Sunteți pe pagina 1din 426

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Acordos, projetos e programas: uma abordagem antropológica das


práticas e dos saberes administrativos da GTZ no Brasil

RENATA CURCIO VALENTE

Novembro, 2007

1
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA
SOCIAL

Acordos, projetos e programas: uma abordagem antropológica das


práticas e dos saberes administrativos da GTZ no Brasil

RENATA CURCIO VALENTE

PPGAS - UFRJ
Rio de Janeiro, RJ
2007

2
RENATA CURCIO VALENTE

Acordos, projetos e programas: uma abordagem antropológica das


práticas e dos saberes administrativos da GTZ no Brasil

Tese apresentada como pré-


requisito ao Doutoramento em
Antropologia Social no Programa
de Pós-Graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional da
Universidade Federal do Rio de
Janeiro, sob orientação do Prof. Dr.
Antonio Carlos de Souza Lima.

PPGAS - UFRJ
Rio de Janeiro, RJ
2007

3
FOLHA DE APROVAÇÃO

Renata Curcio Valente

Acordos, projetos e programas: uma abordagem antropológica das práticas e dos


saberes administrativos da GTZ no Brasil

Rio de Janeiro, 22 de novembro de 2007.

_______________________________________________________________
Presidente, Prof. Dr. Antonio Carlos de Souza Lima, PPGAS/MN/UFRJ

_______________________________________________________________
Prof. Dr. José Sérgio Leite Lopes, PPGAS/MN/UFRJ

_______________________________________________________________
Prof. Dra. Beatriz Maria Alásia Heredia, IFCS/UFRJ

_______________________________________________________________
Prof. Dra. Kelly Cristiane da Silva, Deptº Antropologia/UNB

______________________________________________________________
Prof. Dr. Aurélio Vianna da Cunha Lima Junior, Fundação Ford

_______________________________________________________________
Prof. Dr. Adriana de Resende Barreto Vianna, PPGAS/MN/UFRJ (Suplente)

____________________________________________________________________
Dr. João Paulo Macedo e Castro, pesquisador associado, DA/MN/UFRJ (Suplente)

4
Ficha Catalográfica

Valente, Renata Curcio


Acordos, projetos e programas: uma abordagem antropológica das práticas e
saberes administrativos da GTZ no Brasil. Renata Curcio Valente – Rio de
Janeiro: UFRJ/PPGAS, 2007.
xv. f380 . 2v.
Orientador: Antonio Carlos de Souza Lima
Tese (Doutorado) - UFRJ/PPGAS/ Programa de Pós-graduação em Antropologia
Social, 2007.
Referências bibliográficas: f. 381-400.
1. Cooperação internacional 2.Administração pública.3. GTZ. 4. Meio Ambiente. 5.
Indigenismo 6. Desenvolvimento I. Souza Lima, Antonio Carlos de. II. Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social. III. Intervenção Tácita ou Cooperação Técnica? Práticas e
Saberes Administrativos de uma Agência Alemã no Brasil.

5
Dedicatória

Dedico esta tese

ao meu filho Gil Pedro,


pela imensa generosidade e sabedoria que traz em si ,
fonte de luz na minha vida,
aos meus pais, Pedro e Sonia, e a meu irmão Flávio,
referências de valores e de amores,
ao Rick, por sua sensibilidade

6
Resumo

A presente tese tem como objetivo investigar as práticas administrativas adotadas


por uma agência governamental alemã de abrangência global, a GTZ, (Deutsche
Gesellschaft für Technische Zusammenarbeit), no Brasil, nos anos 90, particularmente
em políticas governamentais brasileiras para meio ambiente e populações indígenas. Há
mais de quarenta anos atuando no Brasil, mais recentemente, a GTZ tem redefinido sua
orientação de ação de projetos técnicos, tecnológicos e agrícolas para se concentrar na
área de meio ambiente e conservação da Floresta Amazônica, eixo a partir do qual
populações indígenas têm sido contempladas.
A tese se divide em três partes: a primeira busca fazer um panorama em relação às
abordagens teóricas sobre o tema, sobretudo focalizando na perspectiva antropológica. A
segunda parte da tese situa o contexto da produção conceitual e institucional da “política
de cooperação para o desenvolvimento” na Alemanha: do Ministério Federal de
Cooperação Econômica e Desenvolvimento, o BMZ (Bundesministerium für
wirtschaftliche Zusammenarbeit und Entwicklung), que é o núcleo de integração de um
amplo conjunto de instituições entre as quais escolhemos a GTZ por ser a principal no
que concerne à cooperação técnica. Nesta parte, é atribuída especial atenção ao papel e às
trajetórias pessoais dos “peritos técnicos“. Por fim, a terceira parte focaliza os diferentes
modos de intervenção da GTZ no Brasil que são definidos por cooperação técnica.
Tomou-se três eixos de investigação etnográfica: o escritório da GTZ no Brasil e seus
funcionários, um projeto para populações indígenas e eventos públicos organizados pela
GTZ. A pesquisa foi baseada em levantamento e análise documental, além de observação
participante no escritório da GTZ, entrevistas com seus funcionários e a participação em
seminários, eventos comemorativos e diplomáticos organizados pela instituição alemã,
realizados entre 2002 e 2005.

1. GTZ. 2. Meio Ambiente. 3. Indigenismo 4. Cooperação internacional 5.Administração


pública. 6. Desenvolvimento

7
Abstract

The present thesis main objective is to investigate the administrative practises of a


wordlwide institution, the German Technical Cooperation Agency, GTZ (Deutsche
Gesellschaft für Technische Zusammenarbeit), particularly in brazilian governmental
politics for environment and indigenous people. For more than forty years acting in
Brazil, most recently, the GTZ has changed her focus from technological and agricultural
to environment areas, specially to the Amazon Forest conservation, a field where
indigenous people has been included as a cooperation theme.
The thesis has three parts: the first one seeks to stablish a survey of the literature
related to theoretical approachs about the subject treated, technical cooperation, above all
focusing on the anthropological perspective. The second part locates the context of the
conceptual and institutional production of the politics of development cooperation in
Germany. The Federal Ministry of Economic and Development Cooperation, the BMZ
(Bundesministerium für wirtschaftliche Zusammenarbeit und Entwicklung) is the axis of a
large group of institutions from which we chose the GTZ for being one of its most
important institutions and the one that has the governmental attributes to implement
technical cooperation. Special attention is due to the life experiences of some technical
experts. At last, the third part we present an analisis of the different circumstances where
ethnographic research was taken: in the brazilian GTZ office in Brasília and its
employees; a indigenous people project and public events organized by the GTZ. The
research was based on documentary survey and analisis, besides participant observation
at GTZ office and taking part on public events organized by the german institution
between 2002 and 2005.

1. GTZ. 2. Environment. 3. Indigenous Peoples. 4. International Cooperation. 5.Public


Administration. 6. Development.

8
Agradecimentos

A todos aqueles que colaboraram de diferentes formas para a elaboração desta


tese, com entrevistas ou publicações concedidas, e a todas as pessoas muito especiais na
minha vida que estiveram ao meu lado nesse longo processo, sou imensamente grata.
Foram várias as formas de ajuda, que não se limitam ao campo da pesquisa, mas
transcende-o, alcançando aspectos pessoais e profissionais da minha vida em sua
contribuição para que alcançasse este resultado.
Antonio Carlos de Souza Lima, mais do que um orientador, foi para mim um
desses encontros raros. Poucas vezes linear em seus questionamentos, às vezes duros e
desconcertantes, mas certamente precisos e irônicos, fez com que eles funcionassem
comigo como uma força de impulsão diante de minha teimosa resistência em me colocar
como autora e antropóloga. Foi um amigo e um excelente dialogador ao longo de toda a
tese, papel a que se propôs, em clara opção a não ser pedagógico. Além disso, viu com
olhos de raio X minha natureza oscilante, mas ao mesmo tempo persistente, desafiando-
me a combates que não sabia ser capaz de travar ou vencer, fazendo-o sempre com
sabedoria e humanidade. A ele, devo mais que muito.
Ao corpo de professores do PPGAS, especialmente a João Pacheco de Oliveira, a
José Sérgio Leite Lopes e a Ligia Sigaud que me apresentaram um universo de questões e
reflexões instigantes do campo da antropologia.
Gostaria de deixar aqui registrado meu agradecimento a CAPES a FINEP e
FAPERJ, instituições de apoio à pesquisa, cujos recursos foram fundamentais para esta
tese. A Capes, agradeço pela bolsa concedida ao longo de todo o doutorado. Os recursos
concedidos pela FINEP e FAPERJ, por meio de projetos desenvolvidos por meu
orientador, contribuíram em muito para a finalização da tese. Assim, agradeço à FINEP
pelo apoio financeiro viabilizado por meio do projeto “Políticas para a "Diversidade" e os
Novos "Sujeitos de Direitos": estudos antropológicos das práticas, gêneros textuais e
organizações de governo, coordenado por meu orientador Antonio Carlos de Souza Lima
(MN/UFRJ), Adriana de Resende Barreto Vianna (MN/UFRJ) e Eliane Cantarino
O´dwyer (UFF), por meio do Convênio FINEP nº 01.06.0740.00 – REF: 2173/06 –
Processo FUJB nº 12.867-8, nos quadros do Laboratório de Pesquisas em Etnicidade,

9
Cultura e Desenvolvimento (LACED)/Setor de Etnologia – Dept. De
Antropologia/Museu Nacional-UFRJ.
Também foram concedidos recursos da FINEP para a tese, por meio do projeto
“As políticas públicas e os direitos culturalmente diferenciados no Brasil pós-
Constituição de 1988: uma antropologia das transformações sócio-culturais da
administração pública no Brasil”, sob a condução de Antonio Carlos de Souza Lima,
parte do projeto Transformações sociais e culturais no Brasil contemporâneo do PPGAS
financiado pela FINEP, por meio do Convênio Contrato 01.05.0304.01 REF: 3964/04. A
isso, devo manifestar minha gratidão.
Por fim, agradeço à FAPERJ pelo apoio por meio do projeto “Estudo
antropológico da administração pública no Brasil: das formas de incapacitação civil e
social e da idéia de "homogeneidade nacional" aos "sujeitos especiais de Direito” e à
construção de uma sociedade plural. Pesquisa, debate e divulgação”, financiado como
Bolsa Cientista do Nosso Estado Faperj (2004-2006), sob a responsabilidade de Antonio
Carlos de Souza Lima.
A todo o pessoal do PPGAS, particularmente às secretárias Tânia e Beth, além do
Afonso, pela paciência, orientação em processos burocráticos da universidade e constante
disposição em ajudar. Às bibliotecárias Isabel, Cristina e Carla, pelo primor no
atendimento. Á Carmem, sempre prestativa nas reproduções da copiadora.
Agradeço imensamente ao esforço hercúleo de Maria Lucia Resende empreendido
na revisão da tese, em prazo exíguo. A ela, meu agradecimento de coração por sua
correção perfeccionista.
Para o levantamento de informações para a pesquisa, sou muito grata à
colaboração de toda a equipe da GTZ no Brasil, sem a qual a tese não teria sido possível.
Agradeço particularmente pelas entrevistas concedidas, às explicações informais, ao
apoio em dúvidas freqüentes sobre a instituição e na língua alemã a: Doris Thurau, Gert
Antonius, Claudia Herlt, Hans Kruger, Sondra Wentzel, Viktor Dohms, Monika
Grossman, Thomas Fatheuer, Gustavo Wachtel, Anselm Duchrow, Maria Auxiliadora
Cruz de Sá Leão, Ana Lucia Palfinger, Andréa Terayama, Regina, Lucia Loebell, Elena
Soltau, Rosani, Adriana e Jorge, entre outros que minha falha memória talvez peque em
não lembrar.

10
Também àqueles, de outras instituições alemãs, como Rainer Willingshoffer, da
Embaixada da República Federal da Alemanha no Brasil, a Dietmar Wenz, do banco
KfW no Brasil, a Albert L.e à Marisa M., ex-funcionários da GTZ, cujos depoimentos
foram absolutamente importantes para entender a história da atuação das instituições de
cooperação alemã no Brasil, assim como da própria GTZ.
Agradeço ainda a disponibilidade de outros alemães em colaborar: Jens Schneider
forneceu uma rede de profissionais alemães que trabalham ou trabalharam no Brasil
através de redes de organizações articuladas por ideais ambientalistas; a Karin Urschel,
ex-diretora da Fundação Heinrich Böll no Brasil e à Regine Schönenberg, cuja visão
crítica foi de grande inspiração para algumas questões aqui apresentadas.
Ao pessoal do PPTAL – Artur Nobre Mendes, Juliana Selanni, Márcia Gramkow,
Themis Quezado de Magalhães, Marcos Alves, Maria Helena Ortolan e Slowacki de
Assis, pelos esclarecimentos em relação aos procedimentos e às normas de execução do
projeto.
Agradeço à Elke Constanti, da Agência Brasileira de Cooperação, sempre solícita,
cordial, e mesmo didática em relação aos procedimentos da cooperação técnica brasileira.
Da mesma forma, sou grata à Valdete Silveira, da Secretaria de Assuntos Internacionais
do Ministério do Planejamento (SEAIN/MPOG), pela boa vontade em traduzir os
meandros dos processos de execução de projetos de cooperação financeira. Agradeço
ainda, particularmente, a Aurélio Vianna, Alfredo Wagner B. de Almeida, Adriana
Ramos e Henyo Barretto Filho pelas entrevistas concedidas e colaboração.
Ao pessoal do CTI, especialmente à Maria Elisa Ladeira e a Gilberto Azanha, que
me possibilitaram a pesquisa em acervos pessoais e institucionais do CTI.
A todos os amigos e “parentes” que me ajudaram nas incursões pelas cidades
onde estive para fazer a pesquisa – Manaus, Brasília, São Paulo, Belo Horizonte e Rio de
Janeiro, agradeço especialmente a hospitalidade de Divaci, em Brasília, à família Neves,
em particular Marili e Napoleão que me acolheram em Manaus, ao Alexandre, que nos
confiou seu apartamento em Brasília por dois meses, ao meu primo Fábio Curcio, pela
gentileza de me apoiar em São Paulo, e à Ludmila, em Belo Horizonte.
Em relação à família, especialmente de meus amados pais, Pedro e Sonia, do meu
irmão, Flávio e de meu ex-companheiro, Gil, nada teria sido possível sem o carinho

11
reconfortante e as condições para o trabalho, desde emocionais, financeiras, de tempo e
de amor disponíveis sempre, a mim e ao meu filho, em todos os momentos. Gil Velho,
pai do meu filho, agradeço pela sua dedicação a ele durante a elaboração da tese e por
tudo de bom que nos aconteceu ao longo de dez anos de vida em comum. Um
agradecimento também devo ao meu primo, Ricardo, por todos os momentos de angústia
e alegria comigo compartilhados e pela torcida para que terminasse a tese.
Gostaria de registrar meu agradecimento especial a José Carlos Levinho, Diretor
do Museu do Índio, por sua força e apoio incondicional em todos os momentos em que
precisei. Ao Alex, “companheiro” de lutas antigas e futuras, pelo cafezinho reconfortante,
pelos debates políticos calorosos.
Aos amigos de Brasília: Lea, André Saboya Martins e Celso França, pelas
conversas, interesses em comum, pelo acolhimento e apoio. E um agradecimento aos
colegas da Funai, Luiz Fernando e especialmente Guilherme Carrano e Nieta Barros, do
Departamento de Recursos Humanos;
Aos amigos e alunos da Estácio, pela paciência e compreensão em momentos
difíceis, e aos colegas de sala e de labuta, um agradecimento especial a Solange, Etiène
Magalhães, Carla, Marta Moreno e a Wania Santanna e, especialmente, ao amigo Adair
Rocha, como folião que é, acreditou sempre.
À Sonia Monteiro, por sua presença e apoio em um momento bastante importante
de meu retorno ao Rio de Janeiro, quando me ajudou a clarear a vista, a redescobrir
pérolas em mim.
Aos meus queridos e especiais amigos do PPGAS, tenho agradecimentos a fazer à
Mariana Paladino, a José Gabriel e à Maria Barroso-Hoffman, amigos sempre solidários
em compartilhar dúvidas e questionamentos próprios ao campo do indigenismo e da
“antropologia do desenvolvimento” em papos que foram fundamentais para uma
conversão, às vezes árida, à antropologia. Ao trio: Cecília Mello, Ingrid Weber e Flávia
Pires, amigas por quem tenho carinho especial e com quem compartilhei alguns
momentos muito especiais. À Alexandra e a Fabio Mura, ao Wagner, Marcelo Piedrafita,
a Carlos Augusto Freire e ao Francisco, minha gratidão.
Aos amigos da capoeira, um agradecimento por compartilharmos uma mesma
roda ao toque do berimbau, roda esta que vimos crescer com a chegada de nossos filhos,

12
também amigos entre si. A cada dia, intensificam-se nossos laços de amizade, nossa
alegria de estar junto, de compartilhar. Por isso, agradeço a Mariane e ao Tatão, ao Dudu
e à Lola, à Renatinha e ao Zeca, e à Roberta e Flavinho.
Na Ilha do Governador fiz minhas mais antigas amizades, até hoje sólidas. Ali,
em meio às águas mansas da Baía de Guanabara, crescemos em uma ilha onde vivíamos
com liberdades e com prazeres raros em uma cidade grande, na rua, palco de nossas
brincadeiras, onde andava de bicicleta e tomava banho de chuva nos temporais de verão
depois da escola, fantasiando a vida. Anete é a amizade mais antiga. Sua solidariedade foi
sempre incentivo para continuar. Patrícia Paladino, amiga literária, agradeço por sua
intensa criatividade, estímulo revigorante e desafiador no aprimoramento do processo de
escrita; ao Cira e à Letícia, pela certeza na vida e a clara convicção de que a arte está no
ar; ao Person, pelas conversas filosóficas que me deram fôlego no período final da tese.
Às crianças quero fazer um agradecimento especial: amiguinhos de meu filho,
amiguinhos meus, foram eles em muitos momentos a alegria que me abasteceu, a leveza
que me elevou. Descobri isso com Gil Pedro, um filho mágico, meu Peter Pan da Terra
do Nunca, meu Pequeno Príncipe encantado, herói de minhas estórias, meu pequeno
samurai. Sua vinda e o amor infinito que despertou em mim tornaram-me mais
humanizada, mais grata e mais compreensiva mas, ao mesmo tempo, combativa e
corajosa. Suas reflexões constantemente me colocam questões filosóficas profundas, e a
cada dia aprendo com ele um pouco mais de uma sabedoria milenar que ele aporta e que
procuro descobrir também em mim. Sua vinda trouxe-me ainda o universo infantil destes
seres pequeninos, lúdicos, tão intensos, levados, risonhos, barulhentos, bagunceiros
pestinhas. Por todas as vezes que me ajudaram com sua alegria na elaboração da tese,
agradeço ao Gil Pedro, e também a toda a turma: aos meus filhos postiços Taoã, Tainá, às
já crescidas Flora e Maíra, aos amigos Gabriel Polpa, Leandro, João Pascoal, Daniel
Gama, Gabriel e Mateus Fausto, João e Vicente Vilela, Francisco e Pedro Cruz, Ana
Terra e Pedrinho Rocha Leão, Sabrina Villas, Catarina Terreri, Cauê Ferraz, Leo de
Arruda e Breno Barthollo.

13
Resumo
Ficha Catalográfica........................................................................................................... 5  
Dedicatória......................................................................................................................... 6  
Resumo............................................................................................................................... 7  
Abstract.............................................................................................................................. 8  
Agradecimentos................................................................................................................. 9  
Lista de siglas e abreviaturas ......................................................................................... 17  
I. Introdução.................................................................................................................... 23  
Objetivo ................................................................................................................ 36  
Metodologia ......................................................................................................... 38  
Setting................................................................................................................... 54  
A divisão da tese................................................................................................... 57  
Parte I – Cooperação técnica internacional como problema para análise
antropológica ................................................................................................................... 64  
Capítulo 1 – O PPG-7 e os sentidos entre cooperação técnica, povos indígenas e
alemães ............................................................................................................................. 65  
A Eco-92 e o desenvolvimento sustentável........................................................... 66  
Um modelo de cooperação internacional em ação.............................................. 77  
Os alemães no PPG-7 - Intervir e conceder ....................................................... 81  
Clima e biodiversidade......................................................................................... 84  
Capítulo 2 - Desvendando a cooperação técnica para o desenvolvimento................. 94  
Relações internacionais e cooperação internacional como ordem ..................... 94  
Antropologia e cooperação para o desenvolvimento........................................... 97  
Cooperação como ação social comum (Práticas) .............................................102  
Cooperação governamental ............................................................................... 109  
Cooperação técnica............................................................................................ 112  
Parte II. Supostos e contextos da intervenção alemã no Brasil ................................ 117  
Capítulo 3. Origens da cooperação técnica: uma história oficial ............................. 120  
A cooperação internacional no pós-guerra ....................................................... 122  
A guerra e a diplomacia..................................................................................... 125  
A Resolução 200 do ECOSOC ........................................................................... 128  
O Plano Marshall e o Ponto Quatro .................................................................. 129  
Os primórdios da cooperação técnica no Brasil ............................................... 134  
Anos 60-70.......................................................................................................... 136  
A criação da ABC...............................................................................................139  
Fluxograma simplificado do ciclo de projetos Brasil-Alemanha ...................... 143  
Negociações intergovernamentais: Brasil e Alemanha ..................................... 144  
Capítulo 4. Aparato de intervenção alemã em administrações estrangeiras: O BMZ
e as instituições implementadoras ............................................................................... 148  
Segunda Guerra Mundial e cooperação para desenvolvimento ........................ 149  
Discursos do desenvolvimento ........................................................................... 156  
O debate sobre desenvolvimento na Alemanha.................................................. 158  
Os temas do desenvolvimento.............................................................................162  
O cooperativismo dos alemães........................................................................... 168  
A visibilidade da necessidade de cooperar ........................................................ 169  
Idealistas ou heróis? ..........................................................................................170  
As instituições do BMZ....................................................................................... 174  
Cooperação no sentido restrito.......................................................................... 178  
Cooperação no sentido amplo............................................................................ 182  

14
Organizações eclesiásticas ................................................................................ 183  
Fundações políticas............................................................................................ 187  
Parte III. Modos de intervenção da GTZ............................................................... 193  
Capítulo 5. A GTZ no Brasil e a produção de saberes administrativos no exterior
......................................................................................................................................... 197  
A identidade desconhecida da GTZ.................................................................... 198  
A estrutura internacional da GTZ ......................................................................204  
Cooperação técnica............................................................................................ 205  
Diretrizes e princípios da cooperação técnica alemã........................................ 207  
A visão sobre a GTZ no Brasil ........................................................................... 214  
Cooperação menos técnica? .............................................................................. 216  
Temas ................................................................................................................. 217  
Análise dos projetos no Brasil por programa ....................................................223  
O Programa ProRenda ...................................................................................... 223  
Pequenas e médias empresas .............................................................................225  
Meio ambiente .................................................................................................... 226  
O escritório da GTZ no Brasil e a produção de um saber administrativo no
exterior ............................................................................................................... 228  
Organização administrativa e física do escritório.............................................229  
O desenho administrativo do escritório ............................................................. 233  
A língua da burocracia ...................................................................................... 236  
Capítulo 6: Os funcionários da GTZ.......................................................................... 241  
A categoria “alemães”....................................................................................... 249  
Conhecendo o grupo ..........................................................................................250  
Dificuldades com os peritos e os funcionários da GTZ e a língua alemã ......... 251  
A relação entre alemães e brasileiros nos setores públicos .............................. 254  
Peritos: representações e auto-representações ................................................. 256  
Origens de uma mesma trajetória em comum: solidariedade e cooperação..... 257  
Trajetórias pessoais ........................................................................................... 264  
Capítulo 7. Ver e ser visto: as alianças locais e as redes alemãs em evidência........ 281  
Os rituais da cooperação ...................................................................................281  
A ordem que estrutura o ritual ........................................................................... 283  
A eficácia dos eventos ........................................................................................ 287  
Os encontros.......................................................................................................291  
Efeitos de Estado: energias renováveis.............................................................. 291  
Efeitos de visibilidade: a comemoração dos quarenta anos de cooperação ..... 295  
A organização da festa ....................................................................................... 300  
A festa ................................................................................................................. 302  
Quanto vale uma festa?...................................................................................... 305  
Memória e história ............................................................................................. 307  
Capítulo 8. Disciplina e reprodução de saberes em um projeto de cooperação
técnica, o PPTAL .......................................................................................................... 309  
O KfW e os índios brasileiros, Brasília, 2002...................................................309  
O PPTAL para os alemães ................................................................................. 311  
O PPTAL ............................................................................................................ 317  
Antecedentes históricos ...................................................................................... 324  
As peças do PPTAL ............................................................................................ 333  
O PPTAL e as redes do indigenismo.................................................................. 337  
A missão de maio de 1992: as redes ambientais do Banco Mundial ................. 342  
A entrada da cooperação alemã: a missão de agosto 1992...............................347  

15
As mudanças no projeto ..................................................................................... 349  
A cooperação técnica do PNUD ........................................................................ 352  
A entrada da GTZ: seminários........................................................................... 357  
A demarcação piloto ..........................................................................................360  
Apoio à SETEC................................................................................................... 363  
A vinda dos peritos ............................................................................................. 366  
Considerações Finais: Santo de casa não faz milagre................................................ 370  
BIBLIOGRAFIA........................................................................................................... 380  
Anexo de Documentos: ................................................................................................. 401  

16
Lista de siglas e abreviaturas
ABA - Associação Brasileira de Antropologia
ABC - Agência Brasileira de Cooperação do MRE
ABONG - Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais
AMA - Projeto de Apoio ao Monitoramento de Análise do PP-G7
BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento
BIRD - Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento ou Banco Mundial
BMD - Bancos Multilaterais de Desenvolvimento
BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul
CAD - Comitê de Assistência ao Desenvolvimento
CCB - Comissão de Coordenação Brasileira do PP-G7
CCC - Comissão de Coordenação Conjunta do PP-G7
CCD - Comissão de Coordenação dos Doadores do PP-G7
CCPY - Comissão pela Criação do Parque Yanomami
CE - Comissão Executiva do PP-G7
CEB - Comunidades Eclesiais de Base
CEC - Comissão das Comunidades Européias
CEDI - Centro Ecumênico de Documentação e Informação
CEPAL - Comissão Econômica para América Latina e Caribe
CGDOC - Coordenação Geral de Documentação
CGPE - Coordenação Geral de Projetos Especiais
CGPIMA - Coordenação Geral de Meio Ambiente
CIDA - Canadian International Development Agency
CIVAJA - Conselho Indígena do Vale do Javari
COFIEX – Comissão de Financiamentos Externos
COIAB - Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira
COICA - Coordenadoria de las Organizaciones Indigenas de la Cuenca Amazonica
CNUMAD - Conferência das Nações Unidas para Meio Ambiente e Desenvolvimento
(ECO-92 ou Rio-92)
CNS - Conselho Nacional dos Seringueiros

17
CTBR - Cooperação Técnica Bilateral Recebida
CTI - Centro de Trabalho Indigenista
CTMR - Cooperação Técnica Multilateral Recebida
CTPD - Cooperação Técnica para Países em Desenvolvimento
CUT - Central Única de Trabalhadores
DAC - Development Assistance Committee (Comitê de Assistência ao Desenvolvimento)
DAF - Diretoria de Assuntos Fundiários
DFID - Agência Inglesa de Cooperação Internacional
ECOSOC - Conselho Econômico e Social
FAOR - Fórum da Amazônia Oriental
FASE - Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional
FINEP – Financiadora de Estudos e Projetos
FMI - Fundo Monetário Internacional
FMV - Fundação Mata Virgem / Rain Forest Foundation
FOIRN - Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro
FUNAG - Fundação Alexandre de Gusmão
FUNAI - Fundação Nacional do Índio
FVA - Fundação Vitória Amazônica
G7 - Grupo dos Sete: Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha, Itália, Canadá e
Japão
GEF - Global Environmental Facility (Fundo Global para o Meio Ambiente)
GTA - Grupo de Trabalho Amazônico
IAG - International Advisory Group (Grupo Consultivo Internacional)
IAEA - International Atomic Energy Agency
IBAMA - Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
IBASE - Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas
ICAO - International Civil Aviation Organization
IEA - Instituto de Estudos Amazônicos e Ambientais
INESC - Instituto de Estudos Sócio-Econômicos
IPHAE - Instituto de Pré-História, Antropologia e Ecologia
ISA - Instituto Socioambiental

18
KOINONIA – Koinonia Presença Ecumênica e Serviço
MMA - Ministério do Meio Ambiente
MPOG - Ministério de Orçamento, Planejamento e Gestão
MPST - Movimento pela Sobrevivência da Transamazônica
NAEA - Núcleo de Altos Estudos Amazônicos
OCDE - Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico
ODA - Official Development Assistance (Assistência Oficial ao Desenvolvimento)
OEA - Organização dos Estados Americanos
OEEC - Organisation for European Economic Co-operation (Organização para
Cooperação Econômica Européia)
OIT - Organização Internacional do Trabalho
OMS - Organização Mundial de Saúde
ONG - Organização Não-Governamental
ONU - Organização das Nações Unidas
OTAN – Organização para o Tratado do Atlântico Norte
OXFAM – Oxford Committee for Famine Relief (Comitê de Oxford para o Alívio da
Fome)
PNUD/UNDP - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PPG-7 - Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil
PPTAL - Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia
Legal
PDA – Subprograma Projetos Demonstrativos tipo A
PDPI - Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas
PETI - Projeto Estudos Sobre Terras Indígenas no Brasil
PROTEGER - Projeto de Mobilização e Capacitação em Prevenção de Incêndios
Florestais na Amazônia
PROMANEJO - Projeto de Apoio ao Manejo Florestal Sustentável da Amazônia
PROVÁRZEA - Projeto de Manejo dos Recursos Naturais da Várzea
RESEX - Projeto de Reservas Extrativistas
RFT - Rain Forest Trust Fund (Fundo Fiduciário para Florestas Tropicais)
RMT - Revisão de Meio Termo

19
SAE - Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República
SEAIN – Secretaria de Assuntos Internacionais (do Ministério de Planejamento,
Orçamento e Gestão, MPOG)
SEMAM - Secretaria de Meio Ambiente
SEAIN - Secretaria de Assuntos Internacionais do Ministério de Orçamento,
Planejamento e Gestão
SCA - Secretaria de Coordenação da Amazônia
SPRN – Subprograma de Políticas de Recursos Naturais
UNAIDS - Agência das Nações Unidas para AIDS
UNCTAD - United Nations Conference on Trade and Development (Conferência das
Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento.
UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura
UNRRA - United Nations Relief and Reabilitation Administration
WHO - World Health Organization
WMO - World Metheorological Organization

20
Alemanha

AG-KED - Arbeitsgemeinschaft Kirchlicher Entwicklungsdienst (Grupo de Trabalho


sobre o Serviço das Igrejas para o Desenvolvimento)
AS - Aktionsgemeinschaft Solidarische – (Comunidade de Ação Mundo Solidário)
BfW ou PPM - Brot für die Welt (Pão para o Mundo)
BMZ - Bundesministerium für wirtschaftliche Zusammenarbeit und Entwicklung
(Ministério Federal de Cooperação Econômica e Desenvolvimento)
CDG - Carl Duisberg Gesellschaft (Fundação Carl Duisberg)
CDU - União Democrática Cristã
CIM – Centrum für Internationale Migration und Entwicklung (Centro de Migração
Internacional e Desenvolvimento ou Programa de Peritos Integrados)
CSU - União Social Cristã
DAAD - Deutscher Akademischer Austauschdienst (Serviço Alemão de Intercâmbio
Acadêmico)
DED - Deutscher Entwicklungsdienst (atribuição atual do Brasil para SACTES)
DEG - Deutsche Investitions und Entwicklungsgesellschaft mbH (Sociedade Alemã para
o Desenvolvimento e Investimento Ltda.)
DG - Die Grünnen (Partido Verde)
DGRV - Deutscher Genossenschafts und Raiffeisenverband e.V. (Confederação das
Cooperativas da Alemanha Federal)
DSE - Deutsche Stiftung für Intenationale Entwicklung (Fundação Alemã para o
Desenvolvimento Internacional)
DÜ - Dienste in Übersee (Serviços em Ultramar)
DW - Deutsche Welthungerhilfe (Fundação Agrária Alemã)
EMW - Evangelisches Missionwerk (Obra Missionária Evangélica)
EZE - Evangelische Zentralstelle für Entwicklungshilfe (Central Evangélica de Ajuda
para o Desenvolvimento ou Associação Evangélica de Cooperação e Desenvolvimento)
FDP - Partido Democrático Liberal
FES - Friedrich Ebert Stiftung (Fundação Friedrich Ebert)
FNS - Friedrich Naumann Stiftung (Fundação Friedrich Naumann)

21
GTZ - Deutsche Gesellschaft für Technische Zusammenarbeit (Agência Alemã de
Cooperação Técnica)
HBS - Heinrich Böll Stiftung – Fundação Heinrich Böll
HSS - Hans Seidel Stiftung – Fundação Hans Seidel
INWENT - Internationale Weiterbildung und Entwicklung gGmbH – Aperfeiçoamento
Profissional e Desenvolvimento
KAS - Konrad-Adenauer Stiftung – Fundação Konrad Adenauer
KED - Kirchlicher Entwicklungsdienst - Serviço das Igrejas para o desenvolvimento
KfW - Kreditanstalt für Wiederaufbau - Banco Alemão de Crédito para Reconstrução
Kindernothilfe - Associação de amparo às necessidades da criança
KZE - Katholische Zentralstelle für Entwicklungshilfe, Central Católica de Ajuda ao
Desenvolvimento
RFA - República Federal da Alemanha
RDA - República Democrática da Alemanha, Alemanha Oriental
SACTES - Serviço Alemão de Cooperação Técnica e Social (antiga sigla para o atual
DED)
SES - Senior Experten Service - Serviço de Peritos Sêniores
SPD - Partido Social-Democrata
Weltfriedensdienst - Serviço para a Paz Mundial

22
I. Introdução

A proposta de desenvolvimento desta tese surgiu quando eu pesquisava políticas


de proteção da floresta amazônica e processos de regularização fundiária de terras
indígenas adotados pelo governo brasileiro naquela região. Uma mudança não pouco
desprezível ocorrera com a passagem da década de 80 para as de 90, particularmente em
relação às políticas para povos indígenas: os processos de demarcação de terras
indígenas, feitos até então apenas por órgãos do governo brasileiro, neste caso a
Fundação Nacional do Índio (Funai) incorporariam cada vez mais outras instituições. A
questão me instigou sobretudo porque era uma prática que passara a ser considerada
“normal” por aqueles setores da administração pública brasileira que eram fortemente
reativos a este tipo de abertura – de defesa e militares, principalmente - em nome do
princípio de “soberania nacional”.
Este processo já havia se iniciado no final dos anos 80 em outros setores, sendo
particularmente característico das políticas de gestão dos recursos naturais, nas quais se
observou a tendência de articulação entre agências e organismos internacionais de
“cooperação” nas práticas de administração pública adotadas no Brasil. O fato ganhou
proporções mais significativas a partir dos 90, com a Conferência das Nações Unidas
para Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD ou ECO-92).
A expressão cooperação técnica para o desenvolvimento foi sendo naturalizada
nos discursos políticos e na linguagem usual das políticas governamentais e não-
governamentais contemporâneas, turvando a visão a respeito dos processos efetivamente
em prática. Sua intensificação incitou, ao longo dos anos 90, um intenso debate sobre as
implicações de poder associadas ao papel de órgãos governamentais e não-
governamentais em atividades de cooperação técnica internacional no Brasil. O
incômodo em tratar relações de poder associadas a fluxos de conhecimentos e de recursos
financeiros, utilizados de forma condicionada a determinados meios e fins como
“cooperação” nunca foi resolvido pelas vias do campo das relações internacionais. Neste
sentido, fui buscar nos procedimentos de pesquisa e nas referências teóricas da
antropologia o instrumental que me permitisse aprofundar este mal estar em relação a um
discurso pouco ajustado às práticas de poder implementadas.

23
O assunto já me interessava há alguns anos, quando desenvolvi minha pesquisa de
mestrado em relações internacionais, na PUC do Rio de Janeiro, entre 1993 e 1996.1 Na
época, havia abordado o tema da cooperação internacional como uma prática da política
externa dos países, interessando-me então por aquelas que eram adotadas para viabilizar a
implementação de políticas de proteção ambiental para bens comuns.
Este recorte envolveu minha análise na discussão sobre a formação de regimes
internacionais2 e de um “espaço público transnacional”, que entendia como fundamental
para a consolidação de relações de cooperação entre norte e sul. Ao partir da legislação
ambiental da União Européia como eixo de convergência de políticas ambientais, o
enfoque sobre a atuação de organizações européias da sociedade civil (ONGs), procurei
destacar o papel desses atores no desenvolvimento de regimes de cooperação
internacional na área ambiental e sua contribuição na produção de sentidos sobre meio
ambiente nas agendas nacionais de políticas. Observei que as políticas adotadas por
agências e órgãos estrangeiros alemães em relação às políticas ambientais no Brasil
sobressaíam não somente no plano estrito da atuação governamental, mas também no
trabalho de redes de ONGs alemãs.3 Naquele contexto, já se destacavam os projetos
desenvolvidos pelas agências governamentais alemãs de cooperação no Brasil, da mesma
forma que de organizações não-governamentais alemãs em face de outros países, tanto
em termos de quantidade de projetos, quanto no que dizia respeito à sua capacidade de
articulação com ONGs de importante atuação política no Brasil, participando de e
contribuindo para os debates sobre a abertura democrática e mais recentemente para as
políticas de desenvolvimento sustentável para a região amazônica.
Uma outra situação estimulou minha curiosidade sobre o assunto, em particular as
condições de atuação da Alemanha no Brasil. Antes de iniciar a pesquisa de doutorado
que resultou na presente tese, fui para a Alemanha em 1999 por motivos pessoais e fiquei
durante um mês em Hamburgo, no apartamento de um casal alemão-brasileiro. Viajei

1
A pesquisa citada resultou na dissertação de mestrado pelo Instituto de Relações Internacionais da
PUC-Rio, cujo título é O meio ambiente em pauta: uma abordagem da cooperação internacional entre
Europa e Brasil, defendida em 1997 pela presente autora. Orientadora: Sonia de Camargo.
2
Uma das principais referências na área de relações internacionais sobre regimes internacionais é
Krasner, Stephen. Ver International regimes. New York: Cornell University Press, 1983. Voltaremos a
analisar os regimes internacionais no Capítulo 1.
3
Wolff, L.A.; Kaiser, W. (coords.) & Mello, F.V. Cooperação e solidariedade na Alemanha. 2.ed.
Rio de Janeiro: IBASE: EZE; São Paulo: ABONG, 1995, p.7.

24
para participar de um grande evento de capoeira que se realizava na cidade e era
organizado há quase vinte anos pelos meus amigos. 4 O evento era uma oportunidade para
reunir brasileiros que viviam na Europa como também europeus que admiravam a
“cultura brasileira”. Neste período, tive a oportunidade de conhecer alguns brasileiros que
moravam na Alemanha, como Romão e Eduardo, que estavam envolvidos, entre outras
coisas, com o levantamento de fundos e recursos para uma ONG brasileira que trabalhava
com povos indígenas de Mato Grosso do Sul. Eles faziam a divulgação de documentários
e vídeos que haviam produzido sobre a situação fundiária dos povos indígenas da região.
Apesar de rápida, esta experiência ampliou a visão sobre certos aspectos relativos a
processos e fluxos transnacionais de cultura e de conhecimentos, estabelecidos por meio
de relações pessoais entre profissionais do Brasil e da Alemanha.
Até aquele momento, o suporte de alemães a projetos destinados a grupos
específicos como as populações indígenas parecia-me estranho ou mesmo uma ação
isolada, casual, o que mais tarde constataria ser uma política adotada pelo próprio
governo alemão no Brasil.
A viagem à Alemanha reavivou interesses antigos de pesquisar o trabalho
desenvolvido por funcionários de instituições alemãs em projetos sociais e ambientais no
Brasil. A princípio, quando defini uma estratégia de pesquisa, imaginava dividir o
trabalho de levantamento de dados de campo entre o Brasil e a Alemanha, objetivo que
foi aos poucos sendo modificado. Não voltei à Alemanha por considerar todas as
implicações que isto demandaria para a elaboração da pesquisa, a começar por uma
preparação na língua, e também em nível pessoal. Por outro lado, constatei que havia um
universo de questões e de possibilidades etnográficas a ser explorado e de projetos
implementados por órgãos do governo alemão no Brasil, não somente em sua
especificidade institucional, mas, sobretudo em suas formas de interação com órgãos do
governo brasileiro. Não queria perder de vista o Brasil como espaço de intervenção, e
desta forma reorientei o foco para observar como os alemães atuavam no Brasil, o que se
não descartava, também não justificava o deslocamento para a Alemanha.

4
Meu companheiro na época era mestre de capoeira e foi convidado para participar de algumas
“oficinas” e cursos de capoeira realizados, durante o evento, em vários espaços da cidade.

25
Neste contexto, tive conhecimento de um dos mais expressivos programas “de
cooperação internacional” desenvolvidos pelo governo brasileiro, que contava com a
participação de vários organismos e agências internacionais, o Programa Piloto para as
Florestas Tropicais do Brasil, o PPG-7. Estabelecido desde 1992, o PPG-7 foi definido
como um programa que tinha como objetivo a conservação das florestas tropicais do
Brasil, prioritariamente a floresta amazônica, sendo o governo da Alemanha o seu maior
doador isolado, entrando com recursos na ordem de mais de 40% do total. Atribuiu-se
grande importância ao PPG-7 não somente pelo volume de recursos aportado, mas
principalmente por ter sido concebido como um “modelo” de programa multilateral de
cooperação destinado à implementação de políticas públicas de proteção da floresta
amazônica e da Mata Atlântica. Como apresenta a vice-ministra alemã Uschi Eid, o PPG-
7 seria:5

[...] maior programa mundial para a proteção de florestas tropicais e para o


manejo de recursos naturais em um único país [de forma a] encorajar a aplicar
em outros países e regiões este bem sucedido modelo de cooperação para a
preservação do futuro comum da humanidade.

O aprofundamento da investigação sobre o PPG-7 revelava um universo


diversificado de atores nacionais e internacionais e de práticas associadas ao
desenvolvimento de projetos na administração pública brasileira, entendido como um
campo muito rico para a análise do que era definido como cooperação técnica
internacional. Além disso, esse campo descortinava um aspecto particular da atuação de
instituições alemãs em programas e projetos sociais e ambientais no Brasil que, se eu
imaginava existir, não dimensionava a sua abrangência temporal e espacial no país.
Quando da decisão de desenvolver a pesquisa de doutorado no Brasil, resolvi
adotar uma abordagem que, em princípio, caracterizasse o processo histórico que
viabilizou a intensificação de fluxos de recursos internacionalmente e a administração
em territórios estrangeiros por meio do desenvolvimento de projetos, e que desencadeou
na formalização destas práticas na administração pública de Estados Nacionais no pós-
5
Palavras da vice-ministra do Ministério Federal de Cooperação Econômica e Desenvolvimento da
Alemanha, Uschi Eid, em Cooperação entre Brasil e Alemanha nas Florestas Tropicais Brasileiras,
publicação do grupo KfW e GTZ, sem data.

26
Segunda Guerra, como política de cooperação técnica para o desenvolvimento.
Procurou-se focalizar a especificidade de como este processo se implementou no Brasil e
na Alemanha, mais claramente a partir dos anos sessenta.
Nesse período, foram criadas instituições na administração pública alemã
destinadas a promover um determinado tipo de intervenção em territórios estrangeiros,
intervenção esta voltada para a administração de projetos articulada a instituições
governamentais locais, conforme normas e procedimentos administrativos regulares e
com profissionais especializados, evidenciando uma política oficial de cooperação para o
desenvolvimento em processo de implementação pelo governo da Alemanha.
As burocracias da cooperação têm uma característica particular de organização
em rede: estão localizadas no país de origem, mas têm “bases” institucionais espalhadas
em territórios estrangeiros, escritórios que garantem uma maior captação de informações
do exterior e, portanto, facilitam a administração de territórios e populações estrangeiras,
sobretudo as do chamado “Terceiro Mundo”. Antes muito centralizados nas decisões da
sede, cada vez mais os escritórios das agências têm ganhado autonomia decisória e
orçamentária, como forma de flexibilizar a sua atuação nos países e de obter melhores
resultados com os projetos que desenvolvem. São agências estatais de administração em
larga escala, que atuam por meio de projetos e cuja ação se caracteriza por uma forma de
sedução ou de persuasão ou até mesmo de pedagogia, mas não por intervenção coercitiva
explícita.
Esta característica é particularmente observada na estrutura institucional alemã,
sob a coordenação política e financeira do Ministério de Cooperação Econômica e
Desenvolvimento (Bundesministerium für wirtschaftliche Zusammenarbeit und
Entwicklung), mais conhecido por BMZ.
O BMZ é um órgão administrativo e de formulação política, mas não executa
diretamente as políticas e diretrizes propostas para a cooperação para o desenvolvimento.
Atribui às várias instituições a ele vinculadas as funções de organizações governamentais
que desenvolvem projetos e enviam profissionais e equipamentos para vários países em
todo o mundo, tendo como base os princípios políticos definidos pelo ministério e
dispondo de seus recursos orçamentários. O BMZ tem outras organizações não-
governamentais parcialmente articuladas a ele. Ainda que a extensão das relações

27
existentes entre as organizações alemãs e sua conexão com o ministério não sejam claras
à primeira vista, as histórias dos “profissionais da cooperação”,6 funcionários dessas
instituições, que atuam nos projetos como advisors, peritos, consultores, entre outras
funções, revelam os vínculos entre várias instituições e o BMZ.
No caso do Brasil, um dos locais onde são implementadas as políticas de
cooperação, apesar de haver um representante do ministério, que fica na sede da
embaixada da Alemanha, não existe um escritório de representação do BMZ no país. É
uma organização decisória praticamente virtual em relação aos países onde são
implementadas as políticas alemãs de cooperação. Sua existência torna-se efetiva através
dos discursos e das rotinas de trabalho dos funcionários das agências, nos quais faz faz
menção constante ao ministério, às suas exigências, aos seus recursos, às suas diretrizes.
Da mesma forma, a conexão entre eles mostra-se particularmente clara nas participações
que têm em eventos públicos relacionados a políticas governamentais no Brasil,
sobretudo ambientais.
Entre as variadas formas como se dão as práticas e conhecimentos administrativos
de um Estado com atributos de poder de intervenção e administração sobre populações,
territórios e Estados estrangeiros, a cooperação técnica ganha operacionalidade por meio
de projetos e programas. Ela envolve múltiplos e diferenciados fluxos e contrafluxos
entre fronteiras nacionais: de equipamentos e conhecimentos técnicos, administrativos e
gerenciais (de planejamento), de pessoas e de recursos financeiros. No sentido formal, os
projetos são instrumentos de operacionalização da cooperação técnica, a qual se dá entre
as instituições executoras dos dois países.
De todo um conjunto de instituições da burocracia alemã da cooperação
articuladas ao BMZ, foi atribuída à Agência Alemã de Cooperação Técnica - GTZ
(Deutsche Gesellschaft für Technische Zusammenarbeit) a competência formal de
produção e reprodução de determinados saberes e práticas de Estado, o que se realiza por
meio da intervenção em espaços nacionais estrangeiros, recebendo o nome de

6
Esta denominação não foi usada, durante a pesquisa, por nenhum dos entrevistados, peritos,
consultores, funcionários administrativos ou outros que atuam nos projetos, mas foi usada aqui para definir,
genericamente, um grupo de pessoas, indivíduos que trabalham junto com agências estrangeiras em
projetos de “cooperação internacional”.

28
cooperação técnica.7 A investigação deste panorama mais amplo de organizações alemãs
“de cooperação”, no qual a GTZ se insere, revelou a centralidade de sua função no Brasil,
atuando no país desde a sua criação, em 1975, com um número expressivo de projetos
com o governo brasileiro. Mais recentemente, o governo tem priorizado projetos na área
de meio ambiente. Neste contexto que abarca a proteção das florestas tropicais no Brasil,
foram elaborados projetos destinados ao desenvolvimento de povos indígenas; neles, as
duas principais instituições da política de cooperação alemã, a GTZ e o Banco Alemão de
Crédito para Reconstrução (Kreditanstalt für Wiederaufbau – KfW), se envolveram.
Tomei como ponto de partida da análise os discursos e as práticas cotidianas de um setor
da administração pública brasileira ao qual estavam vinculados, por meio de acordos
formalmente estabelecidos no plano governamental, profissionais da GTZ, responsáveis
pela implementação de normas e procedimentos próprios para a administração de
projetos.
Entre os projetos do PPG-7 vinculados à linha de “conservação de áreas
protegidas”, dois projetos são orientados para povos indígenas: o Projeto Integrado de
Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal, usualmente conhecido
por PPTAL e o Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas, conhecido por PDPI. O
PPTAL antecedeu o PDPI e já estava em andamento desde 1996. As primeiras atividades
do PDPI foram iniciadas somente em 2001. Neste sentido, eu entendia que encontraria na
análise do PPTAL um campo já constituído, com uma breve porém já sólida história de
processos em transformação quanto à regularização fundiária em função da articulação
entre a agência de cooperação técnica alemã, a GTZ e a Fundação Nacional do Índio, a
Funai.
O PPTAL promoveu o avanço do processo demarcatório e uma normatização de
procedimentos, o que o caracterizou como um divisor de águas em relação à política
governamental de regularização das terras indígenas da Amazônia Legal. Sua execução
envolvia a Funai, um dos órgãos governamentais oficiais então responsáveis pela política
de regularização de terras indígenas, além do Banco Mundial, coordenador do PPG-7, e

7
Em relação ao aporte de recursos do governo em 2005, cerca de 80% do total de recursos eram
provenientes de projetos e programas com clientes governamentais, principalmente do BMZ. Em 2003,
estes dados chegavam a 85%. Os outros 20% vinham de contratos com instituições financeiras
internacionais e companhias do setor privado. Ver http://www.gtz.de

29
da agência alemã de cooperação técnica, a GTZ. Também do ponto de vista dos
procedimentos adotados nos processos demarcatórios do governo, particularmente no que
concerne à aceitação de recursos orçamentários e humanos para o desenvolvimento de
políticas governamentais, o PPTAL mostrou-se inovador, porque instituiu uma “forma de
fazer” que não havia anteriormente. E isto se deveu, entre outros fatores, à presença
constante de funcionários da GTZ no mesmo espaço de trabalho que os funcionários da
Funai usufruem desde 1996 quando o projeto efetivamente entrou em vigência, até os
dias de hoje.
O PPTAL não é um projeto bilateral, porque envolve o governo alemão e o Banco
Mundial, organismo multilateral. No entanto, o peso do orçamento de instituições
governamentais alemãs como o banco KfW e a GTZ para a execução do projeto, que se
responsabilizam por 80% dos recursos para demarcação, difundiu a idéia de que o projeto
fosse de fato exclusivo ao governo brasileiro e “aos alemães”. Além do aspecto
financeiro, outra dinâmica mais direta, resultante da presença constante de uma equipe de
profissionais da GTZ atuando na sede da Funai, dava maior visibilidade aos instrumentos
adotados na prática por aquela equipe, particularmente no que se referia ao poder de
instituir procedimentos e estruturar normas administrativas para o processo de
regularização fundiária. O Banco Mundial, enquanto isto, pouco aparecia. Neste
contexto, de observação do local de trabalho de duas equipes vinculadas ao mesmo
projeto, ficavam patentes as diferenças existentes entre elas, diferenças estas ignoradas
em documentos, panfletos e folders informativos sobre o projeto.
Era reservada à equipe de “assessoria”8 da GTZ uma sala na Funai equipada com
móveis, pastas, computadores e outros bens de uso de escritório, todos de qualidade
diferenciada daqueles existentes no órgão brasileiro, pois em sua grande maioria, o que
vim a saber então, eram importados da Alemanha. Da mesma forma que ocorre em outras
instituições, também em outros órgãos do governo brasileiro, como no Ministério do
Meio Ambiente (MMA), se encontrava esta divisão e reserva de um espaço para a equipe
alemã em áreas comuns das repartições públicas.

8
Usei o termo assessoria entre aspas porque é uma das expressões adotadas pelos alemães, além de
consultoria, quando se referem aos seus próprios trabalhos nos projetos junto aos órgãos brasileiros.

30
Algumas perguntas surgiram em relação a atuação destes profissionais que
compunham as equipes da GTZ e que trabalhavam em projetos no Brasil. Quais eram as
suas atribuições? Por que eram chamados de “peritos técnicos”, se faziam trabalhos
basicamente administrativos? Quais eram as trajetórias pessoais capazes de identificar
algo em comum no grupo, desde seu “exílio”, até o lado “aventureiro” ou filantrópico?
Eu entendia que elas poderiam dizer muito da própria instituição, a GTZ. Não encontrava
respostas diretas para estas perguntas em textos impressos ou em entrevistas formais. Não
havia registros em publicações que pudessem revelar um pouco da “humanidade” dos que
executavam os projetos de cooperação técnica, aqueles que efetivamente representavam
as instituições.
A partir da perspectiva das instituições governamentais alemãs, a GTZ mostrou
ser um dos mais importantes pontos de entrelaçamento de redes sociais de profissionais
alemães deslocados de seu país de origem, para atuarem em projetos de cooperação
técnica alemã para o desenvolvimento.
A partir do escritório da GTZ no Brasil, localizado em Brasília, foi possível
observar como operam os dispositivos administrativos de controle e regulação de todos
os projetos no Brasil, a partir da análise de documentos, de entrevistas e da observação
direta. Também pelo entendimento de como essa agência funciona nas práticas de
administração e planejamento nos projetos, no seu gerenciamento e/ou avaliação, na
organização de eventos públicos, na estruturação de cursos e seminários para treinamento
de profissionais e na transmissão de conhecimentos, em suma, o seu “modus operandi”,
aquilo que a define propriamente como uma agência de cooperação técnica.
As práticas do escritório são baseadas em um modelo racional de administração
eficiente que atua por meio de normas e critérios de planejamento, execução e avaliação;
ele é transmitido da Alemanha para ser operacionalizado por profissionais em seus
trabalhos cotidianos. No Brasil, a GTZ produz uma tecnologia de gestão e governo
baseada em saberes específicos para administrar, monitorar, avaliar e planejar projetos,
visando planejar “políticas” com legitimidade e exclusividade isto é, planos e ações de
governo por meio dos quais o próprio Estado, em certo plano, corporifica-se.

31
Neste sentido, são valorizados comportamentos sociais representados como
tipicamente “alemães”: ordem, disciplina, rigor e muito trabalho. Como nos relata um ex-
funcionário da GTZ:

Eu estive nesta posição porque o Paulinelli insistiu. Ele me conhecia e disse: “eu
quero ele”. Eu não tenho doutorado. Eu tenho dois diplomas, não sou habilitado.
Sou um cara comum, que tava lá porque ele me queria. O cara te conhece, ele
confia. Ele sabe que você trabalha muito mais ainda do que ele. Nós alemães
somos assim, trabalhamos o tempo todo, sem parar. Somos workaholic.

O escritório desempenha também o papel de centro de informações sobre os


projetos e as relações com os funcionários e os consultores, além de ser um ponto de
constante contato com a sede da GTZ na Alemanha e com o BMZ. A sede da GTZ na
Alemanha fica em Eschborn, onde trabalham cerca de mil funcionários, além de haver
escritórios também em Frankfurt, Bonn, Berlim e Bruxelas.9 No total, o seu quadro de
funcionários ultrapassa os 10 mil em mais de 130 países em todo o mundo. O Brasil é um
dos 67 países que possuem um escritório da GTZ.
Em função do papel de relevo que o governo alemão vem desempenhando desde
os anos 90 em políticas para o meio ambiente e para as populações e as terras indígenas
no Brasil, analisamos as condições discursivas e operacionais de atuação de profissionais,
técnicos e gerentes que trabalham em projetos e programas da GTZ no Brasil, objeto
desta tese. Apesar de serem freqüentemente alvo de pesquisas sobre as práticas de
cooperação ou de solidariedade internacional, as ONGs não são o foco da presente
pesquisa, a não ser como subsidiárias ou complementares das políticas instituídas por
órgãos dos governos envolvidos.
No Brasil, o governo da Alemanha vem desenvolvendo projetos de cooperação
técnica em várias regiões há mais de quarenta anos, por meio de um acordo de
cooperação técnica formalmente iniciado em 1963. Apesar de longa e duradoura, a
história desta relação de intervenção de instituições deste governo em programas sociais e
ambientais no Brasil é praticamente desconhecida, mantendo até certa “invisibilidade”, o
que se contrapõe a uma forma de intervenção mais explícita, hegemônica, característica
da atuação de agências norte-americanas, como a USAID, por exemplo, ou de
9
Desde 1993, a GTZ tem escritório em Bruxelas para uma atuação mais estreita entre o governo
alemão e a Comissão Européia no que diz respeito aos assuntos relacionados à Europa.

32
instituições multilaterais como o Banco Mundial e as agências do sistema ONU
(Organização das Nações Unidas).
Esta oposição e competição aparece de forma recorrente nos discursos dos
funcionários da GTZ nas falas dos brasileiros que trabalham em projetos em que estão
presentes representantes norte-americanos do Banco Mundial e alemães da GTZ, por
exemplo. Como vemos no relato de uma alemã que participou da estruturação do PPG-7
no Brasil, o espaço de atuação de ambos os governos no “campo da cooperação para o
desenvolvimento” era fortemente disputado:10

Os Estados Unidos nunca participaram oficialmente do PPG-7, mas o Banco


Mundial, para mim, é uma organização internacional, mas é norte-americana.
Como o Banco Mundial assumiu a coordenação do PPG-7 - nunca sabia porque,
já que a Alemanha deu uma grana, pagou quase tudo e o Banco Mundial
coordenava - custou uma nota para nada. Mas tudo bem. Nós entramos em
choque permanente com eles! Permanente! Eu lembro quando cheguei a primeira
vez, em 1995, eu fiz pesquisa anos e anos na Flona Tapajós11 . O Banco Mundial,
junto com o governo brasileiro, queria tirar a população da Flona – tem uma lei
da Flona que não permite gente . Entendíamos que tirar as pessoas da terra, isso
faz a destruição. Nós ganhamos, eles ficaram. Desta briga eu entendi que a visão
do Banco Mundial – norte-americana – era de fazer um parque nacional da
Amazônia. Foi a briga entre uma visão de “áreas de conservação” norte-
americana contra a de desenvolvimento sustentável. Acho que hoje em dia está
resolvida esta briga, mas na época, não.

Nesta fala, como em outras situações, observa-se que o poder de dizer “como se
faz” ou de assumir o papel principal no que diz respeito ao conhecimento implícito nos
programas ou nos projetos desenvolvidos tem relação direta com o volume de recursos
aportado. Fica evidente o conflito latente, senão explícito entre os “doadores”, o qual se
expressa e é traduzido em termos conceituais, mas que os precede à sua chegada ao país
estrangeiro porque se define como uma disputa entre eles por acúmulo de capital
simbólico, o que tem a ver com a dádiva, com os recursos oferecidos. Um representante
do governo brasileiro que atuou como coordenador do PPG-7 argumenta neste mesmo
sentido: 12 “De todo jeito, eles (os alemães) são importantes para o RFT porque sempre

10
Profissional alemã, em entrevista concedida no Rio de Janeiro.
11
Flona é a denominação para Floresta Nacional. É uma unidade de conservação cujas formas de
manejo dos recursos naturais são bem mais restritivas do que nas terras indígenas.
12
Em entrevista concedida em 13 de outubro de 2003, em Brasília.

33
tiveram grande influência nos rumos do RFT e você só adquire importância quando você
coloca dinheiro.”
Em certo sentido, é lícito afirmar que o governo alemão exerce uma influência
conceitual e ideológica discreta particularmente no campo social e ambiental junto a
populações e a espaços do território brasileiro, e o faz por meio de processos
administrativos de intervenção cuja lógica é pouco acessível tanto às populações
envolvidas como aos setores da administração brasileira. Se supusermos que este tipo de
intervenção silenciosa resulta de uma estratégia racional que se presta a uma lógica de
invisibilidade para maior expressão de poderes sem incorrer em críticas, poderíamos
adotar como hipótese o fato de que esta discrição seja uma forma de garantir seu sucesso
ou pelo menos de não atrapalhar o seu desempenho.
Parece, à primeira vista, uma contradição o fato de que as atividades de
cooperação técnica não tenham visibilidade, considerando ser o reconhecimento político
e público um dos princípios da ação de “solidariedade” internacional, resultante do
acúmulo de capital simbólico advindo dos recursos, ou seja, da dádiva concedida.
Em um país como o Brasil, com disponibilidade de recursos públicos e privados
para aplicação em projetos sociais, este tipo de intervenção internacional fica muito
suscetível de críticas, sendo a discrição, portanto, a melhor das opções para dar
continuidade às atividades de cooperação. O histórico da entrada do Brasil em programas
chamados de cooperação para o desenvolvimento, o que desencadeou mudanças na
administração pública para o recebimento de recursos, esteve submetido desde os seus
primórdios às diretrizes e às flutuações da política norte-americana como parte da
ideologia de segurança hemisférica, o que foi percebido com reservas por muitos
intelectuais no país. De maneira diferente, em países da América Latina ou da África, em
condições econômicas mais precárias e com frágil articulação política, os programas de
cooperação para o desenvolvimento são fartamente adotados e as instituições que assim o
fazem são menos passíveis de críticas.13

13
Um caso exemplar sobre esta facilidade de entrada de agências internacionais em países mais
carentes pode ser observado no trabalho de James Ferguson (Ferguson, 1994:3-8) sobre desenvolvimento
em Lesotho, no qual o autor analisa uma multiplicidade de projetos de “ajuda” e “assistência”
desenvolvidos por agências governamentais e organismos internacionais desde a década de 70 no país, o
que ele caracteriza como um volume desproporcional de ajuda, uma elevada concentração de assistência ao
desenvolvimento em um só país.

34
Diante da discrição e do pouco alarde que presentes nas instituições alemãs, como
a GTZ, ao desenvolverem projetos no Brasil, possíveis atribuições à sua atuação, tidas
como de “intervenção”, podem soar inadequadas, já que o exercício de poder é
implementado de forma menos explícita por meio de estratégias pedagógicas de
transformação e também pela regulação na restrição à disponibilidade de verbas para
projetos que não se ajustam às definições de recursos.
Assim, quanto ao Brasil, ainda que aparentemente não haja o reconhecimento da
importância dos alemães, poderíamos afirmar que seu prestígio é reconhecido, mesmo
que discretamente, nos meios políticos governamentais e não-governamentais muito mais
pelas relações pessoais e profissionais que os representantes de suas organizações vêm
construindo historicamente no país. Sabe-se, como atributo a mais, que dispõem de
recursos e, por isso, são identificados como “bons parceiros” para o desenvolvimento, de
maneira especial quando estão envolvidas as questões ambientais.
Nos fóruns de debates e discussões sobre estratégias políticas de desenvolvimento
sustentável, particularmente no caso da Amazônia, são muito atuantes os representantes
de organizações eclesiásticas, fundações políticas ou agências governamentais alemãs. A
sua presença e a de pesquisadores alemães em espaços de discussão em universidades ou
centros de pesquisa, como o Núcleo de Estudos Amazônicos, do Museu Goeldi, revela os
fortes e duradouros vínculos entre representantes de ONGs e os de governos, bem como
entre pesquisadores acadêmicos e outros formadores de opinião do Brasil e da Alemanha,
pelo constante suporte em projetos que as organizações alemãs garantem. Essas redes
institucionais mantém-se por meio de profissionais que atuam nas instituições e que
mudam freqüentemente de condição, passando de ONG para governo ou universidade,
mudando de uma ONG para outra, ou de um departamento do governo para outro.
Em uma investigação rica e criteriosa sobre as práticas de agências
governamentais e organismos internacionais no processo de consolidação do Estado
timorense, Silva evidencia para nós aspectos associados ao regime da dádiva: “Para além
de determinar o status do doador, o regime da dádiva, entre outras coisas, cria vínculos,

35
atribui identidade às coisas, define relações de poder e é orientado por uma etiqueta
própria.” 14
A autora nos lembra ainda da importância da abordagem etnográfica das práticas
adotadas por organismos internacionais em contextos políticos internacionais: “uma
análise limitada aos documentos não dá conta de perceber o que está por trás dessas
políticas de doação: uma corrida por status político, no qual a dádiva é moeda de troca e
fonte de poder e prestígio.” 15
A pesquisa em agências governamentais administrativas enfrenta reações e
resistências de todo tipo, tanto maiores quando trata-se de instituições estrangeiras. Neste
sentido, a experiência de realização de observação direta das práticas efetivas da GTZ,
agência de cooperação alemã na administração pública brasileira foi o meio de trazer à
tona processos e procedimentos pouco explícitos sobre poder.

Objetivo

O objetivo desta tese é analisar certas práticas políticas de um órgão da


administração pública do Estado da Alemanha, enquanto formas de administração e
intervenção na administração pública de outro Estado, o Brasil. Tomou-se por referência
o trabalho desenvolvido no país pela GTZ, uma agência da administração pública alemã
que atua naquilo que o Estado formula e descreve como cooperação técnica, e que
envolve administração, planejamento e avaliação de projetos; organização de cerimônias
e comemorações públicas; estruturação de cursos e seminários para treinamento de
profissionais; em suma, aquilo que de forma simplificada costuma ser chamado de
“transmissão de conhecimentos”. Este processo envolve ainda a projeção de imagens de
um modo de ser e de se comportar que, focado na instância profissional e técnica,
ultrapassa-o, alcançando a subjetividade na forma de estruturas mentais.16

14
Silva, Kelly Cristiane da. Paradoxos da autodeterminação: a construção do Estado nacional e
práticas da ONU em Timor-Leste. Tese de doutorado, DAN/UnB, Brasília, 2004. p.72.
15
Ibidem, p.71.
16
Bourdieu, P. “Espíritos de Estado”. In: Bourdieu, P. Razões práticas sobre a Teoria da Ação.
Campinas: Papirus Editora, 1996. p.105.

36
O objetivo é analisar como esta política de cooperação técnica funciona e como
opera enquanto instrumento de governo e administração de um Estado Nacional em
espaços estrangeiros, considerando que, por ser uma política de Estado, viabiliza a
produção de categorias de pensamento que utilizamos espontaneamente,17 e o faz por
meio de um artifício de neutralização do aspecto político.18 A este processo Foucault
denominou tecnologias políticas, instrumentos que promovem o mascaramento do
aspecto político sob o véu da neutralidade. Aqui, vale lembrar, ela assume uma dimensão
específica: institui formas de dominação em territórios estrangeiros.19
A cooperação técnica, ainda que defina seu objetivo como a transmissão de
conhecimentos e técnicas para redução da pobreza, através de práticas de monitoria e
capacitação associadas à doação de recursos, na verdade expressa formas de
disciplinamento, nas quais promove a formação de elites, de hierarquias e assimetrias
sociais nos locais onde atua, caracterizando-se, do ponto de vista mais geral, em um
processo social civilizatório.
A projeção de imagens em espetáculos rituais de encontro e celebração garante
as condições necessárias à naturalização e à cotidianidade das práticas da cooperação.
Neste sentido, as formas de intervenção da GTZ expressam um dos meios pelos quais a
administração do Estado alemão se efetiva em outros territórios, delineando
representações para o outro, o estrangeiro, e servindo de lente privilegiada para se
proceder a uma leitura antropológica do Estado. Observamos a prática a partir de quem a
faz: 1. na administração de projetos, 2. na organização de eventos públicos, enquanto
“ritos de instituição” de sua intervenção no país, como forma de garantir legitimidade e
3. no treinamento, por meio de cursos, seminários e debates. Cada uma dessas
modalidades de atuar significa diferentes expressões de “transmissão de conhecimento”.
Assim procedi na realização da etnografia desta organização.20
Como o objeto que observamos é a operacionalidade administrativa de controle e
regulação da GTZ em políticas governamentais, o foco dirige-se para as práticas de

17
Idem, p.97.
18
Shore, C. & Wright, S. Anthropology of policy. Critical perspectives on governance and power.
London and New York: Routledge, 1997. p.8.
19
Shore, C. & Wright, S., opus cit., p.9.
20
A GTZ era chamada no Brasil de “Sociedade Alemã de Cooperação Técnica”, sendo atualmente
adotada a denominação de “Agência de Cooperação Técnica Alemã”.

37
cooperação técnica alemã enquanto técnicas de poder rituais e simbólicas implementadas
junto aos órgãos da administração pública brasileira cuja finalidade é produzir e difundir
uma auto-representação que coloca a Alemanha como elemento fundamental na
construção de uma história de políticas ambientais e sociais, particularmente indígenas,
no Brasil.
Pretende-se assim contribuir para maior elucidação das práticas de cooperação
técnica, buscando definir o contexto histórico e cultural, buscando fugir às usuais
representações de homogeneidade, e definições vagas enquanto um movimento, operação
ou processos de larga escala ou como as próprias instituições que implementam estes
processos.

Metodologia

Em função das características múltiplas do objeto de pesquisa, o levantamento de


dados de informações sobre projetos desenvolvidos por organizações alemãs no Brasil
fundamentou-se em uma estratégia de pesquisa “multissituada” e multiinstitucional no
Brasil. A partir da caracterização breve de algumas possíveis frentes de entrada no
campo, entre Rio de Janeiro, Manaus e Brasília – sendo Brasília o centro político e
administrativo do país – decidi que para observar de perto as dinâmicas das práticas de
poder envolvidas no que se denomina de cooperação técnica para o desenvolvimento, o
lugar para observação direta deveria ser Brasília.
Observa-se, ao pesquisarmos este campo da administração pública, que a
complexidade implicada na configuração de um programa de cooperação internacional,
pelo comprometimento de uma diversidade de atores em escalas diferenciadas (locais,
nacionais, internacionais e globais), pelo conjunto de formas de atuação e pelos fluxos de
distintas naturezas entre fronteiras nacionais (de conhecimentos, de pessoas, de recursos
financeiros, de equipamentos, entre outros) é absorvida por um discurso que promove
uma naturalização das expressões e uma simplificação de toda a sua natureza complexa.21

21
Grillo, R. “Discourses of development: the view from Anthropology”. In: Grillo, R.D. & Stirrat,
R.L. Discourses of development: anthropological perspectives. Oxford/New York: Berg, 1997. p.1-34.

38
Assim, foi necessário repensar o conceito antropológico de campo em novas
bases, buscando alternativas à concepção tradicional baseada em uma aldeia ou em uma
comunidade local específica. Ao caminhar no sentido proposto por Shore e Wright,22 o
campo deslocou-se para as “conexões entre níveis e formas de processos e ações sociais
em diferentes lugares”, desde as organizações de Estados nacionais distintos até os
lugares de encontro: projetos e eventos públicos enquanto rituais do Estado.
O período de pesquisa foi bastante extenso, de 2002 a 2007, e ela foi realizada em
três etapas: em 2002, por cerca de dois meses entre Brasília e Manaus; entre 2003 e 2005,
quando passei a residir em Brasília e participei diretamente de atividades nas instituições
e em eventos e convenções internacionais realizadas pela GTZ; em 2006 e 2007,
atividades eventuais ainda foram concretizadas no sentido de complementar alguma
informação que ainda se fazia necessário levantar.
O arrolamento de dados para a pesquisa foi baseado em três procedimentos
principais: levantamento e análise documental, observação participante nas instituições e
entrevistas com funcionários das organizações e dos órgãos de governo alemães e
brasileiros.
A seleção e a leitura de documentos foram feitas em várias instituições brasileiras
e alemãs, governamentais e não-governamentais: GTZ, Funai, Agência Brasileira de
Cooperação (ABC), Ministério de Relações Exteriores (MRE), da ONG Centro de
Trabalho Indigenista (CTI), entre outras de menor importância. Foram pesquisados
documentos sobre as instituições e suas regras de atuação e sobre acordos e atos
internacionais. Além destes, documentos produzidos pela GTZ que regulamentam suas
práticas e as de seus funcionários no Brasil, como o Compêndio da GTZ, livro que
sistematiza, como um manual de consulta, diretrizes, procedimentos e conceitos
fundamentais da cooperação técnica alemã, desvendando normas e definições a partir das
quais trabalham no exterior.
Os documentos enquanto referências históricas de dados etnográficos, foram
fontes muito importantes para traçar alguns caminhos inovadores de interpretação e
estabelecer correlações entre pessoas e contextos capazes de esclarecer muitos aspectos
do objeto pesquisado.

22
Shore, C. & Wright, S., opus cit., p.14.

39
Quanto à observação participante, priorizei dois “lugares”: o projeto PPTAL, que
freqüentei de forma menos sistemática, entre 2002 e 2003 e a GTZ, onde permaneci por
período mais longo no escritório, entre 2003 e 2004.
No PPTAL, eu me ative às formas de entrada e de absorção dos procedimentos
alemães no órgão indigenista brasileiro, como ele havia sido elaborado e quais as
articulações locais postas em prática com a participação da organização alemã. Busquei
explorar as dinâmicas de redefinição na administração pública de orientações, antes
refratárias, que incorporam o projeto de cooperação resultante de todo um processo
construído por meio de pessoas em redes já existentes do ambientalismo e do
indigenismo. Para complementar a história do projeto, recorri a algumas pessoas que
participaram do seu momento inicial, entrevistei Isa Pacheco Rogedo e Sidney Possuelo,
a partir dos quais tive contato com membros do CTI, que também tomaram parte na
negociação e na elaboração do projeto.
Ao longo da pesquisa, compreendi que o foco restrito a um projeto limitava
muitos aspectos que explicavam a lógica própria à cooperação técnica alemã da GTZ,
porque não garantia uma observação comparada entre trabalhos daquela mesma
organização, além de que as particularidades do projeto, as tensões e conflitos
envolvendo brasileiros e alemães já terem sido exploradas por outra pesquisadora e por
um consultor da GTZ23.
Como não tinha clareza quanto ao que era próprio daquela conflituosa relação
com a Funai e o que era específico da GTZ, decidi ampliar o universo de análise ao
campo institucional e conceitual do desenvolvimento na Alemanha onde se situava a
GTZ, envolvendo o ministério alemão BMZ. Isto implicava ainda entrar em contato com
outras instituições da administração pública brasileira da área de meio ambiente na qual a
GTZ também desenvolvia projetos vinculados ao PPG-7 no Ministério de Meio Ambiente
(MMA), e com aqueles setores que regulamentavam os acordos de cooperação técnica
entre Alemanha e Brasil, especialmente a ABC, além de outros setores do MRE.
Busquei abordar a agência de cooperação técnica alemã, a GTZ a partir de como
ela se representa, daquilo que ela afirma ser enquanto uma agência alemã de cooperação

23
Lima, Ludmila. “Se a FUNAI não faz, nós fazemos”. Conflito e mudança no contexto de um
projeto de cooperação. Tese de doutorado, UnB/DAN, Brasília, 2000. Ver também: Almeida, Alfredo
Wagner Berno de. “Avaliação Independente sobre o PPTAL”, Consultoria apresentada à GTZ, 2001.

40
técnica. Analisei deste lugar periférico as próprias “organizações doadoras”, ou “do
Império”, seguindo uma linha de investigações aberta por Laura Nader sobre o impacto
de instituições em sociedades que os antropólogos tradicionalmente estudam, e propõe
um desafio aos antropólogos: “What if, in reinveniting anthropology, anthorpologists
were to study the colonizers, rather than the culture of the powerless, the culture of
affluence rather than the culture of poverty.”24
A elaboração de etnografias em burocracias ainda atrai muito poucos
antropólogos. Hinshaw já apontara em 1980 a carência de estudos antropológicos sobre
administração pública, o que ele atribuía à falta de inclinação dos antropólogos pelo
trabalho com burocracias:25 “Few anthropologists have written about administration and
bureaucratic cultures, for the reason that anthropologists find administrative roles and
participant observation in bureaucracies a bit distasteful”. No entanto, a partir dos anos
1990 vimos que trabalhos como o de Helen Schwartzman, Ethnography in Organizations
(1993) e de Susan Wright, Anthropology of Organizations (1994) apontam para um
crescente interesse por parte de antropólogos em relação ao tema e apresentam questões
que foram muito inspiradoras para o presente trabalho, particularmente em relação a
abordagem que trazem sobre poder nas organizações.
No entanto, há ainda outros aspectos, relacionados particularmente à relação dos
antropólogos não com comunidades iletradas ou tribais, mas com os da sua própria
cultura, de formação universitária e outros atributos que os colocam diante de um
contexto questionador e pouco favorável à sua aceitação entre eles, fato que não concorre
para a realização de um trabalho de observação participante.
Há pesquisas desenvolvidas prioritariamente a partir de análise documental, e as
que são realizadas através da observação participante diretamente em instituições.26 Neste
último caso, o processo de levantamento de dados é mais difícil, ficando o pesquisador
vulnerável às dinâmicas de poder dos atores em jogo, sendo ora envolvido em suas redes
de relações, ora evitado, ou ainda mantido sem as informações relevantes de que os atores

24
Nader, L. “Up the anthropologist”. In: Hymes, D. Reinventing Anthropology. New York,
Ramdom House, 1972, p.289.
25
Hinshaw, R.E. “Anthropology, administration and public policy”. Annual Review of
Anthropology, 9, p.509, 1980.
26
Lima, Ludmila, 2000.; Silva, K. 2004. Castro, J. 2005.

41
dispõem. Tão enredadas relações implicam uma relativa perda da noção de
distanciamento do pesquisador, que se faz mais intensa do que as pesquisas que lidam
com dados históricos e documentos arquivados.
Além da falta de interesse que este ambiente promove em boa parte dos
antropólogos, com seus escritórios no espaço urbano, salas com ar-condicionado, janelas
semifechadas, luz fria, telefones e computadores individuais, a própria pesquisa é uma
atividade estranha, pouco usual nos escritórios de agências públicas, demonstrando quão
pouco público é o seu fazer. De maneira geral, a entrada do pesquisador cria um temor de
auditoria, de investigação criminal, não havendo um claro entendimento por parte dos
funcionários quanto às finalidades de um estudo acadêmico, principalmente
antropológico baseado na observação direta naquele local. São raras as ocasiões em que
isto acontece, dependendo da formação de algumas pessoas nas instituições.
Os documentos “públicos”, por sua vez, são instrumentos de poder de quem os
detém. Na maioria das instituições “públicas”, apesar de haver um arquivo de
documentos, muitos deles são pessoalmente guardados pelos coordenadores de projetos,
chefes de departamentos ou mesmo funcionários. Apesar de serem “públicos”, acessá-los
é uma manobra diplomática, uma conquista que exige procedimentos formais de
apresentação de compromissos escritos e cartas aos superiores para o convencimento do
interesse exclusivamente acadêmico da pesquisa, porque há sempre uma suposição de
que haja interesses políticos por trás dela.
Como já mencionei, a GTZ é uma das várias organizações alemãs que executam
esta política, uma política de Estado, e como é uma das mais importantes agências,
centraliza em seus escritórios regionais informações também sobre trabalho
desenvolvidos por profissionais de outras agências e fundações alemãs no Brasil, como
DED, Fundação Heinrich Böll, Deutsche Stiftung für Intenationale Entwicklung
(Fundação Alemã para o Desenvolvimento Internacional - DSE), entre outras.
Assim, o segundo contexto de observação da cooperação alemã foi o escritório da
agência GTZ, local privilegiado de produção de saberes e ponto de encontro e referência
cultural para os funcionários alemães, com uma abordagem centrada na etnografia de
organizações, conforme será analisado no capítulo 5. No período mais longo em que
fiquei em Brasília, de 2003 a 2005, freqüentei seguidamente o escritório da GTZ,

42
realizando novas entrevistas e pesquisa bibliográfica mais ampla em biblioteca própria. O
escritório da GTZ em Brasília é o local onde supostamente se administra como na
Alemanha, fala-se alemão e encontram-se os alemães que trabalham com projetos de
desenvolvimento deste país, inclusive de outras organizações. É o lugar mais próximo, o
elo com o exterior, fonte de controle e regulação que vem de fora.
Por um período contínuo de um semestre e, posteriormente, em visitas
esporádicas, durante os dois anos em que estive em Brasília presenciei a atuação dos
funcionários nos processos em andamento do escritório de representação da GTZ no
Brasil. Procurei participar de situações rotineiras do escritório, entrevistei os peritos e os
funcionários, fiz levantamento das publicações existentes na pequena biblioteca e estive
presente em eventos que caracterizam os rituais da cooperação, como convidada da
GTZ, das redes de ONGs ou das instituições do governo brasileiro.
Um dos caminhos que busquei para pensar a constituição da GTZ, além daquele
formal, a partir da estrutura da empresa e de seu caráter institucional, foi entender quem
são os alemães que atuam em projetos do PPG-7 nos quais a GTZ estava envolvida:
coordenadores de programas, coordenadores de projetos, peritos técnicos de atuação
local, auxiliares de contabilidade de escritório e secretárias. Entrar no universo das
relações pessoais dos peritos, buscando desvendar suas visões sobre o trabalho que
desempenham poderia revelar uma determinada perspectiva “de dentro” da organização.
São profissionais de variadas áreas, como filólogos, antropólogos, sociólogos,
economistas, administradores, pedagogos, agrônomos entre outros.
Uma de minhas hipóteses, a partir da análise das trajetórias sociais dos “peritos”
da GTZ, de voluntários e de outros que trabalham em projetos de cooperação para o
desenvolvimento é que há uma intensa circulação destes profissionais entre as instituições
governamentais e não-governamentais alemãs de cooperação em um mesmo país, o que
se presta a uma forma de administrar informações e conhecimento por uma mesma rede.
Outra hipótese é que a atribuição do sucesso de um projeto não se deve, em última
instância, a fatores associados a racionalidade “técnica” das burocracias, mas antes se
baseiam em características pessoais do perito e em sua capacidade de estabelecer
vínculos com a comunidade com a qual trabalha. O sucesso de um projeto estaria

43
relacionado, portanto, à construção de uma relação de confiança entre o perito e o grupo
com o qual trabalha, que reconhece seu valor.
Procurei identificar se seria possível falar de uma “trajetória alemã”, dos aspectos
singulares nas variadas formas de elaborar o “problema” e definir “soluções” nos projetos
de cooperação, independente das instituições que atuam e dos cargos que são ocupados.
Neste sentido, o foco seria a existência ou não de saberes e práticas especializados em
relação à gestão de populações indígenas, as “tecnologias sociais” de gestão de
populações e os conflitos decorrentes de concepções e práticas distintas da administração
pública nacional que definiriam a própria existência dos “peritos”, aqueles que detêm
esses saberes especializados.
Nos países onde atua, a GTZ está constituída por um corpo de profissionais
característico de burocracias da administração pública: diretores e coordenadores de
programas, funcionários responsáveis pela administração dos projetos junto à GTZ
central e contadores, além daqueles que desempenham a função direta de execução dos
projetos em órgãos de governo local, que no caso alemão, são os peritos técnicos. Eles
são os portadores de saberes e conhecimentos específicos de Estado e os transmissores
desses conhecimentos para órgãos de governo de outros Estados. Articulam-se, nas
variadas instituições às quais estão vinculados, por meio de redes sociais estabelecidas
não somente por ideais terceiro-mundistas, mas também por fundamentos de
solidariedade, de cristianismo e de princípios ambientalistas e conservacionistas.
Os profissionais da GTZ que atuam no Brasil são, em sua maioria, alemães
nativos, descendentes ou cônjuges de alemães. No caso dos peritos, em geral são todos
alemães nativos, cabendo aos descendentes e aos seus cônjuges funções administrativas
de menor responsabilidade, sendo raros os alemães nativos que não coordenam projetos.
Para esta pesquisa entrevistamos um grupo de alemães falantes da língua portuguesa, cuja
prática profissional se deu, em algum momento de suas experiências na GTZ, em projetos
desenvolvidos na América Latina e no Brasil.
Um aspecto muito pouco mencionado em publicações existentes sobre a GTZ é o
fato de ela ser uma empresa de direito privado, na forma de sociedade de

44
responsabilidade limitada27, de propriedade do governo federal alemão. Todos os
profissionais que trabalham em programas e projetos de desenvolvimento no mundo têm
com a GTZ um vínculo empregatício assalariado: são profissionais liberais e não
voluntários. Àqueles funcionários responsáveis pela execução de projetos em países
estrangeiros são garantidos salários bastante elevados, compatíveis com o mercado
europeu e pagos em euros. Além dos altos salários, têm sua mudança, carro e despesas
com moradia pagos por fora do salário recebido, o que permite uma vida de muito
conforto, representando também uma forma de poupar, já que o custo de vida em “países
em desenvolvimento” é, em geral, bem inferior ao da Europa. Por trás do discurso oficial
da bondade, das parcerias e da ajuda internacional, o campo do “desenvolvimento”
representa um grande mercado de trabalho para alemães no exterior, sobretudo para
aqueles formados em áreas como agronomia, zootecnia, botânica, ecologia, pedagogia,
sociologia, entre outros, que de maneira geral são campos restritos na Alemanha.
São chamados peritos aqueles a quem são atribuídas as funções de coordenação e
planejamento das atividades do projeto. O trabalho dos peritos envolve o monitoramento
e o acompanhamento das atividades de funcionários de órgãos dos governo locais com os
quais desenvolvem os projetos. Isto abarca desde ministros de Estado, presidentes de
órgãos da administração pública, diretores, coordenadores ou chefes de departamentos,
até funcionários das áreas chamadas técnicas.
Os peritos são responsáveis por repassar uma forma de administrar definida por
princípio como eficiente, sendo eles os “especialistas” treinados para implementar as
normas e os procedimentos de planejamento e gerenciamento de projetos desenvolvidos
pela GTZ. São familiarizados com esta forma de administrar por meio de cursos que
recebem na Alemanha e de estágios práticos que fazem em campo junto a outros peritos
mais experientes. A função dos peritos é fazer com que os conhecimentos relativos a
“administrar em territórios estrangeiros” sejam aplicados e transmitidos para os
profissionais com os quais trabalham, independente do tipo de projeto que eles venham a
executar. Assim, eles atuam como elos de uma cadeia de transmissão de saberes do
Estado alemão aos Estados com os quais cooperam, conectando a sede na Alemanha à
instância local e atribuindo valores e representações em um duplo processo de

27
A sigla que representa sociedade limitada na Alemanha é GmbH.

45
significação: traduzem para os “locais” o que entendem ser a GTZ, da mesma forma que
também o fazem sobre os significados dos problemas e questões dos países onde
desenvolvem os projetos. São eles os portadores de informações à sede da organização na
Alemanha sobre o andamento do projeto, como também trazem de lá novas normas e
diretrizes para execução de projetos. São, para a sede alemã, os tradutores, intérpretes do
“local”.
Foram realizadas entrevistas com brasileiros e alemães falantes do português que
trabalhavam ou haviam trabalhado em projetos da GTZ no Brasil, num total de 52
entrevistas, entre as quais 24 foram de funcionários da GTZ: diretores, coordenadores de
projetos, peritos, responsáveis administrativos por projetos, secretárias e mesmo ex-
funcionários aposentados. Havia ainda funcionários e representantes de outras
instituições alemãs, como do KfW, da Fundação Heinrich Böll, de Ongs e pesquisadores
de universidades alemãs, estes últimos por e-mail. Do governo brasileiro, representantes
de vários órgãos foram entrevistados: funcionários da Funai, do Ministério do Meio
Ambiente, da Agência Brasileira de Cooperação, da Secretaria de Assuntos
Internacionais e de Ongs brasileiras, como o INESC, o CTI e a FASE, totalizando 28
entrevistas. Deste conjunto, procurei obter um panorama diversificado de funcionários,
profissionais, agentes produtores e reprodutores da lógica da cooperação técnica alemã
que colocam em prática nas suas relações profissionais e pessoais.
Entre os alemães nativos atuantes no PPG-7, foram entrevistados: Monika
Grossman, perita da GTZ em Projetos Demonstrativos - PDA; Thomas Fatheuer, na
época perito da GTZ no PDA; Sondra Wenzel, perita da GTZ no PDPI; Gustavo Wachtel
(perito da GTZ nos projetos Áreas Protegidas (ARPA) e Corredores Ecológicos; Hans
Kruger, perito da GTZ no SPRN. Outros alemães que não eram ligados aos projetos do
PPG-7 também foram entrevistados, como Claudia Herlt, perita da GTZ no projeto DST-
AIDS; Anselm Duchrow, perito em projeto no semi-árido do Ceará; Ernst Lamster, ex-
funcionário da GTZ atualmente aposentado. Participei de encontros de antropologia da
ABA, em Gramado, e da ABANNE junto com Peter Schroeder, da Universidade Federal

46
de Pernambuco e Karin Naase, pesquisadora vinculada ao Museu Goeldi, no Pará, além
de Sondra Wentzel.28
Eu sabia desde o início que a aproximação com os alemães integrantes das redes e
das instituições desta pesquisa não seria fácil. As maiores barreiras que encontrei em
relação a eles no levantamento de campo da burocracia da cooperação em Brasília foi a
reserva ou a resistência de peritos, funcionários, técnicos, consultores da GTZ no Brasil.
Esta aproximação com a vida privada incomodou em muito os peritos alemães,
burocratas por excelência. O fato é que, ao tocarem as entrevistas em questões pessoais,
as respostas eram desviadas para o mundo do trabalho. Muitas vezes atribuíam às suas
ocupações a impossibilidade de concederem entrevistas ou de conversarem comigo sobre
o tema da pesquisa. Weber diz que “a organização moderna do serviço público separa a
repartição do domicílio privado do funcionário e, em geral, a burocracia agrega a
atividade oficial como algo distinto da esfera da vida privada”.29 Isto foi comprovado em
muitas situações cotidianas, nas quais tentava me aproximar mais da esfera pessoal dos
peritos e dos funcionários da GTZ, mas sem muito sucesso.
Em determinado momento da pesquisa, diante dessas dificuldades no contato
pessoal, resolvi optar por uma estratégia mais abrangente de levantamento de dados e
solicitei um horário para conversar com a diretora da GTZ no Brasil. Expliquei a respeito
dos problemas encontrados e pedi autorização para enviar aos funcionários da GTZ,
situados em todo o Brasil de acordo com os seus respectivos projetos, um questionário
com perguntas de caráter pessoal sobre as suas experiências no mundo da cooperação
internacional em geral e, particularmente, na GTZ. Ela pediu que mandasse para ela um
resumo da minha pesquisa e disse que remeteria aos funcionários, através da rede de
endereços eletrônicos, uma apresentação indicando que estaria sendo enviado por mim o
questionário para cada um deles. De cerca de 20 funcionários, somente uma resposta me
foi enviada. Além deste, em oportunidade posterior, uma das funcionárias que havia

28
Além dos alemães da GTZ e de outras instituições alemãs, entrevistei também funcionários
brasileiros da GTZ que atuavam em projetos no Brasil, mas que não eram necessariamente peritos. Alguns
o foram, como Walkyria Moraes, Maria Auxiliadora Cruz de Sá Leão e Márcia Gramkow, chamados
peritos locais. Já Ana Lucia Palfinger e Lucia Loebell eram funcionárias administrativas do escritório da
GTZ.
29
Weber, M. “Burocracia”. In: _______. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Editora,
1963. p.230.

47
recebido o questionário me disse que circularam entre eles várias mensagens sobre o
enfoque nas pessoas, e que eles teriam decidido em grupo não responder.
Nenhuma resposta me foi encaminhada, fosse de crítica à forma do envio do
questionário, fosse de justificativa em relação às razões de não responderem. Fiquei por
mais de um mês aguardando, em vão. Novamente enviei ao grupo uma solicitação de
colaboração, ou mesmo alguma indicação das razões de não estarem respondendo.
Um ano se passou até que recebesse pessoalmente as críticas e as considerações
sobre aquele episódio que me deixara bastante desestimulada e desesperançada com a
pesquisa. Em Manaus, em um evento de antropologia, uma “perita”, após algumas
explicações pontuais que fiz sobre cada uma das minhas perguntas no questionário,
concedeu-me uma entrevista, respondendo a algumas delas de caráter bem pessoal;
segundo ela, isto é bastante problemático quanto à identidade alemã: “A vida privada
para os alemães é ‘sagrada’, é uma questão a ser preservada. Em relação ao espaço do
mundo privado, os alemães mantêm reserva e discrição. Esta é uma característica comum
a nós.”
Sua definição da preservação da vida privada como algo sagrado, generalizado
para “os alemães” não foi exatamente o que observei nas entrevistas. Alguns deles na
GTZ, particularmente aqueles que tinham altos postos, posições elevadas na hierarquia,
respondiam com certa liberdade às questões pessoais. O fato é que a identidade
institucional é usada como uma forma de justificar os comportamentos pessoais,
mascarando-os, ou mesmo de representar a própria instituição a partir de seus
comportamentos .
Em outra ocasião, em Brasília, um ano após esta entrevista, um perito da GTZ,
responsável por um projeto que fazia interface com os projetos indígenas, o Corredores
Ecológicos, justificou a posição que levou o grupo a não responder às perguntas. Sua
explicação seria distinta daquela que me fora apresentada anteriormente, não fazendo
menção a qualquer atributo relacionado à identidade nacional. Disse-me ele que o
questionário que apresentara tinha perguntas pessoais que haviam sido colocadas em um
meio de muito fácil veiculação, a Internet, de divulgação pública. Para eles, não havia
ficado claro no e-mail que eu enviara qual era o tipo de pesquisa que estava fazendo e,
como envolvia certa “indicação” da diretora da GTZ, insinuava estar vinculada ou

48
submetida àquela que era a chefe de todos eles. Este mesmo perito explicou também que
há um sindicato dentro da empresa, na Alemanha, que anualmente investiga questões
pessoais sobre as condições de trabalho, a adaptação ao país, se têm apoio da agência. No
entanto, para que se sintam seguros sobre o destino dessas informações, sabendo que
estarão guardadas confidencialmente, há uma senha de acesso, muito diferente do que eu
havia feito.
Em seguida, contou-me outro episódio sobre uma avaliação que a GTZ solicitara a
nove ONGs da Amazônia sobre o trabalho que vinha realizando nos projetos ARPA e
Corredores Ecológicos. Os resultados consolidados nas críticas e nos relatórios de
avaliação enviados pelas ONGs deveriam ser retornados a elas, com o objetivo de
estabelecer um diálogo. No entanto, os relatórios ficaram somente para discussão interna,
não sendo divulgados publicamente porque, em suas palavras: “Nós somos governo. Tem
coisas pessoais que são colocadas em relatórios que não podem se tornar públicas. Uma
das demandas das ONGs era de que fôssemos mais próximos às ONGs, mas nós somos
governo”.
A língua foi um dos pontos de maior desconforto para alguns alemães que
entrevistei, até mesmo para funcionários brasileiros da GTZ, que me indagavam como
pretendia fazer uma pesquisa sobre alemães sem dominar o alemão.30
Da forma como me foi colocada – insistentemente – por peritos e até por
funcionários administrativos da GTZ, a questão da língua alemã tinha uma representação
fundamental no que concerne aos procedimentos administrativos da agência. Ela era,
sobretudo, um dos elementos de identificação de um grupo, aquele que define os limites
de uma comunidade deutschland.31 Uma funcionária da GTZ, de formação superior,

30
Fiz durante um ano um curso particular com um professor alemão, o que me forneceu uma
estrutura da língua, favorecendo particularmente a leitura, acompanhada de dicionário, mas não sendo
suficiente para pesquisa e leitura aprofundada de relatórios e documentos de análise de órgãos de governo
alemão.
31
A expressão “comunidade deutschland” foi usada na revista alemã Deutschland, publicada pelo
Ministério de Relações Exteriores da Alemanha, para referir-se ao conjunto de pessoas que têm
nacionalidade alemã. Até 2000, a cidadania alemã baseava-se no princípio do jus sanguinis, ou seja, da
descendência, independente do nascimento em solo alemão. A partir de então, passou a ser permitido aos
filhos de estrangeiros nascidos na Alemanha adquirirem a cidadania alemã desde o nascimento, conforme
mudanças na Lei de Reforma do Direito de Cidadania. In: Ministério Federal das Relações Exteriores.
Perfil da Alemanha. Berlim: Media Consulta Deutschland GmbH, 2003. p.20.

49
argumentava que para trabalhar ali o principal requisito era falar o alemão e não
necessariamente ser muito competente.
Cheguei a Brasília para fazer a pesquisa sem vínculos com aquele “mundo da
cooperação” e com as instituições que pesquisava, o que me colocava em uma posição de
outsider em vários sentidos. Do ponto de vista da “comunidade da cooperação
internacional” – funcionários que trabalham nesta área – eu também não me enquadrava:
não era funcionária pública, não era consultora de agências de cooperação internacional,
não era diplomata, estas sendo algumas das principais formas de inserção nas políticas de
cooperação internacional. Era uma mera pesquisadora, ainda mais com vínculos
distantes, no Rio de Janeiro e não na UnB.32
Em relação aos alemães, outros fatores me excluíam quanto a uma forma de
inserção: a dos estrangeiros, dos doadores. Entre os funcionários da GTZ, alemães e não-
alemães, era constantemente testada em relação às minhas afinidades com o mundo
deutschland. Aí também eu não me enquadrava: não sou alemã, nem mesmo descendente
de alemães ou cônjuge de um, não sou uma exímia falante da sua língua, ou sequer morei
na Alemanha ou trabalhei em suas empresas ou agências.
Esta distância quanto ao seu país intrigava-os em função dos meus interesses na
pesquisa. Minha relação com os alemães da GTZ restringiu-se ao enfoque da pesquisa
antropológica, o que era visto pelos seus funcionários de Brasília como uma “reedição”
de outros trabalhos de antropologia bastante críticos sobre a GTZ, e isto se tornou uma
condição fundamental para a restrição a determinadas informações. 33

32
Consultor, na definição do dicionário Aurélio, é “aquele que dá pareceres acerca de assuntos da
sua especialidade”. Na prática, o consultor pode ser um profissional de qualquer área contratado para
prestar um serviço temporário a órgãos de governo, ONGs ou instituições privadas, com base em
conhecimentos próprios à sua formação acadêmica e profissional. Diz-se usualmente que o contrato de
consultoria se dá “por produto”, considerando que o resultado final de uma consultoria seja um relatório,
uma avaliação ou um parecer (o produto a que se refere) sobre determinado assunto específico de um
projeto, podendo ser feito em qualquer uma de suas fases, desde sua negociação até o seu encerramento.
33
No Brasil, há pelo menos dois trabalhos antropológicos sobre a atuação da GTZ no projeto
indígena PPTAL, os quais mencionam a relação da perita da GTZ com os técnicos brasileiros: o primeiro,
de caráter essencialmente acadêmico, refere-se a uma tese de doutorado em antropologia social pela UnB,
de Ludmila Lima (2000); posteriormente, em 2001, foi encomendada pela própria GTZ uma consultoria ao
antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida de avaliação de progresso de projeto. Esta avaliação
costuma ser feita por alemães, para que se dê continuidade ao financiamento. Neste caso, Almeida fez uma
“avaliação independente” e adotou uma abordagem acadêmica, com muitas críticas ao projeto. As
repercussões na agência não foram das melhores, mas também aconteceram no meio de antropólogos e
pessoas envolvidas com a questão indígena no Brasil. A procedência destes trabalhos talvez tenha
dificultado um pouco mais o estabelecimento da confiança necessária ao levantamento de dados.

50
No que se refere à abordagem que eu pretendia adotar, não encontrei, no entanto,
restrições por não dominar o alemão, particularmente porque o grupo que estava
pesquisando falava o português, já que se tratava de uma agência situada no Brasil. Além
destes, muitos de meus informantes eram brasileiros que trabalhavam diretamente com os
alemães, desde funcionários do escritório central da GTZ até funcionários dos projetos.
Estes últimos não eram contratados pela GTZ, mas atuavam em órgãos governamentais e
em instituições não-governamentais diretamente ligadas aos projetos em que a GTZ
estava presente.
Apesar de o domínio do alemão não ser indispensável para a pesquisa,
compreendi que o lugar de “excluída” que me atribuíam, por não fazer parte de uma
comunidade deutschland, tinha muitos significados, sobretudo no que se referia a uma
posição hierárquica. A compreensão da língua nos distinguia culturalmente e, neste
sentido, a assimetria era um elemento marcante. 34
Ao considerar que tais relações “de cooperação” se inserem em uma estrutura
internacional assimétrica de poder, cuja dimensão e efeitos não podemos negligenciar, a
falta de fluência na língua dos “doadores” dirigiu o meu olhar para as formas em que ela
era acionada enquanto dispositivo de poder, tanto nas experiências observadas nas
relações pessoais, como nas publicações institucionais.
A “marginalidade” da língua alemã é uma questão colocada em fóruns e debates
internacionais, e a importância da tradução para outras línguas de textos e obras neste
idioma é reconhecida como forma de se estabelecer diálogo com parceiros, como consta
em publicação da GTZ/BMZ: “existem versões da edição alemã nas línguas inglesa,
francesa e espanhola, a fim de serem eliminadas as barreiras lingüísticas no diálogo com
os colegas nos países parceiros da GTZ”. 35
Apesar de muitas publicações em português, inglês ou espanhol, os livros e os
periódicos em alemão para o público científico e acadêmico revelavam uma determinada
escolha de quem os produzia por dialogar com os pares de mesma língua. Ou mesmo de
restringir o acesso a informações, reflexões e interpretações sobre a realidade social e
política de um público não-alemão. A publicação na língua-mãe pode ser interpretada
34
Steinmetz, George (ed.). State/Culture: State formation after the cultural turn. Ithaca and
London: Cornell University Press, 1999.
35
BMZ/GTZ. Desenvolvimento rural regional: princípios de orientação. Eschborn, 1987. p.7.

51
como uma opção que contradizia alguns dos princípios de horizontalidade das diretrizes
do BMZ. 36
Mas não só isso. É importante ressaltar que o alemão é a língua da burocracia
alemã, onde quer que ela esteja. A expansão das burocracias leva com ela seus
pressupostos de nacionalidade, de referências nacionais. A GTZ adota como padrão de
funcionamento gerencial que todos os documentos no trâmite administrativo dos projetos
no escritório sejam feitos em alemão, desde comunicados entre os funcionários até
contratos de serviços (inclusive de consultorias), contabilidade, documentos de avaliação
interna sobre os projetos e relatórios periódicos dos peritos. Ao se considerar a sua
atuação em mais de cem países, a prerrogativa do alemão como língua de referência tem
que ser instituída para controle administrativo por parte da central. Todos os documentos
relativos a projetos e programas no mundo inteiro são enviados à Alemanha.
Pesquisar nessas condições pouco familiares e pouco interessantes para os
“pesquisados” dificultou em muito a aproximação e o estabelecimento dos laços de
confiança necessários para a prática de levantamento etnográfico. Como o objetivo inicial
do trabalho era priorizar os relatos pessoais de profissionais alemães que atuavam na
“cooperação técnica” que a GTZ investia nos projetos com povos indígenas no Brasil,
sobretudo aqueles que tinham uma trajetória anterior – fosse em igrejas ou em
organizações não-governamentais nos anos 70 – a dificuldade de aproximação com os
alemães praticamente inviabilizava a investigação. Foi necessário um exercício de
adaptação às condições de acesso a informações, o que fiz por meio da pesquisa
bibliográfica, da observação nos escritórios, da participação em eventos e seminários
organizados pela GTZ e de entrevistas com brasileiros.
A aproximação com os profissionais alemães da cooperação foi particularmente
difícil, como veremos na análise sobre os peritos técnicos da GTZ, mas os obstáculos não
impediram a realização da pesquisa, seja as entrevistas, seja a observação participante. O
processo em ambas as situações ocorreu em meio às condições de trabalho dos escritórios
e às atividades cotidianas vividas na administração pública e nos organismos
internacionais em Brasília. Havia pressões de todo tipo, telefonemas, decisões políticas,

36
O site da GTZ e do BMZ foi traduzido para o inglês somente em agosto de 2005.

52
reuniões e convenções, estando sempre presentes diversas restrições: a forma como os
“nativos” se apresentam e o que ocultam (institucionalmente ou individualmente); o que é
permitido que seja visto ou lido, ou não; o que é interessante de ser visto e lido pelos
alemães ou pelo serviço público brasileiro. Vale ressaltar que, se eles não se mostraram
disponíveis, tampouco interditaram minha pesquisa, sendo muitos dos entrevistados
bastante cordiais e colaboradores em relação ao meu trabalho.
Ao conviver com este universo de cooperantes, tive conhecimento de encontros e
seminários organizados pela GTZ no Brasil e pude freqüentá-los. Participei de alguns
acontecimentos da cooperação alemã no Brasil, como o seminário sobre Energias
Renováveis na América Latina, o encontro latino-americano sobre AIDS, além do mais
simbólico evento da cooperação: a comemoração dos 40 anos de relações de cooperação
entre Brasil e Alemanha. Acompanhei diretamente a organização desta comemoração,
participando da elaboração das festividades, da revisão de documentos publicados e da
própria festa. Para este tipo de eventos da cooperação ou rituais de Estado – seminários,
oficinas, debates, comemorações, conferências – Brasília é um espaço urbano
privilegiado. Possui infra-estrutura de serviços e hotéis de luxo para grandes
comemorações, além dos salões do Itamaraty, que são os mais tradicionais e os mais
disputados para eventos diplomáticos.
Nesses encontros, ocorrem situações que reúnem grupos de alemães que
trabalham em agências e organizações de “cooperação” em diversos pontos do país e nos
setores da administração pública no Brasil, como também pessoas que fazem parte do
governo brasileiro, de organizações não-governamentais e internacionais e que
participam freqüentemente dos eventos das organizações alemãs. Foi possível, a partir
destes encontros, delinear o contorno das redes de pessoas e instituições que tinham
relações com a GTZ no Brasil. Busquei, ainda, reunir dados e informações com as
instituições nacionais chamadas contrapartes brasileiras – os parceiros da GTZ no Brasil
– quando não conseguia obtê-los pelas fontes da GTZ. Tal estratégia permitiu-me ver, de
diferentes lugares, como a GTZ se apresentava e como era percebida.
Os rituais públicos das agências de cooperação são realizados com vários
propósitos, tanto em relação ao seu país de origem, como ao contexto onde atuam: são
uma forma de prestação de contas para os contribuintes de seus países de origem do

53
trabalho que vem sendo realizado e de como o “seu dinheiro” (do contribuinte) está sendo
bem aplicado. Para o contexto local, é também a propaganda de uma imagem de
confiança e eficiência, que visa criar admiração e estabelecer alianças.37 Nessas ocasiões
de descontração e de conforto, são consolidadas alianças entre representantes dos dois
governos envolvidos, quando é possível ter visibilidade dos grupos que, no Brasil, têm
relações mais próximas com os alemães, desde funcionários do governo até organizações
relações mais próximas com os alemães, desde funcionários do governo até organizações
não-governamentais.

Setting

Foi no contexto urbano de Brasília, cidade contraditória, capital federal e


“província” de Goiás, espaço urbano excludente e de concepção arquitetônica
“igualitária”, profundamente estratificado e segmentado, que a pesquisa se desenvolveu.
Como capital federal, Brasília é espaço de elaboração e reprodução de inúmeros rituais de
poder, centro das decisões políticas, sendo, portanto, o local mais importante para captar
as dinâmicas das políticas e das relações diplomáticas associadas à cooperação técnica
para o desenvolvimento.
Em Brasília estão localizados os organismos e as agências internacionais mais
influentes do Brasil. Ali se situam as embaixadas dos países com os quais o Brasil tem
relações diplomáticas e a grande maioria das representações de organismos internacionais
no Brasil, como a Organização das Nações Unidas - ONU, a Organização dos Estados
Americanos - OEA, o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento -
BID, a Comissão Econômica para América Latina e Caribe - CEPAL, a Organização
Internacional do Trabalho - OIT, a Organização Mundial de Saúde - OMS, a Organização
das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura - UNESCO, o Programa das

37
A idéia dos eventos é de passar imagens positivas do trabalho realizado e não um espaço para
críticas e discussões. A forma de apresentação é rápida, ilustrativa, da maneira que os expectadores já
esperam que tudo se dê, sem maiores polêmicas, para que sigam diretamente ao coquetel e às conversas,
nas quais são amarradas novas propostas de negócios e projetos. Isto é o que interessa.

54
38
Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD, bem como os escritórios das
principais instituições que executam a política de cooperação para o desenvolvimento da
Alemanha no Brasil, dentre elas, a GTZ, o banco KfW e a embaixada da Alemanha.
A decisão de realizar o trabalho de campo na cidade foi fruto de um empenho não
só pessoal, mas também familiar, que envolveu toda uma rede complexa de sentimentos,
mudanças, incertezas. Meu companheiro, meu filho de seis anos e eu nos mudamos
esperando ficar por seis meses em um pequeno apartamento funcional de um estudante do
Instituto Rio Branco, que ficaria vago por dois meses, tempo em que ele estaria
cumprindo o estágio no exterior.
Ficamos, sem que houvesse um planejamento prévio, por mais de dois anos nesta
cidade, que reflete este aspecto “estatal” na própria organização urbana. Nem sempre as
diferenças entre os tipos de apartamentos, mais confortáveis ou menores, são notadas da
rua, porque do exterior eles são parecidos; talvez não exatamente os apartamentos, mas o
aspecto geral dos jardins, dos pilotis, da disposição geral onde se situam os prédios.
Somente aos poucos é possível compreender a lógica que impera quanto ao valor
atribuído a determinados endereços, a certas quadras, o que não tem relação, como
acontece no Rio de Janeiro, com a vista mais bonita de uma montanha ou do mar, com
pontos turísticos ou lugares de uma beleza natural, nem com o acesso a facilidades
urbanas de abastecimento ou diversão, mas sim com o status dos funcionários que ali
residem. Somente para quem se familiariza com as dinâmicas da administração pública,
em função da lógica interna de uma cidade que é a capital, é possível entender porque a
quadra 305 ou a 406 da Asa Sul pode ser mais valorizada do que a 412. A distribuição
das moradias funcionais, hoje mais escassas, é um fator importante na definição do status
das quadras, que tem relação com o grau de importância da função e do cargo que seu
morador ocupa no governo. Os funcionários de uma “repartição” ou de um ministério são
“alojados” na mesma quadra ou prédio de apartamentos.
Talvez por ter vindo de uma cidade como o Rio de Janeiro, em que os espaços
públicos, mais do que outros, proporcionam a integração, ainda que forçada, entre
estratos sociais e membros de grupos sociais muito distintos, tem-se a impressão de que a

38
Verificar na página correspondente a lista de siglas para as definições específicas de cada uma das
organizações aqui citadas.

55
disposição urbana planejada e ordenada das ruas e das quadras acabaram contribuindo
para que esta fragmentação e segmentação social se incorporasse ao modo de ser
“brasiliense”.
A dinâmica social e urbana da cidade relaciona-se, em termos gerais, às estruturas
burocráticas de poder. É uma cidade regulada pela economia e pela etiqueta do “poder”, é
costurada por redes sociais entrelaçadas e baseadas em vínculos profissionais e políticos,
segmentados em temas e questões do mundo da administração pública (meio ambiente,
direitos humanos, saúde, educação...). Para um recém-chegado, a inserção em uma de
suas redes é fundamental, e isto se dá em grande parte através das relações de trabalho.
As amizades, salvo exceções, organizam-se em termos de trabalho, na sua maioria,
pessoas advindas da administração pública federal. A vida social de uma fração
significativa da população de Brasília circula prioritariamente em torno dessas relações
de trabalho, o que envolve toda uma lógica do poder – acesso a informações, linhas de
financiamento, lobbies, participação em eventos, entre outros.
Esta dinâmica da cidade como centro de poder garante uma fonte incessante de
informações e boatos sobre o funcionamento do governo, da administração pública, que
não se obtém de outra forma senão estando presente nas instituições, participando de
eventos, conversando informalmente com os funcionários em Brasília. Constituem-se ali
redes de “cidadãos funcionais”, para utilizar uma categoria “funcional”, derivada da
administração pública – forma freqüente de representação de aspectos da vida em Brasília
que, neste caso, se aplica à idéia de que o exercício de cidadania está fortemente
articulado à posição exercida na vida profissional, em grande parte relacionada à
administração pública.
Não sendo facilmente identificáveis à primeira vista, percebem-se com o passar
do tempo a sua constituição e os seus entrelaçamentos com outras redes. Notam-se
também redes de profissionais de ONGs na administração pública, em uma composição
nem sempre muito clara dos limites entre o que seja governamental e não-governamental.
É freqüente ouvir que as relações sociais em Brasília são construídas com base em
interesses de ascensão profissional, já que a probabilidade de se ter contato com pessoas
que exercem cargos políticos ou que têm funções de “mando” é grande. Ter bons contatos
e conhecer pessoas significativas em seu meio profissional representa um grande valor

56
social e político na cidade, o que gera, em conseqüência, contextos sociais altamente
competitivos e grupos sociais bastante restritivos e fechados.
Os grupos de profissionais são bastante herméticos, com fronteiras bem
demarcadas: antropólogo anda com antropólogo e afins “da cultura”, diplomatas com
diplomatas. Ali indivíduos afirmam-se como parte de seu grupo social, defendendo
características profissionais como elementos importantes de auto-identificação e de
pertencimento.39 As redes de relações pessoais confundem-se com as redes de relações
profissionais que fazem parte da engrenagem administrativa. Muitas vezes, essas redes de
relações profissionais são anteriores à própria prática profissional, gerações formadas em
uma mesma instituição de ensino que, em função da atuação profissional, assumem em
Brasília cargos na administração pública ou em ONGs, e contribuem para a composição
de suas “equipes” de trabalho com conhecidos de tempos anteriores.
As representações simbólicas de rituais de poder, a encenação e a ficção fundem-
se e recriam-se com as próprias práticas colocadas em ação, não sendo restritas às
instituições de governo, aos ministérios, mas estando presentes nas mais corriqueiras
conversas, em espaços informais, nos raros botequins e nos inúmeros bares e restaurantes
elegantes. Está presente também nos teatros e nos shows, cuja grande parte dos ingressos
é distribuída entre os funcionários públicos como presente de amigo, um agrado.40

A divisão da tese

A primeira parte busca desvendar as diferentes abordagens contemporâneas sobre


cooperação internacional para o desenvolvimento enquanto um conjunto de práticas
governamentais de intervenção de um Estado em outro Estado ou territórios estrangeiros,
em que estão implicados fluxos variados. Nela, apresentamos uma discussão conceitual e

39
Esta afirmação de pertencimento profissional ou “funcional” é tão forte que tive a oportunidade
de conhecer um diplomata já em carreira que fez questão de comprar um antigo carro Opala, já fora de
linha, o “Diplomata”.
40
Esta não é uma prática que se restringe ao meio de funcionários da área da cultura. A distribuição
de ingressos de shows e espetáculos de teatro, mais caros em Brasília do que a média no Rio de Janeiro, é
exercício comum na administração pública, entre os diplomatas, na Câmara e no Senado, entre políticos em
geral, como “agrado” a determinados funcionários e diretores de ministérios, além de amigos pessoais.
Certa vez, no Ministério de Relações Exteriores, escutei um funcionário comentando que o preço do
ingresso em Brasília tinha que ser mais alto porque precisava compensar os ingressos gratuitamente
distribuídos.

57
teórica em que são tratadas as formas de apropriação desta expressão em distintos campos
de conhecimento, das relações internacionais à antropologia. O interesse crescente das
ciências sociais em estudar cooperação técnica para o desenvolvimento se deve em parte
à maior intensidade com que este fenômeno tem ocorrido na administração pública dos
diferentes países. Aspectos das relações de poder implícitos em discursos e práticas da
cooperação, que recorrem às imagens de bondade, solidariedade, parceria e harmonia
dessas políticas, vêm tornando cada vez mais evidente a importância de pesquisas que
tentem desvendar as práticas adotadas globalmente junto às populações de países em
desenvolvimento.
Procura-se ainda, nesta primeira parte, situar o contexto particular em que este
fenômeno explodiu no Brasil, o de intervenção de agências estrangeiras nas políticas
governamentais brasileiras por meio de recursos humanos e financeiros: o Programa
Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil, mais conhecido por PPG-7. Os
projetos a ele vinculados deram visibilidade a processos gerais e particulares de atuação
da agência alemã GTZ, que foi o eixo a partir do qual analisei práticas de intervenção no
campo ambientalista e indigenista no Brasil, no qual foram abertos espaços de atuação
para instituições governamentais e não-governamentais no mundo.
No primeiro capítulo da tese, argumentamos que o avanço da discussão sobre
questões ambientais no Brasil, que ocorreu com a realização da Eco-92 no Rio de Janeiro,
impulsionou articulações políticas entre órgãos da administração pública brasileira e
agências e organismos internacionais na forma de políticas de cooperação para o
desenvolvimento, sendo o PPG-7 um eixo a partir do qual isto ficou evidente. Neste
contexto, a articulação entre instituições nacionais e alemãs ocorreu em meio à crescente
atuação das organizações não-governamentais nas políticas ambientais, entrando
principalmente nas políticas governamentais de proteção da Floresta Amazônica. A
participação do governo alemão no PPG-7 como maior doador isolado garantiu
politicamente a afirmação de sua liderança internacionalmente, como um catalisador, na
implementação e na formulação conceitual nas iniciativas políticas ambientais.
No capítulo dois, tratamos de analisar o conjunto de definições sobre as práticas e
os discursos chamados de cooperação técnica para o desenvolvimento na literatura

58
acadêmica das ciências sociais e, mais especificamente, as contribuições da antropologia
referentes ao tema.
A segunda parte refere-se aos supostos e aos contextos que caracterizam
especificamente o campo “alemão” da cooperação para o desenvolvimento. Procurei
abordar uma parte da história da Alemanha e o surgimento do aparato institucional estatal
para a cooperação, as mesmas instituições criadas para receber recursos estrangeiros para
a recuperação de sua economia no final da Segunda Guerra Mundial, e que passaram a
atuar pelo mundo na intervenção em territórios estrangeiros e na sua administração,
particularmente países “em desenvolvimento” ou países do “Terceiro Mundo”.
Esta parte trata de situar, em determinado momento da história contemporânea, as
condições políticas e conceituais que viabilizaram a implementação em vários Estados
Nacionais de um conjunto de normas e instituições de intervenção para a administração
de populações e territórios em outros Estados, o que se deu por meio de projetos que
promoviam a circulação – envio e recebimento – de recursos em fluxos distintos dos
comerciais, além de investimentos no setor produtivo. Pretendia-se historicizar este
campo usualmente tratado através de abordagens funcionais que se prendem aos
discursos naturalizados dos projetos ou dos programas em jogo. A análise deste contexto
nos permite ter maior clareza sobre a intensificação das relações entre os governos destes
dois países em diferentes momentos da história, a partir da assinatura do acordo básico de
cooperação técnica de 1963, que analisaremos na parte final da tese.
O surgimento das práticas de cooperação técnica internacional entre os anos 50 e
meados dos 70 não pode ser pensado separadamente do contexto em que surgiu,
caracterizado pelo marco ideológico da Guerra Fria, como um sistema de alianças entre a
União Soviética e os Estados Unidos, na concorrência por zonas de influência. Desde a
recuperação de alguns países europeus, a bipolaridade característica da Guerra Fria deu
espaço para a crescente atuação de outros países, como Alemanha e Japão, que já nos
anos 60 passaram a desempenhar o papel de países doadores e não mais receptores de
recursos internacionais, caracterizando uma alteração dos diferenciais de poder e
desestabilizando certa dinâmica existente de distribuição de poderes.
Para isso, no capítulo três, recorremos a um enfoque histórico do pós-guerra,
visando abordar o contexto mais geral de política internacional, sobretudo os processos

59
históricos de formação de estruturas e órgãos específicos da administração pública
ocorridos no Brasil. Observamos o contexto em que se institucionaliza esta forma
específica de intervenção de instituições estrangeiras na administração púbica brasileira
nas duas primeiras décadas pós-Segunda Guerra, quando se estabelece a primazia dos
setores militar e diplomático. Chega-se ao final dos anos 80 com a consolidação de um
sistema organizado e regulamentado com a criação da Agência Brasileira de Cooperação,
quando há o ressurgimento de variados fluxos internacionais. Tais práticas fazem parte de
um processo mundial de expansão e consolidação de novas formas de intervenção, com
arcabouço conceitual e institucional do aparelho de Estado para atuar no exterior,
estabelecendo fundamentos discursivos e de atuação prática com base na lógica do
desenvolvimento.
O propósito do capítulo quatro é priorizar os processos específicos de resposta de
cada contexto nacional, brasileiro e alemão, no que diz respeito à montagem de condições
institucionais para promoção de políticas para o desenvolvimento a partir de convênios
internacionais ao final da Segunda Guerra Mundial. Recorrer aos primórdios de seu
estabelecimento e às formas que foram se desenvolvendo é fundamental para
compreendermos como a discussão atual sobre cooperação técnica no Brasil é polêmica
e envolve críticas, em função de uma suposta “perda de soberania” quando trata de
assuntos considerados estratégicos, como a questão relativa aos cuidados com populações
e terras indígenas pelo Estado brasileiro.
Por fim, a terceira parte procura retratar os resultados de uma abordagem mais
etnográfica sobre as formas de atuação, os modos de intervenção de uma agência em
particular, a GTZ. As experiências práticas observadas foram: um projeto, o escritório e
seus funcionários, e um evento público. Depois de uma incursão nos processos históricos
que promoveram arranjos bem estabelecidos e aceitos sobre uma idéia de cooperação
técnica em política internacional e da apresentação das instituições que estão envolvidas,
nós nos propusemos, nesta terceira parte, a voltar o foco para as práticas efetivamente
observáveis em contextos muito restritos e elitizados que envolvem representantes de
diferentes governos.
Também foi nosso objetivo analisar as formas pelas quais a cooperação técnica
efetivamente se institui, por meio de práticas consideradas procedimentos administrativos

60
normais, usuais e, portanto, descaracterizados de aspectos de poder. Na medida em que o
Ministério de Cooperação e Desenvolvimento Econômico - BMZ é uma instância política
mas não de execução, as práticas devem ser observadas a partir das instituições às quais o
BMZ delega as funções executivas das políticas de cooperação. Como nosso interesse
recai sobre as práticas de cooperação técnica, voltamo-nos para a GTZ, tendo como
proposta analisar a organização enquanto produtora e transmissora de um determinado
tipo de conhecimentos: a administração em territórios estrangeiros.
O campo de atuação da GTZ é um “espaço de fronteiras nacionais”. Por ser uma
instituição internacional, envolve atores de diferentes nacionalidades e indivíduos em
diversas posições, como funcionários técnicos, peritos ou diretores, além de brasileiros
com os quais as agências estabelecem vínculos através dos projetos.41 Por haver ali
múltiplos sentidos, visões e nacionalidades, é um espaço de reconfiguração de
representações pelo contato. A esse espaço são conferidos valores distintos e
hierarquicamente estabelecidos.
Diante das múltiplas dimensões da atuação da agência GTZ no Brasil, a proposta
desta parte refere-se aos modos de intervenção, tanto por meio das relações informais
entre os funcionários e os consultores no escritório e outros indivíduos de organizações
nacionais, como também no que se refere aos critérios formais – hierarquias, regras de
funcionamento, divisão das atividades, métodos de contratação e plano de carreira.
As formas de administração em territórios estrangeiros, adotadas pelas agências
internacionais de cooperação técnica, através das quais se produz e dissemina um
determinado tipo de conhecimento, são principalmente: programas ou projetos
desenvolvidos com órgãos do governo local; a estrutura administrativa daquela
instituição, um escritório “filial” no qual a agência centraliza as atividades
administrativas das várias instâncias de atuação no país; ou ainda os eventos e os grandes
encontros (comemorações, seminários, oficinas, entre outros), considerados aqui rituais
das agências e dos organismos internacionais, organizados junto aos setores diplomáticos
do governo brasileiro.

41
Wright, Susan. “Culture in anthropology and organizational studies”. In: _______. (org.).
Anthropology of organizations, 1994. p.19.

61
O desconhecimento sobre as relações entre um “modo de fazer” projetos sociais e
ambientais e um conjunto de conhecimentos administrativos e de planejamento passados
por uma atuação continuada, disseminada e com propósitos multiplicadores de
propagação é provavelmente uma característica também de outros locais onde são
implementados, pela Alemanha, os projetos de cooperação para o desenvolvimento. Este
é o desafio de tal trabalho e, também, diante das lacunas e dos silêncios, buscar
estabelecer as tramas feitas de fios pouco visíveis aos olhos daqueles que estão no palco
dessas intervenções.
Uma vez explorados os aspectos formais que definem as relações entre os países
através de acordos de cooperação internacional, nos próximos capítulos colocamos em
foco a cooperação técnica na prática, tendo em vista três frentes de atuação da GTZ
como agência governamental de cooperação técnica: primeiramente, observamos um
projeto enquanto construção social, produto por definição da cooperação técnica e lugar
de disciplinamento, “educação”, “treinamento”, valores, comportamentos e de uma
concepção de vida social; em seguida, analisamos o local de produção, reprodução e
disseminação de comportamentos, o escritório “no estrangeiro”, espaço da exaltação do
nacional alemão, um dos pontos de estabelecimento de fronteiras claras entre o que se
define e se institui como autenticamente “alemão” e os outros; por fim, seus rituais de
produção de imagens e de difusão de conceitos.
As trajetórias particulares da GTZ na política da cooperação técnica em países
como o Brasil deve ser compreendida como parte de estratégias do BMZ para um
conjunto de organizações alemãs, o “aparato burocrático” governamental42 alemão da
política de cooperação para o desenvolvimento, aquela que tem o maior peso político de
representação do ministério BMZ no exterior.
O propósito aqui não é o de retratar a GTZ enquanto uma instituição dotada de
intenções ou decisões, mas procurar enfatizar as manipulações na prática de certas
normas pelos agentes envolvidos, as quais acabam por constituir e dar sentido à
“organização” GTZ como agência estatal de cooperação técnica alemã.

42
A ressalva aqui é importante: o que chamamos de “aparato” governamental não necessariamente
se restringe a esfera de “governo” ou “Estatal” no sentido estrito. Neste caso de fato não ocorre, mas inclui
também instituições não governamentais. O uso do termo “governamental” refere-se mais a idéia da
existência de um “governo” de uma esfera pública de decisão que se orienta para atividades no mundo
chamadas de cooperação internacional.

62
No capítulo 5, analisamos aspectos formais da GTZ, sua estrutura, as normas e os
procedimentos que orientam seu trabalho no Brasil, a partir de uma etnografia realizada
no escritório da GTZ no Brasil. A observação participante no escritório da GTZ foi um
dos eixos centrais a partir dos quais desenvolvi esta tese, com o propósito de dar
visibilidade ao trabalho do governo alemão no campo da solidariedade e da cooperação
internacional através de suas práticas.
No capítulo seis, abordamos o grupo que caracteriza os funcionários da GTZ no
Brasil, partindo de uma análise de suas atribuições funcionais no escritório e da análise de
quatro trajetórias particulares de peritos que trabalharam na GTZ na implementação de
projetos. Destacamos as formas de vínculos trabalhistas, as hierarquias e as
reivindicações dos trabalhadores diante de mecanismos de poder característicos de
grandes instituições globais, como é a GTZ.
No capítulo 7, analisamos a definição de cooperação técnica a partir da atuação da
GTZ na organização de eventos, na promoção de festas e encontros, em publicações e,
principalmente, na contratação de pessoal especializado para trabalhar nos projetos pelo
mundo inteiro. O fato é que no Brasil, do ponto escolhido para observar o campo de
atuação da GTZ, a impressão que se tem é de haver uma névoa que embaça a visão das
múltiplas conexões existentes entre os vários projetos e programas desenvolvidos.
Sua maior responsabilidade é gerencial e administrativa, e a GTZ o faz por meio
de uma rede de projetos em todo o mundo, o que de certa forma tem muitas semelhanças
com a lógica colonial de administração. Assim, no último capítulo, o de número 8,
analisamos o processo de elaboração, negociação e implementação de um projeto, o
PPTAL, naquilo que se refere às articulações com as redes governamentais e não-
governamentais existentes nas dinâmicas da administração pública brasileira.

63
Parte I – Cooperação técnica internacional como problema para análise
antropológica

O interesse crescente das ciências sociais em estudar cooperação técnica para o


desenvolvimento se deve em parte à maior intensidade com que este fenômeno tem
ocorrido na administração pública dos diferentes países. Aspectos das relações de poder
implícitos em discursos e práticas da cooperação, que recorrem às imagens de bondade,
solidariedade, parceria e harmonia de tais políticas, vêm evidenciando cada vez mais a
importância de pesquisas que buscam desvendar as práticas adotadas globalmente junto
às populações de países em desenvolvimento.
Mas, afinal, o que vem a ser cooperação para o desenvolvimento? Poderíamos
chegar a um consenso em torno de uma definição? Ou a definição muda em decorrência
dos atores sociais que a implementam?
Como foi dito anteriormente, esta primeira parte da tese visa percorrer um campo
amplo em torno das formas de conceituação e elaboração teórica sobre cooperação
técnica para o desenvolvimento, o que defini como um conjunto de práticas
governamentais de intervenção de um Estado em outro Estado ou territórios estrangeiros
em que estão implicados fluxos variados.
Em certa medida, podemos afirmar que estudos na área de “relações
internacionais” foram pioneiros, ainda nos anos 80, em abordar questões relacionadas a
este tema que, apesar de pouco explorado na literatura antropológica contemporânea, tem
feito parte de pesquisas mais recentes, dissertações e teses de doutorado na área de
antropologia.

64
Capítulo 1 – O PPG-7 e os sentidos entre cooperação técnica, povos
indígenas e alemães

Neste capítulo, retomo o argumento desenvolvido por mim em trabalho anterior


de a discussão sobre questões ambientais globais em fóruns internacionais ter promovido,
como conseqüência, a renovação de práticas e discursos sobre cooperação para o
desenvolvimento a partir dos anos 90. 43 O argumento era de que o debate a respeito de
políticas de cooperação no sistema internacional teria sido revitalizada pela crise
promovida por desequilíbrios ambientais, os quais Leis e Viola chamaram de “desordem
global da biosfera”, na medida em que sua solução pressupunha ações coordenadas.44 A
renovação do debate, pautada então pelo conceito de desenvolvimento sustentável,45
ampliava o campo de atuação de agências e organismos internacionais, e colocava em
evidência a ecologia como um parâmetro diferencial para definir as experiências de
políticas governamentais e não-governamentais entre países do “norte” e do “sul”.
Esta opinião é corroborada por alguns autores que propõem que exista uma
relação direta entre a cooperação para o desenvolvimento e o crescimento do debate em
torno de questões ambientais, sobretudo aquelas de dimensões globais,46 em fóruns
políticos e econômicos internacionais, particularmente a partir dos anos 90.

43
Valente, R. O meio ambiente em pauta: uma abordagem da cooperação internacional entre
Europa e Brasil. Dissertação de mestrado, IRI/PUC, Rio de Janeiro, 1997. p.30.
44
Leis & Viola. “Desordem global da biosfera”. In: Ecologia e política mundial. Petrópolis: Editora
Vozes/FASE/AIRI, 1991.
45
Ainda que amplamente divulgado, o conceito formal de “desenvolvimento sustentável”
promulgado pela Conferência é “aquele que atenda às necessidades das gerações do presente sem
comprometer a capacidade de gerações futuras atenderem também às suas”. CMMAD, 1988, p.9, apud
Pareschi, A.C. Desenvolvimento sustentável e pequenos projetos: entre o projetismo, a ideologia e as
dinâmicas sociais. Tese de doutorado, DAN/UnB, Brasília, 2002. p.71.
46
Alguns dos autores que defendem esta argumentação são: Caldwell, L.K. International
environmental policy. London: Duke University Press, 1990; Russell, Robert. “La agenda global en los
años 90. Antiguos y nuevos temas”. In:_______. La agenda internacional en los años 90. Buenos Aires:
RIAL/Grupo Editorial Latinoamericano, 1990; French, H. Partnership for the planet. Washigton D.C:
Worldwatch Papers 126,.1995; Mármora, L. “A ecologia como parâmetro das relações Norte-Sul: a atual
discussão alemã em torno do ‘desenvolvimento sustentável’”. Contexto Internacional, vol.14, nº1,
jan/jun/1992; entre outros.

65
Para analisar tal afirmação, tomamos como objeto de investigação a
implementação do PPG-7 no Brasil como eixo que consolidou as práticas de execução de
projetos que foram adotadas por agências estrangeiras na administração pública
brasileira. O PPG-7 pode ser considerado uma etapa importante no processo de formação
do Estado brasileiro; ele marca uma atualização na direção da “modernidade”, o resultado
de alianças de forças políticas internas com uma lógica transnacional. Analisaremos
como o PPG-7 pode ser um exemplo interessante para se pensarem o conceito e as
práticas de cooperação para o desenvolvimento e o desempenho de uma relação
particular entre os governos do Brasil e da Alemanha na área de meio ambiente.
Para compreender o que levou a isso, abordaremos a seguir alguns aspectos do
processo de institucionalização de políticas ambientais no plano internacional a partir de
fóruns multilaterais.47

A Eco-92 e o desenvolvimento sustentável

Ainda que tivesse havido outras iniciativas anteriormente, a Conferência das


Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano - CNUMAH, realizada em 1972 na cidade
de Estocolmo, Suécia, foi um dos mais importantes fatos internacionais em relação a
políticas para o meio ambiente, porque foi a primeira iniciativa em grande escala e a que
legitimou a questão ambiental como tema de política internacional, colocando em
evidência a estruturação de normas e as instituições para regulamentar a sua execução.
Posteriormente, entre 1983 e 1987, um trabalho de pesquisa científica promovido pela
ONU, a Comissão Brundtland,48 resultou no Relatório Nosso Futuro Comum, que

47
Os anos 90, particularmente a primeira metade da década, foi marcada pela intensa articulação
internacional, por meio de conferências internacionais organizadas sobretudo pelas agências da
Organização das Nações Unidas sobre questões que envolviam áreas como meio ambiente, questões de
gênero, crianças, racismo, de certa forma articulados à questão do desenvolvimento. Em 1990, foi realizada
em Nova York a Conferência das Nações Unidas sobre Crianças; em 1992, a Conferência das Nações
Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento no Rio de Janeiro; em 1993, a Conferência sobre Direitos
Humanos, em Viena; em 1994, a Conferência das Nações Unidas sobre População e Desenvolvimento no
Cairo; em 1995, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Social em Copenhagen e a
Conferência mundial sobre Mulher, em Pequim, somente para citar algumas.
48
A Comissão Brundtland foi um organismo independente criado em 1983 pela Assembléia Geral da
ONU, composta por 21 países-membros e chefiada pela Primeira-Ministra norueguesa, sra. Gro Harlem
Brundtland. Durante o período de 1983 a 1987, a Comissão Brundtland circulou pelos continentes,

66
propunha, entre outros pontos, a maior cooperação entre os povos como estratégia para
lidar com questões ambientais globais.
Os resultados apresentados pelo Relatório Brundtland, como ficou conhecido,
promoveram a articulação de dois campos até então divergentes em tese: meio ambiente e
desenvolvimento, na definição que ficou amplamente conhecida como desenvolvimento
sustentável.49 O tema da cooperação volta às discussões internacionais nos anos 1990, no
contexto pós-Guerra Fria quando seria realizada no Rio de Janeiro, em junho de 1992, a
Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, pautado por
este referencial de “desenvolvimento sustentável”.50
Vinte anos depois de Estocolmo, a Conferência Mundial sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento, a CNUMAD ocorreu no Rio de Janeiro entre os dias 3 e 14 de junho
de 1992, sendo a primeira grande negociação global pós-Guerra Fria estruturada pela
ONU. Foi considerada um marco na abordagem dos problemas globais e na definição da
agenda internacional.
Presenciou-se naquele momento no Brasil uma onda de debates e manifestações,
além de programas de financiamento e projetos de cooperação técnica e científica em
torno de questões ambientais: mudanças climáticas, perda de biodiversidade,
desmatamento da Amazônia e da Mata Atlântica, poluição, esgotamento dos recursos
naturais, fenômenos que ocorriam no Brasil mas também se revelavam em escala global.
Resultaram como documentos de referência internacional para temáticas
ambientais da Eco-92 a Declaração do Rio de Janeiro, a Agenda 21, o Tratado sobre
Mudanças Climáticas e a Convenção sobre Biodiversidade. A Agenda 21 foi um
programa de ações integradas para o desenvolvimento sustentável a ser assumido pelos
Estados participantes da conferência, envolvendo temas como desertificação,
biodiversidade, pobreza, padrões de consumo, entre outros. Nele, a proposta de

pesquisando dados e realizando audiências públicas a respeito da relação entre pobreza, desenvolvimento e
devastação ambiental.
49
UN Agenda 21 Draft Text, Section I, Social and Economic Dimensions, Chapter 2, 1992.
50
A Conferência que ficou mais conhecida por ECO-92, foi precedida por encontros de seus
Comitês Preparatórios em Nova York, Genebra e Nairóbi e por Encontros Regionais (continentais) de
chefes de governo entre 1990 e 1992. Os PrepComs, como eram chamados os encontros das delegações
oficiais, eram assistidos por membros de movimentos e organizações não governamentais de todo o mundo,
que faziam fóruns paralelos, ao mesmo tempo em que tentavam influenciar nas decisões e acordos que as
delegações oficiais estabeleciam.

67
cooperação internacional foi apresentada como central, uma estratégia de aliança política
e articulação financeira internacional. Dedicou-se ao tema um capítulo inteiro, o de
número dois, que tem o título “Cooperação internacional para acelerar o desenvolvimento
sustentável dos países em desenvolvimento e políticas internas correlatas”.51 Dizia-se no
Preâmbulo que a Agenda 21 refletia o consenso global e o compromisso político com a
cooperação para o desenvolvimento e para o meio ambiente. Na abertura do capítulo:

In order to confront the challenge of environment and development, States


decided to establish a new partnership. This partnership commits all States to
engage in a continuous and constructive dialogue inspired by the need to achieve
a more efficient and equitable world economy. It is recognized that, for the
success of this new partnership, it is important to overcome confrontation and to
foster a climate of genuine cooperation and solidarity. It is equally important to
strengthen national and international policies and multilateral cooperation to
adapt to the new realities (grifos meus).

Nesta passagem, vimos que há uma aposta na construção de um cenário futuro,


idealizado em relações de parceria entre os Estados. O discurso da cooperação é
normativo: estabelece diretrizes a serem seguidas, compromissos a serem cumpridos,
com base em fundamentos morais, implícitos em categorias de solidariedade, diálogo,
justiça, superação de confrontos, parceria, entre outros freqüentemente utilizados. É
também prescritivo, na medida em que exige mudanças nas estruturas administrativas de
governo para que se alcancem os objetivos sintetizados na expressão desenvolvimento
sustentável.
Assim, contribuiu para ampliar espaços de atuação de organizações internacionais,
agências internacionais e ONGs em órgãos da administração pública de Estados
Nacionais, pelo fato de que a formulação crítica do ambientalismo adota uma abordagem
sistêmica e universalizante, caracterizando-se a cooperação para o desenvolvimento na
administração pública dos países como um processo de alcance global.52
Nesse mesmo contexto de intensos debates no Brasil promovidos pela realização
da ECO-92, também o tema sobre a participação da sociedade civil nas discussões sobre
políticas governamentais entrou em pauta, observando-se já neste momento a capacidade

51
UN Agenda 21, opus cit.
52
Pareschi, A.C., opus cit., p.66.

68
de articulação internacional das ONGs. Rubem César Fernandes argumenta que as
iniciativas civis – participação de grupos da sociedade civil, movimentos sociais e
associações civis na vida pública – não seriam um fenômeno novo. Elas de fato
remontariam à tese de “sacerdócio universal” proclamado pela reforma protestante do
século XVI, passando no século XIX pela organização de classes trabalhadoras no século
XIX em movimentos sindicais, chegando mais recentemente, nos anos 1970-80, com
novo impulso na forma institucional mais conhecida por ONG.
A diferença qualitativa observada nos movimentos recentes - argumenta o autor -
é que eles não se restringem mais às fronteiras nacionais, são internacionais, neles se
afirmando a consolidação do espaço de agentes privados que atuam com fins públicos,
para além do mercado e do Estado.53
A articulação política e a discussão que foram se consolidando aos poucos no
Brasil com a redemocratização, nos anos 80, criou uma dinâmica interna nesse espaço de
reflexão acerca das práticas da cooperação, sendo estas e o próprio surgimento das ONGs
processos inter-relacionados. Os debates centravam-se em torno da participação de
organismos da sociedade civil no que dizia respeito às políticas ambientais e às
negociações políticas e econômicas para o “desenvolvimento”. No entanto, a
preocupação estabeleceu-se, sobretudo, quanto à autonomia das ONGs do “sul” em
relação às agências e aos organismos estrangeiros que financiavam sua atuação. Na ECO-
92, o espaço que se criou para este debate foi o Fórum Global das ONGs, paralelo à
Conferência oficial, que se caracterizou pela pluralidade de setores da sociedade civil ali
representados.54
Em entrevista, um antropólogo cuja trajetória profissional foi marcada por cargos
de direção em ONGs nacionais e internacionais, bem como em órgãos de governo,
chamou a atenção para o processo de discussão sobre a relação das ONGs com projetos
de cooperação internacional, debate este já em andamento no Brasil desde o início dos
anos 1990:

53
Fernandes, R. C. Privado porém público: o terceiro setor na América Latina. Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 1994. p.18. Esta afirmação da separação de um espaço autônomo das ONGs é bastante
questionada hoje em dia por vários autores, entre eles Trouillot, em: Trouillot, Michel-Rolph. “The
anthropology of the state in the age of globalization. Close encounters of the deceptive kind”, Current
Anthropology, 42 (1): 125-138, 2001.
54
Valente, R., opus cit., p.44.

69
era superinteressante porque a gente pensava sobre isso, o porquê da cooperação.
[...] nesses momentos, entre as ONGs, essas sempre foram questões importantes.
O que é cooperação? Até onde se discute agenda? Por que cooperação? Por que a
intenção de cooperar? Então isso é um campo de debate. Você vai ver na
ABONG, na Rede Brasil, em vários encontros, seminários, isso aí era pauta,
agenda, mesas. Tem uma série de reflexões sobre isso. 55

Aquele momento teria sido propício para a constituição de um amplo debate, que
se deu do final dos anos 1980 ao início de 1990 entre as principais organizações não-
governamentais brasileiras, como a FASE, o Instituto de Estudos Sócio-Econômicos -
INESC, o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas - IBASE, a rede de
ONGs Rede Brasil e a ABONG. Para Vianna, haveria uma relação direta entre o
crescimento do debate sobre cooperação internacional no Brasil e a crescente atuação de
setores organizados da sociedade civil: “Comecei a me envolver com cooperação
internacional quando fui a trabalhar com ONGs e, trabalhando com ONGs,
inevitavelmente você está trabalhando com cooperação”.56
Apesar de haver uma intensa comunicação e articulação entre as ONGs
mencionadas, o que garantiu a participação e a organização de alguns dos eventos e
publicações, este não era um campo homogêneo, mas caracterizado por múltiplos temas e
múltiplas vozes. Este espaço, em que estavam presentes representantes de movimentos
sociais, intelectuais e acadêmicos do Brasil e do exterior, ampliou-se no contexto das
reuniões preparatórias, em fóruns e encontros paralelos à ECO-92. O eixo de articulação
entre eles se dava em função das críticas à falta de participação das organizações não-
governamentais e dos movimentos sociais nas decisões de políticas ambientais da Eco-
92, particularmente quanto às relações entre organizações não-governamentais, governos
e agências internacionais de cooperação internacional.
Este debate prolongou-se por toda a década de 90 e prosseguiu ainda em 2000,
tendo sido destacadas apenas algumas situações para ilustrar um processo que estava em

55
O informante é doutor em Antropologia Social pelo PPGAS/Museu Nacional/UFRJ e atualmente
trabalha no escritório da Fundação Ford no Rio de Janeiro como assessor do Programa de Meio Ambiente e
Desenvolvimento. Quando concedeu a entrevista, em 13 de outubro de 2003, em Brasília, acabava de deixar
a coordenação do Programa Piloto, o PPG-7, tendo sido antes secretário executivo da Rede Brasil, um dos
articuladores deste debate a que faço menção.
56
Idem.

70
andamento. As trocas de idéias trouxeram à tona processos de construção de espaços de
intervenção, desenvolvidos por profissionais ligados a organizações governamentais e
não-governamentais alemãs, nas políticas sociais e ambientais para a Amazônia, isto em
início dos anos 90. Atuaram de forma pouco visível, por meio do suporte financeiro, as
ONGs locais nomeadas como parceiras, ficando eximidas de críticas. As discussões
revelaram uma dinâmica intensa de novos processos e formas de organização do espaço
público, com a inclusão de agências internacionais.
Uma das primeiras publicações57 em que este debate se apresentou de forma clara
foi o documento “Desenvolvimento, cooperação internacional e ONGs”, que resultou do
“Primeiro Encontro de Ongs e Agências do Sistema ONU”, realizado no Rio de Janeiro
em 1991.58
É usual, nas auto-representações adotadas por dirigentes de ONGs, bem como em
suas publicações, que as ONGs ocupem espaços políticos autônomos, distintos, por ser
esta uma esfera que não depende de recursos orçamentários do governo nem também de
empresas do setor privado, mas que se constituem a partir de recursos externos, sem
comprometimento com forças políticas ou sociais locais. É um lugar diferenciado de
denúncia e de produção crítica, onde apresentam posturas políticas, de denúncia do
vínculo de dependência instituído nos financiamentos internacionais, de crítica ao
desenvolvimento e à cooperação. O lugar de ação das ONGs é definido como aquele em
que as relações entre países do “norte” e do “sul” se estabelecem com base em ideais de
solidariedade e parceria, como espaço alternativo ao sistema formal deste tipo de vínculo,
aí refletidas relações históricas de dominação e exploração. Um de seus principais
organizadores, Herbert de Souza, então secretário executivo do IBASE, assim se
expressou:59

57
UNDP/IBASE. Development, international cooperation and the NGOs meeting publication
(English version). Rio de Janeiro: IBASE/PNUD, 1992.
58
Muitos dos convidados para as palestras eram estrangeiros que representavam agências da
Organização das Nações Unidas, redes de Ongs ou ONGs internacionais, como Third World Network
(Malásia), Crocevia (Itália), NOVIB (Holanda), e também acadêmicos de universidades estrangeiras (The
New School of Social Research) e nacionais (USP), além de representantes das ONGs brasileiras que
organizavam o evento, particularmente o IBASE, o Centro Ecumênico de Documentação e Informação -
CEDI, o Instituto de Estudos da Religião - ISER e o Instituto de Ação Cultural - IDAC.
59
IBASE/PNUD, opus cit., p.9.

71
Este livro resume uma história de décadas de relações de cooperação
internacional que foi debatida no seminário. Aqueles que participaram tiveram a
oportunidade de refletir sobre as várias formas de solidariedade internacional que
marcaram a vida, a existência e a sobrevivência de organizações não-
governamentais do norte e do sul, bem como os novos problemas e perspectivas
para as relações entre ONGs e Estados, e ONGs e agências internacionais,
particularmente da ONU.

As posições apresentadas dizem respeito muitas vezes ao ponto de vista dos


países que são alvo das intervenções, sendo discutidos não somente os aspectos
econômicos, mas sobretudo os culturais, como um processo que refletisse a continuidade
de relações coloniais. Em parte, a forma de definir a cooperação dos países desenvolvidos
para com os países em desenvolvimento é vista como o fortalecimento do controle sobre
recursos por meio da transferência de um modelo de desenvolvimento, de cultura e de
modo de vida ocidental, como assinala o representante de uma rede de ONGs da
Malásia:60
from a third world perspective, the present state of international cooperation is
certainly not bright. The northern powers have managed the transition from a
colonial to a post-colonial world in a manner that has actually tightened their
control over the use of world resources whilst transmitting the western model of
development, culture and lifestyle to the newly independent countries.

Outra iniciativa foi o Núcleo de Animação Terra e Democracia, um programa de


diálogo e intercâmbio entre ONGs do Brasil e da Alemanha promovido por um conjunto
de organizações não-governamentais brasileiras, entre elas FASE, IBASE, INESC e
KOINONIA, juntamente com a Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil -
IECLB, e coordenado na Alemanha pela Associação Evangélica de Cooperação e
Desenvolvimento (Evangelische Zentralstelle für Entwicklungshilfe - EZE).
O Núcleo foi fundado em 1988 propondo-se a refletir sobre as práticas de
cooperação, especialmente no que se refere a experiências de desenvolvimento rural e
seus significados políticos, tendo como enfoque privilegiado a democratização dessas
relações.61 Foram organizados encontros, como o Seminário Terra e Democracia - Em

60
Idem, p.59.
61
Inoue, C.Y. & Apostolova, M. A Cooperação internacional na política brasileira de
desenvolvimento. São Paulo: ABONG; Rio de Janeiro: Núcleo de Animação Terra e Democracia, 1995.
p.7.

72
busca de novas bases para cooperação internacional à luz da experiência alemã-brasileira,
realizado em 1992 no Rio de Janeiro, e também foram viabilizadas publicações.
O foco das discussões ali promovidas se direcionou para as relações entre
organizações do Brasil e da Alemanha, explorando um campo institucional de ação
política, eclesiástica e de educação muito vasto e pouco visível. Apesar de já naquele
momento apresentarem intensas relações com ONGs brasileiras, conforme mostraram os
resultados do estudo de Rubem César Fernandes e Leandro Piquet Carneiro,62 em que
60% das ONGs brasileiras entrevistadas mantinham vínculos com agências da Alemanha,
não havia visibilidade deste cenário. Também Luciano Wolff, como cooperante brasileiro
do programa IBASE-EZE, desenvolveu uma pesquisa sobre o trabalho destas instituições
alemãs no Brasil, a partir da qual publicou pela ABONG, em 1994, o guia Cooperação e
Solidariedade Internacional na Alemanha. Neste trabalho apresentou um mapeamento
das principais instituições e de temas voltados para a cooperação da Alemanha, sobretudo
com organizações não-governamentais brasileiras.A publicação teve uma repercussão
enorme, esgotando em pouco tempo, o que refletiu o amplo interesse e a escassez de
informações disponíveis sobre a atuação das instituições governamentais, não-
governamentais, fundações políticas e instituições eclesiásticas no Brasil.63
Muitos foram também os seminários estruturados por organizações não-
governamentais para discussão sobre o PPG-7. Em fevereiro de 1993, FASE e IBASE
promoveram no Rio de Janeiro o Seminário de Estudos sobre o Programa Piloto para
Amazônia. Ele foi marcante porque se propôs a reunir um conjunto de atores sociais –
membros da FASE, organizações de trabalhadores (seringueiros, agricultores), de defesa
da Amazônia, de proteção aos índios, de direitos humanos e algumas pastorais – para
discussão das políticas para a Amazônia, dentre elas as propostas do PPG-7.
Na abertura do seminário, Jean-Pierre Leroy64 destacou que ele tinha um caráter
relativamente fechado e centrado na construção de uma reflexão comum das ONGs sobre
as políticas definidas pelo PPG-7, já que considerava totalmente insuficiente a

62
Fernandes, R.C. e Carneiro, L.P. As ONGs nos anos 90: A opinião dos dirigentes brasileiros. Rio
de Janeiro: ISER, Série Textos de Pesquisa 1, 1991.
63
Wolff, Luciano A.; Kaiser, W. (coord.) & Mello, F.V. Cooperação e solidariedade internacional
na Alemanha. 2.ed. Rio de Janeiro: IBASE/EZE; São Paulo: ABONG, 1995. p.17-22.
64
Educador, coordenador na época da Área de Meio Ambiente e Desenvolvimento da FASE.

73
participação da “sociedade civil” no processo de discussão do programa.65 “É um
seminário de estudos, de trabalho; ONGs, organizações populares e sindicais e Fóruns se
juntam para reflexão comum. Isto explica o caráter relativamente fechado do encontro e a
ausência de setores governamentais”.
Leroy considerou que o programa centralizava os debates em torno da
Amazônia:66
O Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais Brasileiras tem
adquirido centralidade, tem sido o polarizador dos debates – pelo menos na
Amazônia – no campo de entidades e movimentos preocupados em procurar
contribuir para um desenvolvimento adaptado à região Amazônica e que tenha
como sujeitos as suas populações.

O seminário foi um dos eventos que contaram com número expressivo de


representantes de organizações alemãs: entre os 12 representantes de organizações
internacionais, 10 eram de instituições alemãs, entre eles, Thomas Fatheuer,67 então em
um convênio entre FASE e DED,68 e Monika Grossman,69 na época vinculada a um
convênio entre universidades como pesquisadora da Universidade Federal do Pará.
Posteriormente, ambos assumiriam a função de “peritos técnicos” da agência GTZ.
Este encontro teve o apoio financeiro de EZE, SACTES e Fundação Heinrich
Böll, tendo sido mencionado nos créditos que o governo alemão é quem mais investe no
Programa Piloto”.70 Vale destacar também que a revista publicada pela FASE, na época
chamada Cadernos de Proposta, tinha apoio de duas instituições alemãs: o DED e a
Fundação Heinrich Böll.
Em 1994, novamente a FASE aparece como uma das organizadoras de outro
encontro envolvendo a discussão sobre Amazônia e programas de cooperação para a

65
FASE/IBASE. Anais do Seminário de Estudos sobre o Programa Piloto para Amazônia. Rio de
Janeiro, 1993. p.4.
66
Idem, p.134.
67
Thomas Fatheuer é um sociólogo alemão que trabalhava na época em um convênio entre o
Deutscher Entwicklungsdienst - DED, atribuição atual no Brasil para SACTES, Serviço Alemão de
Cooperação Técnica e Social e FASE, que mais tarde foi ser perito da GTZ.
68
Já mencionado anteriormente nas págs. 33 e 34.
69
Monika Grossmann é uma agrônoma alemã que neste momento estava ligada ao Núcleo de Altos
Estudos Amazônicos (NAEA), da UFPA. Posteriormente trabalhou em uma ONG (Operação Amazônia -
OPAN), por meio de um convênio com o DED ao qual estava vinculada. Mais recentemente, atua na GTZ
como perita responsável pelo projeto PDA.
70
Anais do Seminário de Estudos sobre o Programa Piloto para Amazônia, idem.

74
região, particularmente o PPG-7, desta vez junto com outra instituição, a Federação das
Organizações da Amazônia Oriental - FAOR. O Encontro Internacional de Trabalho:
Diversidade Ecossocial e Estratégias de Cooperação entre ONGs na Amazônia, que
aconteceu em Belém do Pará, entre 13 e 16 junho de 1994, apresentou-se como um
esforço de dar continuidade ao debate iniciado no evento de fevereiro de 1993, e
estruturou-se em torno de cinco blocos, 71 com ênfase na questão relativa à cooperação
internacional por ter dois blocos sobre organizações internacionais: um tratava-se de uma
oficina sobre a participação de ONGs em programas e debates internacionais, e outro que
focalizou determinados programas multilaterais na Amazônia.
O encontro reuniu alguns representantes de organizações alemãs, como Manfred
Wadehn, da Evangelische Zentralstelle für Entwicklungshilfe (Central Evangélica de
Ajuda para o Desenvolvimento – EZE); Helmut Hagemann, da ONG Urgewald, Thomas
Fatheuer, do convênio entre FASE e DED; e Monika Grossmann, pesquisadora alemã
vinculada ao NAEA da Universidade Federal do Pará.
Constatamos que esta ênfase resulta de uma discussão em andamento entre os
atores sociais envolvidos no debate sobre políticas para a Amazônia, como foi declarado
na “Apresentação”:72

De outro lado, por sua importância como principal reservatório da biodiversidade


e por sua contribuição ao equilíbrio climático mundial (sem esquecermos a sua
enorme riqueza mineral – mas aí estranhamente ninguém se preocupa com uma
possível internacionalização da região), a Amazônia é hoje tema internacional e
objeto de políticas internacionais e intervenções de cooperação multilateral e
bilateral. Nossa convicção é que a preservação da Amazônia passa pela
viabilização do futuro de seus povos e populações, por seu acesso à cidadania
econômica, social e política, e que o futuro da Amazônia deve ser construído por
eles em primeiro lugar. Entidades da sociedade civil dos países do Norte,
solidários com as populações da região, são nossos aliados nessa empreitada. [...]
Por isso, é importante chamá-los para acompanhar nossos esforços de
entendimento da nossa própria realidade e dialogar conosco sobre cooperação.

Neste caso, a discussão sobre a atuação de agências internacionais “do norte” foi
central no contexto de aprofundamento do debate sobre a participação da sociedade civil,

71
FASE/FAOR: Anais do Encontro Internacional de Trabalho: Diversidade Ecossocial e
Estratégias de Cooperação entre ONGs na Amazônia. Belém do Pará, 13-16 junho de 1994.
72
Idem, p.5.

75
ou seja, de organizações sociais e ambientais da Amazônia na negociação e na
implementação das políticas para a região em função do PPG-7.
Mais recentemente, no Encontro de Parceiros da Fundação Heinrich Böll,
realizado no Rio de Janeiro entre 13 e 14 de março de 2001, o eixo organizador da
discussão se deu em torno de uma “plataforma” de apoio, ou seja, instituições que foram
apoiadas por uma mesma agência ou organização internacional. As questões levantadas
obviamente giraram em torno de um conjunto de ações e formas de intervenção
associadas àquela instituição enquanto “doadora”.73
Estavam presentes como palestrantes, entre outros, Emir Sader, da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, Isabel Carvalho, da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Silvia Camurça, do convênio entre a ONG SOS-Corpo e o DED, Jean-Pierre Leroy,
da FASE, Aurélio Vianna, do Instituto de Estudos Sócio-Econômicos- INESC, Jorge
Eduardo Saavedra Durão, da Associação Brasileira de Organizações não Governamentais
- ABONG, Antonio Martins e Peter Wahl, respectivamente das ONGs alemãs Attac e
Weed, sendo a festa de encerramento no ISER.
Não obstante a contribuição que vários artigos tenham prestado ao esclarecimento
e ao aprofundamento dos procedimentos de cooperação técnica alemã adotados no Brasil,
os textos produzidos sobre cooperação internacional ainda são históricos bastante
didáticos, muito pouco críticos, e colaboram para a construção discursiva da cooperação
como parte das estratégias de desenvolvimento. Reproduzem e reverberam os mesmos
tons, da mesma forma que ocultam ou excluem de sua abordagem os mecanismos de
poder encobertos pela lógica discursiva.
Como vimos aqui, foi no espaço de articulação entre ONGs no contexto da
realização da Eco-92, particularmente em relação às políticas de proteção da Floresta
Amazônica, que observamos se desenharem as primeiras linhas de atuação de
representantes de organizações alemãs quanto a esta questão. Não havia anteriormente
uma tradição de sua ação no Brasil referente a este assunto, como veremos mais à frente,
já que trabalhavam mais as questões relativas ao desenvolvimento rural nas regiões
Nordeste e Sul do Brasil. A entrada de organizações alemãs na região Norte,

73
Fundação Heinrich Böll. I Encontro dos Parceiros da Fundação Heinrich Böll, edição das
palestras. Rio de Janeiro: FHB, 13 e 14 de março de 2001.

76
especialmente nas políticas de proteção da Floresta Amazônica, deixou sua marca nesse
espaço de debates, de articulações políticas e intervenções, promovido pelas organizações
não-governamentais brasileiras na Eco-92. Também aí se intensificaram os fluxos de
recursos internacionais para a implementação de políticas ambientais governamentais na
região amazônica. Segundo informações divulgadas na imprensa da época, os projetos
que resultaram da Conferência envolveram crédito e doações na ordem de US$ 1 bilhão,
como o projeto de despoluição do rio Tietê e da Baía de Guanabara, além do Programa
Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil, o PPG-7.74

Nas declarações de José Lutzenberger:

O Secretário de Meio Ambiente, José Lutzenberger, anunciou ontem que,


finalmente, o país vai começar a fazer investimentos de grande porte na ecologia.
Para isso, vai utilizar-se do dinheiro oferecido pelos países industrializados, de
empréstimos já liberados por instituições multilaterais como o BID e o Banco
Mundial e a formalização de projetos de proteção ambiental financiados por
operações de conversão de dívida.
Só a Alemanha já nos ofereceu 250 milhões de marcos (cerca de 150 milhões de
dólares) para aplicação em projetos agrícolas que prevêem o manejo racional da
floresta amazônica, revelou Lutzenberger.75

As articulações que se estabeleceram naquele momento entre as redes ligadas ao


ambientalismo e as redes de representantes de organizações governamentais e não-
governamentais alemãs consolidaram-se nas políticas oficiais adotadas pelo governo
brasileiro no PPG-7.

Um modelo de cooperação internacional em ação

O PPG-7 foi definido formalmente como um programa piloto para a conservação


das florestas tropicais do Brasil, cujo objetivo era o de tornar-se um modelo de gestão de
florestas tropicais e de “cooperação internacional”. Uma das particularidades deste
programa governamental brasileiro é o fato de “ser considerado um dos mais importantes

74
Gazeta Mercantil, 05/06/1995.
75
Brito, Manoel Francisco. “Países ricos vão socorrer a Amazônia”. Jornal do Brasil, 20/06/1991.

77
instrumentos de cooperação internacional na área ambiental”.76 Os projetos do PPG-7
foram formulados para representar uma ruptura em termos de políticas públicas para a
Amazônia, um ponto de inflexão em relação às políticas públicas existentes
anteriormente, as quais se baseavam em uma concepção geopolítica de segurança
nacional, com as inovações que implementaria enquanto projeto piloto.77
A questão apontada no contexto de formulação do PPG-7, um programa
multilateral para as florestas localizadas no Brasil, ou seja, territorialmente circunscrito a
um Estado Nacional, levou a refletir sobre a abertura dos processos de formulação e
execução de políticas governamentais de um determinado Estado Nacional, o que gerou
muitas reações no Brasil, particularmente nos meios militares.
Nos anos 90, a Amazônia passou a ser citada na mídia internacional como
patrimônio global ou patrimônio da humanidade por líderes internacionais, presidentes de
países ricos, representantes de organismos internacionais. Dados sobre o ritmo de
desmatamento da Amazônia veiculados em mídias internacionais promoveram a
mobilização da sociedade civil e de líderes políticos internacionais em torno do objetivo
de proteção da floresta amazônica. A preocupação com a conservação da floresta
amazônica e com os povos indígenas passou a ser motivo de alianças internacionais,
governamentais ou não, mobilizadas por denúncias de todos os tipos contra o governo
brasileiro de infringir os direitos indígenas, ser negligente com o genocídio dos povos
indígenas e permitir o desmatamento desenfreado da floresta.
A Amazônia é parte das representações simbólicas do nacionalismo brasileiro,
quer pela grandiosidade territorial, quer pela sua imensa diversidade. O discurso
nacional-desenvolvimentista adotou a Amazônia como um símbolo da nacionalidade, um
“emblema” do próprio Estado brasileiro: a Amazônia é uma questão de soberania
nacional.

76
MMA. Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil, apresentação, p.7, sem
data.
77
Em entrevista com diplomatas no MRE, pude constatar que desde a Conferência de Durban sobre
o racismo e outras formas de discriminação, realizada em 2001, e também devido a outros encontros e
fóruns internacionais sobre povos indígenas, tem havido um maior diálogo entre a diplomacia e os
representantes indígenas, revelando uma maior abertura à participação indígena nas reuniões internacionais
que envolvam questões que lhes digam respeito. Tem havido também uma maior proximidade entre
representantes da diplomacia brasileira com representantes de outros países amazônicos, principalmente no
que se refere a questões indígenas, crescendo o número de viagens de reconhecimento de diplomatas às
regiões onde há maior concentração de populações indígenas, principalmente aos estados da região Norte.

78
As grandes tradições de pensamento no Brasil sobre a região amazônica
constituíram-se historicamente na geografia, sendo muito influentes as teorias
geopolíticas. Um dos principais pensadores e formuladores da geopolítica foi o alemão
Friedrich Ratzel (1844-1904), que teria sido, na Alemanha, um dos fundadores da
geografia como um campo científico independente. No Brasil, a geopolítica encontrou
espaço nos meios militares, principalmente em assuntos ligados à defesa e ao
desenvolvimento territorial. Os estudos de geopolítica consolidaram no Brasil um
pensamento nacionalista, tanto nos meios acadêmicos, quanto na formação de uma
concepção ou “política de Estado Nacional” durante o período de autoritarismo no Brasil.
Golbery do Couto e Silva foi um dos grandes mentores intelectuais desta visão, tendo
publicado em 1957 Aspectos geopolíticos do Brasil, pela Biblioteca do Exército. No
livro, definiu a importância que assumiu a geopolítica no pensamento político brasileiro,
desde o Barão do Rio Branco a Euclides da Cunha, passando por Cândido Rondon, entre
muitos do Exército brasileiro: 78

Sobretudo no Brasil, país de continentalidade – mais no sentido de ilhas culturais


de um grande arquipélago pan-brasileiro – a geopolítica pede um meditado e
realista sistema de idéias, ou de doutrinas flexíveis, que venha a ajudar na
solução dos problemas nacionais, na orientação racional, serena, eqüitativa das
questões ditadas pela conjuntura internacional.

O general Carlos de Meira Mattos, utilizando-se de textos históricos para justificar


o que seria, segundo ele, a defesa da região amazônica como parte do espaço “nacional”
do Brasil, argumentou, a partir do princípio geopolítico, que a presença e a ocupação
física do Estado e da população definem a soberania de um espaço. Ele afirma: 79

Graças à ação de governo de Lisboa, protegendo a cobiçada foz do Amazonas,


expulsando os aventureiros ingleses, holandeses e franceses que se atreveram rio
acima; e expandindo os marcos da ocupação lusa até as proximidades das
nascentes andinas do grande rio e seus principais afluentes da margem norte, foi
possível aos demarcadores da fronteira assente através do Tratado de Madri
(1750) firmado no princípio do uti possidetis comprovar a antecipação de

78
Couto e Silva, Golbery do. Aspectos geopolíticos do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do
Exército, 1957.
79
Mattos, Carlos de Meira. Uma geopolítica pan-amazônica. Biblioteca do Exército, 1980.

79
ocupação lusa do imenso leque norte e oeste do grande rio e seus afluentes,
dando nascimento ao atual delineamento da fronteira da Amazônia brasileira.

O PPG-7 foi e ainda é um dos programas de maior repercussão nas políticas


públicas para a Amazônia e tem como meta fundamental promover mudanças neste
contexto. Seus principais objetivos foram assim definidos: a) demonstrar que um
desenvolvimento harmônico entre economia e meio ambiente pode ser obtido em
florestas tropicais; b) obter a conservação dos recursos genéticos; c) reduzir a
contribuição das florestas tropicais brasileiras na emissão global de gás carbônico; d)
proporcionar um exemplo de cooperação entre países desenvolvidos e em
desenvolvimento.
O PPG-7 envolveu um conjunto bastante complexo de atores, sendo um dos mais
representativos cenários de arranjo multilateral direcionados para questões ambientais
internacionais no processo de constituição e desenvolvimento de mecanismos de
administração pública federal. Dele participam o Banco Mundial, por meio do Fundo
Fiduciário para Florestas Tropicais - RFT (Rain Forest Trust Fund) como “administrador”
geral, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD, e as agências de
cooperação técnica e financeira da Grã-Bretanha, Estados Unidos, Alemanha, Países
Baixos, Japão, França e Itália. Foi desenhado como um programa “piloto”, o que lhe
atribui um caráter experimental no que concerne ao objetivo de representar um exemplo
mundial de cooperação internacional e um modelo de gestão de florestas tropicais.80
Para geri-lo, foi criada uma instância superior de coordenação, a Comissão
Coordenadora formada por representantes de cinco ministérios participantes do programa
e de três representantes de ONGs, que seria apoiada técnica e administrativamente por
um secretariado executivo. São dois os instrumentos de financiamento: o Rain Forest
Trust Fund - RFT, administrado pelo Banco Mundial, e a cooperação bilateral
diretamente financiada por recursos governamentais dos países doadores envolvidos no
programa.

80
Os atores da cooperação internacional são funcionários, representantes e peritos técnicos tanto de
agências da cooperação multilateral, Banco Mundial e Nações Unidas (PNUD), como de agências da
cooperação bilateral, como Dfid (Department foi International Development) ou KfW e GTZ, por exemplo.

80
O PPG-7 foi representado como modelo de cooperação internacional a partir da
idéia de eficiência, relacionada à lógica de administração pública moderna, de boa
governança81, como um processo de “desburocratização” ou “reforma no modo de gestão
de Estado”, definições estas presentes no campo do desenvolvimento, compartilhadas e
difundidas por organismos multilaterais e governos de países estrangeiros.
A cooperação internacional passou a ser considerada a “fórmula” mágica a ser
adotada pelos órgãos de administração pública para promover uma dinamização no
processo de transformação conceitual das políticas públicas para a região. Por meio dela,
estaria se buscando uma flexibilização da administração pública com a abertura de um
espaço de negociação e articulação, de disputa e de cooperação.
A partir da análise dos projetos do PPG-7, foi possível visualizar a relevância da
atuação do governo alemão nas políticas ambientais no Brasil desde os anos 90,
principalmente para a região amazônica, de forma especial nos projetos orientados para a
conservação das florestas tropicais. Para a vice-ministra alemã Uschi Eid, o PPG-7
assume ser:82
[o] maior programa mundial para a proteção de florestas tropicais e para o
manejo de recursos naturais em um único país, [de forma a] encorajar a aplicar
em outros países e regiões este bem-sucedido modelo de cooperação para a
preservação do futuro comum da humanidade.

Os alemães no PPG-7 - Intervir e conceder

81
O Banco Mundial difundiu a idéia de “Good Governance” como gestão eficiente, moderna e
transparente. Podemos ver presente também nos discursos das agências alemãs “de desenvolvimento” este
princípio. Uschi Eid, na conferência "Assisting Good Governance and Democracy: a learning process –
reflections on developments in Africa", na GTZ House Berlin, em 27 de maio de 2002, organizada pelo
BMZ/IDEA, afirmou que: “Democracy and good governance are, however, also a fundamental
precondition for development. Even though some examples exist of economic success stories in
authoritarian regimes, it is my view that the best foundation for sustainable development is a democratic
foundation. Democracy and good governance belong together. Good governance, after all, means more
than mere efficiency in the government machinery. It is a matter of the "rules of the game" in a society, the
possibilities for citizens to develop their own creative powers, it is a matter of the relationship between
those governing and those governed, and of the acceptance of state policies”. Ver em
www.bmz.de/en/media/speech, acesso em 16/06/2003.
82
Palavras da vice-ministra do Ministério Federal de Cooperação Econômica e Desenvolvimento da
Alemanha, Uschi Eid, em “Cooperação entre Brasil e Alemanha nas Florestas Tropicais Brasileiras”.
Publicação do grupo KfW e GTZ, sem data.

81
As referências históricas sobre as origens do PPG-7 usualmente remetem à
atuação da liderança alemã na proposição de “responsabilidade global” sobre a questão
climática. Desde o seu surgimento, a história do programa tem relação com o chanceler
alemão Helmut Khol, que teria proposto o envolvimento da comunidade internacional na
proteção da maior floresta tropical do mundo, através de um programa internacional para
a cooperação das florestas tropicais no Brasil, durante o encontro dos países do G7 em
Houston, Estados Unidos, em 1990. 83

Presidentes e primeiros-ministros do G-7, Houston, EUA, 199084

Nessa ocasião, Kohl fez um discurso em que comprometeu publicamente um


volume de recursos financeiros a ser doado individualmente pela Alemanha ao PPG-7,
como também recursos para o RFT, gerenciado pelo Banco Mundial. A quantia proposta
de recursos financeiros colocou o governo alemão como o maior contribuinte individual
em termos de cooperação financeira, chegando a algo em torno de 47% do total dos
recursos disponíveis.85
Alguns representantes de ONGs alemãs têm uma versão diferente sobre o
empenho de um volume tão alto de recursos financeiros e sobre a “adesão” do governo
alemão à causa ambientalista. Argumentam que a construção discursiva da liderança do
governo alemão em relação às questões ambientais internacionais não refletia a posição
ideológica própria do governo alemão de então, representado pelo chanceler Kohl. Para
eles, têm diferentes visões sobre a “adesão” do governo alemão da época à causa

83
MMA. “Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil do G-7”. Sem data.
84
GTZ: Futuro da Floresta Tropical: a cooperação técnica alemã com o Programa Internacional de
Conservação da Floresta Tropical no Brasil (PPG-7). Folder, sem data, p.5.
85
MMA. “Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil do G-7”. Folder, sem
data.

82
ambientalista e apresentam uma versão diferente sobre o empenho de um volume tão alto
de recursos financeiros
Em duas ocasiões escutei esta versão contrária ao discurso oficial de duas pessoas
que atuavam, na Alemanha, em movimentos ambientalistas de defesa da Amazônia,
sendo uma da Universidade Livre de Berlim e a outra da Fundação Heinrich Böll,
fundação política vinculada ao Partido Verde alemão que fazia oposição ao CDU, de
Helmut Kohl. Na época, ambas – já envolvidas com o programa na Alemanha –
revelaram que o valor declarado teria sido o resultado de um equívoco do então chanceler
com os números, o que é uma versão dos fatos que compromete em absoluto todo o
discurso de compromisso dos alemães com a questão climática. No entanto, as duas
explicações foram muito aproximadas. Relato de uma delas:

o volume de dinheiro do lado alemão aconteceu por causa de um erro do nosso


chanceler Kohl, na época, porque ele falou 400 milhões para florestas tropicais
no Brasil e eram 400 milhões para florestas tropicais no mundo todo. Ele não
tinha lido o que as pessoas tinham preparado para ele. Mas como ele tinha dito
isso na reunião de cúpula do G7 em Bruxelas, não deu mais pra voltar atrás. Esse
erro explica que a Alemanha tenha este peso no PPG-7. A idéia era de criar uma
rede do G7 com o Brasil e com o Banco Mundial, em que cada um tivesse uma
participação mais ou menos igual para ter “governança global”, multilateral. Mas
por causa desse erro do Kohl, desde o início você tem este desequilíbrio na
coisa.86

O compromisso dos alemães com o programa estaria expresso no volume de


recursos disponibilizado como doação. O volume inicial a ser colocado no programa era
bem superior ao que efetivamente foi posto: dos US$ 400 milhões declarados, foram
alocados US$ 295 milhões no total de recursos para o programa – cerca de 47% vêm de
doações do governo alemão, ou seja, aproximadamente US$ 139 milhões. 87

86
Em entrevista na FASE, no Rio de Janeiro, em 27 de maio de 2003.
87
Essa informação está presente em todos os documentos oficiais do Programa Piloto, inclusive em
“Conceitos básicos para a execução de projetos de cooperação técnica recebida bilateral”, da ABC/MRE.
No entanto, em uma conversa informal com uma representante da cooperação não-governamental alemã,
foi dito que houve um engano no anúncio do valor dos recursos disponibilizados pelo Primeiro Ministro,
que seria dez vezes inferior. Por essa razão, os outros países do G-7 não quiseram se comprometer com
doações muito elevadas, sobrando para a própria Alemanha a maior parte da contribuição financeira ao
Programa. Não há provas desse fato mas, segundo a informante, “todos sabem disso”, mas não querem
revelar, até porque o “erro” reverteu em ganhos políticos.

83
Mas foi sobretudo com a realização da ECO-92, no Rio de Janeiro, que
apareceram de forma contundente as representações da Amazônia como um espaço de
importância global. A problemática do meio ambiente no Brasil, de maneira especial o
papel atribuído à Amazônia no imaginário científico e ambientalista internacional, inseriu
o país de forma definitiva no cenário de políticas ambientais internacionais, quando
foram projetadas internacionalmente imagens sobre questões particulares da Amazônia,
situando-se estas situações locais em termos de uma dinâmica ambiental “global”. 88
O motivo que mobilizou governos e organizações internacionais para agir em
defesa da Amazônia, considerado “pulmão do mundo” não são as questões locais, mas a
criação de um fato discursivo de alcance e impacto internacional, que vai gerar uma
elevada sensibilidade junto à opinião pública internacional. A preocupação com a
conservação da Amazônia se deu particularmente em função do risco do aquecimento
climático, com ecos e repercussões no país. As florestas tropicais, mais do que todas a
Floresta Amazônica devido à sua dimensão, teriam uma função de equilíbrio da
temperatura global.

Clima e biodiversidade

A elaboração de um discurso que relacionava o risco de mudanças climáticas


globais à destruição das florestas, fundamentado na tese de que as florestas tropicais
seriam o “pulmão verde” do mundo já havia sido identificado criticamente por um
cooperante alemão:

Os grupos de solidariedade tentam demonstrar em suas argumentações que a


destruição das florestas tropicais também tem a ver “conosco”, ou seja, com as
pessoas do Norte. Foi difundida a lenda de que as florestas tropicais seriam o
“pulmão verde do mundo”. Uma imagem figurativa sugestiva que infelizmente
não resistiu a uma verificação científica, mesmo que ainda surja em algumas
publicações. Aparece ainda, por exemplo, nos folhetos do Ministério de
Cooperação Econômica da Alemanha sobre meio ambiente e desenvolvimento de
1991. No prefácio, o Ministro Spranger escreve: “O tempo urge. No Terceiro
Mundo se delineia o início de uma catástrofe ecológica, cujo impedimento se

88
Foram analisados jornais disponíveis nos arquivos da FUNAI entre 1991 – quando foram
estabelecidas as bases para a Eco-92 e negociados os projetos que iriam fazer parte do PPG-7 – e 1996,
quando se iniciou a implementação do PPTAL.

84
torna uma questão de sobrevivência para a humanidade. Um exemplo concreto
são as florestas tropicais, o pulmão verde da terra que se torna cada vez menor”.89

A definição do clima como uma questão global presente nos discursos


internacionais criou politicamente a “necessidade” de participação de todos os países,
principalmente dos mais industrializados, aqueles que historicamente tinham sido os que
mais poluíram o planeta. Estava em jogo a incapacidade ou a negligência dos governantes
locais em proteger a Amazônia, “patrimônio global”. Consolidava-se, assim, a noção de
que os países industrializados deveriam assumir uma “responsabilidade global” para a
situação ambiental do mundo.90

As florestas também desempenham outros papéis vitais: elas ajudam a manter o


clima local, protegem as bacias hidrográficas e fornecem matéria-prima para o
artesanato e a indústria. Através da armazenagem de carbono, elas ajudam a
controlar o efeito estufa.91

A questão do clima, neste contexto discursivo, articulava-se a outros pontos


relacionados à Floresta Amazônica e que teriam apelo junto à opinião pública
internacional, como direitos humanos e proteção contra a ameaça às culturas indígenas,
promovendo a questão da conservação das florestas tropicais do Brasil a uma
“preocupação global” que, por sua vez, exigiria ação global. Nesse campo, os países
industrializados teriam se envolvido em uma cruzada para a sobrevivência da
humanidade.
[...] já se pode identificar a queimada das florestas como um fator responsável
por algo em torno de um quinto da emissão atual de CO2, gás que provoca o
aquecimento da atmosfera mundial (além disso, existe uma preocupação com as
ameaças às culturas indígenas e a violação dos direitos humanos no processo
muitas vezes violento de ocupação da “fronteira”). O Brasil contribui com cerca

89
Fatheuer, Thomas. “Novos caminhos para a Amazônia? O Programa Piloto do G-7: Amazônia no
contexto internacional”. Cadernos de Proposta, nº 2, Rio de Janeiro, FASE/DED-SACTES, 1994, p.13.
90
Invoca-se um sentido de culpa histórica dos países desenvolvidos, implicado nos impactos
ambientais gerados pela industrialização nos países em desenvolvimento.Veja-se também publicações
como State of the World, do Worldwatch Institute, entre outras, que adotam o tom de denúncia em relação
aos governos/sociedades de países ricos ou industrializados.
91
Banco Mundial. Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil. Brasília: Rain
Forest Unit, Banco Mundial/Secretaria Executiva do PPG-7. Folder, sem data, p.2.

85
de 5 a 7% da emissão de CO2, maior do que, por exemplo, a emissão de CO2 da
Alemanha ou de vários países europeus.92

A preocupação da Alemanha com a destruição das florestas tem se pautado, em


termos discursivos, no efeito de mudanças climáticas, relativo ao problema do
aquecimento global, mais conhecido pela expressão “efeito estufa”. Segundo as palavras
de Helmut Kohl:93 “A defesa do clima é uma das tarefas prioritárias para a política
ambientalista do governo federal”.
A construção da “problemática do clima” coloca as florestas tropicais do Brasil no
centro das preocupações globais.

Os problemas ambientais não respeitam fronteiras e as grandes mudanças globais


provocam um processo de regulamentação internacional. [...] Uma das duas
convenções da Rio 92 abrange a questão da biodiversidade e assim está
intimamente ligada à Amazônia onde existe a maior riqueza de biodiversidade do
mundo. A Amazônia está no foco do debate internacional, mas este debate não é
mais sobre questões específicas da região, é um debate sobre problemas
estratégicos globais que também atingem a Amazônia. 94

A perspectiva usualmente adotada em documentos de instituições alemãs define a


problemática da Amazônia como assunto de responsabilidade global, em função do que
pode representar a ameaça de extinção das florestas tropicais para a humanidade. A partir
do conceito de desenvolvimento sustentável, o risco se constrói em torno da idéia de
insustentabilidade, a impossibilidade de haver condições adequadas para a sobrevivência
do homem na terra. Podemos identificar alguns desses aspectos nas falas de alemães, não
sobretudo atuantes no campo governamental:

A cada ano desaparecem florestas em todo o mundo numa extensão equivalente a


um terço do território da Alemanha.

92
Hagemann, Helmut. Exposição sobre “O Programa Piloto no contexto internacional: o caso da
Alemanha – A posição dos governos e da sociedade civil européia”. In: Anais do Seminário de Estudos
sobre o Programa Piloto para a Amazônia. FASE/IBASE, 1993. p.89.
93
Ministério de Relações Exteriores da Alemanha. Deutschland: Fórum de Política, Cultura e
Economia. Frankfurt am Main: Frankfurter Societäts-Druckrei GmbH, 1995. p.1.
94
Fatheuer, Thomas. “Cooperação Internacional de ONGs na Amazônia”. Oficina em Diversidade
Ecossocial e Estratégias de Cooperação entre ONGs na Amazônia. Anais do Encontro. Fase/FAOR, 13-16
de junho de 1994. p.85.

86
As florestas tropicais brasileiras são de vital importância para a sobrevivência da
humanidade.
A sua destruição contribui claramente para o efeito estufa e, por fim, para o
95
aquecimento climático local e global.

A questão do clima tem um apelo todo especial no plano internacional e foi um


dos primeiros fatores que promoveram a mobilização “coletiva” em torno de questões
ambientais. O risco de insustentabilidade associado a inesperadas transformações
advindas de mudanças climáticas justifica a mobilização internacional.
É importante analisar a questão do risco de aquecimento global em função de
como ele é apreendido pelos diferentes atores envolvidos; mais ainda: quais os
significados que este risco tem para cada um deles e quais serão as suas formas de ação e
intervenção?
Em documentos publicados por agências alemãs, as referências históricas ao PPG-7
sempre indicam a liderança alemã em discussões ambientais e na proposição de
“responsabilidade global” quanto à questão climática.

Na Alemanha você não pode realizar nenhum projeto economicamente viável


que não seja ecológico. Essa é uma tendência do pós-guerra. A legislação
européia está seguindo os líderes.E a Alemanha está financiando 30% do
orçamento europeu (CE), então, sua influência é muito grande. Agora, em todas
as publicações das políticas definidas pelo BMZ, o meio ambiente vem em
primeiro lugar, em segundo, vem a pobreza, depois, pequenas e médias empresas.
São os grandes temas declarados; isso também tem reflexos internos. Em certos
aspectos, o Brasil e a Alemanha estão na mesma situação, de fazer grandes
reformas – fundos de pensão, previdência, reforma tributária, saúde, então, desde
o entre-guerras, define “economia social de mercado”. O capitalismo na
Alemanha é um capitalismo meio controlado; popular no sentido de que faz
programas; controlado no sentido de assegurar certa distribuição de riquezas. Não
evita que o rico fique mais rico, mas procura melhor distribuição. Por exemplo:
trabalhador que cai na desgraça do desemprego, fica com 2/3 do último salário e
isso é um dos fatores que dificultam em termo de caixa. Tem cada vez menos
contribuintes e cada vez mais consumidores.96

O risco de mudanças climáticas e a ameaça à biodiversidade se articulariam a


outros temas, como a ameaça às culturas indígenas, através da responsabilidade sobre a

95
GTZ. Futuro da Floresta Tropical: A cooperação técnica alemã com o Programa Internacional
de Conservação da Floresta Tropical no Brasil (PPG7). Folder, sem data, p.3.
96
Entrevista concedida em Belo Horizonte, em 08/01/2007.

87
conservação da Floresta Amazônica, assunto que tem forte apelo junto à opinião pública
internacional. A partir do enfoque dos direitos humanos, as populações indígenas
ganharam visibilidade internacional97 enquanto grupos culturalmente distintos, que têm
direitos reconhecidos à terra e à diferença cultural e também como grupos socialmente
vulneráveis, cujas condições de sobrevivência encontram-se ameaçadas.
Giddens e Beck apresentam a discussão a respeito dos riscos ambientais de ampla
escala – os riscos globais – como resultantes negativos de processos de intensificação da
interdependência humana através da industrialização, da “tecnologização” e da
comercialização em escalas mundiais. Um outro ponto importante diz respeito à
“redefinição da esfera pública”, trazida pela transnacionalidade da temática ambiental e
pela transnacionalidade dos atores envolvidos em tais políticas ou programas. 98
A própria noção dos financiadores do risco ambiental relacionado à Amazônia é
construída em diferentes bases que são externas à problemática local. O risco está
vinculado ao possível aquecimento global do planeta associado ao desmatamento da
Floresta Amazônica, a maior floresta contínua do mundo e, por isso, considerada
patrimônio da humanidade. Para as populações locais, no entanto, é provável que não
haja uma percepção clara desse risco, mas de outros, como uma epidemia, a invasão de
suas terras ou a poluição de determinado igarapé por mercúrio usado por garimpeiros.
Diante de um risco que ameaça toda a humanidade, temos um cenário que parece
desalentador. A cooperação internacional, a ação conjunta de um grupo que tem
interesses em comum, torna-se a redenção para este problema global, a possível única
solução com a qual todos têm que se comprometer. Aparentemente, este é um cenário
promissor, porque está previsto que se alcancem objetivos comuns e que a ameaça seja
efetivamente combatida.
Outra abordagem freqüentemente encontrada nas publicações alemãs sobre as
florestas tropicais e a Amazônia em particular, além da questão climática, refere-se à

97
Conferência de Viena, em 1993, com a declaração da Década das Populações Indígenas para
1994-2004 pela ONU.
98
Calhoun, C. “Introduction: Habermas and the public sphere”. In: ______. (org.). Habermas and
the public sphere. London: MIT Press, 1993. No que diz respeito especificamente à questão da
participação, ver Lopes, J.S.L.; Antonaz, D.; Silva, G.O. & Prado, R. “Papel do Estado e meio ambiente:
algumas instâncias em foco”. In: Do local ao internacional: práticas políticas, relações pessoais, facções”.
Cadernos do NUAP, vol.4, Rio de Janeiro, 1999.

88
biodiversidade desse tipo florestas e ao potencial farmacêutico associado a elas. Além da
estabilização do clima e da regulação do ciclo hídrico, as florestas tropicais são apontadas
como os maiores “reservatórios” de biodiversidade, possuindo cerca de 1/5 das espécies
existentes no mundo. A Floresta Amazônica, assim como com a Mata Atlântica, é
reconhecida pela sua reserva genética como uma farmácia viva, associada, a partir de
uma concepção utilitarista e cientificista, às inúmeras potencialidades de utilização e
beneficiamento desta biodiversidade. Há uma clara correlação entre tal potencialidade em
termos da biodiversidade, “cujo acervo ainda está longe de ser integralmente pesquisado
e catalogado pela ciência”,99 e o que isto pode representar em termos de valor econômico,
tanto para indústria farmacêutica quanto para a alimentação.

Aqui crescem valiosas plantas medicinais, além de plantas da produção agrícola.


[...] A sua reserva genética faz da Amazônia e da Mata Atlântica uma verdadeira
farmácia viva, cujo acervo ainda está longe de ser integralmente pesquisado e
catalogado pela ciência. Aqui crescem valiosas plantas medicinais, além de
plantas da produção agrícola.100

[...] o Brasil dispõe hoje de um amplo conhecimento técnico único no campo do


gerenciamento de recursos naturais, com a participação das populações locais,
bem como em nível de cooperação internacional.

Deve-se agora refletir como o êxito brasileiro poderá beneficiar outros países
amazônicos vizinhos. Programa de florestas tropicais em execução e
planejamento em regiões como Burma, Indonésia, Papua-Nova Guiné e Tailândia
poderão aproveitar-se das experiências e dos resultados do PPG-7. O Programa
Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil sozinho não conseguirá
resolver os problemas climáticos globais. Contudo, a construção de parcerias e
alianças locais, nacionais e globais têm mostrado caminhos que contribuirão para
assegurar o nosso futuro comum (grifos meus).101

Em outra fonte, encontramos um projeto desenvolvido a partir de um convênio


entre a Universidade Federal do Amazonas, a GTZ e o Departamento de Botânica da

99
GTZ. “Futuro da Floresta Tropical: a cooperação técnica alemã com o Programa Internacional de
Conservação da Floresta Tropical no Brasil (PPG-7)”. Folder, sem data. p.5.
100
Idem, p.4.
101
Idem, p.25.

89
Universidade de Ulm.102 No texto que justifica o projeto, fica clara a importância do
acesso a informações de biodiversidade para uso em biotecnologia, farmacologia, etc.
Estas informações estão organizadas em um banco de dados, na Alemanha, onde o acesso
precede ao acesso no Brasil, e parece ser distinto. Caso haja uma tecnologia disponível e
informação disponíveis sobre o projeto, é possível ter acesso aos dados que estão na
Alemanha. Na página da internet103 consta o seguinte texto:

A intensa colaboração entre o Instituto de Ciências Biológicas da Universidade


Federal do Amazonas (UFAM), em Manaus, e o Departamento de Botânica
Sistemática e Ecologia da Universidade de Ulm, Alemanha, resultou na
assinatura de um convênio de cooperação entre as duas universidades, em 1996.
As pesquisas desenvolvidas pelos dois grupos evidenciaram a importância do
acesso às informações sistemáticas sobre plantas e animais para o futuro
desenvolvimento socioeconômico dessa região da Amazônia Central. Ficou claro
que é imprescindível dispor de informações taxonômicas sobre a diversidade das
plantas para o uso sustentado dos recursos biológicos das florestas tropicais na
agricultura, silvicultura, farmacologia e biotecnologia. Há muitas informações
sobre os usos potenciais dessa diversidade de plantas que, no entanto, estão
espalhadas nos herbários, nas publicações científicas e na memória dos
especialistas locais e indígenas. É necessário juntar os dados sobre a
biodiversidade regional e torná-los disponíveis aos pesquisadores e tomadores de
decisões políticas. Para isso, o sistema de banco de dados taxonômicos
desenvolvido na Universidade de Ulm foi instalado no Laboratório de Botânica
do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade do Amazonas. [...] Os dados
registrados no banco de dados SysTax em Manaus serão acessíveis aos usuários
em geral, como já ocorre em Ulm. [...] Já é possível, mediante autorização e
instalação de um programa adicional grátis, acessar via Internet as informações
armazenadas em SysTax em Ulm. O objetivo deste projeto é disponibilizar todas
as informações sobre plantas potencialmente úteis e a documentação completa de
todas as futuras coleções de jardins botânicos e herbários da Amazônia (grifos
meus).

Conforme consta na própria apresentação do projeto na Internet, a GTZ continua


participando, embora seja a Universidade de Ulm a executora junto com a UFAM.
Apesar de a justificativa ser para viabilizar as informações referentes às plantas
medicinais na região amazônica, as diretrizes são todas tomadas pela Alemanha e na

102
O projeto chama-se: “Salvaguarda e disponibilização de Informações de herbários sobre a
biodiversidade vegetal da Amazônia na Amazônia Uma medida no âmbito do projeto setorial
Implementação da Convenção sobre Biodiversidade”. Um projeto de cooperação Brasil-Alemanha.
103
http://www2.gtz.de/biodiv/download/p_bras_herb_1102.pdf , consultado em 11/06/2003.

90
Alemanha, inclusive a criação da versão do sistema em português. Usuários desse país,
em Ulm, provavelmente acessam mais rapidamente e com maior exatidão o programa do
que no Brasil. Sobre o acesso das informações no Brasil, a página na Internet relata que:

A versão do programa em idioma português, inclusive seu manual, foi produzida


em Ulm e instalada em hardware destinado ao herbário em Manaus. O
equipamento foi despachado para Manaus em fins de 1999 e instalado em março
de 2000. A instrução operativa dos funcionários do herbário sofreu considerável
atraso por causa de uma descarga elétrica (raio) que danificou o equipamento e
por conta das greves na universidade, só podendo ser concluída em fins de 2001.

As publicações alemãs conferem um caráter dramático ao processo de construção


da gestão ambiental no Brasil, principalmente das florestas, associando-o a um problema
de “cultura política do país”. As publicações de órgãos e agências de cooperação para o
desenvolvimento, meio ambiente ou relações exteriores do governo alemão afirmam
serem as áreas de florestas “de vital importância para a sobrevivência da humanidade”.104
Na construção do problema da “destruição das florestas tropicais brasileiras”, as
origens desta situação são atribuídas ao continuado e inadequado uso das florestas, que
está relacionado à política de colonização que envolveu a exploração dos recursos
naturais e minerais de forma insustentável.

As políticas de desenvolvimento regional, implementadas nas últimas décadas,


voltadas para integração territorial e rápida modernização da sociedade e da
economia brasileira, geraram um acelerado crescimento econômico e
demográfico. [...] A Amazônia, como o Brasil, não é mais a mesma dos anos 70:
industrializou-se e urbanizou-se.105

A proposta do PPG-7 fundamentou-se na questão do clima, particularmente no


que diz respeito ao risco de aquecimento global. Ele foi elaborado como um programa
experimental destinado a frear o desmatamento da maior floresta do mundo, considerado
um “patrimônio global”, e foi elaborado para ser modelo de cooperação internacional a
ser executado no Brasil. Ao entrar em contato com o PPG-7, optei por entrar neste campo

104
GTZ. “Futuro da Floresta Tropical: a cooperação técnica com o PPG-7”, opus cit., p.4.
105
MMA. Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil, opus cit., p.6.

91
das políticas de cooperação técnica internacional, um lugar privilegiado para observar um
conjunto de práticas que se instituiu com ele na administração pública.
Foi a partir dele que iniciei a reflexão a respeito do que se estabelece como
cooperação internacional, no sentido de desnaturalizar uma prática ainda pouco explorada
nos campos das ciências sociais, particularmente, da antropologia.
Procuro neste capítulo salientar um processo que vinha em andamento desde o
final dos anos 80, mas que se intensificou com a realização da ECO-92 no Brasil,
caracterizada pela constituição de uma área de discussão e de atuação política referente às
práticas de atores, sobretudo agências e organizações não-governamentais estrangeiras,
em projetos sociais e ambientais no Brasil. Destaquei alguns aspectos próprios às formas
de receptividade às políticas de cooperação técnica para o desenvolvimento no Brasil, no
que diz respeito à estruturação da crítica e da denúncia, mas com acolhimento aos ideais
de solidariedade e às parcerias internacionais. A entrada de instituições governamentais
alemãs em políticas ambientais no Brasil se deu por meio de redes consolidadas entre
ONGs em um espaço de atuação e de debate promovido durante a realização da Eco-92,
no Brasil, para depois dar entrada nas redes governamentais relacionadas às políticas de
proteção da Floresta Amazônica. A participação do governo alemão no PPG-7 como
maior doador isolado garantiu a afirmação de sua liderança política internacionalmente,
como um catalisador na implementação e na formulação conceitual nas iniciativas
políticas ambientais.
Para o próximo capítulo, busquei fazer um exercício de distanciamento em
relação a um contexto específico em que foi analisada a “cooperação técnica
internacional”, e tratei o conjunto de definições e formas de abordagem sobre este campo
de práticas e discursos, chamados de cooperação técnica para o desenvolvimento, na
literatura acadêmica das ciências sociais e, mais especificamente, nas contribuições da
antropologia sobre o tema. Foram analisados diferentes tipos de documentos publicados
sobre o assunto,106 dentre eles, teses, artigos de revistas especializadas em política
internacional, artigos de jornais, resenhas de política externa, discursos presidenciais e de

106
Foram identificadas mais de 450 publicações referentes ao tema no Núcleo de Documentação do
Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, atualmente integrado à biblioteca central da instituição,
bem como no Instituto de Economia da Praia Vermelha da UFRJ, além de intensa pesquisa pela Internet.

92
ministros de Estado, tratados, acordos e avaliações institucionais que sugerem algumas
idéias para a formulação conceitual.

93
Capítulo 2 - Desvendando a cooperação técnica para o desenvolvimento

O primeiro desafio ao tratar de cooperação técnica para o desenvolvimento se


apresenta à dificuldade de sua definição. A expressão cooperação internacional é usada
para designar as mais distintas situações, adquirindo diferentes sentidos semânticos,
sendo uma expressão de escopo flexível e amplo, tão amplo quanto suas possibilidades e
fins.

Relações internacionais e cooperação internacional como ordem

Cooperação internacional é tema que suscita discussão sobre as condições do


sistema internacional de Estados, tendo sido explorado inicialmente por autores de
diferentes escolas teóricas na área de relações internacionais. Eles analisaram como se
estabelece uma ordem no sistema internacional, o que define seu padrão e como os
Estados e outras organizações se comportam uns em relação aos outros, considerando a
posição que ocupam em uma estrutura de distribuição de poder. Conflito e cooperação
são temas sempre presentes no estudo e na interpretação da disciplina de relações
internacionais, parte fundamental do debate em torno dos mecanismos de ordenamento
do sistema internacional, o que ocorre desde a origem da disciplina, entre os anos 20-30,
até os dias de hoje. 107
Para os realistas,108 como Hans Morgenthau, a ordem internacional é anárquica;
nela está ausente uma autoridade supra-estatal e é caracterizada por conflito e competição
entre atores unitários, os Estados Nacionais. Essa ordem não pressupõe mecanismos de

107
Viotti, P.R. & Kauppi, M.V. International relations theory: realism, pluralism, globalism. New
York: MacMillan Publishing Company, 1993 (ed. revisada); Aron, Raymond. Paz e guerra entre as
nações. Brasília: UnB, 1981.
108
O Realismo é uma das escolas fundadoras da área de Relações Internacionais e uma das mais
influentes. Argumenta-se haver não um, mas vários “realismos”, sendo o principal eixo de argumentação a
idéia de “auto-ajuda”, em que os atores dependem exclusivamente de seus próprios recursos; da
centralidade dos Estados Nacionais e da luta pela sobrevivência e soberania, o que explica o
comportamento dos Estados Nacionais em um sistema anárquico. Um de seus mais expressivos expoentes,
Hans Morgenthau, escreveu em 1948 Politics among nations: a struggle for power and peace, uma
referência na área. Ver: Baylis, J. & Smith, S. The globalization of world politics: an introduction to
international relations. Oxford: Oxford University Press, 1997.

94
regulação, porque os realistas têm como pressuposto que os Estados são atores racionais
agindo individualmente para realizar seus próprios interesses, pois não contam com
nenhuma outra instituição supra-estatal, mas somente com seus próprios recursos de
poder.109 O objetivo mais fundamental dos Estados é garantir, por meio da auto-ajuda, a
soberania, o que implica assumir que a cooperação entre os Estados é uma situação pouco
provável de ocorrer, pois envolve a cessão de parte de suas soberanias.110
Para outros autores, mais afinados com idéias liberais, os chamados “liberais-
institucionalistas”, como Peter Haas e David Mitrany, entre outros, a cooperação
internacional seria uma opção viável no sistema internacional.111 Ela resulta da
construção normativa desenvolvida por um grupo de atores internacionais – Estados,
empresas e organismos governamentais e não-governamentais – para resolver problemas
comuns. Nela as instituições internacionais teriam um papel central na construção de
políticas coordenadas e normas comuns para os Estados soberanos, com livre circulação e
troca de conhecimentos e mercadorias que envolvem interesses comuns entre esses
Estados e que estão relacionados à idéia de promoção do bem público, o que é contrário à
lógica competitiva de livre mercado que leva ao conflito.

A ênfase em seus trabalhos está na identificação dos fatores que levam à


consolidação de uma ordem internacional propícia ao desenvolvimento econômico, por
meio de condições de paz e harmonia internacional, o que pressupõe alguma forma de
construção normativa coletiva em que as instituições têm um papel fundamental. A este
conjunto de normas elaboradas chama-se de regimes internacionais: “um conjunto de
princípios implícitos e explícitos, normas, regras e procedimentos relativos a decisões
para uma determinada área de relações internacionais em torno dos quais as expectativas
dos atores convergem”, segundo a definição de Krasner.112 Para John Ruggie, regimes
referem-se mais a “um conjunto de expectativas, regras e regulações, planos e

109
Idem, p.113.
110
Morgenthau, Hans. Politics among nations: a struggle for power and peace. New York: Knopf,
1984.
111
A definição de “pluralistas” abrange um conjunto de correntes associadas a idéias liberais. Para
citar alguns autores: Arthur Stein, Kenneth Waltz, Robert Keohane, James Rosenau, Oran Young, David
Mitrany, um dos pioneiros da teoria da integração Peter Haas, John Ruggie, entre outros.
112
Krasner, Stephen. International regimes. New York: Cornell University Press, 1983.

95
compromissos sociais que foram aceitos por um grupo de Estados” e se voltam para
normas de defesa de interesses e bens comuns, coletivos ou globais, como meio
ambiente, direitos humanos, segurança internacional, narcotráfico, entre outros.113
É muito freqüente entre autores que adotam uma abordagem liberal-
institucionalista que cooperação internacional seja definida como um processo de
interdependência entre os atores do sistema internacional.114 Keohane e Joseph Nye
argumentam que esta crescente interdependência se deve ao desenvolvimento de novas
tecnologias e a uma maior integração econômica mundial e que tem por objetivo a
realização de “interesses comuns”. No entanto, para estes autores, a idéia de
interdependência não exclui a de assimetria. Supõem, neste sentido, a existência de
condições de desigualdade em termos de distribuição de poder entre os Estados, e
explicam o fato de que, embora se obtenham ganhos absolutos em uma relação de troca,
os ganhos relativos podem ser distintos e acentuados com as relações de cooperação.
Para Robert Keohane, conflito e cooperação são, no sistema internacional,
condições interligadas e não incompatíveis ou contraditórias. Para ele, não existe
cooperação sem a eminência do conflito e seria uma opção que os atores internacionais
teriam diante de uma situação de conflito real ou potencial. Ele assim define a
circunstância em que a cooperação ocorre: “cooperação não significa harmonia e não
significa que não haja conflito. Sem o espectro do conflito, não há por que cooperar.
Cooperação é uma situação política”.115
Para Arthur Stein,116 conflito e cooperação são processos intrinsecamente
interligados que resultam de interações entre os Estados no sistema internacional.
Segundo ele, não devem ser analisados isoladamente, pois são as conseqüências das
escolhas dos Estados soberanos, baseadas nas percepções dos elementos do contexto
maior que determina a posição e a inserção de cada um deles no sistema internacional.

113
Ruggie, John (1975), appud Keohane, R. After hegemony, 1984. p.53.
114
Alguns teóricos de relações internacionais que adotam uma abordagem liberal-institucionalista,
como Robert Keohane e Joseph Nye, compartilham das idéias de que a maior integração econômica
mundial, novas tecnologias, atores não-governamentais e organismos internacionais são fatores que têm
contribuído para a interdependência mundial.
115
Keohane, R. After hegemony: cooperation and discord in the world political economy. Princeton:
Princeton University Press, 1984. p.63.
116
Stein, A. Why nations cooperate: circumstance and choice in International Relations. London:
Cornell University Press, 1993.

96
Estes elementos não são inerentes aos Estados, mas sim características do sistema, mais
precisamente da estrutura do sistema que define a distribuição de poder. Da mesma
forma, Kenneth Waltz, considerado um representante do “realismo estrutural”, explora o
conceito de estruturas políticas como forma de definir os princípios ordenadores que
expressam a distribuição de capacidades ou recursos no sistema internacional, sendo o
sistema de Estados uma analogia ao mercado que reconhece a existência de assimetrias
no plano internacional.117
Os aspectos de desigualdades e assimetrias das estruturas de poder no sistema
internacional foram amplamente denunciados pelos chamados teóricos da dependência,
representados por autores que adotam uma visão sistêmica fortemente influenciada pela
teoria do imperialismo e por uma preocupação com as assimetrias decorrentes da
distribuição de poder. Esta visão sobre diferenciais de poder no sistema internacional
também é observada por outra corrente de relações internacionais, a teoria sistema-
mundo,118 caracterizada pela herança marxista e por contribuições marcadamente
sociológicas das estruturas de poder. Entre os autores, encontramos Celso Furtado, André
Gunder Frank, Fernando Henrique Cardoso e Immanuel Wallerstein.

Antropologia e cooperação para o desenvolvimento

Em sua concepção contemporânea, o termo cooperação internacional está


fortemente vinculado aos Estados Nacionais e à idéia de desenvolvimento119 que,
principalmente entre os anos 70 e 80, gerou uma produção de artigos acadêmicos sobre
antropologia aplicada e a atuação de antropólogos em projetos de desenvolvimento.
Das publicações e dos trabalhos acadêmicos envolvendo a categoria cooperação
para o desenvolvimento, no que diz respeito à produção no campo da antropologia no
Brasil, nota-se um espaço ainda aberto para a abordagem antropológica no que se refere
às práticas efetivamente em exercício na execução de projetos e programas, nos rituais da

117
Waltz, Kenneth. “Man, State and War”. In: Theory of International Politics, 1979, p.79-106.
118
Baylis, J. & Smith, S., opus cit., p.125-145.

119
Arturo Escobar (1995), Gilbert Rist (1999), Lucy Mair (1984), James Ferguson (1994), Frederick
Cooper & Randall (1997) são alguns dos autores que contribuíram para este debate.

97
cooperação e nas representações discursivas, denominada cooperação técnica
internacional.
Diante de um universo amplo e complexo, essas práticas estão intrinsecamente
relacionadas às estruturas jurídicas e burocráticas de determinados setores dos governos
(Relações Exteriores, Ciência e Tecnologia, Planejamento e Economia, Meio Ambiente,
Educação, entre outros, que variam em função da especificidade do tema envolvido),
através de contratos que expressam o conjunto permitido de normas e regras.
Neste sentido, o presente trabalho tem como propósito, particularmente na
abordagem adotada nesta parte, analisar certas modalidades de intervenção em outras
administrações públicas e o arcabouço institucional e conceitual da administração pública
alemã correspondente. Espero estar contribuindo com a sugestão, há muito apresentada
por Nader, de focalizar as próprias estruturas de poder na nossa sociedade:120

Ethnographic reports would describe the communications industries, the agencies


which regulate them, the institutions that undergrid the industrial sector [...] It is
appropriate that a reinvented anthropology should study powerful institutions and
bureaucratic organizations in the United States, for such institutions and their
network systems affect our lives and also affect the lives of people that
anthropologists have traditionally studied all around the world.

Em trabalho na mesma linha, Ferguson121 tratou das operações do “aparato” do


desenvolvimento internacional e não das pessoas a serem desenvolvidas, objeto central da
maioria dos trabalhos antropológicos. Ferguson desenvolve ainda que esta mudança de
enfoque envolve uma abordagem descentralizada, em que a inteligibilidade deste
“problema antropológico” refere-se ao processo, à série de eventos e às transformações, e
não a uma determinada instituição; está na natureza sistemática da realidade social que
resulta dessas ações.

120
Nader, Laura. “Up the anthropologists: perspectives gained from studying up”. In: Hymes, Dell.
Reinventing anthropology. New York: Pantheon Books, 1972. p.292.
121
Ferguson, J. The anti-politics machin.“Development”, depolitization and bureaucratic power in
Lesotho. Minneapolis and London: University of Minnesota Press, 1994. p.17-19.

98
Arturo Escobar, em estudo a respeito da construção do “Terceiro Mundo” a partir
dos discursos sobre desenvolvimento, argumentou que o trabalho sobre instituições é uma
das forças mais poderosas na criação do mundo em que vivemos. Para ele: 122

This objetification and transcendence of local historicity are achieved in the


process of inscription. [...] In this process, the organization’s perception and
ordering of events is preordained by its discursive scheme and the locally
historical is greatly determined by nonlocal practices of institutions, embedded in
turn in textual practices.

O primeiro trabalho em antropologia produzido no Brasil sobre cooperação


123
internacional no Brasil a que tive acesso foi a tese de doutorado de Ludmila Lima,
defendida no Departamento de Antropologia (DAN) da UnB em 2001, que tratava dos
conflitos, rivalidades e disputas freqüentes entre a agência alemã GTZ e o governo
brasileiro em um projeto de cooperação, o PPTAL.124 Lima era dona de um olhar
privilegiado em relação aos conflitos cotidianos em um órgão público porque trabalhava
como consultora na equipe do projeto, o qual passou a tratar metodologicamente como
“aldeia”.
Seu trabalho sofreu críticas da representante alemã da GTZ no projeto, entre
outras coisas, por ela não ter aceitado as críticas às relações existentes entre ela e os
funcionários da Funai, fato que “reverberou”. Quando fui em 2002 a Brasília, os
comentários feitos particularmente pela “perita” alemã e também pela equipe do projeto,
mas até mesmo por alguns que ainda não haviam lido o trabalho eram bastante severos
em relação aos “problemas” da tese.
Este projeto foi coincidentemente o tema que eu havia escolhido inicialmente para
a minha investigação no doutorado, e que havia sido apresentado em projeto de pesquisa
pouco antes da defesa de Lima, de forma que não tive acesso à leitura da sua tese antes da
minha candidatura. Após lê-la, vi-me diante do desafio de redefinir minha abordagem e o
tema a investigar.
122
Escobar, Arturo. Encountering development. The making and unmaking of the Third World.
Princeton: Princeton Studies in Culture/Power/History - Princeton University Press, 1995. p.108.
123
Lima, L.M. M. “Se a FUNAI não faz, nós fazemos”: conflito e mudança no contexto de um
projeto de cooperação. Tese de doutorado, Departamento de Antropologia - UnB, Brasília, 2000.
124
A tese de doutorado de Ludmila M. Lima sobre a análise do PPTAL enquanto “aldeia”, espaço de
conflito e socialização, apresenta uma abordagem detalhada de como se dão esses conflitos no interior de
uma instituição que se depara com “o novo”, com mudanças. Ver Lima, L.M.M., idem.

99
Posteriormente, em 2002, Pareschi defendeu sua tese, também no Departamento
de Antropologia da UnB, sobre a relação entre o que definiu por projetismo e
desenvolvimento sustentável. Circunscreveu-se à análise de um projeto que envolvia
agências multilaterais e bilaterais de cooperação internacional, o Projeto Frutos do
Cerrado, dos Projetos Demonstrativos - PDA. Ambos, PPTAL e PDA, eram projetos que
faziam parte de um programa mais amplo para a Amazônia, o PPG-7.
As pesquisas realizadas não se limitaram, no entanto, a projetos desenvolvidos no
Brasil enquanto país “receptor” de cooperação, mas também como agente de cooperação
no exterior. Em 2005, o trabalho de Kelly Cristiane da Silva analisou as missões da ONU
no Timor Leste, ou seja, visou ao deslocamento do olhar para fora, às atividades de
“cooperação” realizadas pelo Brasil, agora em outra posição, como um dos “doadores”
para a “reconstrução do Estado” no Timor.
Notamos que os esforços iniciais de discussão sobre o que era denominado
“cooperação técnica” partiram mais claramente posicionados do Departamento de
Antropologia da UnB, não sem explicação. A proximidade existente dos escritórios de
organismos e agências internacionais, como Banco Mundial, PNUD, GTZ etc. – centros
de decisão dos projetos – as conversas informais com antropólogos e outros que
participam como consultores de projetos de cooperação e de órgãos do governo que
desenvolvem projetos, os comentários sobre novos editais de recursos, enfim, todo um
conjunto de situações que diz respeito à administração pública, às políticas
governamentais e à cooperação internacional, perpassam as condições corriqueiras e
cotidianas da vida privada, acontecendo de forma “naturalizada” em Brasília, e
entretecem-se no espaço acadêmico da UnB.
A rede de antropólogos que tem sua base de referência e ponto de partida na UnB,
no Departamento de Antropologia, compõe-se de alunos e ex-alunos formados pelo
DAN-UnB, constituindo um dos grupos mais firmes, coesos e gregários no meio
universitário e acadêmico de Brasília. A formação desta sólida rede começa pela
disponibilidade de um espaço de convívio social e de discussões acadêmicas para os
alunos – a Catacumba – que se estende para as festinhas da antropologia pela cidade. Ao
entrevistar um antropólogo que trabalhava em um projeto dentro de um órgão público, ele
comentou sobre a rede de antropólogos de Brasília:

100
[...] bem, eu conheço o pessoal, já escutava as coisas. Quem é que não sabe quem
é quem aqui? Brasília é pequena, a aldeia de antropólogos então, menor ainda.
Todos os antropólogos de Brasília se conhecem. Qualquer um que você falar aí,
eu conheço.

Em Brasília os antropólogos têm um elemento a mais que define o seu status


social tanto em relação a vários grupos profissionais, como diante de outros antropólogos:
a proximidade com o centro simbólico e administrativo do Poder Federal, que os coloca
em estrita ligação com “políticas públicas sociais”, garantindo a eles destaque no meio e
possibilidades concretas de trabalho, seja em consultorias temporárias, seja em cargos
públicos. Esta proximidade de oportunidades de trabalho, especialmente em
“consultorias”, e certo tipo de “engajamento” político em questões sociais e de direitos
humanos dão aos antropólogos de Brasília uma posição privilegiada em função da prática
de uma aparente antropologia “aplicada”. Esta prática vai desde a atuação em projetos
sociais em ONGs, em consultorias de curto prazo prestadas a órgãos públicos, como no
caso das identificações de terras, até diretamente no serviço público, em órgãos como
Funai, Ministério da Educação (MEC), Fundação Nacional de Saúde (Funasa), ou ainda
como especialistas, analistas periciais do Ministério Público. Nem sempre uma
antropologia “militante” garante reflexão antropológica, mas o fato é que a experiência
em campo, etnográfica, associada às políticas de Estado ou não, são características
bastante comuns de uma “antropologia de Brasília”.
Um antropólogo que trabalha no PPTAL reportou sobre as ofertas de trabalho
para quem é de Brasília: “Quem é de Brasília tem mais [...] Pô, eu nasci aqui, né? Eu
conheço todo mundo por aí. A gente conhece um bocado de gente que trabalha na
administração pública e aí eu fiquei avaliando [a oferta de trabalho que fizeram].”
Um outro grupo de pesquisadores, particularmente preocupados com questões
relativas a políticas de governo, ações de Estado, formas de arquivamento e memória e
formas de classificação de populações, tem desenvolvido trabalhos em áreas afins e
próximas a um campo próprio da cooperação e do desenvolvimento.
Alguns pesquisadores, sob a orientação de Antonio Carlos de Souza Lima, têm
produzido trabalhos instigantes envolvendo o tema cooperação e desenvolvimento a
partir da ótica de uma antropologia do Estado ou antropologia da administração pública,

101
buscando compreender as “tradições de conhecimento” de administração de territórios e
de populações.125 Entre eles, citamos a dissertação de mestrado de Roberto Salviani, a
tese de doutorado de J.P.M. Castro, e duas teses em andamento: a de Maria B. Hoffman e
a de Natacha Nicaise.126
Ao analisar os trabalhos que vêm sendo produzidos, podemos dizer que foi
basicamente a partir de 2000 que se intensificou o interesse pelo tema, em função de uma
renovação metodológica em direção a questões pertinentes à cooperação internacional,
como desenvolvimento e administração pública, em processo de discussão na como
desenvolvimento e administração pública, em processo de discussão na antropologia
desde os anos 70, ganhando força ainda maior nos anos 80 e 90.

Cooperação como ação social comum (Práticas)

Além da abordagem que toma cooperação como uma forma de ordenamento,


outros são os sentidos do termo. Segundo o Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de
Aurélio B. de Hollanda127, o sentido do termo cooperar é, “operar simultaneamente”;
colaborar; “prestar colaboração, serviços; trabalhar em comum”; “ajudar; participar,
auxiliar”. O conceito resulta de ação prática não-individual, mas caracterizada pela
interação entre indivíduos ou grupos, envolvendo interesses em comum, condição para
que haja colaboração.

125
Alguns dos trabalhos de Souza Lima marcam a abordagem sobre o tema, analisado através do
prisma do indigenismo como um conjunto de saberes associados a formas de gestão de desigualdades.
Entre eles, citaremos Souza Lima, A.C. “O indigenismo no Brasil: migração e reapropriações de um saber
administrativo”. In: LÉstoile, Benoit de, Neiburg, Federico e Sigaud, Lygia (org.) Antropologia, Impérios
e Estados Nacionais. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/ FAPERJ, 2002. p.160. Também adota reflexões
sobre o tema em: Souza Lima, A.C. “Tradições de conhecimento na gestão colonial da desigualdade:
reflexões a partir da administração indigenista no Brasil”. In: Bastos, C.; Almeida, M.V. & Feldman-
Bianco, B. Trânsitos coloniais: diálogos críticos luso-brasileiros. Lisboa: ICS, Universidade de Lisboa,
Estudos e Investigações nº 25, 2002. p.1
126
Quanto à produção de alunos de Antonio Carlos de Souza Lima, vale destacar a dissertação de
mestrado de Roberto Salviani, As propostas para participação dos povos indígenas no Brasil em projetos de
desenvolvimento geridos pelo Banco Mundial: um ensaio de análise crítica, publicada em 2002, e a tese de
doutorado de J.P.M. Castro sobre a atuação da UNESCO em projetos sociais no Brasil, envolvendo as
categorias “juventude, violência e cidadania”, defendida em 2005. Dentre as pesquisas de doutorado em
andamento, valem ser mencionados o trabalho de Maria Barroso-Hoffmann sobre a atuação da NORAD
com populações indígenas e a de Natasha Nicaise sobre a política de comunicação da União Européia.
127
Ferreira, A.B.H. Dicionário Aurélio Eletrônico Século XXI, versão 3.0, 1999.

102
Como vimos no Dicionário de Ciências Sociais,128 a bibliografia referente ao
tema enfatiza sobretudo a cooperação de grupos e não de indivíduos, sendo que suas
definições apontam para uma mesma linha centrada na idéia de “ação comum que visa à
realização de metas desejadas por todos os interessados”. Cooperação seria ainda uma
“ação conjunta e de comum acordo ou qualquer união de esforços semelhantes”. Nestes
sentidos acima observados, a palavra refere-se sempre a uma ação, a um processo social
entre grupos.
Kelly Silva define o sistema de doação envolvido na relação de cooperação em
Timor-Leste como um fato social total:129

Os recursos que têm como origem os parceiros do desenvolvimento são


depositados em nome de Timor-Leste na qualidade de doações, pelo que
esses atores são também denominados doadores. O sistema de doação
pode ser tomado como um fato social total quando tratamos de analisar o
processo de construção do Estado em Timor-Leste.

Para a autora, que analisa a pluralidade de atores que estão ligados à disputa do
processo de construção do Estado em Timor-Leste, o foco se dá antes no funcionamento
do campo da cooperação, que denomina de “o conjunto de práticas, valores e atores
envolvidos na gestão da assistência externa”130, relacionando as políticas de doação
adotadas a uma corrida por status político, “no qual a dádiva é a moeda de troca e fonte
de poder e prestígio”.
Como argumenta a autora, a abordagem sobre um conjunto de práticas, valores e
atores envolvidos na gestão de assistência externa caracteriza um campo de ação política,
mais do que simplesmente as ações em si. A noção desenvolvida por Bourdieu sobre
“campo” é muito adotada para análise da atuação de instituições em projetos de
cooperação.131 O conceito de campo para Bourdieu está imbricado na definição do modo
de produção de uma ordem observada e na construção de uma teoria da prática. Para ele,

128
Dahlke, H. Otto. “Cooperação”. In: Silva, Benedito (coord.). 2.ed. Dicionário de Ciências
Sociais. Rio de Janeiro: FGV, 1987. p.271.
129
Silva, K.C. da. Paradoxos da autodeterminação: a construção do Estado-Nação e práticas da
ONU em Timor-Leste. Tese de doutorado, DAN/UnB, Brasília, 2005. p.12.
130
Silva, K.C. da, opus cit., p.41.
131
Alguns dos trabalhos já citados o fazem, como Silva, K. (2005); Lima, Ludmila (2000), para citar
alguns.

103
campo é “espaço estruturado de posições cujas propriedades específicas dependem das
relações entre essas posições e que são passíveis de análise independente de seus
ocupantes” 132 e, ainda, campo como um local onde se trava uma luta concorrencial que
opõe o novo que força sua entrada e o dominante que procura excluir a concorrência,
defendendo seu monopólio.133
Neste mesmo sentido, Cristiana Bastos explorou o universo das redes de atores do
Brasil e do exterior envolvidos nas “respostas” ao fenômeno de disseminação da AIDS
como epidemia global, caracterizando um campo definido por um conjunto de atores e
pelos fluxos de conhecimentos sobre AIDS que se estabelecem entre eles. Como o título
de seu trabalho diz, a autora abordou as respostas enquanto práticas locais para o combate
à AIDS, para o que foi necessário articular processos e agentes financiadores, o que
podemos caracterizar como “campo”. Ela nos diz: 134

In Brazil, as in many other settings, the bulk of responses to AIDS, from the
government to the grass-roots level, coincided with internationally sponsored
efforts to promote a global action against AIDS. Sponsors included the World
Health Organization, several donor agencies from the developed countries, and
international coalitions involving people from developed and developing nations.

Há autores que tomam a expressão cooperação internacional mais precisamente


como práticas resultantes de determinados grupos ou agentes sociais, centralizando o
enfoque nos atores sociais. O trabalho de João Paulo Macedo Castro135 analisa a
consolidação de um espaço da UNESCO na construção de conhecimentos sobre
juventude e violência no Brasil e na articulação de agentes para elaborar e executar
políticas correlatas no país, caracterizando-a como agente político de um processo que
introduziu uma nova lógica de relacionamento entre Estados Nacionais e especialistas

132
Bourdieu, P. 1983(b), p.65, appud Souza Lima, A.C. Aos fetichistas, ordem e progresso: um
estudo do campo indigenista no seu estado de formação. Dissertação de mestrado, UFRJ/PPGAS, Rio de
Janeiro, 1985. p.227.
133
Ortiz, Renato. “Introdução”. ______. (org.). Pierre Bourdieu: Sociologia. São Paulo: Ática,
1983. p.19.
134
Bastos, Cristiana. Transnational responses to AIDS and the global production of science: a case-
study from Rio de Janeiro. Dissertation for the Degree of Doctor on Philosophy, University of New York,
1996. p.128.
135
Castro, J.P.M. UNESCO educando jovens cidadãos e capturando redes de interesses: uma
pedagogia da democracia no Brasil Tese de doutorado, UFRJ/PPGAS, Rio de Janeiro, 2005.

104
internacionais, que se pode entender como parte das relações de cooperação
internacional.
Alguns autores, cujos trabalhos refletem sobre projetos desenvolvidos por ONGs
e outras organizações da sociedade civil, também tratam o termo a partir das instituições
que desempenham essas atividades internacionalmente. Neste sentido, a tese de Benjamin
Buclet sobre a atuação das ONGs em um “mercado” da solidariedade situa
historicamente o surgimento das ONGs no Brasil como um lugar de atuação profissional
a partir de um enfoque que privilegia a diversidade de componentes e as propriedades do
campo. 136
Também neste mesmo sentido, Karin Urschel, ex-diretora da Fundação Heinrich
Böll no Brasil, em apresentação sobre o trabalho desenvolvido pela fundação neste país,
frisou em sua fala a importância de posicionar as atividades de cooperação não como
resultado da ação de uma entidade abstrata, mas em relação ao agente específico que a
pratica: 137
a idéia agora é abordar o tema da cooperação especificamente e não deixá-la
aparecer aqui como se fosse mais uma ONG. É preciso nos definirmos um pouco
e ressaltarmos a atuação específica da Fundação Böll. Primeiro temos que
entender que assim como não existem as ONGs em geral, como foi falado aqui
ontem, também não existe a cooperação em geral (grifos meus).

Quando analisado de uma perspectiva mais ampla, o discurso da comunidade e da


solidariedade pressupõe que indivíduos e grupos de diferentes origens nacionais se
compreendam como parte de um mesmo grupo, em função de interesses e objetivos em
comum, apesar das diversidades existentes entre eles. Este discurso passou a ser adotado
internacionalmente por representantes de organizações não-governamentais em
discussões políticas e em movimentos sociais.
A definição de cooperação não-governamental para caracterizar aquelas formas
específicas de desenvolvimento de projetos internacionais também denota a centralidade
dos atores sociais como determinantes não exatamente pelos agentes, mas sim pela

136
Buclet, B. Le marché international de la solidarité: les organizations non-gouvernementales en
Amazonie Brésilienne. Thése pour obtenir le titre de Docteur en Sciences Sociales, EHESS, Paris, 2004.
137
Souza, H. de. “Forward”. In: IBASE/PNUD. Development, international cooperation and the
NGOs. First International Meeting of NGOs and the United Nations System Agencies. IBASE, Rio de
Janeiro, 1992. p.9.

105
configuração em rede (networks) que caracteriza sua articulação. Algumas abordagens
adotam a hipótese de deslocamento dos centros de autoridade dos Estados para novas
esferas de poder e discutem a permanência dos Estados como instâncias de governo,
questão que remete às discussões contemporâneas sobre a permeabilidade dos Estados em
relação a processos decisórios. Organizações transnacionais, movimentos sociais e
organismos multilaterais vêm ganhando legitimidade no plano da política internacional,
de forma que novas e velhas agências de cooperação internacional têm participado nas
definições de políticas públicas no contexto mundial.
Alguns autores, como James Rosenau e Ernst Czempiel, Oran Young, Robert
Keohane e Joseph Nye abordam a participação das instituições internacionais em
questões que ultrapassam fronteiras nacionais, como aquelas relativas a meio ambiente,
direitos humanos ou terrorismo internacional.138
Ribeiro define transnacionalismo como a integração não-excludente entre
realidades sociopolíticas; um eixo transversal que recorta outros níveis de integração, no
qual está ausente uma realidade territorial139 e os aspectos políticos e ideológicos são
privilegiados.140 Seu espaço é difuso, disseminado em uma malha que vai do local
regional nacional ao internacional, por isso, um termo recorrente entre instituições da
“sociedade civil”, das redes de organizações, das associações e as pessoas articuladas
pelo ativismo político, ações e movimentos sociais que promovem atividades chamadas
de cooperação internacional ou solidariedade internacional.141
As formas de relações entre organizações não-governamentais definidas por
cooperação ocorrem prioritariamente por meio de redes de organizações, associações e
pessoas, articuladas e mobilizadas pelo “ativismo” político, por ações e movimentos
sociais. Ainda assim, a inter-relação entre os campos governamental e não-governamental
merece uma apreciação cuidadosa, já que são inúmeras as sobreposições e interseções
entre essas áreas, seja no que diz respeito à elaboração do aparato conceitual, seja quanto
aos profissionais que circulam de um campo ao outro, ou nas próprias funções em

138
Rosenau, J. & Czempiel, E. Governança sem governo: ordem e transformação na política
mundial. Brasília: Editora UnB, 2000.
139
Ribeiro, Gustavo Lins. Cultura e política no mundo contemporâneo. Brasília: Editora UnB,
Coleção Antropologia, 2000. p.14.
140
Idem, p.173
141
Idem, idem.

106
atividades realizadas pelas organizações, muitas vezes de complementação ou mesmo de
competição na área social.142
Outra proposição também é encontrada em alguns trabalhos sobre cooperação,
tendo sido sistematizada pelo Dicionário de Ciências Sociais como uma forma de
organização social: “em economia e história social, o termo é empregado para descrever
qualquer forma de organização social e econômica que tem por base o trabalho
harmônico em conjunto, em oposição à concorrência”.
Para alguns autores, como André Gueslin, cooperação e solidariedade seriam
termos que estariam associados a uma determinada forma de organização social ou
configuração social, que teria tido a sua origem no final do século XIX, associada à
discussão em torno de temas sociais – a pobreza, as relações de trabalho e as relações
salariais.143 Através de uma análise histórica do surgimento da economia social na
Europa, mais precisamente na França, Guéslin argumenta que o conceito de cooperação
teria surgido em meados do século XIX, ganhando preponderância a partir de 1860. Para
ele, seu surgimento estaria associado ao contexto do desenvolvimento do setor de
proteção social, de redes de solidariedade da sociedade européia diante dos efeitos da
Revolução Industrial. As redes seriam as intermediárias entre as dinâmicas do Estado e
do mercado, tais como a formação de estruturas confraternais e corporações, confrarias
mercantis e artesanais, em sua maioria nos centros urbanos. O autor aborda aspectos do
processo de construção de conceitos e práticas de solidariedade, cooperação e
associação, explorando as várias formas de organização da sociedade civil, como
instituições intermediárias “entre o indivíduo e o poder”. Tais iniciativas teriam surgido
nos meios laicos ou religiosos como efeitos dos processos de organização social e
econômica da Revolução Industrial.
Estruturas relacionadas à organização dos trabalhadores foram criadas na Europa
a partir de 1870, revelando que a tomada de consciência da questão social não foi um

142
Somente para dar um exemplo, um perito da GTZ no PDA, antes de assumir este cargo,
trabalhava como cooperante do SACTES/DED em uma organização não-governamental brasileira, a
FASE. Depois de passar alguns anos no projeto PDA, assumiu a direção da representação da Fundação
Heinrich Böll no Brasil, situada no Rio de Janeiro. Muitos outros casos podem ser encontrados deste
mesmo tipo.
143
Guéslin, André. L’invention de l’économie sociale – Le XIX eme siècle français. Paris: Ed.
Econômica, 1987. p.214.

107
projeto exclusivo da Igreja, mas por ela coordenado. Além disso, foram movimentos que
não se restringiram a um determinado Estado, mas ocorreram de forma semelhante e
simultaneamente em vários lugares. Os círculos operários da Alemanha católica, criados
desde 1870 pelo padre Kilping (Sindicato de Friburg – L’Union de Friburg), teriam
contribuído, de maneira geral, para o processo de conscientização e articulação dos
trabalhadores na Europa. Segundo André Gueslin, tais iniciativas foram decisivas para a
reflexão sobre os caminhos da Igreja católica, e parecem ter se institucionalizado com a
Encíclica Rerum Novarum, em 1891, quando a Igreja passou a atuar de forma mais direta
no apoio à formação das corporações contra os abusos aos trabalhadores.144 Para ele, a
Igreja católica teria dado a sua contribuição na formação de estruturas de solidariedade –
organizações que colaborariam para um projeto global de sociedade – quando deixou de
controlar as obras de caridade no Antigo Regime e passou a apoiar estas organizações a
partir de 1870.
Para autores como Gueslin e Robert Castels,145 a argumentação sobre processos
de sociabilidade primária ou de construção de redes de solidariedade e cooperação
dirige-se à análise das questões domésticas entre grupos sociais relacionados ou
subordinados a um Estado Nacional, e não exatamente sobre cooperação internacional. A
construção da cooperação se dá por meio de laços de sociabilidade146 entre “iguais”, em
idêntico contexto nacional, como forma de suporte a grupos de uma mesma sociedade,
laços estes que abrangem os diferentes membros de uma coletividade. Esta é
caracterizada por indivíduos, grupos sociais e nações que, conscientes das diferenças e
das desigualdades, se empenhariam em garantir grupos menos favorecidos ou atendê-los.
Em alguns casos, a concepção centrada no grupo que implementa políticas ou
práticas de cooperação pode remeter à idéia da existência de uma “comunidade”. O
conceito de comunidade, no entanto, é passível de muitas críticas. Para Thornton e
Ramphele, comunidade é um ideal, uma expressão praticamente inócua, como
argumentam:

144
Ibidem, p.214.
145
Castel, Robert As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. 4.ed. Petrópolis, Ed.
Vozes, 1998.
146
Idem.

108
community is the ideal for the future, the structure of utopia, the expectation of
heaven, the legitimate goal for a truly democratic politics. […] the term is also
used to describe loose entities like the international community or business
community. These usages imply that community so designated is static and
wholly distinct from other social entities. If community is the political term
today, it is also one of the most stereotyped and obscure. 147

Segundo estes autores, o termo comunidade teria surgido em sociedades ou


grupos religiosos cristãos medievais, sendo originalmente definido por Santo Agostinho.
Argumentam que apesar de a ideologia cristã enfatizar o compromisso voluntário dos
indivíduos com as comunidades, estas eram submetidas ao poder de nobres e reis que
garantiam sua segurança e proteção. As comunidades, por sua vez, legitimavam o poder
autoritário dos reis e dos nobres por meio de justificativas religiosas, e ofereciam assim
um modelo de comunidade política que seria reelaborado em outras situações ao longo da
história. Um exemplo são os movimentos missionários de igrejas, que se basearam em
estruturas sociais de comunidades como modelos de ação política no trabalho de
conversão religiosa no mundo. 148

Cooperação governamental

Nosso propósito aqui, no entanto, não é o de abordar cooperação como uma forma
de expressão da ordem internacional; não é também o de enfocá-la como uma ideologia
do desenvolvimento. O nosso objetivo é abordar as práticas de setores ou órgãos da
administração pública de Estados Nacionais em territórios estrangeiros por meio de
projetos. Neste sentido, o foco recai sobre a análise antropológica de determinadas
organizações do setor público de um Estado a respeito de organizações públicas de outro
Estado, não que isto exclua organizações não-governamentais, ao contrário, estas fazem
parte desse conjunto de interações em jogo. Nosso propósito é menos centrado nas
articulações, o que nos levaria à abordagem do “campo”, como mencionamos acima; de
fato, priorizamos a atuação de uma determinada organização, a GTZ, no Brasil. Para isso,
recorremos primeiramente a uma abordagem histórica, visando situar a sistematização

147
Thornton, R.J. & Ramphele, M. “Community, concept and practice in South África”. In: Critique
of Anthropology, (9) 1, London: Sage Publications, 1989, p.75-87.
148
Idem, p.84-85.

109
dessas práticas no processo de formação dos Estados no pós-guerra, particularmente os
casos da Alemanha e do Brasil, pois como argumenta Steinmetz: 149

the study of state formation is inherently historical, because it focuses on the


creation of durable states and the transformations of basic structural features of
these states. (…) But states are never “formed” once and for all. It is more
fruitful to view state-formation as an ongoing process of structural change and
not as a one-time event. Structural features of states involve the entire set of rules
and institutions that are involved in making and implementing policies.

Sobre a persistência de análise do poder do Estado, que diz que o Estado pode ter
perdido algumas de suas capacidades de controle sobre movimentos de capitais nas
fronteiras, mas ainda é um ator-chave em um grande número de aspectos relacionados à
governança, tendemos a concordar com a opinião de George Steinmetz: 150

the state may have relinquished some of its earlier capacity to control the
movement of capital across its own borders, but it is still the key actor in a
number of arenas, including the definition of access to citzenship and its benefits,
the control and production of violence, and the matacoordination of the diverse
nongovernmental institutions involved in “governance. (…) The state still has
crucial advantages over other actors in the effort to construct hegemonic
identities and to unify the centripetal identifications within any given territory
along nationalist lines.

Neste mesmo sentido, Bourdieu argumenta que é no domínio da produção


simbólica que se faz sentir a influência do Estado: as administrações públicas e seus
representantes são grandes produtores de problemas sociais, os quais a ciência social
apenas ratifica, retomando-os por sua conta como problema sociológico.151
E é exatamente neste sentido da construção de mecanismos específicos, objetivos
e subjetivos, enquanto esquemas de percepção e pensamento que se impõem de um
Estado sobre outro, que nos interessa pensar a cooperação como uma política adotada por

149
Steinmetz, G. (ed.) State/culture: State formation after the cultural turn. Ithaca, London: Cornel
University Press, 1999. p.8-9.
150
Idem, p.11.
151
Bourdieu, P. “Espíritos de Estado”. In: Bourdieu, P. Razões práticas sobre a Teoria da Ação.
Campinas: Papirus Editora, 1996. p.95.

110
Estados Nacionais. No caso de se tratar de mecanismos, práticas e discursos de um
Estado sobre outro ou outros, a produção simbólica tem efeitos amplos e disseminados,
não necessariamente iguais, mas certamente fundamentados em uma mesma referência
ideológica ou cultural de origens nacionais, a partir das quais são elaboradas e produzidas
tais práticas e discursos.
Em políticas governamentais, como parte das ações orientadas para política
exterior de um país, a expressão cooperação para o desenvolvimento refere-se a um
conjunto de práticas administrativas a ser executado em Estados, territórios e populações
estrangeiras.
As chamadas agências de cooperação técnica internacional são órgãos de
governos que atuam em solo estrangeiro enquanto vinculadas às embaixadas de seus
países de origem; não têm uma personalidade jurídica própria, mas adotam a
personalidade jurídica da embaixada no local. Organismos internacionais são
organizações de direito público internacional com personalidade jurídica própria,
autonomia administrativa e mandato específico.152
As atividades de cooperação para o desenvolvimento implicam acordos e
compromissos jurídicos que regulamentam a transferência de recursos públicos
internacionais e estabelecem formas de atuação no exterior, as quais se expressam por
meio de trocas e intercâmbios (fluxos e contrafluxos) de múltiplas e diferenciadas
naturezas, envolvendo recursos financeiros, equipamentos, conhecimentos, idéias e
pessoas.
Entre as diferentes formas que as práticas de intervenção assumiram no contexto
contemporâneo, destacam-se algumas definições formais na lógica da administração
pública. A política governamental de cooperação para o desenvolvimento engloba as
várias maneiras pelas quais são adotadas certas práticas da administração pública em
territórios estrangeiros, formas de intervenção em escala global. São elas: cooperação
técnica, cooperação financeira, cooperação científica, cooperação acadêmica,
cooperação humanitária, entre outras, que no caso da Alemanha se encontram agrupadas

152
MRE. “Diretrizes para o desenvolvimento da cooperação técnica internacional multilateral e
bilateral”. 2.ed., p.19: www.abc.mre.gov.br/abc/abc_historico.asp. Acessado em 12 de fevereiro
de 2005.

111
em uma mesma estrutura administrativa de governo, um mesmo ministério, o que nem
sempre acontece na maioria dos países.
Cooperação financeira refere-se aos fluxos de recursos financeiros e
investimentos. Na cooperação acadêmica e científica, são estabelecidos projetos de
pesquisa e desenvolvimento tecnológico entre centros de pesquisa, universidades e
fundações para intercâmbio de conhecimentos, experiências e aprimoramento científico.
No campo cultural, os programas de cooperação podem ser estabelecidos através dos
incentivos a determinadas expressões ou eventos culturais importantes, intercâmbio entre
artistas, grupos musicais, teatrais ou projetos culturais e outros. Em alguns casos, no
entanto, a cooperação científica insere-se no contexto de uma relação de cooperação
chamada técnica, sendo esta a mais flexível e fugidia definição que há entre as tantas de
cooperação.
Deste conjunto diferenciado de formas de ação governamental em territórios
estrangeiros, a cooperação técnica oferece alguns desafios, particularmente para a análise
antropológica, na medida em que se apresenta como práticas baseadas na transferência de
conhecimentos e na “capacitação”, educação ou formação de quadros de profissionais,
em grande parte os que pertencem a órgãos públicos, e na formação de saberes fundados
nas ciências sociais aplicadas – antropológico, sociológico, geográfico, econômico,
administrativo – associados a formas de intervenção de Estados Nacionais voltados para a
construção de Impérios.

Cooperação técnica

A primeira definição formalmente reconhecida para a expressão cooperação


técnica internacional, estabelecida na Resolução nº 200 da Assembléia Geral da ONU de
1948 (CTI), afirma ser:

Transferência não comercial de técnicas e conhecimentos, através da execução de


projetos em conjunto, envolvendo peritos, treinamento de pessoal, material
bibliográfico, equipamentos, estudos e pesquisas entre atores de nível desigual de
desenvolvimento (prestador e receptor).

112
Ainda hoje, esta definição tem validade, de modo geral, entre as diferentes
agências e organismos internacionais envolvidos no tema. Entende-se por cooperação
técnica as trocas de conhecimentos, metodologias, know-how que se dão entre dois
países, o que usualmente envolve a vinda dos chamados peritos técnicos estrangeiros para
implementar tais metodologias e conhecimentos através de projetos ou programas.
Toda iniciativa de cooperação técnica internacional governamental (CTI), seja
em termos de programas ou de projetos, é criada a partir da assinatura de um acordo
internacional, que pode ser tanto bilateral como multilateral. No caso de ser bilateral, é
feito entre os governos de dois países através de órgãos de suas respectivas
administrações públicas. No caso de ser multilateral, é assinado entre uma agência ou
organismo internacional e uma agência ou órgão da administração pública de Estado
Nacional. No caso brasileiro, a atribuição de celebrar tratados, acordos, atos
internacionais é da competência privativa do Presidente da República, devendo ser
submetido à aprovação do Legislativo, observadas as normas jurídicas do direito interno
dos Estados envolvidos, bem como as do direito internacional.
Na administração pública brasileira, nos chamados Acordos Básicos de
Cooperação Técnica, são definidas as linhas gerais de atribuições e responsabilidades de
cada um dos Estados e organismos internacionais participantes do acordo, as instituições
da administração que devem executar as atividades, conforme designadas pelos
respectivos governos, e os objetivos das relações diplomáticas entre os países envolvidos.
Vinculados e condicionados aos termos estabelecidos no Acordo Básico de
Cooperação Técnica, estão os chamados Ajustes Complementares, que também são atos
jurídicos internacionais – estes mais específicos no que se refere a determinar os critérios
próprios de cada projeto negociado no âmbito de um mesmo acordo de cooperação. Para
cada projeto específico é assinado um acordo complementar diferente.
Em relação a quaisquer mudanças ou emendas nos textos dos acordos
complementares, faz-se uso da Troca de Notas, documento com formato próprio,
intercambiado entre o Ministério de Relações Exteriores do Brasil e a outra parte, seja ela
um organismo internacional ou uma agência de outro Estado.153 Os projetos são, por sua
vez, os instrumentos por excelência de operacionalização da cooperação técnica entre

153
MRE, opus cit., p.18, parágrafo 24.

113
duas ou mais instituições executoras dos dois países envolvidos, neles estando contidos
os objetivos e os meios para alcançá-los e o planejamento do trabalho.
Um projeto de cooperação técnica deve ser temporário e seus objetivos revelam o
enfoque pedagógico, educativo, da cooperação técnica, particularmente orientada para
órgãos da administração pública de países do chamado Terceiro Mundo: 154 “capacitar e
instrumentalizar órgãos públicos para que estes possam implementar, por seus próprios
meios e de forma mais eficiente e com maior impacto e sustentabilidade, políticas e
programas públicos”.
As atividades de cooperação técnica são apresentadas na forma de consultoria
especializada, treinamento de recursos humanos e aquisição de equipamentos destinados
a capacitar órgãos públicos, a fim de que estes possam implementar por seus próprios
meios, de forma mais eficiente e com maior impacto e sustentabilidade, políticas e
programas públicos.155 Como instrumento de capacitação de órgãos públicos, essas
atividades não substituem, no entanto, as ações de Estado e, portanto, não devem ser
confundidas com políticas públicas em si, mas sim como ações subsidiárias a elas.
Distinguem-se ainda de ações humanitárias, assistenciais, de investimento em infra-
estrutura ou aquelas realizadas por órgãos militares, filantrópicos e eclesiásticos. 156
Para o caso deste estudo, algumas definições estabelecidas pelo governo brasileiro
e pelo governo alemão, selecionadas a partir de publicações oficiais, elucidam as
variações e as ênfases entre elas, revelando muito acerca de onde a definição partiu: se de
um país que recebe recursos, ou de um país que doa recursos.
No texto abaixo, vemos a definição formal do governo brasileiro para cooperação
técnica para o desenvolvimento como uma intervenção para promover mudanças:157

uma intervenção temporária por meio do desenvolvimento de capacidades


técnicas de instituições ou indivíduos destinada a promover mudanças
qualitativas e estruturais em um dado contexto socioeconômico, para sanar ou
minimizar problemas específicos identificados naquele âmbito; para explorar
oportunidades e novos paradigmas de desenvolvimento (grifos meus).

154
Idem, p.9, parágrafo 6.
155
Idem, idem.
156
Idem, p.8, parágrafo 3.
157
Idem, p.7, parágrafo 1.

114
Para o governo brasileiro, o pressuposto para haver um acordo de cooperação
técnica para o desenvolvimento é de que este contribua para os objetivos de
desenvolvimento estabelecidos por ele, governo, o que se avalia em três níveis: o da
instituição que atuou como executora do projeto; o de uma melhor formulação e execução
de programas públicos ou de projetos, e o da participação da sociedade civil nas políticas
públicas. 158
Como orientação para assinatura de acordos com outros países para projetos de
“cooperação”, são adotados alguns critérios pelo governo brasileiro: a ênfase em
prioridades nacionais; o impacto macro-micro (nacional, regional, local); os efeitos
multiplicadores em outras áreas e outros setores; a capacitação de instituições através de
transferência de conhecimentos e sua internalização, ou seja, adequação nos processos
dos órgãos nacionais aos procedimentos instaurados com os projetos, permitindo que não
mais se dependa de instituições estrangeiras.
Para o governo alemão, a definição de cooperação técnica caracteriza-se por ser
uma atividade que consiste em: 159

capacitar os indivíduos e as organizações dos países parceiros para melhoramento


das suas condições de vida sob sua própria responsabilidade e mediante seus
próprios esforços. Para este fim, proporcionam-se capacidades e conhecimentos
técnicos, econômicos e organizacionais, [por meio de atividades que envolvem]:
disponibilidade de consultores, instrutores, especialistas peritos e outros técnicos
qualificados, fornecimento de equipamentos e materiais, treinamento de técnicos
e quadros executivos locais no próprio país, em outros países em vias de
desenvolvimento ou na Alemanha, e contribuições financeiras para os projetos e
os programas.

Como nos reportou uma antropóloga que fazia parte da equipe do PPTAL:160

A cooperação técnica da GTZ por definição significa isso: capacitar as pessoas


dos projetos das instituições nessas metodologias para poder desempenhar, para
poder tocar pra frente esses temas de monitoria [...] para poder tocar pra frente
essa coisa de você planejar ações, de você acompanhar ações, de você avaliar o
que fez. E aí, é o planejamento de pacote fechado, é isso, a metodologia. É como

158
Idem, idem.
159
GTZ. Compêndio do vocabulário da GTZ. Eschborn: GTZ, 1997. p.39.
160
Juliana Sellani, responsável pela monitoria do projeto PPTAL .

115
eu te contei, eu fui à Alemanha fazer um desses cursos e percebi que no mundo
inteiro onde existe cooperação técnica alemã o formato é esse mesmo, tá todo
mundo trabalhando através das oficinas chamadas oficinas participativas,
vivendo essas técnicas que eles chamam de Metaplank, que é essa técnica de
visualização com aqueles murais e fichinhas, e existe uma justificativa até
ideológica para esse uso, para esse tipo de coisa que você pode fazer em qualquer
lugar, em qualquer contexto, sem a questão de se o público ali da comunidade
que você está envolvido tem alguma tecnologia ou não tem, se tem dinheiro ou
não tem, se sabe escrever ou não [..] (grifos meus).

Ressaltam-se as diferenças entre ações humanitárias, assistenciais ou de


investimento em infra-estrutura das atividades de “cooperação técnica”. Da mesma
forma, são estabelecidas diferenças em relação às políticas públicas.
Ao partirmos da afirmação de Weber de que “administração burocrática significa
dominação em virtude de conhecimento”,161 também relação entre conhecimento e poder,
como nos aponta Foucault, supomos que a cooperação técnica para o desenvolvimento
consiste em diretrizes e práticas de intervenção associadas a programas e a projetos de
governos que visam, por sua vez, à expansão de conhecimento sobre territórios e
populações. Isto vai garantir, em conseqüência, maior capacidade de administração e
influência sobre eles. A visibilidade de certas práticas e discursos encobre as práticas de
poder.

161
Weber, M. Economia y sociedade. México: Fondo de Cultura Economica, 1983.

116
Parte II. Supostos e contextos da intervenção alemã no Brasil

Esta parte trata de situar, em determinado momento da história contemporânea, as


condições políticas e conceituais que viabilizaram a implementação, em vários Estados
Nacionais, de um conjunto de normas e instituições de intervenção para administração de
populações e territórios em outros Estados por meio de projetos, promovendo a
circulação – envio e recebimento – de recursos em fluxos distintos dos comerciais e de
investimentos no setor produtivo. Pretendia-se historicizar este campo usualmente tratado
por abordagens funcionais que se prendem aos discursos naturalizados dos projetos ou
programas em jogo. A análise deste contexto nos permite ter maior clareza sobre a
intensificação das relações entre os governos destes dois países em diferentes momentos
da história, a partir da assinatura do acordo básico de cooperação técnica de 1963, que
analisaremos na parte final da tese.
O surgimento das práticas de cooperação técnica internacional, entre os anos 50 e
meados dos 70, não pode ser pensado separadamente do contexto em que elas se deram,
caracterizado pelo marco ideológico da Guerra Fria, quando se fazia presente um sistema
de alianças entre a União Soviética e os Estados Unidos na concorrência por zonas de
influência. A partir da recuperação de alguns países europeus, a bipolaridade própria da
Guerra Fria deu espaço à crescente atuação de outros países, como Alemanha e Japão,
que já nos anos 60 passaram a desempenhar o papel de países doadores e não mais
receptores de recursos internacionais, caracterizando uma alteração dos diferenciais de
poder, desestabilizando uma certa dinâmica de distribuição de poderes existente.
Para isso, no capítulo três que se segue, recorremos a um enfoque histórico do
pós-guerra, visando abordar tanto o contexto mais geral de política internacional,
sobretudo os processos históricos de formação de estruturas e órgãos específicos da
administração pública ocorridos no Brasil. Abordamos o contexto em que se
institucionaliza esta forma específica de intervenção de instituições estrangeiras na
administração púbica brasileira nas duas primeiras décadas do pós-Segunda Guerra, em
que notamos a primazia dos setores militar e diplomático, chegando , em fins dos anos
80, com a consolidação de um sistema organizado e regulamentado com a criação da

117
Agência Brasileira de Cooperação, quando houve o ressurgimento de variados fluxos
internacionais. Tais práticas fazem parte de um processo de expansão e consolidação de
novas formas de intervenção mundialmente, com arcabouço conceitual e institucional do
aparelho de Estado para atuar no exterior, estabelecendo fundamentos discursivos e de
atuação prática com base na lógica do desenvolvimento.
No capítulo quatro, focalizamos os processos históricos de surgimento de
organizações governamentais e não-governamentais no final da Segunda Guerra Mundial
na Alemanha, criadas para receber recursos estrangeiros destinados à recuperação de sua
economia e passaram a atuar no mundo na administração e intervenção em territórios
estrangeiros, particularmente países “em desenvolvimento” ou países do “Terceiro
Mundo”. Considerado por alguns autores162 como “um dos sistemas de cooperação mais
complexos e perfeitos, servindo de modelo a outros países” , apresenta uma variedade de
organismos, agências e fundações que atuam tanto como concorrentes ou
complementares na implementação de diretrizes e concepções de políticas do Estado
alemão.
A Alemanha, embora participando inicialmente como um elemento quase passivo
em função da correlação de forças que se consolidou no pós-guerra com a sua derrota, foi
capaz, em menos de uma década, de alterar sua posição de receptora de fundos
internacionais à de doadora, categoria que lhe coube pelos recursos oferecidos ao
desenvolvimento de outros países. Isto foi possível, dentre outras razões, pela
estabilização de uma estrutura institucional e de uma dinâmica financeira que foram
montadas para recebimento dos recursos do Plano Marshall.163
O propósito deste capítulo é priorizar os processos de resposta específicos de cada
contexto nacional, brasileiro e alemão, no que diz respeito à montagem de condições
institucionais para a promoção de políticas para o desenvolvimento a partir de convênios
internacionais. Recorrer aos primórdios de seu estabelecimento e às formas que foi se
desenvolvendo é fundamental para compreendermos como a discussão atual sobre
cooperação técnica no Brasil é polêmica e envolve críticas em função de uma suposta

162
Camargo, Sonia de. “Brasil e Alemanha: Uma Parceria Desejada”, em: Moniz Bandeira, L.A. e
Pinheiro Guimarães, S. Brasil e Alemanha: A Construção do Futuro. Brasília: IPRI, 1995, p.177-193.
163
Inoue, Cristina . “Bases para um novo pacto de cooperação”. Cadernos Abong , no17, julho 1997,
p.10.

118
“perda de soberania” quando envolve assuntos considerados estratégicos, como a questão
relativa aos cuidados com populações e terras indígenas pelo Estado brasileiro.

119
Capítulo 3. Origens da cooperação técnica: uma história oficial

O objetivo deste capítulo é analisar algumas das formulações que postulam a


história das origens da cooperação técnica para o desenvolvimento no sistema
internacional. Em primeira mão, adiantamos que publicações disponíveis sobre o tema
não são muitas; o que existe é em grande parte produzido por profissionais que trabalham
em instituições governamentais de Estados Nacionais – órgãos diplomáticos, ou agências
e organismos internacionais: agências da ONU, como o Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (United Nations Development Program - UNDP), Comissão
Econômica para América Latina e Caribe - CEPAL, Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico - OCDE, Organização Internacional do Trabalho - OIT,
Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura - UNESCO,
Banco Mundial, além de agências governamentais, como a Canadian International
Development Agency – CIDA, ou a GTZ, e não-governamentais, como a Fundação
Heinrich Böll ou a OXFAM. Se considerarmos a posição de muitos dos autores que
trabalham sobre o tema, poderemos argumentar que grande parte do que se produz sobre
cooperação técnica enquadra-se na definição da “história oficial” e reproduz
pressupostos e prerrogativas do discurso desenvolvimentista, sendo a cooperação técnica
um de seus instrumentos.
Observamos que a concepção das políticas para o desenvolvimento e a
institucionalidade têm origem nos países desenvolvidos (centrais), particularmente nos
Estados Unidos, país que assumiu a posição de liderança política e econômica no pós-
guerra. Muitos autores consideram que as diretrizes de uma política para o
desenvolvimento e as ações destinadas à cooperação em tal campo – nesse período
embrionário chamadas de assistência ao desenvolvimento – teriam sido promovidas a
partir do Point Four de Harry Truman e pelo Plano Marshall. Este último havia sido
lançado em abril de 1948 pelo secretário de Estado e seria assumido pela Administração
de Cooperação Econômica dos Estados Unidos (Economic Cooperation Administration
of United States).

120
Os países receptores de recursos acompanharam os movimentos e os processos de
configuração e estruturação em suas respectivas administrações públicas, de forma a
poderem dialogar em uma mesma linguagem institucional para a recepção de recursos e a
execução de projetos. Veremos como isto se processa no Brasil, com a estruturação de
um sistema institucional na administração pública para regulamentar e implementar os
meios para recebimento de recursos técnicos, tecnológicos e financeiros.
Os processos de intervenção e administração de determinados Estados sobre
outros não são novos nem especificamente governamentais, mas têm relação com uma
dinâmica anterior, localizada no século XIX, que se refere ao colonialismo e às formas de
administração de territórios de além-mar, e também com o interesse na expansão
comercial.164 A intervenção no mundo em desenvolvimento vem garantindo
historicamente uma forma particular de acúmulo de conhecimentos, os quais se originam
de pesquisas científicas realizadas por expedições financiadas pelos governos dos países
centrais nas áreas de agronomia, biologia, botânica, e de pesquisas sociais.
Nos últimos cinqüenta anos, no entanto, a complexidade nas relações de trocas e
intercâmbios entre diferentes atores internacionais e nacionais intensificou-se em termos
de freqüência e diversidade de formas na política contemporânea.
No período entre 1945 e 1951 foram criados os principais organismos
multilaterais – a ONU, em 1945, e suas agências especializadas, o Fundo Monetário
Internacional - FMI e o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento - BIRD
(também conhecido como Banco Mundial), na Conferência de New Hampshire, e a
Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE, a partir da
Organização para Cooperação Econômica Européia - OEEC, em 1947.165 No caso das
agências da ONU, os temas internacionais eram debatidos nos encontros internacionais e
nas reuniões das agências, como a UNESCO, criada em 1945; a World Health
Organization - WHO, em 1946; a International Civil Aviation Organization - ICAO, em
1947; a World Metheorological Organization - WMO, em 1951; a International Atomic

164
Lucy Mair, Arturo Escobar, James Ferguson, somente para citar alguns entre outros antropólogos
que vêm discutindo a relação entre antropologia e desenvolvimento.
165
Tickner, Fred. Technical cooperation. United Nations Special Projects Office. New York:
Praeguer Publishers, 1966. p.12.

121
Energy Agency - IAEA, entre outras. Foi nesse contexto que começou a se consolidar
uma política multilateral de cooperação internacional.
Esta “história oficial” está fortemente conectada a uma ideologia da dominação,
dos vencedores da guerra, do progresso e do desenvolvimento. Políticas sociais para o
desenvolvimento, associadas à educação básica, à saúde pública, à agricultura familiar e,
mais recentemente, à questão ambiental por meio do conceito do desenvolvimento
sustentável, têm sido o foco dos programas de cooperação técnica internacional
destinados aos chamados países em desenvolvimento. Okongwu e Mencher argumentam
que se deve analisar criticamente a relação entre ideologia e políticas públicas e afirmam: 166

“No longer is social policy on the local, national or international level shaped solely by
legitimate governmental bodies; it is now necessary to take into account the role of such
agencies as the World Bank, regional banks […]”.

A cooperação internacional no pós-guerra

Na concepção usual sobre o processo histórico de institucionalização da


cooperação técnica para o desenvolvimento, ela teria se iniciado formalmente na política
internacional no final dos anos 40, intensificando-se nos anos 60 até meados dos 70,
quando foram criadas e consolidadas internacionalmente suas bases normativas e
institucionais, precisamente com os arranjos multilaterais e bilaterais que se organizaram
com o fim da Segunda Guerra Mundial. Para Inoue e Apostolova, bem como para Cervo,
a cooperação técnica internacional foi introduzida formalmente no sistema internacional
em 1948, com a Resolução nº 200 da ONU, que veremos em detalhe mais à frente.167
Ao se considerarem as referências mais evidentes que atribuem o surgimento da
cooperação internacional ao contexto da Segunda Guerra Mundial e, em especial, ao
Plano Marshall, teríamos mais de sessenta anos de práticas reproduzidas e disseminadas

166
Okongwu, Anne & Mencher, Joan. “The anthropology of public policy: shifting terrains”. Annual
Review of Anthropology, 29, p.109, 2000.
167
Inoue, Cristina Y.A. & Apostolova, M.S. A cooperação internacional na política brasileira de
desenvolvimento. São Paulo: ABONG; Rio de Janeiro: Núcleo de Animação Terra e Democracia, 1995;
Cervo, Amado Luiz. “Socializando o desenvolvimento: uma história da cooperação técnica internacional do
Brasil”. Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, Revista Brasileira de Política Internacional,
Brasília, Ano 37, nº 1, p.39, 1994.

122
na política internacional, o que implica, em caráter global, a mobilização de pessoas, o
investimento de recursos e as intervenções para aplicação de métodos e técnicas em
espaços nacionais.
Para Fred Tickner,168 no entanto, o processo de institucionalização da chamada
ajuda técnica (technical aid) – expressão que será substituída por cooperação técnica –
enquanto uma prática regular entre países, seria uma atividade cujo surgimento antecedeu
à Segunda Guerra Mundial, ao contrário do que usualmente se propaga. Para ele,
particularmente nos casos da Grã-Bretanha e da França, a “gestão administrativa” das
colônias por órgãos da Metrópole representou um meio pelo qual variados fluxos de
transferências ocorreram, desde recursos de pessoal, recursos técnicos, científicos e
financeiros até conhecimentos e valores.

Embora as colônias, em sua maioria, tenham conquistado a independência,


muitas atitudes imperiais concomitantes à conquista colonial ainda persistem.169
Por razões apenas em parte enraizadas na experiência imperial, as velhas divisões
entre colonizador e colonizado ressurgiram naquilo que muitas vezes é
denominado de relação Norte-Sul.170

Tickner relata em trabalho histórico do período inicial de atuação das Nações


Unidas, entre os anos 40 e 60, a experiência vivida como seu funcionário, abordando o
papel das agências especializadas da ONU em comparação com a atuação individualizada
dos Estados Unidos. Segundo ele, as Nações Unidas teriam contribuído, a partir do final
da Segunda Guerra Mundial, para a mudança de mentalidade em relação ao
desenvolvimento mundial e ao processo de institucionalização da cooperação
internacional como prática regular entre países.
O autor destaca particularmente a continuidade existente no fornecimento de
serviços públicos da Grã-Bretanha no que dizia respeito às práticas coloniais, havendo
para ele um fluxo nas relações Metrópole-Colônia, assim como entre as funções de
instituições coloniais e agências designadas para exercer funções características de uma
política de desenvolvimento. O Colonial Office, o Foreign Office e o Commonwealth

168
Tickner, F., opus cit., p.120.
169
Said, E. Cultura e imperialismo. São Paulo: Cia. das Letras, 1999, p.48.
170
Idem, p.49.

123
Relations foram assumidos pelo Ministério de Desenvolvimento do Ultramar (Overseas
Development Ministry), que vai operar com fundos do Colonial Welfare and
Development Acts. 171
A Grã-Bretanha, o maior império colonial, foi o primeiro país a implementar uma
política de assistência por meio de transferência de conhecimentos técnicos e científicos,
de pesquisa científica e de consultoria técnica da Inglaterra para as suas colônias,
reconhecendo em 1929 o Colonial Development Act. Esses serviços especializados – uma
prática que antecedeu e deu origem ao que posteriormente se instituiu como uma forma
de cooperação técnica e científica internacional – eram feitos em várias áreas: de saúde
animal e agricultura, de medicina tropical e educação superior, no desenvolvimento de
conhecimentos específicos científicos sobre populações e espaços nacionais estrangeiros.
Eles eram realizados por conselhos universitários (University Council), por instituições
de pesquisa (Research Board), ou por comitês de aconselhamento (Advisory Committee),
tendo sido o Colonial Advisory Council for Agriculture and Animal Health a primeira
instituição a ser criada em 1929, ano de estabelecimento do Colonial Act.172 Estes
representavam um conjunto de instituições da metrópole que atuavam para controle do
conhecimento sobre regiões que ocupavam ou intervinham que atendiam à lógica de
Estados metropolitanos.
A listagem de organizações consultivas do império britânico era extensa, o que
justificou, do ponto de vista administrativo, a criação do Colonial Office como instituição
que centralizou posteriormente todas essas funções, substituindo os conselhos. Com o
processo de descolonização, foram feitas mudanças na forma de classificação (na
nomenclatura) das instituições responsáveis pela função de promover o desenvolvimento
das colônias, a fim de dissociá-las da tradição colonial. No entanto, na prática, quase nada
mudou no caráter funcional das instituições e naquele que se referia aos recursos
financeiros disponíveis para tais atividades. Mudavam-se os nomes e as siglas, mas
mantinham-se as práticas.
Em 1964, funções do Colonial Office, do Foreign Office e do Commonwealth
Relations seriam assumidas pelo Overseas Development Ministry (Ministério de

171
Tickner, F., opus cit., p.89.
172
Idem, idem.

124
Desenvolvimento do Ultramar), que passaria a operar com fundos do Colonial Welfare
and Development Acts. Em 1970, novamente, extingue-se o Overseas Development
Ministry, e suas funções são transferidas para a Secretaria de Estado de Assuntos
Exteriores e do Commonwealth (Secretary of State for Foreign and Commonwealth
Affairs), passando o trabalho a ser executado pelo Overseas Development
Administration, parte do Foreign and Commonwealth Office.
Também o trabalho desenvolvido por Helen Lackner sobre a administração
indireta (Indirect Rule), adotada pela Grã-Bretanha na Nigéria, e o processo de formação
do Estado nigeriano, em final do século XIX e início do XX, é bastante elucidativo no
que diz respeito a se estabelecer uma correlação entre as formas de administração do
período colonial e as de implementação das atividades de cooperação técnica
internacional.173 Lackner, que fez uma análise criteriosa e rica em detalhes da
particularidade da administração da Grã-Bretanha, coloca-nos diante de questões
históricas referentes àquele contexto, mas que explicam determinados aspectos gerais da
administração indireta como um feitio de administração colonial. Esta última surgiu
como resultado da dificuldade em administrar física e financeiramente vastos territórios
conquistados ao redor do mundo. A existência de instituições, autoridades locais e
estruturas de poder hierarquicamente bem definidas era condição que favorecia uma
forma de transmissão de ordens e regras por meio das forças e das autoridades
tradicionais locais existentes.174

A guerra e a diplomacia

Uma outra vertente originária da cooperação técnica internacional está associada


aos contextos de guerra e à lógica militar, surgida mesmo antes da Segunda Guerra
Mundial na forma de assistência, mas que ficou amplamente conhecida nessa guerra.175

173
Lackner, H. “Social anthropology and indirect rule. The colonial administration and anthropology
in Eastern Nigéria: 1920-1940”. In: Asad, Talal (ed.). Anthropology and the colonial encounter. New York:
Humanities Press, 1973. p.24-151.
174
Ela argumenta que a teoria funcionalista da escola britânica vincula-se à administração indireta
adotada pela Grã-Bretanha em suas colônias e protetorados e à relação dos antropólogos com esta estrutura
administrativa. O que se produziu tem conexão com o que se observava e com a forma com a qual os
antropólogos se inseriam na administração colonial. Lackner, H., 1973, p.148.
175
Ver Tickner, F., opus cit., p.3.

125
As funções do aparato institucional militar de envio de alimentos, remédios e suprimentos
para populações afetadas por guerras ou conflitos, desabrigadas e refugiadas – com o
início, inclusive, de trabalhos de reassentamento de populações – marcariam
definitivamente as práticas que seriam depois desempenhadas por departamentos
diplomáticos dos Estados Nacionais. Igrejas, hospitais e outras instituições de assistência
social teriam papel central na consolidação de uma lógica de auxílio fundamentada na
idéia de solidariedade, a qual integraria uma “comunidade internacional”.
As práticas voltadas para a reconstrução de países destruídos pela Segunda.
Guerra Mundial ganharam força, em um primeiro momento, através do Plano Marshall,
com a prestação de ajuda e assistência, fundamentalmente militares, a populações
atingidas pela guerra.
A cooperação aparece aqui como um dos eixos centrais da diplomacia, condição
para que ocorra negociação para a resolução de conflitos como uma alternativa à guerra.
O contexto militar e as práticas de assistência ou ajuda humanitária em situações de
guerra caracterizam uma das mais antigas experiências referidas como technical aid e
technical assistance (ajuda técnica e assistência técnica).
A ajuda humanitária durante e após as guerras, particularmente nos anos 40, com
a Segunda Guerra Mundial, antecedeu o que viria a ser chamado de cooperação técnica
para o desenvolvimento. Com a difusão de princípios de reconhecimento da soberania
dos povos e da igualdade de direitos, estabelecidos na Carta das Nações Unidas logo após
a Segunda Guerra Mundial, instaurava-se um contexto internacional de paz e crescimento
econômico sob a hegemonia americana, o que estaria sinalizando uma mudança de
mentalidade em meados dos anos 40:176 “at the same time it has become generally
accepted that the less fortunate countries also have the rights to share in the benefits to be
derived from progress […] these changes in thinking all have their implications in the
Charter of the United Nations”.

176
Tickner, F., opus cit., p.3.

126
Como extensão e complementaridade das práticas militares, a diplomacia
refletiria também os interesses de poder dos Estados Nacionais, associados ao território e
a questões políticas, nas relações com outros Estados em tempos de paz.177
Em trabalho desenvolvido como consultor da Divisão de Comércio Internacional
e Transporte da CEPAL, Luciano Tomassini178 realizou um levantamento dos
significados da diplomacia em dicionários especializados, como o Dicionário Littré, que
nos remete ao papel da cooperação internacional. Diplomacia é, segundo Tomassini: “la
acción de solucionar los diferendos públicos, sobre todo los internacionales”.179 Já no
Dictionnaire Diplomatique, ela é: “negociación y cooperación son la razón de ser, no
solamente del agente diplomático en cuanto jefe de misión, sino de la diplomacia en su
conjunto”.
Foi no campo da diplomacia que pioneiramente as práticas da cooperação
internacional se formalizaram de maneira mais avançada e onde ganharam suas
características mais conhecidas, como a política de relações exteriores de um Estado.
Uma das instituições que colaboraram para o avanço das discussões sobre
cooperação técnica internacional foi, segundo alguns autores como Tickner, a United
Nations Relief and Reabilitation Administration – UNRRA, que atuou entre 1943 e 1949
na ajuda às populações desabrigadas e aos refugiados de guerra.180 A UNRRA atuava com
recursos provenientes principalmente da Grã-Bretanha e dos EUA, mas perdeu força à
medida que o Plano Marshall despertava interesse por seus programas.181 Na verdade, o
Conselho Econômico e Social - ECOSOC da ONU exigiu da Assembléia Geral que se
retirassem da UNRRA as funções de “assistência ao bem-estar social”, e solicitou um
comprometimento do secretário geral no sentido de que tomasse medidas para a
promoção da cooperação internacional para reconstrução do pós-guerra. Nesse contexto,

177
De acordo com as definições do Dicionário de Ciências Sociais (opus cit., p.505-508, apud Silva,
B.; Miranda Netto, A.C. et all., p.351), um dos problemas principais em qualquer tentativa de definir
diplomacia é sua ligação com a guerra, ficando evidente que a relação entre assuntos que dizem respeito ao
campo militar estão fortemente vinculados a negociações no campo da diplomacia. Para alguns, diplomacia
representa a alternativa pacífica e negociada à guerra que, uma vez ocorrendo, expressa o fracasso da
diplomacia.
178
Tomassini, Luciano. Desarrollo económico y cooperación internacional. Santiago: CEPAL, junho,
1993. p.2.
179
Idem, idem.
180
Tickner, Fred, opus cit., p.10.
181
Idem, p.12.

127
atribuía-se a este tipo de intervenção internacional o termo assistência técnica ao bem-
estar, relacionado às políticas do Estado de Bem-Estar Social (Welfare State), entre elas,
a technical assistance, expressão que teria sido mencionada pela primeira vez em 1946,
pelo ECOSOC.182
Em 1946, a Assembléia Geral da ONU autorizou a contratação de recursos
humanos para atuar na área de “bem-estar social” e estabeleceu as diretrizes de
assistência técnica das Nações Unidas: ajuda através do envio de experts (especialistas)
ou assessores técnicos especializados (expert advice). Dessa forma, os primeiros ensaios
de assistência técnica foram estabelecidos com o envio de peritos ou especialistas e
também com a provisão de equipamentos para uso dos oficiais, o que era objeto de
demonstração de projetos-piloto. Além disso, eram práticas comuns às metrópoles
colonialistas a oferta de bolsas de estudos (fellowship awards) e o recebimento de
estudantes das colônias nas suas instituições de formação.

A Resolução 200 do ECOSOC

Na segunda sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 1947, foi


aprovada a Resolução 52 que recomendava ao ECOSOC estudar os meios para colocar
em prática as diretrizes estabelecidas anteriormente sobre assistência técnica.183
Essas decisões contribuíram para a assinatura da Resolução 200, em 1948, que
criou o Programa de Assessoria das Nações Unidas. De acordo com a Resolução 200,
assistência técnica envolveria, além do envio de especialistas (experts e peritos) para
atuarem nos países, a educação no estrangeiro de especialistas dos países
insuficientemente desenvolvidos (bolsas de estudo no exterior), a organização da
formação de técnicos locais, a ajuda aos governos com recursos humanos, material e
equipamentos técnicos necessários (fornecimento de equipamentos) e a estruturação de
seminários e intercâmbio de informações atualizadas (atividades pedagógicas de
formação).184 A Resolução 200 ampliou os termos em que se definia assistência técnica

182
Idem, p.3.
183
Tomassini, L. opus cit., p.4-5.
184
Idem, p.4.

128
em relação ao que fora estabelecido na Assembléia Geral de 1946 e seria considerada
decisiva para o desenvolvimento de atividades de assistência técnica, tendo instituído a
expressão e criado os fundos apropriados a essa modalidade de assistência.185
A definição de critérios para prestação de assistência técnica deixava clara a
preocupação em definir um campo estritamente técnico de relações e o fato de que tais
relações não poderiam servir de pretexto para a ingerência econômica ou política do país
estrangeiro em assuntos internos do país interessado. Como critério, esse tipo de
assistência seria consolidado exclusivamente com governos ou através da sua condução,
sendo eximidas as atividades de caráter político. Neste sentido, tal assistência deveria
responder às necessidades do país interessado e ser proporcionada na forma desejada pelo
país receptor até onde fosse possível, objetivando os mais altos níveis de qualidade e
competência técnica.186

O Plano Marshall e o Ponto Quatro

Lançada pelo presidente Harry Truman em março de 1947, a Doutrina Truman


visava a uma política de investimentos em infra-estrutura para os países europeus
destruídos pela guerra e foi formulada como uma operação econômico-ideológica para a
contenção do comunismo. Sua finalidade seria restaurar a prosperidade européia187 após a
guerra, particularmente as economias destruídas, evitando que se aliassem ao mundo
comunista.188 A reconstrução européia e o desenvolvimento econômico decorrente dos
investimentos norte-americanos pareciam as principais bandeiras para impedir tal
processo.
A Doutrina Truman reforçou a lógica da ajuda para o desenvolvimento ao
expressar a idéia segundo os padrões dos Estados Unidos e dos países mais ricos e não-
comunistas. O discurso do crescimento envolveria os países em desenvolvimento através
de uma política de “boa vizinhança”, de ampliação dos laços de amizade e de relações

185
Tomassini, L, opus cit., p.4-5.
186
Idem, p.4.
187
O Plano Marshall deu ao Ministro de Estado norte-americano, general George Marshall, o Prêmio
Nobel da Paz em 1953.
188
Tomassini, L. opus cit., p.9.

129
econômicas, sociais e culturais, e caracterizaria o estabelecimento de áreas de influência
que expressavam vínculos históricos, culturais e lingüísticos muitas vezes associados a
relações coloniais.
Como parte desta doutrina, o Plano Marshall foi colocado em prática a partir de
abril de 1948 por meio de um órgão do Estado norte-americano, a Administração de
Cooperação Econômica (Economic Cooperation Administration). O Plano não foi
destinado somente aos países derrotados, mas também aos Aliados, no sentido de
fortalecer a economia européia como um todo e, em conseqüência, a economia mundial.
O Plano Marshall tinha como princípios, entre outros, estimular a economia européia e a
cooperação transatlântica, promover as importações européias de produtos americanos,
conceder empréstimos para investimentos em reconstrução das contrapartes e propagar a
solidariedade americana, particularmente na Alemanha derrotada, como uma propaganda
ideológica.189
Na sua posse, quando eleito para o segundo mandato em janeiro de 1949, Truman
apresentou um discurso com três pontos, os quais seriam a base de atuação dos Estados
Unidos em relação a uma política de desenvolvimento. Esta política pretendia liderar a
sustentação das Nações Unidas, o Plano Marshall e a criação da Organização para o
Tratado do Atlântico Norte - OTAN. Havia, no entanto, um quarto item que chamou a
atenção, o Ponto Quatro, que dizia:190

Pela primeira vez na história a humanidade possui o conhecimento e a habilidade


para aliviar o sofrimento dessas pessoas. Os Estados Unidos são preeminentes
entre as nações no desenvolvimento de técnicas industriais e científicas. Os
recursos materiais que podemos nos dar ao luxo de usar para a assistência de
outros povos são limitados. Mas os nossos recursos inestimáveis de
conhecimento técnico estão crescendo constantemente e são inesgotáveis. Eu
acredito que devemos disponibilizar aos povos amantes da paz os benefícios do
nosso depósito de conhecimento técnico para ajudá-los a realizar as suas
aspirações a uma vida melhor. E na cooperação com outras nações, devemos
incentivar os investimentos de capital em áreas que precisam de desenvolvimento
(grifos meus).

189
Quanto a este ponto, Harries argumenta que o efeito do Plano Marshall na Alemanha serviu como
exemplo para confirmar o sucesso de seus objetivos de refrear a expansão comunista e restabelecer a força
econômica do “Ocidente”. Harries, H. Financing the future: a german bank with a public mission.
Frankfurt am Main: Fritz Knapp Verlag, 1998. p.45.
190
Lopes, Carlos. Cooperação e desenvolvimento humano: a agenda emergente para o novo milênio.
Anexo 1. São Paulo: UNESP, 2005. p.195.

130
Neste discurso aparecem todos os elementos que posteriormente iriam caracterizar
as formas de intervenção adotadas por governos de países “mais desenvolvidos” em
governos de países “menos desenvolvidos”: a assimetria exposta em termos de diferenças
de conhecimentos técnicos e tecnológicos, industriais e científicos; a ênfase na
necessidade de ajudar em função da carência e do padecimento de “outros” povos
(sofrimento dessas pessoas); a ênfase na capacidade dos Estados Unidos de ajudar
(nossos recursos inestimáveis de conhecimento técnico estão crescendo constantemente e
são inesgotáveis); a disponibilidade de recursos materiais e financeiros; a definição de
condições para recebimento de recursos pelos que eram “de paz”, ou seja, aliados
ideologicamente ligados aos Estados Unidos; a caracterização da ajuda (financeira e de
transferência de conhecimento) para o desenvolvimento entre as nações, como uma
prática desejável a ser implantada.
Assim, ficou conformado um amplo modelo de programa de ação destinado a
promover o desenvolvimento de países que não o tivessem. Era uma iniciativa que partia
dos Estados Unidos que, enquanto liderança política e econômica, anunciava as diretrizes
mais amplas que não se restringiam à sua política externa. Os fóruns internacionais das
Nações Unidas – Assembléia Geral da ONU – prestaram-se a ser um espaço de
interlocução e de repercussão das propostas norte-americanas em relação ao
desenvolvimento e à cooperação técnica.
Segundo Tickner, as ações de cooperação estabelecidas no Ponto Quatro
deveriam ser implementadas pela ONU e por suas agências especializadas, mas não era
possível fazê-lo administrativa ou politicamente. Em 1948, as Nações Unidas não tinham
muitos recursos para a assistência técnica ao desenvolvimento econômico, o que
caracterizava a instituição de ter “princípios admiráveis, mas sem suporte econômico”,
considerando-se que tinha somente US$ 288 mil.191 Além disso, o programa de
assistência técnica da ONU teria encontrado dificuldades de organização pela falta de
pessoal, problemas em relação aos impactos em função da atuação dos peritos técnicos

191
Tickner, F., opus cit., p.15.

131
nos locais. Dessa forma, a improvisação teria marcado os primeiros esforços de
cooperação técnica da ONU.192
Em agosto de 1949, o ECOSOC193 aprovou o Programa Ampliado de Assistência
Técnica, que contaria com recursos de um fundo formado por doações de seus membros,
fora do orçamento da instituição, e com a criação de um departamento para administrá-lo
– o Technical Assistance Board – e um Comitê de Assistência Técnica.194 Este programa
foi o predecessor do PNUD, também oferecido pelas Nações Unidas.
Os Estados Unidos tiveram que assumir o programa Point Four como uma
determinação de sua política externa, passando a coordená-lo através da Administração
de Cooperação Técnica (Technical Cooperation Administration of United States),
estabelecida no Departamento de Estado Norte-Americano em 1950.
Segundo Tickner, ainda que instituições multilaterais tivessem sido criadas nos
anos 40 para promover maior coordenação entre políticas dos Estados Nacionais, e assim,
a administração da ordem internacional, até meados dos anos 60 grande parte dos
recursos financeiros, de equipamentos e de pessoal circulantes internacionalmente eram
orientados por meio de relações bilaterais, entre Estados Nacionais, sendo os Estados
Unidos de longe o principal ator na promoção dessas atividades.195
No entanto, apesar de os recursos orçamentários destinados a países chamados
“em desenvolvimento” revelarem a primazia das relações bilaterais, Tickner argumenta
que as organizações internacionais ganhavam progressivamente força e autoridade no
plano internacional pós-guerra, e contribuíam para um “fórum” multilateral de articulação
política em que eram estabelecidas “agendas internacionais”, legitimando certas práticas
adotadas individualmente pelos Estados.
Neste sentido, outro organismo que teria grande importância na
institucionalização da cooperação internacional, além da ONU, seria a Organização para
Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, formada por um grupo de
potências industriais, produtores de 60% dos bens e serviços mundiais. Ela surgiu a partir

192
Tickner, opus cit., p.24-34.
193
“ECOSOC 222 {IX} de 14 e 15 de agosto de 1949”. Lopes, Carlos, opus cit., p.196.
194
Tickner, idem, p.15-16.
195
Os recursos do programa de cooperação técnica das Nações Unidas, representavam em 1963 cerca
de 10% dos fluxos de fundos públicos para assistência técnica internacional. Ver: Tickner, idem, p.7.

132
da Organização para Cooperação Econômica Européia (Organisation for European
Economic Co-operation - OEEC), que se estabeleceu em 1947, com suporte dos Estados
Unidos e do Canadá, para coordenar o Plano Marshall na reconstrução da Europa no final
da Segunda Guerra. Criada como contraparte econômica da OTAN, a OCDE desligou-se
da OEEC em 1961, e apresentava-se como uma organização não-excludente, afirmando
que a condição para tornar-se membro limitava-se a um compromisso do país com a
economia de mercado e uma democracia pluralista. Os não-membros eram convidados a
participar dos acordos e dos tratados da OCDE,. Os países donatários agrupados no
Comitê de Assistência ao Desenvolvimento (Development Assistance Committee, DAC)
contabilizavam mais de 90% da Assistência Oficial para o Desenvolvimento - ODA no
mundo.
O fato é que foi nas duas primeiras décadas posteriores à Segunda Guerra, entre
final dos anos 40 e final dos 60, que foram estabelecidos os pilares dessas políticas pelos
Estados Unidos, influenciando a criação de instituições multilaterais. Nos planos
nacionais, resolvemos analisar mais longamente as mudanças em relação às instituições,
mas não no plano de políticas mais amplas.
Quanto à política dos Estados Unidos para o desenvolvimento, imediatamente
posterior a Truman e já na era de Eisenhower, houve um retrocesso quanto às políticas de
financiamento público para o desenvolvimento propostas no Ponto Quatro. O novo
presidente priorizou investimentos privados e fortaleceu o papel do Banco Mundial em
relação à América Latina.
Foi ainda nos anos 70 que as Nações Unidas adotaram o conceito de cooperação
entre países em desenvolvimento, ou cooperação horizontal, que redefiniria as bases
sobre as quais se sustentavam os princípios de cooperação para o desenvolvimento,
particularmente de assimetria em termos de níveis de desenvolvimento. A reação a esta
premissa foi esboçada, em primeiro lugar, em uma série de conferências para o
desenvolvimento realizada nos anos 70, a United Nations Conference on Trade and
Development - UNCTAD. Em 1978, em Buenos Aires, aconteceu a Conferência Mundial
sobre Cooperação Técnica entre Países em Desenvolvimento, instituindo uma prática que
o Brasil passaria a adotar com crescente interesse a partir de então, de forma especial, em

133
relação aos países africanos e latino-americanos.196 Já havia acordos de cooperação
horizontal do Brasil com esses países desde 1972, a maioria deles diretamente entre
governos, mas em alguns casos envolvendo um grupo de países, como o Acordo sobre
AIDS, para a América Latina e os países de língua portuguesa.197

Os primórdios da cooperação técnica no Brasil

No Brasil, mudanças na estrutura da administração pública em relação a acordos


de cooperação técnica têm sido feitas desde os anos 50, e intensificaram-se nos anos 60 e
70 com a assinatura de “acordos básicos de cooperação técnica”, os quais vigoram até os
dias de hoje. Nesse período, foram criadas instituições que viabilizariam no Brasil, por
meio de organismos internacionais, as políticas de “promoção do desenvolvimento”, que
seriam denominadas políticas de “assistência técnica” para o desenvolvimento.
Este processo reflete tendências que vinham ocorrendo de forma mais geral no
mundo capitalista. No plano internacional, estavam sendo criadas as primeiras agências
ligadas à Organização das Nações Unidas, além de outros organismos internacionais que
estimulavam o fluxo de recursos financeiros e de conhecimentos especializados entre
fronteiras nacionais para promover o desenvolvimento. No Brasil, após oito anos de
ditadura do Estado Novo, entre 1937 e 1945, o período em que Eurico Gaspar Dutra
assumiu a presidência ficou conhecido pela redemocratização e pelo renascimento dos
partidos políticos. No que diz respeito às orientações de política externa, alguns autores
argumentam que, até a Política Externa Independente - PEI, inaugurada por Jânio
Quadros em 1961, a atuação do Brasil em fóruns internacionais tinha se guiado pela regra
de seguir o voto dos Estados Unidos em todas as questões, supondo os dirigentes
brasileiros que o Brasil ocupava a posição de aliado especial no continente americano.198

196
Cervo, Amado Luiz. “Socializando o desenvolvimento: uma história da cooperação técnica
internacional do Brasil”. Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, Brasília (BR). Revista Brasileira
de Política Internacional, Brasília, Ano 37, n º1, p.44, 1994.
197
Em: www.abc.mre.gov.br/ctpd/ctpd/htm Acessado em 24/3/2007.
198
Esta é a visão de Moura, Gerson. Sucessos e ilusões: relações internacionais do Brasil durante e
após a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: FGV, 1990. Também em Besserman Vianna, S. “Política
econômica externa e industrialização”. In: Abreu, M. de P. (org.). A ordem do progresso: cem anos de
política econômica republicana 1889-1989. Rio de Janeiro: Ed.Campus, 1990. p.105-122; e em Abreu, M.

134
A idéia de segurança hemisférica foi aos poucos se constituindo nos quadros de
referência ideológica da Guerra Fria. Segundo Moura, a consolidação da proposta de
segurança hemisférica, que foi lançada na Conferência de Chapultepec, no México, em
1945, exigiria mudanças no quadro institucional dos países.
Várias reformas foram iniciadas a partir de 1946, especialmente no Exército,
seguindo os modelos norte-americanos. Entre os exemplos, vale citar a criação do Estado
Maior das Forças Armadas, a reorganização do Ministério da Guerra e a concepção da
Escola Superior de Guerra, o que revela os efeitos desencadeados a partir do momento
em que são assumidos compromissos internacionais. Quanto à cooperação multilateral,
foi criada em 1953 a Comissão Nacional de Assistência Técnica - CNAT, que fez parte
do Ministério das Relações Exteriores.199
No que se refere às relações bilaterais diretas entre governos, o Brasil já havia
assumido compromissos com o governo dos Estados Unidos em 1950, quando assinou o
Acordo Básico de Cooperação Técnica com aquele país.200
Durante o governo Dutra, havia uma expectativa de obtenção de recursos
externos, particularmente de assistência financeira oficial do governo dos Estados
Unidos, bem como de capitais privados internacionais para projetos de desenvolvimento
em infra-estrutura, o que se esperava consolidar com a Comissão Mista Brasil-Estados
Unidos - CMBEU, instituída em dezembro de 1950.201 No entanto, em 1953, a CMBEU
ruiu, segundo Besserman Vianna, em função de mudanças de orientação da política
norte-americana, sendo abandonada, como sinalizamos, a política do Ponto Quatro com a
entrada de Eisenhower como presidente.202 Para Orestein e Sochaczewski, a CMBEU
teria deixado algumas conseqüências importantes no que diz respeito a uma política de
desenvolvimento, como a criação, naquele momento, do Banco Nacional de

de P. “Inflação, estagnação e ruptura”. In: _____. (org.). A ordem do progresso: cem anos de política
econômica republicana 1889-1989. Rio de Janeiro: Ed.Campus, 1990. p.197-212.
199
A CNAT foi regulamentada pelo Decreto 34.763/1953.
200
Em: www.mre.gov.br/abc . Acessado em 24/3/2007.
201
A CMBEU foi criada como resultado das propostas da Missão Abbink, constituída entre Brasil e
Estados Unidos em 1948, destinada a estudar as condições de desenvolvimento do país. A CMBEU vigorou
de 19/07/1951 a 21/12/1953, tendo sido aprovados neste contexto 41 projetos.
202
Vianna, S.B. “Duas tentativas de estabilização: 1951-1954”. In: Abreu, M. de P. (org.). A ordem
do progresso: cem anos de política econômica republicana 1889-1989. Rio de Janeiro: Ed.Campus, 1990.
p.123-150.

135
Desenvolvimento Econômico - BNDE, em 1952.203 Em 1956, foi formado o Conselho de
Desenvolvimento, órgão subordinado diretamente à Presidência da República,
encarregado de traçar uma estratégia de desenvolvimento para o país.204
Em 1959, o Escritório do Governo Brasileiro para Coordenação do Programa de
Assistência Técnica foi criado pelo decreto 45.660 em março de 1959 e o Conselho de
Cooperação Técnica da Aliança para o Progresso - CONTAP, em 1965, pelo decreto
56.979, o que reflete o alinhamento com as decisões norte-americanas.
No Brasil, até o final dos anos 60, as práticas de assistência técnica internacional
eram descentralizadas em diferentes órgãos do aparelho da administração pública
brasileira, apesar de algumas instituições nacionais destinadas a lidar com programas
multilaterais e bilaterais já terem sido criadas nos anos 50.
No que diz respeito às relações entre Brasil e Alemanha, alguns autores
argumentam que até meados dos anos 60 não havia uma política clara de aproximação
entre os dois países.205 Tendo sido iniciadas em maio de 1962 as negociações
intergovernamentais entre Brasil e Alemanha, somente em 1963 foi assinado o Acordo de
Cooperação Técnica entre os dois países, o que iria promover a intensificação de suas
relações, como argumenta Lohbauer.206

Anos 60-70

Apesar de serem observadas iniciativas de criação de instituições orientadas para


programas de assistência técnica já nos anos 50, alguns autores como Amado Cervo207 e
Inoue e Apostolova,208 consideram que a assinatura do Decreto 65.476, de outubro de

203
A incorporação do “social” à sigla do BNDE veio posteriormente; naquela época era somente
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico - BNDE.
204
O Conselho de Desenvolvimento formulou o Plano de Metas em 1956, cujos projetos se
basearam nos diagnósticos e nas definições da CMBEU e nas propostas do Grupo Misto CEPAL/BNDE,
criado em 1953 também como conseqüência da CMBEU. Ver: Orestein, L. & Sochaczewski, A. C.
“Democracia com Desenvolvimento: 1956-1961” . In: Abreu, M. de P., idem, p.171-195.
205
Lohbauer, C. Brasil-Alemanha: fases de uma parceria (1964-1999). São Paulo: Fundação
Konrad-Adenauer, 2000. p.29.
206
Lohbauer, C., idem, p.37.
207
Cervo, Amado Luiz, opus cit., p.37-63.
208
Inoue, Cristina Y.A. & Apostolova, M.S., opus cit., p.22.

136
1969, foi o marco da fundação de um sistema interministerial para coordenação da
cooperação técnica bilateral e multilateral no Brasil.
O decreto 65.476/69 discorria sobre atividades de cooperação técnica
internacional e determinava que os órgãos competentes para tratar de assuntos referentes
à cooperação técnica internacional seriam a Subsecretaria de Cooperação Econômica e
Técnica Internacional - SUBIN, do Ministério do Planejamento e Coordenação Geral, e a
Divisão de Cooperação Técnica do MRE.209 O Ministério do Planejamento e
Coordenação Geral estabeleceria a formulação da política interna de cooperação técnica e
a coordenação de sua execução, e caberia ao Ministério de Relações Exteriores a
formulação de política externa de cooperação técnica, a negociação dos seus instrumentos
básicos e o encaminhamento de solicitações de agências e de organismos estrangeiros.210
Ainda assim, todos os ministérios tinham suas assessorias internacionais, as quais
intervinham na aprovação dos projetos, como afirmam Inoue e Apostolova.211
De acordo com o texto do decreto, a Comissão Nacional de Assistência Técnica -
CNAT, bem como o Escritório do Governo Brasileiro para Coordenação do Programa de
Assistência Técnica e o CONTAP foram extintos, e suas atribuições passaram à SUBIN e
à Divisão de Cooperação Técnica do Ministério de Relações Exteriores, que assumiram a
responsabilidade de tratar de assuntos de cooperação técnica internacional a partir de
então. Estava sendo estruturado um sistema interministerial para a coordenação da
cooperação técnica internacional bilateral e multilateral, tendo o Itamaraty o seu papel
fortalecido em razão da sua capacidade negociadora pela via diplomática, da mesma
forma que a SUBIN. Isto porque a Secretaria de Planejamento tinha a função de
determinar quais os projetos de cooperação internacional que atendiam aos objetivos e às
prioridades de desenvolvimento nacional.
Como veremos depois, nessa época institucionaliza-se a lógica de divisão entre
um departamento “técnico” e outro financeiro para análise dos programas encaminhados:
de um lado, a Coordenação da Cooperação Técnica no Ministério das Relações Exteriores

209
Idem, Artigo 4º.
210
MRE. Decreto 65.476, de outubro de 1969. In:
http://www6senado.gov.br/legislacao/listapublicacoes.action?id=196112, Acessado em
24/3/2007.
211
Inoue, Cristina Y.A. & Apostolova, M.S., idem.

137
analisava os projetos, como o próprio nome diz, sob o ponto de vista técnico; a
Coordenação da Cooperação Financeira, no Ministério do Planejamento, por sua vez,
avaliava as condições de viabilidade dos projetos do ponto de vista financeiro. Os
mesmos critérios permanecem até os dias de hoje, tendo havido apenas mudança nos
nomes dos departamentos.212 Tomavam-se por referência os Planos Nacionais de
Desenvolvimento, ou planos regionais, estabelecidos como diretrizes das políticas
públicas nacionais.
A diferença qualitativa que se atribuía à assinatura do Decreto 65.476/69 em
relação ao desenvolvimento de um “sistema de cooperação técnica no Brasil” era, além
da centralização institucional, a presença do aperfeiçoamento dos mecanismos existentes
destinados aos programas de cooperação técnica internacional, com a elaboração de um
manual de normas e procedimentos relativos à tramitação de projetos, que objetivava a
padronização da formulação desses mesmos projetos até a sua execução e a elaboração de
relatórios.213
O Decreto 65.476/69 não foi instituído pelo Presidente da República, mas sim
pelos ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, que faziam
parte da Junta Militar que entrou em 31 de agosto de 1969, com o agravamento da saúde
do então presidente Costa e Silva. A Junta Militar ficou no poder até 30 de outubro de
1969, assinando neste interregno o Decreto, em 21 de outubro do mesmo ano.
Nos anos 70, as relações políticas e econômicas entre Brasil e Alemanha se
intensificaram. Segundo Lohbauer: “o Brasil se tornaria assim, depois da Segunda Guerra
Mundial, e especialmente no começo dos anos 70, o “Eldorado” dos investidores
alemães.”214 Segundo o autor, o país recebeu mais de 2/3 dos investimentos alemães na
América do Sul. Em termos políticos, algumas visitas mútuas entre meados e final dos
anos 1960, marcaram a aproximação entre os dois países, sendo o Acordo Bilateral de
Cooperação Nuclear Brasil-Alemanha a consolidação desta aproximação.215

212
Inoue, Cristina Y.A. & Apostolova, M.S., idem, opus cit., p.21.
213
Inoue, Cristina Y.A. & Apostolova, M.S., ibidem., p.23.
214
Lohbauer, C. ibidem, p.52.
215
Em maio de 1964, veio ao Brasil o presidente da Alemanha, Heinrich Lübke, destacando em seu
discurso a importância da cooperação alemã no desenvolvimento do Brasil; em setembro de 1968, foi a vez
de Willy Brandt, em uma primeira visita realizada por um Ministro do Exterior ao Brasil, que foi seguida

138
Nos anos 70, no quadro das relações exteriores do Brasil, marcado pelo
Pragmatismo Responsável, Alemanha Ocidental tornou-se uma alternativa aos Estados
Unidos, caracterizando a intensificação das relações entre os dois países no que se usou
chamar de “aliança especial”.216 Foram significativos os investimentos privados no
período entre 1970-1975, sendo o Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, assinado em junho
de 1975, considerado como a formalização desta aproximação.217
Durante a década de 1980, argumenta-se que as atividades de cooperação técnica
internacional entraram em declínio com a segunda crise do petróleo, em 1979, que atingiu
as economias dos países desenvolvidos, caracterizando esse período como de retração das
atividades de cooperação técnica internacional.218 No que concerne à conjuntura
econômica internacional, esta não seria a mais favorável em termos de disponibilidade de
recursos. A crise econômico-financeira internacional refletiu-se diretamente nos fluxos de
recursos destinados à cooperação internacional, marcando de 1981 a 1987 uma fase de
relativa estagnação no que diz respeito à cooperação internacional. No caso específico do
Brasil, a economia brasileira revelou instabilidade e depreciação monetária constante, em
uma crise inflacionária que acarretou para o período a denominação de década perdida.

A criação da ABC

Em 1987, foi criada a Agência Brasileira de Cooperação, ABC, fato que é


considerado por muitos autores como um passo importante em relação à consolidação de
um sistema de cooperação internacional no Brasil.219 A ABC teve origem no decreto
94.973, de setembro de 1987, e estava vinculada à Fundação Alexandre de Gusmão -
FUNAG, do Ministério das Relações Exteriores - MRE. Para Inoue e Apostolova, a
criação da ABC marca a reorganização da estrutura institucional da cooperação
internacional.

pela visita do Ministro de Relações Exteriores, Magalhães Pinto, a Alemanha para consolidar o programa
bilateral de cooperação técnico-científica na área nuclear.
216
Lohbauer, C. idem, p.58.
217
Lohbauer, C. idem, p.52.
218
Inoue, Cristina Y.A. & Apostolova, M.S., ibidem., p.25-28.
219
Cervo, Amado Luiz. opus cit., p. 37-63.

139
A experiência de alguns cientistas e peritos técnicos que desenvolveram projetos
de cooperação técnica, mesmo nos anos 80, nos confirma que havia uma descentralização
das instâncias decisórias da cooperação técnica no Brasil: “[...] antes da ABC, cada
ministério tinha seu departamento internacional. [...] então esses departamentos nos
ministérios negociavam com o MRE os projetos. Depois, foi criada a ABC, então, toda a
negociação foi feita através da ABC”.220

Uma brasileira que foi perita em projeto da GTZ no Brasil também confirma que
antes da criação da ABC os procedimentos referentes a projetos internacionais ainda
estavam muito soltos e dispersos em vários departamentos: 221

[...] já tinha alguma coisa, só colocamos em ordem e eu apresentei. Não existia a


GTZ no Brasil, não havia ABC, eu mandei isso pro diretor, ele aprovou, foi pra
Secretaria de Agricultura; aí, o projeto começou a ir e a voltar, ir e voltar, cada
vez parecia que eles... a Secretaria inventava alguma coisa, até que um dia eu fui
com o meu diretor lá, a coisa enrolada, e tinha uma pessoa, que depois eu vim a
saber que era do SNI, lendo um jornal. O secretário na época e o coordenador
enrolaram, até que essa pessoa se levantou e disse: “olha, mande pra frente, o
máximo que pode acontecer é eles dizerem não”. E aí o projeto seguiu para
Brasília. E em Brasília, cada dia eles queriam uma coisinha diferente. E isso
levou três anos. [...] Nessa época ainda existia a SUBIN, não era ABC, e os
formulários, as coisas da SUBIN eram uma coisa complicadíssima, e eu acabei
dando assessoria pro meu diretor na parte de planejamento de projetos pro
exterior, porque ninguém mais sabia lidar com aqueles formulários, era uma
coisa assim..., e todo mundo caía na minha sessão pra eu explicar como que fazia.
[...] Em 84, por aí, eu fui à Alemanha negociar a continuidade do projeto. Não
existia a ABC, não existia escritório da GTZ.

A ABC tem a atribuição de ser o órgão normatizador da cooperação técnica


internacional do governo brasileiro, sendo responsável pela execução e coordenação da
cooperação técnica por meio dos processos de operacionalização dos acordos, nos quais
ficam definidas as atribuições de cada participante. Nesta agência, é possível obterem-se
todos os documentos que regulamentam as relações do governo brasileiro com outros

220
Entrevista concedida por um dos pioneiros na atuação da GTZ no Brasil, atualmente aposentado.
Belo Horizonte, 08/01/2007.
221
Entrevista concedida em São Paulo, em 22/01/2007.

140
governos ou organizações internacionais. Hoje em dia, os projetos de cooperação técnica
e financeira são assinados entre o ministro das Relações Exteriores do Brasil e o
embaixador de outro país enquanto representante de governo, estando sujeitos à
aprovação dos Congressos Nacionais dos respectivos países.222
Para estabelecer relações de cooperação com o Brasil, o procedimento para
viabilizar a entrada de recursos financeiros e técnicos passa necessariamente pela
Secretaria de Assuntos Internacionais - SEAIN, do Ministério do Planejamento, no caso
de cooperação financeira, e pela ABC. A ABC coordena a elaboração de programas de
cooperação técnica, centralizando o recebimento, a seleção e o encaminhamento às fontes
externas (agências de cooperação financeira internacional, sejam multilaterais ou
bilaterais), da mesma forma que recebe demandas internacionais para encaminhar a
organismos nacionais que prestam cooperação internacional.
A ABC é a instância que fornece as instruções para a formulação de um projeto de
cooperação técnica por meio do Manual de orientação para formulação de projetos de
CTI (Cooperação Técnica Internacional). Para que um órgão do governo desenvolva um
projeto de cooperação técnica, ele deve adotar o seguinte procedimento: apresentar à
ABC um formulário de solicitação de cooperação técnica, especificando qual agência de
cooperação técnica é por ele solicitada, e o país de origem. Assim, nos trâmites dentro da
ABC, a solicitação é encaminhada a um “técnico”, funcionário de um departamento
específico: cooperação técnica multilateral (CTRM) ou bilateral (CTRB).
– se bilateral, ou– e a um assessor específico do país em questão. O responsável
na ABC pela área da cooperação correspondente faz uma avaliação do projeto de acordo
com critérios domésticos de desenvolvimento e de impacto nacional ou regional, efeitos
multiplicadores, capacidade institucional, entre outros.
Como a ABC é um órgão intermediário para a adequação dos pedidos de apoio a
projetos para órgãos públicos, caso o projeto necessite de ajustes, ele retorna à instituição
que o formulou para ser redefinido conforme a proposta indicada. Sendo aprovado no
âmbito da ABC, satisfazendo os critérios de exigência do Brasil, ele segue para a
embaixada do país em questão, e é então encaminhado para a análise da agência de
cooperação técnica; no caso da Alemanha, para o Ministério BMZ. Este solicita à GTZ

222

141
uma avaliação preliminar dos projetos brasileiros apresentados. Junto com o órgão
público solicitante, esta avaliação é feita pela GTZ, que prepara uma proposta própria
para a participação alemã, enviada então ao BMZ que, por sua vez, formaliza o projeto ao
encomendar sua execução para a GTZ. Assim explicou um ex-perito alemão da agência
alemã:223

Você sabe como funciona o sistema para conseguir um projeto de cooperação no


Brasil. Alguém aqui tem que fazer o pedido. Esse pedido vai para a ABC, a ABC
encaminha isso para a embaixada alemã. A embaixada encaminha ao BMZ. O
BMZ aprova e encarrega o KfW, o DED ou a GTZ. Então, isso funciona bem.
Não é assim que a gente pressiona, não. A GTZ fala: “nós queremos fazer um
projeto”. Até seria até bom, porque tem algumas coisas que a gente deveria
empurrar.

Se ambas as partes entram em acordo, o projeto é considerado aprovado e


encaminhado para execução, conforme fluxograma simplificado abaixo:

223
Entrevista concedida em Belo Horizonte, em 08/01/2007.

142
Fluxograma simplificado do ciclo de projetos Brasil-Alemanha

Instituição Nacional ABC:


Órgão do Governo 1ª. Fase – enquadramento em relação às
Encaminha demanda à ABC
Brasileiro diretrizes de CTI e de compatibilidade
programática

Em caso negativo ou de reformulação, retorna à instituição

ABC:
em caso negativo ou de reformulação, retorna à instituição
2ª. Fase – análise técnica
para formatação e
ABC Análise e discussão entre fonte externa e ABC GTZ conteúdo

Negociação
Aprovação com a fonte
do projeto
BMZ externa

Embaixada da
Alemanha

Execução

Órgão nacional GTZ

Conclusão do Projeto

143
A estrutura administrativa da ABC organiza-se de forma correspondente às
categorias em que são pensadas as relações de cooperação, sendo estas as unidades:
Cooperação Técnica Multilateral Recebida - CTMR, Cooperação Técnica Bilateral
Recebida - CTBR e Cooperação Técnica para Países em Desenvolvimento - CTPD. Tanto
a CTMR quanto a CTBR são áreas que tratam de relações de cooperação do Brasil com
países “desenvolvidos”, o Brasil assumindo o papel de receptor. No caso da CTPD, que
se caracteriza por relações sul-sul, ou seja, entre países de condições similares de
desenvolvimento, ela indica a posição do Brasil ora como doador, prioritariamente, ora
como receptor.
A ABC é também a instância no governo que tem comunicação com as
embaixadas estrangeiras e com os organismos internacionais no que concerne a projetos
de cooperação internacional. É o elo entre o Itamaraty e o Ministério de Relações
Exteriores dos outros países, estando freqüentemente em contato com as agências
estrangeiras de cooperação técnica: em reuniões, na seleção e no acompanhamento de
projetos, na troca de comunicações e documentos e na assinatura de acordos.
Com intermediação da ABC são realizadas as negociações entre países, chamadas
negociações intergovernamentais, realizadas de dois em dois anos, nos casos de relações
de cooperação bilateral.

Negociações intergovernamentais: Brasil e Alemanha

A assinatura de programas e de projetos de cooperação técnica entre Brasil e


Alemanha resultou de uma série de negociações entre os dois países, tendo como
referência o Acordo Básico de Cooperação Técnica, assinado em 1963 e redefinido em
1996.
As chamadas “negociações intergovernamentais” são reuniões feitas com
representantes dos órgãos dos dois governos para estabelecer o diálogo político e definir
objetivos e prioridades para a atuação no chamado Programa de Cooperação Técnica
Brasil-Alemanha. Até 2001, as reuniões ocorriam anualmente, sendo alternados os locais
de sua realização entre Bonn, na Alemanha, e Brasília, no Brasil. Depois de 2001, as
reuniões passaram a ser de dois em dois anos, ora no Brasil, ora na Alemanha.

144
Participam dessas reuniões os representantes dos órgãos governamentais
destinados à formulação política e à execução da política de cooperação técnica e
financeira dos dois países. Os representantes do lado brasileiro são funcionários da ABC
e da SEAIN, responsáveis pela cooperação bilateral com a Alemanha, acompanhados,
eventualmente, por funcionário de um outro órgão de governo, cuja função tenha relação
com o assunto a ser tratado, por exemplo, um representante do Ministério do Meio
Ambiente - MMA, quando a discussão envolve um programa ou um projeto ambiental.
Do lado alemão, é usual que compareçam representantes do BMZ vindos diretamente da
Alemanha – os responsáveis por grandes regiões e por temas específicos. Neste sentido,
quando as reuniões acontecem no Brasil, podem ser deslocados da Alemanha um
representante da diretoria geral da região que envolve América Latina e Caribe, Norte da
África e Oriente Médio; outro representante responsável pela coordenação da América do
Sul; um do departamento de cooperação técnica e financeira da embaixada alemã no
Brasil, além dos diretores da GTZ e do KfW no Brasil.
As atas das reuniões revelam a formalidade dos eventos, que ocorrem em uma
mesma programação. Nelas são ressaltados os princípios da relação entre os dois Estados,
particularmente definidos por categorias de entendimento e harmonia: “As negociações
intergovernamentais transcorreram em clima de cordialidade, compreensão mútua e
colaboração construtiva, refletindo as tradicionais relações amistosas entre os dois países”
(grifos meus).
São colocados também em pauta, fatos e aspectos da política internacional,
assuntos de política interna que dizem respeito aos temas em discussão no programa entre
os dois países, além de novos temas a serem incluídos. Este ritual é cumprido por ambos
os chefes das delegações. No caso da delegação alemã, acrescenta-se a apresentação de
questões que interferem na disponibilidade orçamentária para as atividades de
cooperação técnica e financeira e suas possíveis variações para mais ou para menos.
Após essa etapa, são analisados cada um dos projetos dos programas em andamento.
Desde a assinatura do Acordo Básico de Cooperação Técnica, a Alemanha vem
atuando em áreas bem distintas, muitas vezes até contraditórias, como a implantação da
Usina Nuclear de Angra dos Reis, principal eixo de negociações técnicas entre os dois

145
países nos anos 70, e projetos para pequenos agricultores direcionados ao cooperativismo
e à geração de renda.
Outra área em foco da cooperação técnica alemã no Brasil foi historicamente a do
desenvolvimento científico e tecnológico. Mais recentemente, desde o início dos anos
1990, a questão ambiental, principalmente a proteção de florestas, tem sido o principal
eixo temático da atuação da cooperação técnica alemã no Brasil. Desde os anos 90, os
quatro programas estratégicos entre Brasil e Alemanha são: Meio Ambiente Urbano e
Florestal; Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável; Geração de Renda;
Empreendedorismo.
O Acordo Básico de Cooperação Técnica entre o Brasil e a Alemanha foi um dos
primeiros pactos bilaterais a serem assinados, precedido somente por outro realizado com
os Estados Unidos em 1950. Com a Alemanha, após negociações que se iniciaram em
1962, o acordo foi firmado em 1963, ainda no governo de João Goulart, exatamente um
ano após a consolidação formal do Ministério de Cooperação Econômica e
Desenvolvimento da Alemanha, o BMZ, em 1962. Promulgado o acordo pelo decreto nº
54.075, de 30/07/64, nele foram estabelecidas as diretrizes que fundamentam as linhas
gerais da cooperação bilateral e os objetivos amplos das relações diplomáticas entre
Brasil e Alemanha e, ainda, as atribuições de cada um dos governos e de suas instituições
executoras. Este instrumento jurídico define os itens de custeio por parte dos alemães
(remuneração de técnicos enviados e contratados locais, alojamento, viagens dos técnicos
a serviço, aquisição e transporte de equipamentos), e garante os meios de apoio por parte
do governo alemão.
O Acordo Básico de 1963 foi substituído por um outro, assinado em Brasília em
17 de setembro de 1996 por Luiz Felipe Lampreia, então ministro de Relações Exteriores,
e por Carl Duisberg, membro do governo da Alemanha unificada, a República Federativa
da Alemanha. O acordo foi aprovado por decreto legislativo nº 87, de 12/12/1997, e
promulgado pelo decreto nº 2.579, de 06/05/98. Tinha vigência de cinco anos, o que vem
sendo automaticamente prorrogado por períodos sucessivos de um ano, não havendo até o
momento qualquer interesse dos governos em rompê-lo. O rompimento de um acordo
internacional se faz por meio de uma denúncia ou declaração, com antecedência de três
meses em relação ao término do prazo de vigência do acordo.

146
Nos 11 artigos relacionados no acordo de 1996, foram definidos os termos da
cooperação técnica: o tipo e os instrumentos de apoio, a definição das despesas custeadas
pelo governo alemão, as questões referentes às contribuições financeiras e as isenções de
encargos e impostos concedidas pelo governo brasileiro, como forma de estimular essas
atividades, o que incluía a isenção de impostos e facilidades fiscais, de licença de
importação, direitos de importação e de reexportação, de encargos fiscais sobre
importação e sobre os equipamentos adquiridos no Brasil, entre outros.
O detalhamento de todos os acordos de cooperação técnica assinados entre os
governos da Alemanha e do Brasil, seus objetivos, suas contribuições e as instituições
executoras enquadram-se em Ajustes Complementares.
No capítulo anterior, recorremos a um enfoque histórico das duas primeiras
décadas do pós-Segunda Guerra. Visamos abordar os processos históricos de formação de
estruturas e órgãos específicos da administração pública ocorridos no Brasil em face do
contexto internacional em que se institucionalizou esta maneira específica de intervenção
de instituições estrangeiras na administração pública brasileira. Tais práticas fazem parte
de um processo mundial de expansão e consolidação de formas de intervenção, que teve
como resposta o desenvolvimento de estruturas conceituais e institucionais no aparelho
de Estado brasileiro. Estas consolidaram-se com o estabelecimento de um sistema
organizado e regulamentado a partir da criação da Agência Brasileira de Cooperação -
ABC, no final dos anos 80.
No próximo capítulo, focalizaremos os processos históricos de articulação de
organizações governamentais e não-governamentais alemãs que surgiram no final da
Segunda Guerra Mundial com o propósito de receber recursos estrangeiros destinados à
recuperação de sua economia, passando a atuar no mundo “em desenvolvimento” através
de práticas de intervenção para administração de territórios estrangeiros.

147
Capítulo 4. Aparato de intervenção alemã em administrações estrangeiras:
O BMZ e as instituições implementadoras

A abordagem anteriormente adotada teve como propósito traçar algumas linhas


gerais, em um nível mais amplo, do contexto histórico que consolidou a constituição de
um “sistema de cooperação para o desenvolvimento”, no qual ocorreram os projetos de
cooperação técnica em certo local. Para o presente capítulo, buscamos focalizar uma
determinada dinâmica, aquela que caracterizou a atuação particular da Alemanha no
campo do desenvolvimento e nas formas de intervenção em espaços estrangeiros a ele
associadas.
Veremos aqui que a própria estrutura da administração da política de cooperação
para o desenvolvimento da Alemanha, ao estabelecer um núcleo de formulação de
políticas e várias organizações executoras, refletiu complexidade e multiplicidade
institucional em áreas de atuação específica: técnica, financeira, social, acadêmico-
científica, entre outras.
Tratamos de abordar a história da organização burocrática, da constituição de uma
estrutura institucional conformada pelo propósito de concentrar os meios de controle e a
decisão de administrar intervenções em territórios estrangeiros, o que fez através de
projetos e programas de cooperação para o desenvolvimento, tanto os financeiros como
os técnicos, os científicos e mesmo os considerados não-governamentais.
A finalidade aqui, a partir fundamentalmente de análise documental e de
entrevistas com profissionais alemães que atuam nesse campo do desenvolvimento, é a de
contemplar processos históricos e sociológicos mais amplos que possam dar sentido a
situações de intervenção de instituições alemães que atuam no Brasil, sejam
governamentais ou não. Neste sentido, situaremos o contexto ao qual a GTZ está
conectada.
Em outro sentido, o capítulo pode elucidar também questões referentes a um
campo em que profissionais atuam e se especializam enquanto “especialistas em
desenvolvimento”, consultores, peritos e administradores vinculados às agências
governamentais e às ONGs alemãs, o que veremos em capítulo posterior.

148
Esta proposta segue o desafio a que se propuseram Victoria Goddard, Joseph
Llobera e Chris Shore, o de mapear o conjunto de estudos em antropologia sobre “a
Europa”, trabalhos que foram desenvolvidos principalmente a partir da Segunda Guerra
Mundial, com foco em políticas para o desenvolvimento.224 Apesar de os trabalhos em
antropologia se interessarem primordialmente por estudos sobre “comunidades” e
“camponeses”, Goddard, Llobera e Shore argumentam que houve uma crescente
conscientização de seus vínculos com atores e processos mais extensos em função da
crescente interdependência e internacionalização das economias, apesar do
reconhecimento das dificuldades envolvidas.
Estes autores argumentam que o trabalho de Jeremy Boissevain (1975), Towards
a social anthropology of Europe, teria sido a primeira tentativa de sistematização de uma
antropologia da Europa emergente. Na visão de Boissevain, seriam necessários novos
métodos de pesquisa e outros conceitos que situassem eventos e processos locais em um
contexto regional, nacional e histórico, em suma, que permitisse aos antropólogos
examinar os nexos entre diferentes níveis de organização. Os estudos sobre burocracias
têm muito a dever ao trabalho de Weber, que aponta, para além do Estado,225 formas de
administração racional em estruturas de controle, como o Exército e a empresa capitalista
centralizada
Para compreendermos o desenvolvimento dos processos históricos e sociológicos
que contribuíram para a formulação da política de cooperação para o desenvolvimento
da Alemanha, analisaremos a seguir alguns aspectos do contexto internacional do pós-
Segunda Guerra.

Segunda Guerra Mundial e cooperação para desenvolvimento

Dados disponíveis sobre os primórdios desta história são raros se procuramos em


acervos no Brasil. No escritório de representação do KfW no Brasil, que fica em Brasília,
foi possível ter acesso a publicações, como relatórios anuais do banco e o livro de

224
Goddard V.; Llobera, J. & Shore, C. “Introduction: the anthropology of Europe”. In: ______. The
anthropology of Europe: identities and boundaries in conflict. Oxford, Washington D.C.: Berg, 1996. p.1-40.
225
Weber, M. “Burocracia”. In: Gerth, H.H. & Wright Mills, C. (orgs.). Ensaios de sociologia. Rio
de Janeiro: Zahar Editores, 1963. p.257-259.

149
Heinrich Harries, Financing the future: KfW a german bank with a public mission - 1948-
1998, que retrata a “história oficial” do KfW, qualificando-o como um “banco com uma
missão pública”. O livro revela variedade de dados históricos e uma análise criteriosa da
história da economia alemã, a despeito de sua abordagem ser pouco crítica. Para Harries,
o histórico da reconstrução econômica e política da Alemanha Ocidental no pós-guerra e
sua posterior política para o desenvolvimento estão muito ligados ao papel desempenhado
pelo KfW para políticas públicas alemãs e para investimentos estatais.226 Harries analisa
de forma bastante positiva a fase de surgimento do KfW e a de construção de um espaço
no mundo financeiro do pós-guerra, considerando que o sucesso garantiria maior
estabilidade política para assumir a função de fornecedor de recursos para países em
piores condições econômicas que a sua na década de 60.
O livro é uma auto-representação da instituição alemã financeira para o
desenvolvimento e divide a sua história em capítulos que marcam a rápida “evolução” da
economia alemã desde a reconstrução, entre 1948 e 1960; passa pelo processo de
crescente atuação global, com a expansão do comércio e da “ajuda para o
desenvolvimento”, até 1970; enfoca a reorientação econômica e a queda do Muro de
Berlim nos anos 80; e relata a unificação alemã nos anos 90. É um trabalho bastante
minucioso sobre o papel do KfW na economia e na política alemãs, sempre situando-as
em relação às mudanças e à inclusão de novos temas na política e na economia
internacionais, destacando nesse processo a eficiência alemã em superar restrições. De
maneira geral, em todo o livro são enfatizadas as próprias estratégias alemãs para
ultrapassar limites, inovar, empreender, tanto no país quanto no exterior.227
O livro destaca o papel do KfW também em relação ao cenário da cooperação
internacional, que foi modificado quando a Alemanha, de receptor de recursos
(especialmente do Plano Marshall) passou a assumir funções de país doador no âmbito da
cooperação para o desenvolvimento. Depois de ter sua estrutura econômica e industrial
completamente destruída, em pouco mais de uma década o país estava atuando como
226
Harries, Heinrich. Financing the future: KfW a german bank with a public mission. Frankfurt am
Main: Verlag Fritz Knapp GmbH, 1948. Foi publicado em 1998 simultaneamente em inglês e alemão.
Apesar da intensa participação do banco alemão em programas e projetos de cooperação internacional no
Brasil, são praticamente inexistentes publicações no Brasil referentes ao banco KfW e à sua atuação no
campo do desenvolvimento. A única fonte a que tive acesso foi através de Dietmar Weinz, diretor do KfW,
quando o entrevistei em julho de 2002, na sede do banco em Brasília.
227
Harries, Heinrich, ibidem, p.76-104

150
exportador de recursos financeiros, tecnológicos, científicos e de planejamento regional e
administração pública. A recuperação da economia alemã, com os fluxos de recursos do
Plano Marshall, levou o país a competir com outros neste campo de múltiplas
oportunidades de investimentos estrangeiros que a cooperação internacional para o
desenvolvimento significava.
Para Harries, o Plano Marshall estimulou, sem dúvida, o desenvolvimento
industrial na Alemanha e acelerou consideravelmente o seu processo de reconstrução,
cuja economia, já em 1951, apresentou um superávit na balança comercial.
O KfW foi fundado em novembro de 1948, poucos meses antes da criação da
República Federal da Alemanha, com o objetivo de ser o principal instrumento financeiro
para atender a investimentos estatais destinados ao reaquecimento da produção
econômica alemã, sobretudo industrial, completamente destruída ao fim da Segunda
Guerra.
O pós-guerra foi um momento importante de redefinição das posições políticas da
Alemanha no cenário internacional, o que foi liderado por Konrad Adenauer, primeiro
chanceler da Alemanha Ocidental que ficou no poder por 14 anos consecutivos, entre
1949, quando terminou a guerra, até 1963. Adenauer, ligado à União Democrata Cristã -
CDU, partido que ajudou a fundar em 1945, promoveu o estreitamento das relações da
Alemanha Ocidental com os Estados Unidos e com a Europa, mas particularmente com a
França. Ao final de 1966, foi formada uma grande coalizão com Kurt Kiesinger e Willy
Brandt, como vice-chanceler, entre os partidos CDU, CSU (União Social Cristã) e SPD
(Partido Social Democrata), este último envolvendo-se pela primeira no governo federal.
Em 1969, foi feita com Brandt uma coalizão social-liberal com o SPD e o FDP (Partido
Democrata Liberal) para as eleições do Parlamento alemão, o “Bundestag”.
Segundo Harries, a fase inicial de atuação do KfW, entre 1948 e 1960, dependeu
em grande medida da disponibilidade dos recursos do Plano Marshall. Quanto aos
recursos do Banco Mundial, apesar de ter se tornado membro do banco em 1952, a
Alemanha não teve acesso aos seus empréstimos, o que foi apontado por Harries como
motivo de grande consternação. Sua visão crítica também se estendia aos aspectos de

151
“autopropaganda” dos Estados Unidos, particularmente baseados em ações de “ajuda” do
Plano Marshall para a Alemanha, como podemos ver na seguinte passagem:228

The Marshall Plan had four aspects: first, fostering European and trans-atlantic
economic cooperation via the OEEC and the European Payments Union; second,
external Marshall Aid, i.e., foreign exchange assistance for European imports
(specially from the USA); third, internal Marshall Aid, i.e. investment loans for
reconstruction from the counterparts; fourth, the propaganda effect of American
229
solidarity, particulary in defeated Germany (grifos meus).

Aos poucos, o KfW foi ganhando dinâmica financeira própria através da


participação no mercado de capitais com emissão de títulos do governo,230 o que lhe
garantiu reconhecimento como instituição financeira internacional e permitiu, na década
seguinte, financiar exportadores e investidores alemães no exterior, principalmente em
países em desenvolvimento. Financiamentos de longo prazo para exportação foram,
segundo o autor, uma das mais bem-sucedidas linhas de negócios do KfW.
Em meados dos anos 50, a economia alemã já mostrava sinais de aquecimento; a
Alemanha tornou-se, em 1951, um dos membros fundadores da Comunidade Européia do
Carvão e do Aço - CECA (European Coal and Steel Community - ECSC) e, em 1952, do
Banco Mundial e do FMI (Fundo Monetário Internacional), o que revelava confiabilidade
internacional na sua economia.231
O ano de 1951 representou a reversão dos indicadores da balança comercial
alemã, apresentando superávits pela primeira vez depois da guerra em função do
esgotamento das capacidades dos outros países com a Guerra da Coréia. Os exportadores
alemães estavam interessados em estabelecer contatos comerciais e manter presença na
Europa Ocidental, especialmente nas recém-independentes ex-colônias.
Alguns anos mais tarde, o banco passou a ter responsabilidade sobre a chamada
ajuda financeira para o desenvolvimento de países do “Terceiro Mundo”,232 sendo a
primeira instituição a exercer a função de agência alemã de cooperação financeira no

228
Harries, H., ibidem, p.45.
229
Organization for European Economic Co-operation - OEEC.
230
Os ERPs eram papéis ou títulos do governo, fundos especiais que foram os principais
instrumentos de autofinanciamento econômico regulamentado pelo Parlamento alemão em 1953.
231
Harries, H., ibidem, p.48.
232
Idem, p.65.

152
fomento a programas em países em vias de desenvolvimento. Assim, o cenário da
cooperação internacional para o desenvolvimento modificou-se com a crescente
participação da Alemanha nessa área.
Nos anos 60, o KfW começou a atuar de forma significativa em negócios
internacionais por meio do financiamento de longo prazo para exportação. O sucesso dos
exportadores alemães aumentava o interesse em expandir seus mercados no exterior e
demandava maior suporte financeiro. Os americanos pressionavam os alemães para
participarem da ajuda internacional que visava combater a expansão do comunismo no
Terceiro Mundo. O ano de 1961 marcaria, segundo Harries, o início da ajuda do banco ao
desenvolvimento como representante da RFA.233
Por meio do banco KfW, o governo alemão disponibilizou recursos financeiros
em condições de competir com instituições financeiras do porte do Banco Mundial e de
outros organismos internacionais atuantes no mundo do desenvolvimento, notando-se em
discursos de seus membros uma disputa explícita com outras instituições financeiras que,
segundo eles, eram menos interessantes para a tomada de empréstimos. Esta ambição
estratégica do Banco KfW talvez explique a lógica de atuação do aparato do
desenvolvimento alemão, que se estruturava como contraponto às formas de ação de
instituições norte-americanas.
Esta foi a marca não só no período inicial de atuação do KfW no campo do
desenvolvimento, mas também a característica da sua atuação até os dias de hoje, pois o
banco continua a oferecer juros mais baixos aos países com os quais têm relações de
cooperação. Uma situação específica poderia ilustrar esta observação: em entrevista, um
funcionário do KfW pediu que eu desligasse o gravador para que ele comentasse que a
opção de fidelidade da parte do governo brasileiro a determinadas instituições
financeiras, como o FMI e o Banco Mundial, representa uma atitude de dependência
política, e não a melhor escolha econômica que ele possa fazer, apontando vantagens do
KfW em termos de juros em relação àquelas instituições.
No que diz respeito à “formação” de um quadro de profissionais do banco
orientados para o financiamento de projetos de desenvolvimento, Harries destaca que em
princípio atraídos por desafios de aprender com a variedade que este tipo de trabalho

233
Ibidem, p.66.

153
apresentava, jovens funcionários envolveram-se na construção deste campo de “ajuda ao
desenvolvimento”, orientados mais pelo pragmatismo e pela criatividade do que por
critérios e princípios rígidos. Intérpretes, tradutores, economistas, advogados,
engenheiros e outros especialistas foram se unindo ao quadro do banco, que passou de
menos de 200 funcionários em 1960 para mais de 500 em 1970.234
As mudanças no contexto do banco em relação à crescente atuação em projetos de
desenvolvimento no exterior desencadearam outras mudanças mais amplas na
administração pública alemã. Em agosto de 1961, o Parlamento alemão aprovou uma
emenda na lei do KfW para a criação de uma “agência executora” para a cooperação
bilateral. Esta proposta já havia sido feita em 1956 por um grupo do SPD do Parlamento,
sendo justificada como necessidade de “estabelecimento de um corpo para implementar
política e medidas promocionais para países economicamente subdesenvolvidos”. É
importante destacar que embora o governo federal seja o ator principal na política de
desenvolvimento alemã, o Parlamento exerce uma função de co-gestão, em função da
separação horizontal de poderes da RFA. A instância parlamentar competente é a
Comissão de Cooperação Econômica, cujas recomendações são a base para a maior parte
das resoluções plenárias relevantes do ponto de vista da política de desenvolvimento
tomadas pelo Parlamento alemão.
O governo federal, em sua maioria, optou pela proposta de encarregar o KfW da
função de financiar projetos de ajuda ao desenvolvimento e de conceder empréstimos ao
público e aos novos mercados mundiais que se abriam com a independência de ex-
colônias, ao invés de criar uma nova instituição. Naquele momento, esta discussão se
dava no Subcomitê para Desenvolvimento Econômico de Povos Estrangeiros, que
antecedeu o atual Comitê do Parlamento para Cooperação Econômica - AWZ.235
O KfW tornou-se de fato uma instituição de crédito do governo federal,236 mas a
decisão de estabelecer um ministério específico para cooperação só foi tomada depois
que a emenda da Lei do KfW, de 1961, tomou força em outubro-novembro de 1961. Mais
de uma década depois de o KfW estar em pleno funcionamento para fins domésticos de

234
Harries, H., ibidem, p.73-74.
235
GTZ. Compêndio do vocabulário da GTZ, p.51.
236
Harries, H., idem, p.68.

154
reconstrução da economia alemã com recursos do Plano Marshall, foi criado o BMZ,
passando o KfW a atuar como o seu braço financeiro.
A criação do BMZ foi facilitada em função do papel político e econômico
desempenhado pelo KfW na Alemanha e no exterior. A estrutura administrativa do
ministério passaria a concentrar todo o núcleo decisório político e orçamentário da
política de cooperação para o desenvolvimento”, de forma que os recursos do orçamento
governamental passassem a ser destinados às instituições executoras da política de
cooperação para atividades específicas de cooperação financeira, técnica ou científica.
O BMZ iniciou sua atuação prática no início de 1962, com o mandato de elaborar
as diretrizes da política de cooperação para o desenvolvimento e de implementá-la
nacional e internacionalmente.237 Antes de entrar na discussão mais detalhada da
organização institucional do BMZ, optamos primeiramente por enfatizar os “dizeres” que
expressam os significados do que seja cooperação internacional do ponto de vista do
governo alemão, baseando-nos no que se produziu institucionalmente a partir do BMZ.
A análise das categorias e das declarações afirmadas de maneira textual e visual
pelo Estado alemão e propagadas para o mundo em desenvolvimento torna-se aqui um
elemento importante para identificarmos os processos de produção simbólica enquanto
mecanismo de poder que, neste caso, gera efeitos sobre outros Estados. Bourdieu afirmou
que um dos poderes principais do Estado é o de produzir e impor as categorias de
pensamento que utilizamos espontaneamente em todas as coisas do mundo e no próprio
Estado. Para ele, “é no domínio da produção simbólica que particularmente se faz sentir a
influência do Estado: as administrações públicas e seus representantes são grandes
produtores de problemas sociais que a ciência social apenas ratifica, retomando-os por
sua conta como problemas sociológicos”.238
No caso das organizações da administração pública com atribuição de atuar no
campo da cooperação para o desenvolvimento, produz-se o problema dos outros: a fome,
a falta de saneamento, a poluição, o desmatamento florestal, a poluição de águas, as
desigualdades sociais, entre outros.

237
Embaixada da República Federal da Alemanha em Brasília: 40 anos de cooperação para o
desenvolvimento Brasil-Alemanha. Brasília: Embaixada da República Federal da Alemanha, 2003. p. 12.
238
Bourdieu, P. “Espíritos de Estado”. In: Bourdieu, P. Razões práticas sobre a Teoria da Ação.
Campinas: Papirus Editora, 1996. p.91-95.

155
Discursos do desenvolvimento

A partir da leitura de textos produzidos por instituições governamentais alemãs de


cooperação, procurei observar a relação entre os enunciados que caracterizam o objeto do
desenvolvimento. Meu propósito era analisar as formas com que se constrói o objeto,
sobre ele incidindo a intervenção que é definida como ajuda, e também avaliar de que
modo é reforçada a idéia da sua necessidade.
As imagens traduzem a sensibilidade do olhar daqueles que trabalham com a
cooperação e visam tocar a quem as vê, sensibilizar. As imagens chamam a atenção para
os pobres, fracos e descalços africanos e indianos; revelam, de forma dura, a antiga
floresta cortada e queimada; mas também propagam a beleza, a esperança, a possibilidade
de um futuro a ser construído através da cooperação, no sentido de admiração em relação
àqueles que têm compaixão pela humanidade.
Os documentos publicados pelo governo da Alemanha e por fundações e
associações que atuam na área de cooperação internacional para o desenvolvimento
apresentam de várias formas os significados atribuídos a este tipo de atividade. A partir
da leitura integrada e atenta de um conjunto disperso e desencontrado de documentos, foi
possível identificar alguns dos vínculos diretos e indiretos entre essas instituições e outras
no Brasil onde há a presença de organizações alemãs.
O universo de documentos pesquisados não se restringiu, no entanto, somente às
publicações oficiais do BMZ. Levantei uma diversidade de publicações de outras
instituições alemãs, em que são divulgados os trabalhos que a Alemanha faz no mundo,
como nos jornais de fundações políticas, nas revistas publicadas pelo Ministério de
Relações Exteriores e de Meio Ambiente, nas revistas da Câmara de Comércio Brasil-
Alemanha, entre outras, em que são discutidos temas como drogas, AIDS, problemas
climáticos globais, guerras civis, violência urbana etc. São publicações muito coloridas,
em papéis de ótima qualidade, muitas delas feitas com papéis recicláveis, o que
demonstra a preocupação em relação à imagem associada a custos elevados, alta
qualidade das imagens e dos meios de comunicação.

156
O conjunto de enunciados discursivos que apresenta tanto a política de cooperação
para o desenvolvimento, como o trabalho das instituições alemãs no mundo em
desenvolvimento presta-se, sem dúvida, a ser um canal para veicular a boa imagem da
Alemanha e faz parte de uma “política de comunicação” que poderia ser um objeto em si.
Por discurso entendo aqui tanto linguagem como aquilo que está representado
pela linguagem, tal como argumenta Ralph Grillo. A discussão sobre discursos do
desenvolvimento, compilada por Grillo, apresenta uma importante contribuição a respeito
de cooperação internacional, esta como um atributo presente no campo do
desenvolvimento. Grillo argumenta que o trabalho de Arturo Escobar é uma das
referências no que se refere à análise de discursos, fundamentada largamente em idéias
desenvolvidas por Michel Foucault e Edward Said, especificamente na medida em que
pensar em termos de discurso permite manter o foco nos aspectos de dominação. Para
Grillo:239 “A discourse (e.g. of development) identifies appropriate and legitimate ways
of practicising development as well as speaking and thinking about it”. Segundo o autor,
os discursos do desenvolvimento são baseados em uma vitimização dos sujeitos, e ele
acrescenta: “The development myth proposes that there are developers and victims of
development”, estabelecendo como objeto de ajuda “os mais carentes”, “os mais
necessitados”, os pobres, os subdesenvolvidos, os incapazes, os necessitados de ajuda.240
Mark Hobart,241 por sua vez, aponta o fato de que não existe um, mas múltiplos
discursos do desenvolvimento coexistindo. Preston242 menciona pelo menos três deles:
um da ordem estatal, associado a uma ideologia intervencionista, à cientificidade técnica
e à afirmação etnocêntrica do Ocidente; outro da ordem liberal, que se instaura com o
colapso do intervencionismo estatal nos anos 70, que repassa para a dinâmica de mercado
a razão do desenvolvimento; por fim, aquele que é centrado na definição de esfera
pública, que afirma o otimismo da modernidade e dos novos arranjos entre mercado e
Estado

239
Grillo, R.D. “Discourses of development: The view from anthropology”. In: Grillo, R.D. &
Stirrat, R.L. (ed.). Discourses of development: anthropological perspectives. Oxford, New York: Berg,
1997, p.12.
240
Idem, p.20-21.
241
Hobart apud Grillo, R.D., idem, p.20.
242
Preston apud Grillo, R.D., idem, p.22.

157
A abordagem iconográfica de todos os documentos – em alemão ou não – que
foram analisados encontra-se em um Anexo a este capítulo. Isto se deve à importância
central que têm esses documentos na composição da representação do desenvolvimento e
na forma de designar seus problemas e suas carências, mas também no efeito dramático
do discurso do desenvolvimento, e no humor que revela aspectos das práticas de
intervenção a ele associadas.
É possível identificar algumas publicações voltadas para um debate presente na
Alemanha sobre a política de cooperação para o desenvolvimento, como é o caso da
revista Entwicklungs Politik Zeitschrift das organizações eclesiais, na qual há uma
avaliação mais crítica e questionadora do trabalho da cooperação, por meio de charges
humorísticas, como as que vimos abaixo:

O debate sobre desenvolvimento na Alemanha

O debate oficial do governo alemão em torno do conceito de desenvolvimento foi


iniciado na Alemanha em meados dos anos 50. No entanto, a sistematização de um
documento formal definindo as diretrizes de uma política de cooperação para o
desenvolvimento do governo federal alemão tem sua origem em um decreto do Conselho
de Ministros datado de março de 1986.243 O documento, intitulado “Diretrizes da Política
de Desenvolvimento do Governo Federal Alemão”, apresentou os objetivos e os

243
GTZ. Compêndio do vocabulário da GTZ, opus cit., p.31.

158
princípios fundamentais da cooperação alemã para o desenvolvimento, seus setores
prioritários e os campos de ação.244

As diretrizes da Política de Desenvolvimento do Governo Federal Alemão têm


sua origem num decreto do Conselho de Ministros de 19 de março de 1986. [...]
Com sua concepção de política de desenvolvimento (na versão de outubro de
1996), o BMZ adaptou a política de desenvolvimento alemã às alterações
ocorridas nas condições gerais internacionais.

Duas outras edições de textos de formulação de uma política de desenvolvimento


foram organizadas e publicadas com algumas mudança; em junho de 1993, o documento
foi reeditado e, em outubro de 1996, o BMZ adaptou-se às condições gerais
internacionais e formulou uma proposta própria, a “Concepção da Política de
Desenvolvimento”.245
De acordo com documentos oficiais, a “cooperação para o desenvolvimento
constitui uma tarefa da sociedade como um todo e é levada a cabo por entidades privadas
e públicas nos países industrializados e nos países em vias de desenvolvimento”. Baseia-
se em princípios de responsabilidade ética, humanitarismo e política, assim como em
interesses próprios.
A concepção é considerada um instrumento fundamental das Relações Exteriores
da Alemanha, e é caracterizada por diretrizes elaboradas pelo ministério do governo, o
BMZ. Tais diretrizes complementam a política exterior do país, mas mantêm autonomia
em relação a ela.246 “A política de cooperação para o desenvolvimento é um componente
essencial das relações exteriores da Alemanha e um importante instrumento da política de
promoção da paz”.
Entre os objetivos da política de cooperação para o desenvolvimento destaca-se:
“melhorar as condições de vida dos indivíduos nos países com os quais têm relações
diplomáticas, sobretudo dirigindo-se às camadas populacionais mais pobres”. Aqui há a

244
Idem, idem.
245
Wolff, Luciano A.; Kaiser, W. (coords.) & Mello, F.V. Cooperação e solidariedade internacional
na Alemanha. 2.ed. Rio de Janeiro: IBASE / EZE; São Paulo: ABONG, 1995. p.13.; GTZ. Compêndio do
vocabulário da GTZ, ibidem, p. 31.
246
GTZ, idem, p.29; Embaixada da Alemanha no Brasil/Bmz/Gtz. Política de cooperação para o
desenvolvimento Brasil-Alemanha. Folder, sem data, p.2.

159
ênfase em relação aos pobres, aos mais necessitados e carentes como objetivo principal a
ser atendido pelas ações da cooperação para o desenvolvimento.247
Mais recentemente, a política de cooperação para o desenvolvimento passou a ser
entendida como uma política estrutural global que faz parte de uma abordagem
abrangente sobre segurança. Após os atentados de 11 de setembro nos Estados Unidos, a
discussão sobre a coordenação de políticas de segurança internacional tem sido uma
prioridade. De acordo com a afirmação da ministra Heidemarie Wieczorek-Zeul:248

A cooperação para o desenvolvimento [é] condição necessária para a paz [...]


Devemos coadjuvar para que os seres humanos de todo o mundo possam viver
seguros, do contrário a insegurança virá até nós.
A cooperação para o desenvolvimento constitui-se em uma tarefa da sociedade
como um todo e é levada a cabo por entidades privadas e públicas nos países
industrializados e nos países em vias de desenvolvimento.249

Os documentos da GTZ afirmam ter sido substituído o antigo termo ajuda ao


desenvolvimento, utilizado nos anos 60 e 70,250 pela expressão cooperação para o
desenvolvimento. Os termos aid e charity ou ajuda e assistência internacional foram
utilizados em documentos de agências e organismos internacionais para atividades
humanitárias em contextos de extrema pobreza, ou naqueles caracterizados por destruição
pela guerra ou por catástrofes naturais.
A construção da problemática do desenvolvimento e de desafios que ameaçam a
paz mundial e o futuro da humanidade é fundamental para atribuir um sentido de valor
moral à participação do governo alemão no compromisso de solucioná-la. Uma questão
que não se esperava era que, situada como perdedora, devedora, a Alemanha se
recuperasse economicamente e passasse a atuar como “país doador” no campo do
desenvolvimento e, ainda, utilizando-se deste campo como meio para difundir pelo
mundo uma imagem renovada do país, tendo como base valores, como a proteção do
meio ambiente e o respeito aos direitos humanos. A cooperação foi assim de enorme

247
GTZ, idem, p.33.
248
Entrevista com a ministra do BMZ Heidemarie Wieczorek-Zeul. D+C Revista Desarrollo Y
Cooperación nº 1/2002, p.4-5.
249
GTZ, ibidem, p.29.
250
GTZ, idem, idem..

160
importância interna como instrumento diplomático da reforma moral da Alemanha
expressa para o mundo. Na fala de uma perita brasileira: 251

A cooperação com a Alemanha, a criação da GTZ, quando ela foi criada, foi com
esse espírito, porque no pós-guerra, eles começaram [...], não foi só a Alemanha.
A Alemanha foi muito beneficiada pelo Plano Marshall, então, ela se recuperou
logo muito rapidamente; sentiu a necessidade dessa ajuda, que ela prestaria a
outros países, até um pouco como certa forma de purgar sua consciência por tudo
o que aconteceu na guerra. Não que todos tivessem o espírito, o mesmo espírito
nazista, aquela coisa toda.

No caso da política alemã de cooperação para o desenvolvimento, ela está sujeita


ao controle dos contribuintes alemães, como vimos em publicação da própria GTZ:252

A cooperação alemã para o desenvolvimento depende de objetivos políticos e


está sujeita ao controle público. A cooperação alemã para o desenvolvimento é
financiada pelos contribuintes. Ela depende de objetivos políticos e de critérios
de atribuição, e está sujeita à prestação de contas e ao controle público. Os
objetivos prioritários da política de desenvolvimento do governo alemão são o
combate à pobreza e à injustiça social, a proteção do meio ambiente e dos
recursos naturais, assim como o melhoramento da situação das mulheres. Os
contribuintes têm a expectativa de que a ajuda para o desenvolvimento melhore a
situação dos indivíduos nos países parceiros.

Na representação das próprias instituições e dos organismos de cooperação da


Alemanha sobre o seu trabalho,253 o termo cooperação é utilizado de forma mais
sistemática quando relacionado a ações e a intervenções com objetivos de promoção do
desenvolvimento. A construção da problemática do desenvolvimento e de desafios que
ameaçam a paz mundial e o futuro da humanidade é fundamental para atribuir um
sentido de valor moral à participação do governo alemão no compromisso em solucioná-
la. Para Ferguson, o termo desenvolvimento é orientado atualmente por uma diretriz
moral, como argumenta na passagem abaixo:254

251
Entrevista em SP, janeiro de 2007.
252
GTZ. ZOPP Planejamento de Projetos Orientado por Objetivos: um guia de orientação para o
planejamento de projetos novos e em andamento. Eschborn: GTZ, 1998. p.5.
253
Embaixada da Alemanha no Brasil/BMZ/GTZ. Folder, opus cit.; GTZ, ibidem.
254
Ferguson, J. opus cit., p.15.

161
It is clear in reading scholarly literature on development that the word
‘development’ is used to refer to at least two quite different things – on the one
hand, is used to mean the process of transition toward a modern capitalist
industrial economy. The second meaning much in vogue from the mid 70`s
onward defines itself in terms of quality of life, standards of living and refers to
the reduction or amelioration of poverty and material want. The directionality
implied in the word development is in this usage no longer historical but moral.
Development is no longer a movement in history but an activity, a social
program, a war on poverty on a global scale.

Os temas do desenvolvimento

Os objetivos e as prioridades da política de cooperação para o desenvolvimento da


Alemanha variam em função de mudanças no discurso mais geral – internacional – do
campo do desenvolvimento. Em termos temáticos, a sua política de cooperação para o
desenvolvimento, a partir dos anos 90, vem se orientando para três áreas específicas:
combate à pobreza; proteção do meio ambiente e preservação dos recursos naturais;
educação e formação profissional.255 Estes são os eixos temáticos centrais que situam a
política de desenvolvimento no conjunto das políticas da administração pública alemã e
se reproduzem para todas as agências sob a sua institucionalidade, mas que devem ser
compreendidos como orientações mutáveis a cada redefinição da política alemã diante de
situações de política internacional. Nota-se em diferentes publicações que estas
definições variam. Encontramos no site do BMZ outras prioridades explicitadas como
objetivos da política alemã de cooperação para o desenvolvimento: a redução da pobreza,
a paz e a globalização justa:256 “The aim of the development policy is to reduce poverty
worldwide, to build peace and to promote equitable forms of globalisation”.
O combate à pobreza é, no entanto, um objetivo primordial, uma das categorias
centrais que têm justificado por décadas intervenções para o desenvolvimento. A pobreza,
como aponta Escobar, é um problema social que se tornou objeto de conhecimento e de
intervenção, porque fundamentado na crença de superação evolutiva por meio da
transformação para melhor situação.

255
GTZ. Compêndio do vocabulário da GTZ, opus cit., p.35; e Embaixada da Alemanha no
Brasil/BMZ/GTZ, ibidem, p.3.
256
Ver: www.bmz.de. Acesso em 14/05/2004.

162
A ênfase no tema da pobreza foi confirmada mais recentemente com a prioridade
para as ações do desenvolvimento na Conferência do Milênio.257

Os objetivos e princípios fundamentais da política de desenvolvimento alemã, os


quais incluem particularmente o melhoramento da situação econômica e social
dos indivíduos nos países em vias de desenvolvimento, ou seja, a satisfação das
necessidades básicas da população como requisito fundamental para uma vida
258
digna.

Outros temas discutidos na Conferência do Milênio, como direitos humanos, meio


ambiente, paz e segurança internacional, as duas últimas enfatizadas com o crescimento
do terrorismo após o atentado de 11 de setembro de 2001, têm influenciado o governo
alemão na elaboração de sua política de cooperação para o desenvolvimento: “As we
enter the 21st Century, the role of development policy has changed, partly in the aftermath
of the terrorist attacks of 11 September 2001. Today, development cooperation is seen as
global structural and peace policy”.259
Assim, outro eixo da política de cooperação da Alemanha cuja importância tem
aumentado é o de desenvolvimento sustentável, como um ideal para assegurar
modificações nas condições de desenvolvimento sem prejudicar as chances das gerações
futuras.260
Além das diretrizes temáticas que caracterizam as áreas de atuação das agências
alemãs de cooperação, o BMZ define ainda princípios éticos e morais que são comuns a
todas as atividades relacionadas ao “desenvolvimento”; são diretrizes gerais e comuns a
todas as agências alemãs que operam no campo do desenvolvimento e representam as
bases em função das quais sua política de cooperação se fundamenta: o respeito aos
direitos humanos; a participação da população; o princípio do Estado de direito; a
economia social de mercado e a orientação do Estado para o desenvolvimento.

257
A Conferência do Milênio foi realizada em 2000 e promoveu o debate em torno de medidas a
serem tomadas por países desenvolvidos em relação à pobreza mundial, as Metas do Milênio (United
Nations Millennium Development Goals). São oito metas: erradicação da pobreza e da fome;
universalização da educação primária; promoção da igualdade entre gêneros; redução da mortalidade
infantil; melhoria da saúde materna; combate à AIDS e outras doenças; promoção da sustentabilidade
ambiental; criação de parcerias para o desenvolvimento. O BMZ assumiu estas prioridades, incorporando-
as aos seus objetivos.
258
GTZ. Compêndio do vocabulário da GTZ, ibidem, p.31.
259
Ver: www.bmz.de. Acesso em 15/07/2003.
260
Idem.

163
A seguir, veremos os princípios que fazem parte da orientação específica da
cooperação técnica adotada pela GTZ: princípio da intervenção mínima; ajuda para a
auto-ajuda; gênero; participação; empowerment e ownership.

O princípio da intervenção mínima

O princípio de intervenção mínima estabelece que os projetos devem ser


planejados e executados pelos próprios países em vias de desenvolvimento. Este princípio
faz parte das normas da cooperação técnica alemã desde 1984. Os efeitos na prática
apareceram a partir dos anos 90, como argumenta um perito alemão:261

A tendência dos anos 90 pra cá foi assim. A Alemanha disse que nos países já
existe know-how tecnológico suficiente, ou seja, já tem engenheiros, já tem
agrônomos, já tem veterinários. Então, não precisa mais fazer esse trabalho:
“Como vou combater a peste suína”, por exemplo, porque nos países já tem
know-how disponível. Então, nós temos que ajudar a levar esse know-how
disponível, para que o governo crie condições, leis, soluções etc. para esse know-
how disponível, em nível local, estadual, federal.

A ajuda para a auto-ajuda

Usual nos documentos alemães é a associação da expressão auto-ajuda com


cooperação para o desenvolvimento, expressando a forma de intervenção que se limita
quase a um “estímulo” e que atribui ao receptor a responsabilidade sobre as ações, o
assumir a “propriedade” (ownership). Ela não se caracteriza como imposição, mas sim
como colaboração (cooperação). Estabelecem-se motivadores e transmissores de um
modo de ser, de um modo de gerir, distinguindo-se, assim, de outras formas de atuação
no campo do desenvolvimento: “A cooperação para o desenvolvimento é uma ajuda para
auto-ajuda. [...] As contribuições externas devem impulsionar e estimular as iniciativas
locais e nunca substituí-las”.262

261
Entrevista concedida em janeiro de 2007, em Belo Horizonte.
262
Embaixada da Alemanha no Brasil/Bmz/Gtz, opus cit. p.2.

164
Gênero

Outro eixo central da política de cooperação para o desenvolvimento do ministério


é sobre as questões das mulheres. Neste aspecto, a ministra personaliza a força e o poder
de direção das mulheres e revela sua sensibilidade quanto ao peso do trabalho das
mulheres para o desenvolvimento em países pobres.
Podemos ver este critério personificado na imagem da ministra Heidemarie
Wieczorek-Zeul,263 que desde 1998 é ministra de Cooperação Econômica e
Desenvolvimento, uma personalidade que tem muita empatia na mídia. Sua imagem é
construída nos meios de comunicação do BMZ e das agências oficiais de cooperação da
Alemanha de uma forma muito cuidadosa – uma mulher moderna, atuante, trabalhadora,
ao mesmo tempo sensível aos problemas sociais, sempre sorridente e simpática, muito
freqüentemente cercada por crianças e mulheres. Muitas das fotografias em que a
ministra aparece são na África e, como vemos a seguir, está no meio de crianças e
mulheres negras. Mostra-se à vontade, afetuosa e próxima ao povo, sem qualquer tipo de
proteção ou segurança, demonstrando interesse por seus problemas e por questões
próprias às suas vidas.
As fotografias divulgadas dialogam com os textos nas publicações do ministério
de forma a representar visualmente os valores éticos e morais que o Ministério Federal
para Cooperação Econômica e Desenvolvimento adota em suas políticas. Elas retratam

263
Heidemarie Wieczorek-Zeul é historiadora e professora e tornou-se membro do Parlamento
alemão pelo Partido Social-Democrata (SPD) em 1979. Foi membro do Parlamento Europeu entre 1979-
1987: membro do Comitê em Relações Econômicas Externas com foco em comércio exterior e do Comitê
sobre Direitos da Mulher, Gênero e Igualdade. Em 1984 tornou-se membro do Comitê Executivo do SPD e,
a partir de então, assumiu uma série de compromissos com o partido, inclusive junto à União Européia.

165
viagens feitas pela ministra para visitar os locais onde são realizados projetos e conversar
com as pessoas.

Fonte: www.bmz.de. Acesso em 16/06/2006

A participação

Define-se a participação do grupo-alvo na escolha, no planejamento, na execução


e no controle das medidas como “princípio transcendental da cooperação alemã para o
desenvolvimento”.264
O elemento que sublinha a diferença é o destaque atribuído à participação como
meio de cooperação para o desenvolvimento para que se alcancem resultados mais
eficazes, de forma a indicar que a “participação ativa das pessoas no processo é essencial
para que se obtenham resultados eficazes e duradouros”.265 Nesse sentido, a participação
é um meio, um instrumento que deve ser aplicado de maneira pragmática para se
alcançarem as metas estabelecidas em planejamento.
No entanto, esse instrumento deve passar por todas as etapas do projeto de
cooperação e precisa “envolver as pessoas, principalmente as populações carentes e
discriminadas nas decisões políticas, econômicas e sociais”.266

264
Embaixada da Alemanha, opus cit., p.2.
265
Idem, idem.
266
Idem, idem.

166
Participação é uma das palavras-chave na cooperação técnica alemã, bem como
em outros organismos, como o Banco Mundial. Segundo Salviani, o início da eleboração
de técnicas participativas no Banco Mundial data de 1946, com a introdução de métodos
de “Pesquisa-ação”, tendo sido desenvolvida, nos anos 70, por Paulo Freire, a “Pesquisa-
ação Participativa”, que se dirige mais à emancipação social do que à pesquisa.267 No
Banco Mundial, o desenvolvimento de conceitos e formulações sobre participação seria
devedora sobretudo dos trabalhos de Michael Cernea, a partir de 1983, cujo estudo se
baseou na experiência particular do Programa Integral para el Desarrollo Rural -
PIDER, que foi iniciado em 1973 como um vasto programa de pequenos projetos locais
no México.268
A participação, na política alemã de cooperação para o desenvolvimento, é
considerada um tema transetorial, ou seja, está presente em todos os objetivos e
prioridades de atividades da cooperação para o desenvolvimento. Ela é definida como
“um processo através do qual os diferentes agentes compartilham e negociam o controle
sobre iniciativas de desenvolvimento”.269 E este é um aspecto avaliado positivamente
pelos alemães, como uma marca de sua forma de atuação:

The people in Germany’s partner countries are actively involved in the design of
their projects. They have a decisive voice in how the cooperation should
develop. That also means that they are themselves responsible for their project
from the outset. This ensures that the project can continue after BMZ support has
270
ended.

É recorrente nos documentos e nos depoimentos de membros das agências alemãs


a caracterização da cooperação alemã como essencialmente participativa, tendo a
inovação e a eficiência como definidoras de seus objetivos de gestão pública.

Empowerment e ownership

267
Salviani, Roberto. As propostas para participação dos povos indígenas no Brasil em projetos de
desenvolvimento geridos pelo Banco Mundial: um ensaio de análise crítica. Dissertação de mestrado,
PPGAS/MN- UFRJ, Rio de Janeiro, 2002.
268
Idem, p.22. São mencionados trabalhos de Cernea de 1983, 1991 e 1992.
269
GTZ. Compêndio do vocabulário da GTZ, opus cit., p.77.
270
www.bmz.de . Acesso em 15/07/2003.

167
De acordo com a definição formal de empoderamento, o termo está associado à
distribuição ou à redistribuição mais justa do poder, e tem sua origem na sociopedagogia
e no trabalho de assistência social.
Na política de cooperação para o desenvolvimento, o termo designa “formas de
atuação coletiva de grupos marginalizados e desprivilegiados, os quais querem melhorar
sua posição nos processos de decisão sociais, econômicos e políticos, através da
articulação e organização de seus interesses, e influenciar neste sentido as condições
gerais estruturais”. Tal processo de organização deve, por princípio, levar à
autodeterminação, ao aumento da auto-organização e ao papel mais ativo de
determinados grupos marginalizados em processos sociais.271
O termo ownership (Liderança-Responsabilização), na política alemã de
cooperação para o desenvolvimento, é empregado para designar a identificação do grupo
ao qual se destina um projeto com os seus objetivos. É categorizado como um dos
principais indicadores de qualidade na CT, requisito fundamental para eficiência e
sustentabilidade de processos de desenvolvimento, porque caracteriza a motivação do
grupo para assumir a responsabilidade por iniciativas de desenvolvimento e processos de
mudança. 272

O cooperativismo dos alemães

As idéias cooperativistas na Alemanha têm um peso histórico considerável. A


primeira experiência de uma associação de apoio à população rural foi criada por
Friedrich Willhelm Raiffeisen, em 1847, para enfrentar uma crise agrícola que se abatera
sobre o campo e a população do povoado de Weyerbusch/Westerwald.273 Em 1864,
Raiffeisen criou a primeira cooperativa, uma associação de caixas de empréstimo de
Heddesdorf. Também em 1847, Hermann Schultze-Delitzsch instituiu as primeiras
associações para artesãos (sapateiros e carpinteiros) nos centros urbanos. As idéias
cooperativistas implementadas por Raiffeisen e por Schultze-Delitsch continuam tendo

271
GTZ, idem, p.85.
272
GTZ. idem, p.83.
273
Armbruster, Peter & Arzbach, Mathias. O setor financeiro cooperativo na Alemanha. Bonn; San
Jose; São Paulo: Confederação Alemã das Cooperativas, 2004.

168
espaço, estando Raiffeisen até hoje associado às cooperativas agrícolas e Schultze-
Delitsch, às cooperativas industriais.274 O objetivo principal das cooperativas consiste em
obter melhores resultados no mercado e menor dependência da ajuda estatal. Elas têm
importante papel nas áreas rurais da Alemanha.
Esta concepção “cooperativista” da relação entre mercado e pequenos produtores,
na sua maioria agrícola, foi transmitida aos formuladores de propostas de cooperação
para o desenvolvimento do “Terceiro Mundo”, orientadas prioritariamente a contextos
agrícolas, base das economias dos países ditos em desenvolvimento. Neste sentido,
princípios de ação em um contexto de crise agrícola poderia ser aplicado a contextos de
subdesenvolvimento. É possível inferir que a experiência da auto-ajuda, de auto-
responsabilidade, de organização coletiva para o mercado, que fazem parte dos princípios
do cooperativismo, tenham sido, em certo sentido, modelos e diretrizes ideológicas para
as propostas pedagógicas implementadas pelas agências de cooperação.

A visibilidade da necessidade de cooperar

A construção do “problema do desenvolvimento” utiliza-se não só de discursos


textuais, mas também de imagens com grande força simbólica. As publicações de
instituições alemãs expõem de forma intensa imagens em que se retrata o trabalho da
Alemanha na política de cooperação para o desenvolvimento pelo mundo,
particularmente centradas nas populações que são definidas como “beneficiários”, alvo
das intervenções da cooperação.
Fica evidente que são priorizadas as imagens que representem a carência de
desenvolvimento associada aos aspectos identificados com a pobreza: falta de
saneamento (esgotos abertos e lixões), de asfaltamento nas ruas, de eletrificação, e
abastecimento de água (bicas d’água, água em balde), ausência de planejamento urbano,
de ordenamento espacial (caos urbano, trânsito mal administrado, poluição, queimadas) e
de mercados organizados (feiras livres).

274
De acordo com dados da Confederação Alemã das Cooperativas, os bancos cooperativos na
Alemanha representam a mais alta porcentagem em relação ao mercado bancário, excluindo-se os bancos
especializados, como os hipotecários e os de incentivos, como o KfW, entre outros.

169
São imagens estereotipadas, que se caracterizam pela idéia de espaço selvagem,
inexplorado e de carência, em última instância, pela idéia que poderíamos qualificar de
“carência de desenvolvimento”. São retratos de privações estruturais.
Muitas vezes estes aspectos aparecem em um mesmo quadro, em uma mesma
fotografia, simultaneamente, e registram florestas e ambientes selvagens, com matas,
alagados, animais perigosos. Quando aparece o homem, ora está envolvido em atividades
agrícolas, ora na pesca ou no pastoreio. As muitas crianças retratadas denunciam o
crescimento demográfico elevado. Mulheres aparecem simplesmente sorrindo; são
muitas, na aldeia, na agricultura, perto dos filhos. Os indígenas surgem como os
representantes dos “homens selvagens”, puros, “naturais”.
Normalmente, as fotografias reproduzem tipos humanos bem simples, com roupas
tradicionais, descalços, lavando roupa, pegando água. As publicações apresentam fotos
em que se ressalta o aspecto do ambiente e das diferentes culturas: são camponeses
andinos, indianos, africanos, asiáticos, evidenciando um envolvimento diferenciado da
Alemanha nas questões do desenvolvimento. Nota-se uma preocupação em pontuar o
respeito às diferenças culturais, às formas de vida de cada local e aos direitos humanos.
Observa-se em alguns documentos a adoção de perspectivas particularizadas, em
observância às características específicas de cada país, no sentido de que
“desenvolvimentos diferentes em diversas regiões do mundo exigem também reações
diferentes na cooperação”.275
De maneira mais ampla, a preocupação com as populações indígenas do Brasil e
da América do Sul reflete esta abordagem centrada nos direitos humanos e no respeito à
pluralidade cultural.

Idealistas ou heróis?

Alguns trechos do discurso de Heidemarie Wieczorek-Zeul, ministra federal para


Cooperação Econômica e Desenvolvimento (BMZ) indicam o papel que mais
recentemente se atribui à política de cooperação para o desenvolvimento: um

275
Michels, C. “Política de desenvolvimento cooperação Brasil-Alemanha”. Internationes Press RB
4068 (12-95), 1995. p.6.

170
compromisso, uma responsabilidade orientada pelas diretrizes de redução da pobreza,
construção da paz, globalização justa e preservação do meio ambiente.276

Germany will play its part as an international player in development cooperation


and will take into account its responsibilities on the basis of the following
principles: justice in globalization, poverty reduction – as ever the overarching
goal of our development cooperation is its orientation towards poverty reduction
– securing or building peace and preserving the environment and vital natural
resources. At this point I would like to particularly thank the Federal Chancellor,
who, in her speech this morning, very clearly underlined once more the timetable
for gradually increasing the funds for development cooperation. Germany stands
by its word, now and in the future.
At this point I would like to say once more: Many people in Germany who would
like to help - we have seen that again and again - want an end to the scandal of
30,000 children dying every day from avoidable diseases. Let us do everything
we can to achieve this! Let us combine our efforts!
What are we doing in our development cooperation? What are we already doing
that we want to step up? We are helping with the reintegration of fighters into
civilian life. We are helping to combat Aids. We are helping child soldiers find
their way back to a life without violence. We are supporting the provision of
clean drinking water. We are helping with the protection and management of
natural resources (grifos meus).

Neste discurso, a ministra assume a visão da sociedade alemã (“many people in


Germany”) como representante e porta-voz daquilo que concerne a assuntos públicos,
mas também presta contas das atividades que são monitoradas pela população alemã. Em
vários momentos do discurso, enfatiza a ajuda prestada pela Alemanha (“we are helping”)
às vítimas do desenvolvimento e às vítimas de guerras e conflitos civis. A violência é
freqüentemente associada à falta de desenvolvimento, no sentido de civilização; é a
barbárie de povos sem civilização que gera ainda maiores problemas de desenvolvimento.
Em muitos momentos, o discurso é tomado por um tom dramático, que destaca
dados estatísticos populacionais no sentido de evidenciar, em nome de questões da
humanidade, a urgência da necessidade de intervenção direta. Sentimentos pessoais e

276
Heidemarie Wieczorek-Zeul, discurso de 29/03/2006, na ocasião da leitura do orçamento federal
de 2006, em: http://www.bmz.de/en/press/pm/pm_20060616.html Acesso em 16/06/2006.

171
uma linguagem que é descolada do tom impessoal, institucional e político são usados,
direcionando a sensibilização para os aspectos humanos, para o direito à vida.277

Every day 30,000 children die from avoidable diseases. What person with a heart,
a soul and a mind does not want to react to that by standing up and saying "I want
to put a stop to this scandal"? […] And it is in order to put a stop to it that the
countries of the world have committed themselves to achieving the Millennium
Development Goals. That will demand of us hard work, courage – and money.
Amongst others, the issue is to fight child mortality and AIDS in a massive way.
There are four dimensions to the global tasks facing our generation: poverty
reduction, justice in globalization, peacebuilding and environmental protection
(grifos meus).

O texto utiliza-se de perguntas retóricas para construir não somente os objetos de


intervenção – as vítimas do progresso – mas também a si próprios como heróis,
salvadores do desenvolvimento. A trilogia de qualidades heróicas: trabalho duro,
coragem e sentimento humanitário. Neste sentido, a intervenção coloca-se como uma
obrigação moral da qual não se pode fugir, como um princípio ideal de comportamento.
Este tom mais pessoal, mais emotivo é um traço particular da atual ministra, que
faz questão de deixar claro seu envolvimento pessoal nas questões do ministério:278

I visited Congo in 2004. Our development workers have been operating there
since 2003. They are doing a truly splendid job. The people there with whom I
spoke - and I am not talking about the politicians now - said: “We want to use our
vote to help put an end to the violence”. Four million people in this region fell
victim to internal fighting in the 1990s. Yet many ask: Is it in Germany's interest
to intervene? The world made some serious mistakes when it did nothing to stop
the genocide in Rwanda. Rwanda will only know lasting security if Congo is
stable. We all believe that we must do all that we can to put an end to the
bloodshed. It is an obligation for us all and it is - let me say this quite clearly -
not something that depends on skin colour (grifos meus).

Por meio da política de cooperação para o desenvolvimento, há o interesse em


popularizar a Alemanha mundialmente e propagar a imagem de um país que superou as

277
Heidemarie Wieczorek-Zeul, discurso na Conferência de Paris sobre Instrumentos Inovadores de
Financiamento, em 28/02/2006, primeira sessão plenária, em sítio:
http://www.bmz.de/en/press/speeches/ministerin/rede22072003.html Acesso em 22/07/2003.

278
Heidemarie Wieczorek-Zeul, discurso de 29/03/2006, na ocasião da leitura do orçamento federal
de 2006, em sítio : http://www.bmz.de/en/press/pm/pm_20060616.html Acesso em 16/06/2006.

172
barreiras impostas pelo nazismo, particularmente em relação à tolerância racial e cultural,
como vemos nesta capa da Deutschland.279

Postula-se, assim, uma “Alemanha global”, que apresenta um pensamento aberto,


cosmopolita, pacifista, ecológico, um discurso que se afina com a política de
desenvolvimento e a política de relações exteriores da Alemanha, particularmente pela
divulgação de seu compromisso com a proteção ao meio ambiente, o respeito aos direitos
humanos e a ênfase na educação e na cultura. No entanto, nota-se o detalhe cuidadoso em
apresentar crianças de diferentes origens étnicas em torno de uma alemã, clara de pele e
loura, praticamente segurando o “mundo”.
Como dissemos anteriormente, as atividades de cooperação para o
desenvolvimento que a Alemanha passou a desempenhar junto a outros países tornou-se
uma política oficial a partir da criação do BMZ, em 1962, sendo parte de uma política de
expansão e promoção de sua economia e cultura no exterior, junto com o comércio e a
diplomacia.
Diferente da grande maioria dos países, em que as agências bilaterais de
cooperação para o desenvolvimento, subordinadas a ministérios de Relações Exteriores,
de Assuntos Exteriores (Foreing Affairs), do Ultramar (Overseas) ou de Finanças,

279
A revista Deutschland, publicada pelo Ministério de Relações Exteriores da Alemanha, é uma
destas revistas que têm uma linha editorial orientada para a divulgação da cultura alemã, seus hábitos,
refinamento, alta tecnologia, entre outras qualidades, como um panorama de uma civilização moderna,
avançada e globalizada.

173
assumem a responsabilidade pela formulação e pela execução da política de cooperação
para o desenvolvimento, no caso alemão, o BMZ é um ministério que tem a atribuição de
formular políticas, mas não de executá-las. Outras instituições, as agências, executam sua
política, ficando o BMZ com o dever de coordenar essas ações. O ministério é
responsável pelas tarefas de planejamento, coordenação, financiamento e negociação dos
programas e projetos de cooperação para o desenvolvimento, com atividades nas áreas
social, econômica, tecnológica, educacional, acadêmica e cultural. No que se refere à
execução desta política, as duas principais instituições executoras do BMZ são o Banco
KfW e a GTZ: “The development policy of the Federal Republic of Germany is an
independent area of German foreing policy”.280
A institucionalização que veremos em detalhe no caso da Alemanha ressalta o
processo de centralização em um órgão de governo, a partir dos anos 60, de uma imensa
diversidade de conhecimentos sobre regiões geográficas e populações, com a criação de
um ministério, o BMZ, especificamente responsável por determinadas formas de
intervenção em espaços estrangeiros. Esta centralização administrativa garantiu maior
controle de informações sobre as intervenções, como também sobre as populações e os
territórios objetos de tais intervenções.

As instituições do BMZ

Para um antigo funcionário da embaixada que trabalha há anos com a área de


cooperação, o fato de um ministério separado do Ministério de Relações Exteriores, com
autonomia decisória e orçamentária para coordenar a política de cooperação na
Alemanha, é muito próprio da história da Alemanha no pós-guerra. Ele explica:281

O BMZ tem uma divisão setorial e regional. Não sei se você sabe, mas a
Alemanha é o único país que tem um ministério de cooperação internacional,
criado em 1962. [...] porque até o nosso desenvolvimento, o milagre alemão, sem
a ajuda do Plano Marshall, o nosso milagre econômico não teria sido possível.
[...] então, no momento em que a Alemanha estava em condição de oferecer
ajuda a outros países, no mesmo momento se criou o ministério. Um pouco

280
Ver: www.bmz.de Acesso em 22/07/2003.
281
Sr. Rainer Willingshoffer, em entrevista na Embaixada da Alemanha em Brasília, em 26/09/2003.

174
também para mostrar nossa dedicação a esse tema. No caso do DFID
[Department for International Development] dos britânicos, ele é ligado à
chancelaria, à diplomacia; a USAID [United States Agency for International
Development] é ligada ao Ministério de Assuntos Exteriores; a JAICA [Japan
International Cooperation Agency] é ligada ao Ministério de Economia do Japão.
A Alemanha tem um Ministério de Relações Exteriores e um de Cooperação,
separados. O BMZ fica em Bonn e o Ministério das Relações Exteriores em
Berlim.

Uma característica marcante do ministério é sua lógica de “atuação em rede ou em


malha, tanto no que concerne à sua estrutura organizacional, como em relação à forma de
execução de suas políticas.
A sede do ministério fica em Bonn, antiga capital, tendo sido criada outra sede em
Berlim depois da unificação. Além da sede, há vários escritórios localizados em
diferentes países, além de haver representação nas embaixadas e nos consulados e em
organismos internacionais, como o Banco Mundial e o BID.
Em relação à distribuição de seus funcionários, cerca de 600 no total, grande parte
deles fica no escritório de Bonn (aproximadamente 80%), enquanto no escritório de
Berlim há em torno de 60 funcionários (10%), segundo dados do BMZ de 2005.282 Os
outros 10% estão atualmente em “Escritórios Federais no Exterior” (Federal Foreign
Office), nas organizações internacionais e em países considerados “parceiros
prioritários”, onde trabalham nas embaixadas e nos consulados alemães.
A organização administrativa do ministério divide-se entre três diretorias gerais
com atribuições distintas. A primeira delas é responsável pelas tarefas administrativas dos
escritórios centrais de Bonn e Berlim, além de assumir atividades de cooperação com
organizações da sociedade civil e com as fundações políticas. A segunda é responsável
por diretrizes e pelo diálogo político da cooperação bilateral e das ações executadas pelo
ministério com os diferentes países e regiões; este diretório geral coordena medidas de
política de desenvolvimento e monitora todos os projetos e programas de cooperação
técnica e financeira com países, em negociações bilaterais, além de elaborar políticas de
cooperação para a paz.283 A terceira é responsável pela cooperação com organizações

282
Ver www.bmz.de Acesso em 22/07/2003.
283
É um representante deste Diretório Geral que vem ao Brasil participar das Negociações
Intergovernamentais entre representantes do governo brasileiro e alemão.

175
internacionais e pela coordenação de países doadores, estando a seu cargo a elaboração
dos princípios fundamentais e dos conceitos para o trabalho de política de
desenvolvimento (sistemas econômicos e financeiros, meio ambiente e recursos naturais,
redução da pobreza e desenvolvimento social).284
O escritório de Berlim, mais recente, tem função política junto ao Parlamento e à
imprensa, entre outros, sendo a principal responsabilidade de seus funcionários dar
suporte à formulação de planejamento político. Em 2003, o BMZ assumiu temas como a
globalização e o comércio, a prevenção de crises, a ajuda de emergência a refugiados, que
demandam relações mais próximas com o Banco Mundial e a União Européia.
Na América Latina, há funcionários do BMZ em Brasília, La Paz e Lima. Outros
60 funcionários do ministério são deslocados para trabalhar de forma rotativa nas
embaixadas e nos consulados de alguns países, circulando para assumir compromissos da
política de cooperação alemã para o desenvolvimento.
Quanto à execução de suas políticas, o ministério repassa a diferentes
organizações a atribuição de efetuar ações concretas das políticas definidas de cooperação
técnica, científica, acadêmica e financeira, as chamadas implementing organizations, que
são as agências implementadoras, as instituições que apresentam crescente autonomia e
que investem uma parte de recursos próprios para a execução das políticas formuladas
pelo BMZ.285 São agências de cooperação técnica, bancos de desenvolvimento, fundações
políticas, instituições eclesiásticas e de voluntários e ONGs. É uma ampla e diferenciada
malha administrativa, cujas instituições e pessoas se propõem a realizar atividades que
vão desde orientação política, formação profissional e organização trabalhista até
assistencialismo.
A estrutura de operacionalização da política de cooperação para o
desenvolvimento no mundo é marcada por uma diversidade, uma multiplicidade de atores
interconectados por meio do BMZ, enquanto centro de decisões políticas e orçamentárias
de uma ampla malha administrativa.

284
Há uma grande divisão interna nos diretórios gerais: o diretório geral 1 possui 14 divisões
divisões internas, o 2 tem 15 e o 3 tem 18.
285
As fontes que tenho de coleta de dados – de documentos até entrevistados – são a agência CT
governo (GTZ), o banco alemão (KfW), a embaixada alemã, os consultores em órgãos de governo, os
profissionais de ONGs e redes de ONGs e os professores universitários.

176
Para o governo alemão, do ponto de vista administrativo e de execução da política
de cooperação para o desenvolvimento, é atribuído um sentido restrito e um sentido
amplo para a definição de cooperação. No primeiro caso, refere-se às atividades
desempenhadas pelas agências oficialmente vinculadas ao BMZ, ou seja, as organizações
governamentais. São definidas como implementing organizations e, de acordo com o site
do BMZ,286 são elas: o KfW, a GTZ, o DED (este, como já dissemos, é o Deutscher
Entwicklungsdienst, conhecido anteriormente no Brasil por Serviço Alemão de
Cooperação Técnica e Social - SACTES), o InWEnt (Aperfeiçoamento Profissional e
Desenvolvimento Internacional) e o DEG (Deutsche Investitions und
Entwicklungsgesellschaft mbH ou Sociedade Alemã para o Desenvolvimento e
Investimentos), sendo também incluídos em algumas referências o Instituto Federal de
Geociências e Recursos Nacionais - BGR e o Instituto Federal de Física e Metrologia -
PTB.287
Além destas, o governo alemão vem ampliando sua atuação por meio do apoio a
outras instituições que não são diretamente ligadas ao BMZ, mas que recebem parte de
seus recursos do ministério, sendo consideradas também executoras de suas políticas.
Neste sentido amplo da cooperação para o desenvolvimento, estão envolvidas
organizações privadas, organizações não-governamentais ou redes de ONGs, além de
fundações políticas e organizações vinculadas às igrejas ou a instituições eclesiásticas. A
atuação dessas organizações não tem relação direta com as diretrizes definidas nas
negociações intergovernamentais,288 como no caso das agências ligadas diretamente ao
BMZ, mas sim aos princípios da própria organização. Os recursos que lhes são destinados
diferem do título orçamentário específico para atividades de cooperação bilateral entre
organizações oficialmente vinculadas ao BMZ. Assim nos relatou um funcionário da
Embaixada:289

286
Refiro-me especificamente ao documento Embaixada da República Federal da Alemanha. Brasil-
Alemanha: 40 Anos Cooperação para o Desenvolvimento, 2003. Também consultamos o Compêndio do
vocabulário da GTZ, opus cit., p.43, em que são incluídos o Instituto Federal de Geociências e Recursos
Nacionais - BGR e o Instituto Federal de Física e Metrologia - PTB.
287
GTZ, idem.
288
GTZ, idem.
289
Sr. Rainer Willingshoffer. em entrevista citada.

177
[...] as tradicionais – a Misereor, por exemplo – elaboram projetos; são projetos
de 1 milhão, 2 milhões de euros, onde eles botam um terço e o BMZ, dois terços.
É muito dinheiro que o BMZ está liberando para essas atividades, mas
controladamente, porque também tem inspeções, tem que se fazer um Relatório
Final, como se fosse um projeto normal de cooperação técnica. [...] Nós
diferenciamos cooperação técnica de sentido estrito, que são as instituições que
foram criadas com o BMZ, de cooperação técnica no sentido amplo, que envolve
outras instituições que não são necessariamente ligadas diretamente ao BMZ
(grifos meus).

Alguns profissionais alemães, principalmente aqueles que têm uma trajetória de


atuação em ONGs, redes de ONGs e movimentos da sociedade civil na Alemanha, fazem
questão de destacar a distância das formas de trabalho e da visão política a respeito do
desenvolvimento em países do chamado “Terceiro Mundo” entre organizações não-
governamentais e governo, sobretudo quanto a temas como meio ambiente:

Na Alemanha, tenho outra impressão: os grupos lutaram muito contra os


governos, brigaram para conseguir algumas coisas, mas aqui isso mal aparece.
Temos que deixar bem claro que os governos do Norte e as ONGs não têm as
mesmas posições e, muitas vezes, os governos atuam de certa maneira porque
eles foram forçados pela sociedade civil.290

Cooperação no sentido restrito

Como mencionamos acima, entre as organizações governamentais, as principais


instituições alemãs que atuam no Brasil, são a GTZ, que analisaremos
pormenorizadamente no próximo capítulo, o DED, o DEG, o InWENT, o BGR e o PTB.
O DED, antes chamado de SACTES, é usualmente conhecido entre os alemães
como serviço de voluntários e de pessoal para projetos de demandas sociais, tendo sido
criado em 1963. Ele atua como um braço oficial da cooperação alemã com organizações
não-governamentais de países parceiros. Apesar de referir-se a “voluntários”, os alemães

290
Apesar de trabalhar naquele momento no DED, uma agência governamental, este profissional
alemão nos informou que trabalhou em contato com redes de ONGs da Alemanha que atuavam no campo
do desenvolvimento, sobretudo na América Latina. O DED tem um trabalho orientado para o
fortalecimento institucional de ONGs dos “países em desenvolvimento”. In: Diversidade ecossocial e
estratégias de cooperação entre ONGs na Amazônia: Anais do Encontro. Fase/FAOR, 13-16 de junho de
1994. p.93.

178
enviados para atuar em projetos recebem um pagamento (um salário mínimo, muitas
vezes) da instituição local onde trabalham e uma complementação do próprio DED.
O DED é uma organização definida como “sociedade mista”, composta pelo
governo alemão e por um grupo de ONGs alemãs. Ele não trabalha em projetos próprios,
mas atua na implementação dos projetos de desenvolvimento e apóia organizações da
sociedade civil e as iniciativas populares através, basicamente, do envio de alemães com
formação técnica291 ou superior para os chamados “países em desenvolvimento”.
Normalmente atuam em projetos pequenos. Segundo Wolff, o DED é uma “entidade de
perfil progressista e sua política freqüentemente distoa do discurso desenvolvimentista
oficial, o que não se dá sem a ocorrência de conflitos”.292 Tais projetos envolvem
atualmente 13.000 assistentes ao desenvolvimento e 10.000 técnicos locais em resposta a
demandas de organizações ou instituições estatais em mais de 45 países na África, na
Ásia e na América Latina. A instituição acaba sendo uma base de formação “prática” para
jovens alemães em países do “Terceiro Mundo”, uma espécie de “estágio”. Mas não
somente. Muitos profissionais alemães de grande experiência com as dinâmicas de
trabalho e articulação não-governamental ou “da sociedade civil”, na Alemanha e em
países “em desenvolvimento”, são muito valorizados e considerados.293
No Brasil, o escritório-sede do DED fica em Recife, o que reflete a prioridade
atribuída à questão da pobreza, fator que orientou a maior parte dos projetos para a região
Nordeste e, mais recentemente, para a região Norte. São três linhas temáticas que
trabalham no Brasil: desenvolvimento urbano, desenvolvimento rural e meio ambiente e
geração de emprego e renda. Conforme relatório de julho de 2004, os projetos são
classificados de acordo com as diferentes fases em que se encontram: em execução com
perito de longo prazo; em execução sem perito de longo prazo; em implantação. De um
total de 35 projetos do DED em todo o Brasil, 23 estavam sendo realizados na região
Nordeste, sendo a maior concentração em Recife, e o restante dos projetos destinados à
região Norte.

291
Neste caso, especificamente, o termo técnico refere-se à formação em escolas técnicas.
292
Wolff, L.; Kaiser, W. & Mello, F. Cooperação e solidariedade internacional na Alemanha. São
Paulo:ABONG; Rio de Janeiro: Núcleo de Animação Terra e Democracia, EZE/Ibase, 1995. p.14.
293
DED. Relação dos projetos do DED – Serviço Alemão de Cooperação Técnica e Social no Brasil,
julho de 2004.

179
O DED coopera com cerca de 90 ONGs no Brasil, entre elas a ABONG e a “SOS
Corpo, Gênero e Cidadania”, em Recife; o Centro de Estudos, Articulação e Referência
sobre Assentamentos Humanos - CEARAH, em Fortaleza; a FASE, o Fórum da
Amazônia Oriental – FAOR e o NAEA, em Belém; o Centro de Trabalho Indigenista -
CTI, em Carolina, Maranhão; o Grupo de Trabalho Amazônico - GTA, em Brasília, entre
outros.
Define sua atuação como orientada por princípios de justiça social, democracia,
solidariedade, preservação da natureza, igualdade de direitos e inclusão social. São
projetos do DED no Brasil: Assessoria às Entidades Populares, executado pelo Centro de
Estudos e Pesquisa Josué de Castro, de Pernambuco; Mulheres e Desenvolvimento na
Zona da Mata de Pernambuco, desenvolvido pela ONG SOS Corpo, Gênero e Cidadania;
Produção Agrícola Sustentável, no Pará, executado pelo NAEA/UFPA; Consumo
Popular e Produção Familiar, no Pará, desenvolvido pela FASE, para citar alguns.294
No setor privado, algumas instituições têm a atribuição de promover e incentivar
pequenas e médias empresas e cooperativas nos países em desenvolvimento. Entre elas, o
DEG, que é um dos maiores institutos alemães de financiamento de longo prazo e
consultoria, com a atribuição formal de “promover a formação e a expansão do setor
privado em países em desenvolvimento”.295 Desde 1962, quando foi criado, até 2001, o
DEG co-financiou um total de 1.025 empresas em 121 países.296 Ele promove a
cooperação entre empresas de países em desenvolvimento e empresas alemãs e outras
européias. Investe em projetos sustentáveis e rentáveis, estando o seu foco no Brasil na
área de financiamento de projetos e empreendimentos para empresas brasileiras,
financiamento de pequenos e médios empreendimentos de infra-estrutura, programa de
microcrédito e programa de parcerias público-privadas (PPP), além de acompanhar
empresas alemãs que atuam nos países com os quais a Alemanha tem programas de
cooperação.

294
DED. Relação dos Projetos do DED, ibidem..
295
KfW. Annual Report 2001, p.89.
296
Idem.

180
Em 2001, o DEG foi comprado pelo banco KfW do governo federal297 e passou a
fazer parte do Grupo KfW, formado pela consolidação financeira do banco KfW, do KfW
International Finance Inc., Delaware (EUA), do Finanzierungs-und Beratungsgesellschaft
mbH (Berlin) e pelo DEG.298
No que se refere a cooperativas, a Confederação das Cooperativas da Alemanha
Federal (Deutscher Genossenschafts und Raiffeisenverband e.V. - DGRV) é uma
organização que reúne nacionalmente as instituições do setor cooperativo alemão, sendo
responsável por dar assessoria e apoio a organizações cooperativas em questões de
política econômica e fiscal, além de participar de projetos de desenvolvimento e
assessoria em âmbito internacional com a finalidade de fortalecer organizações
cooperativas, promover transferência de conhecimentos cooperativos através de
atividades de capacitação, fortalecer cooperativas de poupança e crédito em zonas rurais.
Existe uma forte relação entre instituições de execução da política de cooperação para o
desenvolvimento da Alemanha e empresas privadas, cooperativas e serviços de
especialistas (consultores).299
O Internationale Weiterbildung und Entwicklung gGmbH (Aperfeiçoamento
Profissional e Desenvolvimento) - InWENT300 é uma instituição que tem por propósito o
aperfeiçoamento e o desenvolvimento internacionais. Surgiu da fusão da Sociedade Carl
Duisberg (Carl Duisberg Gesellschaft) - CDG com a Fundação Alemã para o
Desenvolvimento Internacional (Deutsche Stiftung für Internationale Entwicklung,) -
DSE e presta serviços de formação, intercâmbio e aprimoramento profissional, técnico e
intercultural.
O CIM, dentro da GTZ, é um grupo de trabalho que executa o Programa de
Peritos Integrados. Formalmente, “o CIM organiza a colocação de peritos alemães ou
europeus junto a empregadores que exercem suas atividades em ramos e setores
importantes do ponto de vista da política de desenvolvimento”. É um programa
importante para que possamos compreender a abertura de um espaço para a GTZ em

297
Idem, p.10.
298
KfW. Annual Report 2001, p.116.
299
SES – Senior Experten Service. Emprega técnicos especializados aposentados (consultores
seniores) em formação profissional, aperfeiçoamento e qualificação de pessoal técnico e de direção dentro
do país e no exterior, sendo priorizadas as áreas técnica e econômica das pequenas e médias empresas.
300
Ver www.inwent.org; www.cdgbrasil.com.br Acesso em 17/06/2006.

181
projetos no Brasil. Os peritos alemães selecionados são profissionais que dispõem de
“conhecimentos técnicos especializados” em atividades da política de
301
desenvolvimento.
Os profissionais do CIM são contratados como peritos de curto prazo –
nomenclatura para profissionais que atuam em projetos com prazo de três meses,
renováveis – para prestar consultorias para a GTZ e avaliar a condição de viabilidade de
um projeto no qual a GTZ pretende atuar e, a partir da avaliação, indicar a sua execução
para a GTZ.302 O CIM fornece a curto prazo as condições para o deslocamento de
peritos.303 É uma forma talvez mais ágil para a contratação de peritos sem que haja
formalmente um projeto no qual eles estejam engajados, porque o processo de negociação
de um projeto pode levar até anos. Como o CIM, o Senior Experten Service (Serviço de
Peritos Seniores) - SES, emprega consultores técnicos sêniors, entre eles, aposentados,
para atuarem na formação profissional, no aperfeiçoamento e na qualificação de pessoal
técnico e de direção dentro do país e no exterior, priorizando-se as áreas técnica e
econômica das pequenas e médias empresas.

Cooperação no sentido amplo

Além destas organizações diretamente ligadas ao BMZ, as agências


governamentais vêm ampliando sua atuação no campo da cooperação internacional com
apoio às organizações não-governamentais, às fundações políticas, às igrejas e às
organizações eclesiásticas alemãs. A percepção do benefício que o governo poderia ter
com a atuação da sociedade civil alemã levou o BMZ a incluir as organizações não-
governamentais e as igrejas no seu orçamento para a política de cooperação para o
desenvolvimento.
O governo alemão tem como princípio a idéia de “prescindir ao máximo da ação
governamental e explorar outros meios de implementação mais rápida e mais eficaz dos
301
Há dois critérios para a “colocação de um perito” (na verdade, são critérios da própria atividade
de cooperação internacional): se não forem encontrados peritos nacionais no mercado de trabalho local; o
dever de contribuir para o desenvolvimento econômico e social do país parceiro.
302
Supostamente não deveriam permanecer nos projetos, mas há casos de peritos de curto prazo que
renovam seus vínculos por longos e contínuos períodos.
303
Este foi o caso de Augo Knoke, que veio para o PPTAL nestas condições e acabou ficando por
um ano.

182
objetivos de políticas de desenvolvimento”, considerando fundamental o trabalho dessas
instituições na complementação das atividades das instituições governamentais de
cooperação internacional, no sentido amplo atribuído pelo próprio ministério ao
termo.304
Neste sentido, vale notar que se torna difícil desvincular a ação governamental da
ação não-governamental, e poderíamos mesmo afirmar que o governo alemão conta com
um aparato de atuação no campo do desenvolvimento que vai além de suas instituições
estatais, abarcando das agências e instituições governamentais até as não-governamentais.
Os projetos executados pelas organizações não-governamentais alemãs são
subsidiados pelo governo alemão através do financiamento às organizações eclesiásticas,
aos centros de pesquisa, às universidades e aos centros de capacitação técnica. Há, na
verdade, uma pluralidade de fundações e instituições atreladas ao BMZ que executam
diferentes tipos de cooperação entre a Alemanha e os países “em desenvolvimento”,
como grupos de solidariedade a crianças carentes, movimentos de igrejas, suporte a
cooperativas de produção, suporte a cursos de formação política, entre outras. Atuam
basicamente com recursos do governo alemão e recursos próprios complementares. Ainda
que muitas instituições não-governamentais obtenham fundos de outras fontes e
mantenham autonomia em relação ao governo federal, desde os anos 60 organizações
não-governamentais, organizações eclesiásticas e fundações políticas têm seus
orçamentos fortemente sustentados por verbas do BMZ. A maior parte dos recursos do
orçamento do ministério é, no entanto, consumido pelas duas principais instituições
governamentais, a GTZ e o KfW, que fazem parte do já mencionado “sentido estrito” da
cooperação para o desenvolvimento, que abrange somente as instituições governamentais.

Organizações eclesiásticas

Na Alemanha, a liberdade de crença, de confissão e de exercícios de cultos


religiosos é garantida pela Lei Fundamental.305 Não há, por definição, qualquer controle

304
GTZ. Compêndio do vocabulário da GTZ, opus cit., p.41-43.
305
A Lei Fundamental, como é chamada a Constituição alemã, foi formulada em maio de 1949 por
um Conselho Parlamentar composto por membros de partidos políticos e presidido por Konrad Adenauer.
Foi concebida em caráter provisório para uma fase de transição no imediato pós-guerra, sendo prevista sua

183
das igrejas pelo Estado e, da mesma forma, o Estado é laico na Alemanha, não havendo
nenhum vínculo entre a administração eclesiástica e a estatal.
As igrejas e as instituições eclesiásticas da Alemanha têm o direito de cobrar
impostos de seus membros, recolhidos pelo Estado contra o reembolso de despesas. Cada
membro de confissão cristã, independente de freqüentar missas ou cultos nas igrejas, é
obrigado a pagar este imposto, que é devido pela declaração de crença e não pela prática
religiosa. Cerca de 80% da população na Alemanha pertencem a uma confissão cristã e
estão divididos entre 55% de protestantes e 45% de católicos, sendo o restante da
população formado por outras religiões, como muçulmanos ou judeus.306
Os recursos desses impostos são destinados ao apoio a atividades pastorais e
sociais que fazem das igrejas o segundo maior empregador da Alemanha, ficando atrás
apenas do próprio Estado. As atividades de instituições religiosas na sociedade alemã
destinam-se à assistência em hospitais, casas de misericórdia, asilos, escolas e centros de
formação. Para atuação em projetos sociais no mundo, os recursos vêm em parte desses
impostos, como também da arrecadação de doações dos fiéis em datas religiosas
importantes.307
Wolff argumenta que as igrejas cristãs (católica e protestante) na Alemanha são
entidades influentes devido ao volume de recursos que elas arrecadam anualmente através
do chamado “imposto das igrejas”, oficializado em lei e administrado pelo Estado.308
O papel de instituições eclesiásticas alemãs na estruturação das instituições
democráticas na Alemanha no período pós-guerra é considerado muito importante, como
fica ressaltado em publicação do Ministério de Relações Exteriores:

Através de seu engajamento no Estado e na sociedade, as duas grandes igrejas


cristãs deram uma contribuição decisiva na reconstrução das estruturas
democráticas após 1945. Na transformação política pacífica da RDA, as Igrejas,
em especial a Igreja Evangélica, também tiveram uma participação importante.
Sob sua proteção, formaram-se inúmeros grupos de oposição na RDA e ela abriu
suas portas em 1989, como também a Igreja Católica, para abrigar os protestos e

redefinição após a reunificação, o que veio a acontecer somente em 1990, quando foram reformulados o
prâmbulo e o artigo final.
306
Ministério Federal das Relações Exteriores. Perfil da Alemanha. Berlim: Media Consulta
Deutschland GmbH, 2003. p.383-384.
307
Idem.
308
Wolff, Luciano A.; Kaiser, W. (coords.) & Mello, F.V., opus cit., p.17.

184
as discussões pacíficas. Muitos representantes da oposição desempenharam um
papel importante nos diversos grupos do movimento popular.309

Tem sido intensa a atuação de organizações eclesiásticas em programas para os


“países em desenvolvimento”. Entre 1962 e final de 2001, o governo da Alemanha
transferiu aproximadamente 480 milhões de marcos alemães para apoiar 1.011 projetos
de igrejas alemãs no Brasil, sendo a grande maioria deles (74,6%) desenvolvidos pela
Igreja católica, num total de 754 projetos, enquanto somente 25,4% (257) foram de
responsabilidade da Igreja protestante.310
Segundo Wolff, desde os anos 60, desenvolvimento ocupa lugar importante nas
discussões sobre ética das igrejas, sendo um tema já de certa “tradição” em conseqüência
de suas atividades missionárias. A partir dos anos 70, nota-se a produção de documentos
fundamentais que orientam politicamente o trabalho das igrejas nessa área,
particularmente elaborados pela Câmara das Igrejas Evangélicas para Assuntos de
Desenvolvimento, um conselho que assessora a cúpula das igrejas.
As igrejas protestantes alemãs, também chamadas evangélicas, atuam na área de
cooperação para o desenvolvimento através de uma estrutura institucional denominada
Grupo de Trabalho sobre o Serviço das Igrejas para o Desenvolvimento
(Arbeitsgemeinschaft Kirchlicher Entwicklungsdienst) - AG-KED, que compreende
cinco instituições. De acordo com algumas publicações dessas malhas de instituições,
aquelas ligadas à Igreja protestante são: Associação Evangélica de Cooperação e
Desenvolvimento (Evengelische Zentralstelle für Entwicklungshilfe) - EZE; Pão para o
Mundo (Brot für die Welt); Serviços em Ultramar (Dienste in Übersee) - DU; Serviço das
Igrejas para o Desenvolvimento (Kirchlicher Entwicklungsdienst) - KED; Obra
Missionária Evangélica (Evangelisches Missionwerk) - EMW.
As igrejas católicas concentram-se em torno de duas instituições: a Misereor e a
Associação Católica para Cooperação e Desenvolvimento (Katholische Zentralstelle für
Entwicklungshilfe) - KZE. Os recursos com os quais a Misereor financia seu trabalho no
campo do desenvolvimento são provenientes de doações dos católicos alemães e de

309
Ministério Federal das Relações Exteriores. Perfil da Alemanha, idem, p.384.
310
ABC/MRE. Ata de Negociações Intergovernamentais 2001. Brasília, 19 e 20 de novembro de
2001.

185
fundos dos orçamentos diocesanos colocados à disposição pela Associação das Dioceses
da Alemanha. Quanto aos fundos públicos do governo alemão, eles são aplicados pela
KZE, sendo que a maior parte do trabalho administrativo da KZE é executado na sede da
Misereor que, fundada em 1958, representa um dos braços da Confederação dos Bispos
Alemães, consistindo em um subdepartamento de uma área chamada “Igreja em Nível
Mundial”, referente às atividades de igrejas cristãs no exterior.311 Ela está voltada para as
atividades de serviços sociais e pastorais para pobres do “Terceiro Mundo”, tendo como
base motivações cristãs e espirituais. Define sua missão como a de oferecer cooperação
“para combater a pobreza em nível mundial, abolir estruturas de injustiça, promover a
solidariedade com os pobres e perseguidos e contribuir para a construção de ‘um
mundo’”.312
Os pedidos de financiamento que a Misereor recebe são analisados por
departamentos regionais que decidem com que fundos o projeto pode ser financiado,
passando por diferentes níveis de decisão, inclusive pela diocese local.313 No caso de
fundos provenientes de doações ou arrecadação de impostos, a aprovação passa por uma
comissão de cinco bispos.
Além das instituições citadas, ainda haveria ONGs alemãs sem vínculos
diretamente religiosos, mas que são em sua maioria ligadas às Igrejas protestante e
católica da Alemanha, como a Fundação Agrária Alemã (Deutsche Welthungerhilfe), a
Associação de Amparo às Necessidades da Criança (Kindernothilfe), a Comunidade de
Ação Mundo Solidário (Aktionsgemeinschaft Solidarische) e o Serviço para a Paz
Mundial (Weltfriedensdienst).314
A referência ao trabalho das ONGs alemãs no Brasil não aparece nas conversas ou
nas entrevistas realizadas com funcionários de órgãos governamentais alemães ou
brasileiros, mas quando investigamos as organizações ou as redes não-governamentais no

311
“Igreja em Nível Mundial” é uma “fraternidade” de mais de 300 igrejas de diferentes tradições
cristãs em mais de 100 países nos cinco continentes, e que se organizou formalmente no Conselho Mundial
de Igrejas - CMI, fundado em 1948 em Amsterdã. A Igreja Católica Romana não é membro do CMI, mas
colabora com o conselho. Seu órgão decisório máximo é a assembléia que se reúne a cada 7 anos. Em:
www.wcc-coe.org/ Acesso em 04/11/2007, às 11h22.
312
Em www.misereor.org/pt/sobre-nos.html Acesso em 04/11/2007, às 12h:45.
313
Wolff, L.A. et al., opus cit., p.21.
314
Idem, p.17-22.

186
Brasil – entre elas INESC, IBASE e FASE ou ABONG, Rede Brasil ou FAOR (Fórum da
Amazônia Oriental) – vimos que há uma correlação entre a atuação das ONGs alemãs
religiosas e os movimentos sociais no Brasil. Desde a ditadura militar, tem sido freqüente
o apoio a projetos sociais por parte das igrejas desse país, assim como a vinda de
alemães, principalmente na área de direitos humanos e de organização popular de
trabalhadores e de cooperativas.

Fundações políticas

As fundações políticas são instituições vinculadas aos partidos políticos que


desenvolvem atividades na Alemanha e no exterior. Elas têm um papel importante nesse
tipo de trabalho, assim como na constituição de uma cultura política democrática e de
solidariedade, o que fazem por meio de institutos em que dão treinamento e cursos para
formação de valores políticos e democráticos, além de programas de estudo na Alemanha
para bolsistas dos vários países onde atua.
Particularmente quanto a critérios de democracia e participação, as fundações
políticas trabalham estes valores no sentido de promovê-los internacionalmente, dando
suporte a organizações promotoras de auto-ajuda, sobretudo nas áreas rurais, de educação
de adultos e de capacitação para pesquisas sociológicas em países em
315
desenvolvimento.
As fundações políticas trabalham em estreita colaboração com sindicatos,
partidos, cooperativas e outros grupos políticos ou sociais semelhantes, sendo sua função
fortalecer sindicatos de trabalhadores e partidos políticos. Várias delas foram criadas
antes do ministério, já tendo certa experiência nas práticas da cooperação para o
desenvolvimento antes mesmo de sua institucionalização.316 No exterior, segundo Wolff
suas atividades são enquadradas como projetos de cooperação para o desenvolvimento.317

315
Wolff, L. A. et al., ibidem.
316
A partir de 1966 foi proibido financiar diretamente o trabalho de formação política na linha dos
partidos dentro da Alemanha, o que passou a ser feito então pelas fundações políticas. Atividades como
seminários, encontros, debates, cursos, bolsas de estudo contribuem para o debate político no país. No
plano internacional, o trabalho das fundações seria identificado como o de cooperação para o
desenvolvimento, sendo financiado com recursos do BMZ.
317
Wolff, L. A. et al., idem, ,p.16.

187
O trabalho das fundações no exterior é financiado exclusivamente por fundos do governo
federal, principalmente do BMZ, do Ministério de Relações Exteriores e do Ministério de
Ciência e Tecnologia.
O governo alemão transferiu para as fundações políticas, entre 1962 e final de
2001, um total de 225 milhões de marcos alemães. No caso da cooperação para o
desenvolvimento do setor privado (DEG), foi transferido um total de 300 milhões de
marcos alemães para 23 projetos.318
Várias fundações políticas foram criadas cerca de uma década antes do ministério
e têm tradição nas práticas da “cooperação para o desenvolvimento”, marcantes ainda
hoje.319 O quadro abaixo sistematiza a relação entre as fundações políticas e os partidos
políticos na Alemanha:

FUNDAÇÕES E PARTIDOS POLÍTICOS

CONSERVADORES
KAS – Fundação Konrad-Adenauer União Democrata Cristã (CDU)
HSS – Fundação Hans Seidel União Social Cristã (CSU)
FNS – Fundação Friedrich Naumann Partido Democrático Liberal (FDP)

DE OPOSIÇÃO

Fundação Friedrich Ebert (FES) Partido Social-Democrata (SPD)


Fundação Heinrich Böll (HBS) Partido Verde (DG)

A mais antiga fundação política, a Friedrich Ebert - FES, ligada ao Partido Social-
Democrata - SPD, foi fundada em 1925. Define sua atuação como orientada “para o
incentivo a estruturas e processos democráticos e para a cooperação com seus parceiros,
para fortalecer o desenvolvimento político”. Atualmente possui cerca de 600 funcionários
que desenvolvem projetos em mais de 100 países na África, na Ásia, nas Américas e na
Europa e concede bolsas de estudos para 240 estudantes no exterior, de um total de 1.700

318
Ata de Negociações Intergovernamentais 2001, Brasília, 19 e 20 de novembro de 2001.
319
A pesquisa desta como das outras fundações políticas foi realizada em grande parte por meio
digital na Internet. Os sites têm informações sobre a estrutura e os dados atualizados de projetos e
programas em andamento. Os sites foram: www.fes.org; www.hss.org ; www.boell.org ;
www.kas.org

188
bolsas. A FES está no Brasil desde 1976, quando veio primeiramente para o Rio de
Janeiro e estabeleceu-se com o nome de Instituto Latino-Americano de Desenvolvimento
Econômico e Social - ILDES, sendo transferida em 1986 para São Paulo. Tem fortes
relações com sindicatos e incentiva pesquisas e seminários orientados para trabalhadores
e sindicalistas.
A Fundação Konrad Adenauer (Konrad Adenauer Stiftung) - KAS, associada à
CDU, atua na área de “direitos humanos, democracia representativa, do Estado de
Direito, da economia social de mercado, da justiça social e do desenvolvimento
sustentável” e desenvolve trabalhos em áreas carentes no Brasil em articulação com a
Cáritas320 e com a Arquidiocese do Rio de Janeiro.
A Fundação Konrad Adenauer focaliza seu trabalho primordialmente no campo
acadêmico no Brasil, particularmente em relação às áreas de filosofia e ciência política,
contribuindo não só para a organização de seminários, como também a publicação de
textos e livros de análises políticas. Além disso, incentiva pesquisas no Brasil e no
exterior por meio de bolsas de estudo e intercâmbio de pesquisadores na Alemanha.
Possui um instituto próprio de formação política, o Instituto Internacional,321 e ainda um
centro de estudos de “formação política” no Rio de Janeiro.
A Fundação Hans Seidel - HSS, ligada à CSU, tem cerca de 200 funcionários e
atua em 57 países; como a KAS, possui um instituto próprio para atividades de
“cooperação internacional”, o Instituto para Confraternização e Cooperação
Internacional, com formação “democrática e cidadã, educação e capacitação”, promoção
de “consciência internacional” e “ajuda ao desenvolvimento”.
Há um conjunto de fundações ligadas ao Partido Verde que refletem sua
característica pluralista. A Bundstift é formada por uma série de associações regionais,
sendo de caráter mais descentralizado; a Frauen(an)stiftung caracteriza-se pelo trabalho

320
A Cáritas Brasileira faz parte da Cáritas Internationalis, rede da Igreja Católica de atuação social
composta por 162 organizações presentes em 200 países e territórios, com sede em Roma. A Cáritas
Brasileira é um organismo na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), criada em 12 de
novembro de 1956, na ocasião da 3ª. Assembléia da CNBB, presidida então por D. Hélder Câmara. A
Cáritas Brasileira desenvolve um trabalho orientado para populações excluídas, visando, nos próprios
termos, “contribuir para a superação da miséria e pobreza, testemunhando que Deus é caridade” por meio
da promoção da “solidariedade libertadora”. Em: www.caritasbrasileira.com.br Acesso em
30/05/2007.
321
Wolff, L. A. et al., opus cit., p.16.

189
exclusivo em questões de gênero, particularmente mulheres; a Fundação Arco-Íris
consiste apenas em uma instância de coordenação de trabalho entre as três fundações; e a
Fundação Heinrich Böll (Heinrich Böll Stiftung) - HBS, com sede em Colônia, tem uma
estrutura mais parecida com as fundações políticas que vimos, mas adota uma linha
alternativa, abordando temas relativos a desenvolvimento sustentável, questões de gênero
e sexualidade, direitos humanos, entre outros. É uma fundação não-governamental,
porém não se pode desconsiderar sua relação política com Schröder, por ocasião da
coalizão com Os Verdes (Die Grünen - DG) e com o SPD, no governo desde 1998.
De acordo com dados de 2007, a Fundação Böll possui 130 projetos correntes em
60 países da África, da Ásia, da América Latina, tendo também um escritório em
Washington. A Fundação Heinrich Böll estabeleceu sede no Rio de Janeiro em 1990 e
desenvolve projetos com algumas ONGs brasileiras, como FASE, INESC, SOS-Corpo,
CEMINA, REDEH, entre outras.
O BMZ, com a sua forma de operacionalizar a política alemã de cooperação para
o desenvolvimento, apresenta a dimensão de uma estrutura equivalente a uma grande
corporação transnacional ou de uma rede de organizações. Nem sempre é desejável, do
ponto de vista das instituições alemãs, que se tenha a real dimensão da sua atuação, para
não despertar reações contrárias e críticas. Apesar de estarem vinculados a um mesmo
ministério, os trabalhos destas instituições são independentes.
O diagrama abaixo apresenta uma visão resumida e simplificada das instituições
que fazem parte da política oficial de cooperação para o desenvolvimento e suas
atribuições em relação ao BMZ.

190
Diagrama de instituições da política alemã de cooperação para o desenvolvimento322
Sentido restrito da cooperação para o desenvolvimento
(Organizações governamentais)

BMZ – Ministério Federal de Responsabilidade política e


Cooperação Econômica e financeira
Desenvolvimento

Organizações de Responsabilidade de execução


Cooperação:
KfW, GTZ, DED, DEG,
InWENT, BGR e PTB

Sentido amplo da cooperação para o desenvolvimento


(Organizações governamentais e outras)

Organizações KfW, GTZ, DED, DEG, InWENT,


governamentais BGR e PTB

Misereor, KZE (Católica), EZE (Protestante), Brot für die


Organizações Welt (Pão Para o Mundo), KED (Serviço das Igrejas para
eclesiásticas o desenvolvimento), EMW (Obra Missionária
Evangélica)

Fundações políticas Fundação Konrad-Adenauer,


,Fundação
EMW (Protestante)
Heinrich Böll, Fundação
Friedrich Ebert, Fundação Friedrich
Naumann, Fundação Hans Seidel

ONGs Katalyse, Tropenwaldnetzwerk,


KOBRA *

Deutsche Welthungerhilfe,
Outras organizações de (Fundação Agrária Alemã),
“solidariedade” Kindernothilfe (Associação de
Amparo às necessidades da Criança)
Aktionsgemeinschaft Solidarische)
(Com. de Ação Mundo Solidário e
Weltfriedensdienst (Serviço para a
Paz Mundial)

Fonte: Lossack, Harald Cooperação Técnica Brasil-Alemanha, Projeto MMA/PD-A-GTZ, 1995

322
Troppenwaldnetzwerk é rede da Floresta Amazônica, uma rede da Alemanha para a proteção da
Floresta. Katalise e KOBRA, que significa “Kooperation-Brasil”, também são redes.

191
O que buscamos destacar neste capítulo é que, independente e paralelamente às
agências de Estado, há toda uma ampla e disseminada rede de instituições da sociedade
alemã que historicamente atua no campo do desenvolvimento. Estas redes nem sempre
são mencionadas pelos profissionais da GTZ quando os entrevistamos, ou aparecem em
publicações institucionais. Quando citada a sua existência em textos impressos do BMZ,
não há referências mais detalhadas sobre as formas de relação do Estado com as suas
práticas.
No entanto, quando avançamos na leitura de uma abordagem mais abrangente,
como a adotada por Wolff e na qual me baseei, vemos as múltiplas correlações existentes
entre a instância governamental e a não-governamental, em situações que vão desde o
orçamento até valores e princípios de orientação para o trabalho no exterior e a forma de
atuação com base em projetos, entre outros.
A formalização de um “campo governamental” de cooperação para o
desenvolvimento, que se estabeleceu entre os anos 1950-60, baseado no desenvolvimento
como “motor” de impulsão de práticas de intervenção para administração de territórios
estrangeiros, adquiriu muitos dos aspectos da atuação não-governamental. No entanto,
aquilo que se refere às instituições religiosas diz respeito a uma concepção cristã de
solidariedade e não exatamente de desenvolvimento que move as práticas em territórios
estrangeiros.
Depois de uma incursão nos processos históricos que promoveram arranjos bem
estabelecidos e aceitos sobre uma idéia de cooperação técnica em política internacional e
da apresentação das instituições que estão envolvidas, nós nos propomos, nesta segunda
parte, a voltar o foco para as práticas efetivamente observáveis em contextos muito
restritos e elitizados e que envolvem representantes de diferentes governos naquilo que se
define por cooperação técnica internacional.

192
Parte III. Modos de intervenção da GTZ

How and why did people come to develop collective, nation-wide and
compulsory arrangements to cope with deficiencies and adversities
that appeared to affect them separately and to call for individual
remedies?323

Em primeira instância, recorrer a este conjunto de situações que observamos


refletiu o interesse em buscar os princípios de produção de uma ordem observada e
construir a teoria da prática, do modo de engendramento das práticas, ou melhor, como
argumenta Bourdieu, ir do opus operatum ao modus operandi.324 Visa contribuir para o
que Bourdieu aponta como a necessidade de abandonar todas a teorias que tomam
explícita ou implicitamente a prática como uma reação mecânica, diretamente
determinada pelas condições antecedentes e inteiramente redutível ao funcionamento
mecânico de esquemas preestabelecidos, modelos, normas ou papéis, como o são as
configurações fortuitas dos estímulos capazes de desencadeá-los.325
Alem disso, observar tais práticas implica analisar as estruturas constitutivas deste
meio, as quais produzem sistemas de disposições como princípio gerador e estruturador
dessas mesmas práticas e das representações que podem ser objetivamente reguladas e
regulares, e não como produto de um regente.
Segundo Ortiz, para Bourdieu, o campo se particulariza como um espaço onde se
manifestam relações de poder, o que implica afirmar que ele se estrutura a partir da
distribuição desigual de um quantum social que determina a posição que um agente
específico desempenha em seu seio. A este quantum Bourdieu denomina de “capital
social”.

323
Swaan, Abram. In care of the State – health care, education and welfare in Europe and the USA
in the modern era. New York: Oxford University Press, 1988. p.2.
324
Bourdieu, P. “Esboço de uma Teoria da Prática.”. In: Ortiz, R. (org.). Pierre Bourdieu.
Sociologia. São Paulo: Ática, 1983. p.60.
325
Bourdieu, P., idem, p.64.

193
Como argumenta Ortiz, Bourdieu denomina “campo” este espaço onde as
posições dos agentes encontram-se a priori fixadas. O campo se define como lócus onde
se trava uma luta concorrente entre os atores em função de interesses específicos que
caracterizam a área em questão. Para ele, o autor resolve desta forma o problema da
adequação entre ação subjetiva e objetividade da sociedade, uma vez que todo ator age no
interior de um campo socialmente predeterminado. 326
Assim, está implícita no conceito de campo e das práticas sociais apresentado por
Bourdieu a noção de poder.
Refletir sobre Estado e poder envolve uma série de cuidados, como nos previne
Foucault. Para ele, é preciso desvencilhar-se do modelo de Leviatã, para além da
soberania jurídica e de uma visão meramente institucionalista do Estado, o que envolve
uma nova metodologia de pesquisa e análise das técnicas e táticas de poder, além de
estratégias de luta. Ele afirma que poder só existe em ato. Sugere que se analise o poder
não no nível da intenção ou da decisão, mas em suas práticas reais e efetivas, nos
processos sociais que constituem relações de poder, abarcando suas formas e instituições,
nas técnicas e nos instrumentos de intervenção, para além das normas. Para ele, ainda, o
poder deve ser analisado como algo que circula e só funciona em cadeia, e não apossado
como coisa: “poder é algo que se exerce, que circula, que forma rede”.327
Ao levarmos tal afirmação a sério, buscamos nesta parte analisar as formas através
das quais a cooperação técnica efetivamente se institui – práticas consideradas como
procedimentos administrativos normais, usuais e, portanto, descaracterizados de aspectos
de poder. Na medida em que o Ministério de Cooperação e Desenvolvimento Econômico
- BMZ é uma instância política mas não de execução, as práticas devem ser observadas a
partir das instituições às quais o BMZ delega as funções executivas das políticas de
cooperação. Como nosso interesse recai sobre as práticas de cooperação técnica, voltamo-
nos para a GTZ, com a proposta de analisar a organização enquanto produtora e
transmissora de determinado tipo de conhecimentos – o de administração em territórios
estrangeiros.

326
Ortiz, R. ”Introdução”. In: Ortiz, R. (org.), ibidem, p.19.
327
Foucault, Michel. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo:
Martins Fontes, 1999. p.32-40.

194
O campo de atuação da GTZ é um “espaço de fronteiras nacionais”; por ser uma
instituição internacional, envolve atores de diferentes nacionalidades, além de indivíduos
em diversas posições, como funcionários técnicos, peritos ou diretores, além de
brasileiros com os quais as agências estabelecem vínculos através dos projetos.328 Por ser
um espaço de múltiplos sentidos, visões e nacionalidades, é também o de reconfiguração
de representações a partir do contato. A essas representações são conferidos valores
distintos e hierarquicamente estabelecidos.
Diante das múltiplas dimensões da atuação da agência GTZ no Brasil, a proposta
desta parte refere-se aos modos de intervenção tanto por meio das relações informais
entre funcionários e consultores no escritório e com outros indivíduos de organizações
nacionais, como no que se refere aos critérios formais – hierarquias, regras e normas de
funcionamento, divisão das atividades, critérios de contratação e plano de carreira.
As formas de administração em territórios estrangeiros adotadas pelas agências
internacionais de cooperação técnica, pelas quais se produz e se dissemina um
determinado tipo de conhecimento são, principalmente: programas ou projetos
desenvolvidos junto com órgãos de governo local; a estrutura administrativa daquela
instituição, um escritório “filial” no qual a agência centraliza as atividades
administrativas das várias instâncias de atuação no país; ou ainda os eventos e os grandes
encontros (comemorações, seminários, oficinas, entre outros), considerados aqui rituais
das agências e dos organismos internacionais, organizados em parceria com a área
diplomática local.
O desconhecimento sobre um “modo de fazer” projetos sociais e ambientais e um
conjunto de conhecimentos administrativos e de planejamento passados por uma atuação
continuada e com propósitos multiplicadores de disseminação é, provavelmente, uma
característica também em outros locais onde são implementados pela Alemanha os
projetos de cooperação para o desenvolvimento. Este é o desafio do presente trabalho.
Uma vez explorados os aspectos formais que definem as relações entre os países
com acordos de cooperação internacional, nos próximos capítulos buscaremos abordar a
cooperação técnica na prática, a partir de três frentes de atuação da GTZ como agência

328
Wright, Susan. “Culture in anthropology and organizational studies”. In: Wright, Susan (org.).
Anthropology of Organizations, London: Sage Publications, 1994. p.19.

195
governamental de cooperação técnica: primeiro observaremos um projeto enquanto
construção social, produto por definição da cooperação técnica e lugar do
disciplinamento, da “educação”, do “treinamento”, de valores, de comportamentos, de
uma concepção de vida social; em seguida, analisaremos o local de produção, reprodução
e disseminação de comportamentos, o escritório “no estrangeiro”, lugar da exaltação do
nacional alemão, um dos pontos de estabelecimento de fronteiras claras entre o que se
define e se institui como autenticamente “alemão” e os outros; por fim, seus rituais de
produção de imagens e de difusão de conceitos.

196
Capítulo 5. A GTZ no Brasil e a produção de saberes administrativos no
exterior329

Neste capítulo, abordaremos dois aspectos formais da atuação da GTZ no Brasil.


A observação participante no escritório da GTZ das práticas de seus funcionários em
tarefas cotidianas, das regras a serem seguidas, das hierarquias funcionais e também
sociais permitiu dar visibilidade ao trabalho do governo alemão no campo da
solidariedade e da cooperação internacional a partir de um levantamento etnográfico
muito pontual. As trajetórias particulares da GTZ na política da cooperação técnica em
países como o Brasil devem ser compreendidas como parte de estratégias do BMZ para
as organizações alemãs, sendo ela a que tem o maior peso político de representação do
ministério no exterior.330
O propósito aqui não é o de retratar a GTZ enquanto um “ente” dotado de
intenções ou decisões, mas de enfatizar as manipulações, pelos agentes envolvidos, na
prática de certas normas, que acabam por constituir e dar sentido à “organização” GTZ
enquanto agência estatal de cooperação técnica alemã. Não queremos sequer denunciar
ou constatar obviedade, mas descrever maneiras de agir que por vezes contradizem as
próprias normas pelas quais se pautam.
A observação participante no escritório da GTZ foi um dos eixos centrais a partir
dos quais desenvolvi esta tese. Dediquei grande parte dos esforços de pesquisa em
traduzir como funcionava esta instituição, o que me permitiu ver, de diferentes lugares,
como a GTZ se apresentava e como era vista.
Se por mais de quarenta anos a GTZ tem atuado em projetos em áreas sociais e
junto a instituições governamentais no Brasil, e pouco ou quase nada há em termos de
análises independentes sobre as implicações de seu trabalho sobre políticas e populações,
a sua relativa invisibilidade, que se não pode ser qualificada, por vezes, como intencional,
329
No presente trabalho, optei por mudar os nomes dos funcionários da GTZ como maneira de
preservar suas identidades pessoais, ainda que sejam facilmente identificáveis para quem conhece a
instituição ou os projetos em que a GTZ está envolvida.
330
A ressalva aqui é importante: o que chamamos de “aparato” governamental não se restringe
necessariamente à esfera de “governo” ou “Estatal” no sentido estrito. Neste caso, isto de fato não ocorre,
pois inclui também instituições não-governamentais. O uso do termo “governamental” refere-se mais à
idéia da existência de um “governo”, de uma esfera pública de decisão que se orienta, no mundo, para
atividades chamadas de cooperação internacional.

197
serve em outras como estratégia de ação que tem funcionado plenamente no Brasil.
Apesar de haver nas formas de atuação da GTZ pelo mundo um propósito de dar
visibilidade ao trabalho do governo alemão no campo da solidariedade e da cooperação
internacional – com a organização de eventos, a promoção de festas e encontros, as
publicações e, principalmente, a contratação de pessoal especializado para trabalhar nos
projetos em diversos países – o fato é que no Brasil, de onde observei o campo de atuação
da GTZ, a impressão que se tem é de haver uma névoa que embaça a visão das múltiplas
conexões existentes entre os vários projetos e programas desenvolvidos.

A identidade desconhecida da GTZ

A identidade institucional da GTZ, tendo em perspectiva um dos países onde atua


e não a Alemanha, parece gerar confusões pelas múltiplas atribuições que a ela se faz,
tanto por parte da mídia, como de funcionários de órgãos governamentais e não-
governamentais que com ela se relacionam por meio dos projetos. Como nos reporta um
ex-funcionário da GTZ:331 “Eu acho que em nível regional, em nível de projetos, a gente
deve cooperar [da forma] mais abrangente possível, porque muitas vezes a GTZ era vista
na cooperação só como financiador de algum projeto (grifos meus).
Em fragmentos selecionados de vários artigos de jornais publicados no Brasil em
que aparecem referências à GTZ, é visível o desconhecimento de quais são as suas
atribuições e os seus limites. O tom alarmista está presente, de modo geral, nos veículos
de comunicação:

O Senador Mozarildo Cavalcanti (PPS-RR) vai propor no Senado uma devassa


sobre o uso de financiamento de organismos internacionais, como a Agência de
Cooperação Alemã (GTZ), destinados a ações sociais e de demarcação de terras
indígenas no país.332

Neste caso, no próprio título do artigo nota-se a referência à GTZ como um


investidor alemão, atribuindo-lhe uma definição indevida de banco internacional de

331
Entrevista concedida em Belo Horizonte, em 08/01/2007..
332
Araújo, Chico. “Funai sofre ingerência de investidor alemão”, Jornal de Brasília, 07/03/2004,
p.7.

198
investimentos. Além do equívoco, esta atribuição à GTZ de papel de organismo
financeiro favorece a construção da sua imagem negativa por alguns grupos no Brasil que
a associam a instituições capitalistas e exploradoras de recursos naturais da floresta.
Associam-na também ao perfil já desgastado do Banco Mundial enquanto organismo
multilateral de financiamento com experiência na área ambiental, sendo seus projetos
muito criticados por falta de transparência e de participação da sociedade civil.
Em outra reportagem, notamos mais uma vez a confusão de associar o
financiamento do processo de demarcação Waiãpi à GTZ, quando na verdade o
financiamento refere-se a atribuições da chamada “agência alemã de cooperação
financeira”, ou banco alemão de desenvolvimento, o KfW:333

A Alemanha, através da GTZ – Sociedade de Cooperação Técnica, empregou um


milhão e meio de marcos na demarcação da área. Este financiamento faz parte de
um acordo internacional entre o Grupo dos sete países mais ricos e o Brasil para
execução do Programa Piloto de Proteção das Florestas Tropicais.

Os recursos empregados na demarcação da terra indígena Waiãpi foram


disponibilizados pelo governo alemão através do banco KfW, e o acompanhamento
“técnico” do processo foi feito pela GTZ, sendo neste caso, como em todos os outros
projetos do PPG-7, recursos de doação e não de financiamento, estes últimos incorrendo
no pagamento de encargos financeiros e juros. No entanto, tais esclarecimentos não são
feitos nas reportagens de jornais ou mesmo em alguns trabalhos acadêmicos, nos quais
também encontramos referências à GTZ como instituição financiadora de projetos e
programas:
A Sociedade Alemã de Cooperação, GTZ, financiadora do projeto de demarcação
Waiãpi, por exemplo, estimulou a criação de uma organização que representasse
“os Waiãpi” como um todo e com a qual poderia negociar diretamente enquanto
“representante da comunidade indígena”. 334

Nesta afirmação, vimos que a GTZ não tem um papel stricto sensu de
financiadora, mas sim um papel político ativo de negociação direta com os grupos locais,
333
Cavalcanti, Alcinéia. “Índios do Amapá demarcam suas terras”, Folha do Meio Ambiente,
Brasília, maio de 1996, p.15.
334
Tinoco, Silvia. “Joviña, cacique ou presidente? Uma aproximação ao Conselho das Aldeias
Waiãpi”. In: Arquivos do Museu Nacional. Rio de Janeiro: Museu Nacional, vol. 61(2), p.81-87,
abril/junho de 2003.

199
no caso, os Waiãpi, o que bem reflete aquela que se define em sua função oficial como
agência de cooperação técnica do governo alemão.
Deutsche Gesellschaft für Technische Zusammenarbeit traduz-se no Brasil por
Sociedade Alemã de Cooperação Técnica, mais recentemente denominada de Agência de
Cooperação Técnica Alemã. A GTZ não é uma ONG nem financia projetos, mas define-
se em termos legais como pessoa jurídica na forma de uma sociedade de responsabilidade
limitada (em alemão a sigla para sociedade limitada, Ltda., é GmbH), uma empresa
pública de direitos privados cujo único sócio é o governo federal da Alemanha. Pelas
atribuições a ela delegadas por este governo, presta serviços de cooperação técnica em
projetos públicos, além de outros particulares visando ao lucro. Muitas podem ser as
indefinições ou definições da GTZ quanto ao seu aspecto público ou privado, no entanto,
quanto à sua orientação global, não restam dúvidas de que o apoio a projetos públicos
seja o elemento central de sua função do ponto de vista do governo alemão. Temos,
então, uma instituição de identidade múltipla.
A GTZ foi criada em 1975 com a fusão de duas instituições, a Corporação Alemã
para Assistência Técnica a Países em Desenvolvimento (German Corporation for
Technical Assistance to Developing Countries) - GAWI e a Agência Federal para Ajuda
ao Desenvolvimento (Federal Agency for Development Aid) – BfE, cujas atribuições
quanto à assistência e ajuda ao desenvolvimento já estavam definidas e postas em
prática, sendo diretamente transferidas à nova organização criada.335
Como foi dito, o ponto central que caracteriza a GTZ como agência pública é a
sua atuação em setores de governo através de programas, mantendo-se legalmente, no
entanto, como uma organização de direito privado, uma empresa de grande porte que
vende serviços de administração, planejamento e execução de projetos para o governo
alemão e para governos de Estados estrangeiros, além de atuar também junto a
organismos internacionais e no setor privado.
Por meio de um contrato geral de execução dos projetos de cooperação técnica, o
BMZ, seu principal cliente, transferiu-lhe a atribuição dos serviços de cooperação técnica
para o desenvolvimento em todo o mundo, utilizando recursos do orçamento federal. Este
acordo geral constitui a base para a sua atuação como agência específica de um setor da

335
Embaixada da Alemanha, opus cit., p.12.

200
administração pública responsável pela cooperação para o desenvolvimento, uma política
conexa à política externa do governo alemão, e para a sua remuneração pelo BMZ, de
acordo com as disposições do direito aplicável às ordens públicas.336 Alguns relacionam
os objetivos de política externa ao papel desempenhado pelas instituições do BMZ, como
a GTZ, como se elas favorecessem, na execução da política de cooperação para o
desenvolvimento, os objetivos da política externa alemã. Sobre isto, diz um antigo
funcionário da GTZ: “Sempre foi falado: a cooperação técnica da Alemanha não tem
nada a ver com a política externa da Alemanha, não. Teoricamente. Porque se realmente
na prática isso fosse aplicado, então a GTZ teria projetos em Cuba. E não tem”.
A GTZ não possui um CNPJ que possa utilizar para contratação de serviços,
compra de equipamentos ou contratação de pessoal nos serviços que presta, atuando
conexa à embaixada da Alemanha, que é a instância jurídica representativa da GTZ no
Brasil, e cria, juntamente com o escritório do KfW, um quadro institucional
representativo dos interesses do BMZ neste país, na medida em que são estas as
instituições diretamente responsáveis pela execução da política deste ministério no
exterior.
O vínculo da GTZ ao CNPJ da embaixada da Alemanha não é temporário, ou
resultado de uma fragilidade institucional da GTZ no Brasil, mas uma característica da
constituição da estrutura organizacional da política de cooperação para o
desenvolvimento da Alemanha. O fato de a GTZ não ter no Brasil um CNPJ é, em alguns
casos, motivo de consternação. Os recibos apresentados por prestação de serviços ou por
ocasião da contratação de serviços locais não têm CNPJ e algumas empresas no Brasil
criam embaraços em função das normas brasileiras referentes à prestação de contas e ao
pagamento de impostos por empresas privadas de serviços. A autonomia jurídica da GTZ
em relação à embaixada tem sido discutida na sede da agência no Brasil, o que exigiria o
registro de um CNPJ independente; no entanto, esta não foi, até o término de minha
pesquisa, uma prioridade.337

336
GTZ, Compêndio do vocabulário da GTZ, opus cit., p.90-91.
337
Soube por um funcionário da GTZ que há uma demanda para que se regularize a situação do
CNPJ da empresa, mas afirmou que muitas vezes ele tem que interromper esse trabalho para atender a
outras solicitações da diretoria, que “não está interessada em mexer nisso”.

201
A GTZ não se configura, portanto, como uma estatal, mas seu caráter público se
deve ao fato de ser propriedade da República Federal da Alemanha e de atender às
demandas do governo federal prestando serviços de “utilidade pública”, estando isenta no
Brasil de IRPJ e de outras tributações, com exceção da aplicação de taxa reduzida de
imposto ICMS. Não é permitida a distribuição de lucros em seu contrato social e afirma-
se que os recursos obtidos com lucro em serviços prestados a terceiros, ou seja, outras
instituições que não o BMZ, são revertidos para os projetos de cooperação técnica
executados.
Paralelamente aos serviços que presta ao BMZ, a GTZ dá consultoria privada para
empresas ou órgãos públicos, serviços que são cobrados, o que é chamado de atividades
“contra pagamento”, concorrendo com outras empresas no mercado internacional de
consultorias técnicas privadas na área de planejamento e execução de projetos
ambientais, agrícolas, sociais, de saneamento, de planejamento urbano, de organização
institucional, entre outros.
Tanto em serviços públicos como em consultorias remuneradas é exigido o
consentimento prévio do BMZ, como no caso dos contratos com o governo federal
diretamente estabelecidos com este ministério. As chamadas medidas autofinanciadas são
atividades de pequeno porte, executadas com recursos advindos de lucros reinvestidos, já
que a GTZ não pode distribuir os lucros eventualmente obtidos com suas atividades de
utilidade pública ou não.338
Há uma forte analogia dos termos empregados pela GTZ e o tipo de serviço que
presta stricto sensu a empresas, como o uso de clientes, denominação que pode ser dada a
todos aqueles que contratam os seus serviços.
Outro termo freqüentemente usado pela GTZ é comitentes, para referir-se à
organização executora do projeto no país parceiro, normalmente, órgãos de governo. Do
mesmo modo, uma expressão que vem da área de marketing empresarial é grupo-alvo,
referente ao grupo para o qual se direcionam as ações e as atividades de programas e
projetos.
São, pois, clientes da GTZ governos nacionais e organismos internacionais, como
UE, BM, BID e agências das Nações Unidas. Neste último caso, ela teria um perfil mais

338
GTZ, Compêndio do vocabulário da GTZ, opus cit., p.135.

202
agressivo, concorrendo em licitações nos países, visando ao lucro e à competitividade
internacional. Os contratos são realizados diretamente entre empresas, não passando pelo
BMZ, segundo um de seus representantes no Brasil.339 Nos serviços internacionais, os
consultores enviados têm contratos de curto prazo e não têm imunidade diplomática, o
que se dá na cooperação técnica, na qual os peritos têm passaporte e visto oficial.
Nem sempre a GTZ desenvolve esses serviços internacionais, como foi o caso do
Brasil, em que se tentou implementá-los mas a demanda por tais serviços não foi
suficiente, de acordo com as expectativas da sede da GTZ na Alemanha. Foi estabelecido
um teto mínimo para viabilizar as negociações de projetos, funcionando o escritório em
Brasília, entre 2002 e 2003, como ponto de interlocução, o que não foi possível. Em outra
passagem, esta informação me foi confirmada por um antigo e experiente funcionário da
GTZ que, ao ser consultado pela diretora da agência sobre como alcançar a meta de
implantar os chamados serviços de terceiros no Brasil, disse de forma direta o que
pensava em relação a isso:340

Você não vai conseguir isso nunca, porque não tem tempo, não tem gente e a
GTZ não é credenciada no Brasil como empresa de consultoria. Então jamais vai
concorrer com empresas grandes, Andrade Gutierrez, que tem uma gama de
gente que, quando é uma concorrência internacional, o povo trabalha 24 horas
por dia para conseguir fazer a proposta. Não vou dizer que a GTZ não consegue
fazer isso, mas até que consiga juntar o pessoal para fazer isso, a GTZ vai
demorar e tinha que ter uns quatro, cinco caras bons em Brasília, que ficassem
sempre ligados onde houvesse novos projetos, BM, BID, empresas privadas. Aí
ela falou: “então você acha que eu não vou conseguir nada?” Olha, se você
consegue migalha, pode ficar satisfeita. Dois milhões de dólares. Conseguiu 500
mil dólares em um projeto do ICA no projeto no nordeste. Consultoria é assim,
quando apita você tem que correr, quem chegar primeiro é considerado, não é
como na GTZ, aquele pessoal tranqüilo, de gravata.

339
Entrevista com o vice-diretor do escritório da GTZ no Brasil, em sua sala na sede da GTZ, Brasil,
junho de 2004.
340
Ern entrevista concedida em Belo Horizonte, em 08/01/2007.

203
A estrutura internacional da GTZ

A GTZ opera de forma discreta em relação à sua identidade de agência estatal


alemã, como também quanto ao seu tamanho e capacidade de atuação. O organograma da
GTZ apresenta a estrutura da empresa e os países em que possui escritório.341 São oito
diretorias, assim definidas: Tecnologia de Informação, Comunicação Corporativa,
Auditoria, Desenvolvimento Corporativo, Assuntos Legais/Seguro, Centro para Migração
Internacional e Desenvolvimento (Centrum für Internationale Migration und
Entwicklung) - CIM, AgenZ (Market-oriented concepts) e Avaliação. Além destes, são
sete os departamentos, divididos por região e por temas: Departamento de Países da
África, Depto. de Países da Ásia, Pacífico e América Latina e Caribe, Depto. de Países do
Mediterrâneo, Europa e Ásia Central, Depto. de Planejamento e Desenvolvimento,
Assuntos de Comércio, Depto. Pessoal e Serviços Internacionais. Entre os 67 países que
têm escritórios da GTZ, 29 estão na região da África, a que concentra o maior número de
escritórios, 11 entre os países da Ásia e Pacífico, 14 na América Latina e Caribe, entre os
quais está Brasília, e nove na região do Mediterrâneo, Europa e Ásia Central.
Apesar de uma apresentação discreta nos países onde atua por meio de um
pequeno escritório de representação, quase invisível na verdade, é uma agência estatal
que trabalha como uma grande corporação e emprega atualmente mais de 10 mil
funcionários em 130 países da África, da Ásia, da América Latina e dos países da Europa
Oriental. Nestas regiões, a GTZ possui escritórios próprios de representação em 63
países, como no caso do Brasil, e elabora aproximadamente 2.700 projetos e programas
de desenvolvimento no mundo, nos quais os seus funcionários desempenham as
atividades de coordenação dos programas em andamento.342
Na Alemanha, seu país de origem, a GTZ possui três bases: a sede da GTZ é em
Eschborn, mas tem escritórios também em Bonn, antiga capital, e em Berlim; além
destes, possui um escritório na Bélgica, em Bruxelas, aberto em 1993 para acompanhar o
trabalho junto à Comissão Européia, sendo que mais de 1 mil funcionários trabalham na
sede da Alemanha, em Eschborn.
341
Ver http://www.gtz.de. Acesso em 15/07/2004.
342
GTZ A GTZ no Brasil. Folder, sem data, p.1. Ver Organograma da GTZ em folha anexa a seguir,
sem numeração

204
Cooperação técnica

Como foi colocado anteriormente, o trabalho desenvolvido pela GTZ no Brasil


define-se pela expressão cooperação técnica. De maneira geral, o sentido que é atribuído
ao termo técnico pelas publicações da GTZ343 relaciona-se ao fato de que nas atividades
desenvolvidas são priorizados o desenvolvimento e o aperfeiçoamento das práticas, das
atividades entendidas enquanto procedimentos, métodos, modo de fazer, de executar. O
objetivo das atividades seria o aumento da produtividade nos diferentes setores, da
agricultura e da pecuária à indústria e aos serviços.
Além disso, o termo “técnico”, que qualifica e especifica que tipo de cooperação é
feita, tem também o sentido de aplicação a atividades de ensino de técnicas de
intervenção no plano prático, e não teórico, bem como o de neutralização da aparência de
qualquer ”efeito de poder”. A execução de atividades práticas reforça a priorização
atribuída aos procedimentos, aos modos de fazer, às técnicas, como podemos ver na
menção que se faz ao desenvolvimento de oficinas de capacitação no projeto Pindorama,
em Alagoas: “Além de capacitação para os agricultores, foram construídas inúmeras
oficinas (por exemplo, marcenaria, serralheria), pequenas empresas (por exemplo, fábrica
de saibro) e o centro de formação da cooperativa”.344
Formalmente instituída pelo Acordo Básico de Cooperação Técnica assinado
entre Brasil e Alemanha, a cooperação técnica oferecida por uma agência estrangeira
deve ocorrer por meio de:

envio de instrutores, consultores, peritos, especialistas, assistentes de projetos,


pessoal auxiliar e outros técnicos (técnicos enviados); contratação de técnicos
locais, pessoal administrativo e pessoal auxiliar (contratados locais);
fornecimento de equipamentos (material, bibliografia e veículos automotores);
formação e aperfeiçoamento de técnicos no Brasil, na Alemanha ou em outros
países; contribuições financeiras concedidas em caráter excepcional a órgãos
executores de projetos acordados. 345

343
Embaixada da Alemanha. 40 anos de Cooperação para o Desenvolvimento Brasil-Alemanha,
opus cit.
344
Idem, p.18.
345
“Acordo Básico de Cooperação Técnica entre Brasil e Alemanha”, 1996, Artigo 3º.

205
A atribuição da GTZ para a política de cooperação para o desenvolvimento é, em
síntese, a transferência de know-how.346 Como disse uma ex-perita da GTZ: 347 “Eu acho
que a coisa mais importante nos projetos de cooperação técnica é a transferência de
conhecimento, de técnicas, tecnologias, de conhecimento, não é só dar o equipamento. Se
você não transferir conhecimento, não adianta nada”.
Outro antigo perito alemão, já aposentado, define o termo como “troca de
experiência”: 348 “Nós cooperamos muito bem com eles, sem problema nenhum, sabe, uma
cooperação sadia, troca de experiências, planejamento, planejamento em conjunto”.
As atividades da cooperação técnica para o desenvolvimento são o gerenciamento
na execução de projetos e programas destinados a capacitar os indivíduos e as
organizações por meio de treinamentos de técnicos e quadros executivos locais no Brasil
e no exterior, principalmente na Alemanha. Para isso, promovem o deslocamento de
consultores, peritos e outros profissionais em cargos ditos técnicos, além do fornecimento
de equipamentos e materiais.349
Em alguns outros casos, há menção à atribuição de a GTZ ser a responsável pela
implementação da contribuição alemã, através dos recursos da cooperação financeira
vindos através do KfW, como ocorreu no caso do PPTAL. Neste caso, houve um acordo
formalizado entre governo brasileiro, KfW e GTZ para que esta controlasse o fluxo de
recursos financeiros para a instituição brasileira, de forma que este controle fosse feito
segundo metas e princípios acordados previamente. Isto não nos permite, de forma
nenhuma, afirmar que não tenha sido uma imposição da instituição financeira alemã
como mecanismo de poder e controle das atividades, justificada com o argumento de que
instituições brasileiras não têm competência para gestão de recursos financeiros de
projetos. Para uma experiente perita alemã que atuava em um projeto com populações
indígenas, esta não é uma regra: 350

346
Embaixada da Alemanha no Brasil/Bmz/Gtz. Política de cooperação para o desenvolvimento
Brasil-Alemanha. Folder, sem data, p.11.
347
Em entrevista concedida em São Paulo, em 22/01/2007.
348
Ern entrevista concedida em Belo Horizonte, em 08/01/2007.
349
GTZ. Compêndio do vocabulário da GTZ, opus cit., p.39-43.
350
A perita é doutora em Antropologia, com vasta experiência junto a GTZ, mas com pouco tempo
trabalhando no Brasil. Entrevista em Manaus, em 2 de setembro de 2005.

206
O PPTAL e o PDPI são dois projetos que têm a especificidade de a GTZ assumir
os compromissos da cooperação financeira do KfW. Não acontece assim em
todos os projetos e não acontece assim em todos os países. Normalmente, a GTZ
trabalha sozinha. É complicado que o perito da GTZ controle os recursos do
KfW.

Seu objetivo geral é atuar junto a instituições e pessoas, procurando expandir sua
capacidade de ação no contexto das metas de desenvolvimento. O objetivo específico visa
fortalecer as iniciativas por tempo limitado, até que os beneficiados alcancem uma
situação que lhes permita prescindir do aporte externo.

Enquanto agência de cooperação técnica, a GTZ transmite conhecimentos,


desenvolve capacidades, mobiliza e melhora condições para uso dos países
parceiros, além de fortalecer a iniciativa própria dos grupos-alvo, para que eles
possam melhorar suas condições de vida por esforço próprio.351

Em publicações da própria GTZ, define-se a sua atribuição institucional como:


“Um instrumento de aprendizagem conjunta; apoio a iniciativas inovadoras de
desenvolvimento”.352
De maneira geral, o sentido que é atribuído ao termo técnico pelas publicações da
353
GTZ relaciona-se ao fato de que nas atividades desenvolvidas são priorizados o
desenvolvimento e o aperfeiçoamento das práticas.

Diretrizes e princípios da cooperação técnica alemã

As áreas temáticas centrais que definem o trabalho da cooperação técnica alemã


seguem uma orientação mais ampla estabelecida pelo BMZ, como vimos anteriormente.
Elas se pautam pelos princípios de respeito aos direitos humanos; participação da
população; princípio do Estado de direito; economia social de mercado e orientação do
Estado para o desenvolvimento. São estas orientações, mutáveis a cada redefinição da

351
Embaixada da Alemanha no Brasil/BMZ/GTZ, ibidem.
352
Idem.
353
Embaixada da Alemanha. 40 anos de cooperação para o desenvolvimento Brasil-Alemanha, opus
cit.

207
política alemã diante de situações da política internacional, que se reproduzem para todas
as agências sob a sua institucionalidade.
A maioria dos documentos disponíveis a um público externo no escritório da GTZ
no Brasil é produzida pela própria agência ou pelas equipes dos projetos. São folders
institucionais de apresentação de programas e projetos, livros de divulgação de seus
resultados e de metodologias adotadas nos trabalhos da agência, ensaios e avaliações de
consultores da própria GTZ. Esses documentos promovem a visibilidade e a difusão dos
trabalhos que a agência desenvolve, representando-os com resultados cuidadosamente
construídos como meritórios. Utilizei nessa análise especialmente os documentos oficiais
da BMZ e da GTZ que apresentam formulações e definições sobre cooperação para o
desenvolvimento, e outras expressões usuais no léxico deste campo de políticas para o
mundo em desenvolvimento, como revistas especializadas produzidas pela GTZ e o site
do BMZ, que somente a partir de agosto de 2005 foi atualizado para o inglês, mas ainda
hoje com algumas páginas sem tradução para esta língua.
Não foram encontradas muitas publicações dos projetos desenvolvidos nos anos
60 e 70, sendo mais freqüentes as publicações recentes, dos anos 80 em diante,
especialmente as dos anos 90 até 2005. A área em que há maior concentração de
publicações é a do meio ambiente – urbano e florestal – já que esta se tornou uma
prioridade da atuação da agência no Brasil nesse período.

No contexto deste processo de reestruturação, a GTZ, como empresa que atua em


nível internacional, atribui grande importância à compreensão comum e à
utilização unívoca da linguagem. Por um lado, esta linguagem constitui a base e,
ao mesmo tempo, também é a expressão de uma cultura empresarial comum e,
por outro lado, ela é o instrumento do nosso trabalho. Neste sentido, o
Compêndio do vocabulário da GTZ deverá contribuir para a orientação dos
colaboradores e a facilitação da comunicação entre estes e os nossos parceiros.354

Com o objetivo de estabelecer uma linguagem administrativa comum entre os


funcionários da GTZ, ao se considerar que sua área de atuação tem abrangência global,
facilitando a comunicação entre os funcionários e a central e orientando-os, assim como
os “parceiros”, foi produzido o Compêndio do vocabulário da GTZ, publicação que serve
como manual de consulta aos funcionários e é um dos documentos centrais para a análise

354
Donner, Franziska. “Apresentação”. In: GTZ Compêndio do vocabulário da GTZ, opus cit., p.3.

208
dos conceitos que balizam a cooperação técnica alemã, de grande relevância para uso
interno nos escritórios da GTZ em todos os países onde atua. O Compêndio foi publicado
na Alemanha, em Eschborn, em 1997, para divulgar o trabalho da GTZ.

Fonte: GTZ. Compêndio do vocabulário


da GTZ, opus cit..

Em função da maior atribuição de responsabilidade aos escritórios locais, foi


exigida uma padronização da linguagem, no sentido de termos, verbetes, conceitos
usados, considerada fundamental para a consolidação de uma cultura empresarial. Esta é
uma chave para entendermos a lógica administrativa de uma organização que gerencia
globalmente, e de consolidar práticas e valores comuns. Como argumenta Wright, uma
das formas de se abordar cultura nos estudos de organizações é aquela que se refere aos
valores e às práticas organizacionais formais que são impostas pela administração – a
cultura da empresa – uma espécie de elemento aglutinador que faria com que o quadro de
funcionários respondesse às mudanças internacionais como um conjunto. Uma “cultura
da organização” bem estruturada é considerada uma condição de sucesso no setor
privado, sendo atualmente adotada também em órgãos governamentais e ONGs.355
Segundo relatos da própria ABC e de pessoas envolvidas nos projetos em que há
cooperação técnica alemã, as metodologias participativas são um mérito da cooperação
alemã e vêm sendo aplicadas nas equipes de órgãos de governo e nas populações com as

355
Wright, Susan. “Culture in anthropology and organizational studies”. In: ______. (org.).
Anthropology of Organizations, opus cit., p.2-3.

209
quais se trabalha, os chamados grupos-alvo. A participação seria a marca da cooperação
alemã em face das outras, o que seria uma forma de se diferenciar quanto à qualidade do
trabalho e de se posicionar em situação hierarquicamente superior no quadro das agências
de desenvolvimento. A cooperação alemã é representada a partir de seu caráter
essencialmente participativo, sendo atribuído aos alemães o desenvolvimento de uma
metodologia com esse perfil: o Planejamento de Projetos Orientado por Objetivos (Ziel
Orientierten Projekt Planung) - ZOPP.356
A discussão sobre planejamento levou a GTZ a desenvolver, em 1970, uma
metodologia de planejamento e gerenciamento de projetos orientada por objetivos
baseado em “logical framework approach”357, uma ferramenta utilizada pela maior parte
dos organismos que atuam na cooperação para o desenvolvimento, que tem por finalidade
básica enquadrar toda a estrutura de um projeto em uma matriz lógica, o que em si
obscurece toda a face de negociação, conflito e conciliação permanentes em qualquer
atividade social.

Fonte: Embaixada da Alemanha. 40 anos de cooperação para o desenvolvimento Brasil-Alemanha, opus


cit., p.82.

O ZOPP é aplicado por meio de cursos ou oficinas junto a integrantes de um


mesmo projeto, de uma equipe de trabalho, de uma repartição, de uma mesma área ou de

356
O método ZOPP deve ser compreendido como estrutura básica de planejamento da GTZ. Muitos
de seus peritos argumentaram que os guias de orientação ZOPP foram publicados há quase 10 anos e que a
própria metodologia já não corresponde mais à atualidade. Mais recentemente, utiliza-se o termo ZOPP em
um sentido mais amplo, isto é, ele já não se limita mais à mera descrição de uma determinada seqüência de
operações prescritas.
357
GTZ/DSE. Programa de Métodos e Técnicas de Gerenciamento de Projetos – 1993, p. 2.

210
áreas afins em uma empresa, órgão de governo ou comunidade de pessoas. A proposta do
ZOPP é fazer com que os participantes até mesmo os mais tímidos ou críticos,
participem e se expressem, utilizando cartões nos quais escrevem suas opiniões. Adota-se
o método Metaplan, em que se colocam em um grande painel fichas referentes aos
objetivos e às metas que se pretende alcançar com o planejamento, um dos métodos de
“dinâmicas de grupo”que tem origem franco-alemã e que adota instrumentos de
visualização, de trabalho e de moderação de grupos. Para estimular a comunicação e a
visualização de “problemas”, usam-se fichas nos quais os participantes escrevem o que
pensam sobre os problemas e as soluções, as quais serão colocadas em exposição em
quadros e painéis para que todos os participantes vejam Um moderador, profissionais de
consultoria independente que prestam serviço à GTZ, coordenam a dinâmica de grupo
para que dali saia um planejamento orientado por objetivos, em síntese, o ZOPP.358
Através do ZOPP, mas não somente, a GTZ é identificada com os princípios da
participação. É considerado um instrumento para planejamento participativo, na medida
em que se orienta para as necessidades dos parceiros e permite a exposição de suas
opiniões e contribuições de forma clara.
Há muitas críticas no Brasil à metodologia de participação aplicada em oficinas e
seminários com as fichas e painéis por serem muito indutivos e sistemáticos diante da
informalidade do Brasil. Alguns dizem que “serve pros alemães”.
Muitas críticas vindas não só do Brasil, referentes à eficácia dos modelos até
então adotados pela cooperação bilateral e à falta de flexibilidade de gerenciamento dos
projetos da GTZ levou ao desenvolvimento, a partir de 2003, de um outro formato de
projetos, uma nova metodologia, chamada AURA, em que os procedimentos orientam-se
para impactos, mudanças de estado resultantes de uma intervenção intencional, o que visa
garantir maior flexibilidade em relação aos resultados e assim maior sucesso com os
projetos desenvolvidos.359.

358
Franziska Donner “Questões Fundamentais do Desenvolvimento Empresarial”, em: GTZ. ZOPP
Planejamento de Projetos Orientado por Objetivos: Um Guia de Orientação para o Planejamento de
Projetos Novos e em Andamento, Eschborn, Frankfurt am Main: GTZ, 1998.
359
Diante de uma maior complexidade dos projetos de cooperação internacional, entende-se que os
modelos lineares de inovação (pesquisa-disseminação-aplicação) simplificam demais os processos de
inovação, que passam a ser entendidos a partir do conceito de “redes de inovação”, resultantes de processos
de interação social.

211
Além das metodologias referentes a planejamento de projetos, há também aquelas
de desenvolvimento participativo, criadas em função do reconhecimento da importância
da participação dos grupos-alvo (beneficiários) nos processos de implementação dos
projetos no campo para que se obtenha resultados eficazes e duradouros. Afirma-se que
as contribuições externas devem impulsionar e estimular as iniciativas locais e nunca
substituí-las. Algumas metodologias citadas pela GTZ são: Diagnóstico Rural
Participativo (DRP), e suas variações (diagnóstico Urbano Participativo, Diagnóstico
Organizacional Participativo), Diagnóstico Rural Rápido (DRR), entre outros.360
Tais esforços, no entanto, não foram suficientes para que a GTZ obtivesse
resultados positivos em desenvolvimento rural. No entanto, um argumento que
fundamenta a lógica do contínuo investimento das agências internacionais de cooperação
técnica seria o fato de que os projetos de cooperação técnica para o desenvolvimento são
experiências “de laboratório”, onde as inovações são testadas em “projetos-piloto” nos
chamados países em desenvolvimento. A partir de avaliações de resultados e de impactos,
as agências disseminam experiências e implementam as metodologias e princípios de
ação em outras regiões e realizam estudos comparativos. As práticas e discursos
garantem a essas agências o know-how, o conhecimento que é instrumento de poder e
capacidade de inserção em projetos de cooperação técnica no mundo todo.
Se o foco deste trabalho não se define por uma abordagem geral das categorias
usadas pelas agências alemãs no mundo, estas nos interessam, no entanto, na medida em
que possam contribuir para a compreensão daqueles conceitos que são particularmente
usados para balizar as intervenções e os projetos de cooperação com o Brasil. Assim,
entre esses temas gerais, o governo alemão estabelece alguns particulares para o caso
brasileiro. Isto se dá não só porque o Brasil venha a representar no futuro um lugar de
intervenção nas relações internacionais como a principal reserva de biodiversidade,
recursos hídricos e minerais do planeta, mas também pelo que historicamente vem se
construindo nas relações diplomáticas, comerciais e científicas com a Alemanha e outros
países.
Na sua fase inicial (anos 60-70), a cooperação técnica alemã transmitia
tecnologias e experiências de pequenos produtores alemães para produtores em países

360
Idem, p.293-294.

212
africanos e asiáticos, principalmente como apoio a empresas rurais e visando à utilização
de máquinas.361 A preocupação com a participação das populações (beneficiários dos
projetos) no desenvolvimento já apareceria em 1982, baseada em duas décadas de
experiência em projetos de desenvolvimento agrícola e rural nessas regiões, promovendo-
se assim a noção de desenvolvimento rural regional, em que estariam presentes a
participação, a integração e a sustentabilidade e a flexibilização dos procedimentos de
cooperação. No relato de um perito alemão que acompanhou os projetos da GTZ no
Brasil desde os anos 70, a sua percepção sobre a forma de atuação da GTZ aponta
mudanças em relação à maior participação da população local em atividades dos projetos,
devido em grande parte às críticas dos próprios grupos locais:362

O povo falava: “Bem, vocês fizeram aqui, com apoio do governo, dentro da
estação funciona, mas no nosso campo, funciona?” Então, a GTZ e o BMZ
saíam. Isso foi nos primeiros 20 anos da cooperação. Depois eles chegaram à
conclusão que não dá. Tanto que o primeiro projeto em que trabalhei no Brasil já
era de “Ownfarmer Research”. Você já fazia experimentação em nível da
propriedade rural, saía da estação experimental. Porque o agricultor quer ver o
que você faz, ele quer presenciar. Porque se você faz na estação experimental,
eles dizem: “Não, porque vocês têm alguém que espanta os passarinhos, tem
alguém que espanta os ratos. Tem dinheiro para aplicar fungicidas e herbicidas e
inseticidas”. Então, ele não acredita muito. Agora, se você faz na propriedade
dele, faz dias de campo pra mostrar: isso aqui é arroz irrigado, isso tá dando 5
mil kg, 10-12 mil. Ele acredita mais. [...] A cooperação chegou a evoluir para
mostrar, pra trabalhar junto e não para trabalhar só com uma elite e depois tentar
passar para os, vamos supor, usuários (grifos meus).

Dessa forma, a participação pode ser considerada, de maneira essencial, um


instrumento para atingir a eficácia dos resultados e alcançar os objetivos de um projeto.
Mais recentemente, a noção de participação dos beneficiários de um projeto (ou grupo-
alvo) tem sido adotada para todas as etapas do ciclo do projeto, e deve fomentar
iniciativas já existentes. Participação é, portanto, um fator de apropriação do projeto e de
maior probabilidade da sua sustentabilidade após a interrupção dos fluxos de cooperação
para o desenvolvimento.

361
GTZ-BMZ. Desenvolvimento rural regional: princípios de orientação. Sonderpublikation der
GTZ, nº 193. Eschborn: BMZ, 1987, p.10. A publicação apresenta como documento de referência a
Resolução Comum dos grupos parlamentares, datada de 05/03/1982, sobre o 4o. Relatório de Política de
Desenvolvimento do governo alemão.
362
Entrevista concedida em janeiro de 2007, em Belo Horizonte.

213
Mas se a participação é um termo central no vocabulário da GTZ e uma noção
operacional central, como podemos avaliar a sua atuação no Brasil?

A visão sobre a GTZ no Brasil

No Brasil, encontram-se registros de projetos desenvolvidos antes mesmo da


assinatura do “Acordo Básico de Cooperação Técnica entre Brasil e Alemanha”, de 1963,
que estabeleceu as bases fundamentais desta relação. Entre eles, foram destacados em
publicação que celebrava a memória da cooperação para o desenvolvimento com o Brasil
alguns projetos, talvez exemplares: os de cooperação técnica com a Escola Técnica de
São Bernardo do Campo, SP, em 1961; o da Cooperativa de Assentamento e Colonização
Pindorama, 1962, em Alagoas; o de formação do Grupo de Trabalho Cartográfico, com a
Sudene, 1962, em Pernambuco; o da Missão Hidrogeológica e projetos associados, 1962,
também em Pernambuco. A maioria dos projetos é dos nos anos 60, entre 1964-1969, e
são relacionados à agricultura – organização de associação agrícola, implantação de
estação experimental para a agricultura, desenvolvimento de técnicas agrícolas, entre
outros, todos em estados do sul do país.363

Fonte: GTZ A GTZ no Brasil. Folder, sem data.

363
Embaixada da Alemanha. 40 anos de cooperação para o desenvolvimento Brasil-Alemanha, opus cit.,
p.161.

214
No livro publicado nas comemorações dos 40 anos de cooperação, que conta a
versão oficial alemã desta história, a referência aos projetos é narrada de forma
romantizada, em capítulos que abrangem uma década cada um. Em relação à década de
60, o livro menciona que:364

o início da cooperação se deu antes da assinatura do acordo básico, no final do


ano de 1963, e se caracterizou pela concentração das forças no acompanhamento
e apoio à agricultura. Concentrou-se no sul do Brasil, onde as condições eram
semelhantes às condições na Europa Central. Além disso, a cooperação alemã
encontrou no sul parceiros brasileiros cujos antepassados emigraram da Europa
Central para o Brasil.

Nota-se nesta passagem que projetos para o desenvolvimento voltados para


melhorias técnicas na agricultura foram uma prioridade nos anos 60, o que seria
progressivamente reduzido no caso brasileiro.365 O fato de haver descendentes de alemães
no sul do Brasil parece não ter sido um critério determinante para o direcionamento de
projetos para a região Sul do país, mas pode ser considerado um “facilitador”, na medida
em que havia uma afinidade cultural que contribuía para alimentar as expectativas de que
os projetos fossem bem executados. No entanto, não foi mencionada a existência de
descendentes de alemães no sul do Brasil. Quando perguntei a um antigo perito da GTZ
se havia, nessa fase inicial, alguma relação entre os projetos para esta região e a maior
concentração ali de alemães, registramos, a princípio, a sua negativa e, depois, a
confirmação de haver certo direcionamento para este grupo. Enfatizou, todavia, que era
um processo soberano, “baseado na solicitação brasileira”, recorrendo aos argumentos
institucionais de praxe utilizados por aqueles que trabalham nesta área em agências
brasileiras ou alemãs, como podemos atestar:

Nunca a GTZ fez isso, muito menos as igrejas. Porque poderíamos falar assim:
“no sul do Brasil tem mais alemães, vamos ajudar eles lá”. Isso não, a GTZ não
fez isso não, quer dizer, não a GTZ, o BMZ. Mas não foi assim, não. Era uma
coisa bem soberana. Porque isso tem que falar. Lógico, dentro dos projetos,
quando se podia atender a esses grupos, sim. Nós tínhamos um projeto lá que era

364
Idem, p.21
365
Na África e na Ásia, onde há uma enorme carência no que se refere à questão alimentar e a
produtividade agrícola ainda é baixa, projetos orientados para a agricultura ainda mobilizam muitos
recursos financeiros e profissionais.

215
de intercâmbio, até hoje funciona: são jovens brasileiros de origem alemã que se
profissionalizam na Alemanha, ficam lá um ano e voltam pra cá. O governo da
Alemanha custeia. Mas isso era um projetinho. Você tinha projetos nas áreas
mais diversas, em todas as áreas tecnológicas, você tinha uns 70 projetos: área de
normas, de pesquisa científica, de universidade, agricultura, geologia,
alimentação. Então, tinha de tudo e tudo logicamente baseado na solicitação
brasileira (grifos meus).

Cooperação menos técnica?

Nos primeiros anos de implementação no Brasil da política de cooperação técnica


alemã para o desenvolvimento, era priorizada a transmissão de técnicas, métodos,
metodologias, para o que se contratavam profissionais de formação em áreas técnicas
específicas. Havia diretrizes do BMZ para implementar “fazendas experimentais”, que
eram espaços fechados e tratados para que tudo no projeto funcionasse, mas esse método
não foi muito para a frente, porque as pessoas questionavam se fora das fazendas
experimentais também funcionaria.
Segundo ex-funcionários da GTZ, até os anos 90, a ABC considerava a
cooperação alemã quase que exemplar, bastante eficiente, séria e transparente, porque nas
reuniões eram apresentadas tabelas e material estatístico que mostravam os resultados dos
projetos.
Alguns exemplos que foram mencionados por um antigo funcionário da GTZ, que
acompanhou esse processo histórico, referem-se a projetos que tinham por objetivo
aumentar a produção agrícola em tantos por cento, combater uma determinada praga do
café, implantar a produção de maçã ou de soja no Brasil, introduzir novas espécies de
porcos, frangos ou arroz na produção brasileira, desenvolver normas técnicas para a
indústria local. Segundo o funcionário, “este foi o auge da GTZ, quando transferia
tecnologias e não “politicagem”. Para ele: “Agora é trabalhar na distribuição de renda ou
então ajudar a redução da pobreza do Brasil,. Então, você não pode mais medir os efeitos
dos projetos. Você não pode medir se você trabalha no objetivo comum que até o
governo tem, né? É vago”.
Mais recentemente, passaram a valorizar profissionais de formação da área de
humanas, como sociólogos, pedagogos e até teólogos. Para alguns, isto reflete mudanças

216
que acompanham uma visão mais abrangente sobre a cooperação internacional; para
outros, reflete uma perda da qualidade do trabalho, porque é menos técnico e de poucos
resultados quantificáveis. “Então eu falei, já que vocês não querem fitopatólogos,
agrônomos, médicos, engenheiros... manda só teólogos, sociólogos, pra ver como é que o
projeto vai”.
Isto mostra uma tendência de reorientação dos objetivos e das propostas da
política de cooperação alemã: a de priorizar cada vez menos os projetos estritamente
técnicos, cujos resultados podem ser quantificáveis e apresentados em tabelas formais.
Esperam-se mais mudanças nos processos, o que nem sempre é perceptível para um
funcionário que tenha uma formação muito técnica no sentido estrito do termo, ou seja,
das ciências exatas ou biológicas.

Temas

Em relação à abrangência de temas e áreas de atuação da GTZ no Brasil, os seus


projetos e programas de desenvolvimento abarcavam diferentes temas, de saneamento
básico à capacitação profissional, passando por formação de cooperativas agrícolas e
assentamentos rurais, desenvolvimento de técnicas agrícolas e apoio ao planejamento em
órgãos e instituições governamentais.
Apesar de haver uma restrição à diversidade de temas, em termos geográficos a
atuação da GTZ vem se diversificando nos últimos tempos: de uma concentração inicial
nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste, a GTZ se expandiu para as regiões Norte e Centro-
Oeste de forma definitiva, sendo possível afirmar que foram desenvolvidos pela agência
projetos em praticamente todas as regiões do Brasil.
Atualmente, o Programa de Cooperação Técnica Brasil-Alemanha tem duas
grandes áreas como prioridades para o Brasil: a área temática de Meio Ambiente e a de
Desenvolvimento Regional Integrado em Áreas Menos Favorecidas.366 É válido
mencionar que a partir de dezembro de 2000, na reunião de negociações
intergovernamentais entre Brasil e Alemanha, a delegação alemã propôs a concentração
de sua atuação nestes dois programas mais amplos, que chamam de “programas guarda-
366
Segundo documento cedido pela ABC, intitulado “Programa de Cooperação Técnica Brasil-
Alemanha”, sem data, mas que contém dados de junho de 2002.

217
chuva”, concentrados em duas áreas temáticas que denominam os programas:
Desenvolvimento Regional Integrado em Áreas Menos Favorecidas e Proteção Ambiental
e Manejo de Recursos Naturais. O primeiro programa incluiria os programas ProRenda e
Pequenas e Médias Empresas, enquanto do Programa de Proteção Ambiental fariam
parte o PPG-7 e o programa de Gestão Ambiental Urbana e Industrial. Esta proposta foi
justificada pelo interesse em promover maior integração entre os projetos dos respectivos
programas, além de ampliar a visibilidade da cooperação entre os dois países, com o foco
em somente duas linhas.

Trusen, C. e Pinheiro, M.R.Bitar (orgs.). GTZ. “Cooperação entre Brasil e Alemanha


Planejando o Desenvolvimento Local: nas Florestas Tropicais Brasileiras.” Folder,
Conceitos, Metodologias e Experiências, sem data.
Belém: Prorenda Rural, p.107, 2002

A linha de ação para a área ambiental divide-se entre o Programa PPG-7,


orientado prioritariamente para a região amazônica e áreas de ocorrência de Mata
Atlântica, visando à conservação das florestas tropicais, e o Programa de Gestão
Ambiental Urbana e Industrial. No primeiro caso, o foco está na conservação de
ecossistemas florestais e, no último, dirige-se à redução dos impactos poluentes

218
associados às vastas concentrações urbanas e ao manejo de resíduos poluentes dos
grandes centros industriais. Ambas as áreas têm um amplo reconhecimento internacional
da qualificação da produção de conhecimentos técnicos e científicos da Alemanha.
Em relação à chamada área temática de Desenvolvimento Regional Integrado em
Áreas Menos Favorecidas, ela se divide entre o Programa Prorenda, denominação que a
partir de 2002 foi substituída pela expressão Desenvolvimento Local Integrado
Sustentado (ou DLIS) e o Programa Indústria, destinado ao aumento da produtividade e
da competitividade das pequenas e médias empresas indústrias.
De acordo com informes oficiais da Alemanha, o Brasil é atualmente o principal
país no programa de cooperação alemã para a América Latina.367 Afirma a ministra do
BMZ, Heidemarie Wieckzorek-Zeul, em publicação recente:368

o trabalho de cooperação com o Brasil se reveste de especial importância, pois o


país não é apenas a maior nação em escala regional, mas integra hoje o grupo das
dez maiores potências econômicas do planeta, participando decisivamente na
condição de ator global na configuração de processos internacionais em benefício
dos países em desenvolvimento. Ao mesmo tempo, o contingente ainda muito
grande de pobres no Brasil, bem como a ameaça de destruição da floresta tropical
úmida nos desafiam ao engajamento.

Como foi salientado pela ministra, apesar de o Brasil não mais se enquadrar entre
os países “em desenvolvimento”, mas sim como “país emergente”, tendo como base as
estatísticas da OCDE,369, ainda assim a questão da pobreza é um tema em função das
desigualdades sociais.
Nesse sentido, a ênfase dos programas para o Brasil está migrando daqueles
tradicionalmente definidos como de “cooperação para desenvolvimento”, destinados à

367
Ainda que não estejam explicitadas nos documentos oficiais da cooperação alemã as razões de ser
o Brasil o principal país na América Latina, algumas hipóteses podem ser sugeridas, como a continuidade
de condições de pobreza e desigualdades sociais, principalmente fundiárias. A existência das desigualdades
sociais justifica a intervenção e a cooperação de agências internacionais, pois estariam associadas a
barreiras estruturais internas (políticas, econômicas e sociais). A hipótese que acredito contribuir para a
definição do Brasil como prioridade entre os países da América Latina nas relações de cooperação alemãs,
embora seja ainda um país “emergente”, se deve à perspectiva de abertura futura de novas frentes de
intercâmbio, inclusive comerciais. O histórico das relações diplomáticas entre os dois países também é
sublinhado como forte razão para novos acordos de cooperação entre os países; posteriormente, será feita
uma abordagem mais específica sobre este assunto.
368
GTZ. 40 anos de cooperação para o desenvolvimento Brasil-Alemanha, opus cit., p.6-7.
369
Estas informações foram obtidas por meio de entrevista com uma importante funcionária da ABC
responsável pela cooperação técnica recebida da Alemanha (CTRB), em julho de 2002, em Brasília.

219
redução de pobreza, à infra-estrutura (transporte, energia, indústrias de base), à
agricultura e à educação, para projetos direcionados especificamente para a área de meio
ambiente e desenvolvimento sustentável, particularmente tendo como principal destino
para os projetos a Amazônia. Como atesta uma perita alemã:

A América Latina não tem recebido muita atenção como os países africanos e
asiáticos, tanto que reduziu o número de assessores nos últimos três anos de 90
para 60.[...] O Brasil não é país-ênfase. Um país-ênfase é classificado assim se
tiver três setores de atuação. No Brasil, a ênfase é em meio ambiente. A única
justificativa para [a GTZ] estar no Brasil é a floresta, a biodiversidade, a
preocupação com isso. No Brasil, o foco não é reforma de Estado, [...] na Bolívia
sim, mas não no Brasil (grifos meus).370

A única referência que apresenta os dados sistematizados consta da publicação de


comemoração dos 40 anos entre Brasil e Alemanha.371 O documento, no entanto,
menciona que os projetos listados no livro foram “selecionados” entre os mais
representativos, não sendo, portanto, o número exato de projetos que realmente foram
executados no país. Considerando que esta era a listagem disponível que abrangia larga
extensão temporal e também um número significativo de projetos e, portanto, uma
amostragem representativa, tomei-a como referência para elaborar algumas considerações
sobre os projetos de responsabilidade da GTZ no Brasil, as quais apresento em seguida.
A partir de um total de 139 projetos listados no período que vai desde 1961 a
2003, organizei o quadro abaixo, que mostra uma dispersão dos projetos por década e por
região dos projetos, sendo baseado nos dados que tive disponíveis.

Quadro 1: Número de projetos da GTZ por década e por região (1960-2003)

Década Sul Sudeste Norte Nordeste Centro-oeste Nacional Total


1960 8 3 0 3 0 0 14
1970 18 13 4 7 0 7 49
1980 7 10 1 9 0 3 30
1990-2003 6 10 11 11 1 6 45
Fonte: Embaixada da Alemanha. 40 anos de cooperação para o desenvolvimento Brasil-Alemanha,
Brasília: Embaixada da República Federal da Alemanha, 2003, p.160-164.

370
Sondra Wentzel, em entrevista em 2 de setembro de 2005, em Manaus.
371
Embaixada da Alemanha. 40 anos de cooperação para o desenvolvimento Brasil-Alemanha,
ibidem, p.160-164.

220
Em um primeiro momento, nos anos 60, foi registrado um total de 14 projetos,
concentrados prioritariamente na região Sul (oito deles) e nas regiões Sudeste e Nordeste
em menor escala (três projetos em cada). Nesse período, a agricultura e as cooperativas
agrícolas eram os temas centrais, como também as áreas técnica e de tecnologia. Não
havia projetos destinados para a região Norte e Centro-Oeste. Neste período, os projetos
se dirigiam fundamentalmente para associações agrícolas e cooperativas, escolas técnicas
e universidades, em especial nas áreas de técnicas agrícolas, geologia e hidrologia.
Nos anos 70, houve um aumento de mais de três vezes do total de projetos,
chegando a 49, cuja distribuição regional mantinha um padrão semelhante ao da década
anterior. A região Sul mantinha-se ainda como a mais importante, sendo para ela
destinados 18 projetos. A região Sudeste, de grande importância também, contava com 13
projetos, mas foi para a região Norte que vimos um aumento significativo, para onde
foram destinados cinco projetos, enquanto havia sete projetos para a região Nordeste.
Neste momento, o interesse para a região Norte orientava-se para as áreas de geoquímica,
geofísica, estudo de solos e de produção agrícola, não se relacionando, portanto, às
questões de proteção florestal. A região Centro-Oeste ainda não existia nesta década
como espaço de intervenção para a GTZ.
Durante esta década, e as áreas técnica e tecnológica mantiveram-se como
prioritárias, assim como planejamento urbano, agricultura e pesquisa agrícola, pesca.
Maior incentivo foi dedicado para a cooperação científica e acadêmica, com o
estabelecimento de convênios entre universidades.
Neste período foram elaborados 7 projetos de âmbito nacional no apoio à criação
e desenvolvimento de instituições, como a ESAF (Escola de Administração Fazendária),
criada em 1975 aos moldes de escolas alemãs e o apoio ao DNPM (Departamento
Nacional de Pesquisa Mineral).372
Nos anos 80, o número de projetos regrediu à praticamente a metade da década
anterior, sendo esta tendência apresentada de maneira geral em relação a todas as regiões,

372
Segundo a publicação comemorativa dos 40 anos de cooperação entre Brasil e Alemanha, a ESAF
foi criada a partir da idéia de um grupo de bolsistas brasileiros treinados na Alemanha em auditoria fiscal,
sendo as negociações encaminhadas pelo Ministério da Fazenda do Brasil e o BMZ. Ver: Embaixada da
Alemanha. 40 anos de cooperação para o desenvolvimento Brasil-Alemanha, opus cit., p.31.

221
exceto a região nordeste, que apresenta um aumento do número de projetos de 7 para 9
projetos; quanto aos projetos nacionais, estes diminuem de 7 para 3, enquanto no sul, há
uma queda sensível de 18 para somente 8 projetos, no sudeste, de 13 para 10 e na região
Norte, que apresenta somente um projeto durante toda a década.373 Em relação aos
temas, destacam-se a área de planejamento regional e urbano, o apoio a instituições de
pesquisa e centros de formação técnica, além de projetos na área de meio ambiente
urbano e industrial e de proteção de recursos naturais, notando-se uma redução de
projetos para a área agrícola, o que viria a ser a tendência nas décadas seguintes.
Nos anos 90, observamos uma mudança significativa em relação ao interesse para
a área ambiental por parte da GTZ, sendo que dos 46 projetos destacados no período, 20
foram orientados para a temática ambiental, sendo sua orientação para proteção de
recursos naturais. Neste sentido, os projetos foram redefinidos em termos geográficos
para a região Norte em função da prioridade atribuída dada à conservação de florestas.
Como registramos no primeiro capítulo, inserção da GTZ em projetos destinados para a
região amazônica ocorreu particularmente na década de 90, com os projetos do PPG-7.
No Brasil, a questão ambiental, especificamente a conservação da Floresta
Amazônica, assumiu o centro das atenções e, neste sentido, também os povos indígenas,
enquanto habitantes da floresta e detentores de conhecimentos tradicionais sobre os usos
de seus recursos e sobre a gestão de seus territórios. Como o foco destinou-se à questão
ambiental, os projetos e programas para geração de renda em regiões mais pobres, como
o nordeste, foram reduzidos.
Vale destacar que mais recentemente, junto com o florescimento da área
ambiental, particularmente de proteção de florestas, o apoio ao Ministério da Saúde
voltado para políticas de combate à AIDS e doenças sexualmente transmissíveis
surgiram, como reforço às iniciativas da GTZ. Estas têm sido experiências de alcance
regional que repercutem para outros países da América Latina.

373
Esta retração deve-se a fatores de ordem mais geral, em função da crise do petróleo que provocou
neste período instabilidades econômicas e a redução mais ampla de recursos internacionais para programas
de cooperação internacional. No entanto, quanto ao Brasil, o crescente endividamento externo e processo
inflacionário não sinalizavam para um contexto favorável ao desenvolvimento de projetos. Ver: Lohbauer,
C. Brasil-Alemanha: fases de uma parceria (1964-1999). São Paulo: Fundação Konrad-Adenauer, 2000.
p.94-108.

222
Estes programas adotados no Brasil seguem orientações gerais da política de
desenvolvimento ou política de cooperação para o desenvolvimento da Alemanha a partir
dos anos 90 que, como vimos, vem se dedicando cada vez mais a três áreas específicas:
combate à pobreza; proteção do meio ambiente e preservação dos recursos naturais; e
educação e formação profissional.374

Análise dos projetos no Brasil por programa

Com base em relatórios anuais da ABC de 1995, 1996 e 1997, em um Relatório


sintético de 1990-2002 e nas Atas das Reuniões de Negociações Internacionais entre
Brasil e Alemanha realizadas entre 1995 e 2003, fizemos uma análise setorial de cada um
dos programas, o que nos permite ver nuances e tendências da atuação da GTZ no Brasil
desenhadas a partir de 1995. 375 Seguindo a nomenclatura de ação que é estabelecida pela
GTZ na definição das linhas de ação dos seus programas e projetos, critério adotado
também nas análises da ABC, buscamos identificar algumas especificidades que marcam
os projetos da GTZ no Brasil.

O Programa ProRenda

O ProRenda foi concebido na década de 80, sendo um dos programas mais


antigos desenvolvidos pela GTZ no Brasil. O programa se subdivide entre ProRenda
Rural e ProRenda Urbano, sendo seus objetivos definidos em termos de melhoria da
qualidade de vida de populações de baixa renda por meio do fortalecimento do exercício
da cidadania, adequação de serviços públicos à demanda dos usuários, criação de
oportunidades para atividades produtivas”. 376

374
GTZ.Compêndio do vocabulário da GTZ, opus cit., p.35; Embaixada da Alemanha no
Brasil/BMZ/GTZ, opus cit., p.3.
375
As reuniões de negociações intergovernamentais são feitas entre representantes dos governos dos
dois países para estabelecer as diretrizes de projetos a serem realizados, com intermediação de
representantes da Agência Brasileira de Cooperação. Até 2001, eram anuais, sendo a partir de então
realizadas de dois em dois anos, alternando o local de ocorrência entre o Brasil e a Alemanha.
376
Ata das Negociações Intergovernamentais Brasil-Alemanha, 1996, p.19

223
O programa ProRenda tem inspiração nos valores e ideários cooperativistas, de
auto-ajuda, de expressão da responsabilidade individual e da associação de forças da
economia e da sociedade, como vimos no capítulo anterior, ideais estes de organização
social que têm forte expressão na Alemanha.377
A proposta do programa se baseia no trabalho orientado para pequenos
produtores, rurais e urbanos, de forma a estimular a produção econômica e garantir
acesso ao mercado. De acordo com os termos usados em relatório da ABC, as atividades
de cooperação técnica no programa ProRenda são definidas como de capacitação
empresarial, fortalecimento das associações de agricultores, além de planejamento,
implantação de unidades produtivas e sistemas agroflorestais, autogestão, planejamento
participativo, microcrédito e organização comunitária, com ênfase nas ações orientadas
para ensino e formação: cursos de treinamento e de capacitação, seminários de
treinamento, oficinas, capacitação empresarial, cartilhas e manuais e planos de
desenvolvimento. Assim, um dos eixos conceituais de referência para o programa é
participação ou gestão participativa, o que na prática ainda é considerado um aspecto
pouco assimilado.378
Para Albert, considerado um dos mais experientes e competentes peritos que
trabalharam na GTZ em programas do ProRenda, quando perguntado se há relação entre
a cooperação alemã e o cooperativismo, ele argumenta que:

[o cooperativismo] foi o carro-chefe, porque o cooperativismo no mundo se criou


na Alemanha e os alemães tinham maior experiência nisso. As cooperativas
brasileiras tiveram muito apoio através da cooperação alemã, inclusive o banco
das cooperativas. Sabe aquele banco Krahenbank, em Bangladesh, que o diretor,
o fundador desse banco recentemente recebeu o Nobel da Paz? Ele teve apoio da
Alemanha. Só que quando foi publicado, ninguém falou nada. Eu conheço a
turma que estava lá. Banco do povo. Aqui [no Brasil] tem banco do povo.
Também no Peru e, por exemplo, na Bolívia.

377
Armbruster, Paul & Arzbach, Matthias. O setor financeiro cooperativo na Alemanha. Bonn, San
José e São Paulo: DGRV, 2004. p.7.
378
Duchrow, A. “Construindo as bases para o desenvolvimento Local Sustentável: Reflexões a partir
de uma experiência no Ceará.” In: Trusen, Christoph e Pinheiro, Maria Rosa Bitar (orgs.). Planejando o
Desenvolvimento Local: Conceitos, Metodologias e Experiências, Belém: Prorenda Rural, p.107, 2002.

224
GTZ. “Cooperação para o desenvolvimento da
República Federal da Alemanha com o Nordeste do Brasil”, Folder, sem data.

Pequenas e médias empresas

O programa para Pequenas e Médias Empresas apresenta, dependendo da


publicação, denominações distintas: “Programa Indústria”, ou ainda, “Programa de
Aumento da Produtividade e Competitividade da Pequena e Média Indústria”.
Este programa orienta-se para a implementação de cursos de pós-graduação,
cursos de curta duração, pesquisas, reestruturação de modelo educacional, intercâmbio de
técnicos, desenvolvimento de materiais didáticos e metodologias para cursos, workshops
e projetos de consultoria para a montagem de sistemas de informação, sistemas de
qualidade, difusão de tecnologia industrial, formação de instrutores, formação de
supervisores, assistência, apoio, formação de operários, pesquisa de mercado.
Como o ProRenda, este programa também teve grande impulso entre os anos 60 e
70, ambos decrescendo significativamente entre as décadas de 1990 e 2000.
Particularmente, o programa Pequenas e Médias Empresas tem mostrado uma tendência a
acabar a partir de 2000, em 2003 somente 4 projetos em todo o país. Uma das razões para
a perda de interesse da GTZ neste programa se deve ao fato de que instituições como o
SENAI e SEBRAE já tenham um papel consolidado no apoio a pequenas e médias
empresas.

225
Como dissemos, a partir de 2001, este programa passou a ser contemplado
juntamente com o ProRenda como parte do programa Desenvolvimento de Áreas Menos
Favorecidas.
Assim, a atuação do programa de cooperação técnica o que seria uma explicação
para a redução dos projetos, com a concentração da atuação da GTZ em somente duas
áreas, visando torná-la mais eficiente. No entanto, em 2003, o programa foi citado
novamente como um projeto próprio, com o que nos faz crer que de fato o apoio a
pequenas e médias empresas seja um objetivo de pouca importância na avaliação da
atuação da GTZ no Brasil.

Meio ambiente

O Programa de Meio Ambiente da GTZ divide-se entre Meio Ambiente Urbano e


Industrial e Meio Ambiente Florestal, sendo as atividades para áreas urbanas mais antigas
do que as da área florestal, estas última iniciadas somente com o PPG-7 nos anos 90.
Desde 1995 o BMZ vem priorizando, no Brasil, o campo das políticas ambientais,
particularmente florestais. Neste sentido, como “executor” da política do BMZ, a GTZ
está presente em quase todos os projetos do PPG-7.
Como vimos, entre todos os programas, a área de meio ambiente tem prioridade
desde 1995, mantendo-se superior o número de projetos em relação a todos os outros.
Estes valores agregam tanto os programas para meio ambiente urbano e industrial como
para florestas, o que vem se tornando foco de crescente interesse da Alemanha no Brasil,
uma tendência que, parece, irá se manter – de acordo com Nota Conceitual de 2005,
elaborada pela GTZ – como a “futura contribuição à proteção das florestas tropicais da
Amazônia Brasileira (2007-2014)”. A Nota diz:

Depois de mais de dez anos de implementação, o Programa Piloto para a


Proteção das Florestas Tropicais Brasileiras (PPG-7) está sendo transformado em
uma iniciativa de apoio às políticas e aos programas brasileiros para a Amazônia.
[...] Para estes fins, está se buscando apoio internacional, incluindo-se neste
escopo a cooperação técnica alemã. As negociações intergovernamentais Brasil-
Alemanha de 2005 procuraram atender a esta demanda através da definição
conjunta de linhas temáticas e marcos estratégicos para a futura cooperação. Pelo

226
acordado, a cooperação alemã deverá apoiar a política brasileira de conservação e
uso sustentável dos recursos naturais renováveis da Amazônia.379

O programa de meio ambiente focalizou primeiramente as áreas urbanas e


industrializadas, ainda nos anos 70 e 80, muitas vezes associando cooperação técnica a
projetos com financiamentos e empréstimos alemães para melhoramento do controle
ambiental de prefeituras e secretarias estaduais de meio ambiente, visando
basicamente:ao tratamento de recursos hídricos e saneamento básico; ao enfoque em
áreas de risco por contaminação; ao potencial e aos mecanismos de controle de poluição
industrial; ao cadastro de áreas; à formação de banco de dados.
A cooperação na área de conservação de florestas praticamente se resume ao
PPG-7. Além desses, há também os chamados projetos “bilaterais associados” ao PPG-7,
como o Doces Matas. O programa do PPG-7, como se sabe, foi iniciado a partir do
encontro do G-7 em 1990, em Houston, e entrou em execução em 1995.380

379
GTZ. Nota Conceitual para a futura contribuição à proteção das florestas tropicais da Amazônia
Brasileira (2007-2014) – Apoio ao desenvolvimento de capacidades no nível federal, regional e local para
uma política brasileira de conservação e uso sustentável dos recursos naturais renováveis na Amazônia.
380
Alguns dos programas do PPG7: Promanejo, Provárzea, PDA, PPTAL, AMA, Corredores
Ecológicos, SPRN-OEMAS, Doces Matas (bilateral associado), Agricultura Familiar, no Pará, Produtores
Rurais - IDAM-AM, Amapari - Perimetral Norte - AP.

227
Na região Norte, os estados de Amazonas, Pará e Amapá são os maiores
contemplados, contando com 14 projetos (10% do total), destes somente dois destinados
aos povos indígenas no Brasil, o que significa 0,1%.381 É neste contexto que aparecem os
primeiros projetos no Brasil para povos indígenas desenvolvidos pela GTZ, como o
PPTAL, em 1996, junto à Funai e ao PDPI e, a partir de 1999, no âmbito do MMA.
Este levantamento e análise do conjunto de projetos desenvolvidos pela GTZ teve
como propósito buscar sinalizar para as tendências de atuação da GTZ no Brasil, a partir
de um panorama talvez simplificada dos projetos desenvolvidos por década, o que foi
realizado fundamentalmente com base em documentação obtida na ABC e na própria
GTZ.
No próximo item, por meio de pesquisa etnográfica, procuramos nos aprofundar
nas dinâmicas das relações sociais em meio às estruturas de organização administrativa
do escritório da GTZ em Brasília.

O escritório da GTZ no Brasil e a produção de um saber administrativo no exterior

A sede da GTZ no Brasil foi inaugurada em Brasília no final dos anos 80, quando
ficava na embaixada alemã no Brasil. Posteriormente, nos anos 90, foi montado o
escritório próprio, situado em uma área comercial importante da cidade, o Setor
Comercial Norte. Ele se localiza em um prédio de construção moderna, mas discreta, de
vidro fumê marrom, junto com outros escritórios comerciais e consultórios médicos. É
um endereço comercial, sem qualquer exagero na segurança interna, além de um controle
de identidade e fornecimento de um crachá. No térreo, há lojas para atender ao público
eventual que passe pela rua, uma papelaria, um restaurante e um café, o que garante uma
diversidade de freqüência. Esta caracterização parece demonstrar que o fato de a GTZ ser
uma agência internacional não determina maiores restrições ao acesso, como é o caso de
outros organismos internacionais, cujos prédios onde estão instalados intimidam pela
extravagância e pelas normas restritivas ao acesso na portaria.

381
Embaixada da Alemanha. 40 anos de cooperação para o desenvolvimento Brasil-Alemanha,
opus cit., p.160-164.

228
Este é o caso do Banco Mundial e do PNUD, cujos escritórios ficam bem em
frente ao prédio da GTZ, no Financial Corporate Center, um dos prédios de arquitetura
mais arrojada de Brasília, com formas irregulares e acabamento externo todo em espelho
dourado. A arquitetura por si só já apresenta uma ostentação que afronta seus
freqüentadores,382o que implica uma forma de elitização. Além disso, o Corporate Center,
como é chamado, possui um sistema de vigilância muito rigoroso que limita, seleciona e
controla o público que o visita. São vários seguranças, entre homens e mulheres, que
fornecem um crachá do prédio e registram uma fotografia na entrada. Ao subir, no hall de
entrada da instituição, mais seguranças estão em guarda e trocam o crachá do prédio pelo
da instituição, de forma que não se perde o visitante de vista, o que não acontece no
prédio da GTZ.
No mesmo prédio da GTZ fica também a sede do banco alemão KfW, situado
alguns andares acima. A proximidade entre os escritórios da GTZ e do KfW não é
aleatória, mas faz parte de uma estratégia de imagem que o ministério adota em relação
ao setor de cooperação para o desenvolvimento, o que facilita os trâmites burocráticos e a
comunicação entre os funcionários na execução de projetos em que participam as duas
instituições. De acordo com documento oficial da GTZ:383

com o intuito de assegurar uma imagem tão homogênea quanto possível da


cooperação alemã para o desenvolvimento, as instituições alemãs que trabalham
neste setor nos países parceiros cooperam debaixo do mesmo teto em escritórios
de cooperação para o desenvolvimento, mantendo, todavia, sua autonomia.

Organização administrativa e física do escritório

O escritório da GTZ no Brasil tem uma estrutura administrativa de funcionamento


bastante pequena para o número e a variedade de tipos de projetos em que atua no Brasil.

382
O público que freqüenta o Corporate se veste de forma bastante padronizada, refinada e rica, com
ternos escuros e gravatas, tailheurs e saltos altos.
383
GTZ. Compêndio do vocabulário da GTZ, opus cit. p.185-186.

229
De acordo com as definições formais da GTZ para funções no exterior, há um
conjunto de categorias que corresponde às atribuições específicas para cada profissional
do escritório e dos projetos no exterior.
Argumentam os funcionários mais antigos que a estrutura de organização
administrativa, no que concerne particularmente aos processos decisórios na GTZ, é
bastante hierárquica. As decisões passam por várias instâncias e o perito, responsável
pelo projeto, perde competência de decisão. Na avaliação de um ex-funcionário alemão
da GTZ:384
[...] Fui o único a criticar as hierarquias na GTZ. Nós sempre lutamos para
reduzir as hierarquias dentro da GTZ, para fazer as coisas mais ágeis. Sabe o que
a GTZ fez? Tirou as hierarquias na Alemanha e construiu aqui. [...] Depois da
diretora da GTZ no Brasil, tem quatro Programleiter, os gerentes de programas.
Nós não tínhamos Programleiter. Nós não tínhamos nenhum responsável. A
responsabilidade principal era do diretor e dos técnicos aqui no Brasil. Então, o
Programleiter é superior tanto técnico quanto pessoal, ele tem muita força, a
diretora nem se mete. Ele ajuda no apoio à contratação e à descontratação e tem
muita força. Então, todos os técnicos são subordinados ao Programleiter, que é o
superior deles, dos peritos, tanto de serviço como de pessoal. Por exemplo, se o
perito quer tirar férias, ele tem que acertar com o Programleiter. Qualquer coisa
ele tem que acertar com o Programleiter. Então, a hierarquia que tiraram na
Alemanha botaram aqui. Sem o Programleiter, eu assumo como chefe do projeto
toda a responsabilidade por ele. Tanto que, no início do projeto, eu tenho que
assinar um termo. Era assim. E eu fui um dos lutadores em nível internacional da
GTZ para conseguir isso. Nós assumimos a responsabilidade – técnica,
financeira, pessoal. Tanto que na GTZ central só tem uma pessoa responsável por
nós. Quando a gente não conseguia contornar, você tinha uma pessoa. Aí fizeram
depois o quê? Nós tínhamos a responsabilidade, agora a responsabilidade é do
Programleiter, não é nossa. Hoje, nós somos simples executores, sabe, tiraram a
nossa competência de decisão (grifos meus).

A criação de cargos intermediários no processo decisório tem sido um processo


recente na GTZ, e tem relação com as suas mudanças e reestruturações como um todo, a
partir de diretrizes da agência na Alemanha. Para este mesmo ex-funcionário alemão da
GTZ, o processo não tem dado bons resultados, mas trouxe o que ele definiu como perda
de qualidade do trabalho dos peritos:385 “Porque, se eu sou responsável, técnica,
financeira e administrativamente pelo projeto, então, o governo alemão, através da GTZ,
pode cobrar de mim. Se eu faço bobagem, eu sou responsabilizado e mais ninguém.
Automaticamente, caiu a qualidade do nosso trabalho”.

384
Entrevista em janeiro de 2007, em Belo Horizonte.
385
Idem.

230
Esse processo de reestruturação da GTZ, em andamento desde 2003, estaria
colocando em discussão algumas bases de organização, como o princípio de gestão mais
descentralizada, com maior autonomia dos escritórios onde são desenvolvidos os
projetos. A gestão se definiria por meio de liderança, espírito de parceria, auto-
responsabilidade, confiança, respeito a acordos estabelecidos e a decisões tomadas,
aproveitamento das capacidades e das habilidades dos colaboradores, e conhecimento das
expectativas e necessidades dos parceiros.
Os princípios nem sempre são verificados; na prática, o processo decisório ainda
está muito baseado nas relações hierárquicas, conforme observado no escritório da GTZ
em Brasília. Nem sempre os “parceiros” se sentem parceiros, ou tampouco clientes, mas
sujeitos às organizações de cooperação e, portanto, não se satisfazem com o processo. A
projeção discursiva de trabalhar orientado pelo princípio de auto-responsabilidade nem
sempre se cumpre.
O processo seletivo de cargos mais altos de direção, coordenação de programas e
dos peritos de longo prazo é todo feito na Alemanha, com a supervisão dos planejadores
do Departamento de Planejamento e Desenvolvimento. Outros cargos administrativos e
auxiliares, ou de consultorias de curto prazo para projetos, podem ser determinados no
Brasil por meio dos superiores hierárquicos diretamente acima do cargo pretendido.386
No escritório, o diretor, também conhecido por “chefe do escritório”, é o
responsável por todas as decisões políticas tomadas no país. É ele quem faz a ponte entre
as decisões do BMZ e da GTZ na Alemanha e os funcionários do governo local. Ele é
responsável pela administração financeira do escritório e decide sobre a contratação de
pessoal local. Auxiliando-o em funções mais administrativas do escritório, na relação
direta com os funcionários, está o diretor adjunto ou “chefe administrativo”, que é o
superior hierárquico do pessoal local empregado no escritório. Os coordenadores de
programas atuam também em nível político, sendo responsáveis diretos pela contratação
de pessoal para os projetos vinculados ao programa sob a sua responsabilidade,
participam de reuniões para negociações relativas ao programa, enfim, atuam como os
superiores hierárquicos de todos os colaboradores de projetos vinculados a um mesmo

386
GTZ.Compêndio do vocabulário da GTZ,opus cit., p.197.

231
programa. Estes são os cargos mais elevados na hierarquia da GTZ e, no Brasil, são
ocupados por alemães.
Os assessores de projetos, que também se distinguem entre aqueles com mais
experiência e tempo de serviço, trabalham tanto no escritório como nos projetos nos
órgãos brasileiros executores. Além desses, também chamados de “pessoal local”, há
outras funções administrativas, como de secretaria, de contabilidade dos projetos e do
escritório e o trabalho realizado pelo pessoal auxiliar, que é o de serviços de entrega, de
transporte (motorista), de recepcionista e de limpeza. Estes são todos brasileiros. No caso
do pessoal administrativo, há a condição de falarem o alemão, o que não ocorre com os
auxiliares.
Por fim, destacam-se aqueles que, no Brasil, são os mais conhecidos por terem
contato direto com os órgãos de governo brasileiro; são os responsáveis do lado alemão
pela coordenação e pelo planejamento (gerenciamento) na execução de projetos – os
peritos enviados. Estes, por definição, são alemães genuínos, uma condição que, na
lógica operacional da agência, se justifica pelo distanciamento exigido para que não
sejam naturalizadas certas práticas locais que são consideradas viciadas e ineficientes,
sendo os projetos o veículo através do qual elas devem ser mudadas.
Há, no entanto, uma distinção entre dois tipos de peritos em função da
responsabilidade assumida no projeto no exterior, o que se reflete no tipo de contrato que
é assinado entre o profissional e a GTZ: há o perito de longo prazo e o perito de curto
prazo. Os peritos de longo prazo, também chamados de “consultor principal”, são
responsáveis pela coordenação de projetos e têm o seu contrato assinado para um período
superior a 12 meses, renováveis enquanto o projeto não se encerrar. Os peritos de curto
prazo, cujo contrato é inferior a seis meses, assumem funções de consultorias específicas,
como desenvolvimento de oficinas, treinamentos e cursos, avaliação de projetos em suas
várias fases e outras formas de atuação no país, por terem experiência no tema em
questão e nas relações junto aos órgãos locais ou às comunidades.
Os peritos de longo prazo da GTZ, todos, sem exceção, são alemães, não havendo
sequer um de nacionalidade brasileira. Quando a empresa necessita de um perito para
atuar em um projeto em qualquer parte do mundo, há uma convocação mundial para o

232
envio de currículos pelos funcionários interessados, e a escolha se dá na sede, em
Eschborn, Alemanha.
A justificativa para a não-contratação de peritos nacionais de longo prazo se
justifica pela importância do “estranhamento” com as formas de organização da
sociedade com a qual passam a trabalhar, o que pode ocasionar maior possibilidade de
transformações estruturais do que se o cargo fosse ocupado por alguém mais adaptado à
lógica local. No caso de peritos que atuam há muitos anos em um mesmo país, há um
incentivo para a sua remoção para outra região, porque o “elemento surpresa ou de
estranhamento”, tão valorizados para a implementação de novas diretrizes de gestão de
projetos e políticas nos países parceiros, já não existiria mais.
Como a função desses peritos de longo prazo é prestar assistência às instituições
governamentais locais, a importância atribuída pelo lado alemão ao retorno à pátria
poderia ser uma forma de manter a própria consciência da alteridade e a capacidade de
utilizá-la de forma instrumental e eficaz.387
Segundo as agências alemãs de cooperação para o desenvolvimento, todos os
projetos de cooperação técnica estão sujeitos a um controle de resultados, com vistas a
garantir a continuidade do processo de aprendizagem e a reaproveitar as experiências
bem-sucedidas. Adicionalmente aos projetos bilaterais, há duas modalidades de
cooperação realizadas pelo governo alemão: o Pool de Peritos, as consultorias de curto
prazo, que duram entre três e 12 meses e o apoio às ONGs por intermédio do DED.
Há ainda, o perito local, que são profissionais do país onde está sendo
desenvolvido o projeto e que atuam na assessoria ao perito alemão enviado. No caso do
Brasil, não há um projeto que seja desenvolvido unicamente por consultores locais, sendo
o “princípio da intervenção mínima”, que vimos anteriormente, uma norma que não tem
vigência na prática.

O desenho administrativo do escritório

387
Partiu-se aqui de uma analogia com a idéia de conquista desenvolvida por Lima (1995), em que
destaca, na página 47, que “o ponto de partida fundamental e operador da conquista é a própria consciência
da alteridade e a capacidade de utilizá-la instrumentalmente para prever os passos e manipular o inimigo”.

233
O escritório da GTZ em Brasília, no que diz respeito à divisão das salas e à
distribuição dos funcionários no espaço, refletia, de certa forma, a noção de
administração e de divisão hierárquica observada em relação aos cargos da agência no
exterior, separando aqueles de maior responsabilidade, exercidos por alemães, do restante
do grupo, exercidos em grande parte por brasileiros.
O escritório ficava no 15º andar do prédio, onde havia duas salas da GTZ e mais
uma terceira ocupada por outra empresa. Na sala principal, avistava-se da porta de vidro
da entrada um hall bastante confortável, com sofás, uma mesa de canto e, na frente, uma
estante com divisórias para a exposição de material publicado pelas instituições alemãs –
revistas, jornais, folders, material de divulgação de projetos e publicações sobre questões
de interesse geral. Estes últimos envolvem temas que dizem respeito às áreas da política
de cooperação para o desenvolvimento da Alemanha: segurança, guerra, meio ambiente,
saúde e tecnologia. Encontram-se publicações em português, inglês ou alemão.
Nesse mesmo ambiente, havia um balcão alto onde ficavam dois recepcionistas
que, além de atenderem aos eventuais visitantes, também faziam uso de interfone,
telefone, fax e computadores, aos quais tinham acesso na mesa por trás do balcão. A
recepcionista era uma moça bem jovem, estudante universitária, que estava há alguns
anos ali e já tinha bastante desenvoltura no tipo de trabalho necessário à agência. O rapaz,
além de recepcionista, fazia consertos gerais no escritório, como conexão de redes de
computadores, ligações elétricas, além de pagamentos no banco, transporte de materiais
entre a agência e a embaixada, trabalhando também como motorista da diretora ou de
algum alemão que precisasse deste tipo de serviço. Ambos eram brasileiros, não falavam
o alemão e não tinham qualquer treinamento para poderem mudar a sua condição no
trabalho. Por trás desse balcão, separada por uma divisória com vidro, ficava a salinha da
secretária da diretora, como vimos em Planta Esquemática do Escritório da GTZ.388
Do hall distribuíam-se as salas: do lado direito, uma parede separava salas
divididas por paredes de alvenaria, onde ficava a sala da diretora, usualmente de portas
fechadas, e um corredor que dava acesso a um espaço reservado aos funcionários de mais

388
Segue a planta em anexo na página seguinte (página sem numeração).

234
alto escalão: coordenadores e assessores sêniores de programas.389 Do lado esquerdo, um
grupo de salas era separado por divisórias de vidros emolduradas por fórmica. Através
dos vidros era possível ter uma visão geral, desde a entrada, do conjunto de funcionários,
e estes viam-se uns aos outros desde a sala do diretor adjunto, a primeira à qual se tinha
acesso a partir do corredor. Em seguida à sala do diretor, dois funcionários trabalhavam
na contabilidade do escritório, em contato direto com o diretor adjunto. Ao fundo, na
última sala, ficava o pessoal de assessoria administrativa aos projetos, e com ligação
direta com ela estava a sala de contabilidade, a qual era feita por uma funcionária que
controlava não somente as contas do escritório, mas as de todos os projetos da agência: a
disponibilidade de recursos para despesas e o relatório financeiro dos gastos realizados
nos projetos.
O diretor adjunto ficava situado em uma posição estratégica no escritório: de sua
sala, via-se todo o escritório, desde a sala dos funcionários até a portaria, além do
movimento na sala da diretora.
Para se chegar às salas, passava-se por um longo corredor que tinha presas em um
mural na parede notícias e propagandas: eram anúncios de padarias, chopperias e
restaurantes alemães – um “roteiro alemão em Brasília”, provavelmente freqüentado
pelos alemães da GTZ – e notícias e dicas de saúde e bem-estar para quem trabalha em
escritórios e burocracias.
Ao fim do corredor, chegava-se a uma ampla sala que acomodava sete
funcionários, seis assessores de projetos, uma perita alemã do projeto AIDS-DST e suas
mesas, telefones e computadores, um ao lado do outro. Dali se tinha acesso à biblioteca
de consulta interna, onde ficava um bibliotecário em um pequeno cômodo anexo, com
uma porta que o separava da sala mais ampla. Foi nesta sala que entrei em contato mais
direto e constante com os funcionários. Ali, cada um deles tem um computador e um
ramal telefônico em sua mesa e resolve suas atividades praticamente sem se levantar. São
discretos e silenciosos, realizam suas tarefas no computador, com documentos e,
eventualmente, ao telefone, falando quase sempre em alemão. A rotina do escritório é
389
A definição de “assessores seniores” não consta no Compêndio da GTZ como uma significação
administrativa, mas é comumente adotada no Brasil pelos funcionários da GTZ para se referirem àqueles
que têm maior tempo de experiência e de trabalho na assessoria e no acompanhamento de projetos. Neste
caso, era uma função exercida por duas funcionárias brasileiras que trabalhavam praticamente desde a
implantação do escritório da GTZ no Brasil.

235
monótona e silenciosa. De quando em quando, levantam-se para alcançar um documento
na impressora, comum a todos, ou para pegar algum outro que fica em uma estante
repleta de pastas em cores distintas identificadas com os nomes dos projetos.
A separação das salas por divisórias com vidros garantia que todos
compartilhassem de tudo, criando um efeito pan-óptico, em que praticamente não há
“espaços de fuga” para se conversar mais particularmente. Esta transparência entre as
salas era agradável à primeira vista, porque dava uma sensação de amplidão ao ambiente
de trabalho pela luminosidade que entrava, já que as paredes externas do prédio também
eram de vidro. Por outro lado, no dia-a-dia, era possível sentir que todos ficavam muito
expostos à “observação” uns dos outros, inclusive do diretor adjunto. Havia uma idéia de
controle implícito nessa disposição, o que não acontecia nas salas da direção, que ficavam
à direita da recepção. Somente a cozinha, um pequeno compartimento onde se tomava
café, leite ou chá, era um lugar possível de serem colocados numa conversa os assuntos
cotidianos e pueris. Talvez por tudo isto os funcionários tenham um rigor muito grande
na forma de se comportarem no escritório. Olhares desconfiados e excludentes em
relação ao que se está fazendo ali são o normal.

A língua da burocracia

A GTZ adota um padrão de funcionamento administrativo em que todos os


documentos dos projetos sejam feitos em alemão, desde os comunicados entre os
funcionários até contratos de serviços, inclusive de consultorias, além da contabilidade,
dos documentos de avaliação interna sobre os projetos e dos relatórios periódicos de
peritos. Considerando sua atuação em mais de cem países, a prerrogativa do alemão como
língua de referência tem que ser instituída para controle administrativo por parte da
central. Todos os documentos de projetos e programas no mundo inteiro são enviados à
Alemanha. E, como conseqüência, todos os seus funcionários obrigatoriamente devem ter
conhecimentos amplos da língua alemã.
Assim, também as comunicações internas dos escritórios com a central da GTZ na
Alemanha e a totalidade dos relatórios periódicos (mensais, semestrais e anuais) de

236
acompanhamento de projetos enviados pelos peritos que coordenam projetos da GTZ são
feitos em alemão. Da mesma forma, a documentação interna, a maneira de arquivar
documentos, o sistema de computador, as pastas de organização de arquivos e a Intranet
estão em alemão.390 É um único código sem fronteiras; a fronteira é, de fato, a língua
alemã. Em suma, todos os funcionários da GTZ estão interconectados por meios
disponíveis de comunicação para melhor administração e controle de pessoal, desde os
que desempenham funções mais administrativas no escritório até os peritos técnicos, que
atuam diretamente nos projetos.391
A discussão que Benedict Anderson apresenta sobre o desenvolvimento das
línguas impressas e seus efeitos na formação da consciência nacional revela elementos
interessantes para se pensar como “consciências nacionais” são manipuladas através dos
signos lingüísticos em contextos nos quais se cruzam diferentes fluxos transnacionais,
processos orquestrados por comunidades nacionais “imaginadas” deslocadas na
contemporaneidade.392 Particularmente interessante é a sua abordagem sobre o
desenvolvimento de uma linguagem como fator de centralização administrativa, que neste
caso é precisamente eficaz quando todos os que estão na GTZ (no mundo inteiro) devem
falar, obrigatoriamente, o alemão.393 As exigências para contratação de pessoal em
escritórios no exterior variam conforme os cargos e as responsabilidades: no escritório da
GTZ no Brasil, a diretora é alemã e os peritos que trabalham no Brasil são também
alemães.394 No entanto, para cargos administrativos, a exigência é que se fale, leia e
escreva o alemão (nem sempre bem), mas não é preciso ser alemão.
Anderson ainda analisa a formação de “linguagens de poder” na distinção entre
classes, estabelecendo hierarquias. Ao se considerar o peso que o aspecto lingüístico tem

390
Intranet é a rede interna da GTZ que conecta todos no mundo inteiro.
391
Não necessariamente o fato de ser alemão é o elemento de aproximação de um grupo de
profissionais que trabalha nos programas de cooperação da GTZ. Suas trajetórias pessoais podem ser muito
distintas e de forma nenhuma proporcionar a eles a idéia de que fazem parte de um mesmo grupo. Imagino
haver uma multiplicidade de alemães que atua na cooperação e não exatamente pertencem a uma
comunidade. Mas ainda assim, a idéia da identidade nacional alemã aproxima-os como parte de uma
comunidade imaginada tanto por eles, como também pelos outros, aqueles com quem lidam, que os
classificam compulsoriamente como um grupo: “os alemães”.
392
Anderson, B. Comunidades imaginadas Reflexiones sobre el origen y la difusion del
nacionalismo. Mexico: Fondo de Cultura, 1993. p.72-73.
393
Idem, p.68.
394
Alguns brasileiros, que são chamados peritos locais, fogem à regra de serem alemães. No entanto,
não têm atribuições de coordenação de projetos, a qual é usualmente assumida por alemães.

237
na definição de identidades, e pensando, por analogia, na argumentação de Anderson para
classes, falar ou não uma língua assume um peso na distinção hierárquica entre grupos. O
uso proposital da distinção lingüística, como uma ruptura de comunicação, pode ser uma
estratégia de poder para distinção e hierarquização de grupos em condição de múltiplas
nacionalidades.
Somando-se a isto o fato de ser uma empresa de origem alemã, que administra na
sua própria língua – língua esta e cultura não tão disseminadas quanto são a inglesa ou a
francesa – com normas, formulários, relatórios, cartas e memorandos todos em alemão,
inclusive nos escritórios espalhados pelo mundo, isto se torna ainda mais importante para
consolidar uma maneira de administrar, uma forma de se colocar no mundo que é
“alemã”.
Ao se levar em conta que tais relações “de cooperação” se inserem em uma
estrutura internacional assimétrica de poder, cujos efeitos e dimensão não podemos
negligenciar, o desconhecimento fluente do idioma dos “doadores” alemães dirigiu o meu
olhar para as formas em que a língua era acionada enquanto um dispositivo de poder, de
segregação, tanto nas experiências observadas nas relações pessoais, como também nas
publicações institucionais.
Do ponto de vista administrativo, a organização atua como uma grande
corporação, na qual o escritório funciona como a sede para onde convergem todas as
informações das atividades dos projetos, formatadas em modelos de relatórios
simplificados, e de onde partem as diretrizes e as decisões políticas e financeiras. Em
todas as bases internacionais, sejam os escritórios de representação ou os projetos da
GTZ, há normas e padrões de administração que são uniformizados e coordenados pela
GTZ central em Eschborn, na Alemanha, cujo conteúdo, por definição, não está vedado
ao acesso do público, sejam pesquisadores ou funcionários dos órgãos nacionais. Na
prática, no entanto, essas informações não estão exatamente disponíveis, nem mesmo há
veiculação da sua existência. O acesso passa pela autorização de instâncias hierárquicas
superiores da GTZ, que consentem ou não no acesso, justificando a restrição ao caráter
empresarial da GTZ e à competição existente entre agências de desenvolvimento. Além
do mais, muitos documentos são produzidos em alemão, sem tradução para as línguas

238
locais, nem mesmo para o inglês, o que sem dúvida representa um elemento a mais de
dificuldade para a sua leitura.
A “marginalidade” da língua alemã é uma questão em fóruns e em debates
internacionais, e a importância da tradução de textos e publicações para outras línguas é
reconhecida como forma de se estabelecer diálogo com parceiros, como consta em
publicação da GTZ/BMZ: “existem versões da edição alemã nas línguas inglesa, francesa
e espanhola, a fim de serem eliminadas as barreiras lingüísticas no diálogo com os
colegas nos países parceiros da GTZ”.395
Apesar de muitas publicações em português, inglês ou espanhol, os livros e os
periódicos em alemão revelam para o público científico e acadêmico uma determinada
escolha de dialogar com os próprios pares de língua alemã, ou mesmo de restringir
informações, reflexões e interpretações sobre a realidade social e política a um público
não-alemão. A publicação nesta língua poderia ser entendida como uma opção que
contradiz alguns dos princípios de horizontalidade das diretrizes do BMZ.
Quanto à organização documental, cada projeto tinha pastas que arquivavam todos
os contratos de serviços e compra de bens para uso da equipe no projeto. Havia uma
grande estante com pastas em forma de fichário, e lá estavam os documentos
administrativos relativos aos projetos: currículo e contrato de pessoal, como contratação
de serviços, compra de material, pagamentos e outros. Na rede interna do computador,
havia um banco de pastas de modelos de documentos da GTZ, os quais eram acessados
para dar andamento aos procedimentos do projeto. Nestes modelos colocava-se o nome
da empresa contratada, os valores e o tempo de serviço, ou então quaisquer dados sobre
novos contratos, novos funcionários ou consultores. Emitiam-se quatro cópias de cada
documento, que ficavam em pastas e arquivos organizados por projeto, além de uma
cópia concedida à empresa ou à pessoa contratada.
A experiência de observação participante no escritório, contando com a sorte da
realização do evento dos 40 anos, permitiu colocar em prática o que Susan Wright
propõe, ao argumentar que é no processo contínuo de atribuição e negociação de
significados no dia-a-dia, nas rotinas diárias, nas roupas, nas carreiras dos funcionários
que são consolidados os valores de uma organização.

395
BMZ/GTZ, Desenvolvimento rural regional: princípios de orientação. Eschborn, 1987. p.7.

239
Deste processo participam os próprios funcionários e ex-funcionários alemães da
GTZ, consultores de curto e longo prazo. Assim, além do caminho usual de analisar o
escritório e os procedimentos administrativos formais da organização, sua estrutura e seu
caráter institucional, optei para o próximo capítulo abordar a formação do quadro de
funcionários e as relações entre eles mesmos e com os brasileiros com os quais
trabalham, para superar, neste sentido, a concepção fechada de uma organização como
entidade com uma cultura própria, com limites estabelecidos.396
O corpo de profissionais alemães da GTZ é formado pelos portadores de saberes e
de conhecimentos específicos de Estado e são eles os transmissores desses conhecimentos
para órgãos de governo de outros Estados. Articulam-se por meio de redes sociais
estabelecidas não somente por ideais terceiro-mundistas, mas também por fundamentos
de solidariedade, de cristianismo e de princípios ambientalistas e conservacionistas. Neste
sentido, busquei também pensar a GTZ como instituição a partir da compreensão de
quem são os funcionários que atuam em seus projetos.397 Entrar no universo das relações
pessoais dos peritos e tentar desvendar suas visões sobre o trabalho que desempenham
poderia revelar uma determinada perspectiva “de dentro” da organização.
Como disse, a importância atribuída ao desempenho de um profissional no
sucesso ou no fracasso de um projeto reflete a importância que tem para a empresa a sua
atuação, o seu conhecimento, a sua capacidade de construção de relações interpessoais
com a equipe local. Além disso, as diferentes formas desses profissionais se definirem
como um grupo, de se constituírem como uma “comunidade transnacional” seria um dos
principais aspectos a serem destacados por mim no enfoque sobre as intervenções alemãs
no Brasil como parte de uma “antropologia do desenvolvimento”.

396
Wright, S. (org.). Anthropology of Organizations. London/New York: Routledge, 2002. p.18-19.
397
Como mencionado anteriormente, foram realizadas 24 entrevistas com um grupo de alemães
falantes da língua portuguesa, cuja prática profissional se deu, em algum momento de suas experiências na
GTZ, em projetos desenvolvidos na América Latina e no Brasil, além de alguns representantes de outras
instituições alemãs, como do KfW, da Fundação Heinrich Böll, de Ongs e pesquisadores de universidades
alemãs, estes últimos por e-mail.

240
Capítulo 6: Os funcionários da GTZ

Para compreender a dimensão simbólica do efeito do Estado, especialmente o


que podemos chamar de efeito universal, é preciso compreender o funcionamento
específico do microcosmo burocrático. É preciso analisar a gênese e estrutura
deste universo de agentes do Estado, particularmente os juristas que se
constituíram em nobreza de Estado ao instituí-lo e, especialmente, ao produzir o
discurso performativo sobre o Estado, que sob aparência de dizer o que ele é, fez
o Estado ao dizer o que ele deveria ser, logo, qual deveria ser a posição dos
produtores desses discursos na divisão do trabalho de dominação. 398

Seguindo a proposta que Bourdieu apresenta na citação acima, nos propusemos


neste capítulo a analisar a GTZ a partir de seus funcionários, em suas atribuições
funcionais e relações hierárquicas no escritório em Brasília. Como forma de tentar
desvendar aspectos pessoais, referentes às trajetórias e especificidades das experiências
particulares dos peritos, que atuam nos projetos, selecionamos alguns casos para analisar.
Apesar da pesquisa no escritório não ter sido fácil para mim, ela foi ainda mais
difícil para os que trabalham ali. No seu próprio local de trabalho, tiveram que lidar com
a presença de um pesquisador que os via como objeto de estudo. Ainda mais difícil
quando sabemos haver pressões internas na GTZ, freqüentes avaliações de rendimento e
qualidade do profissional, procedimentos usuais em grandes empresas. Realizar o
trabalho sob o constante olhar de um “estranho” não deve ser agradável. Entendo também
a responsabilidade, do ponto de vista institucional, dos diretores em relação à abertura,
ainda que parcial, de informações e dados que são considerados “segredos de Estado” ou
“da empresa”. Pertencem a uma organização cujo maior bem e valor é a informação,
particularmente em se tratando de agência de cooperação técnica cujo produto principal é
o conhecimento (know-how). Como bem argumenta Weber:

toda burocracia busca aumentar a superioridade dos que são profissionalmente


informados, mantendo secretos seu conhecimento e intenções. A administração

398
Bourdieu, P. “Espíritos de Estado”. In: Bourdieu, P. Razões práticas sobre a Teoria da Ação.
Campinas: Papirus Editora, 1996. p.121.

241
burocrática tende sempre a ser uma administração de “sessões” secretas.: na
medida em que pode, oculta seu conhecimento e ação da crítica.399

Aqui tratamos um grupo que também se constitui como uma espécie de nobreza
de Estado: os cooperantes, profissionais de Estado que se situam entre diplomatas,
profissionais especializados, administradores e politólogos que atuam na representação
do Estado para fora, para o exterior, no sentido de exercerem uma forma de dominação
externa, mas cotidiana, em escala média e pequena, e não só no plano das representações,
mas também no controle de fluxos financeiros.
No escritório da GTZ ficam principalmente os funcionários de cargos
administrativos e gerenciais que acompanham a execução burocrática dos projetos. Os
coordenadores de programas e os coordenadores de projetos, que fazem um trabalho mais
burocrático e têm sua base na sede em Brasília, são auxiliados por uma equipe de
“administradores” que atuam na intermediação com as bases locais e com a sede. O
objetivo é que tudo corra dentro dos padrões, das normas e regras, que são muitas e
extremamente cheias de detalhes, para que os projetos andem. Novos recursos não podem
ser liberados para os projetos locais se não preencherem tais requisitos, que todo membro
da GTZ deve decorar.
No total, havia 19 funcionários no escritório durante o período em que fiz a
pesquisa, sendo três na recepção, contando com a secretária da diretora, cinco na área
mais reservada ao “alto escalão” e 11 entre o diretor adjunto, o pessoal da contabilidade e
o grupo da assessoria de projetos, que compartilhava uma mesma grande sala, além da
perita alemã e do bibliotecário.
Na GTZ no Brasil, as mulheres ocupam cargos variados, desde funções auxiliares
até administrativas e políticas: no atendimento na portaria, ficava uma estudante
universitária brasileira; na contabilidade, uma brasileira de formação superior e de
ascendência alemã; na secretaria da direção, outra brasileira, formada em comunicação
social. A maioria das funcionárias que trabalhava na assessoria técnica de projetos era de

399
Weber, Max. “Burocracia”. In: Ensaios de Sociologia, Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1963,
p.269.

242
brasileiras, mas tinham algum vínculo, conjugal ou de ascendência, com a Alemanha.400
Um nível hierárquico acima destas, também duas mulheres brasileiras bastante
experientes assumiam responsabilidades maiores de supervisão e acompanhamento de
projetos vinculados a um mesmo programa.401 Na coordenação de programas nacionais,
também mulheres dirigiam as funções, sendo que neste caso a responsabilidade era
daquelas de nacionalidade alemã, da mesma forma, a direção geral do escritório no
Brasil.
Ao se observar o grupo no que concerne à categoria de gênero, constata-se que a
maioria dos funcionários do escritório era de mulheres: 13, de um total de 19 pessoas.
Além de prevalecerem em termos numéricos, também o faziam quanto à
responsabilidade: os cargos de direção e coordenação de programas estavam nas mãos de
mulheres. Conforme uma funcionária indicou, há uma orientação por parte do governo
alemão que é veiculada pelas agências governamentais e não-governamentais alemãs,
como a Fundação Heinrich Böll, de priorizar a contratação de mulheres e a elaboração de
projetos que sejam orientados por elas. Na Fundação Böll, chamam de gender democracy
a inclusão de temas sociais que envolvam a participação das mulheres em processos
decisórios como parte de questões prioritárias de trabalho, além de outras como
migração, ecologia, democracia, problemas sociais, emprego, economia, educação, arte,
comunicação, política de desenvolvimento, entre outras.402 A abordagem específica na
questão de “gênero” constitui um critério de qualidade na política de cooperação para o
desenvolvimento da Alemanha, como afirmam em documento:403

a abordagem específica em função do gênero não se restringe exclusivamente à


gestão e à execução de projetos em países em vias de desenvolvimento, mas
também é relevante para a gestão dos recursos humanos e o desenvolvimento
organizacional de instituições e organizações na Alemanha e no estrangeiro que
atuam na área de cooperação para o desenvolvimento.

400
A exceção era de uma mulher e um homem, ambos alemães, que também trabalhavam na
assessoria de projetos.
401
Como dito anteriormente, o Programa de Cooperação Técnica Brasil-Alemanha tem duas
grandes áreas como prioridades para o Brasil: Meio Ambiente e Desenvolvimento Regional Integrado em
Áreas Menos Favorecidas
402
Ver www.boell.com.br
403
GTZ. Compêndio do vocabulário da GTZ, opus cit., p.75.

243
A maioria dos funcionários administrativos e técnicos de apoio aos projetos chega
cedo ao escritório, em torno das 8h. Não há controle de horário com cartão de ponto, mas
os funcionários pareciam ter internalizado suas obrigações. Trabalhavam todos de forma
muito individualizada, cada um responsável por uma área separada. Na sala maior,
ficavam os técnicos que tinham a incumbência de dar suporte aos projetos desenvolvidos.
Os funcionários não têm um rigor muito grande na forma de se vestirem para ir ao
escritório. Não há exigência de uso de roupas muito formais, como ternos para os homens
e tailleurs e salto alto para as mulheres, como no Banco Mundial, no PNUD ou na
própria ABC, de maneira que eles usam roupas de uma elegância simples, sem
extravagâncias.
Dos 19 funcionários, foram entrevistados convencionalmente sete, além de
conversas informais com todo o grupo. Dos que trabalham no escritório, de um total de
seis alemães, três estavam em funções de comando e decisão, como direção geral e
coordenação de programas, e mais três eram responsáveis pelo acompanhamento de
projetos. Quanto aos brasileiros, 13 exerciam funções mais simples administrativas, de
apoio ao escritório e de acompanhamento de projetos; havia dois responsáveis seniores,
na portaria, na secretaria e na contabilidade. O diretor adjunto era um brasileiro, cujas
atribuições não lhe garantiam muita autonomia decisória, mas dedicava-se
fundamentalmente a repassar à equipe as ordens da direção geral.
No que concerne à relação com a categoria nacionalidade, nota-se que quanto
mais alta é a hierarquia e a responsabilidade da função, maior é a atitude reservada dos
alemães.
A diretora geral do escritório da GTZ, como dissemos, é uma mulher alemã, de
meia-idade, que tem uma personalidade reservada e tímida, pouca simpatia e pouca
conversa. Mal se via quando chegava, muito cedo, e ficava trabalhando todo o tempo em
sua sala, a maior delas, central na disposição do espaço do escritório. Eventualmente, saía
da sala para dar uma ordem à sua secretária, sempre em alemão.
Sua rotina de trabalho envolvia reuniões semanais ou quinzenais com
responsáveis por programas e projetos, além de reuniões externas na Agência Brasileira
de Cooperação, no Ministério de Relações Exteriores, e na embaixada da Alemanha.
Eram freqüentes também as viagens à Alemanha, o que o cargo exigia, na medida em que

244
sua atuação no Brasil dependia fundamentalmente de decisões políticas e orçamentárias
adotadas pelo BMZ e pela GTZ central, ambos neste país.
No que dizia respeito às relações com o pessoal que ali trabalhava, não exercia sua
autoridade de forma fácil. Algumas funcionárias relataram a forma brusca e repreensiva
como os tratava, sobretudo os brasileiros, que reclamavam que ela raramente reconhecia
os valores dos funcionários, mas estava sempre pronta para fazer críticas e correções.
Quando eram chamados para reuniões ou conversas em sua sala, não era raro temerem
ouvir repreensões.
De acordo com um informante alemão, a escolha da representante da direção do
escritório da GTZ no Brasil poderia ser atribuída a uma decisão política que ocorre na
Alemanha como resultado de uma distribuição de cargos na administração pública entre
partidos políticos, como nos fala um perito: “O antecessor dela [da atual diretora] falava
três, quatro idiomas, era uma presença, mas queimaram ele também. [...] Lá também tem
política, né? Tem que ver em que partido está”.
O diretor-adjunto era um jovem brasileiro que assumiu o cargo depois de trabalhar
na contabilidade dos Projetos Demonstrativos, o PDA. Apesar de ocupar um cargo de
responsabilidade, como o intermediário entre as decisões da diretora e os funcionários,
não assumia uma postura de arrogância ou de autoridade. Assumira esta função de
supervisão geral dos funcionários e acompanhamento das tarefas realizadas, mas não
tinha uma atribuição efetivamente decisória, o que ficava para a diretora geral. Como
possuía melhores relações com o grupo, por ser mais jovem e mais simpático, era ele
quem repassava as ordens da diretora. Além de falar sempre em português com os
funcionários, costumava fazer brincadeiras e comentários para quebrar a formalidade.
Outra pessoa de grande importância no escritório era Andréa, responsável pelo
acompanhamento de todos os projetos vinculados ao PPG-7.
Aspectos pouco revelados nas conversas mais formais com funcionários da GTZ
eram abertamente mencionados e desenvolvidos por Júlia,404 uma funcionária cearense

404
Júlia é um codinome desta funcionária. Sem formação superior, sua relação com a Alemanha
veio por meio de um casamento com um alemão, o que a levou de Fortaleza para este país onde viveu
alguns anos. Quando voltou para o Brasil, entrou em um projeto da GTZ em Fortaleza, sendo depois de
alguns anos transferida para a sede em Brasília, onde deveria passar somente três meses, mas já estava há
mais de cinco anos, atarvés de contratos temporários renovados a cada seis meses.

245
que estava há dez anos na agência trabalhando na assessoria a projetos. Júlia era muito
expansiva e muito crítica quanto aos mecanismos de controle da GTZ sobre os seus
funcionários, o que não se intimidou em expor. Ela tinha informações confiáveis sobre as
condições trabalhistas garantidas aos funcionários do Banco Mundial, onde uma irmã sua
trabalhava. Outros funcionários da GTZ também reclamavam dos salários recebidos, que
eram relativamente baixos em comparação aos dos funcionários de outras agências e
organismos internacionais, referindo-se usualmente ao Banco Mundial e ao PNUD. Além
disso, mencionavam as condições de trabalho oferecidas, como benefícios sociais e outras
vantagens, além de um plano de carreira que valorizava a permanência do funcionário no
órgão, o que não era o caso da GTZ, diziam eles.
Em conversas que tivemos, Júlia sempre destacava a irregularidade quanto às leis
trabalhistas no Brasil na forma de contratação dos funcionários locais pela GTZ, que não
tinha vínculo trabalhista, mas ocorria por meio de contratos temporários renovados
continuamente. Nestes termos, os funcionários não tinham garantidos seus direitos
trabalhistas nem a possibilidade de contar tempo de trabalho para a aposentadoria. Esta
era uma grande preocupação sua, considerando haver pessoas que trabalhavam há mais
de cinco anos sem carteira assinada e sem depósito de FGTS, como era o seu caso.
Muitos funcionários são contratados por projetos que, terminados, deixam claro não
haver compromisso por parte da GTZ em mantê-los em suas funções. No entanto, havia
peritos atuando no Brasil há mais de dez anos, com seu contrato renovado de dois em
dois anos, passando de um projeto para outro, mas sempre submetidos a esta forma
incerta e instável de contratação temporária por projeto.
Um ex-funcionário deixou claro que esse tipo de contratação não era específica
dos brasileiros, mas sim um critério usual de contratação entre as “empresas de
consultoria”, sendo que os contratos eram usualmente renovados por anos seguidos.
Como explicou:405
Nós somos o seguinte. A GTZ, quando é autorizada pelo BMZ para fazer um
projeto, tem um setor de pessoal que procura as pessoas, faz a seleção e depois
convida essas pessoas que contratam, preparam, e elas assinam um contrato com
a GTZ por prazo determinado, geralmente são dois anos, que pode ser
prolongado se o cara for bem, se o projeto for prolongado. O camarada é pago
mensalmente. [...] Não tem garantia nenhuma. O cara prestou serviço dois anos,

405
Entrevista concedida em janeiro de 2007.

246
cumpriu, aí recebe uma carta, obrigado pelo seu trabalho, procura agência de
trabalho para outra coisa. Não tem fundo de garantia, 13º, nada disso. Nem na lei
alemã, porque nós não somos funcionários nem da empresa nem do governo, nós
somos como empreiteiros. “Você vai lá por dois anos fazer isso”. Claro, eles
pagam sua mudança de volta para a Alemanha. Quando termina o contrato, ele
está na rua. Ele não tem nenhuma segurança. Ele é mesmo um contratado. O
DED também é assim. Empresas de consultoria também são assim. Lógico que se
o cara é bom, ele tem outro trabalho.

Em função destas questões, ouvi de uma funcionária que a GTZ deveria implantar
uma política de pessoal nacional. Conforme informou, havia uma determinação da GTZ
central (da Alemanha) de abril de 2002 para regularizar a contratação de pessoal em toda
a GTZ no mundo até 2004, no máximo, conforme as leis dos países onde atuasse.
Júlia informou ainda que havia 64 funcionários na embaixada da Alemanha e na
GTZ, sendo ela a única sindicalizada no Sindicato dos Trabalhadores das Embaixadas
(SINDINAÇÕES).Apesar de o diretor adjunto da GTZ no Brasil não “achar adequado”,
esta funcionária disse ter trabalhado na elaboração de um documento que foi o resultado
de uma discussão promovida num seminário em 2003 para o qual veio gente de todo o
Brasil. Esta política incluía plano de carreira, diferenças salariais, benefícios,
regulamentação de trabalho e avaliação de pessoal.
Este seminário realizado em 2003 destinava-se à discussão da “política de pessoal
nacional” da GTZ no Brasil que fosse “o mais participativa possível”. Em setembro de
2005, recebi das mãos de uma perita alemã um documento interno sobre esta política, em
elaboração desde novembro de 2002, que definia que os contratos de trabalho seriam
regidos pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) e a contratação com carteira
assinada pela agência da GTZ em Brasília, com jornada de trabalho de 40 horas
semanais, com direito a férias, décimo-terceiro salário e fundo de garantia, além de
benefícios como: seguro de vida por morte, invalidez, despesas hospitalares e um auxilio
ao pagamento de plano de saúde. Esta discussão, no entanto, perdeu fôlego em função
dos preparativos das comemorações dos 40 anos da cooperação entre Brasil e
Alemanha.406

406
GTZ. Política de Pessoal Nacional (PPN). Proposta da Diretoria. Documento Interno, 06/09/2005
(data de impressão), p.1-8.

247
Até o momento da pesquisa, em final de 2005, a antiga forma de contratação
permaneceu em vigor, sem incorporar as novas propostas previstas neste documento e
não havia sido assinado nem elaborado um plano de carreira que estimulasse o
funcionário a permanecer no trabalho na agência. Eles não enxergavam, nas condições
existentes, uma oportunidade de ascensão dentro da GTZ. A sua estrutura no Brasil era
pequena, com poucos cargos e, portanto, poucos funcionários.
Júlia destacava ainda alguns aspectos da lógica opressora implícita no
funcionamento do escritório, o que atribuía em grande medida aos mecanismos de
segregação em função na nacionalidade. Para ela, a estrutura hierárquica não se
estabelecia somente pelos atributos do cargo, mas fundamentalmente por uma questão de
nacionalidade, como disse:

Aqui eu não ganho o equivalente a 2 mil marcos. Aqui no escritório parece que o
funcionamento é diferente dos projetos. Acho que em Brasília a GTZ tem uma
oferta grande de pessoal. O critério é falar alemão. Não há qualificação
profissional, mas o perfil é de quem fala alemão e que seja barato. [...] Há uma
rotatividade muito grande na central, porque são baixos os salários e pouca há
qualificação profissional. [...] Fui muito humilhada quando cheguei aqui.
Esperavam que eu fosse arquivar e tirar fotocópias. Eu fiquei muito constrangida
aqui (grifos meus).

Alguns funcionários, comentavam que o escritório da GTZ no Brasil privilegiava


a contratação de falantes da língua alemã e não funcionários de formação qualificada.
Uma funcionária brasileira, com formação superior em economia e que tinha experiência
em empresas na Alemanha e na Áustria, quando retornou ao Brasil entrou para a GTZ
através de um conhecido de seu pai para atuar diretamente na organização do evento de
comemoração dos 40 anos, junto com a sua organizadora. De julho a novembro,
trabalhou com empenho nas atividades relacionadas à comemoração, eventualmente se
queixando da forma como tratavam os funcionários ali: lamentava-se da falta de
transparência nas relações de trabalho, pois diziam que iriam assinar sua carteira,
estabelecer contrato, mas a mantiveram por praticamente um ano em sua função por meio
de contratos temporários.
O fato é que na GTZ, a distância entre os salários dos funcionários é abrupta – de
um lado, os alemães, diretores, coordenadores de programas, peritos e assessores de
projetos têm salários elevados, alguns pagos em euros; do outro, funcionários

248
administrativos, brasileiros, cujos salários são baseados na moeda local e que,
equiparados ao euro, chegavam a talvez 1 mil euros. Assim, do mais alto ao mais baixo
no nível administrativo havia uma diferença vinte vezes menor, sendo que não existem
praticamente funções intermediárias entre um e outro. Numa estrutura reduzida como são
os escritórios da GTZ, o funcionário administrativo acaba tendo conhecimento a respeito
destas desigualdades em termos de renda.

A categoria “alemães”

A categoria “alemães” é usada entre os funcionários do governo brasileiro e


membros de organizações não-governamentais brasileiras como uma forma de definir o
“outro”, os representantes do governo ou de organizações não-governamentais alemãs,
não necessariamente nativos da Alemanha. O fato é que de modo geral nas organizações
alemãs, e particularmente na GTZ, a maioria dos funcionários é composta de alemães
nativos, de descendentes deles, ou de cônjuges de alemães, o que favorece uma
generalização que explica mais um grupo profissional (relações de trabalho, vínculos
profissionais em uma organização alemã de especialistas), do que exatamente identidades
nacionais pessoais. No entanto, a cultura da organização, ou a organização como cultura,
espaço de formulação e de definição de representações, acaba por imprimir uma lógica de
ver e representar o mundo que é considerada alemã, o que supostamente interfere na
definição de identidades pessoais.
Ainda, a definição do que a categoria “alemão” representa para um grupo de
profissionais vimos que é mais do que uma caracterização de ordem “nacional”. O termo
é acionado em vários momentos pelos diferentes atores, seja como categoria de acusação,
subentendendo-se uma crítica por parte dos brasileiros, como também no sentido de uma
superioridade “qualitativa”.
A categoria, no entanto, não garante que se trate de fato de um grupo coeso,
homogêneo. A expressão usada no contexto em que a analisamos refere-se a profissionais
que na maioria das vezes trabalham nos programas de cooperação da GTZ, assim como
de outras instituições alemãs, especialistas na implementação de uma política do
desenvolvimento, produtores e transmissores de conhecimento, no caso alemão chamados

249
de “peritos”. A respeito disso, Josiah Heyman argumenta: “for organizational culture to
be strong, there need to be concrete and efficacious mechanisms by which workers are
socialized into the organization”.407
Profissionais como esses têm freqüentemente trajetórias pessoais muito distintas,
que de forma nenhuma lhes proporciona a idéia de serem parte de um mesmo grupo.
Identifiquei haver entre os chamados “peritos” uma multiplicidade de tipos que não faz
parte exatamente de uma “comunidade”. Em relação à formação e à motivação dos
peritos, há diferentes formas de expressarem o envolvimento, a paixão pelo trabalho que
realizam. Diz uma ex-perita da GTZ:408

Eles são heterogêneos, o pessoal da cooperação. Há os velhos, bem


conservadores, que têm uma visão do desenvolvimento [...] e há os novos que
muitas vezes vêm do movimento e agora já têm a nossa idade, na faixa dos 40,
50, e estão em cargos mais importantes. O pessoal que entra jovem, tipo 25, 30
anos, eles não têm mais a história política. A nova geração não é política. Eu
estou falando daqueles que agora fazem estágio, que vão começar como nós
começamos numa época. Eles não têm mais uma história política. Eles
terminaram o colégio e vão para a universidade. São eficientes. Deve ser a
mesma coisa no Brasil, mas não há aquela coisa da militância.

Ainda assim, a idéia da identidade nacional alemã os aproxima, se não por eles
próprios, mas pelos outros, aqueles com quem lidam, que os classificam
compulsoriamente como um grupo, como uma comunidade imaginada, “os alemães”.
Conhecendo o grupo

Como vimos anteriormente, de todas as diferentes categorias administrativas


adotadas pela GTZ para as funções da política alemã de execução de projetos no exterior,
a mais conhecida e mais usualmente adotada é a de peritos. Outros termos são também
usados, como assessores internacionais, advisors. Uma outra categoria mais geral de
profissionais estrangeiros envolvidos com projetos internacionais de desenvolvimento é
a de cooperante.

407
Heyman, Josiah. “The anthropology of power wielding burocracies”. In: Human organization,
vol.63, nº 4, winter, 2004. p.494.
408
Entrevista em 27.05.03, na sede da FASE, no Rio de Janeiro.

250
Além da GTZ, o termo perito é adotado em documentos oficiais de órgãos
diplomáticos no Brasil e em outros órgãos de governo com os quais a GTZ desenvolve os
projetos. Dependendo da relação que constroem pessoalmente junto aos grupos com os
quais trabalham nos países estrangeiros, a categoria assume conotações ora pejorativas,
associadas à práticas de intervenção e autoridade, ora de mérito e alta estima.
A adaptação do profissional ao país, tanto nos meios governamentais como na
sociedade civil, foi um fator que fez com que se desenvolvessem normas na GTZ para a
sua não-fixação em um só país.
Como já mencionamos, no Brasil todos os peritos de longo prazo da GTZ são
alemães, contratados a partir de uma convocação mundial e de um processo seletivo que
se dá na sede da GTZ, em Eschborn, Alemanha.
Estes cargos são de grande responsabilidade quanto à coordenação das atividades
de um projeto, com as atribuições diferentes das dos chamados peritos locais. Estes,
subordinados aos peritos de longo prazo, assessoram a administração dos projetos e são,
em grande parte, brasileiros. A não contratação de peritos nacionais de longo prazo, como
já disse, justifica-se pela importância do “estranhamento” com as formas de organização
da sociedade com as quais passam a trabalhar, o que poderia ocasionar maior
possibilidade de transformações estruturais do que no caso de alguém mais adaptado à
lógica local. No caso de peritos que atuam há muitos anos em um mesmo país, há um
incentivo à sua remoção para outra região, porque o “elemento surpresa ou de
estranhamento”, tão valorizado para a implementação de novas diretrizes de gestão de
projetos e políticas nos países parceiros, já não existiria mais.

Dificuldades com os peritos e os funcionários da GTZ e a língua alemã

Sabia desde o início que a aproximação com os atores sociais a serem abordados
nesta pesquisa não seria fácil. As maiores barreiras que encontrei no levantamento de
campo com os alemães da burocracia da cooperação em Brasília foi a reserva ou a
resistência de peritos, funcionários, técnicos, consultores da GTZ no Brasil. Foram muitas
as formas de dificultar uma maior aproximação à sua vida particular que, segundo uma
funcionária da GTZ, é sagrada na Alemanha. Como argumenta Weber: “a organização
moderna do serviço público separa a repartição do domicílio privado do funcionário e,

251
em geral, a burocracia segrega a atividade oficial como algo distinto da esfera da vida
privada”.409
Entre o grupo que pesquisava – funcionários da GTZ alemães e não-alemães – fui
identificada socialmente como uma outsider: não sou alemã, não tenho parentes nem tive
cônjuge alemão, não possuo fluência na língua e não morei no país. Nunca trabalhei em
empresas ou agências alemãs e não tinha a experiência prévia do trabalho da GTZ como
consultora, uma possibilidade mais freqüente no caso de pesquisadores. Do ponto de vista
da “comunidade da cooperação internacional”, funcionários que trabalham nesta área, eu
também não me enquadrava: não era funcionária pública nem consultora de agências de
cooperação internacional ou diplomata, profissões afins ao campo das políticas de
cooperação internacional.
Minha relação com os alemães da GTZ restringiu-se a um interesse de pesquisa
antropológica, e esta distância quanto à Alemanha intrigava-os no que dizia respeito aos
meus interesses na pesquisa. Outros trabalhos de antropólogos elaborados anteriormente
foram bastante críticos à GTZ, o que já caracterizava um problema no estabelecimento de
relações de confiança e de troca de informações com os funcionários da agência.
Em primeiro lugar, destacava-se o fato de haver a precedência de dois trabalhos: a
tese de doutorado em antropologia social pela UnB de Ludmila Lima, em 2000, sobre a
atuação da GTZ no projeto PPTAL e sobre as instâncias de conflito entre uma perita da
GTZ e os técnicos brasileiros em um projeto de cooperação. Posteriormente, em 2001,
houve uma “avaliação independente” encomendada pela própria GTZ na forma de uma
consultoria ao antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, chamada “Controle de
Avanço de Projetos”, nos termos administrativos alemães, PFK, em que o autor adotou
uma abordagem muito criteriosa e crítica ao projeto, que não foi publicado. O PFK é uma
forma de avaliação adotada em determinada fase de um projeto para averiguar as
condições para a sua continuidade ou o seu encerramento. Neste sentido, as críticas
tiveram impacto negativo para justificar a continuidade do projeto.
Outro aspecto apontado pelos próprios alemães referia-se à minha falta de fluência
na língua alemã, o que era de grande incômodo para alguns deles que entrevistei, e até

409
Weber, M. “Burocracia”, opus cit., p.230.

252
mesmo para funcionários brasileiros da GTZ que me indagavam como pretendia fazer
uma pesquisa sobre alemães sem dominar o seu idioma.
Como já apontei anteriormente, sabia que a língua alemã tinha uma representação
fundamental no que concerne aos procedimentos administrativos da agência, mas era,
sobretudo, o elemento de identificação de um grupo, aquele que define os limites de uma
comunidade deutschland.410 Mas ainda assim não me foi imprescindível dominar a
língua, pois o grupo com o qual lidava na pesquisa era de alemães falantes do português,
fossem aqueles que ainda estavam no Brasil, ou os que retornaram à Alemanha. Além dos
alemães falantes do português, muitos de meus informantes eram brasileiros que
trabalhavam diretamente com os alemães, desde funcionários do escritório central da
GTZ até os dos projetos, que não eram contratados pela GTZ, mas atuavam em órgãos
governamentais e instituições não-governamentais diretamente com alemães nos projetos
em que a GTZ estava presente.
Apesar de não ser indispensável para a pesquisa o domínio do alemão,
compreendi que esta condição de outsider, por não fazer parte de uma comunidade
deutschland, tinha muitos significados, sobretudo no que se referia a uma posição
hierárquica. A compreensão da língua nos distinguia culturalmente, e neste sentido, a
assimetria se apresentou como um elemento marcante.
Por mais que no plano das relações diplomáticas, do direito internacional, sejam
firmados o compromisso de horizontalidade e a simetria nos vínculos contratuais que
formalizam uma relação de cooperação entre dois países,411 as assimetrias culturais
revivem, fortalecem-se e reinventam-se todo o tempo nas relações pessoais entre
profissionais alemães que atuam junto com os brasileiros diretamente nos projetos e,
indiretamente, na rede mais ampla da administração pública brasileira. E uma das formas
mais eficazes de marcar as diferenças e as hierarquias é a língua. Falar o alemão
determina não somente as distintas nacionalidades em questão, mas também a
superioridade hierárquica do outro – o doador, o civilizado, o perito – e os limites até

410
Expressão encontrada em uma revista alemã, “Deutschland”
411
Refiro-me particularmente ao acordo básico de cooperação técnica entre o governo da República
Federativa do Brasil e o governo da República Federal da Alemanha; nele, nos primeiros parágrafos, como
premissas fundamentais das relações entre os países, as bases são definidas como: “relações amistosas”,
“interesses comuns”, “igualdade entre os povos”.

253
onde é permitido a nós – receptores, subdesenvolvidos, ignorantes – saber ou participar
de seu grupo.
Esta classificação hierárquica é percebida nas relações com os peritos e até
mesmo com os funcionários administrativos da GTZ. Falar ou não a língua da
organização de cooperação, no caso a alemã, estabelece imediatamente uma linha
divisória e determinante das hierarquias existentes entre brasileiros e alemães.
Pesquisar nestas condições pouco familiares e pouco interessantes para os
“pesquisados” dificultou em muito a aproximação e o estabelecimento dos laços de
confiança necessários para uma pesquisa etnográfica. Como o objetivo inicial da pesquisa
era priorizar os relatos pessoais de profissionais alemães atuando na “cooperação técnica”
da GTZ nos projetos com povos indígenas no Brasil, sobretudo daqueles que tinham uma
trabalho anterior, fosse em igrejas, fosse em organizações não-governamentais nos anos
70, a dificuldade de aproximação com os alemães praticamente inviabilizava o estudo.
De um total de 53 pessoas entrevistadas formal ou informalmente, cerca da
metade foi de alemães falantes do português e que atuavam profissionalmente nas
principais instituições do BMZ: 16 funcionários, peritos e diretores da GTZ, um diretor
do KfW e um da embaixada da Alemanha, além de uma diretora da Fundação Heinrich
Böll. Foram também estabelecidos contatos e solicitadas informações por e-mail sobre
redes de ONGs alemãs a sete membros de redes que apóiam iniciativas na Amazônia e a
pesquisadores de universidades que investigam questões relativas a impactos de grandes
projetos na Amazônia. No Rio de Janeiro, entrevistei ainda um antropólogo alemão que
veio fazer seu pós-doutorado no PPGAS/Museu Nacional, e que conhecia muitas pessoas
que trabalhavam em ONGs e em agências do governo alemão com projetos de
cooperação da Alemanha.

A relação entre alemães e brasileiros nos setores públicos

Os peritos da GTZ trabalham diretamente nas instituições nacionais que executam


os projetos e não no escritório da agência. Esta relação muito próxima cria alguns
conflitos de convivência. Normalmente, nos projetos em que a GTZ participa no Brasil

254
junto com órgãos de governo, é criada uma infra-estrutura de equipamentos – mesas,
computadores, telefones, fax, ploter, impressoras, armários, estantes e muitas pastas –
como também de pessoal disponível – secretárias e assessores – para que sejam
estabelecidos em cada ministério, secretaria ou fundação um tipo de “escritório” da GTZ.
Este escritório muitas vezes é equipado com condições que superam em muito as
dificuldades habituais nas repartições públicas onde elas se instalam. Na maioria dos
ministérios, os funcionários compartilham um mesmo espaço amplo, salas comuns, sendo
separados por mesas e divisórias baixas para “melhor comunicação entre a equipe”, as
chamadas “baias”. Esta arrumação segue uma tendência na lógica da administração
“moderna”. A sala da GTZ encontra-se normalmente destacada deste espaço comum,
separada por divisórias, muitas vezes semelhante a uma “sala do chefe”, em que fica o
“perito” da GTZ com seus secretários e assessores. Isto valia para o caso dos projetos do
PPG-7.
Esta disposição de um “escritório à parte” varia, no entanto, de perito para perito,
tendo mais relação com a personalidade da pessoa que ocupa o cargo do que
propriamente com as atribuições do trabalho da GTZ no país. Visitei alguns dos
escritórios de governo em que a GTZ atua em Brasília, e constatei que a disposição das
salas ou dos gabinetes dos peritos variava. No caso do PD/A, o “perito” alemão ocupava
uma pequena sala, separada por uma divisória baixa, como os outros membros da equipe.
O mesmo não ocorria no caso do projeto AMA (Projetos de Avaliação, Monitoramento e
Análise), em que a perita se destacava do restante da equipe, isolada em uma sala
separada por divisórias até o teto, com uma placa na porta indicando ser ali a GTZ,
propriamente, sendo a funcionária a própria representação da agência.
Por que então um “perito” alemão ficaria reservado em uma sala fechada, com
uma porta com placa na qual se lê GTZ? Esta pergunta eventualmente retornava quando
lia nos documentos da GTZ referências ao caráter “participativo” de seus projetos. Era
uma demonstração explícita de uso do poder, mantendo-se em reserva como autoridade,
com segredos que nenhuma área da administração local conhece.
A presença física de escritórios montados da GTZ em salas do Ministério do Meio
Ambiente, no IBAMA e na Funai convencia-me de que a chamada “cooperação

255
internacional” alemã diferenciava-se de outras agências de cooperação também presentes
no programa do PPG-7 ou de outras cujos trabalhos se direcionavam para a Amazônia.
A conquista de espaços na administração pública é uma batalha custosa e
delicada. Os mecanismos para cessão de salas ou de mesas ou cadeiras em um
departamento público são complexos e exigem o domínio das regras das instituições, o
proveito de prestígio e influência ou o exercício de poder em função da hierarquia.
Presenciei situações em que alguns funcionários antigos e sabedores das normas da casa
tinham informações sobre a existência de uma mesa disponível e conseguiam que a
transportassem para a sua sala, quando o procedimento indicava que o coordenador
deveria solicitá-la ao departamento de serviços gerais. Em outras, o acesso a salas
amplas, confortáveis, com linhas telefônicas particulares era restrito a funcionários
hierarquicamente superiores ou que gozavam de certo prestígio ou poder na estrutura
burocrática. Em nenhum dos casos a GTZ se encaixaria, considerando-se não fazer parte
da estrutura administrativa, da burocracia em questão, mas de uma outra burocracia,
ainda por cima estrangeira, alemã.
Quanto às formas de relação dos peritos da GTZ com as equipes dos projetos, elas
podem variar bastante, refletindo muitas vezes a história pessoal do próprio “perito”, seu
tempo no Brasil, seu conhecimento da cultura.

Peritos: representações e auto-representações

Sobre o termo perito, alguns alemães que atuaram nesta função o rejeitam, pois na
visão deles tem relação com a idéia de “especialista”. Os que são assim chamados
declaram:
O perito é um cara... Eu não gosto disso, “perito”, “cachorrinho”. Consultor, nós
éramos consultores. Só que, naquele tempo, nós tínhamos um cargo, uma
denominação. Aqui no Brasil não tem ninguém que seja Regierungsberater(in) –
consultor(a) governamental. Esse consultor, em países menos importantes que o
Brasil tem mais esse tipo de consultor, na África, por exemplo. Aqui no Brasil
não. Não querem ninguém que ajude nas decisões macro.412

Outra funcionária da GTZ argumenta no mesmo sentido:

412
Entrevista concedida em Belo Horizonte, , opus cit.

256
Não gosto do termo“perita”. Prefiro usar o termo “assistente”, que é como eu me
sinto, prestando ajuda e não numa definição que me coloca como especialista.
A equipe do PDPI é toda muito jovem, com pouca prática de projetos. Procuro
atuar neste sentido, de ajudar a organizar projetos, dando cursos e capacitação, na
elaboração de oficinas, monitoria e administração. Para mim, perito tem uma
conotação de expert, e não é isso que busco fazer, mas sim dar orientações.413

O termo perito é adotado pela GTZ no sentido formal para “profissionais liberais
(free lancer) que trabalham para a empresa no âmbito de um contrato de locação de
trabalho ou serviços na Alemanha ou no estrangeiro”.414 Nestes termos, a categoria
encaixa-se àquele profissional sem vínculos formais de trabalho com a GTZ, o que
poderia se definir como consultores eventuais.
A palavra perito tem muitas vezes no Brasil uma conotação pejorativa,
relacionada a uma figura autoritária, intervencionista, distanciada e até mesmo hostil. São
muitas as críticas que escutamos no Brasil em relação ao trabalho de peritos alemães ou
experts, o que não corresponde exatamente às exigências do cargo que desempenham. Há
casos em que o perito não domina o assunto do projeto em que trabalha, mas sim a
atividade de planejamento e a sua execução, além da aplicação das normas e dos
procedimentos da GTZ para as quais são treinados por meio de cursos que recebem na
Alemanha e de estágios práticos que fazem em campo junto a outros peritos mais
experientes.

Origens de uma mesma trajetória em comum: solidariedade e cooperação

A partir de 2003, a ministra Heidemarie Wieczorek-Seul implantou um processo


de reformas no BMZ para melhorar o desempenho de suas políticas, o que implicou o
corte de diretorias e divisões de sua estrutura e a promoção de maior aproximação e
integração entre os trabalhos de suas instituições executoras, forma de melhorar os
resultados da política de cooperação através da complementaridade entre eles. De acordo
com o site do ministério, as reformas vieram em função dos fracos resultados obtidos

413
Entrevista concedida em 2 de setembro de 2005, em Manaus.
414
GTZ. Compêndio do vocabulário da GTZ. Eschborn: GTZ, 1997, p.213.

257
diante dos objetivos propostos pela política de cooperação para o desenvolvimento.415
Para um perito experiente da GTZ, atualmente aposentado, este processo tem sido
incorporado facilmente pelas agências:416

Eu acho que a GTZ, ao menos ela, está querendo cooperar com atividades do
KfW e com atividades dos serviços de voluntários alemães, do DED, tanto que,
sempre que tivemos reuniões, isso foi falado. Chegaram a fazer convênios em
nível local... Esses projetos, todos, principalmente os últimos dois, nós
cooperávamos com o DED e com outras pequenas empresas que não eram
alemães não, eram locais mesmo: igrejas, associações, amigos de certa reunião
com quem nós fizemos convênios, trabalhamos juntos. Porque a GTZ
inicialmente não fazia muito isso não. Não fazia cooperação com o DED, por
exemplo. Até porque o DED e a GTZ foram se aproximando mais porque
dirigentes da GTZ foram ser dirigentes do DED e vice-versa. Um dos diretores
da GTZ durante muito tempo foi diretor do DED na Alemanha. Então, isso deve
ter ajudado a aproximação.

O relato acima nos revela as formas como as interações e as conexões entre um


mesmo grupo de estrangeiros se dão no “campo da cooperação”, não somente no plano
das instituições, mas fortemente consolidada através das relações entre os funcionários de
cada uma dessas instituições nos países onde atuam. Ainda que estejam em cidades
distantes, como acontece no caso do Brasil em que os escritórios das instituições se
dividem entre Brasília, Recife, Rio de Janeiro, Ceará, Porto Alegre e Manaus, ou onde se
localizam as bases de projetos, há um constante contato entre esses funcionários, seja em
eventos e reuniões, seja em comemorações e festividades da embaixada da Alemanha no
Brasil, ou mesmo por motivos pessoais, quando já se conheciam da Alemanha, em função
de atuarem politicamente no “campo do desenvolvimento”. Por motivos profissionais, é
comum também que um funcionário mude de uma instituição para outra ao final de um
projeto para variar sua forma de atuação em um país em que queira permanecer.
É muito comum os profissionais alemães no campo do desenvolvimento
apresentarem uma trajetória que se origina em trabalhos vinculados aos movimentos
sociais organizados e alcança depois os espaços formalizados de uma agência de
cooperação do governo. Mesmo sendo responsáveis por um programa da GTZ no Brasil e
de representarem a agência na articulação política para a organização de um evento de

415
Ver www.bmz.de
416
Entrevista concedida em Belo Horizonte, , opus cit.

258
porte internacional, muitos deles ainda se identificam com uma forma de atuar, de
“defender direitos”, de fazer reivindicações e de denunciar que decorre da formação
prática adquirida, principalmente, nesses movimentos sociais. A experiência que advém
de trabalhos desenvolvidos por organizações não-governamentais em várias regiões do
mundo de certa forma “especializa” essas pessoas para o trabalho desenvolvido na GTZ,
em que assumem a posição de peritos ou de gerentes de programas. A trajetória já
trilhada pelo setor não-governamental ou pela sociedade civil sustentou a formação de
um conjunto de saberes associados a uma tradição de ativismo político, realizado por
grupos organizados da sociedade civil e por grupos ligados a igrejas, os quais atuavam
em trabalhos de base com fundamentos socialistas, cristãos, democráticos, de
solidariedade e de defesa de direitos humanos.
No entanto, a quantidade de regras administrativas e muitas escalas de decisão
características de uma estrutura hierárquica verticalizada geram insatisfação entre esses
profissionais oriundos de ONGs, principalmente os mais experientes e mais velhos.
Importante me pareceu um aspecto ideológico de filiação governamental ou não-
governamental, o que incomodava a alguns dos funcionários ou ex-funcionários da GTZ
que entrevistei e que faziam parte do grupo que vinha da militância. Como relatou uma
cientista política que foi da GTZ: “[...] porque nossas redes dentro desses órgãos onde
trabalhamos são diferentes: tem os conservadores, tem os progressistas, tem aqueles com
passado de militância, tudo na mesma organização”.417
Os vínculos existentes entre as instituições alemãs, governamentais e não-
governamentais, não se restringem ao discurso formal do ministério, mas é evidente
mesmo nas práticas dos profissionais que implementam estas políticas localmente, que
acabam colaborando uns com os outros e beneficiando-se mutuamente de uma maior
aproximação entre seus trabalhos. Como argumenta um alto funcionário da embaixada da
Alemanha em Brasília:

Agora, eu acho que em nível regional, em nível de projetos, a gente deve


cooperar o mais abrangentemente possível, não é? Porque muitas vezes a GTZ
era vista na cooperação só como financiador de algum projeto... o que não era
certo não, não era só... Porque nesse projeto, neste último, nós tínhamos até
alguns convênios com igrejas na Alemanha; não era Misereor, não, era menor

417
Entrevista em 27.05.03, na sede da FASE, no Rio de Janeiro.

259
[esqueceu]. Então, nós cooperamos muito bem com eles, sem problema nenhum,
sabe, uma cooperação sadia, troca de experiências, planejamento, planejamento
em conjunto.418

Como mencionado acima, as atividades de apoio a movimentos políticos e sociais


pela democracia e as guerrilhas no Brasil e na América Latina, que tiveram grande força
nos anos 60 e 70, promoveram uma articulação entre grupos de organizações da
sociedade civil alemã e brasileira, ora informalmente, ora formalmente, que em muitos
casos se estende até os dias de hoje. Se tais laços não se estabeleceram por meios
institucionais, eles foram construídos por estudantes, ativistas, políticos, jornalistas e
outros profissionais que criaram vínculos com o país.
Esta tradição, pelo que podemos ver no Brasil, tem uma base política de ação
fundamentada no pensamento marxista e na tradição cristã. Os vínculos entre
representantes alemães (os cooperantes) de organizações no Brasil, estruturados por meio
das Comunidades Eclesiais de Base e das organizações não-governamentais – em
gestação ainda no período do regime autoritário – prolongaram-se ao longo de muitos
anos, criando articulações políticas que viabilizaram a entrada de representantes da GTZ.
O trabalho da sociedade civil alemã no Brasil continua ativo e certamente
contribuiu para ampliar as possibilidades de atuação do setor governamental alemão. As
agências internacionais de forma geral e, de forma particular as alemãs, contavam com
um quadro de funcionários ou consultores (peritos, especialistas, ou que nome dessem) já
estabelecidos no país, com conhecimento do “campo”, ou seja, das políticas locais, das
lideranças e dos representantes políticos com os quais iam trabalhar.419
Pude constatar isso no final de 2002 e início de 2003, quando entrei em contato
por meio eletrônico com um conjunto de profissionais alemães atuantes em redes de
ONGs na Amazônia brasileira, como Urgewald, Katalyse, Klimabuendnis e
Tropenwaldnetzwerk (Rede da Floresta Tropical); pesquisadores alemães que estudam
impactos de grandes projetos sobre povos indígenas na Amazônia; também os das
universidades, como Kassel, Marburg, além da Universidade Livre de Berlim.

418
Rainer Willingshoffer, em entrevista em 2003, em Brasília.
419
Este é um know-how que instituições que atuam internacionalmente têm, uma capacidade de
identificar, em pouco tempo, quais são as pessoas-chave, os “canais” pelos quais podem navegar e fazer
conexões políticas localmente, viabilizando os seus trabalhos no país.

260
Pessoalmente, entrevistei no Rio de Janeiro no mesmo período alguns antropólogos que
trabalhavam em ONGs nacionais, bem como o diretor da Fundação Heinrich Böll.
Verifiquei a capacidade de articulação discreta e bem enredada dos alemães no
campo ambiental no Brasil, tanto na esfera governamental como na não-governamental.
Mantêm, além da sua discrição, até mesmo certa invisibilidade no que se refere aos meios
políticos de Brasília, numa construção contínua de relações ao longo de quarenta anos,
consolidada em relações diplomáticas, através dos meios oficiais de “Estado” e de
organizações científicas, acadêmicas, institutos de pesquisa agrícola e escolas de
tecnologia. Estes estruturam-se no Brasil em bases localizadas, distantes muitas vezes dos
centros de poder, em projetos de ONGs alemãs com secretarias municipais ou estaduais,
ou mesmo com outras ONGs brasileiras. Tal forma de inserção no campo social e
ambiental consolidou hoje no Brasil um espaço político para organizações alemãs,
governamentais e não-governamentais.
Trabalhos sobre direitos indígenas à terra e questões relativas a conhecimentos
tradicionais de populações indígenas, percebidos no exterior como algo “tipicamente
brasileiro”, são preocupações de europeus, norte-americanos, de habitantes do mundo
inteiro, conectados por informações veiculadas por meios eletrônicos e televisivos –
Internet, tv a cabo, e-mail.
Desde os anos 60, a mobilização em torno de denúncias sobre problemas sociais
ou ambientais no Brasil e em outros países do “Terceiro Mundo”, provenientes de
brasileiros e estrangeiros, principalmente europeus e norte-americanos, tem sido uma
forma de ação política. O ativismo, ao longo de décadas, de estudantes, jornalistas,
cientistas políticos, sociólogos do Brasil e da Alemanha, visando às relações de apoio a
movimentos políticos e sociais por meio de instituições religiosas, criou vínculos,
estabeleceu relações profissionais e pessoais entre alemães e o Brasil, que até mesmo se
formalizaram profissionalmente em arranjos, programas e convênios institucionais
através das agências de cooperação para o desenvolvimento. Uma perita alemã da GTZ
que entrevistei concorda com esta idéia:

A experiência nas ONGs pode ser considerado um estágio para se trabalhar com
a GTZ na cooperação técnica, porque quando se é jovem, o trabalho nas ONGs se

261
direciona para atividades no exterior, como voluntários, o que de certa forma se
420
dá quando você trabalha na cooperação técnica.

Alguns desses contatos estendem-se até hoje, em relações mais “profissionais”,


através da institucionalidade das agências de cooperação para o desenvolvimento.421
Muitos dos antigos ativistas políticos e participantes de organizações não-governamentais
de apoio a movimentos sociais na América Latina e no Brasil, desde a área de direitos
humanos até trabalhadores rurais e assentamentos, povos indígenas e outros, assumiram
posições importantes na GTZ. Não necessariamente permaneceram lá, mas estiveram em
postos de decisão em momentos importantes da atuação da GTZ em projetos no Brasil.422
O que definimos acima como vínculos entre brasileiros e alemães, que se deram
na forma de arranjos e convênios institucionais, podem ser mais especificamente tratados
por redes sociais, uma estratégia importante de mobilização política desde os anos 1960,
particularmente em regimes autoritários. A sua repercussão no exterior dava legitimidade
a “lutas” políticas por democracia, direitos humanos, civis, culturais e econômicos no
chamado “Terceiro Mundo”.
A idéia de redes sociais me parece adequada para pensar este contexto em que as
relações entre alemães e brasileiros se articularam em torno de uma “ação política” de
defesa dos direitos e da democracia, o que posteriormente iria desencadear programas e
projetos orientados para o desenvolvimento social no Brasil.
As diferentes abordagens sobre o conceito de “rede” foram ampla e claramente
exploradas por Ana Enne em sua tese de doutorado, na qual argumenta que rede é um
tipo de configuração social que se caracteriza por ser fluida, não necessariamente de
contato direto entre seus membros, como ocorre entre “grupos” sociais ou agrupamentos.
Como argumenta:423

[Nas redes] as relações se dão através de links entre os agentes, de forma


interpessoal, marcados por um fluxo de informações, bens e serviços que irão

420
Claudia Herlt, em entrevista na GTZ, em 12.09.2003, Brasília.
421
Ex-funcionária da GTZ, em entrevista em 27.05.03, na sede da FASE, no Rio de Janeiro.
422
Alguns deles: Regine Schönenberg, Thomas Fatheuer, Rainer Willingshoffer, Claudia Herlt e
Dietmar Wenz, este último do KfW.
423
Enne, Ana Lucia Silva, opus cit., p.151.

262
resultar em processos de interação cujas fronteiras não são estáticas, mas
encontram-se em permanente construção e desconstrução.

Em seu estudo, Enne trabalha com as categorias de redes e sub-redes para


descrever o sistema de fluxos e interações entre agentes e agências que lidam com
memória e história da Baixada Fluminense, para o que analisa as contribuições de alguns
dos autores que exploraram a definição do conceito.
Para Epstein, uma rede é feita de pares de pessoas que interagem uma com a outra
em termos de categorias sociais e que se consideram praticamente iguais socialmente,
ignorando pequenas diferenças de status social entre eles.424
Carl Landé425 analisa o conceito de rede partindo de seu par original, o qual
chama de “díade”, unidade da rede. Define díades como a menor estrutura possível de
uma relação, envolvendo alguma forma de interação entre dois indivíduos somente. Uma
rede social seria composta por uma série de relações diádicas, ou seja, seria formada “por
todas aquelas pessoas que estão ligadas umas às outras direta ou indiretamente”. Redes
sociais têm sido definidas como matrizes de relações sociais ou como campos sociais
feitos de relações entre pessoas. Incluem todos os indivíduos que se encontram em um
dado campo e que estão direta ou indiretamente em contato uns com os outros. Isto
significa que inclui todos os indivíduos que estão conectados diretamente com ao menos
um outro membro da rede.
Clyde Mitchell426 aprofunda a conceituação e propõe uma série de critérios
formais e outros relativos à interação em si. Ao sugerir a utilização do conceito de rede
para o estudo de sociedades complexas e urbanas, Mitchell vai apontar a existência de
dois tipos de redes: uma envolvendo a troca de bens e serviços; a outra englobando a
troca de informações, sendo esta segunda um processo de comunicação. Também Epstein
vai adotar esta idéia em seus estudos urbanos, pensando a rede como um sistema de
trocas de informações capaz de gerar padrões normativos para as condutas dos grupos e,
conseqüentemente, padrões de identificação.
424
Epstein, A. L. “Gossip, norms and social network”, opus cit.; Enne, Ana Lucia Silva, idem, p.147.
425
Landé, Carl. “Introduction: the dyadic basis of clientelism”. In: Schmidt, Steffen et alii (ed.).
Friends, follower ,and factions. A reader in political clientelism. Berkeley: University of California Press,
1977, p.xxxiii; Enne, Ana Lucia Silva, idem, p.141.
426
Mitchell, J. Clyde. “The concept and use of social networks”. In: ______ (ed.). Social networks in
urban situations. Manchester: Manchester University Press, 1969. p.12.

263
É neste sentido, de troca de bens e serviços e de troca de informações, que o
conceito de rede deve ser pensado para analisar as relações entre indivíduos que se
envolvem nas chamadas atividades (de cooperação) para o desenvolvimento, o que
implica o seu deslocamento para as mais variadas partes do mundo movidos por ideais de
solidariedade e mudança social.
As redes de ONGs têm um papel fundamental na articulação da sociedade civil
local e no diálogo com organismos internacionais. Essa articulação expressa não somente
uma intensa comunicação e troca de informações entre as instituições e as pessoas que
participam das ONGs, mas também são formas locais de lidar e negociar diante de
processos decisórios que envolvem organismos multilaterais ou bilaterais. Há redes que
são formadas a partir de determinados temas específicos (direitos humanos, meio
ambiente, povos indígenas), em função da própria mobilização política dos seus
membros, mas também podem se definir a partir de uma maneira de atuação orientada
para determinada região geográfica (Amazônia, Nordeste brasileiro, por exemplo), não
sendo raro, no entanto, aquelas que apresentem ambos os aspectos.
Consideramos o argumento de que o trabalho de ativistas e voluntários de
movimentos políticos alemães e brasileiros na década de 1970 foi uma etapa importante
na consolidação de uma rede entre brasileiros e alemães, o que é apontado nesta
declaração de uma perita alemã da GTZ:

Trabalhei, antes de entrar na GTZ, na vice-presidência de uma rede de ONGs


alemãs por seis anos e por isso conheço muita gente aqui no Brasil. Conheci
nesse tempo o Paul F. Fatheuer (na época perito do PDA, pela GTZ) e o Dietmar
Weinz (então diretor do banco KfW), quando éramos ligados a movimentos
sociais.

Como vimos, as redes aparecem e suas conexões são esclarecidas conforme


avançamos nos relatos pessoais, nas experiências específicas de cada funcionário da
GTZ, cujas trajetórias, ainda que muito distintas, têm certos aspectos em comum, em
algum momento se cruzam e se tocam umas com as outras, como veremos a seguir.

Trajetórias pessoais

264
A seguir, tratarei de quatro casos de peritos que trabalharam na GTZ no Brasil,
pertencentes a duas gerações distintas: de um lado, peritos na faixa dos 70 anos, com
formação em áreas agronômica e biológica; de outro, peritos em torno de 40-50 anos, de
formação na área de humanas, em ciência política e sociologia, experiências que são
muito ilustrativas da variedade de pessoas envolvidas e dos aspectos em comum entre
eles, revelando, desta perspectiva, como é o trabalho da GTZ no Brasil.

1. Albert L.– das bases para altas cúpulas e de volta para as bases
Albert L.é uma referência para muitos profissionais na GTZ, tanto em função de
sua longa experiência na GTZ, mas também por ser um profissional exemplar no campo
da cooperação. Logo ao entrar em contato, por meio telefônico, ele foi receptivo e não
criou dificuldades em conceder a entrevista. Lamster é um senhor alemão oriundo da
Baviera, sul da Alemanha, casado com uma alemã oriental e com três filhos também
alemães, dos quais somente a filha vive no país de origem. Quando o entrevistei, em
início de 2007, tinha 65 anos. Albert mora no Brasil desde 1969 e não parece ter interesse
em voltar a viver na Alemanha. Lá se formou em engenharia agrícola e engenharia
agronômica, e tem mestrado em agricultura. Ficou por mais de trinta anos na GTZ, de
1969 e 2004, trabalhando em todo o Brasil, além de prestar consultorias no exterior para
várias organizações, como Banco Mundial, ICCA, KfW e empresas particulares. Reside
atualmente em Belo Horizonte, (MG), onde vive com recursos de sua aposentadoria.
Em seu relato pessoal, prioriza o fato de ser uma pessoa cujo trabalho é orientado
sobretudo pela sua experiência prática de campo, e não por ideologias. Enfatiza a
formação técnica que teve na área agrícola. Trabalhou no Brasil, durante o período
autoritário, diretamente com os militares na política para a agricultura, mas em nenhum
momento isto foi apresentado como um problema, ao contrário, cita alguns deles dos
quais é amigo pessoal.

Naquele tempo, o Kruger até disse pra mim naquela exposição dos 40 anos:
“Albert, nós não podíamos usar fotografia de vocês porque você sempre aparece
com os militares”. Daquele tempo eu não posso reclamar de nada. Por exemplo,
no programa que nós fizemos, a cada ano nós trazíamos o melhor governador, o
melhor secretário o melhor produtor de cada estado, as melhores cooperativas,
convidávamos para Brasília e o João Figueiredo recebia essas pessoas no Palácio,

265
almoçava com eles. Hoje não sei se... um assessor de política, talvez, convidaria
gente pobre, pequeno produtor do interior do Piauí. Então, foi uma época muito
produtiva. O Aureliano Chaves é um político muito sério, foi governador de MG
e é meu amigo, ele é fantástico. O filho dele eu encontro nos sábados, igual ao
pai.

Em sua fala, notamos que Albert não tem uma postura política, como alguns de
seus “colegas” da GTZ, que se posicionam claramente com uma orientação de esquerda.
Albert representa uma geração mais antiga, que tinha uma linha de atuação estritamente
“técnica”, ou seja, centrada nas práticas, nos mecanismos, nas metodologias, e menos nas
ideologias, atuando com o mesmo compromisso e dedicação junto a militares no poder e
junto a pequenas comunidades rurais no interior do país. Ele valoriza, sobretudo, as
relações que estabeleceu com as pessoas com as quais se envolveu no trabalho.
É uma pessoa simpática e acolhedora. Recebeu-me na rodoviária e seguimos para
a sua confortável casa, decorada em um estilo colonial mineiro, com muitos passarinhos e
objetos de decoração do artesanato regional. Preparou ele mesmo um jantar com carne de
porco, e bebeu muita cerveja, sem se alterar. A entrevista transcorreu em tom muito
agradável, sendo ele muito direto em sua narrativa.
Colocou uma música tradicional alemã e falou sobre seus hobbies depois de
aposentado pela GTZ da Alemanha: começou a aprender a tocar viola caipira por conta
própria e a trabalhar em entalhes e pequenas esculturas de madeira e couro, o que
aprendeu na Alemanha. Gosta de fazer particularmente os santos, entre eles vários São
Franciscos. Diz ter fascínio pela arte popular e falou longamente sobre como aprendeu
com o povo em sua vida profissional, sobre a importância que dá à “sabedoria popular”.
Falar sobre isso parecia ser uma forma de legitimar sua própria relação com o trabalho
que fazia, ligado diretamente às comunidades de pequenos produtores rurais. Revelava
não só o prazer que tinha em seu trabalho, mas também o compromisso ético, o que se
refletiu no sucesso dos projetos e, sobretudo, no reconhecimento local. Para ele, o que o
sustentou foi o reconhecimento local, um reconhecimento tanto das comunidades com as
quais trabalhou, como aquele que foi formalizado em condecorações oficiais a ele dadas
por vários estados do Brasil, como afirmou: “Eu sou cidadão honorário do estado de MG

266
como primeiro estrangeiro, sou cidadão honorário de Santa Catarina como primeiro
estrangeiro; aqui, em Minas Gerais, sou cidadão honorário de mais de 20 cidades”.
A trajetória de Albert na área de cooperação técnica internacional começou
praticamente junto com a criação do ministério de cooperação, o BMZ, na Alemanha, na
década de 60. Neste período em que ele começou, o trabalho de perito se baseava na
transmissão de técnicas, métodos, metodologias, para o qual eram contratados
profissionais de formação em áreas técnicas específicas. Atualmente, segundo ele, são
valorizados profissionais de formação humanista, como sociólogos, pedagogos,
jornalistas, teólogos, entre outros, o que para ele reflete uma perda da qualidade do
trabalho da GTZ.
Sua experiência profissional no exterior começou no Paraguai, onde trabalhou por
dois anos para um diplomata alemão no noroeste deste país (1963-64), abrindo a primeira
“hazienda”. Em fins de 1964, comprou uma chácara no Paraná, na qual havia uma área
de mata virgem, onde trabalhou, como disse, “igual a um colono”, criando porcos. Havia
pedido um empréstimo do Banco do Brasil para fazer uma suinocultura mas, com o
primeiro surto de peste suína no Brasil, todos os seus porcos morreram. Dessa maneira,
bastante endividado, aceitou de novo um emprego, entre 1965 e 1969, em uma empresa
(M. J. Philip) que estava no sudeste do Paraná fazendo 35.000ha de “projetos de
colonização”. Foi responsável pelo mapeamento e planejamento de duas cidades. Em
1969 voltou para a Alemanha para trabalhar em um projeto de consultoria internacional a
respeito de algodão em Gana, mas antes de embarcar interessou-se mais por um cargo a
ele oferecido por uma pessoa do Ministério da Agricultura da Alemanha para trabalhar
em consultoria técnica em Minas Gerais.427 Segundo ele, naquele tempo, quem contratava
era a GAWI, empresa antecessora da GTZ. Esta foi a porta de entrada nos quadros da
cooperação técnica alemã.
No Brasil, fez homefarmer research (pesquisa sobre agricultura familiar) em MG,
de 1969 até 1974. Entre 1974 e 1977, foi consultor da Secretaria de Agricultura de MG,
na qual foi criado o programa Provárzeas-MG, que visava à utilização de 1,5 milhão de
hectares de várzeas para produção agrícola.

427
Segundo ele, quem comandava a cooperação era um departamento deste Ministério de
Agricultura.

267
De 1978 a 1986, trabalhou com o então ministro Paulinelli, que foi secretário da
agricultura de MG. Quando foi chamado pelo Gel. Ernesto Geisel para Brasília para ser o
secretário da agricultura, Paulinelli levou Albert para lá, onde foi criado um outro projeto
de assessoria ao ministro da agricultura.

Depois se seguiu o Delfim Netto, que foi um ministro chefe, um superministro de


E. Geisel e Figueiredo. Era ainda governo militar. Eu trabalhei com Delfim
Netto, para quem escrevi muitas palestras. Cada um queria que eu ficasse; eu
fiquei com meu gabinete lá, ficava no 8º. Andar, ao lado do ministro. Sempre
fiquei sem que eu pedisse para ficar, eles é que me pediam. E a gente conseguia
fazer muita coisa.

Foi considerado nos anos 1975-80 o maior entendido em arroz da América Latina.
Viajava para todos os centros de pesquisa do mundo, foi consultor em assuntos de
várzeas em toda a América Latina. Depois de 1986, quando terminou a assessoria da
GTZ ao projeto Provárzea, trabalhou como consultor independente no Projeto Jari, de
Daniel K. Ludwig, em propriedades rurais na Amazônia, entre 1987 e 1990, onde fez o
levantamento de todas as várzeas do estuário do Rio Amazonas junto com centros de
pesquisa da Embrapa e do Cepatur, em Belém. Em 1990 foi chamado para um projeto de
profissionalização de agricultores de Santa Catarina, onde ficou até 1996. Dali, ocupou o
cargo de consultor do KfW no projeto Proteção da Mata Atlântica de SP.
Ele tinha um status especial entre os peritos da GTZ: era um dos poucos técnicos
que tinha contrato sem vencimentos. Em todas as regiões onde a GTZ atua no mundo, há
somente cerca de cem técnicos com este contrato, o “filé mignon” da GTZ, como disse,
destinado àqueles profissionais mais versáteis, mais competentes e experientes, que eles
usam para diferentes funções. Explica: “Você se compromete a trabalhar na GTZ até se
aposentar. Então, dentro deste contrato, você pega os outros contratos de dois, três, quatro
anos, mas nunca fica desempregado”.
Entre 1998 e 2002, assumiu a coordenação do ProRenda Rural, projetado para
durar doze anos, mas que foi subitamente interrompido ao atingir os quatro anos. Ficou
por mais dois anos assessorando, mas aposentou-se precocemente em 2004 em função de
sérios desentendimentos que teve com seu supervisor. Lamentou muito o contexto que

268
marcou sua saída, como se toda a sua trajetória de vida profissional para a qual tanto se
dedicou tivesse perdido o rumo em uma nova e distinta GTZ. Diz:

Eu tive assim, no final na minha vida profissional, dificuldades, porque em todas


as reuniões da GTZ, eu estava sozinho com as minhas idéias. Quando eu falava
com meus colegas, fora do ambiente de trabalho, todo mundo estava de acordo,
mas quando eu colocava minhas idéias no plenário, ninguém me apoiava. Eles
tinham medo, sabe, aquele medo de perder o emprego. Isso me... Eu falava:
“Vocês são cagões! Por que vocês não lutam junto comigo?”. E depois um monte
de coisas. Eu trabalhei muito para a transferência de recursos, para ajudar, para
dar engrenagem às coisas. E aqui, no final, eu fiquei assim como se fosse um
bobão. Eu mostrava os prós e os contras. Eu lutava sozinho. Eu trabalhava com
os agricultores aqui... então, uma das atividades era artesanato. Cada vez que
tinha reunião em Brasília, eu levava a van cheia de artesanato, expus lá, levei
agricultores. O pessoal falou: Olha o Albert, está querendo ganhar dinheiro com
venda de artesanato. Coisa triste, não é? Sabe de uma coisa? Eu falei: “Não,
vocês não me merecem mais. Eu não fico mais aqui!”. Eu podia estar trabalhando
até hoje, mas eu não encontrei mais ressonância. E todo mundo estava me
procurando: “Albert, o que você acha?”, porque eu tinha mais experiência. Todo
mundo pegava conselhos meus.

Albert saiu muito ressentido da GTZ em 2004 – depois de trabalhar, entre idas e
vindas, durante trinta e cinco anos em projetos da GTZ no Brasil – por causa da falta de
reconhecimento de sua dedicação à “causa”, especialmente à empresa. Disse sempre ter
lutado para ter uma boa imagem: “ajudar a GTZ, ajudar a cooperação alemã porque eu
acho uma coisa fantástica”, o que parece ter ocasionado muito problema porque gerou
inveja entre os funcionários. Diziam que ele queria subir, projetar-se. “Se pensam assim,
eu não posso fazer nada. Vou ganhar meu dinheiro assim mesmo. Eu tenho contrato com
a GTZ”. Depois de se aposentar, ele teria tido muitos planos, como escrever um livro,
mas parece se satisfazer com seus prazeres artísticos e familiares.
Depois de uma vida dedicada ao trabalho na GTZ, Albert se aposentou pela GTZ
sem ter, pela instituição, o reconhecimento que teve das comunidades com as quais
trabalhou no Brasil.

2. Marisa M.: a cientista brasileira que se tornou perita

269
Marisa M. é uma “paulistana de 500 anos”, como diz, uma referência a uma das
mais sólidas e reconhecidas tradições de famílias no Brasil. Filha de um pianista e
concertista que se chama Wagner, seu nome deriva de uma das músicas do compositor
alemão de mesmo nome do pai. Disse ser germanófila desde criança.
Sua formação é na área de biologia, com doutorado em bioquímica, tendo sempre
trabalhado como pesquisadora. Está aposentada desde 1989. Não aparenta os 70 anos que
tem; é muito ativa, falante e guarda na memória nomes ou situações vividas. Como
aposentada, depois de tantos anos trabalhando com as metodologias de planejamento
adotadas pela GTZ, particularmente o ZOPP, abriu em 1998 uma empresa de consultoria
na área de planejamento, que promove oficinas, monitoria e dá cursos de capacitação,
atividade que acabou se tornando sua especialidade. Assim, reproduz para empresas no
Brasil a metodologia que aprendeu e a lógica administrativa à qual se converteu. Afirmou
sempre ter tido boas relações com os alemães e os prefere aos americanos em projetos de
pesquisa com agências estrangeiras. Sua experiência na GTZ começou em 1975, tendo
sido a única brasileira que exerceu ali a função de perita. Segundo ela:

nunca teve perito no Brasil que não fosse alemão. Tem os coordenadores, tem os
peritos adjuntos, mas perito, perito mesmo que assinasse e recebesse dinheiro, só
alemão. Eu recebia dinheiro no meu nome. Eu fui caso único, acho que na
Alemanha toda, eu não conheço ninguém mais.

Sua entrada na GTZ foi o resultado do reconhecimento do seu trabalho de


pesquisa, um trabalho que já havia sido premiado e para o qual não teve qualquer apoio
externo. Em função de indicações de outros pesquisadores, representantes da GTZ foram
ao seu encontro. Ela não acreditou na oportunidade que se apresentava. Como disse:

Não fui eu que descobri a GTZ, foi a GTZ que me descobriu. Depois que a GTZ
foi criada, como um órgão governamental, se você olhar daí pra frente, em 1975,
exatamente em 1975, eu estava um dia no meu laboratório e entra a diretora da
minha divisão, a dra. Vitória Rosseti, com um amigo dela que era alemão e que
morava na Nicarágua. Eles com mais um alemão e uma alemãzinha, aliás uma
mocinha bem alta, e ela me disse que eles queriam conversar e me perguntou se
eu poderia atendê-los. Eu era a chefe da sessão. E eles começaram a fazer
perguntas sobre a ferrugem, que era uma doença muito séria do café; é ainda,
mas já está controlada. Isso foi logo no começo do ano. Foi em 1974, em
fevereiro. Em 1975 foi a segunda vez. E tem uma passagem engraçada, eles

270
diziam: “O que você precisa?”; Eu dizia: “Preciso disso”. E eles: “Então põe no
papel”. A esta altura já estava uma conta assim de 600 mil dólares. Naquela
época, nós estávamos à míngua. Nós não tínhamos dinheiro pra comprar nem um
sal qualquer de laboratório e o cara vem me falar de 600 mil dólares... Eles
saíram e nós achamos muito engraçado, rimos muito e eu esqueci o caso. Não
levei a sério mesmo. Imagina, não sei quem é a GTZ, nunca ouvi falar nisso, vem
oferecer milhões! Quando foi no final do ano, um colega meu foi fazer um curso
de microscopia eletrônica na Alemanha e em maio de 75 ele voltou e disse pra
mim: “Waly eles estão esperando que você mande um projeto”. Eu falei: “Como?
Projeto, que projeto?”. “Você ficou de mandar um projeto e eles estão
aguardando”. Eu falei: “Mas era verdade?”. Essas coisas, bem de brasileiro. Ai
meu Deus, que pateta. Eu disse: “Eu vou fazer”. Então, reuni uma equipe; nós já
tínhamos um projeto, porque nós já vínhamos trabalhando na ferrugem do café
desde que ela surgiu. E aí, nós estávamos num ponto, com um trabalho
importantíssimo em andamento, um trabalho que foi premiado, quer dizer, a
gente não começou do zero, já tinha alguma coisa, só colocamos em ordem e eu
apresentei (grifos meus).

Seu relato indica uma série de aspectos do funcionamento de uma das dinâmicas
da cooperação internacional. Neste caso, o apoio à pesquisa surgiu a partir de um
interesse econômico internacional da Alemanha, em sua posição como importadora
mundial de café, ao considerar os impactos econômicos que o aumento de seus preços
teriam para a economia alemã. Não foi uma atividade que teve como intuito a capacitação
de um laboratório para que o Brasil tivesse melhores resultados científicos, mas estes
resultados já tinham sido alcançados e, por isso, o laboratório teve o apoio do projeto. O
assunto da pesquisa era desconhecido para a Alemanha e não havia nenhum funcionário
da GTZ que pudesse acompanhar a supervisão do projeto. Assim, na prática, Marisa
assumiu a função de perita da GTZ no projeto, como também a de responsável pela parte
técnica, enquanto coordenadora de um laboratório de pesquisa junto à Secretaria de
Agricultura de SP, que investigava uma praga comumente conhecida por “ferrugem do
café”.
Estes eram papéis contraditórios, porque como perita tinha que supervisionar ela
própria enquanto pesquisadora. Supervisionava a prestação de contas e o planejamento
das atividades ao mesmo tempo em que coordenava a equipe em função de critérios
científicos. Sua situação de contrato, no entanto, era um pouco diferente daquele oficial
de perito. Como era funcionária pública, não podia assinar um contrato normal, então

271
recebia como se fosse uma bolsa, um valor inferior ao que se pagava a um perito alemão.
Para que recebesse como perita, teria que deixar o seu emprego, o que não fez na época.
Para exercer sua função de “perita”, teve que receber treinamento na Alemanha. A
gestão de projetos, como informou, segue um manual enorme, repleto de normas para
prestação de contas e para todo o processo de administração, o que considerava ser uma
grande vantagem diante da “desordem” dos projetos no Brasil naquela época. Para ela, as
normas eram uma importante referência para se ter êxito nos resultados. Não havia sido
criada a ABC e não havia normas nem procedimentos para planejamento e controle na
execução de projetos no Brasil.

Olha, trabalhar com a Alemanha, com outra língua, com outro jeito de fazer a
parte financeira, tudo, prestação de conta, tudo, foi mais fácil para mim do que
com os brasileiros. Primeiro, porque eles têm esse livrão aqui, que é o
“Organizacionhandsbuch” para o pessoal de fora do país. Então, a coisa era desse
jeito, aqui a gente tinha todas as regras, pra tudo. Se você quiser saber como é
que faz qualquer coisa, as explicações, os modelos, estão todos aqui dentro.
Então, não é como aqui, isso era um problema terrível no Brasil, porque, por
exemplo, um dia você tinha que mandar pra não sei quem da sessão, pro diretor;
no dia seguinte, tinha que passar em outro lugar, era por telefone, não valia mais,
as normas eram uma loucura. Lá, não! Isso aqui eram os pedidos, não tinha
problema nenhum. Eu trabalhava melhor com a Alemanha, com menos
problemas do que no Brasil. Quando a gente fazia a prestação de contas, era um
livro. Imagina, naquele tempo não tinha computador, tudo era feito à mão... não
dava nem pra fazer na máquina, porque era um livro descomunalmente grande.

Para Marisa, o “Zopp foi a melhor coisa que a GTZ trouxe para o Brasil”. Quando
se refere ao ZOPP, significa todo um processo de conversão a um conjunto de
procedimentos e metodologias de planejamento da GTZ que são implementados com ele.

Era uma coisa tão boa, o ZOPP, mudou tanto a minha vida e a vida do meu
pessoal, de outras pessoas, que eu achei que aquilo devia ser passado pra outras
pessoas. Aí, eu montei inicialmente um curso interno no instituto e convidei o
Hans Kruger, um amor de pessoa. Eu organizei todo o curso e ele foi dar o curso
no Instituto Biológico. Foi em 1989, foi o primeiro curso de ZOPP que teve no
Brasil. Primeiro mesmo. Foi o Hans que deu o curso.

Afirma que é muito criticada pelos brasileiros, que reagem à adoção de normas e
procedimentos de monitoramento e avaliação de projetos. A monitoria é uma das
atribuições dos peritos e um aspecto a que a GTZ dedica particular atenção, sendo uma

272
exigência contratual dos projetos de cooperação técnica. Há dois níveis de se
implementar a monitoria: o nível do que está planejado (POA) e efetivamente o que foi
executado; e o nível dos resultados do projeto, a partir dos objetivos. O documento que
permite fazer esta leitura casada é a matriz lógica (Log Frame). A definição de monitoria,
de acordo com documento elaborado pela empresa de consultoria de Marisa M., temos:428

A comparação do plano elaborado com o plano realizado; é a análise dos desvios


ocorridos durante a implementação. A monitoria compreende como suas tarefas:
estabelecer padrões de desempenho e/ou execução das ações planejadas e
implementadas; projetar e operar um sistema de informações do ocorrido no
período (documentação); medir o desempenho atual em relação aos padrões
definidos nos planos anteriores e verificar, nas datas previstas de monitoria, o
grau de realização das ações do projeto a fim de identificar desvios entre o
planejado e o realizado (grifos meus).” (Moraes e D’Alessandro: 1999. Unidade
IV – 29/30)

Para Marisa, é um ponto de difícil assimilação nas instituições públicas brasileiras


em geral e ela diz ser muito criticada como quem faz propaganda da GTZ:

Por que a monitoria no Brasil não funciona? Eu dou cursos de monitoria, o


pessoal fica encantado com o curso. Mas na hora que você vai fazer a monitoria
com eles, eles sonegam informação. Porque ainda existe na cabeça do brasileiro a
idéia de que monitoria é policialesca. Você vai lá pra vigiá-los, pra ver o que eles
fizeram, então eles não entendem a monitoria como alguma coisa que você está
fazendo pra corrigir erros futuros, possíveis, desvios ou coisas que já estão
acontecendo que podem chegar lá na frente e te inviabilizar um projeto. Eles vêm
a monitoria como alguma coisa que a gente vai lá pra fiscalizá-los. Como os
alemães fazem a monitoria normalmente, tem muita gente que tem ódio aos
alemães porque eles estão fiscalizando. Gente, fiscalizar é uma coisa, monitorar é
outra. A função da monitoria é outra.

Antes de qualquer um, o moderador deve estar convencido da importância dessas


normas e dos procedimentos de planejamento a serem adotados, mas este reconhecimento
é resultado de uma longa “formação pedagógica”, a partir de cursos e treinamentos, como
um processo de conversão. Uma vez aceita esta lógica, é possível, então, reproduzi-la.

428
Apresentação de painel de monitoria em encontro do AMA/PPG-7, de Juliana Sellani, baseado
em Moraes e D’Alessandro: 1999. Unidade IV, p 29/30.

273
Eu fui fazer formação na Alemanha como gestora de projetos. Todos os anos
tinha que ir pra lá, passava dois meses, visitava universidades, mandava pessoal
para fazer capacitação em pesquisa, recebia convites para dar conferências, trazia
o pessoal de lá para dar conferências aqui, cursos de formação do pessoal.

Com a consolidação do trabalho da GTZ no Brasil, com o desenvolvimento de


seus projetos em várias regiões do país, este processo de treinamento estabeleceu-se
como uma prática adotada pelos próprios funcionários da GTZ, os peritos mais
experientes, que passavam por meio de “oficinas de capacitação” as metodologias a
serem implementadas nos órgãos nacionais pelos funcionários “treinados” ou
“capacitados”. Os projetos são instrumentos pelos quais a “formação” enquanto função
pedagógica se concretiza na prática junto aos profissionais “locais”, ou seja, os órgãos
com os quais os alemães trabalham. Através desse processo, com oficinas e cursos, são
selecionados aqueles com melhores condições de adequação e que os são mais “aptos”,
no sentido administrativo, para repassar essa mesma metodologia e toda uma cultura
administrativa; são definidos como os “multiplicadores”.

O Albert treinou o pessoal dele em planejamento e eu fiz todos os planos de


gestão para ele, as oficinas. Foram 14 meses. Aí ele foi pra Minas e, lá em Minas,
eu dei, acho, 15 cursos. Ele treinou todos os gerentes de Minas Gerais, da
Emater, em planejamento, todos. Depois nós selecionamos os melhores para
fazer a parte de monitoria e plano operacional e ainda selecionamos um pequeno
grupo, bastante seleto, pra fazer a moderação, para serem os multiplicadores. Por
exemplo, lá no Provárzea, também se fez isso, então, você tem uma outra
qualidade de trabalho, porque o pessoal está capacitado para gestão.

A experiência de Marisa é muito elucidativa quanto ao significado de um


processo de conversão, um exemplo de formação bem-sucedida promovida pela GTZ. Ela
tem admiração pelos métodos alemães e pela cultura alemã e tornou-se uma difusora no
Brasil dessas práticas. Mudou de área de trabalho, sendo prioridade hoje sua atuação na
área de consultoria em empresas, palestras e cursos de treinamento, atendendo ainda a
várias organizações alemãs.
Marisa faz uma avaliação do trabalho dos peritos, dos atributos que são
valorizados em sua atuação, atribuindo às características pessoais na construção de uma

274
relação de confiança e de admiração pelos grupo com o qual se trabalha a razão do
sucesso de um projeto. Estes atributos pessoais não são fixos, mas mudam com o passar
dos anos e refletem as mudanças nas próprias concepções de cooperação.

[...] você tem as relações com os peritos, com o beneficiário e isso pra mim é
mais importante, do meu ponto de vista, do que a relação institucional. Porque a
relação institucional tem ainda a GTZ no meio e tal e qualquer coisa, eles se
entendem por lá. Agora, a relação do perito com a comunidade, com o
beneficiário, é fundamental e é isso que o Albert faz divinamente bem, que
poucos realmente conseguem fazer. É você trazer e conseguir fazer uma coisa
participativa, criando, vindo da base, criando alguma coisa consistente.429

Finalizamos com um relato em que fala sobre a atuação dos peritos alemães no
estrangeiro:

Então, como eu trabalhei junto dos alemães, na Alemanha, com eles, dentro da
GTZ, [...] nas reuniões nossas lá, com outros peritos de outros lugares do mundo,
havia sempre a recomendação de que se respeitasse a cultura local: ”não se
imponha, você não está lá para aparecer!”. Isto era uma coisa que era repassada.
E você vê, a maioria dos peritos (é claro que de vez em quando tem um que
escapa, como em qualquer lugar do mundo), é muito discreta quanto a este ponto
(grifos meus).

Estes dois peritos, Albert e Marisa, representam uma geração que se dedicou sem
críticas ao trabalho na GTZ. Foram pessoas que prioritariamente tiveram formação em
áreas de ciências exatas e adotam uma atitude pragmática. Repassam nos trabalhos
desenvolvidos as metodologias aprendidas na GTZ, acreditando que estão fazendo o
melhor. Dedicaram toda a vida à GTZ e foi através dela que se constituíram
profissionalmente.
No que se refere aos dois outros peritos que selecionamos, suas trajetórias já são
diferentes, vêm de outra formação, em ciências sociais e ciências políticas. Atuaram
durante anos em organizações não-governamentais na Alemanha e em movimentos
sociais nesse país e no exterior, sempre na defesa de direitos políticos e direitos humanos;
também em movimentos de proteção ao meio ambiente e na mobilização de pobres e

429
Entrevista concedida em São Paulo, em 22/01/2007.

275
excluídos, valorizando o trabalho que fazem em função de ideais e valores éticos e
morais.

3. Martha S.

Martha S.é uma alemã de presença forte: é alta e também alto fala, é bastante
expansiva, alegre. Fomos apresentadas por uma antropóloga e pesquisadora da FASE,
Iara Ferraz, sua amiga pessoal. Conversamos na sede da própria FASE no Rio de Janeiro,
tomando um café no último andar, onde há uma cozinha e um refeitório. Tinha vindo ao
Brasil para continuar uma pesquisa que estava fazendo na fronteira entre o estado do
Amazonas e a Colômbia, sobre narcotráfico. Disse que estava com saudades da
Amazônia, especialmente da cerveja Cerpa.430
Martha S.é formada em ciência política e trabalha como professora universitária e
pesquisadora da Universidade Livre de Berlim. Há anos vem trabalhando no Brasil,
particularmente na Amazônia, estando atualmente vinculada ao Museu Emilio Goeldi
como pesquisadora convidada.
Antes de trabalhar no Brasil, Martha S.atuou entre os anos 70 e 80 no apoio a
guerrilhas em movimentos políticos contra a ditadura militar na Guatemala e em outros
países da América Latina.

Eu comecei a militar em 1978, com a guerrilha da Nicarágua e Guatemala. Eu


vim desse movimento anti-imperialista de apoio à guerrilha da América Central.
Nós tínhamos uma visão totalmente anti-imperialista da cooperação, alguns mais,
outros menos.[...] Foi a guerra do Vietnã, depois o golpe militar no Chile, depois
a Escola de Frankfurt que misturou tudo com o movimento anti-imperialista,
[esta foi] a minha geração. 431

430
Em alguns momentos, nota-se nas falas de profissionais que trabalham na área da cooperação que,
além do idealismo e do trabalho político, esta é uma atividade que seduz também porque envolve os
prazeres dos viajantes, das descobertas típicas dos lugares, um pouco do turismo. A Cerpa é uma cerveja
paraense, de produção restrita, que praticamente não se encontra nos grandes centros.
431
Entrevista concedida em 27.05.03, na sede da FASE, no Rio de Janeiro.

276
Em sua trajetória profissional, revela que não tem compromisso com as
instituições, mas com as causas, com os ideais. Nunca se prendeu aos cargos que
conquistou, pois para ela o trabalho em instituições burocráticas acaba levando ao
conformismo, à acomodação, em função de bons salários, de conforto e de vantagens que
elas concedem aos funcionários, mas isto faz com que se perca o foco do trabalho da
cooperação. Ela acredita que as exigências burocráticas, a excessiva quantidade de
normas e diretrizes institucionais a cumprir acabam reduzindo a capacidade crítica do
profissional e gerando uma acomodação.
No entanto, reconhece que a vinculação a uma agência de cooperação, como a
GTZ, seja um caminho muito comum entre aqueles que estão envolvidos com atividades
de apoio aos países do “Terceiro Mundo”. Em suas palavras:

Depois de militar na vida estudantil, tem que se viver de alguma coisa. Então, se
já trabalhou muito com o Terceiro Mundo, vai se profissionalizando. Minha
geração no KfW, BMZ, GTZ, todo mundo tinha esse passado; na nossa turma,
mais ou menos com modificações, havia alguns mais radicais, outros menos. Eu
vim desse movimento anti-imperialista de apoio à guerrilha da América Central.
Nós tínhamos uma visão totalmente anti-imperialista da cooperação, alguns mais,
outros menos.

O que este depoimento nos revela é que muitos dos profissionais que passaram a
ocupar funções de diretoria e chefia em organizações “da cooperação” alemã (KfW, GTZ
e DED) tinham estabelecido algum contato entre eles na Alemanha e, de alguma forma,
haviam mantido comunicação com determinadas pessoas no Brasil.
Tem muitos conhecimentos nas redes não-governamentais alemãs e no Brasil.
Conhece e é amiga de Karin Urshel (da Fundação Heinrich Böl) e de Iara Ferraz, da
FASE, entre outros, como podemos ver em sua declaração:

Foi coincidência reunir estas pessoas. Fomos descobrindo pouco a pouco que
tínhamos muita coisa em comum. Tinha o Christoph Hauss, que hoje em dia é do
BMZ e trabalha no programa da embaixada em Moçambique, o Dietmar Wenz,
do KfW, o Gregor Wolf, que agora é do Banco Mundial, o Harald Losak, que era
o coordenador do PPG-7 no Brasil, o Thomas Fatheuer, era todo o pessoal. Nós
nunca tínhamos divergência política. Nós só brigávamos sobre como fazer. Sobre
as finalidades, não tinha briga. Isso é raro. Foi muita sorte. Tem um pouco a ver
com o movimento anti-imperialista. A gente não quer trabalhar com outro país de
forma imperialista, mas de igual para igual. Essas idéias de cooperação, muita

277
coisa vem do “movimento”. Aquela coisa toda do movimento de 68, anti-
autoritarismo, a idéia de democracia de base, vem do “movimento”. E isso aqui,
o movimento no Brasil, muita coisa vem da teologia da libertação. Então isso
casou bem. As pessoas, nós conhecemos das ONGs, muitas vezes do governo
também, até mesmo gente da ABC que tem um passado desse. [...]

Por ter uma trajetória no campo da cooperação para o desenvolvimento marcada


pelo trabalho em várias instituições, mas sempre envolvida de alguma forma em
atividades de proteção da Floresta Amazônica e nos movimentos sociais e políticos de
seus habitantes, Martha S. tem uma experiência enorme das especificidades deste campo
e conhece muita gente que faz parte de redes no Brasil e na Alemanha, redes estas que se
encontram e que se apóiam mutuamente em termos de recursos e de informações.
Considerando o argumento de que o trabalho de ativistas e voluntários de
movimentos políticos alemães e brasileiros na década de 1970 foi uma etapa importante
na consolidação de uma rede entre brasileiros e alemães, a mesma alemã entrevistada
complementa:

Você tem que ver que nas instituições dos doadores todo mundo que trabalhava
lá, não todo mundo, mas 80% que trabalhavam na GTZ, no KfW, no BMZ, eram
do movimento. Todo mundo militava, todo mundo tinha votado sempre no
Partido Verde, coisa e tal, todo mundo era da esquerda.

Em outra passagem complementa, argumentando mais especificamente sobre o


projeto PPTAL:

Eu acho que é um sucesso das redes que se encontraram, das redes da esquerda
da Alemanha com as redes apoiando do lado brasileiro e principalmente os
próprios índios.

Nos anos 90, Martha S.entrou para coordenar o programa do PPG-7 na GTZ logo
no início de suas negociações. Trabalhou por alguns anos no período inicial de
negociação de alguns projetos, como o PPTAL, e quando achou que estava na hora,
largou uma função importante na estrutura da agência no Brasil e abriu mão de um alto
salário, para voltar para a área acadêmica e de pesquisa, além de continuar atuando nas
redes não-governamentais, por ter uma visão crítica em relação a política governamental
de cooperação para o desenvolvimento e às motivações que explicam o envolvimento de
alguns peritos neste campo, como argumenta:

278
Eu conheço muita gente que está lá por causa de um bom emprego. Mas tem
também muita gente que está convencida que tem que fazer alguma coisa para
mudar a merda de distribuição de renda. Eu não tenho muita esperança que com
essas idéias de desenvolvimento que temos... que dê pra fazer muita coisa.432

4. Paul F.

Conheci Paul F. na sede do Ministério do Meio Ambiente, onde ficava em 2003 o


escritório do projeto PDA. Ele trabalhava em uma pequena salinha, em meio às dos
outros funcionários, na função de perito da GTZ. Ao nos apresentarmos, me fez sentar em
frente à sua mesa, bastante bagunçada com papéis espalhados desordenadamente, a
respeito da qual faz o seguinte comentário: “não liga pra bagunça não, já estou ficando
um pouco abrasileirado”, em uma referência, ao mesmo tempo crítica, mas de admiração,
em relação ao jeito relaxado que supõe ser o dos brasileiros.
Paul F. é de uma geração mais nova que a de Albert e Marisa M.. Nascido em
1953, teve uma formação acadêmica na área de ciências sociais e filologia, tendo feito
doutorado em sociologia na Universidade de Münster, onde também cursou a graduação.
Entre 1988 e 1992, logo após a conclusão do doutorado, em 1987, trabalhou como
assistente na área de publicações do Centro de Pesquisa e Documentação sobre América
Latina - FDCL, em Berlim. Já tinha, naquela época, contato com um grupo de pessoas,
professores universitários e ativistas de organizações não-governamentais, que pensavam
e escreviam sobre condições sociais e políticas dos países da América Latina, entre as
quais citou Clarita Muller-Plantenberg, professora de sociologia da Universidade de
Kassel, onde coordena um centro de documentação sobre América Latina,
particularmente sobre grandes projetos e povos da Amazônia e relações de cooperação
entre Europa e América Latina.
Clarita leciona sobre o assunto, além de ter uma participação intensa em
movimentos sociais e ambientais em vários países da América Latina, como parte da
delegação da EZE, uma das instituições eclesiásticas que desenvolve projetos em países
em desenvolvimento, por meio da qual estabeleceu contatos com muitas ONGs no Brasil,
como CIMI, IBASE e CEDI, já mencionadas anteriormente. Desse contexto, também

432
Entrevista concedida em 27 de maio de 2003, na sede da FASE, no Rio de Janeiro.

279
tomou parte Paul F., que em 1992 entrou para o DED, o Serviço Alemão de Cooperação
Técnica e Social junto à FASE no Rio de Janeiro, na área de meio ambiente e políticas
públicas. Em 1995, ainda na FASE, deslocou-se para trabalhar em Belém, onde ficou até
1999 como coordenador do DED. A partir de sua longa experiência em movimentos
sociais na Amazônia, Paul F. foi então contratado para atuar como perito de longo prazo
da GTZ no subprograma PD/A (1999-2003). Voltou ao Rio de Janeiro em 2003 para
assumir a direção da Fundação Heinrich Böll.
Em toda a sua trajetória de trabalho, Paul F. já completou quinze anos
consecutivos em diferentes instituições alemãs envolvidas na política de cooperação
alemã para o desenvolvimento no Brasil. Sua história, ainda que pontuada de diferenças
em relação a Martha S., tem traços em comum, particularmente marcada por uma
ideologia de esquerda que os orienta, por ideais e práticas de defesa de direitos humanos
em relação a populações da Amazônia. Têm vínculos com professores universitários e
pesquisadores, além das igrejas e instituições eclesiásticas.
Procuramos destacar neste capítulo que os próprios peritos fazem uma avaliação,
em suas trajetórias pessoais, dos atributos que são valorizados em sua atuação. Estes
atributos pessoais não são fixos, mas mudam com o passar dos anos e refletem as
mudanças nas próprias concepções de cooperação. As histórias pessoais contam um
pouco da história da GTZ, em aspectos que vão das relações dos trabalhadores com a
organização, insatisfações, expectativas, frustrações e realizações pessoais que foram
permitidas pela experiência de trabalho na organização.
No próximo capítulo, analisaremos alguns eventos organizados pela GTZ no
Brasil, entre 2003 e 2006, todos em Brasília. Estes eventos são rituais modernos de
Estado, e contribuem para explicitar as formas adotadas pela organização para publicizar
seu trabalho no exterior, tanto para os seus “chefes” no país de origem, como para os
representantes do governo local.

280
Capítulo 7. Ver e ser visto: as alianças locais e as redes alemãs em
evidência.

Analisaremos dois eventos internacionais organizados pelo governo alemão e


executados pela GTZ no Palácio do Itamaraty, em Brasília, sede do Ministério de
Relações Exteriores do Brasil, ambos em 2003. Foram grandes eventos – muitos
convidados, muitos gastos, pessoas importantes – rituais de poder, de opulência e de
manifestação de uma força quase sagrada do Estado contemporâneo. Não são rituais
religiosos, mas assumem um caráter sagrado, mágico. São momentos em que se
intensifica o usual – são ícones ou diagramas para se detectarem traços comuns a outros
instantes e situações sociais.
A possibilidade de participar desses eventos, quando estive em Brasília entre 2003
e 2005, se deveu em grande parte às condições de pesquisa no escritório da GTZ, onde
soube da sua realização. No entanto, não foi somente a partir da GTZ que tive acesso a
essas situações sociais: as articulações com funcionários de órgãos nacionais, de
universidades ou de ONGs também serviram como vias alternativas para que eu estivesse
presente em eventos oficiais da cooperação internacional. A entrada nesse universo não é
fácil, porque tais solenidades não são abertas ao público nem são divulgadas nos jornais.
No caso das que foram organizadas pela GTZ, são restritas aos funcionários das agências
alemãs, a alguns organismos internacionais, aos funcionários da ABC e dos órgãos
nacionais que executam os programas, além de representantes de ONGs que participam
com regularidade de eventos governamentais nacionais e internacionais.

Os rituais da cooperação

Encontros, seminários, conferências, fóruns, debates, oficinas e cursos são alguns


tipos de atos mais ou menos públicos reunindo pessoas, organizados por agências da
administração pública de Estados Nacionais estrangeiros fora de seus territórios. Distintos
em seus propósitos específicos, coincidem em um aspecto: são os meios, os instrumentos

281
rituais comuns para dar visibilidade a um “fato” internacional, a importância atribuída a
um tema e o status de uma determinada questão internacional à qual estão associados
elevados recursos.
Por seu caráter performático, mas também pelo fato de serem um fenômeno
socialmente reconhecido como especial, podemos interpretar os eventos da cooperação
técnica – encontros, seminários, conferências e debates – como os rituais da cooperação,
no sentido que Tambiah os define:

constituem-se de seqüências padronizadas e ordenadas de palavras e atos


expressos em meios múltiplos, cujo conteúdo e arranjo são caracterizados em
graus variáveis por formalidade (convencionalidade), esteriotipização (rigidez),
condensação (fusão) e redundância (repetição).

Os eventos são caracterizados por três traços fundamentais: o fato de que os


nativos marcam esses momentos como distintos dos acontecimentos cotidianos; trata-se
de uma performance coletiva para atingir determinado fim; possuem uma ordenação que
os estrutura. De acordo com esta definição, os rituais modernos e profanos de Estado
(não-religiosos) aqui analisados são aqueles atos públicos de celebração e de debate em
torno de algum tema, organizados por agências ou organismos internacionais em espaços
ou territórios estrangeiros. São atos altamente convencionais, em que as características
nacionais ou corporativas da agência apresentam-se estereotipadas e repetidas.
Na acepção de Tambiah, “os rituais partilham alguns traços formais e
padronizados, mas são variáveis fundadas em construtos ideológicos particulares”. Para
Turner, os rituais definem-se como o lugar privilegiado para se observar os princípios
estruturais de uma sociedade, sendo também apropriados para se detectarem as
dimensões processuais de ruptura, crise, separação e reintegração social.
Em casos de eventos internacionais, de maior porte, normalmente são feitas
apresentações orais mais solenes, o que envolve exposições de cientistas em painéis
eletrônicos, ou apresentações de representantes ou membros de órgãos de governo
(ministros ou secretários).
Brasília é um dos centros mais importantes de eventos internacionais no Brasil, a
par com São Paulo e Rio de Janeiro. Caracteriza-se como espaço urbano privilegiado para
solenidades político-diplomáticas, sendo o Palácio do Itamaraty um dos mais tradicionais

282
e disputados salões, com auditórios e toda uma infra-estrutura para este tipo de
acontecimento.

A ordem que estrutura o ritual

Os encontros e seminários internacionais organizados pela GTZ (bem como por


outras agências internacionais) são atos públicos performáticos, normalmente muito
formais. Os encontros são situações que, primeiramente, dão visibilidade à instituição
organizadora, à anfitriã do evento. É ela que gasta, que oferece conforto e que recebe seus
convidados em uma reunião ou festa na qual demonstra seu poder econômico e as boas
relações que consolidou em meios governamentais e não-governamentais no país onde
atua. Este é um dos instrumentos de que faz uso para mostrar o prestígio que goza no país
no que se refere ao reconhecimento de sua capacidade em cooperar.
Os eventos organizados por instituições internacionais ocorrem, de maneira geral,
de acordo com uma estrutura bastante padronizada e regular; são muito conservadores
nos seus procedimentos, da mesma forma que o são os eventos diplomáticos. Maior ou
menor rigor em relação a alguns aspectos revelam o prestígio da agência, seja ela local ou
internacional, ou o tipo de comemoração realizada.
O conservadorismo a que nos referimos tem relação com determinados critérios
de etiqueta diplomática, que vão desde o local escolhido para os eventos até os serviços
oferecidos.
Observei que alguns detalhes são muito importantes, entre eles, a adequada
medida de luxo (de acordo com as dimensões do evento), a suntuosidade e a ostentação
em relação ao hotel escolhido, que vai da decoração até a infra-estrutura dos locais onde
são organizados, com piscina, salões, vista ampla, entre outros aspectos que garantem aos
participantes bem-estar e satisfação durante o acontecimento.
No caso dos encontros e seminários organizados pela GTZ, a grande maioria
acontece em hotéis de alto luxo, de nível internacional, que dispõem de salões de
convenções, com equipamento de som e tradução simultânea, como o Blue Tree
Alvorada, que oferece serviços para congressos e eventos, além de ter um espaço
privilegiado de lazer à beira do Lago Paranoá.

283
Algumas reuniões estão voltadas para um grupo restrito, ligado a um projeto ou a
um determinado tema em discussão; nelas a maioria dos participantes já se conhece de
outras reuniões ou negociações, o que geralmente leva à escolha de locais reservados,
discretos, em salões ou auditórios com portas fechadas. No transcorrer deste tipo de
evento, reconhece-se o valor atribuído à discrição, ao “falar baixo” e elegantemente, ao
“bem-vestir” e ao saber se comportar. Muitas são as situações de provocações entre os
participantes, ou aquelas em que colocam suas posições de forma antagônica para marcar
espaço de negociação.
Em geral, seja em encontros pequenos, seja nos internacionais, o grupo de pessoas
convidadas é formado principalmente por representantes de órgãos públicos de ambos os
países, membros de organismos internacionais e de outras agências do mesmo país, além
de intelectuais, cientistas, pensadores e jornalistas. Além dos burocratas e dos
funcionários de Estado, participam os formadores de opinião, cujo papel na construção
de imagens positivas sobre a relação entre os dois países e na consolidação de mútua
confiança e credibilidade entre as instituições envolvidas é fundamental.
Uma das críticas freqüentes às práticas de cooperação técnica internacional gira
mais em torno dos gastos excessivos em atividades intermediárias, cujos recursos acabam
retornando à própria instituição, do que com o atendimento às demandas locais das
populações chamadas “grupos-alvo”. Fukuda-Parr, Lopes e Malik afirmam que um dos
aspectos destacados na publicação do PNUD, Rethinking Technical Cooperation:
Reforms for Capacity Building in África, sobre as atividades de cooperação internacional
é que são atividades muito caras, direcionadas aos doadores e que promovem maior
dependência em relação a profissionais estrangeiros.433
A ostentação, no entanto, parece fazer parte da lógica que, além dos negócios que
são vinculados, garante o retorno em termos de reconhecimento oficial por parte de
representantes do governo brasileiro e o status que este tipo de cerimônia tem como
espaço de produção e reprodução da lógica da cooperação em elementos ideológicos,
rituais e simbólicos.
433
A publicação data de 1993 e foi o resultado de um programa realizado com mais de 30 governos
da África, chamado National Technical Cooperation Assessment and Programs, e apresenta as conclusões
dos governos africanos. Fukuda-Parr, S.; Lopes, C. & Malik, K. Overview: “Institutional innovations for
capacity development”. In: ___________ (eds.). Capacity for development: new solutions to old problems.
New York: Earthscan Publications/UNDP, 2002. p.4-5.

284
Os eventos a que me refiro orientam-se para consolidar uma imagem de qualidade
e de luxo em todos os itens: do hotel ao serviço de buffet, dos salões acarpetados aos
equipamentos para apresentação, além das pastas e de outros materiais fornecidos. Os
serviços são rigorosamente conferidos, havendo uma preocupação exagerada com o rigor
do cumprimento de tarefas planejadas e a exigência de perfeição nos detalhes. No rigor
imposto às formas da organização do evento, para que tudo ocorra perfeitamente, revela-
se uma forma estrangeira de se comportar. Esta etiqueta social, baseada em critérios
rigorosos e de eficiência, passa a ser identificada com a nacionalidade da agência
organizadora, neste caso uma única agência com a qual o governo brasileiro, a alemã.
Outro aspecto importante refere-se ao serviço de buffet oferecido, o refinamento
dos talheres e dos copos, os canapés e as bebidas apresentados e a elegância dos garçons,
o que é motivo de comentários durante os intervalos, que recebe a denominação
internacional de coffee-break. Caso o evento seja internacional, com participantes de
outras regiões do país e convidados de outros países, coloca-se um grupo de
recepcionistas bilíngües em disponibilidade para ajudar na organização de documentos,
pastinhas e crachás distribuídos aos participantes e no apoio pessoal a eles, o que é
freqüentemente solicitado. Os custos de hospedagem muitas vezes estão incluídos para os
principais convidados, chamados VIPs,434 palestrantes reconhecidos no meio profissional
e acadêmico, e ela acontece freqüentemente no mesmo hotel em que o evento ocorre.
Usualmente estão incluídos os serviços de transporte para o deslocamento dos
participantes entre o hotel e o aeroporto e para restaurantes que fazem parte da
programação estipulada. Os serviços de tradução simultânea são uma constante, e as
recepcionistas bilíngües interagem como facilitadoras; a segunda língua é usualmente o
espanhol ou o inglês. Além disso, em todos os eventos em que estive presente,
particularmente os internacionais, havia sempre disponível serviço de computadores para
o acesso à Internet.
Estes são valores e idéias de uma elite internacional, intelectual, financeira,
empresarial e política que se institui como uma comunidade internacional imaginada, a
comunidade da “cooperação internacional oficial”, que se confunde com a da diplomacia.

434
VIP, abreviação de Very Important Person, em referência aos convidados especiais do evento.

285
Nos eventos organizados pela GTZ, bem como no de outras organizações
internacionais, é comum haver uma “bancada”, mesas com toalhas brancas sobre as quais
são expostos folders, documentos, revistas ou outras publicações, e também vídeos e CDs
produzidos pela instituição sobre assuntos afins. Isto faz parte de uma estratégia de
divulgação dos trabalhos e das atividades desenvolvidas pela organização, além de
apresentar a preocupação com a veiculação de publicações, como os “produtos” da
cooperação técnica. Com o mesmo intuito, é usual que participem dessas reuniões
jornalistas e representantes de meios de comunicação contratados pelos próprios
organizadores.
De maneira geral, há uma “recepção”, uma mesa com um ou dois funcionários da
GTZ com a lista dos participantes e dos convidados do evento, que recebem os seus
respectivos crachás e uma pasta com bloco e caneta para anotações. Este material faz
parte das despesas da GTZ.
No caso dos encontros ou seminários pequenos, eles normalmente são conduzidos
da seguinte forma: são encaminhados os convidados para um salão; um moderador toma
a palavra, normalmente contratado pela agência, para apresentar o tema e explicar como
será conduzida a dinâmica do encontro; ele apresenta um ou mais palestrantes, que são
acadêmicos que trabalham em pesquisas patrocinadas pela agência, ou coordenadores de
projetos também desenvolvidos junto à agência; eles abrem o debate com informações e
resultados do projeto em questão; após as suas apresentações, há um tempo para
perguntas, quando são colocados alguns argumentos críticos.
Há outro tipo de encontro, mais restrito, que é feito com os participantes de um
mesmo projeto – o pessoal da chamada “área técnica” que nele trabalha, e outros
funcionários de um órgão cujas atividades tenham a ver com as do projeto em questão.
Esses encontros são uma forma de avaliar o andamento do trabalho em suas diferentes
fases e são organizados pelo pessoal que fica na função de “monitoria” dos projetos em
que a GTZ atua, utilizando a metodologia ZOPP,435 na qual se usam os painéis de
“Metaplan”, normalmente com “dinâmicas de grupo coordenadas por uma equipe de uma

435
ZOPP, como já mencionado anteriormente na página 209 é a sigla para Ziel Orientierten Projekt
Planung, o que significa em português Planejamento de Projetos Orientado por Objetivos.

286
empresa de consultoria ou por profissionais de consultoria independente que trabalham
neste tipo de avaliação para a GTZ”.
Além das solenidades formais e cansativas, os grandes eventos internacionais
associam também atividades de lazer, turismo e visitas a universidades, para apresentar
programas de intercâmbios acadêmicos e a organização de feiras de negócios.
Os eventos são organizados pelas agências interessadas (doadores), desenvolvidos
em torno de temas que serão constituídos, ou já são, em programas ou projetos;
programas que se pretende implantar; seminários de projetos em andamento para
apresentar resultados do que está sendo ou já foi feito.

A eficácia dos eventos

Eventos públicos organizados por órgãos de Estado são lugares para ver e para ser
visto, para demarcar posições e posturas políticas, para dizer o que se está fazendo ou o
que se pretende fazer. Algumas finalidades observadas nos eventos organizados pela
GTZ: 1. marcar fases de projetos ou programas; 2. comemorar datas históricas; 3. treinar,
capacitar e ensinar.
A eficácia desses acontecimentos varia em função do tipo e da finalidade e
também do momento que ele aponta. De acordo com cada uma destas finalidades,
desenha-se um perfil específico do ato público, como debates e pequenos seminários de
apresentação de resultados.
Os eventos normalmente são realizados com a finalidade de se marcar
determinada fase de um projeto, seja de início, de continuidade ou de encerramento.
Neste caso, é usual que sejam promovidos debates ou seminários com a participação da
equipe que nele trabalha, além de pesquisadores ou representantes de governo convidados
que tenham qualquer tipo de vínculo com o projeto ou com quem pretenda estabelecer
algum. Objetiva-se garantir ainda maior eficácia dos resultados dos projetos das
instituições do governo estrangeiro, aos quais se deseja dar visibilidade.
Quando o propósito é abrir novas oportunidades de programas em determinadas
áreas ainda não exploradas para a agência – o que exige que sejam estabelecidos outros
contatos – usualmente são organizados seminários com especialistas, representantes de

287
ONGs e de governo do país em que se está trabalhando. Nestes casos, a intenção é
observar quais são as questões, os problemas apontados e as pessoas importantes no
contexto local, visando à construção de alianças e à conquista do “parceiro”.
Sobre os eventos que marcam o “encerramento” de uma fase de projeto, o que se
pretende mostrar são os bons resultados. Dessa forma, com a exposição do “sucesso”, há
novas oportunidades de projetos, tendo em vista que a lógica da cooperação é de se
reproduzir e nunca acabar. Assim, a prestação de contas é também uma forma de
autovalidação das próprias atividades desenvolvidas.
Acontecimentos festivos e cerimônias formais com discursos e coquetéis são os
mais representativos e os mais raros, pois ocorrem normalmente a cada década. As
comemorações celebram e reafirmam situações e datas históricas, alimentando a memória
institucional da organização no país. A produção de uma memória social coletiva se dá a
partir de situações rituais – comemorações, festividades comunicativas (projeção de
imagens) e definição de marcos históricos. Há a revisão e o ordenamento de fatos
(determinados fatos escolhidos) do passado para configuração de um futuro que se
pretende alcançar. Como argumenta Ana Enne:436
Estas possibilidades de apropriação do passado pela via do presente apontam para
uma questão ainda maior: a construção de futuros possíveis. Assim, é no presente
que a construção do passado é disputada como recurso para a construção de um
futuro que responda às aspirações deste presente. Neste sentido, parece pertinente
pensar as estratégicas de armazenamento e esquecimento do passado. A
construção dos museus, centros de memória e institutos históricos como
depositários de uma concepção e versão da memória são indicativos deste
movimento. O que se guarda e armazena é o que se quer lembrar, pois o não mais
visto tende ao esquecimento.

Conversando informalmente, um ex-perito da GTZ me disse que “o maior


problema da cooperação alemã é não haver reconhecimento no Brasil dos trabalhos de
cooperação que a Alemanha tinha feito no país”. Para ele, esta era uma questão deles,
alemães, da GTZ, que não investiam em autopropaganda e naquilo que ele chamava de
“acompanhamento pós-projeto”. Definia, assim, o que seria a continuação: tendo
terminado o ciclo de um projeto tal como fora planejado, um novo instrumento ou
436
Enne, Ana Lucia Silva. “Lugar, meu amigo, é minha Baixada”: memória, representações sociais
e identidades. Tese de doutorado, UFRJ/PPGAS, Rio de Janeiro, 2005.

288
formato de curto prazo seria definido, para dar a ele prosseguimento e finalização. Na sua
opinião, é fundamental nesta fase a consolidação da imagem da instituição responsável
pelo projeto e a sua transição para as instituições nacionais.
Dizia que em seus tempos de funcionário da GTZ, quando teve grande status e
prestígio junto na agência, sempre lutara para que a GTZ implementasse as atividades de
consolidação do projeto e sua passagem para as instituições locais e, ao mesmo tempo,
que fixasse a imagem da instituição associada aos benefícios dele decorrentes.
Normalmente, estes são percebidos posteriormente, depois que o projeto já acabou. Para
ele, a GTZ não sabe promover a sua imagem institucional e este foi um propósito em que
se empenhou, mas que não conseguiu implementar.
O que acontecia, e ainda hoje continua a acontecer, segundo Albert, é que depois
de anos de investimentos em pesquisa, tecnologias, equipamentos e na organização e
capacitação dos grupos, a GTZ saía de campo e deixava um potencial muito grande que
outras agências aproveitavam. O projeto de plantio de maçãs em Santa Catarina foi um
exemplo que citou, desenvolvido ao longo de anos pela GTZ, mas que ficou conhecido
no Brasil como um projeto dos japoneses (a maçã FUJI).
Para ele, a GTZ não sabe colher os louros do trabalho que desenvolve: “Eu não
quero que você como brasileira entenda que eu quero aparecer, que a Alemanha quer
aparecer. A gente tem que fazer as coisas e continuar a fazer as coisas, porque, de
repente, aqui ninguém fala que a Alemanha cooperou. Todo mundo fala que tudo é
Japão”.437
Para uma outra ex-perita brasileira, que há anos trabalha com a GTZ, não há uma
estratégia proposital em se fazer conhecer os projetos e as atividades da GTZ nos países
onde atua. Sua afirmação parece entrar em contradição logo em seguida, quando
argumenta ser um aspecto em que a ABC intervém para que as agências internacionais
não levem o mérito, já que os projetos de cooperação para o desenvolvimento são, por
definição, do governo brasileiro.438

Então, não existe essa preocupação da GTZ de “olha eu, ô aqui, alô, alô, viva!”.
Eu posso te garantir que não existe. Pode um ou outro perito ter, mas isso ele

437
Entrevista concedida em Belo Horizonte, em 08/01/2007.
438
Entrevista concedida em São Paulo, em 22/01/2007.

289
teria aqui ou em qualquer outro lugar. Mas como filosofia, recomendação, não,
não. É gozado, não é propriamente a lógica da cooperação. Eu trabalhei muito
tempo com o pessoal da ABC e a ABC, até muito pelo contrário, está sempre
com medo de que isso possa acontecer. Eles estão sempre muito atentos para essa
coisa. Então, se for pra ficar bonito pra alguém, vai ficar para a ABC, mas não
para uma agência externa.

Quando menciona o medo de que as agências obtenham os créditos da


cooperação, parece mais plausível que a visibilidade aos projetos e às atividades das
agências internacionais seja parte central da própria lógica da cooperação.
Para uma funcionária administrativa do escritório da GTZ, a visibilidade é a
finalidade da cooperação, um objetivo que é alcançado através de uma articulação bem
feita localmente, da construção de alianças, de relações de confiança e respeito, como
argumenta: “O interesse da cooperação é ter e fazer boas relações para aparecer. Mas a
GTZ não sabe aparecer, não sabe vender, não aparece tanto”.439
Em todas as publicações, em artigos, discursos políticos e declarações públicas, o
sucesso das relações entre os dois países é constantemente exaltado. Nas palavras da
ministra Heidemarie Wieckzorek-Zeul:440

Apesar de retrocessos inevitáveis, o trabalho conjunto possibilitou a criação de


estruturas sustentáveis de ampla visibilidade, que subsistem ainda hoje. Penso
neste contexto, nas dinâmicas parcerias entre universidades e também nas
cooperativas agrícolas que se transformaram em empresas exportadoras bem-
sucedidas.

As questões apontadas acima revelam a importância que se atribui ao


reconhecimento, à visibilidade que as ações de cooperação devem ter. É quase uma
constatação de que não há muito sentido em trabalhar neste campo sem que haja a fixação
da imagem institucional de sucesso quanto ao trabalho desenvolvido. O reconhecimento
“apaga” qualquer problema associado à intervenção que foi feita.

439
Lucia Loebell, em entrevista concedida no escritório da GTZ, Brasília, em setembro de 2003.
440
Embaixada da Alemanha: 40 anos de cooperação para o desenvolvimento: Brasil e Alemanha, opus
cit., p.6-7.

290
Os encontros

Acompanhei e assisti a seis eventos públicos, alguns de grande porte, outros mais
simples e restritos. Entre estes, estavam quatro seminários internacionais organizados, em
Brasília, pelas instituições alemãs junto com o governo brasileiro, além de dois
seminários internos de avaliação do PPTAL.
O primeiro deles, a “Conferência Regional para América Latina e Caribe sobre
Energias Renováveis”, ocorreu em setembro de 2003, no Itamaraty, do qual participei em
função de um contato com representantes do Departamento de Meio Ambiente - DEMA,
do Ministério de Relações Exteriores - MRE. Posteriormente, em novembro de 2003,
participei da “Comemoração dos 40 anos de Cooperação Brasil-Alemanha”, além de
colaborar com algumas atividades de sua organização junto à GTZ.
Também por meio do contato com os representantes do escritório da GTZ, estive
presente em dois outros eventos realizados em Brasília: um em maio de 2004, o encontro
“Atuais Desafios e Perspectivas dos Sistemas de Saúde na América Latina e Caribe:
Proteção Social Universal e Respostas ao HIV-AIDS”, e o outro, em julho de 2005,
“Estratégias de Desenvolvimento Sustentável no Brasil BRICS - Parte do Processo de
Diálogo Internacional BRICS+G: Sustentabilidade e Crescimento no Brasil, Rússia,
China, África do Sul e Alemanha”.441 Analisaremos antes o primeiro grande evento
internacional organizado pelo governo alemão no Brasil de que participei: a “Conferência
Regional para América Latina e Caribe sobre Energias Renováveis”.

Efeitos de Estado: energias renováveis

Soube deste evento praticamente por acaso, quando tentava marcar uma entrevista
com o chefe do DEMA, do MRE, através do diplomata que me atendeu, apesar de já estar
em contato com o escritório da GTZ, onde ninguém me avisou sobre a sua organização.
O funcionário do MRE disse então que estava sendo estruturado um encontro para

441
Como o próprio título do encontro indica, BRICS é a sigla para o grupo dos países formados por
Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, primeiramente adotada pelo grupo Goldman Sachs para estes
países também chamados emergentes, cujas economias são consideradas potencialmente fortes.

291
debater sobre energias renováveis, em Brasília, no auditório do Palácio do Itamaraty, com
recursos de cooperação do governo da Alemanha. Ele informou que o evento não era
fechado e, como havia mostrado interesse em participar, ele me convidou para assisti-lo.
O público era constituído de alguns representantes do governo brasileiro,
funcionários de organismos internacionais e muitos alemães, que pareciam não somente
serem representantes de órgãos do governo alemão, mas também profissionais de áreas
técnicas, provavelmente de empresas ou de instituições científicas, pela atenção que
dedicavam às apresentações que focavam estas áreas. Havia muitos grupos de alemães
reunidos em um dos amplos auditórios localizados no subsolo do Palácio do Itamaraty,
determinando a formalidade diplomática do evento que teve a duração de dois dias.
O programa, disponível em mesas à entrada do auditório, apresentava sua
proposta: no primeiro dia, seria promovido um grande debate entre especialistas da área
de energia no Brasil e na América Latina, ao qual chamaram de “fase técnica”; no dia
seguinte, a fase ministerial, com a presença do Presidente, de ministros e outros
representantes do governo brasileiro.
Para a primeira fase, convidaram professores e pesquisadores de centros
universitários e institutos de pesquisa, representantes de organismos internacionais
(CEPAL, PNUD e PNUMA), presidentes, diretores e gerentes executivos de empresas do
ramo de energia (Petrobras e Eletrobrás), representantes de bancos públicos nacionais
(BNDES) e internacionais (Banco Mundial, e International Finance Corporation) e de
instituições de fomento (FINEP), além de associações industriais, de produtores de
energia, de organizações de base e de movimentos sociais. Este grande fórum de
discussões seria dividido em sessões de trabalho sobre diferentes temas – energia
renovável e desenvolvimento sustentável; políticas públicas e fomento à energia
renovável; o papel do setor produtivo e a contribuição da sociedade civil na inserção da
energia renovável. Os cenários da área de energia na América Latina eram apresentados
em painéis projetados em telão e as palestras aconteciam com tradução simultânea para o
português e o inglês.
O auditório estava lotado e notavam-se vários grupos de alemães não só das
agências de governo, mas também de setores privados. A conferência claramente se
prestava a estabelecer uma nova área de atuação dos alemães na América Latina,

292
apresentando panoramas atuais e perspectivas futuras de investimentos, ao mesmo tempo
em que permitia identificar as pessoas-chave com quem negociar para se estabelecerem
alianças. As estratégias pelas quais poderiam ser consolidadas as relações em jogo seriam
definidas em uma reunião mais restrita, com os representantes de governo e da sociedade
civil de ambos os países, como eu havia sido informada pelo funcionário do MRE.
Após as apresentações dos painéis, foi servido um coquetel fora do auditório, em
um amplo salão, uma situação que permite às pessoas presentes estabelecerem uma
aproximação mais informal, construir de forma direta os primeiros contatos. Conhecia
poucos dos alemães presentes, com exceção de um perito da GTZ que já havia
entrevistado anteriormente. Conversamos sobre a pesquisa e sobre o seu projeto, quando
ele me disse que estava saindo da GTZ para trabalhar na Fundação Heinrich Böll. Após
alguns instantes, eu me despedi para seguir em direção à reunião que esperava assistir, no
entanto, sem mencionar para ele que estava indo para lá.442
Segui por uma ponte interna que dá acesso ao prédio anexo ao Palácio do
Itamaraty, mais conhecido como “Bolo de Noiva”, chegando à sala indicada da reunião.
Era um grupo de cerca de 15 pessoas sentadas em torno de uma ampla mesa, onde
alguém falava formalmente sobre determinado assunto pelo qual não me interessei. Notei
que a ministra do BMZ ainda não havia chegado, mas avistei do outro lado da sala o
mesmo perito alemão com quem havia conversado há pouco no coquetel. Logo que abri a
porta, todos, simultaneamente, me olharam surpresos, silenciando o ambiente. Meio
paralisada e provavelmente com cara de susto, fui surpreendida pelo espanto generalizado
dos presentes, que gerou um efeito dramático sem que eu ainda pudesse compreender o
motivo. Aquele meu “conhecido” rapidamente se levantou e correu ao meu encontro na
porta, encaminhando-me para fora da sala de forma delicada, mas determinada. Disse que
eu não poderia participar da reunião, que era fechada para os membros dos respectivos
governos. Insisti que havia sido convidada por um representante do governo brasileiro, e
que soube que a reunião seria aberta para alguns ouvintes, como representantes da
sociedade civil, na qual eu poderia me situar enquanto pesquisadora universitária. Ele
então explicou, sem ceder, que fora decisão da ministra que a reunião fosse fechada,

442
Mencionei anteriormente que a Fundação Heinrich Böll é uma fundação política ligada ao Partido
Verde (Die Grünen), que desenvolve projetos na área não-governamental no Brasil.

293
ficando com ele o ônus de impedir os representantes de ONGs de participarem, o que
havia sido complicado, porque eram pessoas que ele pessoalmente conhecia e teria que
fazer com elas o mesmo que fizera comigo.
Assim, fora a ministra alemã, que até aquele momento não havia chegado, quem
não quisera a presença de representantes da sociedade civil, segundo este senhor.
Surpreso em ver com que facilidade cheguei à sala, perguntou-me como eu o fizera sem
ser impedida, porque tinha sido criado um esquema de segurança para evitar a entrada na
reunião. Não havia encontrado qualquer controle por parte do MRE, a não ser ali, naquela
porta, por um alemão. Estupefata com a situação, fiquei do lado de fora, pensando como
os papéis atribuídos a esses “atores da cooperação internacional”, que atuam na área não-
estatal com projetos de organizações “não-governamentais”, são facilmente
manipuláveis.
Quando a lógica da hierarquia, a restrição das informações destinadas às elites
empresariais e políticas, a frágil participação democrática e a pouca transparência em
relação às normas das relações diplomáticas compõem um cenário bastante favorável
para este tipo de situação, não podemos deixar de pensar que isto acontece mais
facilmente nos países do “Terceiro Mundo”, particularmente na América Latina. É então
que vemos “peritos técnicos” da cooperação assumirem muitas vezes o papel de chefes
dos projetos, de representantes do Estado alemão e negociarem de forma direta, o que
supostamente não seria uma atribuição “técnica”.
Verifiquei ainda como são definidos os espaços de “Estado” através de restrições
impostas, portas fechadas, definição da confidencialidade e do “segredo de Estado”.
Sendo um processo de negociação entre dois “Estados”, ficou claro como são acionadas,
nas práticas cotidianas, as regras da cooperação bilateral, inclusive quando está em jogo a
participação da sociedade civil.
Esta foi uma das muitas situações em que me deparei com portas fechadas durante
a pesquisa em instituições brasileiras que tinham projetos com a GTZ. Certamente não
são ocorrências exclusivas de quem trabalha com a cooperação alemã. Situações como
esta podem revelar muito mais sobre relações entre “Estados” do que um estudo
exclusivo de normas e procedimentos formais, sendo fundamentais como elementos de
análise antropológica de processos chamados de Estado.

294
A seguir, analisaremos um dos mais expressivos eventos organizados pelo
Ministério de Cooperação e Desenvolvimento, o BMZ, que aconteceu nos últimos anos
em Brasília: foi a festa de comemoração dos 40 anos das relações de cooperação entre
Brasil e Alemanha, celebrado em novembro de 2003, em referência à assinatura do
Acordo Básico de Cooperação entre os dois países, de 1963.

Efeitos de visibilidade: a comemoração dos quarenta anos de cooperação

No segundo evento, já havia feito vários contatos com os funcionários da GTZ no


seu escritório. Aguardava, em agosto de 2003, a aprovação dos diretores para poder
pesquisar e fazer observação participante no escritório quando soube que estaria sendo
organizado pela própria GTZ, naquele mesmo ano, um grande acontecimento
comemorativo dos quarenta anos da assinatura do acordo de cooperação técnica entre
Brasil e Alemanha. Ali estariam reunidos todos os profissionais alemães que trabalhavam
na cooperação técnica com o Brasil. Isto significava não somente funcionários engajados
em projetos, mas também aqueles que fizeram parte de projetos e programas realizados
durante esses quarenta anos, desde a assinatura do acordo entre os dois países.
O evento de comemoração de “Quarenta anos de Cooperação para o
Desenvolvimento entre Brasil e Alemanha” tinha, por sua vez, o propósito fundamental
de construção da memória institucional, um acontecimento que representava um marco
nas relações históricas entre Brasil e Alemanha: a comemoração da data de “fundação”
das relações de cooperação técnica entre os dois países, formalmente atribuída à
assinatura do acordo em 1963. Em eventos como este, os fatos do passado são
romantizados, idealizados, como em um romance épico.
Para registrar a data, seria inaugurada uma exposição com painéis, que circularia
pelo país seguindo depois para a Alemanha, e ainda a publicação um livro com
fotografias, relação de projetos e depoimentos de pessoas que participaram ativamente no
decorrer desses quarenta anos. O livro foi publicado em alemão e português e a
organização dos capítulos foi dividida por décadas, dos anos 60 aos anos 2000.

295
Na apresentação deste livro, são destacadas443 como características mais fortes da
cooperação entre Alemanha e Brasil a “tolerância, a confiança e o respeito” que
garantiram uma relação de continuidade e flexibilidade, suplantando mudanças históricas
de ambos os países e as dificuldades decorrentes de aspectos culturais distintos:444

Foi preciso encontrar um modo de se acertarem, de se acostumarem um ao outro,


encontrar uma linguagem comum e, sobretudo, desenvolver uma estratégia
compartilhada para o alcance de objetivos estabelecidos. Obviamente, isso nem
sempre aconteceu sem tensões; o relacionamento entre seres humanos, mesmo no
próprio meio cultural já é, em si, complicado. Para tornar tudo mais difícil,
juntam-se às diferenças naturais as posturas e avaliações profissionais, as
questões do status e do salário, e assim por diante. Não se pode esquecer, é claro,
o encontro entre a tendência alemã ao perfeccionismo e a improvisação latina.

Era uma celebração importante, particularmente para os “cooperantes” alemães,


os seus promotores. Eram eles os anfitriões de uma festa, ficando na memória das novas
gerações políticas e empresariais do país o quanto foi feito pelos alemães para o
“desenvolvimento do país”, a contribuição dada ao progresso do Brasil. Eram alemães de
várias organizações e de diversas funções: aposentados e antigos funcionários da GTZ
que trabalharam em projetos nos anos 1970 e 1980, atuais diretores de agências e
coordenadores de projetos, peritos e técnicos, representantes de organizações do governo
e de empresas alemãs no Brasil e representantes da Câmara de Comércio. Além destes, os
brasileiros convidados eram funcionários de órgãos públicos que trabalhavam em
projetos com as agências alemãs e representantes de ONGs apoiadas por elas, ex-
estudantes que haviam feito intercâmbio na Alemanha e funcionários de empresas deste
país, além de consultores em projetos do Brasil com a Alemanha.
A GTZ recebeu a atribuição de organizar o evento e de se responsabilizar pelos
recursos financeiros vindos do BMZ. Segundo funcionários da GTZ, houve muito atrito
com outras organizações do BMZ (DED, principalmente) sobre a decisão de a GTZ
coordenar a festividade, porque a instituição organizadora, além de tomar as decisões

443
A redação do livro foi feita por Hans Kruger, com a colaboração de Hans Fiege, Claudia Fix e
Ilana Gorayeb.
444
Embaixada da República Federal da Alemanha: 40 anos de cooperação para o desenvolvimento:
Brasil e Alemanha, opus cit., p.8.

296
sobre tudo, desde a lista seletiva de convidados até o hotel, é aquela que acaba tendo
maior visibilidade, localmente e no exterior.
Para a dimensão do evento, havia uma equipe de organização relativamente
pequena: eram menos de cinco funcionários: os dois organizadores, Claudia Herlt com
sua assistente, Paula, uma brasileira recém-chegada da Áustria, e Hans Kruger, ex-diretor
da GTZ no Brasil e atual coordenador pelo lado alemão de um projeto na Amazônia, que
trouxera duas pessoas de sua equipe de Manaus.
A reduzida equipe se justificava, já que as atividades mais específicas do evento
seriam realizadas por uma empresa independente, contratada pela GTZ. Esta empresa
terceirizada tinha um contrato que envolvia a subcontratação de serviços de outras firmas,
responsabilizando-se por atribuições que iam desde a escolha da gráfica para o livro até
serviços de programação visual, buffet, fotografia, entre outros.
Entre as instituições do BMZ no Brasil, a GTZ foi a escolhida por ser, como me
foi dito, não somente especializada neste tipo de atividades, mas porque era a organização
que mais tinha, naquele momento, projetos no país e, por isso, podia mostrar o quadro
mais amplo da cooperação. Embora o maior volume de recursos tenha vindo do BMZ, a
GTZ também utilizou verbas de alguns projetos para pagar as passagens dos seus
representantes. A organização do evento ficou centralizada em três pessoas que se
responsabilizaram por aspectos diferentes. No plano mais geral das relações políticas e
diplomáticas entre os representantes dos dois países, estava à frente Rainer
Willingshoffer, da embaixada da Alemanha em Brasília. No planejamento da
comemoração e no comando da festa, a responsável era Claudia Herlt, uma médica alemã
que coordenava no Brasil um projeto junto com o Ministério de Saúde sobre DSTs
(doenças sexualmente transmissíveis) e AIDS. Para a redação do livro que seria
publicado, lançado e distribuído no dia da festa, estava Hans Kruger, que já citamos
acima.
Rainer Willingshoffer, um senhor de meia-idade, elegante e de uma simpatia
discreta, recebeu-me em sua sala para uma entrevista, onde notei, sobre sua mesa, uma
fotografia em que ele aparecia beijando a mão do Papa João Paulo II. Indicou que me
sentasse em uma poltrona muito distante de sua mesa, o que não facilitou uma conversa

297
menos formal entre nós, mas de toda forma, sua empolgação em relação às
comemorações que se aproximavam era evidente, mesmo à distância:445

Estamos festejando em novembro de 2003 os 40 anos de cooperação. Estamos


tomando a assinatura do Acordo Básico de Cooperação Técnica como um ponto
de referência e vamos fazer com o Itamaraty uma exposição de imagens, de fotos
acessíveis, um evento de participação, de testemunhos, e uma publicação, porque
acho que essa cooperação bilateral tem características muito especiais e ela é
muito exitosa... muito exitosa, se você pensar na nossa participação em
consultorias no INMETRO, ESAF, em 12 universidades... Nós criamos a
primeira faculdade de ecologia da América Latina, a Faculdade Florestal de
Curitiba.

Claudia Herlt, por sua vez, partia de outra abordagem. Tinha muita facilidade de
comunicação e sabia as regras “da sociedade”, era culta, muito elegante e tinha os
atributos importantes para desempenhar uma função diplomática, mas o fazia de forma
simples e simpática. No Brasil, ela era perita da GTZ e coordenava um programa na área
de saúde, com o Ministério da Saúde.
Ela era dona também de muitos conhecimentos no meio da “cooperação”, o que se
devia aos contatos desenvolvidos na coordenação do projeto, isto lhe permitindo uma
ampla articulação na área de saúde, que ultrapassava o Brasil, estendia-se à América
Latina e envolvia organismos internacionais, como a OMS e ONGs no Brasil e no
exterior. Além disso, era casada com um alto executivo do Banco Mundial e tinha uma
trajetória profissional na Alemanha que revelava a prática de lidar com esse universo de
relações interpessoais. Conhecia muita gente: na Alemanha, presidiu uma rede de mais de
2 mil ONGs por mais de seis anos.
Como dissemos, é comum que os profissionais alemães no campo do
desenvolvimento apresentem uma formação que se consolidou através de trabalhos
vinculados aos movimentos sociais, para depois fazerem parte de uma agência de
cooperação do governo. A experiência adquirida na atuação não-governamental
“especializa” essas pessoas para o trabalho desenvolvido na GTZ.
Este era o caso de Claudia Herlt.446 Ela ironizava a respeito de um estilo de ser
alemão, que dizia ser característico da atuação burocrática: eram pessoas sérias, caladas,

445
Rainer Willingshoffer, em entrevista em setembro de 2003, em Brasília.

298
carrancudas, com uma postura de “eficiência”. Ironizava, além disso, os trabalhos
administrativos na sede da GTZ enquanto práticas mecânicas e rotineiras e gostava
mesmo de fazer articulações políticas. Sempre tinha reuniões fora do escritório da GTZ
com representantes do governo brasileiro, de organizações não-governamentais, deixando
para a sua assessora o trabalho “braçal”, administrativo. Marcava uma fronteira
identitária entre ela e o “resto” dos burocratas, como se procurasse enfatizar que, “apesar”
de estar na GTZ, trabalhava com o que gostava, fazendo alianças entre as pessoas e
promovendo a construção de redes da sociedade civil e destas com o governo na área de
saúde. Esta experiência garantiu seu cargo. Sua função era de grande responsabilidade.
Viajava freqüentemente à Alemanha para negociar recursos, para convidar pessoas e
prestar informações, o que lhe proporcionava um salário bastante elevado. Durante esse
período em que foi responsável pela comemorações dos quarenta anos, acumulou
temporariamente duas funções: a de organizadora do evento e a de coordenadora do
projeto DST-AIDS, para o que recebeu duplamente.
Hans Kruger foi, e ainda é, um dos cabeças da GTZ no Brasil, um executivo
extremamente importante na história da agência neste país e referência nas decisões
tomadas. À época da pesquisa, entre 2002-2004, completara mais de quinze anos no país,
já tendo sido diretor da GTZ. Coordenava, então, o projeto Subprograma de Política de
Recursos Naturais, mais conhecido por SPRN,447 e trabalhava com a implementação do
projeto no Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas - IPAAM, órgão estadual de
meio ambiente localizado em Manaus. Kruger fez um trabalho de montagem desta
história, entrevistando pessoas, recolhendo fotografias pessoais e, finalmente,
estruturando o livro “de memórias” desses quarenta anos.

446
Sua postura de militante expressava-se no seu comportamento, no bom humor e também em suas
roupas, o que contrastava com o ambiente geral da GTZ. Usava sempre roupas finas, mas de cores muito
vivas, diferente do usualmente observado nos executivos dessas organizações. Claudia contou-me sua
experiência profissional anterior, particularmente entre as não-governamentais e sua atuação na GTZ, onde
se sentia um pouco fora do perfil. Segundo ela, as ONGs organizam-se com base nos estados da federação
alemã e, ainda que recebam recursos do governo, têm autonomia e são, geralmente, muito críticas em
relação aos governos.
447
O SPRN é um programa do PPG-7 direcionado para as secretarias estaduais de meio ambiente da
Amazônia – Acre, Pará, Amazonas e Roraima.

299
A organização da festa

Eu tinha interesse em acompanhar de perto tudo o que fosse relativo às


comemorações dos quarenta anos de cooperação. As conferências, os encontros e as
festividades são, como já disse, algumas das formas usuais de expressão pública das
burocracias em geral, sendo particularmente freqüentes entre agências e organismos
internacionais em espaços estrangeiros como parte de sua estratégia de visibilidade,
difusão de imagens e de valores e legitimação do seu modo de intervenção.
Como era a GTZ que estava organizando o evento, fui conversar com seu diretor-
adjunto no Brasil para me informar das possibilidades do seu acompanhamento e da
observação no escritório, quando ele me sugeriu que falasse diretamente com a
responsável, a sra. Claudia Herlt.
A princípio, houve alguma resistência ao meu acompanhamento. Com o tempo e a
minha presença constante como observadora no escritório, me foi permitido estar a par
das atividades de organização, sendo inclusive chamada para ajudar em algumas delas,
mais simples, quando o ritmo se tornou mais intenso nos dez dias anteriores ao evento.
Refleti se acompanhar de perto todo o movimento não iria interferir na minha
própria avaliação, em comparação com manter o distanciamento, mas participaria por
pouco tempo, pois já estávamos a poucos dias das festividades. Na verdade, aquela se
mostrava uma oportunidade única e privilegiada de entender os procedimentos de
organização de seminários e encontros, uma das especialidades da GTZ. Deixei sempre
claro a todos com os quais conversava quais eram os meus objetivos na pesquisa:
observação participante aberta.448 Procurava observar e perguntar sobre as atividades que
cada um desempenhava e, nos intervalos, tomava cafezinho e almoçava com os
funcionários, buscando ter um convívio mais próximo com o pessoal do escritório,
diferente de quando chegara.

448
Nos estudos de organizações desenvolvidos em Manchester, nos anos 60, sob a coordenação de
Tom Lupton, como observado por Susan Wright (Anthropology of Organizations, 1994, p. 11), chamavam
open participant observation o tipo de pesquisa realizada em fábricas, em que o pesquisador deixava claro
para seus companheiros que estava fazendo um estudo com envolvimento nas atividades realizadas pelos
funcionários, diferente dos estudos de Hawthorne, em que o pesquisador participava o mínimo possível das
atividades que observavam.

300
Em pouco tempo, os trabalhos que tinha de desempenhar acabaram exigindo que
pudesse gozar de alguns privilégios que eram somente dos funcionários da GTZ.
Forneceram-me o acesso à rede interna do escritório, à Intranet, que continha todas as
pastas e os arquivos usados nas atividades dos projetos, além de ser um espaço em que se
veiculam mundialmente informações sobre projetos da GTZ, vagas de empregos e as
políticas do BMZ. Além do acesso à Intranet, disponibilizaram um endereço eletrônico
para que eu pudesse me comunicar com a equipe organizadora.
As atividades constituintes do evento estavam voltadas exclusivamente para a
realização da festa: verificar a lista de convidados, contratar os serviços, como o buffet,
fazer a reserva de equipamentos de som e a do salão, além de estruturar a parte visual, a
exposição, com a contratação de produtora de vídeo e de fotógrafos para registrarem o
acontecimento. Minha participação foi inicialmente na colaboração da revisão da
tradução para o português dos artigos escritos por alemães para o livro comemorativo que
seria distribuído para os convidados presentes. Fiz a revisão de cerca de 20 artigos e
entrevistas dos primeiros técnicos alemães que vieram para o Brasil, os quai relatavam a
respeito da organização de cooperativas de produtores rurais, da construção de cisternas,
de um banco popular no Ceará, da organização de mulheres etc. Depois de revisados
alguns textos, atuei diretamente na organização do evento, ajudando em tarefas simples
ligadas à rotina do evento, na organização da listagem dos convidados em geral e dos
convidados especiais, os VIPs, e na elaboração de contratos para serviços, entre outros.
Durante a semana do evento, muitos alemães de outras agências alemãs ou de
outros projetos da GTZ fora da capital já estavam chegando a Brasília, e passavam no
escritório da GTZ para cumprimentar, para conversar e saber das últimas novidades. O
clima já era de festa para os peritos da cooperação alemã, que também conversavam em
tom de negociação política.
Finalmente, chegou o dia da festa: todos no escritório seriam liberados mais cedo
para se arrumarem – marcaram salão de beleza, compraram roupas novas. Havia uma
excitação muito grande.

301
A festa

Era 27 de novembro, uma quinta-feira, chovia muito em Brasília. Na entrada


lateral do Palácio do Itamaraty, um longo tapete vermelho se estendia indicando o local
do evento. Uma cobertura plástica, quase inútil, tentava impedir que os convidados, todos
muito arrumados, se molhassem. A organização previra que uma exposição com banners
abriria a festividade, entretendo os convidados que aos poucos fossem chegando. No
entanto, o forte vento que bateu naquela tarde derrubara todos os painéis da exposição.
Em cima da hora, a programação foi redefinida e os convidados orientados a descer
diretamente para o hall do auditório. A exposição seria vista somente no final do evento,
depois que arrumassem tudo. A programação dizia que às 4h da tarde seria iniciada a
comemoração com a abertura da exposição pelos presidentes dos dois países.
A conferência foi realizada no Auditório Embaixador Murtinho, no subsolo do
Palácio do Itamaraty, espaço bastante amplo, com capacidade para 300 pessoas, e que
ficou completamente lotado. Foram reservados pelos organizadores lugares especiais para
as “personalidades” alemãs e brasileiras: nas cadeiras mais à frente, ficariam os ministros
de Estado dos dois países, diplomatas e executivos de alto nível hierárquico das agências
alemãs, os VIPs que citamos anteriormente. Os outros lugares foram totalmente
ocupados, restando ainda muitos convidados em pé nas laterais e nos fundos do auditório.
Havia muitos alemães presentes, mas nesse primeiro momento estavam todos misturados
indistintamente ao público.
Foram convidados para a festa representantes de todas as instituições alemãs e
profissionais que atuaram na construção de um campo de cooperação para o
desenvolvimento do Brasil. Diretores, funcionários e ex-funcionários de agências
governamentais, fundações políticas e cientificas, além de ONGs, estiveram presentes
nesta festa como convidados, o que somou mais de 1.500 pessoas, sendo que cerca de
100 convidados especiais, do Brasil e da Alemanha, com passagens e hospedagem pagas,
entre eles, algumas figuras solenes das instituições e membros do governo brasileiro e do
governo alemão.
Da lista de VIPs, para os quais foram pagas passagens aéreas e hospedagem, os
nomes escolhidos não se basearam em nenhum critério objetivo de representação – por

302
região, por importância política, por envolvimento com determinados temas – mas
resultou de indicações pessoais dos três organizadores do evento, de acordo com critérios
pessoais, em função da experiência que tinham no trabalho na GTZ. A lista contemplou
cerca de 70 nomes, destes, aproximadamente 50 em todo o Brasil, tanto da GTZ como de
outras instituições da cooperação; diretamente da Alemanha, vieram cerca de 10
convidados, sendo outros tantos da ABC, de Brasília.
Todas as instituições que fazem parte da relação bilateral Brasil-Alemanha, desde
agências governamentais até fundações políticas e científicas, além das ONGs,
participaram desta festa como convidados, assim como muitos dos que contribuíram para
a construção deste acervo de idéias: profissionais e instituições que são fruto da relação
de 40 anos de cooperação. Na verdade, alguns dos convidados da GTZ e das outras
agências alemãs tiveram que utilizar recursos de que dispunham “dos projetos” para
pagar suas passagens. Assim, parte das verbas destinadas aos projetos foi gasta com uma
festa diplomática, mais precisamente com passagens e hospedagens dos próprios
funcionários da GTZ.
A solenidade foi iniciada em tom muito formal, centrado especialmente na
performance discursiva. A abertura foi feita pelo diretor geral substituto da ABC, que
falou da importância do evento para o MRE e para a ABC, fazendo um histórico dos
quarenta anos da cooperação alemã e destacando sua importância para o
desenvolvimento:

[...] a carteira de ricos e variados projetos de cooperação executados ao longo dos


últimos quarenta anos muito contribuiu para o desenvolvimento do país [...] A
longa e sólida parceria entre Brasil e Alemanha foi reforçada pela vasta gama de
instituições nacionais de excelência, tanto governamentais quanto da sociedade
civil, envolvidas na execução de projetos de cooperação técnica e financeira.

Aguardava-se ansiosamente a chegada do Presidente da Alemanha, Johannes Rau,


mas ele não compareceu, porque estava, segundo informações que circularam pelo salão,
reunido com o Presidente Lula em um jantar diplomático. Em seguida, foram escolhidos
três representantes do governo brasileiro e do setor privado para expor suas visões sobre a
cooperação alemã em cada uma das áreas que o governo alemão havia priorizado no
Brasil por quarenta anos: meio ambiente, desenvolvimento rural e urbano, pequenas e

303
médias empresas. Discursaram a ministra de Meio Ambiente, Marina Silva, o ministro de
Cidades, Olívio Dutra, e o diretor geral do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
(SENAI), representando o presidente do Conselho Nacional de Indústrias - CNI.
Para entreter a numerosa platéia depois dos longos discursos e também para
“mostrar um exemplo” das atividades da cooperação alemã no Brasil, apresentou-se a
Orquestra Infanto-Juvenil de Câmara “Encontro das Águas”, do Centro Cultural Cláudio
Santoro, ligado à Secretaria de Cultura do Estado do Amazonas. A orquestra, que tem
apoio do governo alemão, é formada por crianças e jovens amazonenses de famílias de
baixa renda.449 Após a orquestra, muito aplaudida, a diretora do Departamento de Política
de Desenvolvimento com Países e Regiões da Ásia, América Latina, Europa, Garantia da
Paz e Nações Unidas, do BMZ, discursou, seguida pelo secretário geral das Relações
Exteriores do Brasil, Samuel Pinheiro Guimarães, que encerrou a primeira parte do
evento destacando a proximidade entre as comemorações dos 40 anos de cooperação para
o desenvolvimento e dos 180 anos de imigração alemã no Brasil.450
Depois desta solenidade, caracterizada fundamentalmente pela oralidade, com
muitos discursos, finalmente o evento foi aos poucos ganhando informalidade e
assumindo as nuances de uma festa. Todos os presentes foram encaminhados ao
mezanino, onde fora montada uma ampla exposição com fotos em painéis que contavam
a história das relações entre Brasil e Alemanha por décadas, com destaque para a
Amazônia, com sua floresta, seus rios e os índios.451 Além das fotos, houve a transmissão
em uma tela de um vídeo feito com David Kopenawa, uma líder indígena do povo
Yanomami de grande projeção nacional e internacional. De acordo com os organizadores,
Davi Kopenawa havia sido chamado para dar um depoimento no dia da solenidade,
juntamente com os representantes das instituições governamentais que relataram suas
experiências nos projetos com as agências alemãs de cooperação. No entanto, os

449
Crianças carentes mostrando seus dons: são muito bons os efeitos de se mostrarem crianças
dançando, representando, tocando instrumentos musicais como resultado da assistência e dos “serviços
sociais”.
450
Entre os diplomatas brasileiros, a referência ao evento é sempre feita dando destaque ao caráter
formal, “institucional” dessa cooperação, apoiada na regulamentação jurídica do Acordo Básico de
Cooperação Técnica, de 1963. Outras formas de cooperação se dão há muito mais tempo, considerando os
fluxos de migrantes que há cerca de 180 anos se estabeleceram prioritariamente na região Sul, o que
contribuiu para que haja atualmente mais de 12 milhões de descendentes alemães no Brasil.
451
A exposição seguiu para outros lugares, de Berlim ao Acre e a Manaus.

304
representantes da ABC não aceitaram esta “informalidade” proposta pelos organizadores
alemães que, como alternativa, gravaram o vídeo, embora Kopenawa estivesse presente
na comemoração como um dos VIPs.452
Serviram um coquetel de pequenos quitutes da culinária brasileira, como vatapá,
acarajé, casquinha de siri, entre outros, seguidos de doces típicos, como cuscuz, cocada e
quindim, acompanhados de muito chopp e caipirinha, numa típica alusão às preferências
do público que ali estava, o que fez com que todos ficassem mais à vontade, mostrando-
se menos tímidos e formais. Depois do coquetel, os presentes foram convidados a uma
churrascaria para jantar. Reservada para o evento, a churrascaria transformou-se em uma
grande festa para os alemães.
Mais de 1 milhão de Euros foram gastos em somente dois dias: 27 e 28 de
novembro de 2003, em festividades, coquetéis, jantares, hotéis, passagens aéreas, um
livro, um vídeo e um CD.

Quanto vale uma festa?

Nos atos públicos, eventos ou rituais da “cooperação internacional” revelava-se de


forma clara um conjunto não homogêneo, mas bem definido, de alemães, funcionários de
um Estado estrangeiro que adotam práticas de intervenção em setores e órgãos de
administração pública no exterior, que fazem parte de uma elite. Têm status de quase-
diplomatas, senão diplomatas propriamente, cujo elo central, a GTZ, empregava um
número maior de técnicos e funcionários administrativos entre as agências alemãs no
Brasil.
Com discrição e pouco alarde, por meio de projetos, o governo alemão foi
construindo uma estratégia de promoção de mudanças sociais através do que eles
denominam de cooperação técnica, com a articulação de redes, a transmissão de
conhecimentos, os valores e as referências ao longo de décadas em projetos no Brasil. O
evento dos quarenta anos deu visibilidade a pessoas que participam ou participaram da
história das atividades que fazem parte de ações governamentais e não-governamentais e
de medidas de intervenção em programas das instituições alemãs no Brasil.
452
O único vídeo realizado para a exposição foi sobre o índio yanomami Davi Kopenawa, que foi um
dos convidados de honra do evento, emblemático.

305
Os convidados especiais da festa eram os alemães, particularmente aqueles
ligados ao governo. A festa era deles e para eles.453 Eram muitos os que estavam
presentes, alguns provavelmente se conheciam de longa data; uns vinham da Alemanha,
outros continuavam no Brasil, em outras instituições, alguns estavam casados/as com
brasileiros/as, em posições importantes em outras regiões, ou aposentados, e saudavam-se
com entusiasmo.
A concepção desta estrutura burocrática e de redes de relações mais amplas que
interligavam instituições de diferentes naturezas – ONGs, fundações políticas, agências e
bancos – que era o BMZ, ganhou realidade concreta nesta festa. Ao percorrer a
exposição, folhear o livro que fora distribuído no salão e me perceber cercada de todos
aqueles alemães no salão do Palácio do Itamaraty, muitos vindos diretamente da
Alemanha para o evento, me dei conta de fato da existência de um mundo da cooperação
dos alemães no Brasil.
A festa dos “40 anos” foi sem dúvida um ritual de revigoramento da fundação
desta relação, um ritual de renovação, através da representação discursiva e da
performance da celebração, que deu visibilidade à dimensão de um “corpo conexo” de
instituições da cooperação alemã. Acredito que tenha sido este o propósito com o qual a
festa foi concebida, para que os alemães se vissem e fossem vistos por representantes
políticos brasileiros. Alcançar visibilidade no universo político, particularmente em
Brasília, seria razão suficiente para justificar elevados gastos do governo alemão com
passagens aéreas internacionais, passagens aéreas nacionais, hospedagem e diárias dos
muitos convidados especiais alemães e brasileiros, além de todos os serviços da
solenidade diplomática e da festa.
Esta festa foi uma cerimônia de estatuto “diplomático”, um ritual de celebração do
aparato burocrático de Estado, que revelaria a ampla trama de redes sociais e
institucionais do governo (Estado) alemão de alcance internacional.
Os documentos produzidos, seja pela mídia, seja pelas agências organizadoras,
ajudam a prolongar e a fazer ecoar mais longamente a visibilidade dos eventos.

453
O diretor da ABC, Marco César Naslauski, em Despacho ao Memo ABC/1138/CTRB, de 29 de
agosto de 2003, afirma que “a Embaixada alemã pretende realçar a comemoração dos 40 anos de CT
institucionalizada, inserindo-a no contexto da visita do Presidente Rau”. Prossegue; “Do ponto de vista
desta Agência, as referidas solicitações e sugestões parecem-me apropriadas. A ABC só teria a endossá-las”.

306
Memória e história

Por fim, os eventos de celebração fortalecem a representação de datas e fatos


históricos, definidos por critérios oficiais de Estado, e são recriações daquele momento
original em que as histórias pessoais são recontadas para fixar e estabelecer uma história
oficial da cooperação internacional. Os convidados da festa caracterizam-se como um
grupo de antigos funcionários e diretores ligados entre si pela profissão ou pela atividade
de cooperantes. Nesses rituais de celebração, são realimentados e reavivados os laços
entre estrangeiros cooperantes que formam, em certa medida e por intermédio da
instituição, uma rede de vínculos profissionais e ideológicos. Essa rede é transnacional,
porque seus membros circulam em diferentes espaços, são estimulados a não se fixarem
em um país específico. Nas redes, diferentes fluxos culturais contemporâneos
transpassam fronteiras nacionais e colocam em evidência uma comunidade de alemães no
Brasil.
A formação desses grupos, dessas comunidades de profissionais da cooperação
internacional, está associada à construção social de um campo no qual se intervém para
capacitar, desenvolver, reduzir a pobreza, enfim, para promover o bem comum de uma
coletividade que ultrapassa cada Estado Nacional em face de riscos percebidos como
globais. Tais processos guardam homologias, em outras escalas, com aqueles de
coletivização nacional que se constituíram historicamente e, no século XIX, foram
adotados pelo aparato estatal de políticas de bem-estar social, só que, neste caso, em
proporções ampliadas, ou seja, em escalas globais.454 Ainda que em contextos alargados,
o aparato estatal permanece, abarcando em suas estruturas diplomáticas ou de relações
exteriores os processos de institucionalização, de forma simultânea à constituição de uma
institucionalidade multilateral.455 Neste sentido, descrevê-las é uma maneira de situar os
contextos em que se deram, as formas que foram desenvolvidas, bem como definir o
grupo de que tratamos nesta tese.

454
Swaan, Abram de. Care of the State – health care, education and welfare in Europe and the USA
in the modern era. New York: Oxford University Press, 1988. p.1-12.
455
Referimo-nos às relações bilaterais de cooperação internacional, que se estabelecem entre Estados
Nacionais.

307
A formação desses grupos, dessas ditas comunidades de profissionais da
cooperação internacional, está associada a construção social de um campo no qual se
intervém para capacitar, para desenvolver, para reduzir a pobreza, enfim, para prover o
bem comum para uma coletividade que ultrapassa os estados nacionais em face a riscos
percebidos também como globais. Tais processos guardam homologias, em outras
escalas, com os processos de coletivização nacionais que foram se constituindo
historicamente e, no século XIX, foram assumidos pelo aparato estatal de políticas de
bem estar social, só que neste caso, em escalas ampliadas, ou seja, escalas globais.456
Ainda que em contextos ampliados, o aparato estatal permanece, abarcando em suas
estruturas, diplomáticas ou de relações exteriores, os processos de institucionalização
simultaneamente a constituição de uma institucionalidade multilateral.457 Neste sentido,
descrevê-las é uma forma de situar os contextos em que passaram, as formas que se
desenvolveram, bem como de definir o grupo de que tratamos nesta tese.
Para o próximo capítulo, analisaremos uma outra situação etnográfica, um projeto
como lugar privilegiado de observação das dinâmicas de articulação entre redes locais e
internacionais para implementação de mudanças na administração pública. Analisamos o
PPTAL, projeto destinado às populações e terras da Amazônia Legal.

456
de Swaan, Abram In Care of the State – Health Care, Education and Welfare in Europe and the
USA in the Modern Era, New York: Oxford University Press, 1988, p.1-12.
457
Referimo-nos às relações bilaterais de cooperação internacional, que se estabelecem entre Estados
Nacionais.

308
Capítulo 8. Disciplina e reprodução de saberes em um projeto de
cooperação técnica, o PPTAL

O propósito deste capítulo é analisar as dinâmicas sociais que promoveram a


inclusão do Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da
Amazônia Legal, o PPTAL, no escopo do programa PPG-7 e na lógica administrativa da
Funai.
Neste sentido, buscamos fazer um recorte histórico do momento inicial do PPTAL
a partir de seus documentos e de entrevistas com pessoas que ocuparam posições de
decisão na administração pública e em organizações não-governamentais, apontando para
grupos e pessoas dentro da administração pública e fora dela articuladas em redes ligadas
a questões ambientais e indígenas que participaram dessas negociações. Além disso, o
desenvolvimento de projetos é uma “especialidade” da GTZ, de forma que analisar um
projeto específico, em cada uma de suas etapas e atividades desenvolvidas, é uma forma
de analisar as práticas da cooperação técnica da GTZ.
A exposição minuciosa do processo de entrada dos “alemães” na Funai por meio
do projeto PPTAL tem por objetivo primeiramente situar como os discursos opostos de
“invasão alemã”, por um lado, e de “salvação do clima”, de outro, não procedem. A
intervenção definida como cooperação técnica internacional resulta de uma articulação
global-local, em que os interesses externos são percebidos e reconfigurados no local
como parte dos interesses daqueles que aí estão. Além disso, o objetivo aqui foi apontar
alguns dos aspectos da operacionalidade da cooperação – como ela se processa na prática.

O KfW e os índios brasileiros, Brasília, 2002

O Banco KfW, como já dissemos, é o banco alemão de crédito para reconstrução,


que financia programas e projetos “de desenvolvimento” dentro e fora da Alemanha,
sendo um dos maiores bancos da Europa e a maior instituição financeira que participa dos

309
projetos do Programa Piloto para as Florestas Tropicais do Brasil, o PPG-7, como
representante do governo alemão no repasse de recursos financeiros de doação.458
Entrava pela primeira vez no escritório do KfW no Brasil para entrevistar o seu
diretor, Dietmar Wenz, depois de ser bastante insistente para conseguir uma hora em sua
agenda. Estava um pouco nervosa, confesso, porque não sabia o que me aguardava. Tinha
conhecimento de que o KfW era um dos maiores bancos europeus e o banco de
desenvolvimento do governo alemão, e também que foi a principal instituição financeira
que apoiou o PPG-7, contribuindo com praticamente a metade do total dos recursos. Estas
informações davam à autoridade financeira à minha frente um certo peso, no entanto,
encontrava ali um ambiente bastante simples, sem formalidades ou cerimônias, sem
qualquer “bloqueio à entrada”, usuais nos escritórios de organismos internacionais.459
Fui recebida na porta do escritório por uma secretária muito bonita, alemã, de
meia-idade, que me pediu que aguardasse, pois chamaria assim que o diretor pudesse me
atender. Enquanto esperava, olhei os folders e os panfletos que colocam à disposição no
hall de entrada. As instalações do escritório têm uma decoração elegante, em tons de
marrom, com móveis confortáveis. Após aguardar um pouco, fui encaminhada à sala do
diretor.
Por onde passava, todas as paredes das salas do KfW estavam decoradas com
fotografias de índios emolduradas em quadros. Reconheci aquelas como sendo as fotos
que ilustravam o livro publicado pela GTZ, juntamente com a Funai, sobre o projeto
PPTAL; elas haviam se transformado em um verdadeiro mural de exposição nas
instalações do banco.
As fotografias buscavam retratar uma imagem de povos “selvagens”, homens e
mulheres de todas as idades e etnias, nus, pintados, mascarados, enfeitados com colares,
penas, dançando descalços em suas aldeias, em suas terras. As fotografias transmitiam
uma aura de inocência, como se eles estivessem fora do nosso tempo, sem quaisquer
ameaças, sem laços com o mundo ocidental.

458
O KfW tem muitos projetos de financiamento lucrativos, além de fazer doações. No próprio PPG-
7, há os projetos “bilaterais associados”, assim chamados porque, apesar de não fazerem parte das doações
destinadas ao conjunto de projetos do PPG-7, mesmo sendo projetos de financiamento, têm os mesmos
objetivos considerados por parte do governo alemão.
459
O estabelecimento do KfW no Brasil tem relação com o PPG-7 pelo volume de recursos que o
programa dispõe por parte do banco alemão, sendo posterior a 1995.

310
Senti um estranhamento diante do contraste das várias fotos, em grandes quadros,
de índias e indiozinhos nus bem atrás daquele senhor que me concedia, tão formalmente,
uma entrevista para falar sobre os rumos financeiros do banco alemão no Brasil. O que
faziam ali aquelas fotografias de índios expostos no escritório de um banco de
desenvolvimento alemão? Imaginei que fosse uma forma de transmitir uma imagem do
próprio banco. Tais representações dispostas na decoração dos escritórios de agências
internacionais de cooperação, ao contrário do que pode se imaginar, são comuns e fazem
parte da sua identidade e legitimidade, sustentam sua razão de ser institucional diante da
existência de situações de carência e pobreza.
Assim, a imagem passada de representação da marca do KfW no Brasil era de um
banco ousado, criativo, inovador, “socialmente responsável”, porque atuava em causas
sociais, particularmente as de “grupos tradicionais”.
Na medida em que parecia não haver qualquer interferência sobre a vida daqueles
indígenas – tão dignamente apresentados, nutridos e enfeitados, como supostamente
vivem em suas aldeias – aquela representação trazia a mensagem subliminar de que a
atuação do KfW contribuía para o processo de demarcação das terras indígenas,
garantindo a preservação da Floresta Amazônica.460

O PPTAL para os alemães

No conjunto dos projetos do PPG-7, o PPTAL é considerado pelos alemães um


dos mais bem-sucedidos, como podemos perceber no depoimento do diretor do KfW, em
julho de 2002:

No relatório de avaliação que a gente fez na época, tinha uma lista de terras
indígenas. [...] Essa lista só tinha algo como 55, 56 terras. Achava-se que com os
30 milhões de marcos que a gente tinha, mais RFT e contrapartida brasileira, ia
dar pra fazer essas terras. A gente fez [...] e o dinheiro ainda sobrou, sobrou para
fazer muito mais do que o projeto inicial previa [...] Nesse sentido, eu vejo esse
como um dos melhores projetos do PPG-7. A Funai, com um ritmo meio lento,
tudo bem, mas consegue fazer a cada ano, 10, 12, 15 terras dessa lista. E dentro

460
As fotos expostas nas paredes do escritório do KfW fazem parte do acervo de fotografias do
PPTAL, as mesmas da publicação Demarcando terras indígenas, organizada pelas técnicas da GTZ Márcia
Gramkow e Carola Kasburg, em 1999 e 2001.

311
dessas terras, tinha terras indígenas onde a questão política não foi fácil: Javari,
Rio Negro; são áreas imensas, muito grandes e com interesses adversos, fortes,
que são contra uma demarcação. O fato de conseguir fazer isso razoavelmente
dentro do prazo é algo que normalmente você avalia como algo forte, positivo, e
o fato de que você conseguiu fazer o que tinha presente na lista e com metade do
dinheiro é também algo muito positivo. [...] Nós temos outros projetos no PPG-7
que não estão conseguindo fazer isso com a mesma clareza que o PPTAL.

Apesar de somente ter iniciado as atividades com povos indígenas no Brasil em


1996, com o PPTAL, este não foi o primeiro projeto com populações indígenas em que a
GTZ se envolveu na América Latina.
De acordo com publicação do BMZ, a inclusão das populações indígenas em
projetos e programas da cooperação alemã para o desenvolvimento não constitui um
campo de ação completamente novo.461 Havia alguns casos em que foi desenvolvida a
cooperação financeira e técnica com populações indígenas da América Latina,
principalmente nos países andinos, como Bolívia, Peru e Equador, desde os anos 1970.462
No entanto, a grande maioria dos projetos concentra-se nos anos 1990: dos 45 projetos
destacados nesta publicação, entre cooperação técnica e financeira, somente quatro
começaram nos anos 70, passando para nove na década de 80, chegando a 32 projetos
somente na primeira metade da década de 90 (mais precisamente, até 1996, data de
publicação do documento), marcando uma virada sensível nas tendências apresentadas. É
importante assinalar que outras agências ligadas ao BMZ, além da GTZ e do KfW,
também recebem recursos orçamentários para implementar projetos com populações
indígenas, como o DED, o CIM e o DSE, além das instituições religiosas, que são as mais
antigas atuando nesta área, com projetos com povos indígenas na América Latina desde
os anos 60.463
Os projetos orientavam-se principalmente para as áreas de desenvolvimento rural,
o chamado “desarrollo campesino”, com atividades agrícolas e de irrigação para a
produção de alimentos. Muitos também eram os projetos para educação diferenciada,

461
BMZ. “Concepto relativo a la cooperación para el desarrollo con poblaciones indígenas en
America Latina,” BMZ Actuell, 073, novembro de 1996, p.2.
462
Idem.
463
Idem, p.16-18.

312
entre eles, educação básica, bilíngüe ou indígena. Neste último caso, o projeto mais
antigo foi implementado no Peru, ainda em 1970.
O aspecto absolutamente inovador que o projeto para populações indígenas no
Brasil em que a GTZ tomava parte era o enfoque territorial. Não havia, ao longo da
história da agência de cooperação técnica, qualquer experiência em projetos envolvendo
demarcação de terras indígenas.
Outras hipóteses podem ser aventadas no que concerne à aproximação de alemães
com populações indígenas, como a tradição do romantismo entre os alemães, de que nos
fala Martha S.:

Para mim, a relação tem a ver com o romantismo. Do meu ponto de vista, tem a
ver com Karl May, o escritor de Winetton. São romances para crianças e
adolescentes, que depois viraram filmes. Trata-se de índios norte-americanos, e
estes livros ele escreveu na Alemanha. Ele nunca saiu para lugar nenhum. Ele
formou a idéia do selvagem bom, de que os índios são os portadores dos valores
bons e os brancos são ruins e só tem alguns mediadores – brancos – que são bons
e o chefe dos índios é o Winetton. E daí, todas as crianças alemãs, todas sem
exceção, crescem com os livros do Karl May e brincam de índio. Então, quando
você vê um Parlamento de velhos lá na Alemanha, de partidos da direita até os da
esquerda, em que todo mundo dá palestras a favor de índios, a minha hipótese é
de que isso sai de Karl May, porque eles não têm um conhecimento
antropológico mais profundo. Os filmes do Winetton passam no Natal, quando
todo mundo tem tempo. Todo mundo adora. Já falei com parlamentares sobre
isso, sobre a minha hipótese. Eu acho que tem muito a ver, porque não tem
nenhum outro país onde todo mundo adora índio sem saber o que é.

Certamente, o romantismo na Alemanha não surgiu com Karl May. Ele é uma
expressão popular presente na sua literatura, e o fato de surgir um Karl May na Alemanha
explica muito dessa idealização do indígena.
Outras agências alemãs além da GTZ têm atuado nas questões relativas aos povos
indígenas no quadro das “intervenções para o desenvolvimento”, desde os anos 60,
através principalmente das igrejas e das instituições eclesiásticas. Nos anos 70 e 80,
iniciaram a cooperação governamental, mas não havia um direcionamento direto para o
atendimento às demandas dos povos indígenas, mas elas eram incorporadas a outras
políticas sociais através de benefícios indiretos. Essas agências (Brot für die Welt,

313
Misereor, entre outras), atuavam como financiadoras de ONGs e da Igreja, mas não
atuavam diretamente nas aldeias com as populações indígenas .
No entanto, a partir dos anos 90, registrou-se uma descontinuidade na forma de se
abordarem as questões indígenas: passou-se a considerá-las um “grupo meta especial
distinto”, o que significa um foco específico em relação a estas populações.
Até 1996, o BMZ não havia formulado uma definição clara sobre a forma de
trabalhar com povos indígenas, quando então buscou cobrir esta lacuna desenvolvendo
uma base conceitual para este trabalho, focalizando exclusivamente tal política na região
da América Latina. Em publicação oficial do BMZ, argumenta-se que com esta
formulação houve uma mudança de orientação conceitual importante, com “o abandono
de concepções paternalistas e integracionistas” e de desenvolvimento induzido de “fora
para dentro” para a concepção de desenvolvimento “desde dentro”, baseada em direitos.
Se antes adotavam categorias de pobres e carentes, subdesenvolvidos e excluídos para se
referirem às populações indígenas, passaram depois a situar a questão indígena no
conjunto de outros grupos, como o dos afro-descendentes, que viveram processos de
colonização e sofreram privação de direitos, ressaltando a importância de compensações
em relação a uma dívida histórica com povos e culturas diferentes.464
Esta nova abordagem seria marcada pela assinatura da Convenção 169 da OIT, de
1989, que é citada no documento do BMZ como uma referência para orientar suas
próprias definições em projetos para povos indígenas segundo novos enfoques
conceituais, destacando-se entre eles o não-assimilacionista em relação aos povos
indígenas.465 Este é um processo que caminha com o reconhecimento de movimentos
indígenas organizados, de auto-afirmação dos representantes indígenas na América
Latina e da noção de que são sujeitos de seu próprio desenvolvimento,466 capazes de
elaborarem um conceito próprio de desenvolvimento. Tais idéias relacionam-se à
definição de etnodesenvolvimento, que se chamou de auto-desenvolvimento.467

464
Ibidem, p.3.
465
BMZ “Concepto relativo a la cooperación para desarrollo con poblaciones indígenas en América
Latina”, opus cit., p.9.
466
Idem, p.8.
467
Não há em lugar algum do documento a referência ao termo “etnodesenvolvimento”, no entanto, a
definição á qual se referem aqui pode ser entendida através desta categoria.

314
A GTZ promoveu entre os dias 28 e 30 de abril de 2002, no Panamá, uma reunião
na qual estiveram presentes representantes indígenas e não-indígenas, entre eles,
membros da equipe brasileira do PPTAL e do PDPI. A idéia da reunião foi a de elaborar
recomendações para inovar as formas de atuação da GTZ em projetos de cooperação
técnica alemã com povos indígenas da América Latina, que eram fundamentalmente
orientados para populações camponesas, sem muita atenção aos aspectos étnicos e
culturais específicos desses povos.
No Panamá, reuniram-se 38 representantes de organizações indígenas, instituições
estatais e internacionais, membros da GTZ que trabalham em Bolívia, Peru, Brasil, Chile,
Costa Rica, Guatemala Equador, Nicarágua e Panamá, representando 19 programas e
projetos na América Latina onde a cooperação com povos indígenas se destaca. Do Brasil
estiveram presentes nessa reunião em Boquete (Panamá), Slowacki de Assis, funcionário
da Funai, como representante do PPTAL, e Gérsen Luciano Baniwa, liderança indígena e
representante do PDPI, que apresentaram documentos sobre os respectivos projetos.
Todo o debate teve também por princípio a contribuição para a discussão do
“Conceito Relativo à Cooperação para Povos Indígenas na América Latina”, do BMZ. A
GTZ elaborou recomendações para melhorar as propostas de atuação em projetos com os
povos indígenas da América Latina, documento este que ficou conhecido como
“Recomendaciones de Boquete”. Entre as 13 recomendações, destacam-se:

Deben aumentarse los recursos financieros para la cooperación con pueblos


indígenas, utilizando p.e. las reservas temáticas o elevando el monto de las
obligaciones a incurrir en el futuro para América Latina. [...] Dentro de la GTZ
debe fortalecerse aún más la competencia para tratar y coordinar asuntos
indígenas. Para tal fin se deben tomar las previsiones financieras y organizativas
del caso. 468

Além dos aspectos de pobreza intensamente ressaltados para caracterizá-los,


destacaram-se entre os objetivos da cooperação para as populações indígenas também a
questão dos direitos humanos, da participação democrática em processos decisórios e da
gestão ambiental. A cooperação é vista como uma oportunidade de levar a cabo
mudanças sustentáveis em favor de populações indígenas nos países parceiros. Assim, a

468
GTZ. “Recomendaciones de Boquete”, opus cit., p 2.

315
cooperação se define como “esforços em assessorar as populações indígenas na
articulação, formulação e implementação de seus direitos legítimos”,469 em que o
destaque à participação é fundamental na garantia dos seus direitos e na defesa de suas
demandas em “processos decisórios de bem-estar social”.
No caso da pobreza, os projetos que apóiam as comunidades indígenas são
baseados em auto-ajuda, desenvolvimento rural, proteção da floresta tropical, educação
primária e saúde. O que diferenciaria, no enfoque das agências alemãs, as relações dos
grupos indígenas com os Estados Nacionais no processo de construção/elaboração de
diretrizes para o desenvolvimento seria a importância de um tratamento baseado na
“multietnicidade” e na “interculturalidade” e o respeito aos valores, à cosmovisão, ou
seja, conceitos (culturalmente) específicos dos povos indígenas.470
Neste sentido, as questões conceituais associadas a uma cooperação mais eficaz
voltada para as populações indígenas foram discutidas com maior intensidade no campo
de projetos de proteção da floresta tropical, como no caso do PPG-7.
O PPTAL foi o primeiro caso de um projeto da GTZ com demarcação de terras
indígenas e tornou-se um laboratório exemplar, pela diversidade cultural dos povos
indígenas localizados na Amazônia brasileira e pela extensão territorial, um desafio sem
precedentes. Neste sentido, a hipótese que aventamos sobre “transferência de
conhecimentos” é que, ao invés do fluxo se dar no sentido da GTZ para o Brasil, na
verdade, sua direção é inversa. Devido à abrangência do projeto, que alcança toda a
Amazônia Legal, como também pela diversidade étnica dos grupos indígenas envolvidos,
o volume de recursos financeiros e de capital humano alemães aplicados no projeto se
justifica pela experiência adquirida e pela maior chance de novos contratos de cooperação
internacional. O desenvolvimento do PPTAL no Brasil garantiria à GTZ expertise para
trabalhar em outros projetos sobre povos indígenas, particularmente sobre questões
territoriais. Os projetos seriam experiências “de laboratório” para verificação da eficácia
do planejamento e de práticas destinadas a essas populações.
A execução de um projeto como o PPTAL abriu um leque de oportunidades e
experiências novas assumidas por peritos e técnicos alemães e criou um acervo de

469
BMZ. “Concepto relativo a la Cooperación”, opus cit., p.5-6.
470
GTZ, idem, p.1.

316
documentos e relatórios, estudos e estatísticas na GTZ, que garantem a esta organização
um acúmulo de conhecimento absolutamente novo e um campo aberto de atuação.

O PPTAL

O projeto é, por definição, um lugar privilegiado de observação, lugar de


produção e reprodução de metodologias de planejamento, monitoria e avaliação, cursos e
oficinas enquanto saberes administrativos e formas cotidianas de disciplinamento de
comportamentos adotadas pela agência alemã de cooperação técnica, a GTZ, como parte
da sua lógica de ação. Trata-se, de fato, da unidade de ação básica da agência.
O enfoque orienta-se menos para o que a agência diz realizar, enquanto discurso
oficial, e mais para as intervenções pouco visíveis e pouco ditas do cotidiano, nas quais
aspectos do global estão presentes no local e vice-versa e as assimetrias afirmam-se e
estabelecem-se. Desloca-se, assim, o foco do local ou do global, instâncias de análise
predefinidas, para onde ambos se encontram, isto é, o projeto, que é o resultado do
encontro dessas duas instâncias polares e assimétricas de poder.
Como argumentou Almeida em brilhante análise sobre o projeto PPTAL, a
atuação da GTZ caracteriza-se por uma intervenção quase muda, em que são promovidas
com o projeto formas de disciplinamento e de assujeitamento, a partir da relação da
agência de cooperação com a Funai. A partir da projeção de visibilidades “consensuais”
em discursos reconhecidos, obscurece-se a visão de algo que está nas práticas diárias, na
instituição da rotina, na naturalização de processos burocráticos em diferentes instâncias
de atuação que uma agência internacional é capaz de alcançar.

[o PPTAL] consiste, entretanto, num setor que não pode ser pensado
separadamente da cooperação técnica, isto é, da GTZ. Por esta via, ordena mais
despesas e tem maior poder de intervenção na ação da FUNAI. Assim
funcionando, a organização do PPTAL estabelece no interior da FUNAI um
aparato que o diferencia de todos os demais projetos (Planafloro e Projeto
Carajás) com os quais a FUNAI interagiu. Os projetos chamados
“desenvolvimentistas” ainda que contando com recursos internacionais não
471
demandaram qualquer reestruturação administrativa da FUNAI.

471
Almeida, A.W.B. Avaliação independente sobre o PPTAL, Brasília: GTZ, 2001, p.76.

317
O trabalho de pesquisa no PPTAL, um dos projetos que fazem parte do PPG-7, foi
minha primeira experiência de observação das práticas definidas como cooperação
técnica da agência alemã GTZ no Brasil.472 Ele figurava entre os dois únicos projetos
orientados para povos indígenas no conjunto dos projetos do PPG-7, sendo que o PDPI
surgiu posteriormente como decorrência de um arranjo entre PPTAL e PDA, pensado
para dar suporte a atividades de sustentabilidade em terras indígenas, um desdobramento
das demarcações realizadas pelo PPTAL.473
Na estrutura do PPG-7, o PPTAL se localiza entre os projetos de Unidades de
Conservação e Manejo de Recursos Naturais, um dos grupos de projetos que fazem parte
dos subprogramas estruturais, além de Política de Recursos Naturais e Ciência e
Tecnologia.474 Os subprogramas estruturais orientam-se para ações que atinjam
“diretamente as deficiências institucionais que inibem a implementação da Política
Ambiental Brasileira na Região Amazônica, além da ampliação dos conhecimentos sobre
os ecossistemas da Amazônia e uso sustentável de seus recursos”.475
Em relação à caracterização geográfica do projeto, restrito à Amazônia Legal,
havia a ressalva de que estariam aí incluídas somente as terras indígenas existentes nos
seguintes estados: Acre, Amazonas, Amapá, Maranhão, Pará, Roraima e Tocantins, sendo
excluídas aquelas dos estados de Mato Grosso e Rondônia pelo fato de terem sido
contempladas em outros projetos em que o Banco Mundial já estava envolvido.476

472
BIRD, Blue Cover, abril de 1994, p.4.
473
O objetivo do PDPI era “melhorar as condições de conservação dos recursos naturais nas terras
indígenas e a promoção do bem-estar das populações indígenas através da regularização das terras
indígenas e da maior proteção e vigilância das áreas das terras indígenas na Amazônia Legal”. Segundo um
de seus técnicos, este projeto orientava-se especificamente às terras indígenas devidamente regularizadas, o
que limitava a sua capacidade de atendimento aos diferentes grupos indígenas. Recentemente, a equipe do
projeto argumentou sobre a suspensão desta restrição, de forma a poder atender a populações de terras
também não regularizadas, o que foi alcançado e reconhecido como uma vitória de demandas sociais
indígenas.
474
De acordo com o tipo de política executada, o PPG-7 divide-se entre Subprogramas Estruturais e
Subprogramas Demonstrativos. Os demonstrativos destinavam-se a viabilizar o envolvimento de
comunidades e ONGs, Estados e municípios em testes e difusão de modelos de desenvolvimento
sustentável.
475
FUNAI. PRODOC - Proposta de Cooperação Técnica com o PNUD PNUD/BRA/96/018, maio de
1998, p.18.
476
Idem, p.25.

318
Considerando ser um projeto fundamentalmente vinculado a (ou ditado por) uma
lógica internacional e ambientalista, sua abrangência restringia-se à Amazônia,
determinada pelo enfoque exclusivo sobre povos indígenas amazônicos, negligenciando
outras situações indígenas no país.
Tendo em vista o desenho final do projeto, após todas as mudanças pelas quais
passou ao longo de sua negociação e execução, ele foi pensado, em linhas gerais,
considerando-se quatro componentes: “Regularização fundiária das terras indígenas”, o
componente 1, que seria o eixo central do projeto, orientado para implementar as
atividades de identificação, delimitação e demarcação das terras indígenas, de forma a
regularizar a sua situação juridicamente.477 Este componente se dividiria em
subcomponentes de “Identificação”, como o nome diz, visando identificar e delimitar
áreas e atualizar informações; “Demarcação e regularização”, inicialmente realizado por
firmas contratadas pela Funai, sendo adotadas algumas experiências de demarcação
participativa com os próprios indígenas; e “Avaliação ambiental”. Este primeiro
componente absorveu praticamente 80% das verbas do projeto, sendo financiado por
recursos do banco alemão KfW.
O componente 2, “Vigilância e proteção das terras indígenas”, orientava-se para
garantir a proteção daquelas terras já regularizadas através de “planos de vigilância”, uma
atividade posterior que envolveria recursos de US$ 1,6 milhão. O componente 3,
“Estudos e capacitação”, pautava-se no desenvolvimento de cursos e treinamentos para
funcionários da Funai, bem como para os próprios indígenas, como condição para
melhorar a proteção das terras indígenas, sendo destinado para a este componente um
volume de recursos na faixa de US$ 1,6 milhão. As atividades de coordenação,

477
Pacheco de Oliveira, João. “Terras Indígenas: uma avaliação preliminar de seu reconhecimento
oficial e de outras destinações sobrepostas”. In: CEDI/PETI Terras Indígenas no Brasil. São Paulo:
CEDI/MN, 1987. p.7-32. A classificação das terras indígenas, conforme sua situação ou fase no processo
de regularização fundiária, se deu naquele trabalho da seguinte maneira: sem providência, para terras que
estivessem fora de qualquer forma de reconhecimento oficial ou do processo regular de demarcação; em
identificação, aquelas que tiveram a designação pela Funai de um Grupo de Trabalho (GT), mas que ainda
não tivessem concluídos os trabalhos de identificação; identificadas, para terras com sua identificação
preliminar concluída por um GT/FUNAI, com relatórios e proposta de delimitação; delimitadas, para as
que receberam portaria da Funai declarando área de posse permanente dos indígenas; homologadas, aquelas
que receberam decreto homologando a demarcação administrativa realizada pela Funai; regularizada, com
registro no Cartório de Registro de Imóveis (CRI), no Serviço de Patrimônio da União (SPU). Esta
classificação é adotada usualmente na Funai e de forma generalizada em estudos e trabalhos sobre terras
indígenas.

319
administração, monitoria e avaliação do projeto, integrantes do “Apoio ao
Gerenciamento”, componente 4, teriam recursos disponíveis de US$ 1,1 milhão.
Ao se observarem não mais os recursos por tipo de atividade, mas em relação aos
doadores do projeto, detectamos que o governo alemão aportou um volume de recursos
financeiros para o projeto de cerca de 80% do total do seu valor, por meio do Banco
KfW, sendo este o maior doador.
Além do total de 30 milhões de marcos alemães, que na época equivaliam a
aproximadamente US$ 17 milhões, o projeto contava com recursos do RFT, uma pequena
parcela de US$ 2,1 milhões, e do governo brasileiro, US$ 2,2 milhões, estes destinados a
indenizações de benfeitorias de boa-fé nas terras indígenas. Os recursos do KfW
direcionavam-se principalmente para a regularização das terras indígenas, vigilância e
proteção, e uma parcela muito pequena para estudos e capacitação, não sendo alocada
nenhuma parte para o componente 4, apoio ao gerenciamento, integralmente coberto por
recursos do RFT.
Se comparados ao volume total de recursos colocados pelo governo alemão no
PPG-7 como um todo, que variava em torno de 45% dos recursos totais, verifica-se o
aporte substancialmente significativo para este projeto, revelando uma atenção especial
dedicada a ele. Esta situação “privilegiada” dos alemães no PPTAL praticamente
caracterizou o projeto como bilateral,478 colocando em pauta um eixo de discussões sobre
a Amazônia de longa vigência histórica, relacionado à perda de soberania nacional e à
internacionalização da Amazônia”.
Além da contribuição financeira do banco KfW, as atividades de planejamento e
monitoramento exercidas pela agência alemã GTZ, junto com a equipe de execução da
Funai, marcaram este projeto e deram visibilidade às práticas de cooperação técnica
alemã.
Abaixo temos o quadro dos componentes do projeto e as participações dos
respectivos doadores:

478
O Projeto PPTAL é, por definição, multilateral, havendo além do Brasil e da Alemanha, a
participação do Banco Mundial. No entanto, proporcionalmente, o volume de recursos financeiros
aportados pelo banco alemão KfW e a presença da equipe da GTZ diretamente ligada à execução do projeto
pela Funai geraram conflitos constantes, que foram abordados na tese de Ludmila Lima já citada.

320
Componentes por financiadores

COMPONENTE RFT KFW GOB TOTAL


Componente 1 - Regularização
fundiária das terras indígenas 0 0 11,68 84,6% 2,13 15,42% 13,81
Componente 2- Vigilância e
Proteção das terras indígenas 0 0 1,33 100% 0 0 1,33
Componente 3 - Estudos e
Capacitação 0,87 63,5 0,50 36,5% 0 0 1,37
Componente 4- Gerenciamento do
Projeto 0,94 100 0 0 0 0 0,94
Sem alocação 0,29 8,33 3,08 88,5% 0,11 3,1% 3,48
Total 2,10 10% 16,59 79,37% 2,24 10,7% 20,9
Fonte: BIRD, Blue Cover, abril de 1994, p. 17. (valores em milhões de dólares).

A principal razão que determinou a minha escolha do PPTAL como o projeto para
estudar os procedimentos de cooperação técnica da GTZ foi a contínua explicitação de
conflitos ao longo de sua existência: nas negociações iniciais, em que se gerou uma
polêmica em torno da própria concepção de ser ele um projeto para terras indígenas
desenvolvido com recursos internacionais; nos conflitos posteriores, que seriam
redefinidos como decorrentes da atuação da GTZ junto à Funai. O caso do PPTAL deu
visibilidade particularmente aos procedimentos administrativos e burocráticos da
organização alemã GTZ no Brasil, em função da polêmica que o projeto gerou e também
da repercussão de seus resultados. Até então, pouco conhecida para a grande maioria das
pessoas, inclusive para aqueles que trabalhavam em projetos de cooperação técnica
participava, a GTZ tornou-se objeto de tese, e sua atuação foi avaliada e divulgada em
jornais.
A participação financeira dos alemães, acompanhada da presença de uma
funcionária da agência de cooperação técnica intervindo na administração cotidiana dos
recursos e na elaboração de planejamentos junto à equipe do projeto fizeram ecoar ainda
mais forte as vozes que alertavam sobre a internacionalização da Amazônia e sobre a
invasão de estrangeiros nas terras dos “nossos índios”. Como nos fala uma alemã que

321
coordenou o programa do PPG-7 na época das negociações iniciais de seus projetos,
inclusive o projeto para populações e terras indígenas: “O PPTAL entrou em muito
conflito no governo brasileiro, porque eles não queriam que os estrangeiros mexessem na
causa indígena. Tem muita resistência por aí.” 479
Esta posição de conflito fica também muito clara na reportagem que apresenta a
visão de um senador particularmente anti-indígena sobre a “ingerência” estrangeira em
assuntos considerados domésticos, como é o caso da demarcação de terras indígenas. O
tom alarmista de toda a reportagem contribuiu para enfatizar a imagem da cooperação
técnica e financeira como a de invasores que ameaçavam a soberania e intervinham na
administração pública. A reportagem tinha o claro propósito de denunciar essas práticas,
daí o uso de termos como “devassa”, “CPI”, “caixa-preta”, “investigar”:

O senador Mozarildo Cavalcanti (PPS-RR) vai propor no Senado uma devassa


sobre o uso de financiamentos de organismos internacionais, como a Agência de
Cooperação Alemã (GTZ), destinados a ações sociais e de demarcação de terras
indígenas no país. [...] Antropólogos e indigenistas ouvidos pelo Jornal de
Brasília confirmaram que a agência alemã e sua diretora exercem interferência
direta na FUNAI. “Há muito tempo, a FUNAI só faz o que a GTZ e outros
organismos internacionais mandam”, diz um ex-assessor da FUNAI, que pediu
anonimato temendo represálias. [...] “Vamos abrir esta caixa-preta” de
financiamentos externos, avisa o senador Mozarildo Cavalcanti, autor de uma
CPI para investigar a demarcação de terras indígenas no país.480

Assim, penso poder escapar de uma concepção maniqueísta em que os projetos de


cooperação técnica internacional resultam de uma aceitação passiva por parte de agentes
locais (funcionários de órgãos de governo) em relação a decisões internacionais, o que
caracterizaria uma intervenção direta e coercitiva.
A hipótese em que nos apoiamos é a de que a abertura para implementar este
modelo de administração pública, que faz uso de recursos financeiros e humanos
internacionais, não suplantou mas utilizou-se de um já existente “clientelismo de Estado”,
expressão adotada por Souza Lima para designar:

479
Entrevista concedida no Rio de Janeiro, em 2003.
480
Araújo, Chico. “FUNAI sofre ingerência de investidor alemão”, Jornal de Brasília, 07/03/2004,
p.17.

322
certo tipo de arregimentação de redes de clientela baseado na troca de lealdades
interpessoais e no estabelecimento de vínculos com base na concentração e na
distribuição de “bens” condensados na administração pública federal (cargos,
verbas etc.), isto é, dá-se como “privado” aquilo que é, de direito, acessível na
qualidade de “público.481

A instauração de condições para um projeto de cooperação técnica e financeira em


políticas de demarcação de terras indígenas no Brasil valeu-se da construção de redes
locais e internacionais que articularam organizações ambientalistas e indigenistas. A
entrada da GTZ no projeto não foi opcional, mas o resultado de um acordo formalmente
estabelecido que se impunha como condição para o repasse dos recursos do KfW,
condição esta aceita pelo governo brasileiro. Tendo aceito, não estava mais em discussão
a sua presença ou não, mas a forma como ela seria realmente efetivada, o que passou pela
relação direta de uma funcionária alemã com os membros da equipe brasileira, e não de
uma “organização”, a GTZ .
A pesquisa foi realizada a partir de fontes impressas, documentos obtidos em
arquivos de órgãos de governo (Funai, Agência Brasileira de Cooperação e Ministério de
Relações Exteriores), de ONGs e de acervos pessoais, além de entrevistas com um grupo
heterogêneo e diversificado de pessoas, o que se associou à observação etnográfica do
projeto. Lembrando que o projeto foi um dos meios pelos quais abordei a atuação da GTZ
no Brasil, tratei primeiramente de contextualizar o “estado das artes” em que a discussão
sobre terras indígenas se encontrava no Brasil e em que medida foi internalizada para os
objetivos do projeto. Procurei, em seguida, apontar as linhas ou os elos de uma corrente –
redes sociais – a qual articulou servidores públicos brasileiros, membros de ONGs e
funcionários da GTZ, muitos entre eles antropólogos, e viabilizou este tipo de
configuração, definida por cooperação técnica, na administração pública brasileira. Por
fim, chegamos ao desenvolvimento da análise documental das práticas e dos
procedimentos efetivamente colocados em execução pela GTZ no projeto, relatando o

481
Souza Lima argumenta que esta proposta “afasta a idéia de uma burocracia meritocrática como
horizonte de reflexão para a análise da FUNAI e permite alcançar alguma inteligibilidade além da
denúncia do “paternalismo” e da “corrupção” de funcionários e índios quanto às inúmeras crises
geradas pelo controle da máquina administrativa da FUNAI.” Souza Lima, A.C. “Sobre gestar e gerir a
desigualdade: pontos de investigação e diálogo” em: Souza Lima, A.C.Gestar e Gerir. Estudos para uma
antropologia da administração pública no Brasil. Rio de Janeiro: Relume-Dumará:NUAP/UFRJ (Coleção
Antropologia da Política), 2002, p.11-22.

323
processo de entrada e de administração cotidiana da GTZ nos procedimentos referentes à
regularização das terras indígenas no Brasil.
Antecedentes históricos

Uma questão a ser observada inicialmente em relação ao processo da política


indigenista em que o PPTAL se inseriu refere-se ao caráter emblemático que as terras
indígenas assumiram historicamente na relação entre Estado e povos indígenas no Brasil.
Como argumenta Lisansky, a inclusão de um projeto para povos indígenas no
Brasil, como o PPTAL, em um programa de cooperação internacional, o PPG-7, previsto
para ser um modelo internacional, de forma nenhuma foi bem aceita no contexto de sua
elaboração.482 O que atualmente pode parecer bastante plausível resultou de um longo
processo de negociação desde os anos 80.
Até meados dos anos 80, a discussão sobre povos indígenas no Brasil era vista,
em larga medida, como um assunto doméstico, estratégico e militar, e não internacional.
A discussão do ordenamento territorial da Amazônia e das terras indígenas enquadrava-se
historicamente em um espaço reservado ao “nacional”, sendo a gestão da Amazônia um
símbolo e expressão da soberania nacional. Um projeto que abrisse a discussão sobre
políticas de gestão ambiental e territorial da Amazônia com a participação de organismos
internacionais multilaterais e bilaterais, como o foi o PPG-7 e o PPTAL, contrariava toda
uma tradição do pensamento geopolítico brasileiro, muito influente na política nacional.
Este debate colocou em evidência a permanência de posições nacionalistas que se
colocavam contrárias ao processo de regularização das terras indígenas e tentavam
impedir a garantia de direitos constitucionais aos índios em nome da “defesa da soberania
nacional”.
Como argumentam Pacheco de Oliveira e Souza Lima,483 a idéia de demarcação
de terras indígenas afirmou-se como motor da política indigenista a partir dos anos 70, e

482
LISANKY, J. Fostering Change for Brazilian Indigenous People during the Past Decade: The
Pilot Program’s Indigenous Lands Project (PPTAL). In: Hall, Anthony (ed.) Global Impact, Local Action:
New Environmental Policy in Latin America. London: Institute for the Study of the Américas:University of
London, 2005, p.4. Lisanski, como disse, era a “task manager” do Banco Mundial, ou seja, uma espécie de
“perita” ou gerente de projeto do Banco Mundial no PPTAL.
483
Pacheco de Oliveira, J. & Souza Lima, A. C. Política indigenista e políticas indígenas no Brasil:
um mapeamento prospectivo. Sugestões para Fomento. Doação 985-0731, outubro de 1999.

324
foi nesse momento que se delinearam muitas das bases de articulação política hoje
vigentes.
O processo de transição para a abertura democrática nos anos 80 teve
repercussões importantes que marcaram a política indigenista oficial. Além de se
ampliarem os espaços de articulação entre grupos da sociedade civil e de indigenistas e
antropólogos de ONGs e universidades em uma dinâmica até certo ponto independente,
também o cenário de formulação e implementação de políticas pela Funai parecia
sinalizar para uma abertura à entrada de determinados grupos no diálogo interno quanto
às normas e aos procedimentos referentes à demarcação de terras indígenas.
Não havia naquela época, no entanto, a sistematização e a organização que
tornassem acessíveis – de forma aberta e pública – informações sobre a situação das
terras indígenas, objetivando orientar novos planejamentos para a sua demarcação, como
estava proposto na Constituição. A necessidade de “organizar uma base de dados –
abrangente, consistente e atualizada sobre a situação das terras indígenas” se fazia
urgente diante de um momento muito específico da história do país, em que estava em
curso a elaboração de uma nova Constituição.

Na presente conjuntura histórica, além do conjunto de pessoas usualmente


interessadas na problemática indígena por suas atividades profissionais, o volume
Terras Indígenas no Brasil privilegia também outros leitores, como é o caso dos
Constituintes, em processo de elaboração de uma nova Carta Magna para o país.
As lideranças partidárias, os jornalistas, os cientistas, os estudantes, veículos
importantes de transmissão de dados e formação de opiniões; os técnicos e os
planejadores governamentais, cujas decisões afetam gravemente o destino dos
índios.484

Estes são os argumentos de Carlos Alberto Ricardo e João Pacheco de Oliveira


Filho, coordenadores do projeto Estudo sobre Terras Indígenas no Brasil: Invasões, uso
do solo e recursos naturais - PETI. O projeto PETI foi desenvolvido por uma equipe no
Departamento de Antropologia do Museu Nacional/UFRJ, que no seu primeiro ano de
vigência, entre 1985-1986, estabeleceu um convênio com o Programa Povos Indígenas
no Brasil - PIB, do extinto Centro Ecumênico de Documentação e Informação - CEDI,

484
Ricardo, C. A. & Pacheco de Oliveira, J. “Apresentação”. In:. CEDI/PETI. Terras Indígenas no
Brasil., opus cit., p.2.

325
quando então tiveram um primeiro financiamento da Fundação Ford. O objetivo do
projeto, que seguiu até 1993, era o de fazer o levantamento de informações jurídico-
administrativas e da situação de fato da ocupação das terras indígenas por grupos
indígenas, e gerar dados para o conhecimento da situação.

A documentação oficial nunca esteve organizada de forma sistematizada e


acessível aos interessados [...] Os dados obtidos de diferentes fontes e com
gêneros e destinações específicas foram reunidos e comparados através de uma
avaliação criteriosa complementada por informações provenientes de rede de
colaboradores (do CEDI), sendo depurados e/ou explicitados os incontáveis
equívocos verificados e explicitadas as dúvidas e ambigüidades que por ora ainda
não se conseguiu superar.485

A vasta produção documental sobre a política indigenista da Funai, que se


instaurou nos anos 80, promoveu um campo de discussões entre pesquisadores
acadêmicos e colaboradores do indigenismo pertencentes a organizações não-
governamentais e eclesiásticas no Brasil, o que refletiu as lutas políticas a favor do
reconhecimento pelo Estado dos direitos indígenas a seus territórios.486
A despeito de ainda predominar uma visão nacionalista, xenófoba e tutelar no que
se refere à forma de relação entre Estado e povos indígenas, este espaço ainda
embrionário de articulação política – centralizado entre universidades, centros de
pesquisa de grandes centros urbanos, como Rio de Janeiro, Brasília e São Paulo –
forneceu as bases para a discussão de políticas para povos indígenas, com propostas de
justiça em relação a eles e particularmente à democratização nos procedimentos
demarcatórios. Centrado prioritariamente em torno da questão do reconhecimento dos

485
Pacheco de Oliveira, J. “Terras Indígenas: uma avaliação preliminar de seu reconhecimento
oficial e de outras destinações sobrepostas”. In: Terras Indígenas no Brasil. São Paulo: CEDI/MN, 1987.
p.7.
486
Almeida, A.W.B. & Pacheco de Oliveira, J. Demarcação e reafirmação étnica (ref.), 1985;
CIMI/PORANTIM. “Levantamento da realidade indígena”, Porantim, 37, p. 8-12, Brasília, CIMI, abril de
1982; Souza Lima, A.C.S. & Pacheco de Oliveira, J. “Os muitos fôlegos do indigenismo”, Anuário
Antropológico, 1981; Tempo Brasileiro/UFCe, 1983; CEDI; Aconteceu Povos Indígenas Especial, 1984;
Pacheco de Oliveira, J. “Terras indígenas: uma avaliação preliminar de seu reconhecimento oficial e de
outras destinações sobrepostas”, opus cit., p.7-32; Pacheco de Oliveira, J. Indigenismo e territorialização:
poderes, rotinas e saberes coloniais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Contracapa, 1998; Erthal, R.
Reconstituição cronológica das normas administrativas da FUNAI relativas ao processo de demarcação
das terras indígenas. Rio de Janeiro: PETI, 1987; Kasburg, C. & Gramkow, M. (orgs.) Demarcando terras
indígenas: experiência e desafios de um projeto de parceria. Brasília: FUNAI/PPTAL/GTZ, 1999; Santilli,
M. “Natureza e situação da demarcação das terras indígenas no Brasil”. In: Kasburg, C. & Gramkow, M.,
idem, p.23-44; Lima, A.C.S. & Barretto Filho, H.T. Antropologia e identificação: os antropólogos e a
definição de terras indígenas no Brasil, 1977-2002. Rio de Janeiro: Contracapa Livraria, 2005.

326
direitos indígenas a terra, foi aberto um “espaço de articulação” entre grupos da
sociedade: indigenistas, indígenas e ambientalistas, advogados defensores de direitos
humanos, antropólogos, geógrafos e outros, além de organismos não-governamentais e
órgãos de governo.
Suas pesquisas, partindo da produção de um conjunto de pesquisadores e
defensores de direitos indígenas que atuavam em várias frentes de investigação e de
assessoria e que tinham vínculos institucionais – universidades federais como UFRJ,
USP, PUC-PR, instituições ligadas a movimentos ecumênicos eclesiásticos ou igrejas,
como o CEDI ou o CIMI, ou a Comissão Pró-Índio de São Paulo e o Centro de Trabalho
Indigenista – resultaram na produção de informações úteis para os Constituintes sobre a
situação jurídica e administrativa das terras indígenas no Brasil, tendo em vista a
elaboração da Constituição de 1988 e a revisão das normas e das práticas administrativas
dos aparelhos de governo.487
Diante da proximidade da Conferência das Nações Unidas para Meio Ambiente e
Desenvolvimento - CNUMAD, ou Eco-92, que se realizaria no Brasil em junho de 1992,
as organizações ambientalistas internacionais pressionavam para a adoção de medidas
mais objetivas em relação ao meio ambiente, sendo que a Amazônia centralizava
particularmente as atenções internacionais.
Em junho de 1991, o presidente Fernando Collor de Mello foi aos Estados Unidos
para estabelecer negociações e conversas diplomáticas com o Presidente George Bush
sobre questões políticas envolvendo os dois países. A visita de Collor, no entanto, acabou
se tornando uma oportunidade para que ambientalistas e representantes políticos norte-
americanos expressassem críticas e sugestões em relação à questão ambiental e
indigenista do governo brasileiro. Durante a viagem, Collor recebeu a visita de oito
senadores democratas norte-americanos que assinaram uma carta com críticas à política
ambiental do governo brasileiro quanto a uma “agenda inacabada”, sugerindo mudanças,
em especial sobre três pontos, entre os quais figurava a demarcação das terras ianomâmi,
além da abolição dos subsídios ao desmatamento e à violência no campo.
Esta carta foi baseada em um documento elaborado pela ONG Environmental
Defense Fund, com a colaboração de outras organizações não-governamentais

487
Ver: Pacheco de Oliveira. Ensaios de antropologia histórica, 1999a , p.236-241.

327
internacionais ambientalistas, como Sierra Club e World Wildlife Foundation - WWF.
Dizia: “A demarcação das terras ianomâmis é um teste importante do desejo do governo
brasileiro em cumprir suas promessas sobre meio ambiente e direitos humanos na
Amazônia”.488
Este fato foi recebido de forma bastante negativa entre políticos e militares no
Brasil, que acusaram o grupo de senadores de estarem interessados na exploração da
Amazônia. Expressavam sua posição nos meios de comunicação, que apresentavam a
demarcação das terras ianomâmis como uma questão associada às pressões dos senadores
dos Estados Unidos, colocada nos termos da velha máxima de “internacionalização da
Amazônia.”
A posição do presidente Collor, favorável a adotar algumas das mudanças
sugeridas, gerou consternação entre muitos políticos, que se diziam “defensores da
soberania nacional” e protestavam contra intervenções estrangeiras em temas
“nacionais”, como os jornais da época publicaram:

O presidente Fernando Collor de Mello está atendendo uma a uma as


reivindicações feitas pela Environmental Defense Fund (Fundo de Defesa do
Meio Ambiente) durante sua viagem aos Estados Unidos, na semana passada.489

O senador Pedro Simon foi veemente ao censurar os senadores dos EUA,


lembrando que eles não tinham moral para nos dizer como devemos cuidar dos
problemas de nossos índios e, particularmente, dos Ianomâmis.490

Estes senadores (americanos) fazem parte de um coro mundial que quer


internacionalizar a região amazônica através da criação da “Grande Nação
Ianomâmi. [...] é nessa região de Roraima que se descobriram as maiores reservas
mundiais de minérios, como o urânio e o nióbio (General Antenor Santa Cruz).491

Os governadores da Amazônia reagiram ontem duramente à proposta do Grupo


dos Sete em conceder ajuda financeira ao Brasil para a preservação da floresta
amazônica. “Trata-se de um claro plano de intervenção estrangeira na soberania
nacional em relação à Amazônia”, denunciou o governador amazonense Gilberto
Mestrinho. [...] O tom de denúncia predominou durante todo o dia de ontem em
Manaus. O comandante militar da Amazônia, general Antenor Santa Cruz,

488
Brito, M.F. “Senadores dos EUA criticam política ecológica de Collor”, Jornal do Brasil, 18/06/1991,
p.3.
489
Dantas, E. “Collor atende pedidos de ecologistas dos EUA”, Folha de São Paulo, 26/06/1991,
p.8.
490
“Simon acusa americanos”, Correio Braziliense, 19/06/1991, p.5.
491
Obliziner, A. “Pressão sobre a Amazônia gera revolta”, Correio Braziliense, 19/06/1991, p.5.

328
garantiu que a defesa da ecologia e das minorias étnicas, além do combate ao
narcotráfico, fazem parte de um plano para difundir mundialmente a pretensa
incapacidade do nosso país em gerenciar suas riquezas, destino e território.492

Os militares e os governadores de estados amazônicos condenavam os planos e os


programas de proteção ambiental da Amazônia com base em discursos de defesa do
“desenvolvimentismo” como justificativa. Era usual que adotassem argumentos
favoráveis à exploração das riquezas da região e contrários à onda ecológica como uma
forma de “congelar a região mais rica do mundo para deixá-la como reserva técnica de
riquezas naturais e estoque de matérias-primas capaz de ser utilizado pelos centros
fornecedores atuais quando suas reservas já tiverem alcançado o esgotamento”, como
disse o secretário de Ciência e Tecnologia do estado do Amazonas, José Belfort, em
jornal.493
Também algumas ONGs se posicionaram de forma crítica às formas como os
recursos do G-7 estariam sendo enviados ao governo brasileiro para alocação em projetos
ambientais, sendo suas críticas direcionadas principalmente à falta de diálogo com a
sociedade civil:

Outras organizações rejeitam o programa. O Fórum das ONGs brasileiras para a


ECO-92 pediu ao Banco Mundial sua suspensão, até que fosse mais debatido.
Carlos Aveline, presidente da União Protetora do Ambiente Natural, condena a
entrega de recursos ao governo Collor. Camillo Viana, da Sociedade de
Preservação dos Recursos Naturais e Culturais da Amazônia é contra a venda da
Amazônia às superpotências.494

As cobranças e as pressões internacionais foram intensas, mas apesar de causarem


constrangimentos diplomáticos entre os dois países, tiveram resultados para a política
adotada pelo governo. Ao voltar dos Estados Unidos, o ministro da Justiça de Collor,
Jarbas Passarinho, respondeu às pressões internacionais demitindo o presidente da Funai,
Cantídio Guerreiro Guimarães por:
492
“Governadores temem por soberania da Amazônia”, Caderno Ecologia, Jornal do Brasil, 19/07/1991,
p.9.
493
Correio Braziliense, 18/07/1991.
494
Arnt, Ricardo. “Fundo para Amazônia divide ambientalistas.”, Folha de São Paulo, 08/07/1991,
p.4-5

329
Não ter providenciado no prazo de 60 dias estudo para demarcação das terras dos
índios ianomâmis, em Roraima. [...] O presidente Collor tinha dado a Cantídio
um prazo total de 180 dias para a demarcação e não gostou da falta de iniciativa
495
nos primeiros dois meses, por isso, determinou sua demissão.

Mostrando que respondia de forma a atender aos apelos internacionais e assim


contribuir politicamente para criar condições para receber recursos internacionais para
programas na área de meio ambiente, Collor nomeou Sidney Possuelo para ser o novo
presidente da Funai, indicando aos observadores políticos e ativistas do exterior, e
também ao público de ambientalistas, indigenistas e povos indígenas no Brasil, que
estava buscando atender às suas demandas. Escolheu um nome que, embora polêmico,
conquistara reconhecimento no Brasil e no exterior em sua trajetória no indigenismo,
particularmente com índios isolados. Possuelo era um sertanista com 25 anos de
indigenismo como funcionário do quadro da Funai, onde chefiava a Coordenação de
Índios Isolados. Assumiu a presidência da Funai em 28/06/1991, diante da premência de
demarcar todas as terras indígenas no Brasil até 1993, sendo este prazo estabelecido nas
Disposições Transitórias da Constituição. Tal tarefa exigia não apenas empenho político e
habilidade administrativa, mas sobretudo capacidade de mobilização de recursos
orçamentários do governo federal:496

O sertanista Sidney Possuelo, anunciado ontem no Palácio do Planalto como


novo presidente da FUNAI, vai ter ainda este ano CR$ 44 bilhões para dar início
à demarcação de terras indígenas em território brasileiro e cumprir o que
determina a Constituição: até 8 de outubro de 1993, os índios brasileiros terão
todas as suas reservas demarcadas. “A demarcação das terras indígenas será
nossa prioridade”, afirmou. “Vamos atacar esse problema com a firmeza
necessária”, emendou.

O fato é que a partir de 1991 começaram a ser feitas as primeiras demarcações de


terras indígenas, realizadas por convênios entre ONGs nacionais, agências e ONGs
estrangeiras e o governo brasileiro, por meio da Funai. Segundo Dominique Gallois:

495
“Presidente da FUNAI é demitido”, Jornal do Brasil, 22/06/1991, p.4.
496
“Possuelo assume Funai para demarcar terras dos índios”, Jornal do Brasil, 29/06/1991, p.5.

330
“Desde 1991, a Funai vem assinando convênios com ONGs como medida para superar
dificuldades políticas e viabilizar a demarcação de terras indígenas no país”.497
Em fevereiro de 1991, Fernando Collor assinou o decreto nº 22/91 de 14/02/1991,
vinculado à Portaria 239/91, revogando com isso os decretos 94.945 e 94.946/87 e
estabelecendo as normas administrativas para regularização fundiária das terras
indígenas, conforme determina o artigo 13º. Diz o texto do artigo 2º, parágrafo 4º do
decreto: “Outros órgãos públicos, membros da comunidade científica ou especialistas
sobre grupo indígena envolvido poderão ser convidados, por solicitação do Grupo
Técnico a participar dos trabalhos”.
A assinatura do Decreto 22/91 é considerada por alguns como um instrumento que
teria flexibilizado os procedimentos demarcatórios pela Funai, quando abria uma
possibilidade para a contratação de antropólogos de fora da própria instituição,
permitindo que especialistas pudessem estar presentes nas demarcações.498 O termo
flexibilização, para definir uma mudança dos procedimentos demarcatórios, é usado para
caracterizar a rigidez burocrática das práticas da Funai, dando abertura para a
participação de membros de ONGs e da “comunidade científica” em grupos de trabalho
da Funai no processo de regularização fundiária. Entre estes, estavam alguns
antropólogos que faziam parte do Centro de Trabalho Indigenista - CTI; para eles:
“tratava-se de aproveitar os espaços políticos abertos no aparelho do Estado para
introduzir ali conceitos e procedimentos que ampliem a participação dos índios e da
sociedade civil na fiscalização dos atos do governo”.499
Mas esta não era uma opinião consensual. Para alguns autores, como Oliveira e
500
Leite, esta passagem do texto indicava “um exercício mais de retórica do que de
abertura à participação”, não se acreditando no que insinuava ser, uma abertura para a
participação de especialistas e profissionais de outros órgãos em grupos de trabalho de
identificação da Funai. A crítica referia-se mais a dar acesso a determinados grupos do

497
CTI. Projeto Demarcação Waiãpi. Resumo do Relatório Final, agosto de 1996, p.7.
498
Opinião de Maria Elisa Ladeira, como também de Sidney Possuelo, ambos entrevistados.
499
CTI. Projeto Demarcação 92-93 Convênio FUNAI-CTI, sem data, p.4 (arquivo CTI).
500
Pacheco de Oliveira, João & Leite, Jurandyr C.F. “É possível acelerar a regularização das Terras
Indígenas?”. In: Resenha e debate: Brasil novo, indigenismo novo? Rio de Janeiro: PETI/Museu Nacional,
nº 3, março de 1991. p.4.

331
que efetivamente flexibilizar os procedimentos, já que não haviam mudado as normas da
Funai, cujo monopólio sobre questões fundiárias de terras indígenas permanecia.
Desde o primeiro momento de sua gestão, Possuelo disse que optou por adotar
uma estratégia de demarcação direcionada para áreas de grande extensão territorial,
porque imaginava que, sendo feita logo de início a demarcação de uma grande área,
outras menores seriam politicamente mais fáceis de negociar. A primeira experiência,
talvez a mais polêmica, foi a demarcação da terra indígena Yanomâmi, em Roraima.
Posteriormente, com recursos internacionais arrecadados pela Fundação Mata Virgem
(Rain Forest Foundation), por meio de uma campanha organizada por Sting, junto com
Raoni, liderança kayapó, foi realizada a demarcação da T.I. Mekragnoti (Xingu), em
setembro de 1992.
A demarcação da T.I. Kampa, no Acre, foi realizada logo em seguida a esta, em
abril de 1992, com a atuação de membros do Núcleo de Direitos Indígenas (NDI) na
arrecadação de recursos financeiros. Também em 1992, o Centro Magüta, com apoio do
Vienna Institute for Development and Cooperation, uma organização não-governamental
austríaca, promoveu a demarcação de terras indígenas Tikuna.501

Convênios FUNAI
Instituições Executoras e Financiadoras
Data Terras Indígenas
Fundação Mata Virgem (Rain Forest
1991 Foundation) Menkragnoti (PA)
1992 Núcleo de Direitos Indígenas (NDI) Kampa do Rio Amônea (AC)
Centro Magüta +
Vienna Institute for Development and
1992 Cooperation Tikuna (AM)
1994 CEDI + governo austríaco Araweté do Igarapé Ipixuna (AM)

501
Veremos que este mesmo padrão de articulação administrativa para execução de projetos, ligando
órgãos do setor público, neste caso a Funai, com agências internacionais e ONGs, já em vigor desde o
início dos anos 90, seguiu pela década afora, institucionalizando-se no PPTAL. Em 1995, duas outras
demarcações foram feitas por meio da participação de organizações não-governamentais. A da terra
indígena Araweté do Igarapé Ipixuna, no Amazonas, foi feita com a atuação do CEDI e a da terra indígena
Waiãpi, por meio de um convênio que articulou o CTI, a Funai e a GTZ, já no início do PPTAL, sendo esta
experiência considerada um projeto-piloto de demarcação chamada “participativa”, porque envolvia os
indígenas em decisões diretas, pensada como um modelo a ser adotado. Em 1996, foi a vez das terras
indígenas da região da Cabeça do Cachorro, no Alto Rio Negro, envolvendo o Instituto Socioambiental
(ISA).

332
Neste processo dinâmico e em transformação, a participação de antropólogos no
processo de regularização de todas essas terras foi fundamental para a sua consolidação.
Isto se deu, em um primeiro momento, como colaboradores de um debate que se
consolidou a partir de experiências próprias em consultorias e em grupos de trabalho
(GTs) de identificação de terras para a Funai e também em projetos nas áreas indígenas.
Atuaram ainda como articuladores, negociadores ou captadores de recursos
internacionais, dentro e fora do governo, para a consolidação das condições políticas para
demarcações e, posteriormente, para garantir a implementação de um projeto de
cooperação técnica e financeira para terras e populações indígenas, que foi o PPTAL.
Foi neste contexto de pressões internacionais e de falta de orçamento nacional
para demarcação que surgiu o Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras
Indígenas da Amazônia Legal, o PPTAL, negociado enquanto parte do PPG-7 no
contexto da ECO-92: “O PPTAL nasceu da ECO-92, de um compromisso estabelecido
ali. O Banco Mundial começa com a história e gerencia tudo. O KfW se interessa depois.
A história começa com cinco áreas para piloto”.502

As peças do PPTAL

De acordo com jornais da época, o governo Collor estabeleceu como critério para
demarcação das terras indígenas o efeito publicitário no exterior, visando à ECO-92.

Depois de correr cinco quilômetros em 28 minutos, Collor garantiu ontem na


Casa da Dinda, que o Brasil já construiu uma boa imagem internacional por
causa das medidas que vem adotando para preservar o meio ambiente. O
Presidente frisou que não faltarão recursos para demarcação das reservas
503
indígenas.

A pressão internacional e a ampliação da visibilidade em relação às terras


indígenas que a iminência da realização da ECO-92 promoveu, tornaram-se o mote para
adotar mudanças, não fugindo à regularidade de funcionamento em se “administrar por

502
Isa Pacheco, em depoimento de 2003.
503
Jornal Correio Braziliense, 24/06/1991, p. 5.

333
crises”, como sustentam Oliveira e Almeida sobre a forma de atuação da Funai. A visão
de Artur Mendes corrobora para este argumento, quando define que uma das justificativas
mais plausíveis para viabilizar o processo de entrada de recursos externos na Funai foi a
pressão dos prazos estabelecidos pela Constituição. A oportunidade vislumbrada por um
grupo dentro da Funai, que apostava no PPTAL e nos recursos internacionais como o
meio viável e possível para sua concretização, aliou-se aos interesses dos alemães no
projeto de demarcação de terras indígenas. Mendes fala de “uma FUNAI”, como se
houvesse aí um consenso em torno da “oportunidade” que representava o projeto para a
regularização fundiária, o que não era fato. Sua posição reflete a daqueles que
participavam na época enquanto funcionários da Diretoria de Assuntos Fundiários, os
quais se articularam no sentido de construir politicamente a existência do projeto. Para ele:

Na época, 1992, nós ainda vivíamos dentro daquele prazo dos cinco anos que a
Constituição deu. Então, a FUNAI viu aí uma chance de se ter um aporte
substancial de dinheiro, de recursos e também técnico para acelerar a demarcação
e, quem sabe, até cumprir com esse prazo. Hoje a gente vê que seria impossível
cumprir; mesmo com todo o recurso disponível, você teria problemas de
disponibilidade técnica e outros. A demarcação de uma terra, acredito que ela
acontece dentro de parâmetros antropológicos seguros quando os índios estão
preparados, quando eles entenderam o que é uma demarcação, quando eles
discutiram entre si os limites desta área, quando eles têm já uma proposta
504
discutida com o Estado.

Sua posição é defendida também no artigo publicado em livro que a GTZ e a


Funai editaram juntas: Demarcando Terras Indígenas:

Quando em 1992 a FUNAI foi convidada pela coordenação do PPG-7 a


apresentar uma proposta do que viria a ser o componente indígena daquele
programa, vislumbrou-se ali a possibilidade de obtenção de meios financeiros e
técnicos suficientes para cumprir com o preceito constitucional. Admitiu-se que,
se através da cooperação internacional as terras indígenas da Amazônia Legal
tivessem a demarcação concluída, os recursos federais normalmente
disponibilizados à FUNAI para este fim seriam suficientes para atender ao
505
restante do território nacional.
504
Artur Nobre Mendes, ex-coordenador da Secretaria Técnica da Funai, em entrevista neste órgão
em 3 de julho de 2002. Renata, é preciso tirar estes espaços entre uma nota e outra, o que não se usa;
não consegui fazer.

505
Mendes, A. N. “A demarcação das terras indígenas no âmbito do PPTAL”. In: Gramkow, M. &
Kasburg, C. (orgs.). Demarcando terras indígenas, opus cit., p.15-19.

334
Estes não foram os casos de projetos de demarcação de terras que resultaram de
mecanismos compensatórios decorrentes de impactos sociais e ambientais de grandes
projetos. No entanto, estas foram algumas das iniciativas que precederam à entrada de
recursos externos e aos convênios com agências e organismos internacionais em
procedimentos administrativos de regularização fundiária das terras indígenas. Para
Souza Lima:

No campo específico do processo jurídico-administrativo de reconhecimento de


terras indígenas, a entrada de recursos estrangeiros para a regularização fundiária,
a partir do ano de 1992, através de organismos multilaterais de desenvolvimento
e em convênios com ONGs, na esteira de padrões que remontam aos chamados
“grandes projetos de desenvolvimento” – Projeto Karajás, Polonoroeste, PMACI
– reportáveis ao fim dos anos 1970, início da década de 1980, associou-se a
506
muitos outros fatores.

O surgimento de um projeto como o PPTAL, vinculado ao objetivo de


conservação da Floresta Amazônica, deve ser compreendido como parte e resultado deste
debate e desta rede que se formou. As mudanças que se vislumbravam não estavam
circunscritas aos limites do “governamental”, da administração pública, mas envolviam
todo os setores da sociedade, desde colaboradores e pesquisadores até ambientalistas e
indigenistas, que se mobilizavam em um espaço público de discussão política às vésperas
da ECO-92.
A elaboração do projeto foi um processo longo, entre final de 1991 e final de
1992, e que se deu em um período bastante conturbado no que dizia respeito à gestão dos
recursos naturais no país. Algumas mudanças administrativas orientadas para um quadro
institucional para gestão da política ambiental vinham se processando desde 1989,
quando foi criado o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente - IBAMA, vinculado ao
Ministério do Interior, extinguindo a SUDHEVEA, o IBDF, a SUDEPE e a antiga
Secretaria de Meio Ambiente - SEMA.507 Em abril de 1990, o IBAMA passou a ser
vinculado à Secretaria de Meio Ambiente - SEMAM/PR, órgão de assistência direta da

506
Lima, Antonio Carlos de Souza. “Os relatórios antropológicos de identificação de terras indígenas
da Fundação Nacional do Índio - Notas para o estudo da relação entre antropologia e indigenismo no Brasil,
1968-1985”. In: Oliveira, J.P. (org) Indigenismo e territorialização, opus cit., p.225.
507
Instituto Brasileiro de Meio Ambiente, criado em 22/02/1989 pela Lei 7.735/89.

335
Presidência da República.508 Posteriormente, em novembro de 1992, a SEMAM/PR foi
transformada em Ministério do Meio Ambiente - MMA,509 que em 1993 passou a ser o
Ministério do Meio Ambiente e da Amazônia Legal.510
As bases do PPTAL resultariam de articulação e negociação para a inclusão da
questão indígena no PPG-7, o que foi feito por um conjunto de atores de instituições
brasileiras e organizações internacionais. Quanto às instituições brasileiras, a Funai era
oficialmente o órgão executor do projeto, enquanto a SEMAM/PR, ligada à Presidência,
coordenava o quadro geral do PPG-7, ao qual o PPTAL se subordinava. Além disso,
organizações indigenistas vinham se articulando em torno da questão territorial dos povos
indígenas e constituíram um grupo para elaborar o projeto PPTAL.
O fato é que um grupo bastante afim às práticas de cooperação técnica – com
envolvimento de profissionais que atuavam em ONGs com financiamentos externos, com
certo canal de comunicação com o Banco Mundial por conhecerem a lógica e os
procedimentos da cooperação – agilizou alianças e articulações políticas de forma tão ágil
que restringiu a capacidade dos setores mais conservadores de inviabilizar o projeto.
A entrada e a participação de agências ou órgãos de cooperação internacional ou
de financiamento promoveram mudanças nas práticas administrativas relativas aos
processos de demarcação. Algumas dessas mudanças viriam a favorecer a participação de
ONGs nos procedimentos oficiais de demarcação e a entrada de recursos estrangeiros,
como argumenta Souza Lima:

As práticas administrativas aparentemente sofreram alterações quer pela força de


um (auto)conhecimento sobre aparelhos de governo como a FUNAI, [...] quer
pela proposta de “reforma do aparelho de Estado” sob o governo Fernando
Henrique Cardoso, quer ainda pela presença de órgãos de cooperação
511
internacional ou de financiamento dentro destas mesmas instituições.

508
A SEMAM/PR foi instituída pela Medida Provisória nº 150, instância à qual o IBAMA passou a
ser vinculado pela Lei 8.028.
509
O MMA foi instituído pelo Artigo 21 da Lei 8.490, de 1992.
510
Pela Lei 8.746, de 09/12/1993.
511
Lima, Antonio Carlos de Souza. “Os relatórios antropológicos de identificação de terras
indígenas, opus cit., p.224.

336
O PPTAL e as redes do indigenismo

Como argumentamos, a CNUMAD ou ECO-92 foi um momento importante de


redefinição de prioridades; a partir dela, as terras indígenas reassumiram importância e
destaque nas práticas administrativas em relação aos povos indígenas, tendo em vista a
sua contribuição na preservação das áreas de florestas. Os mesmos grupos envolvidos no
debate na Constituinte participaram da mobilização da questão indígena no âmbito da
conferência internacional.
A proximidade entre o debate constituinte e a realização da Eco-92 contribuiu
para que as discussões em torno das referências conceituais e das práticas do Estado em
relação aos povos indígenas não perdessem o fôlego. Ao contrário, a oportunidade de se
colocarem em foco as questões do ambientalismo permitiu a inclusão na pauta das
negociações de um projeto para povos e terras indígenas, como argumenta Souza Lima e
Barroso-Hoffmann:

[...] ainda no final dos anos 80, em face da grande visibilidade do movimento de
seringueiros e de uma real ligação entre estes e os povos indígenas do Acre,
produziu-se e generalizou-se, em especial perante os organismos internacionais
de financiamento de diferentes matizes, a idéia de uma aliança entre os povos da
floresta, conferindo ênfase a certo utopismo ecologista em razão da generalidade
com que foi aplicado. A partir de então, a ampla propaganda feita em torno do
tema no exterior se deu em consonância com a crescente repercussão de
argumentos ambientalistas variados, tanto nos Estados Unidos como na Europa
Ocidental: pouco a pouco a especificidade dos problemas dos povos indígenas,
assim como de suas soluções, foi equacionada sob a condição de problemas de
conservação e utilização racional e sustentável do meio ambiente, com ênfase
quase exclusiva na região e nas populações indígenas amazônicas, em detrimento
da pluralidade de situações indígenas e ecológicas existentes no Brasil. Em outras
palavras, a esfera fundiária e os problemas de etnodesenvolvimento foram
parcialmente reelaborados sob o rótulo de desenvolvimento sustentável, cuja
512
genealogia é outra.

512
Souza Lima, A.C. & Barroso-Hoffmann, M. (orgs.). “Questões para uma política indigenista:
etnodesenvolvimento e políticas públicas. Uma apresentação”. In: ________. Etnodesenvolvimento e
políticas públicas. Bases para uma nova política indigenista. Rio de Janeiro: LACED/ Contra Capa
Livraria. p.15.

337
Consolidou-se assim, por meio desta “oportunidade” que o campo do
desenvolvimento sustentável abriu com a realização da Eco-92 no Brasil, uma rede
composta de membros de ONGs, funcionários de órgãos de governo, pesquisadores e
intelectuais ligados a universidades que contribuíram com propostas conceituais e
passaram a atuar na articulação de políticas para povos indígenas, obviamente contando
com a possibilidade de financiamentos provenientes de agências e organismos
internacionais.
O processo de levantamento de dados sobre as negociações iniciais do PPTAL foi
bastante ilustrativo para que se possa entender a importância que certas pessoas tiveram
na condução das dinâmicas relacionadas ao projeto. A partir da pesquisa etnográfica, do
levantamento dos dados sobre o projeto, foram clareando os elos de uma rede de relações
que consolidou as articulações nacionais e internacionais em torno dele, rede ainda hoje
atuante.
O caminho de pesquisa que percorri para o levantamento de informações sobre as
origens do PPTAL e suas negociações iniciais foi o da identificação de algumas pessoas
que estavam em posições profissionais ou políticas estratégicas naquele momento, no
início dos anos 90, que acompanharam de perto e tomaram decisões no processo de
negociação do projeto. A partir dessas pessoas – elos centrais de uma cadeia de relações –
me foram indicadas outras pessoas de instituições governamentais e não-governamentais.
Não havia informações sobre a história das negociações iniciais do PPTAL e de
sua formulação na secretaria do projeto, nem nos arquivos da Coordenação Geral de
Documentação - CGDOC. Era praticamente inexistente qualquer documento que
guardasse vestígios da memória desse momento de nascimento do projeto dentro da
Funai. Durante algum tempo, dediquei-me a pesquisar e a procurar informações sobre o
PPTAL nos diferentes departamentos, desde os arquivos do CGDOC e da Coordenação
Geral de Patrimônio Indígena e Meio Ambiente - CGPIMA, até a Coordenação Geral de
Projetos Especiais, à qual o projeto inicialmente estava vinculado, mas sem sucesso.
Havia silêncio dos funcionários da Funai, o que revelava uma posição clara de não
envolvimento dos mais antigos em relação ao PPTAL.
No primeiro momento, para me aproximar da equipe do projeto, fui procurar
diretamente Artur Nobre Mendes, que acompanhara desde o início as negociações entre a

338
Funai, o Banco Mundial e o governo alemão, representado pela GTZ e pelo KfW.
Mendes havia sido coordenador de Projetos Especiais e mais tarde, por muito tempo, o
coordenador da Secretaria Técnica do PPTAL, de certa forma a memória do projeto. Por
duas vezes eu o entrevistei na Funai, em 2002 e 2003. Na época do primeiro contato, ele
era diretor da Diretoria de Assuntos Fundiários - DAF e estava a dias de assumir sua
presidência; no segundo contato, em 2003, deixara a presidência para voltar à DAF, onde
dizia sentir-se mais confortável, principalmente dadas as diferenças políticas com o PT
(Partido dos Trabalhadores). Mendes é discreto e diplomático, de poucas palavras, uma
figura de reconhecida importância política na Funai.
Tomei conhecimento também que Isa Pacheco atuava como outro elo importante
na relação de pessoas que participaram do momento inicial do PPTAL.513 Isa foi
funcionária da Funai por muitos anos e havia sido diretora da DAF durante a presidência
de Sidney Possuelo na Funai, e a sua sua função foi central para o processo decisório na
negociação do projeto, entre 1991 e 1992. Ela participou de várias reuniões com este fim,
até se aposentar. Quando a entrevistei, em 2003, estava na Secretaria da Amazônia, no
MMA, trabalhando em um programa sob a coordenação de Ana Lange, sua amiga pessoal
e também antiga funcionária da Funai e da SEMAM/PR, órgão ao qual o PPG-7 esteve
vinculado quando da sua formulação, antes da criação do MMA.
Suas relações pessoais com indigenistas e com profissionais da área de meio
ambiente colocavam Isa Pacheco em uma posição central no que dizia respeito à
montagem desta história. Reconheci nela a força que ligava pessoas que se situavam em
posições estratégicas naquele momento, 1991-96, além das instituições envolvidas,
estabelecendo para a minha trajetória de pesquisa o que ela de certa forma traçara para
mim: um mapa de suas relações pessoais. As indicações que me deu de algumas das
pessoas que estavam nas negociações iniciais do PPTAL me levaram a um conjunto de
atores do qual fazia parte Maria Auxiliadora Cruz de Sá Leão, Sidney Possuelo, Maria
Elisa Ladeira e Gilberto Azanha. A partir destas pessoas que Isa me indicou, cheguei ao
Centro de Trabalho Indigenista – CTI. Todos estiveram, ora como consultores, ora como
colegas na Funai, trabalhando juntos no PPTAL e, de certa forma, tinham relações, direta

513
Vim a saber depois que Isa Pacheco faz parte do Conselho Consultivo do CTI. Faz parte da
organização, formalmente ou informalmente, em função das relações de amizade antiga com seus outros
membros.

339
ou indiretamente, com o CTI, onde encontrei a maior parte dos documentos no acervo de
Virgínia Valadão.514
O CTI é uma organização não-governamental “sem fins lucrativos” e foi fundado
em 1979, em São Paulo, por um grupo de antropólogos. Originalmente, pode-se afirmar,
tinha um perfil quase familiar, de amigos e alguns casais em convívio bastante próximo,
sendo a USP e São Paulo seus espaços de convivência. Entre eles estavam os casais
Maria Elisa Ladeira e Gilberto Azanha, Virgínia Valadão e Vincent Carrelli, além de Iara
Ferraz e Dominique Gallois, que entrou depois. Segundo os próprios membros do CTI,
ele teria sido constituído como uma cooperativa de antropólogos e indigenistas.515
Os antropólogos do CTI tinham também boas relações nos meios acadêmicos.
Todos possuíam uma trajetória que passava pela formação essencialmente acadêmica na
Universidade de São Paulo, mas tinham uma participação marcante em organizações da
sociedade civil, como também na Funai. A relação com este órgão iria ser
particularmente distintiva durante a gestão de Sidney Possuelo. Não se pode deixar de
mencionar que, desde o início da instituição, as atividades do CTI com populações
indígenas receberam apoio de organismos e agências alemãs, como a Pão para o Mundo
(Brot für Die Welt), uma organização ligada à Igreja Evangélica.
A principal atividade do CTI ao longo de sua história foi no processo de
regularização fundiária de terras indígenas no Brasil.516 Segundo documentos
institucionais,517 a ONG tem por objetivo “possibilitar aos índios um maior controle sobre
suas terras e valorizações das formas próprias de manejo e aproveitamento não-
predatórios de seus recursos naturais”.518
Entre as várias organizações indigenistas que visitei em Brasília, o CTI é aquela
que tem as instalações mais simples e discretas. São poucos funcionários. Seus membros
têm uma postura bastante politizada e de resistência; são particularmente críticos em

514
Virgínia Valadão, antropóloga, faleceu em 1998 e muitos dos documentos de sua atividade
profissional ficaram guardados no CTI.
515
Assim definiu Gilberto Azanha em conversa na sede do CTI, em Brasília, em outubro de 2003.
Da mesma forma está posto na Carta aos Amigos da ICCO e PPM, janeiro de 1995.
516
CTI. Centro de Trabalho Indigenista – Informações sobre a entidade, sem data.
517
Foram analisados vários documentos institucionais que visam divulgar a organização, publicados
entre 1992 e 2003.
518
Carta aos Amigos da ICCO e PPM, de 11 de janeiro de 1995, p.1.

340
relação aos modelos “neoliberais” e empresariais de execução de projetos sociais e às
exigências que são cada vez mais cobradas pelas instituições doadoras internacionais em
termos de prestação de contas e cumprimento de normas. Outras organizações, como o
Instituto Socioambiental - ISA, têm muito mais visibilidade e maior inserção, tanto em
relação às suas publicações, que são referência, como na articulação política de seus
membros.
No caso especifico do PPTAL, observei que alguns antropólogos e antropólogas
do CTI tiveram uma participação continuada e diversificada na malha administrativa na
qual o projeto se institucionalizaria: Virgínia Valadão havia sido consultora do Banco
Mundial, no início das negociações do PPTAL; Maria Elisa Ladeira trabalhara como
consultora na elaboração do projeto e em outros momentos; Gilberto Azanha participou
de reuniões do PPTAL e do PPG-7 como um dos representantes da sociedade civil;
Dominique Gallois coordenou o projeto-piloto de demarcação da Terra indígena Waiãpi
levado a cabo com a cooperação técnica da GTZ no Brasil.
O CTI foi o ponto de partida dos mais antigos rascunhos e documentos sobre as
negociações iniciais do projeto PPTAL. Ali foi possível acompanhar algumas das
mudanças no seu desenho e vislumbrar o grupo de pessoas envolvido na sua viabilização
junto ao governo. Encontrei no CTI muitos dos mais importantes documentos relativos ao
PPTAL, documentos estes que jamais vi na Biblioteca da Funai, na Secretaria Técnica do
PPTAL ou na GTZ, e que faziam parte do acervo de Virginia Valadão. Após seu
falecimento, ficaram intactos, sem tratamento, guardados sem destino certo em caixas de
papelão e em gavetas fechadas da sua antiga mesa. Como ocorre com vários documentos
que contam a história de programas e processos políticos e sociais no Brasil, o acervo era
riquíssimo, guardava não só uma história pessoal, mas também a de outros projetos nos
quais Virginia participara.
Os primeiros desenhos em que figuravam as linhas gerais do PPTAL começaram
a ser elaborados com a disponibilização dos recursos que vieram do Banco Mundial,
instituição que coordenava o PPG-7, para definição de aplicação de verbas e para
contratação de consultores técnicos (as integrantes do CTI), que contavam com a
colaboração de antropólogos do quadro do Banco Mundial.

341
A missão de maio de 1992: as redes ambientais do Banco Mundial

Um dos primeiros documentos que fazem referência à existência de um Projeto de


Terras Indígenas, que era o PPTAL, foi a lembrança de uma missão do Banco Mundial
na Funai e na SEMAM, em maio de 1992. Ajuda-Memória é o termo que se atribui a um
relatório-síntese que se faz a partir da reunião ou do evento de um grupo de especialistas
e representantes do Banco Mundial, ou de outros organismos internacionais, em que são
elencados os participantes, os principais pontos discutidos e as resoluções ou decisões
essenciais que foram tomadas, formalizando as bases de um compromisso. Tem o caráter
de uma “ata de reunião”, sendo um documento que comprova os compromissos
assumidos pelos participantes, ainda que seja possível discutir longamente quais as
condições em que são feitas essas memórias, por quem e o quê.
O termo missão é usualmente adotado por organismos internacionais e agências
de cooperação para o desenvolvimento, fazendo parte do léxico do Banco Mundial.
Refere-se à ida de um grupo de especialistas ou decisores de departamentos do Banco,
divididos por critérios de região ou temas específicos, a países que recebem recursos do
Banco para projetos ou programas. É usada também para definir as reuniões promovidas
junto a instituições nacionais que desenvolvem projetos ou programas onde são tomadas
decisões que envolvem os representantes do Banco, e serve para denominar o próprio
grupo de especialistas do Banco Mundial. A finalidade das missões organizadas pelo
Banco é geralmente de negociação de projetos novos ou de acompanhamento de fases de
projetos em andamento.
Realizada entre 12 e 15 de maio de 1992, essa reunião contou com a participação
de funcionários da Funai, como Maria Auxiliadora Cruz de Sá Leão, então coordenadora
de Projetos Especiais,519 Isa Pacheco, na época diretora da DAF, Elias Bigio e Artur N.
Mendes, da área de identificação – DEID/DAF. O último destes assumiria mais tarde a
coordenação de Projetos Especiais e, depois, a coordenação da secretaria técnica do
PPTAL. Da SEMAM vieram Ana Lange, Maria L. D. Freitas e Silbene de Almeida.

519
Posteriormente foi contratada pela GTZ para atuar no projeto Subprograma de Políticas de
Recursos Naturais - SPRN, em Brasília, assumindo em 2007 a Diretoria de Assuntos Fundiários,
novamente na Funai.

342
Como representantes de organizações da sociedade civil participaram Gilberto Azanha
(CTI); Luiz Carlos Pinagé (Fundação Vitória Amazônica - FVA), Eduardo Martins
(Grupo de Trabalho Amazônico - GTA), Pedro Ramos de Souza (Conselho Nacional de
Seringueiros - CNS), além de uma representante da Comunidade Européia, Martine
Delogne (CCE).
Definia-se, nas conclusões daquele documento que o governo brasileiro, por meio
da Funai, se empenharia em elaborar, o detalhamento do projeto em dois meses a partir
daquela reunião. A Funai comprometia-se também, ao longo do processo, a: “Fornecer ao
Banco Mundial todas as informações que se fizerem necessárias a respeito das terras
indígenas objeto de demarcação e os seus procedimentos internos.”
Note-se que já se fazia a ressalva, ainda que em nota de rodapé, da não-inclusão
das terras indígenas situadas nos estados de Mato Grosso e Rondônia como área de
abrangência do projeto, o que se justificava em função de já estarem sendo contempladas
em outros projetos financiados pelo Banco Mundial, o Prodeagro e o Planafloro.520 O
PPTAL seria o primeiro projeto em que o Banco Mundial estaria implicado diretamente
para o trabalho com populações indígenas, e não o resultado de medidas compensatórias,
como foi o caso dos dois projetos citados acima.
Estavam presentes da parte do Banco Mundial Daniel Gross e Virgínia Valadão,
ambos antropólogos, mas somente Gross fazia parte do quadro do Banco Mundial.
Valadão, do CTI, fora contratada temporariamente como consultora do BIRD durante a
fase inicial de negociação para a preparação do PPTAL. Eles atuavam como
“colaboradores”, acompanhando e avaliando os resultados desenvolvidos pela equipe de
elaboração do projeto, junto com grupos da Funai, especialmente da DAF e da SEMAM,
e com representantes de ONGs.521
Daniel Gross já havia trabalhado no Brasil em projetos com populações indígenas
atingidas pela construção da estrada de ferro Carajás. Nessa época, a antropóloga Lux

520
Prodeagro é o Programa de Desenvolvimento Agro-Ambiental do Estado do Mato Grosso;
Planafloro é o Plano Agropecuário e Florestal de Rondônia. Ambos foram elaborados como projetos
compensatórios ao Programa Polonoroeste, que resultou da construção da BR 364 nos estados de Mato
Grosso e Rondônia, com empréstimo do Banco Mundial. Alguns entrevistados mencionaram que a razão da
retirada destas terras do PPTAL seria a imagem negativa dos dois projetos que tiveram o envolvimento do
Banco. Ver em Banco Mundial/SEMAM/FUNAI. Programa Piloto para a Conservação da Floresta
Tropical Brasileira, Projeto das Terras Indígenas, 12-15 de maio de 1992.
521
FUNAI-SEMAM-Banco Mundial: Missão 12 a 15 de maio de 1992.

343
Vidal,522 da Universidade de São Paulo, foi indicada para os trabalhos de demarcação de
todo o conjunto de terras relativas às compensações do projeto, com o respaldo da
Associação Brasileira de Antropologia – ABA.523 Lux Vidal, por sua vez, chamou alguns
de seus alunos da USP e outros para colaborarem, sob a sua supervisão, nos trabalhos de
demarcação.524 Entre seus alunos, Maria Elisa Ladeira e Iara Ferraz atuaram como
consultoras no acompanhamento das demarcações das terras indígenas na área de
abrangência do Programa Estrada de Ferro Carajás.525
As relações de trabalho dos membros do CTI com o Banco Mundial vinham dos
anos 80, desde a época em que Valadão e Ladeira já prestavam consultorias para a
Cia.Vale do Rio Doce – CVRD, para o programa de Carajás, em demarcações de terras
indígenas nos estados de Rondônia e Mato Grosso. Ali também esteve presente o Banco
Mundial, o que pode ter sido um dos fatores que favoreceram a indicação de antropólogos
do CTI.
Foi proposta pelo governo a contratação de uma consultoria antropológica para a
elaboração do projeto na Funai, representada pela DAF (DAF/FUNAI). A consultoria
solicitada pelo BIRD para elaboração de um esboço do PPTAL em 1992, para a qual foi
chamada Maria Elisa Ladeira526, antropóloga e amiga do CTI de Valadão, Ladeira foi
contratada em junho de 1992 pelo BIRD como consultora que faria parte da equipe de
preparação do PPTAL na FUNAI.527

522
Lux Vidal é doutora em antropologia social pela Universidade de São Paulo, onde leciona desde
1971 e desenvolve pesquisas sobre os índios Xikrin. Segundo Maria Elisa Ladeira, que fez parte da equipe,
sob coordenação de Lux Vidal nos trabalhos de terras indígenas do Programa Grande Carajás - PGC, em
entrevista concedida em 10/12/2003, Lux Vidal teria sido indicada por Daniel Gross, mas diante da
extensão e complexidade das terras, não aceitou assumir sozinha, formando um grupo de pesquisadores,
tendo para isso o respaldo da ABA.
523
Entre 1980 e 1982, a presidência da ABA foi exercida por Eunice Durham, Antonio Augusto
Arantes e Peter Fry. Eunice Durham permaneceu vinculada à ABA como presidente da Comissão Especial
de Assuntos Indígenas entre 1982 e 1984.
524
Os antropólogos que foram consultores da Cia. Vale do Rio Doce para identificação das terras
indígenas nas áreas de impacto da estrada de ferro Carajás foram Maria Elisa Ladeira, Iara Ferraz, Mércio
Gomes e Antonio Arantes.
525
Antropólogos e filósofos da Universidade de São Paulo formavam um grupo representativo na
articulação do debate sobre terras indígenas nos anos 80, juntamente com o Departamento de Antropologia
Social do Museu Nacional, UFRJ, com Lux Vidal e João Pacheco de Oliveira.
526
Maria Elisa Ladeira é antropóloga, com graduação e mestrado na USP e doutorado em
Lingüística. É esposa de Gilberto Azanha e irmã de Maria Inês Ladeira, ambos do CTI.
527
Em documento de setembro de 1992, elaborado pelo CTI (presumivelmente, porque não há
referência de origem do documento) para a renovação do contrato de Maria Elisa, pede-se a extensão da

344
Os antropólogos do CTI participaram de redes integradas que atuaram ao longo
das negociações do PPG-7, juntamente com o Instituto de Estudos Amazônicos - IEA e o
Grupo de Trabalho Amazônico - GTA.528 O IEA foi criado como entidade de apoio ao
Conselho Nacional dos Seringueiros, em 1986, no Acre; em 1991 trabalhou com esta
instituição na implementação do Programa Nacional de Reservas Extrativistas. Em
agosto de 1991, foi transferido do Acre para Brasília, período em que outras ONGs
também estabeleceram sucursais na capital federal. Foi um tempo de efervescência
política na área ambiental, com a criação de um órgão federal de implementação de
políticas ambientais, a SEMAM, já nas proximidades da ECO-92, que abria
oportunidades para a atuação da sociedade civil nas políticas democráticas em
articulação.
O IEA teve atuação importante nas negociações do PPG-7 e contribuiu para a
articulação do Grupo de Trabalho Amazônico. Em documento do projeto, afirma-se que:529

O IEA vinha acompanhando as negociações sobre o Programa Piloto desde a


primeira reunião com o governo brasileiro, em 4 de março de 1991, quando foi
discutido o primeiro documento governamental sobre o assunto. [...] A proposta
apresentada pelo governo brasileiro, com aval e incentivo dos países doadores,
era a de realizar um trabalho conjunto governo-ONGs para a implementação do
Programa.

O trabalho de apoio e assessoria ao CNS desde 1986 e a articulação estabelecida


com a implantação do Programa Nacional de Reservas Extrativistas deram aos seus
representantes o conhecimento das pessoas e das redes locais da Amazônia, o que
facilitou a articulação de ONGs da região. O GTA foi criado em 1 de junho de 1991 por
um grupo de 11 entidades.530

O Grupo de Trabalho para o Projeto G-7 foi composto, em Brasília, pelo Instituto
de Estudos Amazônicos (IEA), Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Fundação
Mata Virgem (FMV), Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Central

consultoria para a fase final de revisão do projeto. A versão do projeto foi apresentada ao BIRD em 4 de
julho de 1992.
528
Arnt, R.”Fundo para a Amazônia divide ambientalistas”, Folha de São Paulo, 08/07/1991, p.5.
529
IEA. Projeto Políticas Públicas para a Amazônia, Relatório Anual. Doação 910-0914 Fundação
Ford, Brasília, janeiro de 1993, p.11.
530
IEA. Projeto Políticas Públicas para a Amazônia, opus cit., p.10.

345
Única de Trabalhadores (CUT), Movimento pela Sobrevivência da
Transamazônica (MPST), Fundação Vitória Amazônica (FVA), Projeto Estudos
Sobre Terras Indígenas no Brasil (PETI), Comissão pela Criação do Parque
Yanomâmi (CCPY), Instituto de Pré-História, Antropologia e Ecologia (IPHAE),
531
Projeto Saúde e Alegria - CEAPS e Funatura.

Como publicado no primeiro Boletim Informativo do GTA, de junho de 1992, a


rede GTA participaria como representação da sociedade civil no PPG-7. A organização
desta rede se deu paralelamente à organização da Associação Brasileira de ONGs -
ABONG, cuja posição foi contrária ao PPG-7. No dia 11/06/1991, o IEA enviou um fax
para o CTI comunicando que:

Mary Allegretti esteve presente na qualidade de representante do IEA em reunião


ocorrida em Luxemburgo no dia 08/06/1991 em Seminário sobre
Responsabilidade da CEE em face da destruição da Amazônia brasileira. [...] A
sociedade civil brasileira deve insistir perante a Secretaria Nacional de Meio
Ambiente (SEMAM) para que se realize reunião com as ONGs objetivando
532
analisar a versão do PPG-7.

Ao retornar da viagem ao exterior, Mary Allegretti assumiu a atribuição de


mobilizar organizações não-governamentais para que fossem acompanhadar as
discussões e as negociações dos projetos do PPG-7. A proposta de inclusão das ONGs no
programa do PPG-7 tinha uma forte relação com a atuação dos doadores para a
implementação dos projetos, como vimos em documento do CTI:

Após duas missões do Banco e dos países doadores, realizadas em final de 91 e


início de 92, e visando analisar os projetos do governo, os doadores chegaram à
conclusão que apenas as propostas oriundas da sociedade civil e a proposta da
FUNAI relativa à identificação e à demarcação de terras indígenas estavam
suficientemente fundamentadas para receberem os recursos para a primeira fase
533
do PPA.

531
GTA. Boletim Informativo nº 1, Brasília, junho de 1992.
532
Fac-símile do IEA para CTI, de 11/06/1991, obtido no CTI.
533
CTI. Projeto de Demarcação – 92/93. Convênio FUNAI-CTI, mimeo, sem data, p.7 (arquivo
CTI).

346
A relação entre o Banco Mundial e as ONGs se deu por meio da contratação de
serviços de consultoria para elaboração de projetos. No caso do PPTAL, o BIRD
contratou consultorias de antropólogos ligados a ONGs que, em conjunto com um grupo
da Funai e da SEMAM, começaram a formular os esboços do projeto, em 1992, para
apresentação dentro dos prazos dados pelos organismos internacionais: 534

Preocupados com a consistência e conceituação dos projetos de terras indígenas


da FUNAI em bases mais adequadas para se atingir uma proteção e controle
efetivo das áreas indígenas da região amazônica, a missão do Banco Mundial
solicitou mais uma vez a participação de antropólogos do CTI enquanto
consultores – agora para coordenarem a elaboração propriamente dita do projeto,
junto com a FUNAI.

De acordo com a análise de documentos do PPTAL, alguns dos membros do CTI


tiveram participação intensa na fase inicial de negociação e elaboração do PPTAL,
principalmente entre 1991 e 1994, seja na forma de consultorias temporárias, seja
atuando dentro da Funai, como foi o caso de Gilberto Azanha que assumiu cargo
comissionado durante a gestão de Sidney Possuelo no Departamento de Patrimônio
Indígena e Meio Ambiente - DEPIMA. Atuaram particularmente na elaboração e no
planejamento de projetos e na execução e no acompanhamento de demarcações pela
Funai. Primeiro, houve a elaboração da versão inicial do projeto, em 1992, depois, a
demarcação-piloto realizada juntamente com a GTZ na Terra Indígena Waiãpi, em 1994.
Também no PPG-7, alguns membros do CTI participaram como “representantes
da sociedade civil” em reuniões com doadores, particularmente as organizadas pelo
Banco Mundial, como consultores diretos do BIRD ou mesmo consultores para prestação
de serviços esporádicos para a Funai.

A entrada da cooperação alemã: a missão de agosto 1992

534
Idem.

347
Em agosto de 1992, uma nova missão do Banco Mundial veio ao Brasil para
avaliar o andamento da elaboração do PPTAL. O documento de “ajuda-memória” desta
missão apresentou um esboço do projeto PPTAL, solicitado para ser apresentado após a
revisão do detalhamento feito em julho de 1992.
Fizeram parte desta segunda reunião de missão do Banco Mundial: representando
a Funai: Maria Auxiliadora Cruz de Sá Leão, Artur Nobre Mendes, Mara Vanessa Dutra,
Elias Bigio, Marina Kahn, Isa Pacheco, Maria Elisa Ladeira; pela SEMAM: Ana Lange e
Silbene de Almeida; pelo BIRD: Daniel Gross e Virgínia Valadão, consultora.535
Mantinha-se basicamente o mesmo grupo da reunião anterior de maio, aparecendo
um novo participante, Otto Freiherr Von Grotthuss, representante do banco alemão KfW,
o principal doador. Não tive acesso a qualquer documento que mencionasse as condições
de entrada do banco alemão na composição dos doadores antes desta missão, nem se a
esta altura já se sabia a respeito das participações financeiras de cada doador. No entanto,
uma funcionária da atual Secretaria de Assuntos Internacionais - SEAIN, do Ministério
do Planejamento, Orçamento e Gestão - MPOG, nos esclareceu como se processam ainda
hoje as negociações financeira e técnica de detalhamento das atividades do projeto:

Lá em 1992, quando foi concebido o projeto, ele passou pela COFIEX 536 e foi
aprovado o montante de 250 milhões de dólares. O MMA, que é o responsável
pela coordenação do grupo, poderia contratar projetos até este valor aprovado
pela COFIEX. O valor é aprovado antes dos projetos. A COFIEX aprova a
preparação destes projetos. Ela te dá o sinal verde para a partir de então, junto
com os doadores, preparar os projetos, elaborar o projeto executivo, o projetão,
porque, quando vêm as missões (do Banco Mundial), serão preparados os
projetos com mais detalhes.

535
O grupo de pessoas que trabalhava na época na Funai assumiu posteriormente responsabilidades
profissionais em diferentes instituições, alguns deles na própria GTZ. Maria Auxiliadora Leão foi para o
projeto Subprograma de Políticas de Recursos Naturais - SPRN, trabalhando na GTZ; Mara Vanessa
trabalha atualmente em consultorias particulares para cursos de capacitação e oficinas oferecidas, dentre
outras, pela GTZ; Marina Khan foi para o Instituto Socioambiental; Ana Lange estava, na época em que fiz
o levantamento de dados, no Ministério de Meio Ambiente, junto com Isa Pacheco.
536
A Comissão de Financiamentos Externos - COFIEX é um colegiado composto por membros do
Ministério do Planejamento (Secretaria de Assuntos Internacionais, Secretaria de Planejamento e
Investimentos Estratégicos, Secretaria de Orçamento Federal e Assessoria Econômica), do Ministério de
Relações Exteriores e do Ministério da Fazenda (Tesouro Nacional, Secretaria de Política Econômica e
Secretaria de Assuntos Internacionais).

348
A entrada dos alemães na reunião marcou uma mudança significativa no processo
de negociação, sendo imposta desde o início a aprovação das autoridades competentes do
governo da Alemanha como condição para validar as decisões tomadas:

A missão do KfW chama a atenção para o fato de que tudo o que foi acordado
está sob ressalva da posterior aprovação pelas autoridades competentes do
Governo da República Federal da Alemanha, conforme normas da cooperação
537
financeira oficial alemã.

As mudanças no projeto

Na reunião de agosto, algumas mudanças foram observadas quanto às ações


previstas: no lugar de identificação e demarcação, anteriormente apresentadas em dois
itens separados, propôs-se a regularização fundiária das terras indígenas. A partir de
agosto de 1992, nota-se também que o título do projeto passou a incluir “populações”
juntamente com terras indígenas, quando em maio era mencionado exclusivamente
“terras” indígenas, ficando Projeto Integrado de Proteção das Terras e Populações
Indígenas da Amazônia. Esta mudança parece refletir uma preocupação de alguns
membros do grupo em não restringir os objetivos somente a aspectos físicos, como um
projeto de “zoneamento”, mas enfocar a questão da territorialidade como um dos aspectos
culturais e sociais para as populações indígenas. No texto, consta: “o objetivo geral do
projeto é proteger as terras e as populações indígenas da Amazônia contra intervenções
que ameacem sua integridade física e cultural”.
A proposta de capacitação indigenista revelava não somente um dos eixos centrais
de operacionalidade da cooperação técnica, associado à transferência de know-how e aos
“treinamentos” (oficinas, cursos seminários), mas particularmente que aquele grupo não
estava de acordo com a visão e a prática do indigenismo que vinha sendo adotada pela
Funai. A idéia de fazer um “curso” indicava uma avaliação de ineficiência das práticas
deste órgão e falta de capacidade de seus funcionários. Neste sentido, treinar significava
adotar novas práticas, o que justificava uma forma de intervenção direcionada à

537
Aide Memoire: Projeto Integrado de Proteção das Terras e Populações Indígenas da Amazônia,
3-14 de agosto de 1992.

349
“formação dos funcionários”. A definição do termo “capacitação” suaviza uma
intencionalidade política neste “treinamento”, uma maneira de transmitir valores e visões
distintas do indigenismo, consideradas “mais modernas”, “mais atualizadas” e mais
eficientes.
A ênfase neste ponto já havia sido colocada na missão de maio de 1992538 como
uma das seis principais linhas de ação para a realização dos objetivos do PPTAL,
reaparecendo no documento de memória da missão. Previa-se, pois, a capacitação de
funcionários da Funai: “apoiar cursos de capacitação de indigenistas da Funai e outros
que trabalham junto a populações indígenas”.539
A Funai contaria com consultores para a execução dos cursos de capacitação, cuja
contratação seria viabilizada por meio de um organismo internacional, sem burocracia, e
com um perfil definido por ela:540

A FUNAI, junto com a coordenação do Programa Piloto, estudará a possibilidade


de contratação de pessoal adicional e essencial à coordenação e à execução do
projeto indígena, por meio de um organismo internacional de cooperação com
representação no Brasil. [...] Os cursos de capacitação seriam planejados e
coordenados pela FUNAI e executados pela FUNAI com a colaboração de
consultores especializados contratados. [...] A FUNAI definirá o perfil dos
consultores necessários à preparação e à execução dos cursos de capacitação.

A atuação pedagógica e “reformadora” das ações de cooperação técnica é clara


neste ponto, central para entendermos as justificativas discursivas que a própria lógica da
cooperação reproduz.
Por fim, entre as ações propostas, foram incluídas a coordenação e a monitoria do
projeto. Esta meta específica reflete o desempenho direto das agências internacionais que
têm neste ponto a preocupação com o controle e o exercício de poder sobre planejamento,
implementação e gerenciamento de projetos – o seu forte – como prestadoras de serviços
de cooperação técnica. Na verdade, a intenção era de que o PPTAL servisse como
laboratório para a reestruturação da Funai, o que nem sempre ficava claro: “A Funai se

538
Documento FUNAI-SEMAM-Banco Mundial: Missão 12 a 15 de maio de 1992.
539
Aide Memoire: ibidem., p.2.
540
Idem, p.2-4.

350
compromete a apresentar aos doadores detalhamento, organograma, funcionamento e
custos relativos à coordenação e à monitoria do projeto”.541
Em relação aos projetos de saúde e meio ambiente, foi definido que seriam feitos
projetos-piloto em áreas a serem definidas. A proposta dos “pilotos” baseava-se na idéia
de que seriam uma forma de restringir e dar maior ênfase às ações implementadas, para o
que serviriam de exemplo para serem replicados em outras áreas. Determinou-se o prazo
de 60 dias para detalhamento destes dois pilotos, com o compromisso de se entrar em
entendimento com o Ministério da Saúde e com a SEMAM.542
Pelo que pode ser visto nos textos das missões do Banco Mundial, já estavam
traçadas as diretrizes do projeto. Aquilo que fora colocado nas ajudas-memória das
reuniões, particularmente na de agosto de 1992, já eram as linhas fundamentais do
projeto, que posteriormente figurariam na versão desenvolvida a partir da consultoria de
Maria Elisa Ladeira para a Funai, em dezembro de 1992.
Um aspecto que pode ser ressaltado aqui é o fato de que a participação de
representantes da sociedade civil nessas reuniões alteraria pouca coisa. As decisões eram
prévias e apresentadas de forma concisa e encadeada, o que dificultava o senso crítico e a
capacidade de contestação. Entre os representantes dos grupos, por sua vez, relações de
afinidade colaboraram para consolidar na reunião a premissa de que havia consenso para
aprovação da versão final de um projeto de cooperação técnica.
Uma primeira versão completa saiu em dezembro de 1992; nela já estavam
estabelecidas algumas das linhas que caracterizariam o PPTAL no documento oficial do
Banco Mundial,543 mais conhecido entre os técnicos do projeto como Blue Cover. Ele foi
editado, no entanto, somente em 1994, como documento oficial do governo brasileiro,
oficializado pelo Banco Mundial. De acordo com Mendes, os projetos-piloto eram
exigências do Banco Mundial, sendo proposta do governo brasileiro priorizar a
demarcação, o que acabou prevalecendo posteriormente. A idéia era centrar forças na
demarcação, talvez por perceberem a pouca visibilidade de projetos de capacitação em

541
Aide Memoire, ibidem, p.4.
542
Tal proposta fundamentava-se nos decretos nº. 23/91 e 24/91, que definiam que a assistência à
saúde indígena seria competência do MS e que a proteção ao meio ambiente em terras indígenas seria
competência da SEMAM.
543
Governo do Brasil/BIRD/CEE. Projeto Integrado de Proteção às Terras e Populações Indígenas
da Amazônia Legal, opus cit.

351
uma estrutura organizacional que proporcionava a obstinação da defesa do monopólio das
ações indigenistas centralizadas na Funai.
Iniciado o projeto, depois de praticamente dois anos de tramitação burocrática no
Brasil e também na Alemanha, finalmente em 1996, o PPTAL iniciou sua fase de
execução pela FUNAI.
Havia um volume imenso de recursos, e grande interesse para que o projeto se
realizasse, que era compartilhado por meio de uma rede de pessoas em diferentes
instituições governamentais, de grupos dentro da FUNAI e da SEMAM, bem como por
muitas organizações não-governamentais. Foi esta base política e social que consolidou a
concretização do projeto e o reconhecimento posteriormente, inclusive pelos doadores, de
que o projeto foi bem sucedido no que se propôs quanto à demarcação de terras
indígenas.
Como operacionalizar as ações do projeto? Esta pergunta se desdobra em várias
outras, que caracterizam a própria idéia de cooperação técnica: como fazer com que os
recursos fossem internalizados nas instituições? Como contratar uma equipe permanente
para trabalhar no projeto, além de equipes temporárias de consultores? Como comprar
equipamentos? Como organizar cursos?
No caso do PPTAL, foram duas as organizações de cooperação técnica que
estiveram presentes na operacionalização de recursos internacionais: a GTZ, a agência de
cooperação técnica alemã e o PNUD, o Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento.

A cooperação técnica do PNUD

Iniciado o projeto, depois de praticamente dois anos de tramitação burocrática no


Brasil e também na Alemanha, finalmente em 1996 o PPTAL iniciou sua fase de
execução pela Funai.
Havia um volume imenso de recursos, e grande interesse para que o projeto se
realizasse, o que era compartilhado por uma rede de pessoas de diferentes instituições
governamentais, de grupos dentro da Funai e da SEMAM e por muitas organizações não-

352
governamentais. Foi esta base política e social que consolidou a concretização do projeto
e o reconhecimento posterior, inclusive dos doadores, de que o projeto foi bem-sucedido
no que se propôs quanto à demarcação de terras indígenas.
Como operacionalizar as ações do projeto? Esta pergunta se desdobra em várias
outras, que caracterizam a própria idéia de cooperação técnica: como fazer para que os
recursos fossem absorvidos, como dizem, internalizados pelas instituições; como
contratar uma equipe permanente para trabalhar no projeto, além de equipes temporárias
de consultores?; como comprar equipamentos?; como organizar cursos?
No caso do PPTAL, foram duas as organizações de cooperação técnica que
estiveram presentes na operacionalização de recursos internacionais: a GTZ e o PNUD.
O caso de um projeto de “cooperação internacional” era uma situação inédita para
a Funai e havia muitas incertezas quanto aos seus significados e às implicações de se
tomarem recursos externos e de contratação por meio de agências multilaterais, como
PNUD e UNESCO, já que o processo de regularização fundiária era uma atribuição do
Estado. Como afirma Mendes em entrevista:

Quando a gente estava começando o projeto, não tinha muita idéia do que era
cooperação técnica internacional, nem mesmo essa cooperação técnica aqui
dentro, vamos dizer, tipo PNUD, UNESCO, quanto mais vindo de fora, de outro
país. Então, o PPTAL inaugurou este processo para a cooperação técnica dentro
544
da Funai.

Em setembro de 1996, a Funai formalizou, por meio de ofício, uma proposta ao


PNUD para contratação de pessoal com o fim de “assistência preparatória”. Definem por
“assistência preparatória” uma possível fase que se imaginava de implementação inicial
do projeto na Funai.
A proposta passou pela instância de gerenciamento dos projetos do PPG-7, o
Ministério do Meio Ambiente, que aprovou a solicitação. Diz o documento que a referida
proposta tinha por objetivo: “resolver os problemas atuais através da capacitação de RH e

544
Artur Nobre Mendes, ex-coordenador da Secretaria Técnica da Funai, em entrevista no dia 3 de
julho de 2002.

353
de prover apoio na identificação, planejamento, implementação e avaliação de
experiências inovadoras no processo de regulação fundiária”.545
Em novembro de 1996, foi assinado o projeto para uma primeira fase preparatória,
de 1996 a 1998, sendo posteriormente renovado até 2000 e, mais uma vez, até 2004, o
que praticamente caracteriza uma década desta mesma situação de contratos temporários
para funções permanentes na administração pública.
O argumento de extensão do projeto se dava em função da constante alteração
proveniente do aumento do número de terras a serem regularizadas, como também da
justificativa de que “a parceria com o PNUD tem demonstrado resultados expressivos ao
abrir um espaço institucional importante que tem permitido avançar na participação
indígena e na colaboração de peritos externos”, como é mencionado em documento do
projeto PPTAL.546
O PNUD canalizou, para a execução dessas atividades, recursos tanto do RFT
como do KfW.547 Em documento de 2003, nota-se que a execução via PNUD ocorre em
praticamente todos os componentes do projeto: identificação, acompanhamento indígena,
planos de vigilância e fiscalização, estudos e capacitação, inclusive levantamentos
etnoecológicos. A única atividade que não exerceu foi a de demarcação.548
Cumpria à Funai justificar o uso de recursos externos, já que o processo de
regularização fundiária era uma atribuição do Estado. A razão para tal solicitação era a de
“haver dificuldades devido à falta de capacidade e experiência da Funai de executar um
projeto deste porte”.549
O mecanismo de contratação de pessoal temporário na administração pública, por
meio de projetos com organismos internacionais, como PNUD e UNESCO, não foi
exclusivo dos projetos do PPG-7, como o PPTAL, mas representou um processo que se
instituiu de maneira geral para suprir uma demanda na administração pública por pessoal;
isto porque não houve contratações de pessoal, muito menos concursos públicos nos

545
MMA. Ofício 605/MMA/SCA/PPG7, de 19/09/96.
546
FUNAI. Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal –
Revisão Substantiva Q. junho de 2003, p.5.
547
Idem, PRODOC, Proposta de Cooperação Técnica com PNUD, maio de 1998; a primeira fase,
orçada em praticamente US$ 2 milhões e a segunda em US$ 7,6 milhões.
548
FUNAI, idem, Revisão Substantiva Q..
549
Ofício 605/MMA/SCA/PPG7, de 19/09/96.

354
quadros do governo de Fernando Henrique Cardoso, em que vigia uma política de
redução do Estado. Particularmente em relação à regularização fundiária, desde 1993, o
governo tomara providências legais para a formalização da permissão de contratação de
pessoal por tempo determinado.
Em dezembro de 1993, o presidente Itamar Franco sancionou a Lei 8.745 que
instituiu a contratação de pessoal por tempo determinado para atender a que se
denominou de necessidade temporária de excepcional interesse público, que seriam
situações de assistência à calamidade pública (Inciso I, Art.2), combate a surtos
endêmicos (Inciso II, Art.2), admissão de professor e pesquisador substituto, visitante e
estrangeiro (Inciso IV e V, Art.2), e algumas atividades específicas. Entre estas,
destacavam-se a inclusão daquelas relacionadas à identificação e à demarcação
desenvolvidas pela Funai (alínea b do inciso VI, Art.2º) e das técnicas especializadas, no
âmbito de projetos de cooperação com prazo determinado, implementados mediante
acordos internacionais, desde que houvesse em seu desempenho subordinação do
contratado ao órgão ou à entidade pública (alínea h do inciso VI, Art.2º).550
A partir de então, tornou-se possível, na esfera da administração pública, a
contratação de pessoal por meio de consultorias tanto para a contratação de serviços para
elaboração inicial de projeto, como para identificação de terras indígenas. Para isso, parte
do orçamento do próprio governo seria passado para as agências multilaterais, como o
PNUD, para o pagamento dos salários dos funcionários temporários.
Com a Lei 8.745/93 ficou definido que as contratações seriam feitas por meio de
projetos por processo seletivo simplificado, com base em critérios de capacidade técnica
ou científica do profissional mediante análise de currículo, prescindindo de concurso
público. Como praticamente não houve concurso público para contratação de pessoal por
um longo período, que se estendeu pelos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso,
ficou instituído assim um funcionário-pnud no funcionalismo público que, apesar de
definido como temporário, com contratos trimestrais ou semestrais, ficou na
administração pública federal até por dez anos.

550
Magalhães, E. (org.). Legislação Indigenista Brasileira e Normas Correlatas. 2.ed. Brasília:
FUNAI/CGDOC, 2003. p.143-145.

355
O cargo de consultor PNUD e UNESCO tinha status diante dos funcionários
públicos em geral, sendo a indicação para a sua ocupação determinada pelas relações de
conhecimento. Recebiam salários mais elevados para desempenhar funções idênticas ou
equivalentes às dos funcionários públicos, o que contribuiu para estabelecer uma
hierarquia entre funcionários públicos e “consultores-pnud”.551 Os salários mais elevados
compensavam outras garantias trabalhistas que este tipo de contrato não previa, como
férias, 13º salário, fundo de garantia, entre outros, configurando um cenário de incerteza e
insegurança entre os trabalhadores, o que era recompensado por um reconhecimento
social pelas boas relações de conhecimento em Brasília. O cargo dependia de uma
indicação, e permanecer era decorrente da competência em se manter nele, apesar de
mudanças políticas que eventualmente ocorressem na administração pública.
No que se referia ao PPTAL, o documento da missão vinculava assim a obrigação
da Funai em preparar os “termos de referência” para contratação de consultores nas mais
diferentes etapas e ações do projeto, como:

consultoria especializada que estudará as operações fundiárias da FUNAI e fará


recomendações detalhadas sobre os equipamentos que o órgão deverá adquirir,
bem como sobre o treinamento de pessoal necessário para a utilização de
imagens de satélite, a digitalização de dados cartográficos sob a base de um
sistema de Informações Geográficas.

Argumentos sobre a burocracia e a lentidão dos processos de Estado justificariam


a contratação de pessoal através de projetos de cooperação internacional, entendidos
como alternativas à “ineficácia” do Estado, como revela uma funcionária da ABC:

a função do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) seria


a de um agente facilitador [voz baixa]. Ele realiza, de forma mais simples e com
maior agilidade, o que o governo deveria fazer, sem burocracia. As instituições
brasileiras não têm agilidade para a execução de projetos, não têm condições de

551
Não tenho valores para uma comparação que tornem mais evidentes tais afirmações, mas em
2002, quando estive na SETEC-PPTAL entrevistando alguns funcionários, soube que a relação de salários
era, para o consultor PNUD, de praticamente o dobro do que ganhava o funcionário da Funai.

356
recursos humanos, e o PNUD entra para dar condição para agilizar o andamento
552
do projeto.

A entrada da GTZ: seminários

Os primeiros sinais de participação da GTZ no PPTAL apareceram a partir de


janeiro de 1993, como resultado de demandas da própria DAF/FUNAI para a realização
do primeiro seminário de planejamento do projeto. Diz o ofício 014/DAF/FUNAI de
Artur Mendes endereçado à GTZ em 20 de janeiro de 1993:

Estamos encaminhando à GTZ, conforme acertado em reunião do dia 14 passado,


uma proposta para realização de Seminário de Planejamento para complementar
o componente ambiental do Projeto Integrado de Proteção às Terras e Populações
Indígenas da Amazônia Legal [...] Certos de que o apoio da GTZ tornará possível
a realização do evento proposto, aguardamos resposta de V.Sª.

A solicitação se dá de forma direta, como se fosse uma prática usual na


instituição, mas a referência a uma reunião anterior nos leva a crer que GTZ e Funai
estabeleceram verbalmente os procedimentos a serem adotados quanto à solicitação à
GTZ de recursos para o seminário. Foi apresentada uma proposta com custo de US$ 24 mil.553
Imediatamente depois desta solicitação, em fevereiro de 1993, Maria Auxiliadora
Cruz de Sá Leão, como coordenadora da Coordenação Geral de Projetos Especiais -
CGPE, envia um ofício à ABC solicitando recursos à GTZ para a realização de
seminários da metodologia ZOPP, visando à elaboração dos projetos ambiental e de
saúde indígena que até então faziam parte do PPTAL. A elaboração do seminário e mais
o aprendizado do ZOPP aparecem como pré-condição para que o projeto ambiental seja
definido (Ofício FUNAI/CGPE/003/93, de 09/02/93 e Ofício CGPE/005/93 de 17/02/93).
Este projeto teria sido orçado em US$ 8,7 mil.

552
Melissa de Oliveira, funcionária da ABC em situação de contrato PNUD aponta estas questões.
em entrevista em 16/07/2002.
553
Conforme depoimentos de funcionários da ABC que participavam de reuniões de projetos do
PPG-7, inclusive do PPTAL, é muito comum nos acordos de cooperação técnica haver concordância verbal
quanto a procedimentos a serem adotados, sem a concretização formal em documentos escritos.

357
Interessante ressaltar que até então o canal de comunicação com a ABC, e
eventualmente com a GTZ, se dava por intermédio da DAF. Este documento de fevereiro
de 1993 já nos revela a existência de uma nova coordenação, a CGPE. Formalmente, a
CGPE foi instituída por meio da Portaria 542, de 21/12/1993, como órgão de assistência
direta e imediata ao Presidente da República. Na prática, no entanto, vimos que em
fevereiro de 1993 já se assinavam documentos com esta nomenclatura. De acordo com o
depoimento de um técnico do PPTAL,554 a CGPE tinha a responsabilidade de
acompanhamento de projetos em terras indígenas que resultavam de convênios entre
Funai e empresas do setor privado, bem como de bancos multilaterais. Suas atribuições,
no entanto, são vagas:

À Coordenação Geral de Projetos Especiais compete coordenar e controlar a


execução de projetos de caráter extraordinário e circunstancial, em áreas
indígenas específicas, que passam à responsabilidade da Administração
555
Central.

Os recursos repassados por empresas ou bancos para administrações regionais ou


departamentos da Funai, alguns bastante altos, tornaram-se um “fundo especial” que a
Presidência dispõe diante de uma situação orçamentária constantemente precária. Como
argumenta uma antropóloga que atuara em um desses convênios com a Funai: “A
Coordenação de Projetos Especiais é um estranho apêndice, é uma caixa em que o
Presidente mexe”.
Em menos de um ano no cargo de coordenadora geral de projetos especiais, Maria
Auxiliadora Leão foi substituída por Artur Nobre Mendes, que vinha da DAF. Em
novembro de 1993, em Ofício 072/93, Artur assinou com o duplo vínculo de coordenador
geral de projetos especiais e secretário técnico do PPTAL. Este foi o primeiro documento
que localizei que aponta para a existência formal de um projeto com cargos específicos
para a sua execução pelo órgão de governo. A CGPE viria a ser a coordenação

554
Slowacki de Assis, atualmente diretor de Administração da Funai, era na época gerente técnico de
projetos do PPTAL. Segundo ele, esta função não existe formalmente na estrutura do PPTAL, mas esta
teria sido a sua.
555
Portaria 542/93. In: Magalhães, E.D., opus cit., p.116.

358
responsável por gerenciar o PPTAL, até que fosse criada a sua secretaria técnica.556 Por
um longo período, na trajetória inicial do projeto, as relações entre DAF e CGPE foram
ainda muito constantes. Era uma fórmula eficiente, uma forma rápida e dinâmica de se
conhecerem os pontos críticos e as qualidades de um grupo da administração pública, um
aprendizado sobre o grupo, os problemas e a possibilidade de se proporem saídas.
A entrada da GTZ nesse momento de negociação não apresenta claramente a
correlação direta com mecanismos de controle e gestão de recursos do KfW, como
veremos mais à frente, ao se confirmar ser esta uma de suas atividades nos projetos do
PPG-7 – condição esta da cooperação financeira – o que marcaria definitivamente as
características do projeto. O texto do documento delibera taxativamente no item 17 da
página 5 como uma das “Providências”: “A FUNAI fará contatos com a GTZ (órgão de
cooperação técnica do governo alemão) para estudar a viabilidade de cooperação técnica
em áreas específicas do projeto”.557 Parecia, no entanto, ser este mais um campo aberto
para a atuação conjunta de organismos do governo alemão, mas não se poderia afirmar
haver interesse em estabelecer sua função de reguladora dos recursos.
A participação dos representantes do banco KfW na reunião de agosto de 1992
estabeleceu suas condições de apoio, condicionando as determinações do Banco Mundial
à análise e à aprovação das “autoridades do governo da República Federativa da
Alemanha”, conforme as normas de cooperação financeira. Apesar de o Banco Mundial
ser a instituição de coordenação do PPG-7 e estabelecer para cada um dos projetos um
task manager, no caso do PPTAL, Judith Lisansky, na verdade as decisões estariam
submetidas ao no objections do BIRD e do governo alemão.

556
Até o momento, não tenho documentos que claramente estabeleçam a data de criação da SETEC-
PPTAL. No entanto, em setembro de 1995, o Ofício da Funai para a ABC (Ofício 070/CIRC/CGPE/95), de
05/09/95, foi emitido pela Coordenação Geral de Projetos Especiais. Em novembro de 1993, no entanto,
registramos que Artur Nobre Mendes acumula duas funções de coordenador geral de projetos especiais e de
secretário técnico do PPTAL, vindo da Coordenação de Identificação e assumindo eventualmente o cargo
de diretor substituto da DAF (janeiro de 1993). Registramos sua rápida ascensão política na administração
da Funai nesse período imediatamente posterior à ECO-92.
557
Voltaremos a este ponto por ocasião da análise do projeto em implementação, quando veremos
que a relação formalizada de gestão financeira dos recursos alemães do KfW pela GTZ vai se estabelecer
posteriormente, em 1995, quando da assinatura do acordo de cooperação financeira, aí sim como condição
imposta pelo banco de desenvolvimento para participar do projeto.

359
A demarcação piloto

Após a solicitação da Funai para o apoio em seminários, em junho de 1993


notamos outra solicitação feita à GTZ por intermédio da ABC. Neste caso, trata-se de um
projeto de demarcação “piloto” que seria realizado na terra indígena Waiãpi, que
anteciparia experiências do subprojeto de identificação e demarcação das terras
indígenas.
Como disse acima, a GTZ entrou nas atividades da Funai como organizadora de
seminários para planejamento e elaboração de projetos, nos quais se aplicava o tão
conhecido método ZOPP. Sua participação, no entanto, estaria apenas começando e não
se restringiria apenas à organização de seminários. Estes eventos marcariam uma fase
inicial, a de reconhecimento de um campo e de seus significados, permitindo em uma
etapa posterior a execução efetivamente do projeto de demarcação de terras indígenas na
Amazônia. Para tanto, contaram com a experiência prática de campo de uma instituição
não-governamental, o que garantiria uma aproximação desvinculada de estruturas
pesadas e burocráticas do Estado. Esta demarcação teria um caráter “experimental”,
caracterizando uma demarcação-piloto, a ser feita na Terra Indígena Waiãpi, no Amapá,
onde o CTI tinha experiência desde os anos 70.
Muitos projetos em terras indígenas, que resultaram de convênios entre Funai e
empresas do setor privado, foram estabelecidos mesmo antes da criação de uma
coordenação de projetos especiais, como os com a Eletronorte (Waimiri-Atroari), com a
Itaipu (PMACI, Prodeagro e Planafloro), com SIVAM e Furnas (Avá-Canoeiro) e com a
GTZ, alguns no âmbito do Departamento de Meio Ambiente e Patrimônio Indígena -
DEPIMA (atual CGPIMA).
Apesar destes casos, isso não era considerado um procedimento usual, ou próprio
da administração pública, e recebia muitas críticas dentro da Funai, onde a pretensão do
monopólio das ações indigenistas se tornava a cada dia mais despida de qualquer
possibilidade concreta. Assim, a demarcação Waiãpi exigia explicações não somente no
que concerne às formas de relação entre ONGs e Funai, mas também quanto à busca de
recursos internacionais alemães, sem experiência prévia nesta área do indigenismo.

360
Para tanto, o então presidente da Funai, Cláudio Romero, enviou ofício à ABC
(Ofício 184/93 de 14/06/93), no qual apresentou várias explicações. Primeiramente
quanto aos recursos internacionais:

A necessidade de implementarmos as demarcações das áreas indígenas para


cumprirmos o prazo constitucional e sobretudo o fato de várias dessas áreas
encontrarem-se aptas à demarcação física [...] levaram a FUNAI a procurar o
apoio do governo alemão no sentido de acelerar o processo de demarcação,
antecipando, a título de experiência em caráter piloto, ações do subprojeto para
identificação e demarcação das terras indígenas.

Em outra passagem do texto, fica claro que o baixo orçamento para demarcação
seria o principal motivo de recorrer a fontes de financiamento alternativas: “No momento,
o único impedimento à demarcação dessa área é a inexistência de recursos orçamentários
neste órgão. [...] Propõe-se a utilização de recursos destinados à preparação do PPG-7”.
Esta situação de dificuldades para captação de recursos para realizar as
demarcações foram relatadas, em entrevista, por Isa Pacheco, referindo-se neste caso à
demarcação- piloto do PPTAL da terra Waiãpi:

Eu era diretora de terras. Nós estávamos passando por uma miséria franciscana.
Mas sem recursos não ficaríamos. Corremos atrás de recursos da embaixada [da
Alemanha] que repassava para ONGs, e as ONGs faziam os serviços para a
558
FUNAI.

Neste mesmo documento de Cláudio Romero, vimos que a relação entre certos
setores da FUNAI-ONGs-GTZ não era absolutamente neutra. Certos vínculos pessoais ou
mesmo institucionais precedentes entre organizações alemãs e ONGs, por exemplo,
puderam marcar determinadas escolhas em processos administrativos, particularmente
quando diante de novas situações.559

A área indígena Waiãpi, no estado do Amapá, foi escolhida para esta experiência
piloto por encontrar-se pronta para ser demarcada desde 1991, e também por
causa de expectativas dos índios quando da visita de representantes do Banco
Mundial e do KfW, em agosto de 1992, na Missão de Pré-Avaliação [...]
Gostaríamos ainda de explicar que a ausência de mecanismos para internalizar
recursos em fase anterior à aprovação final do projeto-piloto e a urgência da

558
Entrevista concedida em 13 de novembro de 2003, às 15h, no MMA.
559
Cláudio Romero.

361
demarcação nos levam a propor a realização desta demarcação com apoio de uma
organização não-governamental. A FUNAI vem desde 1992 desenvolvendo
trabalhos conjuntos com ONGs desse campo através de convênios específicos em
que o órgão acompanha e fiscaliza os trabalhos demarcatórios.

Dominique Gallois,560 antropóloga do CTI que atuava na área Waiãpi e que


coordenou os trabalhos da demarcação, afirmou em relatório que:

Diante dos entraves para obter apoio financeiro no Brasil, os líderes Kumai e
Waiwai seguiram para Nova York e Washington, em maio de 1993, apresentando
o pleito Waiãpi a organismos internacionais. Após esta viagem, o governo da
República Federal da Alemanha manifestou interesse no projeto. Com base em
acordos de cooperação técnica estabelecidos entre os dois países, a FUNAI
apresentou o pedido de demarcação física da área à Agência Brasileira de
Cooperação que o acolheu em agosto de 1993. Por intermédio do KfW, a
demarcação Waiãpi é encaminhada à Sociedade Alemã de Cooperação Técnica
(GTZ), em Brasília, para avaliação. Apesar de se tratar da primeira experiência
561
da GTZ com índios no país, o projeto foi aceito pelos peritos alemães.

O trecho do relatório da demarcação Waiãpi revela uma outra dimensão da


articulação feita para alcançar os seus objetivos: a dimensão da organização indigenista e
das lideranças indígenas, que diretamente fizeram contatos internacionais para captar
recursos sem a mediação do Estado brasileiro. Parece distante, no entanto, a correlação
entre as viagens a Nova York e Washington e a resposta positiva da Alemanha
interessada em apoiar a demarcação, porque as negociações já estavam em andamento
entre Funai, GTZ e ABC, estando previsto o piloto de demarcação. A viagem, no entanto,
pode ter sido um recurso para dar maior visibilidade e destaque ao projeto e agilizar o
processo mais amplo em que atuava a pesada burocracia do BIRD e que redundaria na
efetiva implementação do PPTAL.
Assim, a articulação entre ONGs e governo, entre agentes e agências
governamentais e não-governamentais é difícil de ser assumida ou reconhecida por ambas
as partes, o que justifica um quase silêncio a respeito desse período dos convênios. No
entanto, vale lembrar que, no que concerne ao PPTAL e aos projetos que naquele

560
Dominique Gallois é doutora em antropologia social pela Universidade de São Paulo, onde
leciona desde 1985. Hoje é uma das pessoas à frente da IEPE.
561
CTI. Projeto Demarcação Waiãpi. Resumo do Relatório Final, agosto de 1996, p.5.

362
momento eram pensados como partes dele constitutivas – refiro-me aos pilotos ambiental
e de saúde, que posteriormente foram abandonados, e também ao piloto da demarcação,
que foi o Waiãpi – formou-se um conjunto de projetos cujos recursos, fossem do RFT ou
de acordos bilaterais, eram todos “a fundo perdido”, ou seja, recursos de doações. O
Convênio nº 06/94 foi assinado em 25 de julho de 1994 e publicado no Diário Oficial em
1 de agosto de 1994.
A demarcação Waiãpi foi a primeira situação em que a GTZ esteve envolvida em
uma demarcação de terra indígena.

Apoio à SETEC

A partir de maio de 1994, o projeto entrou na fase de negociação, quando foi


assinado o acordo de cooperação financeira. Os vínculos com a GTZ vão se tornar cada
vez mais estáveis e continuados, com a presença física de um funcionário e com a
montagem de um escritório nas instalações da Funai.
O presidente da Funai naquele momento, Dinarte Madeiro, indicou em documento
encaminhado à ABC que seria “fundamental a cooperação técnica da Sociedade Alemã
de Cooperação Técnica, GTZ, oferecida pelo governo da Alemanha com os objetivos de
apoiar a secretaria técnica e apoiar experimentos de manejo sustentado de recursos
naturais”.562 Deveria a agência nacional declarar a necessidade da atuação da agência de
cooperação para o desenvolvimento, por meio da transferência de peritos e de
conhecimentos, para que ficasse caracterizada a condição de cooperação e não de
intervenção. Por isso, o que chamei anteriormente de “intervenção consentida”. No
mesmo documento, declara que o volume de recursos financeiros era, até aquele
momento, orçado em 30 milhões de marcos.
Em função do elevado volume de recursos financeiros disponibilizado a título de
doação ao projeto PPTAL pelo KfW, foi feito em abril de 1995 um acordo entre KfW e
governo brasileiro, no qual a Funai aparece como “beneficiária”, através do MMA, de 30
milhões de marcos alemães não-reembolsáveis. Com base neste acordo de cooperação

562
Ofício 256/94, de 12 de maio de 1994, de Dinarte Madeiro, presidente da Funai, a Sergio Arruda,
diretor da ABC.

363
financeira é possível afirmar que a exigência de participação da cooperação técnica se
impôs como condição à cooperação financeira.
Foi feito um acordo em separado de cooperação financeira oficial entre Alemanha
e Brasil, de 07/04/1995, complementar ao contrato de contribuição financeira de 30
milhões de marcos alemães, da mesma data. Neste acordo em separado, há uma série de
imposições – condicionalidades – vinculadas aos procedimentos do projeto, como a
obrigatoriedade de a Funai submeter planejamentos operacionais anuais (POA) ao
KfW.563 Ali estão colocadas as atribuições da GTZ de assessoramento na preparação e no
controle das atividades previstas no projeto: elaboração dos POAs e de um sistema de
monitoramento e avaliação; identificação das necessidades de treinamento e capacitação
e apoio à realização das ações correspondentes; implementação de um projeto-piloto
ambiental e serviços de assessoramento específico visando aos regulamentos da
cooperação financeira oficial no que diz respeito, entre outros, às licitações, à adjudicação
e à fiscalização da execução. São exigências referentes ao conteúdo do projeto, ou seja, à
cooperação técnica, o que não deveria estar em um contrato de cooperação financeira. No
item 3 (execução do projeto) consta:

Todos os estudos a serem realizados no âmbito do projeto serão elaborados em


estreita coordenação com o KfW, sendo os respectivos detalhes definidos em cada
caso. {E ainda:] “dos POAs constarão, entre outros aspectos, as seguintes
informações: lista de prioridades de terras, lista de terras com situações conflitantes
não solucionadas com Unidades de Conservação e datas referentes a eventos-chave
564
do processo de regularização.

Neste mesmo item referente à execução do projeto, vimos que a cooperação


técnica é uma atividade que aparece vinculada, como condicionalidade, ao controle dos
recursos provenientes da cooperação financeira:

A entidade executora e o KfW encarregarão a cooperação técnica alemã das


funções de assessoramento externo (condição prévia ao desembolso, ver item
7.2.c do contrato de contribuição financeira) que abrangem: serviços de
assessoramento à unidade de coordenação da entidade executora [...] e serviços
de assessoramento específico visando aos regulamentos da cooperação financeira

563
Acordo entre KfW e governo brasileiro, de 7 de abril de 1995.
564
Acordo em Separado entre KfW, FUNAI e MMA. Cooperação Financeira Oficial
Alemanha/Brasil, Contribuição Financeira nº 94 65 774 de DM 30 milhões, de 07/04/1995.

364
oficial no que diz respeito, entre outros, a licitações, adjudicação e fiscalização da
565
execução.

De acordo com publicações que definem as “normas da cooperação alemã”, e


conforme depoimentos de funcionários da GTZ e da ABC, não há nada que vincule
obrigatoriamente os projetos que o KfW financia à atuação conjunta da GTZ como uma
espécie de supervisora no que concerne às despesas e aos usos dos recursos do governo
alemão.566 Isto é procedente no caso do PPG-7, que é um programa que trabalha
integralmente com recursos de doação, também chamados de recursos “a fundo perdido”.
Não vale, no entanto, para todos os projetos como uma regra ou norma da cooperação
alemã, conforme argumenta a coordenadora da área de cooperação bilateral alemã
(CTRB) da ABC:567

A grande diferença em relação ao KfW é que ele coloca dinheiro no orçamento


da União, no caso, na Funai. Então, é o coordenador brasileiro que ordena as
despesas desse dinheiro e a Carola, o perito, tem que acompanhar como está
sendo feito esse desembolso e a prestação de contas desse recurso do KfW.
Então, ela tem duas funções. Esse é o único caso; o PPG-7 é o único que tem
isso. Normalmente, a cooperação financeira é totalmente separada, é só um
projeto com a SEAIN, é só dinheiro; o lado brasileiro coordena tudo, só obedece
às regras de prestação de contas, tem auditoria do próprio governo brasileiro, tem
auditoria externa. Pode ter a qualquer momento uma auditoria independente, mas
o PPG-7 é o único neste caso.

Artur Mendes argumenta que esta dupla função da GTZ, de ser tanto uma agência
de atribuições “técnicas” e ter também funções sobre os recursos financeiros, causa
muitos problemas e resistências no trato com as equipes de execução dos projetos. Ele
relata a experiência da Funai:568

565
Acordo em separado de cooperação financeira oficial Alemanha/Brasil, de 07/04/1995, p.10, item
3.2.
566
Esta idéia não consta do Acordo Básico de Cooperação Técnica entre Brasil e República Federal
da Alemanha, nem também no Compêndio do vocabulário da GTZ, que apresenta normas, conceitos e
diretrizes da CT.
567
Elke Constanti, em entrevista.
568
Em entrevista concedida na SETEC-PPTAL-FUNAI, em julho de 2002.

365
Até hoje há resistência. E com o agravante de, no caso da cooperação alemã, a
cooperação técnica ter uma dupla função: ela é tanto uma cooperação técnica,
que disponibiliza técnicos para a Funai, viabiliza encontros, discussões, cursos de
treinamento, todo esse papel típico que é específico da cooperação técnica, como
também é o representante do KfW dentro do projeto, aprova prestações de
contas, aprova planos operacionais, termos de referência, tudo em nome da
cooperação financeira. Então, ela tem esse duplo papel: sendo que um, de
cooperação técnica, é simpático à instituição, e o outro é antipático. É meio
esquizofrênica esta função.

A vinda dos peritos

A definição de que a cooperação técnica tinha sido solicitada e acordada entre as


partes, a partir de abril de 94, resultou nos acertos diplomáticos para a vinda de um
funcionário alemão para acompanhar a implantação do PPTAL, os quais se iniciaram em
junho do mesmo ano.569 A proposta encaminhada pela Funai incluía um termo de
referência para contratação de perito de curto prazo em que estariam já definidas suas
atribuições:570

Assessorar a SETEC-PPTAL na elaboração e implementação do modelo e


sistemática da gestão do projeto, na elaboração do Plano Operativo Anual (POA) e de
um sistema de monitoramento (monitoria do projeto) e de difusão interna do projeto,
além de assessorar na implantação de um projeto piloto ambiental; treinamento e
capacitação gerencial da FUNAI; assistência à FUNAI para elaboração dos Termos
de Cooperação Técnica de Longo Prazo.

Como já mostrei anteriormente, é usual que peritos de curto prazo sejam


deslocados para avaliar ou dar início a projetos da GTZ. No contrato – termo de
referência – estava definido o prazo de um ano para que o funcionário realizasse um
levantamento preliminar das condições institucionais, e outras, que fossem encontradas
para a execução do projeto, o que faria por meio de relatórios e avaliações para a GTZ.

569
Ofício 1486/ABC/CTRB, de 21 de junho de 1994, de Sergio Arruda, diretor da ABC, a Garry
Soares de Lima, diretor do DETEC/MMA.
570
Termo de Referência (TR) é uma peça administrativa que estabelece critérios e bases normativas
para contratação de pessoal ou de serviços, muito freqüentemente associada a serviços de consultorias ou
prestação de serviços por meio de licitação para órgãos de governo.

366
A GTZ definiu que a primeira fase do projeto seria financiada através de recursos
provenientes do fundo para estudos e peritos, chamado “Pool de Peritos”, destinado a
cobrir salários e despesas de moradia de um perito de curto prazo, peritos locais,
treinamento e equipamentos para iniciar a execução de projetos.571
O processo de regulamentação da entrada de uma técnica internacional de agência
de cooperação no país não é simples, mas a intermediação da ABC é bastante útil.
Viabiliza desde a documentação de identidade até a renovação de vistos. Fica arquivado
na ABC o currículo do técnico, bem como uma ficha de identificação como “funcionário
estrangeiro” no país. Os técinico possuem passaporte oficial (governamental) diplomático
na categoria de “organização internacional”, numa definição do MRE de “perito técnico”.
As atribuições de Knoke enquanto perito de curto prazo foram definidas como
assessoria à Funai na implementação do projeto, na elaboração e na implementação do
piloto ambiental e na elaboração, no treinamento e no aperfeiçoamento de técnicos
parceiros na concepção do projeto ambiental nas terras indígenas.
Em fevereiro de 1994, o governo alemão comunicou ao MRE que o técnico
designado, Ernst August Victor Knoke, um agrônomo alemão de cerca de 40 anos, estaria
chegando em março de 1995. Augo Knoke, como era chamado, tinha já uma experiência
de sete anos em trabalhos com a GTZ, desde 1988.
Alguns antropólogos da Funai afirmaram ter “tirado o alemão porque ele era
muito incompetente, muito fraco”, argumentando terem força para pedir a substituição do
perito. No entanto, isto não condiz com a documentação que indica um período curto da
presença deste perito, demonstrando mais a xenofobia e a construção de uma imagem de
conflito em função da luta pelo monopólio do controle do projeto, ou seja, das ações no
campo indigenista. A vinda da perita de longo prazo coloca-se, então, como parte do
processo da implantação de um projeto pela GTZ, nada tendo a ver com o imaginário
cotidiano de intrigas políticas vigentes.
Em dezembro de 1996, a ABC solicita parecer da Funai sobre currículo da
funcionária que viria ao Brasil como perita de longo prazo, em substituição a Augo
Knoke. Este parecer seria condição imprescindível para a continuidade do processo no

571
Nota Verbal WE 445 SFF/U/75/95, de 31 de janeiro de 1995, da embaixada da República
Federativa da Alemanha ao MRE.

367
âmbito da ABC para a vinda da técnica da cooperação técnica, de fato, uma peça a
posteriori. A decisão sobre a escolha da perita já havia sido feita no processo seletivo da
GTZ na Alemanha, sem participação do governo brasileiro. Como formalidade, a ABC
solicitava à Funai aceite para que o trâmite diplomático se desse sem problemas. A perita
de longo prazo, Carola Kasburg, chegou em março de 1996, ficando até maio de 2004 na
coordenação do projeto pelo lado da GTZ.
Em 7 de fevereiro de 1997, Artur Nobre Mendes, como coordenador do SETEC-
PPTAL, responde à ABC não colocando objeções à vinda daquela técnica.572 Em 9 de
fevereiro chegava ao Brasil Carola Kasburg.573
O período de atuação de Carola Kasburg foi amplamente analisado na tese de
Lima, que enfocou particularmente os conflitos decorrentes desta relação que durou até
2004, quando Carola saiu de sua função na GTZ junto ao projeto, em meio a mais uma
crise devido a dificuldades na relação com a equipe brasileira.
O projeto PPTAL até os dias de hoje está em vigência, sendo que a dinâmica de
funcionamento do projeto já está de certa forma incorporada à dinâmica de sua equipe,
basicamente a mesma, com poucas mudanças. A perita alemã responsável passou a ser a
mesma que acompanha o PDPI, acompanhando o projeto de longe, de Manaus, com
visitas eventuais ao projeto. No entanto, manteve-se ali na sede da Funai a mesma equipe
local de apoio, com mais um assessor alemão, que acompanha o dia-a-dia do projeto. Em
relação às propostas de mudanças na organização e administração da Funai, estas
continuam sendo implementadas, não somente por recomendações da GTZ, mas com
participação ativa de determinados grupos da própria Funai.
Em certa medida, em toda esta terceira parte, buscamos explorar diferentes
instâncias de atuação da GTZ no Brasil, por meio de redes alemãs e suas articulações
com redes brasileiras governamentais e nao-governamentais na administração pública
brasileira. O que este capítulo particularmente buscou ressaltar foram as dinâmicas das
articulações políticas na administração publica, entre grupos, os fatores que garantiram
mudanças e processos em instâncias supostamente racionais – as organizações
burocráticas – para garantir uma determinada idéia de Estado. No entanto, este capítulo

572
Fax 008/PPTAL/97 de 07/02/97 do PPTAL/FUNAI para ABC.
573
Nota Verbal da embaixada da Alemanha para MRE de 26/02/97.

368
nos mostra que as redes e as dinâmicas sociais que elas instituem nos meios da
administração pública são determinantes para mudanças administrativas, sendo
destacadas aqui as justificativas para a cooperação na FUNAI.

369
Considerações Finais: Santo de casa não faz milagre

Renato 17/11/07 10:44


Deleted: Alguns antropólogos têm se debruçado
sobre temas como fluxos culturais transnacionais, a
configuração e a dinâmica da cultura e da política no
espaço global, sua relação com a mídia e a
informática, as comunidades móveis e até mesmo
transnacionalizadas, como os peritos técnicos e
outros profissionais das agências de cooperação
internacional, entre outras questões. Entre eles, o
Mais do que estabelecer um desfecho sintético para a complexidade das questões trabalho de Ulf Hannerz como importante referência
aqui.
sobre cooperação técnica alemã abordadas nesta tese, pretende-se aqui, nesta parte final, Okongwu e Mencher argumentam que o terreno em
que as políticas sociais se fazem está em rápida
transformação com o processo de globalização,574 e
articular alguns pontos que foram analisados ao longo da tese, de forma a contribuir para as práticas governamentais que são definidas como
cooperação internacional inserem-se no quadro mais
a continuidade do debate sobre relações de poder nas práticas de cooperação técnica amplo das políticas internacionais da “era do
desenvolvimento”.575
internacional. Esperamos que sejam realizadas outras experiências de etnografias em Alguns antropólogos que analisam o processo de
desenvolvimento e as intervenções em escala global
contextos de cooperação técnica internacional, bem como de suas organizações, uma como uma indústria, uma máquina antipolítica.576
Lucy Mair afirma que as atividades de cooperação
para o desenvolvimento em escala global no mundo
forma de revelarmos não só os mecanismos de poder implícitos nas práticas destas pós-colonial entraram, de certa maneira, na moda,
envolvendo todas as nações ricas; a ajuda aos países
instituições mas, sobretudo, entre determinados grupos nas instituições da administração em desenvolvimento aumenta as exportações dos
países ricos, e os projetos técnicos dão emprego a
pública brasileira, no sentido de promover políticas de gestão de desigualdades. quem os contrata. O desenvolvimento em si tornou-
se uma indústria do crescimento.577

O desafio deste trabalho foi o de buscar descortinar um conjunto de práticas e Renato 17/11/07 10:44
Deleted: All the rich nations now take part in
conhecimentos administrativos e de planejamento adotado pela GTZ por meio de arranjos what can almost be considered a fashionable
activity (…) This is not a display of altruism in
a global scale. Aid to LDC – less developed
com órgãos da administração pública brasileira. A questão central que se procurou countries – increases the exports of the rich
countries and specific technical projects give
responder foi o porquê de o governo brasileiro servir-se de recursos e de profissionais employment to contractors: development itself,
one might say, has become a growth
estrangeiros para implementar políticas na administração pública, já que muitas vezes ele industry.578

dispõe de recursos e de profissionais, sejam eles do governo ou de fora dele – uma elite
capacitada técnica e politicamente para desenvolver projetos e implementar políticas.
Esta questão torna-se ainda mais inquietante se considerarmos a área do indigenismo no
Brasil, que tem uma longa tradição de conhecimentos desenvolvidos pela atuação do
Estado e, mais recentemente, por grupos não-governamentais, além de ampla reflexão
crítica elaborada pelos meios acadêmicos, enquanto é praticamente inexistente sua
sistematização entre as organizações alemãs.
São muitas as resistências no Brasil em relação às atividades de agências de
cooperação internacional em políticas governamentais. Um dos propósitos desta tese foi

370
desfazer certas predefinições na medida em que buscou mostrar, nos aspectos formais, a
criação de um espaço na administração pública que viabilizou desde pesquisas científicas,
como a demarcação de terras indígenas, até políticas de proteção florestal. A cooperação
técnica, em muitos casos, como na demarcação de terras indígenas no Brasil, é uma
opção de determinados setores ou grupos da administração pública que resolvem adotá-la
como estratégia política, e não como resultado de simples coerção ou imposição externa,
o que a diferencia, neste sentido, do colonialismo. São decisões de determinados grupos
que avaliam as dificuldades de se implementarem políticas através das vias tradicionais,
como articulações e negociações em fóruns fechados, em reuniões que não são públicas e
nem transparentes, envolvendo setores do governo diretamente ligados ao tema e também
a diplomacia. Para aqueles que, no governo local, são excluídos desses arranjos e
negociações – processo que faz parte das próprias dinâmicas da administração pública –
os projetos de cooperação técnica são apontados, em tom acusatório, como resultado de
“intervenção estrangeira” e dominação neocolonial.
Não menosprezando os aspectos de poder envolvidos neste tipo de relação, a
análise do PPTAL, no entanto, apontou as articulações entre grupos do próprio governo
brasileiro como alternativa ao indigenismo tradicional do Estado, adotado historicamente
pela Funai. Como a tentativa de mudanças dessas estruturas de funcionamento
administrativo e político é normalmente malsucedida, adota-se a opção da articulação
com um agente externo, que tem legitimidade para agir sem comprometimentos com
grupos tradicionais locais, implementando assim um novo regime de forças.
A pesquisa priorizou um enfoque histórico que visava contextualizar processos
característicos das relações de cooperação técnica internacional, tão amplamente
difundida entre órgãos da administração pública de Estados Nacionais, como vemos
atualmente. Para isso, recorremos não somente a uma abordagem mais geral de política
internacional mas, sobretudo, à formação das estruturas específicas da Alemanha e do
Brasil, que acabaram contribuindo para a intensificação dos vínculos entre os governos
destes dois países, em diferentes momentos da história, a partir da assinatura do Acordo
Básico de Cooperação Técnica de 1963.

Busquei analisar na presente tese as relações de poder nas práticas de intervenção


para administração de territórios estrangeiros, usualmente chamadas de “cooperação para

371
o desenvolvimento”. Tais práticas envolveram não só países mais avançados e com maior
potencial econômico, mas também aqueles mais carentes de recursos, pólos opostos e
complementares de uma relação assimétrica de poder que se estabeleceu historicamente
no imediato pós-guerra, sendo parte, de fato, das condições da guerra, visando garantir o
estabelecimento da transição para um contexto internacional de paz.
A cooperação foi percebida, naquele momento, como forma de viabilizar as
condições para um ordenamento pacífico e de promoção do desenvolvimento econômico
no plano internacional, processo este particularmente dirigido pelas potências vencedoras
da guerra. A cooperação envolveu, e ainda envolve práticas e processos diplomáticos em
seus mecanismos de operação. Criaram-se, assim, instituições e normas jurídicas cada
vez mais complexas e diferenciadas que viabilizam fluxos e contrafluxos de diversas
naturezas entre os Estados em contextos de paz, e não de guerra, como acordos, tratados,
programas e projetos.
Pretendi explorar um dos aspectos relacionados ao exercício do poder de Estados
Nacionais em expansão. Não exatamente de relações coloniais, porque resultam de
arranjos, com consentimento prévio de grupos locais, formalizados em acordos. No
entanto, por serem práticas que projetam determinados poderes estatais em escala
mundial, a cooperação técnica internacional não deixa de ser parte de estratégias
expansionistas dos Estados Nacionais e, com ressalvas ao aspecto ideológico do termo,
imperialistas.
As relações de cooperação, dirigidas ainda hoje por Estados econômica e
politicamente fortes, acirram entre eles diferentes maneiras de competição, como ao
estabelecerem disputas por espaços de dominação, de controle ou de conhecimento
através de formas de intervenção consentidas, porque estabelecidas em acordos, tratados,
programas e projetos entre os Estados “poderosos” e os Estados do chamado “Terceiro
Mundo”. Fica acertada assim uma partilha que define vínculos e dependências em
condições diferenciadas e com duração restrita. Este é um primeiro aspecto que a tese
busca ressaltar como uma estratégia de análise que foge de um dualismo ora deslocado
para o discurso de denúncia, ora para a filiação aos princípios veiculados pelos
mecanismos de autopropaganda das agências.

372
Um segundo aspecto que se pretendeu destacar na tese foi a observação das
práticas reais adotadas pela GTZ na sua atuação no Brasil. A proposta de recorrer a este
conjunto de situações que observamos refletiu o interesse em estabelecer os princípios de
produção de uma teoria da prática ou, como argumenta Bourdieu, ir do opus operatum ao
modus operandi das práticas de cooperação técnica, o que usualmente se define pela
expressão “transmissão de conhecimentos” que se dá em três dimensões: no escritório, a
partir das normas institucionais alemãs que visam regularizar seus procedimentos na
implementação das práticas da cooperação; na análise de festas, comemorações,
encontros e seminários promovidos enquanto rituais da cooperação; nas situações
próprias para integrar e articular um projeto, em que ficam explícitos os manejos de
construção das relações para viabilizar sua execução.579
O enfoque sobre cooperação visa à investigação das relações de poder no plano
internacional, mas a partir de uma abordagem distinta, em alguns aspectos que
ressaltaremos aqui, das relações internacionais. Para isso, recorremos a algumas
contribuições de Michel Foucault580 sobre poder. Para ele, poder não se dá, não se troca,
nem se retoma, mas se exerce e só existe em ato. Neste sentido, suas perguntas – o que é
esse exercício?; em que consiste?; qual a sua mecânica? – foram eixos fundamentais aos
quais me ative para investigar a “microfísica do poder” nas práticas de uma relação de
cooperação específica, a saber, a cooperação técnica, envolvendo políticas de meio
ambiente entre Brasil e Alemanha nos anos 90, cuja origem se deve ao acordo básico
assinado entre os dois países em 1963.
Outra argumentação de Foucault também parece conduzir de forma bastante
adequada as reflexões sobre poder nas relações de cooperação, quando afirma que poder,
enquanto relação de força, é a guerra continuada por outros meios. Para ele, as relações
de poder têm como ponto de ancoragem certa relação de força em um momento
historicamente necessário na guerra e pela guerra, o que no caso das estruturas e dos
sistemas de cooperação internacional estabelecidos é absolutamente apropriado.581 Este é
um terceiro aspecto que se desdobra ao adotarmos uma abordagem histórica da

579
Bourdieu, P. “Esboço de uma Teoria da Prática”, opus cit., p.60.
580
Foucault, Michel. Em defesa da sociedade, opus cit., p.21.
581
Foucault, Michel, ibidem, p. 2.

373
cooperação técnica internacional. Ainda que houvesse já antes da Segunda Guerra
Mundial situações esporádicas de “ajuda ou assistência internacional”, como aquelas
adotadas por igrejas ou outras instituições religiosas, foi no decorrer da guerra que se
definiram, enquanto parte de processos de formação dos Estados Nacionais, ações
continuadas de consolidação de sistemas de cooperação internacional, com instituições,
normas e procedimentos formulados para serem implementados como forma de governo
e administração no estrangeiro. Para Foucault, sempre se escreveria a história da mesma
guerra, mesmo quando se escrevesse a história da paz e de suas instituições.
Assim, segundo Foucault, o poder não só reprime, mas é também uma força
criativa ou uma rede produtiva que atravessa o corpo social e induz ao prazer, constrói
saberes, produz discursos, exclui e estabelece desigualdades, sendo fundamental, na sua
concepção, orientar o foco de investigação para as formas de sujeição e as conexões e
utilizações dos sistemas locais dessa sujeição no âmbito dos dispositivos de saber. Neste
sentido, é possível afirmar que os mecanismos de implementação das práticas da
cooperação, enquanto mecanismos de poder associados ao quadro do pós-guerra,
constituem um dos modos de expressão dos poderes de Estados e não são neutros nem
despolitizados, mas produzem saberes, discursos, disciplinam comportamentos e
estabelecem desigualdades. São, desta forma, tecnologias políticas.
Pretendemos destacar que, diferente das relações coloniais onde há coerção e uso
de força física, no caso das relações de cooperação faz-se uso de outros mecanismos de
poder que não exatamente a força. Assim, a tese argumenta que cooperação técnica
representa um conjunto de “tecnologias políticas”, no sentido que Foucault atribui ao
termo, historicamente desenvolvido no processo de formação dos Estados Nacionais na
segunda metade do século XX, o que é particularmente constatado no caso da atuação da
GTZ, mas também observado em outras agências e organismos alemães. As práticas de
planejamento, monitoria, avaliações, cursos e treinamentos que são adotadas no
desenvolvimento de projetos, bem como a apresentação dos seus resultados em eventos-
rituais públicos, caracterizam-se como “tecnologias políticas”, porque são formas de
disciplinamento administrativo e social (comportamental) acionados por mecanismos
pedagógicos cotidianos pouco visíveis como mecanismos de poder.

374
A partir das referências teóricas mencionadas, a pesquisa orientou-se na direção
do desvendamento de mecanismos e dispositivos de poder envolvidos em práticas
supostamente desprovidas dele, mas presentes em projetos de cooperação técnica entre
dois Estados Nacionais. Foi levada em conta a discrição como marca da atuação alemã no
Brasil, o que a ela garantiu certa invisibilidade, certamente adequada ao pleno
desenvolvimento de suas atividades disciplinadoras.
Os mecanismos implícitos nas práticas supostamente técnicas (e não políticas) da
GTZ, além do que a agência afirma executar – disseminar um “modo de fazer” (uma
metodologia) por meio da transferência de conhecimentos – propaga também valores e
símbolos relacionados à cultura alemã, promovendo uma conversão que se dá em uma
dimensão bem maior do que simplesmente aquela restrita a um projeto.

A transferência de tecnologia, de know-how, no nosso caso é muito importante,


inclusive o intercâmbio de pessoal. Eu fiz um cálculo recente e cheguei a 2000
brasileiros que foram treinados na Alemanha no tempo da cooperação.
Profissionais de qualquer tipo, não contando os acadêmicos. É muita gente e que
depois apareceu em funções importantes. Você já tem um problema de convencer
alguém teoricamente. Se pode mostrar isso num sistema já funcionando... Então,
minha proposta é sempre a de promover o intercâmbio das pessoas, de levar e
dizer, “olha”, como no caso agora de ordenamento territorial e meio ambiente.
Nós convidamos, vocês passam em todas as nossas instituições e vocês
conhecem, para ver in situ como funciona; isso há 30 anos, de uma forma
bastante perfeccionista. Porque é uma coisa que eu falo, falo, falo e uma pessoa
não pode imaginar se não vir. Isso é um valor muito grande, o de possibilitar às
pessoas que deveriam trabalhar no assunto ver que isso realmente funciona.
Muitas coisas aqui da cooperação bilateral do nosso perfeccionismo, da nossa
insistência teutônica, foram abrasileiradas. Aí, vão os peritos; aí vamos nós, mas
o fio vermelho, o input, ficou. E isso é importante, porque muitos peritos nossos
estavam correndo contra o tempo, faltavam recursos do lado brasileiro, faltava
gente, flutuação de gente, eles quase ficavam doidos mas, mesmo assim, eles
deixaram o trabalho deles e alguém assumiu. Outros desapareceram e depois
apareceram em algum lugar muito mais interessante, como políticos, em um
posto mais alto, mais influente.582

Os temas que mobilizaram o deslocamento de recursos pelo governo alemão


foram sendo historicamente modificados, acompanhando novas concepções e novas
tendências de investimentos: da ênfase na área rural e na produção alimentar,

582
Rainer Willingshoffer. Entrevista concedida na embaixada da Alemanha em Brasília, em 2003.

375
características do período do imediato pós-guerra, passou-se a investir mais recentemente
em sustentabilidade ambiental, com recursos para projetos em indústrias, mas também
para a conservação de florestas e outros ecossistemas ameaçados. Neste sentido, o Brasil,
como detentor de um poder simbólico em função da reserva florestal que detém em seu
território, a Amazônia, tornou-se palco de projetos e programas internacionais, entre os
quais se destacam os de origem alemã.
Nosso argumento segue no sentido de que as práticas de cooperação entre
organizações não-governamentais alemãs e brasileiras, inclusive de igrejas, foi um dos
caminhos seguidos pela GTZ para atuar em políticas ambientais na Amazônia e,
particularmente, em políticas para povos indígenas no Brasil. É importante se fazer aqui a
ressalva de que não são claras as fronteiras entre o governamental e o não-governamental,
pois, na observação empírica, são inúmeros os fluxos existentes em ambos sentidos na
comunicação entre estes campos. Esta conexão existe em muitos planos, que vão desde o
financiamento pelo governo de instituições não-governamentais, até a formação de
quadros governamentais com profissionais vindos da área não-governamental. Da mesma
forma, quando analisamos que as diretrizes políticas do governo orientam as instituições
não-governamentais, vale lembrar que muitas delas foram formuladas em instâncias
alternativas, ocupadas pelas organizações não-governamentais. O engajamento do
governo da Alemanha em políticas de cooperação para o desenvolvimento foi viabilizado
não somente pela disponibilidade de recursos financeiros efetivada no plano
internacional, mas também por sua tradição cultural de movimentos de solidariedade e de
cooperativismo que tem origem no século XVIII, tradição esta que teve continuidade
através da atuação das ONGs em territórios estrangeiros.
Como vimos, as organizações alemãs – governamentais, eclesiásticas, fundações
políticas – estão no Brasil há muitas décadas. Entre os anos 60 e 80, tanto no Brasil como
em outros países da América Latina, organizações não-governamentais alemãs, sobretudo
aquelas vinculadas às igrejas, atuaram de forma intensa no apoio a movimentos sociais e
políticos contra a ditadura militar. Esse histórico de articulação, principalmente por meio
das Comunidades Eclesiais de Base, as CEBs, marcou as trajetórias de alguns dos
profissionais que fazem parte de uma geração mais recente da GTZ, um grupo que se
define como politicamente de esquerda e com uma formação profissional no campo do

376
desenvolvimento que se deu na atuação em ONGs. Desenvolveram um know-how sobre
as dinâmicas sociais, políticas e econômicas do país e, particularmente, sobre
determinadas áreas, como a região Nordeste. Esse know-how está presente na sede da
agência estrangeira e também entre estrangeiros de outras instituições da Alemanha,
fazendo circular a informação e articulando diferentes grupos locais e estrangeiros de
mesma origem. Dessa maneira, estabelecem vínculos com alguns desses grupos locais,
sobretudo em diálogos com determinadas pessoas – elos importantes de um conjunto de
relações sociais privilegiadas localmente – o que garante espaços de ação política.
Um momento-chave desta história foi a ECO-92, com foco em políticas para a
Amazônia e na articulação com ONGs, como FASE, IBASE e INESC, com as quais, por
exemplo, fizeram convênios e patrocinaram publicações e eventos. Entre elas, a GTZ
desenvolveu projetos no Brasil, desde a sua criação, em áreas rurais, visando ao aumento
de produtividade alimentar, ao desenvolvimento de novas técnicas agrícolas, à
implementação de escolas técnicas. Também promoveu projetos com populações de
baixa renda em centros urbanos.
Mais recentemente, a questão ambiental tornou-se uma prioridade para a política
alemã de cooperação técnica no Brasil, o que é uma opção que contribui para a
construção de uma imagem de liderança alemã em relação à prioridade ecológica
enquanto capital simbólico moral. Neste mesmo eixo de questões de proteção ambiental
de florestas, passaram a estar integradas nas ações da GTZ as populações indígenas no
Brasil. O PPTAL é exemplar por mostrar o processo inicial de construção tanto deste
know-how como das articulações sociais e políticas de profissionais alemães da GTZ no
campo do indigenismo. Sem relações anteriormente estabelecidas neste campo,
utilizaram-se de outras redes, do ambientalismo e dos movimentos sociais da Amazônia
para a entrada no campo.
A intervenção para administração de territórios estrangeiros viabilizou-se
fundamentalmente com a circulação de profissionais “da cooperação para o
desenvolvimento” por canais e redes sociais na Alemanha, assim como pelos espaços
locais de atuação. Tais peritos, embora sejam os elos de transmissão de saberes
administrativos para o “local” – atuando como educadores e tradutores, formadores de
opinião que estabelecem uma mão dupla no processo de formação de conhecimentos –

377
estão submetidos às próprias normas institucionais, ficando presos a processos
burocráticos que exigem muito tempo de dedicação às práticas dos projetos quando
atuam junto aos grupos sociais envolvidos, o que dificulta a sistematização de seus
trabalhos.
Aquilo que os funcionários da GTZ propõem para as equipes dos órgãos da
administração brasileira com os quais trabalham nem sempre conseguem realizar nas
próprias atividades. Estas vão desde a sistematização das práticas cotidianas, até a
concessão de uma maior abertura a intervenções dos grupos locais em procedimentos da
GTZ. Isto reflete, sobretudo, uma lógica administrativa da organização, ou melhor, da
administração pública alemã, e não uma incapacidade inerente aos peritos. O
descompasso entre o dito e o feito tem relação com o controle de informações, as
exigências na elaboração de relatórios, a submissão a estruturas burocráticas com pouca
margem de autonomia, todos estes aspectos criticados quando da análise de órgãos
estrangeiros de administração pública.
A forma de atuação dos alemães em geral, e particularmente da GTZ, é marcada
pelo pragmatismo, pela aplicação direta de conhecimentos, pela sistematização de
informações a partir da prática. O perfil low profile da GTZ, que atua com pouca
propaganda de seus feitos, é delineado pela discrição e pela visibilidade restrita. O
enfoque na trajetória histórica de atuação da GTZ em projetos de cooperação técnica no
Brasil, há mais de quarenta anos consolidando um conjunto de metodologias, de práticas
e de conhecimentos sociais e ambientais enquanto tecnologias de poder – conjunto este
mascarado como “conhecimentos técnicos” – permite-nos ter uma visão mais clara sobre
as diretrizes desta organização e sobre os procedimentos adotados em um país como o
Brasil. Esta visão panorâmica não nos possibilita fazer afirmações gerais sobre uma
conduta-padrão adotada pela GTZ em escala global, mas sim extrair considerações sobre
como atua no Brasil, diante do conjunto de atores e de condições aqui existentes. Este é
um propósito mais do que importante para dimensionarmos as condições políticas e
sociais existentes em espaços de luta de poder. Acreditamos que tais esforços devam ser
empreendidos na direção de outras instituições que trabalham no Brasil por longos
períodos.

378
Diante do universo de questões com as quais me deparei ao longo da pesquisa,
observei que muitos dos pressupostos racionais dos órgãos de administração pública, seja
no caso da Alemanha, seja no do Brasil, afirmados em acordos governamentais, em
normas de procedimentos das organizações e em projetos e programas elaborados de
comum acordo entre os governos, não correspondem à efetiva prática por parte da
administração pública, valendo a máxima: “santo de casa não faz milagre”.

379
BIBLIOGRAFIA
ABELÈS, M. Anthropologie de L’Etat. Paris: Armand, 1990.

ABRAMS, P. “Notes on the difficulty of studying the State”. In: Journal of historical
sociology. Oxford, UK: Blackwel Publishing, 1988. p.58-89.

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Avaliação independente do PPTAL. Brasília:


GTZ/PPTAL, 2001.

ALMEIDA, A.W.B. & OLIVEIRA, J.P. “Levantamento da realidade indígena”. In:


Porantim. Brasília: CIMI, vol. 37, p.8-12, 1982.

ALMEIDA, Fábio Vaz & CAVUSCENS, Silvio. A atuação da sociedade civil organizada
nos subprogramas do PPG-7: uma nova perspectiva com a participação indígena no
PDPI, 2002. mimeo.

ALVAREZ, S. DAGNINO, E., Escobar A. (não se entende; são 2, 3 nomes? Se hou


ver “e”, use &) Cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2000.

ARMBRUSTER, Paul & ARZBACH, Matthias. O setor financeiro cooperativo na


Alemanha. Bonn, San José e São Paulo: DGRV, 2004.

ANDERSON, Anthony et alli. O destino da floresta. Reservas extrativistas e


desenvolvimento sustentável na Amazônia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; Curitiba:
Instituto de Estudos Amazônicos e Ambientais; São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 1994.

ANDERSON, B. Comunidades imaginadas. Reflexiones sobre el origen y la difusion del


nacionalismo. Mexico: Fondo de Cultura, 1993.

APFEL-MARGLIN, F. & MARGLIN, S. Decolonizing knowledge: from development to


dialogue. Oxford: Clarendon Press, 1996.

APPADURAI, Arjun. “Disjuncture and difference in the global cultural economy”. In:
Featherstone, Mike (org.). Global culture. Londres: Sage Publications, 1990. p.295-310.

___________. “Global ethnoscapes. Notes and queries for a transnational anthropology”.


In: Fox, Richard (ed.). Recapturing anthropology working in the present. Santa Fe:
School of American Research Press, 1991. p.191-210.

ASAD, Talal (ed.). Anthropology and the colonial encounter. New York: Humanities
Press, 1973.

380
BAILEY, Michael & BARROS, Henrique. Para compreender e dialogar com
organismos internacionais: um guia sobre o Banco Mundial no Brasil e no mundo.
Recife: OXFAM; Brasília: INESC, 1995.

BALANDIER, G. Antropologia política. Barcelona: Nueva Coleccion Ibérica, Ediciones


Peninsula, 1969.

BANIWA, G. & ASSIS, S. “Participação indígena na preparação e implementação do


PPTAL e PDPI no Brasil”. In: Colóquio-Taller GTZ: Cooperación com Pueblos
Indígenas en America Latina. Boquete, Panamá, 2002.

BARROS, Flavia L. Banco Mundial e as ONGs ambientalistas internacionais: ambiente,


desenvolvimento, governança global e participação da sociedade civil. Tese de
doutorado, Departamento de Sociologia - UnB, Brasília, 2005.

BARTH, Fredrik (ed.). Ethnic groups and boundaries. Londres: G. Allen and Unwin,
1969.

___________. (ed.). O Guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de


Janeiro: Contracapa Livraria, 2000.

BASTOS, Cristiana. Transnational responses to Aids and the global production of


science: a case-study from Rio de Janeiro. New York: University of New York, 1996.

BECK, Ulrich. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social


moderna. São Paulo: Editora Unesp, 1997.

BECKER, Howard. Métodos de pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Ed. Hucitec,
1993.

BECKER, Bertha. ”Os significados da defesa da Amazônia: projeto geopolítico ou


fronteira tecno(eco)lógica para o século XXI?”. In: Oliveira, J. P. (org.) et. al. Projeto
Calha Norte – militares, índios e fronteiras. UFRJ/PETI-MN, 1990. p.99-108.

____________. & MIRANDA, Mariana (orgs.). A geografia política do desenvolvimento


sustentável. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997.

BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Cia das Letras, 1986.

BOURDIEU, P. Razões práticas sobre a Teoria da Ação. Campinas: Papirus Editora,


1996.

____________. Esboço de uma Teoria da Prática. In: Ortiz, R. (org.). Pierre Bourdieu.
Sociologia. São Paulo: Ática, 1983. p.64-86.

____________. Esboço de auto-análise. São Paulo: Cia das Letras, 2005.

381
____________. O poder simbólico. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

_____________. A produção da crença: contribuição para uma cconomia dos bens


simbólicos. São Paulo: Zouk, 2004.

BOLAY, F. Planejamento de projeto orientado por objetivos - Método ZOPP. Guia para
aplicação. Recife: Convênio SUDENE/IICA/GTZ, 1993.

BROSE, Markus (org.). Metodologia participativa. Uma introdução a 29 instrumentos.


SERE/Projeto Doces Matas/AMENCAR. Porto Alegre: Ed. Tomo, 2001.

BROSE, Markus; MÜLLER-PLANTENBERG, Clarita et al. Projektgruppe Ökologie und


Entwicklung (Hrsg./org.): Amazonien - eine indianische Kulturlandschaft. Kassel, 1988.

BUCLET, Benjamin. Le marché internationale de la solidarité: les organizations non


gouvernamentales de l’Amazonie brésilienne. Tese de doutorado. Paris : École des
Hautes Études en Sciences Sociales, 2004.

BURCHELL, G.; GORDON, C. & MILLER, P. The Foucault effect. Studies in


governamentality. Chicago: The University of Chicago Press, 1991.

BURNELL, Peter (ed.). Democracy assistance. International co-operation for


democratization. London, Portland: Frank Cass Publ., 2000.

CALHOUN, Craig. “Imagining solidarity: cosmopolitanism, constitutional patriotism and


the public sphere”. In: Public culture. Durhan: Duke University Press, v.14, n.1, p.147-
171, 2002.

__________. “Introduction: Habermas and the public sphere”. In: ______. (org.).
Habermas and the public sphere. London: MIT Press, 1993.

CARDOSO DE OLIVEIRA, R. Os povos indígenas e seus direitos: a declaração de San


José, Anuário Antropológico; Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, v. 81, p.13-15, 1983.

CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. 4.ed.


Petrópolis: Ed. Vozes, 2003.

CASTELNAU DE L’ÉSTOILE, Charlotte. Les ouvriers dúne vigne stérile: 1580-1620.


Lisboa: Fundação Galouste Gulbenkian, 2000.

CEDI. Povos indígenas no Brasil 1987/90. Centro Ecumênico de Documentação e


Informação. Rio de Janeiro, 1991.

382
CERVO, Amado Luiz. “Socializando o desenvolvimento. Uma história da cooperação
técnica internacional do Brasil”, Revista Brasileira de Política Internacional, São Paulo,
IBRI, v. 37, nº 1, p.37-63, 1994.
CHAMBERS, E. “Applied anthropology in the post Vietnam era: anticipations and
ironies”, Annual Review of Anthropology, v.16, p.309-37, 1987.

CHEATER, A. (ed.). The anthropology of power. Empowerment and disempowerment in


changing strutures. London and New York: Routledge, 1999.

CLIFFORD, James. “Traveling cultures”. In: Routes. Travel and translation in the late
twentieth century. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1997. p.71-119.

CLIFFORD, James & MARCUS, George (eds.). Writing culture. Berkeley and Los
Angeles: University of California Press, 1986.

COMERFORD, J.C. “Como uma família”: sociabilidade, reputações e territórios de


parentesco na construção do sindicalismo rural na Zona da Mata de Minas Gerais. Tese
de doutorado, UFRJ/PPGAS, Rio de Janeiro, 2001.

COUTO E SILVA, Golbery do. Aspectos geopolíticos do Brasil. Rio de Janeiro:


Biblioteca do Exército, 1957.

MATTOS, Carlos de Meira. Uma geopolítica pan-amazônica. Rio de Janeiro: Biblioteca


do Exército, 1980.

COWEN, M. & SHENTON, R. “The invention of development”. In: CRUSH, J. (ed.).


Power of development. London and New York, 1995. p. 27-43.

CRUSH, J. (ed.). Power of development. London and New York: Routledge,1995.

CEDI. Aconteceu Povos Indígenas Especial, 1984.

BANCO MUNDIAL/SEMAM/FUNAI. Programa Piloto para a Conservação da


Floresta Tropical Brasileira, Projeto das Terras Indígenas, 12-15 de maio de 1992.

CTI. Projeto Demarcação Waiãpi. Resumo do Relatório Final, agosto de 1996.

CTI. Projeto de Demarcação – 92/93. Convênio FUNAI-CTI, sem data. mimeo.

CTI. Centro de Trabalho Indigenista – Informações sobre a Entidade, sem data.

CTI. Carta aos Amigos da ICCO e PPM, de 11 de janeiro de 1995.

DE SWAAN, Abram. In care of the State – health care, education and welfare in Europe
and the USA in the modern era. New York: Oxford University Press, 1988.

383
DEZALAY, Yves & GARTH, Bryant. The internationalization of palace wars. Chicago
and London: The University of Chicago Press, 2002.
DOUGLAS, M. How institutions think. Syracuse: Syracuse University Press, 1986.

DOMINGUES, A. Quando os Índios eram vassalos. Colonização e relações de poder no


norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000.

DURÃO, Jorge Eduardo S. “Cooperação internacional: com que idéias ou valores?”. In:
Pauta. Brasília: Instituto de Estudos Socioeconômicos – INES, nº 1, p: 58-59, dez. 1999.

ECO, Umberto. Como se faz uma tese. São Paulo: Editora Perspectiva, 1994.

EID, Uschi. “Assisting good governance and democracy: a learning process - reflections
on developments in Africa”. GTZ House Berlin, BMZ/IDEA. Disponível em
<http://www.bmz.de/en/media/speech>. Acesso em 16/06/2006.

ELIAS, N. “Processos de formação do Estado e construção de nações”. In: Escritos e


Ensaios; 1: Estado, processo, opinião pública. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.
p.153-166.

________. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 1980. p.113-191.

________. O processo civilizador: a história dos costumes. vol.1. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1994.

________ . O processo civilizador: formação do Estado e civilização. vol.2. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994
.
________. Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1989.

ENNE, Ana Lucia Silva. "Lugar, meu amigo, é minha Baixada”: memória,
representações sociais e identidades. Tese de doutorado, PPGAS/Museu Nacional/UFRJ,
Rio de Janeiro, 2005.

ESCOBAR, Arturo. Encountering development. The making and unmaking of the Third
World. Princeton: Princeton University Press, 1995.

FATHEUER, Thomas. “Novos caminhos para a Amazônia? O Programa Piloto do G-7:


Amazônia no contexto internacional”, Cadernos de Proposta, nº2, Rio de Janeiro,
FASE/DED-SACTES, 1994.

FATHEUER, Thomas. “Cooperação internacional de ONGs na Amazônia”. Oficina em


Diversidade Ecossocial e Estratégias de Cooperação entre ONGs na Amazônia. Anais do
Encontro. Belém: Fase/FAOR, 13-16 de junho de 1994.

384
FERNANDES, Ruben C. “Sem fins lucrativos”. Comunicações do ISER, Rio de Janeiro,
ISER, nº15, 1985.

_________. Privado porém público: o Terceiro Setor na América Latina. Rio de Janeiro:
Relume-Dumará,1985.

FERNANDES, Rubem C. & CARNEIRO, L. “ONGS anos 90: a opinião de dirigentes


brasileiros”. Série Textos de Pesquisa (1). Rio de Janeiro: ISER, 1991.

FERNANDES, Ruben C. & LANDIM, L. “Um perfil das ONGS no Brasil.


Comunicações do ISER. Rio de Janeiro: ISER, nº22, ano 5, 1986.

FERGUSON, J. The anti-politics machine. “Development”, depolitization and


bureaucratic power in Lesotho. Minneapolis and London: University of Minnesota Press,
1994.

FISCHER, W.F. “Doing Good? The politics and antipolitics of NGO practices”. Annual
Review of Anthropology, 26:439-464, 1997.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (1975-


1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999.

____________. “Questions of method”. In: Burchell, G.; Gordon, C. et al. The Foucault
effect. Studies in governamentality. Chicago: The University of Chicago Press, 1991.
p.73-86.

____________. “A governamentalidade”. In: Foucault, Michel. Microfísica do poder.


Rio de Janeiro: Graal Editora, 1979.

_____________. “Verdade e poder”. In: Foucault, Michel. Microfísica do poder. Rio de


Janeiro: Graal Editora, 1979.

FUKUDA-PARR, S.; LOPES, C. & Malik, K. (eds.). Capacity for development: new
solutions to old problems. New York: Earthscan Publications/UNDP, 2002.

GARCIA Jr. & Afrânio R. “O Brasil como representação”. Comunicação do PPGAS. Rio
de Janeiro: Museu Nacional/UFRJ, nº 6, 1981.

GLUCKMAN, M. “Análise de uma situação social na Zululândia moderna”. In: Feldman


Bianco, B. (org.). Antropologia das sociedades contemporâneas. São Paulo: Global
Universitária, 1987. p.227-344.

GÓES FILHO, Paulo de. O clube das nações: a missão do Brasil na ONU e o
mundo da diplomacia parlamentar. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2003.

385
GRAMKOW (org.). Demarcando Terras Indígenas II. Experiências e desafios de um
projeto em parceria. Brasília: FUNAI/PPTAL/GTZ, 2002.

GRILLO, R.D. & STIRRAT, R.L., (eds.) Discourses of development. Anthropological


perspectives. Oxford and New York: Berg, 1997.

GROVE, R. Green imperialism: colonial expansion, tropical island edens and the origins
of environmentalism 1600-1860. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.
GTA. Boletim Informativo nº 1. Brasília, junho de 1992.

GUSFIELD, J.R. Community. A critical response. New York: Harper & Row Pub., 1975.

GUESLIN, André. L’invention de l’économie sociale – Le XIX eme siècle français. Paris:
Ed. Econômica, 1987.

HAGEMANN, Helmut. Not out of the woods yet. The scope of the G-7 initiative for a
Pilot Program to conserve the brazilian rainforest. Saarbrücken: Verl. Für
Entwicklungspolitik, 1994.

____________. Bancos, incendiários e florestas tropicais: o papel da cooperação para


o desenvolvimento na destruição das florestas tropicais brasileiras. Rio de Janeiro: ISA/
Ibase/Fase, 1996.

____________. O Programa Piloto no contexto internacional: O caso da Alemanha - A


posição dos governos e da sociedade civil européia. In: Anais do Seminário de Estudos
sobre o Programa Piloto para a Amazônia. Rio de Janeiro: FASE/IBASE, 1993.

HANNERZ, Ulf. Exploring the city: inquiries toward an urban anthropology. New York:
Columbia University Press, 1980.

_____________. Transnational connections. Culture, people, places. London, New


York: Routledge, 1996.

_____________. “Cosmopolitas e locais na cultura global”. In: Featherstone, Mike.


Cultura global: nacionalismo, globalização e modernidade. Petrópolis: Vozes, 1996.
p.251-266.

_____________. “The global ecumene as a network of networks”. In: Kuper, Adam (ed.).
Conceptualizing society. London: Routledge, 1992. p.34-58.

_____________. “Fluxos, fronteiras, híbridos: palavras-chave da antropologia


transnacional”. Mana, 3, vol.1, p.7-39, 1997.

HARRIES, Heinrich. Financing the future - KfW the german bank with a public mission -
1948-1998. Frakfurt am Main: Fritz Knaap Verlag GmbH, 1998.

386
HAUG, W. F. “1968 na Alemanha”. In: Vieira, M.A. & Garcia, M.A. (orgs.). Rebeldes e
contestadores: 1968 – Brasil, França e Alemanha.São Paulo: Ed. Fundação Perseu
Abramo, 1999.
HERTZ, Rosanna & IMBER, Jonathan. “Fieldwork in elite settings”. Journal of
Contemporary Ethnography, London, Sage Publ.., vol. 22, nº 1, p.3-6, 1993.

HEYMAN, Josiah. “The Anthropology of Power Wielding Burocracies”. Human


Organization, Society for Applied Anthropology, vol.63, nº 4, p.487-500, 2004.

HINSHAW, R.E. “Anthropology, administration and public policy”. Annual Review of


Anthropology, nº 9, p.497-522, 1980.

HOBART, Mark (ed.). An anthropological critique of development: the power of


ignorance. London, New York: Routledge, 1993.

HOBEN, Alan. “Anthropologists and development”. Annual Review of Anthropology, nº


11, p.349-375, 1982.

HOROWITZ, M. “Development anthropology in the mid-1990´s”. Development


Anthropology Network, vol. 12, nº 1, p.1-14, 1994.

HUBER, J. Quem deve mudar todas as coisas: as alternativas do movimento alternativo.


Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1985.

IEA. Projeto Políticas Públicas para a Amazônia, Relatório Anual. Doação 910-0914
Fundação Ford, Brasília, janeiro de 1993.

INOUE, Cristina Yumie Aoki. “Bases para um novo pacto de cooperação”. São Paulo:
Cadernos ABONG, São Paulo, nº 17, jul. 1997.

INOUE, C. & APOSTOLOVA, M.S. A cooperação internacional na política brasileira


de desenvolvimento. São Paulo: ABONG; Rio de Janeiro: Núcleo de Animação Terra e
Democracia, 1995.

ISA. Povos Indígenas no Brasil 1991/95. São Paulo: Instituto Socioambiental, 1996.

ISA. Povos Indígenas no Brasil 500 - Porto Inseguro - 1996/2000. São Paulo: Instituto
Socioambiental, 2000.

KASBURG, C. & GRAMKOW (orgs.). Demarcando Terras Indígenas - experiências e


desafios de um projeto em parceria. Brasília: FUNAI/PPTAL/GTZ, 1999.

KENNEDY, Paul. Ascensão e queda das grandes potências: transformação econômica e


conflito militar de 1500 a 2000. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1989.

387
KEOHANE, Robert. After hegemony: cooperation and discord in the world political
economy. Princeton: Princeton University Press, 1984.

LACKNER, H. “Social anthropology and indirect rule. The colonial administration and
anthropology in Eastern Nigéria: 1920-1940”. In: Asad, Talal (ed.). Anthropology and the
colonial encounter. New York: Humanities Press, 1973. p.124-151.

LANDIM, Leilah (org.). Ações em sociedade: militância, caridade, assistência, etc. Rio
de Janeiro: Iser/NAU, 1998.

LEIS, H. (org.). Ecologia e política mundial. Rio de Janeiro: FASE/VOZES, 1991.

LEROY, Jean-Pierre & SOARES, M.C.C. (orgs.). Bancos multilaterais e


desenvolvimento participativo no Brasil: dilemas e desafios. Rio de Janeiro:
FASE/IBASE, 1998b.

LIMA, Ludmila M.M. “Se a FUNAI não faz, nós fazemos”: conflito e mudança no
contexto de um projeto de cooperação. Tese de doutorado, Departamento de
Antropologia, UnB, Brasília, 2000.

LISANKY, J. “Fostering change for brazilian indigenous people during the past decade:
The Pilot Program’s Indigenous Lands Project (PPTAL). In: Hall, Anthony (ed.). Global
impact, local action: new environmental policy in Latin America. London: Institute for
the Study of the Américas:University of London, 2005.

LOHBAUER, Christian. Brasil-Alemanha: fases de uma parceria (1964-1999). São


Paulo: EDUSP/Fundação Konrad-Adenauer, 2000.

LOPES, J.S.L.; Antonaz, D.; Silva, G. O. & Prado, R. “Papel do Estado e meio ambiente:
algumas instâncias em foco.Do local ao internacional: práticas políticas, relações
pessoais, facções” . Cadernos do NUAP, Rio de Janeiro, vol.1, nº 4, p.72-79, 1999.

MACEDO E CASTRO, João Paulo. UNESCO - Educando os jovens cidadãos e


capturando redes de interesses: uma pedagogia da democracia no Brasil. Tese de
doutorado, UFRJ/PPGAS, Rio de Janeiro, 2006.

MAIR, Lucy. Anthropology and development, London: McMillan Press, 1984.

MAIR, Stefan. “Germany’s Stiftungen and democracy assistance: comparative


advantages, new challenges”. In: Burnell, P. (ed.). Democracy assistance. International
co-operation for democratization. London, Portland: Frank Cass Publ., 2000. p.128-149.

MAGALHÃES, E. (org.). Legislação Indigenista Brasileira e normas correlatas. 2.ed.


Brasília: FUNAI/CGDOC, 2003.

388
MARCUS, George & Cushman, Dick. “Ethnographies as texts”. Annual Review of
Anthropology, nº 11, p.25-69, 1982.

MAUSS, Marcel. "La Nación". In: ______. Sociedad y Ciencias Sociales. Obras III.
Barcelona: Barral, 1972. p. 275-327.

____________. “La Nación y el internacionalismo”. In: Sociedad y Ciencias Sociales.


Obras III . Barcelona: Barral, 1972. p.328-341.

McCORMICK, J. Rumo ao paraíso. A história do movimento ambientalista. Rio de


Janeiro: Relume-Dumará., 1992.

MICHELS, C. “Política de desenvolvimento. Cooperação Brasil-Alemanha. Internationes


Press RB 4068 (12-95), p.6, 1995.

MILTON, Kay. Environmentalism and the view from anthropology. London: Routledge.
ASA Monographs 32, 1993.

MITCHELL, J. Clyde. “The concept and use of social networks”. In: Mitchell, J. Clyde
(ed.). Social networks in urban situations. Manchester: Manchester University Press,
1969. p.1-50.

MONIZ BANDEIRA, L. & PINHEIRO GUIMARÃES, S. Brasil e Alemanha. A


construção do futuro. Brasília: IPRI/Fundação Alexandre de Gusmão, 1995.

MORGENTHAU, H. Politics among nations. New York: Knopf, 1954.

MRE. Relação das organizações não-governamentais estrangeiras atuantes no Brasil.


Brasília:Agência Brasileira de Cooperação, 1991.

MRE. Diretrizes gerais para o desenvolvimento da cooperação técnica internacional


multilateral. Brasília: Agência Brasileira de Cooperação, 2000.

MRE. Diretrizes para o desenvolvimento da cooperação técnica internacional


multilateral e bilateral. Brasília: Agência Brasileira de Cooperação, 2004.

MÜNZEL, Mark (Hg./org.). Die Indianische Verweigerung - Lateinamerikas


ureinwohner zwischen Ausrottung und Selbstbestimmung. Hamburg: Howohlt, 1978.

NADER, Laura.. “Up the anthropologist: perspectives gained from studying up”. In:
Hymes, D. (ed.). Reinventing anthropology. New York: Ramdom House, 1972. p.284-311.

_____________. Anthropological inquiry into boundaries, power and knowledge”. In:


Nader, Laura (ed.). Naked science: anthropological inquiry into boundaries, power and
knowledge. London: Routledge, 1996. p.1-25.

389
OLIVEIRA, J.P. & LIMA, A.C.S. (coords.). Seminário Bases para uma Nova Política
Indigenista. Rio de Janeiro: LACED, Museu Nacional/Contracapa, 1999.

OLIVEIRA, J.P. & LEITE, J.C.F. “É possível acelerar a regularização das Terras
Indígenas?”. In: ______. Resenha e debate: Brasil novo, indigenismo novo? Rio de
Janeiro: PETI/Museu Nacional, nº 3, 1991.

OLIVEIRA, J.P. Ensaios de antropologia histórica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,


1999a.

______________. “Terras Indígenas: uma avaliação preliminar de seu reconhecimento


oficial e de outras destinações sobrepostas”. In: ______. Terras Indígenas no Brasil. São
Paulo: PETI/CEDI/MN, 1987. p.7-32.

______________. Indigenismo e territorialização: poderes, rotinas e saberes coloniais


no Brasil contemporâneo Rio de Janeiro: Contracapa, 1998.

OKONGWU, A.F. & MENCHER, J. “Anthropology and public policy: shifting terrains”.
Annual Review of Anthropology, nº 29, p.107-24, 2000.

OSTRANDER, Susan. “Surely you´re not in this just to be helpful: access, rapport and
interviews in three studies of elites”. Journal of Contemporary Ethnography, London,
Sage Publ., vol. 22, nº 1, p.7-27, 1993.

PÁDUA, J.A. (org.). Ecologia e política no Brasil. Rio de Janeiro: Espaço e


Tempo/IUPERJ, 1987.

PAINE, Robert. The White Artic. Anthropological essays on tutelage and ethnicity.
(Newfoundland Social and Economic Papers, nº 7), Memorial University of
Newfoundland/Institute of Social Research. Toronto: Toronto University Press, 1977.

PARESCHI, A.C. O desenvolvimento sustentável e pequenos projetos: entre o projetismo,


a ideologia e as dinâmicas sociais. Tese de doutorado, UnB/DAN, Brasília, 2002.

PEIRANO, Marisa (org.). O dito e o feito: ensaios de antropologia dos rituais. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará-NUAP (Coleção Antropologia da Política vol.12), 2002.

FISCHER, William. “Doing Good? NGOs”. Annual Review of Anthropology, nº 26,


p.439-464, 1997.

PELS, Peter. “Anthropology of colonialism: culture, history and the emergence of


Western governamentality”. Annual Review of Anthropology, nº 26, p.163-183, 1997.

PORTNEY, P. Public policies for environmental protection. Resources for the Future,
Washington D.C., 1990.

390
PRATT, Mary Louise. Imperial eyes: studies in travel writing and transculturation. New
York: Routledge, 1992.

PRAKASH, Gyan (ed.). After colonialism: imperial histories and postcolonial


displacements. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1995.

REDFIELD, R. The little community. Chicago: The University of Chicago Press, 1960.

RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização. A integração de populações indígenas no


Brasil moderno. Petrópolis: Ed. Vozes, 1977.

RIBEIRO, G.L. “Ambientalismo e desenvolvimento sustentado. Nova ideologia / utopia


do desenvolvimento”. Revista de Antropologia. nº 34, p.59-101, 1992.

______________. Cultura e política no mundo contemporâneo. Brasília: EDUnB, 2000.

_____________. Postimperialismo. Barcelona, Buenos Aires: Gedisa, 2003.

RICARDO, C.A. & OLIVEIRA, J.P. “Apresentação”. In: ________. Terras Indígenas no
Brasil. Rio de Janeiro: CEDI/MN, 1987. p.2.

RIST, Gilbert. The history of development: from Western origins to global faith. London,
New York, Cape Town: Zed Books, UCT Press, 1999.

ROSENAU, J. & Czempiel, E. (orgs.). Governance without government: order and


change in world politics. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.

SAGASTI, Francisco & ALCALDE, Gonzalo. Development cooperation in a fractured


global order: an arduous transition. Ottawa: International Development Research Centre,
1999.

SAID, Edward. Orientalismo. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.

SALVIANI, R. As propostas para participação dos povos indígenas no Brasil em


projetos de desenvolvimento geridos pelo Banco Mundial: um ensaio de análise crítica.
Dissertação de mestrado, PPGAS/MN- UFRJ, Rio de Janeiro, 2002.

SAMSON, C. & SOUTH, N. (eds.). The social construction of social policy.


Methodologies, racism, citizenship and the environment. London and New York:
MacMillan Press; St. Martin’s Press, 1996.

SANTILLI, Marcio & SANTILLI, Juliana, Os direitos indígenas e a Constituição. Porto


Alegre: Sergio Antonio Fabris/NDI, 1993.

SCHRÖEDER, Peter. Economia indígena - Situação atual e problemas relacionados a


projetos indígenas de comercialização na Amazônia Legal. Brasília: PPTAL/GTZ, 2000.

391
SCHWARTZMAN, Helen. The meeting: gatherings in organizations and communities.
New York, London: Plenum Press, 1989.

______________. Ethnography in organizations. Qualitative Research Methods, vol. 27,


London: SAGE Publications, 1993.

SHORE, C. & WRIGHT, S. (eds.). Anthropology of policy: critical perspectives on


governance and power. London and New York: Routledge, 1997.

SHORE, Cris. “Inventing the people’s Europe: critical approaches to European


Communitiy ‘cultural policy’”. Man, vol. 28, n] 4, p.779-800, 1993.

SILVA, B.; MIRANDA NETTO, A.C. et al. Dicionário de Ciências Sociais. 2.ed. Rio de
Janeiro: Instituto de Documentação/Fundação Getúlio Vargas, 1987.

SILVA, K.C. da. Paradoxos da autodeterminação: a construção do Estado-Nação e


práticas da ONU em Timor-Leste. Tese de doutorado, DAN/UnB, Brasília, 2005.

SOARES, Astréia. Para sueco ver: uma reflexão sobre a cooperação sueca em
Moçambique (1975 a 2004). Tese de doutorado, UFRJ/IFCS, Rio de Janeiro, 2006.

SOUZA, Hélcio M. Reforma do Estado e políticas públicas de etnodesenvolvimento no


Brasil na década de 90. Dissertação de mestrado, UnB, Brasília, 2000.

SOUZA LIMA, A.C. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do
Estado no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.

___________. (org.). Gestar e gerir. Estudos para uma antropologia da adminisdtração


pública no Brasil. Rio de Janeiro: Relume-Dumará-NUAP, 2002.

___________. “O indigenismo no Brasil: migração e reapropriações de um saber


administrativo”. In: L’Éstoile, B.; Neiburg, F. & Sigaud, L. Antropologia, impérios e
Estados Nacionais. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/ FAPERJ, 2002. p.159-186.

___________. “Tradições de conhecimento na gestão colonial da desigualdade: reflexões


a partir da administração indigenista no Brasil”. In: Bastos, C.; Almeida, M.V. &
Feldman-Bianco, B. Trânsitos coloniais: diálogos críticos luso-brasileiros (Estudos e
Investigações nº 25). Lisboa: ICS/Universidade de Lisboa, 2002. p.51-172.

SOUZA LIMA, A.C. & BARRETTO F., H.T. Antropologia e identificação: os


antropólogos e a definição de Terras Indígenas no Brasil, 1977-2002, Rio de Janeiro:
Contracapa Editora, 2005.

SOUZA LIMA, A.C. & OLIVEIRA, J.P. de. “Os muitos fôlegos do indigenismo”.
Anuário Antropológico, 81, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, p.277-290, 1983.

392
SOUZA LIMA, A.C. & BARROSO-HOFFMAN, M. Etnodesenvolvimento e políticas
públicas - Bases para uma nova política indigenista. Rio de Janeiro: Laced/Contracapa,
2002.

STAVENHAGEN, Rodolfo “Etnodesenvolvimento: uma dimensão ignorada no


pensamento desenvolvimentista. Anuário Antropológico/84, UnB, Brasília, p.13-56,
1984.

STEIN, A. Why nations cooperate: circumstance and choice in international relations.


London: Cornell University Press, 1993.

STEINMETZ, George (ed.). State/Culture: State formation after the cultural turn. Ithaca
and London: Cornell University Press, 1999.

STOLER, Ann Laura & COOPER, Frederick (orgs.). Tensions of empire. Colonial
cultures in a bourgeois world. Berkeley: University of California Press, 1997.

TICKNER, Fred. Technical cooperation. United Nations Special Projects Office. New
York: Praeguer Publishers, 1966.

TILLY, C. Big structures, large processes, huge comparisons. New York: Russel Sage
Fundation, 1984.

TODOROV, T. A conquista da América: a questão do Outro. São Paulo: Martins Fontes


Editora, 1999.

TOMASSINI, L. Desarrollo económico y cooperación internacional. Santiago: CEPAL,


1993.

TRUSEN, C. & PINHEIRO, M.R.B. (orgs.). Planejando o desenvolvimento rural:


conceitos, metodologias e experiências. Belém: GTZ/Prorenda-Rural, 2002.

VALENTE, R. O meio ambiente em pauta: uma abordagem da cooperação internacional


entre Europa e Brasil. Dissertação de mestrado, Instituto de Relações Internacionais,
PUC-Rio, Rio de Janeiro, 1997.

VERDUM, Ricardo. “Etnodesenvolvimento e mecanismos de fomento do


desenvolvimento dos povos indígenas: a contribuição do subprograma Projetos
Demonstrativos (PDA)”. In: Souza Lima, A.C. & Barroso-Hoffmann, M. (orgs.).
Etnodesenvolvimento e políticas públicas: bases para uma nova política indigenista. Rio
de Janeiro: LACED/Contracapa, 2002.

VIANNA, Aurelio Jr. et. al. Banco Mundial: participação, transparência e


responsabilização - A experiência brasileira com o Painel de Inspeção. Brasília: Rede
Brasil, 2001.

393
VIANNA, Adriana R.B. Políticas de Gestão da Menoridade Tese de doutorado,
PPGAS/Museu Nacional, Rio de Janeiro, 2002.

VIEIRA, M.A. & Garcia, M.A. (orgs.). Rebeldes e contestadores: 1968 – Brasil, França
e Alemanha. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 1999.

VIEIRA, L. & LA ROVERE, A.L. Tratados das ONGs - Aprovados no Fórum


Internacional de Organizações Não-Governamentais e Movimentos Sociais. Rio de
Janeiro, 1993.

VIGEVANI, T. “Meio ambiente e relações internacionais. A questão dos financiamentos.


In: Moniz Bandeira, L.A. & Pinheiro Guimarães, S. (orgs.). Brasil e Alemanha. A
construção do futuro. Brasília: IPRI/FUNAG, 1995. p.613-661.

VIOTTI, P.R. & KAUPPI, M.V. International relations theory: realism, pluralism,
globalism. ed. rev. New York: MacMillan Publishing Company, 1993.

WALLERSTEIN, Immanuel. The origin of the modern world system. New York:
Academic Press, 1974.

WALTZ, Kenneth. Theory of international politics. New York: Mcgraw hhill,1979.

WEBER, M. Comunidades Étnicas. In: Economia y Sociedade, México, Fondo de


Cultura Economica, 1983, p. 315-327.
__________. Las Comunidades políticas. In: Economia y Sociedade, México, Fondo de
Cultura Economica, 1983, p. 661-694.
__________. “Burocracia”, em: Ensaios de Sociologia, cap. VIII, Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1963, p.229-305.

___________. “Burocracia”. In:: Ensaios de Sociologia, cap. VIII. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1963. p.229-305.

WELPER, Elena. Curt Unkel Nimuendaju: um capítulo alemão na tradição etnográfica


brasileira. Dissertação de mestrado, PPGAS/MN, Rio de Janeiro, 2002.

WIECZOREK-ZEUL, Heidemarie. Discurso na ocasião da leitura do orçamento federal


de 2006. Disponível em: <http://www.bmz.de/en/press/pm/pm_20060616.html>. Acesso
em 16/06/2006.

_____________. Discurso na Conferência de Paris sobre Instrumentos Inovadores de


Financiamento. Disponível em:
<http://www.bmz.de/en/press/speeches/ministerin/rede22072003.html>. Acesso em
16/06/2006.

394
WOLF, Alan. “Three paths to development: market, State and civil society”. In:
IBASE/PNUD Development, international cooperation and the NGOs. Rio de Janeiro:
IBASE/PNUD, 1992. p.17-29.

WOLFF, L.; Kaiser, W. & Mello, F. Cooperação e solidariedade internacional na


Alemanha. São Paulo: ABONG; Rio de Janeiro: Núcleo de Animação Terra e
Democracia, EZE/Ibase, 1995.

WRIGHT, Susan (org.). Anthropology of organizations. London, New York: Routledge,


1994.

COOPERAÇÃO INTERNACIONAL – ALEMANHA


BMZ. Concepto relativo a la cooperación para el desarrollo com poblaciones indígenas
em America Latina. Aktuell, nº 73, 1996.

BMZ Concepto para el cooperacion para el desarrollo con America Latina, dez. 1992.

BMZ Critérios socio-culturales aplicables a proyectos de la cooperacion para el


desarrollo, fev. 1992.

BMZ. Concepto suprasectorial relativo a Grupos Meta, 1995.

BMZ/GTZ. Desenvolvimento rural regional: princípios de orientação. Sonderpublikation


der GTZ, nº 193, Eschborn, BMZ, 1987.

D+C Revista Desarrollo Y Cooperación nº 1, 2002.

Embaixada República Federal da Alemanha no Brasil/GTZ/KfW/DED. Cooperação para


o desenvolvimento Brasil-Alemanha, folder, sem data.

Embaixada República Federal da Alemanha no Brasil/BMZ/GTZ. Política de cooperação


para o desenvolvimento Brasil-Alemanha, folder, sem data.

Embaixada da República Federal da Alemanha no Brasil/GTZ/KfW. Cooperação entre


Brasil e Alemanha nas florestas tropicais brasileiras, folder, sem data.

Embaixada República Federal da Alemanha no Brasil. 40 anos de cooperação para o


desenvolvimento Brasil-Alemanha, Brasília, 2003.

Embaixada República Federal da Alemanha no Brasil/GTZ/KfW/DED. Cooperação


técnica e financeira. Boletim de informação sobre meio ambiente, combate à pobreza,
pequenas e médias empresas e PPG-7, sem data.

GTZ. The message of Puembo, fev.2002.

395
GTZ. Futuro da floresta tropical: a cooperação técnica alemã com o Programa
Internacional de Conservação da Floresta Tropical no Brasil (PPG-7), folder, sem data.

GTZ. Consultoria competente a nível mundial para la cooperacion al desarrollo, folder


de comunicação da GTZ, sem data de publicação.

GTZ. Recomendaciones de Boquete, abril de 2002.

GTZ. Compêndio do Vocabulário da GTZ - Die Begriffswelt der GTZ, Eschborn, GTZ,
1997.

GTZ. Nota Conceitual para a futura contribuição à proteção das florestas tropicais da
Amazônia Brasileira (2007-2014), texto não publicado, 2005.

GTZ. A GTZ no Brasil, folder, sem data.

GTZ/DSE. Programa de Métodos e Técnicas de Gerenciamento de Projetos, 1993.

GTZ. ZOPP Planejamento de Projetos Orientado por Objetivos: um guia de orientação


para o planejamento de projetos novos e em andamento. Eschborn: GTZ, 1998.

Ministério de Relações Exteriores da Alemanha. Deutschland: Fórum de Política,


Cultura e Economia. Frankfurt am Main: Frankfurter Societäts-Druckrei GmbH, 1995.

KfW. Annual Report 2001.

KfW. Annual Report 1999.

KfW. Environmental Report 2000.

KfW. Results of Financial Cooperation - Fifth Evaluation Report on Projects and


Programmes Promoted in Developing Countries, october/1999.

KfW. Cooperacion con paises en desarrollo - explicacion del procedimiento de la


cooperacion financiera de la Republica Federal de Alemania, nov.1997.

FONTES PRIMÁRIAS: DOCUMENTOS DE PROJETOS, LEIS E DECRETOS

FUNAI/PPTAL. Relatório Avaliação de Meio Termo. Texto Preliminar, de Rinaldo


Sérgio Vieira Arruda, de 05/10/1998.

FUNAI/PPTAL. Relatório Anual de 1998, Brasília: FUNAI/PPTAL, 1999.

FUNAI/PPTAL. Relatório Anual de 1999, Brasília: FUNAI/PPTAL, 2000.

396
FUNAI/PPTAL. Relatório Anual de 2000, Brasília: FUNAI/PPTAL, 2001
.
FUNAI/PPTAL. Planejamento Operativo Anual (POA) 2002, Brasília: FUNAI/PPTAL,
2002.

PPG7/MMA/PDA. Cinco Anos. Boletim Bimestral PDA Informa, nº 9, ano 4, maio-junho


de 2001.

MMA/SCA/The World Bank. PPG-7 Annual Progress Report 1999-2000. Brasília,


agosto de 2000.

PPTAL. Documento de Projeto, 1994.

Oficial Alemanha/Brasil, Contribuição Financeira nº 94 65 774 de DM 30 milhões, de


07/04/1995.

Embaixada da República Federativa da Alemanha. Nota Verbal da Embaixada da


Alemanha para MRE de 26/02/97.

Embaixada da República Federativa da Alemanha. Nota Verbal WE 445 SFF/U/75/95, de


31/01/1995, para o MRE.

MRE/ABC. Ofício 1486/ABC/CTRB, de 21 de junho de 1994, de Sergio Arruda, diretor


da ABC a Garry Soares de Lima, diretor do DETEC/MMA.

FUNAI. Ofício 256/94 de 12 de maio de 1994 do presidente da FUNAI a Sergio Arruda,


diretor da ABC.

FUNAI. Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia


Legal – Revisão Substantiva Q., junho de 2003, p.5.

FUNAI. Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia


Legal – PRODOC, Proposta de Cooperação Técnica com PNUD, maio de 1998.

FUNAI-SEMAM-Banco Mundial: Missão 12 a 15 de maio de 1992.

Governo do Brasil/BIRD/CEE. Projeto Integrado de Proteção às Terras e Populações


Indígenas da Amazônia Legal. Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais
Brasileiras, dezembro de 1992.

MMA. Ofício 605/MMA/SCA/PPG7, de 19/09/96.

MMA. Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil do G-7, folder,
sem data.

MMA. Decreto 563, de 05/06/92.

397
MMA. Decreto 2.119, janeiro de 1997.

MMA/CONAMAZ. Política Nacional Integrada Para a Amazônia Legal. Brasília, 1995.

MRE. Diretrizes para o Desenvolvimento da Cooperação Técnica Internacional


Multilateral e Bilateral. Disponível em <http://www.abc.mre.gov.br/abc/abc_historico.asp>.
Acesso em 18/02/2005.

MRE. Portaria nº 12, 08 de outubro de 2001.

MRE. Decreto 3.751, 15 de fevereiro de 2001.

MRE/ABC. Conceitos básicos para a execução de projetos de Cooperação Técnica.


Recebida Bilateral, sem data. Documento fornecido pelos funcionários da ABC em 2002.

MRE. Ata de Negociações Intergovernamentais 2001, Brasília, 19 e 20 de novembro de


2001.

MRE. Ata de Negociações Intergovernamentais, Brasília, 2003.

MRE. Ata das Negociações Intergovernamentais Brasil-Alemanha, 1996.

MRE. Acordo entre KfW e governo brasileiro. abril de 1995.

MRE. Acordo em Separado entre KfW, FUNAI e MMA. Cooperação Financeira.

PPTAL. Aide Memoire: Projeto Integrado de Proteção das Terras e Populações Indígenas
da Amazônia, 3-14 de agosto de 1992.

PPTAL/FUNAI. Fax 008/PPTAL/97 de 07/02/97 do PPTAL/FUNAI para ABC.


Presidência da República. Brasil em Ação. Investimentos para o Desenvolvimento.
Brasília, 1996.

Presidência da República. Avança Brasil. Mais 4 anos de Desenvolvimento para Todos.


Brasília, 1998.

ENDEREÇOS ELETRÔNICOS ACESSADOS


http://www.inwent.org
http://www.cdgbrasil.com.br
http://www.bmz.de
http://www.bmz.de
http://www.gtz.de

398
http://www.fnst-freiheit.org
http://www.ffn-brasil.org.br
http://www.fes.org
http://www.hss.de
http://www.boell.org
http://www.kas.org
http://www.worldbank/brazil
http://www.mma.gov.br/port/sca/ppg7
http:://www.abc.mre.gov.br/abc/abc_historico.asp
http:://www.abc.mre.gov.br/ct/oqecoop.htm
http:://www.rededlis.org.br
http://www.amazonia.org
http://www.ibama.gov.br
http://www.gta.org.br
http://www.abong.org.br
http://www.isa.org.br

JORNAIS
Araújo, Chico. “Funai sofre ingerência de investidor alemão”, Jornal de Brasília,
07/03/2004, p.7.

Arnt, R. “Fundo para a Amazônia divide ambientalistas”, Jornal Folha de São Paulo,
08/07/1991, p.5.

Brito, M.F. “Senadores dos EUA criticam política ecológica de Collor”, Jornal do Brasil,
18/06/1991, p.3.

Cavalcanti, Alcinéia. “Índios do Amapá demarcam suas terras”, Folha do Meio Ambiente,
Brasília, maio de 1996, p.15.

Dantas, E. “Governo quer demarcar terras indígenas para melhorar imagem”, Jornal
Folha de São Paulo, 29/06/1991, p.4.

Dantas, E. “Collor atende pedidos de ecologistas dos EUA”, Jornal Folha de São Paulo,
26/06/1991, p.8.

399
Obliziner, A. “Pressão sobre a Amazônia gera revolta”, Jornal Correio Braziliense,
19/06/1991, p.5.

“Simon acusa americanos”, Jornal Correio Braziliense, 19/06/1991, p.5.

“Presidente da FUNAI é demitido”, Jornal do Brasil, 22/06/1991, p.4.

“Possuelo assume Funai para demarcar terras dos índios”, Jornal do Brasil, 29/06/1991, p.5.
Tinoco, Silvia Joviña. “Cacique ou Presidente? Uma aproximação do Conselho das
Aldeias Waiãpi, em Arquivos do Museu Nacional, Rio de Janeiro: Museu Nacional, vol.
61(2), p.81-87, abril/junho de 2003, p.83.

400
Anexo de Documentos:

1) Acordo Básico de Cooperação Técnica entre o Governo da República Federativa


do Brasil e o Governo da República Federal da Alemanha;

2) Planta Esquemática do Escritório de Representação da GTZ no Brasil;

3) Programa da “Conferência Regional para América Latina y El Caribe sobre


Energias Renovables”;

4) Programa do Encontro “Atuais desafios e perspectivas dos sistemas de saúde na


América Latina e no Caribe: Proteção social universal e respostas ao
HIV/AIDS”;

5) Programa do Workshop “Estratégias de Desenvolvimento Sustentável no Brasil”;

401
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )

Milhares de Livros para Download:

Baixar livros de Administração


Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo

S-ar putea să vă placă și