

to temporário dos negócios, e ele ainda esperava que Mrs. Casaubon

viesse a assumir boa parte das despesas do Hospital. Deste modo passa-

ram-se os momentos, até que uma mudança na respiração estertorante

foi suficientemente forte para fazê-lo concentrar sua atenção na cama,

forçando-o a pensar na vida que ali se desfazia, que outrora havia sido

subserviente à sua - e o deixara bem alegre por ser tão baixa que lhe

permitira usá-la a seu bel-prazer. Era a alegria de outrora que agora o

impelia a alegrar-se também por esta vida estar no fim.

E quem poderia dizer que a morte de Raffies havia sido precipitada?

Quem sabia o que o teria salvo?


Lydgate chegou às dez e meia, a tempo de presenciar a exalação do

último suspiro. Quando ele entrou no quarto, BuIstrode observou em

seu rosto uma expressão repentina, não tanto de surpresa quanto de

reconhecimento de que em sua avaliação tinha havido falha. Por algum

tempo ele permaneceu junto da cama em silêncio, olhos voltados para o

moribundo, mas com as alterações de sua expressão sob controle, a de-

monstrar que em seu íntimo se desenrolava um debate.

"Quando começou esta mudança?" disse, olhando para BuIstrode.

"Não passei a noite com ele," disse Buistrode. "Estando exausto,

deixei-o aos cuidados de Mrs. Abel. Segundo ela, foi entre as três e as

quatro horas que ele caiu no sono. Quando eu cheguei, antes da oito, já

estava quase nestas condições."

Lydgate nada mais perguntou, limitando-se a observar em silêncio

até dizer: "Bem, está tudo acabado."

Era num estado de esperança e liberdade recuperadas que ele se

achava nessa manhã. Saira para o trabalho com a mesma animação de

antes, sentindo-se bastante forte para agüentar todas as imperfeições de

sua vida de casado. E estava consciente de que BuIstrode havia sido um

benfeitor para ele. O caso que tinha pela frente o intranqüilizava porém.

Tal desfecho não correspondia às suas expectativas. Entretanto ele mal

sabia como indagar BuIstrode sobre o assunto sem que parecesse insultá-

lo; e se fosse interrogar a governanta - ora, o homem já estava morto.

De nada adiantaria supor que a ignorância ou a imprudência de alguém

MIMUMARCH

747

é que o haviam matado. E ele mesmo, afinal, poderia ter cometido um

engano.

Lydgate e BuIstrode voltaram juntos para Middemarch a cavalo,


conversando sobre muitas coisas - principalmente o cólera, as chances

da Lei de Reforma na Câmara dos Lordes e a firme posição das Ligas

Políticas. A propósito de Raffies, nada foi dito, a não ser quando BuIstrode

se referiu à necessidade de destinar-lhe um túmulo no cemitério da igre-

ja de Lowick e observou que, por tudo quanto sabia, o pobre coitado

não tinha outros parentes além de Rigg, que ele mesmo declarara lhe ser

hostil.

Uma vez em casa Lydgate recebeu a visita de Mr. Farebrother. O

Pastor não estava na cidade na véspera, mas a notícia de que se fazia

uma execução em casa de Lydgate chegara a Lowick ao anoitecer, levada

por Mr. Spider, sapateiro e auxiliar da paróquia, que a tinha sabido de

seu irmão, o respeitável instalador de sinetas de Lowick Gate. Desde

aquela noite em que Lydgate descera do salão de bilhar com Fred Vincy,

os pensamentos de Mr. Farebrother a seu respeito eram bastante som-

brios. jogar uma ou mais vezes no Green Dragon, em se tratando de

outro homem, não seria assim tão grave; mas no caso de Lydgate era um

dos vários sinais de que ele estava mudando, não parecia mais ser o

mesmo. já começava a fazer coisas pelas quais tinha antes um desprezo

até excessivo. Ainda que certas insatisfações no casamento, de que a

tola propagação dos boatos acabara por lhe dar uma idéia, pudessem

influir em tal mudança, Mr. Farebrother achava que ela decorria princi-

palmente das dívidas, sobre as quais os relatos se tornavam cada vez

mais precisos, e começou a temer que a hipótese de Lydgate ainda dis-

por de amigos ou fundos em reserva fosse totalmente ilusória. A má

acolhida que tivera, em sua primeira tentativa de conquistar a confiança

de Lydgate, não o inclinava a uma segunda; mas, com esta notícia de

que a penhora dos bens já estava sendo feita na casa, o Pastor se decidiu

a vencer sua relutância.

Lydgate acabara de despedir-se de um paciente pobre, pelo qual

muito se interessava, e avançou com uma animação tão patente, para

estender-lhe a mão, que Mr. Farebrother até estranhou. Poderia ser isto
uma orgulhosa rejeição de simpatia e ajuda? Não importava; a simpatia

e a ajuda deviam ser oferecidas.

"Como vai, Lydgate? Vim estar com você por ter sabido de uma

coisa que me deixou intranqüilo a seu respeito," disse o Pastor, num

tom de irmão bondoso, sem ponta alguma de reprovação. Os dois agora

já estavam sentados, e Lydgate respondeu imediatamente:

748

GEORGE ELIOT

"Acho que eu sei a que se refere. Ouviu dizer que havia uma penhora

na casa, não é?"

"Sim; é verdade?"

"Foi verdade," disse Lydgate, com um ar desenvolto, como se não se

importasse em falar sobre o caso agora. "Mas o perigo já passou; a dívi-

da está paga. Não me encontro mais em dificuldades: livre das dívidas,

serei capaz, espero, de começar tudo de novo e com mais critério."

"Folgo muito em sabê-lo," disse o Pastor, largando-se no encosto da

cadeira e falando em voz ligeira e baixa, como a que geralmente sucede

à remoção de um fardo. "Prefiro isto a todas as notícias do "Times."

Confesso que vim à sua procura com um peso no coração."

"Obrigado por ter vindo," disse cordialmente Lydgate. "Por estar

mais feliz, sou capaz de alegrar-me ainda mais com seu gesto. Passei

decerto um grande aperto, e temo que ainda venha a achar dolorosas as

escoriações que ficaram," acrescentou, com um sorriso meio triste; "mas

no momento sinto apenas o alívio de não ser mais torturado."

Mr. Farebrother se calou um momento, depois, muito sério, disse:

"Permita-me fazer-lhe uma pergunta, meu caro amigo, e perdoe-me se

tomo a liberdade."

"Não acredito que pergunte alguma coisa que me possa ser ofensiva."
"Pois então - isto é necessário para aquietar-me de vez o coraçao

- a fim de pagar suas dívidas - você não fez uma outra - fez? - que

poderia atormentá-lo ainda mais depois"

"Não," disse Lydgate, corando ligeiramente. "Não há razão pela qual

eu não me incline a dizer-lhe - pois este é o fato - que a pessoa de

quem agora sou devedor é o Bulstrode. Ele me adiantou uma bela soma

- mil libras - e pode-se permitir esperar que eu o reembolse."

", foi generoso," disse Mr. Farebrother, obrigando-se a aprovar um

gesto do homem de quem ele não gostava. Seus sentimentos eram tão

delicados que nem sequer em pensamento lhe ocorreria insistir num

fato, o de sempre ter aconselhado Lydgate a evitar todo e qualquer

envolvimento pessoal com BuIstrode. Imediatamente ele acrescentou:

" natural que o Bulstrode se interesse pelo seu bem -estar, já que você

colaborou com ele de um modo que provavelmente diminuiu seus ren-

dimentos, ao invés de aumentá-los. Alegra-me pensar que ele agiu em

consonãoncia com isto."

Lydgate se sentiu pouco à vontade ante a indulgência das suposi-

ções. Em seu intimo, estas tornaram mais distinta uma percepção

intranqüila que apenas poucas horas antes havia denotado seus primei-

ros indícios obscuros - a de que os motivos de Buistrode para sua súbi-

MIDDLEMARCH

749

ta generosidade, sucedendo de perto à indiferença mais fria, poderiam

ser puramente egoístas. Deixou pois que as suposições, com toda sua

indulgência, fossem tidas por válidas. Não podia contar a história do

empréstimo, que lhe estava no entanto mais vívida e presente que nun-

ca, tal como o fato que delicadamente o Pastor ignorava - que sua

relação de endividamento pessoal com BuIstrode era o que outrora ele


mais tinha querido evitar.

Ao invés de responder, ele se pôs a falar das economias que planejava,

e de já ter passado a considerar sua vida sob um diferente ponto de vista.

"Vou montar uma sala de cirurgia," disse. "Em relação a isto, penso

que realmente fiz um esforço equivocado. E, se a Rosamond não se im-

portar, vou arranjar um aprendiz. São coisas de que não gosto, mas que

não rebaixam ninguém, se executadas de modo consciencioso. No co-

meço, tive uma esfoladura bem grave: isto fará com que os pequenos

arranhões pareçam simples depois."

Pobre Lydgate! o "se a Rosamond não se importar," que lhe escapa-

ra involuntarianente como parte de seu pensamento, era uma significa-

tiva marca do jugo que ele suportava. Mas Mr. Farebrother, cujas; espe-

ranças vinham com força engrossar a mesma corrente na qual entravam

as de Lydgate também, e que nada sabia a seu respeito capaz de agora

suscitar um pressentimento melancólico, dele se despediu com congra-

tulações efusivas.

CAPÍTULo LXXI

"Clown. ."Twas in the Bunch of Grapes, where, indeed,

you have a delight to sit, have you not?

Froth. I have so; because it is an open room, and good for

winter.

Clo. Why, very well then: 1 hope here be truths.

- Measure for Measure.

("Cômico. Foi no Cacho de Uvas, onde você, de fato,

acha

uma delícia sentar-se, não é mesmo?


Froth. Acho sim; porque é um lugar aberto a todos, e bom

no inverno.

Côm. Ora pois, muito bem: espero que haja verdade

nisto.")

- Medida por medida."

CINCO DIAS APós a morte de Raffies, Mr. Bambridge achava-se plantado

em seu ócio sob a grande arcada que levava ao recinto do Green Dragon.

Embora não fosse dado à contemplação solitária, ele tinha saído do lo-

cal ainda há pouco, e qualquer figura humana em pé e à toa sob a arcada,

no começo da tarde, era tão certa de atrair companheiros como um pom-

bo que encontra alguma coisa que vale a pena bicar. Neste caso, não

havia objeto material do qual se nutrir, mas o olho da razão via uma

probabilidade de sustento mental nos mexericos que então tomassem

forma.

Mr. Hopkins, o amaneirado dono da loja de tecidos no outro lado da

rua, foi o primeiro a agir sob este prisma, pois que, sendo seus fregueses

Ve Shakespeare (Ato 11, Cena 1, linhas 125-130),

MIDDLEMARCH

751

principalmente mulheres, maior era sua sede por uns dedos de prosa

masculina. Mr. Bambridge foi meio seco com o comerciante, sentindo

que Hopkins se alegrava por certo em conversar consigo, mas também

que ele não ia desperdiçar muitas palavras com tal interlocutor. Dentro

em breve, contudo, já se formara uma rodinha de ouvintes mais impor-

tantes, que ou bem eram passantes ali depositados, ou bem haviam


zaranzado expressamente ao local para ver se no Green Dragon aconte-

cia algo de novo; e Mr. Bambridge achou que então valia a pena desfiar

todo um rol de maravilhas sobre as belas cotidelarias em que ele estivera

e as compras que havia feito numa viagem ao Norte, da qual acabava de

regressar. Aos senhores presentes foi dada a garantia de que, quando lhe

mostrassem alguma coisa para suplantar uma égua baia de raça, de seus

quatro anos, que podia ser vista em Doncaster, se alguém quisesse ir

comprovar, Mr. Bambridge os gratificaria com uma corrida "daqui a

Hereford." Já uma parelha de cavalos pretos que era sua intenção atrelar

ao breque trazia-lhe vividamente à lembrança uma outra, vendida por

ele a Faulkner em 19, por cem guinéus, e por Faulkner revendida dois

meses depois por cento e sessenta - e a quem quer que desmentisse a

afirmativa era proposto um privilégio, o de chamar Mr. Bambridge, até

que o exercício lhe secasse a goela, de um nome mesmo muito feio.

Achava-se em tal nível de animação a conversa, quando chegou Mr.

Frank Hawley. Não era este homem de comprometer sua dignidade

perambulando até o Green Dragon, mas, como andasse por acaso pela

High Street e visse Bambridge do outro lado, deu algumas de suas largas

passadas para cruzar a rua e vir indagar do alquilador se ele encontrara o

cavalo de cabriolé de primeira que havia ficado de procurar. Mr. Hawley

recebeu a solicitação de esperar até lhe ser apresentado um cinzento

escolhido em Bilkley: caso não correspondesse exatamente à sua vonta-

de, Bambridge então era incapaz de conhecer um cavalo assim que nele

punha os olhos, improbabilidade difícil de se conceber. Mr. Hawley, em

pé de costas para a rua, estava combinando uma hora para ver e experi-

mentar o tal cinzento, quando passou lentamente um cavaleiro.

"Bulstrode!" disseram baixo e em uníssono duas ou três vozes, sen-

do uma delas a do comerciante de tecidos, que respeitosamente antepôs

o "Mr." ao nome; mas ninguém deu mais atenção a esta apelidação

interjetiva do que se houvessem dito "a diligência de Riverston" quando

o veículo aparecia à distância. Mr. Hawley, virando-se num indiferente


relance, apenas viu BuIstrode de costas, mas Bambridge, mal seus olhos

o seguiram, fez uma careta sarcástica.

"Minha nossa! isto me lembra," começou ele, baixando um pouco

752

GEORGE ELIOT

de tom, "que não foi só o seu cavalo de cabriolé que encontrei em Bilkley,

Mr. Hawley. Lá eu também vim a saber de uma ótima história sobre o

BuIstrode. Sabem vocês como ele enriqueceu? A qualquer cavalheiro

que queira uma informação curiosa, posso fornecê -la gratuitamente. Pois

o fato é que, se todos recebessem o que merecem, o BuIstrode deveria

ter de rezar suas preces em Botany Bay.`

"O que está querendo dizer?" perguntou Mr. Hawley, enfiando as

mãos nos bolsos e avançando um pouco mais para debaixo da arcada.

Caso se tornasse patente que BuIstrode era um patife, Frank Hawley

então tinha uma alma profética.

"Um velho camarada do BuIstrode foi quem me pôs a pan Digo-lhes

onde pela primeira vez o encontrei," disse Bambridge, o indicador brusca-

mente em riste. "Ele esteve no leilão do Larcher, mas eu nada sabia a seu

respeito então - e me escapou por entre os dedos - quando na certa

andava atrás do BuIstrode. Garante-me que é capaz de extrair do BuIstrode

qualquer quantia, que conhece todos os seus segredos. Comigo porém ele

deu com a língua nos dentes: nossa, como entorna um copo! Não creio,

nem por sombra, que quisesse incriminar o parceiro; mas é um fanfarrão

refinado, desses cujas bravatas não conhecem limites, e é capaz de se

gabar até mesmo de um tumor num cavalo, como se isto pudesse render

dinheiro. A meu ver, um homem tem de saber quando parar." Mr.

Bambridge fez esta observação com um ar de desgosto, certo de que suas

próprias bravatas demonstravam manter-se em termos bem razoáveis.


"Como se chama o homem? Onde ele pode ser encontrado?" disse

Mr. Hawley.

"Túdo o que eu sei, quanto ao seu paradeiro, foi que o deixei no

Saracen"s Head; mas o nome dele é Raffies."

"Raffies!" exclamou Mr. Hopkins. "Ainda ontem eu forneci alguns

artigos para o seu funeral. Ele foi enterrado em Lowick. Um enterro

muito decente, que Mr. BuIstrode acompanhou."

A sensação, entre os ouvintes, foi grande. Mr. Bambridge se deu a

uma ejaculação de impropérios, na qual "iriferrio" era a mais suave pala-

vra, e Mr. Hawley, franzindo o cenho e esticando bem a cabeça, excla-

mou: "O quê? - e onde foi que o homem morreu?"

"Em Stone Court," informou o comerciante. "Era parente do patrão,

segundo a govemanta, e chegou lá na sexta-feira, já doente."

"Ora, na quarta foi que eu tomei um copo com ele," interpôs

Bambridge.

"Colônia penal na Austrália, perto de Sydney.

MIDDLEMARCH

753

"Algum médico o atendeu?" perguntou Mr. Hawley.

"Sim, Mr. Lydgate. Mr. BuIstrode passou uma noite com ele, que

morreu na manhã do terceiro dia."

"Vamos lá, Bambridge," disse Mr. Hawley, com insistência. "O que

foi que este sujeito contou sobre o Bulstrode?"

O grupo a essa altura já se tornara maior, sendo a presença do secre-

tário da Câmara uma garantia de que algo digno de ser ouvido achava-se

ali em curso; e foi em face de sete ouvintes que Mr. Bambridge proferiu

sua narrativa. Constava ela sobretudo do que nós já sabemos, incluído o


fato sobre Will Ladislaw, com alguns acréscimos de cor local e circuns-

tâncias: era a revelação que BuIstrode tanto havia temido - e esperava

ter enterrado para sempre com o cadáver de Raffies - era o fantasma

obsedante de sua vida pregressa, do qual se acreditava liberto pela Pro-

vidência, ao passar a cavalo pela arcada do Green Dragon. Sim, pela

Providência. Ele ainda não confessara a si mesmo a maquinação ideada

em sua mente pela obtenção de tal fim; apenas aceitara o que parecia

ter-se oferecido. E era impossível provar que tivesse feito alguma coisa

para apressar a partida da alma daquele homem.

Mas o mexerico sobre BuIstrode espalhou-se por Middemarch como

cheiro de fogo. Mr. Frank Hawley rastreou a informação mandando que

um empregado de sua confiança fosse a Stone Court, a pretexto de inda-

gar sobre o feno, mas na realidade para extrair de Mrs. Abel tudo o que

ele pudesse descobrir sobre Raffies e a doença que o vitimara. Chegou-

lhe deste modo ao conhecimento que Mr. Garth havia transportado o

homem em seu cabriolé até Stone Court; conseqüentemente Mr. Hawley

arranjou uma oportunidade para estar com Caleb, batendo em seu escri-

tório para perguntar se ele teria tempo de fazer um arbitramento, caso

necessário, e depois perguntando-lhe casualmente por Raffies. Caleb

não se deixou trair por nenhuma palavra injuriosa em relação a BuIstrode,

mas foi forçado a admitir que havia deixado de trabalhar para ele no

transcurso da última semana. Mr. Hawley tirou suas conclusões e, con-

vencido de que Raffies contara a história a Garth e de que Garth se afas-

tara de BuIstrode em decorrência disto, poucas horas depois transmitiu

esta versão a Mr. Toller. A afirmativa foi passada adiante, até perder por

completo o cunho de simples inferência e ser tomada por informação

que procedia diretamente de Garth, e assim até mesmo um historiador

diligente poderia ter concluído que Caleb fora o principal propalador

dos delitos de BuIstrode.

Mr. Hawley não demorou a perceber que nem as revelações feitas

por Raffies nem as circunstâncias de sua morte eram passíveis de


754

GEORGE ELIOT

enquadramento legal. Mas dirigiu-se em pessoa à aldeia de Lowick para

dar uma olhada nos registros e discutir o assunto com Mr. Farebrother,

que não se surpreendeu mais do que o advogado pelo fato de um segre-

do vergonhoso sobre BuIstrode ter vindo à luz, se bem seu senso de

justiça fosse como sempre suficiente para impedir que sua própria anti-

patia se transformasse em conclusões. Enquanto eles estavam conver-

sando, uma outra associação de idéias processava-se em silêncio na mente

de Mr. Farebrother, prenunciando o que dentro em breve, de modo tão

inevitável como "dois e dois são quatro," haveria de despertar em

Middemarch os mais ruidosos comentários. As razões para o medo que

Raffies inspirava a BuIstrode entremeou-se num lampejo a suspeita de

que tal medo pudesse relacionar-se à generosidade dele para com seu

médico; e, embora ele resistisse à hipótese de ela ter sido consciente-

mente aceita à guisa de suborno, ocorria-lhe um pressentimento de que

esta complicação das coisas seria capaz de surtir efeito maligno para a

reputação de Lydgate. Mr. Farebrother, notando que Mr. Hawley nada

sabia por ora da brusca liqüidação das dívidas, teve o cuidado de eximir-

se a toda eventual abordagem deste tema.

"Bem," disse ele, respirando fundo e querendo encerrar a ilimitável

discussão sobre o que poderia ter sido, embora não houvesse provas

legais para nada, "é uma história estranha. E esdrúxula então é a

genealogia do nosso atilado Ladislaw! Uma rapariga fogosa e um patrio-

ta polonês musicante já constituíam cepa bem promissora para lhe dar

origem, mas eu nunca teria imaginado esse enxerto de um penhorista

judeu. Contudo, não há como se saber de antemão no que uma mistura

vai dar. Há uns tipos de barro que servem para clarificar."


"Pois eu, é justamente o que eu poderia esperar," disse Mr. Hawley,

montando em seu cavalo. "Qualquer maldito sangue alienígena, judeu,

corso ou cigano."

"Sei que o toma por uma de suas ovelhas negras, Hawley. Na reali-

dade porém ele é um rapaz desinteressado e nada mundano," disse Mr.

Farebrother, sorrindo.

"Ah, sim, nisto entra em causa sua propensão liberal," disse Mr.

Hawley, já habituado a dizer apologeticamente que o danado do

Farebrother era um sujeito tão bondoso e agradável que até se podia,

por engano, tomá-lo por um conservador.

Mr. Hawley foi para casa pensando no atendimento de Raffies por

Lydgate como uma prova que depunha em favor de BuIstrode, e nunca

sob outra luz. Mas a notícia de que Lydgate, de um momento para o

outro, tinha não só sido capaz de livrar-se da penhora dos bens em sua

MIDDLEMARCH

755

casa, mas também de pagar todas as suas dividas em Middemarch, se

propagava depressa, acumulando a seu redor conjecturas e comentários

que lhe davam mais corpo e ímpeto, para logo encontrar ouvidos junto a

outras pessoas, além de Mr. Hawley, que não eram tão lentas em ver

uma relação significativa entre o dinheiro repentinamente arranjado e o

desejo de BuIstrode de abafar o escândalo de Raffies. Que o dinheiro

vinha de BuIstrode teria sido infalivelmente adivinhado, mesmo sem

evidências diretas; pois já era coisa sabida, nos boatos sobre a situação

de Lydgate, que nem seu sogro nem sua própria família nada fariam por

ele, e as evidências diretas foram fornecidas não só por um funcionário

do Banco, mas também pela própria e ingênua Mrs. BuIstrode, que men-

cionou o empréstimo a Mrs. Plymdale, que o mencionou à sua nora da


família Toller, que o mencionou a quantos pôde. O negócio foi tido por

tão importante e de tal interesse público que requereu jantares para

alimentá-lo, e muitos convites foram então feitos e aceitos com base no

escândalo concernente a BuIstrode e Lydgate; esposas, viúvas e solteiras

deitaram mão a seu trabalho para sair com mais freqüência a tomar chá

com as amigas; e toda a convivência social, do Green Dragon ao Dollop,

adquiriu um encanto que jamais teria advíndo de uma outra questão, a

de saber se os Lordes iriam derrubar a Lei de Reforma.

Pois quase ninguém duvidava de que alguma razão escandalosa acha-

va-se por trás da liberalidade de BuIstrode para com Lydgate. O próprio

Mr. Hawley foi o primeiro a convidar seleto grupo, que incluía os dois

facultativos, com Mr. Toller e Mr. Wrench, para a expressa finalidade de

discutir atentamente o que fosse plausível quanto à doença de Raffies,

narrando-lhes todos os pormenores obtidos com Mrs. Abel e justapon-

do-os ao atestado de Lydgate, segundo o qual a morte fora causada por

delírium tremens; e os senhores médicos, que em relação a esta doença

mantinham-se em unãonime tranqüilidade pelos caminhos de sempre,

declararam nada ver em tais pormenores que se mostrasse passível de

transformação em base concreta de suspeita. As bases morais para a

suspeita persistiram porém: os fortes e óbvios motivos de BuIstrode para

querer livrar-se de Raffies, e o fato de só nesse momento crítico ele ter

dado a Lydgate a ajuda de cuja necessidade já devia há algum tempo

saber; a inclinação, por um lado, a acreditar que BuIstrode fosse

ínescrupuloso e, por outro, a ausência de qualquer desinclinação a acre-

ditar que Lydgate não pudesse ser subornado tão facilmente quanto outros

homens de espirito, altivo que se vissem porventura em falta de dinhei-

ro. Mesmo que o dinheiro só lhe tivesse sido proporcionado para fazê-lo

não dar com a língua nos dentes acerca do escândalo da vida anterior de

756
GEORGE ELIOT

BuIstrode, o fato lançava uma luz execrável sobre Lydgate, que de há

muito era objeto de escárnio por tornar-se subserviente ao banqueiro

com a intenção de alçar-se à predominãoncia, colocando em descrédito os

membros mais antigos de sua profissão. Donde, a despeito da negativa

quanto a qualquer sinal patente de culpa em relação à morte em Stone

Court, o seleto grupo de Mr. Hawley se separar com a impressão de que

o caso tinha "um mau aspecto."

Mas esta vaga convicção de culpa indeterminável, que bastava para

suster muitos meneios de cabeça e insinuações mordazes mesmo entre

os profissionais mais velhos e respeitáveis, tinha para o espírito público

todo o poder superior que o mistério tem sobre o fato. Todos preferiam

conjecturar a simplesmente saber como era a coisa; pois as conjecturas

logo se tornavam mais certas que o conhecimento, concedendo ao in-

compatível uma licença mais liberal. Para alguns, até o escândalo mais

definido relacionado ao passado de BuIstrode era fundido à massa de

mistério, como um forte metal, para verter-se em seus diálogos e assu-

mir as mais fantásticas formas que ao céu aprouvessem.

Tal era o modo de pensar sancionado principalmente por Mrs. Dollop,

a porfiosa patroa do Tankard na Slaughter Lane, que muitas vezes tinha

de resistir ao pragmatismo superficial de fregueses dispostos a pensar

que as informações por eles trazidas do mundo exterior eram de força

equivalente ao que lhe "vinha à cabeça." Como vinha, ela não sabia,

mas o fato é que estava lá, diante de seus olhos, como se escrito a giz no

quadro sobre a lareira - "e o BuIstrode poderia dizer, ele que de tão sujo

por dentro era bem capaz de arrancar pela raiz os cabelos, se estes sou-

bessem dos pensamentos que em seu coração se abrigavam."

" curioso," disse Mr. Limp, um sapateiro meditativo, de vista fraca

e voz esganiçada. "Porque eu li na"Trombeta" que foi isto o que disse o

Duque de Wellington, quando ele virou a casaca e passou a apoiar os


católicos."

" bem provável," disse Mrs. Dollop. "Se um biltre disse, mais ra-

zão para que outro o repita. Hipócrita como tem sido, e comportando-se

com toda aquela arrogância, como se não houvesse pela região um pas-

tor à sua altura, ele não pôde senão se aconselhar com o diabo, e o diabo

acabou por lhe passar a perna."

"Pois é, taí um cúmplice que ninguém pode expulsar," disse Mr.

Crabbe, o vidraceiro, que tateava às cegas em meio ao monte de zun-

zuns que ia recolhendo. "Mas tem gente por aí, pelo que eu entendi, que

diz que mesmo antes de agora o BuIstrode já queria fugir, com medo de

ser desmascarado."

MIDDLEMARCH

"Queira ou não queira, ele vai ser enxotado," disse Mr. Dill, o bar-

beiro, que acabara de chegar. "Hoje cedo o auxiliar do Hawley, o Fletcher

- que está com um dedo machucado - foi fazer a barba comigo e disse

que todos têm a mesma vontade de se livrar do BuIstrode. Mr. Thesiger

já ficou contra ele e quer vê-lo fora da paróquia. E o que andam falando

homens de bem na cidade? Que era melhor jantar com um condenado

de um navio-prisão."Pra mim seria muito melhor,"disse o Fletcher; "pois

o que é mais ofensivo ao estômago do que um sujeito que chega pra

fazer má companhia com sua religião, proclamando que nem os Dez

Mandamentos bastam pra ele, quando na verdade é pior do que a meta-

de dos forçados?" Pois foi assim que falou o Fletcher."

Em voz trêmula, disse Mr. Limp: "Mas pra cidade vai ser ruim, se o

dinheiro do BuIstrode se for daqui."

E em voz firme disse um tintureiro, cujas mãos muito sangüíneas

destoavam da bondade que ele estampava no rosto: ", tem gente que é

melhor e gasta seu dinheiro pior."

"Mas o dinheiro não vai ficar com ele, pelo que eu sou capaz de
entender," disse o vidraceiro. "Num tão dizendo que tem gente que vai

querer tomar tudo? Se entendi direito, podem ir à justiça e deixar o

homem a zero."

"Nada disto!" disse o barbeiro, que se sentia um pouco acima de

seus parceiros no Dollop, mas mesmo assim não desgostava de ir lá.

"Diz o Fletcher que não é nada disto. Que podem provar quanto quise-

rem de quem que é filho esse rapaz, o Ladislaw, e será inútil, será igual

a provar que eu vim da lama - ele não receberia coisa nenhuma."

"Pois ora vejam só!" disse Mrs. Dollop, indignada. "Dou graças a

Deus por ter levado meus filhos, se isto é tudo o que a lei pode fazer por

um órfão. Então não importa, quem é o pai, quem é que é mãe da gente?

Me causa espanto num homem da sua inteligência, Mr. Dill - ouvir o

que diz um advogado, sem perguntar a opinião de outro.  bem sabido

que sempre existem dois lados, quando não mais; não fosse assim, eu

gostaria de saber, quem é que iria à justiça? Se de nada adianta provar

de quem se é filho, essa história de lei, pra lá e pra cá, não passa então

de uma bobagem. O Fletcher pode, como bem queira, dizer isto, mas

quanto a mim eu lhe digo, não me venha darfletchadas!"

A modo de deferência, Mr. Dill deu a Mrs. Dollop foi um sorriso

forçado, reconhecendo sua condição de mulher dura na queda com os

advogados; e dispondo-se a aturar o que lhe lançava em face a patroa, já

que ele tinha ali no prego uma baita conta.

"Se eles vão entrar na justiça, e se tudo que o povo anda dizendo é

757

758

GEORGE ELIOT

verdade, então vão ter de olhar mais coisas, num é só o dinheiro não,"
disse o vidraceiro. "Tem esse pobre camarada que tá morto e enterrado:

pelo que eu consigo entender, era um homem mais fino que o BuIstrode,

noutros tempos."

"Homem mais fino! Taí, comprovo," garantiu Mrs. Dollop; "e mais

bem apessoado também, pelo que ouvi falar. Tal e qual quando Mr.

Baldwin, o coletor de impostos, veio aqui e me contou, de pé onde aí

agora está sentado o senhor: "Todo o dinheiro que o BuIstrode trouxe cá

pra cidade foi obtido por falcatrua e ladroeira," - e eu disse: "Bem, pra

mim não é novidade, Mr. Baldwin: meu sangue sempre ferveu só de

olhar pra ele, desde que ele veio aqui na Slaughter Lane querendo com-

prar a casa que está por cima da minha: ninguém olha pra cor do seu

dinheiro e fica encarando a gente como se quisesse ver a gente por den-

tro à toa." Foi isto o que eu disse, e Mr. Baldwin pode comprovar."

"E também se tá direito," disse Mr. Crabbe. "Pois o tal de Raffles,

pelo que eu entendi, era homem forte e corado, tanto como se pode

querer, e uma ótima companhia - mas agora tá lá, morto e bem morto,

no cemitério de Lowick; e, até onde eu consigo compreender, tem gente

que sabe mais do que devia sobre como é que é que ele foi parar lá."

"Bem que acredito!" disse Mrs. Dollop, com um toque de desprezo

pela aparente imprecisão de Mr. Crabbe. "Quando um homem é metido

numa casa isolada, onde quem pode pagar hospitais e enfermeiras para

a metade da região prefere velar por ele em pessoa, dia e noite, e nin-

guém chega perto, só um doutor conhecido por sua falta de escrúpulos "

que era pobre que mal se agüentava, mas depois se encheu de tanto

dinheiro que até pôde pagar a Mr. Byles, o açougueiro, uma conta de

carnes de primeira pendurada há um ano desde a última festa de São

Miguel - eu não preciso que ninguém venha me dizer - não preciso

ficar piscando nem fechando meus olhos e pensando."

Mrs. Dollop olhou em derredor com aquele ar de patroa acostumada

a dominar sua freguesia. Por parte dos mais corajosos, houve um coro de

adesão; mas Mr. Limp, após sorver uma golada, juntou as mãos
espalmadas e comprimiu-as a fundo entre os joelhos, baixando a

contemplá-las seus olhos turvos, como se a força abrasadora da fala de

Mrs. Dollop lhe houvesse secado e embotado o entendimento, que re-

quereu uma nova talagada para umidificar-se e tornar-se claro outra vez.

"Por que é que não desenterram o homem pro juiz examinar?" disse

o tintureiro. "Já fizeram isso tantas vezes! Se houve um crime, uma tra-

móia, eles vão poder descobrir."

"Eles não, Mr. JoriasV" disse enfaticamente Mrs. Dollop. "Eu sei como

MIMUMARCH

759

são os médicos. São espertos demais para serem descobertos. E esse Dr.

Lydgate já era por retalhar todo mundo antes mesmo de se exalar dos

corpos o último suspiro - claro está que finalidade ele tinha, examinan-

do pessoas respeitáveis pelas entranhas. Conhece drogas, pode estar

certo, de que a gente não sente o cheiro nem vê, nem antes nem depois

de engolir. Ora, eu mesma já vi gotas receitadas pelo Doutor Gambit,

homem caridoso, que é o médico de nossa associação e que trouxe mais

crianças vivas ao mundo que qualquer outro em Middemarch - já vi

gotas que a gente nem sabia se estavam ou não no copo, mas que no dia

seguinte faziam um bruto efeito. Pois en - tão, julgue o senhor por si mes-

mo. Tudo o que eu digo é que foi uma bênção que eles não tenham

trazido esse Doutor Lydgate pra nossa associação. Muitas mães, por

causa de seus filhos, poderiam ter-se arrependido."

Os tópicos desta discussão no "Dollop" foram tema comum a todas

as classes da cidade, levados por um lado ao Presbitério de Lowick, por

outro a Tipton Grange, chegando aos ouvidos da família Vincy e sendo

comentados corri tristes referências à "pobre Harriet" por todas as ami-

gas de Mrs. BuIstrode, antes de Lydgate poder saber claramente por que
as pessoas o olhavam de um modo estranho, e de o próprio BuIstrode

suspeitar da revelação dos seus segredos. Este, não estando nada acos-

tumado a relações muito cordiais com os vizinhos, nem chegava a perce-

ber a ausência de sinais de cordialidade; ademais, andara a fazer viagens

sobre diversos tipos de negócios, tendo agora decidido que não precisa-

va sair de Mjddemarch e sentindo-se conseqüentemente capaz de re-

solver as questões que ele havia deixado em suspenso antes.

"Faremos uma viagem a Cheltenham dentro de um ou dois meses,"

dissera BuIstrode à sua esposa. "Há grandes vantagens espirituais a usu-

fruir nesta cidade, junto com suas águas e o ar, e seis semanas lá passa-

das nos trarão grande benefício."

Ele realmente acreditava nas vantagens espirituais, e pretendia que

sua vida fosse doravante ainda mais devota, em virtude dos últimos pe-

cados que se representava porém como hipotéticos, hipoteticamente

orando pelo perdão: - "se é que nisto eu cometi transgressões."

No tocante ao Hospital, evitou dizer a Lydgate qualquer coisa mais,

por temor de manifestar uma mudança muito brusca de planos logo após

a morte de Rafiles. No recôndito da alma ele supunha que Lydgate suspei-

tasse de que suas ordens haviam sido intencionalmente desobedecidas e

que, suspeitando disto, ele devia suspeitar também de um motivo. Mas

nada lhe fora revelado sobre a história de Raffies, e BuIstrode ansiava por

nada vir a fazer que pudesse eventualmente dar ênfase às suas indefinidas

760

GEORGE ELIOT

suspeitas. Quanto a qualquer certeza de que um método de tratamento

específico pudesse salvar ou matar o paciente, o próprio Lydgate estava

constantemente a combater tal dogmatismo; não tinha pois direito de

falar e, sim, todas as razões para manter-se em silêncio. Donde BuIstrode


se sentir providencialmente em segurança. O único incidente que o força-

ra a encolher-se muito foi um encontro casual com Caleb Garth, que, con-

tudo, com inofensiva gravidade lhe erguera o chapéu.

junto às principais figuras da sociedade local, entrementes, um forte

movimento contra ele ia tomando corpo.

Haveria uma reunião na Prefeitura a propósito de uma questão que

se tornara importante e urgente pela ocorrência na cidade de um caso de

cólera. Desde o ato legislativo do Parlamento, aprovado às pressas, que

autorizava o lançamento de impostos para fins sanitários, um Conselho

para superintender os trabalhos fora criado em Middemarch, e tanto

os

liberais quanto os conservadores já se haviam dado a muitos preparati-

vos e medidas de higiene. A questão agora era saber se se devia recorrer

a impostos ou a uma subscrição popular para adquirir um terreno fora

da cidade e transformá-lo em cemitério. A reunião seria aberta, esperan-

do-se que a ela comparecessem quase todas as pessoas de maior impor-

tância.

Mr. BuIstrode era membro do Conselho e, pouco antes do meio-dia,

saiu do Banco com a intenção de apoiar a idéia da subscrição popular. Em

face da hesitação dos seus projetos, por algum tempo ele se mantivera na

retaguarda, e agora achava que lhe convinha nessa manhã reassumir sua

antiga posição de homem de ação com influência nos negócios públicos

da cidade onde esperava terminar seus dias. Entre as várias pessoas que

iam na mesma direção, ele viu Lydgate; os dois se encontraram, conversa-

ram sobre o objetivo da reunião e entraram juntos.

Todo mundo de distinção parecia ter chegado antes deles. Mas ainda

havia lugares perto da cabeceira da grande mesa central, e para lá eles

abriram caminho. Mr. Farebrother sentava-se dolado oposto, próximo a

Mr. Hawley; todos os médicos estavam presentes; Mr. Thesiger presidia

os trabalhos, e Mr. Brooke de Tipton se achava à sua direita.

Lydgate notou uma troca peculiar de olhares, quando ele e BuIstrode


tomaram assento.

Após a abertura oficial da sessão pelo presidente, que assinalou as

vantagens de se comprar por subscrição um terreno bem grande para ser

usado como cemitério geral, Mr. BuIstrode, a cuja voz de timbre um

pouco alto, mas controlada e fluente, a cidade já estava acostumada em

reuniões desta espécie, levantou-se e pediu para expressar sua opinião.

MIDDLEMARCI-1

761

Lydgate pôde ver outra vez a troca peculiar de olhares, antes de Mr.

Hawley se levantar a seu turno e dizer em sua voz ressonante e firme:

"Senhor Presidente, peço que me seja permitido, antes de outros mani-

festarem sua opinião sobre o assunto em pauta, abordar uma questão de

interesse público que é vista como preliminar não só por mim, mas tam-

bém por muitos dos senhores presentes."

Quer pela concisão, quer pela segurança, o modo de falar de Mr.

Hawley, mesmo quando o decoro público reprimia sua 9inguagem

terrífica," era formidando. Mr. Thesiger acatou o pedido, Mr. BuIstrode

se sentou e Mr. Hawley prosseguiu.

"Insisto em dizer, Senhor Presidente, que não falo só em meu nome:

e sim com a concordância e por expressa solicitação de nada menos que

oito de meus concidadãos, que aqui estão em meio a nós. Somos unãoni-

mes na opinião de que Mr. Bulstrode deveria ser exortado - e eu agora

o exorto - a renunciar às funções públicas que exerce não só como

contribuinte, mas também como um cavalheiro entre seus pares. Há prá-

ticas e atos que, devido às circunstâncias, escapam ao controle da lei,

embora sejam piores que muitas coisas passíveis de punição legal. Os

homens honestos e os cavalheiros, quando avessos à companhia de pes-

soas que perpetram tais atos, têm de defender-se o melhor que podem,
e é isto o que eu e os amigos que posso intitular de meus clientes no

caso estamos decididos a fazer. Não afirmo que Mr. BuIstrode tenha sido

culpado de atos desonrosos, mas exorto-o ou bem a desmentir e refutar

publicamente as escandalosas declarações feitas contra ele por um ho-

mem já falecido e que morreu em sua casa - declarações de que por

muitos anos ele se deu a práticas nefandas e conquistou sua fortuna por

procedimentos desonestos - ou bem a se afastar das funções que só lhe

podiam ser atribuídas na condição de um cavalheiro entre cavalheiros."

Todos os presentes, sem exceção, olharam para Mr. Bulstrode, que,

desde a primeira menção a seu nome, vinha passando por uma crise

emocional cuja excessiva violência sua constituição delicada mal chega -

va a agüentar. Lydgate, ele também submetido a um choque, como que

provindo da terrível interpretação prática de algum vago presságio, não

obstante sentiu que seu próprio movimento de ódio ressentido foi con-

trabalançado por esse instinto de cura que leva o médico a primeiro

pensar em dar alívio ou salvação a quem sofre, quando olhou para as

contrações de dor estampadas na lívida face de Bulstrode.

Neste, a rápida visão de que sua vida havia afinal sido um fracasso,

de que ele era um homem desonrado e tinha agora de encolher-se ante a

mirada daqueles para com os quais de hábito assumia uma atitude de

762

GEORGE ELIOT

reprovação - de que Deus o renegava diante dos homens e o deixava

exposto ao desprezo triunfante dos que se alegravam em ter seu ódio

justificado - a sensação da completa inutilidade do equívoco de sua

consciência ao lidar com a vida de seu cúmplice, um equívoco que se

voltava agora contra ele com toda a força peçonhenta das garras de uma

mentira descoberta: - tudo isto se precipitava por ele como a agonia do


terror que, se não chega a matar, ainda assim deixa os ouvidos abertos

às ondas recorrentes da execração. A súbita sensação de exposição, após

a de segurança restabelecida, vinha - não à organização grosseira de

um criminoso - mas aos nervos susceptíveis de um homem cuja inten-

sidade de ser residia justamente na superioridade e predomínio que as

próprias condições de sua vida haviam moldado para ele.

Mas nesta intensidade de ser jazia a força de reação. Através de sua

enfermidade corpórea fremia o nervo tenaz da vontade ambiciosa de

autopreservação, que se alteava continuamente como uma flarna, dissi-

pando todos os temores doutrinários, e que, nisto mesmo que ele ali se

sentava como objeto de compaixão para os misericordiosos, já começava

a se avivar e arder sob sua palidez de cinza. Antes de as últimas palavras

escaparem da boca de Mr. Hawley, BuIstrode sentiu que devia responder,

e que sua resposta ia ser um revide. Mas não ousava levantar-se e dizer:

"Não sou culpado, toda essa história é falsa" - e, ainda que cedesse à

ousadia, ter-lhe-ia isto parecido, sob sua atual e pungente sensação de

desmascaramento, tão inútil quanto puxar, para cobrir sua nudez, um far-

rapo inconsistente que era capaz de romper-se ao mais sutil movimento.

Por alguns momentos houve silêncio total, com todos os que se acha-

vam na sala olhando para BuIstrode. Sentado na mais completa imobili-

dade, ele se apoiava com força contra o espaldar da cadeira; não podia

aventurar-se a erguer-se e, quando começou a falar, fê-lo com ambas as

mãos comprimidas nos dois lados do assento. Mas sua voz era perfeita-

mente audível, embora mais roufenha que de hábito, e as palavras pro-

nunciadas com clareza, embora ele fizesse uma pausa entre as senten-

ças, como se lhe faltasse o fôlego. Virando-se primeiro para Mr. Thesiger,

depois olhando para Mr. Hawley, disse:

"Protesto contra o fato de o senhor, como ministro cristão, aprovar

atitudes a meu respeito que são ditadas por ódio virulento. Acreditar

nos libelos lançados contra mim por um linguarudo causa alegria aos

que me são hostis. Contra mim suas consciências se tornam rigorosas.


Posto que a maledicência da qual me querem fazer vítima me acusa de

mau procedimento -" e aqui a voz de BuIstrode se alteou para adqui-

rir um tom mais mordente, até parecer um grito baixo - "quem será

MIDDLEMARCH

763

meu acusador? Não estes homens cuja vida é anticristã e até mesmo

escandalosa - não os homens que usam, eles próprios, vis instrumen-

tos para a consecução de seus fins - cuja profissão se resume a um

amontoado de trapaças - e que têm gasto os seus rendimentos em sa-

tisfações sensuais, enquanto os meus eu os consagro à realização dos

mais altos objetivos, quer em relação a esta vida, quer à vida futura."

· palavra trapaças sucedeu de imediato um barulho crescente, misto

de murmúrios e vaias, enquanto quatro pessoas logo se punham de pé

- Mr. Hawley, Mr. Toller, Mr. Chichely e Mr. Hackbutt; mas a explosão

de Mr. Hawley foi instantânea, deixando os outros para trás em silêncio.

"Se é a mim que se refere, meu senhor, desafio-o e a quem quer que

seja à inspeção de minha vida profissional. Quanto a ser ou não cristão,

eu é que repudio a cantilena hipócrita de seu cristianismo; e, quanto ao

modo como gasto o que ganho, não é princípio meu manter ladrões e

defraudar descendentes da herança que lhes era devida, a fim de susten-

tar a religião e erigir-me num Desmancha-prazeres santarrão. Não finjo

escrúpulos de consciência, meu senhor - nem nunca constatei que fos-

sem necessários padrões de escrúpulo para avaliar suas ações. Mais uma

vez exorto-o a dar explicações satisfatórias sobre os escândalos que en-

volvem sua pessoa, ou então a demitir-se dos cargos nos quais de qual-

quer modo já nos recusamos a vê-lo como um colega. Afirmo, meu se-

nhor, que nos recusamos a cooperar com um homem cujo caráter não se

livre das luzes infâmantes que lhe foram Iançadas, não apenas por rela-
tos, mas também por atos recentes."

"Termita-me, Mr. Hawley," disse o presidente; e Mr. Hawley, ainda

fumegante de cólera, inclinou-se meio impaciente e sentou-se enterran-

do as mãos nos bolsos.

"Mr. Buistrode, não creio que seja desejável prolongarmos esta dis-

cussão," disse Mr. Thesiger, voltando-se para o homem pálido e trêmu-

lo; "cabe-me por ora endossar a expressão de um sentimento unãonime

que nos vem de ser feita por Mr, Hawley, movido pelo pensamento de

que sua fé cristã lhe impõe a obrigação de livrar-se, se possível, de tais

desagradáveis difamações. De minha parte, estarei pronto a ouvi-lo e a

dar-lhe ampla oportunidade de defesa. Devo porém dizer que sua atual

atitude é infelizmente incompatível com os próprios princípios com os

quais o senhor tem procurado identificar-se, e por cuja honra é de meu

dever zelar. Aconselho-o neste momento, na condição de seu pastor e

de alguém que deseja vê-lo reabilitado em sua dignidade, a abandonar o

recinto e não mais dar motivo à interrupção dos trabalhos."

BuIstrode, após breve hesitação, apanhou seu chapéu no chão e se

764

GEORGE ELIOT

levantou lentamente, agarrando-se à cadeira com tão pouca firmeza

que Lydgate percebeu que não lhe restavam forças para caminhar sem

apoio. Que podia ele fazer? Não podia ver um homem, a seu lado, cair

por falta de ajuda. Levantou-se pois também e deu o braço a BuIstrode,

e deste modo conduziu-o para fora da sala; no entanto seu gesto, que

poderia ter sido de digno dever e pura compaixão, foi-lhe indizivelmente

amargo no momento. Parecia que ele estava apondo sua assinatura

àquela associação de si com BuIstrode, da qual via agora o sentido

pleno, tal qual ela devia ter-se apresentado a outras mentes. Sentiu-se
então convicto de que este homem que se arqueava trêmulo em seu

braço lhe havia dado as mil libras por suborno e de que o tratamento

de Raffies, de alguma forma, fora alterado por um motivo escuso. As

inferências encadeavam-se estreitamente: toda a cidade já sabia do

empréstimo, torriava-o por suborno e acreditava que enquanto subor-

no ele o aceitara.

Pobre Lydgate, que, com a consciência em conflito sob o peso terrí-

vel desta revelação, ainda assim foi moralmente forçado a levar Mr.

BuIstrode ao Banco, a mandar um homem buscar sua carruagem e a

esperar para acompanhá-lo até em casa.

Enquanto isso os trabalhos da reunião eram concluídos, dando mar-

gem por fim a acaloradas discussões entre vários grupos sobre o caso de

BuIstrode - e Lydgate.

Mr. Brooke, que até então só ouvira imperfeitas alusões a respeito, e

que andava muito intranqüilo por "ter ido um pouco longe demais" no

seu apoio a BuIstrode, pôde agora se informar amplamente e sentiu cer-

ta tristeza benévola ao conversar com Mr. Farebrother sobre a luz desai-

rosa na qual Lydgate tinha passado a ser visto. Mr. Farebrother preten-

dia voltar a pé para Lowick.

"Venha na carruagem comigo," disse Mr. Brooke. "Vou passar para

estar com Mrs. Casaubon, que regressou do Yorkshire ontem à noite.

Ela vai gostar de me ver, sabe?"

Os dois assim foram juntos, Mr. Brooke a discorrer com a compla-

cente esperança de que na realidade nada houvera de sujo no comporta-

mento de Lydgate - um rapaz que ele vira estar muito acima do nível

comum, quando lhe trouxera uma carta de seu tio, Sir Godwin. Mr.

Farebrother pouco falou: estava profundamente pesaroso: com sua agu-

da percepção da fraqueza humana, não conseguia convencer-se de que

Lydgate, sob a pressão de necessidades humilhantes, não houvesse cal-

do abaixo de si mesmo.

Quando a carruagem chegou ao portão de entrada do solar, Dorothea


MIDDLEMARCH

765

se achava fora de casa, num dos caminhos de cascalho, e veio recebê-

los.

.Pois é, querida," disse Mr. Brooke, "estamos vindo de uma reunião

- uma reunião sanitária, sabe?"

"mr. Lydgate estava lá?" perguntou Dorothea, que se mostrava cheia

de animação e saúde, com a cabeça a descoberto sob a luz clara de abril.

-Treciso vê-lo e fazer-lhe muitas perguntas sobre o nosso Hospital. Foi

um compromisso que assumi com Mr. Bulstrode."

"Oh, querida," disse Mr. Brooke, "nós andamos a ouvir más notícias

- más notícias, sabe?"

Como Mr. Farebrother quisesse ir para o presbitério, eles caminha-

ram pelo jardim em direção ao portão que dava para o adro da igreja; e

Dorothea ouviu toda a triste história.

Ouviu-a com profundo interesse, pedindo para que os fatos e im-

pressões sobre Lydgate lhe fossem repetidos. Após breve silêncio, fa-

zendo alta no portão do adro e dirigindo-se a Mr. Farebrother, disse com

a mais viva energia:

"O senhor não crê que Mr. Lydgate seja culpado de alguma baixeza,

pois não? Eu não o creio. Vamos descobrir a verdade e inocentá-lo!"

LivRo VIII

Sol Posto e Sol Nascent

CAPÍTULo LXXII
Full souls are double mirrors, making still

An endess vista of fair things before,

Repeating things behind.

€A alma completa é um espelho duplo, que faz,

Do que foi belo, vista infinda, e ainda

Repete o que ficou para trás.")

A IMPETUOSA GENEROSIDADE de Dorothea, que de imediato se teria lan-

çado para defender Lydgate da suspeita de haver aceito dinheiro por

suborno, sofreu um refreamento melancólico quando ela passou a consi-

derar todas as circunstâncias do caso à luz da experiência de Mr.

Farebrother.

" uma questão delicada," disse ele. "Como podemos começar a

investigar? Ou bem tornamos a coisa pública, acionando a justiça para

entrar em ação, ou bem a mantemos em segredo, interrogando o pró-

prio Lydgate. Para o primeiro procedimento não há bases sólidas, por-

que senão Hawley o teria adotado; e, quanto a abordar o assunto com

Lydgate, confesso que eu não me atreveria, pois é provável que ele o

tomasse por um insulto mortal. Mais de uma vez experimentei a difi-

culdade de lhe falar sobre assuntos pessoais. E - seria preciso já saber

previamente a verdade sobre sua conduta, para se ter plena certeza de

um bom resultado."

"Estou convencida de que sua conduta não foi culposa: as pessoas,

creio eu, quase sempre são melhores do que os vizinhos pensam," disse

Dorothea. Algumas de suas experiências mais intensas nos últimos dois

anos haviam-na levado a se opor com firmeza a qualquer avaliação des-

fdvorável dos outros; e pela primeira vez ela se sentiu algo descontente

770
GEORGE ELIOT

com Mr. Farebrother. Este cauteloso medir das conseqüências, ao invés

de uma crença ardente em empenhos de compaixão e justiça, que triun-

fassem pela força emocional, não lhe agradava nada. Dois dias depois,

quando ele jantava no solar com o tio dela e os Chettarris, já estando a

sobremesa servida, os criados fora da sala e Mr. Brooke a balançar a

cabeça num cochilo, ela voltou ao assunto com renovada vivacidade.

"Mr. Lydgate compreenderia, se a primeira vontade de seus amigos,

ouvindo uma calúnia a seu respeito, fosse querer defendê-lo. Para que

vivemos, se não for para tornarmos a vida, uns para os outros, menos

difícil? Não posso ficar indiferente aos problemas de um homem que me

aconselhou em meu problema e cuidou de mim quando me adoentei."

As maneiras e o tom de Dorothea não eram menos enérgicos do que

há quase três anos antes, quando ela se punha à cabeceira da mesa de

seu tio, e a experiência que desde então acumulara dava-lhe mais direito

a expressar uma opinião decidida. Sirjames Chettam já não era porém o

pretendente aquiescente e tímido de outrora: era seu zeloso cunhado,

que a admirava com devoção, mas sem deixar de preocupar-se com o

risco de ela cair nalguma nova ilusão, quase tão negativa quanto despo-

sar Casaubon. Ele agora sorria muito menos; quando dizia "Exatamen-

te," em geral era para introduzir uma opinião discordante, não como

naqueles seus dias de homem solteiro e submisso; e Dorothea constata-

va, para sua própria surpresa, que tinha de resolver-se a não temê-lo -

sobretudo porque ele era realmente o seu melhor amigo, mesmo que no

momento discordasse dela.

"Mas, Dorothea," disse ele, em tom de reprovação, "você não pode

ter a pretensão de dirigir assim a vida de um homem. O Lydgate deve

saber - ou pelo menos há de em breve vir a saber em que situação se

encontra. Cabe-lhe agir por si mesmo e, se ele puder reabilitar-se, certa-

mente o fará."
"Penso que seus amigos devem esperar até que encontrem uma opor-

tunidade," acrescentou Mr. Farebrother. " possível - muitas vezes já

senti tanta fraqueza em mim mesmo que posso conceber até um homem

de índole honesta, como eu sempre acreditei que o Lydgate seja, sucum-

bindo a tentações como a aceitar um dinheiro que de modo mais ou

menos indireto lhe oferecem por suborno para garantir seu silêncio so-

bre fatos escandalosos acontecidos de há muito. Digo que posso conce-

ber isto, se ele estivesse pressionado por circunstâncias difíceis - ator-

mentado como eu sei muito bem que o Lydgate estava. Não hei de acre-

ditar em nada de pior sobre ele se não houver prova convincente. Mas

há a terrível Nêmesis a seguir certos erros, que é sempre possível para

MIDDLEMARCH

771

quem gosta de que ela os interprete num crime: não há prova em favor

do homem fora de sua própria consciência e asserção."

"Oh, que crueldade!" disse Dorothea, batendo as mãos. "E o senhor

não gostaria de ser a própria pessoa a acreditar na inocência deste ho-

mem, se o resto do mundo o caluniasse? Além do mais, previamente há

o caráter do homem a falar por ele."

"Mas, minha querida Mrs. Casaubon," disse Mr. Farebrother, sorrin-

do gentilmente ante o seu ardor, "o caráter não é talhado em mármore

- não é uma coisa sólida e inalterável.  uma coisa que vive e muda, e

que pode pegar doenças, como os nossos corpos."

"Então pode ser socorrido e salvo," disse Dorothea. "Eu não teria

medo de pedir a Mr. Lydgate que me contasse a verdade, para que pu-

desse ajudá-lo. Medo por quê? Como eu não vou ficar com as terras,

James, posso fazer como propôs Mr. BuIstrode, e assumir o lugar dele na

provisão do hospital; tenho aliás de consultar Mr. Lydgate, para saber


exatamente quais as perspectivas de acerto com a manutenção dos pla-

nos atuais. E a melhor oportunidade do mundo para pedir-lhe que con-

fie em mim; e ele talvez me diga coisas capazes de aclarar todas as cir-

cunstâncias. Com todos nós a seu lado, iríamos livrá-lo então de seu

problema. As pessoas glorificam todos os tipos de bravura, exceto a que

poderiam mostrar em benefício de seus vizinhos mais próximos." Havia

nos olhos de Dorothea um brilho úmido, e o tom mudado de sua voz

despertou o tio, que começou a ouvir.

"E verdade que uma mulher pode aventurar-se a esforços de simpa-

tia que dificilmente dariam certo se empreendidos por homens," disse

Mr. Farebrother, quase convertido pelo ardor de Dorothea.

"Claro, a mulher é obrigada a ser cautelosa e ouvir os que conhecem

o mundo mais que ela," disse Sir James, com seu típico franzir de cenho.

"Seja lá o que for fazer por fim, Dorothea, no momento você devia ficar

de pé atrás, e não se oferecer para envolver-se com essa questão do

BuIstrode. Não sabemos ainda o que pode acontecer. Não concorda co-

migo?" concluiu ele, olhando para Mr. Farebrother.

"Penso que o melhor seria esperar," disse este último.

"Sim, sim, querida," disse Mr. Brooke, não sabendo direito em que

ponto da discussão ele entrava, mas vindo com uma contribuição que de

modo geral era apropriada. " fácil, sabe, a gente ir longe demais. Você

não deve acreditar sem refletir nas suas idéias. Quanto a se precipitar

para dar dinheiro a projetos - não pode ser, sabe? O Garth me fez

gastar incomumente com consertos, drenagem, esse tipo de coisa: há

sempre uma coisa ou outra a esvaziar-me o bolso. Tenho de reequilibrar-

772

GEORGE ELIOT

me. E você, Chettam, você está gastando uma fortuna com essa cerca de
carvalho em tomo das suas terras."

Dorothea, submetendo-se a contragosto ao desencorajamento, foi

com Celia para a biblioteca, que por hábito era o seu salão.

,Agora, Dodo, ouça o que diz o James," disse Celia, "Porque senão

você cai numa enrascada. Sempre o fez, e sempre o fará, quando resolve

agir como lhe agrada. Acho que agora é afinal uma bênção que tenha o

James para pensar por você. Ele deixa você ter os seus planos, somente

lhe impede de enredar-se neles. E esta é a vantagem de ter um cunhado ao

invés de um marido. Um marido não deixaria você ter os seus planos."

"Como se eu quisesse um marido!" disse Dorothea. "Só não quero é

ter meus sentimentos controlados a todo instante." Mrs. Casaubon, muito

indisciplinada ainda, explodiu em lágrimas de raiva.

"Ralmente, Dodo," disse Celia, num tom mais gutural que de hábi

to, "você é contraditória: primeiro uma coisa e depois outra. Você costu

mava submeter-se a Mr. Casaubon da maneira mais vergonhosa: acho

que se ele lhe pedisse até deixaria de vir-me ver para sempre."

"Claro que me submetia a ele, porque era meu dever; era o que eu

sentia por ele," disse Dorothea, olhando através do prisma de suas lágri

mas.

"Então por que não pode pensar que é seu dever submeter-se um

pouco ao que deseja o James?" disse Celia, com uma sensação de vigor

em seu argumento. "Porque ele só deseja o que é para o seu bem. E é

claro que os homens sabem mais sobre tudo, exceto o que as mulheres

sabem melhor."

Dorothea sorriu e se esqueceu das lágrimas.

"Bem, quero dizer sobre bebês e essas coisas," explicou Celia. "Eu

nunca cederia ao James sabendo que ele estava errado, como você cos-

tumava fazer com Mr. Casaubon."

CAPÍTULO LXXIII
Pity the laden one; this wandering woe

May visit you and me.

("Piedade pelo sofredor; a desgraça sem fim

Pode visitar você e a mim.")

LYDGATE, DEPois de acalmar a ansiedade de Mrs. BuIstrode dizendo-lhe

que seu marido havia tido uma fraqueza na reunião, mas que ele espera-

va vê-lo logo melhor e voltaria no dia seguinte, a não ser que ela o

mandasse chamar antes, foi direto para casa, montou em seu cavalo e

andou para fora da cidade, para não ficar ao alcance, quase cinco quilô-

metros.

Sentia-se tornando-se violento e desarrazoado como se se contor-

cesse sob a dor de picadas: e estava a ponto de maldizer o dia em que

tinha vindo para Middemarch. Tudo o que lhe havia acontecido ali pare-

cia um mero preparo para esta fatalidade odiosa, que se abatera como

uma praga sobre sua honesta ambição, e que devia levar mesmo as pes-

soas que só tinham padrões vulgares a considerar sua reputação como

irremediavelmente abalada. Lydgate pensava em si mesmo como o so-

fredor e, nos outros, como os agentes de seus infortúnios. Tinha querido

para tudo um desfecho bem diferente; outros, intrometendo-se em sua

vida, atrapalharam seus planos. Seu casamento parecia-lhe uma calami-

dade completa; e ele temia estar com Rosamond antes de extravasar-se

nessa raiva solitária, para que só de vê-la não se exasperasse e assumisse

conduta indesculpável. Há episódios na vida da maioria dos homens nos

quais suas melhores qualidades podem somente projetar uma sombra

intimidante sobre os objetos que lhes ocupam a visão interior: a ternura

de Lydgate só se fazia então presente em seu temor de a ofender, e não

774
GEORGE ELIOT

como emoção que o predispunha à ternura. Pois ele estava muito infeliz.

Só os que conhecem a supremacia da vida intelectual - a vida que tem

um germe de pensamento nobre e objetivo em seu âmago - podem

entender a dor de alguém que cai desta serena atividade na luta absor-

vente, que esgota a alma, com as preocupações mundanas.

Como ele iria viver sem defender-se entre pessoas que o suspeita-

vam de baixeza? Como poderia sair de Middemarch em silêncio, como

se recuasse diante de uma condenação justa? Entretanto como se colo-

car para se defender?

Pois a cena na reunião, que ele acabara de presenciar, fora suficiente,

embora sem dar detalhes, para tornar-lhe totalmente clara sua própria

situação. BuIstrode tinha tido medo de revelações escandalosas por par-

te de Raffies. Lydgate podia figurar-se agora todas as probabilidades do

caso. "E tinha medo de que eu pudesse traí-lo, se soubesse de alguma

coisa: tudo o que quis foi manter-me preso a ele por um grande favor:

daí ter passado bruscamente da dureza à liberalidade. E pode ter altera-

do o tratamento do paciente - pode ter desobedecido minhas ordens.

Temo que o tenha feito. Mas, seja ou não isto, todo mundo acredita que

de algum modo ele envenenou o homem, e que eu fechei os olhos para

o crime, se não é que ajudei a praticá-lo. Entretanto - entretanto ele

não pode ser culpado pelo último delito; e é bem possível que sua mu-

dança em relação a mim tenha sido compaixão genuína - por efeito de

reflexões posteriores, como ele alegou. O que consideramos "bem possí-

vel" é às vezes verdade, e o que achamos mais fácil de acreditar é total-

mente falso. Em seus últimos contactos com esse homem, BuIstrode

pode ter mantido as mãos limpas, apesar do que suspeito em contrário."

Havia uma entorpecente crueldade em sua situação. Mesmo se ele

renunciasse a todas as outras considerações que não a de se justificar -

se encarasse o generalizado dar de ombros, os olhares frios, as tentati-


vas de evitá-lo como uma acusação, e fizesse um relato público de todos

os fatos por ele conhecidos, quem se convenceria? Seria fazer papel de

louco oferecer seu testemunho em sua própria defesa e dizer: "Não acei-

tei o dinheiro como suborno." As circunstâncias sempre seriam mais

fortes do que esta afirmação. Ademais, para dizer tudo sobre si mesmo

em público deveria incluir declarações sobre BuIstrode que iriam au-

mentar as suspeitas dos outros contra ele. Deveria dizer que não sabia

da existência de Raffies quando pela primeira vez mencionou a BuIstrode

sua premente necessidade de dinheiro, e que inocentemente o aceitara

como resultado desta comunicação, não sabendo que um novo motivo

para o empréstimo poderia ter surgido com o chamado para ele ir cuidar

MIDDLEMARCH

775

do homem. E a suspeita sobre os motivos de BuIstrode, afinal de contas,

poderia ser injusta.

Mas depois vinha a questão - teria ele agido do mesmo modo, se

não aceitasse o dinheiro? Certamente, se Raffies estivesse vivo e em con-

dições de ainda ser tratado quando ele chegou, e ele então imaginasse

qualquer desobediência às suas ordens por parte de BuIstrode, teria feito

uma inquirição rigorosa e, comprovada sua conjectura, abandonado o caso,

a despeito do favor recentemente obtido. Mas se ele não tivesse recebido

dinheiro - se BuIstrode nunca tivesse revogado sua fria recomendação de

insolvência - teria ele, Lydgate, se abstido de toda inquirição, mesmo

encontrando o homem morto? - o temor de um insulto a BuIstrode - a

dubiedade de todo tratamento médico e o argumento de que suas pró-

prias prescrições passariam por erradas junto à maioria dos seus colegas

- teriam tido a mesma força ou significação para ele?

Este era o incômodo desvão da consciência de Lydgate enquanto ele


repassava os fatos e resistia a todo reproche. Tendo guardado sua inde-

pendência, o tratamento do doente e a norma de fazer ou mandar fazer

o que ele julgava melhor para a vida que lhe confiavam teriam sido o

ponto no qual insistiria com mais rigor. Tal como foi, apoiara-se ele na

consideração de que a desobediêncía às suas ordens, surgidas quer como

fosse, não podiam ser tidas por um crime, de que para a opinião domi-

nante a obediência às suas ordens também seria provavelmente fatal e

de que o caso era apenas uma questão de etiqueta. E isto quando, repe-

tidas vezes, em seus tempos de independência, ele tinha denunciado a

perversão da dúvida patológica em dúvida moral e dito - "o mais puro

experimento na cura ainda pode ser consciencioso: minha obrigação é

cuidar da vida, fazendo por ela o que de melhor posso pensar. A ciência

é muito mais escrupulosa que o dogma. O dogma dá um direito ao erro,

mas o próprio sopro da ciência é um combate ao erro, e que deve manter

a consciência viva." Aí de nós! a consciência científica caíra na aviltante

companhia da obrigação por dinheiro e das considerações egoístas.

"Há um só, dentre todos os médicos de Middemarch, que questio-

nasse tanto a si mesmo como o faço?" disse-se o pobre Lydgate, num

novo acesso de revolta contra a opressão de seu fado. "Todos entretanto

hão de sentir-se autorizados a manter-se bem à distância de mim, como

se eu fosse um leproso! Minha clínica e minha reputação estão profun-

damente abaladas - sei disto. Mesmo que eu pudesse ser inocentado

por uma prova válida, pouca diferença faria para a bendita sociedade

local. Tendo sido rebaixado como corrupto, todos continuariam, mesmo

assim, a dimínuír-me."

776

GEORGE ELIOT

já eram abundantes os sinais, que até então o intrigavam, de que


justamente quando ele pagava suas dívidas, satisfeito por estar

reerguendose, as pessoas o evitavam ou olhavam de um modo estra-

nho, e em dois casos veio-lhe ao conhecimento que pacientes seus ha-

viam procurado outro médico. As razões agora se tornavam bem claras.

A rejeição já havia começado a generalizar-se.

Não espanta que na natureza energética de Lydgate o senso de uma

interpretação errônea e desesperançada facilmente se transformasse em

obstinada resistência. As rugas que de quando em quando franziam sua

testa quadrada não eram obra insignificante do acaso. Logo ao voltar para

a cidade, após a cavalgada nas primeiras horas de intenso sofrimento, ele

já estava resolvendo permanecer em Middemarch, a despeito de todo o

mal que lhe pudesse ser feito. Não bateria em retirada à calúnia, como se

a ela se submetesse. Iria enfrentá-la de peito aberto, e nenhum de seus

atos deveria demonstrar temor. Era intrínseca à generosidade bem como à

força desafiadora de sua natureza a decisão de não se eximir a demonstrar

plenamente seu senso de obrigação para com Bulstrode. Era verdade que

a associação com este homem lhe tinha sido fatal - verdade que, se ainda

tivesse em suas mãos as mil libras, sem pagar nenhuma dívida ele devol-

veria o dinheiro a Bulstrode, dando-se antes à mendicância que ao socor-

ro maculado pela suspeita de suborno (pois ele, lembre-se, era um dos

mais orgulhosos dentre os filhos do homem) - mas nem por isto ele iria

desviar-se daquele pobre mortal tão esmagado, a cuja ajuda havia recorri-

do, e fazer um deplorável esforço para se salvar uivando contra um outro.

"Farei o que julgo certo, sem dar explicações a ninguém. Para me bani-

rem, vão tentar deixar-me à míngua, mas -" persistia na decisão obstina-

da, mas, aproximando-se já de sua casa, a idéia de Rosamond se instalava

de novo no lugar principal, do qual havia sido expulsa pelos agônicos

combates da honra e do orgulho feridos.

Como Rosamond encararia isto tudo? Aqui estava um outro peso da

corrente a arrastar, e o pobre Lydgate não se achava em condições de

agüentar o domínio mudo da esposa. Não tinha a menor vontade de lhe


falar do problema que em breve deveria ser comum aos dois. Preferia

esperar pela revelação incidental que os fatos, também em breve, deve-

riam trazer.

CAPÍTULO LXXIV

"Mercifully grant that we may grow aged together."

- BOOK OF TOBIT. Marriage Prayer.

("Misericordiosamente permita que possamos envelhecer

juntos.")

- LIVRO DE TOBIAS: Prece de Casamento-"

EM MIDDLEMARCH umA esposa não podia ficar muito tempo sem saber

que a cidade tinha de seu marido uma opinião negativa. Amiga íntima

alguma levaria a amizade ao extremo de fazer à esposa um relato claro

do fato suposto ou realmente sabido sobre o marido; mas quando uma

mulher, com seus pensamentos bem ociosos, repentinamente os punha

a serviço de algo muito prejudicial aos vizinhos, vários impulsos morais,

que tendiam a estimular a comunicação, eram postos em jogo. A candu-

ra era um. Ser cândida, na fraseologia de Micícilernarch, era usar a pri-

meira oportunidade para deixar suas amigas saberem que você não ti-

nha em grande estima nem a capacidade, nem a conduta, nem a posição

delas; e uma candura robusta nunca esperava que sua opinião fosse so-

licitada. Depois, havia o amor à verdade - uma frase ampla, mas que

significava neste contexto uma vívida objeção a ver uma esposa mais

feliz do que o justificado pelo caráter do marido, ou manifestar muita

satisfação com seu destino: a pobrezinha receberia alguma insinuação

de que, se ela soubesse a verdade, seria menos complacente com seus


chapéus ou com os pratos leves para um jantar. Mais forte que tudo,

havia o respeito pelo aperfeiçoamento moral de uma amiga, às vezes

778

GEORGE ELIOT

chamado de sua alma, que provavelmente se beneficiaria com observa-

ções tendentes à melancolia, proferidas com o acompanhamento de um

olhar pensativo para os móveis e um modo que pretendia dizer que

quem falava não contaria tudo o que tinha em mente, em sinal de res-

peito pelos sentimentos da ouvinte. Em suma, poder-se-ia dizer que

uma ardente caridade estava em ação, impelindo as almas virtuosas a

fazer uma vizinha infeliz para o bem dela.

Rosamond e sua tia BuIstrode eram talvez as esposas de MiddIe-

march cujos infortúnios matrimoniais mais tendiam a suscitar, de dife-

rentes modos, esta atividade moral. Mrs. BuIstrode não inspirava anti-

patia e nunca ofendera conscientemente um ser humano. Os homens

sempre a tiveram por mulher bonita e agradável, vendo um sinal da

hipocrisia de BuIstrode no fato de ele ter escolhido uma Vincy de san-

gue bem vermelho, e não uma pessoa pálida e melancólica, mais de

acordo com sua baixa estima dos prazeres terrenos. Quando o escân-

dalo sobre seu marido veio a furo, ocorreu-lhes comentar sobre ela:

"Ah, pobre mulher! Ela é tão pura como a luz do dia - nunca suspei-

tou nada de errado nele, podem crer." Em suas conversas, mulheres

mais íntimas falaram muito da "pobre Harriet," imaginaram seus sen-

timentos quando viesse a saber de tudo e conjecturaram sobre o quan-

to ela já devia saber. Não havia nenhuma inclinação desdenhosa a seu

respeito; antes, havia uma atarefada benevolência, ansiosa por definir

o que seria bom ela sentir e fazer nas circunstâncias, que naturalmente
mantinha a imaginação ocupada com seu caráter e história, desde o

tempo em que ela era Harriet Vincy até hoje. · análise de Mrs. BuIstrode

e sua situação era inevitável associar Rosamond, cujas perspectivas se

mostravam igualmente sombrias. Rosamond despertava críticas mais

severas e menos compaixão, embora ela também, pertencente à boa e

antiga família Vincy sempre muito conhecida em Middiemarch, fosse

vista como vítima de um casamento com um intruso. Os Vincys tinham

suas fraquezas, que se mantinham porém na superfície: nunca houve

uma coisa negativa para ser "descoberta" a seu respeito. Mrs. Buistrode

foi inocentada de qualquer semelhança com seu marido. Os defeitos de

Harriet eram os dela própria.

"Ela sempre gostou de se mostrar," disse Mrs. Hackbutt, fazendo

chá para um pequeno grupo de amigas, "mas deu um jeito de pôr sua

religião em relevo, para combinar com o marido; e sempre quis estar

acima do nível de Middemarch, tornando público que recebe clérigos e

sabe-lá-Deus-quem de Riverston e esses lugares."

"Mas não se pode censurá-la por isto," disse Mrs. Sprague; "porque

MIDDLEMARCH

779

ela tinha de ter alguém à sua mesa, já que poucas pessoas, do que há de

melhor cá na cidade, eram por freqüentar o Bulstrode."

"Mr. Thesiger sempre o apoiou," disse Mrs. Hackbutt. "O que agora

deve estar lamentando."

"Mas no fundo nunca gostou muito dele - todo mundo sabe disto,

disse Mrs. Tom Toller. "Mr. Thesiger nunca vai a extremos. Atém-se à

verdade no que é evangélico. Só os clérigos como Mr. Tyke, que são

pelos livros de orações " do Dissenso e por esta espécie inferior de reli-

gião, chegaram a achar que o BuIstrode correspondia a seu gosto."


"Consta que Mr. Tyke está sofrendo muito por ele," disse Mrs.

Hackbutt. "E pode ser que esteja mesmo, pois dizem que os Bulstrodes

têm praticamente sustentado a família Tyke."

"E é claro que isto põe em descrédito suas doutrinas," disse Mrs.

Sprague, que era mais velha e antiquada em suas opiniões., "Por um bom

tempo, ninguém vai querer gabar-se em Middernarch de ser metodista."

"Não creio que se deva vincular as mas ações das pessoas à sua reli-

gião," disse Mrs. Plyrndale que, com sua face de falcão, até então só ouvia.

"Oh, minha querida, nós estamos esquecendo," disse Mrs. Sprague.

*Não devíamos falar disto em sua presença."

"Estou certa de não ter razões para ser parcial," disse Mrs. Plymdale,

enrubescendo. " verdade que Mr. Plymdale sempre esteve em bons

termos com Mr. Bulstrode, e que Harriet Vincy já era minha amiga muito

antes de se casar com ele. Mas eu sempre mantive minhas próprias opi-

niões e disse a ela onde estava errada, coitada. Ainda assim, no tocante

a religião, penso que Mr. BuIstrode poderia ter feito o que fez, e pior,

entretanto ser homem sem religião. Não digo que não tenha havido até

um certo exagero quanto a isto - eu mesma prefiro a moderação. Mas

verdade é verdade. Nem todos os homens julgados nos tribunais, supo-

nho eu, são excessivamente religiosos."

"Bem," disse Mrs. Hackbutt, numa reviravolta ágil, "tudo o que eu

tenho a dizer é que penso que ela devia separar-se dele."

"Não concordo," disse Mrs. Sprague. "Como você bem sabe, ela o

aceitou para o melhor ou o pior."

"Mas o "pior" não pode ser descobrir que seu marido merecia estar

em Newgate,"1 disse Mrs. Hackbutt. "Imaginem só viver com um ho-

mem desses! eu teria medo de ser envenenada."

"Sim, penso que é encorajar o crime, haver boas esposas que cuidam

de tais homens e fazem tudo por eles," disse Mrs. Tom Toller.

Famosa prisão em Londres.


780

GEORGE ELIOT

"E boa esposa a pobre Harriet tem sido," disse Mrs. Plymdale.

"Acha o marido o melhor dos homens.  verdade que ele nunca ne-

gou nada a ela."

"Bem, veremos o que ela há de fazer," disse Mrs. Hackbutt. "Acho

que por enquanto ela não sabe de nada, pobre criatura. Espero muito

que eu não venha a encontrá -la, pois morreria de medo de deixar esca-

par alguma coisa sobre o seu marido. Será que ela já ouviu alguma insi-

nuação?"

"Custa-me acreditar," disse Mrs. Toller. "Dizem que ele está doente

e nunca mais saiu de casa desde a reunião de quinta-feira; mas ela on-

tem esteve com suas filhas na igreja, e todas de chapéus novos, de palha

da Itália. O dela aliás tinha uma pena. Nunca eu pude notar que sua

religião fizesse alguma diferença para sua roupa."

"Ela sempre usa umas coisas muito bonitas," disse Mrs. Plymdale,

um pouco ofendida. "E esta pena, sei que a tingiu de azuHavanda, só

para combinar. Devo dizer que a Harriet sempre quer acertar."

"Quanto a saber do que aconteceu, não há como esconder por muito

tempo dela. Os Vincys já sabem, pois Mr. Vincy estava na reunião. Vai

ser um golpe para ele. Pois além de sua filha há também sua irmã."

iT, é mesmo," disse Mrs. Sprague. "Ninguém supõe que Mr. Lydgate

possa continuar de cabeça erguida em Middemarch, anda tudo muito

obscuro sobre as mil libras que ele aceitou e a morte do tal homem. 

realmente de fazer a gente tremer."

"Um dia o orgulho desmorona," disse Mrs. Hackbutt.

"Não tenho tanta pena da Rosamond Vincy quanto de sua tia," dis-

se Mrs. Plymdale. "Ela precisava de uma lição."


"Suponho que os Bulstrodes partam para viver nalgum lugar no es-

trangeirof disse Mrs. Sprague. "E o que geralmente acontece quando

numa família há uma desgraça."

"E para a Harriet será um golpe mortal," disse Mrs. Plymdale.

"Ela há de ficar arrasada como poucas mulheres já ficaram.  imensa

a pena que eu sinto. Com todos os seus defeitos, poucas são melho-

res que ela. Desde menina tinha as maneiras mais corretas, sempre

foi boa de coração e franca como o dia. Suas gavetas, quando quer

que se olhasse - sempre as mesmas. E foi assim que ela educou a

Kate e a Ellen. Vocês podem imaginar como seria duro para ela viver

entre estrangeiros."

"Diz o doutor que era o que ele recomendaria aos Lydgates fazer," disse

Mrs. Sprague. "Diz que o Lydgate deveria ter permanecido na França."

"Ouso crer que seria muito bom para ela," disse Mrs. Plymdale; "Já

MIDDLEMARCH 781

que é bem do tipo frívolo. Mas isto lhe vem da mãe; nunca de sua tia

BuIstrode, que sempre lhe deu bons conselhos e, pelo que eu sei, prefe-

Mid vê-la casada com outro."

Mrs. Plymdale achava-se numa situação que lhe causava certa com -

plicação de sentimentos. Tinha havido não só sua intimidade com

Mrs. Buistrode, mas também uma proveitosa relação comercial da

grande tinturaria Plymdale com Mr. BuIstrode, que por um lado a

inclinaria a desejar que a melhor opinião sobre o caráter dele fosse a

verdadeira, mas, por outro, tornava-a mais temerosa de parecer que

lhe encobria a culpabilidade. E também a recente aliança de sua famí-

lia com os Tollers a pusera em contacto com o melhor círculo, que a

gratificava de todas as maneiras, exceto na inclinação por aquelas

opiniões tão sérias que ela acreditava serem as melhores noutro sen-

tido. A penetrante consciência da mulherzinha perturbava-se um pouco


no ajustamento a estes "melhores" opostos e a seus pesares e satisfa-

ções sob os últimos acontecimentos, que provavelmente iam humi-

lhar quem precisava de humilhação, mas também cair com todo o

peso sobre sua velha amiga, cujos defeitos ela preferiria ver contra

um fundo de prosperidade.

Enquanto isso, o abalo da pobre Mrs. BuIstrode ante a vindoura onda

de calamidade não fora além de uma ativação daquele secreto mal-estar

que sempre se manifestava nela desde a última visita de Raffies ao Arvo-

redo. Para o fato de o odioso homem ter chegado doente a Stone Court, e

a decisão de seu marido de lá ficar a velar por ele, aceitou a explicação de

que Raffies era um ex-empregado, ajudado noutros tempos, e de que isto

criava um vínculo de benevolência com ele em sua degradada miséria; e

desde então ela inocentemente se alegrara com as declarações mais espe-

rançosas do marido sobre a própria saúde e sua capacidade de continuar

dando atenção aos negócios. A calma só foi perturbada quando Lydgate o

trouxe doente da reunião e, a despeito de consoladoras garantias durante

os dias seguintes, ela chorou às escondidas, convicta de que o marido não

estava sofrendo apenas de uma doença fisica, mas também de algo que

lhe afligia o espírito. Não permitia que ela lesse para ele, nem que lhe

fizesse companhia por muito tempo, alegando uma susceptibilidade ner-

vosa a barulhos e movimentos; entretanto ela suspeitava de que ele, quan-

do se trancava no quarto, era para se ocupar com papéis. Alguma coisa,

estava certa, tinha acontecido. Talvez fosse uma grande perda em dinheí-

ro, e ela era mantida na ignorância. Não se atrevendo a perguntar ao ma-

rido, disse para Lydgate, no quinto dia depois da reunião, quando ela já

não saía de casa a não ser para ir à igreja:

782

GEORGE ELIOT
"Por favor, Mr. Lydgate, seja franco comigo: gosto de saber a verda-

de. Aconteceu alguma coisa com Mr. Bulstrode?"

"Um ligeiro abalo nervoso," disse Lydgate, sendo evasivo por sentir

que não lhe competia fazer a revelação dolorosa.

"Mas causado por quê?" disse Mrs. BuIstrode, nele pondo, da ma-

neira mais direta, seus olhos grandes e negros.

"O ar dos recintos públicos é sempre um pouco empestado," disse

Lydgate. "Homens fortes agüentam, mas outros sucumbem, proporcio-

nalmente à fragilidade dos seus organismos. Em geral é impossível de-

terminar o momento preciso de um ataque - ou melhor, dizer por que

a força da pessoa, num momento específico, cede."

Mrs. BuIstrode não ficou satisfeita com a resposta. Restava-lhe a

crença de que seu marido fora atingido por alguma calamidade, da qual

a mantinham na ignorância; e era de sua natureza opor-se com vigor a

este ocultamento. Pediu pois às suas filhas que olhassem pelo pai e to-

cou-se à cidade em carruagem para fazer algumas visitas, imaginando

que iria ver ou ouvir indícios, se por acaso se soubesse de algo errado

com os negócios de Mr. BuIstrode.

Procurou por Mrs. Thesiger, que não estava em casa, e dirigiu-se em

seguida à de Mrs. Hackbutt, no outro lado do adro da igreja. Mrs.

Hackbutt a viu chegando, de uma janela no andar de cima, e, lembran-

do-se de sua apreensão ante a hipótese de se encontrar com Mrs.

BuIstrode, sentiu que não seria de todo incoerente, se mandasse dizer

que não estava; mas contra isto irrompeu por ela um brusco e forte dese-

jo pela animação de uma conversa, na qual estava decidida a não fazer

nem a mais ligeira alusão aos fatos de que sabia.

Donde Mrs. BuIstrode ser levada à sala de visitas, e Mrs. Hackbutt ir

recebê-la, apertando mais os lábios e esfregando mais as mãos do que

em geral fazia, pois eram precauções adotadas contra a liberdade ao

falar. Estava resolvida a não perguntar como ia Mr. BuIstrode.

"Há quase uma semana que, tirante a igreja, eu não vou a canto
algum," disse Mrs. BuIstrode, depois de algumas observações introdu-

tórias. "Como Mr. BuIstrode voltou muito doente da reunião de quinta-

feira, não me atrevia a sair de casa."

Mrs. Hackbutt coçou as costas de uma das mãos com a palma da

outra, que repousava em seu peito, e deixou que os olhos vagassem

pelos padrões do tapete.

"Mr. Hackbutt esteve na reunião?" perseverou Mrs. BuIstrode.

"Sim, esteve simf disse Mrs. Hackbutt, com a mesma atitude. "O

terreno será comprado por subscrição, creio eu."

MIMUMARCH

783

"Esperemos que não haja mais casos de cólera para enterrar lá,"

disse Mrs. BuIstrode. " uma aflição horrorosa. Eu porém sempre achei

Middemarch um lugar muito saudável. Deve ser por estar acostumada

desde criança; mas nunca vi cidade em que me agradasse tanto morar,

especialmente no nosso canto."

"Será decerto uma alegria para mim que more sempre em Middemarch,

Mrs. BuIstrode," disse Mrs. Hackbutt, com um leve suspiro. "Mas deve-

mos aprender a nos resignar, seja aonde for que o destino nos conduza.

Embora eu esteja certa de que sempre haverá pessoas nesta cidade que

hão de lhe querer bem."

Mrs. Hackbutt teve vontade de dizer: "Se quiser meu conselho,

separe-se de seu marido," mas parecia-lhe claro que a pobre mulher

nada sabia dos trovões prestes a desabar-lhe sobre a cabeça, e tudo o

que ela podia fazer era prepará-la um pouco. Mrs. BuIstrode brusca-

mente sentiu-se fria e trêmula: por trás das palavras de Mrs. Hackbutt,

evidentemente havia alguma coisa incomum; mas, apesar de ter vindo

à cata de informações detalhadas, ela agora se descobria incapaz de


prosseguir no bravo intento, e desviou a conversa por uma pergunta

sobre o jovem Hackbutt, para logo despedir-se dizendo que ia à casa

de Mrs. Plymdale. A caminho de lá, tentou imaginar que poderia ter

havido alguma discussão muito acalorada na reunião entre Mr. BuIstrode

e seus freqüentes opositores - Mr. Hackbutt talvez até fosse um de-

les. E isto explicaria tudo.

Mas, quando já em conversa com Mrs. Plymdale, esta explicação

consoladora não lhe pareceu mais plausível. "Selina" recebeu-a com

patéticas demonstrações de afeição e disposta a dar-lhe respostas

edificantes sobre os tópicos mais banais, que mal podiam ter relação

com uma querela ordinária, da qual a conseqüência mais importante

fora um abalo na saúde de Mr. BuIstrode. Mrs. BuIstrode havia de an-

temão pensado que lhe seria mais fácil perguntar a Mrs. Plymdale que

a qualquer outra; mas para sua surpresa via agora que uma velha amiga

nem sempre é a pessoa mais indicada para tomarmos em confidência:

havia a barreira da comunicação lembrada sob outras circunstâncias -

havia o forte desagrado em receber informações e pena de alguém que

se habituara de há muito a vê-la em superioridade. Pois certas palavras

de misteriosa adequação que Mrs. Plymdale usou, para falar da sua

determinação de nunca virar as costas a amigos, convenceram Mrs.

BuIstrode de que devia ter acontecido era uma grande desgraça, e ela,

ao invés de ser capaz de dizer com sua inata franqueza: "Que é que

você tem na cabeça?" viu-se ansiosa por sair dali antes de ouvir coisa

784

GEORGE ELIOT

mais explícita. Começou a ter a inquietante certeza de que a desgraça

era algo mais que a simples perda de dinheiro, percebendo claramente

que Selina agora, do mesmo modo que Mrs. Hackbutt antes, evitava
notar o que ela dizia sobre o seu marido, como teriam evitado notar

um defeito pessoal.

Disse adeus com uma pressa nervosa, e mandou que o cocheiro a

levasse ao armazém de Mr. Vincy. No breve trajeto, seu pavor juntou tal

força, por ela permanecer na escuridão, que assim que entrou no escritó-

rio, onde seu irmão trabalhava sentado à mesa, seus joelhos tremiam e

sua face geralmente flórida tinha uma palidez mortal. Nele, quando a

viu, algo do mesmo tipo ocorreu: levantando-se para encontrá-la, pe-

gou-a pela mão e disse, com sua brusquidão impulsiva:

"Oh, Harriet, você já sabe de tudo! que Deus a proteja!"

Momento talvez pior que todos os que vieram depois. Continha essa

experiência concentrada que nas grandes crises de emoção revela o pen-

dor de uma natureza e profetiza o ato derradeiro que encerrará a luta

intermédia. Sem a lembrança de Rafiles, talvez ela pensasse somente

em ruína financeira, mas agora as palavras e o olhar de seu irmão pu-

nham-lhe na cabeça a idéia de alguma culpa do marido - e depois, sob

a ação do terror, veio a imagem do marido exposto à desgraça - e, após

um instante de vergonha profunda no qual ela sentiu apenas os olhares

do mundo, foi ficar ao lado dele, com um salto do coração, com seu

isolamento e vergonha, num companheirismo lastimoso, mas sem

reproches. Tudo isto se passou em seu intimo num mero lampejo -

enquanto ela afundava na cadeira e erguia os olhos para o irmão de pé.

"Não sei de nada, Walter. O que é?" disse frouxamente.

Ele lhe contou tudo, sem artificios, em lentos fragmentos, tornando-

a ciente de que o escândalo ia muito além da prova, sobretudo quanto

ao fim de Raffies.

"Todo mundo vai falar," disse ele. "Até mesmo se um homem for

inocentado por um júri, eles vão falar, sacudir a cabeça, piscar os olhos

- e, do jeito que o mundo anda, um homem bem que pode ser ou não

ser culpado.  um golpe fatal, que atinge não só o BuIstrode, mas tam-

bém o Lydgate. Não pretendo estar dizendo a verdade. Apenas desejaria


que nunca tivéssemos ouvido o nome de nenhum dos dois. Era melhor

que você continuasse sendo sempre uma Vincy, e a Rosamond também."

Mrs. BuIstrode não disse nada.

"Mas você tem de agüentar como puder, Harriet. A você ninguém

acusa de nada. E estarei a seu lado, seja qual for a decisão que tomar,"

disse o irmão, com certa aspereza em sua bem intencionada afeição.

MIDDLEMARCH

785

Dê-me o braço até a carruagem, Walter," disse Mrs. BuIstrode. "Eu

estou muito fraca."

Ao chegar em casa, foi obrigada a dizer à filha: "Não estou bem;

vou-me deitar. Cuide do seu pai, sim? Quero ficar em paz e não vou

jantar."

Trancou-se em seu quarto. Precisava de tempo para habituar-se à

sua consciência mutilada, à sua pobre vida podada, antes de poder an-

dar com firmeza para o lugar que o destino lhe impunha. Uma luz nova

e inquiridora caíra sobre o caráter de seu marido, e ela não podia ser

clemente ao julgá-lo: os vinte anos nos quais o havia venerado e acredi-

tado nele, em virtude de suas dissimulações, voltavam com pormenores

que os faziam parecer um odioso engano. Ele se casara com ela ocultan-

dolhe aquele passado negro, e ela já não tinha mais fé para acreditá-lo

inocente do pior que lhe era imputado. Sua natureza honesta e ostento-

sa tornava para ela a partilha de uma merecida desonra tão amarga como

podia ser para qualquer mortal.

Mas esta mulher pouco instruída, cujas frases e hábitos eram uma

verdadeira colcha de retalhos, tinha um espírito leal. O homem de cuja

prosperidade ela partilhara por metade quase da vida e que dela gosta-

ra invariavelmente - agora que o castigo o atingia, não podia em ab-


soluto abandoná-lo. Há um abandono que ainda se senta à mesma

mesa e repousa no mesmo catre com a alma abandonada, estiolando-a

mais ainda por sua proximidade sem amor. Ela sabia, quando trancou

a porta, que ao destrancá-la deveria estar pronta para ir até seu infeliz

marido e esposar-lhe o sofrimento e, quanto à sua culpa, dizer: "De-

ploro e não hei de reprovar." Mas precisava de tempo para reunir suas

forças; para, aos soluços, dizer adeus à alegria e orgulho de sua vida,

Quando se decidiu a descer, preparou-se por uma série de pequenos

atos que a um observador implacável teriam parecido pura loucura;

foram seu modo de expressar a todos os espectadores visíveis ou invi-

síveís que ela havia começado uma nova vida na qual abraçava a humi-

lhação. Tirou todos os seus enfeites, vestiu um simples vestido preto

e, ao invés de usar sua touca cheia de adornos, pôs outra, sem nada,

por cima do cabelo escorrido, que logo lhe conferiu a aparência de uma

metodista pioneira.

BuIstrode, que sabia que sua esposa tinha saído e voltara dizendo

não estar bem, passou o tempo numa agitação igual à dela. Antevira o

momento em que por outros ela saberia a verdade, encarando a proba-

bilidade como algo mais fácil de suportar que uma confissão. Mas agora,

quando acreditava este momento chegado, esperava por seu resultado

786

GEORGE ELIOT

em angústia. Forçou as filhas a deixarem-no só e permitiu que lhe levas-

sem um pouco de comida, na qual porém não tocou. Sentia-se a perecer

lentamente numa miséria sem piedade. Talvez nunca mais visse, no ros-

to da esposa, um sinal de afeição. E, se se voltava para Deus, parecia não

haver resposta, e sim a pressão do castigo.

Eram oito horas da noite quando a porta se abriu e a esposa entrou.


Ele não se atreveu a olhar para ela. Sentava-se com os olhos baixos, e

ela, nisto que vinha a aproximar-se, achou que ele parecia menor -

parecia encolhido e murcho, Um movimento de nova compaixão e a

velha ternura percorreram-na por dentro como uma grande onda e, pon-

do uma de suas mãos sobre a dele que repousava no braço da poltrona,

e a outra em seu ombro, disse solene mas bondosamente:

"Erga os olhos, Nicholas."

Ele o fez num ligeiro sobressalto e por um momento olhou-a meio

espantado: seu rosto pálido, a troca para o vestido de luto, o tremor em

torno da boca, tudo dizia: "já sei"; e suas mãos e seus olhos gentilmente

se punham nele. Ele então explodiu em choro e os dois choraram juntos,

tendo ela se sentado a seu lado. Ainda não podiam falar-se da vergonha

que ela passava com ele, nem dos atos que a haviam desencadeado. O

silêncio, nele, era confissão; nela, promessa de fidelidade. Aberta de es-

pírito como era, não obstante ela se esquivava a palavras que pudessem

expressar sua mútua consciência como se esquivaria das fagulhas do fogo.

Ela não podia dizer: "Quanto há nisto de calúnia e suspeita falsa?" e ele

não disse: "Sou inocente."

CAPÍTULo LXXV

"Le sentiment de Ia fausseté des plaisirs présents, e

Pignorance de Ia vaníté des plaísirs absents, causent

1"ínconstance."

- PASCAL.

CO sentimento da falsidade dos prazeres presentes, e a ig-

norância da vaidade dos prazeres ausentes, causam a

inconstância.")
- PASCAL. 1

ROSAMOND viu a alegria fulgurar de volta quando a casa ficou livre da

ameaçadora figura, e quando todos os desagradáveis credores foram pa-

gos. Ela porém não estava alegre: sua vida de casada não correspondia a

nenhuma de suas expectativas, era um estrago do que havia imaginado.

No breve intervalo de calma, Lydgate, lembrando-se de que muitas ve-

zes fora violento em suas horas de perturbação, e em atenção aos sofri-

mentos por que passou Rosamond, desdobrava-se em gentilezas com

ela; mas ele também tinha perdido uma parte de seu espírito d"antes, e

ainda julgava necessário referir-se a uma mudança econômica em seu

modo de vida como coisa inevitável, tentando convencê-la pouco a pou-

co da idéia e reprimindo a raiva quando ela respondia manifestando o

desejo de que ele fosse viver em Londres. Quando não dava esta respos-

ta, ela ouvia languidamente e se perguntava se, pelo que tinha, valia a

pena viver. As duras palavras de desprezo partidas do marido em seus

acessos de raiva haviam ofendido profundamente aquela mesma vaida-

788

GEORGE ELIOT

de que ele a princípio despertara para o regozijo ativo; e o que ela con-

siderava sua maneira perversa de olhar as coisas mantinha uma repulsão

secreta, que a fazia receber toda ternura como um pobre substituto para

a felicidade que ele fracassara em lhe dar. Em desvantagem em relação

aos vizinhos, já não tinham perspectivas em relação a Quallingliam -

nenhuma perspectiva em parte alguma, afora uma carta ocasional de

Will Ladislaw. Sentira-se ferida e decepeionada com a decisão de Will,

pois, apesar do que sabia e adivinhava da admiração dele por Dorothea,


em segredo ela alimentava a crença de que ele tinha, ou viria necessaria-

mente a ter, muito mais admiração por ela; sendo Rosam"ond uma des-

sas mulheres que vivem geralmente pensando que todos os homens que

encontram teriam preferência por elas, se a preferência não fosse sem

esperanças. Mrs. Casaubon, sim, tudo bem, mas o interesse de Will por

ela datava de antes de ele conhecer Mrs. Lydgate. Rosamond tomou a

maneira como ele lhe falava, uma mistura de críticas brincalhonas e

galanteria hiperbólica, como disfarce de um sentimento mais profundo;

e em sua presença sentiu essa agradável excitação da vaidade e a impres-

são de drama romântico que a presença de Lydgate não mais tinha a

magia de criar. Chegou até a imaginar - o que não hão de imaginar

homens e mulheres em tais questões? - que Will exagerava sua admi-

ração por Mrs. Casaubon apenas para provocá-la. Disto se ocupava o

cérebro de Rosamond antes da partida de Will. Ele teria sido, pensava a

pobre, um marido muito mais adequado para ela do que o encontrado

em Lydgate. Nada poderia ser mais falso, pois o descontentamento de

Rosamond com seu casamento era devido às condições do casamento

em geral, à demanda de auto-supressão e tolerância, e não à natureza de

seu marido; mas a fácil concepção de um Melhor irreal tinha um encanto

sentimental que a distraía do tédio. Para dar variedade à uniformidade

de sua vida, construíra assim um romance: Will Ladislaw haveria de ser

sempre solteiro e viver por perto, sempre às suas ordens, e de ter por ela

uma paixão subentendida, embora nunca totalmente expressa, que lan-

çaria suas chamas tremulantes, de quando em quando, em cenas cheias

de interesse. A partida dele havia sido para ela uma decepção proporcio-

nal, tendo aumentado tristemente seu cansaço de Middemarch; mas de

início ainda contava com um sonho alternativo de prazer, armazenado

de seu intercurso com a família em Quallingliam. Depois os problemas

da vida conjugal se agravaram, e a ausência de outro alívio estimulou

sua ruminação pesarosa sobre aquele frágil romance que ela alimentara

outrora. Mulheres e homens cometem tristes erros sobre seus próprios


sintomas, tomando seus anseios intranqüilos e vagos, ora por gênio, ora

MIDDLEMARCH

789

por religião, e mais vezes ainda por um amor poderoso. Will Ladíslaw

mandara umas cartas bem engraçadas, meio para ela, meio para Lydgate,

e ela respondera: sentia que sua separação não deveria ser definitiva, e a

mudança pela qual agora ansiava era que Lydgate fosse viver em Lon-

dres; em Londres tudo seria agradável; e com serena determinação ela se

pôs a trabalhar por este resultado, quando de súbito chegou uma deliciosa

promessa que lhe deu mais alento.

Chegou logo depois da memorável reunião na Prefeitura, e era nada

menos do que uma carta de Will Ladislaw a Lydgate, que versava prin-

cipalmente sobre seu novo interesse por projetos de colonização, mas

não deixava de mencionar que talvez lhe fosse necessário fazer uma

visita a Middemarch no decorrer das duas próximas semanas - neces-

sídade muito agradável, dizia ele, quase tão boa como as férias para

um menino de escola. Esperava que seu lugar no tapete ainda existis-

se, e um bom repertório musical já preparado. Sobre a data porém não

tinha certeza. Enquanto Lydgate lia a carta para Rosamond, seu rosto

se mostrou como uma flor revivendo - desabrochando cada vez mais

bonita. Nada havia de insuportável agora: as dívidas estavam pagas,

Mr. Ladislaw viria e Lydgate seria persuadido a se mudar de

Míddemarch e estabelecer-se em Londres, que era "Uo diferente de

uma cidade provinciana."

Foi, numa manhã, um radioso momento. Mas logo o céu se toldou

sobre a pobre Rosamond. A presença de um novo abatimento em seu

marido, a respeito do qual ele manteve absoluta reserva - pois temia

expor seus sentimentos lacerados à neutralidade e aos errôneos julga-


mentos dela - logo recebeu uma estranha e dolorosa explicação, alheia

a tudo o que ela antes julgava que poderia afetar sua felicidade. Com a

alegria que se instalara em seu ânimo, pensou que Lydgate tinha apenas

um acesso de rabugice pior que os de costume, levando-o a deixar suas

observações sem resposta, evidentemente para se manter fora de seu

caminho o mais possível, e resolveu, poucos dias depois da reunião, e

sem falar no assunto com ele, enviar convites para um encontro à noite

em sua casa, convencida de que dava um passo acertado, pois as pessoas

pareciam manter-se distantes deles, e era preciso restaurá-las ao velho

hábito da convivência. Quando os convites fossem aceitos, ela diria a

Lydgate, fazendo-lhe uma sábia demonstração de como um médico de-

veria conduzir-se com seus vizinhos; pois Rosamond se dava o ar mais

grave possível sobre os deveres alheios. Mas todos os convites foram

recusados, e a última resposta veio parar nas mãos de Lydgate.

" a letra do Chichely. Sobre o que lhe escreve ele?" disse Lydgate,

790

GEORGE ELIOT

intrigado ao lhe passar o bilhete. Ela foi obrigada a deixar que o lesse, e

ele, olhando-a com severidade, disse:

"Por que cargas-d"água você andou fazendo convites sem me di-

zer, Rosamond? Peço-lhe, insisto, que não convide ninguém a esta

casa. Suponho que haja convidado outros, e que eles tenham recusa-

do também."

Ela não disse nada.

"Está-me ouvindo?" berrou Lydgate.

"Sim, claro que o ouço," disse Rosamond, virando a cabeça um pou-

co de lado com o gracioso movimento de uma ave de pescoço comprido.

Lydgate sacudiu a cabeça, sem nenhum particular encanto, e, sentin-


do que se descontrolava, saiu da sala. Rosamond achou que ele estava

ficando cada vez mais insuportável - não que houvesse alguma nova

razão especial para esta imperiosidade. Sua indisposição de lhe dizer

qualquer coisa que ele supunha de antemão não fosse interessar a ela já

se transformava num hábito irrefletido, e ela estava na ignorância de

tudo que se relacionava às mil libras, a não ser que o empréstimo tinha

vindo de seu tio BuIstrode. Os acessos de raiva de Lydgate e o aparente

afastamento de seus vizinhos datavam inexplicavelmente do fim das suas

dificuldades financeiras. Se os convites fossem aceitos, ela iria convidar

também sua mãe e o restante da família, que não via há vários dias; e

agora pôs sua touca para ir lá perguntar que fim eles haviam tomado,

sentindo-se bruscamente como se houvesse uma conspiração para deixá-

a em isolamento com um marido disposto a ofender todo mundo. já

passava da hora do jantar, e ela encontrou o pai e a mãe sentados juntos

na sala de visitas. Ambos a receberam com tristeza, dizendo: "E então,

minha filha!" e mais nada. Ela nunca tinha visto seu pai tão abatido; e,

sentando-se perto dele, disse:

"Está havendo alguma coisa, papai?"

Ele não respondeu, mas Mrs. Vincy disse: "Oh, você não ouviu nada,

minha filha? Pois então logo há de ouvir."

" alguma coisa sobre o Tertius?" disse Rosamond, empalidecendo.

A idéia de um problema ligou-se de imediato ao que para ela era

inexplicável na conduta dele.

"Oh, minha filha, é sim. E pensar nos problemas que o casamento

lhe trouxe. As dívidas já eram péssimas, mas isto ainda será pior."

"Espere, Lucy, espere," disse Mr. Vincy. "Você não ouviu nada sobre

o seu tio BuIstrode, Rosamond?"

"Não, papai," disse a pobrezinha, sentindo-se como se os proble-

MIMUMARCH
791

mas não fossem coisa já experimentada por ela, e sim alguma força invi

sível que, com mão de ferro, lhe esganava a alma por dentro.

Seu pai contou-lhe tudo, dizendo no fim: " melhor que você saiba,

minha filha. O Lydgate a meu ver deve sair da cidade. As coisas se volta-

ram contra ele, que não teve como o impedir. Mas não o acuso de nada,"

disse Mr. Vincy, antes sempre disposto a encontrar em Lydgate as piores

falhas.

Foi um choque terrível para Rosamond, que não podia conceber des-

tino mais cruel que o dela - ter-se casado com um homem que se tor-

nou o centro de suspeitas infames. Em muitos casos é inevitável que a

vergonha seja sentida como a pior parte de um crime: só uma grande

dose de reflexão esclarecedora, dose que nunca entrara na vida de

Rosamond, para ela sentir nesses momentos que seu problema era me-

nor do que se houvesse verdadeiramente certeza de que seu marido ti-

nha praticado um ato criminoso, Toda a vergonha parecia estar nisto. E

ela se casara com este homem na maior inocência, acreditando que ele e

sua família eram para ela uma glória! Como de hábito, mostrou-se re-

ticente com seus pais, e disse apenas que, se Lydgate tivesse feito o que

ela queria, há muito tempo já estariam fora de Middemarch.

"Ela está agüentando além da conta," disse sua mãe depois de ela sair.

"Ah, graças a DeusV" disse Mr. Vincy, muito alquebrado.

Mas Rosamond foi para casa com uma sensação de justificada re-

pugnãoncía por seu marido. O que ele havia realmente feito - como

exatamente havia agido? Ela não sabia. E por que não lhe contara tudo?

Ele nem mesmo lhe falara do assunto, e ela, claro, não podia falar. Deu-

lhe até vontade, certa vez, de ir pedir ao seu pai para voltar para casa;

mas a perspectiva logo se lhe mostrou como seria enfadonha: uma mu-

lher casada vivendo novamente com os pais - uma vida assim, para ela,

não parecia ter sentido: nesta situação ela não conseguia se ver.
Nos dois dias seguintes Lydgate, notando nela uma mudança, achou

que poderia ter sabido das más notícias. Falaria com ele, ou iria persistir

para sempre no silêncio que parecia dar a entend,

culpado? Devemos lembrar que ele se achava num

espírito, no qual todos os contactos, praticam

Rosamond neste caso tinha decerto igual razão para

va e falta de confiança da parte dele; no arnargor

desculpava; - não estava então justificado em exím

tar-lhe, já que sabendo agora da verdade ela não se .-

ele? Mas uma consciência mais funda de estar errad(

792

GEORGE ELIOT

tornando-se o silêncio entre os dois, para ele, intolerável; eram como

dois náufragos que, agarrados a um mesmo destroço, olhavam cada qual

para um lado.

Ele pensou: "Eu sou um tolo. já não desisti de toda esperança? Ca-

sei-me com a preocupação, não com a ajuda." E nessa mesma noite ele

disse:

"Rosamond, você soube de alguma coisa que a infelicitasse?"

"Sim," respondeu ela, pondo de lado seu trabalho, que já fazia com

uma serniconsciência lânguida, em nada semelhante a seu modo de ser

habitual.

"Que foi que soube?"

"Tudo, suponho. Papai me contou."

"Que as pessoas julgam-me caído em desgraça?"

"Sim," disse Rosamond, fraca, tornando automaticamente a costurar.

Houve silêncio. Lydgate pensou: "Se ela tiver confiança em mim -

se tiver noção de quem sou, há de falar agora e dizer que não crê que eu
merecesse desgraça!"

Mas Rosamond restringia-se a mover languidamente seus dedos. Ela

esperava que viesse de Tertius o que teria de ser dito do assunto. Que

sabia ela? E se ele era inocente, se não procedera mal, por que não fez

alguma coisa para se defender?

Seu silêncio pôs ainda mais fel na já amarga situação de Lydgate, a

se dizer que ninguém acreditava nele - nem mesmo Farebrother dera

um passo à frente. Ele havia começado a questioná-la com a intenção de

que a conversa dispersasse a frieza que se acumulara entre eles, mas

sentiu sua resolução contrariada por um ressentimento desesperador.

Mesmo este problema, como o resto, ela parecia considerar como se

fosse dela somente. Para ela, ele era sempre um ser à parte, fazendo

coisas que a contrariavam. Num impulso de raiva ele se levantou da

cadeira e, enfiando as mãos nos bolsos, passou a andar de um lado ao

outro da sala. Uma consciência subjacente lhe dizia entretanto que ele

teria de dominar sua raiva e contar tudo a ela e convencê-la dos fatos.

Pois já quase tinha aprendido a lição de que devia curvar-se à natureza

dela e, se a ela faltara simpatia, dar-lhe ainda mais. Logo voltou à inten-

ção de se abrir: não devia perder a ocasião. Se a levasse a sentir com

Irprta gravidade que havia uma calúnia a enfrentar, e não da qual sair

- -ndo, e que todo o problema só surgira por sua desesperada falta de

o seu &o, seria um momento para convincentemente mostrar-lhe que

"Não -riam ser unos na decisão de viver com o mínimo possível, para

MIDDLEMARCH

793

que pudessem enfrentar o mau tempo mantendo-se independentes.

Mencionaria então as medidas concretas que desejava tomar, e conquis-


taria sua boa vontade. Era uma obrigação tentar - e o que mais haveria

para ele fazer?

Nem soube por quanto tempo esteve a andar para cá e para lá

intranqüilo, mas Rosamond achou que por muito, preferindo que ele se

sentasse. Ela também achava que a oportunidade era boa para conven-

cer Tertius do que ele deveria fazer. Fosse qual fosse a verdade sobre

toda a desgraça, já havia um medo que se impunha por si.

Lydgate finalmente sentou-se, não em seu lugar costumeiro, mas

numa poltrona mais perto de Rosamond, debruçando-se de lado para

ela e olhando-a gravemente antes de retomar o triste tema. Até então

ele se controlara, e estava a ponto de falar com certa solenidade, como

numa ocasião que não se repetiria. Já havia mesmo aberto os lábios,

quando Rosamond, abandonando as mãos no colo, olhou para ele e

disse:

"Naturalmente, Tertius

"Hem?"

"Naturalmente agora você por fim desistiu da idéia de permanecer

em Middemarch. Não posso continuar morando aqui. Vamos embora

para Londres. Papai, todo mundo diz que é melhor você ir. Seja qual for

a miséria que eu tiver de enfrentar, longe daqui será mais fácil."

Lydgate sentiu como que um golpe profundo. Ao invés do

extravasamento crítico para o qual se preparara com esforço, lá vinha de

novo aquela velha história, que ele já não podia agüentar. Com uma

rápida mudança de expressão, levantou-se e saiu.

Talvez, se fosse suficientemente forte para persistir em sua determi-

nação de ser mais, porque ela era menos, a noite tivesse tido melhor

desfecho. Se sua energia houvesse suportado o golpe, ele talvez ainda

agisse sobre as idéias e a vontade de Rosamond. Não podemos estar

certos de que haja naturezas tão inflexíveis ou peculiares que resistirão à

influência de um ser mais sólido que o seu. Tomadas de assalto, elas são

passíveis de conversão momentânea, tornando-se parte da outra alma


que no ardor de seu movimento as envolve. Mas o pobre Lydgate, por

dentro, latejava de dor: sua energia se esgotara antes de cumprida a

tarefa.

O começo do entendimento mútuo e de uma decisão parecia distan-

te como sempre; ou melhor, parecia bloqueado pela impressão de esfor-

ço em vão. Eles assim continuaram a viver dia a dia com seus pensamen-

tos à parte, Lydgate saindo, para o pouco trabalho que tinha, num clima

794

GEORGE ELIOT

de desespero, e Rosamond a sentir, com certa justeza, que ele estava

sendo cruel. De nada adiantava dizer alguma coisa a Tertius; mas, quan-

do Will Ladislaw chegasse, ela estava resolvida a contar-lhe tudo. A des-

peito de suas generalizadas reticências, precisava de alguém que viesse a

reconhecer seus erros.

CAPÍTULo LXXVI

"To mercy, pity, peace, and love

A11 pray in their distress,

And to these virtues of delight,

Return their thankfulness."

"For Mercy has a human heart,

Pity a human face;

And Love, the human form divine;

And Peace, the human dress."

- WILLIAM BLAKE: Songs of Innocence.


€"Por graça e pena, paz e amor,

Todos rezam na aflição,

E a tais virtudes de deleite

Declaram sua gratidão."

"Pois humano coração tem a Graça

E humano rosto, a Pena;

* Amor, a humana forma divina,

* Paz, humana vestimenta.")

- WILLIAM BLAKE: Canções da inocência."

ALGUNS DIAS DEPOIS, Lydgate ia andando a cavalo para Lowick Manor,

em decorrência de um chamado de Dorothea. Não um chamado inespe-

rado, pois seguira-se a uma carta de Mr. BuIstrode na qual este declarava

que, havendo retomado seus planos para mudar-se deMiddemarch, devia

I*The Divine Image."

796

GEORGE ELIOT

lembrar a Lydgate suas prévias comunicações sobre o hospital, a cujo

teor ainda aderia. Fora de seu dever, antes de dar novos passos, reabrir a

questão com Mrs. Casaubon, que agora desejava, como anteriormente,

conversar sobre o assunto com Lydgate. "Suas opiniões talvez tenham

mudado um pouco," escreveu Mr. Bulstrode; "mas também neste caso é

desejável que o senhor as submeta a ela."

Dorothea esperou por sua chegada com ansioso interesse. Embora,


em deferência a seus conselheiros masculinos, ela se houvesse refreado de

"interferir nesse negócio do BuIstrode," segundo a expressão de Sirjames,

precocupava-se incessantemente com a difícil situação de Lydgate, e, quan-

do Buistrode tornou a lhe falar do hospital, sentiu que a ocasião que não

a tinham deixado provocar enfim lhe vinha. Em sua suntuosa residência,

vagando sob os ramos de suas próprias grandes árvores, seu pensamento

ia longe quanto ao destino dos outros, mas suas emoções estavam presas.

A idéia de uma boa ação ao seu alcance "obeecava-a como uma paixão," e

a necessidade de um outro, desde que se lhe impunha como imagem dis-

tinta, preocupava-a com um intenso desejo de dar alívio, tornando insípi-

da sua comodidade. Para essa conversa com Lydgate, estava cheia de es-

perança, não ligando para o que se dizia sobre ser ele muito reservado;

nem para o fato de ela ser uma mulher muito jovem. Nada lhe parecia

mais descabido do que insistir em sua juventude e sexo, quando ela esta-

va resolvida a demonstrar simpatia a alguém.

Sentada à espera na biblioteca, nada podia Dorothea senão reviver

as cenas passadas pelas quais Lydgate entrara em sua memória. Todas se

referiam a seu casamento e seus problemas - mas não; havia duas oca-

siões em que a imagem de Lydgate vinha doridamente associada à de

sua esposa e alguém mais. A dor diminuíra para Dorothea, mas deixara-a

a conjecturar sobre o que o casamento de Lydgate deveria ser para ele, e

em estado de alerta para qualquer alusão a Mrs. Lydgate. Tais pensa-

mentos, para ela, eram como um drama, punham brilho em seus olhos e

davam uma atitude de suspense a toda sua figura, embora ela estivesse

apenas olhando da biblioteca escura para o gramado e os botões em

relevo, verdes e brilhantes, contra o negrume das árvores.

Quando Lydgate entrou, chocou-se com a mudança em seu rosto,

particularmente perceptível para ela que não o via há dois meses. Não

era a mudança do emagrecimento, mas esse efeito que até mesmo rostos

jovens hão de em breve mostrar com a presença persistente de ressenti-

mento e desânimo. Quando ela estendeu a mão para ele, sua aparência
cordial lhe abrandou a expressão, mas apenas tingindo-a de melancolia.

"Há um bom tempo que eu desejava muito vê-lo, Mr. Lydgate," dis-

MIMUMARCH

797

se Dorothea quando eles se sentaram face a face; "mas tanto adiei que

só lhe pedi para vir depois que Mr. BuIstrode voltou a me falar do hospi-

tal. Sei que a vantagem de mantê-lo com administração separada da

Enfermaria depende do senhor ou, pelo menos, do bem que o senhor há

de querer fazer tendo-o sob seu controle. E estou certa de que não se

recusará a dizer-me exatamente o que pensa."

"A senhora quer decidir se deve dar ao hospital uma generosa aju-

da," disse Lydgate. "Em sã consciência, com base em qualquer atividade

de minha parte, não posso aconselhá-la. Eu talvez seja obrigado a me

mudar da cidade."

Falou rápido, sentindo a dor do desespero por ser incapaz de levar a

termo qualquer projeto a que Rosamond se opunha.

"Não por falta de quem acredite no senhor, espero," disse Dorothea,

deixando seu coração se extravasar em palavras claras. "Sei dos terríveis

erros a seu respeito. Desde o inicio eu sabia que eram erros. O senhor

nunca fez nada de mal. Nunca faria nada desonroso."

Era a primeira declaração de crença nele a chegar aos ouvidos de Lydgate

que, respirando fundo, disse: "Muito obrigado." Mais não poderia dizer:

era muito novo e estranho em sua vida que estas poucas palavras de con-

fiança, partidas de uma mulher, significassem tanto para si.

"Encareço-lhe que me conte o que aconteceu," disse destemidamente

Dorothea. "A verdade, tenho certeza, há de inocentá-lo."

Lydgate pulou fora da cadeira e foi até a janela, esquecido de onde

estava. Tantas vezes considerara em sua mente a possibilidade de expli-


car tudo sem agravantes que pudessem depor contra BuIstrode, talvez

injustamente, e tantas vezes decidira em contrário - tantas vezes se

dissera que suas afirmativas não mudariam as impressões das pessoas

- que as palavras de Dorothea soaram como tentação de fazer alguma

coisa que em seu estado de sobriedade já fora decretada por ele irrazoável.

"Conte-me, por favor," disse Dorothea, sem disfarçar a impaciência;

"pois depois poderemos conversar. Não é bom deixar que os outros, por

engano, pensem mal de nós, quando isto pode ser evitado."

Lydgate se virou, tornando agora à consciência do lugar, e viu o ros-

to de Dorothea que se erguia para ele com gravidade confiante e doce. A

presença de uma natureza nobre, generosa em seus desejos, ardente em

sua caridade, muda a luz para nós: começamos a ver as coisas de novo

em suas massas maiores, mais tranqüilas, e a acreditar que nós também

podemos ser vistos e julgados na totalidade do nosso caráter. Esta influên-

cia já começava a agir em Lydgate, que há muitos dias vinha olhando

para a vida como um homem que, sendo arrastado, se põe a lutar com a

798

GEORGE ELIOT

multidão. Tornou pois a sentar-se e, graças à consciência de estar com

alguém que acreditava nele, sentiu-se a se recuperar tal como era.

"Não quero," disse, "fazer pressão contra o Bulstrode, que me em-

prestou um dinheiro de que eu necessitava - se bem agora eu até prefe-

risse ter passado sem ele. O Bulstrode anda muito mal, acossado, e já

com a vida por um fio. Mas eu gostaria de contar-lhe tudo. Para mim

será um consolo, falar quando de antemão me dão crença, sem que eu

pareça estar a oferecer declarações de minha própria honestidade. A se-

nhora há de sentir o que é justo para um outro, como sente o que é justo

para mim."
"Confie em mim," disse Dorothea; "nada repetirei sem sua permis-

são. Mas pelo menos eu poderia dizer que o senhor me tornou todas as

circunstâncias claras, e que sei que não tem culpa de nada. Mr. Farebrother

acreditaria em mim, como meu tio e Sir James Chettam. Aliás, posso

procurar outras pessoas de Middemarch que, embora não me conheçam

bem, também me acreditariam. Todos saberiam que, além da verdade e

da justiça, outros motivos não tenho. Eu me daria, para inocentá-lo, a

qualquer esforço. O que tenho a fazer é muito pouco, e nada no mundo

me seria melhor que fazer isto."

A voz de Dorothea, enquanto emitia esta descrição infantil do que

ela iria fazer, era quase passível de ser tomada por prova de que o faria

mesmo. A ternura inquiridora de seus tons de mulher parecia ideal a

uma defesa contra acusações levianas. Lydgate não perdeu tempo em

pensar se ela era ou não quixotesca: entregou-se, pela primeira vez em

sua vida, à rara sensação de debruçar-se de todo na generosa simpatia

alheia, sem os freios da orgulhosa reserva. E a ela contou tudo, desde o

momento em que, pressionado por suas dificuldades, pela primeira vez

e a contragosto ele recorrera a Bulstrode; gradativamente, à medida que

se aliviava ao falar, chegou a uma explanação mais completa do que lhe

passara pela cabeça - estendendo-se sobre o fato de o seu tratamento

do paciente não corresponder à prática dominante, sobre as dúvidas que

por fim o assaltaram, sobre seu ideal do dever médico e o temor de sua

consciência de que a aceitação do dinheiro houvesse feito alguma dife-

rença para sua inclinação pessoal e a conduta na profissão, ainda que

não para o cumprimento por ele de qualquer obrigação publicamente

reconhecida.

"Chegou ao meu conhecimento depois," acrescentou, "que o Hawley

mandou alguém interrogar a governanta em Stone Court, e ela disse que

deu ao paciente todo o ópio do frasco que eu lá deixara, além de muitas

doses de conhaque. Isto porém não contrariaria as prescrições ordinárias,


MIDDLEMARCH

799

mesmo de homens bem qualíficados. As suspeitas contra mim não pro-

vêm daí: fundamentam-se no conhecimento de que eu recebi um dinhei-

ro, de que o BuIstrode tinha fortes motivos para querer que o homem

morresse e de que ele me subornou para eu concordar com alguma tra-

móia contra o paciente - de que eu, seja como for, aceitei um dinheiro

para não soltar minha língua. São justamente tais suspeitas as que se

tornam mais persistentes, porque jazem na própria inclinação das pessoas

e nunca podem ser negadas com provas. Como minhas ordens vieram a

ser desobedecidas é uma questão para a qual eu não encontro resposta.

Ainda assim é possível que o BuIstrode seja inocente de intenções crimi-

nosas - possível até que a desobediência nada tenha a ver com ele, que

ele talvez apenas não mencionasse o fato. Mas, para o que os outros pen-

sam, nada disto interessa. Trata-se de um desses casos em que um homem

é condenado com base em seu caráter - de um modo indefinido, acredi-

ta-se que ele tenha cometido um crime só porque não lhe faltava o motivo

para o fazer; e o caráter do BuIstrode, porque eu aceitei dinheiro dele,

acabou envolvendo-me. Acho-me simplesmente empestado - como uma

espiga que se estraga - a confusão está feita e não pode ser desfeita."

"Oh, é duro!" disse Dorothea. "Entendo a dificuldade que há para

se defender. E que tal lhe tenha ocorrido, ao senhor que quis levar uma

vida acima do comum e descobrir melhores caminhos - não suporto

ater-me à idéia de que isto seja imutável. Sei que foi o que quis. Lem-

bro-me do que o senhor me disse quando me falou do hospital pela

primeira vez. Sobre nenhuma outra dor tenho pensado mais do que nes-

ta - amar o que é grande, tentar alcançá-lo, entretanto falhar."

"Pois é," disse Lydgate, sentindo que ali encontrava espaço para

toda a extensão do seu sofrimento. "Tive alguma ambição. Eu achava


que comigo tudo ia ser diferente. julgava ter mais força e mais capacida-

de. Os obstáculos mais terríveis são porém de tal ordem que ninguém os

vê, a não ser a própria pessoa."

"Supondo-se," disse Dorothea, meditativa, "supondo-se que o hos-

pital seja mantido por nós segundo o plano atual, e que o senhor conti-

nue aqui, embora contando apenas com a amizade e apoio de uns pou-

cos, a má vontade contra o senhor haveria de se extinguir gradualmente;

e surgiriam oportunidades nas quais as pessoas seriam forçadas a reco-

nhecer que haviam sido injustas, porque veriam que os seus objetivos

eram puros. O senhor ainda pode conquistar grande fama, como o Louís

e o Laennec dos quaís já o ouvi falar, e deixar-nos, a todos nós, orgulho-

sos," concluiu com um sorriso.

"Sim, poderia ser, se eu tivesse em mim mesmo a antiga confiançaf

80O

GEORGE ELIOT

disse Lydgate, pesarosamente. "Nada me repugna mais do que a idéia

de dar as costas e fugir diante desta calúnia, ao invés de enfrentá-la e

destruí-la. Mesmo assim, não posso pedir a alguém que ponha um bom

dinheiro num plano que depende de mim."

"Pois para mim valeria a pena," disse Dorothea, com simplicidade.

"Pense bem. Sinto-me muito pouco à vontade com meu dinheiro, por-

que eles dizem que eu tenho pouco para qualquer grande obra do tipo

que mais me agrada, e no entanto tenho muito. O que fazer, não sei.

Tenho setecentas libras de renda por ano de minha própria fortuna, mais

novecentas por ano que Mr. Casaubon me deixou, e de três a quatro mil

em dinheiro vivo no banco. Pensei em levantar um empréstimo, que

pagaria pouco a pouco com a parte de minhas rendas de que não preci-

so, para comprar uma terra e fundar uma aldeia que seria uma escola de
indústria; mas Sir James e meu tio me convenceram de que era muito

arriscado. Como vê, nada me alegraria mais do que ter um bom fim para

dar ao meu dinheiro: eu gostaria que ele tornasse a vida para os outros

melhor.  algo que me incomoda muito - sendo demais para mim que

não preciso de tanto."

Um sorriso irradiou-se pelo rosto sombrio de Lydgate. A gravidade

infantil estampada nos olhos de Dorothea ao dizer tudo aquilo era

irresistivel - mesclando-se num todo adorável à sua perfeita compreen-

são da experiência alta. (Da experiência baixa, que desempenha no mundo

papel tão grande, a pobre Mrs. Casaubon tinha conhecimento muito

impreciso e sem alcance, pouco ajudado por sua imaginação.) Mas ela

tomou o sorriso por um incentivo ao seu plano.

"Espero que agora o senhor veja como falava com excessivos escrú-

pulos," disse ela, num tom de persuasão. "O hospital seria um bom fim;

e tornar sua vida íntegra e feliz novamente seria outro."

O sorriso de Lydgate já se dissipara. "A senhora tem a bondade e

também o dinheiro para fazer tudo isto; se isto fosse possível," disse ele.

"Mas _"

Hesitou um pouco, olhando vagamente em direção à janela; ela,

sentada em silêncio, esperava. Por fim ele a encarou e disse impetuo-

samente:

"Por que não haveria eu de dizer-lhe? - a senhora sabe que tipo de

jugo o casamento é. Há de compreender tudo."

Dorothea sentiu que seu coração começou a bater mais rápido. Teria

ele este sofrimento também? Mas ela temeu dizer alguma coisa a respei-

to, e ele prosseguiu de imediato.

"Não posso agora fazer nada - dar nenhum passo - sem levar em

MIDDLEMARCH
80O

conta a felicidade de minha esposa. O que eu gostaria de fazer, se esti-

vesse sozinho, tornou-se para mim impossível. Não consigo vê-la so-

frendo. Para ela, que se casou comigo sem saber o que a esperava, não o

ter feito talvez fosse melhor."

"Eu sei, eu sei - o senhor jamais iria magoá-la, se a tanto não se

visse forçado," disse Dorothea, com vívida memória de sua própria vida.

"E ela é contra nós permanecermos aqui. Quer mudar-se. Está can-

sada dos problemas que teve na cidade," disse Lydgate, interrompendo-

se de novo para evitar falar demais.

"Mas quando ela vir o bem que pode advir da permanência -" disse

Dorothea, em tom de reprovação, olhando-o como se ele tivesse esque-

cido as razões que acabavam de ser consideradas. Lydgate não respon-

deu logo.

"Nunca o veria," disse por fim e a modo bem lacôníco, sentindo a

princípio que esta afirmativa não iria necessitar de explicações. "E eu

mesmo, na verdade, perdi todo o ânimo para continuar minha vida aqui."

Outra vez fez uma pausa e depois, seguindo o impulso de levar Dorothea

a se enfronhar cada vez mais nas dificuldades de sua vida, disse: "O fato

é que este problema se abateu sobre ela de maneira muito confusa. Nós

não conseguimos conversar sobre o caso, nem sei direito o que ela pôs

na cabeça: pode até- temer que eu tenha realmente cometido alguma

baixeza. E é culpa minha; eu deveria ser mais aberto. Mas tenho sofrido

cruelmente."

"Posso ir vê-la?" disse Dorothea, toda animada. "Aceitaria ela mi-

nha simpatia? Eu lhe diria que só em seu próprio julgamento o senhor

era censurável. Diria que todos os espiritos justos hão de reconhecer sua

inocência. Eu alegraria o coração de sua esposa. Far-rne-á o senhor a

gentileza de perguntar-lhe se posso ir vê-la? já estive uma vez com ela."

"Tenho certeza de que pode," disse Lydgate, agarrando-se à propos-


ta com alguma esperança. "Ela se sentiria honrada - e reanimada, creio

eu, com uma prova de que ao menos a senhora ainda tem respeito por

mim. Não lhe falarei de sua visita - para que ela não a relacione, de

modo algum, aos meus desejos. Sei muito bem que eu nada deveria

deixar para lhe ser comunicado por outros, mas -"

Ele se interrompeu, e houve um momento de silêncio. Dorothea se

reprimia para não dizer o que tinha em mente - que ela sabia muito bem

como é possível haver barreiras invisíveis à fala entre marido e mulher. Era

um ponto no qual até mesmo a simpatia poderia ferir. Retornou pois ao

aspecto mais exterior da situação de Lydgate, dizendo animadamente:

"E Mrs. Lydgate, sabendo da existência de amigos que acreditam no

802

GEORGE ELIOT

senhor e o apoiariam, talvez se alegrasse vendo o senhor continuar em

seu lugar, recuperar suas esperanças - e fazer o que pretendia fazer. já o

senhor talvez visse que acertaria em concordar com o que eu propus

sobre sua permanência no hospital. Certamente concordaria, se ainda

acredita nele como um meio de tornar seu conhecimento útil?"

Lydgate não respondeu, e ela viu que ele travava um debate interior.

"Não precisa decidir logo," disse ela gentilmente. "Ainda estarei em

tempo se daqui a alguns dias eu mandar minha resposta a Mr. Bulstrode."

Lydgate ainda esperou, mas por fim pôs-se a falar em seu tom mais

decidido.

"Não; prefiro não deixar brechas à hesitação. já não tenho a neces-

sária confiança em mim mesmo - quanto ao que eu poderia fazer sob as

circunstâncias modificadas de minha vida. Seria desonesto deixar que

outros se envolvam com um projeto sério que dependa de mim. Afinal

de contas, eu talvez seja obrigado a me mudar; vejo poucas possibilida-


des de não ser assim. Toda a coisa é muito problemática; não me posso

permitir ser a causa do desperdício de sua boa vontade. Não - é melhor

que o novo hospital seja agregado à velha enfermaria e que tudo conti-

nue como se eu nunca tivesse aparecido aqui. Desde que assumi o co-

mando, mantive um valioso registro que enviarei ao homem que há de

fazer uso dele," concluiu amargamente. "Em nada poderei pensar por

um bom tempo, a não ser em ganhar dinheiro."

"Muito me maltrata ouvi-lo falar com tal desesperança," disse

Dorothea. "Seria uma alegria para os seus amigos, que acreditam em

seu futuro, em sua capacidade de realizar grandes coisas, se o senhor os

deixasse livrá-lo disto. Pense em quanto dinheiro eu tenho; seria para

mim como tirar-me um peso das costas, se a cada ano um pouco lhe

coubesse, até o senhor se desembaraçar desse estorvo que é a sua falta

de renda. Por que não fazem as pessoas tais gestos? Se é tão difícil tor-

nar as partes iguais, este é um caminho."

"Deus a abençoe, Mrs. Casaubon! " disse Lydgat.e. levantando-se, como

que pelo mesmo impulso que lhe infundia energia às palavras, para pou-

sar um braço no encosto da poltrona grande de couro em que estivera

sentado. " bom que a senhora tenha estes sentimentos. Mas não sou o

homem capaz de concordar em deles tirar proveito. Eu não tenho dado

garantias suficientes. E pelo menos não devo rebaixar-me à degradação de

ser subvencionado por um trabalho que nunca completei. Para mim está

muito claro que não me cabe contar com nada mais, a não ser sair de

Middemarch o mais breve possível. Na melhor das hipóteses, eu levaria

um longo tempo para obter aqui uma renda, e - e é mais fácil partir para

MIDDLEMARCH

803

as mudanças necessárias num lugar novo. Devo fazer como os outros ho-
mens, pensar no que agrada ao mundo e dá dinheiro; procurar uma brecha

na multidão de Londres e me empurrar por ela; estabelecer-me numa es-

tação de águas, ou ir para uma cidade do Sul onde haja ingleses ociosos

aos montes, e apregoar meu valor - é numa espécie de concha assim que

eu me devo enfiar, e dentro dela tentar manter a alma viva."

"Bem, não há grandeza," disse Dorothea, - "em renunciar à luta."

"Não, não há grandeza," disse Lydgate, "mas e se o homem tiver

medo de uma paralisia rastejante?" Depois, noutro tom: "Todavia, a

senhora já produziu grande mudança em minha coragem, acreditando

em mim. Tudo me parece mais suportável depois da nossa conversa;

ficar-lhe-ei imensamente grato se puder justificar-me junto a uns pou-

cos, especialmente o Farebrother. Peço-lhe apenas não mencionar o fato

da desobediência às minhas ordens, que logo seria destorcido. Afinal,

não há prova a meu favor além da opinião que já se tinha de mim. Espe-

ro que a senhora só repita o que eu lhe disse a meu próprio respeito."

"Mr. Farebrother acreditará - outros acreditarão," disse Dorothea.

"O que posso dizer sobre o senhor há de tornar uma estupidez supor

que se deixasse subornar para praticar uma infâmia."

"Não sei não," disse Lydgate, com sua voz a sair como um gemido.

"Nunca até hoje eu aceitei um suborno. Mas há um pálido matiz de

corrupção que às vezes é chamado de prosperidade. A senhora me faria

então outra grande gentileza, que é ir visitar minha esposa?"

"Sem dúvida, Lembro-me de quão bonita ela é," disse Dorothea,

em cuja mente as impressões sobre Rosamond haviam calado fundo.

"Espero que ela goste de mim."

Quando já se afastava a cavalo, Lydgate pensou: "O coração desta

jovem criatura é tão grande quanto o da Virgem Maria. Evidentemente

ela não pensa no seu próprio futuro e logo dilapidaria a metade de suas

rendas, como se nada quisesse para si além de um trono onde instalar-se

e do qual abaixar seus olhos claros para os pobres mortais que lhe diri-

jam preces. Parece ter o que eu antes nunca vi noutra mulher - um


reservatório de amizade pelos homens - um homem pode torná-la sua

amiga. Terá sido o Casaubon quem nela despertou uma alucinação he-

róica? Teria ela por um homem, pergunto-me, um outro tipo de paixão?

Ladislaw? - certamente houve entre eles um sentimento incomum. E o

Casaubon deve ter desconfiado. Bem - seu amor ajudaria mais um ho-

mem do que seu dinheiro."

Dorothea, por seu turno, formulou imediatamente um plano para

libertar Lydgate da obrigação com BuIstrode, certa de que esta era uma

804

GEORGE ELIOT

parte, embora pequena, da pressão que ele tinha de suportar. Sem per-

der tempo, e sob a inspiração da conversa, sentou-se para escrever uma

breve carta na qual alegava ter mais direito do que Mr. BuIstrode à satis-

fação de proporcionar a Lydgate o dinheiro que lhe havia sido útil - e

que seria indelicado, da parte deste, não reconhecê-la em condições de

ajudá-lo nesta questão irrisória, pois na realidade o favor era prestado a

ela, que tinha tão poucas finalidades concretas às quais destinar o seu

dinheiro supérfluo. Que ele a considerasse um credor, ou o que bem

quisesse, desde que sua aquiescência ao pedido ora feito fosse garanti-

da. Anexando-lhe um cheque de mil libras, ela então resolveu que leva-

ria a carta consigo, no dia seguinte, quando fosse visitar Rosamond.

CAPÍTULO LXXV11

"And thus thy fall hath left a kind of blot,

To mark the fuIl-fraught man and best indued

With some suspicion."


- Henry V

CE assim tua queda deixou uma espécie de mancha,

Para marcar o homem mais bem provido e dotado

Com alguma suspeita.")

- Henrique V."

NO DIA SEGUINTE, TENDO de ir a Brassing, Lydgate disse a Rosamond

que ficaria fora até a noite. Ultimamente ela não saía de casa nem do seu

jardim, a não ser para ir à igreja e, uma vez, para estar com seu pai, a

quem dissera: "Se o Tertius se for, o senhor nos ajudará na mudança,

não é, papai? Acho que teremos muito pouco dinheiro. Mas estou certa

de que alguém nos dará ajuda." E Mr. Vincy respondera: "Sim, minha

filha, até cem ou duzentas libras, não me importo. Posso chegar a isto."

Tirante estas exceções ela se mantinha em casa em lânguida melancolia

e suspense, fixando-se na vinda de Wíll Ladislaw como seu grande pon-

to de esperança e interesse, e associando-a a uma nova insistência com

Lydgate por preparativos imediatos para sair de Middemarch e ir para

Londres, até sentir-se segura de que a vinda seria para a ida uma potente

causa, embora sem saber direito como. Tal modo de estabelecer seqüên-

cias é por demais comum para que se a possa considerar imparcialmente

como doidice peculiar a Rosamond. E é exatamente este tipo de seqüên-

Ve Shakespeare (Ato 11, Cena 2, linhas 138-140).

806

GEORGE ELIOT

cia que ao romper-se provoca o maior choque: pois ver como pode ser
causado um efeito é muitas vezes ver possíveis falhas e entraves; mas

nada ver senão a desejável causa e, logo após, o desejável efeito, livra-

nos da dúvida e nos torna a mente fortemente intuitiva. Era por este

processo que a pobre Rosamond passava, enquanto arrumava os obje-

tos que a rodeavam com o capricho de sempre, embora com maior lenti-

dão - ou se punha ao piano, resolvida a tocar e logo desistindo, mas

mantendo-se no tamborete com os dedos brancos suspensos sobre as

teclas inertes e olhando para a frente num sonhador enfado. já se torna-

ra tão pronunciada sua melancolia, como um perpétuo e caeado reproche,

que Lydgate sentia em face dela uma timidez estranha, e o homem forte,

dominado por sua aguda sensibilidade àquela frágil criatura cuja vida ele

parecia ter de algum modo magoado, evitava-lhe o olhar e sobressalta-

va-se às vezes à sua aproximação, pois ainda com mais força se precipi-

tava em seu íntimo, após ter sido momentaneamente expelido por exas-

peração, o medo dela e por ela.

Mas nessa manhã Rosamond desceu de seu quarto no andar de cima

- onde ela às vezes passava o dia todo quando Lydgate saía - pronta

para ir à rua. Tinha uma carta para pôr no correio - uma carta endereçada

a Mr. Ladislaw e escrita com encantadora discrição, mas prevista, por

uma alusão aos problemas, para apressar sua vinda. Sua criada, agora a

única empregada da casa, viu-a descendo a escada em seu traje de pas-

seio e pensou: "Nunca ninguém ficou tão linda assim de chapéu, coitadi-

nha."

A mente de Dorothea, enquanto isso, ocupava-se de seu projeto de

ir à casa de Rosamond e dos muitos pensamentos sobre o passado e o

provável futuro que se juntavam em torno da perspectiva desta visita.

Até a véspera, quando Lydgate lhe permitira um vislumbre dos proble-

mas de sua vida conjugal, a imagem de Mrs. Lydgate sempre se associara

para ela à de Will Ladislaw. Mesmo nos momentos mais intranqüilos -

mesmo quando perturbada pelos mexericos pitorescos mas dolorosos

de Mrs. Cadwallader - seu esforço, ou melhor, seu mais forte impulso,


fora defender Will de todas as conjecturas que o deslustrassem; e quan-

do, em seu posterior encontro com ele, ela a princípio lhe interpretara as

palavras como provável alusão a um sentimento por Mrs. Lydgate, com

o qual ele estava decidido a não ser condescendente, a Dorothea ocorre-

ra uma visão rápida e triste, que o desculpava, do encanto talvez presen-

te nas constantes oportunidades que ele tinha de desfrutar da compa-

nhia de uma mulher tão bela, que devia partilhar de seus outros gostos,

como evidentemente partilhava de seu deleite com a música. A isto po-

MIDDLEMARCH

807

rém seguiram-se suas palavras de adeus - as poucas palavras apaixona-

das com que ele havia indicado que o objeto temido por seu amor era

ela própria, que era o amor tão-só por ela que ele estava resolvido a não

declarar, e sim a levar no banimento consigo. Desde o momento desta

despedida, Dorothea, acreditando no amor que Will lhe tinha, acredi-

tando com orgulhoso prazer em seu apurado senso de honra e sua deter-

minação de que ninguém o atacasse por motivos justos, sentiu o coração

aquietar-se de todo em relação à estima que ele podia nutrir por Mrs.

Lydgate. Estava certa de que esta estima era irreprochável.

Há naturezas que, se nos amam, fazem-nos conscientes de termos

uma espécie de batismo e consagração: que nos obrigam à retidão e à

pureza por sua crença pura em nós; e nossos pecados tornam-se então

um sacrilégio da pior espécie, a desfazer em pedaços o invisível altar da

confiança. "Se você não for bom, ninguém é bom" - estas palavrinhas

podem dar um terrível significado à responsabilidade, podem dar ao re-

morso uma intensidade vitriólica.

A natureza de Dorothea era desta espécie: até mesmo seus defeitos

apaixonados jaziam ao longo dos canais abertos e sempre disponíveis


de seu caráter ardente; e, se bem fosse cheia de compaixão pelos visíveis

erros alheios, ela entretanto não dispunha de material, no âmbito de sua

experiência, para construções sutis e suspeitas de mal oculto. Esta sua

simplicidade, mantendo erguido um ideal para os outros em sua crédula

concepção sobre eles, era porém um dos grandes poderes da sua condi-

ção de mulher, que desde o início havia agido fortemente sobre Will

Ladislaw. Ao fazer suas despedidas, ele sentiu que as breves palavras

pelas quais lhe tentara transmitir seu amor e o abismo criado pela rique-

za dela entre ambos só viriam a ser benéficas, pela própria brevidade,

quando Dorothea tivesse de interpretá-las: sentiu haver-se encontrado,

junto ao espírito dela, na mais alta estima.

E estava certo quanto a isto. Nos meses subseqüentes à separação,

Dorothea sentiu por sua vez uma paz deliciosa e triste na relação que os

unia, tomando-a por uma relação que era inteira e sem mácula. Havia

em seu íntimo uma ativa força de antagonismo, quando este se voltava

para a defesa de planos ou pessoas em que ela acreditava; e o mal a seu

ver feito a Will por seu marido, bem como as condições externas que a

outros davam razões para menosprezálo, apenas infundiam mais tena-

cidade à sua admiração e afeto. E agora, com as revelações sobre

BuIstrode, viera à luz mais um fato para afetar a posição social de Will, o

qual reavivava a resistência interior de Dorothea ao que sobre ele era

dito naquela parte de seu mundo contida entre as cercas de um parque.

808

GEORGE ELIOT

A frase "o jovem Ladislaw, neto de um penhorista judeu ladrão,"

havia enfaticamente entrado nas conversas sobre o caso BuIstrode, em

Lowick, Tipton e Freshitt, e era ainda pior, como um cartaz pendurado

nas costas do pobre Will, do que o "italiano com ratos brancos." O hon-
rado Sir James estava convencido da retitude de sua própria satisfação

ao pensar com certa complacência que havia uma légua acrescentada à

montanhosa distância entre Ladislaw e Dorothea, a qual o capacitava a

excluir, como por demais absurda, qualquer ansiedade nesta direção. E

talvez tenha tido algum prazer ao chamar a atenção de Mr..Brooke para

este desagradável senão na genealogia de Ladislaw como uma nova luz

sob a qual ele ver seu próprio equívoco. Dorothea observara a animosi-

dade com que a parte de Will na dolorosa história fora mais de uma vez

trazida à baila; mas não pronunciara uma só palavra, sendo agora conti-

da, como antes não o era quando falava de Will, pela consciência de uma

relação mais profunda entre eles dois, que devia manter-se sempre em

consagrado sigilo. Seu silêncio conferia-lhe à emoção resistente uma

veemência maior; e este infortúnio na sorte de Will, que os outros pare-

ciam querer atirar-lhe como um opróbrio às costas, apenas dava algo

mais de entusiasmo a seu fiel pensamento.

Não vislumbrava ela a hipótese de eles chegarem jamais a uma união

mais estreita, muito embora não houvesse assumido postura de renún-

cia. Simplesmente aceitara a relação com Will como parte das mágoas

de seu casamento, e tomaria por bem pecaminoso lastimar-se no íntimo

de não ser completamente feliz, já que tinha mais propensão a atardar-

se nas superfluidades que o destino lhe dera. Era capaz de suportar que

residissem na memória as alegrias essenciais de sua ternura, e a idéia de

casamento só lhe vinha enquanto repulsiva proposta de um eventual

pretendente do qual ela não sabia nada por ora, mas cujos méritos, quan-

do vistos por seus parentes, pareciam-lhe fonte de tormentos: - "al-

guém que há de cuidar dos seus bens para você, querida," foi a atraente

sugestão feita por Mr. Brooke das características que mais convinham.

"Eu mesma gostaria de incumbir-me disto, se soubesse o que fazer com

meus bensf disse Dorothea. Não - ela se mantinha fiel à declaração de

que nunca se casaria de novo e, no extenso vale de sua vida, que se

mostrava tão uniforme e desprovido de marcos, a orientação lhe haveria


de vir enquanto ela andava pela estrada, vendo a caminho os compa-

nheiros de viagem.

Em todas as horas de vigília, desde que ela se propusera a fazer uma

visita a Mrs. Lydgate, este estado habitual de seus sentimentos sobre

Will Ladislaw mantivera-se exacerbado, criando um fundo contra o qual

MIDDLEMARCH

809

a figura de Rosamond lhe era apresentada sem nenhum embaraço para

seu interesse e compaixão. Havia evidentemente alguma separação men-

tal, alguma barreira à confiança completa erguida entre esta esposa e o

marido, que da felicidade dela tinha feito no entanto uma lei para si. Eis

aí um problema no qual uma terceira pessoa não devia tocar diretamen

te. Mas com muita pena Dorothea pensava na solidão que deveria ter-se

abatido sobre Rosamond com as suspeitas Iançadas sobre seu marido; e

uma manifestação de respeito por Lydgate e de simpatia por ela seria

certamente uma ajuda.

"Vou-lhe falar de seu marido," pensava Dorothea, enquanto a carrua-

gem a levava à cidade. A clara manhã de primavera, o cheiro de terra

molhada, as folhas tenras, mostrando apenas a exuberância retorcida do

verdor que emanava de suas semi-abertas bainhas, pareciam parte da

animação que ela sentia após longa conversa com Mr. Farebrother, o

qual alegremente aceitara a detalhada justificação dacondutade Lydgate.

"Vou dar boas notícias a Mrs. Lydgate, e talvez ela concorde em me falar

e se tornar minha amiga."

Outra incumbência fazia Dorothea ir a Lowick Gate: algo que dizia

respeito a um novo sino de belo som para a escola e, como ela tinha de

descer da carruagem muito perto da casa de Lydgate, foi caminhando

pela rua até lá, após mandar que o cocheiro ficasse à espera de uns paco-
tes. A porta de entrada estava aberta e a criada aproveitava a ocasião

para espiar a carruagem estacionada ali perto, até entender que a senho-

ra que "saltara de dentro" já vinha vindo em sua direção.

"Mrs. Lydgate está em casa?" perguntou Dorothea.

"Não tenho certeza, minha senhora; entre, por favor, que eu vou

ver," disse Martha, meio confusa por causa de seu avental de cozinha,

mas ainda assim bastante calma para saber que "madame" não era o

título adequado àquela régia e jovem viúva com uma parelha na carrua-

gem. "Queira entrar que vou ver."

"Diga que é Mrs. Casaubon," disse Dorothea, enquanto Martha to-

mava a dianteira para conduzi-la à sala de visitas e depois subir a ver se

Rosamond já voltara de seu passeio.

Passando pela parte mais larga do vestíbulo, elas dobraram no cor-

redor que ia para o jardim. A porta da sala não estava trancada, e Martha,

empurrando-a sem olhar para dentro, esperou que Mrs. Casaubon a cru-

zasse e depois se afastou, tendo a porta sido aberta e fechada sem fazer

barulho.

Repleta de imagens de como as coisas tinham sido e iam ser, Dorothea

nessa manhã estava menos interessada no mundo exterior que de hábi-

810

GEORGE ELIOT

to. Encontrou-se do outro lado da porta sem que nada de notável lhe

chamasse a atenção, mas logo ouviu uma voz falando baixo que a fez

estremecer com a impressão de sonhar à luz do dia e, avançando sem

refletir um ou dois passos além da prateleira em ressalto de uma estan-

te, viu, à terrível luz de uma certeza que aclarava todos os contornos,

uma coisa que a fez parar imóvel, sem suficiente autocontrole para falar.

Sentado de costas para ela num sofá contra a parede e alinhado com
a porta por onde havia entrado, viu Will Ladislaw: junto, virada para ele

com um lacrimejante rubor que lhe dava ao semblante um " novo brilho,

sentava-se Rosamond, de chapéu caído para trás, enquanto Will, incli-

nado para ela, cerrava-lhe as mãos nas suas e falava com discreto fervor.

Em sua agitada absorção Rosamond não notara a figura que avança-

va em silêncio; mas quando Dorothea, após o primeiro e imensurável

instante desta visão, sem jeito tentou retroceder e se viu bloqueada por

um móvel bruscamente Rosamond notou sua presença e, com um mo-

vimento espasmódico, puxou as mãos e se ergueu, olhando para Dorothea

que estava inevitavelmente detida. Will Ladislaw, levantando-se num

ímpeto, olhou também ao redor e, ao encontrar os olhos de Dorothea,

nos quais luzia um brilho novo, pareceu transformar-se em mármore.

Mas imediatamente ela os deviou dele para Rosamond e, numa voz fir-

me, disse:

"Desculpe-me, Mrs. Lydgate, a criada não sabia que a senhora esta-

va aqui. Vim trazer uma carta para Mr. Lydgate, que é importante e eu

queria deixar em suas mãos."

Em seguida ela depôs a carta na mesinha que lhe havia barrado a

retirada e, incluindo Rosamond e Will numa mesma mirada e curvatura

distantes, saiu rapidamente da sala para encontrar no corredor a surpre-

sa Martha, a qual disse que a patroa não estava em casa e acompanhou

à saída a estranha dama, pensando que as pessoas da alta roda eram

provavelmente mais impacientes que as outras.

Dorothea atravessou a rua com seus passos mais elásticos, e logo

estava na carruagem de novo.

"Leve-me a Freshitt HalI," disse ao cocheiro; quem quer que a olhas-

se poderia pensar que, embora mais pálida que de costume, nunca ela

estivera animada por uma energia assim tão segura. E era isto de fato o

que experimentava. Era como se ela houves se tornado um grande gole

de desprezo que a estimulava além da susceptibilidade a outros senti-

mentos. Tinha visto uma coisa tão abaixo da sua capacidade de crer, que
suas emoções retrocediam de lá para sem objetivo juntarem-se em exci-

tado tropel. Precisava de alguma atividade à qual destinar sua excitação.

MIDDLEMARCH

811

Sentia forças para trabalhar e andar um dia inteiro sem comer nem be-

ber. E haveria de cumprir o designio com o qual se levantara pela ma-

nhã: ir a Freshítt e Tipton para contar a Sir James e a seu tio tudo o que

ela queria que os dois soubessem sobre Lydgate, cuja solidão conjugal,

sob a provação que ele vivia, agora lhe era apresentada com uma signifi-

cação toda nova, tornando-a mais ardente na disposição de ser sua de-

fensora. Nunca ela sentira nada como esta força triunfante de indignação

nos embates de seu próprio casamento, no qual sempre conhecera a dor

excruciante da submissão instantânea; e tomou isto por sinal de um

novo vigor.

"Seus olhos estão brilhando tanto, Dodo!" disse Celia, num mo-

mento em que Sirjames tinha saído da sala. "E você nem ve o que olha,

seja o Arthur, seja o que for. Desconfio que esteja por fazer uma extrava-

gância.  tudo mesmo sobre Mr. Lydgate, ou aconteceu mais alguma

coisa?" Celia já estava acostumada a observar, em expectativa, a irmã.

"Sim, querida, coisas muito importantes aconteceram," disse Dodo,

em seu timbre de voz mais forte,

"O que será?" disse Celia, ctizando os braços e se acomodando para

se dobrar para a frente.

"Oh, todos os problemas de todas as pessoas que vivem sobre a face

da Terra," disse Dorothea, a seu turno alçando os braços para trás da

cabeça.

"Meu Deus, estará você, Dodo, a formular um plano para todas elas?"

disse Celia, um pouco preocupada com este desvario à moda de Hamlet.


Mas Sir James já estava de volta, pronto para acompanhar Dorothea

à granja, e ela conduziu sua expedição a bom termo, não se desviando

da resolução que havia tomado até desembarcar à sua própria porta.

CAPÍTULO LXXVI11

Would it were yesterday an 1 i" the grave,

With her sweet faith above for monument.

€"Se ontem fosse e eu já na tumba estivesse,

Com sua doce confiança como monumento por cima.")

RoSAMOND E WILL FICARAM de pé e imóveis - sem saber por quanto

tempo - ele olhando para o ponto onde Dorothea estivera, ela olhando

para ele na dúvida. Por um tempo infindo, pareceu a Rosamond, no

recôndito de cuja alma havia menos incômodo do que gratificação com o

que tinha acabado de acontecer. Naturezas superficiais sonham com uma

fácil ascendência sobre as emoções alheias, implicitamente confiando

em sua própria e fútil magia para desviar as mais profundas torrentes e

certas de fazer, por fúteis gestos e reparos, com que aquilo que não é

pareça ser. Ela sabia que Will recebera um golpe drástico, mas estava

pouco acostumada a imaginar o estado de espírito das outras pessoas, a

não ser como material a moldar para se adaptar aos seus desejos; e acre-

ditava em seu poder, fosse para apaziguar ou subjugar. Até mesmo Tertius,

o mais voluntarioso dos homens, a longo prazo era sempre subjugado:

por mais inflexíveis que os fatos fossem, Rosamond teria dito agora,

como o fazia antes de seu casamento, que nunca desistia de uma decisão

tomada por ela.

Estendendo o braço, pôs as pontas dos seus dedos na manga do

casaco de Will.

"Não me toque!" disse ele, expressão que saiu como uma chicotada,
e se atirou para longe, alternando-se da vermelhidão à brancura como se

todo o seu corpo estremecesse sob a dor de uma aguilhoada. Ao atingir

o outro extremo da sala, pôs-se de frente para ela, com as mãos nos

MIMUMARCH

813

bolsos, a cabeça jogada para trás, o olhar feroz aplicado não em Rosa-

mond, mas num ponto que lhe era contíguo.

Sentiu-se ela profundamente ofendida, se bem o denotasse por indí-

cios tão leves que só o próprio Lydgate, pelo hábito, seria capaz de in-

terpretar. Acalmada de súbito, sentou-se e desvencilhou-se do chapéu já

caído, pondo-o de lado com seu xale. Depois cruzou suas mãozinhas à

frente, que estavam gélidas.

Para Will teria sido mais seguro, antes de mais nada, apanhar seu

chapéu e ir-se embora; tal impulso porém não lhe ocorrera; ele fora to-

mado, pelo contrário, por uma horrível inclinação a ficar e destroçar

Rosamond com sua raiva. Suportar a fatalidade que ela havia atraído

sobre ele sem extravasar sua fúria parecia tão impossível quanto uma

pantera agüentar sem espernear e morder o golpe de uma azagaia. En-

tretanto - como poderia dizer a uma mulher que estava a ponto de

amaldiçoá-la? Sua ira se exalava sob uma lei repressiva que ele era obri-

gado a reconhecer: mantinha-se num perigoso equilíbrio, e a voz de

Rosamond trouxe a vibração decisiva quando agora, em tons flauteados

de sarcasmo, disse:

"Por que não vai atrás de Mrs. Casaubon e explica sua preferência?"

"Ir atrás dela!" atalhou ele em tom cortante. "Pois então acha que

ela iria virar-se a olhar para mim, ou ainda a qualquer palavra minha dar

mais crédito que às de uma pena sórdida? - Explicar! Como pode ex-

plicar-se um homem à custa de uma mulher?"


"Pode dizer-lhe o que bem queira," disse Rosamond, num frémito.

"Pensa que ela gostaria mais de mim se eu a sacrificasse? Não é

mulher que se deleite por eu me fazer desprezível - que acredite que eu

deva ser sincero com ela por ter sido covarde com você."

Com o desassossego de um animal selvagem, que avista a presa mas

não consegue alcançá-la, ele se pôs a andar ao redor. Depois se deu a

uma nova explosão:

"Eu não tinha esperança antes - não muita - de acontecer algo

melhor. Tinha porém uma certeza - que ela acreditava em mim. Fosse

o que fosse que dissessem ou fizessem a meu respeito, continuava a

não

crer. - Mas isto agora acabou! Nunca me tornará por outra coisa além

de um vil simulacro - muito exigente para aceitar o céu, a não ser em

condições lisonjeiras, e no entanto, à socapa, vendendo-me por qual-

quer preço ao diabo. Há de tomar-me pela encarnação de um insulto a

ela, desde o primeiro instante em que nós..."

Will se interrompeu, tal qual se visse segurando uma coisa que não

devia deixar cair e quebrar-se. E encontrou outro escoadouro para sua

814

GEORGE ELIOT

ira ao reapoderar-se das palavras de Rosamond, como se estas fossem

répteis para esganar e atirar fora.

"Explicar! Vá lá um homem explicar como foi que caiu no inferno!

Explicar minha preferência! Eu nunca tive uma preferência por ela, como

não tenho preferência por respirar. Não existe outra mulher a seu lado.

Tocar-lhe a mão, ainda que morta, causar-me-la mais agrado que tocar

na de outra, mesmo viva."

Rosamond, enquanto estas armas envenenadas eram arremessadas


sobre ela, ia quase perdendo seu senso de identidade e parecia despertar

para uma existência nova e terrível. Não lhe acudia uma idéia de repulsa

fria e resoluta, de autojustificação reticente, como as que já conhecera

ante as violentas ondas de indignação de Lydgate; toda a sua sensibili-

dade aferrava-se à novidade atordoante da dor; novo e terrível era o

recuo a que a impeliam estas invectivas até então não experimentadas

por ela. O que outra natureza sentia, em oposição à sua, ardia-lhe a

corroer a consciência. Ela já se transformara na imagem do mais absolu-

to sofrimento quando Will parou de falar: tinha os lábios sem cor e, nos

olhos, uma consternação sem lágrimas. Fosse Tertius o opositor, aquele

ar de sofrimento tê-lo-la também feito sofrer, e ele afundaria a seu lado

para consolá-la, com o consolo de seus braços tão fortes que tantas ve-

zes porém ela menosprezara.

Que Will seja perdoado, se não se deu aos mesmos gestos de

piedade. Nenhum laço prévio fazia-o sentir-se preso a esta mulher

que o espoliava do tesouro ideal de sua vida, e quanto a si ele se

considerava inocente. Sabia que era cruel, sem no entanto compade-

cer-se por ora.

Dava passos a esmo ainda, meio fora de si, quando acabou de falar,

ante Rosamond sentada na mais perfeita imobilidade. Finalmente Will

pegou seu chapéu, dando a impressão de refletir, mas se manteve

irresoluto por alguns momentos. Havia falado a ela de um modo que

tornava dificil de pronunciar uma frase comum de polidez; entretanto,

agora que já estava a ponto de partir sem dizer mais nada, recuava de tal

brutalidade; sentia-se refreado e estulto em sua cólera. Andou até a la-

reira, apoiou no consolo um braço e esperou em silêncio - mal sabia

por quê. O fogo vingativo ainda queimava em seu íntimo, impedindo-o

de proferir quaisquer palavras de retratação; não obstante estava em sua

mente que, tendo retornado a esta casa onde havia usufruído de uma

acolhedora amizade, ele ali encontrara a calamidade instalada - brus-

camente se lhe revelara um problema que tanto jazia fora quanto dentro
MIDDLEMARCH

815

do lar. E o que parecera um presságio constringia-o agora como tenazes

lentas: - que sua vida bem podia vir a tornar-se cativa desta mulher ao

desamparo, que se jogara sobre ele na árida tristeza de seu coração. Mas

sem alento ele se rebelava contra o fato que sua arguta apreensão lhe

prenunciara e, ao baterem seus olhos na face emurchecida de Rosamond,

pareceu-lhe que era ele o mais digno de pena dos dois: pois a dor deve

entrar para a vida glorificada da memória antes de poder transformar-se

em compaixão.

E assim, muito distantes e em silêncio, eles ficaram por seguidos

minutos um diante do outro; o rosto de Will ainda tornado por uma

raiva muda e, o de Rosamond, por um mudo sofrimento. A pobrezinha

não tinha forças para revidar com paixão; o terrivel colapso da ilusão

para a qual se deslocara toda a sua esperança foi um golpe que a dei-

xou profundamente abalada: em ruínas estava o seu mundinho, em

meio ao qual ela se sentia tão trôpega quanto uma consciência solitá-

ria e perplexa.

Wili desejava que ela falasse, apondo o lenitivo de uma sombra à

crueldade de suas próprias palavras, que pareciam postar-se a olhar para

ambos, zombando de qualquer tentativa de reviver a amizade. Mas ela

não disse nada, e ele, com um esforço desesperado para dominar-se,

afinal perguntou: "Devo vir logo à noite para estar com Lydgate?"

"Se quiser," respondeu Rosamond num fiapo de voz.

E então Will saiu da casa, sem que Martha jamais soubesse que ele

lá estivera.

Rosamond tentou levantar-se, depois de sua partida, mas afundou

num desmaio. Quando voltou a si, sentiu-se fraca até mesmo para ir
tocar a síneta e desamparada ficou, até que a rapariga, intrigada com sua

longa ausência, pensou pela primeira vez em procurá-la de peça em peça

do térreo. Rosamond lhe disse que, sentindo um brusco mal-estar, des-

maiara e precisava de ajuda para subir ao seu quarto. Uma vez lá, jogou-

se de roupa e tudo na cama e estendeu -se num aparente torpor, como

antes o fizera num memorável dia de desgosto.

Lydgate voltou mais cedo do que esperava, lá pelas cinco e meia, e

encontrou-a deitada. · constatação de que ela estava doente, tudo o

mais que lhe vinha ao pensamento foi recolhido a um segundo plano.

Quando tomou seu pulso, ela o olhou com uma insistência que há muito

não denotava, como se se sentisse feliz por ele ter-se feito presente.

Lydgate logo notou a diferença e, sentado ao lado, gentilmente passou-

lhe um braço pelas costas para se curvar e dizer: "Minha pobre Rosamond!

816

GEORGE ELIOT

alguma coisa a deixou perturbada?" Apegando-se a ele, ela explodiu em

gritos e soluços histéricos, e na hora seguinte ele não fez outra coisa

senão acalmá-la e atendê-la. Imaginou que Dorothea tinha vindo vê-la e

que todo este abalo em seu sistema nervoso, que evidentemente acarre-

tava um retorno do interesse por ele, era devido à excitação das novas

impressões causadas pela visita.

CAPITULo LXXIX

"Now, I saw in my dream, that just as they had ended their

talk, they drew nigh to a very miry slough, that was in the

midst of the plain; and they, being heedess, did both fall

suddenly into the bog. The name of the slough was


Despond."

- BUNYAN.

€T eu então vi em meu sonho que eles, tão logo terminada

sua conversa, se aproximaram de um atoleiro muito lama-

cento que ficava no meio da planície; e ambos, estando dis-

traídos, caíram repentinamente no pântano. O nome do

atoleiro era Desalento."

- BUNYAN.I

QUANDo ROSAMOND se acalmou, Lydgate deíxou-a, na esperança de que

ela talvez dormisse logo sob o efeito de um anódíno, foi à sala de visitas

apanhar um livro que lá havia deixado, tencionando passar a noite em

seu gabinete de trabalho, e viu em cima da mesa a carta de Dorotnea

endereçada a ele. Não se aventurara a perguntar a Rosamond se Mrs.

Casaubon tinha vindo, mas a leitura da carta assegurou-o do fato, pois

Dorothea aí mencionava a intenção de a entregar em pessoa.

Um pouco depois, quando chegou Will Ladislaw, a surpresa com

que Lydgate o recebeu deixava claro que ele não fora informado da visita

anterior, e Will não podia perguntar: "Mrs. Lydgate não lhe disse que eu

estive aqui de manhã?"

INgrím"s Progress (1678).

818

GEORGE ELIOT

"Rosamond, coitada, está doente " disse Lydgate logo depois de o


saudar.

"Espero que não seja grave," disse Will.

"Não - apenas um ligeiro choque nervoso - em decorrência de algu-

ma agitação. Ultimamente ela anda muito excitada. A verdade, Ladislaw,

é que eu sou um grande azarado. Desde a sua partida, passamos por vá -

rios círculos do purgatório, e não faz muito me vi na pior etapa de todas.

Suponho - por seu ar de desalinho - que só há pouco você tenha chega-

do. Ainda não teve tempo de ouvir nada aqui na cidade?" ,

"Viajei a noite toda e às oito da manhã de hoje saltei no White Hart,

onde me tranquei para descansar um pouco," disse Will, sentindo -se

um covarde, mas não vendo alternativa para este subterfúgio.

A seguir ele ouviu o relato de Lydgate sobre os problemas que, a seu

modo, Rosamond já lhe havia esboçado. Ela porém não aludira ao fato

de o nome de Will estar ligado à história corrente - pois o detalhe, de

imediato, não a afetava - e ele agora pela primeira vez soube disto.

"Achei melhor informá-lo de que seu nome foi envolvido nas revela-

ções," disse Lydgate, que era capaz de entender, mais que a maioria dos

homens, como Ladislaw se melindraria com isto. "Certamente vão-lhe

falar a respeito, tão logo você saia pela cidade. Suponho que o que Raffies

lhe contou seja verdade."

"Sim," disse Will sardonicamente. "Serei feliz se o disse-me-disse

não me transformar na mais ignominiosa das pessoas a que a questão se

refere. Temo que a mais recente versão seja que eu me mancomunei com

o Raffies para assassinar o BuIstrode, e que por isto fugi de Middemarch."

Ele estava pensando: "Há aqui um novo timbre no som de meu nome

para recomendá-lo aos ouvidos dela; contudo - que significa isto agora?"

Mas nada disse da oferta que BuIstrode lhe fez. Will era muito fran-

co e descuidado em relação aos seus assuntos particulares, mas entre os

toques mais primorosos com que a natureza o modelara estava o de ele

ter uma generosidade delicada que o induziu aqui à reserva. Eximiu-se

de dizer que havia rejeitado o dinheiro de BuIstrode, no momento em


que ficava sabendo que a desgraça de Lydgate fora aceitá-lo.

Lydgate também foi reservado em suas confidências. Não fez alusão

aos sentimentos de Rosamond em seu infortúnio, e de Dorothea disse

apenas: "Mrs. Casaubon foi a única pessoa a se adiantar e dizer que não

acreditava em nenhuma das suspeitas contra mim." Observando uma

mudança no rosto de Will, ele evitou outras menções ao nome dela,

sentindo-se muito desinformado da relação entre os dois para não te-

mer que suas palavras pudessem ter sobre a mesma alguma inintencional

MIDDLEMARCH

819

significação penosa, E ocorreu-lhe que Dorothea era a causa real da pre-

sente visita a Middemarch.

Os dois homens apiedavam-se mutuamente, mas somente Will adí-

vinhava a extensão do problema do companheiro. Quando Lydgate fa-

lou com desesperada resignação de ir estabelecer-se em Londres, e dis-

se, com um sorriso pálido: "Vamos tê-lo novamente conosco, amigo ve-

lho," Will sentiu-se inexprimivelmente acabrunhado, e não disse nada.

Rosamond lhe havia suplicado na manhã desse mesmo dia que instasse

com Lydgate para dar este passo; e parecia-lhe estar contemplando num

panorama mágico um futuro no qual ele mesmo deslizava para esse

desprazível ceder às pequenas solicitações das circunstâncias, que é uma

história de perdição mais comum que qualquer simples barganha mo-

mentânea.

Estamos numa margem perigosa quando começamos a olhar passi-

vamente para quem seremos no futuro, e vemos nossas próprias figuras

levadas com apático consentimento a insípidas iniqüidades e realiza-

ções medíocres. O pobre Lydgate gemia interiormente nesta margem,

enquanto Will a atingia. Parecia-lhe nessa noite que a crueldade de sua


explosão com Rosamond criara para ele uma obrigação, a qual lhe dava

temor: ele temia a boa vontade, isenta de suspeitas, de Lydgate: e temia

seu próprio desagrado por sua vida estragada, doravante vazia e sem

objetivos.

CAPÍTULo LXXX

"Stern lawgiver! yet thou dost wear

The Godhead"s most benignant grace;

Nor know we anything so fair

As is the smile upon thy face;

Flowers laugh before thee on their beds,

And fragrance in thy footing treads;

Thou dost preserve the Stars from wrong;

And the most ancient Heavens, through thee, are fresh and strong."

WORDSWORTH: Ode to Duty.

("Duro legislador! que usas porém

A graça mais benigna da divindade;

Não conhecemos nada tão sereno

Como o sorriso em tua face;

Flores riem para ti nos canteiros,

E em teus passos há traços de fragrância,

·s Estrelas tu preservas de errância;

Os mais antigos Céus, por ti, são fortes e fagueiros.")

- WORDSWORTH: Ode ao dever.

DOROTHEA, QUANDO estivera com Mr. Farebrother pela manhã, prome-

teu ir jantar no presbitério quando voltasse de Freshitt. Havia uma fre-


qüente troca de visitas entre ela e a família Farebrother, a qual lhe per-

mitia dizer não estar de todo sozinha no solar, e a resistir por ora à

severa prescrição de uma dama de companhia. Quando chegou em casa

e se lembrou de seu compromisso, ela se alegrou; e, constatando que

ainda tinha uma hora antes de se vestir para o jantar, foi direto até a

escola e entrou numa conversa com o mestre e a esposa sobre o novo

MIDDLEMARCH

821

sino, dando toda atenção aos pormenores e repetições do que diziam e

tomando consciência de estar, ela própria, com a vida muito ocupada.

No caminho de volta, parou para conversar com o velho Buriney, que

estava fazendo uma sementeira, e prudentemente se entreteve com este

sábio rural sobre que plantas rendiam mais em determinado terreno, e o

resultado de sessenta anos de experiência com solos - ou seja, se o solo

fosse muito rico, nunca havia problema, mas se viesse água, água, água

para deixá-lo empapado, bem, aí então -

Achando que o espírito de sociabilidade, distraindo-a, a fizera atra-

sar-se, vestiu-se às pressas e foi para o presbitério mais cedo que o neces-

sário. Esta casa nunca era desanimada, pois Mr. Farebrother, como um

novo White de Selborne, 1 sempre tinha uma coisa nova a contar de seus

hóspedes e protégés inartículados, que ele ensinava os garotos a não ator-

mentar; e havia acabado de soltar dois belos bodes para serem mascotes

da aldeia em geral, e andarem à vontade como animais sagrados. A noite

transcorreu alegre até depois do chá, Dorothea conversando mais que de

hábito e se estendendo com Mr, Farebrother sobre as histórias possíveis

das criaturas que conversam copiosamente através das antenas e que, por

tudo quanto sabemos, podem ter parlamentos reformados; de repente a

atenção de todos foi chamada por alguns sons inarticulados.


"Henrietta Noble," disse Mrs. Farebrother, vendo sua irmã tão pe-

quena a se mover aflita entre os pés dos móveis, "qual é o problema?"

"Perdi minha caixinha de pastilhas, que é de casco de tartaruga. Temo

que o gato a tenha carregado," disse a velhinha, prosseguindo involun-

tariamente com seus guinchos de castor.

" um grande tesouro, tia?" disse Mr. Farebrother, colocando seus

óculos para olhar no tapete.

"Foi Mr. Ladislaw quem me deu," disse Miss Noble. " alemã - e

muito bonitinha; mas, sempre que cai, vai rolando cada vez mais longe."

"Oh, se é um presente do Ladislaw," disse Mr. Farebrother, em tom

profundo de compreensão, já de pé à procura. A caixa foi afinal encon-

trada embaixo de um pequeno armário, e Miss Noble apanhou-a com

alegria, dizendo: "Da última vez estava embaixo de um guarda-fogo."

"Para a minha tia, é uma questão do coração," disse Mr. Farebrother,

sorrindo para Dorothea ao sentar-se de novo.

"Quando Henrietta Noble cria uma ligação com alguém, Mrs.

Casaubon," disse a mãe dele, enfaticamente, - "ela é como um cachor-

ro - pegaria seus sapatos por travesseiro e dormiria melhor."

10 naturalista Gilbert White (1720-1793), pastor de Selborne,

822

GEORGE ELIOT

"Os sapatos de Mr. Ladislaw, sim," disse Henrietta Noble.

Dorothea fez uma tentativa de retribuii ao sorriso. Ficou surpresa e

perturbada ao descobrir que seu coração palpitava violentamente, e que

era inútil tentar recuperar sua animação de antes. Alarmada consigo

mesma - temendo alguma nova indicação de uma mudança tão marcada

na ocasião, levantou-se e disse em voz baixa, com indifarçada impaciên-


cia: "Tenho de ir-me; o cansaço me vence."

Mr. Farebrother, rápido na percepção, levantou-se também e disse:

" verdade; a senhora há de quase ter-se exaurido, falando sobre Lydgate.

Este tipo de trabalho, passada a excitação, se reflete na gente."

Deu-lhe o braço no retorno ao solar, mas Dorothea não tentou falar,

nem mesmo quando ele lhe disse boa-noite.

O limite de resistência fora atingido, e de novo ela afundara indefesa

nas garras de uma incontrolável angústia. Dispensando Tantripp com

palavras poucas e fracas, trancou sua porta e, dela se virando para o

vazio do quarto, ergueu as mãos ao alto da cabeça, comprimiu-a com

força e soltou um gemido:

"Oh, eu o amava!"

Todo o seu poder de pensar foi-se-lhe na hora seguinte com o abalo

profundo provocado pelas ondas de dor. Só podia chorar, com exclamações

entre os soluços, pela perda da crença que ela havia plantado e mantido

viva a partir de uma sementinha desde os dias em Roma - pela perda da

alegria de ligar-se com mudo amor e confiança a um homem que, despreza-

do pelos outros, era digno no seu pensamento - pela perda do seu orgulho

de, como mulher, reinar na memória dele - por sua perspectiva doce e vaga

de esperança de que, ao longo de algum caminho, eles se reencontrassem

os mesmos, retomando como um ontem os anos tão para trás.

Nessa hora ela repetiu o que os olhos misericordiosos da solidão

têm visto era após era nos embates espirituais do homem - implorou

ao frio, à dureza, à dorida exaustão que a aliviassem do misterioso e

incorpóreo poder da sua angústia: deitou-se no chão sem nada, dei-

xando a noite avançar e esfriar ao redor; enquanto seu corpo de mulher

adulta era abalado por soluços como se ela fosse uma criança em de-

sespero.

Havia duas imagens - duas formas vivas que lhe partiam o coração

em dois, como se fosse um coração de mãe que parece ver o filho dividi-

do pela espada, e aperta no peito uma metade em sangue, enquanto em


agonia seu olhar segue a outra que é levada pela mulher mentirosa que

nunca conheceu o sofrimento materno.

MIDDLEMARCH

823

Aqui, aproximando-se com um atencioso sorriso, aqui, nos laços vi-

brantes de uma conversa a dois, estava a bela criatura em quem ela

havia confiado - vindo a ela como o espírito da manhã em visita à

escuridão na qual se mantinha, como jovem esposa de uma vida estéril;

e agora, com consciência plena e nunca antes despertada, ela estendia os

braços para ele e gritava, com amargos gritos, que sua proximidade era

uma cena de adeus: era na inflexível manifestação do desespero que ela

se revelava sua paixão.

E além, ao longe, no entanto persistentemente com ela, movendo-

se onde se movia, estava o Will Ladislaw que era uma crença transfor-

mada, destituída de esperança, uma ilusão detectada - não, um ho-

mem vivo por quem nenhum lamento de pena podia erguer-se e lutar

em meio ao desprezo e indignação e orgulho ciumento ofendido. O

fogo da cólera de Dorothea não se extinguiu facilmente, mas consu-

miu-se em retornos espasmódicos de acerba reprovação. Por que viera

ele impondo sua vida à dela" que sem ele poderia ser bem completa?

Por que rendera suas homenagens baratas, seus louvores fingidos, a

ela que nada tinha de reles para dar em troca? Ele sabia que a iludia -

no próprio momento de adeus queria fazê-la acreditar que lhe dava

todo o preço do seu coração de mulher, sabendo que antes já havia

gasto a metade. Por que não ficara ele na multidão daqueles aos quais

nada pedia - ela que somente rezava para que fossem menos despre-

zíveis?

Mas por fim ela perdeu suas forças para gemer e chorar: foi aquietan-
do-se em soluços fracos, e no chão frio soluçou até pegar no sono.

Em pleno frio da madrugada, com tudo ainda impreciso ao redor,

despertou - não surpresa de onde estava ou do que tinha acontecido,

mas com a consciência mais clara de estar olhando o sofrimento de face,

olho no olho. Levantou-se e, agasalhando-se bem, sentou-se numa grande

poltrona onde antes ficara com freqüência em vigília. Era bastante vigorosa

para agüentar essa noite dura sem sentir grandes males, além de fadiga e

algumas dores no corpo; mas havia despertado num novo estado: como

se sua alma tivesse sido liberada de seu terrível conflito; ela não mais

lutava com sua dor: já podia sentar-se com esta por leal companheira,

fazendo-a partilhar de seus pensamentos. Pois agora os pensamentos

vinham em massa. Não estava na natureza de Dorothea, por mais tem-

po que a duração de um paroxismo, sentar-se na cela estreita de sua in-

felicidade, na embrutecida consciência que só vê o destino alheio como

acidente do seu.

824

GEORGE ELIOT

Ela então começou a reviver deliberadamente a manhã da véspe-

ra, forçando-se a demorar-se em cada detalhe e seu possível significa-

do. Estava sozinha em tal cenário? Só a ela ocorria o fato? Forçou-se

a pensar como se o visse ligado à vida de outra mulher - a cuja pro-

cura havia ido com um desejo de aclarar e consolar-lhe um pouco a

anuviada juventude. Em seu primeiro arroubo de indignação ciumen-

ta e de desgosto, quando saiu da odiosa sala, despira-se de toda a

compaixão com a qual empreendera a visita. Em seu desprezo abra-

sador, envolvera tanto Will quanto Rosamond, parecendo.-lhe que esta

se queimava, a desaparecer para sempre dos seus olhos. Mas este

impulso baixo, que torna uma mulher mais cruel com uma rival que
com um amante infiel, não podia ter condições de ressurgir em

Dorothea quando o espírito de justiça dominante em seu íntimo se

sobrepusesse ao tumulto, mostrando-lhe a medida mais verdadeira

das coisas. Todo o ativo pensar com o qual ela se representara as pro-

vações do destino de Lydgate e deste casamento ainda novo que,

como o dela, parecia ter seus problemas, ocultos ou evidentes - toda

esta vívida experiência de simpatia retornava-lhe agora como uma

força: impunha-se como o conhecimento adquirido se impõe e não

nos deixa ver como víamos nos dias de nossa ignorância. · sua pró-

pria dor irremediável ela pediu que a tornasse mais prestativa, e não

que a contivesse no esforço.

E que espécie de crise não seria esta nas três vidas que, em contacto

com a dela, atribuíam-lhe uma obrigação, como se eles fossem suplican-

tes carregando o ramo sagrado? Os objetos a serem salvos por ela não

eram para ser procurados por sua imaginação: a escolha, para si, já esta-

va feita. Ela ansiava pelo perfeito Bem que, instalando-se num trono em

seu íntimo, lhe pudesse governar a vontade errante. "Que devo fazer -

como devo agir agora, hoje mesmo, se eu puder vencer minha dor e

compeli-la ao silêncio para pensar nesses três?"

Levou tanto tempo para chegar a esta questão, que a luz do dia já

penetrava agora no quarto. Ela abriu as cortinas e olhou o trecho de

estrada que se expunha à visão, aquém dos campos e além dos seus

portões. Um homem com uma trouxa nas costas e uma mulher com seu

bebê eram divisados na estrada; nos campos, viu figuras que se moviam

- talvez o pastor com seu cachorro. Longe, onde o céu se curvava, havia

a luz perolada; e ela sentiu a vastidão do mundo e o multivário desper-

tar dos homens para a resignação e o labor. Sendo parte desta vida

involuntária e palpitante, não a podia contemplar de fora, em seu abrigo

MIDDLEMARCH
825

luxuoso, como mera espectadora, nem tapar os próprios olhos em egoís-

tas lamúrias.

A decisão sobre o que iria ela fazer nesse dia não se oferecia ainda

clara, mas algo que estava ao seu alcance agitava-a como um murmúrio

que, aproximando-se, tornar-se-la dentro em breve distinto. Tirando as

roupas que pareciam ter-se impregnado da lassidão da dura vigília, co-

meçou a fazer sua toalete. E logo chamou por Tantripp, que a veio aten-

der ainda de camisola.

"Ora essa, madame, vê-se que nem esteve na cama durante toda a

bendita noite," disse Tantripp, olhando primeiro para a cama e depois

para Dorothea que, apesar das abluções, tinha as faces pálidas e as pál-

pebras avermelhadas de uma mater dolorosa. "A senhora há de se matar,

ora se há. Todos devem achar agora que merecia dar-se um pouco de

descanso."

"Não se preocupe, Tantripp," disse Dorothea, sorrindo. "Eu dormi;

não estou mal. Uma xícara de café, logo que possível, vai-me deixar

alegre. Quero que me traga meu vestido novo, e acho que hoje vou que-

rer também o novo chapéu."

"Há mais de um mês que estão prontos à sua espera, madame, e eu

darei graças a Deus se puder vê-la com um pouco menos de crepe," disse

Tantripp, abaixando-se para acender o fogo. "O luto tem razão de ser,

como eu sempre disse; mas três pregas na barra de sua saia e uma sim-

ples tarja no chapéu - ninguém nunca se pareceu tanto com um anjo,

como a senhora com uma tarja bonita - são tudo o que convém para o

segundo ano. Pelo menos, este é o meu modo de pensar," concluiu

Tantripp, olhando preocupada para o fogo; "e aí é que está, um homem

seria iludido por sua própria vaidade se se casasse comigo pensando que

eu usaria por ele, por dois anos, esses véus horrorosos."

"O fogo vai pegar, minha boa Tan," disse Dorothea, falando como
costumava fazer nos dias de outrora em Lausanne, só que em voz muito

baixa; "traga-me o café."

Estirando-se na poltrona, nela apoiou então a cabeça numa imobili-

dade afadigada, enquanto Tantripp se afastava intrigando-se com a es-

tranha contradição de sua jovem patroa - que justamente nessa ma-

nhã, em que estava com mais cara de viúva que nunca, ela pedisse o luto

aliviado que antes se recusava a usar. Jamais Tantripp daria com a chave

deste mistério. Dorothea queria reconhecer que a vida que tinha pela

frente não seria menos ativa por ela haver sepultado uma alegria sua; e a

tradição de que uma roupa nova se adequava a toda iniciação, obsedan-

826

GEORGE ELIOT

do-lhe a mente, fazia-a agarrar-se até mesmo a esta pequena ajuda ex-

terna, para chegar à calma decisão. Pois a decisão não era fácil.

Não obstante, às onze horas ela já ia a pé para Middemarch, tendo-

se resolvido a fazer, com toda a tranqüilidade e discrição possíveis, sua

segunda tentativa para estar com Rosamond e salvá-la.

CAPÍTULo LXXXI

"Du Erde warst auch diese Nacht bestãndíg,

Und athmest neu erquickt zu meinen Füssen,

Beginnest schon mit Lust mich zu umgeben,

Du regst und rührst ein krãftiges Beschliessen

Zum Uchsten Dasein immerfort zu streben."

- Faust: 2r Theil.
("ó terra que, após mais uma noite constante,

Bem disposta aos meus pés se põe a respirar

E já começa a me contornar de prazer,

Tu moves e impões a decisão exemplar,

A um destino mais alto sempre pretender. ")

- Fausto: 23. Parte.

QUANDo DOROTHEA Jµ ESTAvA de novo, falando com Martha, à porta de

Lydgate, este se achava numa peça contígua, com a porta entreaberta,

preparando-se para sair. Ao ouvir a voz dela, imediatamente foi ao seu

encontro.

"Será que Mrs. Lydgate poderá receber-me assim tão cedo?" disse

ela, tendo refletido que seria melhor evitar qualquer alusão à sua visita

anterior.

"Não tenho dúvida que sim," respondeu Lydgate, reprimindo sua

impressão sobre a fisionoomia de Dorothea, quase tão alterada quanto a

de Rosamond, "se a senhora faz-me a bondade de entrar e me permite ir

avisá-la de que está aqui. Desde sua visita de ontem que ela não

passa;

bem, mas hoje de manhã melhorou, e acho muito provável que se ani-

me, revendo-a."

828

GEORGE ELIOT

Estava claro que Lydgate, como esperava Dorothea, não sabia nada

das circunstâncias da visita na véspera; e mais, parecia imaginar que

tudo se passara de acordo com as intenções dela. Ela escrevera um bi-

lhete pedindo a Rosamond permissão de vê-la e o teria dado à criada,


caso ele não aparecesse, mas agora estava muito ansiosa quanto ao re-

sultado do anúncio.

Após levá-la à sala de visitas, ele fez uma pausa para tirar da algibeira

uma carta que lhe deu em mãos, dizendo: "Escrevi esta carta ontem à

noite, e ia eu mesmo levá-la a cavalo em Lowick. Quando se é grato por

algo muito bom para um agradecimento comum, a escrita é menos

insatisfatória que a fali - pelo menos não se ouve como as palavras são

inadequadas."

A face de Dorothea iluminou-se. "Sou eu quem tenho mais a agra-

decer, já que o senhor me permitiu ocupar tal lugar. O senhor não con-

sentiu?" disse ela, subitamente duvidando.

"Sim, o cheque vai para o BuIstrode hoje mesmo."

Sem mais dizer, ele subiu a estar com Rosamond, que, mal tendo

acabado de se vestir, languidamente se sentava sem saber o que fazer a

seguir, sua costumeira habilidade para ocupações variadas, mesmo em

seus dias de tristeza, instando-a a começar algum tipo de trabalho, pelo

qual ela porém se arrastava ou do qual desistia por falta de interesse.

Parecia doente, mas já recuperara sua usual quietude de maneiras, e

Lydgate temia incomodá-la com perguntas. Falara a ela da carta de

Dorothea contendo o cheque, dizendo depois: "O Ladislaw chegou, Rosy;

esteve comigo ontem à noite; aposto que ele voltará hoje aqui. Achei-o

um pouco deprimido e derreado." Mas Rosamond não respondeu nada.

Agora, ao subir, disse-lhe muito gentilmente: "Rosy, meu bem, Mrs.

Casaubon veio visitá-la de novo; você gostaria de estar com ela, pois

não?" Que ela se ruborizasse e fizesse um gesto de sobressalto não o

surpreendia, depois da agitação provocada pela entrevista da véspera -

uma agitação benéfica, pensava ele, pois parecia tê-la feito voltar-se para

ele outra vez.

Rosamond não ousou dizer não. Não ousava erguer a voz para tocar

nos fatos de ontem. Por que tinha Mrs. Casaubon voltado? A resposta

era um claro que Rosamond só podia encher de pavor, pois as palavras


dilacerantes de Will Ladislaw haviam feito de cada pensamento sobre

Dorothea uma nova dor para ela. Não obstante, em sua nova e humi-

lhante incerteza, não ousava fazer nada além de aquiescer. Não disse

que sim, mas levantou-se e deixou que Lydgate lhe pusesse um leve xale

nos ombros, enquanto dizia: "Eu já estou de saída." Algo então cruzou-

MIDDLEMARCH

lhe a mente, e a levou a dizer: "Diga à Martha, por favor, para não trazer

mais ninguém à sala." E Lydgate assentiu, pensando compreender mui-

to bem o seu desejo. Acompanhou-a escada abaixo até a porta da sala e

lá tomou outro rumo, observando a si mesmo que marido mais desati-

nado ele era, para que a confiança de sua esposa nele dependesse da

influência de outra mulher.

Rosamond, enquanto envolvia o corpo com o xale, ao caminhar para

Dorothea, por dentro envolvia a alma na mais fria reserva. Tinha Mrs.

Casaubon vindo dizer-lhe alguma coisa sobre Will? Se fosse o caso, era

uma liberdade que ela ressentiria; e preparou-se para enfrentar cada pa-

lavra com polida impassíbilidade. Will havia ferido demais o seu orgu -

lho para que ela sentisse qualquer compunção para com Dorothea e ele:

sua própria lesão lhe parecia muito mais grave. Dorothea não só era a

mulher "preferida," como também tinha a extraordinária vantagem de

ser benfeitora de Lydgate; e na visão dorida e confusa da pobre Rosamond

parecia que Mrs. Casaubon - esta mulher a predominar sempre nas

coisas que lhe diziam respeito - havia de ter vindo agora com a impres-

são de estar em vantagem, e com uma animosidade que a predispunha a

usá-la. Com efeito, não apenas Rosamond, mas qualquer pessoa, saben-

do das exterioridades do caso, e não da simples inspiração por que

Dorothea agia, poder-se-la espantar com sua visita.

Semelhante ao sedutor fantasma de si mesma, sua graciosa magreza

envolvida no xale branco e macio, a boca arredondada e infantil e as


bochechas inevitavelmente sugerindo doçura e inocência, Rosamond

parou a uns três metros de distância da sua visitante e inclinou-se. Mas

Dorothea, que havia tirado as luvas, por um impulso a que nunca podia

resistir quando sentia necessidade de liberdade, deu uns passos à frente

e, face repleta de uma triste porém doce franqueza, estendeu a mão.

Rosamond não pôde furtar-se ao seu olhar, nem a pôr sua mão miúda na

de Dorothea, que a estreitou com um carinho de mãe; e imediatamente

uma dúvida sobre suas próprias prevenções começou a agitar-se em seu

íntimo. O olhar de Rosamond, rápido na leitura de faces, viu que a de

Mrs. Casaubon estava pálida e mudada em relação à véspera, contudo

gentil e semelhante à firme ternura de sua mão. Mas Dorothea havia

contado um pouco demais com suas próprias forças: a clareza e intensi-

dade de sua atividade mental nessa manhã eram o prolongamento de

uma exaltação nervosa que a tornara tão perigosamente sensível como

uma peça do mais raro cristal veneziano; mal ela olhou para Rosamond,

sentiu seu coração se intumescer e não foi capaz de falar - requerendo-

se todo seu esforço para conter as lágrimas. No que aliás teve êxito, e foi

830

GEORGE ELIOT

apenas como a alma de um soluço que a emoção lhe perpassou pelo

rosto; mesmo assim, contribuiu para aumentar a impressão de Rosamond,

de que o estado de espírito de Mrs. Casaubon devia ser muito diferente

do que ela havia imaginado.

Assim, sem nenhuma palavra por preâmbulo, sentaram-se nas duas

cadeiras por acaso mais próximas, e por acaso também juntas; se bem

que a idéia de Rosamond, ao fazer sua curvatura do início, fosse ficar

bem afastada de Mrs. Casaubon. Mas ela parou de pensar em como ter-

minaria tudo - para apenas se abrir ao que viria. E Dorothea começou


a falar com muita simplicidade, reunindo firmeza ao prosseguir.

"Eu ontem tinha uma missão que não completei; é por isto que tão

cedo estou aqui novamente. Espero que não me torne por muito inopor-

tuna, se lhe digo que vim para lhe falar da injustiça que se tem demons-

trado para com Mr. Lydgate. Há de animá-la - pois não? - saber de

muitas coisas sobre ele de que ele próprio pode não gostar de falar,

justamente porque são em sua defesa e por sua honra. A senhora há de

gostar de saber que seu marido tem amigos sinceros, que não deixaram

de acreditar em seu caráter nobre? Permitirá que eu fale disto sem pen-

sar que estou tomando muita liberdade?"

Os tons de cordialidade e súplica, que pareciam fluir com generoso

descuido por sobre todos os fatos que haviam ocupado a mente de

Rosamond como motivos de obstrução e ódio entre ela e esta mulher,

vieram como uma cálida torrente para acalmar e reduzir seus temores.

Naturalmente Mrs. Casaubon sabia de tais fatos, mas não queria falar de

nada relacionado a eles. Era um alívio muito grande para que Rosamond

sentisse no momento outras coisas. Na nova paz de sua alma, ela res-

pondeu gentilmente:

"Sei que a senhora tem sido muito boa. Gostaria de ouvir tudo o que

tem a me dizer sobre o Tertius."

"Anteontem," disse Dorothea, "quando eu lhe pedi que viesse a

Lowick para me dar sua opinião sobre as questões do Hospital, ele me

contou tudo sobre sua conduta e sentimentos nesse triste acontecimen-

to que levou pessoas ignorantes a lançarem suspeitas sobre ele. E con-

tou-me, porque fui muito ousada e pedi. Nunca acreditando que ele

tivesse agido desonrosamente, solicitei-lhe que me narrasse toda a his.

tória. Confessou-me que não a contara antes, nem mesmo à senhora,

porque lhe desagradava dizer: "Não fiz nada de errado" como se fosse

uma prova, quando há pessoas culpadas que afirmam o mesmo. A ver.

dade é que ele não sabia nada desse tal de Raffies, nem que havia sobre

este alguns infames segredos; e pensava que Mr. BuIstrode só lhe ofere-
MIDDLEMARCH

831

cera dinheiro por se arrepender, por bondade, de o haver recusado an-

tes- Toda sua preocupação com o paciente foi tratá-lo com acerto, e o

fato de o caso não terminar como ele havia esperado deixou-o pouco à

vontade; pensava porém, e ainda pensa, que é possível que ninguém

tenha agido mal. E eu já contei a Mr. Farebrother, a Mr. Brooke e a Sir

James Chettam: todos eles acreditam em seu marido. Isto há de consolá-

la, pois não? Há de lhe dar coragem?"

O rosto de Dorothea tornara-se irradiante e, ao refletir-se tão de

perto em Rosamond, esta sentiu, em presença de seu ardor altruístico,

como que uma envergonhada timidez perante um superior. Rubra pelo

embaraço, ela disse: "Obrigada: a senhora é muito bondosa."

"" ele achou ter cometido um grande erro por não lhe comunicar

tudo isto. Mas a senhora há de perdoá-lo. Tal se deu porque ele coloca

sua felicidade acima de qualquer outra coisa - sente que tem a vida

ligada por inteiro à sua e magoa-se só em pensar que os infortúnios que

o atingem tenham de magoar também a senhora. Só conseguiu falar co-

migo porque sou uma estranha. E eu então lhe pedi licença para vir

visitá-la; já que tanto o problema dele, quanto o seu, me sensibilizam.

Foi por isto que eu estive aqui ontem, e por isto é que estou de volta. 

tão dificil enfrentar dissabores, não é? - Como é possível vivermos pen-

sando que outros têm problemas - problemas graves - sem que tente-

mos ajudá-los, se estiver ao nosso alcance?"

Dorothea, completamente dominada pelo sentimento ao qual dava

expressão, esquecía-se de tudo, a não ser que falava, do fundo do cora-

ção, de seu próprio martírio para o de Rosamond. A emoção, entrela-

çando-se cada vez mais às suas palavras, acabara por imprimir-lhe à voz
timbres capazes de penetrar na medula, como um grito exangue de al-

guém que dobra de dor na escuridão. E inconscientemente ela pegou

outra vez na mãozinha que antes já havia apertado.

Rosamond, sofrendo a mais não poder, como se lhe sondassem uma

ferida no corpo, prorrompeu num choro histérico tal qual fizera na vés-

pera, quando se agarrou com o marido. Já a pobre Dorothea sentia refluir

sobre si uma grande onda de seu próprio sofrimento - sendo-lhe o

pensamento arrastado para o papel que eventualmente caberia a Will

Ladislaw na confusão mental de Rosamond. Começava a temer que ela

não fosse capaz de controlar-se até o fim deste encontro e, com a mão

ainda largada no colo de Rosamond, se bem esta já houvesse retirado a

sua de baixo, travava um embate contra os próprios soluços que a amea-

çavam. Tentou dominar-se pensando que podia estar em causa um mo-

mento decisivo em três vidas - não na sua, onde o irremediável já tinha

832

GEORGE ELIOT

acontecido, mas - naquelas três vidas que tangenciavam a dela com

grave proximidade de perigo e desgraça. A frágil criatura que chorava a

seu lado - ainda poderia haver tempo para salvá-la da infelicidade de

vínculos incompatíveis e falsos; e era um momento único: jamais

Rosamond e ela estariam juntas de novo com a mesma consciência do

acontecido na véspera a impressioná-las tanto por dentro. Sentia que a

relação entre ambas era suficientemente peculiar para a submeter a uma

influência também peculiar, se bem não fizesse idéia de que Mrs. Lydgate

tinha perfeita ciência do modo como seus próprios sentimentos estavam

envolvidos.

A crise na experiência de Rosamond era mais nova do que podia

imaginar Dorothea: ela sofria o primeiro grande choque a despedaçar


seu mundo de sonhos, no qual lhe fora muito fácil sentir-se confiante de

si e crítica dos outros; e esta estranha e inesperada manifestação de sim-

patia por parte de uma mulher que ela havia abordado com temor e

esquiva aversão, como alguém que devia necessariamente ter um raivo-

so ciúme dela, fez-lhe a alma titubear ainda mais, sob a impressão de

que estivera ela andando por um mundo desconhecido que só agora e de

súbito se lhe revelava.

Quando o convulso pescoço de Rosamond, serenando-se, já voltava

ao normal, e ela recolheu o lenço com o qual escondia até então o rosto,

seus olhos bateram nos de Dorothea, tão indefesos como se fossem flo-

res azuis. Depois deste choro, de que adiantava pensar em atitudes? E

Dorothea parecia quase tão infantil, com o vestigio esquecido de uma

lágrima silenciosa. O orgulho, entre elas duas, estava quebrado.

"Estávamos falando de seu marido," disse Dorothea, não sem timi-

dez. "Pareceu-me tristemente mudado pelo sofrimento outro dia. Há

várias semanas que eu não o via. Disse-me que se sentia muito só em

sua provação; mas penso que a teria suportado melhor se houvesse sido

capaz de ser bem franco com a senhora."

"O Tértius fica tão zangado e impaciente quando eu digo alguma

coisa," disse Rosamond, imaginando que ele pudesse ter-se queixado

dela a Dorothea. "Não deveria estranhar que eu me recuse a lhe falar de

assuntos penosos."

"Foi a si mesmo que ele culpou por não falar," disse Dorothea. "A

respeito da senhora, disse que não podia ser feliz fazendo algo que a

tornasse infeliz - que seu casamento era naturalmente um vínculo que

tinha de influenciar sua escolha em relação a tudo; e que por esta razão

ele recusava minha proposta de se manter na direção do Hospital, por-

que isto o obrigaria a ficar em Middemarch, e ele não se comprometeria

MIDDLEMARCH
833

a nada que a fizesse sofrer. Pôde dizer-me isto porque sabe do quanto eu

mesma sofri em meu casamento com a doença de meu marido, que lhe

estorvou os planos e o entristeceu; e sabe que eu senti como é duro

andar sempre com medo de ferir alguém que está ligado a nós."

Dorothea esperou um pouco; havia distinguido um laivo de prazer a

perpassar pelo rosto de Rosamond. Mas, não obtendo resposta, prosse-

guiu com um crescente tremor: "O casamento é tão diferente de tudo o

mais. Há mesmo algo de terrível na proximidade imposta por ele. Mes-

mo se amássemos um outro mais do que - mais do que aqueles aos

quais fomos casadas, seria inútil" - a pobre Dorothea, em sua palpitan-

te ansiedade, só conseguia dominar uma linguagem fragmentada - "que-

ro dizer, o casamento absorve e esgota todo o nosso poder de dar ou

receber qualquer bênção nesta espécie de amor. Sei que ela pode ser

muito forte - mas mata o nosso casamento - e o casamento fica-nos

então como um crime - e tudo o mais se acaba. Neste caso o marido -

se nos amava e confiava em nós, não contou com nossa ajuda, e fomos

em sua vida uma maldição..."

Sua voz tinha baixado ao extremo: ela temia ir longe demais no que

presumia e falar como se fosse ela mesma a perfeição se dirigindo ao

erro. Preocupada com sua própria ansiedade, não notava que Rosamond

também estava tremendo; e, tomada pela necessidade de exprimir uma

compadecida estima, não uma reprimenda, pôs as mãos sobre as de

Rosamond e disse, com rapidez mais agitada: "Eu sei, eu sei que o sen-

timento pode ser muito forte - que se apossa de nós sem percebermos

- que é duro, e até pode parecer pior que a morte, separar-se dele - e

que nós somos fracas - eu sou fraca -"

As ondas de seu próprio sofrimento, das quais ela tentava livrar-se

para salvar a outra, precipitavam-se sobre Dorothea com triunfante for-

ça. Parada então em muda agitação, nem sequer chorando, sentia-se


porém como que estrangulada por dentro. Sua face adquirira ainda mais

mortal palidez, tremiam-lhe os lábios, e em desespero ela comprimia

impotentemente as mãos sobre as que jaziam por baixo.

Rosamond, vencída por emoção mais forte que a sua - arrastada

por um novo movimento que a tudo dava um novo aspecto indefinido e

medonho - também não encontrava palavras, mas involuntariamente

deu um beijo na testa de Dorothea, que estava bem junto dela, e por um

minuto as duas mulheres se abraçaram como se fossem vítimas de al-

gum naufrágio.

"O que a senhora está pensando não é verdade," disse Rosamond,

num pálido mas impaciente sussurro, sentindo os braços de Dorothea

834

GEORGE ELIOT

ainda em torno de si - e pressionada pela misteriosa necessidade de

libertar-se de algo que a oprimia como se fosse a mancha de um crime.

Cada qual olhando a outra, elas se separaram.

"Ontem, quando a senhora entrou aqui - não era o que pensou que

fosse," disse Rosamond no mesmo tom.

Houve por parte de Dorothea um movimento de surpresa atenção.

Ela esperava que Rosamond então se justificasse.

"Ele estava a me dizer o quanto amava outra mulher, para que eu

soubesse que nunca me poderia amar," disse Rosamond, apressando-se

cada vez mais ao falar. "E agora eu acho que me odeia, porque - porque

ontem a senhora se enganou sobre ele. Diz que é por causa de mim que

há de pensar mal dele - tomando-o por uma pessoa falsa. Mas por

causa de mim é que não será. Nunca ele me teve amor - bem sei que

não - e sempre fez pouco caso de mim. Ontem, disse que não existia

outra mulher para ele, além da senhora, A culpa pelo que aconteceu é
inteiramente minha. Disse que nunca lhe poderia explicar - por minha

causa. Disse que a senhora jamais voltaria a pensar bem dele. Mas agora

eu já lhe contei, e ele não pode mais reprovar-me."

Rosamond havia aberto a alma por impulsos que até então lhe eram

desconhecidos. Começara a fazer sua confissão sob a influência domi-

nante da emoção de Dorothea; e, ao desenvolvê-la, passara a ter a im-

pressão de que estava a repelir as reprimendas de Will, que ainda a

magoavam como uma ferida por dentro.

A revulsão de sentimentos em Dorothea foi muito forte para ser ro-

tulada de alegria. Era um tumulto, onde a terrível tensão da noite e da

manhã dera origem a uma dor resistente: ela só poderia perceber que

isto seria alegria quando houvesse recuperado sua capacidade de senti-

la. O que de imediato lhe vinha à consciência era uma simpatia imensa e

sem entraves; preocupava-se com Rosamond, agora sem luta, e deu-lhe

uma resposta convicta às suas últimas palavras:

"Não, ele não pode mais reprová-la."

Com sua habitual tendência a sobrestimar o que havia de bom nos

outros, sentia o coração a transbordar por Rosamond devido ao esforço

generoso que redimira seu sofrimento, sem considerar que este esforço

fora apenas um reflexo de sua própria energia.

Após um momento de silêncio em que imergiram as duas, disse:

"Não a terei incomodado vindo aqui hoje cedo?"

"Não, a senhora foi muito boa comigo," disse Rosamond. "E eu nem

imaginava que o pudesse ser tanto. Eu, que estava muito infeliz, agora

só não sou feliz. Tudo é tão tristef"

MIDDLEMARCH

835

"Mas dias melhores hão de vir. Seu marido será apreciado, na justa
medida, e depende do consolo que a senhora lhe der. Ele a ama acima de

tudo. A pior perda seria perder isto - e tal não lhe ocorreu," disse

Dorothea.

Ela tentava afastar de si a idéia avassaladora de seu próprio alívio,

para não fracassar na obtenção de um sinal de que a afeição de Rosamond

pelo marido se enternecia de novo.

"O Tertius então não me acusou de nada?" disse Rosamond, com-

preendendo agora que Lydgate poderia ter dito alguma coisa a Dorothea,

e que sem dúvida ela era diferente das demais mulheres. Talvez houves-

se na pergunta um leve toque de ciúme. Mas foi com um sorriso a esbo-

çar-se em seu rosto que Dorothea disse:

"Não, claro que não! Como pôde imaginar isto?" Nesse instante a

porta se abriu e Lydgate entrou.

"Eis-me de volta em minha condição de médico," disse ele. "Fui

perseguido, depois de sair, por dois rostos pálidos: Mrs. Casaubon pa-

recia tão necessitada de atendimento quanto você, Rosy. E eu pensei

que não cumpria com meu dever, deixando vocês duas juntas aqui;

assim, vim para casa logo depois de estar no Coleman. Notei que a

senhora veio a pé, Mrs. Casaubon, e o tempo mudou - acho bem

provável que chova. Posso mandar alguém para pedir que sua carrua-

gem venha buscá-la?"

"Oh, não! Sou forte: preciso de andar," disse Dorothea, levantando-

se cheia de animação no rosto. "Mrs. Lydgate e eu já conversamos mui-

to, e está na hora de eu me ir. Sempre fui acusada de ser descomedida e

falar demais."

Estendeu a mão a Rosamond, e as duas trocaram um adeus tranqüi-

lo e grave, sem beijos ou quaisquer demonstrações efusivas: a emoção

por elas partilhada fora séria demais para permitir agora um uso superfi-

cial de seus sinais.

Quando Lydgate a acompanhou até a porta, ela nada disse de Rosa-

mond, mas falou-lhe de Mr. Farebrother e dos outros amigos que ti-
nham ouvido com convicção sua história.

Rosamond, quando ele voltou para ela, já se atirara no sofá em resigna-

da fadiga.

"Bem, Rosy," disse ele, em pé a seu lado e a acaricíar-lhe os cabelos,

"o que você acha de Mrs. Casaubon, agora que já esteve tanto com ela?"

"Acho-a melhor que todo mundo," respondeu Rosamond, "e muito

bonita. Se você for conversar com ela assim com tanta freqüência, ficará

mais descontente do que nunca comigo!"

836

GEORGE ELIOT

Lydgate sorriu para o "com tanta freqüência." "Mas por acaso ela a

tornou menos descontente comigo?"

"Penso que sim," disse Rosamond, erguendo os olhos para exami-

nar-lhe o rosto. "Que olhar mais triste, Tertius! - e que cabelo! ponha-

o, por favor, para trás." Ele ergueu a mão, sua mão grande e branca, para

obedecê-la, sentindo-se grato por esta ligeira demonstração de interesse

por ele. A caprichosa imaginação da pobre Rosamond retornara terrivel-

mente castigada - bem submissa para aconchegar-se no velho e despre-

zado abrigo. E o abrigo ainda estava ali: com triste resignação Lydgate

havia aceito as limitações do destino. Escolhera esta frágil criatura, to-

mando-lhe o fardo de sua vida nos braços. Tinha de andar como podia,

a carregar compassivamente este fardo.

CAPÍTULO MIIX

"My grief fies onward and rny joy behind."

- SHAKESPEARE: Sonnets.
("Minha dor jaz à frente e a alegria atrás.")

- SHAKESPEARE: Sonetos."

OS EXILADOS NUTREM-SE sabidamente de esperanças, e decerto não se

mantêm em desterro senão quando a tanto são obrigados. Ao se exilar

de Middemarch, Will Ladislaw não colocara ao retorno nenhum obstá-

culo mais forte que sua própria resolução, a qual, sem nunca chegar a ser

uma barreira de ferro, era simplesmente um estado de espírito, capaz de

se fundir num minuete com outros estados análogos e a encontrar-se

sorrindo, curvando-se, cedendo a vez com facilidade polida. À medida

que os meses se passavam, parecia-lhe cada vez mais dificí dizer-se por

que não dar uma chegada a Middemarch - apenas para saber alguma

coisa sobre Dorothea; e se numa visita assim corrida, por qualquer es-

tranha coincidência, ele se encontrasse com ela, não haveria por que se

envergonhar de ter empreendido uma inocente viagem que de início ele

pensara que não devia fazer. Como ele estava irremediavelmente sepa-

rado dela, poderia aventurar-se sem dúvida pelas redondezas; quanto

aos amigos suspeitosos que a mantinham sob vigilância cerrada - suas

opiniões pareciam importar cada vez menos com a passagem do tempo

e a mudança de ares.

E havia surgido uma razão que em nada se reportava a Dorothea

Soneto 50.

838

GEORGE ELIOT

e parecia fazer de uma viagem a Middemarch uma espécie de dever


filantrópico. Will dera uma atenção desinteressada a um projeto de

colonização em bases novas no Far West, e a necessidade de fundos

para executar um bom plano levara-o a debater consigo mesmo se

não seria louvável neste caso fazer uso dos direitos que ele tinha

junto a BuIstrode, solicitando que o dinheiro que lhe havia sido ofe-

recido fosse aplicado como meio para tornar praticável uma iniciativa

bem capaz de gerar amplos benefícios. A questão parecia muito duvi-

dosa a Wíll, e sua repugnãoncia a entrar novamente em relações com o

banqueiro poderia tê-lo feito desistir logo disto, se não houvesse sur-

gido em sua imaginação a probabilidade de que sua decisão fosse

determinada com maior segurança por uma visita a Middemarch.

Tal era o objetivo que Will se atribuíra como razão para ir. Pretendia

fiar-se em Lydgate e discutir com ele a questão do dinheiro, como tam-

bém pretendia divertir-se, nas poucas noites de sua estada, dedicando-

se ao máximo de brincadeiras e música com a bela Rosamond, sem se

esquecer dos seus amigos do Presbitério de Lowick: - se o presbitério

se achava junto ao solar, não era por culpa sua. Ele se afastara dos

Farebrothers antes de sua partida, por uma orgulhosa resistência à pos-

sível acusação de que indiretamente procurava ocasiões para avistar-se

com Dorothea; mas a fome nos doma, e pela visão de certas formas e o

som de uma certa voz Will se tornara muito faminto. Nada servira para

substituí-los: nem a ópera, nem a conversa de zelosos políticos, nem a

acolhida lisonjeira (em meios tacanhos) ao novo estilo que ele usava em

seus artigos de fundo.

Assim viera, antevendo confiante como seria quase tudo no mun-

dínho que lhe era familiar; e chegando a temer, de fato, que sua visita

não tivesse surpresas. No entanto ele encontrara aquele mundo monó-

tono num estado terrivelmente dinãomico, onde até o lirismo e as brin-

cadeiras haviam-se tornado explosivos; e o primeiro dia da visita logo

passara a ser o mais fatal de sua vida. Na manhã seguinte sentiu-se tão

importunado pelo pesadelo das conseqüências - temia tanto os pro-


blemas imediatos à frente - que, vendo chegar a diligência de Riverston,

enquanto tomava seu desjejum, saiu às pressas e nela conseguiu um

lugar, a fim de se livrar, por um dia que fosse, da necessidade de fazer

ou dizer alguma coisa em Middemarch. Will Ladislaw estava numa

dessas crises complicadas que são mais comuns em nossa experiência

do que se pode imaginar, pelo absolutismo superficial dos julgamentos

MIDDLEMARCH

839

humanos. Encontrara Lydgate, por quem tinha o mais sincero respeito,

em circunstâncias que exigiam sua simpatia mais cabal e franca; e a

razão pela qual, a despeito desta exigência, teria seria melhor para

Will evitar qualquer maior intimidade, ou mesmo contacto, com Lydgate

era precisamente de um tipo que fazia tal procedimento parecer im-

possível. Para uma criatura do temperamento susceptível de Will -

sem nenhuma região neutra de indiferença em sua natureza, pronta a

transformar tudo que lhe acontecia em conflitos de um drama apaixo-

nado - a revelação de que Rosamond havia posto sua felicidade, de

certa forma, na dependência dele era uma dificuldade que se vira imen-

samente agravada por sua explosão de raiva com ela. Odiando sua pró-

pria crueldade, ele entretanto temia demonstrar toda a extensão de

seu compadecimento: deveria ir vê-la de novo; a amizade não podia

sofrer um fim tão súbito; e a infelicidade dela era uma força que o

amedrontava. Entrementes, o antegosto de prazer que a vida por viver

lhe propunha era tão nulo como se, decepados seus membros, ele ti-

vesse de começar outra vez sobre muletas. Durante a noite perguntara-

se seguidas vezes se não deveria embarcar na diligência, não para

Riverston, mas para Londres, deixando num bilhete a Lydgate uma

improvisada razão para a retirada. Vínculos fortes o retinham porém


de uma partida assim tão abrupta: a desgraça de sua felicidade, se pen-

sava em Dorothea, o esboroar da grande esperança que permanecia,

malgrado a reconhecida necessidade de renúncia, era um sofrimento

ainda muito recente para a tanto ele resignar-se, e logo dar-se a uma

distância que era também desespero.

Tomar a diligência para Riverston foi tudo o que portanto ele fez de

mais decidido. E por ela retornou quando ainda dia claro, tendo resolvi-

do que à noite deveria ir à casa de Lydgate. O Rubicão, como sabemos,

era um regato muito insignificante de ver; sua significação repousava

inteiramente em certas condições invisíveis. Will se sentia como se fosse

forçado a transpor seu pequeno fosso limítrofé, e não era um império o

que ele além avistava, mas uma sujeição descontente.

E-nos dado algumas vezes, mesmo em nossa vida cotidiana, teste-

munhar a influência redentora de uma natureza nobre, a divina eficácia

de salvamento que pode haver num gesto de fraternidade partido de

quem, ao praticá-lo, se anula. Se Dorothea, após sua noite de angús-

tia, não houvesse empreendido aquela caminhada para estar com

Rosamond - seria talvez uma mulher a ganhar uma reputação maior

840

GEORGE ELIOT

de discrição, mas isto decerto não teria sido tão bom para as três pes-

soas reunidas junto à lareira, em casa de Lydgate, às sete e meia dessa

noite.

Rosamond, preparada para a visita de Will, recebeu-o com uma

frieza lânguida que Lydgate atribuiu ao seu esgotamento nervoso, sem

o poder supor de alguma forma relacionado ao amigo. E quando ela,

sentada em silêncio, curvou-se sobre um trabalho, inocentemente ele

procurou justificá-la de maneira indireta, pedindo-lhe que se reclinas-


se em repouso. Will sofria muito com a necessidade de representar o

papel do amigo que vinha visitar e cumprimentar Rosamond pela pri-

meira vez, quando seus pensamentos se ocupavam do que ela havia

sentido após a cena da véspera, que ainda parecia envolver

inexoravelmente a ambos, como a dolorosa visão de uma loucura du-

pla. Nenhum chamado levou Lydgate a se ausentar da sala; mas quan-

do Rosamond serviu o chá, e Will se aproximou para apanhá-lo, ela

colocou no seu pires um papelzinho dobrado. Ele o viu e recolheu sem

demora; mas, já de volta à estalagem, não teve a menor pressa em

abri-lo. O que Rosamond lhe havia escrito provavelmente aguçaria ainda

mais as penosas impressões dessa noite. Mesmo assim, à luz da vela

de cabeceira ele desdobrou e leu o bilhete. Eram poucas palavras, numa

letra clara e fluente:

"Contei tudo a Mrs. Casaubon. De modo algum ela se engana a seu

respeito. Contei-lhe porque ela veio-me ver e foi muito boa. Você não

tem agora o que reclamar de mim. Não terei feito nenhuma diferença em

sua vida."

Não foi propriamente de alegria o efeito de tais palavras. Refle-

tindo sobre elas, com a imaginação excitada, Will sentiu que sua face

e as orelhas ardiam ao pensar no que ocorrera entre Dorothea e

Rosamond - na incerteza de até que ponto Dorothea ainda podia

ter sua dignidade ofendida por receber uma explicação da conduta

que ele lhe propunha. Bem que podia restar-lhe ainda em mente uma

associação modificada consigo que estabelecia uma diferença irreme-

diável - uma imperfeição duradoura. Fantasiando ativamente, deba-

teu-se ele num estado de dúvida pouco mais cômodo que o de um

homem que escapa de um naufrágio à noite para apenas manter-se na

escuridão em terra desconhecida. Até o funesto dia anterior - exce-

tuando-se um momento de enfado, na mesma sala e ante a

mesmíssima presença - toda a visão que uma os dois, todos os pen-


MIDDLEMARCH

841

samentos de um para o outro surgiam num mundo à parte, onde os

raios do sol calam sobre grandes lírios brancos, onde o mal jamais se

emboscava e não entrava outra alma. Mas agora - iria Dorothea

encontrá-lo neste mundo outra vez?

CAPÍTULo LXXXIII

"And now good-morrow to our waking souls

Which watch not one another out of fear;

For love all love of other sights controls,

And makes one little room, an everywhere."

- DR. DONNE.

€"Bom-dia então às nossas almas que acordam

e não se velam uma à outra com medo;

Pois amor o amor de outras visões controla

E, de um quartinho, faz um mundo inteiro.")

- DR. DONNE."

DUAS MANHÃS APóS SUA visita a Rosamond, Dorothea, com duas noites

de bom sono, não só perdera todos os sinais de cansaço, mas também se

sentia como se tivesse acumulado uma vitalidade grande e supérflua -

ou seja, mais vitalidade do que lhe seria possível concentrar numa ocu-

pação qualquer. No dia anterior, fizera longas caminhadas fora de seus

domínios, e por duas vezes fora em visita ao Presbitério; nunca porém


disse a ninguém a razão por que gastava seu tempo desta maneira infru-

tífera, e na manhã em questão ela estava um pouco aborrecida consigo

por sua inquietação infantil. Hoje seria bem diferente. O que havia para

ser feito na aldeia? Oh, meu Deus, nada! Todos estavam bem, com suas

roupas de flanela ao dispor; nem mesmo tinha morrido um porco, para o

desconsolo do dono; e era uma manhã de domingo, quando assoalhos e

degraus de pedra eram por toda parte lavados, sendo portanto inútil ir

Ijohn Donne, "The Good Morrow."

MIDDLEMARCH

843

até a escola. Mas havia vários temas a cujo respeito Dorothea tentava

esclarecer-se, e com energia ela resolveu se lançar ao mais importante de

todos. Sentou-se na biblioteca diante de uma pilha de livros sobre eco-

nomía política e assuntos conexos, pelos quais tinha particular interesse

e dos quais ela esperava uma luz quanto à melhor maneira de despender

dinheiro sem fazer mal aos vizinhos, ou - o que a vem a ser a mesma

coisa - fazendo-lhes o maior bem possível. Era um tema de peso que,

se ao menos conseguisse dominá-lo, por certo lhe manteria a mente

constante. Infelizmente porém a mente lhe escapuliu por uma hora ao

controle; e ela verificou por fim que estava lendo e relendo as mesmas

frases com uma intensa consciência de muitas coisas, mas de nada em

especial contido no texto. Não tinha jeito. Deveria mandar atrelar a car-

ruagem para ir a Tipton? Não; por essa ou por aquela razão, preferia

ficar em Lowick. Sua mente erradia tinha no entanto de ser compelida à

ordem: havia na autodisciplina. uma arte; e ela andava para lá e para cá

pela biblioteca fusca, considerando por que espécie de manobra poderia

interromper seus pensamentos ao léu, Uma simples tarefa talvez fosse o


melhor meio - alguma coisa pela qual se obstinasse a fundo. Não havia

a geografia da µsia Menor, em relação à qual Mr. Casaubon sempre cen-

surara seu relaxamento? Foi pois até o armário dos mapas e desenrolou

um deles: finalmente essa manhã ela poderia certificar-se de que a

Paflagônia não ficava na costa levantina, e determinar sua própria igno-

rância sobre os cálibes estabelecidos nas costas do Euxino. Quando a

cabeça se inclinava a pensar noutra coisa, como era bom estudar num

mapa, feito de nomes que, à força de serem repetidos, acabavam criando

uma melodia! Dorothea dedicou-se com afinco ao trabalho, curvada so-

bre seu mapa e a pronunciar os nomes num tom baixo mas audível que

o mais das vezes criava uma melodia de fato. Depois de toda sua expe-

riência profunda, era até engraçado como parecia infantil - a balançar a

cabeça e enumerar os nomes nos dedos, franzindo um pouquinho os

lábios e ínterrompendo-se de quando em quando para enquadrar seu

rosto nas mãos e exclamar: "Oh, meu Deus! oh, meu DeusV"

Tal qual um carrossel, não havia razão para que aquilo parasse; mas

acabou parando, quando a porta se abriu e a presença de Miss Noble foi-

lhe anunciada.

A velhinha, cuja touca mal chegava ao ombro de Dorothea, foi rece-

bida calorosamente; mas, enquanto sua mão era apertada, ela emitiu

toda uma série dos seus guinchos de castor, como se tivesse a dizer

alguma coisa difícil.

"Sente-se," disse Dorothea, puxando uma cadeira para a frente.

844

GEORGE ELIOT

"Precisam por acaso de mim? Ficarei muito contente se puder ser

útil."

"Não vou-me demorar," disse Miss Noble, enfiando a mão na sua cesti-
nha para nervosamente tatear um objeto lá dentro; "deixei um amigo à

minha espera no adrof Reincidindo nos sons inarticulados, inconsciente-

mente ela mostrou o objeto que seus dedos buscavam. Era a caixinha de

pastilhas em casco de tartaruga, e Dorothea sentiu subir-lhe à face o rubor.

"Mr. Ladislaw," continuou a mulherzinha tímida. "Temendo tê-la

ofendido, ele me pediu para perguntar se a senhora o receberia por al-

guns minutos."

Dorothea não respondeu logo: passou-lhe pela cabeça que não o

poderia acolher na biblioteca, onde a proibição de seu marido parecia

viva e presente. Olhou então em direção à janela. E se saisse, para

encontrá-lo no jardim? Mas o céu estava nublado, as árvores já se agita-

vam, como à aproximação de um temporal, e ela ademais hesitava em

falar com ele lá fora.

"Receba-o, Mrs. Casaubon," disse Miss Noble, pateticamente; "por-

que senão vou ter de voltar e dizer que não, e isto há de magoá-lo."

"Sim, vou recebê-lo," disse Dorothea. "Diga-lhe, por favor, que

venha."

O que fazer senão isto? Por nada no momento ela ansiava tanto

quanto por estar com Will: uma possibilidade que se insinuara de resto,

e a modo persistente, entre ela e todos os seus propósitos; todavia do-

minava-a uma excitação palpitante, uma espécie de apreensão - uma

impressão de estar fazendo, por causa dele, alguma coisa que era um

audacioso desafio.

Afastando-se a mulherzinha para concluir a missão, Dorothea plan-

tou-se no meio da biblioteca, com as mãos entrelaçadas caindo, e não

fez nenhum esforço para se pôr numa atitude de inconsciência digna.

Era de seu próprio corpo que ela tinha então menos consciência, pois

pensava no que poderia pensar por sua vez Will, e nos sentimentos im-

placáveis manifestados por outros a respeito dele. Como poderia sentir-

se moralmente obrigada à implacabilidade? A resistência ao desapreço

injusto mesclara-se aos seus sentimentos por ele desde o início, e agora,
na reação de seu coração à angústia, esta resistência era mais forte que

nunca. "Se o amo tanto é porque ele foi muito maltratado," dizia sua

voz interior a uma audiência imaginária, quando a porta da biblioteca

foi aberta e ela viu Will à sua frente.

Não se moveu, e ele se aproximou com mais dúvida e timidez no

rosto do que jamais ela vira. A insegurança em que se achava era tanta

MIDDLEMARCH

845

que ele temia que alguma palavra ou mesmo um olhar de sua parte

pudesse condená-lo a um novo afastamento dela; e Dorothea temia

sua própria emoção. Dava a impressão de estar sob o efeito de um

encanto que a mantinha imóvel e incapaz de desentrelaçar suas mãos,

enquanto algum anseio intenso e grave era aprisionado em seus olhos.

Vendo que ela não lhe estendia a mão como de hábito, Will parou a

cerca de um metro e disse embaraçadamente: "Fico-lhe muito grato

por me receber."

"Eu queria vê-lo," disse Dorothea, por não ter ao seu dispor outras

palavras. Não lhe ocorreu sentar-se, e a interpretação de Will a esta

maneira de o acolher, tal qual uma rainha, não foi muito animadora; mas

ele insistiu em dizer o que estava decidido a dizer.

"Temo que tome por insensatez, e talvez por erro, eu voltar tão cedo.

Tenho sido punido por minha impaciência. A senhora sabe - todos sa-

bem - de uma história dolorosa sobre minha origem. Antes de partir

daqui, eu também já sabia, e sempre pretendi falar-lhe a respeito - se

porventura nos reencontrássemos."

Dorothea fez um ligeiro movimento e desentrelaçou enfim suas mãos,

mas apenas para as dobrar de imediato uma sobre a outra.

"O caso agora virou motivo de tagarelice," continuou Will. "Mas eu


gostaria que a senhora soubesse de que algo relacionado a ele - uma

coisa que aconteceu antes de minha partida - contribuiu para trazer-

me de volta. Pensei ao menos que isto justificasse a minha vinda. Era a

idéia de convencer o BuIstrode a destinar algum dinheiro a um projeto

de interesse público - dinheiro este que ele havia pensado em dar a

mim. O fato de me ter oferecido, em particular, uma compensação por

uma antiga injustiça talvez até deponha em favor do Bulstrode: como

reparação, propôs-se ele a me garantir uma renda; mas suponho que

saiba desta desagradável história?"

Will olhou em dúvida para Dorothea, mas em seus modos já reunia

um pouco da arrogante coragem com a qual sempre pensava sobre este

fato em seu destino. E acrescentou: "A senhora sabe como isto me faz

sofrer, não é?"

"Sim - sim - eu sei!," disse apressadamente Dorothea.

"Resolvi não aceitar uma renda proveniente de tal fonte, certo de

que a senhora não pensaria bem de mim, se minha decisão fosse outra,"

disse Will. Por que se lembrava ele de lhe dizer agora alguma coisa do

gênero? Ela soube que ele havia confessado seu amor por ela. "Eu achei

que" - tentou Will prosseguir, mas interrompeu-se.

"O senhor agiu como eu esperaria que agisse," disse Dorothea, en-

846

GEORGE ELIOT

quanto seu rosto se iluminava e a cabeça se lhe tornava mais erecta

sobre seu belo pedúnculo.

"Eu não acreditava que a senhora se permitisse elaborar um precon-

ceito contra mim por uma simples circunstância sobre o meu nascimento,

o que outros certamente fariam," disse Will, jogando a cabeça para trás, a

seu modo antigo, e olhando-a bem nos olhos com um grave apelo.
"Uma nova provação, se fosse o caso, seria para mim uma nova ra-

zão de me colocar a seu lado," disse, com todo ardor, Dorothea. "Nada

poderia mudar-me, a não ser -" seu coração se intumescia, e era dificil

prosseguir; mas ela fez um grande esforço para se controlar e dizer numa

voz trêmula: "a não ser pensar que o senhor fosse diferente - não tão

bom como eu supunha que era."

"Por certo toma-me por melhor do que sou em todos os aspectos,

exceto um," disse Will, cedendo a seus próprios sentimentos ante a evi-

dência dos dela. "Refiro-me à minha sinceridade a seu respeito. Quando

pensei que duvidasse disto, tudo mais para mim deixou de ter importân-

cia. Tudo estava acabado, não havia mais nada o que tentar - só supor-

tar o que viesse."

"Eu não duvido mais do senhor," disse Dorothea, estendendo-lhe a

mão; uma vaga apreensão por ele impelia-a ao indizivel afeto.

Ele pegou-lhe a mão e ergueu-a aos lábios, com algo como um solu-

ço. Mas poderia ter posado, ali de pé, com seu chapéu e as luvas na

outra mão, para o retrato de um monarquista. Sem embargo, era dificil

soltar-lhe a mão, e Dorothea, recolhendo-a numa confusão que a afligia,

olhou para outro lado e afastou-se.

"Veja só, como as nuvens escureceram e o vento sacode as árvores,"

disse ela, andando para a janela, embora falasse e se movesse com uma

impressão muito vaga do que estava a fazer.

Will seguiu-a a uma pequena distância e se apoiou no encosto alto

de uma poltrona de couro, na qual se atreveu agora a depor seu chapéu

e as luvas, libertando-se da intolerável prisão do formalismo à qual fora

pela primeira vez condenado em presença de Dorothea. Confesse-se que

nesse momento, debruçando-se na poltrona, ele se sentia muito feliz. já

não temia tanto assim o que ela poderia por sua vez estar sentindo.

Mantiveram-se em silêncio, sem olhar um para o outro, mas a con-

templar as árvores que se agitavam, mostrando o pálido reverso de suas

folhas contra o céu turvo. Nunca uma ameaça de tempestade havia dado
tanto prazer a Wili, pois livrava-o da necessidade de ir-se embora.

Galhinhos e folhas eram arrastados, e os trovões já se tornavam mais

próximos. A luz ficava cada vez mais escura, mas de repente o clarão de

MIDI)LEMARCH

847

um raio fê-los sobressaltar-se e sorrir, depois que se entreolharam

Dorothea começou a dizer no que estivera pensando.

"Foi um erro o senhor dizer que não teria mais nada o que tentar.

Ainda que o nosso bem se perdesse, restaria o dos outros, que justifica

todo esforço. Há pessoas que podem ser felizes. Foi quando me vi mais

desditosa que tive a impressão de entender isto com mais clareza que

nunca. Mal posso imaginar como eu suportaria meus problemas, se tal

sentimento não viesse para me dar mais força."

"A senhora nunca experimentou a espécie de tormento por que pas-

sei," disse Will: "o tormento de crer que deveria desprezar-me."

"Mas experimentei coisa pior - pois pior era pensar mal -" Dorothea

começara impetuosamente, mas interrompeu-se.

Will corou. Tinha a impressão de que tudo o que ela dizia era ditado

pela visão de uma fatalidade que os mantinha à parte um do outro.

Calou-se um instante, antes de dizer apaixonadamente:

"Ao menos podemos ter o consolo de nos falarmos sem disfarces.

Posto que eu deva partir - posto que nos devamos separar para sempre

- é lícito que pense em mim como alguém que está à beira da cova."

Um novo e vívido clarão de relâmpago, enquanto ele falava, permi-

tiu-lhes, iluminando a ambos, que se vissem melhor - e era uma luz

que parecia o terror de um amor desesperançado. Instantaneamente

Dorothea se retirou da janela; Will acompanhou-a e pegou em sua mão

num movimento espasmódico; de mãos entrelaçadas, assim ficaram, como


duas crianças, olhando a tempestade, enquanto pelo alto iam a ribom-

bar os trovões, e a chuva começava a cair. Depois se puseram face a face,

lembrando-se das últimas palavras dele, sem que no entanto se soltas-

sem as mãos.

"Para mim não há esperança," disse Will. "Mesmo se me amasse

como eu a amo - mesmo se eu fosse tudo para a senhora - é bem

provável que eu sempre seja muito pobre: não posso senão contar, numa

estimativa sensata, com um destino abjeto.  impossivel para nós per-

tencermos algum dia um ao outro, e foi talvez indigno de minha parte

ter-lhe pedido uma palavra. Eu pretendia partir daqui em silêncio, mas

não fui capaz de cumprir minha intenção."

"Não se lamente," disse Dorothea, em seu tom mais claro e terno.

"Prefiro partilhar toda a dor de nossa separação."

Seus lábios, como os dele, tremiam. Nunca aliás se soube que boca

foi a primeira a se mover para a outra; mas o fato é que se beijaram,

tremendo ambos, e a seguir se afastaram.

A chuva batia nas vidraças, como se contivesse um espírito irado, e

848

GEORGE ELIOT

por trás dela investia a fúria do vento; era um desses momentos em que

ocupados e ociosos fazem igualmente uma pausa em respeitoso temor.

Dorothea sentou-se no lugar mais próximo, uma otomana longa e

baixa bem no meio da sala, e de mãos cruzadas no colo olhou o mundo

lá fora, tão sombrio. Will, ainda de pé, contemplou-a um instante e foi

sentar-se a seu lado, pegando-lhe a mão que se virou para cima para ser

agarrada. Sem se olharem de face, assim ficaram até a chuva amainar e

começar a cair já sem barulho. Ambos estavam cheios de idéias a que

nenhum dos dois porém conseguia dar expressão.


Silenciada a chuva, Dorothea se virou para Will. Numa exclamação

veemente, como se algum instrumento de tortura o ameaçasse, este se

levantou de um salto e disse: " impossível!"

Outra vez ele foi debruçar-se no encosto da poltrona, dando a im-

pressão de lutar contra a própria cólera, enquanto ela tristemente o

mirava.

" fatal como um assassínio ou qualquer outro horror a separar as

pessoas," explodiu de novo; "é ainda mais intolerável - ter nossa vida

estragada por acidentes banais."

"Não - não diga isto - sua vida não precisa ser estragada," disse

docemente Dorothea.

"Terá de ser," disse Will, com raiva. " cruel que me fale deste modo

- como se houvesse algum consolo. Talvez enxergue além de toda a

aflição, mas eu não consigo.  indelicado - é rejeitar o amor que lhe

tenho, como se fosse uma bagatela - falar assim diante dos fatos. Nós

não nos casaremos nunca."

"Algum dia - quem sabe?" disse Dorothea, numa voz trêmula.

"Quando?" disse Will amargamente. "De que adianta contar com

algum êxito meu?  mais que duvidoso que eu jamais vá além de me

manter com decência, a não ser que me decida a vender-me como um

mero escríba e porta-voz.  algo que vejo com bastante clareza. A ne-

nhuma mulher, mesmo que ela não tenha luxos aos quais renunciar,

posso fazer uma proposta."

Fez-se silêncio. O coração de Dorothea transbordava, repleto de algo

que ela queria dizer, entretanto lhe era muito difícil encontrar as

palavras,

que a possuíam totalmente: travava-se em seu íntimo, nesse momento,

um debate mudo. E era duro que ela não pudesse dizer o que queria. Wili,

colérico, olhava pela janela. Se olhasse para ela, ao invés de afastar-se

assim, tudo, pensava Dorothea, teria sido mais fácil. Por fim ele se virou,

ainda apoiado na poltrona, e, esticando o braço de maneira automática


para apanhar seu chapéu, disse numa espécie de exasperação: "Adeus."

MIDDLEMARCH

849

"Oh, eu não agüento - meu coração há de partir-se," disse ela, le-

vantando-se às pressas, enquanto a torrente de sua jovem paixão deita-

va abaixo todas as barreiras que a mantinham calada - e grossas lágri-

mas, num instante, vinham-lhe rolar pelo rosto: "Não ligo para a pobre-

za - pois odeio minha riqueza."

Num instante Will se pôs a seu lado e passou-lhe os braços em tor-

no, mas ela recuou a cabeça e gentilmente manteve a dele afastada para

poder continuar a falar, fitando-o na maior simplicidade com seus gran-

des olhos rasos d"água e dizendo, como uma criança, aos soluços: "Po-

deríamos viver muito bem de minha própria fortuna - que já é muito -

setecentas libras por ano - e eu preciso de tão pouco - não preciso de

roupas novas - e acabarei aprendendo o preço das coisas."

CAPÍTULo LXXXIV

"Though it be songe of old and yonge,

That I sholde be to blame,

Theyrs be the charge, that spoke so large

In hurtynge of my name."

- The Not-browne Mayde.

€"Se em seu canto o moço e o velho

Censurar-me estão querendo,

A culpa é deles, que tanto


Falam de mim me ofendendo.")

- A moça não-morena. 1

FOI LOGO DEPOIS DE a Câmara dos Lordes derrubar a Lei de Reforma:

isto explica por que vinha Mr. Cadwallader andando pela inclinação do

gramado, perto da grande estufa de plantas de Freshitt Hall, a segurar o

"Times" nas costas e, com a imparcialidade de um pescador de trutas, a

conversar com Sir James Chettam sobre as perspectivas do pais. Mrs.

Cadwallader, Lady Chettam, a viúva, e Celia ora sentavam-se em cadei-

ras de jardim, ora moviam-se ao encontro do pequenino Arthur, que era

puxado em seu carrinho e abrigado, como convinha ao infante Buda, por

seu sacro pára-sol de belas franjas de seda.

As senhoras também falavam de política, só que de modo mais ca-

prichoso. Mrs. Cadwallader era veemente sobre a futura indicação de

novos pares do reino: tinha por certo, pelo que lhe dissera seu sobrinho,

que Truberry só passara para o outro lado por instigação da esposa, a

"Canção inglesa anônima, do fim do século XV

MIDDLEMARCH

851

qual sentira a questão do pariato no ar desde as primeiras discussões da

Reforma e seria capaz de vender a própria alma para adquirir precedên-

cia sobre sua irmã mais nova, casada com um baronete. Lady Chettam

tomou por muito repreensível tal conduta e lembrou que a mãe de Mrs.

Truberry era uma Miss, Walsingliam de Melspring. Celia confessou que

era melhor ser "Lady" que "Mrs.," mas que Dodo nunca ligava para

precedência, desde que pudesse agir a seu modo. Mrs. Cadwallader sus-
tentou que era uma tola satisfação ter precedência quando todos a seu

redor sabiam que nem uma gota de bom sangue você tinha nas veias; e

de novo Celía, parando a olhar para Arthur, disse: "Mas que bom seria

se ele fosse um Visconde - e se o dentinho de sua excelência despon-

tasse logo! Bem que ele poderia ser aliás, se o James fosse Conde."

"Minha querida Celia," disse a viúva, "o título de James vale muito

mais que o de qualquer Conde novato. Eu nunca desejei que o pai dele

fosse outra coisa além de Sirjames."

"Oh, eu só estava pensando no dentinho do Arthur," disse Celia,

sem se incomodar. "Mas, vejam, aí vem vindo meu tio."

E saltitando ela foi ao encontro do tio, enquanto Sir James e Mr.

Cadwallader avançavam para formar um grupo com as senhoras. Celia

se pôs de braços dados com o tio, que lhe acariciou a mão com um "E

então, minha filha!" algo melancólico. Ao se aproximarem, era evidente

que Mr. Brooke tinha um ar de desalento, o qual foi atribuído porém

apenas à situação política; e enquanto ele apertava mãos ao redor -

limitando suas saudações a um "Ora essa, então estão todos aqui, não

é?" - o Reitor, sorrindo, disse:

"Não tome assim tão a peito, Brooke, a rejeição da Lei; você tem a

seu lado toda a ralé do país."

"A Lei? ah, U" disse Mr. Brooke, a um modo pacífico de desatenção.

"Foi rejeitada, não é? Mas os Lordes estão indo longe demais, e ainda

terão de se conter. Trago má notícia, sabem? Quero dizer aqui, em nosso

meio - má notícia. Só espero que não ponha a culpa em mim, Chettam."

"Qual é o problema?" disse Sir James. "Tomara que não seja outro

coiteiro que levou um tiro! Era de se esperar, quando um camarada como

Trapping Bass é deixado com tal facilidade à solta."

"Coiteiro? Não. Vamos entrar; dentro de casa posso contar a vocês

todos," disse Mr. Brooke, com um aceno de cabeça para os Cadwalladers,

a demonstrar que os incluía em sua confiança. "Quanto aos ladrões de

caça como Trapping Bass, Chettam," continuou ele enquanto iam en-
trando, "garanto-lhe não ser tão fácil, para um juiz, mandar recolhê-los

852

GEORGE ELIOT

à prisão. A severidade é ótima, sim, mas é ainda melhor quando se tem

alguém para aplicá-la por nós. Você mesmo, sabe, tem em seu coração

um ponto fraco - não é um Draco, um Jeffreys, esse tipo de gente."

Obviamente Mr. Brooke se encontrava num estado de agitação ner-

vosa. Quando tinha a dizer algo que incomodava, era seu hábito

apresentá-lo em meio a uma série de pormenores descosidos, como se

se tratasse de um remédio que, sendo misturado, passava a ter gosto

mais suave. Continuou ele a conversar com Sir James sobre os ladrões

de caça, até que estivessem todos sentados, e Mrs. Cadwallader,

impacientando-se com tais frioleiras, disse:

"Estou morrendo de vontade de saber qual a má notícia. O coiteiro,

já se viu, não levou um tiro. Pois então o que é?"

"Bem, é uma coisa muito penosa, sabe?" disse Mr. Brooke. "Ainda

bem que a senhora e o Reitor estão aqui; é uma questão de família -

mas você há de nos ajudar a suportá-la, Cadwallader. Tenho de colocá-la

a par, minha filha." Mr. Brooke olhou aqui para Celia: "Você nem imagi-

na o que seja, não é? E você, Chettam, há de se aborrecer muitíssimo -

mas, veja bem, não foi capaz, como eu também não fui, de o impedir. Há

algo de muito singular nas coisas: elas acontecem, e pronto."

"Deve ser sobre a Dodo," disse Celia, que já se acostumara a pensar

na irmã como a parte perigosa da engrenagem familiar. Ela estava senta-

da num tamborete baixo, apoiando-se contra os joelhos do marido.

"Pelo amor de Deus, vamos ouvir o que éV" disse Sirjames.

"Bem, eu não me pude amparar, sabe, Chettam, no testamento do

Casaubon: uma espécie de testamento que tornou as coisas piores."


"Exatamente," disse SirJames, afobado. "Mas o que é pior?"

"Dorothea vai-se casar de novo," disse Mr. Brooke, balançando a

cabeça para Celia, que de imediato lançou a seu marido um olhar assus-

tado e pôs-lhe a mão no joelho.

Sir James ficou quase branco de raiva, mas não falou.

"Oh, Deus misericordioso!" disse Mrs. Cadwallader. "Não com o

jovem Ladislaw?"

Mr. Brooke fez que sim com a cabeça, completando: "Sim, com o

Ladislaw," e caiu em seguida num silêncio prudente.

"Veja só, Humphrey!" disse Mrs. Cadwallader, gesticulando para seu

marido. "Da próxima vez você terá de admitir que não me falta perspicá-

cia; a não ser que me contradiga para continuar cego como sempre foi.

Você achava que este rapaz tinha ido embora da região."

"Pode ter ido e depois voltado," disse calmamente o Reitor.

MIDDLEMARCH

853

"Quando você soube disto?" disse Sir James, não querendo ouvir

mais ninguém falar, mas achando dificil ele mesmo dizer alguma coisa.

"Ontem," respondeu docilmente Mr. Brooke. "Eu estive em Lowick,

porque a Dorothea me mandou chamar. Tudo aconteceu de repente -

nenhum dos dois, há dois dias atrás, tinha a menor idéia - a menor idéia,

sabe? Há algo de muito singular nas coisas. Mas a Dorothea já está deci-

dida - não adianta se opor. Eu fui muito taxativo com ela. Fiz o que era

de meu dever, Chettam. Mas você sabe que ela pode agir como queira."

"Teria sido melhor se eu o desafiasse para um duelo e o matasse há

um ano atrás," disse Sirjames, não por espírito sangüinolento, mas por

mera necessidade de dizer alguma coisa bem forte.

"Realmente, James, isto teria sido muito desagradável," disse Celia.


"Seja sensato, Chettam. Considere com mais serenidade a questão,"

disse Mr. Cadwallader, lamentando ver seu amigo, bondoso por nature-

za, ser dominado pela ira.

"Não é assim tão fácil, para um homem que tenha dignidade - e um

mínimo de decência, - quando o caso acontece em sua própria família,"

disse Sir James, ainda branco de indignação. " um perfeito escândalo.

Se o Ladislaw tivesse um pingo de honra, abandonaria de vez a região, e

nunca mais daria as caras por aqui. Contudo, não me surpreendo. No

dia seguinte ao enterro do Casaubon eu bem que disse o que devia ser

feito. Mas ninguém me deu ouvidos."

"O que você queria, Chettam, e você sabe, era impossível," disse

Mr. Brooke. "Queria que nos livrássemos dele, não é? Mas eu lhe disse

que o Ladislaw não era de se dobrar à nossa vontade: ele tem lá suas

idéias.  um moço invulgar - eu sempre disse que ele era um moço

invulgar."

"Sim," disse Sirjames, incapaz de reprimir um revíde, "é uma pena

que você tenha formado tão boa opinião sobre ele.  a isto que devemos

tê-lo instalado aqui entre nós.  a isto que devemos o fato de vermos

uma mulher como Dorothea degradando-se por se casar com ele." Sir

James fazia breves pausas entre suas frases, pois as palavras não lhe

vinham facilmente. "Um homem tão visado pelo testamento do marido

dela, que a simples delicadeza a deveria ter impedido de revê-lo - um

homem que a tira de sua classe - que a arrasta à pobreza - comete a

baixeza de aceitar tal sacrificio - sempre teve uma situação objetável -

uma origem ruim - e, creio eu, tem um caráter leviano e bem poucos

princípios. Esta é a minha opinião," concluiu enfaticamente Sir James,

virando-se de lado e cruzando as pernas.

854

GEORGE ELIOT
"Eu a fiz ver tudo isto," disse Mr. Brooke, como que se desculpando.

"Quero dizer, a pobreza, o abandono de sua posição. Falei-lhe assim:

"Minha filha, você não sabe o que é viver com setecentas libras por ano,

sem ter carruagem e esse tipo de coisa, e encontrar-se entre pessoas que

ignoram quem você é." Fui bem taxativo. Mas aconselho-o a conversar

você mesmo com Dorothea. O fato é que a fortuna do Casaubon não lhe

agrada nada. Você há de ouvir o que ela diz, sabe?"

"Não - desculpe-me - não farei isto," disse Sir James, com mais

frieza. "Não agüento vê-la de novo; é penoso demais. Para mim é um

grande sofrimento que uma mulher como Dorothea tenha cometido tal

erro."

"Seja justo, Chettam," disse o Reitor, complacente e de lábios car-

nudos, que se opunha a todo este desnecessário mal-estar. "Mrs.

Casaubon pode estar a agir imprudentemente: por causa de um homem,

abre mão de uma fortuna, e nós homens temos uns dos outros uma

opinião tão ruim, que dificilmente podemos considerar sensata uma

mulher que faz isto. Mas creio que você não deve condená-la dizendo

que se trata de um erro, no sentido estrito da palavra."

"Pois é o que penso," respondeu Sir James. "Penso que Dorothea

comete um erro casando-se com o Ladislaw."

"Meu caro amigo, temos tendência a considerar uma ação um erro

quando ela não nos agrada," disse calmamente o Reitor. Como muitos

homens que sabem levar a vida, ele tinha a habilidade de dizer de vez

em quando uma verdade bem simples aos que se davam a ataques de

indignação virtuosa. Sir James tirou seu lenço para logo o levar à boca.

"Mas é muito espantoso de Dodo," disse Celia, querendo justificar

seu marido. "Ela disse que nunca se casaria de novo - com quem quer

que fosse."

"Eu a ouvi dizer a mesma coisa," disse Lady Chettam majestaticamente,

como se fosse um testemunho real.


"Oh, nesses casos em geral há uma exceção subentendida," disse

Mrs. Cadwallader. "A única coisa que me espanta é que vocês estejam

surpresos. Não fizeram nada para impedir isto. Se tivessem trazido aqui

Lord Triton, para conquistá-la com sua filantropia, em menos de um ano

ele a teria levado. Nada mais era seguro. Mr. Casaubon tinha preparado

tudo o melhor possivel. Fez-se de desagradável - ou aprouve a Deus

fazê-lo assim - e depois desaflou-a a contradizê-lo.  o modo de tornar

tentadora qualquer jóia falsa, pôr-lhe um preço assim tão alto."

"Não sei o que você entende por erro, Cadwallader," disse Sirjames,

MIDDLEMARCH

855

que ainda sentia a alfinetada, virando-se em sua cadeira para o Reitor.

"Ele não é um homem que nós possamos aceitar na família. Pelo menos,

devo falar por mim," continuou, desviando com cuidado seus olhos de

Mr. Brooke. "Suponho que outros achem sua companhia muito agradá-

vel para se preocuparem com a dignidade da coisa."

"Bem, Chettam, você sabe que eu," disse Mr. Brooke, de bom hu-

mor, passando a mão numa perna, "não posso dar as costas à Dorothea.

Até um certo ponto devo ser um pai para ela. Disse-lhe: "Minha filha,

não vou-me recusar à sua vontade." Eu tinha falado antes com energia.

Mas eu posso anular a vinculação dos bens, sabiam? Vai custar dinheiro

e dar trabalho; mas eu posso fazê-lo, sabem?"

Mr. Brooke balançou a cabeça para Sirjames, sentindo que ao mes-

mo tempo mostrava seu poder de resolução e propiciava o que mais

convinha para atormentar o Baronete. O revide era mais engenhoso do

que se dava conta ele mesmo. Tocara num ponto de que Sir James se

envergonhava. A massa de seus sentimentos em relação ao casamento

de Dorothea com Ladislaw era em parte devida a um preconceito des-


culpável, ou mesmo a uma opinião justificável, mas também em parte a

uma repugnãoncia ciumenta, presente tanto no caso de Ladislaw como

no de Casaubon. Ele estava convencido de que o casamento era fatal

para Dorothea. Mas em meio a esta massa corria um veio que, como

homem bom e honrado, nem para si ele podia gostar de reconhecer: era

inegável que a união das duas propriedades - Tipton e Freshitt - ré -

pousando encantadoramente dentro da mesma cerca, era uma perspec-

tiva lisonjeira para seu filho e herdeiro. Daí Sir James ter sentido um

súbito embaraço quando Mr. Brooke aludiu com seu meneio de cabeça à

questão; sentiu um nó na garganta; e até corou. Tinha falado com mais

eloqüênciaque de hábito no primeiro jorro de suacólera, mas opropicia-

do por Mr. Brooke lhe travou mais a língua do que a cáustica insinuação

de Mr. Cadwallader.

Celia alegrou-se por encontrar espaço para falar, após a alusão de

seu tio à cerimônia de casamento, e disse, embora com tão pouca preo-

cupação em seus modos como se se tratasse de um convite para um

jantar: "O senhor acha então que a Dodo vai-se casar logo, titio?"

"Dentro de três semanas," disse Mr. Brooke, sem saída. "Nada eu

posso fazer para evitar, Cadwallader," acrescentou, virando-se como que

em busca de apoio para o Reitor que disse:

"Eu não criaria confusão nenhuma. Se ela gosta de ser pobre, é pro-

blema dela. Ninguém diria nada se ela se casasse com o rapaz por ele ser

856

GEORGE ELIOT

rico. Há muitos clérigos beneficiados mais pobres do que eles serão.

Aqui está Elinor," continuou o provocante marido; "ela envergonhou

seus amigos casando-se comigo: eu mal chegava a ter mil libras por ano

- era um roceiro - ninguém podia ver nada em mim - meus sapatos


não estavam na moda - todos os homens estranhavam que uma mu-

lher pudesse gostar de mim. Palavra, acho que devo ficar do lado de

Ladislaw até que eu saiba de algo que o desabone mais."

"Humprey, isto é puro sofisma, e você sabe," disse sua esposa. "Túdo

dá no mesmo - sempre é assim que você começa e termina. Como se

não fosse um Cadwallader! Alguém supõe que eu aceitaria um monstro

como você com outro nome?"

"E além do mais um clérigo," observou Lady Chettam com aprova-

ção. "Não se pode dizer que Elinão tenha baixado de classe. já Mr.

Ladislaw, é difícil dizer o que ele é, não é, James?"

Sirjames deu um grunhido, modo menos respeitoso que o habitual de

responder à sua mãe. Celia olhou para ele como uma pensativa gatinha.

"Deve-se admitir que o sangue dele é uma mistura horrorosa!" disse

Mrs. Cadwallader. "Para começar, o fluido de siba de Casaubon, depois

um rebelde polonês, rabequista ou mestre de danças, não era? - e de-

pois um velho pa -"

"Que absurdo, ElinorV" disse o Reitor, e se levantou. "E está na hora

de ir embora."

"Afinal de contas, ele é um broto bonito," disse Mrs. Cadwallader,

levantando-se também, e querendo fazer emendas. "Parece-se com aque-

les belos retratos de Crichley que datam de antes da invasão dos idiotas."

"Vou com vocês," disse Mr. Brooke, levantando-se com alacridade.

"Convido a todos para jantar comigo amanhã, está bem? - está bem,

Celia?"

"James, você vai - não é?" disse Celia, pegando a mão do marido.

"Oh, claro que sim, se você quiser," disse Sir James, puxando seu

colete para baixo, mas incapaz de ajustar bem humoradamente o rosto.

"Isto é, se não for para encontrar mais ninguém."

"Não, não, não," disse Mr, Brooke, compreendendo a condição.

"Dorothea não viria, sabe, a menos que você fosse estar com ela."

Quando Sir James e Celia já estavam sozinhos, ela disse: "Você se


importa que eu pegue a carruagem para dar um pulo a Lowick, James?"

"Como, agora?" respondeu ele, bem surpreso.

"Sim, é muito importante," disse Celia.

"Lembre-se, Celia, eu não posso estar com ela," disse Sir James.

MIDDLEMARCH

857

"Nem se ela desistir de casar-se?"

"De que adianta falar isto? - mas está bem, vou até a estrebaria

mandar o Briggs trazer a carruagem."

Celia pensava que adiantava muito, se não falar assim, pelo menos

fazer uma viagem a Lowick a fim de influenciar Dorothea. Durante toda

sua infância sentira-se capaz de agir sobre a irmã colocando uma palavra

sensata - abrindo uma janelinha para que a luz do dia de sua própria

razão entrasse no meio das estranhas lâmpadas coloridas às quais Dodo

sempre via. E Celia como mãe de família naturalmente se sentia mais

capaz de aconselhar sua irmã sem filhos. Como podia alguém entender

Docio tão bem, ou amá-la tão ternamente como Celia?

Dorothea, ocupada em seu boudoir, ficou no auge da alegria por ver a

irmã logo assim tão cedo após a revelação de seu planejado casamento.

já se prefigurara, e até com exagero, o desgosto de seus amigos, e chega-

ra a temer que Celia se mantivesse à distância.

"Oh, Kitty, quanto prazer em vê-la!" disse Dorothea, pondo as mãos

no ombro de Celia e envolvendo-a no olhar. "Cheguei quase a temer

que você não viesse."

"Não trouxe o Arthur porque eu estava apressada," disse Celia, e

sentaram-se em duas pequenas cadeiras que se defrontavam, com seus

joelhos se encostando.

"Sabe, Dodo, é muito triste," disse Celia, em seu tom gutural e pláci-
do, mostrando-se o mais isenta de humores possível. "Você nos desapon-

tou a todos. E eu nem consigo pensar que isto vá acontecer - você nunca

vai poder viver assim desse jeito. E depois há todos os seus planos! Ga-

ranto que não pensou nisto. O James se daria por você a qualquer incô-

modo, e você poderia ficar fazendo o que gosta pela vida inteira."

"Pelo contrário, querida," disse Dorothea, "eu nunca poderia fazer

aquilo que gosto. Eu nunca executei nenhum dos meus planos."

"Porque sempre você quis coisas que não podiam ser. Outros planos

porém dariam certo. E agora como pode se casar com Mr. Ladislaw, quan-

do nunca nenhum de nós pensou que pudesse se casar? O James está

profundamente chocado. E depois isto não combina nada com quem

você sempre foi. Você quis Mr. Casaubon porque ele tinha uma grande

alma, e era tão velho e horroroso e erudito; e agora pensa em casar-se

com Mr. Ladislaw, que não tem bens nem coisa alguma. Acho que é

porque você de algum modo está querendo fazer-se mal."

Dorothea riu.

"Bem, é muito sério, Dodo," disse Celia, assumindo ar mais impres-

858

GEORGE ELIOT

sivo. "Como você vai viver? vai desaparecer entre estranhos. E nunca

mais vou vê-la - e você nem se importará com o Arthur - quando eu

esperava que iria sempre _"

Aos olhos de Celia, o que era raro, vieram lágrimas, e os cantos de

sua boca tremeram.

"Querida Celia," disse Dorothea, com terna gravidade, "se você nunca

mais me vir, não será por culpa minha."

"Será sim," disse Celia, com a mesma tocante distorção de seu rosto

miúdo. "Como poderei ir vê-la, ou tê-la comigo, se o james não tolera-


ria? - porque ele acha que não está certo - acha que você está errada,

Dodo. Mas você sempre esteve errada; só que não me posso impedir de

amá-la. Ninguém consegue imaginar onde você vai viver: para onde po-

derá ir?"

"VOU para Londres," disse Dorothea.

"Para ficar, tão pobre como há de ser, vivendo sempre na rua? Eu

bem que poderia dar-lhe metade das minhas coisas, mas como, se nunca

voltar a vê-la?"

"Deus a abençoe, Kitty," disse Dorothea, gentil e calorosa. "Tran-

qüilize-se: talvez um dia o james me perdoe."

"Mas seria muito melhor se você não se casasse," disse Celia, enxu-

gando os olhos e retomando seu argumento; "não haveria então nenhum

desconforto. E você não faria o que ninguém pensava que era capaz de

fazer. O James sempre disse que você deveria ser uma rainha; mas isto

não se coaduna de maneira nenhuma com uma rainha. Você sabe os

erros que sempre andou cometendo, Dodo, e este é mais um. Ninguém

acha que Mr. Ladislaw seja um marido adequado para você. E você disse

que nunca se casaria de novo."

" verdade que eu poderia ser uma pessoa mais sábia, Celia," disse

Dorothea, "e que poderia fazer coisa melhor, se eu fosse melhor. Mas

isto é o que eu vou fazer. Prometi casar-me com Mr. Ladislaw; e vou

casar-me com ele."

De há muito Celia tinha aprendido a reconhecer o tom no qual

Dorothea disse isto. Ela se calou um instante, e depois perguntou, como

se houvesse desistido da disputa: "Ele gosta muito de você, Dodo?"

"Espero que sim. Eu gosto muito dele."

"Que bom," disse Celia, mais à vontade. "Só que eu gostaria que

tivesse um marido do tipo do james, com um lugar aqui por perto aonde

eu pudesse ir de carruagem."

Dorothea sorriu, Celia tornou-se algo meditativa. Depois disse: "Não


MIDDLEMARCH

859

consigo imaginar como aconteceuf pensando no prazer que teria ouvin-

do a história.

"Não me atrevo a contar," disse Dorothea, beliscando o queixo da

irmã. "Se você soubesse como aconteceu, não lhe pareceria maravilhosof

"Não pode dizer-me?" disse Celia, deixando os braços relaxarem.

"Não, querida, você teria de sentir junto comigo, senão jamais sa-

beria."

CAPITULo LXXXV

"Then went the jury out, whose names were Mr.

Blindman, Mr. Nogood, Mr. Malice, Mr. Love -lust, Mr. Live-

loose, Mr. Heady, Mr. High-mind, Mr. Erimity, Mr. Liar, Mr.

Cruelty, Mr. Hate-light, Mr. Implacable, who every one gave

in his private verdict against him among therríselves, and

afterwards unanimously concluded to bring him in guilty

before the judge. And first among therríselves, Mr.

Blindrnan, the foreman, said, 1 see clearly that this man is

a heretic. Then said Mr. Nogood, Away with such a fellow

from the earth! Ay, said Mr. Malice, for 1 hate the very look

of him. Then said Mr. Love-lust, 1 could never endure him.

Nor 1, said Mr. Live-loose; for he would be always

condemning my way. Hang him, hang him, said Mr. Heady.

A sorry scrub, said Mr. High-mind. My heart riseth against

him, said Mr. Erimity. He is a rogue, said Mr. Liar. Hanging

is too good for him, said Mr. Cruelty. Let us despatch him

out of the way, said Mr. Hate-light. Then said Mr.


Implacable, Might 1 have all the world given me, 1 could

not be reconciled to him; therefore let us forthwith bring

him in guilty of death."

- Pilgrim"s Progress.

CEntão saíram os jurados, cujos nomes eram Mr.

Cegueta, Mr. Imprestável, Mr. Malícia, Mr. Depravado, Mr.

Vida-frouxa, Mr. Cabeçudo, Mr. Metidez, Mr. Inimizade,

Mr. Mentiroso, Mr. Crueldade, Mr. Obtuso, Mr. Implacá -

vel, cada um dos quais deu seu veredicto pessoal contra

ele, e depois decidiram por unanimidade entre si declará-

lo culpado perante o juiz. E por primeiro entre eles o pri-

meiro jurado, Mr. Cegueta, disse: Vejo claramente que este

homem é um herege. Depois falou Mr. Imprestável: Fora

MIDDLEMARCH

861

com este camarada da Terral A favor, disse Mr. Malícia,

pois só de olhar para ele já me dá raiva. Disse então Mr.

Depravado: Eu nunca poderia suportá-lo. Nem eu, disse

Mr. Vida-frouxa; pois sempre iria censurar meus modos.

· forca, à forca com ele, disse Mr. Cabeçudo. Trata-se de

um joão-ninguém, disse Mr. Metidez. Meu coração se er-

gue contra ele, disse Mr. Inimizade.  um vagabundo, dis-

se Mr. Mentiroso. A forca é até bom demais para ele, disse

Mr. Crueldade. Vamos ter de tirá-lo do caminho, disse Mr.

Obtuso. Por fim Mr. Implacável disse: Pudesse o mundo

todo me ser dado, nunca eu me reconciliaria com ele; por


conseguinte, que o condenemos incontinente como cul-

pado à morte.")

- A viagem do peregrino."

QUANDO O IMORTAL Bunyan traça este quadro das paixões persecutórias

a apresentarem seu veredicto de culpa, quem se apieda da Veracidade? 

um destino raro e abençoado, a que nem alguns dos grandes homens

chegaram, sabermo-nos inocentes diante de uma multidão que condena

- estarmos certos de que aquilo por que nos denunciam é tão-somente

o que há em nós de bom. Lamentável destino é o do homem que não

podia intitular-se mártir nem se viesse a se persuadir de que os homens

que o apedrejavam não eram senão feias paixões encarnadas - que sabe

que é apedrejado, não por professar a Verdade, mas por não ser o ho-

mem que ele professava ser.

Sob esta consciência era que definhava Buistrode, enquanto fazia

seus preparativos para abandonar Middemarch e ir terminar sua vida

enfraquecida neste triste refúgio, a indiferença das caras novas. A cons-

tância submissa e misericordiosa de sua esposa, se o havia livrado de

um pavor, não podia impedir que a presença dela fosse ainda assim um

tribunal, perante o qual ele se furtava à confissão e à desejada defesa.

Seus equívocos sobre si mesmo quanto à morte de Raffies haviam

amparado a concepção de uma Onisciência à qual ele rezava, entretan-

to um terror se lhe sobrepunha que o não deixava expô-los a julga -

IDejohn Bunyan.

862

GEORGE ELIOT
mento por uma ampla confissão à esposa: os atos que ele tinha lavado

e diluído com argumentos e motivos internos, e pelos quais parecia

comparativamente fácil conquistar perdão invisível - que nome lhes

daria ela? Ele não podia suportar que lhes desse sempre em silêncio o

nome de Homicídio. Sentia-se amortalhado pela dúvida dela: encon-

trava força para encará-la na impressão de que ela não se podia ainda

sentir autorizada a pronunciar esta condenação sobre ele, a pior de

todas. Algum dia, talvez - quando ele estivesse morrendo - contar-

lhe-ia tudo: na sombra profunda desta hora, quando ela pegasse em

sua mão ante a chegada das trevas, poderia ouvir sem se esquivar ao

contacto. Talvez: mas dissimular tinha sido o hábito de sua vida, e o

impulso à confissão nada podia contra o medo de uma humilhação

mais profunda.

Andava cheio de tímidas atenções para com sua esposa, não somen-

te porque procurava aplacar-lhe a dureza de julgamento, mas também

porque sentia grande pesar à vista do sofrimento dela. Ela mandara as

filhas passarem uma temporada numa escola na costa, para esconder-

lhes o mais possível a crise. Liberada por esta ausência da intolerável

necessidade de explicar sua tristeza ou vê-las num espanto amedronta-

do, podia viver sem restrições só com o sofrimento que a cada dia lhe

embranquecia mais os cabelos e arriava as pálpebras.

"Diga-me o que você gostaria que eu fizesse, Harriet," disse-lhe cer-

ta vez BuIstrode; "no tocante às disposições sobre os bens.  minha

intenção não vender as terras que possuo aqui, e sim deixá-las para você,

como uma precaução segura. Se tiver algum desejo a respeito, não mo

esconda!"

Alguns dias depois, ao voltar de uma visita à casa do seu irmão,

ela abordou com o marido um assunto no qual já pensava há tem-

pos.

"Eu gostaria de fazer alguma coisa pela família do meu irmão,

Nicholas; e penso ser de nosso dever darmos a Rosamond e o marido


uma reparação. Diz o Walter que Mr. Lydgate terá de abandonar a

cidade, que sua clínica quase já não dá para nada e que eles dispõem

de muito pouco para se estabelecer noutra parte. Prefiro que nos prive-

mos de alguma coisa, para podermos dar uma reparação à família do

meu pobre irmão."

Mrs. BuIstrode não desejava maior proximidade com os fatos do

que à que chegava com a frase Mar uma reparação;" sabendo que o

MIMUMARCH

863

marido devia compreendê-la. Mas ele tinha uma razão pessoal, que

ela desconhecia, para não acatar a sugestão. Hesitou pois, antes de

dizer:

"Não é possível realizar o seu desejo da maneira como propõe,

querida. Mr. Lydgate rejeitou na prática quaisquer novos favores de

minha parte. Devolveu-me as mil libras que eu lhe havia emprestado.

Para tanto, Mrs. Casaubon adiantou-lhe a quantia. Aqui está a carta

dele."

Mrs. Bulstrode demonstrou ofender-se gravemente com a carta. A

menção ao empréstimo de Mrs. Casaubon parecia um reflexo da opi-

nião pública a tomar por coisa estabelecida que todos deviam evitar

ligações com seu marido. Por algum tempo ela ficou em silêncio; e

caíram-lhe lágrimas, uma após outra, e tremia-lhe o queixo enquanto

ela se punha a enxugá-las. BuIstrode, sentado em face, condoía-se ao

ver banhado de dor aquele rosto que há dois meses apenas estava ale-

gre e florescente, mas envelhecera para fazer triste companhia à sua

própria fisionomia estiolada. Levado a um esforço para a consolar, ele

disse:

"Há um outro meio, Harriet, de eu prestar ajuda à família do seu


irmão, se você quiser tomar parte. E que, penso eu, lhe seria benéfico:

seria um modo vantajoso de cuidar das terras que eu pretendo que se-

jam suas."

Ela mostrou-se atenta.

a pensou em a

"Garth i" ssumir a administração de Stone Court a fim

de lá colocar o seu sobrinho Fred. O gado permaneceria como está, e

eles iriam pagar uma porcentagem sobre os lucros, ao invés de um arren-

damento comum. Seria um bom começo para o rapaz, e bem de acordo

com o trabalho dele com o Garth. Isto a faria satisfeita?"

"Oh, sim," disse Mrs. Bulstrode, recuperando um pouco de energia.

"O coitado do Walter anda tão abatido! Eu gostaria de tentar tudo ao

meu alcance para fazer-lhe algum bem antes de partir. Nós sempre fo-

mos muito unidos como irmão e irmã."

"Você mesma deve fazer a proposta ao Garth, Harrie€" disse Mr.

Bulstrode, não gostando do que tinha a dizer, mas desejando o fim que

tinha em vista, por outras razões além da consolação de sua esposa.

,Deixe-lhe bem claro que as terras na prática são suas e que ele não

precisará ter transações comigo. As comunicações podem ser feitas atra-

vés do Standish. Refiro-me a isto, porque o Garth desistiu de ser meu

864

GEORGE ELIOT

capataz. Posso passar-lhe às mãos um documento que ele mesmo redi-

giu, estabelecendo as condições, das quais você pode propor uma acei-

tação renovada. Não acho improvável que ele aceite, sendo você quem

propõe a coisa por causa de seu sobrinho."

CAPÍTULo LVI
"Le coeur se sature d"amour comme d"un sel divin qui lê

conserve; de 1à Vincorruptible adhérence de ceux qui se

sont aimés dês Paube de Ia vie, et Ia fralcheur des vieilles

amours prolongées. 11 existe un embaumement d"amour.

Cest de Daffinis e ChIoé que sont faits Philémon et

Baucis. Cette vieillesse-là, ressemblance du soir avec

Paurore."

- VICTOR HUGO: Uhomme qui rit.

€"O coração se satura de amor como de um sal divino que o

conserva; donde a incorruptível aderência dos que se ama-

ram desde a aurora da vida, e o frescor dos velhos amores

prolongados. Existe um embalsamamento de amor.  de

DUnis e Cloe que saíram Filêmon e Baucis. Esta velhice,

semelhança da noite com a aurora.")

- VICTOR HUGO: O homem que rí.

MRS. GARTH, OUVINDO CALEB entrar no corredor, pela hora do chá, abriu

a porta da sala e disse: " você, Caleb? já jantou?" (As refeições de Mr.

Garth eram muito subordinadas aos "negócios.")

"Já sim, e um bom jantar - carneiro frio com não sei mais o quê.

Onde está a Mary?"

"No jardim com Letty, acho."

"O Fred ainda não veio?"

"Não. Você vai sair de novo sem tomar chá, Caleb?" disse Mrs. Garth,

vendo que seu distraído marido já estava pondo na cabeça de novo o

chapéu que acabara de tirar.

"Não, não; só vou falar com a Mary um minuto."


866

GEORGE ELIOT

Mary estava num canto relvado do jardim, onde havia um balanço

pendurado entre duas pereiras. Tinha um lenço vermelho amarrado na

cabeça, o qual fazia um anteparo para proteger seus olhos do sol enquan-

to ela dava gloriosos empurrões no balanço a Letty, que ria e gritava feito

louca.

Vendo seu pai, Mary largou o balanço e foi-lhe ao encontro, puxan-

do para trás o lenço vermelho e já de longe endereçando a ele o

involuntário sorriso do prazer da afeição.

"Vim falar com você, Mary," disse Mr. Garth. "Vamos dar uma volta."

Ela sabia muito bem que era algo particular o que seu pai tinha a

dizer: suas sobrancelhas se dispunham em seu arco patético e havia na

voz dele uma gravidade terna: sinais a que estava acostumada desde a

idade de Letty. Ela deu-lhe o braço, e dobraram na aléia de nogueiras.

"Vai ser um tempo tristonho até você se casar, Mary," disse ele, olhan-

do para a ponta da bengala que segurava com a outra mão, e não para ela.

"Tristonho não, papai - risonho," disse Mary sorrindo. "Há mais de

vinte e quatro anos que eu vivo só e alegre: e o que está por vir, suponho"

não será tão longo." Depois de uma pausa, e com mais gravidade, incli"

nando o rosto para o do pai, disse: "O senhor está contente com o Fre&

Caleb fez um muxoxo e, prudentemente, virou a cabeça para o outro

lado.

"Ora, pai, na quarta-feira passada o senhor o elogiou. Disse que ele

entendia muito de gado, e tinha um bom olho para ver as coisas."

"Foi?" disse Caleb, meio intimidado.

"Foi sim, eu anotei e pus a data, anno Domini e tudo," disse Mary. "O

senhor gosta das coisas por escrito, não é? E o comportamento dele com
o senhor, meu pai, é realmente bom; ele tem um profundo respeito pelo

senhor; quanto ao temperamento, é impossível um melhor que o do

Fred."

"Olhe lá, você está querendo índuzir-me a pensar que ele é um bom

parceiro."

"De modo algum, papai. Eu não o amo por ele ser um bom parceiro."

"Então por quê?"

"Oh, Deus meu, porque sempre o amei. E é nele que sempre me

agradaria mais passar um pito, ponto importante a considerar em rela-

ção a um marido."

"Sua decisão então está tomada, Mary?" disse Caleb, retornando a

seu primeiro tom. "Nenhuma outra vontade entrou em causa depois

que as coisas tomaram ultimamente o rumo que tomaram?" (Caleb que-

ria dizer muito com esta frase tão vaga); "porque é melhor tarde do que

M=LEMARCH

867

nunca. Uma mulher não deve forçar seu coração a nada - pois com isto

não vai fazer bem ao homem."

"Meus sentimentos não mudaram, papai," disse Mary calmamente.

"Serei fiel ao Fred enquanto ele me for fiel. Não creio que um de nós

possa prescindir do outro, nem gostar mais de outra pessoa, por mais

que a admiremos. Seria uma diferença muito grande para nós - como

ver todos os velhos lugares alterados e mudar o nome de tudo. Vamos

ter de esperar um pelo outro um bom tempo; mas o Fred sabe disto."

Ao invés de falar imediatamente, Caleb parou imóvel e espetou a

bengala no caminho gramado. Depois disse, com emoção na voz: "Bern,

tenho uma noticiazinha. O que você acha de o Fred ir viver em Stone

Court, e cuidar das terras de lá?"


"Como seria possível, papai?" disse Mary, interessada.

"Ele administraria a propriedade para a sua tia Bulstrode. A pobre

senhora, suplicante, foi que veio pedir-me. Quer fazer bem ao rapaz, e

para ele pode ser uma coisa ótima. Poupando, pouco a pouco ele pode

comprar o gado, e para a agricultura tem queda."

"Oh, o Fred ficaria tão feliz!  bom demais para acreditar."

"Ah, mas veja bem," disse Caleb, a cabeça em posição de advertên-

cia, "devo tomar tudo em meus ombros e ficar como responsável, dando

sempre umas olhadas; e isto há de incomodar sua mãe um pouco, ainda

que ela não o diga. O Fred precisaria ser cuidadoso."

"Talvez seja muito, papai," disse Mary, contida em sua alegria. "Não

haverá felicidade nenhuma em lhe trazer mais problemas."

"Não, não; o trabalho só me traz prazer, quando não aborrece sua

mãe. E depois, se você e o Fred se casarem," aqui a voz de Caleb tremeu

perceptivelmente, "ele há de ser ajuizado e economizar; e você, com

toda a capacidade que herdou de sua mãe, e também de mim, a um

modo bem de mulher, há de mantê-lo na ordem. Ele vai chegar daqui a

pouco, primeiro assim eu quis falar com você porque achei que gostaria

de contar para ele. Discutido entre vocês, eu poderia conversar com ele

depois, entrando logo nos negócios e na natureza das coisas."

"Oh, mas que pai bom o senhor é!" exclamou Mary, enlaçando-lhe o

pescoço com as mãos enquanto ele abaixava placidamente a cabeça, pre-

disposto a ser acarinhado. "Não sei se outra moça pensa como eu que

seu pai é o melhor homem do mundo!"

"Bobagem, minha filha; seu marido você vai achar que é melhor."

"Impossível," disse Mary, de novo em seu tom habitual; "os mari-

dos são uma classe inferior de homens, que requerem manutenção na

ordem."

868
GEORGE ELIOT

Quando eles estavam entrando na casa com Letty, que correra para

alcançá-los, Mary viu Fred no portão do pomar e foi a seu encontro.

"Mas que belas roupas usa este extravagante jovem!" disse Mary,

quando Fred se postou imóvel e lhe ergueu o chapéu com jocosa forma-

lidade. "Não está aprendendo a ser econômico, hem?"

"A coisa não está nada boa, Mary," disse Fred. "Olhe só as beiradas

dos punhos deste casaco! Só a poder de muita escovação é que eu tenho

um ar respeitável. Estou economizando três ternos - um deles para o

casamento."

"Que engraçadinho há de ficar - como uma estampa num livro de

moda antigo."

"Oh, não, uns dois anos eles duram."

"Dois anos? seja sensato, Fred," disse Mary, virando-se para andar.

"Não encoraje expectativas lisonjeiras."

"Por que não? Vive-se melhor com elas do que com as que não são

lisonjeiras. Se não for possível nos casarmos dentro de dois anos, a ver-

dade, quando vier, será péssima."

"Sei da história de um jovem cavalheiro que certa vez encorajou

expectativas lisonjeiras, as quais lhe fizeram mal."

"Mary, se você tem alguma coisa desanimadora a contar-me, vou

escapulir; vou entrar para falar com Mr. Garth. Não estou no meu juizo

perfeito. Meu pai anda danado da vida - minha casa já não é mais a

mesma. Não agüento mais notícias más."

"Se achasse má notícia saber que você iria viver em Stone Court e

administrar a fazenda, e ser extraordinariamente prudente, e poupar di-

nheiro ano a ano até que todo o gado e apetrechos sejam seus, e ser um

distinto personagem da agricultura, como diz Mr. Borthrop Trumbull -

meio violento, temo eu, e com o grego e o latim tristemente consumidos

no tempo?"
"Será que você só pensa em bobagens, Mary?" disse Fred, não

obstante corasse um pouco.

"Pois foi o que o meu pai acabou de me dizer que pode acontecer, e

ele nunca fala bobagens," disse Mary, olhando bem para Fred agora,

quando ele pegava na mão dela, enquanto iam andando, e apertava até

doer; mas nem lhe veio à idéia se queixar.

"Oh, que homem exemplar eu seria então, Mary, e a gente poderia

casar-se logo."

"Não assim com tanta pressa, meu senhor; como sabe que eu não

preferiria adiar este casamento por alguns anos? Isto lhe daria tempo

MIDDLEMARCH

869

para sair da linha, e aí, se eu gostasse mais de outro, teria uma desculpa

para o passar para trás."

"Por favor, não brinque, Mary," disse Fred, muito sentido. "Diga-me

a sério que isto tudo é verdade, e que por causa disto você está feliz -

porque você gosta mais de mim."

" tudo verdade, Fred, e estou feliz por causa disto, porque é de

você que eu gosto mais," disse Mary, em tom de obediente recitativo.

Na pausa que fizeram no limiar da porta, sob o pórtico de telhado

alto, Fred, quase num sussurro, disse:

"Quando nós noivamos pela primeira vez, Mary, com o anel de guar-

da-chuva, você costumava -"

O espírito da alegria começou a sorrir mais abertamente nos olhos

de Mary, mas o fatal Ben veio correndo pela porta com o Brownie a latir

em seus calcanhares e, chocando-se com eles, disse:

"Fred e Mary! vocês não vão entrar nunca? - posso então comer

seu bolo?"
Cada limite é um começo e também um fim. Quem é capaz de separar-se

de jovens, depois de muito tempo em sua companhia, sem desejar saber

o que aconteceu mais tarde com eles? Pois o fragmento de uma vida, por

mais típico, não é amostra de uma trama uniforme: promessas podem

não ser cumpridas, e a um começo brilhante pode seguir-se o declínio;

forças latentes podem encontrar sua oportunidade há muito esperada;

um erro passado pode impor uma grande rpparação.

O casamento, que tem sido marco de antas narrativas, é ainda um

grande começo, como o foi para Adão eEva, que limitaram sua lua-de-

mel ao den, mas tiveram seu primeiro descendente entre os cardos e

espinhos do mato. E é ainda o começo da epopéia doméstica - a con-

quista gradual ou a perda irremediável dessa união completa que faz dos

anos que se sucedem um clímax, e da idade a colheita de doces memóri-

as em comum.

Alguns se aprestam, como os Cruzados de outrora, com gloriosa

equipagem de entusiasmo e esperança, mas a caminho se quebram por

não terem paciência, nem uns com os outros, nem com o mundo.

Todos que se importaram com Fred Vincy e Mary Garth gostarão de

saber que a estes não ocorreu tal fracasso" mas que os dois construíram

sólida felicidade mútua. Fred surpreendeu seus vizinhos de vários mo-

dos. Tornou-se renomado em seu cantão do condado, quer em teoria,

quer na prática, como fazendeiro, e publicou um trabalho sobre "O Cul-

tivo de Plantas Forrageiras e a Economia na Alimentação do Gado" que

lhe rendeu altas congratulações nas reuniões agrícolas. Em Middemarch

a admiração foi mais reservada: a maioria inclinou-se a acreditar que o

mérito da autoria da obra era devido à esposa, pois lá ninguém contava

que Fred Víncy fosse escrever algum dia sobre nabos e beterrabas de

forragem.

Contudo, quando Mary escreveu um livrinho para os seus garotos,

intitulado "Histórias de Grandes Homens, tiradas de Plutarco," e o man-


dou imprimir e publicar por Gripp & Co., Middemarch, a tendência de

872

GEORGE ELIOT

todos na cidade foi dar o crédito desta obra a Fred, observando-se que

ele estivera na Universidade, "onde os antigos eram estudados," e pode-

ria ter sido clérigo, se quisesse.

Deste modo tornou-se claro que Middemarch nunca fora enganada,

e que não era preciso elogiar ninguém por escrever um livro, já que este

era sempre feito por outro.

Ademais, Fred se manteve inabalavelmente ajuizado. Alguns anos

depois do casamento, disse a Mary que metade de sua felicidade era

devida a Farebrother, que lhe dera uma boa levantada no momento cer-

to. Não posso dizer que nunca mais tenha voltado a ser iludido por suas

esperanças: o rendimento de uma safra ou o lucro de uma venda de gado

ficavam geralmente abaixo de suas estimativas; e ele sempre tendia a

acreditar que ia ganhar dinheiro com a compra de um cavalo que acaba-

va mal - embora isto, observava Mary, fosse decerto culpa do cavalo, e

não do julgamento de Fred. Ele continuou com seu amor por cavalos,

mas raramente se permitia um dia de caça; e, quando o fazia, era notável

como aceitava os risos por sua covardia nas cercas, quando parecia ver

Mary e os meninos sentados na porteira de cinco traves, ou mostrando

as cabeças cacheadas entre sebe e vala.

Eram três meninos: Mary não se importava nem um pouco de só ter

tido filhos homens; quando Fred manifestou desejo de ter uma menina

como ela, disse, sorrindo: "Seria uma provação muito grande para a sua

mãe." Mrs. Vincy, em seus anos de declínio, e no menor esplendor de

sua casa, consolava-se muito ao perceber que pelo menos dois dos me-

ninos de Fred eram Vincys autênticos, e não tinham "a cara dos Garths."

Mas Mary se alegrava em segredo porque o mais novo dos três se pare-
cia muito com seu pai, como este há de ter sido quando usava jaleco

curto, e mostrava uma mira maravilhosa quando jogava gude, ou pedras

para derrubar peras maduras.

Ben e Letty Garth, feitos tio e tia antes do despertar da adolescência,

brigavam muito por saber o que seria melhor, se sobrinhos ou sobri-

nhas; ocorreu a Ben sustentar que as meninas eram menos úteis que os

meninos, porque senão não estariam sempre de saias, que mostravam

para quão pouco elas serviam; ao que Letty, que se apoiava muito em

livros, se zangou respondendo que Deus tinha feito as mesmas roupas

de pele para Adão e Eva - e ocorreu-lhe que no Oriente os homens

também usavam saias. Mas este último argumento, toldando a sublimi-

dade do anterior, abria o flanco para muitos, pois Ben respondeu desde-

nhosamente: "Por isto é que são tão bobos!" e imediatamente pediu

que sua mãe confirmasse que os meninos eram melhores que as meni-

MIDDLEMARCH

873

nas. Mrs. Garth declarou que uns e outros eram igualmente traquinas,

mas que sem dúvida os garotos eram mais fortes, corriam mais e atira-

vam com maior precisão a uma distância maior. Com esta sentença ora-

cular Ben ficou bem satisfeito, sem se importar com a traquinagem; mas

Letty tornou-a a mal, sendo seu sentimento de superioridade mais forte

que seus músculos.

Fred nunca ficou rico - sua esperança não o havia levado a contar

com isto; mas pouco a pouco economizou o bastante para tornar-se dono

do gado e dos bens móveis de Stone Court, e o trabalho posto por Mr.

Garth em suas mãos fê-lo atravessar na fartura aqueles "tempos dificeis"

que sempre se apresentam aos fazendeiros. Mary, em seus dias de

matrona, tornou-se tão sólida quanto sua mãe na figura; mas, ao contrá-
rio dela, dava aos garotos pouca instrução formal, levando Mrs. Garth a

alarmar-se de que nunca ficassem com uma boa base em geografia e

gramática. Não obstante, quando mandados para a escola, foram todos

considerados bem avançados; talvez porque estar com a mãe, antes, era

o que mais gostavam sempre. Quando voltava a cavalo para casa, nas

noites de inverno, Fred tinha uma gostosa antevisão do fogo aceso na

sala de visitas com lambris de madeira; e sentia pena dos homens que

não podiam ter Mary como esposa, particularmente de Mr. Farebrother:

"Ele era dez vezes mais digno de você do que eu," Fred agora, magnani-

mamente, podia dizer a Mary. "Sem dúvida era," respondeu Mary, "e

pela simples razão de precisar menos de mim. Mas você - tremo em

pensar o que poderia ter sido - um pastor endividado por cavalos de

aluguel e lenços de cambraia!"

Perguntando-se, talvez se possa descobrir que Fred e Mary lá estão a

viver em Stone Court - que as trepadeiras ainda derramam a espuma

de seu desabrochar por sobre os muros de pedra, no campo onde as

nogueiras perfilam-se em imponente renque - e que nos dias ensolarados

os dois amantes comprometidos de início por um mero anel de guarda-

chuva são vistos em sua encanecida placidez na janela aberta à qual

Mary Garth, nos dias do velho Peter Featherstone, muitas vezes era man-

dada ver se Mr. Lydgate já vinha.

O cabelo de Lydgate nunca chegou a embranquecer. Ele morreu com

apenas cinqüenta anos, deixando esposa e filhos amparados por um bom

seguro de vida. Havia conquistado uma excelente clínica, alternando-se,

conforme a estação, entre Londres e um balneário no Continente; e ten-

do escrito um tratado sobre a Gota, moléstia a cujo lado se amontoa

muita riqueza. Sua capacidade inspirava confiança a muitos pacientes

pagantes, mas ele mesmo se considerava um fracasso: não tinha feito o

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GEORGE ELIOT

que havia pretendido fazer. Seus conhecidos julgavam-no invejável por

ter tão charmante esposa, e nada aconteceu que os levasse a mudar de

opinião. Rosamond nunca cometeu uma segunda imprudência compro-

metedora. Simplesmente continuou a ser meiga de temperamento, in-

flexível em seu modo de julgar, disposta a admoestar seu marido e capaz

de frustrá-lo por estratagemas. Com a passagem dos anos ele se opôs

cada vez menos a ela, donde Rosamond ter concluído que aprendera o

valor de sua opinião; por outro lado, ela passou a confiar mais na capa-

cidade dele, agora que ele ganhava um bom dinheiro e, ao invés da anti-

ga ameaça de uma gaiola em Bride Street, proporcionava todas as flores

e dourados dignos da ave-do-paraíso com a qual ela se parecia. Lydgate,

em suma, era o que se chama de um homem bem sucedido. Mas morreu

prematuramente de difteria, e Rosamond mais tarde se casou com um

facultativo idoso e rico, que bondosamente assumiu seus quatro filhos.

Fazia uma bela vista com as filhas, quando desfilava em sua carruagem,

e muitas vezes falava de sua felicidade como "uma recompensa" - não

dizia de quê, mas queria provavelmente dizer que era uma recompensa

por sua paciência com Tertius, cujo temperamento nunca se tornou isen-

to de falhas e até o fim deixava de quando em quando escapar um dis-

curso amargo, mais memorável que os sinais de arrependimento que ele

dava. Chamou-a, certa vez, de seu pé de manjericão; quando ela pediu

uma explicação, disse-lhe que esta era uma planta que havia florescido

esplendidamente no crânio de um homem assassinado. 1 Plácida mas foi

te era a resposta de Rosamond a tais discursos. Por que então ele a

escolhera? Pena que não tivesse ficado com Mrs. Ladislaw, que ele vivia

elogiando e colocando acima dela. E assim a conversa terminava com

vantagem para Rosamond. Mas seria injusto omitir que ela nunca pro-

nunciou uma palavra em detrimento de Dorothea, conservando em reli-

giosa lembrança a generosidade que lhe viera em ajuda na crise mais


profunda de sua vida.

A própria Dorothea nem sonhava em ser louvada acima de outras

mulheres, por sentir que sempre havia alguma coisa melhor que poderia

ter feito se, além de ser melhor, ela soubesse mais. Mesmo assim, nunca

se arrependeu de ter renunciado a posição e fortuna para se casar com

Will Ladislaw, que o tomaria por sua maior vergonha e sofrimento, se se

arrependesse. Estavam ligados um ao outro por um amor mais forte que

qualquer impulso capaz de o prejudicar. Para Dorothea, a vida nunca

seria possivel senão cheia de emoção, e ela também a enchia agora com

"Alusão a uma passagem do Decameron de Boccaccio.

MIDDLEMARCH 875

uma atividade beneficente que não lhe dava a dor das dúvidas de desco-

brir e escolher. Will, transformado em ardoroso homem público, traba-

lhou bem, nesses tempos em que as reformas tinham início, com uma

esperança juvenil de bem imediato, que anda escassa em nossos dias, e

acabou indicado para o Parlamento por um distrito que lhe pagou as

despesas. Nada agradaria mais a Dorothea, posto que existissem os

males, do que estar seu marido no fulcro da luta contra eles, dando-lhe

ela sua ajuda de esposa. Muitos, que a conheciam, julgaram uma pena

que uma pessoa assim tão independente e rara fosse absorvida pela vida

de outra, e só conhecida em certos círculos como esposa e mãe. Mas

ninguém declarava explicitamente que outra coisa, estando em seu po-

der, ela deveria ter feito - nem mesmo Sir James Chettam, que não ia

além da prescrição negativa de que não deveria ter-se casado com Will

Ladislaw.

Esta opinião dele, contudo, não causou longo afastamento; e a ma-

neira como a família se recompôs em seu todo era característica de todos

os envolvidos. Mr. Brooke não podia resistir ao prazer de se corresponder


com Will e Dorothea; e certa manhã, quando sua pena se mostrava ex-

traordinariamente fluente sobre as perspectivas de Reforma Municipal,

deslizou eia para um convite à granja, o qual, uma vez escrito, não pode-

ria ser desfeito a um custo menor que o sacrificio (quase inconcebível)

de toda a valiosa carta. Durante os meses de sua correspondência, Mr.

Brooke pressupunha ou insinuava incessantemente, em suas conversas

com Sir James Chettam, que a intenção de suspender a vinculação de

bens continuava de pé; no dia em que sua pena fez o ousado convite, ele

foi a Freshitt especialmente para declarar que tinha razões mais fortes

que nunca para tomar esta decisão enérgica, como precaução contra qual-

quer mistura de sangue plebeu na descendência dos Brookes.

Mas a agitação tomara conta de Freshitt Hall nessa manhã. Uma

carta chegada para Celia a fez chorar em silêncio enquanto a lia; e quan-

do Sir James, desacostumado às suas lágrimas, ansioso lhe perguntou

qual o problema, ela explodiu numa Iamentação como ele jamais tinha

ouvido.

"Dorothea teve um menino. E você não me deixará ir vê-la. E es-

tou certa de que ela me quer por lá. E ela não saberá o que fazer com o

bebê - vai fazer tudo errado. E eles pensaram que ela fosse morrer.

Oh, que horror! Suponha que fôssemos o Arthurzinho e eu, e não dei-

xassem a Dodo vir estar comigol Que bom seria, James, se você não

fosse tão mau!"

"Por Deus do céu, CeliaV" disse Sirjames, muito perturbado, "o que

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é que você quer? farei tudo o que quiser. Levo-a amanhã mesmo à cida-

de, se quiser." E Celia quis.

Foi depois disto que Mr. Brooke chegou e, encontrando o Baronete


no jardim, começou a conversar com ele, na ignorância da notícia que Sir

James, por alguma razão, não se preocupou em contar imediatamente.

Mas ao tocarem, como de hábito, na vinculação dos bens, ele disse:

"Meu caro, não me cabe indicar-lhe o que fazer, mas por mim eu deixa-

ria isto em paz. Deixaria as coisas como estão."

Mr. Brooke sentiu-se tão surpreso que nem percebeu de imediato o

quanto o aliviava a idéia de que ninguém esperava ele fazer alguma coi-

sa específica.

Tal sendo o que pedia o coração de Celia, era inevitável que Sirjames

consentisse numa reconciliação com Dorothea e o marido. Quando as

mulheres se amam, os homens aprendem a sufocar sua antipatia mútua.

Sirjames nunca gostou de Ladislaw, e Will sempre preferia a companhia

de Sirjames em mistura com outras: assim viveram eles nos termos de

uma tolerância recíproca que só se tornava fácil quando Dorothea e Celia

estavam presentes.

Ficou entendido que Mr. e Mrs. Ladislaw fariam pelo menos duas

visitas por ano à granja, aonde gradativamente viria uma fileirinha de pri-

mos de Freshitt que gostavam de brincar com os dois primos em visita a

Tipton, como se o sangue destes últimos nem fosse de mistura dúbia.

Mr. Brooke viveu até a velhice e sua propriedade foi herdada pelo

filho de Dorothea, que poderia ter representado Middiemarch, mas de-

clinou, pensando que suas opiniões tinham menos chance de ser abafa-

das se ele ficasse fora do Parlamento.

Sir James nunca deixou de ver como um erro o segundo casamento

de Dorothea; e esta se manteve como a tradição acerca dele em

Middemarch, onde dela se falava, para uma geração mais nova, como

de uma moça bonita que se casara com um clérigo adoentado, com ida-

de para ser seu pai, e que em pouco mais de um ano após ele morrer

renunciou aos seus bens para casar-se com um primo do finado - que

podia ser, pela idade, seu filho, e não tinha berço nem bens. Quem não

tinha conhecido Dorothea geralmente observava que ela não podia ter
sido mulher "Uo maravilhosa assimf porque senão não se teria casado

nem com um nem com o outro.

Certamente não foram idealmente belos estes atos determinantes

de sua vida. Foram o resultado mesclado de um impulso jovem e nobre

lutando em meio às condições de uma situação social imperfeita, na

qual grandes sentimentos tomarão muitas vezes aparencia de erro, e a

MIDDLEMARCH

877

grande fé, aparência de ilusão. Pois não há criatura cuja vida interior seja

tão forte para não ser grandemente determinada pelo que está fora dela.

Uma nova Teresa dificilmente terá uma oportunidade de reformar a vida

conventual, ou uma nova Antígona de verter sua piedade heróica arris-

cando tudo em defesa de um funeral para o irmão: o meio no qual seus

ardentes feitos tomaram forma já passou para sempre. Mas nós, pessoas

insignificantes, estamos preparando com nossos atos e palavras diários

as vidas de muitas Dorotheas, nalgumas das quais talvez se veja um

sacrifício mais triste que o daquela cuja história sabemos.

Seu espírito finamente cinzelado ainda tinha belas conseqüências,

embora estas não fossem amplamente visíveis. Sua natureza repleta,

como a daquele rio de que Ciro quebrou o ímpeto, escoou por canais

que não tiveram grande nome na Terra. Mas o efeito de sua pessoa nos

que a rodeavam foi incalculavelmente difusivo: pois o bem crescente do

mundo depende em parte de atos não históricos; e se as coisas não estão

tão mal, nem com você nem comigo, como poderiam estar, isto se deve

em grande parte ao número dos que fielmente viveram uma vida oculta,

e repousam em túmulos não visitados.

Este livro foi composto na tipologia Iowan O1d Sty1e


em corpo 11/13 e impresso em papel Pólen Soft 70g/M2

no Sistema Cameron da Divisão Gráfica

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