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oculta sob um manto de neve...ou talvez cada nota seja antes um pequeno grão de areia
que resvala duna abaixo, impelido pelos ventos do deserto, talvez então a harmonia não
seja um rio mas a própria ventania que desloca a areia. O compositor Tristão Ventura
sente insinuar-se a inconsistência na sua apreciação, um ligeiro incomodo provocado pelo
atrito entre o frenesi das imagens e a suave contemplação sonora que lhe inspira
semelhantes metáforas, ou representações poéticas, ou aproximações significantes.
Chove lá fora, e, agora repara, o som da chuva é a trilha sonora que se vem
sobrepondo à miragem do silêncio. Contrariado, o compositor Tristão Ventura tem que
aceitar os incessantes estalinhos que imprimem uma certa umidade na sua atenção,
perturbando a experiência sugerida pela conveniência do silêncio - tal como defende
Zacaria na sua mensagem. O recolhimento circunspecto da sua atenção numa visualidade
exclusiva está definitivamente comprometido e, ato contínuo, as suas cogitações são
desviadas para o que silenciamos (ou pretendemos silenciar) quando apreciamos uma
obra de arte: o murmúrio incessante do mundo, ou a forma aural como o próprio tempo
se dá a perceber. Que o silêncio não existe é algo que já sabe há muito tempo. E mais,
que o ser humano não sobrevive ao silêncio, ou, pelo menos, que nenhum ser humano
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resistiu mais que quarenta e cinco minutos aos rigores surdos da câmera anecoica de
Orfield1, tido como o lugar mais silencioso do mundo. Para o compositor, o silêncio deve
ser entendido então como uma metáfora, que alude a uma massa muito leve de
perturbações sônicas, uma massa que o ouvido humano identifica como o nada, um nada
repleto, porém, de detritos diminutos e transitórios, de microrganismos sonoros invasivos
e impertinentes. Esse nada é um marulhar contínuo de vibrações discretas, incansáveis,
elásticas, em movimento perpétuo, aguardando uma fonte de perturbação que lhe dê uma
forma audível, um assobio que o estremeça, uma turbina que o sacuda, um trovão que o
rasgue, uma coluna de ar soprada, uma corda tangida, uma membrana percutida que o
transforme em música, uma sílaba articulada pela linguagem que o transforme em fala. O
silêncio é o nada que nos envolve por completo, pensa Ventura, a mim e a tudo o que,
como eu, fende o espaço, o nada que permeia o tudo e no qual flutua a poeira infinita do
vazio. A música que componho é a minha forma de moldar o silêncio, determinando
perturbações vibratórias na atmosfera como o escultor configura com suas mãos o barro
úmido. Mas ao contrário do barro, a música regressa ao silêncio, de forma intermitente -
nas suas pausas e nas suas suspensões – ou definitiva – na sua conclusão. O silêncio é o
meio que me acolhe a música, o ambiente em que ela prospera e em que se dilui, que
infinitamente a precede e infinitamente lhe sucede. O compositor Tristão Ventura
vislumbra nesta relação entre música e silêncio uma condição mais ampla, a condição
sonora do tempo, em que silêncio e música geram uma metamorfose contínua, um desfile
infinito de formas precárias e efémeras que se sucedem perpetuamente no tempo e no
espaço, no espaço da sua sala como no da sala de concertos, no tamborilar da chuva na
janela como na música das esferas intuída nas vibrações ondulatórias das órbitas
planetárias. É todo o universo que canta, por instantes, na mente exaltada do compositor,
para logo regressar à saciedade do silêncio. Sim senhor, o silêncio tem que se lhe diga.
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Orfield Laboratories, Inc. é um laboratório multidisciplinar norte americano, situado no estado do
Minnesota, que oferece serviços em Acústica, Vibração, Visão, Iluminação, Arquitetura e Pesquisa de
Mercado desde 1971 (N.doA.).
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nasce a linha e no qual ela se extingue umas dezenas de segundos mais tarde. A Ventura
ocorre que essa moldura imaculada, aparentemente estática, oculta um feixe contínuo de
fotões que derramam, sobre células especializadas da sua retina, em doses iguais, as luzes
vermelha, azul e verde. Aquele alvor retangular é, na verdade, um manancial de ondas
eletromagnéticas, e a sua aparente quietude resulta da estabilidade de uma particular
combinação de intensidades, frequências e polarizações. Passados alguns segundos, esta
láctea estabilidade é desassossegada pela neutralização localizada dessas intensidades,
frequências e polarizações, no momento em que alguns píxeis se agitam compondo o
renascimento serpentino da linha negra. Mas o que o compositor retém é a sensação
silenciosa da luminosidade branca inaugural e a forma como ela existe no tempo, por
conta da alimentação continua dos feixes de luz, instante após instante, até à primeira
perturbação disruptiva que marca o recomeço da dança. Essa sensação, que alberga
expectativa enquanto repousa o olhar, que oculta na sua imobilidade vítrea a atividade
frenética das grandezas físicas da luz, que ergue uma duração aparentemente inerte a
partir do movimento contínuo e múltiplo do tempo, é também uma sensação em que
pressente o lugar comum de tudo o que cruza o seu pensamento, a encruzilhada instável
e movediça sob a qual se esconde a compreensão profunda da sua experiência perceptiva.
O compositor Tristão Ventura pensa agora no silêncio como num lago tranquilo,
atravessado por miríades de acontecimentos vivos na sua profundidade e, no entanto,
absolutamente plácido no espelho que reflete as suas margens, aguardando um pingo de
chuva, uma ventania, o salto repentino de uma carpa, algo que por momentos crie uma
narrativa ondulatória e dê espessura ao fluxo ameno do tempo - do mesmo modo como o
sopro da flauta agita seu entorno gasoso com vibrações periódicas, do mesmo jeito com
que o rabisco negro fende a brancura original das ondas eletromagnéticas da tela do
computador. Sobre esta ideia de silêncio se manifesta a sua ideia de expressão, uma
expressão que dura fluindo no trilho infinito do tempo. E tal expressão resulta duma
truculência de luminâncias e sonoridades que engendram um tecido tortuoso de ondas de
diferentes naturezas, padronizadas por diferentes comprimentos, diferentes frequências e
diferentes intensidades, tecido que se faz matéria nos gestos expressivos e que aparenta o
vazio nas intermitências do silêncio, do qual nasce a matéria expressiva e ao qual ela
sempre regressa. O silêncio é então a página em branco que será desbravada na duração
da expressão e, independentemente das particularidades vibráteis da matéria expressiva
(visual ou sonora), sobre o silêncio se vai esculpindo o tempo na construção da presença,
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envolta numa atmosfera que não cessa de enunciar intensidades e sentidos no tráfego
incessante da sua vibrante natureza. No intuito de fixar estas impressões, o compositor
Tristão Ventura rabisca sobre uma folha um pequeno diagrama, como um lembrete
eventualmente proveitoso ao prosseguimento das suas especulações.
Faz uma rápida montagem do pequeno filme, repetindo três vezes a curta
sequência de movimentos, de modo a obter uma duração de dois minutos que lhe permita
desenvolver minimamente uma ideia musical. Coloca o computador em frente ao teclado
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partilhado com a imagem. Todavia, os silêncios visuais interiores a esta nova duração dão
lugar a uma respiração compósita, provendo o repouso luminoso do retângulo branco com
uma energia latente que resulta do prosseguimento do fraseado musical e que produz
continuidade, criando sobre a repetição imagética uma corrente de diferença na qual, por
sua vez, a identificação das formas repetidas no movimento gráfico confere ao discurso
musical surpreendentes momentos de estabilização auditiva. E, agora que presta atenção,
tornam-se mais claros os momentos em que a música, ou determinados gestos que nela
palpitam, desposam este ou aquele movimento coreográfico das garatujas metamórficas
de Zacaria. A dança de intensidades entre a imagem e a música confundem-se a cada nova
visualização com a alternância auditiva entre o fraseado do piano e da voz (dobrada com
o violoncelo) e, a determinada altura, dentro do entendimento dos próprios objetos
musicais, vai percebendo uma relação similar de polifonia expressiva, na qual os
enunciados visuais participam em circunstancias cada vez mais intrincadas,
comprimindo-se em alguns pontos, produzindo uma espécie de momentos cadenciais
híbridos, para logo se distenderem em sentenças discordantes que divagam independentes
no seu próprio caminho idiomático para se aproximarem em combinações diferentes do
piano com a imagem, do violoncelo vocalizado com o piano, da imagem com a voz
violoncelada, num jogo luxuriante de sedução pautado pela continua reorientação do
objeto seduzido. Talvez seja a relação de divergência, escorada nesses momentos de
convergência, que colocam o meu corpo a vibrar por simpatia, em frequências
inesperadas que não existiam na versão silenciosa e que tampouco existem na audição
cega da música – opina Tristão Ventura.
O compositor tem perante si, sobre uma materialidade visual comum, três
objetos diferentes: O primeiro em que a narrativa da linha negra e buliçosa evolui sobre
a placidez exótica da cítara indiana, o segundo em que a mesma linha serpenteia
livremente num simulacro de silêncio e um terceiro que propõe musicalmente uma
continuidade paralela, edificada pela da natureza dinâmica da animação, mas agitando o
plano auditivo com as suas próprias sentenças. E acontece que, ao contrário das duas
primeiras versões, este resultado final contém um misterioso atributo que incide não
menos misteriosamente sobre o seu sistema nervoso central, criando uma resposta
emotiva que, no caso, se traduz no movimento involuntário do seu próprio corpo,
agitando-se como que por simpatia com os estímulos sensoriais que provêm da recepção
simultânea daqueles rabiscos que dançam, ao som daquela voz, sublinhada por aquele
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Passam os dias e é com curiosidade, depois com inquietação e, por fim, alguma
ansiedade que Ventura verifica quotidianamente a sua correspondência, enquanto vai
crescendo uma expectativa pessimista sobre a recepção dos seus esforços. Nem uma
palavra hoje, nem no dia seguinte, nem no outro. Será que a minha experiência,
aparentemente tão sagaz e produtiva, foi afinal uma vulgar crise de soberba? – interroga-
se o compositor. Será que a intensidade resultante da minha proposição sobre mim
próprio, aquela que me fez sorrir e mexeu com o meu corpo, só eu a entendo, só a mim
me impressiona? Finalmente, numa manhã igualmente chuvosa, uma nova mensagem de
Zacaria o aguarda na sua caixa de correio eletrônico.
metáfora, mas surge-lhe uma outra que lhe ocorre espontaneamente, a da estratificação
de uma rocha, das lâminas de xistos, das placas de ardósia, de uma convergência mineral
que se distingue na sua conformação, mas que se funde na matéria. E logo depois,
prosseguindo com a substancia da matéria mas afunilando a escala, a ligação entre
neutrões e protões num núcleo atômico, condenados à coesão por uma força apenas
destrutível pela reação a uma catastrófica fissão nuclear. Ou talvez essa unicidade não
seja a de duas matérias distintas tenderem a uma matéria fundida, mas a unicidade de duas
matérias divergentes que repartem entre si vibrações expressivas duma mesma duração,
sulcando, revolvendo e desordenando a ténue brandura do silencio de onde procedem e
no qual se consomem, produzindo no caminho intensidades que decorrem da constituição
e desaparição das suas singularidades no fluxo turbulento de multiplicidades intensivas.