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reitor
Prof. Wolmir Therezio Amado
Conselho Editorial
Edival Lourenço - Presidente da União Brasileira de Escritores - Seção Goiás
Getúlio Targino - Presidente da Academia Goiana de Letras
Heloísa Helena de Campos Borges - Presidente da Academia Feminina de Letras
Profa. Heloísa Selma Fernandes Capel - Universidade Federal de Goiás
Profa. Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante - Pontifícia Universidade Católica de Goiás
Profa. Márcia de Alencar Santana - Pontifícia Universidade Católica de Goiás
Maria Luísa Ribeiro - Presidente da Academia Goianiense de Letras
Profa. Regina Lucia de Araújo - Pesquisadora
Prof. Ms. Roberto Malheiros - Pontifícia Universidade Católica de Goiás
Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega
Sônia Fátima Schwendler
Organizadoras
Conflitos Agrários
seus sujeitos, seus direitos
Goiânia, 2015
© 2015 by Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega, Sônia Fátima Schwendler
Comissão Técnica
Biblioteca Central da PUC Goiás
Normalização
Ana Paula
Revisão
Humberto Alves Soares de Melo
Design de capa e Editoração eletrônica
C748 Conflitos agrários: seus sujeitos, seus direitos / organizadoras, Maria Cristina
Vidotte Blanco Tárrega, Sônia Fátima Schwendler. – Goiânia: Ed. da
PUC Goiás, 2015.
308 p.: 22 cm
ISBN 978-85-7103-881-3
CDU: 349.42
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida,
armazenada em um sistema de recuperação ou transmitida de qualquer forma
ou por qualquer meio, eletrônico, mecânico, fotocópia, microfilmagem,
gravação ou outro, sem escrita permissão do coordenador.
Impresso no Brasil
Dedicamos este livro às mulheres e aos homens que
mostraram com sua vida que a luta faz parte da história
e que ela é possível e necessária para mudar o mundo e
a si mesmo; aos povos indígenas, quilombolas, campe-
sinos e campesinas que trabalham, vivem e resistem na
terra, e que nos ensinaram, com sua força e coragem, as
lições da pedagogia da resistência, os nossos tributos.
A FALA DA TERRA
Pedro Tierra
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 9
9 SUMÁRIO
11 PREFÁCIO
A
s sociedades humanas foram se acomodando na terra que lhes
coube viver, formando suas culturas, seus valores e suas riquezas.
Na modernidade, arbitrariamente, em geral pela força, as socie-
dades transformadas em Estados constituídos demarcaram seus territórios
com lápis de ponta fina sobre um mapa que apenas imitava a realidade.
Cada vez que o lápis escorregava em mãos mais acostumadas às armas do
que à arte, os povos eram chamados a defender a pátria, e longas e desa-
venturadas guerras redesenhavam o mapa, novamente sem se importarem
com que gentes ficavam dentro ou fora do desenho. Desta forma, o territó-
rio passou a ser o limite de honra dos chamados Estados nacionais e nele se
impuseram a lei e o contrato social, a todos os habitantes, humanos ou não,
aí localizados pelo acaso, destino ou pela autodeterminação. E aí se fixou
que todos deveriam falar a mesma língua, reverenciar o mesmo poder e
adorar o mesmo Deus.
Mas o território dos Estados modernos foi, por obra dos direitos indi-
viduais, dividido por sua vez em lotes de terras privadas, também com lápis
de ponta fina, demarcados, medidos, destruídos e melhorados. Destruídos
do ponto de vista dos animais, plantas e gentes coletivas, melhorados do
ponto de vista da modernidade, expulsaram animais, plantas e gentes cole-
tivas, transformaram a terra em local de produção de mercadorias, exclusi-
va para acumulação da riqueza humana, local não permitido, sob pena de
morte, para plantas e animais estranhos e daninhos à mercadoria produzida
e não permitidos, sob outras penas, às gentes estranhas à produção.
A terra não é um mapa onde se possa desenhar fronteiras nacionais
e lotes privados, mas é composta por rios de verdade, montanhas, planícies
12 |
e mares reais. É a base em que se assenta a vida em suas mais simples, com-
plexa ou diferente forma, que se chama biodiversidade. As condições de
clima, latitude, altitude, composição do solo e minerais existentes determi-
nam a vida e proliferação de diferentes plantas e animais. As gentes, os seres
humanos, aprenderam a viver em qualquer lugar, mudando a cor da pele,
o formato dos olhos, o tamanho do nariz, mas, para se adaptarem, foram
também mudando a natureza, inventando ferramentas e criando plantas,
domesticando animais e enganando as intempéries.
Tanto mudaram que aprenderam a viver em lugares quase inóspitos,
sem precisar mais mudar a cor da pele e o tamanho das pernas. Para isso,
foram mudando a natureza e a terra, até que, momento de rara infelicidade,
acharam que poderiam prescindir da natureza, confiando apenas em sua ra-
zão, seu conhecimento e sua arrogância. Esta arrogância humana transfor-
mou a relação com a natureza em um conflito globalizado contra o inimigo
não humano. No entanto, este conflito, apesar de imenso e profundo, não
conseguiu unir todos os humanos do mesmo lado e continuou a haver gen-
tes aliadas da natureza. Por isso se abriu ou se desvelou outro conflito, muito
mais mesquinho, sem heróis nem grandezas, cínico, que tenta liquidar as
gentes coletivas, forçando-as a se transformarem em individuais. Curiosa
ironia, os coletivos são amigos da natureza e, desta forma, estes dois con-
flitos acabaram se misturando de tal forma e com tal intensidade que já é
difícil entender um sem ver o outro, apesar do esforço gigantesco que faz a
sociedade hegemônica global para escondê-los. Assim, os conflitos se trans-
formaram numa extensa e complexa crise socioambiental.
Este livro conta a história de conflitos com a natureza e com gentes
no Brasil, no Chile, em Chiapas, nos pampas brasileiros e na Argentina. Pode-
riam ser acrescentados mais mil lugares, e nos mil lugares haveria de aparecer
o conflito. Índio, quilombola, mico leão dourado ou floresta úmida lutam para
se manter vivos num mundo que é capaz de tentar transformar em mercadoria
o riso franco do quilombola e o olhar doce do índio, com a mesma desfaçatez
que vende o couro do mico leão dourado e o cerne poderoso da madeira ar-
rancada da floresta úmida. Todavia, não se engane o ingênuo: para uma boa
mercadoria, todos devem estar mortos, mesmo quando parecem vivos!
Cada um ‒ plantas, animais e gentes ‒, porém, tem lutado como
pode, não exatamente para vencer o conflito, porque não pode haver ven-
cedores, mas para cessá-lo e avançar para um tempo em que seja possível
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 13
a convivência entre humanos, animais e plantas. Este livro faz parte dessa
luta, dessa tentativa de rever nossa ira racional sobre tudo que não é huma-
no nem dotado de valor econômico. Embora pareça contraditório chamar
a ira de racional, é exatamente disso que se trata, porque é absolutamente
incompreensível a guerra contra a natureza se não a entendermos dentro
de uma racionalidade econômica. Só há sentido matar o mico leão, arran-
car o mogno e devastar a terra indígena e quilombola porque a razão impe-
le a um crescimento econômico, no qual cada ser humano terá um pouco
mais de riqueza em seu patrimônio, ainda que isso não signifique matar a
fome de todos e abrir um sorriso no coração de cada um.
As histórias contadas neste livro são tristes, algumas assustadoras,
mas todas têm em comum o único sentimento humano que resiste a esta
guerra, que vence as razões e a percepção da realidade doentia, capaz de
despertar solidariedade, fraternidade e amor entre gentes, plantas e bichos.
Todos os textos, ainda que às vezes pareçam estar escondidos, estão carre-
gados de esperança, e é com esperança que devemos ler este livro.
O
livro que apresentamos ao leitor, Conflitos Agrários, seus sujeitos,
seus direitos, pretende promover o debate sobre os sujeitos que vi-
vem na e da terra, seus direitos, seus conflitos e os que titularizam
coletivamente e têm relação com seu modo de viver, seu sustento, sua tradi-
ção, sua cultura, a exploração econômica dos seus conhecimentos tradicio-
nais, o racismo ambiental e a desterritorialização a que foram submetidos
historicamente.
Os artigos extrapolam o discurso liberal da modernidade nos seus
sentidos antropológico e filosófico, cujas bases são o utilitarismo e o indivi-
dualismo e que, na sua concretude, propõem a possibilidade de um conhe-
cimento científico objetivo, uma separação distinta entre sujeito e objeto e
um sentido de não pertencimento a uma realidade concreta e à objetivação
do mundo. As linhas teórico-ideológicas seguidas pelos autores que aqui
depositam suas ideias questionam a falsa percepção de uma realidade so-
cial passível de gestão, de uma realidade social controlável. Mais que isso,
afrontam o olhar que planifica as relações e os conflitos no campo, supondo
que a gestão externa pode dominá-los.
É um livro que traz opiniões transdisciplinares e abre um espaço de
convivência e diálogo entre educadores, geógrafos, cientistas políticos e ju-
ristas. Promove, portanto, a ampliação do estudo dos direitos humanos e
do direito agrário, numa perspectiva mais consentânea com as necessida-
des de especulação da agrariedade para além do abstracionismo concei-
tual e da dogmática jurídica, forjados no pensamento liberal, que afastou
qualquer possibilidade de reconhecimento de bens não mercadológicos, na
pacificação dos conflitos sociais.
16 |
REFERÊNCIAS:
HARVEY, David. The New Imperialism. Oxford: Oxford University Press, 2003.
Introdução
E
ste artigo não trata de uma analogia, mas sim de uma reconceitualização.
Apresento, neste ensaio teórico, sobre as formas e os tipos de territórios,
uma contribuição para a construção do conceito de soberania alimentar.
Convivemos cotidianamente com diferentes territórios produtores e produzi-
dos por relações e classes sociais distintas. Foi a partir da inevitável convivên-
cia com esses tipos e formas de territórios que iniciei meus estudos sobre esse
tema e, neste trabalho, procuro aprofundar essas reflexões e apresentar uma
proposição para as análises das disputas dos territórios. Apresentar a soberania
alimentar como território é um exemplo de como este conceito e o de seguran-
ça alimentar estão disputando as interpretações sobre a questão agrária atual.
O estudo sobre a diversidade de territórios não é uma novidade, pois
vários outros estudiosos do território já escreveram sobre esse tema2. Nessa
proposição, além de tomá-los como referências, apresento uma tipologia de
modo a estabelecer uma leitura da diversidade territorial que produz a multi-
territorialidade. E essa leitura tem como estrutura a produção espacial e terri-
torial por meio das relações sociais, promovidas pelas classes em permanente
conflitualidade na disputa por modelos de desenvolvimento e de sociedade e,
portanto, por diferentes formas de se alimentar. Nesse modo de análise, a re-
Reconceitualizando o território
3 http://www.territoriosdacidadania.gov.br.
4 http://www.iirsa.org.
32 |
Tipos de territórios
Primeiro território
Segundo território
Souza Júnior (2008) estuda a luta pela moradia em João Pessoa, denominan-
do-a luta por territórios. Indígenas, camponeses e sem-teto, na floresta, no
campo e na cidade, disputam territórios para garantir suas existências a par-
tir de suas identidades. Territórios como propriedades nas florestas, no cam-
po e na cidade possuem configuração e modos de usos distintos. Na cidade
são usados predominantemente para moradia. Nas florestas e nos campos,
além da moradia, são usados para a produção de alimentos e mercadorias.
O território recoloca a questão das classes sociais. As classes sociais
são formadas por pessoas que ocupam a mesma posição nas relações so-
ciais de produção em função das propriedades dos meios de produção, de
seus territórios e dos poderes de decisão. Não é suficiente estudar as classes
sociais somente pelas relações sociais. A propriedade é relação social e ter-
ritório, que nos possibilita estudar os territórios das classes sociais.
A afirmação de Haesbaert (2004, p. 20) de que “não há como definir o
indivíduo, o grupo, a comunidade, a sociedade sem ao mesmo inseri-los num
determinado contexto geográfico, ‘territorial’”, nos traz outra questão. Os su-
jeitos produzem seus próprios territórios, e a destruição desses territórios
significa o fim desses sujeitos. O desapossamento também destrói sujeitos,
identidades, grupos sociais e classes sociais. A ideia de acumulação por espo-
liação de Harvey (2003) revela seus próprios limites. E aí está o ponto forte da
luta territorial, da disputa territorial. Sujeitos, grupos sociais e classes sociais
não existem sem seus territórios. Este é o sentido supremo da luta pelos terri-
tórios dos povos camponeses e indígenas. O capitalismo sempre apropriou e/
ou subalternizou outras relações sociais e seus territórios. O desapossamento
significa a intensificação da destruição dos territórios não subalternos e é exa-
tamente nesse ponto que destaco as formas de resistências que emergem dos
campos e dos territórios rurais, muito mais que nas cidades.
As disputas territoriais são diferentes no campo e na cidade. Nas
cidades, os movimentos socioterritoriais lutam principalmente por mora-
dias. Os locais de trabalho e de moradia na cidade e no campo são distintos.
A propriedade camponesa reúne moradia e trabalho em um só território.
Na cidade, com a supremacia do trabalho assalariado, os territórios dos
trabalhadores são suas moradias. Os locais de trabalho são predominan-
temente territórios do capital. Desta maneira, em parte as conflitualidades
entre assalariados e capitalistas não são necessariamente disputas territo-
riais, mas disputas pelas riquezas produzidas pelo trabalho.
42 |
Terceiro território
Território imaterial
5 Temos insistido na diferença entre essas duas formas de organização do trabalho que compõem, in-
clusive, classes sociais distintas. Para um maior aprofundamento deste debate, ver Fernandes (2008b,
2008c).
46 |
Considerações finais
REFERÊNCIAS
HARVEY, David. The New Imperialism. São Paulo: New York, 2003.
LACOSTE, Yves. A Geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra.
Campinas: Papirus, 1988.
MORAES, Antonio Carlos Robert. Bases da formação territorial no Brasil. São Pau-
lo: Hucitec, 2000.
PALAU, Tomás et al. Los refugiados del modelo agroexportador: impactos del mo-
nocultivo de soja en las comunidades campesinas paraguayas. Asunción: BASE:
Investigaciones Sociales, 2007.
PEET, Richard. Geography of Power: the making of global economic policy. Lon-
don: Zed Books, 2007.
RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia do Poder. São Paulo: Editora Ática, 1993.
RAMOS FILHO, Eraldo da Silva. Questão agrária atual: Sergipe como referência
para um estudo confrontativo das políticas de reforma agrária e reforma agrária
de mercado (2003 – 2006). Tese (Doutorado em Geografia) ‒ Programa de Pós-
Graduação em Geografia, Universidade Estadual Paulista, câmpus de Presidente
Prudente, 2008.
SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova. São Paulo: Hucitec, 1978.
52 |
SOUZA, Marcelo José Lopes. O território: sobre espaço e poder, autonomia e de-
senvolvimento. In: CASTRO, Iná Elias; GOMES, Paulo Cesar Costa; CORRÊA,
Roberto Lobato (Orgs.). Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1995.
SOUZA JR., Xisto Serafim de Santana. A participação dos movimentos sociais ur-
banos na produção do espaço urbano de João Pessoa – PB. Tese (Doutorado em
Geografia) ‒ Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Estadual
Paulista, câmpus de Presidente Prudente, 2008.
VIA CAMPESINA. The right to produce and access to land. Via Campesina: Rome,
1996.
A EXPANSÃO DO CAPITAL NO CAMPO E A REPRESSÃO
POLÍTICO-JUDICIAL AOS MOVIMENTOS CAMPONESES
NO BRASIL E NA ARGENTINA
Rubens Souza1
Mariana Romano2
Introdução
O
aprofundamento da análise da forma e do conteúdo de processos
judiciais criminais no Brasil e na Argentina tem ampliado a com-
preensão sobre a tentativa de repressão política no campo desses
países. O intercâmbio entre pesquisadores dessas nações dá-se no bojo do
“Projeto Conjunto de Pesquisa entre Brasil e Argentina”, que é parte do
Programa de Cooperação Científica Internacional Mercosul, aprovado pela
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)
durante o processo seletivo 2010-2011. Os estudos vinculados a esse proje-
to têm permitido observar que o processo de repressão político-judicial a
movimentos camponeses extrapola as fronteiras nacionais.
O presente estudo parte da interpretação da expansão do capital
no campo, combinada com a repressão política, reflexo das conflituosida-
des manifestadas em diferentes modelos de desenvolvimento tanto para
o caso do Pontal do Paranapanema, em São Paulo, Brasil, como para o
caso do Departamento Rio Seco de Córdoba, na Argentina. Em seguida,
analisa a característica estrutural de acumulação por desapropriação de
terras e a expansão do capital no campo da Argentina e no Brasil. Adiante,
este trabalho tece considerações sobre a atuação do Estado nos dois paí-
1 Professor de Educação Básica no Distrito Federal e pesquisador do Núcleo de Pesquisa, Projetos e Es-
tudos de Reforma Agrária (Nera), da Universidade Estadual Paulista (Unesp), câmpus de Presidente
Prudente (SP). E-mail: romaossp@yahoo.com.br.
2 Pesquisadora do Centro de Estudios Avanzados (CEA) Universidad de Córdoba, Argentina. E-mail:
romanomarian@yahoo.com.ar.
54 |
3 O estudo inclui uma pesquisa das causas de ocupações de terras na jurisdição de Dean Funes, no
Departamento Rio Seco, num total de 53 sentenças (ROMANO, 2011).
60 |
pela espoliação, que tem por base a expropriação. Esse fato também trans-
forma o mundo do trabalho por conta da precarização das relações em seu
meio, com a destruição consequente dos territórios camponeses (HARVEY,
2004). Neste estágio atual de acumulação, a recriação de relações não capi-
talistas de produção é um devaneio, e a produção para a subsistência é uma
insanidade. Logo, o capital cria subterfúgios para eliminar esse tipo de pro-
dução, e a repressão política aos camponeses é um trunfo a seu favor, haja
vista o controle territorial consolidado pelos agentes latifundiários e pelo
agronegócio em ambos os países (HARVEY, 2004). Desta forma, a confli-
tuosidade de camponeses versus latifundiários e do agronegócio, de certa
forma, confronta a prerrogativa de acumulação por espoliação elaborada
por Harvey (2004), considerando-se a negligência às disputas territoriais
verificadas tanto em Córdoba quanto no Pontal do Paranapanema, que
tem na repressão política aos camponeses uma das dimensões evidencia-
das desse conflito.
É importante referenciar aqui outra obra por sua consequência, pro-
fundidade e originalidade: A acumulação do capital: contribuição ao estu-
do econômico do imperialismo, de Rosa Luxemburgo (1985), que aponta
a usurpação praticada pelas nações de capitalismo avançado contra países
como a Argentina e o Brasil. Segundo Loureiro (2009), a autora elabora sua
tentativa de explicação da acumulação de capital com base na estratégia ca-
pitalista de converter antigos direitos e bens públicos em mercadorias. Nes-
te estudo, verifica-se que, na questão da terra, os movimentos camponeses
resistem a essa nova forma de acumulação do capital tanto na Argentina
quanto no Brasil (LOUREIRO, 2009). A violência exercida pelo capital, em
sua característica estrutural de acumulação por substituição nesse avanço –
entendida naquela época como um processo de militarismo, sinal bastante
atual de sua obra –, vem combinada atualmente com formas sofisticadas de
obstrução do avanço da participação e construção de outro modo de vida,
que é a repressão política aos camponeses. Luxemburgo (1985) assume que,
mesmo na plenitude de sua expansão, o capital não pode prescindir da exis-
tência concomitante de camadas e sociedades não capitalistas. Desta manei-
ra, o capital não existe sem a presença dos meios de produção e da força de
trabalho de toda parte para desenvolver e ampliar sua acumulação. Disso re-
sulta uma tendência incontrolável do capital de se apossar de todas as terras
e sociedades (LOUREIRO, 2009).
62 |
Cereais
Áreas de cultivo Variação
e oleaginosas
Censo de 1988 Censo de 2002 Área (ha) Percentual
Milho
1.854 5.049 3.195 172%
Trigo 30 16.391 16.361 54.537%
Sorgo em grão 4 906 902 22.550%
Soja de
675 36.378 35.703 5.289%
primeira
Soja de
0 7.196 7.196 7.196%
segunda
4 Observa-se um incremento de 1.600% na revelação das causas de ocupação realizadas em Dean Funes
no período compreendido entre 1988 e 2008.
5 Informe da Missão Fian International. Referência à problemática camponesa na Província de Córdo-
ba, ano de 2004.
6 Romano (2010) menciona a Execução n. 3084/2006, que constitui parte da Investigação Geral sobre
Uso Sustentável da Terra, e a Execução n. 6062/2003. Ver: http://www.dpn.gob.ar/main.php?cnt=a-
rea&id=44&area=1.
7 Uma missão integrada por cinco representantes visitantes do Noroeste Argentino (NOA) com o ob-
jetivo de investigar e documentar a situação dos direitos humanos nas paisagens rurais onde vivem
camponeses e indígenas das províncias de Santiago de Estero, Jujuy, Catamarca, Mendoza e Córdoba.
A missão é composta pela Cátedra UNESCO de Sustentabilidade da Universidade da Catalunha, En-
genheiros Sem Fronteira (ISF), Espaço Social de Formação na Arquitetura (ESFA), Setem Catalunha,
Educação para a Ação Crítica (EdPAC) e o Grupo de Cooperação do Campus de Terrassa (GCCT).
Segundo Romano (2010), o informe denuncia o grau de responsabilidade do Estado argentino na
violação de suas obrigações contraídas na matéria de Direito Internacional para ratificar os tratados
como o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), o Convênio 169
70 |
A Província conta com um sistema legal que vai cobrir os direitos dos
titulares, que também são sujeitos de direitos, são os guardiães naturais
da preservação dessas florestas. Somente esta legislação seria desrespei-
tada, como se denuncia no presente informe, pelas dificuldades para o
acesso a justiça por parte dos campesinos, pela falta de dinheiro para
pagar seus advogados, por ignorância, pela ação inescrupulosa de al-
guns profissionais, pela ação francamente irregular de quem tem que
administrar a justiça (EXECUÇÃO nº 3084/2006. Defensoria Pública
da Nação apud ROMANO, 2010, p. 13).
da OIT, entre os mais importantes, e foi apresentado para o Alto Comissariado da ONU para os Di-
reitos Humanos em Genebra.
8 Organização internacional de direitos humanos com status de consultora permanente da ONU. Fun-
dada no ano de 1986, conta com cinquenta países membros. Informe da Missão de Investigação da
Argentina. Fian International e a Via Campesina. Documento FIAN D37s. http://www.fian.org/re-
sources/documents/others/informe-de-la-mision-de-investigacion-a-argentina/?searchterm=d37s.
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 71
9 Apresentação desenvolvida no Encontro Nacional sobre: “Apoio a Gestão Institucional para Facilitar
o Acesso a Terra e Serviços Básicos, com fins de Seguridade e Soberania Alimentar e de Uso Susten-
tável dos Recursos do INTA”. Pedido de Informes Expediente: 0160/L/08 – Leg. Adela Coria – Pedido
de Informes Expediente: 1228/L/08 – Leg. Adela Coria – Pedido de Informes Expediente: 0845/L/08
– Leg. Nadia Fernández.
10 Entrevista realizada com o presidente e o coordenador da Unidade Executora de Saneamento de
Títulos da província, em 15 de outubro de 2010.
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11 Como o trabalho completo apresentado na XII Jornada do Trabalho de 2011. Disponível em: http://
www4.fct.unesp.br/ceget/ANAISXII/GT2/TRABALHOS/GT_2_40_Rubens_dos_Santos.pdf .
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 73
14 As fontes judiciais em que se baseia essa relação de criminalização são as seguintes ações criminais:
“ALLENDE JUAN MEDARDO e outros, acusados de Danos Qualificados”: 11 imputados penais;
“AREVALO GRACIELA DEL VALLE e outros, acusados de Ocupação”: 8 imputados penais; “GO-
DOY ALCIRA OCTAVIANA e outros, acusados de Impedimento Funcional”: 3 imputados penais;
“DIAZ PEDRO BENITO e outros, acusados de Perturbação de Posse”: 7 imputados penais; “BUSTA-
MANTE ROBERTO, acusado de Roubo”. 3 imputados penais. “ORTIZ e outro, acusados de Ocupa-
ção”: 4 imputados penais. “ORELLANO DE BUSTAMANTE e outros, acusados de Ocupação”: 7 im-
putados penais; 4 imputados penais. “NUÑEZ CLAUDIO RUBÉN e outros, acusados de Ocupação”:
3 imputados penais. “CALDERÓN IVAN e outros, acusados de Ocupação”: 3 imputados penais,
entre outros. Todas as causas estão radicadas nos tribunais do interior da província, jurisdição de
Dean Funes, Cruz Del Eje e Villa Dolores.
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 85
15 O caso da criminalização dos campesinos que integram o MOCASE tem sido analisado por Barbetta
(2005) e Domínguez (2005).
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Martinópolis,
Indiana,
Martinópolis N/I N/I
Guachos (distrito) e
Tecaindá (distrito)
Mirante do Paranapa-
nema,
Mirante MST,
Cuiabá Paulista
do Paranapanema MST DA BASE e 14
(distrito) e
N/I
Costa Machado
(distrito)
Pirapozinho, Estrela
do Norte,
MST,
Narandiba, Tarabaí e
Pirapozinho MST DA BASE e 8
Itororó do
N/I
Paranapanema
(distrito)
Presidente Bernardes,
MST e
Emilianópolis,
Presidente Bernardes N/I 8
Araxes (distrito) e
Nova Pátria (distrito)
MAST, MST DA
Presidente Epitácio Presidente Epitácio 21
BASE e N/I
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 87
Presidente Prudente,
Sandovalina,
Alfredo Marcondes,
Álvares Machado,
Anhumas,
MST DA BASE e
Santo Expedito,
Presidente Prudente N/I 3
Ameliópolis (dis-
trito),
Eneida (distrito),
Floresta do Sul
(distrito), Montalvão
(distrito)
Presidente Venceslau,
Presidente Venceslau MST e
Caiuá e 1
MST DA BASE
Marabá Paulista
16 Para maior informação sobre repressão a protestos na Argentina, ver Gargarella (2001; 2005), Zaffa-
roni (2003), CELS (2001; 2002), entre outros.
88 |
Considerações finais
17 Na atualidade, vemos com preocupação esta distorção do sistema judicial ao tentarmos atribuir a
prerrogativa de intervir em qualquer conflito político que se submete a sua jurisdição, como foi o
caso da amplamente debatida Lei da média na Argentina, que tenta “anular” a partir de demandas
cautelares apresentadas ao Poder Judiciário.
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 89
res sociais, que diminui desigualdades. Assim, este estudo constatou que o
sistema judicial criminaliza seletivamente e faz imputações, judiciarizando
conflitos sociais, econômicos e políticos. Partiu-se das heterogeneidades
culturais, produtivas e sociais, que conformam nossa sociedade pluralista
e variada (ROMANO, 2010); destacou-se a ação das organizações da so-
ciedade civil, das associações ambientalistas, das organizações campesi-
nas e indígenas, em que as representações, ideologias e discursos sociais
hegemônicos, associados ao domínio territorial, se reproduzem de uma
concepção como direito absoluto a uma formulação que integra os direitos
comunitários. Nesse movimento, o direito de propriedade se torna sujei-
to de uma ordem política democratizante e desmercantilizante (SANTOS,
2007), que tende a regular o uso e o domínio que, condicionados ao social,
perdem sua dimensão de direito absoluto de uso privado e, condicionados
aos requisitos ambientais, perdem sua dimensão de direito absoluto sobre a
natureza (ROMANO, 2010). Indicou-se o debate que conduz a conceituar
a propriedade privada da terra como um direito cada vez menos privado
– regulado no Código Civil – e cada vez mais público. Desde essa perspecti-
va, é inevitável o debate em torno da função social da terra, em atenção aos
múltiplos valores que essa função integra para a sociedade em seu conjunto
e para as gerações futuras.
REFERÊNCIAS
FELICIANO, Carlos Alberto. Pela retomada das terras públicas do Pontal do Pa-
ranapanema. Boletim Dataluta, Presidente Prudente, out. 2011. Disponível em:
<http://www4.fct.unesp.br/nera/boletimdataluta/boletim_dataluta_10_2011.
pdf>. Acesso em: 04 out. 2011.
REDE BRASIL ATUAL. Brasil: 2011. [s. l. s. n], 2011. Apresenta informações digi-
tais temas de política, cultura, educação. Disponível em: <http://www.redebrasila-
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Tribunais, 2000. 448p.
Pedro Casaldáliga
(Confissões do Latifúndio)
Introdução
N
ão se pode falar em função socioambiental da terra sem se pensar
no mês de abril, o abril vermelho. Essa cor primária está associada
à ideia de revolução, ação e transformação em várias bandeiras e
também à violência disseminada no campo, em decorrência das disputas
1 Mestre e doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora titular na Universida-
de Federal de Goiás e professora na Universidade de Ribeirão Preto.
2 Mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás. Professora na Faculdade de Direito
de Jussara.
94 |
Das decisões liminares, foi unânime nos casos a não realização de au-
diência de justificação para a concessão ou não do pedido liminar nas
ações possessórias. Em regra, provados os requisitos da: a) posse; b)
a turbação ou o esbulho praticado pelo réu; c) a data da turbação ou
do esbulho e; d) a continuação da posse, embora turbada, na ação de
manutenção; a perda da posse, na ação de reintegração, e tendo o fato
constrangedor da posse ocorrido antes de um ano e dia, poderá o juiz
deferir liminarmente a reintegração ou manutenção na posse, sem ouvir
a parte contrária, expedindo o respectivo mandado (TÁRREGA; MAIA;
FERREIRA, 2012, p. 63).
3As ações possessórias estão previstas, nos artigos 920 a 933, do Capítulo V, do Código de Processo
Civil (Lei n. 5.869, de 1973), e preveem a proteção legal da propriedade, por meio de manutenção da
posse, a reintegração e o interdito proibitório, além de condenação por perdas e danos e desfazimento
de construções e plantações.
100 |
As lutas
5 Conforme a Lei Complementar n. 76, de 6 de julho de 1993, que dispõe sobre o procedimento con-
traditório especial, de rito sumário, para o processo de desapropriação de imóvel rural, por interesse
social, para fins de reforma agrária (BRASIL, 1993).
104 |
6 Todos os dados utilizados nesta pesquisa, seja quanto ao número de ocupações de terras, conflitos
agrários e mortes no campo, tiveram como fonte o Caderno de Conflitos editado a cada ano pela
Comissão Pastoral da Terra (CPT). Disponível em:< http://www.cptnacional.org.br/index.php/publi-
cacoes/conflitos-no-campo-brasil>.
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 105
7 Processo n. 125/2009, com decisão proferida pela juíza Edleuza Zorgetti Monteiro da Silva, da Co-
marca de Cuiabá.
108 |
Considerações finais
REFERÊNCIAS
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Veintiuno, 2002.
______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei
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Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 111
______. Superior Tribunal de Justiça. Edcl no Agrg no RESP 255.170/sp, Rel. Mi-
nistro Luiz Fux, primeira turma, DJ 22/4/2003.
______. Superior Tribunal de Justiça. Resp 843.036/pr, rel. Ministro José Delgado,
primeira turma, DJ 9/11/2006.
______. Superior Tribunal de Justiça. Resp 745.363/pr, rel. Ministro Luiz Fux, pri-
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-stedile-massacre-de-caraj%25C3%25A1s-e-o-pacto-do-latif%25C3%25BAndio-
com-o-poder-judici%25C3%25A1rio>. Acesso em: 17 abr. 2013.
Pamela Caro2
Introducción
L
a sociedad rural chilena, a partir de los años 60, fue testigo de una
serie de transformaciones que estremecieron a las viejas instituciones
agrarias. Los cambios en la estructura de la tenencia de la tierra y
posterior reconversión productiva producida en el marco de la instauración
del neoliberalismo en la economía en general y en la agricultura en particu-
lar, modificaron las formas tradicionales de producción y la estructura del
mercado laboral.
La descomposición de la hacienda tradicional y casi desaparición del
latifúndio, con la reforma agraria (1964-1973), dio paso a la instauración
de empresas agroexportadoras capitalistas de corte moderno y complejos
agroindustriales, vinculados o pertenecientes a corporaciones transnaciona-
les, transformando las relaciones sociales y técnicas de producción agraria, y
desencadenando la proletarización de la población rural. En las zonas agrí-
colas donde predominaban campesinos y parceleros, surge una propiedad
empresarial y un nuevo tipo de empresario agroindustrial adquiere tierras.
La desintegración del sector reformado contribuyó al crecimiento
del capitalismo agrario, pues los antiguos propietarios que retuvieron una
reserva la capitalizaron y prosperaron bajo el actual modelo económico
(REBOLLEDO, 1997, p. 1-6; KAY, 1995, p. 60-68). Las formas de produc-
1 Artículo inédito elaborado a partir de la investigación doctoral “Encrucijadas entre trabajo y familia.
Contratos de género y transformaciones sociales en temporeros/as del vino en Casablanca y Mendo-
za”.
2 Doctora en estudios sociales y políticos. IDEA/USACH.. Directora Centro de investigación y Estudios
en Trabajo, Familia y Ciudadanía - CIELO, Facultad Ciencias Sociales, Universidad Santo Tomás,
Chile.
116 |
3 Impera una tendencia a la hiper fragmentación de la faena agrícola, prevaleciendo contratos por pe-
ríodos tan breves como siete días, circulando una alta cantidad de contratos y finiquitos que generan
una pérdida de derechos laborales, como el derecho a la indemnización y al descanso pagado. En ma-
teria de remuneraciones, investigaciones recientes han identificado más de una docena de unidades
de pago distintas, fragmentando las modalidades salariales y aumentando la incertidumbre respecto
al monto final. Dichas formas de pago generan una “autorregulación” forzada de la jornada laboral y
un aumento excesivo de los tiempos de trabajo para incrementar el salario (WILLSON, et al, 2009).
4 Entre las actividades productivas que realizaban las mujeres de grupos familiares de inquilinos o de
familias de pequeños propietarios antes de la modernización de la agricultura, se cuentan los empleos
de servicios en casas patronales, ordeñadoras o hilanderas-tejedoras de la hacienda (VALDÉS, 1988),
o desarrollando actividades productivas como la crianza de aves de corral y cultivo de huerto, labores
de hilado, tejido, elaboración de artesanías para el consumo familiar, trueque o comercialización, así
como también actividades de recolección de productos forestales no madereros o del mar (REBOL-
LEDO, 1997, p. 4).
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 117
5 Desde ya consideraremos la tensión que provoca el análisis de Santos (1998, p. 401) que señala que
la entrada al mercado de trabajo les permite a las mujeres salirse de la dominación patriarcal del es-
pacio - tiempo doméstico, pero esta dominación se traslada de este espacio hacia el espacio – tiempo
de la producción, y por ese camino reproduce y amplía, la discriminación sexual contra las mujeres.
6 A lo largo del siglo XX la sociología se ha dedicado a estudiar situaciones estables, desplazando su
centro de interés de las lentas transformaciones de la sociedad y de las estructuras de la personalidad.
Desde la perspectiva de la no segregación, N. Elias (1968) nos propone tratar la relación de los con-
ceptos individuo y sociedad, como dos cuerpos de existencia no separados, y más que considerarlos
en su estado normal de reposo, abordarlos en su carácter de proceso, considerando la idea de una
“sociología del largo plazo”. Por otro lado, propone dejar de aferrarnos a la imagen de homo clausus,
es decir, individuo aislado, como cáscara cerrada, sino que hablar de homines aperti, es decir, sujetos
cuya existencia presupone un referente plural –los seres humanos se manifiestan como pluralidades,
en una sociedad que es un entramado de interdependencias constituidos por individuos- ubicado en
un entramado de interdependencias con otros que nos permita captar la dinámica de los procesos
sociales (1968, p. 16-44). La convivencia de los seres humanos está llena de contradicciones, tensiones
y estallidos, y se realiza en el seno de un grupo humano, de una sociedad. La historia es siempre la
historia de una sociedad, pero sin duda, de una sociedad de individuos (ELIAS, 1990, p. 64).
118 |
7 El término sociedad (industrial) del riesgo, se ha usado para argumentar la imperceptibilidad de los
peligros, su dependencia respecto del saber, su supra-racionalidad, la “explotación ecológica”, en de-
finitiva el paso de la normalidad a la absurdidad (BECK, 1998, p. 15). Santos (2009, p. 241) advierte
que, frente a dicha teoría habría que observar que las formas de ser y vivir en América Latina han
estado permanentemente en tránsito y transitoriedad, cruzando fronteras, creando espacios fronteri-
zos, acostumbrados/as al riesgo (con el cual se ha vivido mucho antes de la invención de la “sociedad
del riesgo”).
8 Posteriormente Castel señala que nuevos riesgos sociales, como el “riesgo dependencia”, “riesgo des-
ocupación” o “riesgo precariedad” se amplifican en un contexto de pérdida de protección social (CAS-
TEL, 2009, p. 31). Por otra parte, análisis recientes desde la sociología del individuo, plantean que las
desestabilizaciones socioeconómicas, especialmente para quienes están en el empleo informal, viven
una fragilidad objetiva, que los conduce a una situación de inquietud posicional. Más que vulnerabi-
lidad se hablaría de inconsistencia posicional, definida no como un riesgo en particular, sino que es
el propio emplazamiento social (“en su conjunto”) el que se percibe como poroso y susceptible
de deterioro (ARTEAGA; MARTUCCELLI, 2011, p. 288). La mayor parte de los individuos,
y aún más quienes pertenecen a empleos precarios, como los/as asalariados/as del sector pri-
mario, siente que su posición es extremadamente permeable al cambio y sujeta al deterioro
social; el sentimiento generalizado es que todas las posiciones pueden sufrir procesos activos
de desestabilización, que instalan una preocupación permanente, bajo una sociedad atrave-
sada por sentimientos plurales de inestabilidad (ARAUJO; MARTUCCELLI, 2012, p. 127).
9 Además las relaciones sociales de la producción se descaracterizan como campo privilegiado de do-
minación y jerarquización social (SANTOS, 1998, p. 316).
120 |
10 Entrevista grupal temporeros, en Informe “Desarrollo humano en Chile rural. Seis millones por nue-
vos caminos”. PNUD. 2008.
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 121
capaz de pasar por todas las fases de las cadenas productivas desempeñando
actividades con características diversas porque cuenta con una calificación
previa obtenida la mayoría de las veces en las unidades domésticas.
12 Gonzalo Falabella y Juan José Rocca, docentes e investigadores de la Facultad de Ciencias Sociales
de la Universidad de Chile. Disponible en: <www.facso.uchile.cl/noticias/2009/investigación_casa-
blanca_fn.html>. Accedido en 30 mar. 2012.
13 Idem.
126 |
Las viñas son las que en la actualidad dan más trabajo en la zona. Al-
gunos, sobre todo hombres y mayores, obtienen la oportunidad de acceder
16 Soluciones habitacionales básicas obtenidas por intermedio de subsidio estatal en el caso de los
locales, o viviendas arrendadas en el caso de los migrantes del sur.
130 |
vos, por una o dos semanas, y las recontratan en octubre. Es una práctica
usada especialmente por contratistas, pues así generan ahorros, pues aun-
que los/as temporeros/as ganen “a trato”, de todas formas hay que pagarles
el salario diario mínimo por día trabajado cuando coincide con un feriado.
Frecuentemente se despide más a las personas de fuera de la comuna, pues
en ellos se incurre en mayores costos de transporte.
La tradición ganadera y de producción de cultivos tradicionales de
la zona configuró un perfil de trabajador agrícola adaptado al trabajo pesa-
do y en condiciones ambientales complejas. Ello explica que la percepción
mayoritaria de los/as entrevistados/as, aún más los que vienen desde el sur,
señale que el trabajo en las viñas, a diferencia de la ganadería, forestal y
actividades mineras, sea una labor más liviana y sencilla.
Trabajadores calificados en los viñedos son los tractoristas, regado-
res y supervisores de labores agrícolas de los/as obreros/as intermediados
por contratistas. Es un personal difícil de cambiar, saben el oficio por lo que
tienen un alto reconocimiento y se generan relaciones de confianza.
tratistas, sobre todo los que vienen sólo por la temporada desde fuera de la co-
muna. Sin embargo, los/as obreros/as rurales locales mantienen trayectorias
continuas, a veces con un solo contratista, y trabajando en pocos fundos. Los
mecanismos de reclutamiento de trabajadores/as son básicamente informales
y orales. “Todos trabajan con contratistas y se van dando el dato, que éste
trabaja acá y está por allá” (Silvia, 35 años, temporera viñas).
Las viñas desconocen y no se hacen cargo de las faltas de los contra-
tistas, lo que hace sostener entonces que la responsabilidad solidaria de la
ley de subcontratación, quiso establecer, no funciona en la práctica, dado
que, la corta duración de los empleos, el desconocimiento del empleador
director y la rotación de contratistas dificulta reaccionar ante malas prácti-
cas empleadoras y denunciar a ambos actores empleadores de la infracción.
Los/as temporeros/as intermediados tienen peores condiciones am-
bientales y de seguridad laboral y social, que los/as temporeros/as directos,
y ambos a su vez que los de planta (indefinidos). Cuando la empresa mejora
su infraestructura es un beneficio del que gozan los permanentes y directos,
o los temporales directos, como los comedores, pero no los subcontratados.
Además alegan que sus empleadores no les pagan las imposiciones ni les
dan implementos y herramientas para trabajar.
Frente al actual gobierno de centro derecha, han bajado los niveles
de denuncia y fiscalización. Esto porque las actuales autoridades no han
enfatizado en que la denuncia puede ser anónima para proteger al trabaja-
dor/a, que ya labora en un entorno sumamente fragilizado por la condición
estructural estacional del empleo. Además como operan las listas “negras”,
no se están atreviendo a denunciar.
Una de las prácticas reñidas con las normas legales, usada amplia-
mente por los contratistas para conseguir un salario mayor, es la disparidad
en el cálculo que estos realizan en relación al cálculo que hacen los propios
trabajadores/as. En la confusión y dado el mayor poder de los contratistas
prima lo establecido por estos. Adicionalmente no pagan semana corrida,
un derecho del trabajo agrícola, dado que siempre se paga “a trato”, por lo
tanto día trabajado es día pagado.
Así como no pagan semana corrida, los contratistas tampoco toman a
trabajadores/as en fechas cercanas a los festivos, como fiestas patrias o fin de
año, fechas en que los trabajadores/as tienen “libre”, pero sin pago, a cuenta
de sus propios recursos. Sólo dejan a algunas personas, para no quedar sin
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 135
gente. En términos generales los contratistas son peores empleadores que las
empresas o productores directos. Además se agudizan los problemas de se-
guridad en el trabajo, con el manejo de plaguicidas y con la precariedad en el
transporte. En caso de accidentes, estos pseudo empleadores frecuentemente
intentan evadir responsabilidades, especialmente las referidas a la protección
de la maternidad, porque simplemente las mujeres no son vistas como suje-
tas trabajadoras con derechos particulares.
La situación descrita genera obviamente que el trabajador/a de con-
tratista no establezca una relación de fidelidad con su empleador, actitud que
observamos en este estudio, sostienen más las mujeres que los hombres. Ya
dejaron de obedecer como “corderos” según ellas mismas señalan, por ejem-
plo “si está malo el trato se van no más” (Fernanda, temporera, 48 años). Por
lo general se cuenta con más de un contratista como opción laboral.
Existe coincidencia en personas de distinta generación, trabajadoras
permanentes de fundos productores y de viñas, que además de ser “malos”
empleadores, el servicio que prestan los contratistas es de mala calidad. La
pregunta entonces es por qué las viñas usan esta modalidad. La respues-
ta está en el ahorro indirecto en costos laborales. Aunque una dirigente
explica que a largo plazo los supuestos ahorros, se transforman en costo
y recarga de trabajo especialmente para los permanentes, pues son los en-
cargados de “repasar” o remendar los errores o falencias dejadas por los/as
temporeros/as de contratistas, grupos compuestos por personas diversas,
muchas inexpertas y sin conocimiento especializado de la labor.
Sin embargo, es la modalidad de pago más que el tipo de empleador,
el factor que influye preponderantemente en la menor calidad del trabajo
realizado, pues la rapidez para podar el mayor número de hileras o co-
sechar el mayor número de tarros, y así obtener un ingreso más alto, no
necesariamente va acompañado de pulcritud en la realización de la tarea.
Fundos que ya conocen esta realidad, la enfrentan responsabilizan-
do a personal de planta, encargado de la supervisión del trabajo de los/
as obreros/as intermediados para evitar que el personal permanente deba
corregir el trabajo mal realizado, y así hacer dos veces el mismo trabajo. Su
labor consiste en hacer un estricto control de calidad del trabajo realizado,
revisando en forma inmediata y exigiendo su corrección instantánea, an-
tes de pasar a una siguiente actividad. Las funciones que desempeñaba un
trabajador con contratista han ido cambiando. En un principio sólo hacían
136 |
miento del salario (durante 32 años el fundo paga sólo el salario mínimo),
cuestión que es más grave en aquellas empresas donde no existe sindicato
(o sean, en casi todas, pues como será analizado más adelante, hay sólo 5
sindicatos en todo el valle), pues los trabajadores no se logran articular
para demandar colectivamente por el aumento del salario mínimo en ge-
neral o el salario de su empresa en particular. Explicitan que no se sienten
en condiciones de pedir aumento salarial, anticipándose a una contienda
desigual y perdida.
Por el contrario, hacen horas extras como estrategia para aumentar
sus ingresos, convencidos de que es normal, que está bien, naturalizando
esta forma de acceder a mejores salarios, en lugar de luchar por un aumen-
to salarial. Argumentan que es voluntario, pero a la larga lo incorporan
como la única opción de ganar más, convirtiéndose en una obligación e
imperativo, generando como consecuencia una sobre implicación en el tra-
bajo y pérdida de solidaridades obreras (CASTEL, 2009, p. 25)17.
Trabajadores de viñas consolidadas, piden silenciosamente un reco-
nocimiento económico y simbólico del aporte que hacen en las primeras
etapas productivas, que es el inicio de todo el proceso de producción y
comercialización de un vino “premium” que luego viaja a las mejores mesas
del mundo.
Al igual que en todos los fundos y viñas de los que forman parte
los/as entrevistados/as de esta investigación, la política salarial es pagar el
ingreso mínimo a los trabajadores/as permanentes de planta, como regla
general. Sin embargo, también ha pasado a formar parte últimamente de
las políticas, el fijar un salario base y luego incentivos por actividad, ins-
taurándose un complemento entre jornal diario y “trato”. De esta forma un
temporero que por jornal diario gana el salario mínimo, puede aumentar
su ingreso en un 25%, al fijarse parte de sus tareas “a trato por rendimiento”.
Ahora, esta es una posibilidad que no está disponible para todos, sino sólo
para algunos privilegiados, los que están bien evaluados por la empresa, y
en su calidad de permanentes, son en general hombres.
En uno de los fundos una trabajadora que supervisa el trabajo de los/
as intermediados/as, también recibe un incentivo, pagado sólo las semanas
17 Castel señala que una de las metamorfosis del trabajo es el aumento de la competencia entre los
trabajadores, con elementos profundamente desestructurantes de las solidaridades obreras (2009,
p. 25).
138 |
o meses en que hay empleo temporal. Con ese bono puede llegar a un sala-
rio mensual mayor que el mínimo, que si bien es menor que lo que ganan
los temporeros, es más estable, aunque no totalmente, pues no lo recibe los
12 meses del año, sino sólo los meses de temporada. Finalmente, aunque es
empleada permanente el monto de su ingreso depende del empleo tempo-
ral, configurándose la figura híbrida de permanente/temporal.
La antigüedad estaría jugando como un freno al alza del salario. De
acuerdo a los testimonios, lo que el empleador espera es que el trabajador
con muchos años de servicio evalúe que la única manera de ganar más es
trabajando como temporero y finalmente renuncie, así la empresa se ahorra
la indemnización. Es lo que ocurrió con Nelson, de 45 años, que con más
de 11 años de servicio, y ya no poder seguir conciliando gastos familiares
con el salario mínimo, y que además su señora terminaba ganando más que
él, afectando su virilidad, decidió renunciar y en sus palabras “independi-
zarse”, compleja forma de explicar su situación laboral actual, pues sigue
siendo un trabajador asalariado, pero esta vez “a trato”. Sin embargo para él
esto es trabajar independiente, pues lo que hizo fue “tirarse solo” a trabajar
a las viñas como temporero, con la expectativa de ganar más, por la vía de
la auto gestión de un empleo asalariado de manera individual, asumiendo
personalmente todos los riesgos que podría conllevar este nuevo proceso.
En este nuevo empleo gana un 30% más del salario e iguala el ingreso
con su esposa, quien, trabajadora permanente, también ha sido tentada,
incluso por sus propios actuales empleadores, a hacer el mismo cambio. Sin
embargo, ha optado por una posición menos arriesgada para preservar en
la familia, que a lo menos un integrante, mantenga un puesto estable, aun
cuando sea por menos salario.
Otro testimonio del paso “voluntario” de permanente a temporero
es de Joaquín, 45 años. Trabajó como obrero tractorista permanente en una
viña grande durante casi dos décadas. Como su familia se sostenía sólo con
su salario (debido a que su esposa padeció de un cáncer y no trabajó ni tra-
baja remuneradamente), negoció su despido para poder obtener el dinero,
que no pudo ahorrar por sus propios medios desde su salario regular, para
el pie del crédito hipotecario que le permitiría comprar su actual vivien-
da, justificando su salida bajo el argumento de querer ser un “buen papá”.
La misma empresa que lo finiquitó lo recibió después como temporero,
vía contratos sucesivos por obra o faena, asumiendo que se terminaron los
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 139
18 Lo curioso en este caso es que se requiere encontrar empleador no trabajo, en el sentido de espacio
140 |
físico laboral, pues éste es el que les provee de los contactos de lugares de trabajo.
19 El ingreso mínimo es tan mínimo en Chile que no alcanza necesariamente para que las familias estén
por encima de la “línea de pobreza”, pues cuando un sólo miembro de la familia trabaja, el salario
mínimo líquido ($145.600) no alcanza a cubrir la canasta básica -definida en términos absolutos
como un mínimo de ingresos que permita satisfacer las necesidades básicas, estimadas en función
del costo de la canasta de satisfactores de necesidades básicas-, de dos personas en el caso de las zonas
urbanas ($64.134 per cápita, 2 veces la canasta básica de alimentos) y tres personas en las zonas ru-
rales ($43.242 per cápita, 1.75 veces la canasta básica de alimentos). Disponible en: <www.mideplan.
cl>. Accedido em 30 mar. 2012.
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 141
La misma visión ilusoria que se tiene con el salario, se tiene con otros
derechos laborales, como las vacaciones pagadas y otros recursos intangi-
bles como el uso del tiempo de trabajo. El trabajador temporero a trato dice:
“las vacaciones me las puedo tomar cuando yo quiera”. Pero en la práctica
no es así. Por razones de estacionalidad del cultivo, el verano y los meses de
vacaciones escolares están vetados para todos, permanentes y temporales.
Los/as trabajadores/as permanentes, no pueden tomar vacaciones porque
se debe estar cuidando al fruto para que madure antes de la cosecha. Se les
da tres semanas de vacaciones, o cuatro si es que tienen días progresivos,
sólo a partir de mayo. Ya en junio los permanentes están disponibles para
arreglar las estructuras, alambres, palos quebrados y las mangueras.
144 |
Conclusiones
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Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 153
Introdução
O
presente estudo analisa os conflitos agrários provocados pelo
avanço do capitalismo no campo, com ênfase na resistência das
mulheres da Via Campesina,2 frente à expansão da monocultura
do eucalipto no estado do Rio Grande do Sul. Busca-se compreender os
principais fatores que têm contribuído para a ação coletiva de enfrenta-
mento e resistência da mulher camponesa ao modelo de agricultura capi-
talista. Além disso, examinam-se as diferentes formas de criminalização
da luta das mulheres, utilizadas pelo Poder Judiciário, pelo Poder Legisla-
tivo e pelos meios de comunicação de massa. Para esta análise, tomou-se
por referência a pesquisa empírica realizada em março e abril de 2011 no
estado do Rio Grande do Sul3, por meio da história oral (MARRE, 1991;
PORTELLI, 2006; THOMPSON, 1988)4, com membros da Via Campesina,
participação das mulheres na luta social. Este estudo evidencia que a luta
política das mulheres, construída a partir de sua participação no trabalho
do campo e na luta social, é carregada de uma consciência ecológica, de
preservação da vida, do planeta e do próprio campesinato como sujeito
histórico. Nessa luta de classe, as mulheres também avançam na luta histó-
rica contra as diferentes formas de opressão, discriminação e desigualda-
des de gênero.
5 Segundo De’Nadai, Overbeek e Soares (2005), a partir dos anos 1980, a Aracruz Celulose se expandiu
para os estados da Bahia, de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul. Em 2005, a empresa possuía 357
mil hectares, dos quais 247 mil eram utilizados para a plantação de eucalipto. Além dessa área, 58 mil
hectares eram cultivados por meio de contrato com 2.593 agricultores. Como maior produtora mun-
dial de celulose, a companhia exportava 97% de sua produção, especialmente para a Europa (38%) e
os Estados Unidos (36%).
158 |
6 Antes da chegada da companhia, em 1967, havia cerca de quarenta comunidades indígenas distribuí-
das em mais 30 mil hectares. Destas, restaram apenas três, em 40 hectares de terra. Ainda, das 12 mil
famílias quilombolas que viviam no norte do Espírito Santo, em um território de 256 mil hectares,
restaram somente 1.330 famílias, que constituem 32 quilombos (VIA CAMPESINA, 2006b).
7 Em 1996, estudos da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) indicam que 18.000 hectares no municí-
pio de Aracruz, onde a empresa Aracruz Celulose opera, são terras indígenas. Contudo, 11.009 hecta-
res ainda estavam no poder da Empresa até 2010, quando a demarcação das terras indígenas (18.154
hectares) foi ratificada pelo governo brasileiro por meio do Decreto de 08/11/2010 (CIMI, 2011).
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 159
8 Para manter o anonimato, os entrevistados serão citados somente com as iniciais de seu nome.
160 |
9 Compra ou arrendamento de terras em larga escala por grandes potências estrangeiras, visando à
produção agrícola (FERNANDES; WELCH; GONÇALVES, 2012).
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 161
10 O Pampa é considerado um bioma único, visto que ocupa somente um estado brasileiro (CHO-
MENKO, 2008).
162 |
Nós só conseguimos fazer aquela ação [na Aracruz] porque nós sempre
brigamos para estar nos espaços da luta pela terra, de decisão. Mas foi
a ferro e fogo que nós enfrentamos o preconceito, as condições, com
crianças pequenas, até com medo. Algumas companheiras estiveram
na vanguarda, na direção política da luta pela terra. Isto produziu um
aprendizado (N. P., entrevista, 2011).
11A Assembleia de Mulheres é um encontro que precede os congressos da CLOC, desde 1997, e da Via
Campesina, desde 2000.
12De 1995 a 2004, a ANMTR cumpriu um papel significativo na organização e no fortalecimento das
lutas das mulheres camponesas que participavam de movimentos autônomos ou mistos. Posterior-
mente, essa articulação foi retomada pela Via Campesina.
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 167
14A expressão “deserto verde” refere-se ao empobrecimento do bioma nativo causado pela introdução
de plantas exóticas (CHOMENKO, 2008, p. 31).
15 Conferência da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e o Desenvolvimento), de
7 a 10 de março, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 169
A luta da Aracruz trouxe um impacto para dentro e para fora. Nós fomos
criminalizadas pelo governo, pela mídia e pelo judiciário. Mas isto tam-
bém gerou um impacto na sociedade. Em primeiro lugar se criou este
terror; algumas pessoas ficaram contra, outras a favor. Mas trouxe o tema
para a pauta e era isto que a gente queria. Que as pessoas se posicionas-
sem em relação às consequências desse modelo agrícola, baseado na mo-
nocultura e na concentração fundiária, e seus efeitos sobre a agricultura
camponesa e a reforma agrária. Este evento também produziu muitos
resultados dentro do movimento camponês, em particular; a afirmação
das mulheres numa perspectiva feminista e classista. Nós já estávamos
fazendo isso na luta pela reforma agrária, mas ao lado de nossos compa-
nheiros. Mas uma ação desta envergadura surpreendeu os companhei-
ros dos movimentos sociais, não só por causa do tamanho, mas também
pelo conteúdo que esta ação gerou. Mulheres de um setor mais sofrido
da agricultura organizam uma ação desta envergadura. Só mulheres, que
vão atrás de cuidar da geografia, de como chegar lá, de como organizar,
como realizar a ação [...]. A realização de uma ação desta dimensão re-
vela aos nossos companheiros que nós somos capazes de dirigir a nossa
luta (N. P., entrevista, 2011).
16 A Lei brasileira n. 6.634/1979 proíbe a aquisição de terras por estrangeiros em uma faixa de 150
quilômetros da fronteira do Brasil com outros países.
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 171
Nossa ação é legítima. A Stora Enso que é ilegal. Plantar deserto verde
na faixa de fronteira é um crime contra a lei de nosso país, contra o
Bioma Pampa e contra a soberania alimentar de nosso estado, que está
cada vez mais sem terra para produzir alimentos. Estamos arrancando o
que é ruim e plantando o que é bom para o meio ambiente (VIA CAM-
PESINA, 2008).
17As mulheres da Via Campesina fazem a denúncia de que a empresa Votorantim Celulose e Papel re-
cebeu R$ 6.6 bilhões do governo brasileiro para adquirir a Aracruz Celulose. E, mesmo com isenções
fiscais dos governos federal, estadual e de municípios, houve uma demissão em massa diante da crise
do capital, o que contrasta com a promessa de geração de empregos (PONT, 2009).
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 173
ciais do campo e revela uma forte relação entre o aumento da violência física
e simbólica e o desenvolvimento do agronegócio. A primeira ocupação feita
pelas mulheres (o caso da Aracruz Celulose) foi reprimida pelo uso da vio-
lência simbólica, da repressão política, do fechamento dos espaços de orga-
nização das mulheres da Via Campesina, sobretudo as secretarias do MMC,
e da desqualificação política da mulher como organizadora de um protes-
to dessa natureza. “Até de búfalas fomos chamadas” (militante do MST/Via
Campesina, entrevista, 2011).
Nesse contexto, destaca-se o papel da mídia na condenação da ação
das mulheres – por meio da destituição do seu conteúdo político e ambien-
tal e de seu enquadramento como “vandalismo”, “depredação”, “invasão” e
“destruição” – e na vitimização da empresa – com foco nos seus prejuízos
materiais (RODRIGUES, 2009). A esse respeito, J. S., dirigente do MST/Via
Campesina, declara:
Dizem que a gente causou tanto prejuízo, mas o maior prejuízo a po-
pulação nem sabe, e é o que a gente tentou levar para as ruas de Porto
Alegre e dialogar com a sociedade sobre o real prejuízo da plantação do
eucalipto no Brasil. E o que saiu na imprensa. O prejuízo que a Via Cam-
pesina tinha causado. Mas o prejuízo que a empresa deixa para o solo,
para a nação brasileira não se colocava em cheque. Nem um momento.
Só com algumas breves falinhas, e nos espaços de comunicação que não
são da burguesia, que são mais comprometidos (J. S., entrevista, 2011).
Foi violento demais por parte da brigada. Foi a ira da brigada em cima
das mulheres e crianças. Foi uma batalha campal. Foi assim um mo-
mento de muito pânico. Depois, a forma como fomos tratadas. Fomos
colocados num ginásio. Passamos a noite com muito frio, sem roupa,
sem cobertor. Crianças chorando com fome, sede. Marcou muito as
mulheres que participaram lá. Porque foi um momento de muito pâ-
nico. Na medida em que cavalaria avançou, eu acho que saímos de lá
marcadas. Acho que algumas saíram muito apavoradas. Mas por ou-
tro lado, isto mostrou que não estamos mexendo com qualquer coisa.
A luta de classe é isto. Pra defender o capital deles eles fazem qualquer
negócio, como bater em crianças, matar, atirar em mulher. Não há nada
que segura. Eu acho que não dá para dizer que recuou a luta. Acho que
ajudou as mulheres a ter clareza. Foi um momento místico, de muita
força entre as mulheres. Foi de pânico, mas teve muita solidariedade
entre as mulheres (I. L., entrevista, 2011).
18 A ocupação da Fazenda Tarumã foi desfeita violentamente no mesmo dia, e cerca de 250 crianças
que estavam no acampamento foram separadas de suas mães.
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 175
19 No Rio Grande dos Sul, as escolas itinerantes foram aprovadas em 1996, como experiências pedagó-
gicas, pelo Conselho Estadual de Educação, sob o Parecer n. 1.313/1996. Os professores, geralmente,
são membros dos próprios acampamentos, pagos por meio de contrato entre a Secretaria de Educa-
ção e o MST. Essa proposta também foi adotada em outros estados, como no Paraná, em 2003; em
Santa Catarina, em 2004; em Alagoas e no Piauí, em 2007. Para maiores detalhes, ver Camini (2009).
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 177
20 Bahniuk (2011) mostra que a razão afirmada pelo Ministério Público para investigar e fechar as
escolas itinerantes parece não ser o da qualidade de educação desenvolvida pelo MST, como sustenta
o Termo de Ajustamento de Conduta firmado em 2008 entre o Ministério Público do Estado e a
Secretaria de Estado da Educação. Esse termo determina que o estado do Rio Grande do Sul tome as
medidas necessárias para o fechamento dos cursos experimentais nas escolas itinerantes.
21 Esta situação fez com que, em 2011, o Setor de Educação do MST lançasse a campanha “Fechar
escola é crime!”.
178 |
forma conseguiu, porque são famílias pobres, que com raras exceções
não recebem bolsa-família. A criança fora da escola, legalmente, perde
seus direitos de compensação. Então os pais não podem abrir mão,
porque tem muitos casos de mães que não são casadas, não vivem jun-
to com seus companheiros. Então é um recurso que é necessário (N. P.,
entrevista, 2011).
Conclusões
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“Quem vai nos ensinar uma história da qual também somos capazes?”
Derek Walcott
A
Constituição brasileira de 1988 refere-se a quilombos em apenas
dois dispositivos. O primeiro, situado no capítulo da educação, da
cultura e do desporto, determina que “ficam tombados todos os
documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos
quilombos” (BRASIL, 1988, Art. 216, § 5o). O segundo, inserido no Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias, afirma que “aos remanescen-
tes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é
reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhe os títu-
los respectivos” (BRASIL, 1988, Art. 68). A regulamentação da titulação
das comunidades quilombolas foi efetuada pelo Decreto n. 3.912, 10 de
setembro de 2001, hoje revogado pelo Decreto n. 4.887, 20 de novembro de
2003, cuja constitucionalidade pende de apreciação pelo Supremo Tribunal
Federal (STF).3
A aparente ênfase colocada nas expressões “reminiscências” e “rema-
nescentes” as associa a resíduo e vestígio. Assim, trazem uma visão estática
de cultura que deve, contudo, ser matizada por uma leitura mais atenta de
outros dispositivos constitucionais, dentro de uma ótica alargada de uma
Constituição que assegura a diversidade étnico-cultural e o pluralismo, em
seu sentido mais amplo.
1 Versão atualizada e parcialmente reformulada de Baldi (2009). As duas primeiras partes, substancial-
mente alteradas, foram publicadas em espanhol sob o título Protección jurídica de territorios quilom-
bolas en Brasil (BALDI, 2010).
2 Mestre em Direito pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), doutorando pela Universidad Pablo
Olavide, em Sevilha, na Espanha; organizador do livro Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita,
lançado pela Editora Renovar, São Paulo, 2004.
3 Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) n. 3.239, Relator: Ministro Cezar Peluso, único voto
proferido.
190 |
4 Para uma perspectiva regional das histórias de dominação e resistência racial na América Latina e os
efeitos para os países de forte presença negra, vide Andrews (2007).
5 As diversas citações de constituições e leis de países hispanoamericanos constantes neste trabalho
foram traduzidas pelo autor.
6 http://www12.georgetown.edu/sfs/clas/pdba/Security/citizensecurity/honduras/leyes/LeyPropiedad.
pdf. Para uma análise das tentativas de alteração de tal situação, veja-se Clavero Salvador (2010).
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 191
7 Rodríguez Garavito & Rodríguez Franco (2010) demonstram o componente étnico dos deslocamen-
tos internos e a reelaboração da questão pela Corte Constitucional. A Corte, por meio da Sentencia
T-025, 22 de janeiro de 2004, declarou, a propósito do deslocamento decorrente do conflito armado,
um “estado de coisas inconstitucional”. A Lei n. 1.148, de 10 de junho de 2012, estabeleceu, por fim,
medidas de assistência e reparação integral às vítimas do conflito armado interno (comunidades indí-
genas, rrom, negras, afro-colombianas, raizales e palenqueras).
8 A lei estabelece direitos não somente de uso amplo das línguas nativas em nomes próprios – antropô-
nimos e topônimos –, no comparecimento perante o Judiciário em sua própria língua, mas também
estabelece diversas normas de proteção, tanto para meios de comunicação quanto para a produção de
material de leitura. No marco de proteção de “diversidade étnica e cultural da nação colombiana” e de
“igualdade e dignidade de todas as culturas que convivem no país”, sobreveio o Decreto n. 2.957, de 6
de agosto de 2010, para proteção integral dos direitos do grupo étnico “Rrom” ou “gitano”.
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 193
9 Disponível em:<http://www.derechoecuador.com/index.php?option=com_content&task
=view&id=4044&Itemid=418>.
194 |
10 Para uma análise da nova Constituição equatoriana, vide, dentre outros, Grijalva Jiménez (2011),
Ávila Santamaría (2011), Andrade, Grijalva Jiménez & Storini (2009).
11A língua garífuna foi incluída, em 2001, como patrimônio oral e imaterial da humanidade. Maiores
informações sobre as lutas da comunidade, vide: http://www.cohre.org/store/attachments/Quilom-
bol@%20-%20NovDez%202006%20-%20Portugu%C3%AAs.pdf. p. 3-4.
12 Interessante observar que, “apesar das condições históricas e ecológicas amplamente semelhantes [as
comunidades] variam em tudo, de idioma, dieta e vestimenta, a padrões de casamento, residência e
trabalho assalariado sazonal”. Vide, para análise de tal situação, Price & Price (2004).
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 195
13 A Suprema Corte de Belize, em 28 de junho 2010 (Claim n. 366, de 01 de junho de 2008), reconheceu
que nem o colonialismo espanhol do século XVIII, nem o britânico do século XIX, extinguiram o
direito indígena à propriedade da terra, hoje com reconhecimento e garantias constitucionais. Mas o
país não assinou a Convenção Americana de Direitos Humanos e rege-se pela Common Law, o que
fez a Corte recorrer, no citado julgamento, a precedentes de tribunais britânicos, australianos e ca-
nadenses. Além disso, a sentença discutiu concessões de títulos por princípios e formas da Common
Law em oposição ao direito indígena, entendendo a necessidade, “tanto para as concessões do Esta-
do quanto da Coroa, da existência de cláusula explícita de extinção do título indígena para que ela
ceda ante pretensões pretéritas ou presentes” (Vide a análise do julgado em Clavero Salvador (2011).
Sentença disponível em: <http://www.belizelaw.org/supreme_court/judgements/legal2/Claim%20
No.%20366%20of%202008%20-%20The%20Maya%20Leaders%20Alliance%20and%20the%20To-
ledo%20Alcaldes%20et%20al%20and%20The%20Attorney%20General%20of%20Belize%20et%20
al%20and%20Francis%20Johnston%20et%20al.pdf>. Acesso em: 29 ago. 2014.
196 |
gidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham
ranchos levantados e nem se achem pilões nele”, o que fora reafirmado na
Provisão de 06 de março de 1741 e em algumas legislações municipais,
como a Lei Provincial n. 157, de 09 de agosto de 1848, da cidade de São
Leopoldo (RS), que fixava o número de dois. Para Alfredo Wagner Almeida
(1999), cinco aspectos eram fundamentais:
Entre nós foi frequente [sic] desde tempos antigos, e ainda hoje se re-
produz, o fato de abandonarem os escravos a casa dos senhores e inter-
narem-se pelas matas ou sertões, eximindo-se assim de fato ao cativeiro,
198 |
14 Nessa obra, ver especialmente a Introdução, p. 9-23, sobre os resultados de investigações arqueológi-
cas em Palmares, consultando-se Funari (1995,1996).
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 199
15 Richard Miskolci (2012) salienta que o imaginário social do Império idealizou o indígena como
símbolo da brasilidade, “ignorando os massacres coloniais dos nativos, ao mesmo tempo em que
desviava os olhos de nossa pálida elite da população formada por negros e mestiços que viviam a
cruel realidade escravagista” (MISKOLCI, 2012, p. 36).
200 |
por meio de compra, elas não podiam ser adquiridas por índios ou por
negros que estavam sendo libertos (ATAÍDE JR., 2006, p. 174-177).
16 Daí a edição da Súmula n. 650 do STF, segundo a qual os incisos I e XI do Artigo 20 da Constituição
não alcançam aldeamentos extintos, ao pressuposto da jurisprudência desse tribunal de que as terras
de tais aldeamentos, extintos antes da Constituição de 1891, perderam seu caráter de afetação “por
uso especial” e passaram à propriedade dos estados, como terras devolutas, na forma do Artigo 64
daquela constituição e, pois, incluídos no conceito do atual Artigo 26, Inciso IV, da Constituição de
1988. Nesse sentido, ver BRASIL (2011).
17 Para uma análise das distintas situações e denominações, ver Almeida (2008).
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 201
18 Almeida (2008, p. 33) salienta que um “aspecto frequentemente ignorado da estrutura agrária bra-
sileira refere-se às modalidades de uso comum da terra”, situações em que o controle dos recursos
básicos “se dá através de normas específicas instituídas para além do código legal vigente e acatadas,
de maneira consensual, nos meandros das relações sociais estabelecidas entre vários grupos fami-
liares, que compõem uma unidade social” (op. cit., p. 133). Justamente por “colidirem frontalmente
com as disposições jurídicas vigentes e com o senso comum de interpretações econômicas oficiosas
e já cristalizadas” (op. cit., p. 134-135), jamais foram objeto de qualquer inventariação.
19 Interessante observar que o mesmo “Directorio que se deve observar nas povoações dos índios do
Pará e Maranhão”, de 1758, ao reconhecer que a introdução do próprio idioma nos povos conquis-
tados é “um dos meios mais eficazes para desterrar dos povos rústicos a barbárie de seus antigos
costumes”, estabeleceu, como um dos primeiros cuidados, “nas suas respectivas povoações o uso da
língua portuguesa, não consentindo por modo algum, que os meninos e meninas, que pertencerem
às escolas, e todos aqueles índios, que forem capazes de instrução nesta matéria, usem da língua
própria das suas nações, ou da chamada geral”. É a institucionalização da língua portuguesa como
idioma oficial, com proibição do uso de todas as línguas indígenas e do “nheengatu”, a chamada
língua geral, que, introduzida pelo clero para a comunicação entre os distintos povos indígenas, era
utilizada inclusive entre os escravos trazidos da África. A dispersão de escravos de diferentes etnias
em distintas fazendas, a fim de evitar agrupamentos, passou, então, a constituir um forte mecanismo
de controle sobre os trabalhadores escravos e uma forma de facilitar a imposição do português como
língua de comunicação obrigatória. Simultaneamente a isso, a manutenção de “índios” e “negros”,
como categorias homogêneas, ocultando a pluralidade étnica, linguística e cultural (ALMEIDA,
2007).
202 |
20 Por pecúlio, entende-se “tudo aquilo que ao escravo era permitido, de consentimento expresso ou
tácito do senhor, administrar, usufruir, e ganhar, ainda que sobre parte do patrimônio do próprio
senhor” (MALHEIROS, 2008, p. 39. § 33). Perdigão Malheiros, a propósito, lembra que “nenhuma
lei garante ao escravo o pecúlio [,mas] se os senhores toleram que, em vida ou mesmo causa mortis,
o façam, é um fato, que todavia deve ser respeitado” (MALHEIROS, 2008, p. 34, § 34).
21 Eduardo Grüner (2010) faz uma análise interessante da especificidade da Revolução Haitiana.
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 203
22 Para uma análise similar, em que se salienta que a secularização foi, também, um processo em que o
espaço público foi-se “purificando” de tudo o que não é nacional ou civilizado, ao passo que o espaço
privado se localizou onde estão os colonizados e as subjetividades racializadas, ver Maldonado-Tor-
res (2008, p. 366-369). Para uma leitura que desmistifica a associação entre secularismo e a defesa dos
direitos das mulheres, veja Scott (2011).
204 |
23 Para a autora, há uma persistente generificação da incógnita imperial e, se, à primeira vista, a “fe-
minização da terra parece não ser mais do que um sintoma familiar da megalomania masculina,
ela também trai uma paranoia aguda e um profundo – se não patológico – sentido de ansiedade e
perda de limites” (MCCLINTOCK, 2010, p. 47-48). Em fevereiro de 2010, Tonya Gonnella Frichner,
do Foro Permanente para Questões Indígenas da ONU, apresentou um estudo preliminar sobre as
consequências para os povos indígenas da teoria jurídica internacional conhecida como doutrina
do descobrimento. Esse documento está disponível em:<http://www.un.org/esa/socdev/unpfii/do-
cuments/E.C.19.2010.13%20ES.pdf>.
24 Camerini (2011) destaca a continuidade discursiva com os argumentos, por parte dos contrários aos
direitos dos quilombolas, de falsidade ideológica ou reforma agrária ilegal, pela conexão que “ocorre
através do tema do quilombo como ilícito ou crime, especialmente contra a ordem econômica, re-
presentada pelo trabalho e pela propriedade privada” (CAMERINI, 2011, p. 98-99). Daí as contínuas
206 |
25 Disponível em:<http://www.stf.gov.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/pet3388CB.pdf>.
26 A reescravização poderia ocorrer tanto por revogação da alforria quanto por escravização ilegal de
descendentes de indígenas, libertos ou africanos chegados depois de 1831 – ano em que se promul-
gou a lei que proibia o tráfico atlântico (GRINBERG, 2006).
208 |
– e das relações jurídicas que engendrou, por extensão – ainda estava bem
viva” (BEVILÁQUA apud GRINBERG, 2002, p. 69).
Em sétimo lugar, porque implica a necessidade de reconhecer a
diversidade étnico-cultural e socioambiental brasileira, em um contexto
constitucional de preservação do patrimônio imaterial, de reconhecimento
da formação cultural diversificada – em que negros e índios são estruturan-
tes – e de distintas formas de conhecimento ambiental. Mais ainda: obriga a
rever a ideia de que a preservação ambiental se dá somente quando inexiste
presença humana.
Não à toa, 75% da biodiversidade se encontram em terras indígenas
e de comunidades ditas “tradicionais”: o respeito à biodiversidade se faz,
também, com a preservação da sociodiversidade. As plantas medicinais
utilizadas pelas comunidades de Oriximiná (PA), por exemplo, estão sendo
objetos de pesquisa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Não se olvide que as comunidades quilombolas são, legalmente, pela in-
ternalização da Convenção da Diversidade Biológica, por meio da Medida
Provisória n. 2.186-16, de 23 de agosto de 2001(BRASIL, 2001),27 depositá-
rias de conhecimento tradicional associado, conforme o Artigo 7o, incisos
II e III. Têm, ainda, reconhecido seus direitos para decidirem sobre o uso
de seus conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético do
País, pois este integra o patrimônio cultural brasileiro e poderá ser objeto
de cadastro, segundo o Artigo 8o, Caput e §§ 1o e 2o, de titularidade coletiva,
assegurado pelo Artigo 9o, Parágrafo Único.28
Em oitavo lugar, porque se trata de afirmação da proteção de patri-
mônio cultural imaterial, como manifestação de modos de “criar, fazer e
viver”, conforme o Artigo 216, inciso II da Constituição Federal (BRASIL,
1988), em ruptura com a visão “monumentalista” ou “arqueológica”. A pre-
servação do patrimônio cultural é muito mais uma questão do presente,
não somente de tombamento, documentação antiga, registros ou inventá-
rios, consoante os termos do Artigo 216, § 1o do texto constitucional bra-
sileiro. E isso tem sido objeto de pouca atenção dos doutrinadores – José
Afonso da Silva é honrosa exceção! –, apesar de a Constituição estabelecer
27 Para uma crítica ao modelo ainda colonial de pensamento subjacente à referida convenção interna-
cional, leia-se Clavero Salvador (2012b).
28 Sobre a discussão acerca de propriedade intelectual, colonialismo, conhecimentos tradicionais e re-
cursos genéticos, vide Clavero Salvador (2012a).
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 209
cemitério, que tem uma relação que não é geográfica, é cultural, é re-
ligiosa? Se eu digo que o cemitério não vale nada e corto no meio, estou
acabando com um valor cultural na comunidade [...] Isso é sagrado
para nós. Então como eu ouso acabar com os cemitérios? E os meus
antepassados, eu não tenho mais direito de cultuar? Tudo há que ser
pensado na delimitação dessas áreas, porque a constituição da territo-
rialidade quilombola extrapola a questão geográfica e administrativa.
O território Kalunga, por exemplo, está em três municípios em Goiás,
que são Monte Alegre, Cavalcante e Teresina. A comunidade extrapo-
la a unidade administrativa geográfica. [...] eu vou cortar a terra? Eu
tiro o espaço para as pessoas se reproduzirem? (ALBERTI; PEREIRA,
2007, p. 310-312, grifos nossos).
29 Vide nota 25. Aplicação similar já fora feita em relação à constitucionalidade das ações afirmativas
(RAUPP RIOS, 2004, p. 36). O autor salienta que o juízo de proporcionalidade, aqui, exige que sem-
pre se busquem, “para alcançar os benefícios gerais necessários, as alternativas menos onerosas do
ponto de vista do dever de superar a situação de subordinação do grupo desavantajado” (RAUPP RIOS,
2004, p. 36), de tal forma que, não havendo esta alternativa, é necessário verificar “se o propalado
benefício geral é mais importante para a sociedade do que a superação da situação da subordinação”
(RAUPP RIOS, 2004, p. 36).
30 Roger Raupp Rios, analisando a jurisprudência do STF sobre o princípio da igualdade, salienta que,
entre 1950 e 1988, “predominaram a condescendência diante de realidades discriminatórias e a de-
soneração argumentativa perante tratamentos díspares” (RAUPP RIOS, 2011, p. 36), versando sobre
questões administrativas e processuais, para, somente a partir de 1988, haver “maior rigor em face de
diferenciações e a emergência do conteúdo antidiscriminatório do princípio da igualdade” (RAUPP
RIOS, 2011, p. 36).
212 |
33 Laudos antropológicos vêm salientando, ainda, a influência dos laços de parentesco na autodefinição
dos quilombolas (CAMERINI, 2011, p. 93).
34 No caso específico analisado, a falta de uma memória vinculada à escravidão, a comunidade inseriu
sua própria história no contexto escravista regional e encontrou nexos de identificação com outras
214 |
Como bem destaca João Pacheco de Oliveira, tal critério tem a van-
tagem de:
A consequência disso foi que “a questão das comunidades negras não foi
contemplada pela literatura que pensou a questão agrária do Brasil, sobretu-
do a partir da década de 1950, quando a luta pela terra se tornou um tema
mais recorrente no espaço público” (GOMES, 2009, p. 176, grifos nossos).
39 “Art. 1o […] Parágrafo Único. Para efeito do disposto no caput, somente pode ser reconhecida a pro-
priedade sobre terras que: I – eram ocupadas por quilombos em 1888; e II – estavam ocupadas por
remanescentes das comunidades dos quilombos em 5 de outubro de 1988” (BRASIL, 2001).
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 217
40 Recorde-se, inclusive, que o Código Imperial previa o crime de “insurreição”, cometido “reunindo-se
vinte ou mais escravos para haverem a liberdade por meio da força. — Penas: aos cabeças, de morte
no grau máximo, galés perpétuas no médio, e por 13 anos no mínimo; aos mais, açoites” (MALHEI-
ROS, 1867).
41Nota 25, § 80, item II.
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 219
42 Caso (§ 49). No mesmo sentido, o voto do Juiz ad hoc, Roberto Caldas: “se aos tribunais supremos ou
220 |
51 CASTILHO, Ela, op. cit., p. 295-299. A possibilidade foi admitida como conveniente no julgamento
do AI n. 2008.04.00.010160-5/PR (Rel. Desembargadora Federal Maria Lúcia Luz Leiria, julg. 01-07-
2008, publ. DE 31-07-2008).
224 |
Considerações finais
52 Foi o que sucedeu quando a Corte Constitucional colombiana, na citada Sentencia C-169, de 2001,
M. P. Carlos Gaviria Díaz, afirmou que os direitos coletivos das comunidades negras, para efeitos de
aplicação da Lei n. 70∕93 (“terras de comunidades negras”) se davam em razão de seu status de grupo
étnico e não da cor de pele, o que equivaleria dizer que “os afro-colombianos que não pertencem às
comunidades negras sofrem uma dupla discriminação: socialmente, por serem negros em termos
raciais, e, legalmente, por não serem suficientemente negros em termos étnicos” (ARIZA, 2009, p.
315, tradução e grifos nossos).
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 225
53 O autor questiona qual será a orientação da Corte Interamericana em relação aos países: (a) “onde
a propriedade coletiva é reconhecida a povos indígenas, mas não a afrodescendentes” (DULITZKY,
2010, p. 30); (b) “onde as regulações constitucionais de direitos coletivos para indígenas são maiores
que os direitos coletivos reconhecidos aos afros” (DULITZKY, 2010, p. 30). A Corte necessita, ainda,
superar a errática aproximação desde a igualdade e a não discriminação, talvez avançando nos ter-
mos de uma igualdade extensiva, conforme destacado em ponto anterior, com base na jurisprudên-
cia da Corte Constitucional colombiana.
54 Os autores ainda enfatizam que as decisões mais recentes da Corte acabam por caracterizar as co-
munidades como anistóricas e “cuja existência supostamente não mudou nos últimos três séculos”
(COSTA; GONÇALVES, 2011, p. 64), e criticam que, ao determinar a criação de um fundo de re-
parações, administrado em parte por estranhos à comunidade, a Corte supõe que “a necessidade de
proteção dos marroons beneficiados deriva, ao mesmo tempo, da representação de sua humanidade
e de sua especial fragilidade [, ou seja,] sob o manto de um discurso humanista, de identidades,
assimetrias e dominações [...] fixas” (COSTA; GONÇALVES, 2011, p. 63). Sobre as consequências
profundas e provavelmente irreversíveis das decisões de indenização em dinheiro, vide Rodríguez
Garavito (2012, p. 57-61).
55 A crítica de Costa (2011) é quanto ao risco, inerente às políticas multiculturalistas de que, “com
intenção de preservar a cultura associada aos afrodescendentes em sua suposta forma originária,
dificultam os processos dinâmicos de intercâmbio e difusão que conferem vitalidade e perenidade às
diferentes formas de expressão cultural” (COSTA, 2011, p. 267).
226 |
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O
caminho da cidadania no Brasil tem sido difícil, sobretudo, na
perspectiva dos grupos que historicamente ocuparam as posições
inferiores na hierarquia social. O objetivo desse estudo é indicar
que as opções feitas no Brasil desde o início do período colonial até a Abo-
lição da Escravidão fundamentaram um modo de concepção da terra que
não muda com a Proclamação da República. Em consequência, desenvol-
veu-se um modelo agrário que contribuiu para ampliar as desigualdades
socioeconômicas e gerou uma distribuição desigual de cidadania por sécu-
los, tanto nos regimes colonial e imperial quanto no republicano. Diversos
são os segmentos sociais e identitários atingidos por esse modelo exclu-
dente e iníquo. Aqui, porém, essa questão será tratada na perspectiva das
comunidades quilombolas.
Esses grupos étnico-raciais organizaram, coletiva e socialmente, os
seus territórios e tiveram como modalidade de utilização dos recursos na-
turais e de produção as “terras de uso comum”, que emergem como ex-
pressão das relações de uso e, consequentemente, de trabalho na terra. Eles
construíram, em diversas localidades dentro de estados brasileiros, formas
complexas de organização, nas quais se interpenetram: os planos originais
de ocupação; deslocamentos diversos; aquisição e sucessão de terras com
interseções sociais, culturais, econômicas, ecológicas, religiosas e políticas,
configurando, assim, um território étnico. Essa situação social se organiza
em parâmetros bastante diferentes daqueles pautados pela lógica capitalis-
1 Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (DCP/UFMG), coordena-
dora técnica do Projeto Formulação de uma Linguagem Pública Sobre Comunidades Quilombolas
(NEAD/OJB/NUQ/CERBRAS). Professora da Unifenas e ISTA.
240 |
ta, pois a sua relação com a terra e com os recursos naturais está informada
por “relações de parentesco e proximidade, configurando uma organização
social particular, essencialmente relacionada à história das comunidades e
ao território” (ZUCARELLI, 2006, p. 72).
O reconhecimento público do direito desses grupos, expresso na
Constituição de 1988 através do Artigo 68 do Ato das Disposições Consti-
tucionais Transitórias (ADCT),2 é um marco no processo de luta local, pois,
desde a Abolição da Escravidão, em 1888, a questão dos quilombos ficou
invisibilizada no cenário político nacional e não houve legislação, até en-
tão, que tratasse dessa questão. No entanto, diversos relatórios antropológi-
cos (GUSMÃO, 1996; 1998; ALMEIDA, 2006; LIMA, 2007; MOTA, 2003)
apontam que esses grupos construíram formas diversas de ocupação do
território em momentos históricos diferentes, constituindo-se em patrimô-
nio histórico e cultural de toda a população brasileira (SARMENTO, 2007).
Apesar dessa riqueza nas formas de existência coletiva, esses grupos
foram tratados de modo excludente até a Constituição de 1988. Durante o
período da Escravidão no Brasil, de 1530 a 1888, é possível indicar a existên-
cia de um aparato jurídico formal que enquadrava essa experiência nos parâ-
metros legais, tal qual exemplifica a determinação do Conselho Ultramarino
de 1740 (MOURA, 1983). A legislação desse período visava a evitar, coer-
citivamente, a possibilidade de que esse evento - fuga para quilombos - se
repetisse. Contudo, feita a Abolição e proclamada a República, não existiu le-
gislação, até 1988, que redefinisse a categoria quilombo ou que repensasse os
desdobramentos dessa experiência no cenário nacional (ALMEIDA, 1996).
Embora, como experiência concreta, continuasse a reproduzir, nas diversas
territorialidades, seus modos de criar, fazer e viver, os quilombos ficaram
invisibilizados no espaço público como questão nacional.
Devido à pressão dos movimentos sociais e à atuação de parlamen-
tares voltados para essa questão (SILVA, 1997), o direito quilombola foi in-
troduzido na Constituição de 1988. Contudo, devido ao modelo de distri-
buição de terras, são inúmeros os conflitos em torno da questão das terras
no Brasil (OLIVEIRA, 2006), tornando o tema da vinculação entre o acesso
2 Esse artigo determina que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocu-
pando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos
respectivos” (BRASIL, 1988). Também os artigos 215 e 216 da Constituição Federal (BRASIL, 1988)
reafirmam esse direito.
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 241
3 Motta (2006) informa que a SRB foi fundada por iniciativa de setores ligados à grande lavoura paulista
em 1919 para defender a grande propriedade (MOTTA, 2006). Barcelos e Berriel (2009) indicam que,
atualmente, a SRB é vinculada à Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA),
órgão máximo de representação do patronato rural.
4 As teorias que estavam em voga na Europa, no final do século XIX, foram pensadas para a realidade
brasileira por teóricos tais como Oliveira Viana. Esse autor recorre a uma análise da formação social
brasileira a partir das diferenças entre os tipos étnicos e psicológicos e confere um lócus quase natural
aos brancos nos cargos dirigentes, pois ele próprio reconhece que a única forma possível de demo-
242 |
cracia no Brasil seria aquela em que as oligarquias esclarecidas realizassem o “governo dos melhores”
(VIANA, 1949, p. 205).
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 243
5 Ruy Cirne Lima (1990) afirma que sesmaria deriva “para alguns, de sesma, medida de divisão das
terras do alfoz; […] para outros, de sesma ou sesmo, que significa a sexta parte de qualquer cousa; ou
ainda para outros, do baixo latim caesina, que quer dizer incisão, corte. [...] Certo é que a constituição
das sesmarias não se fazia, sem preceder à divisão e repartição das terras incultas; a pensão ou renda
estipulada consistia, geralmente, na sexta parte dos frutos; e, por último, o fim, a que atendia para
constituí-las, era o roteamento — o rompimento, pelo arado ou pela enxada, das terras abandonadas.
Sesmeiros, de outra parte, eram denominados os magistrados municipais, encarregados da repartição
e distribuição das terras do alfoz” (LIMA, 1990, p. 19-20).
6 Essa determinação de D. João III (Dinastia de Avis, 1521-1557) estabeleceu a divisão do território
brasileiro – desde o litoral até a linha de Tordesilhas – em quinze faixas de terras.
244 |
7 Nos dois volumes da obra Os Donos do Poder, Raymundo Faoro analisa os elementos do patrona-
to político brasileiro e assim define o patrimonialismo: “A comunidade política conduz, comanda,
supervisiona os negócios, como negócios privados seus, na origem, como negócios públicos depois,
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 245
8 Motta (2009) desenvolveu minucioso estudo, no qual perpassa os modos de funcionamento do siste-
ma de sesmarias em Portugal e no Brasil. Esse estudo indica que o sistema de sesmarias sofreu desvir-
tuamentos no Brasil. A autora afirma que foram feitas tentativas, por parte da Coroa, de regulamentar
a doação de sesmarias, como, por exemplo, o Alvará de 1795, de D. Maria I. Embora esse alvará tenha
sido revogado um ano depois de sua promulgação, os seus 29 artigos tinham o objetivo de regulamen-
tar as concessões de sesmarias (MOTTA, 2009).
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 247
9 Com a Revolução do Porto, em 1820, e com o retorno de D. João VI para Portugal, ocorreram as
primeiras eleições indiretas no País para representar o Brasil nas chamadas Cortes de Lisboa. Foram
eleitos 72 representantes, uma minoria frente aos 130 lusos, mas menos de 50 representantes ousa-
ram viajar até Lisboa (ALENCAR; RAMALHO; RIBEIRO, 1985, p. 91).
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 251
1º) Todos os possuidores de terras que não têm título legal perderão
as terras que se atribuem, exceto num espaço de 650 jeiras, que se lhes
deixará, caso tenham feito algum estabelecimento ou sitio.
2º) Todos os sesmeiros legítimos que não tiverem começado ou feito
estabelecimento nas suas sesmarias serão obrigados a ceder à Coroa as
terras, conservando 1300 jeiras para si, com a obrigação de começarem
a formar roças e sítios dentro de seis anos.
[...]
4º) Haverá uma caixa em que se recolherá o produto destas vendas, que
será empregado nas despesas de estradas, canais e estabelecimentos de
colonização de europeus, índios, mulatos e negros forros (ANDRADA
E SILVA, 2000, p. 80).
10 Dolhnikoff (1998) afirma que “Bonifácio acreditava que a mestiçagem criaria um repertório cultural
comum, em que prevaleceria a superioridade branca sendo, portanto, também um instrumento ci-
vilizador. Assim, por exemplo, julgava ser dever do governo ‘animar por todos os meios possíveis os
casamentos dos homens brancos e de cor com as índias, para que os mestiços nascidos tenham me-
nos horror à vida agrícola e industrial’” (DOLHNIKOFF, 1998, p. 8). Essa população, nacionalizada
através da miscigenação e da integração social, deveria, então, ser devidamente educada e civilizada
por um governo de sábios, uma elite ilustrada, que, justamente por isso, estaria capacitada para tal
(DOLHNIKOFF, 1998).
252 |
Baltasar da Silva Lisboa, que “queria reverter para a Coroa as sesmarias não
efetivamente ocupadas e distribuí-las a pequenos proprietários para ‘abolir
o desemprego de homens e terras’” (DEAN, 1996, p. 165). Outra proposta
que, se aprovada e colocada em vigor, poderia ter resolvido a questão da
situação dos ex-escravos com a abolição é a de Antônio Rodrigues de Oli-
veira. Este último juntava:
11 Posteriormente, vários textos desse relatório foram reunidos no livro Os Males do Presente e as Espe-
ranças do Futuro (BASTOS, 1976).
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 253
lhantes aos que existiam nos Estados Unidos, como, por exemplo, mapas
das terras e registros, demarcações acuradas e audiências públicas (BAS-
TOS, 1976).
No entanto, após um intenso debate e passados mais de vinte anos do
fim do sistema de sesmarias, os legisladores brasileiros fizeram uma opção
de modernização do País que deixou profundas consequências para os ru-
mos da estrutura fundiária brasileira. A Lei de Terras de 185012 é uma das
responsáveis pela consolidação de um modelo agrário fundiário que prima
pelo latifúndio no Brasil, “decorrendo daí o fechamento da fronteira agrí-
cola e a exclusão do acesso à terra dos negros, mulatos e imigrantes brancos
pobres” (RIGATTO, 2006, p. 57). Dois aspectos devem ser mencionados,
antes de passarmos ao conteúdo dessa lei.
O primeiro é que não se pode esquecer o contexto de mudanças so-
cioeconômicas significativas no qual essa lei foi gestada. Em termos sociais,
é preciso lembrar que, em 1850, com a Lei Eusébio de Queiroz, chegou-se
ao fim o tráfico de escravos, colocando definitivamente na pauta das elites
agrárias a questão da substituição da mão de obra escrava. Em termos eco-
nômicos, havia um crescimento da produção agrícola, e a terra passava a
ter um novo valor no cenário econômico.
O segundo aspecto é que, embora existissem diversos projetos e
muitas alternativas para definir a questão do acesso à terra no Brasil, que
também contemplavam a pequena propriedade agrícola, o que predomi-
nou na Lei de Terras de 1850 foi a vinculação entre terra e mercado, o que
limitou a possibilidade do acesso à terra àqueles que não tivessem recursos
econômicos para adquiri-la. Essa concepção adotada pelas elites econô-
micas e políticas do Brasil estava fortemente influenciada pelas ideias de
Edward Gibbon Wakefield (1796-1862), o que é atestado por vários autores
que estudam essa temática (FREITAS, 1982; GUIMARÃES, 1977; LIMA,
1990; HOLSTON, 2008).
Wakefield (1929) desenvolveu uma teorização por meio da qual as-
sociava a “arte da colonização” aos anseios do mercado capitalista (WA-
KEFIELD, 1929, p. 113). Sua teorização foi desenvolvida em resposta às
tentativas fracassadas do governo britânico para reter trabalhadores imi-
12 A Lei de Terras — Lei n. 601, de 18 de setembro, com seus nove capítulos — foi aprovada duas sema-
nas após a extinção do tráfico de escravos. Ela também ficou conhecida como “Lei do Cativeiro da
Terra”, pois o trabalho era livre, mas a terra era cativa (MARTINS, 1979).
254 |
Assim, lado a lado com as velhas práticas das elites agrárias, o modo
de gerir as propriedades passou por mudanças que impactaram as áreas das
comunidades quilombolas. Rigatto (2006) resume o modo como se pode
pensar, num tempo longo, a questão do direito agrário no Brasil:
13 Segundo Bruno (1997): “É do final dos anos 50 e dos anos 60 e 70 a grande transformação que expul-
sou da terra centenas de milhares de trabalhadores e deu-lhes a face que poderiam ter no mundo das
relações monetarizadas e de mercado, a de operários do campo, migrantes, trabalhadores da cidade”
(BRUNO, 1997, p. VII).
258 |
para homens que viam na terra, para além de seu óbvio valor econômi-
co, um padrão de vida marcado pelo mandonismo e o prestígio social, a
transformação em meros agentes econômicos, à mercê de um mercado
de risco, era insuportável (LINHARES; SILVA, 1999, p. 72).14
14 A reação pró-escravatura deu-se, sobretudo, por parte proprietários de escravos e seus representan-
tes no Parlamento. Conrad (1975) afirma, por exemplo, que o senador baiano José Antônio Saraiva,
que era “comprometido com a reforma eleitoral e um orçamento equilibrado, liderou a defesa do sta-
tus quo, brandindo o voto livre numa das mãos, nas palavras de um crítico, e o chicote da escravidão
na outra” (CONRAD, 1975, p. 200). Os abolicionistas também sofriam ataques na imprensa: o Jornal
O Paiz, do Maranhão, referia-se a Nabuco como um homem “‘sem a autoridade do bom senso, sem a
prudência e o tino de estadista, sem a consciência sã do patriota’. Nabuco, que presumia esse jornal,
‘declama contra a escravidão por ambição de glória, por vaidade somente, e mais para ser aplaudido
do estrangeiro do que por verdadeiro amor à liberdade’” (CONRAD, 1975, p. 200). Além disso, a
reação pró-escravatura revelou-se também nas eleições de 1881, “em que quase todos os candidatos
do partido abolicionista foram derrotados. O novo gabinete, estabelecido no início de 1882, era che-
fiado, na realidade, por Martinho Campos, o deputado de Minas Gerais, que sugerira enfrentar os
abolicionistas de revolver em punho” (CONRAD, 1975, p. 205).
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 261
15 Machado (1994) informa que, no período final da escravidão no Brasil — segunda metade do século
XIX —, os temores em relação às resistências dos afro-brasileiros escravizados na região cafeeira de
São Paulo e fronteiras com o Rio de Janeiro era grande: “Atos grupais de desobediência às regras dis-
ciplinares das fazendas, revoltas organizadas, crimes sangrentos e constantes denúncias de feitiçaria
ocuparam espaço nos jornais, nas crônicas dos viajantes que por essas zonas transitaram, tornan-
do-se a principal preocupação das autoridades mas, sobretudo, alimentaram fortes temores entre a
camada senhorial” (MACHADO, 1994, p. 67).
262 |
16 Gusmão (1998) indica que, nas terras de Campinho da Independência, “as mulheres se destacam em
todas as gerações — Tia Bernarda, Tia Xará, Tia Joaquina — todas com posição definida no quadro
das descendências. Todas lembradas em razão dos bens e dons herdados. Nisso tudo, outras mulhe-
res são tias ou Madrinhas — em geral uma tia materna” (GUSMÃO, 1998, p. 49).
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 263
Considerações finais
17 Esse Decreto está sendo questionado no Supremo Tribunal Federal (STF), pela Ação Direta de In-
constitucionalidade (ADIN) n. 3.239, de 12 de agosto de 2004, proposta pelo então Partido da Frente
Liberal (PFL) – atual Democratas (DEM). Essa ação questiona a constitucionalidade do Decreto n.
4.887/2003 sob a alegação de que este, ao regulamentar o Artigo 68 do ADCT, invade a esfera da lei,
incorrendo, portanto, em “autonomia ilegítima”. O argumento é que, ao dispensar a mediação de ins-
trumento legislativo e dispor ex novo, o ato normativo editado pelo presidente da República invade a
esfera reservada à lei e incorre em manifesta inconstitucionalidade (BRASIL, STF, 2004).
264 |
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Introducción
E
n este trabajo hago un análisis del marco jurídico sobre la Consulta
a los Pueblos Indígenas en El Estado de Chiapas, a partir de un
trabajo anterior, que realicé en 2008 (CRUZ, 2008; 2009). Al final
se hace referencia a casos concretos para demostrar la pertinencia de una
Consulta para los Pueblos Indígenas, siguiendo los parámetros jurídicos
internacionales, y comparándolos con los federales y estatales en materia
de pueblos indígenas y consulta. Estos parámetros jurídicos son el Conve-
nio 169 de la OIT (1989) y la Declaración sobre Derechos de los Pueblos
Indígenas (2007), la Constitución Política de los Estados Unidos Mexica-
nos (CPEUM, 2002) y el marco jurídico estatal. Finalmente, se concluye
que tal cual están los mecanismos e instituciones sobre participación ciu-
dadana en México y en el Estado de Chiapas, son insuficientes y no consi-
deran la diversidad y especificidad cultural de los pueblos indígenas.
Parto de un trabajo anterior (CRUZ, 2008; 2009) en el que señalo que
los Estados están obligados a consultar a los pueblos indígenas tomando en
cuenta sus derechos fundamentales a la tierra, el territorio, la autonomía,
sus formas de organización, a tener un derecho propio, entre otros, recono-
cidos en el Convenio 169 de la OIT y en la Declaración sobre derechos de
los Pueblos Indígenas de la ONU.
1. Adecuada y
apropiadas a las …Además
formas de orga- 1. Información cabal, plena y de buena fe.
nización de los
Pueblos Indígenas.
2. De buena fe. 2. Con carácter vinculante
Es decir, en total son siete requisitos los que debe cumplir una Con-
sulta a Pueblos Indígenas, en la que efectivamente se respete su derecho no
solo a la Participación, o a ser Consultados — para que eventualmente (no
forzosamente otorguen su consentimiento previamente informado) — sino
a que sus derechos internacionalmente reconocidos no sean violentados.
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 273
Consulta para
2 En este sentido es loable la reflexión que James Anaya actual Relator Especial (2009) para los derechos
y libertades fundamentales de los pueblos indígenas hace, pues si bien, reconoce el derecho de estos
ser consultados, en su intento de conciliar intereses, plantea que no tienen derecho de veto sobre los
proyectos que se quieran implementar o se implementen sobre sus territorios (citando al Comité de
Expertos de la ONU, que por cierto son nombrados por los Estados). Lo cual expone un punto de
tensión entre el derecho de los pueblos indígenas a salvaguardar sus derechos, sobre todo a la tierra y
el territorio, y la facultad de los Estados de pasar sobre esos derechos en aras del interés público (sobre
el cual se tienen razonables dudas cuando intervienen en su tendencia, definición, causas y motivos,
los intereses políticos y económicos de determinados grupos de los cuales los indígenas están exclui-
dos). (ONU, 2010). Una postura crítica sobre la Consulta es la de Magdalena Gómez quien señala
que finalmente la Consulta es un derecho de procedimiento que no desplaza ni debería de desplazar
el cumplimiento por parte de los Estados de los derechos fundamentales de los pueblos indígenas
(MARISCAL, 2009).
276 |
2.1. La constitución
3 No se hace mención a la consulta, solo en la parte de exposición de motivos en cuanto a los foros de
discusión que se promovieron para hacerla.
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 277
5 Del Val declaró algo así como: “La preocupación esencial es que con la nueva legislación estemos
haciendo neoindigenismo, es decir, que a partir del nuevo marco jurídico se esté creando una es-
tructura de mediatización de las demandas indígenas que no van a generar ninguna modificación en
las condiciones de vida de dichos pueblos indígenas”, en: Resumen de la Conferencia presentada por
él etnólogo José del Val Blanco, Director del Instituto Indigenista Interamericano, en la reunión de
trabajo de la Comisión de Asuntos Indígenas. Este trabajo se publica a solicitud expresa del Diputado
Efraín Zúñiga Galeana, Presidente de la Comisión de Asuntos Indígenas (DEL VAL, 2009).
282 |
Conclusiones
De esta manera, podemos advertir que todavía falta mucho por ha-
cer para que el marco jurídico chiapaneco esté realmente a la altura de las
exigencias internacionales en materia de derechos humanos, pues su legis-
lación en materia indígena (derechos que también forman parte del Siste-
ma Internacional de Derechos Humanos) deja mucho que desear tanto en
el reconocimiento de derechos como en los mecanismos apropiados para
su cumplimiento y salvaguarda.
De igual forma, los mecanismos de participación ciudadana que es-
tablece el marco jurídico chiapaneco, son insuficientes a la luz de una lectu-
ra de corte internacionalista, incluso frente a los países Latinoamericanos
a los que México veía como los hermanos menores, pues desde su origen
constitucional constriñen al mínimo los derechos de los pueblos indígenas,
mucho más por lo que respecta a su cumplimiento para realmente hacerlos
efectivos, pues se hacen a un lado más de dos décadas de discusión y por
consiguiente de instrumentos jurídicos sobre derechos indígenas porque
no se consideran sus especificidades culturales e históricas en su relación
con el Estado y la sociedad mexicanos y chiapanecos.
De esta suerte, una Ley de Consulta para Pueblos Indígenas que siga
la hechura de los mecanismos de participación ciudadana existentes, no tie-
ne razón de ser y más bien, solo serviría para mantener un estado de cosas
donde se tiene la presunción exaltada de estar a la vanguardia en el tema de
derechos humanos en general (v.gr. Los Objetivos de Desarrollo del Milenio)
y, particularmente de los derechos indígenas (con la arriba citada supuesta
ley —ya que al parecer nunca se promulgó) sin que esto se refleje en acciones
concretas de reconocimiento y respeto a los derechos fundamentales de los
pueblos indígenas: derecho a la tierra y el territorio, a la autonomía, a tener
un derecho propio, a la cultura, al desarrollo (o en palabras de ellos mismos
lekil kuxlejal6 “vida buena” o “bien vivir”, como concepto cada vez más uti-
lizado por los pueblos indígenas y sus organizaciones en oposición al “desa-
rrollo”), derechos fundamentales que son pilares tanto de su pervivencia y
existencia, como de la continuidad y diversidad cultural de la humanidad.
6 Para una revisión de este término en el contexto de la cosmovisión de los indígenas tseltales es impor-
tante consultar la obra de Antonio Paoli (2003).
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 283
Finalmente tal vez, el único camino que queda por lo pronto a los
indígenas, sus pueblos y organizaciones es continuar en la ruta de la mo-
vilización para demostrar razón y fuerza en la lucha por el respeto a sus
derechos fundamentales.
REFERÊNCIAS
______. Eólicos e inversión privada. El caso de San Mateo del Mar, en el Istmo de Tehuan-
tepec Oaxaca. Journal of Latin American Anthropology, Vol. 16, Nº. 2. 2009. p. 257-277.
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tades fundamentales de los indígenas, James Anaya. 2010. Disponible en: <http://www.
politicaspublicas.net/panel/re/docs/378.html?task=view>. Consulta del 18 set. 2010.
P
artindo das premissas de que as novas fontes de produção jurídica de-
verão ser encontradas na própria sociedade (no âmbito urbano e agrá-
rio), nada mais correto do que realçar o processo de regulamentação e
controle social em função das contradições, dos interesses e das necessidades
dos novos sujeitos sociais. Esse direcionamento ressalta a relevância de se
buscar formas plurais de fundamentação para a instância da justiça oficial,
contemplando uma construção comunitária solidificada em plena realização
existencial, material e cultural de atores emergenciais. Trata-se, principalmen-
te, daqueles sujeitos que, na prática cotidiana de uma cultura político-institu-
cional e um modelo socioeconômico particular (estrutura agrária brasileira,
por exemplo), são atingidos na sua dignidade pelo efeito perverso e injusto
das condições de vida, impostas pelo alijamento do processo de participação
e desenvolvimento social, pela repressão e pelo sufocamento da satisfação das
mínimas necessidades. Na singularidade da crise que atravessa as instituições
sociais, degeneram-se as relações de vida cotidiana e pauperizam-se as con-
dições no campo agrário. A resposta para transcender as privações provém
1 Versão revisada de artigo publicado com o título de “Os movimentos sociais e a construção de direi-
tos” (VARELLA, Marcelo Dias (Org.). Revoluções no campo jurídico. Joinville: Oficina, 1998, p. 93-97).
3 Ver WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico - Fundamentos de uma Nova Cultura no
Direito. 3. ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 2001, p. 238. Consultar também: DUSSEL, Enrique
D. Ética comunitária. Petrópolis: Vozes, 1986. p. 96-97; GUTIERREZ, Gustavo. A Força
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 287
Histórica dos Pobres. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 160-161; DE LA TORRE RANGEL, Jesus
Antonio. El Derecho que Nasce Del Pueblo. México: CIRA, 1986. p. 12-19.
4 Constatar, nesse sentido: SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de. Sociologia Jurídica: condições sociais e
possibilidades teóricas. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, 2002, p. 53.
5 Ibidem.
288 |
6 Sobre a natureza e o poder dos movimentos sociais, constatar: TARROW, Sidney. El Poder en Movi-
miento. Los Movimientos sociales, La acción colectiva y la Política. Madrid: Alianza, 1997; SCOTT,
James C. Los Dominados y El Arte de La Resistencia. Pais Vasco: Txalapata, 2003; DALTON, Russell J.
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1992; GOHN, Maria da Gloria. Teoria dos Movimentos Sociais. Paradigmas Clássicos e Contemporâ-
neos. São Paulo: Loyola, 1997; ALBERNAZ, Renata O. & WOLKMER, Antonio C. Pluralismo Jurí-
dico, Estado e Movimentos dos Trabalhadores Sem Terra (MST) no Brasil. Crítica Jurídica. México:
UNAM, v.33, 2012. p.141-178.
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 289
Conclusão
REFERÊNCIAS
DE LA TORRE RANGEL, Jesus Antonio. El Derecho que Nasce Del Pueblo. Méxi-
co: CIRA, 1986.
SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de. Sociologia Jurídica: condições sociais e possibi-
lidades teóricas. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, 2002.
Introdução
O
s principais nortes de nossa atual política agrária foram inaugura-
dos em 1964 pelo Estatuto da Terra. Mas, no que consiste exata-
mente a expressão “política agrária”? A esse problema o presente
texto pretende oferecer uma nova proposição, a partir da distinção entre
os termos agrário, agrícola, rural e rústico. Estabelecido um entendimento
do que seja política agrária, no que significou exatamente a mudança da
política agrária a partir do Estatuto da Terra de 1964? A esse segundo pro-
blema, o artigo tenta apresentar respostas analisando o contexto histórico
da promulgação do Estatuto da Terra.
Gustavo Elias Kallás Rezek (2007, p. 36) expõe como “um grave pro-
blema terminológico à espera de solução” a confusão instaurada pela le-
gislação com os vocábulos agrário, rural e rústico. Concordando com esse
autor, “rural” parece indicar a mera localidade de algo como não situado
na urbs, ou seja, como não urbano. Já este adjetivo identifica algo que se
situa na cidade. Citando Octávio Mello Alvarenga (1985, p. 8), para quem
agrário equivale a ager, antigo terreno romano cultivado ou cultivável, en-
tão agrário seria a terra susceptível de produção (REZEK, 2007, p. 45).
1 Mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás. Especialista em Direito Constitucio-
nal pela Universidade Federal de Goiás. Especialista em Direito Administrativo Contemporâneo pelo
Instituto de Direito Administrativo de Goiás. Procurador do Estado de Goiás.
292 |
Por sua vez, o vocábulo rústico também não se confunde com o rural
e muito menos com o agrário. Ulpiano (apud REZEK, 2007) lembra que
o termo vem do latim rusticus, referente a “terreno não edificado”, onde a
terra se manifesta em sua virgindade. De acordo com Rezek (2007, p. 48),
“Um parque verde no centro da cidade é imóvel rústico, mas não é rural”.
Não é o aproveitamento ou a exploração do imóvel que determina sua não
rusticidade, mas sim o grau de artificialidade do meio:
Grau (1988) lembra que as relações entre o homem e a terra não são uma
ciência, porém constituem o objeto de estudo da geografia humana, esta
sim, uma ciência. Do mesmo modo, o direito pode ser objeto de estudo
de algumas ciências. A ciência que visa especificamente descrever o direi-
to é chamada de Ciência Jurídica ou Ciência do Direito. Pode-se afirmar,
assim, que o ordenamento jurídico é objeto de estudo da ciência do direi-
to (GRAU, 1988). Por meio desta, é possível descobrir e compreender me-
lhor as normas jurídicas. A rigor, o curso superior não deveria se chamar
curso de Direito, mas curso de Ciência Jurídica ou de Ciência do Direito.
Se, por um lado, o direito é normativo e produzido por órgãos dos Po-
deres Legislativo, Executivo e Judiciário, a ciência jurídica é descritiva e
produzida por cientistas.
Nessa ordem de raciocínio, pode-se afirmar que o direito é uno e não
se divide. Mas, no caldo de normas jurídicas, a ciência trata de criar divisões
para facilitar a pesquisa. A primeira e fundamental divisão traçada nos sis-
temas jurídicos romano-germânicos é entre o direito público e o privado.
Tal bifurcação não está no direito em si, mas no olhar que se lança sobre ele.
Tanto que essa divisão é de menor importância na ciência jurídica dos paí-
ses que seguem o sistema da common law. Lá o estudo jurídico não parte da
grande divisão entre direito público e direito privado, mas da distinção entre
“common law e equity” (DAVID, 2002, p. 388).
Aceita a grande divisão doutrinária entre direito público e direito
privado, são delineadas divisões menores da qual resultam os conhecidos
ramos do direito, a saber: constitucional, administrativo, internacional, pe-
nal, tributário, processual, trabalhista, comercial, civil, agrário etc.
A partir disso, a ciência jurídica traça subdivisões menores, identi-
fica instituições e institutos, esboça conceitos e apresenta definições. Fala-
se, então, em política agrária e, dentro desta, em política agrícola, política
fundiária e política de reforma agrária, sempre tentando identificar esses
conceitos com partes específicas do ordenamento jurídico.
É desse tipo de estudo empreendido pela ciência jurídica que certas
correspondências despontam com facilidade, como as referências anteriores
dos arts. 184 e 185 à reforma agrária e dos arts. 188 e 191 à política fundiá-
ria. Contudo, o cientista do direito não pode perder de vista a unidade sistê-
mica deste e reconhecer que os mencionados dispositivos constitucionais ir-
radiam efeitos também sobre as duas outras subdivisões da política agrária.
Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 295
Não por outro motivo, a função social, esquadrinhada pelo art. 186,
perpassa pelas três subdivisões da política agrária e, mais do que isso, se
espraia por todo o ordenamento jurídico. Assim, fica fácil entender que o
art. 189 foca na política de reforma agrária, porém com reflexos na política
fundiária, ao passo que o art. 190 trata em primeiro plano desta, mas tendo
por pano de fundo a política agrícola e a política de reforma agrária.
Por fim, o jurista se depara com o art. 187, que diz tratar da política
agrícola. Cumpre aqui realçar que a ciência do direito não pode ser mera-
mente descritiva, mas deve também ser crítica e propositiva, até mesmo
para auxiliar a futura evolução do direito. Da leitura do art. 187 percebe-se
que, na verdade, ele trata mais do que de uma política apenas para a agri-
cultura. Constata-se facilmente que ele se destina igualmente à pecuária e
seu § 1º chega a enunciar que se incluem no planejamento agrícola as ativi-
dades agroindustriais, agropecuárias, pesqueiras e florestais.
Há uma evidente impropriedade terminológica na utilização do vo-
cábulo agrícola no art. 187 e na designação do capítulo da Constituição
que ele integra. Marques (2009, p. 150) salienta que o problema começou a
partir do Estatuto da Terra (Lei n.º 4.504, de 1964), que ora fala em política
agrária, ora em política agrícola, de forma aparentemente a “adotar uma
nova linguagem, utilizando-se a palavra agrícola para adjetivar a política
destinada a amparar o produtor rural” (art. 1º, caput, e § 2º), mais restrita
do que a política agrária. Ato contínuo, o agrarista da Universidade Federal
de Goiás obtempera preferir chamá-la de “política de desenvolvimento ru-
ral”, como, aliás, fez o Estatuto da Terra em seu Título III, pois pertence ao
campo da economia rural, “destinando-se a todas as atividades agropecuá-
rias e não somente aos misteres da produção agrícola” (MARQUES, 2009,
p. 150). De qualquer forma, o ilustre professor reconhece que “a doutrina
agrarista, ao discutir essa questão, defende o emprego da expressão Políti-
ca Agrária, porque esta envolve conteúdo mais abrangente” (MARQUES,
2009, p. 150). E prossegue, citando lições de Silvia e Oswaldo Opitz, Rafael
Augusto de Mendonça Lima, Raymundo Laranjeira e Emílio Alberto Maya
Gischkow.
A questão agrária passou a ser cada vez mais discutida pela socieda-
de como um possível obstáculo ao desenvolvimento do país.
Conclusões
REFERÊNCIAS
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Conflitos Agrários: seus sujeitos, seus direitos | 305
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Os textos conferem com os originais, sob responsabilidade dos autores.
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