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IN V EN TA R IO

de
C IC M R IZ E S

nlex pobri de dxerga


RUTH E S C O B A R /C O M IT É BRASILEIRO PELA ANISTIA
INVENTÁRIO DE CICATRIZES

ALEX PO LARI DE ALVERGA i

TEATRO RUTH ESCOBAR

COMITÊ BRASILEIRO PELA ANISTIA / RJ.


Copyright 1978
A lex P olabi de A lverga

C H -00003886-3

Direitos reservados para esta edição por:


C omitê Brasileiro Pela A nistia / RJ.
E
T eatro R uth E scobar
Rua dos Ingleses, 209
SÃo P aulo - SP.

Seleção e organização: Luizinho, André e Susana


Revisão: Ana Maria e Ruth
Capa: Ivan Viana
A todos os companheiros, livres, na clandestinidade, nas
prisões e no exílio.

Especialmente em homenagem de:


Stuart Edgard Angel Janes, assassinado na tortura.
Eduardo Leite, assassinado na tortura.
Juarez Guimarães de Brito, por suicídio depois de ferido.
Carlos Lamarca, fuzilado depois de preso.
Yara Iavelberg, morta? assassinada? suicídio?

A TODOS OS NOSSOS M ORTOS,


à M ORTE
A M EU FILHO TH IAGO,
à VID A

(Entré esses dois extremos


e compromissos,
eu vou seguindo)
APRESENTAÇAO '

A s poesias de A lex, agora publicadas em livro, reúnem


um certo número de motivos qtie justificam sua publicação.
O primeiro deles, o motivo fundamental, é a qualidade
mesma das poesias que já de imediato situa A lex entre os poetas
de sua geração e faz de sua poesia, pela independência e fluência
de sua forma, um símbolo de resistência aos movimentos hege­
mônicos da poesia hoje. Refiro-m e com isso às heranças este-
rilizantes da poesia de 45, do concretism o e processo, da retórico,
vazia da poesia dita “social” do reformismo e enfim do piadis-
m o e palavras de efeito de um oswaldismo tardio e artificiosa­
mente reinventado.
A poesia de A lex não se formaliza de fora, não se orga­
niza à margem de suas motivações e propósitos — ela é inse­
parável do que diz, na forma pela qual se expressa e que ê
formidavelmente diversa tanto do espírito autoritário e escolar
do experimentalismo de direita quanto do populismo altisso­
nante mas insípido dos " nossos” poetas editados e reeditados
pela máquina editorial e publicitária do reformismo.
Fluente em sua forma, imediata em sua captação, lúcida
e transparente, a poesia de A lex chega-nos desde os cárceres
políticos da Ditadura, das suas salas de tortura, numa lingua­
gem direta, franca e rigorosamente cuidada,
Ê possível hoje retomar a história da nossa poesia, de 22
para cá, e mostrar com o suas formas è impasses são dominan-
temente inseparáveis das formas mesmas que a história político
do país vai tomando.
Nesse sentido A lex político e A lex poeta, com o alguns
dos seuS muitos companheiros em diferentes prisões do país,
alguns já libertados, outros exilados, poderão significar todc
uma postura e uma produção artística (na poesia, na pintura e
no romance) que rom pe com os padrões estéreis e reacionários
de até então.
A poesia e a política lutam hoje contra camisas-de-força
impostas desde um passado récente e não recente que procura
redefinir todo ato político novo e todo produto artístico nas
formas de uma impotência e de um poder burguês já asse­
gurado. Ensaiar uma análise da realidade fora dos parymetros
burgueses ou reformistas, propor-se à ação política consequente
sem as reservas pequeno-burguesas, ousar a poesia direta, clara
e plena, simples e maravilhosa, sem os desvios autoritários-for-
masi ou anarco-elitizantes, constitui umà coragem — e um ca­
ráter — que A lex nos exibe.
80 anos de pena, torturado barbaramente, testemunha de
assassínios de companheiros nos cárceres da Ditadura, em sua
decidida independência nos versos e na força irresistível de suas
imagens, A lex convoca-nos outra vez para o respeito à poesia
e para os caminhos novos e livres que ela vai agora assumindo.

C arlos H enrique de E scobar


Julho de 1978
RECORDAÇÕES DO PARAÍSO

Objetos pequeninos
da cela
corneta que toca
crepúsculo que cala
OtSjetos pequeninos
da cela
caneta que escreve
coração que arranha
Abjetos sentimentos
na cama
Manta que cobre
medo que desnuda

Hora do rancho
a bandeja passa
na grade
o rádio toca no bolso
do sentinela calado
ao lado do fôssq
onde devem ficar
os cadáveres.
Eu não me lembrava
do meu antigo rosto
até olhar na privada
e cuspir nele.
Não, não pode ter sido
a mesma face,
não me olhe assim, não tenho culpa.

Sinto que ainda amo alguma coisa


uma propriedade esquisita qualquer
perturba acreditar
alguma coisa justifique
resistir.
Amanhã no interrogatório
não sei como estará o ânimo
mas talvez me mostrem
Um retrato dela.

É possível que não me matem


hoje cheguei a me convencer disso
afinal, meu sogro é da marinha
tenho apenas vinte anos
e um certo ar sensível
sem os óculos.
Pesquiso na comida minhas chances.
Quando ela melhora não acredito
que eles vão me matar
pelo menos enquanto durar
essas batatas fritas

10
Inquérito.
Muito general estrelado
comida de oficial
vista da Praça da República.
Eles encenavam ter pena de mim
e perguntaram minha idade. ,
Eu disse: 200 anos.
Algumas marcas desaparecem
outras ficam por uns tempos
aquele gosto
aquele cheiro
aqueles gritos
estes permanecem
calados lá dentro
colados numa memória essencial
sem intervalos possíveis,
vale dizer, definitivos.

12

Hoje à noite
os gritos foram mais altos.
Á minha esquerda
está o Gaúcho
depois o cara que assobia
Ângela foi retirada ontem
à minha direita
Stuart já morreu
Ronaldo e Juca
estão mais no fim
e no fundo do corredor
o motorista da CTC
que eles quebraram a mão
chora.
De quem serão os gritos hoje?

13

Esse silêncio enlouquece


se houvesse mais alguém
seria mais fácil
Hoje veio o médico
falou pro coronel
que ainda dá prá bater
rtas minhas costas.
A roupa que eu vesti hoje
para cobrir um ponto frio
não era a minha e podia ser
a de alguém assassinado.
A camisa tinha sangue coagulado,
um cheiro estranho de súplica.

15

Andar após as refeições


dá esperanças
olhar para os dizeres das paredes
me angustia:
“Celso” “ Injustiça" “ Desamor” .
Por coincidência esse cara eu conheci
caiu com uma Kombi
morreu aqui em dezembro de 70
durante o sequestro.
INDAGAÇÕES — I

Quando me interessei pelo mundo


e procurei o sentido da vida
a ética dependia da pontaria
a certeza era fácil
estava mais nas entranhas
e no coração
do que nos livros.
Hoje a coerência dos sistemas
me parece ridicula
e se nos livramos
de uma certa pressa
entendendo melhor
a vida e a teoria,
isso não significa que o problema da opção mudou.

SEMÂNTICA EXISTENCIAL

Debaixo da janela de minha cela


desfilam a 1." Companhia, a 2.a Companhia,
a 3.a Companhia e as demais companhias
que não solucionam minha solidão.
DIA DA PARTIDA

Aí eu virei para mamãe


naquele fatídico outubro de 1969
e com dezenove anos na cara
uma mala na mão e um 38 no sovaco,
disse: Velha,
a barra pesou, saiba que te gosto
mas que estás por fora
da situação. Não estou mais nessà
de passeata, grupo de estudo e panfletinho
tou assaltando banco, sacumé?
Esses trecos da pesada
que sai nos jornais todos os dias.
Caiu um cara e a polícia pode bater aí
qualquer hora, até qualquer dia,
dê um beijo no velho
diz prá ele que pode ficar tranquilo
eu me cuido
e cuide bem da Rosa.

Depois houve os desmaios


as lamentações de praxe
a fiz cheirar amoníaco
com o olho grudado no refógio
dei a última mijada
e saí pelo calçadão do Leme afora
com uma zoeira desgraçada na cabeça
e a alma cheia de predisposições heróicas.
Tava entardecendo.

IDÍLICA ESTUDANTIL — I

Eu tenho saudades
do ano de sessenta e nove
entrevisto entre taças
cristalinas de água prata
lembranças carcomidas
pelas traças
retratos de nossos beijos lambidos
no lambe-lambe
da Praça Serzedelo Corrêa
AMAR EM APARELHOS

r Era uma coisa iouca


j trepar naquele quarto
, com a cama suspensa
|'por quatro latas
[com o tino lençol
‘ todo ele impresso
pelo valor de teu corpo
e a tinta do mimeógrafo.

Era uma loucura


se despedir da coberta
ainda escuro
fazer o café
e a descoberta
de te amar
apesar dos pernilongos
e a consciência
de que a mentira
tem pernas curtas.

Não era fácil


fazer o amor
entre tantas metralhadoras
panfletos, bombas
apreensões fatais
e os cinzeiros abarrotados
eternamente com o teu Continental,
preferência nacional.

Era tão irracional


gemer de prazer
nas vésperas de nossos crimes
contra a segurança nacional
era duro rimar orgasmo
com guerrilha
e esperar um tiro
na próxima esquina.

Era difícil
jurar amor eterno
estando com a cabeça
à prêmio
pois a vida podia terminar
antes do amor.
O REVÓLVER — I
Voltava de uma, panfletagem
e íamos dar uma trepada.
Te encontrava na porta
do colégio e vinha armado
porque já tinha declarado minha guerra.
Era um velho trintoitão niquelado
do pai de um chapa meu.
Ele, o revólver e o pai
do chapa meu
tinham lutado juntos
na Guerra da Espanha.

OS APARELHOS

Dentro de um aparelho
parta do principio
que tudo pode ser encontrado
iguaklnho a um sótão:
uma roupa ou um disfarce
a garrucha de algum pirata
a edição rara de algum autor famoso
esgotado há séculos
o sentimento ao mesmo tempo
mais sólido
e mais distante.

(A paixão e a paranóia coabitavam em


velhas casas de subúrbio.)

IDÍLIÇA ESTUDANTIL — III

Nossa geração teve pouco tempo


começou pelo fim
mas foi bela nossa procura
ahl moça, como foi bela a noss.á procura
mesmo com tanta Ilusão perdida
quebrada,
mesmo com tanto caco de sonho
onde até hoje
a gente se corta.
PENSAMENTO DE INSÔNIA

Na hora do Angelus
eu gostaria de vomitar
no jantar de vocês.
Também gostaria de ter uma repartição
só minha
com uma mesa, uma placa
e um carimbo
onde eu pudesse interditar
os tiranos
arquivar a mediocridade
dar provimento ao combate
e a poesia.

EROTISMO E NYLON

(Impressões de uma calcinha em 1 auditoria)

Vagam ainda
rumores e nervuras, flores
não quero a esmo vermes
nem tão pouco essa candura falsa
essa voz rouca em surdina ou valsa
mesmo que proveniente do disco ou da poesia
não quero esse vago grito agorâ já não ouço
o agridoce aroma e canto das coxas
já não toco em meus lábios.
Já não espero de meus pelos contacto
com algum nylon já não espero
desembaraçar lentamente o elástico
tão longínquas estão minhas mãos
de qualquer possibilidade
de carícia tátil, orvalho
e secreção no nylon
ou na seda úmida
sediada junto à carne
unida ao ventre que se oferece
à minha sede límpida de seu sexo
à minha sede central de impulsos
onde o nylon provoca o desejo
que se assenta escuro e se esclarece
com meu beijo na penumbra.
O ENCANTADOR DE SERPENTES

Encantador de serpentes
toco punheta
toco flauta
e na falta de turbante
me divirto
encantando gente

Sou assim meio safado


meio criança
e é fácil seduzir
como cantar fosse meio
dia ou noite
na ampulheta.

Encantador de serpentes
cometi outrora incesto
com as víboras do meu cesto
e fui embora em um cometa
de calda de marshmallow

Encantador de serpentes
eu serpenteio dedos
sobre teu corpo
eu teço de arame
meus abraços

Encantador de serpentes
não sei ao certo
se lanço serpentinas
como lembranças coloridas
sem ranço de negro.

Encantador de serpentes
gosto também ser pente
índio ou poente
e com ambos
desembaraçar as estrelas
dos teus cabelos
dissipar dos teus fios
os fragmentos de aurora
pentear as teias
onde as aranhas do Nilo
se aninham.
Encantador de serpentes
sem necessidade de palavras
gosto de fitar a obscuridade
quando você com a cara lindamente esporrada
e trêmula
me faz compreender os rfiistérios mais secretos
da criação.

AS CARTAS

A carta e o envelope se excluem


no chão e acham respostas para tudo.
As cartas e as lajes
as cartas e os livros
as cartas recebidas pelas grades
sem que eu sinta gratidão nenhuma
a carta já aberta e cheia de segredos
de amor cifrados
a carta e a mesa se houvesse mesa
a carta e o mundo se houvesse mundo
a carta e a vida se houvesse vida
a carta e a dúvida se houvesse em nosso amor
dúvidas que ainda pudessem ser expressas pelas cartas.
A carta e a cela, essas sim se encaixam
há certo encantamento nas cartas
mesmo nos envelopes vazios que me povoam
com a sua letra morta e insubstituível
e fazem a sua vida chegar até a mim,
uma vida de papel
uma vida que não tem corpo
uma outra vida devassada e censurada
como a minha, fadada a encher os arquivos poeirentos
dos setores de informação do Exército.
Quando eu disser sobre você em voz rouca
que te adoro
não acredite,
acredite só em meu corpo.
No leito todo o silêncio
estará repleto de palavras
e no lenço, a marca dos soluços
perpetrados contra o tempo.
Após a despedida
não terei mais onde me esconder.

As paredes ficarão tão pequenas


quanto o aceno final.
Então me deitarei de novo
no catre a contemplar
a cena silenciosa de espectros
no pátio.
Relembrarei todos os ecos perdidos
e as imagens de carinhos
recentemente urdidas.
Eu, o homem mais distante,
envolto numa nuvem de fumaça
dos cigarros consumidos,
rodèado de mosquitos e projetos,
sozinho,
quite com o amor e com a História,
eu, homem sobremaneira mais distante
da amada e do continente
que a média dos amantes desgraçados,
continuarei te amando.
Eu, o homem mais distante
e último habitante
da ilha mais distante
e infame
que ainda existe sobre a face da terra,
continuarei te amando
assim mesmo.
12.207

Desembarcamos
os ferros foram lançados
no porto e nos pulsos
enquanto fomos expulsos
da vida e do continente
estando sujeitos ao pulsar
de incríveis sentimentos
e ao sabor
das ondas e das contingências
rondamos em redor
das continências dos guardas.

Depois da viagem
da travessia e do enjôo
nos colocaram em uma sala
tiraram nossa roupa
nos revistaram, nos vestiram
nos revestiram de ôco
e fizeram a chamada.

Ganhei um número de registro


e por um instante
perdi as esperanças.
Estou aqui, pessoal, na C— 8
nossa cela de passagem
nesse famigerado
Presídio Hélio Gomes
ex-PP,
Presídio Policial,
rodeado de faqueiros
bichas, fanchones
guardas e faxinas.
No alto de minha beliche de pedra
leio o semanário Opinião,
autores latino-americanos
e vez ou outra espio a TV.
Porto apenas uma cueca Zorba
fumo incontáveis cigarros
Hollywood
bebo infindáveis canecas
de café Pelé
e em vez de grilhetas,
calço as legítimas sandálias
Havaianas.
Discuto a formação do Partido
os males da monogamia
relembro tiroteios e trepadas
e breve, após o confere,
ainda com as feridas da última visita
na capela,
sonharei com os anjos
pendurados em paus-de-arara
celestes.
SOBRE NOSSAS COMPANHEIRAS NOS AMAREM

Elas compõem um imenso partido


de elos partidos, correntes quebradas
partidas sustadas, idas sem volta.
Elas estão presas a uma liberdade forçada
e às vezes retornam a esses muros
quando as luzes da cidade
apenas se extinguem.
Cada uma delas traz em si uma marca:
o conhecimento que o espelho não reflete
o amor semi-clandestino do corpo que não sua
o gemido da carícia que se esconde.
Cada uma delas traz em si um medo
da grade que fraciona os orgasmos
do,cadeado que divide as sensações
do outro que floresce no próprio luto
daquele que espreita no antigo leito
do reverso da moeda da própria sortê.
Cada uma delas conhece uma dúvida:
da vida anterior que não se repete
do teor imprimido aos novos passos
da espera que continua sendo essencial.

Elas têm dúvidas sobre a liturgia


dos corpos sacramentados pelos anos
das penas excessivas com que os tribunais
condenam nossas ereções inúteis
das garantias necessárias por uma dedicação difícil.
Elas têm toda a razão em suprir a carência
de sexo e de projetos
mas sabem no.fundo
que o maior sentimento possível
mora numa enxovia
sombria e úmida.

FORTALEZA DE SANTA CRUZ


Á água bate nas beiradas da Fortaleza
as lajes imensas ainda guardam
o cheiro nauseabundo dos prisioneiros centenários
tudo se vê pelas brumas do passado,
os cargueiros que passam pela Barra rumo ao porto
bem poderiam ser os galeões corsários
encarregados por Sua Majestade
de nossa libertação.
VISITA DO ANEXO DE DOIS RIOS

(Onde esteve Preso Graciliano)

Apareceste,
um resto de esperança,
réstia de sombra
filtrada na grade.
A pesada porta
abriu-sei
Radiante,
amamos.

Confusos, balbuciantes,
cientes da exiguidade do tempo
rimos, choramos,
pela manhã veio o ônibus.
Acordei assustado,
te vi difusamente através de minha névoa
se vestindo. Então
disse adeus quase dormindo
enquanto tentava entender tudo,
o ônibus já ia indo
além das curvas
e das minhas possibilidades
de imaginá-lo
ou detê-lo.

Tentei em vão achar teu corpo


ao lado como ontem.
Restou apenas uma marca, cheiro,
lembrança.
Acordei desesperado
com um gosto
de amargura
e cachaça
na boca.
Liguei o rádio
à cata de notícias
tuas.
PAISAGENS

As saudades de domingo
parecem-se com as estiagens:
carentes de tudo
os prisioneiros perambulam
rentes uns aos outros
áridos de risos
e acorrentados na mesma dúvida
lêem as mesmas bulas de redenção
nos preâmbulos das auroras
indeferidas.

DESPERTAR

Eu sou um ente noturno


mas não noto movimento nas constelações
quando consulto o travesseiro
e tiro ilações despropositadas
nas vésperas dos sonhos.
Não situo meu sentimento
em nenhum sítio celeste
sequer sinto meu corpo fora de mim
como outrora tua imagem
preencheu outras angústias.

Não me gosta ser manhã,


reles habitante da infinitude provisória.
Madrugador,
acordo quase escuro
e com meu cesto
vou pros campos
tirar a ramela das estrelas.

REMINISCÊNCIAS REEDITADAS

Tempos mudados
já se espera
de dentro dos cárceres
o resultado dos meetings
já se mastiga
conjecturas no pátio
junto ao pão dormido
já se chora
as lágrimas lacrimogênicas
de antes.
FOICES

E fosse o vento
como rajada
fio de foice
rente ao horizonte
cortando espigas e auroras.
E fosse fosco
o vidro que nos separasse
da paisagem
assim semeador
vulto impreciso pelas grades
colher o que?
que fímbria de esperança
que migalhas de posteridade
disputar com os ratos?
l torturador

Í Ifére dos outros


Dr uma patologia singular
f ser imprevisível
Sl da infantilidade total
1 frieza absoluta.

iomo vivem recebendo


Jogios e medalhas
pmo vivem subindo de posto,
buco se importam pelos outros,
jpter confissões é uma arte
i que vale são os altos propósitos
! fim se justifica,
nesmo pelos meios mais impróprios.

p ié m de tudo o torturador,
p g e n te impessoal que cumpre ordens superiores
p o cumprimento de suas funções inferiores,
p fio está impedido de ser um pai extremoso
upe ter certos rasgos
l i em alguns momentos ser até generoso.

ijÃlém disso acredita que é macho, nacionalista,


!;(|Ue a tortura e a violência
^860 recursos necessários
rpara a preservação de certos valores
‘ 8 se no fundo ele é um mercenário
[®abe disfarçar bem isso
quando ladra.

í Não se suja de sangue


; não macera nem marca,
i'í(a não ser em casos excepcionais)
>0 corpo de suas vítimas,
trabalha em ambientes assépticos
Còm distanciamento crítico
T - não é um açougueiro, é um técnico —
eendo fácil racionalizar
que apenas põe a serviço da pátria
da civilização e da família
uma sofisticada tecnologia da dor
que teria de qualquer maneira
de ser utilizada contra alguém
para 0 bem de todos.
Eles se acham muito humanos
quando param de rodar a manivela
começam a fazer só perguntas
e agindo assim nos nivelam
à categoria e aos direitos
dos demais seres humanos.

O analista é geralmente um senhor muito fino


que vela pelo seu prestígio
que fuma cigarros cem milímetros
que se veste à paisana
que usa belas gravatas coloridas
pareeendo mais um executivo bem sucedido
do que um assassino.

Eles não torturam pessoalmente


apenas dirigem os interrogatórios
e têm muito orgulho disso
— não são o céu nem ó inferno,
são o purgatório.
LNos instrumentos de tortura ainda subsistem, é verdade,
[^alguns resquícios medievais
como cavaletes, palmatórias, chicotes
que o moderno design
jhão conseguiu ainda amenizar
[Bssim como a prepotência, chacotas
cacoetes e sorrisos
|que também não mudaram muito.
Ias o restante é funcional
polido metálico
[quase austero
|algo moderno
{com linhas arrojadas
rdlgno de figurar
|e m um museu do futuro.

Portanto,
para o pesar dos velhos carrascos nostálgicos,
não é necessário mais rodas, trações,
fogo lento, azeite fervendo
f# outras coisas
mais nojentas e chocantes.

Hoje faz-se sofrer a velha dor de sempre


| hoje faz-se morrer a velha morte de sempre
, Com muito maior urbanidade,
‘ sem precisar corar as pessoas bem educadas,
£ Sem proporcionar crises histéricas
nas damas da alta sociedade
sem arrefecer os instintos
desta baixa saciedade.
QUESTÃO DE SISTEMA — II

Existem muitas filosofias


e racionalizações para tudo
mas você verá, um dia,
no rosto dos usuários,
perplexidade.
OS PRIMEIROS TEMPOS DE TORTURA

Não era mole aqueles dias


de percorrer de capuz
a distância da cela
à câmara de tortura
e nela ser capaz de dar urros
tão feios como nunca ouvi.

Havia dias que as piruetas no pau-de-arara


pareciam ridículas e humilhantes
e nús, ainda éramos capazes de corar
ante as piadas sádicas dos carrascos.

Havia dias em que todas as perspectivas


eram prá lá de negras
e todas as expectativas
se resumiam à esperança algo cética
de não tomar porradas nem choques elétricos

Havia outros momentos


em que as horas se consumiam
à espera do ferrolho da porta que conduzia
às mãos dos especialistas
em nossa agonia.
Houve ainda períodos
em que a única preocupação possível
era ter papel higiênico
comer alguma coisa com algum talher
saber o nome do carcereiro de dia
ficar na expectativa da primeira visita
o que valia como um aval da vida
um carimbo de sobrevivente
e um status de prisioneiro poltico.

Depois a situação foi melhorando


e foi possível até sofrer
ter angústia, ler
amar, ter ciúmes
e todas essas outras bobagens amenas
que aí fora reputamos
como experiências cruciais.
POEMA DE 22 DE MARÇO

(Para Gerson e Maurício)


Ele caiu no asfalto
não pode reagir
faltou o pente sobressalente
faltou a cobertura
faltou a sorte
faltou o ar.

Ele foi levado ainda com vida


dentro de um porta-malas
a camisa rasgada
a calça Lee suja de sangue.

Era preciso avisar Teresa


era preciso fingir serenidade no espelho
era preciso comer rápido o sanduíche de queijo
era preciso cobrir os pontos
era preciso esvaziar o aparelho
era necessário escravizar o medo
e domesticar o ódio.

Quando cheguei em casa era noite


vi as portas abertas
as lâmpadas acesas
as mariposas alertas
as certezas cobertas de poeira
a chave na janela
os cartazes que nos punham a cabeça à prêmio
e a chuva que caía nc telhado
como os , passos de pássaros
esparsos

E saí por aí, sozinho,


com as mãos nos bolsos
pensando no impasse da luta nas cidades
pensando no isolamento político
pensando na nossa situação
e no nosso despreparo,
me dividindo entre o esforço
de analisar as coisas com frieza
e a ânsia de encher de tiros
o primeiro camburão que passasse.
Adiei as reflexões maiores
adiei as conclusões mais penosas
visto que o Cerco se fechava em meu redor
e um bom guerrilheiro
respeita sua própria paranóia
por uma questão de sobrevivência,
por uma questão de instinto,
Eles costuraram tua boca
com o silêncio
e trespassaram teu corpo
com uma corrente.
Eles te arrastaram em um carro
e te encheram de gazes,
eles cobriram teus gritos
com chacotas.

Um vento gelado soprava lá fora


e os gemidoé tinham a cadência
dos passos dos sentinelas no pátio.
Nele, os sentimentos mão tinham eco
nele, as baionetas eram de aço
nele, os sentimentos e as baionetas
se calaram.

Um sentido totalménte diferente de existir


se descobre ali,
naquela sala.
Um sentido totalmente diferente de morrer
se morre ali,
naquela vala.

Eles queimaram nossa carne com! os fios


e ligaram nosso destino à mesma eletricidade.
Igualmente vimos nossos rostos invertidos
e eu testemunhei quando levaram teu corpo
envolto em um tapete.

Então houve o percurso sem volta


houve a chuva que não molhou
a noite que não era escura
o tempo que não era tempo
o amor que não era mais amor
a coisa que não era mais coisa nenhuma.

Entregue a perplexidades como estas,


meus cabelos foram se embranquecendo
e os dias foram se passando.
Era uma madrugada fria
mais negra ainda pelo capuz
tinha um torturador que ria excitado,
outro era capaz de ficar sério
.e um que me gostava de chamar de
guerrilheiro filhodaputa.

Tinha um crioulo
que comia um sanduíche de mortadela
enquanto eu pensava na morte dele
na mortandade dos peixes da Lagoa
e dos companheiros afundados
no mais fundo da Restinga.

Quando me injetaram o soro da verdade


menti descaradamente
fui' ficando meio grogue
me lembrei do primeiro amor que fizemos
depois de uma reunião do grupo de estudos
me lembrei de uma maldita valsa de Strauss
do temor pela precariedade do teu esconderijo
do medo de morrer, que era maior
- do medo de ficar brocha
' que era menor e obviamente
estava subordinado ao primeiro.

Cada vez mais bêbado


falei do filho que não tive contigo
e quando pensei chegado o instante final
gritei pros torturadores algumas frases heróicas
dessas que a gente se esforça em falar
apesar do cagaço.
AS PRISÕES — I

As prisões são assim:


cinzentas e sem sentido,
Nosso espaço e nosso tempo
têm muitos metros quadrados
e poucos mitos
nossos corpos
têm uma administração
carcerária.

Contra nossas vozes


há muros
contra nossa liberdade,
guaritas,
contra nossos lamentos
há murros
e às vezes regulamentos,
dependendo da conjuntura.

OSSOS DO OFÍCIO
Meu companheiro querido
não foi por falta de cobertura
nem falha de planejamento
que estupidamente
a vida te fugiu
por um orifício.
REQUERIMENTO CELESTE COM DIGRESSÕES JURÍDICAS

(Por ocasião do pouso da Viking I em Marte)

Resolvi denunciar às amebas de Marte


(caso elas existam)
a minha sui generis situação jurídica
de condenado duplamente
à prisão perpétua,
olvidado em várias esferas
absolvido em uma das vidas
e esperando recurso da outra
e tendo ainda por cima
além de certas transcendências sustadas
mais quarenta e quatro anos de reclusão
a descontar não sei de qual existência.

Resolvi portanto,
romper meu silêncio de quase 6 anos
e denunciar em outros astros
a situação atroz que aqui prevalece
tendo o Ministério Público
pedido duas vezes a minha condenação à morte.
Assim sendo, continuo sem grilhetas
cumprindo minha condenação
à danação perpétua
neste pedregulho
cheio de poluição
ditaduras e injustiças
que convencionaram chamar planeta
em eterna órbita
sem ternura ao redor
de uma estrela de 5.“ grandeza.
Nestes termos,
em lugar sobremaneira ermo,
pede deferimento
com o corpo cheio de feridas
o suplicante
irrecuperável militante
desta província celeste
encravada entre nebulosas
e sentimentos mais nebulosos ainda.
A ESTUPIDEZ É O PREÇO DA ETERNA VIGILÂNCIA

Prontos para intervirem


na natureza das coisas
e na dignidade dos homens,
os soldados atentos
armados de fuzis
e radinhos de pilha
vigiam marcialmente
o entardecer.

(Do lado de dentro, os prisioneiros


lêem ou escrevem suas cartas.)
ZOOLÓGICO HUMANO

; O que somos
é algo distante
tido que fomos
i-

íou pensamos ser.


[Veja o mundo:
'ele se move
Sem nossa interferência
. veja a vida:
:’ela prossegue
'Sem nossa licença
veja sua amiga:
ela se comove
por outros corpos
que não o seu.

Somos simplesmente
0 que é mais fácil ser:
lembrança
sentimento fóssil
referência ética
flpenas um belo ornamento
para a consciência dos outros.

A quem interessar possa:


Estamos abertos à visitação pública
sábados e domingos
das 8 às 17 horas.

Favor não jogar amendoim.


POEMA COM TEMA CIGANO — II
Vamos partir clandestinos
a bordo de um vapor antigo
(com mastros, velames e canhões)
conspirar contra uma certa ditadura,
trincar um certo general chileno?
Depois de explodir o gajo bebemos uns vinhos
jogamos pétalas de rosas
no túmulo de Neruda
e trepamos numa praia banhada pelo Pacífico.
(Eu sempre quis trepar numa praia banhada pelo Pacífico)

Depois iremos fazer agitação operária


em algum país civilizado
(chega de militar em ditaduras estúpidas!);
após os meetings, os piquetes,
cataremos livros raros em livrarias
e sebos sediados próximos à ruelas estreitas

num cais qualquer onde os navios partem.


Depois dos comícios
andaremos molhados de chuva
e pelos boulevares floridos
não levaremos guarda-chuva,
tomaremos um táxi
compraremos bisnagas imensas
bugigangas sem sentido
treparemos numa água furtada
cheia de telas, tintas,
livros poeirentos e projetos
em cima de uma cama alta
de fèrro batido.
Depois iremos ao cinema
ver Jules et Jim.

Em seguida acamparemos na Transilvânia


eu trambiqueiro cigano
você vidente meio puta
eu em busca de um crime perfeito
você querendo um pau na gruta
nós atores ambulantes de um mambembe qualquer
sarrando junto de uma fogueira
sarros metafísicos
te arretando com saia
brinco, lenço e tudo
brincando e rolando sem ligar pro mundo
um carinho de muita selvageria, suor e palavrão:
eu com dente de ouro roubado
você com flor no cabelo.
A INCORPORAÇÃO DO CORPO

Senti que meus braços


minhas pernas, meu sexo
eram algo mais *que uma fronteira
que me delimitava com o espaço exterior.
Então, depois de todos esses anos,
pela primeira vez vesti meu corpo
e amei você
empunhando cada sentimento
em profundidade.
A antiga solidão
deixei dependurada em um cabide.

LEITO DE BATALHA

A luz dos castiçais


ela tão nua e tão casta
me traz
minha própria cabeça
em uma bandeja.

E como a desejo
Igual a um território inimigo
onde assentar minhas bandeiras
essa imagem me intriga:
fêmea arguta que porta
candelábrios rubros
de sangue e vergonha.

PARÂMETROS

A medida certa bem pode ser a medida errada


pois ela está sediada no âmago de um medo
e pode ser amargo adiar a sede de um corpo
ou de uma tara
mesmo por questão de dias.
A medida certa pode ser errada: o desejo
não comporta média aritmética
nem cagaço.
TEORIA GERAL DOS RELACIONAMENTOS

(Contendo à guisa de apêndice uma pequena ontologia


em forma de sistema)
Eu conheço o nível dos meus relacionamentos
pelos extremos do meu pau
quanto menos ele obedece à minha cabeça
é que tou amando,
é que tou sacando os veículos do ser
os instrumentos do prazer
é que tou roçando teu corpo na casa preta
prá proteger nosso amor dos inimigos,
é que tou criando vínculos que serão profundos.

Mas é preciso ter cuidado


que os vínculos viram visgo
viram musgo
que podem grudar os passos
no asfalto
florescer no anonimato do desespero geral
e na falta de ar que a multidão respira.

Por isso, no meio a qualquer esquina


silenciosa e escura
armarei o meu divã
de curas e licenciosidades
acenderei a minha pira psicanalítica
e cobrarei barato.
Pois eu sou assim
uma espécie de oráculo de óculos
a desferir ósculos nas sombras
e cumular os corpos de profecias.

Não compartilho integralmente da presença


mas compreendo a partida
quando essa se faz necessária
quando as pitonisas assim me dizem
e as musas me abandonam.
Posso me relacionar com relativa facilidade
|em exigências excêntricas
íem posturas complexas
Dosso desejar
juern combine gostos tão diversos
(osso amar quem come lagosta
I gosta dê chupar meu pau
mas não gosto de jurar amor eterno
lequer curto muito
«rar amor transitório
to leito, quando juro
(Mim sussurro
lob a aranha do teto
ja mesma hora abjuro secreto
(Obre o abajur lilás da vida,
aço de tua presença
utrora tão rica e completa
(ma dieta de imagens magras.
té que teu rosto
ím minha memória desapareça
| meu amor emagreça,
Ué que a indigestão
B e geste
I I a cólica se estabeleça.

Wnfelizmente é isso,
BSlhando a lâmpada
pilnda outro dia
roaguei a azeitona
rda empada que me deste
' t a tua lembrança veio à tona
iJá como um objeto celeste e perigoso
6>S|ue me impede de fruir a vida
'daqui mesmo.

j>|È isso aí, amores e amigos


m o me perturbem nem irritem
mu não quero ser medíocre
‘I gosto de viver a existência
íjoelas beiradas,
<0omo se ela fosse uma papinha de aveia
■finde corre o sangue
Jos solitários e dos loucos
due no fundo no fundo
4 que faz essa joça se mover.
PROJETO BUCANEIRO PARA O DIA DA ANISTIA

Sem lar nem profissão


no Dia da Anistia
íèrei vestibular para pirata.
«aprenderei a receita do bolo da minha tia
comprarei um barco velho
alugarei alguns ratos das Tortugas
'.ovarei minhas revistas prediletas
os clássicos, as filosofias
alguns romances, muita poesia
um rádio prá ouvir a Jotabê
algumas pilhas Everedy ... >
uma arca para guardar a pilhagem
alguns cadernos Noblesse
4 cores
canetas Blc esorita fina
uma garrucha . .
um canhão Krupp comprado à crediário
um diário, ketechupp
uns mapas pro oceano
outro mapa celeste
prá olhar de luneta
e me sentir pequeno,

um astrolábio mudo
prá me sentir singrando os astros
uma adaga curva
prá me sentir sangrando estrelas.
Ah, ia me esquecendo,
um vidro de Droxaine
alguns anti-espasmódlcos
analgésicos para os dentes
e uma bandeira do Flamengo
ae tíhiae SUDSrDOStaS.

e “ no0hîàtôatde minhas aventuras bucaneiras

d ando^referêncía às putas da b®lra J?° °n®(


_____ I . . I - ^ « a l m a n f ú X/OCâ Ô& fDQUS PTC

Terei um mastro onde me amarrar


e 'para não ouvir o canto da sereia
colocarei minha úlcera nos ouvidos.
ESCUSAS POÉTICAS — II

Alguns companheiros reclamam


que entre tantas imagens bonitas
eu diga em meus poemas que gosto de chupar bucetas
e não vejo como isso atrapalhe a marcha para o socialismo
que é também o meu rümo. Mais ainda,
eu gostaria que nessa nova sociedade por qual luto
todos passassem a chupar bucetas a contento
todos redescobrissem seus corpos massacrados
todos descobrissem que o medo e a aversão ao prazer
a que foram submetidos foi e será sempre
apenas a estratégia dos tiranos.

Outros companheiros reclamam


quanto ao uso da 1.* pessoa
em meus poemas, a falta de desfechos
córretós do ponto de vista político
e os resquícios da classe que pertenço.

A isso tudo procuro responder


que a poesia reflete uma vivência particular,
se universaliza apenas nessa medida
e que não adianta você inventar um caminho
para um povo que você não conhece nem soube achar.
Eu bem que gostaria de ter essa solução, é minha senda,
èu estou sinceramente do lado dos oprimidos
só que de uma maneira abstrata
o que errei, errei por eles,
num processo não despido de angústia
e minha poesia teria que se ressentir disso.

Quanto as outras crittcas,


o que posso dizer é que a falta de lógica de meus sentimentos
não acompanha a lógica dos manuais de dialética
e que minhas Intenções e objetivos
nem sempre correspondem à minha vida real.
O que muitos não entendem
é que eu quero muito falar do meu povo
da sabedoria dele,
das coisas simples
que lhe são mais imediatas
mas que esse canto hoje soaria falso
e que só posso falar disso
quando não precisar inventar nada,
quando minha praxis for essa
o caminho escolhido o certo,
quando não precisar de metáforas,

O dia da redenção tanto pode ser uma aurora quanto um poente,


isso pouco importa
desde que se o cante e anuncie
de todas as formas possíveis.

A NOVA TÁTICA E O VELHO INSTINTO

Juro
não tem auto-crítica
que me tire
as saudades
de uns tiros.
MORAL E CÍVICA — II

Eu me lembro
usava calças curtas e ia ver as paradas
radiante de alegria.
Depois o tempo passou
eu cal em maio
mas em setembro tava pelai
por esses quartéis
onde sempre havia solenidades cívicas
e o cara que me tinha torturado
horas antes,
o cara que me tinha dependurado
no pau-de-arara
injetado éter no meu saco
me enchido de porrada
6 rodado prazeirosamente
a manivela do choque
tava lá — o filho da puta
seguràndo uma bandeira
e um monte de crianças,
emocionado feito o diabo
com o hino nacional.


CEMITÉRIO DE DESAPARECIDOS

Fala-se à boca miúda


nos corredores do Cisa,
Cenimar e Doi
que a Vanguarda Popular Celestial
(como eles denominam o local que os
guerrilheiros vão depois de mortos)
está sediada em algum ponto da Restinga de Marambaia.
É lá que os corpos dos militantes presos
são jogados à noite de helicóptero:
descrevem uma parábola no ar
abrem uma fenda branca na espuma
se aprofundam e adormecem
sem vingança possível,
Estamos todos perplexos
A espera de um congresso
dos mutilados de corpo e alma.

Existe espalhado por al


I de Bonsucesso à Amsterdan
do Jardim Botânico a Paris
| de Estocolmo à Frei Caneca
' ama multidão de seres
gque portam pálidas cicatrizes
r èsmanecidas pelo tempo
Í bem vivas na memória envoltas
em cinzas, fios cruzes
t oratórios,
[ elas compõem umá catedral
: de vitirnas e vitrais
' uma Internacional de Feridas.

Quem passou por esse pais subterrâneo e nâo oficial


sabe a amperagem em que opera seus carrascos
as estações que tocam em seus rádios
para encobrir os gritos de suas vitimas
o destino das milhares de viagens sem volta.

Cidadãos do mundo
habitantes da dor
em escala planetária

todos que dormiram no assoalho frio


das câmaras de tortura
todos os que assoaram
os orvalhos de sangue de uma nova era
todos os que ouviram os gritos, vestiram o capuz
todos os que gozaram coitos interrompidos pela morte
todos os que tiveram os testículos triturados
todas as que engravidaram dos próprios algozes
e s tio marcados,
se demitiram do direito da própria felicidade futura.
É, Santucho,
eles te chamam
de fera e assassino
nos editoriais.
Eu sempre achei
que os jornais
são meio parciais
quando se trata de falar
sobre o lado de cá
do sangue derramado.

Sabe, Santucho,
eles querem defloramento sem sangue
revolução dos oprimidos sem o sangue deles
guerrilha sem sangue
mas eles clamam por repressão com sangue
— o nosso sangue.
Você sabe perfeitamente Santucho,
que o sangue não é uma categoria abstrata,
menos histórica do que orgânica
e que depende do lado e da causa
onde é derramado.
O sangue em si mesmo
não é bom
nem é mau.
RÉQUIEM PARA UMA AURORA DE CARNE E OSSO

AURORA
perseguida
quase linchada
AURORA
torturada
AURORA
. militante
da manhã
da noite
e das tarefas
AURORA
literal e metaforicamente
assassinada
AURORA
nome de companheira
e de palavra de ordem.

Na sala de tortura
te estraçalharam o crâneo
com o capacete de Cristo
mas o furor deles
as trevas deles
não serão capazes de impedir
o surgimento de novas AURORAS
hoje clandestinas.
GARE DE SAO PAULO

(A Eduardo Leite)

Uma madrugada escura


é o primeiro cenário de meu corpo
e dos meus olhos recém-despertos
da solidão e da estação
rodoviária de São Paulo.

Garoa na gare noturna-

Os barulhos dispersos dos caminhóes


qúe carregam e descarregam
me dão pequenos sobressaltos
e a névoa friorenta
se despedaça em mil pétalas gélidas
arrefece,
no Incandescente rubro
dos contornos vagos e Iniciais de uma aurora.
Consciência súbita da claridade matinal e próxima
faz com que eu desperte de minhas lembranças
num bar, perto da estação rodoviária de São Paulo,
A palidez da madrugada
ainda brinca um pouco de contraste
com o arcabouço imenso e esquelético
da cidade ainda sonolenta e estática.
Luzes Já não são mais luzes
barulhos já não são mais esparsos
a manhã absorve todos os ecos
todos os pontos luminosos
numa manifestação cromática
e assexuada.
A manhã veste São Paulo em meu cansaço
outrora adormecido
dilufdo entre lembranças e inquietudes
num bar, perto da estação rodoviária.

Éu te encontro e andamos pelas ruas da Lapa,


tomamos café pelas ruas da Lapa,
0 entardecer surpreende .nossa discussão política
pelo centro de São Paulo
o anoitecer nos surpreende em um carro frio
que fura os ventres desertos das ruas de São Paulo.
Já de noite,
nada nos Impede de varar o anonimato dos subúrbios paulistas
numa disparada suave
que hármonlza completamente com os semblantes tensos.
Sem precisar uma palavra,
a gente descobre a fraternidade assim
de repente, num carro frio que penetra
nos Interiores anônimos
dos subúrbios de São Paulo.

AOS QUE CRITICAM O CETICISMO

O meu ceticismo
e o supremo esforço que faço
para acreditar na vida.
As minhas cismas
produzem papoulas
com as quais extraio o ópio
da transcendência.

Na relação com o mundo


minhas rimas são interiores
nos versos finjo não saber de nada.
BULA PARA SONÂMBULOS

Quando â baioneta cala


o sentimento grita
quando a baioneta grita
o sentimento culpa.
Quando a boca articula
a emoção esconde
quando a emoção explode
o dente morde as melhores paisagens.
Quando estou só em minha cela
e a noite por enfrentar é longa
tomo um bonde qualquer
que eu invento, toco p'ra Santa Teresa
nos sonhos dos outros
sou pingente.
SOBRE PARTIDAS
Aprendi desde cedo
a não sofrer com partidas.
Cansei de abraçar companheiros
que no outrp dia morreram
Cansei de esperar por eles
com um até amanhã
que até hoje persigo nos sonhos.

Aprendi desde cedo


a não sofrer com partidas.
Daí substituir o medo
de perder tantas pessoas queridas
pelo rosto impassível
que exigiam de mim.
Daí porque todos os sentimentos
que tínhamos uns pelos outros
era tácito
daí porque todo o carinho
que fazíamos uns nos outros
era rápido.

Aprendi desde cedo


a não sofrer com partidas.
Acostumei a dar por falta deles
nos encontros não realizados
costumei em noites chuvosas
confirmar prisão ou morte
mos pontos de segurança
com o coração batendo desesperado
e a arma engatilhada sobre o casaco.

Aprendi a esperar os cinco minutos regulamentares


mas aprendi também a inflingir as normas de segurança
aguardando mais cinco minutos louco de esperança e liberalismo.

Aprendi também a sair cabisbaixo pela chuva


e a fingir momentos após com os outros
com a mais absoluta frieza.

Pori.sso as partidas não me assustam.


Aqui dentro tão pouco vingou o desejo
de que os sentimentos fossem mais definitivos:
Transferências de prisão
companheiros soltos
companheiros mortos
companheiros loucos
reafirmam a transitoriedade de tudo.
Dal porque aprendi desde cedo
a não sofrer com as partidas.
Ê que eu sou um combatente provisório
de uma causa quase eterna no homem
acredito ter como bandeira
senão o sonho perfeito,
a melhor utopia possível.
é que eu sou um homem provisório
de expectativas provisórias
de moral provisória
e uns poucos valores absolutos.
É que sendo um homem provisório
de uma causa provisória
eu devo me acostumar às partidas
pois eu sou fraco, forte é nossa causa
que causa tantas partidas.

Por Isso as partidas não me assustam.


Com elas moldo a substância do meu canto.
Nenhuma pessoa amada deve se preocupar comigo:
posso viver perfeitamente mesmo com tantas partidas,
algumas ganhas, a maioria perdida.
Pássaro migrante, saio daqui um dia
voando com um trabuco
prá qualquer lugar onde a voz do homem for fraca.
ALEX POLARI DE ALVERGA nasceu em João Pessoa, Pa-
raíba, vindo para o Rio com 3 anos. Aqui sempre morou e
estudou, participando ativamente das lutas estudantis no
final dos anos 60. Foi preso em maio de 1971, com 20 anos,
devido a sua militância política contra o regime militar
brasileiro instaurado a partir de 64.
Torturado pelos órgãos de segurança, foi posterior­
mente condenado duas vezes à prisão perpétua. Depois
de passar por várias prisões e unidades militares, como
a Ilha Grande, Fortaleza de.Santa Cruz, quartéis da Vila
Militar, etc., acha-se atualmente no Presídio Milton Dias
Moreira, onde já cumpriu mais de 7 anos da condenação
de 74 anos que lhe foi imposta pelos tribunais militares
de exceção.
Como preso político,' juntamente com seus compa­
nheiros, tem participado de todas as lutas de sobrevivên­
cia, denúncia e resistência que os militantes políticos são
obrigados a travar nos cárceres, principalmente depois
de 1968.
Se as poesias de Alex ainda não tomaram a forma
unitária de um livro — conforme acontece hoje — elas
já foram objeto de ampla divulgação dentro e fora do país.
Diversas delas já foram publicadas e distribuídas por
ocasião das manifestações estudantis de 76 e 77. Recen­
temente, o jornal FLAGRANTE publicou um certo número
destas poesias, como já fizera antes a revista “Rua da
Emancipação’’ e outras.
No exterior, suas poesias foram publicadas com tra­
dução sueca pela Anistia Internacional e em revistas de
exilados chilenos impressas em Estocolmo; na França, em
coletânea de escritos de presos políticos brasileiros; em
Portugal, nos Cadernos do Terceiro Mundo, além de mi-
meografadas e distribuídas em meios universitários da
Itália e da Alemanha.

PRODUTO DA VEN D /l DESTE LIVRO


EM BENEFÍCIO DO
COMITÉ BRASILEIRO PELA ANISTIA

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