Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
71
Deste modo, (O Ciclo das Aguas), de 1976, parece ter fechado
o ciclo das obras em que a classe média judaica de Porto Alegre
è um dos caracteres dominantes 1•
Se o que fazemos aqui como simples suposiç!o for amanh!
mesmo contestado por um novo livro que retome a tradiç!o
das narrativas anteriores, jll que ao escritor nilo cabe o papel
de obediente ao critico, n!o deixarll o presente ensaio de ter
algum sentido. O que a ele importa, na verdade,
é a possibilidade de apontar algumas constantes de forma
e de conteudo que possam fornecer subsldios para urna leitura
homogènea dos trabalhos de Moacyr Scliar, apesar da sparente
diversidade de materia! com que opera a partir de M§s de Cies
Danados, e mesmo da maior parte dos contos da coletanea
A Ba/ada do Falso Messias, de 1976.
(0 Ciclo das Aguasl que, num primeiro contato, apareceria,
en~o, como uma espécie de alegoria de si mesmo e dos
romances que o precederam, algo como urna grande coda
do tipo "assim viveram felizes por muitos e muitos anos" das
narrativas anter;ores, irll, na realidade, mostrar-se como que
uma consciència mftica das formas de produçao ficcional em
Moacyr Scliar.
72
exacerbaçlio irOnica desses mesmos ciclos. lsto leva
constantemente, em sua obra, a urna visllo rebaixada do mundo,
em cuja construçllo a par6dia desempenha um papel
fundamental, e cujo resultado é, do ponto de vista literério, um
mundo de imagens demonfacas 3 •
73
origem, da identidade do pai, que desconhece e, professar de
Hist6ria Natural, encontra no microsc6pio o instrumento
adequado à distorç~o negativa, mas ainda assim idealizadora,
da realidade que o cerca.
74
sociedade que o Capitao Birobidjan edifica no Beco do Salsa e
a pequena e abafada loja que Mayer Guinzburg é obrigado a
enfrentar para atender aos compromissos familiares.
O interessante, neste caso, é que nào podendo desvencilhar-se
objetivamente do codigo de comportamento que o capitalismo
lhe impoe, Mayer tentara utilizar dos recursos que este lhe
oferece a fim de edificar urna salda simbolica para sua utopia.
Torna-se construtor de altos edificios, aos quais batiza todos
com nomes de reis do Antigo Testamento. No alto de um deles
reencontrara um dia os sonhos da nova sociedade e também a
bancarrota da firma. O prédio ruira, Mayer ira para urna
pensao-asilo, onde a maior liberdade é medida pela conquista
do cubfculo da privada, até que, acometido de um colapso,
ele morra num canto de hospital, enquanto o Capitao Birobidjan
mergulha na escuridao de um mar, que pode, sem duvida
alguma funcionar como um simile da morte na simbologia ciclica
das aguas 6 . Os Deuses de Raquel joga com a alternancia entre
o tempio de Miguel e o hosplcio em cuja vizinhança mora Raquel
e seus pais. O proprio colégio de freiras para onde eia vai
transforma-se no inferno de seu cotidiano, no labirinto em que
se debate a sua juventude e onde se forja o estigma de sua
impossibilidade para avida. Em A Ba/ada do Falso Messias
o centraste entre o destino mftico das personagens e a refraçào
do real em cumpri-lo fai ja apontada no prefacio feito para este
livro por Nathanael Simone. Aqui, principalmente no primeiro
conto, que da nome à coletanea, ao jardim em que brota o mana
opoe-se a dura realidade do trabalho e da produçao.
75
contraparte real o seu encarceramento no simbolo mais vivo
dessa tradiçAo familiar: impossibilitado de andar, com urna perna
atrofiada, o her6i é o mendigo que perpassa com sua hist6ria
pessoal o ritmo dos grandes acontecimentos politicos do pais
e seu espaço de mobilidade, reduzido aos limites de sua herança
familiar, é também o espaço exiguo da perspectiva do narrador.
O poncho herdado do avO é a casa que o abriga, mas também
o peso que ele ni!io pode suportar e qua, portanto, o fixa num
determinado lugar, sem condiç5es de movimentò. Este lugar,
que no romance é posto numa rua de Porto Alegre, é o ponto
de onde o narrador observa tanto os acontecimentos hist6ricos
como a circulaçi!io de carros e pedestres que passam por ali.
Deste modo, o real ricocheteia na imobilidade da
personagem-narrador e pros5egue contado na sua sucessao de
datas e eventos, como se fosse impossivel furar a carapaça
mitica de um simbolo - o poncho - dentro do qual se recolhe
e solitario se abriga Mario Picucha. Ironicamente, como um
efeito produzido pela par6dia do pr6prio simbolismo da tradiçAo
familiar quando confrontado com a realidade, a dureza e
impermeabilidade do poncho é o resultado da acumuiaçAo
hist6rica de muita sujeira e muito su or.
76
juntamente com outros elementos, o mundo paradisraco do
latifundio medieval e que neste romance se projeta claramente
na ideologia de urna das tias de Mllrio Picucha:
"Rolando era o cavaleiro que minha tia mais amava. Rolando, paulista,
o cavaleiro nascido numa cavarna. Suas corea: branco e verm&lho.
O branco do lirio. O vermelho do sangue. Durindana era sua espada;
Montjoie o seu grito de guerra - o grito que fazia tremer os sarracenos.
Montjoiel Montjoiel Olha s6, paulista, eu grito e os transeuntes param para
olhar. Ficam rindo, os idiotas. Que sabem de Rolando7 Rolando, que na
batalha s6 fez soar sua trompa, pedindo socorro a Carlos Magno, quando jA
nAo havia esperança7 Rolando que combateu até a morte em
Roncevaux7" (p. 16)
E a tia declamando:
"Roncevaux, Roncevaux
dans ta sombre valée
l'ombre du grand Rolland
n'est donc pas consolée7" (idem)
Esta mesma tia é quem legarll ao cavaleiro dos pampas urna das
duas espadas da famflia e com eia o her6i, vivendo jll o inferno
dos que do duplamente deserdados (dos acontecimentos
presentes, por aliena~o, e da classe social, por impureza de
origem) acomete diante de um velhinho, veterano de revoluçlSes
e seu companheiro de albergue, contra a barata que passeia na
sujeira de seu colchi!io:
78
amor. Marcos è, assim, um Ulisses imobilizado pela obsessào
de si mesmo e terminarà, depois de todas as peripécias
de gabinete em que consegue, enfim, evitar ser de.vorado pela
sereia, com o estigma de seu sedentarismo: a priYo de ventre.
79
sequència de numeros e datas e os acontecimentos sucedem-se
juntos, mas desarticulados. Compreende-se, entilo, a forma de
composiçio dos capitulos, por exemplo, de Mes de C§es
Danados, onde o narrador-personagem registra a hist6ria pelo
expediente individualista e alienado do diério e amontoa notlcias
de jornal em que constam desde a projeçilo de problemas
particulares, como a sua impotfmcia sexual, atè fofocas sociais
e fatos politicos.
80