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ARAPIRACA – AL
2017
JECSAN BATISTA SANTOS
ARAPIRACA-AL
2017
JECSAN BATISTA SANTOS
BANCA EXAMINADORA
The present work deals with a study about Cultural Mutilation in relation to the normative
imposition in the Brazilian legal system. The research aims to bring an "anti-positivist"
perspective regarding the production of the legal norm and its application in the factual
reality, ie, it is intended to show that through the unconditional application of legal norm
before society, disastrous consequences may be produced, including with regard to their
cultural aspects. In this sense, it will also be demonstrated that this perspective (anti-
positivist) is only made through a methodology that also distances itself from legal positivism,
as a method, being necessary to use both the auxiliary sciences of Law and the concept of
interdisciplinarity, through which we will make a careful analysis about the meaning of
Culture and how it can fit as an object of study of Law. The results we have reached are that
the process of normative construction in Brazil still lacks a broad understanding of the social
structures to which both the origin and destination of the norms processed by the legislature
are at the same time.
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................6
1 CULTURA. ..............................................................................................................................................9
1.1 Cultura e identidade. ................................................................................................................... 11
1.2 Mudança, Imposição e Resistência Cultural................................................................................ 13
1.3 A imposição cultural e sua face “não normativa”. ...................................................................... 15
1.4 Mutilação Cultural. ...................................................................................................................... 17
2 CULTURA COMO OBJETO DE ESTUDO DO DIREITO............................................................................ 20
2.1 Etnocentrismo e Direito. ............................................................................................................. 24
3 MUTILAÇÃO CULTURAL EM SUA FACE NORMATIVA ......................................................................... 27
3.1 Conceito de norma. ..................................................................................................................... 27
3.2 A norma como instrumento de dominação. ............................................................................... 30
3.3 Normas mutiladoras no plano internacional. ............................................................................. 31
3.4 Normas mutiladoras no plano nacional. ..................................................................................... 37
3.5 Normas mutiladoras nacionais (atuais)....................................................................................... 38
3.6 Outras situações mais polêmicas. ............................................................................................... 44
3.6.1 Lei 15.299/2013 (A lei da vaquejada). .................................................................................. 45
3.6.2 Leis sobre abriga de galo. (lei 2895/98-RJ e lei 11.366/00-SC.) ........................................... 50
3.6.3 Lei do “infanticídio” indígena. .............................................................................................. 54
CONCLUSÃO .......................................................................................................................................... 61
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. .......................................................................................................... 63
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INTRODUÇÃO
para a comunidade acadêmica e científica, bem como para a sociedade como um todo, pelos
motivos os quais pretendemos explicitar à adiante.
Inicialmente chamaremos a atenção para a questão da importância da
interdisciplinaridade, que será a tônica deste trabalho. Embarcaremos em uma corrente que se
opõe, em determinados aspectos, ao positivismo jurídico – que tem origem na teoria de
“purificação” da Ciência do Direito, através do isolamento de seu objeto de estudo e de seus
métodos frente as demais ciências – para estabelecermos uma relação íntima do Direito
enquanto ciência, com as demais ciências sociais, como é o caso da sociologia e da
antropologia.
Diante da perspectiva de que o positivismo jurídico ainda permanece, para muitos,
como sendo paradigma dominante no cenário nacional, a questão da interdisciplinaridade e da
antropologia jurídica – aqui propostas como instrumento de estudo do Direito – ainda
despontam como sendo uma “novidade”, fato que pode ser muito mais facilmente percebido
quando se faz uma análise dos temas de trabalho de conclusão de curso nos centros de ensino
superior por todo território nacional, onde os temas interdisciplinares continuam a ser
renegados sob o pretexto de serem “não jurídicos”. É justamente na exploração do aspecto de
“novidade”, que a realização deste trabalho ganha a já referida importância para os meios
acadêmicos e científicos, pois, nesse sentido, nosso trabalho ajuda a ampliar – ao menos em
quantidade – o número de materiais relativos a essa área de conhecimento, fato que pode
acarretar também no aumento de interesse dos pesquisadores do ramo do Direito para esta
área de atuação.
No que se refere a importância deste trabalho para a sociedade, chamaremos a atenção
para o fato de que nem tudo que é legal é “moral”, e nem tudo que é norma encontra
materialização na sociedade, muitas vezes tais situações ocorrem pelo fato de que o
legislador, pelo qual a norma jurídica vem à tona, atua em nome de interesses próprios, ao
invés de atender aos anseios da sociedade através da qual estes representantes foram postos;
noutros casos, tal distorção normativa ocorre pelo fato de que, os responsáveis pela criação de
nossas normas jurídicas são de pessoas leigas, sem qualquer conhecimento na área jurídica. A
nossa pesquisa poderá servir, para a sociedade, como sendo um instrumento de publicidade
das situações em que a norma jurídica se volta contra o próprio corpo social ou parte deste.
Tal fato acaba por produzir o afastamento do cidadão para com determinados valores culturais
de sua origem social – processo que aqui denominamos de mutilação cultural.
Nosso trabalho se caracteriza por ser uma pesquisa exploratória, onde buscaremos,
sobretudo, esclarecer conceitos que agindo conjuntamente nos trarão o significado do que
8
1 CULTURA.
1
A redução se faz necessária por conta da amplitude do tema. A exploração do sentido da palavra CULTURA,
poderia facilmente preencher o conteúdo de infinitas coleções de livros. Conforme prelecionam Assis e Kumpel
(2011, p. 235) “Parece estar longe o consenso entre os antropólogos sobre o conceito de cultura, haja vista que
já foram classificadas 164 definições”.
10
pintura, a língua, a “moda”, religião, a culinária, entre outras. Conforme dita José Luiz dos
Santos (1996, p. 22 – 24):
Sendo assim, conforme novamente ditam Assis e Kumpel (Id. Ibid., p. 237) “[...]
cultura é o modo próprio e específico da existência dos seres humanos. É a cultura que
11
distingue os homens dos outros animais, por isso se diz que os animais são seres naturais; os
humanos, seres culturais”.
[...] A mulher poteira que desenha flores no pote de barro que queima no
forno do fundo do quintal sabe disso. Potes servem para guardar água, mas
flores no pote servem para guardar símbolos. Servem para guardar a
memória de quem fez, de quem bebe a água e de quem, vendo as flores,
lembra de onde veio. E quem é. Por isso há potes com flores, Folias de
Santos Reis e flores bordadas em saias de camponesas.
[...] Cada mestre improvisa, recria, “deixa a sua marca” e introduz novos
padrões de canto, coreografia e vestimenta. Há inúmeras razões para isso, e a
primeira é a mais pessoal. O ser humano é basicamente criativo e recriador e
os artistas populares que lidam com o canto, a dança, o artesanato modificam
continuamente aquilo que um dia aprenderam a fazer. [...] Da mesma forma,
o desaparecimento de alguns materiais de tecnologia e artesanato populares e
o aparecimento de novos podem determinar alterações criativas na feitura de
uma colcha, de uma vestimenta de marujos ou de um barco de pesca.
“Quando é difícil fazer de palha, nós faz de plástico”, dizia um “boneco” de
Folia de Santos Reis, explicando alterações recentes em sua máscara. Um
ritual praticado num contexto camponês pode ser modificado
substancialmente quando os seus praticantes migram para a periferia da
cidade e saem do trabalho com a terra para um trabalho operário.
Conforme já fora visto, as alterações ocorridas no campo cultural podem ser assim
designadas genericamente de “mudança cultural”, entretanto, consideramos necessário fazer
uma diferenciação entre esta e aquilo que pode ser classificado como sendo “imposição
cultural”. Segundo o que leciona Assis e Kumpel (2011, p. 249), a mudança cultural:
O que interessa à nossa pesquisa, neste sentido, é mostrar que, atualmente, num
estado com as proporções geográficas da República Federativa do Brasil, e com a pluralidade
de povos e grupos sociais que o habitam, há não só a possibilidade, mas a constatação fática
14
de que o etnocentrismo ocorre dentro dos limites do nosso Estado. O etnocentrismo ocorre
não só de um Estado com relação a outro Estado, ou de uma etnia com relação a outra, mas
substancialmente de um grupo com relação ao outro, cada qual querendo impor a sua
“verdade”.
Existem, entretanto, as situações em que determinado corpo social se torna vítima
de variadas formas de imposição cultural externa, esta é consubstanciada através de um
padrão de cultura estranho a esse meio social, que acaba quebrando a relação de identidade
que esse meio guarda com suas origens. Note-se que, na prática, essa modalidade nada mais é
que uma manifestação do etnocentrismo, porém, neste caso este se dá de fora para dentro, ou
seja, aqui a cultura que se acha detentora de superioridade será a “de fora”. Nosso trabalho irá
encontrar maior fundamentação ao tratar desta modalidade de imposição cultural.
Gostaríamos de lembrar que, desde os tempos da colonização do território
brasileiro2, a cultura padrão é aquela que foi (e continua sendo) imposta pelos povos
europeus, e que hoje é a base da cultura “oficial” brasileira, sendo assim, as demais culturas
são sempre consideradas como “estranhas”, “feias”, “atrasadas” ou, no mínimo
“insuficientes”, devendo ser consertadas pelo padrão europeu “civilizado”.
É nos casos de “aculturação forçada”, ou de outra forma falando em “mutilação
cultural” – conforme já havíamos descrito – que há uma notável resistência por parte das
sociedades ou grupos sociais vítimas dessa imposição, é o caso dos povos indígenas,
africanos, dos grupos ciganos dentre outros tantos. Essa ideia de “cultura de resistência” é o
que mais se aproxima de uma ideia de tradição num sentido próximo de uma imutabilidade
“aceitável”, pois, na prática seria uma “não mudança” por resistência, para não esquecerem
quem são. Carlos Rodrigues Brandão explica que:
2
Tal processo também se deu em tantos outros países do continente americano, asiático, africano e na Oceania.
15
para expressar sua cultura, sua identidade e, para revelar sua ligação com seus antepassados,
suas origens.
Visto dessa forma, percebe-se que não é o conteúdo apresentado pela indústria
cultural que se molda ao meio social do qual deveria se originar, mas, a sociedade local que
deve se moldar ao padrão apresentado. A forma pela qual tal processo se dá, também é
bastante evidente: o cotidiano, a repetição. Tudo dentro dos moldes do dito popular que diz
que “uma mentira repetida por muitas vezes ganha ares de verdade” (Joseph Goebbels).
Conforme escreve Ortiz:
[...] quando foi perigoso hastear nos mastros os panos com as cores do país,
rezar nos templos ortodoxos as suas crenças coletivas, ou enterrar os mortos
com os seus cantos de tristeza, os búlgaros aprenderam a ler a sua memória
nos pequenos sinais da vida cotidiana: costumes, objetos e símbolos
populares.
[...] “isso tudo que você me disse que aqui é folclore, lá na minha terra foi o
que tivemos para não perdermos a unidade da nação e também um
sentimento de identidade que não podia ser destruído”. Ele dizia: “Eu acho
que durante muitos e muitos anos as nossas bandeiras eram as saias das
mulheres do campo e os hinos eram canções de ninar”. (BRANDÃO, 1984,
p. 09-10).
A mutilação cultural pode ser, portanto, uma “faca de dois gumes”, ela tem o
poder de cortar, ao mesmo tempo, os símbolos de identidade oficiais, e os aspectos culturais
de “menor alcance”. Vale salientar, entretanto, que aos povos búlgaros restou a manutenção
dessas pequenas representações culturais do cotidiano. Essa era, portanto, a sua forma de
prosseguir lembrando a respeito da origem que tinham. Conforme discorrera Brandão:
Ao fazermos uma apreciação do tema exposto neste trabalho, nos deparamos com
a discussão em torno da questão da cultura enquanto objeto de estudo do Direito. Tal
discussão se dá no sentido de tornar-se explícito se as questões culturais seriam, ou não,
pertencentes ao campo de atuação das Ciências jurídicas.
Se analisarmos o pensamento de Hans Kelsen (1934), um dos maiores
representantes do movimento positivista, iremos perceber que o único objeto de estudos com
o qual o Direito, enquanto ciência, deveria se preocupar seria a norma jurídica. Outros objetos
de estudo, que não tivessem relação direta com a norma jurídica, deveriam ser
desconsiderados pelo sujeito pesquisador das ciências jurídicas.
Antes de tudo, devemos notar que no período em que surge o positivismo jurídico,
vivenciava-se o apogeu do paradigma positivista em todos os seguimentos da sociedade,
especialmente entre as, recém-surgidas, “ciências sociais”, como é o caso, também, da
Sociologia, Antropologia, História e Axiologia, modernamente consideradas. Nesse período,
as ciências definem – ou delimitam – seus objetos de estudo, elegendo, assim, por exemplo,
no caso da sociologia, o fato social como seu objeto de estudos; a antropologia escolhe as
diferenças sociais; a história firma-se com o homem no tempo; enquanto que a axiologia
passa a estudar a questão do “valor” (aquele que é atribuído por cada sociedade à a uma
determinada coisa, material ou não).
A Ciência Jurídica busca, a partir desse momento, delimitar, também, seu objeto
de estudos, elegendo, no caso de Hans Kelsen, a norma jurídica, como sendo o objeto de
estudos do Direito. O pensamento de Kelsen é aparentemente lógico, aquilo que é área de
atuação de outras ciências, não poderia ser, da mesma forma, da alçada do Direito enquanto
ciência, sendo assim, a norma jurídica foi escolhida pelo fato de ter a particularidade de não
pertencer a nenhuma das outras ciências que não fosse a Ciência jurídica.
Para entendermos o pensamento de Kelsen, vamos considerar a questão da
valoração, por exemplo, caso em que se pergunta se a norma deva ser meramente objetiva,
destituída da capacidade de observação de valores. A resposta que encontramos por parte de
Hans Kelsen, é a indicação de que esta valoração deveria ser uma questão estudada apenas
pela axiologia – ramo da Filosofia que estuda os valores – por ser esta objeto de estudo
exclusivo daquela ciência, portanto, não deveria ser o valor levando em conta pela ciência
jurídica. Pelo mesmo motivo, entendemos a razão pela qual, segundo Hans Kelsen, o Fato
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social, não poderia ser objeto de estudos do Direito, sendo aquele objeto de estudos da
Sociologia, não poderia fazer parte do universo da Ciência Jurídica.
A preocupação de Kelsen com a definição do objeto central dos estudos do
Direito, e a consequente separação das ciências jurídicas das demais ciências – ainda que
também ciências sociais – pode-se notar já nas linhas iniciais do prefácio da primeira edição
do livro “Teoria Pura do Direito”, conforme podemos observar, narra Kelsen, que:
Ainda nesse sentido, conforme ditam Assis e Kumpel (2011, p. 263), Hans Kelsen
elege nessa obra “a autonomia da ciência jurídica como o problema fundamental da sua tese
e confere-lhe método e objeto próprios, capazes de assegurar ao jurista o conhecimento
científico do direito”. Segundo estes pensadores, para atingir seu objetivo, Kelsen estabelece
“um princípio metodológico, o princípio da pureza, com o qual pretende reduzir a
complexidade do objeto do direito ao afastar da ciência jurídica as ingerências intrusas,
potencialmente perturbadoras, de ordem epistemológica e axiológica”. (ASSIS e KUMPEL
2011, p. 263).
Dessa forma, podemos concluir que, também a cultura, dentro da visão
positivista de Kelsen, não configuraria objeto de estudos da ciência jurídica. Mesmo que se
considere evidente que as diferenças culturais sejam motivos para o surgimento dos conflitos
no seio da sociedade, e que estes conflitos tendam a ser resolvidos com a intervenção do
Direito, não seria a cultura, nem tampouco as diferenças culturais, objetos de estudo da
Ciência Jurídica. Conforme preceituam Assis e Kumpel (2011, p. 263):
De acordo com Kelsen, o conhecimento jurídico, para ser científico, deve ser
neutro. Não cabe ao jurista fazer julgamentos nem avaliações sobre as
normas. No exercício da sua atividade, o jurista deve afastar tanto as
dimensões axiológicas, que implica proferir juízos de valor a respeito das
normas, como as dimensões epistemológicas, que implicam motivações
específicas de outras ciências, como a antropologia, a sociologia, a
economia, a política, a psicologia etc.
Sendo assim, conforme ditam Assis e Kumpel, são evidentes as conexões entre o
Direito e a Antropologia, tendo-se em vista que o “objeto central” das duas áreas é o ser
humano, segundo esses pensadores o objeto em comum justificaria o fato de temas como
igualdade e diferença serem ao mesmo tempo antropológicos e jurídicos. Ainda segundo
Assis e Kumpel (2011, p. 240) “O termo cultura, como visto, abriga muitos significados, mas,
em qualquer deles, cultura e direito aparecem vinculados, porque o fenômeno jurídico
constitui um dos aspectos da cultura”. Dessa forma, Assis e Kumpel concluem que:
Podemos dizer que a Ciência Jurídica “pura” não é capaz de explicar, sozinha, as
relações jurídicas e os fenômenos normativos ocorridos no seio da sociedade. Para
ampliarmos o entendimento do conceito de mutilação cultural em face à imposição normativa,
se faz necessário o uso de conceitos pertencentes a outras áreas de conhecimento como os
antropológicos, sociológicos, axiológicos e históricos, conforme dita Welber de Oliveira
Barral:
Em 1884, o potlatch dos índios americanos foi proibido por uma lei
apresentada como emenda ao Indian Act de 1876, que o considerou uma
excessiva ou descontrolada dilapidação de bens. Houve protestos por parte
dos antropólogos, que viram na proibição uma clara manifestação de
etnocentrismo, ou seja, uma supervalorização da cultura europeia e uma total
ignorância a respeito da cultura indígena. (ASSIS e KUMPEL, 2011, p.
165).
indígena que povoava o território ao qual hoje corresponde ao estado de Alagoas, e que, ao
serem acusados de antropofagia, foram literalmente extintos pelos colonizadores portugueses.
Com isto posto, entendemos ser este o momento propício para passarmos à
próxima etapa deste trabalho, haja visto que já foram estudados os conceitos fundamentais
para o entendimento desta pesquisa, além de termos visto a respeito da relação entre Direito e
cultura, que são base para o próximo passo dessa nossa empreitada. Passaremos ao estudo dos
elementos mais “jurídicos” presentes na delimitação deste tema, principalmente no que ser
refere às normas, propriamente ditas.
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vigora a ideia de que cada indivíduo abre mão de um pouco de sua liberdade de tudo fazer
para que, assim sendo, o “bem maior” que é a vida pudesse ser, dessa forma, assegurado.
O entendimento de Thomas Hobbes, por exemplo, é o de que todo homem é
naturalmente egoísta, e que ao viver em uma sociedade sem regras a tendência seria a de se
viver em uma “guerra total” por todo o tempo, haja visto que cada indivíduo tenderia a fazer
valer seu poder de liberdade total e egoísmo, de forma que ao realizar seus planos, acabaria
por invadir os domínios de outro ser humano também naturalmente egoísta e livre para poder
tudo realizar, para à satisfação de seus anseios particulares. Conforme lecionava Hobbes:
É nesta acepção que Thomas Hobbes acredita que os seres humanos estabelecem
convenções no sentido de constituírem regras de convivência, com o objetivo de manter a paz
social. Contudo, na opinião de Hobbes, os acordos estabelecidos entre indivíduos de nada
valeriam se não houvesse a instituição de um poder que fosse capaz de impedir que os
acordantes fossem capazes de, por algum motivo, deixar de respeitar o pacto firmado. É ai
que ergue-se a questão do poder estatal, através da imposição da sanção:
jurídica” trazida por Kelsen, em meados do século XX. Segundo Kelsen (1934, p. 23) “Uma
outra característica comum às ordens sociais a que chamamos Direito é que elas são ordens coativas,
no sentido de que reagem contra as situações consideradas indesejáveis”, esse ato de coação, segundo
Kelsen, importava na imposição de:
Portanto, a norma jurídica seria uma regra de conduta social que se difere das
demais regras pelo fato de, quase sempre, estar associada a uma sanção estatal – nas
palavras de Kelsen, coação por parte da comunidade jurídica – com vistas a pacificação
social. É esse pensamento que aparentemente segue a jurista Maria Helena Diniz,
hodiernamente falando, quando dita que:
Neste sentido, para Maria Helena Diniz, a questão do poder estatal não só é
necessária para a garantia do cumprimento dos acordos pactuados entre os cidadãos, como
conferem legitimidade à norma jurídica. Segundo esta jurista a principal diferença entre o
direito e as demais formas de controle social é a participação do “poder” que decide aquilo
que deverá ser considerada como sendo uma situação jurídica, para Maria Helena Diniz:
No ano de 2004 o parlamento francês aprovou uma lei que passou a proibir a
entrada e o uso de símbolos religiosos nas escolas públicas daquele país. Em tese, a referida
norma não faria distinção com relação à origem das pessoas que ostentassem os seus
respectivos símbolos religiosos, a proibição atingiria a todos. Naquele momento assistimos –
estarrecidos – a um ato de evidente castração de direitos fundamentais, qual seja a liberdade
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religiosa. Tal proibição se deu de forma contrária à opinião anterior do próprio Conselho de
Estado francês, conforme narram Aziz Tuffi Saliba e Tainá Garcia Maia:
verdade, para ocultar outro problema, que é o medo do crescente avanço das religiões de
origem árabe, no continente europeu.
Mais recentemente, em 14 de setembro de 2010, novamente a França edita uma
nova lei, dessa vez proibindo as mulheres islâmicas de usarem o “véu” em público. Ainda
segundo Saliba e Maia (2013, p. 72-73) “A primeira seção do ato que proíbe tal ocultamento
estabelece que ‘ninguém deve, em qualquer espaço público, usar vestimentas destinadas a
ocultar o rosto’.”. Aqui, o próprio texto da lei especifica qual é o significado de “Espaço
público”, que neste caso: “é definido pela segunda seção desse ato, como ‘vias públicas e
todos os locais abertos ao público ou utilizados para prover algum serviço público’.”.
(SALIBA e MAIA, 2013, p. 73).
Note-se que naquele caso, as pessoas foram proibidas até de transitarem nas ruas
fazendo uso de seus trajes, neste momento devemos fazer uma ressalva quanto ao que se
refere ao texto da lei. As mulheres islâmicas não deveriam ser – novamente – as únicas
pessoas a serem atingidas pela incidência da norma, ocorre que por questões culturais – no
que se refere à forma de se trajarem – estas acabam sendo as maiores vítimas da proibição da
norma que fora imposta. Conforme noticiário da época:
O fato é que nada disso parece ser por acaso, pois a situação dos sujeitos
imigrantes (principalmente os islâmicos) nos países europeus, especialmente na França não
tem sido boa há algumas décadas, segundo Jorge S. Nielsen (2009 apud CARVALHO, 2011, p.
02) “[...] apesar de a presença de comunidades islâmicas na França remontarem ao século
XIX – quando o país possuía colônias no Norte da África – alguns fatores contribuíram para
que o no final da década de 1980 surgissem debates e conflitos de cunho étnico”. Segundo
Carvalho esse processo passou a ganhar notoriedade a partir das décadas de 1960-70, quando
foram impostas medidas de restrição à imigração por trabalho, para Carvalho, naquele
momento:
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Neste sentido, conclui-se que um dos maiores medos dos países europeus se
justifica na sua forma de estrutura político-religiosa, haja visto que existe um estranhamento
da cultura europeia com a forma como se relacionam a política e a religião nas comunidades
Islâmicas – onde esses dois elementos (religião e política) não costumam ser separados. Tal
receio tem justificado a imposição de normas que mutilam aspectos culturais – principalmente
religiosos – como temos visto no caso das pessoas de origem islâmica em território europeu.
Novamente Carvalho, destarte citando Elizabeth S. Hurd:
Note-se que da forma em que fora disposto, o texto do artigo reflete o contexto em
que este se idealizou – após o final da segunda guerra mundial – onde havia o desejo de se
estabelecer uma ordem pública baseada no respeito dos direitos humanos, segundo Saliba e
Maia (2013, p. 55): Nesse contexto, em 1953, entrou em vigor a Convenção Europeia de
Direitos Humanos, voltada, majoritariamente, à salvaguarda de direitos civis e políticos. O
grande problema do referido artigo, na verdade, é o seu item dois, ou, ao menos, a
interpretação que se faz dele, senão vejamos:
Deve-se ressalvar que a doutrina da margem da apreciação surge como uma forma
de respeitar as diferenças culturais e normativas locais, de forma que o direito internacional
não acabe por impor uma interpretação que não condiga com realidade fática daquele país em
que acontece a lide, porém, o que tem ocorrido é que os países aqui mencionados tem tomado
proveito da subjetividade do texto do item dois do art. 9º da CEDH, para impor a sua vontade
unilateral frente às minorias estrangeiras que ali se estabelecem. Para Saliba e Maia,
argumenta-se que tal doutrina:
Tendo-se visto o que dispunha o artigo, percebe-se que este proibia às demais
religiões – que não a católica – de praticarem cultos religiosos em ambientes que tivessem a
aparência física de templos. Pode-se dizer que até os dias atuais, mesmo sem proibição
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expressa, as demais religiões que são praticadas no Brasil mantêm, em sua maior parte, seus
rituais de culto em casas ou salões que, de forma alguma lembram os templos.
É verdade que no Brasil temos duas matrizes religiosas (e culturais, como um
todo), que aparentemente nunca chegaram ser adeptas dos cultos realizados em grandes
templos: A matriz africana, onde mesmo em seu continente de origem aparentemente havia
uma grande fragmentação cultural e religiosa, sendo seus rituais praticados, quase sempre, a
nível tribal, e; a matriz indígena, da mesma forma apresenta aquele caráter fragmentário,
ainda mais que, ao que parece, no território brasileiro não se deu a formação de nenhum
grande império nativo relativamente unificado a ponto de ensejar a construção de grandes
edificações arquitetônicas, como foi o caso dos impérios Inca, Maia e Asteca. No que pese
haver tal particularidade, não deveria o texto da norma contar com tal previsão, já que outras
tantas religiões, principalmente de origem euro-asiáticas (Judaísmo, Islamismo,
Protestantismo, Hinduísmo, etc...), eventualmente já presentes neste território, mantinham – e
mantém até os dias de hoje – a tradição de celebrarem seus ritos religiosos em grandes
templos característicos de suas religiões.
Devemos esclarecer que o foco desta pesquisa – até para não incorrer em
anacronismo – será o debate em torno das normas produzidas pelo ordenamento jurídico
brasileiro nos dias atuais. Como exemplo de objetos de estudo, sobre os quais pretendemos
ampliar nosso conhecimento, temos o projeto de lei 202/10. Tal projeto foi proposto pela
câmera de vereadores da cidade de Piracicaba, no estado de São Paulo. Vejamos, na
literalidade, o que dizia o projeto:
Vale lembrar que o referido projeto foi vetado pelo poder executivo daquele
município, que teve o veto acatado pela casa legislativa daquela cidade – em seção realizada a
06 de dezembro de 2010 – porém, apesar da confirmação ao veto, devemos mencionar que os
legisladores daquela casa haviam, em sua maioria, votado pela derrubada, e não pela
manutenção do veto (sete votos contra cinco), contudo, questões regimentais diziam que
seriam necessários o mínimo de nove votos para que o veto do executivo fosse derrubado.
Apesar da não aprovação do aludido projeto de lei, deve-se discutir os detalhes
que envolvem sua tramitação, o primeiro deles é o fato de que no ato de sua propositura
acabou-se por suscitar um “conflito aparente” de normas (princípios) constitucionais: de um
lado estavam aqueles que alegavam ser contrários aos maus tratos aos animais; do outro lado
estavam os praticantes das religiões de matriz africana, os quais invocavam o direito de
liberdade religiosa e, alegavam perseguição por parte dos seguidores das religiões dominantes
(principalmente cristã), não só naquela cidade, como em todo o estado brasileiro.
Devemos observar que, da forma como foi elaborado o texto do projeto, não se
faz menção, em momento algum, à questão específica dos maus tratos dos animais (ao menos
não de forma expressa), ao invés disso, o que vemos posto é que à partir da vigência da norma
não seria mais permitido o “sacrifício”, ou a “presença” (uso) de animais em rituais religiosos
naquela cidade.
Apesar de não ser possível classificar o crime como sendo do tipo “crime de ação
múltipla” (onde o tipo penal possui mais de um núcleo, e a realização de qualquer uma das
condutas previstas ensejaria na sanção imposta pelos legisladores), já que o vocábulo “uso”
fora posto apenas na introdução da lei – e não no tipo penal em si – poderíamos, entretanto,
fazer uma interpretação sistemática e entender que o contexto em que a norma fora criada se
pretendia mesmo proibir a simples presença de animais nos locais de culto. Como o
legislador, embora tenha “prometido”, acabou por não regulamentar (ou proibir) a situação do
“uso” nos dispositivos que sucederam a introdução, nos limitaremos a aprofundar a discussão
naquilo que realmente foi dito, nesse caso, a tipificação da conduta “sacrificar”.
Ao se fazer uma análise do sentido da palavra “sacrifício” (que é núcleo do tipo
penal), encontraremos, ao menos, três sentidos diferentes para este vocábulo, quais sejam: a)
suplício, b) oferenda, c) renuncia. Como a referida norma não explica o sentido exato do
termo relativo à conduta que deseja regular, entendemos que os legisladores desejavam
mesmo proibir o ato do sacrifício em qualquer sentido que se possa fazer menção.
O sentido que acreditamos estar mais apropriado, para sacrifício, no contexto de
criação da norma em comento, seria o que trata do abate de animais em forma de “oferenda”
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à(s) divindade(s). Tal ritual tem sido praticado desde os primórdios da humanidade, por
diferentes povos, de diferentes culturas, conforme narra Fustel de Coulanges:
Esse culto era idêntico tanto na Índia quanto na Grécia e na Itália. O hindu
devia oferecer aos manes a refeição chamada sraddha: “Que o chefe da casa
faça o sraddha com arroz, leite, raízes, frutos, a fim de atrair sobre si a
proteção dos manes”. — O hindu acreditava que no momento em que
oferecia esse banquete fúnebre, os manes dos antepassados vinham sentar-se
a seu lado, e recebiam os alimentos que lhes eram oferecidos. Acreditava
também que esse banquete proporcionava grande alegria aos mortos [...] O
hindu, como o grego, olhava para os mortos como seres divinos, que
gozavam de existência bem-aventurada [...] Faltar a esse dever era a mais
grave impiedade que se podia cometer [...] Se, pelo contrário, os sacrifícios
eram sempre observados de acordo com os ritos, se os alimentos eram
levados ao túmulo nos dias marcados, então o antepassado tornava-se deus
protetor. (COULANGES, 1864, p. 17-26)
I - Sendo o infrator pessoa física, o valor da multa terá seu valor duplicado;
violado o art. 5º, VI da CF/88, que versa a respeito da inviolabilidade de liberdade de crença,
além disso, Rossi declarou, também, que a matéria alegada não se insere na competência
legislativa exclusiva do município, com base no disposto no art. 23, VI e VII da CF/88. De
acordo com Rossi:
Com isto posto, entendemos que não há um real risco social, nas situações em
comento que justificasse a invocação do Direito Penal, considera a ultima ratio do Direito. O
que existe, de fato, é um estranhamento cultural com relação “ao outro”, conforme já fora
disposto trata-se da ausência da alteridade e a presença do etnocentrismo. Não podemos
deixar de lembrar que, apesar de evoluções no pensamento doutrinário, jurisprudencial e até
normativo, o ordenamento jurídico brasileiro ainda reflete o preconceito originário dos
tempos da escravidão africana. Conforme lembra Silvio de Salvo Venosa, citando Pereira, ao
tratar a respeito das cerimônias religiosas e dos consequentes efeitos para o direito Civil:
Para Assis e Kumpel, afirmar que o casamento realizado em cerimônias que não
as praticadas pelas religiões “oficiais” não possuem implicação jurídica, para efeitos de
matrimônio, no direito civil, implica dizer que não há um reconhecimento do estado pela
importância que as demais religiões possuem, perante a sociedade. Esse conceito de religião
tem uma tendência reducionista, fato que afrontaria as garantias constitucionais e provocaria
sérias perturbações sociais. Segundo esses pensadores:
44
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e
acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a
difusão das manifestações culturais.
Dos Direitos Humanos de 1948, o assunto tem sido debatido à nível mundial. Este tema
voltou a ser tratado, mais tarde, no Pacto Internacional sobre direitos Econômicos, sociais e
culturais de 1966. Ainda mais recentemente (2001), a UNESCO emitiu a Declaração
Universal Sobre A Diversidade Cultural, que em seu artigo 5º assim declara:
Os direitos culturais são parte integrante dos direitos humanos, que são
universais, indissociáveis e interdependentes. O desenvolvimento de uma
diversidade criativa exige a plena realização dos direitos culturais, tal como
os define o Artigo 27 da Declaração Universal de Direitos Humanos e os
artigos 13 e 15 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais. Toda pessoa deve, assim, poder expressar-se, criar e difundir suas
obras na língua que deseje e, em particular, na sua língua materna; toda
pessoa tem direito a uma educação e uma formação de qualidade que
respeite plenamente sua identidade cultural; toda pessoa deve poder
participar na vida cultural que escolha e exercer suas próprias práticas
culturais, dentro dos limites que impõe o respeito aos direitos humanos e às
liberdades fundamentais.
Mas o que dizer quando esses direitos fundamentais entram em conflito com
outros direitos de extrema importância, como é o caso do direito a vida – também considerado
um direito fundamental – e o direito que trata da proteção aos animais. Nesses casos, no que
pese reconhecermos as dificuldades existentes em torno das discussões sobre o tema,
mostraremos onde ocorrem os desrespeitos aos aspectos culturais envolvidos em tais
questões.
que é o fato de que, para “dominar” o bovino, os vaqueiros têm que, antes de tudo, causar a
queda do animal.
À partir daí, diversas implicações podem ser enumeradas: a primeira delas é que
nessa prática desportiva quem cai é o boi – obviamente contra a sua vontade – o homem,
apesar de exercer papel ativo durante todo o tempo, permanece em situação de relativa
segurança em quanto monta o cavalo, ou quando desembarca deste para enfim imobilizar o
bovino; a segunda está relacionada ao ato de derrubada do bovino, visto que, segundo, estudos
apresentados pelos defensores dos direito dos animais, várias lesões são provocadas no
animal, desde a puxada do rabo, onde alega-se haver registro de desprendimento da calda do
animal, à fraturas e outras lesões causadas no momento da queda do bovino (inclusive com
relatos de lesões no sistema nervoso e na coluna). Fora essas questões, também se costuma
citar o fato de que ainda fora da pista, os bovinos são maltratados e açoitados pelos
“tratadores”, com a intenção de que no momento da soltura para a corrida, o animal saia em
disparada.
O Supremo Tribunal Federal, no dia 06 de outubro de 2016, ao analisar a ação
direta de inconstitucionalidade 4983, acatou o pedido do procurador geral da república, e
levou em conta as denúncias de mau trato supracitadas. O STF considerou – nas palavras de
seu relator (o ministro Marco Aurélio) – que haveria “crueldade intrínseca”.
Apesar do que fora disposto, interessa a nós, nesse momento, entender o ponto de
vista apresentado pelos praticantes – e defensores – daquela prática desportiva, fato que pode
se dar tomando-se, a princípio, alguns trechos do discurso do próprio relator à cima
mencionado. A respeito da ação, discorreu o ministro Marco Aurélio:
da ação a considerar a prática da vaquejada como sendo uma “prática cultural do nordeste e
do Brasil”.
Costuma-se dizer que a vaquejada tem origem ainda nos tempos da colonização
europeia – principalmente portuguesa – no período em que tentou-se implantar a pecuária em
algumas regiões do nordeste brasileiro. Conta-se que neste período, apesar de haver
demarcações dos limites de terras de cada proprietário, não se costumava fazer o
“cercamento” que individualizava cada fazenda, assim, havia a tendência de alguns animais
acabarem por se desgarrar do rebanho e, assim, enveredando vegetação a dentro, acabar por se
misturar ao rebanho de outros fazendeiros. O ato de impedir a fuga e a consequente
vinculação da rês fugitiva com o gado de outros fazendeiros teria dado origem à pratica de tal
atividade desportiva. Vale frisar que já naquela época a captura dos animais era feita mediante
perseguição e queda dos bovinos, tal qual ocorre nos dias atuais.
Nesse sentido, o argumento dos praticantes e defensores da vaquejada parece se
aproximar das questões culturais debatidas no primeiro capítulo deste trabalho, mais
especificamente, parece ligar-se a ideia de tradição com vistas ao fortalecimento dos laços de
identidade do sujeito que a pratica com aqueles que, da mesma forma, o fizeram no passado.
Além da relação cultural direta que há entre o vaqueiro e a prática do “esporte” de
vaquejada, nos dias atuais, argumenta-se que o “evento” em que se dá a “corrida” é repleto de
outras atividades culturais que se associam ao ato de “pega” do boi de forma intrínseca.
integridade física de seres humanos é posta em risco, de forma que é comum algum
participante perder a vida em alguma dessas modalidades. O que é interessante lembrar,
nesses casos, é que após os eventos trágicos que acabam por causar a morte dos esportistas (e
de espectadores), a modalidade não costuma ser proibida, no Brasil, nem em nenhum outro
lugar do mundo, contudo, medidas administrativas e normativas costuma ser tomadas para
que a referida modalidade desportiva possa se tornar, de outra forma, mais segura.
Questão ainda mais semelhante do que ocorre no caso da vaquejada é o que
podemos observar no caso do hipismo, onde é comum acontecerem os tombos do conjunto
cavaleiro/cavalo, onde quase sempre o equino sai com contusões bastante sérias, por vezes
irreversíveis, sendo necessário o sacrifício do animal, conforme texto publicado em matéria
relacionada ao tema, onde lemos que:
como tem o hábito de causar uma grande mobilização da população local em torno do referido
evento. Com base nisso, chamamos a atenção para a questão da efetividade da norma, em
caso de haver proibição expressa à prática de tal atividade. Segundo José Teles:
Sendo assim, o sistema normativo corre o risco de trazer a tona, normas que já na
sua origem não possuem eficácia social, ou seja, não representa, do ponto de vista jurídico, o
significado fático e cultural vivenciado pela população do local de onde a norma deveria
surgir e onde esta acaba sendo imposta.
Conforme lição de José Joaquim Gomes Canotilho (2003), o sistema normativo
encontra diversos tipos de problemas que se relacionam com a identificação da norma posta
com relação à sociedade de onde aquela se originou, alguns desses problemas existem,
inclusive a nível constitucional. Para Canotilho, a norma jurídica – incluindo-se aqui, a norma
constitucional – torna-se, por vezes, um sistema demasiadamente autônomo e distante do
corpo social, decorrem daí diversos problemas como os de Materialização do Direito e, os de
Auto-referencialidades dos subsistemas sociais. Segundo os ensinamentos de Canotilho
(2003, p. 1347):
briga de galos desde o que fora disposto no Decreto Federal 24.645, no ano de 1934.
Atualmente, os maiores vetores de proteção contra os maus tratos a animais são a constituição
da República e a Lei Federal 9.605 de 12 de fevereiro de 1998.
Apesar do que fora disposto, algumas normas de posição hierárquica inferior, e
até alguns projetos de emenda constitucional tem sido impetrados em favor da liberação da
briga de galos, foi o caso das leis 2895, de 20 de março de 1998, que foi editada como
objetivo de legitimar a realização de competições entre galos (aves não silvestres), no estado
do Rio de Janeiro e; da lei 11.366/00, do estado de Santa Catarina, autorizando a criação e a
competição de “aves de combate” naquele estado.
Entre ambas as normas se podem observar algumas semelhanças: No que se refere
à motivação ou justificativa para criação de tais normas tem-se a alegação de que se trata de
motivo de “proteção” das raças combatentes, tendo em vista a preservação genética (embora o
texto “seco” da lei não o diga como essa preservação haveria de ser feita); além disso, em
ambos os casos, não se nota uma motivação expressa de que se trate de uma prática de cunho
cultural e; no que se refere ao julgamento pelo STF, relativo à constitucionalidade das
referidas normas, ambas as normas foram rejeitadas por unanimidade, naquela corte.
No julgamento da ADI 2514, referente à norma do estado de Santa Catarina, o
ministro Eros Grau assim declarou que:
Note-se que além do apoio nulo entre os ministros do STF, no caso das normas
que versam a respeito da briga de galo – diferentemente do que aconteceu no julgamento da
atividade da vaquejada, onde a votação foi disputada – também não se tem reconhecida a
origem cultural da atividade de briga de galo. Interessa-nos saber, entretanto, qual a ligação
que manteria a atividade de briga de galo com os aspectos culturais (que é a matéria de
interesse do nosso trabalho), conforme a opinião dos legisladores daqueles dois estados
citados.
Como já fora dito, nessas duas normas em comento não houve uma menção direta,
pelos legisladores, à questão cultural, nos dispositivos normativos, entretanto, ao prestar
esclarecimentos ao STF a respeito da procedência da inconstitucionalidade da norma, o poder
legislativo do estado do Rio de Janeiro respondeu invocando – em uma breve passagem – a
proteção a aspectos sociais, que pode ser entendido como uma forte influência da cultura
sobre o fato. Segundo Celso de Mello, para o legislativo do Rio de Janeiro, era:
[...] inegável que, sob o ponto de vista social, trata-se de um forte fator de
integração de comunidades do interior deste Estado, como de resto ocorre
em outros Estados, a gerar, inclusive, um apreciável número de empregos,
sendo que no Rio de Janeiro há, aproximadamente, 100 (cem) rinhas e mais
de 70 (setenta) centros esportivos. (ADI 1856, Relator(a): Min. CELSO DE
MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 26/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-
2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-02 PP-00275 RTJ VOL-
00220-01 PP-00018 RT v. 101, n. 915, 2012, p. 379-413).
Partimos da ideia de que toda sociedade atribui um valor diferente para o mesmo
fato, mesmo sabendo que tal abordagem já não é nenhuma novidade no estudo do Direito,
nem tampouco nas demais ciências sociais, a axiologia tem sua razão de existência no estudo
dessa valoração dada por cada sociedade a determinado fato e, até as abordagens mais
dogmáticas, como é o caso do positivismo, reconhecem a sobreposição de valores, atribuídos
a um mesmo objeto, por diferentes culturas.
Mais uma vez, alertamos que, para entendermos o fenômeno normativo devemos
fazer uso de toda interdisciplinaridade possível, sem esquecer, é claro, o fenômeno jurídico
em si. Neste sentido, o primeiro passo que damos é desconstruir o “estereótipo” (conceito
antropológico) do que vem a ser a briga de galo.
De acordo com Walter Lippmann, estereótipos são generalizações que se faz
normalmente por pessoas que não detém o real conhecimento das condições fáticas ou das
características de outros grupos que não o seu. Naturalmente, a ideia de estereótipo costuma
aparecer associada à questão do preconceito, pelo fato de que tais generalizações costumam
advir na forma de rótulos, quase sempre pejorativos. De acordo Com Emílio Santoro (2014):
Sendo assim, entendemos que, no caso dos balineses, há uma clara conexão com a
questão da “identidade” e, diferente do que discorreu o ministro Celso de Mello, pode sim,
haver inocência na manifestação cultural, ainda que sejam em casos de combate de aves,
conforme acabamos de ler. Evidentemente, isso não quer dizer que tal “inocência cultural”
nas atividades de briga de galo, no Brasil, sejam de fácil constatação, estamos pretendendo
mostrar, apenas, que ao fazer uma análise do fato social, devemos fazer uso de todas as
ferramentas possíveis que se prestem ao auxílio do estudo do Direito, como é o caso da
interdisciplinaridade (através da etnografia, por exemplo), ao invés de fazermos meras
reflexões estereotipadas e etnocêntricas a respeito de tal fato.
Neste sentido, recordamos que o crime de infanticídio está previsto no art. 123, do código
penal, sendo que o tipo penal exige um sujeito ativo específico, em circunstâncias também
específicas para que a conduta seja configurada, ou seja, este não se trata de crime comum.
Conforme nos indica o referido dispositivo penal:
INFANTICÍDIO.
De acordo com o dispositivo, tal conduta criminosa deve ser praticada pela mãe,
que estando sob a influência do estado puerperal, mata seu filho durante o parto, ou logo em
seguida a ele. Atualmente se desenvolvem grandes discussões doutrinárias envolvendo a
interpretação do referido artigo, no entanto, nos limitaremos a relembrar que nem sempre as
crianças mortas nas comunidades indígenas são mortas pela mãe (as vezes é o pai, ou outro
membro da comunidade, que pratica o ato), além disso, nem sempre que são as mães a
praticarem o ato estão agindo por influência do estado puerperal (que inclusive deve advir de
uma constatação médica), na verdade, para a modalidade de conduta que está sendo objeto da
nossa abordagem, interessa mesmo são aqueles casos em que as mães indígenas matam seus
filhos de forma consciente, com base em aspectos da sua cultura específica. Assim, na maior
parte dos casos de morte de crianças indígenas, nos casos em comento, se enquadram mais na
espécie de crime de homicídio do que propriamente seriam os casos de infanticídio.
Estudos indicam que a motivação para o homicídio, de crianças, pelos pais, nas
comunidades indígenas têm origens diversas, das quais poderemos citar: o controle
populacional; contramedida a sinais de mau agouro, ou má sorte (normalmente vistos em
sonhos); nos casos da criança possuir deficiência física; além dos casos de filhos de mãe
solteira ou que tenham sido gerados em relação de adultério.
O projeto de lei 119/15 surgiu a partir de um fato semelhante a um desses casos,
ocorrido em determinada comunidade indígena. Conta-se que a menina Iganani teria sido
abandonada, pela mãe (Muwaji), na floresta, para que assim – segundo a tradição dos povos
Zuruahã – pudesse morrer longe de sua comunidade. Em tal ocasião, a avó de Iganani teria
livrado a menina da morte. Posteriormente, a própria Muwaji teria se engajado na luta pela
solução do problema de saúde de sua filha. Nesse contexto, surgiu o projeto de lei que ficou
conhecido como lei Muwaji, que, na prática, representa uma intervenção do poder estatal
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perante as comunidades indígenas que ainda praticam o homicídio nas modalidades descritas
e, apresenta as seguintes palavras introdutórias:
O projeto de lei Muwaji traz como previsão uma serie de medidas para impedir a
morte de crianças indígenas, pelos pais, das quais podemos enfatizar: a criação de programas,
pelos órgãos responsáveis pela política indigenista, de forma a garantir a proteção daquelas;
retirada da aldeia, das mães cujo cadastro anterior aponte situação de risco para os recém
nascidos; retirada provisória de crianças da comunidade indígena, enquanto estas
representarem situação de risco; punição das autoridades responsáveis, casos estes não se
mobilizem no sentido de protegerem as crianças em situação de risco.
Note-se, ainda, em que todas as medidas previstas, nenhuma delas inclui a
proibição do infanticídio ou homicídio indígena, o motivo para tanto é o fato de que tais
condutas já estão previstas – de uma forma geral – no ordenamento jurídico brasileiro, tais
previsões encontram-se, via de regra, no Código Penal, sobre o qual já citamos o crime de
infanticídio (art. 123, CP), e aqui, incluímos o homicídio (art. 121, CP).
O que há de diferente, com relação à aplicabilidade da norma ao caso dos
indígenas, é a questão da culpabilidade do sujeito no caso concreto, que atualmente – apesar
de controvérsias – tem se baseado – muito – no fator de integração do índio à sociedade
“civilizada”, conforme o que dispõe o próprio art. 56 do Estatuto do Índio, o qual discorre que
“No caso de condenação de índio por infração penal, a pena deverá ser atenuada e na sua
aplicação o Juiz atenderá também ao grau de integração do silvícola”. Além disso,
obviamente, também podem ser analisadas as questões relativas ao erro de proibição e a
exigibilidade de conduta diversa, no ato praticado pelo indígena.
É na questão do grau de integração que reside um detalhe crucial, haja visto que o
estatuto do índio nos indica que naqueles casos em que não existe a pretensa situação de
integração a situação do indígena é regida exclusivamente pelo que dita o referido estatuto,
conforme está disposto no art. 7º da lei 6.001/73, onde está disposto que “Os índios e as
comunidades indígenas ainda não integrados à comunhão nacional ficam sujeito ao regime
tutelar estabelecido nesta Lei”.
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Neste sentido, lembramos que naquele mesmo período, mais precisamente no ano
de 2008 – somando-se ao projeto de lei Muwaji – passou-se a analisar o projeto de emenda a
Constituição 303/08, fato que aponta para um movimento no sentido de suprimir as situações
de morte das crianças indígenas pelos pais, tudo isso, em teoria, tem por base a defesa do
direito a vida. Neste caso, segundo o que ditam Jesus e Pereira, a norma jurídica pretende ir
além de sugerir políticas no âmbito “meramente” executivas, passando a estabelecer a
aplicabilidade da lei penal “geral” às comunidades indígenas, conforme comentários de Jesus
e Pereira, onde ditam que:
A pesar do que fora disposto, mais uma vez partiremos para uma abordagem
antropológica da questão, e lembraremos que a cultura indígena, bem como seus rituais
religiosos, são mais antigos que a presença do colonizador em terras brasileiras, a bem da
verdade é possível que seja mais antiga que a própria religião cristã e o direito romano, dois
elementos culturais impostos pela “civilização”. Conforme narram Jesus e Pereira:
Fazendo uma referência ao caso concreto, vale chamar atenção para o fato de que
quando Muwaji volta atrás em sua decisão de tirar a vida de sua filha, e passa, a partir daí, a
lutar pela solução dos problemas de saúde daquela criança – para tanto, fazendo uso da
medicina do “homem civilizado” – ela não o faz por conta própria, com base apenas nos
preceitos morais da cultura de seu povo, pois, naquela ocasião entrou em cena a intervenção
de um determinado grupo religioso cristão, assim denominado JOCUM (jovens com uma
missão). Esse mesmo grupo de pessoas foi responsável pela retirada da criança da
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comunidade, para buscar tratamento em outro estado, aí se torna visível uma forte influência
da religiosidade cristã (protestante), nas ações que envolvem o projeto de lei Muwaji, dentro
de uma visão etnocêntrica, conforme já discorremos. Conforme estipula Jesus e Pereira:
Assim, a edição de normas como as que aqui foram tratadas revelam o real sentido
do que vem a ser a imposição normativa, situação que manifesta a ausência da alteridade e,
além de tudo, existe mais uma questão que costuma ser mencionada pelos que criticam
normas como o projeto de lei Muwaji, que é o fato de existir um número bem superior de
mortes causadas às crianças indígenas por falta de um aparato estatal adequado para oferecer
o devido suporte em aspectos básicos de saúde para as comunidades indígenas. Quanto a isso,
os legisladores costumam se omitir, preferindo se mobilizar quanto à questão das mortes por
supostas causas oriundas de tradições silvícolas ou indígenas.
Existe, porém, uma questão do ponto de vista principiológico que é crucial para
entendermos o motivo pelo qual as leis de “infanticídio indígena”, trata-se da questão da “auto
determinação” do povos indígenas no que se refere às normas e atos administrativos pelos
quais são regidos. Conforme dita Pedro Cesarino, citado por André Cabette Fábio:
[...] a autodeterminação não quer dizer que os povos não estão submetidos a
leis. A questão é entender o que as populações têm a dizer sobre isso. O
legislador teria que ter no mínimo essa tarefa de escutar, esse é o ponto
fundamental. (FÁBIO, André. Porque o projeto de lei contra o infanticídio é
questionado. Em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/02/03/
Por-que-o-projeto-de-lei-contra-o-infantic%C3%ADdio-ind%C3%ADgena-
%C3%A9-questionado>. Acesso em 18/11/2017).
Assim, uma das muitas perguntas que se pode fazer, no caso das normas em
comento, vai no sentido de saber se assim são consultadas as comunidades indígenas a serem
atingidas pelas propostas de norma as quais se pretende aplicar. A resposta é obviamente que
não, pelo contrário, o que se pretende, nesses casos, é se utilizar do poder coercitivo da norma
jurídica e do estado para – a contragosto das comunidades atingidas – se impor um novo
padrão cultural e jurídico que é alienígena a realidade indígena. Além do que fora disposto,
Cesarino dita ainda que:
Além disso, no ano de 2007, a ONU emitiu a declaração das nações unidas sobre
os direitos dos povos indígenas. Tal documento teve como um dos temas, a questão da
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autodeterminação dos povos indígenas, tema que acabou sendo um dos pontos de maior
discussão entre os estados, haja visto que estes alegavam que a auto determinação poderia
levar ao aparecimento eventuais nações indígenas dentro dos territórios dos estados. Vejamos,
então, o que versam os artigos a respeito dessa questão:
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
SANTOS, José Luiz dos. O que é Cultura. 16 ed. São Paulo: Brasiliense, 2009.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é folcklore. 16ª reimp da 4 ed. São Paulo: Brasiliense,
2007.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Traduzido por João Baptista Machado. 6.ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1998.
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito.25. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução de Alex Marins. Ed. Martin Claret. 2002.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução a Ciência do Direito. 20a. ed. São Paulo:
Saraiva, 2009.
COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. Trad. De Jonas Camargo Leite e Eduardo
Fonseca. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006. v. 6, p. 32.
BÍBLIA, A.T. Gênesis. In BÍBLIA. Bíblia e harpa cristã: letra grande: bíblia sagrada
contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. Baruerí-SP:
sociedade bíblica do Brasil, 2003. p. 06.
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TELES, José. Vaquejada também é ameaçada pelo descaso com a tradição. Em:
<http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/noticia/2016/10/30/vaquejada-tambem-e-
ameacada-pelo-descaso-com-a-tradicao--258716.php>. Acesso em 09/11/2017.
BRANCO, Sofia. França adota lei que proíbe "símbolos religiosos ostensivos" nas
escolas públicas. Público, 2004. Disponível em: <https://www.publico.pt/2004/02/10/
sociedade/noticia/franca-adopta-lei-que-proibe-simbolos-religiosos-ostensivos-nas-escolas-
publicas-1185764/>. Acesso em: 24 de out. 2017.