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de
C IC M R IZ E S
C H -00003886-3
Objetos pequeninos
da cela
corneta que toca
crepúsculo que cala
OtSjetos pequeninos
da cela
caneta que escreve
coração que arranha
Abjetos sentimentos
na cama
Manta que cobre
medo que desnuda
Hora do rancho
a bandeja passa
na grade
o rádio toca no bolso
do sentinela calado
ao lado do fôssq
onde devem ficar
os cadáveres.
Eu não me lembrava
do meu antigo rosto
até olhar na privada
e cuspir nele.
Não, não pode ter sido
a mesma face,
não me olhe assim, não tenho culpa.
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Inquérito.
Muito general estrelado
comida de oficial
vista da Praça da República.
Eles encenavam ter pena de mim
e perguntaram minha idade. ,
Eu disse: 200 anos.
Algumas marcas desaparecem
outras ficam por uns tempos
aquele gosto
aquele cheiro
aqueles gritos
estes permanecem
calados lá dentro
colados numa memória essencial
sem intervalos possíveis,
vale dizer, definitivos.
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Hoje à noite
os gritos foram mais altos.
Á minha esquerda
está o Gaúcho
depois o cara que assobia
Ângela foi retirada ontem
à minha direita
Stuart já morreu
Ronaldo e Juca
estão mais no fim
e no fundo do corredor
o motorista da CTC
que eles quebraram a mão
chora.
De quem serão os gritos hoje?
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SEMÂNTICA EXISTENCIAL
IDÍLICA ESTUDANTIL — I
Eu tenho saudades
do ano de sessenta e nove
entrevisto entre taças
cristalinas de água prata
lembranças carcomidas
pelas traças
retratos de nossos beijos lambidos
no lambe-lambe
da Praça Serzedelo Corrêa
AMAR EM APARELHOS
Era difícil
jurar amor eterno
estando com a cabeça
à prêmio
pois a vida podia terminar
antes do amor.
O REVÓLVER — I
Voltava de uma, panfletagem
e íamos dar uma trepada.
Te encontrava na porta
do colégio e vinha armado
porque já tinha declarado minha guerra.
Era um velho trintoitão niquelado
do pai de um chapa meu.
Ele, o revólver e o pai
do chapa meu
tinham lutado juntos
na Guerra da Espanha.
OS APARELHOS
Dentro de um aparelho
parta do principio
que tudo pode ser encontrado
iguaklnho a um sótão:
uma roupa ou um disfarce
a garrucha de algum pirata
a edição rara de algum autor famoso
esgotado há séculos
o sentimento ao mesmo tempo
mais sólido
e mais distante.
Na hora do Angelus
eu gostaria de vomitar
no jantar de vocês.
Também gostaria de ter uma repartição
só minha
com uma mesa, uma placa
e um carimbo
onde eu pudesse interditar
os tiranos
arquivar a mediocridade
dar provimento ao combate
e a poesia.
EROTISMO E NYLON
Vagam ainda
rumores e nervuras, flores
não quero a esmo vermes
nem tão pouco essa candura falsa
essa voz rouca em surdina ou valsa
mesmo que proveniente do disco ou da poesia
não quero esse vago grito agorâ já não ouço
o agridoce aroma e canto das coxas
já não toco em meus lábios.
Já não espero de meus pelos contacto
com algum nylon já não espero
desembaraçar lentamente o elástico
tão longínquas estão minhas mãos
de qualquer possibilidade
de carícia tátil, orvalho
e secreção no nylon
ou na seda úmida
sediada junto à carne
unida ao ventre que se oferece
à minha sede límpida de seu sexo
à minha sede central de impulsos
onde o nylon provoca o desejo
que se assenta escuro e se esclarece
com meu beijo na penumbra.
O ENCANTADOR DE SERPENTES
Encantador de serpentes
toco punheta
toco flauta
e na falta de turbante
me divirto
encantando gente
Encantador de serpentes
cometi outrora incesto
com as víboras do meu cesto
e fui embora em um cometa
de calda de marshmallow
Encantador de serpentes
eu serpenteio dedos
sobre teu corpo
eu teço de arame
meus abraços
Encantador de serpentes
não sei ao certo
se lanço serpentinas
como lembranças coloridas
sem ranço de negro.
Encantador de serpentes
gosto também ser pente
índio ou poente
e com ambos
desembaraçar as estrelas
dos teus cabelos
dissipar dos teus fios
os fragmentos de aurora
pentear as teias
onde as aranhas do Nilo
se aninham.
Encantador de serpentes
sem necessidade de palavras
gosto de fitar a obscuridade
quando você com a cara lindamente esporrada
e trêmula
me faz compreender os rfiistérios mais secretos
da criação.
AS CARTAS
Desembarcamos
os ferros foram lançados
no porto e nos pulsos
enquanto fomos expulsos
da vida e do continente
estando sujeitos ao pulsar
de incríveis sentimentos
e ao sabor
das ondas e das contingências
rondamos em redor
das continências dos guardas.
Depois da viagem
da travessia e do enjôo
nos colocaram em uma sala
tiraram nossa roupa
nos revistaram, nos vestiram
nos revestiram de ôco
e fizeram a chamada.
Apareceste,
um resto de esperança,
réstia de sombra
filtrada na grade.
A pesada porta
abriu-sei
Radiante,
amamos.
Confusos, balbuciantes,
cientes da exiguidade do tempo
rimos, choramos,
pela manhã veio o ônibus.
Acordei assustado,
te vi difusamente através de minha névoa
se vestindo. Então
disse adeus quase dormindo
enquanto tentava entender tudo,
o ônibus já ia indo
além das curvas
e das minhas possibilidades
de imaginá-lo
ou detê-lo.
As saudades de domingo
parecem-se com as estiagens:
carentes de tudo
os prisioneiros perambulam
rentes uns aos outros
áridos de risos
e acorrentados na mesma dúvida
lêem as mesmas bulas de redenção
nos preâmbulos das auroras
indeferidas.
DESPERTAR
REMINISCÊNCIAS REEDITADAS
Tempos mudados
já se espera
de dentro dos cárceres
o resultado dos meetings
já se mastiga
conjecturas no pátio
junto ao pão dormido
já se chora
as lágrimas lacrimogênicas
de antes.
FOICES
E fosse o vento
como rajada
fio de foice
rente ao horizonte
cortando espigas e auroras.
E fosse fosco
o vidro que nos separasse
da paisagem
assim semeador
vulto impreciso pelas grades
colher o que?
que fímbria de esperança
que migalhas de posteridade
disputar com os ratos?
l torturador
p ié m de tudo o torturador,
p g e n te impessoal que cumpre ordens superiores
p o cumprimento de suas funções inferiores,
p fio está impedido de ser um pai extremoso
upe ter certos rasgos
l i em alguns momentos ser até generoso.
Portanto,
para o pesar dos velhos carrascos nostálgicos,
não é necessário mais rodas, trações,
fogo lento, azeite fervendo
f# outras coisas
mais nojentas e chocantes.
Tinha um crioulo
que comia um sanduíche de mortadela
enquanto eu pensava na morte dele
na mortandade dos peixes da Lagoa
e dos companheiros afundados
no mais fundo da Restinga.
OSSOS DO OFÍCIO
Meu companheiro querido
não foi por falta de cobertura
nem falha de planejamento
que estupidamente
a vida te fugiu
por um orifício.
REQUERIMENTO CELESTE COM DIGRESSÕES JURÍDICAS
Resolvi portanto,
romper meu silêncio de quase 6 anos
e denunciar em outros astros
a situação atroz que aqui prevalece
tendo o Ministério Público
pedido duas vezes a minha condenação à morte.
Assim sendo, continuo sem grilhetas
cumprindo minha condenação
à danação perpétua
neste pedregulho
cheio de poluição
ditaduras e injustiças
que convencionaram chamar planeta
em eterna órbita
sem ternura ao redor
de uma estrela de 5.“ grandeza.
Nestes termos,
em lugar sobremaneira ermo,
pede deferimento
com o corpo cheio de feridas
o suplicante
irrecuperável militante
desta província celeste
encravada entre nebulosas
e sentimentos mais nebulosos ainda.
A ESTUPIDEZ É O PREÇO DA ETERNA VIGILÂNCIA
; O que somos
é algo distante
tido que fomos
i-
Somos simplesmente
0 que é mais fácil ser:
lembrança
sentimento fóssil
referência ética
flpenas um belo ornamento
para a consciência dos outros.
LEITO DE BATALHA
E como a desejo
Igual a um território inimigo
onde assentar minhas bandeiras
essa imagem me intriga:
fêmea arguta que porta
candelábrios rubros
de sangue e vergonha.
PARÂMETROS
Wnfelizmente é isso,
BSlhando a lâmpada
pilnda outro dia
roaguei a azeitona
rda empada que me deste
' t a tua lembrança veio à tona
iJá como um objeto celeste e perigoso
6>S|ue me impede de fruir a vida
'daqui mesmo.
um astrolábio mudo
prá me sentir singrando os astros
uma adaga curva
prá me sentir sangrando estrelas.
Ah, ia me esquecendo,
um vidro de Droxaine
alguns anti-espasmódlcos
analgésicos para os dentes
e uma bandeira do Flamengo
ae tíhiae SUDSrDOStaS.
Juro
não tem auto-crítica
que me tire
as saudades
de uns tiros.
MORAL E CÍVICA — II
Eu me lembro
usava calças curtas e ia ver as paradas
radiante de alegria.
Depois o tempo passou
eu cal em maio
mas em setembro tava pelai
por esses quartéis
onde sempre havia solenidades cívicas
e o cara que me tinha torturado
horas antes,
o cara que me tinha dependurado
no pau-de-arara
injetado éter no meu saco
me enchido de porrada
6 rodado prazeirosamente
a manivela do choque
tava lá — o filho da puta
seguràndo uma bandeira
e um monte de crianças,
emocionado feito o diabo
com o hino nacional.
4ô
CEMITÉRIO DE DESAPARECIDOS
Cidadãos do mundo
habitantes da dor
em escala planetária
Sabe, Santucho,
eles querem defloramento sem sangue
revolução dos oprimidos sem o sangue deles
guerrilha sem sangue
mas eles clamam por repressão com sangue
— o nosso sangue.
Você sabe perfeitamente Santucho,
que o sangue não é uma categoria abstrata,
menos histórica do que orgânica
e que depende do lado e da causa
onde é derramado.
O sangue em si mesmo
não é bom
nem é mau.
RÉQUIEM PARA UMA AURORA DE CARNE E OSSO
AURORA
perseguida
quase linchada
AURORA
torturada
AURORA
. militante
da manhã
da noite
e das tarefas
AURORA
literal e metaforicamente
assassinada
AURORA
nome de companheira
e de palavra de ordem.
Na sala de tortura
te estraçalharam o crâneo
com o capacete de Cristo
mas o furor deles
as trevas deles
não serão capazes de impedir
o surgimento de novas AURORAS
hoje clandestinas.
GARE DE SAO PAULO
(A Eduardo Leite)
O meu ceticismo
e o supremo esforço que faço
para acreditar na vida.
As minhas cismas
produzem papoulas
com as quais extraio o ópio
da transcendência.