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O direito à ternura

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP Br


asil)
Restrepo, LUÍS Carlos
O direito à ternura
/Luis Carlos Restrepo ; tradução de Lúcia M. Endiich Orth. - Petrópolis, RJ : Vozes, 199
8.
Títlo original: El derecho a La ternura. ISBN 85-326-2026-4
1. Afeto (Psicologia) 2. Amor 3. Emoções 4. Relações Interpessoais 5. Poesia
""Onde és terno, dizes plural".
Roland Barthes Fragmentos de um Discurso Amoroso
Sumário
O público e o privado, 9 Falácìas epistemológicas, 12 Analfabetismo afetivo, 18 Herdeiro
s de Alexandre, 21 As loucuras permitidas, 25 A cognição afetiva, 29
Sentir a verdade, 38 O cérebro social, 47 Agarrar e acariciar, 50 Retorno à sabedori
a, 55 Entre o amor e o ódio, 60 Violência sem sangue, 64 Casal: tarefa impossívclr,
71 Estética na intimidade, 75 Agindo a partir da fragilidade, 79 Ecoternura, 84
Chaves teológicas, 90
Caminho à gratuidade, 93 Em face do demoníaco, 101 O que pode o corpo, 105

O público e o privado
Estamos acostumados a opinar sobre os grandes direitos públicos, aqueles que figur
am em códigos e constituições, fazendo parte de discursos políticos e promessas
eleitorais. Fala-se do direito ao emprego, do direito à habitação, do direito à educação, a
sufrágio, enfim, de todos aqueles direitos que podem figurar como rivindicações
sociais de transparência inquestionável. Mas parece suspeito e ate ridículo falar daqu
eles direitos da vida cotidiana que permanecem confinados à esfera do íntimo,
sem que ninguem ouse pronunciar seus nomes nas reuniões em que se debatem com gran
diloqüência os problemas políticos da epoca. A esta categoria de direitos domesticos,
relegados e vergonhosos, pertence o direito à ternura.
Muitos podem sentir certa prevenção diante de nossa tentativa de considerar a ternur
a como um direito, pois prefeririam deixá-la à parte da diatribe política, parecendo-l
hes
impensável que uma constituição consagre como norma o dever de sermos ternos, iniciati
va que, alem de ridícula, poderia converter a palavra ternura num lugar comum
ou numa ominosa obrigação. com isso, só conseguiríamos que deixasse de ser um termo calo
roso e evocador para converter-se em moda desgastada, que circula por entre
fólios e códigos, manuseada ate a saciedade, ultrajada e burocratizada. Não, não pretend
emos - como disse tambem Thiago de Mello em seus Estattos do Homem - abandonar
a palavra ternura no pântano enganoso das bocas, pois queremos, ao contrário, fazer
dela algo vivo, como mfogo ou um rio, ou como a semente de trigo. e contrário
à vivência da ternura colocá-la no campo do normativo, não porque se trate de uma realid
ade
#; impronunciável, mas por uma razão maior: as eticas impositivas parecem ter chegad
o ao seu fim, por isso a educação em valores deve ser articulada ao campo de
uma estetica sugestiva que nos permita abandonar a esfera tirânica dos decretos pa
ra inscrevernos na trama de uma educação do gosto e da sensibilidade.
O problema dos direitos humanos não pode continuar circunscrito à esfera do público, c
omo uma repetição monótona das normas que devem ser acatadas tanto pelo Estado
como pêlos cidadãos. Sua presença, como temática candente do mundo contemporâneo, e, em pr
incípio, produto de uma mudança na sensibilidade coletiva que afeta nossa
maneira de entender tanto o trabalho político como as relações amorosas, modulação afetiva
que só de maneira secundária busca expressão nas estruturas legislativas.
A tradicional divisão entre o público e o privado -, revela, neste caso, seu caráter a
rbitrário, pois ao tratar-se da / estetica social - campo ao qual adscrevemos
o direito à ternura e impossível não transcender o umbral da agora ou da rua para pene
trar nas raízes afetivas, familiares e interpessoais, das quais se alimenta
a etica cidadã. Pensar dentro da lógica excludente do público e do privado e colocar-s
e numa perspectiva que desconhece a dimensão fundante do afetivo, como se a
ação política já nada tivesse a ver com as relações de poder que se estabelecem na intimida
e. e hora de superar uma proposta sobre os direitos humanos enunciada
a partir dajuridicidade visível dos macrodiscursos ordenadores do Estado e da nação, m
arco expositivo que não deixa nenhum espaço para abordar, em seu caráter de
conflitos atuais de poder, aspectos ate agora relegados à sombra da dinâmica familia
r e da vida privada.
O privado, constituído por essas pequenas rotinas da vida diária assinaladas pela di
nâmica afetiva, e precisamente o espaço em que, entre telões, se manifesta o
público. Ao separar, de maneira incisiva, uma esfera da outra, impedmos que a anális
e sobre o político e o social chegue ate essas parcelas protegidas onde com mais
força se aninha a ideologia. com esta dicotomia asseguramos a mpensabilidade de um
a zona fundamental para a constituição dos sujeitos, ficando por isso mutilada
a análise que
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#possamos consegui dos grandes acontecimentos políticos. Tudo e ordenado de tal fo
rma que só o público apareça como fato relevante, ficando completamente separado
da rede à qual se articula como acontecimento humano e cotidiano. O privado está por
definição condenado ao esquecimento e ao anonimato.
Ao buscar uma articulação do público com o privado, da macropolítica dos planos estatais
com a micropolítica da vida cotidiana, das análiss magistrais da cultura
com a microssociologia e a psicologia da intimidade, o que nos anima não e tanto i
niciar uma luta pela consagração de um novo direito constitucional - que poderia
muito bem permanecer como letra morta, sem cumprir-se na vida social, como já acon
teceu tantas vezes na história mas gerar novas perspectivas deanálise que permitam
entender problemas como a violência, a democracia ou a autogestão política e comunitária
, a partir de um cenário onde são problematizadas as rotinas diárias. Entendendo
o direito não como uma concessão de governants dadivosos, mas como um poder que regu
lamenta as relações humanas, podemos falar do poder da ternura a partir destas
experiências, intranscendentes e anódinas ao que parece, que se revelam ntretanto fu
ndamentais para a construção do sujeito social ede sua estrutura ideológica e
valorativa.
Voltemos nosso olhar para esses momentos silenciados onde, à sombra, se guarnece a
ternura, mas onde tambem, sem que o registrem os noticiários de TV ou os jornais
e revistas de grande tiragem, e diariamente anulada. Perguntemo-nos pêlos espaços on
de abundam as vioências sem sangue, aquelas que não provocam contusões no corpo
que possam ser detectadas pêlos legistas, mas que nem por isso deixam de provocar
sofrimento e morte. Abramo-nos a uma analítica da cultura e da interpessoalidade
ond a política possa ser pensada a partir da intimidade, âmbito oculto ao olhar bisb
ilhoteiro que mostra a realidade a partir de um ângulo perceptivo e comunicativo
onde o thyinós ou afetividade adquire uma importância tão grande ou maior do que aquel
a que atribuímos ao novu ou intelecto. Inversão que supõe passar da vista como
sentido ordenado" da realidade ao tato como analisador privilegiado da proximida
de.
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#Falácias epistemológicas
Não obstante querer romper o veu que oculta a ternura num campo de não ditos e de co
mpleta invisibilidade, ainda surgem muitos temores ao enunciar um discurso sobre
ela. Em primeiro lugar, quando e um homem que se atreve a falar do tema como e o
meu caso - aparece de imediato o fantasma da efeminação. A ternura só e reconhecida
como parte do amor maternal ou na relação da criança com seu ursinho de pelúcia. Na sexu
alidade tambem não tem cabimento: em vez de ser considerada como um ato de
ternura, e concebida como um ato de conquista. Alguns ditames de nossa cultura p
roíbem ao homem falar da ternura ou abrir-se à linguagem da sensibilidade, pois em
sua educação insistiu-se em que deve mostrar dureza emocional e autoridade a toda pr
ova. Porem, como assinalou Berta Vargas, para cada mulher cansada de ser chamada
fêmea emocional há um homem que não suporta mais que se lhe negu o direito a chorar e
ser terno. Alem do sentimentalismo exagerado que estereotipa um certo modo
de ser mulher, supostamente afetuoso e maternal, sabemos que a vivência da ternura
pode ser tão difícil para o homem como para a mulher: tanto se pode encontrar
dureza inusitada e violência na mulher, como comportamentos ternos e afetuosos no
homem.
Fomentando essis estereótipos, muitos ativistas reduziram a visão da violência na inti
midade a um certo atrevimento do macho, que se situa no lugar de penetrador
e provedor, enquanto as mulheres e as crianças aparecem como vítimas indefesas da br
utalidade masculina. Se se aceita a violência feminina, e só depois de ficar
bem claro que se trata de um comportamento de reação, provocado pelas condições de vexam
e social e económico
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#em que a mulher s encontra. Na nossa opinião, o problema e bem mais complexo. Tan
to o homem como a mulher, mas tambem a criança, podem converter-se em agentes de
violência. A ternura não pertence por direito próprio nem ao rosto bochechudo ecorado
da infância, nem tampouco ao da mãe abnegada e bondosa. Por trás da figura
da bondade podem esconder-se violências inusitadas ou camuflar-se na maternidade u
ma exagerada ambição de domínio e uma tirania milimetrica da mãe sobre aqueles
a quem protege. Muitas estruturas patriarcais não são mais do que o encobrimento ext
erno de um domínio da mãe, fato que a psicanálise constatou, à sua maneira, ao
falar da existência, em alumas mulheres, de uma ambição fálica. O espaço do privado - com
suas rotinas alimentares, de higiene e de intercâmbio afetivo - e em grande
parte dominado pela figura feminina, mas nem por isso podemos dizer que e um mod
elo de ternura.
Tanto o homem como a mulher, a criança ou o velho, todos são tentados por símbolos cul
turais inimigos do encontro terno que, ao regulamentar seus comportamentos,
aspirações e convicções, os levam a apliar na vida diária a lógica arrasadora da guerra. Mu
to mais do que ser uma atribuição de genero, a ternura e um paradigma
de convivência que deve ser adquirido no terreno do amoroso, do produtvo e do políti
co, arrebatando, palmo a palmo, territórios em que dominam há seculos os valores
da vingança, da sujeição e da conquista. e ao adentrar no que Michel Foucault chamou d
e vasculandade do poder, que nos damos conta da importância dessas i edes cotidian
as
em que se constituem, milímetro a milímetro, as estruturas políticas e institucionais
que tanto criticamos na esfera do público, mas cuja existência quase nunca
questionamos no mundo do privado. A intolerância do discurso total, aniquilador da
diferença e inimigo do crescimento e da singularidade, tanto se aninha nas práticas
masculinas como nas femininas, pois ambos continuam respondendo, talvez sem sabe
-lo, a uma xigência cultural de hegemonia que se aninha nos corpos sem distinção
de raça, idade ou sexo.
Dis solvida a falácia do genero - para ver por trás dela a ubíqüidade do poder - aparece
um novo obstáculo, relacionado com
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#a exigência de gerar conhecimento ao amparo de um discurso academico. As aulas, são
propícias à formulação de uma verdade abstrata e metafísica, não parecem sê-lo
ao tema da ternura. Há vários seculos a ternura e a afetividade foram desterradas do
palácio do conhecimento. Os professores, como se dizia do grande Charcot, atuam
como autênticos marechais de campo, seja no momento de enunciar sua verdade ou qua
ndo se aprestam a qualificar a aprendizagem. Desde as precoces experiências da
escola, adestra-se a criança num saber de guerra que pretende uma neutralidade sem
emoções, para que adquira sobre o objeto deconhecimento um domínio absoluto, igual
ao que pretendem obter os generais que se apossam das populações inimigas sob a divi
sa de terra arrasada. Símbolo deste modelo de conhecimento e a forma como se
acede ao estudo da vida vegetal ou animal, seja com herbários onde as plantas apar
ecem murchas e mutiladas, ou atraves da vivissecção e do dessecamento de animais.
Toda interação com a vida que nos rodeia passa por sua destruição, como se a única coisa d
os outros da qual nos pudessemos apropriar fosse seu cadáver. A ciência,
com seu esquematismo alienado da dinâmica vital, nos fez crer que só podemos conhece
r o outro decompondo-o, uma vez detido o movimento, metodologia que aplicamos
diariamente tanto na pesquisa biológica como na social, estendendo-a alem disso à vi
da afetiva e à nossa relação com os outros.
Mas está equivocado aquele que acha que esta expulsão da ternura e uma condição sinie qu
a non para a geração do conhecimento. e possível conhecer as plantas e os
delfins mantendo uma relação afetiva e terna com eles. Muito mais que o isolamento d
e uma certa percepção subjetiva e emocional, que turva nosso acesso à verdade,
o que fica a descoberto nest modelo epistemológico e a presença da afetividade plana
e definida do guerreiro, preparado para submeter a um domínio homogeneizador
a multiplicidade da vida sem importar sua redução a um enunciado abstrato ou a um es
quema. Porque há verdades da guerra como há verdades da ternura, pois o conhecimento
como já disse há alguns anos Jürgen Habermas - e um corpo de práticas e enunciados trans
passado por uma diversidade de
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#interesses que vão desde o afã de domínio instrumental ate o fomento da emancipação e da
liberdade.
Desconhece-se que a vida academica e a própria noção de paideia se assentam no Ocident
e, desde a longínqua Grecia, numa relação erótica moralizante que impregna
por completo os interesses do conhecimento. Já o assinalou Platão, como tambem o res
saltaram os manuais que regulamentaram durante muitos seculos a vida monástica:
a educação corre paralela a uma certa disciplina erótica que obriga a sublimar a relação d
e sedução que se estabelece entre o mestre e o aluno, para levar o aluno
à identificação apaixonada com um certo modelo gnosiológico. Como carecemos de um vocabu
lário amplo para designar os variados matizes que o componente afetivo assume
no ato educativo, e impossívl desconhecer o papel da emoção como moduladora e estabili
zadora dos processos de aprendizagem, nem deixar de pensar na aventura pedagógica
como uma busca afetiva de figuras de conhcimento, compromisso passional que busc
a com afã afundar sua pegada na grade intelectiva. O que resta, no final de ,um pe
ríodo
de formação academica, não e só um conjunto de conhccimentos mas tambem, e de maneira mu
ito especial, um conjunto de hábitos, de escrúpulos morais e comportamentos
rotineiros que acabam exercendo um grande poder de regulamentação cognitiva sobre o
educando.
Como se fosse pouco ter que enfrentar os fantasmas da academia edo genero, um no
vo obstáculo se levanta ameaçador diante da possibilidade de iniciar uma reflexão
sobre a ternura. Certo saber do sentido comum parece insinuar que este tema esca
pa à tecnica discursiva, por tratar-se de uma vivência que resiste a qualquer cadeia

argumentativa ou exercício explicativo. Poder-se-ia alegar o caráter espacial, quase


táctil, da ternura, para afirmar que e vão qualquer intento por afastá-la da
imediatidade do corpo e integrá-la na vacuidade das palavras. A ternura parece dar
-se sempre no presente, como acontecimento que se vive, se entrega ou se recebe
resistente a qualquer promessa ou temporalização que busque colocá-la numa instância ale
m do corpo e do tato, compartilhados na vida diária.
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#Uma das dificuldades que a integração da ternura às perspectivas cognitivas e academi
cas encerra e que ela assinala um limite da linguagem, momento que se configura
quando as palavras, impotentes, não podem convencer nem argumentar, lançandonos de c
heio no campo do patetico. Limite que não e tanto uma barreira comunicativa
pois tambem a ternura e linguagem como uma fronteira do significado, da palavra
que tenta mostrarse como autêntica representante do objeto. Por isso, quando nos
perguntamos pêlos significantes que na vida social se constróem em íntima relação com a e
xperiência gestual e corporal - vemos que o tato, quer em suas modalidades
violentas como ternas, atua como nó central na constituição da trama comunicativa, poi
s perto, bem perto dele, estão situadas as pegadas ou rastros que, segundo
Derrida, constituem o mapa primigênio da língua. Na ordem do patetico, o significado
encontra seu limite beirando o território do significante, dos gestemas que
articulam o dizer profundo da linguagem. A violência da pele, a cadência do corpo qu
e explora o outro, a posse de quem agarra ou a renúncia da mão que sabe combinar
a pressão com o relaxamento, constituem alguns dos sinais de uma linguagem patetic
a, situada, como disse LudwigWittgenstein, no campo do que se pode mostrar mas
que e difícil dizer com as práticas enunciativas de uma mentalidade que desconhece a
riqueza das tonalidades. Resenhado esse limite que não e tanto um emudecimento
como a necessidade de articular-nos a formas expressivas distantes da pretensão un
iversal do significado e mais próximas à dinâmica do contexto podemos adentrar-nos
num mundo táctil onde e possível compreender de maneira mais precisa os alcances polít
icos, cognitivos e epistemológicos de um saber da ternura.
Não podemos desconhecer que as palavras podem ser ternas, pois, como dizia Racine,
com o discurso tambem se pode agradar e comover - plaire et toncher - ou agredi
r
e violentar, independentemente de sua estrutura lógica ou das cadeias argumentais
que se utilizem. A ciência, que e tambem uma modalidade da linguagem, costuma cifr
ar
seus informes em certo modelo frio e burocrático, sem que isso queira dizer que a
verdade não pode
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#assumir a forma sugestiva de uma expressão calorosa e acariciadora. A frialdade d
o discurso científico não e outra coisa senão uma expressão das lógicas de guerra
que se inseriram na geração do conhecimento, sem que possamos converter esta deformação
histórica num único parâmetro de validade. Como quiseram uma vez os retóricos
e os sofistas, o discurso deve vir carregado de emoção e astúcia persuasiva, pois ali
tambem se decide a veracidade ou falácia dos enunciados. Independentemente
da forma que assumam - quer seja a breve e telegráfica dos informes que se publica
m nas revistas especializadas, a monótona das teses de graduação ou a amena dos
livros de divulgação - os discursos científicos mostram sua fertilidade cognitiva quan
do conseguem exlicitar os pressupostos sobre os quais se assentam, sem assumir
a forma de uma enunciação dogemática. e pos a capacidade de gerar crítica e reflexão e não
empobrecimento discursivo e literário a característica que permite distinguir
o pensamento científico da repetição dogemática e da charlatania.
Cabe dizer, diante deste leque de dificuldades, que, como somos algo mais que a
casca de identidade masculina que nos foi imposta pela cultura e percebemos os a
balos
que sacodem a estrutura academica lançando-nos com estrepito para as lógicas do sensív
el, não podemos deixar deafirmar que, para nós, o discurso e tambem um agora
que pode encher-se de ternura, sendo possível acariciar com a palavra sem que a so
lidez argumental sofra detrimento por fazer-se acompanhar da vitalidade emotiva.
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#Analfabetismo afetivo
O tema da afetividade e uma magnífica porta de entrada para começar uma reflexão sobre
os maus-tratos e a intolerância que se propagam, de maneira sutil, no mundo
contemporâneo. Não conseguimos conceitualizar ainda o importantíssimo papel da afetiv
idade, não só na vida cotidiana, mas tambem em dimensões onde ate há pouco
ela era considerada um estorvo, como e o caso da pesquisa científica. Assunto clar
o para os que se preocupam, a nível mundial, com a formação de pesquisadores, pois
sabem que a atitude científica e produto da partilha de rotinas com mestres treina
dos em orientar sua paixão para a formulação de hipóteses pertinentes que serão
validadas com escrúpulo e esmero num jogo de distinções analíticas. Cada vez estamos mai
s dispostos a reconhecer que o tipicamente humano, o gnuinamente formativo,
não e a operação fria da inteligência binária, pois as máquinas sabem dizer melhor que nós
dois mais dois são quatro. O que nos caracteriza e diferencia da inteligência
artificial e a capacidade , de emocionar-no, de reconstruir o mundo e o conhecim
ento a partir dos laços afetivos que nos impactam.
Há alguns anos, ainda acreditávamos que as máquinas poderiam substituir-nos nas tarefa
s fundamentais. Por isso era frequente representar o futuro como uma sociedade
robotizada. Este sonho terrível foi-se dissipando no horizonte científico e social,
porque agora e claro que, se o robô pode reproduzir certas funções ou atividades
humanas, ninguem conseguiu inventar um computador capaz de sentir, de compromete
r-se com o entorno, de chorar ou de rir. e este não e um fato intranscendente. Com
o
nós seres humanos só podemos descobrir-nos nos espelhos de-
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#formantes que a cultura nos oferece, hoje podemos constatar que o pesadelo do h
omem-rmáquina, tão perseguido pelo Ocidente, tambem serviu para ratificar de maneira
profunda e certeira a autêntica dimensão do humano. O que caracteriza nosso pensamen
to, nossa cogniçao, o que nenhuma máquina jamais poderá suplantar, e precisamente
esse componente afetivo presente em todas as manifestações da convivência interpessoal
.
Mesmo aceita esta afirmação em sua validade geral, continuamos tendo dificuldade par
a reconhecer em cada um de nossos espaços cotidianos em que consiste esse componen
te
afetivo e deque maneira devemos fomentá-lo. Nós cidadãos ocidetais sofremos uma terrível
deformação, um pavoroso empobrecimento histórico que nos levou a um nível
jamais conhicido de analfabetismo afetivo. Sabemos do A, do B e do C; sabemos do
1, do 2 e do 8; sabemos somar, multiplicar e dividir, mas nada sabemos de nossa
vida afetiva, razão pela qual continuamos exibindo grande entorpecemento em nossas
relações com os outros, campo em que qualquer uma das culturas chamadas exóticas
ou primitivas nos supera de longe.
Uma anedota da história da medicina pode servir de exemplo para enendermos ate ond
e nos escapa a percepção da dimensão afetiva. Ate há pouco tempo, os medicos tradicionai
s
da Amazónia colombana eram acusados de ineficácia porque, apesar de acompanhar dia a
dia seus pacientes, jamais faziam diagnósticos de parasitismo intestinal nem
utilizavam terapias efetivas para este mal ndemico de muitas regiões da selva úmida
tropical. Os medicos formados achavam estranho eme seus rivais não fossem capazes
de diagnosticar enfermidades que para eles são básicas em seus esquemas classificatóri
os. Dizia-se então, com arrogância científica, que sua inaptidão se revelava
na incapacidade de diagnosticar um simples parasitismo de seus pacientes. No mom
ento oportuno, os antropólogos, depois de estudars comportamentos e sistemas de cr
enças
indígenas, começaram a mostrar o outro lado do assunto. O mais surpreendente foi con
statar que os medicos tradicionais tinham uma visão semelhante à de nossos medicos
formados, mas ao inverso. Mostravam-se consternados
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#ao ver a preocupação dos medicos ocidentais plo parasitismo de crianças e adultos, en
quanto eram por completo cegos para entender os conflitos afetivos de seus
pacientes. Os pajes ou medicos tradicionais não utilizam esse termo, e claro. Eles
recorrem a outro mais bonito e significativo, pois falam de ..cliundu,, expressão
que podemos traduzir por "mal de amor". Enquanto os medicos indígenas haviam dedic
ado toda sua vida a tornar-se especialistas em mal de amor, os nossos optaram po
r
um caminho diferente. Motivo pelo qual os primeiros se espantavam e continuam não
entendendo a incapacidade de nossos medicos para superar o entorpecimento afetiv
o,
tanto o próprio como o de seus pacientes. Se os especialistas indígenas foram acusad
os de ignorar o parasitismo, os nossos foram acusados de uma responsabilidade
mais grave: esquecer por completo a dimensão afetiva da doença e do sofrimento.
Continuam confrangedores os caminhos diferentes de duas culturas que ainda coexi
stem em muitos rincões da America. Uma delas, a cultura ocidental, que em um momen
to
de sua história começou a considerar o afeto como algo secundário. Por outro lado, as
culturas tradicionais indígenas, mantendo uma relação íntima com o entorno
e uma atitude de respeito diante do ambiente, consideravam válido que seus medicos
se dedicassem de maneira preferencial a tratar o que está relacionado com as inte
rações
humanas a partir de sua faceta mais difícil e delicada. Comparados com eles, padec
emos de um analfabetismo afetivo que dificulta compreender as raízes de nosso sofr
imento.
Analfabetismo que nos impede de encontrar chaves para melhorar nossa vida cotidi
ana. Basta lançar um olhar à família para dar-nos conta do montante de sofrimento
que carregamos e constatar que aquilo que por definição deveria ser um ninho de amor
se converte frequentemente em foco de violência. Basta "farejar" a relação de
um casal para perceber os maus-tratos e a dor que se aninham na convivência diária.
Dor e entorpecimento de que ninguem escapa em nossa cultura, pois se alguma cois
a
está dorocraticamente distribuída na sociedade contemporânea, e o torpor afetivo. Rico
s e pobres, iletrados e pós-graduados, todos acabam igualmente nredados em
suas relações afetivas, provocando escândalos e maus-tratos que os dilaceram numa frus
trante solidão.
20
#Herdeiros de Alexandre
Se nos colocarmos a esfera da linguagem, e possível constatar que existe em nossas
experiências cotidianas uma ideologia guerreira que, articulada com apreciados
valores da cultura ocidental, se opõe com persistência à enunciação de um discurso sobre a
ternura. Acompanhando, por exemplo, a ambição de liberdade, fazemos uma
defesa exagerada da autonomia, entendida como não depender de outros para não ver co
rtadas as nossas possibilidades de crescimento. O guerreiro, que pensa a todo
momento em sua sobrevivencia, tem como modlo o ser autárquico, que se basta a si m
esmo, pois para ele e perigoso ter que depender em algum momento do inimigo. O
endurecimento da pele ea postergação das necessidads afetivas faz parte de
sua preparação e disciplina. Indra. o deus guerreiro dos hindus
vedicos e pre-vedicos, ' sempre está só. Ao contrário de Mitra e Varuna que f
ormam um par estável, não obstante seus perfis contraditórios, Indra parece
refratário à condição de formar um par. Aficcionado à companhia, suas associações são sempr
táveis, pois, na hora da verdade, no momento de agir, Indra decide
e age de maneira independente. Se executa sua ação em companhia, quem vai com ele trás
o papel de adulador ou será um servent que lhe abre o espaço para fazê-lo
crescer avançar. Jamais estabelece uma relação equilibrada com alguem. Nenhuma associ
ação lhe efundamental, pois só requer serventes. Como adverte Georges Dumezil
em seus estudos sobre a mitologia indo-europeia, inclusive quando se compromet a
constituir um par, Indra não está vinculado por nenhuma necessidade profunda a seu
companheiro do momento. Ele e um êka, senhor absoluto de seus desígnios que sempre a
tua sem ajuda.
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#Seu poder de metamorfose e sua liberdade fazem dele o deus autónomo -sváksafram - p
or excelência. Nenhum pacto o prende, podendo abandonar seus amigos para optar
pêlos concorrentes. Guerreiro dos mil testículos que não se enreda nos atoleiros do di
reito, que mata quando surge a ocasião e depois se faz amigo dos filhos ou
irmãos da vítima, Indra e o combatente perfeito. e aquele que não depende de nada nem
de ninguem, que e único e autónomo para enfrentar seus potenciais inimigos.
Conta-se tambem que Filipe, rei da Macedônia, educou seu filho Alexandre de maneir
a severa, pois queria prepará-lo para a conquista do mundo. O pequeno Alexandre
devia passar dias inteiros na intemperie, sob as inclemências do sol e da chuva, s
em que ninguem pudesse ajudá-lo ou levar-lhe alimento. Desta maneira, forjou-se
a couraça corporal do futuro conquistador da Grecia, Ásia e Egito, pois o guerreiro
não pode depender de ninguem, sob pena de pôr em perigo o êxito de seu empreendimento.
O menino aprendeu a lição com muito sucesso, criando uma couraça impressionante que o
levou, aos 33 anos, a ser o maior guerreiro do mundo ocidental e morrer então
fulminado de grandeza.
Esta simbologia não se apresenta apenas no campo das armas. Já o guerreiro do espírito
que foi Abraão, pai dos crentes, ao sair de Ur da Caideia e abandonar seus
antigos deuses, impôs-se um único preceito que cumpriria fielmente para alcançar seu o
bjetivo de conquistar novos horizontes. Sua decisão foi peremptória:
"não amar", porque amar nos liga aos seres e aos espaços, dificultando nossa empresa
de conquista. Em sua análise do patriarca hebreu, Hegel faz notar que, a fim
de manter-se fiel à sua empresa de conquista e avançar na criação do homem universal, Ab
raão rompe os vínculos com a terra que o viu nascer, iniciando uma peregrinação
sem ligar-se a contextos particulares, para não pôr em perigo sua ambição de imperio. Fo
i tal o escrúpulo que sentiu quando, já velho, descobriu-se prisioneiro de
um amor singular, que não duvidou em levar seu filho Isaac ao altar do holocausto.
Só a oportuna intervenção do anjo dejave impediu a heccatombe. Três mil anos depois,
políticos e cientistas, herdeiros desta tradição simbólica, se negam a possibilidade do
sentimento, a fim de
22
#poder conquistar o objeto de desejo ou conhecimento. Os empresários agrícolas e os
industriais avançam sobre a terra sem permitir-se nenhum afeto singular por ela.
A sensibilidade foi desterrada das rotinas produtivas e do campo do saber. Ainda
hoje, o amor e o êxito económico e social parecem andar na contramão. Herdeiros
de Alexandre e Abraão, continuamos destruindo a possibilidade da ternura para vr r
ealizadas as nossas ambições.
Muitos de nós, sem dar-nos conta disso, perpetuamos este modelo. Ao colocar em con
flito a dependência afetiva, temos que arcar em uma soma indizível de nostalgia
e desgosto que obscurece nossas relações amorosas. O tango, essa canção mestiça transborda
nte de tristeza que continua viva na alma popular, expressa o ressentimento
do homem face a uma companheira sexual quase sempre qualificada de desleal e tra
içoeira. A possibilidade deconstruir uma relação terna entre adultos jovens parece
excluída. O homem que expressa com intensidade seus sentimentos pode ser qualifica
do de maneira pejorativa, enquanto as mães consideram que devem ser duras e rígidas
com seus filhos, para que estes não se tornem "mimados" ou "frouxos". Nada se teme
tanto como a fraqueza afetiva, o deixar-se levar pela ternura.
Quando o mundo se apresenta como um objeto de conquista, parece um tanto indesejáv
l a linguagem da ternura. A afetividade e a ternura podem quebrar a disposição
do combatente, atentando contra a cfetividade da ideologia guerreira. Só depois de
alcançada a vitória e que se permite ao combatente, por um momento, a vivência
do carinho, o consolo do guerreiro, como e chamado pela literatura. Ainda hoj, m
uitos destes guerreiros e guerreiras, sem casco e sem armadura, sentem culpa qua
ndo
se entregam à ternura sem antes haver conquistado um mundo ou avassalado um imperi
o. O carinho para eles só pode ser entendido como a jóia obtida depois de um duro
combate. Desta maneira, delimita-se o campo de influência da ternura, restringindo
-a a momentos de relaxamento em que não se põ em perigo o endurecimento da pele,
próprio dos combatentes. Quando, por alguma circunstância, o carinho e a ternura se
imiscuem nas rotinas da vida diária, os prisioneiros da ideologia guerreira sentem
grande temor e confusão, podendo responder
23
#com atitudes de resistência e violência. Relegada à esfera do privado, a ternura e ob
rigada a excluir-se do mundo do público, onde sua palavra parece não ter nenhuma
validade.
Continuando com o inventário de símbolos apreciados pelo Ocidente, símbolos que se opõem
à enunciação da ternura, cabe mencionar ainda o Eu e a Identidade que, em
seu afã por concentrar imagens e manter a unidade em meio das provocações sensoriais e
afetivas do ambiente, se constituem em diques que dificultam a vivência da
fratura afetiva. Pois, por implicar uma descentração, um estar aberto ao outro, um d
eixar-se assaltar pelas imensidades ambientais que chegam ao nosso corpo, a tern
ura
só pode enunciar-se a partir da fratura, vivenciada a partir de um ser atravessado
pelo mundo e não a partir daquele que se fecha sobre a experiência impondo a qualqu
er
preço suas intenções e projetos.
Constata-se, a partir da dimensão da ternura, uma inversão da ideologia do conquista
dor. Enquanto este aspira perpetuar-se no tempo, homogeneizando ao som de seus
caprichos os espaços que caem sob seu domínio, quem se aninha na ternura e assaltado
e derrotado, de saída, fraturado pela pluralidade e tensionado pela diferença.
A unidade do eu se rompe como um espelho que se converte em prisma e a carcaça da
identidade cede, fendida sob a pressão de forças que, do interior do indivíduo,
tentam entender o estranho, o diferente, o outro.
24
#As loucuras permitidas
A ideologia do guerreiro tem, alem disso, seu próprio agenciamento simbólico: a para
nóia. Esta exaltação da explicação causal que divide o mundo, de maneira maniqueia,
entre amigos e inimigos, busca manter-se, de certo modo, como lugar à distância da t
ernura. Na assim chamada, por Enk Erickson, crise da idade adulta, o conflito
mais intenso que o ser humano deve enfrentar e escolher entre viver em intimidad
e ou manter-se na solidão. Como solução falida, e frequente que muitos indivíduos
recusem a possibilidade de um contato caloroso com aqueles que os rodeiam para e
ncerrar-se no delírio, oprimidos pela tirania dos símbolos e pela aspereza da lingua
gem.
Fugindo da ternura, caem na armadilha da dureza do logo, pos só estando abertos ao
s vaivens do afeto impedimos que a linguagem se institua como supremo depredador
que nos oprime com sua voracidade de vampiro.
Esta parece ser, não obstante, uma experiência benefica para o guerreiro. O sentir-s
e só, frustrado em sua busca de carinho, áspero de pele e excitado pêlos símbolos
marciais e grandiloqüentes do triunfo, pelo risco e pelo heroísmo, parece alimentar
a economia da luta e predispô-lo a empreender uma e outra vez batalhas temerárias.
Esta situação se vê claramente na ideologia do executivo ou daquele que busca o poder
- artista, político ou empresário - que dispõem de todas as suas horas para
combates reais e iusórios, mas temem cair na tibieza da ternura, pois seria o mesm
o que expor seus ideais, a firmeza de seu eu e a solidez de sua identidade ao ef
eito
dissolvente da sensibilidade.
Para a nossa cultura, a paranóia e uma loucura rentável. Só um exercito de paranóicos, d
e megalómanos que querem esmagar
25
#o mundo com seu êxito e seu eu, pode estar disposto a trabalhar dia e noite para
açambarcar em suas mãos dinheiro e prestígio. "Acumulai, acumulai! Eis a panaceia!",
parecem gritar em coro, seguindo a divisa que o economista Adam Smith tornou fam
osa, há dois seculos. Loucura que produz em seus dois extremos o executivo e o dep
endente
de drogas, o primeiro como exemplo de paranóia com êxito e o segundo como caricatura
daquele afã de êxito e medo da ternura que, por igual, embarga a ambos.
Já nos acostumamos a achar que os "homens do êxito" - os personagens dojet set, arti
stas famosos, políticos e outros acumuladores de fama - paguem como preço de
suas conquistas o desastre de sua vida afetiva. Inclusive, chegamos a achar este
seu comportamento natural, alegando como desculpa a falta de tempo para esses m
isteres.
O que aqui se esconde e o próprio temor à vivência da ternura que encontramos no depen
dente de fármacos. Nada mais parecido à compulsão do adicto do que as compulsões
permitidas dos executivos. O medo do contato íntimo que o adicto demonstra leva-o
a buscar na exaltação sensorial do psicoativo a intensidade que não consegue tirar
de seu contato cotidiano com os outros, da mesma maneira que o compulsivo da pro
dutividade, do trabalho, do êxito ou do poder, costuma mostrar grande capacidade
para manipular os outros e obter pingues benefícios, mas estará sempre pronto a esca
par quando se apresenta a possibilidade ou necessidade de um contato mais íntimo.
De modo geral, ávida e sexualidade do adicto são desprovidas de ternura. Embora dese
je e tenha ânsias de ternura, ela e percebida como um perigo, por isso se volta
sobre si mesmo, ajudado pela exaltação química de seu imaginário e de sua vivência guerrei
ra. Na minha experiência como diretor de um centro de tratamento para fármaco-depend
entes,
pude constatar que o momento mais perigoso para o aparecimento daquela situação que
no jargão da reabilitação se conhece como "recaída" era precisamente aquele
em que aparecia uma aproximação afetiva. Depois de participar por várias semanas de te
rapias grupais e de prepararse para enfrentar de novo a vida cotidiana, o depend
ente
deixavase arrastar por alguma provocação amorosa que, ao impor cada
26
#vez mais a aproximação íntima, disparava sua ansiedade de consumo, comportamento que
acabava inclusive por destruir a relação afetiva que havia iniciado. Esta ansiedade
provocada pela intimidade explica por que a ajuda que se tenta prestar a um adic
to por parte de familiares ou entes queridos só faz exacerbar sua ânsia de consumo.
Por isso no e apressado afirmar que a adicção ou i dependência e um fenómeno inversamen
te proporcional à capacidade de dar erceber ternura, de viver na intimidade
e de ' construir laços amorosos e afetivos com os outros.
Como insumo central para a construção destas couraças de caráter que nos defendm da tern
ura e nos predispõem à paranóia, a cultura ocidental impõe ao nosso corpo
uma relação bastante funcional, produtiva eautomatizada, onde os laços afetivos com o
ambiente passam em grande parte despercebidos. O medico aprende que não deve
sentir como sua a dor de seus pacientes, para que possa tratá-los de maneira gener
ica dentro da rotina hospitalar. Ensina-se ao professor a manipular os alunos,
a fim de ` obter aprendizagem, sem deixar-se arrastar pela singularidade de suas
vivências. O político aprende a manejar massas, constituiçes e decretos, que incidem
sobre o "bem comum", sem deixar-se arrastar pêlos casos individuais, pois se acha
que desta maneira perderia sua eficácia. Todos esses casos são exemplos do que
Ivan Ulich chamou de incompetência especializada, reconhecida e diplomada pelas un
iversidades. Para ser bem sucedido em nossa cultura, e imperioso tornar-se insen
sível
a muitas vivências singulares, a fim de assumir uma máscara estereotipada que não dela
te nossas emoções nem as nossas dúvidas, isto e, que não denuncie a radical
diferença daqueles fenómenos com os quais entramos em contato. Afirma-se que o bom p
olítico não deve ter muitos scrúpulos, como o bom general não pode levar em conta
o sentir pessoal de cada soldado, mas o êxito global da batalha.
Esta condenação da percepção individual, que em G.WF. Hegel assume quase a forma moral d
o mal, foi relacionada por alguns com o pecado, declaração cujo interesse
se torna explícito quando completamos a famosa fórmula de William James que define o
pecado como uma perda da atenção aos fins últimos, com
27
#aquela de Fernando Pessoa que diz com profundidade e beleza que sentir e distra
ir-se. Para as redes de poder que capturam nossos desejos a fim de vinculá-los à
grande máquina produtiva em que se converteu o mundo, e pecado grave podermos dist
rairnos nos encantos da sensibilidade.
Quando alguem sente em seu corpo o efeito de campo das correntes afetivas e das
relações interpessoais, de imediato o tachamos de histerico ou esquizofrênico, enquant
o
consideramos normal aquele que se articula insensível a todos os automatismos. Lou
co - no sentido de loucura proibida - e aquele que se sente corporalmente incómodo
com as exigências de automatização, afirmando que seu corpo e manejado por poderes que
o avassalam, ao passo que sensato - no sentido de loucura permitida - e aquele
que se crê autónomo, silenciando a forma como cultura manipula sua sensibilidade e
desejos, afirmando com ufania que nenhuma trama social o aguilhoa, crendo que
nenhum símbolo se aninha em sua consciência a não ser que conte com o beneplácito da von
tade. Para aceder à patente padronizada da normalidade, impõe-se nas tarefas
diárias um silenciamento corporal que desconheça por completo a possibilidade de ace
der à rede interpessoal atraves de comunicações que não se integrem às exigências
de rendimento e eficácia produtiva.
28
#A conição afetiva
Para estender a economia guerreira à vida familiar, afetiva, escolar e produtiva,
o Ocidente favoreceu a dissociação entre a cognição e a sensibilidade, assentando-a
como um de seus axiomas filosóficos. Cria-se, desta maneira, um ser abstrato, univ
ersal, disposto a deslocar-se ate os confins da terra, um ser que estabei' lece
uma relação funcional com a natureza, tratando as águas, os bosques e os animais como
"recursos" aptos para integrar à dinâmica do mercado. Nada deve sentir o caçador
de baleias ou o cortador de árvores por aqueles seres singulares que são considerado
s como simples objetos a manipular. Nada deve sentir o conquistador-seja ele
o escravista de seculos anteriores ou o atual executivo multinacional - que poss
a distraí-lo de seu objetivo único e grandioso: submeter os outros à sua hegemonia
política e às suas redes de mercado.
Mas e bom constatar que nem sempre se apresentou, na : história dos povos, esta di
ssociação entre a afetividade e o conhecimento intelectual, nem esta exclusão social
das vivências que não conseguem expressar-se na estrutura racional da linguagem fala
da. Há muitos povos - entre os chamados primitivos - que dedicam grande parte
de seu tempo ao intercâmbio lúdico ou ao cuidado corporal, inclusive mais tempo do q
ue dedicam às tarefas produtivas. Entre eles cumprem papel importante sistemas
cognitivos voltados par a percepção das singularidades afetivas, a partir dos quais
ordenam seus comportamentos sociais e políticos. Prova disto são os modelos de
conhecimento xamânico, onde o diagnóstico e a intervenção medica partem das percepções que
bruxo detecta em seu próprio corpo. Capta assim distúrbios no
29
#campo das relações interpessoais, articulando-as de maneira imediata à dinâmica do corp
o e da natureza, acedendo a cognições afetivas que lhe permitem entrar em
interação com as cadeias vitais e com as redes de interdependência.
Sobre isso e interessante notar que no original grego do Novo Testamento, ao ref
erir-se à dimensão milagrosa de Cristo, os evangelistas utilizem a palavra splacniso
mai,
que corresponde à conjugação de um verbo desaparecido no seculo II a In de nossa era e
que hoje poderíamos traduzir literalmente como "sentir com as tripas". Para
os que estiveram perto do Jesus histórico, um dos sinais mais impressionantes de s
ua grandeza estava na capacidade de aproximar-se dos enfermos e miseráveis, sentin
do-os
com suas vísceras. Splacnisoniai, em sua tradução latina de misericórdia, foi uma palavr
a que se integrou à tradição pastoral e litúrgica, dentro da qual perdeu
em grande parte sua carga vivencial para tornar-se simples formalismo. "Senhor,
tem misericórdia de mim" deve ser entendido, no bom cristão, como um pedido a Deus
para que nos sinta com suas vísceras.
Chama a atenção que paralelamente ao desaparecimento deste verbo com o qual desapare
cia tambem uma cpisteme e uma forma arcaica de ver e entender o mundo - o medico
romano Galeno cunhara o termo hipocondria para designar aqueles que sentiam a do
r alheia como se estivesse em seu próprio corpo. Histericos e hipocondríacos são
os enfermos de hoje, por resistirem a dialogar exclusivamente com uma linguagem
fonetica e racional e continuar comunicando-se com o mundo atraves de seus órgãos
e da tonalidade muscular.
No Antigo Testamento, encontramos tambem expresses que dão a entender a importância
que nos estratos antigos se dava às cognições afetivas. Na celebre passagem do
Genesis onde Noe, depois do dilúvio, oferece um holocausto ajave para reconciliar-
se com a divindade, faz-se referência a uma cognição olfativa do Deus de ISRael
que dá lugar a um dos mais impressionantes arrazoados que se conhecem no quadro da
literatura veterotestamentária. Depois de "aspirar o calmante aroma" que sobe
ao ceu com a fumaça do sacrifício, o senhor Jave se dá conta de que cometeu um erro co
m
30
#os homens ao tratá-los como deuses, pois nada se corrigirá com o dilúvio, visto que o
SER humano e, desde sua infância, "torcido de coração". Depois de conseguir
este assombroso insight, jave promete aoè que jamais tornara a castigar os humanos
com um dilúvio, dando-se lugar a uma segunda aliança.
A referência a uma experiência sensorial mediada pelo olfato ou pelo tato e muito fr
equente em todos os povos da antiguidade tardia. Ainda na epoca romana, os homen
s
se apalpavam os genitais ao fazer alguma transação ou pactuar um contrato, situação que
por pudor os tradutores clássicos descrevem utilizando um eufemismo, dizendo,
por exemplo, que se tocavam na coxa para evitar a referência aos órgãos sexuais. O olf
ato e em muitas ocasiões sinónimo de sabedoria. Os profetas denigrem os ídolos
porque, ao contrário de seu Deus, não podem sentir o odor, e o próprio Jave, para refe
rir-se ao desgosto que lhe causa a participação dos iSRaelitas nos cultos de
fertilidade de Baal e Astarte, os despreza dizendo-lhes: "Não me agrada o odor de
vossas reuniões".
No chamado livro do Emanuel, atribuído ao profeta Isaías, ao descrever-se as Virtud
es exergas do rebento dejesse que atua como paradigma do que se espera do homem
hebreu, utiliza-se a expressão "sentir o odor do temor de Jave" para indicar a pru
dência e sabedoria que e exigida do rei messiânico. Durante muitos seculos, a Igreja
utilizou a expressão "morrer em odor de santidade" para refErir-se àqueles que eram
merecedores da exaltação canónica e, ainda nos dias de hoje, dizemos de uma pessoa
que "tem faro" quando se mostra capaz de reconhecer situações interpessoais que não po
dem ser captadas por um exErcício intlectual tradicional. Atribui-se aos caçadores,
aos artesãos e aos medicos bom olfato quando demonstram perícia em seu ofício, assim c
omo nos hospitais e escolas de medicina se fala de "faro clínico" para designar
aquela percepção sobre o curso da doença que e difícil separar do exercício ao vivo da art
e de curar. Vemos, portanto, inclusive em nossa própria tradição cultural,
uma ambiguidade no manejo da sensorialidade, pois ela pode, ao mesmo tempo, ser
rechaçada ou valorizada, dependendo do contexto no qual e enunciada, situação que
torna ainda mais
31
#discutível a possibilidade de continuar mantendo essa diferença taxativa entre a co
gnição e o afeTIvo.
O interdito que separa a intelecção da afetividade parece ter sua origem em que, fre
nte a uma percepção mediada pelo tato, gosto ou olfato, o Ocidente preferiu o
conhecimento dos exteroceptores, ou receptores à distância, como são avista e o ouvido
. Nossa cultura e uma cultura audiovisual. Condicionante tão certo que os Padres
da Igreja e o próprio Santo Tomás conceberam o ceu como um paraíso visual onde teríamos
por toda a eternidade a visão beatífica de Deus, excluindo a possibilidade
de um ceu táctil, sentido que tambem haviam censurado na terra. A escola, autêntica
herdeira da tradição audiovisual, funciona de tal maneira que a criança, para
assistir à aula, bastar-lhe-ia ter um par de olhos, seus ouvidos e suas mãos, exclui
ndo para sua comodidade os outros sentidos e o resto do corpo. Se pudesse faer
cumprir uma ordem dessas, a escola pediria aos alunos que viessem apenas com seu
s olhos e ouvidos, ocasionalmente acompanhados da mão, em atitude de segurar um lápi
s,
deixando o resto do corpo bem resguardado em casa. "Olhar e não tocar chama-se res
peitar" e uma expressão que exemplifica o desejo do mestre de excluir qualquer
experiência que possa comprometer o aluno na proximidade e intimidade. A intromissão
do tato, do gosto ou do olfato na dinâmica escolar e vista como ameaçadora,
pois a cognição ficou limitada aos sentidos que podem exercer-se mantendo a distância
corporal.
, A escola, em seu conjunto, sente uma profunda aversão à
sensorialidade e à singularidade. Pode-se constatar isso na maneira de tratar o ch
amado problema da aprendizagem. Quando uma sensibilidade singular se choca com
o onanismo da máquina escolar, preocupada tão-somente em perpetuar-se a si mesma, a
forma que esse encontro toma e o fracasso academico. A razão burocrática projeta
no indivíduo as causas do desencontro, resistindo a lançar um olhar sobre seu próprio
funcionamento. Ao
negar a importância das cognições afetivas, a educação se afirma como um pedantismo do sab
er que se mantem subsidiário de uma concepção de razão universal e apática,
distante dos sentimentos e dos afetos, fiadora de um interesse imspetorial que d
esconhece a
32
#importância de ligar-se a contextos e seres singulares. Razão que, desde suas orige
ns longínquas Grecia e sua consolidação na modernidade, não pretende outra coisa
senão escorar as condições de um mercado mundial dos valores e dos desejos, dos sujeit
os e dos corpos, da força de trabalho e dos sistemas de acumulação. Esta razão
(Uiversal, incapaz de perceber a singularidade, não entende que aprender e sempre
aprender com outros, pois as estruturas de pensamento não são mais do que relações
entre corpos que se interiorizaram, afeiçõs que, ao se tornarem estáveis, nos impõem urn
certo modelo de fechamento ou de abertura diante do mundo.
O aniquilamento da singularidade se torna patente na incapacidade da escola de c
ompreender a existência de modelos divergentes de conhecimento, em sua obsessão pelo
metodo e pla nota, na incapacidade de captar as tonalidades afetivas que dinamiz
am ou bloqueiam os processos de aprendizagem. A escola se mostra resistente a ac
eitar
que a cognição e cruzada pela paixão, por tensões heterônomas, a tal ponto que são as emoçõ
não as cadeias argumentativas que atuam como provocadoras ou estabilizadoras
das redes sinápticas, impondo-lhes fechamentos prematuros ou mantendo uma plastici
dade resistente à sedimentação.
A aula e planejada para uma comunicação audiovisual que serve de suporte ao exercício
da leitura e escrita. O olfato aparece como um sentido de menor valor, seguindo
o raciocínio de Immanuel Kant que, em suas lições de antropologia pragmática, não contente
com declará-lo um sentido superfluo, se queixa de sua existência, sugerindo
que não tê-lo nos pouparia muitíssimas sensações desagradáveis. Nega-se sumariamente um tip
de conhecimento contextual eprático referido a situações conflitivas
da vida cotidiana, nas
quais não podemos fazer uma rigorosa separação entre sujeito cognoscente e objeto conh
ecido. O odor não permite exterioridade nem distância. Estamos imbuídos nele
como estamos na existência diária acossados por forças que nos envolvem e comprometem
corporalmente, sobre as quais, sem mediação de separação possível, e imperativo
tomar decisões. O conhecimento político que, como dizia Aristóteles, e um saber do jus
to meio e das forças em oposição, só consegue expressar-se de maneira plena
na metáfora olfativa.
33
#Expulsar o olfato da aula e da escola e tomar os educandos anósmicos
110 que diz respeito ao poder, a fim de submetê-los à figura de uma razão que se apres
enta equânime, soberana e bondosa.
O tato tambem não goza de reconhecimento nos espaços escolares. Os alunos devem perm
anecer quietos, atentos, com o olhar voltado para frente, como se só fossem signif
icativos
os gestos e vocalizações do professor. Falta grave e insistir em explorar corporalme
nte o companheiros. O tato, o mais humano dos sentidos, o único que não está
localizado num único órgão pois se estende por todo o nosso corpo, não tem lugar garanti
do dentro dos esquemas pedagógicos. Quando por alguma razão a criança não
consegue integrar-se à ditadura audiovisual da escola, quer porque necessita do co
ntato táctil para mediar seus processos de aprendizagem ou porque recorre a explor
ações
olfativas, cai sobre ela a censura de ser um incapacitado. Se não consegue manter
quieto o corpo durante a hora da aula, o olhar voltado para frente e a atenção
disponível, e rejeitado pela máquina educativa. Grave erro das estrategias pedagógicas
, pois são estes sentidos excluídos ,que nos dão o conhecimento mais direto
das relações de interdependência com os outros, podendo-se afirmar, no caso do tato, q
ue e indispensável inclusive para o desenvolvimento do pensamento operatório
que nossa cultura tanto se esforça em cultivar.
Ao excluir o tato e o olfato do processo pedagógico, nega-se a possibilidade de fo
mentar uma intimidade e proximidade afetiva com o aluno, perpetuando-se uma distân
cia
corporal que reforça a posição de poder do mestre, que agora se torna verdade incontes
tável. Este manejo do espaço nega sumariamente ao estudante a possibilidade
de reconstruir a dinâmica afetiva dos conteúdos cognoscitivos que llie são entregues,
mutilando-se assim o saber e perpetuando-se o autoritarismo. Resistir à possibilid
ade
de contato táctil e querer perpetuar uma hierarquia do poder que alimenta de manei
ra sorrateira as grandes empresas burocráticas e militares das quais tanto continu
a
necessitando o Ocidente. Solapá-la e repensar a estrutura do espaço e a dinâmica da au
la, a fim de abrir um novo campo de interação dos sinais com os corpos, dinamizados
agora por uma topologia dos gestos que
34
#busca provocar conhecimentos ao calor de toques ternos e encontros inspiradores
. A tarefa do pedagogo e formar sensibilidades e, . para isso, deve passar da ra
zão
teórica à razão sensorial e contextual, cinzelando o corpo sem pretender atracá-lo à durez
a do código ou esmagá-lo com a arrogância professoral que desconhece as
potencialidades da singularidade humana.
Por trás da imposição epistemológica da cultura que silencia o táctil em benefício do visua
, esconde-se a tensão por gerar um sujeito capaz de mover-se no território
generico da abstração, tal como convem à racionalidade ocidental da fábrica, do exercito
e da política. Ao contrário de nossa sociedade, obsediada por produzir o
"homem universal", as culturas não ocidentais se movem segundo lógicas concretas, on
de a abstração não está dissociada da singularidade afetiva As lógicas do concreto
- como mostrou Claude Levi-Strauss em seus estudos sobre o pensamento selvagem -
podem ser tão eficazes como as nossas, sem desconhecer em nenhum momento a experi
mentação,
a aprendizagem por ensaio eerro ou a dinâmica da criação artística. A grande diferença fac
e aos modelos de pensamento utilizados por nós não e seu atraso ou "barbarismo",
mas sua referência a um universo concreto, tanto geográfico como interpessoal, do qu
al não querem descontextualizar-se. A ambição do Ocidente, ao contrário, foi
criar um conhecimento válido para todos os países, momentos e culturas, sacrificando
-se com isso a riqueza semântica que se . obtem ao enunciar uma verdade
ligada à força do instante. Se e » essa a nossa fortaleza - nossa vantagem
comparativa como cultura
- cabe reconhecer tambem que e a raiz de muitos de nossos problemas. A chamada c
rise ambiental, o fracasso dos planos de ï desenvolvimento, os nós górdios
da ciência, da medicina e da psiquiatria, assim como as crises políticas dos últimos a
nos, estão relacionados com as fissuras que essa disposição cognitiva, chamada
por Gianni Vattimo de pensamento duro, começa a apresentar Modelo de conhecimento
total e axiomático, outrora ( poderoso no Ocidente, hoje porem assaltad
o
e confrontado por propostas que insistm em gerar um saber integrado ao afetivo,
aberto à singularidade e aparentado com o cotidiano.
35
#Não tem sentido continuar perpetuando a separação entre o conhecimento burocrático tran
smitido pelo professor e um saber cotidiano mediado por lógicas concretas,
das quais nada se ensina nas aulas. orna-se imperativo aplicar à escola a epistemo
logia da cozinha, onde o importante não e a receita mas o efeito sensorial que
se consegue para tornar apetecível o prato. A comparação, que pode ate ser chocante pa
ra alguns, não deixa de ser instrutiva. Os bons restaurantes não são aqueles
que estão exibindo diante do cliente seu conjunto de máquinas, a maneira como lavam
os pratos ou eliminam os desperdícios. Pelo contrário, são aqueles que tratam
de criar um ambiente delicado e sugestivo, com música e decoração agradáveis, para que p
ossamos abandonar-nos às delícias do paladar. O ambiente educativo parece
obsessionado por ostentar seu pesado maquinário, a tal ponto que o que resta no fi
nal não e o prazer do conhecimento, de sua reconstrução ou confrontação epistemológica,
mas o peso burocrático das rotinas produtoras de notas, das guias e das tarefas, d
os projetos e das avaliações. Maquinário que nem sequer entra em questão, como
admitem muitas empresas na atualidade, pois e preciso centrar-se no cliente. No
caso do processo educativo isto não seria outra coisa senão abrir-se à singularidade,
às lógicas sensonais, única maneira de adentrar-nos nas cognições afetivas, nos componente
s passionais do conhecimento sem cuja reformulação e impossível avançar
na construção de um sujeito crítico, capaz de reformular verdades e proposições, disposto
a dar a volta em suas construções simbólicas sem temor de cair no absurdo.
Entender o ensino como uma formação da sensibilidade dá ao pedagogo o perfil de um est
eta social, alguem que tem como materia-prima o corpo, a fim de modelá-lo a
partir de uma certa idealidade, provocando o gesto a partir da linguagem com o p
ropósito de favorecer a emergência de sensibilidades e afeições que têm como paradigma
a aproximação delicada à realidade do outro. Convocadora de mediações culturais que estão s
mpre sujeitas ao escrutínio público, a estetica pedagógica exige uma
atitude de precisão e cuidado que só pode ser alcançada se aceitarmos o importante pap
el que a dinâmica afetiva desempenha no ambiente educativo.
36
#A tematização da afetividade não pode continuar confinada o "quarto de santo Aleixo"
(um cubículo debaixo da escada). Não se trata de levantar a bandeira de um
novo sentimentalismo contra os excessos da razão. Não. Trata-se muito mais de compre
ender que há sempre na emoção algo de razão e na razão um tanto de emoção, embora
se tente, a partir de diferentes óticas, afirmar o contrário. Os sentimentos não podem
continuar confinados ao terreno do inefável, do inexprimível, enquanto a razão
ostenta uma certa assepsia emocional, apatia que a coloca acima das realidades m
undanas. A separação entre razão e emoção e produto do torpor e do analfabetismo
afetivo a que nos levaram um imperi burocrático e generalizador que desconhece por
completo a dinâmica dos processos singulares. Dado que nossas cognições são determinada
s
por fenómenos de dependência e interdependência, por cruzamento de gestos e corpos, e
impossível continuar excluindo a afetividade do terreno epistemológico, pois
com isso o que fazemos e etronizar como única e definitiva uma certa forma plana e
defendida de dar e receber afeto que se apresenta como natural e eterna. Modali
dade
manipuladora e chantagista que nega a possibilidade de conhecer por intensidade
e paixão, a fim de poder afiançar sua utopia estandardizante e burocrática de seres
sujeitos aos ditames do grande capital.
37
#Sentir a verdade
Cabe desconfiar de uma opinião bastante generalizada que reconhece válida uma abertu
ra ao afetivo e sensorial para artistas e poetas, banindo-a porem do campo da
ciência. Esta percepção, baseada na arbitrária distinção entre o afetivo e o cognitivo, rec
beu sua sanção definitiva nas obras do chanceler Francis Bacon, pioneiro
da racionalidade instrumental, para quem o exercício científico exigia declarar guer
ra aos fantasmas da imaginação, a fim de obter uma objetividade a toda prova.
Hoje sabemos que jamais se consegue a pretensa neutralidade do pensador ou pesqu
isador. Tanto Bacon como Descartes assentaram seus procedimentos e afirmações numa
implícita vivência afetiva que, embora se tenta mostrar como pura e natural, esconde
, mais do que qualquer outra, uma pretensão de domínio de um mundo concebido
como conjunto de objetos colocados a serviço da mentalidade instrumental. Tanto a
ciência moderna como a argumentação cartesana encontram suas raízes num saber afetivo
mimetizado de razão - por exemplo, no eu peno cartesiano que escapa por completo à d
eclaratória de objetividade que lhe serve de porta-estandarte. A razão - esse
mito do Ocidente que justificou suas grandes empresas imperialistas - e, no fund
o, um estado de ânimo, uma disposição afetiva, umpathos que define um certo modo
de estar no mundo, como e próprio de toda ideologia regulamentadora de convicção.
Este saber afetivo implícito na ciência ocidental girou em grande parte ao redor da
urgência por gerar um discurso científico e tecnico cifrado num corpus de conhecimen
tos
de validade universal, acedendo a informações que possam ser entendidas e utilizadas
38
#/ independentemente do contexto donde surgiram. Afetividade plana que tem como
acicate a urgência por impor um domínio homogeneo e universal, concebendo-se o mundo
como um tabuleiro disponível para ser utilizado como artifício pelo mercador ocident
al. Daí a insistência dos agenciadores do discurso científico e tecnico na necessidade
de conhcimentos que possam ser válidos indepenentemente do contexto donde surgiram
. A partir de suas próprias utopias, o mundo aparece ao cientista e ao racionalist
a
como uma grande tábua geometrica sobre a qual podem cair sua mão e seu olhar sem apa
recer nenhuma resistência.
Desde Aristótelcs, a ciência foi concebida como um domínio do geral, a tal ponto que B
uffon, no seculo XVIII, chegou a dizer que as especies eram os únicos indivíduos
da natureza. A partir de um interesse de domínio universal e de homogeneização cultura
l, e compreensível que se afirme a necessidade de uma lógica cartesiana e bacon
iana; mas se o que buscamos e interagir com o ambiente que nos cerca, atendendo à
singularidade dos seres, teremos que recorrer a uma dinâmica gnosiológica aberta
ao conhecimento afetivo do contexto e da difererinça. e bom lembrar que nos últimos
anos as lógicas da universalização a todo o transe receberam um duro golpe, ao
comprovar-se a redutível singularidade dos seres vivos. A outrora verdad de Aristót
eles e Buffon se apresenta hoje como um exagero insustentável. Nem genetica,
nem bioquímica, nem imunoiogicamente há dois seres iguais no grande concerto do mund
o biológico. No caso do ser humano, a estas diferenças devemos somar aquelas
que advêm do cerebro altamente aberto ao aleatório, com possibilidade de organizar d
e maneira diferente os milhares de milhões de sinapses. o que torna impossível
encontrar dois seres humanos com um sistema nervoso idêntico. Não podemos simplesmen
te reconhecer o equívoco. A generalização e apenas um momento do conhecimento
que, para ser válida, deve articular-se a uma fase de contextualização, a uma aventura
práxica, pois só a sensibilidade nos orienta para interagir corretamente com
a singularidad dos seres e dos entorns.
Como parte de sua arrogância universal, desde suas origens helenicas o pensamento
ocidental mostrou-se como um exercício
39
#cognitivo oposto ao mito, cujo território se via reduzido à medida que avançava a lum
inosidade da razão. O positivismo do seculo XVIII e a defesa da ciência contra
o obscurantismo e a religião são manifestações desta oposição que assume as características
estas sim mitológicas de combate entre as trevas e a luz. A oposição
mito-razão parece ser a chave de abóbada para compreender a cosmovisão do sujeito mode
rno, que entra para suprir suas necessidades religiosas com os conteúdos da
cientificidade. Sob esta perspectiva, a ciência seria uma forma omnicompreensiva d
e ver o mundo, trazendo conhecimentos essenciais para a convivência em terrenos
que antes eram património da teologia e da especulação.
A ciência adquire a função de proporcionar ao cidadão uma representação coerente do mundo,
al como aquela que o mito e a religião ofereciam. Convertida em guia
moral e intelectual, aparece como poder inesgotável, unida de maneira substancial
ao desenvolvimento humano e ao progresso. A ciência, como paradigma ou cosmovisão
tal como a popularizou Cari Sagan para milhares de telespectadores no mundo inte
iro - passa a cumprir o papel de novo mito legitimador que se apresenta ao mesmo
tempo como opção etica e política do homem contemporâneo. Em nome desta ciência perpetuam-
se burocracias professorais e se elaboram manuais que repetem, num exercício
dogemático, as verdades estabelecidas. Quando a Ciência (com maiúscula) se coloca como
instância suprema de autoridade, fora de um processo de produção humana, estamos
contudo recorrendo a um dos exercícios preferidos da mitopoyesis: mostrar como obj
etivo ou natural o que não e mais do que uma criação cultural.
Antes de falar de ciência em abstrato, e preciso focalizar o exercício do cientista
contemporâneo e indagar pelo tipo de cosmovisão que pode derivar de sua atividade.
Comecemos por constatar que não se trata de um indivíduo enciclopedico ou universal,
como eram os sábios gregos ou os mestres proeminentes do Renascimento. O cientist
a
está sempre voltado para um saber parcial, para um campo empírico delimitado, em con
tato com uma tradição e uma comunidade de pesquisadores que utilizam uma linguagem
tecnica, cifrada, que só pode ser conhecida e validada por especialis-
40
#tas. e totalmente ipossível, na atualidade, criar novos fatos científicos com um co
nhecimento enciclopedico das ciências ou por fora da comunidade especializada.
Mas isso não e suficiente. O cientista contemporâneo trabalha dentro de uma grande c
adeia de conhecimentos, confrontando de maneira bem pontual fatos ou teorias
que outros colegas puseram em evidência antes dele. O cientista isolado e inteiram
ente impnsável. A figura do genio capaz de abrir simultaneamente várias fronteiras
da ciência foi perdendo atualidade. Cada vez e menos inteligível ao cidadão comum o mo
tivo pelo qual se concede um premio Nobel de física ou de química, e mais difícil
ainda representar a qualidade do avanço premiado. A ciência, em seus detalhes, e pou
co compreensível ao leigo.
Qualificado de maneira simplificada, seu exercício e o de um tecnico treinado no m
anejo de uma linguagem especializada, capaz de confrontar enunciados com certos
fatos provocados no interior de dispositivos experimentais perfeitamente definid
os. ecnico, mas tambem consciente das limitações e validade da metodologia que usa.
Se o cientista quiser ir alem de seu próprio território o que e sempre desejável deverá
reconhecer com clareza onde termina sua competência e começa a de uma
linguagem e valores que llie são desconhecidos. De uma perspectiva epistemológica, e
u mesmo que chegar ao limite de uma verdade eadentrar-se num campo de produção
de conhecimentos onde tudo e visto a partir de uma ótica diferente.
A ciência não pode encher os vazios provocados pela falta de uma ideologia ou de uma
religião. Como conhecimento dos limites, a perspectiva científica oferece a
possibilidade de entender que, assim como acontece nas diferentes disciplinas in
vestigativas, tambem no interior da cultura há múltiplos jogos de linguagem, cada
qual com seu próprio campo de validade. Trata-se exatamente de saber como se const
rói cada jogo com o qual entramos em contato, ou, pelo menos, ter presente que
não podemos reduzi-lo por completo à nossa verdade. Assim definida, a atividade cien
tífica corre paralela a uma prática democrática, que consiste em aceitar a diferença
e a conviver com ela, recorrendo
41
#para isso a mediações simbólicas que permitem negociar o sentido, a fim de ganhar nov
os campos de operação e validade. No âmbito do humano, do agir interpessoal,
a tarefa do cientista se expressa como uma certa vocação pelo contexto e pelo detalh
e, buscando gerar conhecimento pela via da distinção e da discriminação, muito
mais atento a uma dinâmica de confronto de erros do que à enunciação de verdades indiscu
tíveis. Na dimensão do social, a visão do cientista contemporâneo não tem
motivos para alimentar essa pretensão de fazer da razão um novo mito, o mito fundant
e da comunidade ocidental. Aceitando uma razão finita, o pesquisador entende
seu exercício como um trabalho de geração de distinções articuladas ao redor de constantes
que, nem por isso, adquirem o caráter de verdades inamovíveis. Em consequência,
o cientista e um artesão do conhecimento, disposto a estender não tanto suas crenças c
omo seu ânimo crítico a todas as esferas do humano, sem pretender converter
a ciência numa metafísica cerrada onde as verdades são definidas de antemão.
Sob esta perspectiva, cabe entender que os perigos dogemáticos inerentes à formulação de
uma imagem de mundo residem não tanto no caráter mítico ou anticientífico
que possa ter esta pretensão, mas na possibilidade, quer a partir da síntese cultura
l ou a partir da reflexão empírico-analítica, de cair numa genralização prematura.
Aquilo que colocamos como o perigo do preconceito e uma sensorialização apressada do
conhecimento que reduz a aventura intelectiva a um mero esquema vazio, a uma
abstração que nada diz do contexto onde se produz. A difrença entre uma síntese científica
e outra
totalmente ideologizada não está em sua maior ou menor formalização, mas em seu fechamen
to ou abertura epistemológica, pois só esta última condição lhe permite
articular-se de maneira dinâmica às provocações e exigências do contexto. A tradicional op
osição entre mito e razão deve reformular-se para a nossa epoca em termos
de um conhecimento como ideologia - que aponta mais para uma teoria da verdade e
reprodução do conhecimento - e um conhecimento como empresa crítica e ernancipatória
que se define como teoria do erro e da abertura epistemológica. Pelo primeiro cami
nho, afirmamos uma identidade pessoal, profissional, cutural ou política. Pelo
42
#segundo, ao contrário, adentramos no cálculo de diferenças, fundamental para a captação d
e matizes, variações e contextos.
Se a ambição do cientista e exatamente chegar a graus cada vez mais altos de formali
zação e universalidade, em sua prática cotidianajamais pode desligar-se do contexto
social que serve de caldo de cultura para sua atividade pesquisadora. Charles S.
Peirce, analista da linguagem e um dos fundadores da semiótica, chamou a atenção
para a importância da percepção imediata do contexto no processo de pesquisa. Esta per
cepção e fundamental no momento de formular hipóteses, processo que não pode
ser confinado, de maneira exclusiva, nem à indução nem à dedução. Ele a entendeu como uma t
rceira via, à qual denominou abdução ou rctrodução. A hipótese, dizia,
e sempre uma conjetura que depende de nossa esperança de adivinhar, mais cedo ou m
ais tard, as condições sob as quais aparecerá um determinado tipo de fnómeno. Este
exercício de adivinhação, de jogo probabilístico, e talvez o mais usado pelo ser humano
em seu dia-a-dia e tambem pelo cientista em seu trabalho de pesquisa.
A abdução corresponde a um típico juízo de percepção, a um enunciado simples e rápido do qu
aptamos, a uma imagem do mundo que depois será limada pela indução.
Em termos estritos, estes juízos perceptivos podem ser entendidos como uma dedução abd
utiva que constitui o primeiro passo do raciocínio científico. Peirce chama
a abdução de argumento original e, ao compará-la com a dedução e a indução, conclui que e o
o modo de conhecimento do qual surge uma ideia nova. A abdução se
apoia numa percepção inconsciente de conexões entre aspectos do mundo que permite pass
ar, por meio da hipótese, de um complicado emaranhado de predicados a uma concepção
simples e totalizadora da realidade. Este movimnto sintetico só se consegue a part
ir de um certo clima emocional, razão pela qual Peirce chama a hipótese - ou síntese
abdutiva de elemento sensual do pensamento.
Hoje podemos dizer com certeza que Peirce rompe a inocência do cientista positivis
ta que pretende estar analiticamente diante de um objeto sem nenhum tipo de prec
oncepção.
A linguagem
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#nos precede e nos sucede, nos rodeia em todo momento e lugar, nos orienta em no
sso enfoque do objeto de conhecimento, sendo impossível não contar com ela. Mais
do que pretender excluir a linguagem, e necessário reconhecer que estas imagens do
mundo ou preconcepções podem muito bem atuar como obstáculos epistemológicos ou
como ferramentas úteis na produção científica. Uma pergunta pela imagem de mundo e pelas
afeições que comprometem o cientista contemporâneo e, por isso, simultaneamente,
um convite a tornar explícito o universo linguístico no qual se encontra imerso o pe
squisador.
Vivemos no meio de sinais e sistemas classificatórios que, por sua própria dinâmica, g
eram conhecimento. Nas centenas de sinais que absorvemos, desde a infância,
da atmosfera cultural, recebemos um saber sedimentado que tem como materia-prima
nossas percepções e afetos. A sabedoria cotidiana e ao mesmo tempo um conhecimento
sensorial e sentimental que atualizamos em bloco, sem distingui-lo do contexto e
m que atuamos. A este conhecimento só podemos aceder atraves de processos abdutivo
s,
compartilhados tanto pelo cientista como pelo cidadão comum. A abdução e a intuição do con
texto, fundamental à captação do meio germinal em que surge a aventura
da busca. Neste contexto nasce o pensamento científico e a ele deve retornar, inte
grando suas descobertas a uma pragmática do conhecimento. Sem ela, nenhuma hipótese
poderia ser formulada, nenhuma evidência construída. Ela abre e fecha a dinâmica inves
tigante. Ela torna comunicável a experiência, permitindo que o conhecimento
se entronque à dinâmica de uma epoca.
A imagem de mundo pode em muitas ocasiões apresentar-se como uma abstração apressada q
ue nos impede de aceder à complexidade das forças que nos constituem. Mas,
e bom entender que a inconveniência não está tanto na validade ou não desta síntese contex
tual, mas antes em sua oportunidade, em seu kairo. Nada mais dinâmico e
mutante que este jogo de relações que se oferece de maneira intuitiva à introspecção; mas
nada mais humano que pretender dar a este conglomerado de forças um estatuto
definitivo. Quando isto acontece, os paradigmas se convertem em pesa-
44
#dos obstáculos que devm ser removidos. Só abertos aos dados dos sentidos, aos afeto
s que nos cruzam para combiná-los com formulações abstratas e conceituais, e
que conseguimos aproximar-nos da singularidade dos seres, tornando mais precisos
nossos processos de conhecimento. Não importa que por esta via nos afastmos daque
la
meta utópica da razão, isto e, de querer enunciar regras gerais válidas para todas as
epocas e situações.
O caminho mais fácil para o conhecimento da singularidade parece ser aquele que se
gue a pegada gnosiológica do contexto e da sensibilidade. e no plano do sensível
que residem nossas mais radicais diferenças. e na maneira de percebers aromas, as
carícias ou o tato, em nossos ascos e alergias, nos pequenos prazeres e nas exaltações
emocionais que fica mais claramente marcada nossa irredutível singularidade. Pensa
r de acordo com uma lógica do sensível, aberta à captação de diferenças, e prestar
atenção a esses vaivens afetivos que dão conta de nossos toques e nossos encontros. Não
obstante, e lamentável que este caminho continue vedado ao homem contemporâneo,
que padece a esse respeito de uma especie de analfabetismo emocional, denominado
alexitimia pêlos psiquiatras. Este bloqueio cultural que impede de ler os
| dados oferecidos pelas vivências afetivas e típico de seres enclaus- ;
trados em códigos binários e arborizados que só reconhecem o
sobe e desce da indução ou da dedução. e exercitando a abdução
que se formulam hipóteses inovadoras ou se conseguem sínteses . |
oportunas, deslocando-se sobre a complexidade da realidade ;
como uma ave que voa em meio aos ventos contrários, mudando devez em quando suas e
strategias e rumos.
A proximidade da afetividade à singularidade tem sido, há , » muitos anos, reiv
indicada pela literatura e pela poesia, mantendo-se a ciência alheia, por
uspeita e timidez. Os meios de comunicação de massa a utilizam em suas propagandas c
omerciais para obter a simpatia do consumidor. A Coca-Cola, num deslumbrante
comercial de TV cheio de agilidade corporal e juventude, nos garante que
;
beber o produto e "sentir de verdade", transmitindo-nos subliminarmente a plena
vivência da singularidade por parte do jovem que ri de satisfação na tela. Entre
a verdade do sentir dos poetas e do
45
#sentir de verdade dos consumidores de Coca-Cola, deveríamos abrir caminho para um
sentir a verdade da ciência, dispostos a superar o abismo que de maneira injusta
nossa cultura abriu entre o conhecimento e a afetividade. Na verdade, este senti
r merece um melhor tratamento que o de um simples comercial de TV
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#O cerebro social
Para aceder à fertilidade cognitiva da abdução, e necessário superar a visão parcial que c
onfina o processo de conhecimento à utilização dos cxteroceptores - olhos
e ouvidos desconhecendo a importância do tato e dos sentidos cinestesicos proprioce
pção evestibular no processo de conhecimento.
Alguns anos dpois que Descartes e Bacon formularam seu paradigma de racionalidad
e, os filósofos ingleses envolveram-se numa polemica que teve um grande impacto pa
ra
o nosso tema. A pdido deMolmeux, um professor de ótica da epoca, o medico e filósofo
John Locke, perguntou-se se os cegos de nascimento, ao recuperar a visão, poderia
m
reconhecer pela vista, de maneira imediata, os objetos que haviam conhecido pelo
tato. Como geralmente acontece com as discussões filosóficas, a pergunta voltou
sobre si mesma e estendeu-se a tal ponto ate incluir uma reflexão que questionava
por completo a concepção que se tinha ate ntão do processo de conhecimento.
Os ecos da polemica chegaram aos ouvidos do jovem George Berkcly que, no começo do
seculo XVIII, publicou um pequeno ensaio sobre a teoria da visão, no qual ofereci
a
uma solução bastante original ao problema de Molineux. A hipótese de Berkeley pode res
umir-se no seguinte: tanto a vista como o ouvido são sentidos secundários,
que só fazem notar o mundo enquanto se referem a um conjunto de vivências tácteis que
lhes dão apoio. O ser humano, ao ver-s obrigado a transformar a informação
visual em tátil e vice-versa, produz um conjunto de sinais que se convertem em mat
eria-prima para a constituição da linguagem. A problemática foi retomada anos depois
por Denis Diderot em sua conhecida carta
47
#sobre os cegos, insinuando a importância da experiência tátil na construção do espaço e da
noções geometricas. A vista, outrora rainha dos sentidos, fora destronada
de seu lugar privilegiado.
Durante o seculo XDC a propriocepção ou sensação proveniente do nosso próprio corpo - rela
cionada com o tônus muscular e o movimento no espaço começou a tomar
o lugar do famoso sentido comum de Aristóteles, pelo que, de maneira ainda confusa
, se lhe atribuiu a propriedade de assegurar um sentimento de integridade pessoa
l
e uma convergência dos dados dos demais sentidos para chegar às noções de forma, peso e
causalidade. O seculo XX haveria de descobrir a importância da propriocepção
e do sistema vestibular - que nos informa sobre a velocidade de nossos deslocame
ntos - para a configuração da estrutura cognitiva da criança. No chamado núcleo cinesico
- conformado pelo tato, pela propriocepção e pelo sistema vestibular reside grande p
arte do conhecimento básico que temos sobre o mundo, articulando-se em redor
deles os significantes linguísticos.
Daí a importância que tem, no ser humano, a estimulação proprioceptiva, que para muitos
não e outra coisa que o chamado tato profundo. Sem uma adequada estimulação
tátil, o bebe não pode sobreviver. Na criança a mielinização do sistema nervoso está ligada
estimulação tátil por parte da mãe ou dos adultos e à atividade lúdica
que coloca o corpo em contato com outros corpos, facilitando assim experiências de
tato-pressão e manejo coordenado dos diferentes seguementos corporais. Na falta
de uma estimulação tátil adequada, a criança pode apresentar serios transtornos em seu s
istema imunológico, incompatíveis com a vida, ou alterações cognitivas que
dificultam o processo de socialização. Exemplo do primeiro caso são os órfãos que durante
a Segunda Guerra Mundial eram cuidados na Inglaterra em grandes albergues,
contando com pessoal muito escasso para sua estimulação tátil e afetiva, razão pela qual
só recebiam estritamente alimentos, remedios e apoio básico para a sobrevivência.
A maioria deles morreu antes dos três anos devido a serios problemas imunológicos, a
o que parece por falta de um contato corporal que favorecesse sua maturação biológica.
Como exemplo do segundo caso, cabe citar o autismo infantil, enfermidade
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#na qual se encontra gravemente coprometida a maturação do sistema tátil, especialment
e o tato profundo, dificultando-se a genese de estruturas espaço-temporais
e linguísticas que permitam uma adequada socialização.
Sem dúvida alguma o cerebro necessita do abraço para seu desenvolvimento e as mais i
mportantes estruturas cognitivas dependem deste alimemto afetivo para acançar
um adequado nível de competência. Não devemos esquecer, como assinalou há vários anos Leon
tiev, que o cerebro e um autêntico órgão social, necessitado de estímlos
ambientais para seu desenvolvimento. Sem matriz afetiva, o cerebro não pode alcançar
seus mais altos picos na aventura do conhcimento. Desconhecendo este fato, o
racionalismo instrumental reduz categoricamente as possibilidades cognitivas de
nossa especie. O chamado sexto sentido não e algo diferente da percepção cinestesica,
modalidade sensorial que depende em grande parte do tato profundo. A incapacidad
e de nossa cultura para a percepção contextual e as dificuldades que temos para aced
er
à faculdade abdutiva de que nos fala Peirce estão diretanente relacionadas com esta
censura brutal que paira sobre as cogmições mediadas pelo tato.
Se o cerebro e o órgão social por excelência, e preciso reconhecer que os sentidos se
constróem a partir da vivência cultural, em permanente interação com o ambiente
e a linguagem. A cultura não e mais do que um grande dispositivo para acondicionar
cerebros. Por isso não e nada acidental que se prefira, dependendo dos interesses
de poder predominantes, uma certa mediação perceptual sobre as outras. e o que faz a
sociedade ocidental ao favorecer o audiovisual sobre o tátil. Encher a vida
cotidiana de ternura exige uma invrsão sensorial que vai desde a mais próxima vivência
perceptual ate a desarticulação de complexos códigos que nos assinalam corredores
já estabelecidos de semantização do mundo. Uma inversão sensorial e necessária para ressig
nificar a vida diária, acdendo, como nos grandes ritos iniciáticos, a uma
alteração do estado de consciência que nos obrigue a deslocar os limites em que se enj
aulou nosso sistema de conhecimento.
49
#Agarrar e acariciar
Ninguem pode negar que o tocar reveste, na vida afetiva e na experiência social, u
ma importância considerável no que se refere às estrategias de comunicação humana.
No campo da politeia (razão prática), as metáforas do tato são usadas de maneira privile
giada para falar da tonalidade que predomina no encontro com o outro: cálido,
duro, frio, agradável, áspero, ardente são termos originários da percepção tátil que circul
facilmente para expressar modalidades do mundo inter-humano. Os franceses
têm um belo dito para qualificar as pessoas torpes em suas relações sociais e contatos
cotidianos. Dizem delas que são "ursos mal lambidos", integrando num só movimento
a experiência do afago maternal e corporal com o campo do manejo interpessoal do p
oder e das exigências da vida diária. Aplicadas à voz e à vista, encontramos tambem
transferências de sentido que conferem a estas modalidades sensoriais as característ
icas de percepções recebidas pela pele: fala-se de voz superacolhedora, de palavras
ou olhares acariciadores. Tudo parece indicar que o espírito da imterpessoalidade
e em grande parte mediado pelas modalidades táteis usadas pela cultura.
O tato e um autêntico ponto de encontro entre os sujeitos. Assim como acontece na
vida cotidiana, na qual se difunde uma gama de vivências que vão desde a violência
ate a ternura, tambem a experiência tátil pode abraçar desde o agarrar e a apreensão ate
o roçar e a carícia. Dicotomia na qual nos debatemos dia a dia. A mão, órgão
humano por excelência, serve tanto para acariciar como para agarrar. Mão que agarra
e mão que acaricia são duas facetas extremas das possibildades de encontro inter-hum
ano.
O apalpar e o pegar podem ser a fase previa do incorporar, no caso
50
#de o tato converter-se no precursor do ato dedevorar a presa. Elias Canetti vê na
mão que não solta o símbolo dileto de uma forma de poder que fomenta o supersticioso
prestígio de animais como o tigre e o leão, que costumam cair sobre sua presa com de
cisão e astúcia. Nada importa lastimar. Quanto mais perigosa e a presa, tanto
maior a pressão do caçador que pode chegar a esmagá-la. O ato decisivo do poder está em
agarrar. Quando agarro um objeto, faço-o sem pedir consentimento, supondo
que as coisas devem estar à minha disposição no momento em que exijo. Ficamos irritado
s quando um cinzeiro deixado num determinado lugar, escolhido deantemão, não
está lá quando vamos buscá-lo. Assim como agarramos os objetos, fazemos tambem com as
pessoas quando pretendemos impor funcionalidade, querendo integrálas a um maquinário
ficinte, sujeitando seus corpos e comportamentos aos desígnios de nossa vontade. "
Menino, fique quieto", "não saia do lugar ate que eu volte", "eu não disse que
você tinha de fazer isto e não aquilo?", são expressões que caracterizam essa pretensão de
submeter os outros aos nossos caprichos e desejos. O agarrar, que nos
perfilou como grandes construtores de instrumentos, tambem nos tornou sujeitos p
ropagadores de violência.
O oposto do agarrar e a carícia, pois e impossível acariciar pela força, já que a experiên
cia se converteria de imediato num maltratar. Para acariciar devemos contar
com o outro, com a disposição de seu corpo, com suas reações e desejos. A carícia e uma mão
revestida de paciência que toca sem ferir e solta para permitir a mobilidade
do ser com quem entramos em contato. Mão compassada que tenta reproduzir em seus m
ovimentos a dinâmica caprichosa da vida. Mão que renuncia à posse e que aprende
do outro num suave galanteio. A ambiguidade do agir humano sempre pêndula entre a
antipatia da alergia e a possibilidade de adentrar-se na pele do próximo que nos
faz a carícia. A carícia, como dizjean Paul Sartre, não e um simples roçar de epidermes:
e, no melhor dos sentidos, criação compartilhada, produção, feitura. Ao acariciar o outr
o, fazemos nascer sua carne sob os dedos que deslizam sobre o corpo. A carícia
e o conjunto de cerimnias que encarnam o outro. Jogo no qual perdemos os
51
#limites, acariciar e abrir-se ao mundo e tambem aos abismos que nos sulcam. Jea
n Brun sugere por isso que toda carícia anuncia tambem um fracasso, por ser incapa
z
de realizar aquilo que oferece: a transferência total da vivência. Ao acariciar, pre
tendemos transmitir nossos sentimentos e buscamos ao mesmo tempo sentir o que
o outro experimenta. Porem, embora o desejemos com ardor, nunca chegamos a coinc
idir de maneira plena. O que anuncia ser uma simbiose não passa de um simples roçar,
um fracasso, pois nenhum contato tem poder suficiente para metamorfosear-se em f
usão. A carícia e, simultaneamente, símbolo de nossa finitude e reafirmação do desejo
inatingível de ampliar as fronteiras da pele em busca de um êxtase esquivo.
Ao contrário do agarrar, a carícia e uma prática de co-gestão. e impossível acariciar o ou
tro sem acariciar-nos ao mesmo tempo. Mediante a carícia provocamos o corpo
do outro ao mesmo tempo que ele nos provoca. Acariciar e participar num encontro
que no final reforça a emergência da singularidade. A carícia, ao contrário do agarrar,
e uma práxis incerta, exploração que se vai reformulando de acordo com as reações do nosso
acompanhante. Se alguem chega a fazer um plano previo, rígido e definitivo
para acariciar, e bem possível que acabe por estrepar-se, convertendo a carícia em v
iolência. O caçador deve ser certeiro ao cair sobre a presa, sem importar-se
em feri-la. Mas acariciar não e o mesmo que disparar. O movimento próprio da ternura
assemelha-se mais ao vaivem, à deriva, ao acaso compartilhado. O outro não e
objeto do qual queremos apropriar-nos, mas um sujeito sulcado por seu próprio abis
mo, cujo conhecimento nunca pode ser esgotado. Ao contrário do tato que possui,
como alguns símbolos do toque amoroso que encontram expressão em modalidades sádicas d
e sexualidade perversa, a ternura e uma experiência tátil que renunciou às
imagens da fusão e ao sonho da simbiose. Quando a mão, arrogante, insiste em possuir
o outro, deixa de ser seda para tornar-se garra, fracassando o encontro e abrin
do-se
passagem à incorporação. A singularidade e devorada. A possibilidade de diálogo desapare
ce. A ternura e substituída pela violência.
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#A ternura e o resultado de nos aceitarmos como ruptura e fragmentação. Só um sujeito
fraturado e uma autonomia questionada prmitem a aparição de lógicas da dependência
e da sensonalidade que são imprescindíveis para adentrar-nos num mundo inter-humano
sem ânsia de conquista.
Sermos ternos com o mundo e com os objetos implica inverter a manualidade, desis
tir do agarrar exercitando ojogo do pegar e soltar sem apoderar-nos do outro. Ca
dência
que obriga a olhar-nos numa atitud constante decriação, onde fazemos e nos fazemos,
situados o: sujeitos não tanto como lugar de saber mas como lugar de ignorância.
A fórmula de Maud Mannoni, referida à ncessidad de desencadear um saber que não se sab
e, parece aplicar-se com propriedade à gnosiologia da ternura. Entre a apreensão
e relaxamento, entre o tentar e o desistir insinuam-se pequenos abismos de ignorân
cia, fracassos que revelam nossa condição de seres fragmentados, lissurados, incapaz
es
de chegar a um saber total mas possibilitados para construir em conjunto precisa
mente pela incompletude de nossos modelos epistemológicos. A ternura, como disse
uma vez Gabriela Mistral referindo-se à canção de ninar entoada pela mãe com o flho nos
braços, e antes de tudo uma carícia que nós mesmos nos proporcionamos, pois
a mãe só e terna com o fihlhinho se for terna consigo mesma. A ternura e um conjuro
social destinado a colocar um dique à nossa agressividade para que não se transmute
em violência destruidora.
A distância entre a violência e a ternura, tanto em seu matiz tátil como em suas modal
idades cognitivas e discursivas, tem sua raiz nessa disposição do ser terno
para aceitar o diferente, para aprender dele e respeitar seu caráter singular sem
querer dominá-lo a partir da lógica homogenea da guerra. Podemos falar de ternura
na política, de ternura na pesquisa e de ternura na academia, se em cada um desses
campos estivermos abertos a uma lógica da imanência como sujeitos em fuga que
deslizam sobre espaços topológicos onde ojogo de forças, de atrações e repulsôes, aparece c
mo a materia-prima da conceitualização. Podemos falar de ternura se nos
aceitarmos como sujeitos fraturados, para os quais a única modalidade de relação válida
e a co-gestão.
53
#Sujeitos jogadores, abertos ao intercâmbio gratuito com a ignorância e o acaso que,
ao reconhecer a necessidade que têm da seiva afetiva, se mostram dispostos a
apostar todo o seu saber por degustar o terno calor dos instantes.
54
#Retorno à sabedoria
Sob o aspecto de sua tonalidade afetiva, a sabedoria pode ser definida como um a
to supremo de ternura, carícia que se torna conhecimento, olfato que se orienta no

entorno, tato que sabe apalpar-se a si mesmo no momento de tocar. Compelidos a t


omar decisões dia a dia, os seres humanos atuam como farejadores que cheiram o amb
iente
a fim de calcular sensivelmente seus deslocamentos. Face às grandes dificuldades,
recorremos ao olfato e ao tato, os mais íntimos dos sentidos, para orientar-nos
no meio do conflito. "Essa pessoa tem faro', "aquela tem tato", dizemos para qua
lificar os que são capazes de mover-se no meio das turbulências humanas e perceber
no contexto o deslocamento correto. Mas, o que estamos fazendo para educar o olf
ato e o tato? Nada, absolutamente nada. O tato e o olfato são sentidos excluídos
e menosprezados, a tal ponto que chegamos a esquecer inclusive que a espirituali
dade e antes de tudo uma experiência olfativo-tátil.
Ruali, o trmo hebraico que quer dizer espírito, deriva de um verbo cue significa "
cheirar". Na Bíblia antiga, homem espiritual e aquele que e capaz de "farejar"
de maneira bem precisa o que está acontecendo no entorno : as fúrias, os temores, as
urgências afetivas, a pertinência dos símbolos e a proximidade das catástrofes.
Sabedoria e ter a capacidade de "farejar" no contexto o momento em que as urgência
s insatisfeitas de calor e reconhecimento podem voltar-se contra nós sob a figura
trágica e demolidora da violência. O espírito, como costumava dizer Martin Heidegger,
tem em sua essência a dupla possibilidade da ternura e da destruição. e a chama
que alumia e faz reluzir, mas tambem aquilo que pode devorar tudo, consumindo-o
ate convertê-lo em cinzas. Carícia ou agarração, ternura ou
55
#aniquilamento. Sempre em face do terror, a ternura e o acolhimento da força destr
utiva no calor do amistoso, enquanto a violência e o ato de obviedade mediante
o qual eclipsamos a fragilidade humana para convertê-la em cadáver.
A linha que separa a carícia do agarrar e bastante tenue. O exercício humano por exc
elência consiste em manter um termo medio entre estes dois extremos, como se
a mão fosse impelida a pegar e soltar, agarrar e acariciar, aberta a uma grande va
riedade de matizes que e impossível definir fora do contexto em que se realizam.
Entre a carícia e o agarrar insinua-se um campo de conflito nunca resolvido, diant
e do qual e preciso estabelecer uma permanente vigilância etica. Todos nós já tivemos
a experiência de ir à procura de quem nos acaricie e voltar cheios de feridas e hema
tomas, a perguntar-nos depois com assombro: mas o que aconteceu, por acaso não
era o amor? e lugar-comum afirmar que o amor dói e basta sintonizar qualquer uma d
as emissoras que transmitem música popular para ouvir as histórias mais variadas
de pessoas que quiseram ser acariciadas e voltaram maltratadas. Chegamos ate ao
ponto de acreditar que somos incapazes de ajudar às pessoas que mais amamos, quer
porque perdemos a lucidez para fazê-lo ou porque quem precisa de nós acaba fugindo d
e nós. e tamanho o torpor afetivo acumulado em nossa cultura que nos parece óbvio
que um medico não trate seus parentes ou entes queridos quando estão enfermos, porqu
e poderia ser impreciso em seus juízos tecnicos. A dissociação entre cognição
e afeição fechou-nos o caminho de integração destas duas esferas, caminho que permite co
nhecer de maneira mais sutil e detalhada ate que ponto comprometemos nossos
afetos. Integração de saberes que todas as culturas antigas chamaram com o belo nome
de sabedoria.
A fim de compreender melhor nosso torpor afetivo, trarei o exemplo de um acontec
imento que muitos de nós já vivemos, ou na própria caren ou atraves de nossos filhos.
Convidados para uma festa infantil num fim de semana, o mago em cena tirou de se
u chapeu um pintinho que deu de presente ao nosso filhinho. Este, alvoroçado, faz
planos de levar o animalzinho para casa, construir-lhe um abrigo como convem, al
imentá-lo e fazer-lhe
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#companhia. e em casa começa o sofrimento. O animal corre de um lado para o outro
e o pequenino, querendo pegá-lo nas mãos, o agarra tão bruscamente que por um instante
achamos que o esmagaria. Chega finalmente a noite e, em meio ao bulício criado pel
o pintinho, o pequeno decide dormir com ele para aquecê-lo. Ao amanhecer no dia
seguinte, o animalzinho estava esmagado. e grande a dor do menino ao constatar o
que fez. Ele queria protegê-lo e acabou por violentá-lo. Queria dar-lhe ternura
e acabou por esmagá-lo. A inabilidade motora da criança vai sendo corrigida com o te
mpo, mas nós adultos continuamos sofrendo uma falta de jeito semelhante no âmbito
afetivo. Quantas vezes, tentando ajudar, acabamos prejudicando. Quantas vezes, s
em querer, maltratamos os seres queridos. A história do pintinho, a outros níveis
e com outros personagens, se repete diariamente.
O tema etico por excelência, o dilema que dia a dia nos confronta, o assunto diant
e do qual temos que definir-nos minuto a minuto e dia a dia e se acariciamos ou
agarramos, pois o que nos caracteriza como seres humanos e passar rapidamente e
de maneira quas insensível de uma esfera à outra. Ao falar de carícia, não estamos
falando apenas da vida íntima. Referimo-nos alem disso a outros espaços da vida soci
al que vão desde a escola ate a política. A carícia e uma figura que tem estrita
relação com o uso do poder, podendo-se dizer que, enquanto o autoritarismo e um mode
lo político agarrador e ultrajante, a democracia e uma forma de carícia social
onde nos abrimos à co-gestão e à práxis incerta, sem as quais e impossível construir uma v
erdade com o outro.
Enveredar pelo caminho da ternura e ter sempre presente, no horizonte, a possibi
lidade da crueldade e da violência. Falamos de ternura sem desconhecer a facilidad
e
com que os seres humanos chegam à violência. A ternura age como uma especie de conju
ração que impede que coloquemos em ação nosso ódio ate exterminar o diferente.
Assim como a mãe canta a canção de ninar não tanto para a criança mas para ela mesma, para
conjurar sua possível irritação e não causar dano à criancinha, ambem
nós entoamos a canção da ternura para sensibilizar-nos em meio ao horror, para modular
nossas forças e não cair no enlevo do extermínio.
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#O apelo à ternura, assim como todo apelo etico, dirige-se antes de tudo àqueles que
têm poder, pois pretende estabelecer uma modulação no uso da força. Quando exercemos
algum tipo de autoridade sobr os filhos, os alunos, os cidadãos endurecemos porque
temos medo de mostrar nossas emoções, na suspeita de que, se o fizermos, perderemos
o respeito que nos devem aqueles que estão sob nosso mando. Suspeita válida se quise
rmos educar escravos, para o que e preciso estabelecer um respeito autoritário.
Mas se quisermos educar para a liberdade, nada melhor do que combinar o exercício
da autoridade com uma grande disposição afetiva, abertura emocional que nada tem
a ver com a inconsistência das normas. Ao contrário, e mais fácil achar que pessoas au
toritárias, que buscam sujeitar o outro ao seu controle, o chantageiem com
o apoio afetivo, encurralando-o a partir de suas urgências e necssidades, mudando
as normas de acordo com as circunstâncias e caprichos do momento. e pertinente
lembrar que o que nos resta depois de muitos anos de formação na escola ou na univer
sidade, de convivências na rua ou na família, não são tanto cadeias de argumentos
ou blocos de informação, mas a lembrança do clima afetivo e interpessoal que pudemos r
espirar. O que permanece gravado na memória e o manejo autoritário ou acariciador
que as pessoas e instituições do entorno puseram em prática a nosso respeito. O que nu
nca esqueceremos dos outros e sua atitude e sua disposição corporal, o clima
inter-humano que criaram ao nosso redor. As grandes decisões de nossa vida se alim
entam do calor ou da amargura que conseguimos perceber nos climas afetivos que
nos cercam desde a infância.
Por estar relacionada com certas formas de sensibilidade, a etica e mais um tema
concernente às percepções que às proposições, pois, independentemente das cadeias
argumentais que conseguimos formular, as decisões vitais matar ou não matar, impor o
u co-gerir são tomadas dependendo da maneira como percebemos o outro ou os
outros no entorno cotidiano. O que acaba por decidir nossa atitude etica e a afe
tação sensível, a disposição corporal a conviver nessa engrenagem de implícitos e
não ditos que caracterizam o espaço humano. A paixão e a grand artesã do conhecimento.
Afei-
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ções e não argumentos, hábitos e não juízos, gestos muito mais do que palavras e proposiçõe
o que nos resta depois de trafegar muitos anos pelo mundo, pelas
salas de aula e pela academia, como rendimento residual de experiências e aprendiz
agens.
As percepções e disposições sensíveis são construídas de maneira sutil na interação cotidia
dinâmica da aula, nos intrcâmbios afetivos e nos exercícios de
poder que trespassam tanto a escola como ,1 família, tanto os encontros sexuais co
mo os ambientes de trabalho e sociais. Todo problema etico remete a um assunto
estetico, ao campo do que poderíamos chamar estetica social. Estetica, porque o qu
e está em jogo e uma forma de sensibilidade; e social, porque não se trata da experiên
cia
individual de quem contempla uma obra de arte, mas da afeição que compartilhamos com
o grupo e que acaba por decidir o curso de nosso comportameto. Perguntar-nos
pela estetica social que devemos cultivar e 1a forma contemporânea de retomar o te
ma ancestral da sabedoria.
59
#Entre o amor e o ódio
Algumas pessoas certamente perguntarão por que, em vez de ternura, não falo de amor,
palavra tão bem aceita no Ocidente, que poderia expressar muito bem a dimensão
humana daquilo que pretendo comunicar. Amarás traz a conotação de um imperativo etico
que nenhum de nós ousaria colocar em dúvida. O primeiro mandamento da lei de
Deus mostra o caminho para consegui-lo, ao ordenar que devemos amar os outros co
mo a nós mesmos. Operação misteriosa que mobiliza a inteligência e o corpo de duas
pessoas por meio de uma palavra mágica que lembra a esquiva e anelada unidade vive
ncial. Mas, alem da retórica com que se costuma apresentá-lo, o amor e uma experiência
equívoca, porque anuncia com bumbos e pratos a possibilidade de fusão, mas nos engan
a uma vez que se torna corpo, revelando-nos a fragilidade da ilusão ao fazer-nos
constatar que o sonho paradisíaco e irrealizável e que os discursos amorosos quase s
empre são dirigidos a um outro impossível.
Se devemos amar o outro como a nós mesmos, esta adesão inicial corre o perigo de ass
umir a forma de uma fusão narcisista, como acontece nas primeiras fases do namoro.
Amamos do outro quase sempre uma imagem que projetamos nele, imagem que promete
carnalidade para nossas fantasias, mas que não passa de um eden sonhado onde busca
mos
encontrar aquilo que não possuímos. Basta avançar um pouco no percurso para ver debili
tada a imagem, pois o outro e singular e esquivo, fazendo-nos ver que no mais
profundo de nossas necessidades somos inseguros e equívocos. O amor e a passagem d
e uma idealidade para uma carnalidade, de um sujeito afirmado em sua identidade
e enun-
60
#dação a outro descentrado edividido. Amar e começar a navegar num mar de representações g
ratas e unificadoras para terminar numa zona de tormntas onde afetos não
semantizados, pegadas táteis e olfativas, perdidas na noite da memória, retornam com
obscura força para fazer-nos sentir uma agonia melancólica. Nossas histórias
de amor são tambem histórias de nossas feridas.
Ao amar perdemos a identidade, confrontada pela emergência de vertigens esquecidas
que tornam a reativar-se diante da proximidad gestual do outro corpo. Amar e en
trar
numa zona de flutuação que revive velhas feridas e colhe na superfície antigas queixas
. e entrar numa zona em que podemos ser fulminados ao encontrar com os nossos
fantasmas. Aqueles que buscam atraves do amor rconstruir uma certa coerência terão d
e aceitar que o equívoco central está na perseguição dessa identidade imaginária,
epor esta razão e possível manter-se aferrado a seu aspecto retórico, à sua idealidade,
visão favorecida por cosmovisôes políticas, religiosas e asceticas, que identificam
o amor com um sentimento generico e universal que se pode sentir por entes abstr
atos como a pátria, a humanidade ou as ideias. Desta maneira, o amor e desprovido
de toda experiência carnal, decorpo e de tato, para assemelhar-se a uma especie de
esquema mental próximo às estruturas paranóides e totalizadoras, às quais recorremos
quando fugimos dos compromissos que a intimidade nos impõe.
Rodeado de falsas aparências, de máscaras e estrategias de sedução, o amor e uma dramatu
rgia que desperta nossa imaginação, fazendo-nos adentrar numa complexa ficção
narrativa que, pouco a pouco, se debruça sobre as faltas e carências que a enunciação es
conde. Adentrar em seu território labiríntico e perguntar-nos pela epistemologia
de uma ilusão, mas tambem pela dicotomia a que estamos expostos, pois devemos cons
truir vínculos que pendulam entre a imanência do gesto e a distância imposta pela
palavra.
O amor reativa o velho problema da fe, do movimento de identificação que nos assegur
a a possibilidade de restabelecer uma continuidade de fusão com o outro. Como
desejo de afirmar a
61
#solidariedade com o mundo, o amor oscila entre a palavra e o corpo, não sendo pos
sível descobrir um deles senão ao preço de mostrar o vazio do outro. O desafio
do amor e aprender a suportar a angústia que se sente ao confirmar na intimidade q
ue o corpo aparece por esvaziamento do discurso, e que este não e mais do que a
fantasmagorização do corpo. Corpo como palavra e palavra como corpo são os eixos centr
ais que, segundo Julia Kristeva, definem o tema amoroso.
Esta dupla descentralização do corpo e da palavra confronta em seus alicerces a estr
utura narcísica, as necessidades de expressão da singularidade e as angústias
que se geram por entrar numa relação onde a dependência não pode ser controlada. No mome
nto em que o amor chega a esse nó sentimental para o qual não temos palavras,
a partir do qual parecemos emudecer, e provável que apareça em cena a marejada do ódio
. Por isso, a visão simples e simplificada que considera o amor um antídoto
contra a inveja e o ódio não passa de um sonho vão, pois sabemos que e precisamente no
calor da vivência amorosa que se despertam os mais inflamados sentimentos
de rancor e desprezo, assim como outras paixões indesejáveis.
Fala-se muito do amor, sem esclarecer-nos que o mais próximo do amor não e a ternura
mas o ódio. Um simples olhar às relações de casal e a esse ninho afetivo que
por definição e a família basta de sobra para confirmar nossa observação. A literatura e a
psicanálise dão mostra fidedigna de que o tecido amoroso e equívoco e
ambivalente, cheio de abismos escorregadios e ressentimentos ocultos. Basta ouvi
r algumas canções populares ou viver uma relação íntima para comprová-lo. Assim diz
uma das mais conhecidas: "Odeia-me, por piedade, eu te peço, odeia-me sem medida n
em clemência, ódio quero mais que indiferença, porque o ódio fere menos que o olvido;
se tu me odeias ficarei convencido que me amaste, mulher, com insistência, pois e
sabido pela experiência, que tão-somente se odeia, o querido".
Odiamos o outro porque ele nos desilude, porque nos obriga a perder, porque exig
e de nós reconhecer que não podemos esperar reciprocidade total, que lhe causamos
e nos causamos
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#dano s o convertermos em objeto de uma fe cega. Odiamos ao constatar que para c
onstruir o vínculo devemos aceitar uma certa separação e perda. Odiamos ao dar-nos
conta de que todo discurso amoroso e provisório, promessa que nunca se realiza tal
como havíamos sonhado. Odiamos porque nos sentimos depender de outro que e totalm
ente
difrnte de nós, cujos atos não podemos controlar. Odiamos porque nos irritam seus ge
stos e sua singularidade, tudo aquilo que não somos e que, ao estar perto de
nós, nos faz entrar em conflito enos descentra. Odiamos o outro porque desfigura o
ídolo que nos havíamos forjado, condenando-nos a aceitar um mundo ond os imperativo
s
míticos perdem validad.
Falamos por isso de ternura e não de amor, porque ternura e um termo medio entre o
amor e o ódio, ambos sentimntos muito humanos que se apresentam diariamente em
nossas relações afetivas, políticas e de trabalho. Coloca-se muita ênfase em aprender a
amar, mas ninguem ensina a odiar. Como e algo que por definição não deveria
acontecer, diante da irrupção do ódio nos espaços íntimos não sabemos o que fazer, e acabam
s tomando o caminho da atuação de nossa intolerância. Quando chegamos
à fronteira do ódio, quando nossa irritação está a ponto de transformar-se em violência, ap
rece a ternura como uma conjuração social que nos ensina a conviver com
seres diferentes, que, embora não respondam por completo às nossas exigências e necess
idades, nos oferecem a partir de sua singularidade calor e companhia, enriquecen
do-nos
com sua presença. A ternura e o caminho que percorremos quando nos demos conta da
falibilidade humana, da proximidade do ódio e da facilidade com que nos convertmos

em sujeitos que maltratam.


63
#Violência sem sangue
Conhecer a ternura não quer dizer omitir toda aquela violência que carregamos dentro
de nós, escondendo-nos numa urna de cristal onde ate nomeá-la e proscrito. Só
e terno aquele que acede ao mesmo tempo a uma explicitação da violência. Mas, a que no
s referimos quando falamos de violência? O que têm de comum a violência de
rua do facínora, o machismo de nossos campos, as violências sociais, económicas e políti
cas, com as diferentes manifestações de violência na intimidade?
O fator comum e a ação que tende a impedir a expressão da singularidade Todas as forma
s de violência têm em comum sua intolerância diante da diferença e a resistência
a permitir seu aparecimento e crescimento. Em alguns casos se eliminará fisicament
e o diferente com uma arma de fogo, enquanto em outros será com um gesto, com uma
atitude ou uma manipulação psicológica que impediremos sua emergência. e preciso diferen
ciar a violência explícita onde se reconhece uma intenção consciente e
perversa por parte do agressor - das violências implícitas, próprias da intimidade, em
cujo desencadear nem sempre e possível estabelecer uma intencionalidade malevola
por parte dos que a exercem. Alem das intenções dos sujeitos que atuam em determinad
o ambiente social, parece que são as rotinas cotidianas e os enquadramentos que
definem a relação que acossa e maltrata tanto a vítima como o vitimário.
O ponto nodal em torno do qual gira a reflexão sobre a violência e o problema da sin
gularidade humana. Criterio que devemos ter presente para não confundir um grito,
um golpe ou uma má palavra com a violência, enquanto passamos por alto
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#condutas más, censuráveis e perigosas. Muitas vezes achamos que para deixar de ser
violentos basta baixar o tom da voz, oferecer um sorriso permanente ou estar
dispostos a receber golpes e afrontas sem qualquer alteração do nosso ânimo. Mas não e a
ssim. Nem todo grito e violento. Pode-se ser muito mais violento sem gritar,
por exemplo, quando se maltrata o outro fazendo-o acreditar que o fazemos para s
eu bem.
Um golpe físico pode não ser violento se corresponder a uma atitude de defesa espontân
ea que não busca impedir o surgimento da diferença. Qualquer atitude, inclusive
aquelas que se apresentam como bondosas, pode ser violenta, se não partir de um re
speito à singularidade humana. A escola e violenta quando se nega a reconhecer
que existem processos de aprendizagem divergentes que entram em choque com a pad
ronização que se exige dos estudantes. Haverá violência educativa sempre e quando
continuarmos perpetuando um sistema de ensino que obriga a homogeneizar os aluno
s na aula, a negar as singularidades, a tratar os alunos como se todos tivessem
as
mesmas características e dvenham por isso responder às nossas exigências com resultado
s iguais. A família e violenta quando impõe aos filhos ou a um dos membros
do casal um modelo de comportamento que não corresponde às suas exigências mais íntimas
e às suas mais sentidas urgências. e uma sociedade e violenta quando não
reconhece as diferenças que animam grupos e indivíduos, tratando de impor a todos a
mesma normatividade, sem aceitar a existência de casos singulares que obrigam
a rconhecer modos diferentes de convivência. Somos violentos quando desconhecemos
a diversidade que reina na natureza, suprimindo a variedade de especies que conv
ivem
nos ecossistemas. Enfim, somos violentos quando a arrogância geometrizante e homog
eneizadora desconhece que o maior património com que conta a vida e a cultura e
precisamente seu impressionante e farto leque de diferenças.
Vivemos tão atulhados de imagens transmitidas pêlos noticiários que identificam violênci
a com episódios de sangue, guerras , e genocídios, que esquecemos
a presença das violências sem sangue, próprias da vivência na intimidade. Se
pudessemos filmar
65
#as atitudes das pessoas, tanto em sua vida social como em sua vida íntima, poderíam
os constatar, com muita frequência, que seus gestos são muito mais duros no lar
do que no local de trabalho. Basta chegar em casa depois de uma longa jornada, p
ara franzir o cenho e descarregar sobre as pessoas próximas uma carga de violência
que contamina e polui o ambiente familiar. Ali, sob o teto do lar, primam pseudo
diálogos que mais parecem uma comunicação entre surdos, já de início destinada ao
fracasso.
A violência na intimidade se observa especialmente na relação do casal. e impressionan
te ver casais que convivem durante anos maltratando-se mutuamente, gerando
níveis de agressão que asfixiam e tornam irrespirável o ambiente conjugal. Inclusive e
frequente que muitos deles cheguem a uma idade avançada ferindo-se sem descanso,
desqualificando-se e reprovando-se um ao outro, tanto em público como na vida priv
ada. Nas reuniões sociais vemos como se desmentem com seus gestos e olhares, sem
poder esconder o tedio que mutuamente se causam. Basta um gesto ou uma palavra d
e qualquer um deles para desencadear violências sutis que ferem ate o mais profund
o
das fibras afetivas. Um enxame de emoções dispara e antigos rancores campeiam na cen
a. Aliada à memória corporal, a violência se infiltra sorrateiramente, sem que
ninguem a tenha convidado explicitamente. Como e possível pensamos que apesar de a
nos de convivência continuem a violentar-se? Será que uma vida não e tempo
sufciente para aprender a amar? Os anos de vida em comum, em vez de ajudar a mel
horar, endurecem a relação, vivendo-se um estado permanente de guerra, de violências
sutis e escorregadias, às vezes disfarçadas com a máscara do afeto e da proteção, violência
que vão destruindo psicologicamente a pessoa ate bloqueá-la em seu crescimento
e impedir-lhe a expansão.
Todos, de uma ou de outra forma, participamos em nossa vida individual, quer com
o filhos, amigos ou companheiros de relação, das tensões que se geram em torno de
uma vivência amorosa. Cada um, à sua maneira, traz cicatrizes de combates mendazes e
inúteis que revelam de forma patetica a indigência emocional e o analfabetismo
afetivo que caracterizam por igual a homens e mu-
66
#lheres de nossa epoca. Parte significativa deste sofrimento está, provavelmente,
na pouca compreensão que os membros do casal têm das tensões históricas e sociais
que, alem de sua vontade, afetam a dinâmica da relação. Poucos reconhecem, por exemplo
, que a vida de casal e uma experiência nova, sem antecedentes previos em nossa
cultura ou em outras culturas conhecidas. Só a declaração de igualdade entre os sexos,
formulada no Ocidente há poucas decadas, possibilita-nos falar de casal, isto
e, de uma mulher e um homem que estabelecem entre si relações de igualdade.
Ate nossas mães e avós, desprovidas de direitos civis e tratadas como menores de ida
de em sua situação de cidadãs, não se podia falar de casal. O matrimónio era
por essência uma relação desigual onde primava o poder masculino. Coube à nossa geração col
car em prática as consequências afetivas desta igualdade entre os sexos,
experiência histórica acompanhada de um grande número de erros e equívocos. Embora nos e
ncontremos diante da necessidade de estabelecer relações igualitárias, na
prática os avanços ainda são bem poucos. Nossos esquemas mentais continuam fieis a vel
hos modelos de relação interpessoal, infestados de chantagens afetivas e de
pressões que convertem a necessidade amorosa em autêntica tortura cotidiana. Algo qu
e vai alem de nossas boas intenções nos induz a perpetuar cadeias de estupidez
afetiva que fazem cambalear a viabilidade existencial do casal.
O amor, longe de uma visão romântica e idealizada, cabe entendê-lo como uma experiência
que se encontra a meio caminho entre a sexualidade e o poder. O que se põe
em evidência no interior das relações íntimas são complicadas trocas de prazer e domínio in
erpessoal, em nada isentos de motivações económicas. O casal dos nossos
dias e administrador desse complexo legado cultural que nos obriga a transformar
a atração sexual num mpreendimento bem sucedido. Quando cidadãos respeitáveis ou
damas bem-intencionadas empreendem uma campanha para erradicar a prostituição, arvor
am como bandeira o argumento moral que assinala como indigno o fato de trocar
prazer sexual por dinheiro, horrorizando-se ao pensar na possibilidade de uma tr
ansação semelhante. Consideram que algo tão íntimo e digno
67
#como a sexualidade jamais deve rebaixar-se ao nível das transações monetárias. Mas troc
ar o sexo por segurança económica não e algo estranho aos nossos costumes.
Toda mulher bem educada sabe que administrando adequadamente sua sexualidade pod
e obter importantes benefícios sociais e económicos. A virgindade zelosamente guarda
da
e urna economia proveitosa, capitalização que busca uma boa oportunidade para ser in
vestida. O mesmo pode acontecer com uma vida sexual promíscua. São muitas as
alianças económicas e sociais, os progressos pessoais e as amizades duradouras que s
e alimentam do intercâmbio sexual entre seus protagonistas. Não há, pois, muita
diferença entre o que faz a prostituta e o que vive a pessoa decente. O que aconte
ce e que esta realiza de maneira pública o que os outros administram de maneira
privada. e e isto que se torna censurável.
Em todas as culturas, desde a Antiguidade ate o presente, a sexualidade tem sido
entendida mais a partir de uma complicada rede de intercâmbios sociais do que a
partir da esfera da vivência íntima e inviolável de um amor pessoal. A etnologia mostr
ou como a cultura se fundamenta precisamente na regulamentação da vida sexual,
auando neste caso não tanto motivos de defesa da intimidade ou do amor entre homen
s e mulheres, mas considerações de tipo econmico e político. Os casamentos foram
e continuam sendo alianças onde se consolidam convenincias sociais e se fortalecem
transações econômicas. Vamos dizê-lo com toda clareza: não existe uma visão natural
do amor. Tudo que afirmamos a respeito e perpassado de pretensões eticas e políticas
, por modos de representação que buscam capturar em suas redes a energetica da
vivência afetiva. Será então a estes modos de representação que voltaremos o nosso olhar c
rítico.
e inegável que parte do desamor e do sofrimento afetivo que caracterizam o mundo
contemporâneo tem a ver com a influência que exercem alguns imaginários sobre o
tema, ordenando sua conduta de maneira adversa à consecução do prazer erótico. Muitos de
nossos sofrimentos provêm do tributo que rendemos a crenças pouco propícias
à possibilidade de aceder de maneira gratifícante à dimensão amorosa. As coisas se compl
icam quando
68
#constatamos, por exemplo, que a noção de casal reúne ao mesmo tempo e de maneira simu
ltânea vários paradigmas que em muitos aspectos se excluem mutuamente.
Quando se fala da crise do casal, desconhece-se que esta .l forma de organização soc
ial sempre esteve em crise. O casal e um ' invento que não acabou ainda de forjar-
se.
Se fosse possível responsabilizar alguem pêlos descalabros amorosos contemporâneos, tría
mos que apontar aqueles que nos lançaram neste experimento social único na
história sem pedir-nos consentimento nem avisar-nos dos perigos que corríamos. Todos
tentamos, nas últimas decadas, tornar realidade o sonho do casal, desconhecendo
talvez que se trata de uma tarefa impossível. Coxos, mancos e cegos de amor, desga
stados numa batalha inútil, deveríamos pelo menos iniciar uma discussão conjunta
sobre um assunto que, como a prostituição eo aborto, não pode continuar sendo tratada
como um problema privado.
A vida privada, identificada com a paz familiar, o sossego e o segredo, não e essa
propriedade espiritual do eu onde sonhamos que a liberdade e possível. Tambem
nela está incubada a tirania das pequenas coisas, vendo-nos assediados por pressões
interpessoais que nos instrumentalizam. Ávida privada, outrora símbolo da luta
contra o autoritarismo e baluarte da independência pessoal, e hoj, nas palavras de
Victoria Camps, espaço onde se aninha um absolutismo muto mais temível do que
aquele que pretendemos derrotar. Motivo suficiente para dispor-nos a fazer sua a
nálise crítica e a necessária descolonização.
Antes que refúgio do mais precioso de nosso foro interno, a vida privada, por obra
dos meios de comunicação de massa e dos acerados mcanismos da reprodução cultural,
aparece como o lugar onde reforçamos com nosso respaldo afetivo as exigências deatit
udes impostas tanto pela sociedade como pela publicidade. e aí que aprendemos
a maneira de comportar-nos nas esferas do consumo e do ócio regulamentado, sendo t
ambem o âmbito onde as dinâmicas do trabalho, do comercio e da produção, próprias
do mundo público, deitam raízes profundas, atualizando-se numa fina rede de cumplici
dades interpessoais.
69
#A economia monetária, figura dominante do espaço público, encontra sua mais acabada c
oncreção atitudinal e afetiva nas interações conjugais, familiares e privadas.
O que muda de um cenário a outro e simplesmente o valor modal. Na privacidade, a e
conomia assume a forma de atitude firme de caráter moral, de fortaleza administrat
iva,
financeira ou poupadora, de anelo de posse sobre o outro, de exigência de fidelida
de ou conquista avassaladora, condutas reversíveis que constituem o sujeito que
se projetará em público com habilidades empresariais ou guerreiras bem valorizadas p
ela sociedade. Perguntar pelas reversões do público no privado e do privado no
público e entrar de cheio na esfera da conjugalidade, aliança que, como ajano romana
, mostra o rosto bifronte de uma vivência económica e afetiva ao mesmo tempo.
70
#Casal: tarefa impossível?
São tantas as exigências que caem sobre o casal contemporâneo, às vezes ate incompatíveis,
que construir este tipo de relação parece muitas vezes uma tarefa impossível.
A primeira dessas exigências, aparentemente insolúvel, consiste na obrigação que o casal
tem de resolver em sua vida privada, no restrito espaço da alcova, algo
que a humanidade como um todo não pôde solucionar: a guerra dos sexos. Só a partir dos
anos cinquenta e que podemos falar propriamente de casal. Antes o casamento
era, inclusive legalmente, uma relação desigual. Sem direitos de cidadã, a mulher não po
dia aspirar a uma relação de igualdade amorosa com o esposo. Sua condição
era muito mais a de filha mais velha da família, sob a soberana autoridade do pate
rfamílias. Desde então ate hoje, as coisas mudaram. Veo a moda unissex, as mulheres
assumiram os tratores, entraram na universidade e nas fábricas, crescendo sensivel
mente sua presença na vida pública. Assistimos hoje a uma feminização do espaço
social e da cena política. Mas ainda estamos longe de saber como viver na intimida
de com um parceiro do outro sexo. Os velhos modlos da sociedade machista e do do
mínio
feminino sobre a casa e os filhos continuam ainda vigentes. Nem sequer os parcei
ros homossexuais conseguem escapar a essa relação dominante-dominado, passivo-ativo,
que atravessa por completo a dinâmica conjugal. Um problema político, como e a relação e
ntre os generos, deve ntretanto ser resolvido na intimidade por dois mortais
cujo único delito eter sentido uma atração sexual e afetiva, um pelo outro, em algum m
omento de suas vidas.
Uma segunda dificuldade que a vida do casal deve enfrentar está na forma de conceb
er a paixão amorosa. Durante seculos os
71
#amantes se diferenciaram dos cônjuges, porque os primeiros se entregavam à sua paixão
com uma intensidade que podia levá-los à morte, enquanto que, dentro do casamento,
o arroubo erótico era bem escasso, não sendo de todo necessário. Inclusive se achava q
ue entre os futuros cônjuges o apaixonar-se não era prioritário, pois o casamento
era decidido de acordo com outras conveniências e o amor podia chegar ao fim por c
ansaço e costume. A imagem da esposa frígida, casta, na qual o instinto maternal
matava por completo a fêmea, converteu-se num ideal almejado e respeitado. Agora,
porem, tornou-se peremptório o amor pelo cônjuge, com a mesma intensidade com que
se amaram Romeu e Julieta. Não devemos esquecer que estes consumaram seu romance f
ora das conveniências sociais, em instantes fugazes que culminaram com a morte,
enquanto hoje devemos amar a companheira ou o companheiro com a mesma paixão anima
l, mas durante todos os dias, meses e anos, respeitando as conveniências e a integ
ridade
matrimonial. Devemos igualar em ardor os amantes, mas sem colocar em perigo a es
tabilidade conjugal. Se um dia o esposo não desejar sua esposa com a mesma intensi
dade
com que o fazia nos felies momentos do noivado, sentirá ansiedade e culpa, achando
que a relação stá chegando ao fim. O mesmo acontecerá com a mulher que achará
que seu Romeu já não a ama mais. Alem de ter de resolver dentro de uns poucos metros
quadrados a guerra dos sexos, cabe-nos agora ser como Romeu e Julieta, mas com
a rotina e constância impostas pela vida da família.
Como se não bastassem essas imposições, existem outras que tornam ainda mais complicad
a a convivência na intimidade. Paira alem disso sobre o casal o paradigma da
amizade, um tipo de relação interpessoal exaltado pela filosofia que supôs, e claro, u
ma erótica sublimada, mas nunca a conjugalidade. Desafiando os moralistas antigos
que dedicaram longas páginas ao elogio da amizade, agora cabe-nos ser amigos do cônj
uge. Situação impensável para estes antigos filósofos que se teriam irritado
se lhes tivessemos pedido que fossem amigos de sua esposa. Para eles, a amizade
era incompatível com o casamento, entendendo-a como uma relação de mútuo respeito
e acolhimento, apesar das diferen-
72
#ças, coisa que raras vezes se encontra dentro do mundo conjugal. O desrespeito mútu
o e a violência, que procura anular a singularidade do outro, parecem sei mais
a norma do que a exceção entre os casais. Na hora de discutir com o próprio cônjuge, não há
nenhuma distição entre o douor e o caminhoneiro. A grosseria entre marido
e mulher parece ser a única coisa que na nossa sociedade se encontra distribuída por
igual, sem distinção de classes sociais. No momento de insultar-se e maltratar-se,
parece que não importam muito as diferenças económicas nem o grau de cultura.
Como se isso fosse pouco -já estamos tensos por causa da igualdade entre os sexos,
do imaginário dos amantes e da amizade -o casal tem ainda que arcar com os tradic
ionais
deveres impostos pelo matrimónio. Por um lado, gerir o património mútuo e assegurar qu
e cresçam os bens compartilhados, enquanto, por outro lado, se impõe a tarefa
de ser pais, gerando sujeitos sociais aptos para intgrar-se à cultura e à dinâmica do
mercado. Estes dois pobres seres, já atribulados por causa de tantas exigências,
devem ademais levar avante com êxito essa microempresa em permanent perigo de queb
rar que e o casamento. Muito mais que ativos, o que acumulam são dívidas. Dia a
dia têm que gerir as contas a pagar: água, luz, prestação do apartamento, etc., aparenta
ndo perante seus amigos que a debil empresa e só êxito. Por último, e como
se fosse pouco, devem gerar, criar e educar filhos brilhantes, inteligentes, efi
cazes, adaptáveis e geniais, que se integrem às mil maravilhas às múltiplas exigências
da sociedade de consumo. Os filhos são como uma parte do eu e a vaidade dos pais,
que anda solta pelas ruas, quer mostrar sua capacidade de mante-los limpos e bon
itos.
Por isso todas as manhãs devm poli-los e arrumá-los como fazemos com o carro, com a
roupa e com o rosto diante do espelho. Nossa imagem social passa pela apresentação
que os filhos têm no mundo.
com esses ingredientes, cada um de nós deve procurar cozinhar sua própria versão do ca
sal, experimento que, com grande probabilidade, explodirá no fogão, como se
fosse uma bomba atómica caseira. E, apesar de compartilhar o mesmo estupor afetivo
, devemos superar solitariamente as funestas consequências do
73
#fracasso, sem deixar de responder ao "bom-dia, como vai" matutino, com um gener
ico e notório "bem, obrigado". Não importa que o modelo dos amantes se oponha radica
lmente
ao dos cônjuges, ou que a amizade pareça impossível em meio aos trabalhos de criar os
filhos e as exigências de família. O certo e que todos estes imaginários em
uníssono tensionam de tal forma a relação que a fazem explodir em mil pedaços. A consequên
cia mais direta não e diferente da perpetuação de nossa miseria afetiva
e de nossa incapacidade de aceder na intimidade ao prazer compartilhado.
Situação bastante grave se levarmos em conta que o mundo contemporâneo, com seus ambie
ntes predominantemente urbanos, descarregou sobre o casal grande parte da segura
nça
afetiva que precisamos encontrar na vida diária. Porem, tensos devido às exigências de
manter uma intensidade crescente e ininterrupta em nossa relação sexual e
erótica, obrigados a defender simultaneamente a dependência afetiva que caracteriza
o casal e manter a independência pessoal no plano da auto-realização e na vida
social, compelidos a assumir igualitariamente a co-gestão económica sem esquecer a d
efesa dos direitos de genero, bem depressa ficamos exaustos, estendidos no campo
de batalha, sem que tenhamos podido avançar de maneira sólida na construção de uma relação
ima gratificante. Sem dúvida alguma fazem falta mediadores conceituais
que nos permitam responder a tão dissímeis exigências no marco de uma simples relação amor
osa.
74
Estetica na intimidade
A vida na intimidade se apresenta como o maior desafio do mundo contemporâneo. Tri
unfantes do mundo da tecnica, continuamos sendo aprendizes do mundo dos afetos.
Obrigados a explorar às cegas um caminho que não conhecíamos, são muitos os danificados
que podem ser contados nesta surda e silenciosa batalha. Homossexuais e heteross
exuais
parecem enfrentar as mesmas dificuldades. Homens e mulheres mostram-se nesse cam
po igualmente torpes. Somos, em conjunto, uma cultura com um grau alarmant de an
alfabetismo
afetivo. Daí a necessidade de sboçar alguns eixos simbólicos que permitam avançar na rec
onstrução do tecido afetivo.
Talvez a confusão possa começar a esclarecer-se se partirmos da hipótese de que o amor
e antes de tudo um sentimento de depndência afetiva e que, como tal, e um
autêntico imperativo de nossa existência. Os ideais do amor cortesão ou cavalheiresco,
calcados na lógica guerreira, parecem não responder às nossas ncessidades
contemporâneas. Dependemos afetivamente dos outros, tanto quanto dependemos do ar,
da água ou da luz, da mesma maneira que os seres de um ecossistema têm necessidade
uns dos outros para assegurar sua integridade biológica.
O amor não e um ato de soberania, mas antes uma constatação da fraqueza compartilhada.
Quem ama, sente que o eixo de suas decisóesjá não passa por seu corpo, mas
pelo corpo de outro. Isto, e claro, gera uma sensação de extrema fraqueza, que provo
ca uma rcação que tenta controlar o outro ate em seus mínimos movimentos. e aqui
estão as raízes do conflito: por medo de perder nossa segurança, anulamos a singularid
ade do outro, convertendo a vivência amorosa num campo de batalha.
75
#Muitas são as respostas que podem ser dadas a este conflito. e muito frequente qu
e tentemos superar as dificuldades com uma defesa abstrata da liberdade e da aut
onomia.
Deste ponto de vista, dizem-nos, o melhor seria não depender afetivamente, unindon
os assim a um coro censurador que no Ocidente considera denigrante depender de
outros. Saída ilusória que nos leva à paranóia, pois e impossível renunciar ao imperativo
da dependência sem cair na arrogância do poder e da palavra. A outra alternativa
e considerar que o preço da estabilidade afetiva e renunciar à singularidade, sacrifíc
io que e visto por alguns como o ato supremo do amor. Neste caso a relação
se torna servilismo e as figuras do autoritarismo acabam reinando sobre a cena ínt
ima. Modelo de dependência favorável a uma cultura interessada em cunhar, a partir
do íntimo, um sujeito totalitário, disposto a negar no campo político a coexistência com
a diferença e completamente distante de uma forma de convivência propensa
à ternura.
Na nossa perspectiva, partimos do reconhecimento de que necessitamos vitalmente
do outro, mas que não podmos pagar o preço de nossa singularidade pelo acesso ao
carinho de que necessitamos. Trata-se, se quisermos, de uma alternativa amorosa
que enuncia sua força a partir da fratura, uma etica da fraqueza, uma proposta de
co-gestão para o amor que se assume tambem como uma postura política.
Reconhecendo como eixos centrais da relação afetiva a coexistência da dependência e da s
ingularidade, podemos avançar a hipótese de uma relação interpessoal pensada
como estetica interhumana. Começamos por constatar que os sumos do ato estetico são
semelhantes aos que se apresentam na relação afetiva. Uma carga sensória e uma
exaltação passional que são ao mesmo tempo materia-prima e produto, pois no processo c
riador não podemos nunca abandonar o nível do sensível. Tambem o amor se origina
e se valida numa relação sensorial por excelência, que não admite fugas para os ataráxicos
domínios da abstração. Toda mediação linguística e cultural que apareça
no ato amoroso se orienta para o encontro corporal e perceptual com a pessoa ama
da.
76
#Da mesma forma, toda mediação abstrata no ato criador aponta necessariamente para a
materialização da obra.
A criação artística enfrenta de maneira direta os sentimentos contrários de poder eimpotên
cia, o medo do fracasso e da morte, a sensação de peso imposta pela paixão
criadora e a leveza que rsulta do fato de ter podido expressar por um momento a
singularidade. O mesmo acontece na relação amorosa. Sentimonos ligados, encadeados
ao outro, mas simultaneamente potenciados para expressar nossa singularidade e c
rescer a partir do alimento afetivo. Num caso como no outro para o criador e pa
ra
o amant - o mundo se decide em cada instante em face da tolice, da fragilidade e
da morte. Nada mais próximo à morte que o prazer sexual e a experiência do enamorar-s
e.
A exaltação passional rompe as fronteiras de um eu avaro e mesquinho que e transbord
ado pela marijada da provocação erótica. é impossível amar conservando o eu intacto
durante a experiência.
Diant do caos e deambiguidade, das forças ambivalentes que oscilam entre o poder e
a sexualidade, é possível construir dia a dia a estetica interpessoal. A obra
de arte humana, o ser estetico você, eu, alguem que transita pela rua está simultane
amente voltado sobre si mesmo e sobre o outro, num exercício paralelo de solidão
e dependência, tentando construir sobre a contradição uma harmonia frágil que pode modif
icar-se num instante diante da dureza de um gesto ou do convite de uma carícia.
Somos sujeitos éticos e estetcos ao mesmo tempo que, sem ter que colocar em contra
dição a dependência e a singularidade, vemonos obrigados a construir a vida em
cada momento, tendo como única garantia de certeza a tessitura nascida de nossa se
nsibilidade.
Ao colocar em jogo a vivência da dependência afetiva, a vida de casa nos faz penetra
r no território do sagrado. Mas uma certa moral da posse e da propriedade costuma
tornar-nos impermeáveis à vivência, quase sagrada, do sentimento de dependência. Temeros
os de depender, de abandonar-nos às forças que nos alimentam, encontramos
no dinheiro a figura que assegura a perpetuação desse temor. A acumulação monetária e a ma
neira de
77
#proteger-nos contra a dependência a seres singulares. Ter dinheiro e poder afirma
r a autonomia diante do outro, planejar a vida acima daquilo que nos articula co
m
seres diferentes.
Acima da compulsão ao êxito e à eficiência, e do afã instrumental por dominar o próprio cor
o e o corpo dos outros, quem acede ao misterio da dependência e como
um veleiro que se nutre de ventos contrários para alcançar a expressão de sua singular
idade no meio de um mar ameaçante. Pois o segredo e fortaleza da vida de casal
está precisamente em entender que a plena xpressão da singularidade só pode ser encont
rada quando nos abandonamos à mais plena dependência.
78
#Agindo a partir da fragilidade
Não há motivo para confundir o chamado à ternura com o facilismo e a melosidade. Como
se corre o perigo de tornar vazia a palavra, trarei uma imagem da vida cotidiana
para mostrar que ternura e justamente o contrário de submissão ou complacência com a v
i olência eo mau trato. Se me pedissem que escolhesse um animal que serviss
de símbolo da ternura animal totêmico como na sacralidadc indígena não duvidaria em esc
lher o gato. Domestico e ao mesmo tempo selvagem, o gato e um animal
que, no obstant sua disposição para enroscar-se, não se deixa maltratar. Se lhe oferec
emos carícias, estará pronto para esfregar-se contra nosso corpo recebendo
e oferecendo calor. Mas, se o maltratamos, mostrará suas unhas, e, se insistimos e
m causar-lhe dano, subirá pêlos telhados ate sumir. Jamais se ouviu dizer que um
gato foi surpreendido no ato de planejar o assassinato de seu dono. Não. A eliminação
do outro e incompatível com a ternura. Tal inibição etica não impõe, alem disso,
censura à nossa irritação ou desagrado. A ternura e, ao mesmo tempo que disposição à caríci
rejeição visceral à violência. e impossível assumir uma atitude de
cuidado, de incentivo ao crescimento do outro, se suportamos passivamente a violên
cia na intimidade. Sem dar-nos conta, acabaremos de qualquer forma passando de
vítimas a vitimários. Ser terno e afirmar-se como um insurgente civil que diante da
violência cotidiana diz categoricamente como os gatos: Não!
Acostumamo-nos, porem, a uma pedagogia do terror. Desde crianças tomamos conhecime
nto dos corpos esquartejados, dos assassinatos que permanecem impunes, da obscur
a
racionalidade e premcditação da violência. Há decadas fomos educados no
79
#medo e para o medo. Ainda hoje os milhares de mortos registrados pelas estatístic
as correspondem na maioria dos casos a pessoas cuja presença se tornou molesta
para algum poder tradicional ou emergente que procura tirá-las de seu caminho. Imp
ondo o medo, estes poderes se consolidam. e nós, ainda presos pelo fascínio que
o autoritarismo cotidiano provoca em nós, continuamos legitimando a violência ao res
peitar mais um "verracote" armado e dogemático do que um cidadão desarmado.
e preciso aceitar que nossa concepção do mundo e nosso agir cotidiano são mediados pel
o fascínio provocado pela força do guerreiro. Constatando a dimensão da voragem
em que estamos enredados, só nos resta a alternativa de aceder aos cenários onde as
paixões se debatem, tentando porem resistir para não cair sob o fatídico feitiço
do assassinato. Trocamos nosso destino de sicários pelo de estetas. Opomos à abstração s
oberba e pedante do guerreiro a sensorialização de nossa existência e
a possibilidade de manter-nos dignos, mas firmes e irritados, no meio de um apar
elho de morte que ameaça esmagar-nos.
A fim de conservar a saúde mental, enquanto dançamos sobre o charco de sangue que no
s afoga, é importante não confundir ceticismo político com fatalismo social.
Este último é o aliado de uma violência que se perpetua com o nosso mudo consentimento
; o melhor caminho para aclimatar uma convivência na civilidade e o primeiro.
Sem renegar os matizes da alma coletiva, a ponto de ficar presos no meio de forças
que exigem mais morte para impor-se, rodeados do autoritarismo cotidiano e da
incerteza social, afirmamos o desejo de construir um traje cultural à nossa medida
e transitar um caminho acomodado à nossa sensibilidade, mantendo sempre a indecli
nável
decisão de aceder ao horror sem permitir que nossa indignação se transforme em crime.
Sabemos, como disse Simone Weil, que tão implacavelmente como a força oprime, assim
tambem embriaga àquele que a possui ou acredita possuí-la. Mas, partindo do ceticism
o
político que acompanha a ternur, sabemos que ninguem a possui realmente. Nossa vir
tude consiste em olhar de frente a hecatombe sem
80
#deixar-nos amedrontar pelo terror, nem cair seduzidos pela miragem da guerra. N
o meio da embriaguez, os atores armados sabem que são fortes na medida em que infu
ndem
medo, pois seu prestígio vem da indiferença cúmplice de uma sociedade que os olha para
lisada ao desconfiar de seus recursos éticos. Para eles, assim como para nós,
a guerra não deixa de ser uma abstração perigosa, uma atitude teatral manchada pela ja
ctância. Macabro castelo de naipes capitalizado por sanguessugas sociais que
sabem alimentar-se de nossa impotência, construção que desabaria desaprumada, caso se
estendesse por onde quer que fosse um ímpeto indignado de rebeldia cidadã.
A partir da ternura, afirmamos nossa condição de cidadãos desarmados que trocaram seus
sentimentos deimpotência pela fortaleza de saber-se não comprometidos no negócio
da morte. Cidadãos abertos ao contraste e ao conflito, que avançam sob a divisa ineg
ociável de construir seus projetos vitais sem recorrer à eliminação do adversário.
Avançar em direção a climas afetivos onde predomine a carícia social e onde a dependência
não esteja condicionada ao fato de o outro ter de renunciar à sua singularidade
parece ser a tarefa fundamental da política contemporânea. O ator político deve tomar
a séio sua condição de escultor de sensibilidades. Assim como se entrega ao
artista o mármore ou a tela para que crie uma obra de art, a nós se nos oferecem dia
riamente seres humanos para interagirmos e cultivarmos com eles climas de sensib
ilidade
que permitam alcançar um estado estetico favorável à plena expressão das singularidads.
Para isso, é preciso permitir aos outros que bebam nas fontes da interpessoalidade
,
saciando sua sede relacional e de crescimento, sem condicionar a entrega afetiva
à modelação de seu comportamento de acordo com nossos caprichos. A experiência da
chantagem afetiva, que consiste em tornar conhecido ao outro, de maneira explícita
ou implícita, que pode contar com nosso apoio e carinho, só se for como nós queremos
que seja, é uma prática vexatória, bastante difundida na vida cotidiana. Ao aplicá-la, c
riamos um conflito entre dependência e singularidade, duas urgências vitais
e irrenunciáveis do ser humano, submetendo o outro quer ao abandono de sua singula
ridade
81
#para poder aceder à fonte afetiva, ou à luta por sua realização no meio da defensividad
e e desconfiança que qualquer aproximação íntima possa causar-lhe.
A beleza, sabemos muito bem, não está no alto ou no baixo, na compleição corporal ou nos
traços faciais. A beleza, em qualquer pessoa, depende da capacidade que
tenha de expressar a força que emerge de sua singularidade. Por esta razão, a chanta
gem afetiva nos enfeia, colocando-nos numa dicotomia asfixiante e insolúvel.
Submeter alguem à chantagem afetiva é o mesmo que colocá-lo numa câmara de tortura, reti
rando-lhe lentamente o oxigenio para que se disponha a mudar de comportamento.
O medo que a intimidade nos causa e o torpor afetivo que nos caracteriza têm relação d
ireta com o costume bastante difundido da chantagem afetiva. Homens e mulheres,
crianças e idosos, vivem isso todo dia. Assim se explica a insegurança que se cria n
a proximidade afetiva. pois sabemos que ao depender de outros nos expomos ao
mau trato e à manipulação,
Ao recorrer à metáfora estetica, enfatizamos que a arte de modelar sensibilidades te
ma humano por excelência requer tato e delicadeza, exige um acompanhamento
passional que não deve confundir-se com a camaradagem. Uma imagem da sociologia co
mparada das religiões pode caracterizar melhor esta afirmação. O sagrado, em todas
as culturas antigas, e uma esfera ambígua, lugar de poder que pode causar tanto a
vida como a morte. Tal e o caso da arca da aliança, na tradição iSRaelita, capaz
de manter a unidade das tribos mas tambem de provocar a morte de quem se aproxim
e para tocá-la sem respeitar os rituais estabelecidos. O sagrado não pode ser manipu
lado.
Para aproximar-nos de um lugar sagrado e alimentar-nos de seu poder, precisamos
de delicadeza, tato, astúcia, olfato, isto é, espiritualidade. O mundo atual, que
descartou o sagrado da vida cotidiana, perdeu por completo a dimensão e sutileza d
essa linguagem. Deus está enjaulado nos templos ejá nem as árvores, nem os montes,
nem outros objetos do entorno diário compartilham as características do sagrado. Num
mundo que, sob o imperio da razão instrumental, expulsou o sagrado da vida cotidi
ana,
dando patente de corso
82
#para que tudo posa ser manipulado, deveríamos manter pelo menos um lugar sagrado
que definiríamos como o lugar do outro, porque o outro compartilha dessas caracterís
ticas
que os povos antigos deram ao sacro: pode dar-nos a vida, mas tambem a morte. Não
podemos manpulá-lo e revistá-lo, porque acabamos gerando uma situação de violência
que, ao reverter sobre nós, nos prejudica. São necesários complexos rituais de aproxim
ação para interagir com ele sem perigo de maltratá-lo nem maltratar-nos. E,
como se não bastasse, dado que a aproximação íntima é sulcada pela ambiguidade, pêlos equív
s e pêlos abusos de poder, é necessário levar em conta que aceitar
a dependência e permitir a mrgência da singularidade é assunto que requer um supremo a
to de tato e sabedoria.
83
#Ecoternura
Ao defender redes de dependência que não se oponham à emergência da singularidade, o cha
mado à ternura e à recuperação da sensibilidade adquirem uma inegável atualidade
ecológica, articulando-se com grande riqueza simbólica no paradigma da ecoternura. S
omos ternos quando abandonamos a arrogância de uma lógica universal e nos sentimos
afetados pelo contexto, pêlos outros, pela variedade de especies que nos cercam. S
omos ternos quando nos abrimos à linguagem da sensibilidade, captando em nossas
vísceras o prazer ou a dor do outro. Somos ternos quando reconhecemos nossos limit
es e entendemos que a força nasce de compartilhar com os outros o alimento afetivo
.
Somos ternos quando fomentamos o crescimento da diferença, sem tentar nivelar aqui
lo que nos contrasta. Somos ternos quando abandonamos a lógica da guerra, protegen
do
os nichos afetivos e vitais para que não sejam contaminados pelas exigências de func
ionalidade e produtividade a todo transe que pululam no mundo contemporâneo.
A crise ecológica marca, no interior da cultura ocidental, o esgotamento dos model
os de guerra. Sermos ternos e entender que não somos o centro hierárquico do ecossis
tema,
pois, ao depender biológica e afetivamente, nos descentramos, admitindo que o eixo
ordenador passa por seres ao mesmo tempo diferentes e distantes de nós. Aceder
à racionalidade ecológica e à causalidade retroativa e permitir a emergência de um senti
mento de fratura em nossa imagem de reis da criação, pois nos ecossistemas
não há centro, nem chefe, nem quem ordene ou obedeça. O ecossistema é plrincêntrico e reco
nstrói a cada instante, a partir de cada um de seus centros, toda a atividade
da cadeia vivente, sempre aberto a
84
#mútiplos contatos, a variadas zonas de incerteza É indeterminação. e na captação sensível
ta variedade que está a sabedoria do ser vivente para articular-se
às cadeias biológicas que lhe asseguram sua nutrição e crescimento.
Quando a ciência ocidental se apropriou do princípio de "não amar", pretendeu anter um
a diferença radical entre o sujeito e o objeto conhecido, garantindo a hierarquização
do conhecimento e um absoluto controle sobre o mesmo. Ao convidar à sensibilização da
ciência, rompemos com o autocentrismo da ação humana, assumindo que só a partir
da ecoternura é possível criar um conhecimento que tem presente o contexto que nos r
odeia. Somos perguntados: O que vai acontecer com o controle, com a memória,
com a função hierárquica das instituições? e a nossa resposta será: uma das coisas que mais
nos assombra nos ecossistemas e que, sem arquivos nem burocracia, conseguem
preservar um conhecimento sempre atual, imediato e sensível, perpetuado em cada um
a das singularidades e colocado em jogo de maneira espontânea quando se vê ameaçada
a vida da especie.
Ecoternura é desburocratizar o conhecimento, convertendo sua produção e conservação numa p
rática de autogestão. De nada serve guardar arquivos com conhecimentos
que não vão ser compartilhados com nossos congeneres. Não há razão para manter informação q
não vai enriquecer a vida cotidiana da existência singular. Nenhum
sentido tem acumular verdades que não se transformam em padrões de vida e criterios
certos para relacionar-nos com as outras especies viventes. Não é possível continuarmo
s
pensando o tecnico como sede do saber, porque o conhecimento não ;está aqui nem ali,
nem no sujeito nem no objeto, mas num lugar intermediário, lugar da interação
e da construção conjunta. Um modelo de conhecimento que não exclua a ternura ingressa
necessariamente pela racionalidade cológica, considerando fundamental a dependência,
a descentralização e a singularidade, aberto à interação e sem fechar-se em nenhum momento
com a arrogância de um gesto imperial.
O guerreiro que teme abrir-se à diferença e à singularidade, que ambiciona o triunfo s
obre os demais e trata de apresentar-se
85
#duro em suas fainas cotidianas, não se sentirá à vontade com essa defesa da ecoternur
a. Mas é hora de admitir a riqueza vital de um pensamento flexível que abandona
a simbólica dos modelos teológicos cerrados. A natureza age de maneira flexível e aber
ta, sem planos definitivos. Não se trata de possuir um só plano, mas de poder
assumir todos os planos, abertos à articulação e às singularidades, prestes a alimentar-
nos da desordem e da incerteza.
A ecoternura encerra, alem disso, uma posição política. Em um mundo armado até os dentes
e perpassado por ventos de extermínio, é necessário entender que a simbologia
guerreira chegou ao seu fim. Afirmação que nos obriga a introduzir uma nova simbolog
ia no cenário político que permita reconhecer a existência do conflito e a necessidade
da diferença, a fim de resistir às consequências funestas desta paixão pela homogeneização
ue se transfere da monocultura às relações interpessoais. Os praguicidas
respondem a essa mentalidade cerrada que declara guerra à desordem, ao indesejável,
atitude que se expressa tanto na produção empresarial como na intolerância e
fanatismo que caracterizam certos modos de vida familiar e social. A lógica da gra
nde produção capitalista, que ambiciona produzir o homogeneo tanto na fábrica como
na escola e na família, gera uma tensão produtiva que destrói o leque de singularidade
s, fenómeno que põe em perigo nossa existência como especie. Conviver num ecossistema
humano implica uma disposição sensível a reconhecer a diferença, assumindo com ternura a
s ocasiões que nos oferece o conflito para alimentar o mútuo crescimento.
Ao excluir a sensibilidade de nossas relações com o ecossistema, assentamos as bases
para sua destruição, pois os equilíbnos entre os indivíduos, animais ou plantas
são mediados pelas mudanças que nossa disposição sensível é capaz de detectar. É a partir d
ercepção de mudanças termicas, olfativas, ou por outro tipo de fenómenos
perceptuais, que tanto as plantas como os animais geram processos restitutivos q
ue protegem a permanência da vida mediante a articulação de novas singularidades
às cadeias tróficas. Sem afeto sensível por parte dos seres viventes, seria impossível m
anter o equilíbrio ecológico. Os códigos que permitem a comu-
86
#nicação entre os indivíduos e as especies são sempre mediados por informação sensonal. A s
bedoria animal - e tambem a vegetal tem como fonte direta a captação
de mudanças termicas, químicas ou lumínicas, cujo conhecimento é fundamental para intera
gir com o meio ambiente.
Mas o guerreiro teme a sensibilidade, pois ela faz perder a couraça de caráter, a du
reza de pele de que precisa para triunfar em seus combates. Esta dureza que o
sujeito ocidental exibe diante de suas necessidades afetivas, este analfabetismo
emocional que lhe impede compreender a singularidade dos intercâmbios emocionais,
e tambem a base de sua dureza para com as dmais especies animais e vegetais. Nas
sociedades não ocidentais, distantes da pretensão imperial e burocrática que oprime
a nossa cultura, a relação sensível com o meio ainda não foi censurada. O xamã percebe em
seu corpo os desequilíbrios do ecossistema, e, a partir desta captação,
introduz dentro das comunidades normas corretivas. Na atualidade é impensável que um
a autoridade possa criar leis e decretos modificando a produção económica, invocando
para isso a prcepção direta que tem do sofrimento das florestas. A molestia corporal
, a dor que nos causa a destruição das especies ou a contaminação do ar e da
terra, não são argumentos admitidos por nossa cultura. Mas foi essa percepção direta do
pergo que durante seculos permitiu, no interior das especies biológicas e
das culturas antigas, conservar o equlíbrio ecológico.
Uma redefinição ecológica da cultura deve passar pela recuperação da sensibilidade. Só enqu
nto captarmos sensorialmente as dificuldades do ambiente; só quando aprendermos
de novo a distinguir os odores e os sabores para detectar de maneira direta a co
ntaminação do ar e dos produtos alimentícios; só quando nos relacionarmos visceralmente
com o meio e reproduzirmos em nosso corpo o sofrimento das especies envenenadas
e encurraladas, só então seremos capazes de confrontar nossos comportamentos e símbolo
s,
gerando cogniçôes afetivas que permitam reestruturar nossa dimensão etica.
A racionalidade burocrática e imperial, que atua separada do ambiente e da sensibi
lidad, não oferece nenhum futuro à nossa
87
#especie. A vontade não pode continuar instituindo contra a natureza. Embora cada
vez mais pessoas e países desenvolvam uma consciência e um pensamento ecológicos,
tambem é certo que a transnacionalização do capital e a abertura económica, fenómenos típic
s do fim do seculo XX ameaçam acelerar a crise do meio ambiente impondo
o slogan: "produtividade e eficiência, chave dos anos noventa". Como consequência da
privatização de bens estatais em muitos países do planeta, impõe-se uma competição
selvagem, centrada em lógicas de curto prazo, que andam na contramão da diversidade
e auto-regulação ecológica.
Este afã de produtividade tambem provoca desastres no mundo interpessoal, dando lu
gar à psicopatologia do consumo compulsivo. Os consumidores compulsivos, quer seja
de substâncias psicoativas ou de outros produtos e ilusões oferecidos pelo mercado,
sofrem seu próprio desastre ecológico. Tomemos o exemplo do consumidor de cocaína:
tensionado pelo êxito e pela eficiência, pêlos ideais de grandeza do "homem do mundo",
concretiza e perpetua em seu consumo a miseria afetiva que provem de sua confli
tualização
da dependência. Assim como acontece com as monoculturas, nas relações interpessoais ro
mperam-se as redes de dependência em favor de uma adição à produtividade.
As mesmas disposições psicológicas que nos levaram a ntrar em conflito com a natureza
tambem ocasionam uma grave crise na esfera interpessoal. Se entendemos a problemát
ica
ecológica como um produto da ruptura das cadeias de dependência e como o esmagamento
da singularidade, constataremos que essa lógica homogenea e burocrática das
fábricas e da escola não passa do modelo da monocultura transladado aos espaços inter-
humanos, contaminando com sua funcionalidade a todo custo o meio ambiente comuni
cativo
e interpessoal. Por isso, em face de tantos desviadores de atenção que tentam conven
cer-nos a militar numa ou noutra proposta de meio ambiente, não podemos perder
de vista que a crise ecológica tem suas raízes, antes de tudo, na problemática surgida
a partir da extensão ao mundo inteiro do modelo de monocultura, vigente tanto
para a agricultura como para a indústria e a organização burocrática. Constatou-se a fra
-
88
#gilidade a que se vêem expostos os ecossistemas quando se reduz a viabilidad em b
nefício da exploração intensiva de uma única especie, selecionada por oferecer
melhores condições de rentabilidade e pingues alternativas de maximização produtiva. As
culturas em grand escala e de rotatividade acelerada revelam sua fragilidade
por carecer da proteção imunológica que lhes oferece a variedade, exigindo insumos mui
tas vezs superiores aos requeridos pêlos ecossistemas diversificados.
Ao suprir tais falhas com a utilização em massa de pesticidas e adubos químicos, alter
a-se a reprodução dos ciclos naturais, rompendo-se em muitos casos as cadeias
bióticas etornando muito mais grave a diminuição da diversidade. A origem da contaminação
está quase sempre a pressão da monocultura. A revolução verde, entendida
como a seleção de um único genótipo às expensas da varidade genetica, permitiu que se cheg
asse a obter genótipos de alto rendimento, incrementando-se ao mesmo tempo
a possibilidade de súbitas catástrofes pelo predomínio da homogeneidade, pois só a diver
sidade no meio de uma população permite o aparecimento de defesas seletivas
e diferenciadas. O desaparecimento das variedades concorrentes como tambem a pro
dução em serie na indústria são os efeitos mais visíveis da entronização da monocultura
como modelo de guerra que se apoia na simplificação e na homogeneização, na vontade de e
rradicar os conflitos, negar a diferença e desenvolver instrumentos cada
vez mais mortíferos e precisos para controlar os inimigos, sejam eles pragas, bact
erias ou seres humanos.
A compulsão pelo êxito e pela eficácia, norma suprema do capitalismo ocidental, e o co
ração que anima a ordem de internacionalização e transnacionalização da economia
que buscam subsumir toda forma de produtividade na dinâmica do mercado mundial. Co
smovisão devastadora que dá origem a vitórias efemeras e que acaba, às vezes, criando
mais problemas do que resolvendo-os. Modelo arrasador da singularidade que acaba
destruindo tambem nossa sfera íntima, impdindo que acedamos a uma vida afetiva pl
ena.
90
#Será Charles Peguy, num contexto de profundo arraigamento francês, que oferecerá, cem
anos depois das reflexões de Schieiermacher, as chaves para entender com maior
precisão a noção de graça e as caractrísticas do pecado que, segundo estes teólogos, compro
ete a cultura ocidental como um todo. Nosso mundo, diz Peguy, e um mundo
que ignora o presente, o perpetuo e repetido nascimento da vida, para transformá-l
o em salários exíguos e letras mortas. A moral que pulula e um gosto pela propriedad
e
que nos faz impermeáveis à graça. O símbolo máximo desta forma de pensar é a poupança, a ac
lação de dinheiro, forma de vender o presente por bónus de segurança
que fazem perder a riqueza dos instantes. A caderneta de poupança, máximo orgulho do
s moralistas, é uma maneira de endurecer-nos, de mumificarnos e fazer-nos impermeáve
is
à graça.
O dinheiro, como deixou bem claro Horst Kumitzky, aparece no mundo antigo como u
m substituto do sacrifício, motivo pelo qual começa a parasitar as formas de culto
e a encarnar a base material da coesão social. A moeda e seu movimento económico seg
uem o rastro de uma antiga dinâmica sagrada, cujo lugar foi ocupado por este
usurpador tão grato aos comerciantes. A economia política é uma forma leiga de manifes
tar-se a religião. Como diz Peguy, a economia é um aviltamento da moral que,
por sua vez, não e mais que uma codificação de certos aspectos da psicologia. Já Karl Ma
rx, em suas análiss clássicas sobre a sociedade mercantil, havia mostrado
como o dinheiro é a mais clara manifestação do predomínio dos processos de abstração, da se
e de prazeres em sua forma universal, figura que resume em si mesma todos
os vínculos, tornando-se a comunidade por excelência. O ocaso do mundo antigo e das
culturas heterónomas está marcado pela irrupção do dinheiro como essência generica
da humanidade. Funcionando os templos da Antiguidade como cntros decirculação monetári
a, estendeu-se uma pont entre as formas sacras que feneciam e as secularizadas
que apareciam em cena, convertendo-se os sacerdotes em homens ricos que prefigur
aram os atuais banqueiros.
Este processo de abstração maciça da experiência religiosa teve como figura culminante a
secularização do sacrifício que
91
#deixou de ser uma oferenda viva para converter-se em óbolo que podia taxar-se em
dinheiro. Foi assim que a dinâmica das relações políticas e interpessoais pôde
ser pensada em termos universais, aparecendo, como no caso dos filósofos pitagóricos
, a mediação existencial e cognoscitiva sob a forma de uma pura enunciação matemática.
A dependência deixou de ser uma relação de singular a singular, para funcionar como a
relação com um grande outro que, na falta de carne, exibia inteligibilidade.
A avidez por dinheiro pode fechar-nos simultaneamente ao presente e à graça, à gratuid
ade das forças que encontramos no mundo quando somos capazes de entregar-nos
à sua dança de flutuações. A gratuidade, entendida como essa possibilidade de encontrar
recursos novos na vida cotidiana, só e oferece a quem e capaz de viver em
plenitude a dependência. Eis aí o paradoxo que nossa vida enfrenta, pois o pecado as
sinalado por estes grandes teólogos ocidentais encontra seu homólogo na hybris
grega, ato pelo qual um homem se declara acima das forças que o rodeiam, propician
do o movimento da nemesis, terrível vingança que acaba esmagando-o por uma dinâmica
de contragolpe. Obcecados com um meio de troca que, absolutizado, se converteu e
m eixo de nossas relações, acabamos esterilizando o terreno cultural que tinha por
missão alimentar-nos. Presos na armadilha da mecânica da contabilidade, de nossos ca
rtões de credito e cadernetas de poupança, obnubilados pela falácia de uma pronta
aposentadoria, trocamos a dependência cotidiana, afetiva e interpessoal, pela depe
ndência a um sistema monetário abstrato e burocrático, negando sumariamente a possibil
idad
de alimentar-nos da gratuidade da existência. Nossas agendas são inimigas do imprevi
sível. Se encontramos a gratuidade numa esquina, no meio da rua, deixamo-la escapa
r,
porque as múltiplas ocupações não nos permitem entreter-nos. Somos sistemas de obrigações s
m fissuras. Escravos que sonhamos com ufania estar afirmando nossa autonomia.
92
#Caminho à gratuidade
Fechar-nos ao duplo misterio da dependencia e da singularidade leva a essa perce
pção comum da vida cotidiana como reino da monotonia. Os dias, carregados de tedio,
encenam o típico lugar onde se aninham a repetição e a rotina. Porem, se acedermos à dinâm
ica do instante, essa sucessão incolor e assaltada e rompida por fuga/es
momento em que o mundo se apresenta diferente. Sair da rotina da vida iária para e
ntrar em relação com mundos possíveis que são invisíveis ao não iniciado e abrir-se
ao estremecimento da criação e à surpresa do milagre. Para dizer a verdade, nada se re
pete. Não há dois amanheceres iguais; nunca vivenciainos da mesma maneira um
mesmo lugar. Donde surge então essa snsação cie imobilidade e monotonia que parece est
ender-se por toda parte no mundo contemporâneo? Ela parece depender de algumas
imagens e exigências de controle que paralisam nossos esquemas mentais. São tão fortes
esses congelamentos simbólicos, que condenam ao fracasso a possibilidade de
encontros e deslizes que diariamente a vida nos oferece. Como se sacrificássemos a
plnitude dos instantes a uma deidade tirânica que promeie em troca uma falsa segu
rança.
O grande problema do ser humano, origem de muitos dos grandes conflitos contempo
râneos, está em sua raia de controle e predição, em seu sonho de poder delinear a
ação e definir sua capacidade transformadora a partir de objetos exatos e circunscri
tos.
Diante de um mundo em permanente mudança e dono de um cérebro cuja atividade eletrônic
a se modifica ao golpe de cada percepção, parece claro que a imobilidade não
se aninha nos acontecimentos naturais ou cósmicos, mas nos modelos simbó-
93
#licos com que representamos e valorizamos nossa atividade. Mais do que uma impe
rativa lei natural, o aborrecimento e a monotonia dependem de certas crenças e hábit
os
de pensamento que se levantam medrosos contra a possibilidade do destino. Se ent
endemos a vida cotidiana como realidade de dupla face, que pode tanto entronizar
a imobilidade como abrir-nos à percepção da diferença, será preciso impulsionar uma recupe
ração da sensorialidade enfren- | tando o fetiche das rotinas diárias,
pois é aí que, com mais força, se
congelam o tempo e o sentido. Por ser o lugar onde se produz e i reproduz a
vida social, o mundo cotidiano e fortim de interesses i políticos e disposit
ivos
de poder que pretendem regulamentar os hábitos das comunidades. É aí que a linguagem g
anha corpo, onde [ as imagens, palavras e conceitos regulamentam, gesto
por gesto, as possibilidades de mobilidade e criação dos seres humanos. Passar de um
a concepção de vida cotidiana como eterna reprodução do mesmo a uma outra que
a entende como espaço para a criação das diferenças, e obrigar-nos a uma reestruturação da
rdem concedida aos objetos e da primazia que certos modelos de identidade
ostentam, a fim de abrir os dias e suas noites a um exercício de criação cenica que pe
rmita viver uma aventura compartilhada, única maneira de encontrar-nos como
sujeitos.
Só a dinâmica do acaso cria um espaço propício para encontrar-nos com o outro. Assim, me
smo programando ate os últimos detalhes o projeto ou atividade a realizar,
sempre existirá uma margem de equívoco, de surpresa, que nos abre ao espaço da construção
conjunta. Quando formulamos uma intenção e convocamos os outros a acompanhar-nos
atrás de um sonho, estamos ao mesmo tempo convocando essa formidável potência do equívoc
o compartilhado que é suscitado quando mais de dois seres humanos se interessam
por uma mesma tarefa. Cada um de nós, em sua intimidade, no mais oculto de suas fa
ntasias e desejos, é tambem um lugar de encontro de forças casuais que nunca podem
ser preditas com certeza.
Mas existem temores, induzidos pela cultura, que nos impedem de alimentar-nos da
desordem. Os modelos hierárquicos se reproduzem nas atividades políticas e administ
rativas,
tiranizando
94
#ávida diária. Inclusive a ciência caiu sob seu jugo. Durante muitos anos, o sistema n
ervoso foi concebido como um modelo piramidal que coloca na cúspide uma rede
neuronal que funciona como máquina de predições estranha ao acaso, desconhecendo o imp
ortante papl que desempenham no cerebro humano os chamados ordenadores caóticos.
Há muitos anos os neurofisiólogos já sabem que o cerebro humano se diferencia do cereb
ro de outras especies animais por apresentar, em seu córtex cerebral, uma área
bastante extensa que, por não ter função estritamente predeterminada, cumpre a tarefa
de servir de zona de associação para diferentes modalidades perceptuais, possibilita
ndo-se
desta forma a atividade supramodal e a mais fina produtividade simbólica. Nos último
s anos, Walter Freeman foi mais longe ao afirmar que, nos seres humanos, o compo
rtamento
complexo depende do caos subjacent à atividade cerebral. Caos que deve ser entendi
do não como algo nocivo, mas como garantia de flexibilidade neuronal que dá suporte
aos processos de aprendizagem.
O conhecimento é gerado por movimentos bruscos e periódicos, pois o sistema nervoso
humano funciona como rede de trocas explosivas que facilita a autogestão cognoscit
iva.
A atividade eletrica do encefalo encontra um de seus melhores perfis organizativ
os nas ondas aperiódicas que cruzam de maneira ininterrupta os conjuntos neuronais
,
configurando um importantíssimo padrão de estimulação eletroquímica cujo aparecimento não p
de ser calculado com certeza. Estas ondas podem ser tanto resultado de
uma atividade perceptual como podem gerar-se por atividade cerebral espontânea, co
mo se se tratasse do registro de pequenas catástrofes que se sucedem na densa tram
a
do tecido nervoso, expressão de reacomodações semelhantes às que operam as ondas sísmicas
na crosta terrestre. Do córtex ao bulbo, do tálamo ao córtex ou de um hemisferio
a outro, saem de maneira permanente rajadas eletroquímicas que impedem que o siste
ma nervoso humano possa deter-se. Clima deconstante mobilidade que aumenta a sen
sibilidade
do sistema ao torná-lo apto para produzir mudanças intensivas em resposta a estímulos
fracos. Como assinalaram Freeman e seus colaboradores, a partir das últimas
pes-
95
#quisas é claro que os atratores caóticos são os grandes organizadores do campo neuron
al, podendo-se definir a percepção como o salto explosivo de um caos a outro.
Parodiando William Ashby que, sob a bruxaria e o furor da cibernetica, tornou fa
moso seu projeto homeostádco para um cerebro, poderíamos propor com Freeman uma nova
fórmula para a existência e funcionamento de um sistema nervoso. Como auto-organização c
aótica, o sistema encefálico existe quando pelo menos duas ou mais áreas
cumprem um par de condições básicas:
excitar-se uma à outra com força suficiente para impedir que qualquer uma delas perm
aneça em calma e, em segundo lugar, serem incapazes de coincidir numa comum frequênc
ia
oscilatória. A competição entre as partes aumenta a sensibilidade e instabilidade do s
istema, contribuindo para a flexibilidade e mutabilidade necessárias a um constant
e
reconhecimento das diferenças. A importância deste tipo de interação fica a descoberto q
uando desconectamos entre si duas ou mais regiões cerebrais, impedindo-se
o cruzamento de rajadas eletroquímicas e ondas aperiódicas. Neste caso, as zonas com
prometidas se tornam anormalmente estáveis e quietas, desaparecendo a possibilidad
e
de gerar novos conhecimentos. A complexidade, flexibilidade e snsibilidade de um
sistema é produto do númro cada vez maior de fatores que concorrem na produção de
sua instabilidade.
É este caos auto-organizado que permite ao cerebro gerar novos padrões de atividade.
Quando a ação humana se apresenta sob o modelo das máquinas burocráticas, toda
a ênfase é centrada na criação de estruturas que favorecem o controle e a convergência, se
m levar em conta a necessidade dos dinamizadores caóticos. Ao contrário
do que pensa o senso comum, a ordem é produto do cruzamento de tendências entrópicas,
ordem pelo caos que recebe na linguagem tecnica o nome de estruturas dissipativa
s.
O cerebro é uma estrutura dissipativa, como o e em geral o fenómeno vivente e, como
tal, um sistema que se alimenta do caos para manter sua capacidade de produzir
informação e conhecimento.
Perceptualmente, esta proposta encontra apoio em estudos realizados nos últimos an
os, estudos que demonstram que o mais
96
#alto grau de desenvlvimento cerebral é dado, não tanto pela capacidade dos hemisfer
os cerebrais para atuar como máquinas planejadas que se dirigem certeiras a seu
objetivo, mas pela sensibilidad que apresentam para o ambíguo e u imprevisível. Na cúp
ula, o enceralo se mostra como um sistema aberto ao incerto, especializado
em deixar-se atrair pelo acaso e pela ambiguidade. É este encontro com o inesperad
o que desata os padrões de alerta, seguimento e busca, que estão atrás de todo
processo de conhecimento.
Há alguns lustros teve boa aceitação, entre cometaristas e escritores, uma fornulação que
localizava a capacidade criativa do ser humano na metade direita de seu
cérebro, enquanto as faculdades analíticas, dissecativas e frias eram localizadas no
hemisferio esquerdo. hoje sabemos que esta vulgarização apressada das descobertas
de alguns neu-ofisiólogos dos anos setenta com R.W Spcrry à lesta - não é de todo válida. T
do parece indicar que a criatividade não está centralizada nem focalizada
no encefalo humano, pois se trata do produto complexo de um órgão que, ao longo de s
eu caminho evolutivo, caracterizou-se por apresntar uma abertura inusitada ao
aleatório e uma mutabilidad sensorial semelhante à característica dos sistemas caóticos.
Esta capacidade stá localizada tanto no cerebro direito como no esquerdo,
dependendo, num caso como no outro, de que o reconhecimento seja na esfera sintáti
ca ou a prosódica. Não há um local cerebral destinado de antemão à percepção do
singular. Tanto na esfera da linguagem como nas relações gestuais e espaciais, pode
aninhar-se a monotonia, assim como tambem pode abrir-se nelas campos aos ordenad
ores
caóticos, a fim de que atuem como autênticos convulsionadores neuronais, perceptuais
e simbólicos, que abram ao cerebro humano sua mais criativa possibilidade de
funcionamento.
Entendida como lugar de encontro dos sujeitos, a vida cotidiana é alem disso ncruz
ilhada de acasos compartilhados. As ruas, a casa e os locais de trabalho não são
lugares de confimamento; são espaços onde se expressa o conflito, assim como nós, em n
ossa intimidade, .somos o lugar da não coincidência, espaço de cruzamentos
caóticos onde somos assaltados por rajadas de tato, linguagem evisão, que não são nem po
dem ser de todo coinci-
97
#dentes. O sujeito é um lugar de cruzamento, cenário onde corpo elinguagem tentam in
utilmente encaixar-se, obtendo-se a cada instante sób equilíbrios instáveis e
aproximações passageiras.
A vivência da rotina é, antes de tudo, um problema perceptual. Ao reivindicar a mult
iplicidade da experiência, optamos tambem pela polifonia do objeto e pela diversif
icação
do sujeito, preparado agora para deixar para trás a pesada carcaça de seu eu e apren
der a conviver com amplas zonas de incerteza. Quem deixa para trás de si o afã
de impor esquemas chatos que asfixiam a diversidade da vida, tem como recompensa
seu encontro com a graça. Esta virtude teologal não é outra coisa senão a gratuidade
da experiência, que surge se estivermos abertos ao acaso sem encadear as ações à lógica bu
rocrática da produção seriada.
Quando outrora as normas de cortesia exigiam que fossem encabeçadas as nossas comu
nicações aos reis com a fórmula "Sua Ciraciosa Majestade", dava-se a entender que
a graça fazia parte do poder conferido pela realeza, pois o soberano, por encontra
r-se alem de qualquer esforço epssoal para aceder ao trono, estava nas melhores
condições para expressar sua singularidade, tornando gratuita sua relação com o mundo. E
ra precisamente desta atitud que emanava sua sabedoria, independentemente
do talento com o qual se contava. Hoje, o capitalismo contemporâneo parece impor-n
os um modelo mais dmocrático em nossa relação com o mundo. Democracia que se confunde
com a burocracia de acostumar-nos a vender dia a dia, e de maneira previsível, nos
sa força de trabalho. com seu afã de isonomia e homogeneização, o mundo contemporâneo
guarda para as massas uma invocação contrária à gratuidade. Não há nnhum lugar para o impre
isível e a incerteza. Não há, nas grandes multidões urbanas, lugar para
o encontro dos sujeitos. A partir de uma lógica da retenção, da avareza e do planejame
nto por objetivos, e condenada a programação minuciosa de cada um de nossos
gastos e xperiências. Como a caderneta de poupança simboliza da melhor maneira esta
nova disciplina do espírito, entendemos a paixão de Charls Peguy, ao iniciar
na França, há vários anos, uma cruzada contra a prática de presenteai- os alunos das esc
olas com cadernetas ban-
98
#carias para familiarizá-les com a poupança. Sua argumentação foi e continua sndo sublim
e: a caderneta de poupança e um elemento corruptor e perigoso para a formação
dos futuros cidadãos.
Se ensinamos aos jovens a viver com uma metódica caderneta de poupança, jamais se ab
rirão a uma experiência cujo gasto não tenham calculado. Isto e fechar-se-ão
por complto à graça, deixando-a de lado quando ela aparecer em seu caminho. A fim de
acedermos à gratuidade da existência, é imperioso estarmos por completo abertos
ao desuno, leves, dispostos a tecer ao compasso da vida, deixando-nos apanhar pe
lo ritmo dela. Para isso, é preciso começar a simbolizar com uma lógica que não seja
da identidade mas da contradição, com uma matemática que não seja da retenção mas do gasto
uma epstemologia que abandone a distância conceitual para pensar-e de
novo a partir da sdução do sensorial.
O eu, senhor do controle diurno, cederá seu posto a uma experiência dedissolução ond nos
so squema corporal se flexibiliza edsintegra, como um brinquedo aberto a
novas montagens. Viciados pelo peso dos órgãos, a pele se estenderá como numa pantalla
, onde as figuras oníricas dançam seu jogo de possibilidades. Inversão dos
ritmos circadianos que nos abre a um espaço polidimensional, onde se volatilizam o
s argumentos e se recombinam os instantes, violando-se, se for o caso, os postul
ados
da lógica aristotelica. Ao regressar, a cada novo dia, de nossas viagens noturnas,
constataremos que, alem dos esforços do eu por manter-nos idênticos, corpo e olhar
não serão os mesmos, pois cada incursão no reino do onírico modifica, mesmo sem nos darm
os conta, nossas estrategias perceptuais e padrões de rconhecimento. Arrastados
por uma paixão dançarina, poderíamos aceiar o convite de Novalis para não deixar de vela
r e dormir ao mesmo tempo, entremesclando a consciência vigilante com o sujeito
larváno da noite, fazndo da vida um tecido sulcado por assombros, abismos e pestan
ejos.
A complexidade do vital só se revela quando nos espraiamos num jogo de matizes, al
ternâncias de luz e sombra que constiturn a voluptuosa morada dos claro-escuros.
A obscenidade de
100#um olho controlador e bisbilhoteiro que não se deixa tentar pelas rajadas do t
ato é o maior impedimento para caminhar com solvência por essas enseadas cheias
de seres viventes que as multidões, em seu temor, identificam com o sinistro. Avança
r pela fronteira que separa a vigília do sonho, o controle do abandono, e fazer
galanteios à loucura, bebendo-a a tragos, como se se tratasse de nossa própria noite
, degustando-a como só pode degustar-se a própria sombra. com soltura e indiferença,
de maneira sutil eimperceptível, poderemos adentrar-nos nos territórios da graça, louc
ura lúcida de um sujeito quântico que salta de órbita em órbita por movimentos
intensivos. Fraturando o u, snhor das rotinas, mover-nos-emos da luz ao abismo p
ara poder ingressar no norm tear onde se atam e desatam os pontos com os quais s
e
tece a vida diária.
100
#Em face do demoníaco
Superar a barrera que nos separa da gratuidade é recuperar o suave tino que é necessár
io para degustar a riqueza sensorial do sagrado. Trocando o entusiasmo da poupança
,
da perdição e docontrole por um enthiosiasmos à usança extática, ganharemos a experiência d
sentir um daimon interior que, deslizando por nosso corpo, nos convida
ao transbordamento do heterônomo.
Entre os gregos antigos, daimon era uma potência polimorfa que se encontra nos lug
ares de passagem e se expressa como força singular nas mais diversas atvidades
humanas. Significa o momento de transformação de homem em animal, de mulher em fera
selvagem, de alto entre a vida e a morte, apontando os momentos de mudança social,
de mutação de papel e identidade, de criação de fantasias. Se entendemos o politeísmo não c
mo estado evolutivo inferior mas como a maneira de perceber sob imagens
de força cósmica e social os diferentes devires naturais e humanos, chegaremos a per
ceber os daimons gregos e os baals cananeus como expressão das singularidades
geográfcas e simbólicas nas quais se condensava então a percepção imediata que o homem tin
ha desse entorno. A afirmação resoluta da unicidade de Deus que acompanhou
o surgimento deum império universal empobreceu a polevalência do sagrado, sendo por
isso necessário o misterio da encarnação e morte de Cristo para reintegrar o
grande Deus absconditus à dinâmica do mundo e da carne. Este sacrifício singular, que
se opunha aos sacrifícios monetarizados dos cultos sacerdotais antigos, retomava
o simbolismo da mort e do esquartejamento, próprio dos cultos mistericos, redimens
ionando sua profundidade simbólica sob uma perspectiva que F.
101
#Hõlderlin assinalou com tanta beleza quando escreveu: "Por que do sangrar de seu
corpo e do coração ferido, por que de não ser mais intiro Deus obtem prazer?"
A densidade e riqueza de matizes presentes em nossa prcepção da realidade dependem,
em grand parte, da captação que tenhamos da plurivalência do sagrado, faceta
da fenomenologia religiosa que uma ortodoxia estreita se apressa a identificar c
om o satânico. com uma visão mais ampla, Jacob Boehme concbeu o diabo como o tmpero
da natureza, ingrediente sem o qual a vida seria uma comida intragável. Os demónios
são seres distintos einumeráveis, variáveis intensivas que operam entre os campos
de ação delimitados por uma razão que se tornou deidad universal, emergências vivenciais
que mostram uma capacidad inusitada de saltar por cima das barreiras e dos
cercados, enredando as fronteiras da propriedade. O maligno não carece de lugares
nem de aparências. Gesticula há seculos sobre os capiteis das catedrais europeias;
encontra-se no velho e no novo continente, sob a forma de um pequeno dunde das m
ontanhas, e deambula mascarado como farsante por entre as mais esquisitas salas
da
corte. O diabo e legião, como disse de si mesmo a Jesus o espírito imundo expulso do
geraseno. Como polivalente e plural, o demoníaco é aquilo que escapa de nossas
previsões, é o arbitrário de Deus é o ambíguo de nossas ações, é a chave semântica que usam
designar tudo aquilo que impede reduzir-nos a um ideal previsível
e razoável.
Mais do que um problema dogemático, o demónio configura um cenário dramático onde se pat
etiza a rsistência da vivência humana a submeter-se a categorias dlimitadas
que xcluem a metamorfose e a mutação. Diante de um Dus cuja ação se supõe transparente e c
laras as suas intenções, o demoníaco é aquilo que não pertence a nenhuma
ordem, exigência de uma interpretação da lei diferent da dominante. Quando Deus se faz
universal e abstrato, o demoníaco continua expressando uma dinâmica sagrada
carregada de significações imediatas e aferivas, construção plástica e flutuant para desig
nar o indeterminado que nos afeta, a mutação que nos convida à mudança,
o significante que nos tenta para
102
#inserir-nos em pomtos de ruptura da experiência. O daimon é um bucle que engancha o
s elementos de um sistema assintático, força interior e exterior ao mesmo tempo
que não suporta a inscrição nas categorias admitidas de espaço e tempo. O demoníaco é o pró
o opos da ambiguidade, encruzilhada de caminhos que nos coloca diante
de um leque de alternativas inecidíveis.
Tensionados por um pensamento linear e rígido, pela abulia maniqueia das oposições binár
ias, esforçamo-nos por captar Satã à cabeça de um exército de desviados que
se confronta com um Deus institucional que sabe tudo sobre recompensas e sanções. Caím
os assim na armadilha cognitiva que nos mostra nossa estreiteza de perspectivas,
sem entender que o demoníaco jamais se deixa encerrar na lógica pontual emsquinha do
s contabilistas eproprietários. O daimonismo ea rebelião contra a lógica, contra
o exército de razão dos seguidores da lei; e a gratuidade de Deus que não conseguem co
mpreender aqueles que acham que conhecem seus desígnios e reduzem o divino
a um uso funcional de sua autoridade. Ests idólatras da legalidade justa não podem e
ntender que Deus é intensidade sem cálculo, jogo livre de forças que, em sua
deriva, rivaliza com o demoníaco.
Os mártires, níssticos e ascetas cristãos, ntenderam prontamente que o simples perfil
de um Deus onipotente, criador, imperialista emonoteísta, como a situação política
do mundo antigo e as exegêncas guerreiras da razão pediam, não era suficiente para ace
der à plenitude do sagrado. Face a essa simplificação do Deus universal, ra
necessária a tentação do diabo para fortalecei o espírito e captar a riquza das mediações d
cotidiano. A aventura de Santo Antão e do demónio diz muito mais ao
crent que o frio raciocínio de Tomás de Aquino, e as confissões de Agostinho com o rel
ato de suas tentações e pecados causaram mais impacto na imaginação da epoca
do que suas análises filosóficas. E, ainda hoje, as experiências demoníacas que observam
os na teologia e filosofia - a proposta de Christian Duquoc deum Deus dançarino
ebrincalhão que zomba da etica, a de Georges Bataille fundindo o erotismo com o sa
grado, ou a de Gilles Delcuze convidando-nos às experiências animais - parecem
mais signifi-
103
#cativas ao homem contemporâneo do que as pálidas lições de moral que não fazem outra cois
a senão condenar à marginalidade e à delinquência as tentativas de sensorialização
do sagrado.
Se o demoníaco é a tentação, a intensidad vital não pode ser senão aventurar-se na sedução
moníaco, não - como dizia Williamjamcs para pisar sobre o seu pescoço,
mas para competir de igual a igual com as forças do caos, absolvendo o poderoso al
imento que brota do indeterminado e ambivalente. Entendido como intensidade e fo
rça,
o demoníaco nos proporciona a alterabilidade necessária para saltar por entre as nor
mas cotidianas, acedendo ao instante fulgurante da criação. Abrir-nos ao sagrado
e tambem aproximar-ros do demoníaco sem esforço, sem tnsão, como força que se convalida
com a força, colocando-nos por momentos fora da tutela institucional, a fim
de despertar a capacidade deconstruir caminhos diferents daquels que a lei e o cár
cere oferecem. Diante do brilho fascinante do mal, é forçoso começar a responder
com uma atitude diferente à rotina monotemática de juizs e teólogos que, classificando
ecastigando os desvios, se acham justos porque repartem e tornam equitativas
as desgraças. Não se dão conta de que o diabo - como dizia o rabino Isaac Luria - brot
a desses diminutos grãos de mal que Deus contem em si mesmo e que se expressam
no homem como arrogância do juízo estrito e da paixão exagerada pela ordem. Só a exigência
de unicidade do bem e a busca de uma perfeição monárquica do criado são
capazes de obnubilar-nos e fazer-nos crer nas manipulações de um inimigo cósmico de De
us, besta que reduzida às suas expressões fenomênicas, não eoutra coisa que
a ambgua gratuidade de um mundo para o qual é bem tacanho o odre de uma regra.
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Onde deve acontecer a mutação? Será por acaso no nebuloso mundo dos símbolos e das consc
iências? Talvez entre trasgos, panes, íncubos, faunos e silenos? Ou virá
ela da mão dos duendes do bosque que, como os anões e os gigantes, foram declarados
inimigos de Deus? Digamos, sem rodeios e para evitar a confusão, que a ternura,
a dependência, a gratuidade e a busca da singularidade são experiências que só podem aco
ntecer na geografia do corpo. Lugar onde se desenvolve a vida e se agarram
as forças do horror, o corrpo é a zona de mediação por excelência, lugar onde se arraiga e
reproduz a cultura, na mesma maneira que a alma - a psyché grega - não
é outra coisa que uma representaçãoi ávida de corpo que se aninha em diferentes localizaçõe
corporais, dependendo da eomoção comprometida. Imagem necessitada de
músculo e sangue, a alma não é uma substância incorpórea que impõe desdenhosa suas formas à
istência, mas, enxame de símbolos que buscam ansiosos um corpo para
reproduzir-se. O cenário da mutação é também, por isso, o de uma delicada negociação, que d
a dia, estabelecemos com as palavras e os mortos. Quando um corpo se
torna objeto, reduzindo-se a cadáver, os símbolos, palavras e imagens dos quais é port
ador, ficam suspensos numa espécie de éter interpessoal, onde flutuam à espera
de poder aprisionar novos corpos para continuar vivendo. Os símbolos da cultura não
suportam o vazio da desencarnação. Perseguem0nos, buscando novos gestos que lhes
outorguem vida. É impossível escapar de seu assédio. sob qualquer circunstância, com os
mortos é preciso negociar. Para isso, como os antigos gregos, devemos recorrer
à intuição do espaço, estabelecendo uma para-
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##gem onde possamos erigir uns colossos, gigante de pedra em cujo redor ficam ci
rculando fascinadas estas representações ávidas de músculo que, de outra maneira,
nos aguilhoariam com sevícia, tornando-se imanejáveis. Tal é o sentido de nossos espaços
arquitetônicos, de nossos livros, nossos esconderijos, nossas estátuas e
monumentos:
librtar o corpo dos símbolos que o assediam, estabelecendo, mesmo que seja por um
momento, instâncias que nos permitam atuar sem a tutela dos poderes que petrificam
e regulamentam.
O corpo e a lápide ond se escreve a cultura. O mármore onde se cinzela o sinal. A fa
mília, com suas regras de asseio e sua educação esfincteriana. assim como a escola
com suas mviolabilidades orientadas a cunhar os músculos na redução audiovisual do sin
al escrito, não têm outro objetivo que não seja o de amestrar o corpo, cumprindo
desta maneira sua missão endoculturadora. Deixemos de lado a ilusão, descartemos tod
a nostalgia. Não existe um corpo natural. É impossível a existência de um corpo
fora do código. Ao nascer, o corpo infantil já se encontra aprisionado numa densa re
de de sinais que o esperam. O berço preparado pela mamãe, o rosado que decora
o quarto da menina, os brinquedos que socializam a criança, o nome que a intgra à tr
adição de seus pais, tudo isso são deliciosas armadilhas para capturar os gestos
inexperientes. Nem mesmo nste instante precoce da vida o corpo é livre. Sempre, de
sde o nascimento até a morte, é tensionado por enxames de símbolos que, ao modelá-lo
e cunhá-lo, o tornam desejável aos seus congeneres. Sabemos que as mulheres africana
s só se tornam desejáveis pêlos varões quando começam a tatuar seus corpos. E
da mesma forma nós não amaríamos um corpo que não tivesse passado com êxito pêlos múltiplos
ndicionamentos e maquilagens recomendados por nossa cultura.
Quem ousa resistir à inserção no código defendido pelo grupo pode ser objeto de segregação
suspeita. Amamos o outro enquanto ele é capaz de repetir-nos na reciprocidade
de nosso código. Mas insistimos em negar essa realidad, querendo apresntar o corpo
como natural e fisiológico, como território livre dos artifícios da cultura. Tal
é o caso do pensamento anatomopatológico em que se apoia a medicina ocidental. Pode
haver algo
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#mais natural - pergunta o médico - do que o fígado que apalpo, do que o apêndice que
secciono? Amnesico - como sua espcialidade - da origem cultural de seu saber,
o medico desconhece que esse corpo que admite como natural e transpassado por um
código complexo que só o iniciado é capaz de utilizar e que ali pode ele vê a doença
ou o tumor, o neófito não verá mais do que o sangue ou a deformidade repugnant. Ele, a
ssim como o desenhista industrial que brica cadeiras genericas ou o professor
que resiste a compreender que se relaciona com seres singulares, estão aprisionado
s num esquema abstrato que reduz o corpo a suas operações reproduzíveis. Beritos
herdeiros dos ascetas pitagóricos que, culpabilizando os sentidos, avançaram pela em
pinada senda do domínio de si, entendendo o corpo como realidade separada que
deviam dominar mediante um conjunto de tecnicas que o substantivam e separam do
entorno.
Somos prisioneiros do corpo que nós representamos. Confinados nas abstrações, não conseg
uimos aceder a uma lógica do sensorial. O código o proíbe. O inferno é esse
círculo vicioso onde o corpo que se deixou tentar plo singular recebe seu eterno c
astigo, repetindo constantemente o gesto que o condenou. O que foi motivo de pra
zer
será agora, em sua monótona repetição, símbolo da condenação. Tal é o conflito encenado pel
endente de drogas. Seu prazer é ao mesmo tempo seu castigo, passando
por seu corpo todo o rompimento da sociedad contemporânea. Desejamos ansiosamente
um novo corpo entenda-se, um novo código - mas continuamos prisioneiros dos fantas
mas
que nos condenam ao fracasso no exato momento de tentar a emancipação. Fantasma que
possui uma dupla face: por um lado, a imagem corporal e, por outro, a tirania
do objeto. Aprisionados por est vampiro de dupla face, não conseguimos representar
-nos o que pode o corpo.
O objeto não existe como tal. Ao contrário, é produto de uma construção complexa. É a conve
gência de múltiplas tentativas edeslocamentos, de explorações ao acaso,
de modalidades sensoriais e motoras que nosso cerebro registrou e tornou esquema
. Foi o que mostrou Jean Piaget em suas pesquisas psicológicas,
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#ensinando-nos que é preciso falar de esquema de objeto permanente para referir-no
s a essas representações sempr repetidas, às quais damos o nome de realidade. Aliás,
já o havia dito o bispo Berkeley três seculos antes, quando surpreendeu os pacatos l
eitores da epoca afirmando que nunca tocamos, vemos, nem ouvimos o som dos objet
os.
Nenhuma disposição natural permite que o ser humano unifique suas sensações. É tão-somente
nome, o sinal, o termo ''mesa" ou "maçã" que coubi a reunir de maneira
arbitrária e sob o mesmo teto modalidades sensoriais às quais só por costume referimos
a uma mesma realidade. Mas se desviarmos uns milímetros o sentido das palavras
ou recombinarmos as modalidads sensoriais como acontece na alucinação, abrimo-nos a
um mundo completamente diferente e imprevisível. Esse é o misterio da poesia
Esse, o encanto da criação.
Por outro lado, temos a imagem corporal, condensação não tanto do que somos como do qu
e quiseramos ser. Falsearia por excelência, ressuma por todos os seus lados
ideólogia, auando como leito de Procustes que pretende acomodar nossos corpos a su
as medidas, mesmo que seja ao preço da mutilação. Mensageira da moda e pedra detoque
do fascínio criado pela televisão, é tambem a nutenz de quase todos os nossos sofrimen
tos. O que diferencia o homem do animal é que o primeiro é prisioneiro dos
medos imaginados, como o adolescent diante do espelho que teme pela deformação de su
a imagem corporal ao pensar nos futuros encontros. Fernando Savatcr, em sua rese
nha
das criaturas do ar, faz-nos ter pena do Tarzã da selva quando descreve seus sofri
mentos matutinos ao pensar em todos os perigos que o cercam: o cipó que pode rompe
r-se,
o leão que não acatará suas ordens, o salto mortal que poderá não sair perfeito como no ci
nema. Tambem nós, em nossas selvas de cimento, sofremos mais pelo que poderia
acontecer do que pelo que de fato nos acontece. E, nesses temores imaginados, é a
imagem que temos do corpo que sempre aparece comprometida.
Ela, que se apresenta clara diant do espelho, tambem é uma construção cultural. Inclus
ive, não coincid com nossas percepções cinestesicas, encarregadas decolocar-nos
em contato com o
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#tônus muscular e entorno imediato. Entre a imagem corporal e o corpo cinestesico
insinua-se um grand abismo. Quem sabe muito bem disso é o bailarino que, para
executar sua dança, não pode estar pensando na sua imagem perante o espectador. Tem
que concentrarse, cego, em seus próprios passos, em seu desempenho. Jacques Lacan
construiu sua reflexão histórica sobre este desequilíbrio vivencial que ílenn Walon, no
começo do seculo, estudou de maneira minuciosa. O eu diz Lacan - é como
uma imagem no espelho que nos devolve de maneira unitária e harmónica a fratura e de
bilidade corporal. A paranóia não é mais do que persistir neste ideal fusional,
enquanto a função simbólica e o livre jogo do pensamento só podem surgir de sua fratura.
Eis aí o próprio da condição humana: equilibrar-se numa teão entre a imagem
corporal e o cúmulo de intensidades emessicas que nos compõem, entre a ambição de unidad
e e a fratura que se impõe aos nossos gestos.
Não há um corpo natural; não existe um corpo simples. O corpo é um lugar de passagem, níve
l de realidad dos códigos, encrusilhada dos discursos, embasamento onde
os sinais combatem pelo reduzido spaço vital que lhes permitirá tornar-se carne. A m
eio caminho entre a imagem corporal e as densidades musculares que nos constitue
m,
entre a palavra que unifica o objeto e as modalidades sensoriais que o fraturam,
entre os discursos que se desarticulam e se reconstituem, o corpo é um grande cam
po
de negociação do conflito e do sentido, a cujas sugestões devemos aprender a respond
er. Para isso, é necessário que nos permitamos uma nova relação com a dor.
Porque a dor é o mensageiro destes desequilíbrios que indicam que a dinâmica das forças
em contenda se obstrui e paralisa. Antes de optar por uma saída autoritária,
ou recorrer a um medico ou santarrão para que abafe o grito desesperado de um corp
o aprisionado, é preciso escutar a queixa e entender que nela aparece resumido
um combate com o mundo, cujas chaves é preciso decifrar. Perder o medo da dor é abri
r passagem à ternura e tambem poder falar cara a cara com a morte. Só então deixamos
de oferecer-nos em holocausto aos sacerdotes da abstração e às aves de rapina da image
m e do objeto.
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#Sem objetos estáveis, com imagens corporais fraturadas, com palavras desarticulad
as e ressigemficadas, rompemos no corpo essas amarras que pretendem congelar num
só gesto a dinâmica de nossos movimentos, retornando a alma à condição de ramalhete de sin
ais que se afana por lançar raízs em terra movediça. Ali, em face do abismo
e do fascínio, sabermos de maneira patetica que não há sentido oculto por decifrar, qu
e não há meta por alcançar, que, sendo impossível ir mais alem da pele, é tarefa
suficiente pretender entender o que pode o corpo.
Dispostos a confluir no ponto onde se cruzam os medos e os ascos, onde se arrebn
tam os tampões que a idade adulta colocou às linhas de fuga, poderemos ver-nos por
um instant em cena diante das alternativas de emurchar no funcional ou abrir-nos
ao lúdico. A primeira alternativa é continuar crendo que a vida s programa a partir
de objetivos exatos e taxas de produtividade e eficiência, sem deixar lugar à emergênc
ia do acaso. A segunda é o mesmo que começar a tirar lições do equívoco, entendendo-nos
como consciências que nunca sabem com toda certeza o que lhes pod acontecer. Isso
implica, é claro, começar a reconhecer o tecido urbano como um ambiente diversificad
o
e atraente, e a rua como o lugar do acaso por excelência, onde sempr corremos o ri
sco de ser raptados. Resistindo à tentação contemporânea de sacrificar a riqueza
da cidade em benefício de um planejamento e uma urbanística que pretendem homogeneiz
ar os lugares de moradia e encontro, preferimos levar ao lar os acasos da rua
e, em nossa intimidade, a caótica complexidad de um mercado de bagatelas.
Um abismo abr-se entre as palavras e os gestos, fissura por onde podem mergir a
gratuidade, a plurivalência sensorial ea dinâmica sacra que nos coloca de novo diant
e
da dupla tentação da ternura e da violência. Exaustos, a ponto de dsfalecer, amancebad
os com a melancolia e sem forças para convencer as multidões de grandes projetos,
acreditamos ser possível apostar ainda na ternura, especie de revolução molecular das
rotinas da vida cotidiana que, em princípio, não tem por que conter um espaço
maior do que aquele que conseguimos abranger com a mão estndida. Entre outras cois
as, porque, tratando-se da ternura, não tem sentido pretender ir alem do corpo.

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