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e-ISSN 2237-7891

Qualis B3 (2013-2016)

A formação do campo de estudos da violência


no Brasil: estrutura e habitus nas Ciências
sociais da Nova República*
Paulo César Ramos†
pc.ramos@usp.br

Recebido em: 02/09/2016


Aceito em: 20/10/2016
Publicado: 29/04/2017

Resumo. O presente artigo apresenta uma descrição da formação do sub-


campo acadêmico dos estudos sobre violência, crime, direitos humanos e
segurança pública nas ciências sociais no Brasil, baseado num livro de entre-
vistas “as ciências sociais e os pioneiros nos estudos sobre crime, violência e
direitos humanos no Brasil”, de 2011. Nossa análise ancorou-se nas formu-
lações de Pierre Bourdieu e seus conceitos de campo acadêmico, subcampo,
habitus, entre outros que compõe o repertório do sociólogo. A peça forjada
no livro concentra-se em pesquisadores homens, do Rio de Janeiro, de Minas
Gerais e de São Paulo, alcança outros quatro estados, majoritariamente nasci-
dos na década de 1940. A análise das entrevistas buscou traçar uma relação
entre indivíduo e estrutura social, o que permitiu visualizarmos a relação
entre a construção de carreiras acadêmicas e o desenvolvimento democrático
no Brasil, produzindo pesquisas e explicações conectadas com valores deste
novo tempo. Os atores o fizeram demarcando posições teóricas, no âmbito
das ciências sociais, demarcando posições explicativas alternativas, dentro da
academia, e demarcando posições políticas, junto ao Estado, ocupando cargos
nas gestões públicas em governos.
Palavras-chaves: Sociologia da violência. Direitos Humanos. Segurança Pú-
blica. Campo acadêmico.

* Este artigo é resultado de pesquisa realizada com apoio da CAPES.


† Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos, onde também cursou a
graduação em Ciências Sociais. Doutorando em Sociologia pela Universidade de São Paulo.

©2016 DCHL-UESB Saberes em perspectiva, Jequié, v. 7, n. 17, p. 95–112, jan./abr. 2017


96 Paulo César Ramos

THE FORMATION OF THE FIELD OF STUDY OF VIOLENCE IN BRAZIL:


STRUCTURE AND HOUSING IN THE SOCIAL SCIENCES OF THE NEW
REPUBLIC
Abstract. This article presents the analysis of the formation of the academic
subfield of studies on violence, crime, human rights and public security in
the social sciences in Brazil, based on an interview book "The Social Sciences
and the Pioneers in Studies on Crime, Violence and Human Rights In Brazil.
"Our analysis was anchored in the formulations of Pierre Bourdieu and his
concepts of academic field, subfield, habitus, among others that compose
the repertoire of the sociologist. The piece forged in the book focuses on
male researchers, from Rio de Janeiro, Minas Gerais and São Paulo, reaching
four other states, mostly born in the 1940s. The analysis of the interviews
sought to draw a relationship between individual and social structure, which
allowed us to visualize the relationship between the construction of academic
careers and the democratic development in Brazil, producing researches and
explanations connected with the values of this new time . The actors did so
by demarcating theoretical positions within the social sciences, demarcating
alternative explanatory positions within the academy, and demarking political
positions with the State, occupying positions in public administrations in
governments.
Keywords: Sociology of violence. Human rights. Public security. Academic
field.

Os pioneiros do subcampo: contexto político, estrutura e habitus nas


Ciências sociais na Nova República

Seria razoável afirmar que Marx, Durkheim ou Weber deixaram-se influen-


ciar pelas experiências cotidianas da vida para compor suas questões sociológicas
e suas interpretações? Por exemplo, em que medida a normatividade presente em
alguns esquemas Durkheimnianos não está ligada à necessidade de propor um
modelo de sociedade? E qual a razão de haver um livro como Ciência e Política:
duas vocações, tangenciando espelhar os metiers de mãe e pai, respectivamente, do
autor Max Weber (2011)?
Ou afirmar que o interesse sobre a busca de prestígio e ascensão social por
meio da educação, as consequentes elaborações sobre capital simbólico e social de
Pierre Bourdieu estão ligadas à própria trajetória do autor – filho de trabalhadores
de zona rural da França? Outro sociólogo, Norbert Elias, ao abrir o livro em que
procura analisar o “colapso da civilização”, qual seja a emergência do fascismo até
a sua proposta de “solução final”, discorre sobre sua ligação pessoal com o tema
e sua condição de judeu. De maneira similar, Raymond Willians, acedeu às suas
origens campestres, como faz parecer no livro a cidade e o campo.
Estas questões podem ser interessantes para compreender alguns aspectos
da construção do campo de estudos sobre direitos humanos, crime e violência

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nas ciências sociais no Brasil. Ou seja, de que forma/se as diversas experiências


dos pesquisadores são extensíveis à uma coletividade ao ponto de nortearem seus
interesses de pesquisa e impactarem a construção e a consolidação de um campo
de estudos nas ciências sociais?1 Para refletir sobre esta pergunta debruçamo-nos
sobre alguns conceitos da obra de Pierre Bourdieu, com quem debatemos este se-
mestre. A questão acima posta será desdobrada em outras, tentando compreender
os estudos sobre crime, violência e direitos humanos em vista do mundo social,
fugindo ao finalismo e ao mecanicismo de explicações interessadas e à reificação
das instituições nelas presente.
Buscamos informações no livro As ciências sociais e os pioneiros nos estudos
sobre crime, violência e direitos humanos no Brasil (LIMA; RATTON, 2011), que
reúne 14 entrevistas e três testemunhos, sobre dois pesquisadores já falecidos,
com os pesquisadores “pioneiros” do referido campo. O livro foi uma iniciativa
do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma think tank que reúne policiais,
gestores e especialistas da área de segurança pública, com recursos da Fundação
Ford, por dois pesquisadores – José Luiz Ratton (UFPE) e Renato Sérgio de Lima
(FBSP). Estes fizeram a maior parte das entrevistas; Jacqueline Sinhoretto (UFSCar),
Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro (UFMG) entrevistaram Roberto Kant de Lima,
aquela, e Julita Lemgruber e Luiz Antônio Machado da Silva, esta.
Os entrevistados são professores do Ensino Superior, possuem relação ins-
titucional com algum centro de pesquisa relacionado ao tema do Livro, que por
vezes ele próprio ajudou a criar. Há também uma marcação etária, pois 2 nascidos
na década de 1930, 9 nascidos na década de 1940 e cinco nascidos nos anos 1950;
mas, contando de outra forma, há uma maioria nascidos num período de distância
de 12 anos: dos 16 pioneiros2 , apenas 4 nasceram fora do período que compreende
entre 1941 e 1952.
Como manifesto no livro, na constituição de um subcampo acadêmico
de estudos sobre crime, violência e direitos humanos ocorre uma passagem de
tema de “fronteira” para tema da “moda”. Esta passagem acompanharia o desen-
volvimento do processo de democratização no Brasil, estando inscrita no habitus
subcampo de estudos, tal como se apresenta nos relatos dos entrevistados. Como
toda experiência social, ela é marcada no tempo e no espaço social dos sujeitos.
Propomos aqui uma análise do campo acadêmico a partir das informações
que as entrevistas dispuseram, sabendo também que as perguntas são nossos
objetos de análise, assim como o livro de forma geral; os entrevistados possuem

1 O interesse para esta questão surgiu ao notar a diferença entre a produção brasileira e americana
sobre a relação entre raça e violência, tão inexplorada naquela, ao passo que é possível encontrar
recorrentes e variados estudos sobre tal relação na sociologia americana. Uma reflexão sobre
esta produção está em Ramos (2015)
2 Em ordem alfabética: Alba Zaluar, Antônio Luiz Paixão, César Barreira, Claudio Beato, Ed-
mundo Campos Coelho, Gláucio Soares, José Vicente Tavares dos Santos, Julita Lemgruber,
Luciano de Oliveira, Luiz Antônio Machado da Silva, Luiz Eduardo Soares, Maria Stela Grossi
Porto, Michel Misse, Paulo Sérgio Pinheiro, Roberto Kant de Lima, Sérgio Adorno.

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uma posição, interesses, respeitam a sistemas de constrições e hierarquias, mas


os entrevistadores, idem. Entendo que, embora se trate de dois grupos de pesqui-
sadores de idades distintas, estas compartilham de um mesmo subcampo, e são
também atores do mesmo espaço social em exposição.
Os elementos constitutivos do subcampo que o livro nos apresenta estarão
sintetizados no conceito de habitus, sabendo tratar-se, o habitus, de uma tentativa
de fugir às explicações finalísticas ou mecanicistas muito presente em trabalhos
contaminados pelas ciências econômicas mas que não são plenamente explicativas
do mundo social. Habitus refere-se ao que resulta das experiências de confronto
experimental com o mundo social, uma confrontação com as regularidades do
mundo social. São noções e valores do mundo social incorporados aos indivíduos
que estão implicados na ação também destes. (BOURDIEU, 2015, p. 240-244).
O rigor para com esta definição de habitus justifica-se ante a evitação de
reificar coletividades e instituições, como por exemplo, a Academia ou as Ciências
Sociais tanto quando da análise como quando isto está posto na fala dos atores.
Tal cumpre-se, pois, o social passa a existir por meio da fala, como uma realidade
lógica que personifica ou reifica-se coletividades. Em nosso trabalho, esta proble-
matização ocupa-se com o que vem denominado por “pioneiros”, pois, também
estes devem ser vistos como integrados a um sistema social com tempo histórico
e posição num contexto social, econômico e político mais amplo que apenas o
mundo acadêmico.
O exposto a seguir demonstra como a intencionalidade dos atores – su-
postos construtores de um subcampo de estudos – está enquadrada a noção de
habitus e assim como esta construção está calcada num regime de constrições e
de ajustes de expectativas às chances de realização – há que se falar das classes
populares, porém sem o marxismo. Ou então, há que se trabalhar com Michel
Foucault, porém preso aos problemas das classes populares. Ou: é possível possuir
autonomia das Ciências Sociais sobre o campo do jurídico, mas convém buscar
orientandos bacharéis em direitos; ou ainda, é preciso ter independência intelec-
tual no trabalho de pesquisa, porém, fundamentar políticas públicas é importante
assim como o são a aproximação do Estado.
A mudança da configuração desta estrutura de disposições que encontra-
mos no habitus acompanha a mudança das posições no subcampo de estudos sobre
violência e no campo acadêmico: atores que passaram de desafiadores a atores
dominantes; marxismo e juristas, ficaram em outro contexto, em outro tempo, em
que o grande dominante era os referentes hierárquicos da ditadura. As tensões
que os atores enfrentam agora estão para além dos limites da Academia, mas já na
ocupação de posições de poder no Estado. Para além de um espaço de interações, é
um caso em que as posições foram construídas ao passo da constituição do campo.
(BOURDIEU, 2015).

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O subcampo de conhecimento sobre violência e a política pública de


segurança: as tensões na passagem de um tema de fronteira para
tema da moda nas ciências sociais, na Academia e no Estado

Pautado pelas perguntas do entrevistador/entrevistadora, o conjunto de


entrevistas do livro delineia alguns assuntos que fazem parte da construção de
um campo de estudos, que vai como quais foram os primeiros estudos, o histórico
do tema pregresso à sua presença nas ciências sociais – como a criminologia e o
campo jurídico –, a formação dos pesquisadores, a sua entrada no tema (Direitos
Humanos, crime ou violência) e suas influências teóricas; há a sugestão de que os
temas deste campo de estudos deixaram de ser um tema “de fronteira”. Questões
institucionais também aparecem, como qual é o papel da pós-graduação no Brasil,
ou mesmo pelos cargos que cada um dos entrevistados exerceu. Questões teóricas
também marcam o livro como qual seria a produção teórica sólida sobre o tema
no Brasil e as possibilidades exploratórias da obra de Durkheim e a superação da
obra de Foucault para estudar o tema. Questões delimitadoras de um campo de
estudos surgem também como a relação com o campo jurídico/do direito, que ora
é uma negação, ora é uma associação. Preocupação com a relação com as políticas
públicas parece ser central para o contexto do livro, mas com alguns contrapontos
por parte e outros entrevistados.
Vemos o livro como um esforço de criação de um discurso de consolida-
ção do próprio campo de estudos que busca retratar, um esforço de legitimação
simbólica, criando uma teodiceia de sua própria condição de sujeitos privilegi-
ados (BOURDIEU, 2015, p. 623) – o que não é feito sem alguns anacronismos
e ricas contradições. Reveladas desde o roteiro de perguntas, tais contradições
remontam os elementos constitutivos da hierarquia de prestígio do campo
acadêmico (BOURDIEU, 2015, p. 602), com movimentos entre polos de poder
próprio do campo, desde o reconhecimento interno entre os pares – como as
referências teóricas, produção teórica – como o reconhecimento externo para com
o Estado – como a utilização do conhecimento para a elaboração de políticas
públicas, e o reconhecimento sócio-político – como a retomada de experiências
pessoais de enfrentamento com o regime militar.
A seguir exploraremos alguns pontos que respeitam esta hierarquia do
Campo de estudos acadêmico em Ciências Sociais, demonstrando como os atores
deste campo procuram se afirmarem dentro das Ciências sociais a partir de seus
temas de entrada, referências teóricas e objetos de estudos; em seguida, esta
afirmação de sua posição no campo dependeu de uma delimitação em âmbito
mais aberto dentro das ciências humanas com o Direito e os juristas em geral; o
outro extremo da afirmação do campo é a afirmação fora da academia, frente ao
Estado, formulando políticas públicas de segurança pública e ocupando cargos de
gestão no Poder Executivo em âmbitos nacional, estaduais e municipais.
Deixamos por fim o que consideramos mais expressivo de uma busca por
prestígio e capital simbólico por meio do relato de experiências que conectam
indivíduo e estrutura dentro de um campo de estudos. Amiúde a condição de
sujeitos formados sob a repressão do regime militar foi recoberta como norteadora

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de uma agenda de pesquisas que refletisse valores e princípios pilares de uma


posição política ligadas à democracia e com a preocupação com setores populares.
Esta digressão constante ao longo do livro revela uma certa intencionali-
dade dos atores, na medida em que descrevem experiências pessoais, ao mesmo
tempo em que localiza os atores na estrutura, tornando continente e invariável
suas posições e destinos políticos e ideológicos frente à academia e ao mundo
social. Para melhor compreender estas dinâmicas as passagens entre a autonomia
do campo e o serviço ao Estado por meio da formulação de políticas públicas; as
passagens entre o marxismo e Michel Foucault/Escola de Chicago/Norbert Elias;
ou as passagens entre antagonistas do Direito para orientadores de bacharéis em
Direito na pós graduação... estas passagens são orientadas por meio de estruturas
de constrições e criações

Concentração disciplinar, temas de entrada e referências teóricas

Em geral a formação (graduação) é na área de Ciências Sociais (onze), com


dedicação disciplinar à Sociologia (doze), Antropologia (três) e à Ciência Política
(um). Destaca-se, contudo, haver entre eles um formado em Letras e a segunda
formação mais frequente ser em Direito (quatro), conforme descrito no quadro
Anexo.
Tal concentração disciplinar dos pesquisadores na Sociologia tende a intensi-
ficar-se, uma vez que é por meio dos departamentos, programas de pós-graduação
e núcleos, grupos e laboratórios de pesquisa que se formam mais pesquisadores.
Isso também pode pôr em xeque o discurso de que há um campo de estudos nas
"ciências sociais", podendo ser mais um tema de uma disciplina e não necessaria-
mente um "campo"de estudos das Ciências Sociais.
Os roteiros de entrevistas semiestruturadas procuraram marcar como os
entrevistados chegaram ao tema. Há basicamente três temas: os estudos sobre con-
flitos no campo, relacionados à violência vivenciada por agricultores na luta pela
posse de suas terras; os estudos sobre representação da pobreza, marginalidade e
crimes; e os estudos sobre repressão e direitos humanos em prisões e no sistema
de justiça.
Um dos elementos da configuração do campo acompanha o que foi menci-
onado em algumas entrevistas sobre as tendências das influências no pensamento
acadêmico na passagem dos anos 1970 para os anos 1980, chamando a atenção
para a crise do marxismo e a visita de Michel Foucault no Brasil; além da chegada
dos estudos da Escola de Chicago no País. Passar pela pobreza, pela desigualdade
e pelos trabalhadores reflete em parte a relação com uma agenda de pesquisa
marxista, que foi aos poucos sendo preterida em direção à uma agenda mais pro-
missora e atual para o momento. Daí a passagem dos "trabalhadores pobres"para
os "reprimidos pelo estado".

no Brasil, não se desenvolveu uma criminologia como nos países


anglo-saxões e mesmo na França e no continente, na Espanha, etc.
No Brasil, a criminologia esteve sempre vinculada ao direito pe-
nal. Então, ela não se desenvolveu como uma área interdisciplinar
em que havia sociólogos, antropólogos e a figura interdisciplinar

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do criminólogo. Isso no Brasil não existiu. Então, as referências


teóricas eram jurídicas, e nesse sentido você tem uma criminolo-
gia crítica de orientação jurídica no Brasil, com Roberto Lira Filho,
Roberto Aguiar, Juarez Cirino dos Santos, Nilo Batista... Todos os
estudos clássicos norte-americanos eram citados, mas jamais lidos
ou absorvidos em pesquisas. Então, quando chega o Foucault, as
ciências sociais se entregam à sua crítica da criminologia como
parte do dispositivo da biopolítica. Por outro lado, o marxismo já
estava em crise. Então, para onde poderiam ir as ciências sociais?
Para o Foucault. (MISSE, 2011, p. 2).
Houve uma época em que o marxismo teve uma influência muito
grande no meio acadêmico. Acho que pesou menos nos temas
ligados à violência e ao crime, mas claro que esteve presente. De-
pois, Foucault teve uma importância muito grande, sobretudo
com Vigiar e Punir (1975), obra que causou enorme impacto na
sociologia brasileira, nas ciências sociais do país de um modo ge-
ral, e particularmente nos estudos sobre violência, crime, prisões.
(ADORNO, 2011, p. 81).
Ele [Antônio Luiz Paixão] estudou na Universidade de Stony
Brook, NY, e de lá trouxe várias coisas que foram importantes.
Primeiro foram novas perspectivas teóricas da sociologia, trouxe
essa coisa de interacionismo simbólico e também o interesse por
essa área de criminologia, que não tinha muito prestígio acadê-
mico na época, Ele e o Edmundo. O Edmundo, na realidade, já
tinha alguns textos escritos na década de 1970 e possuía posições
muito avançadas do ponto de vista teórico, já falava de ecologia
urbana, da escola de Chicago. Toda essa tradição de estudos cri-
minológicos que hoje estão sendo recuperados e que já indicavam
a importância de tentar compreender a distribuição espacial da
criminalidade. (BEATO, 2011, p. 284-285).

Outrossim, em variados momentos, os entrevistadores pautavam os entre-


vistados com uma suposição de que estaria mesmo Michel Foucault um pouco su-
perado, e vinha por aí novidades teóricas a partir da retomada de Émile Durkheim;
uma flagrante tentativa de buscar prestígio através da associação às raízes tradici-
onais da disciplina, sendo Durkheim um dos “pais fundadores”.

Juristas versus Cientistas Sociais, Segurança Pública versus Violência,


Política versus Ciência

Se por um lado, um quarto dos chamados "pioneiros"possui formação na


área do Direito, o que é refletido em uma das entrevistas (Sérgio Adorno) que diz
acolher pesquisadores com graduação em Direito na pós-graduação, há outra face
mais tensa com esta formação, ou mais propriamente, com o campo jurídico, do
qual os pesquisadores das ciências procuraram distanciar-se.

Nessa época, em 1987, o Paixão, que era membro da comissão


editorial da RBCS, me convidou para publicar um artigo. Mandei
o artigo e ele foi desqualificado por um advogado que era um
consultor da revista. Ele dizia que o meu artigo faltava com a ver-
dade, mentia, que não era nada daquilo que a minha etnografia

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descrevia, porque na Constituição dizia isso e no Código de Pro-


cesso Penal dizia aquilo, e o meu artigo dizia outra coisa!!! Coisas
do tipo: que a Polícia Civil não faz ronda, vigilância, a Polícia
Civil, e de acordo com a Constituição, trata do inquérito policial,
e quem faz ronda é a PM. Então, esse artigo só foi publicado em
1989, porque a editoria da RBCS mudou para o Rio. Mandou
me chamar e disse: “professor, mas esse seu artigo, como é que
fica?”. E eu respondi: “Fica. Eu já escrevi o que é, eu já respondi o
que o consultor criticou. Isso daí é uma maluquice”. Na minha
resposta critiquei, inclusive, a RBCS, como uma Revista Brasileira
de Ciências Sociais vai perguntar para um jurista o que ele acha
do que um etnógrafo fez? Quais são os critérios científicos disso?
O que um jurista tem a ver e que poder ele tem para desqualifi-
car o trabalho sociológico dessa maneira? Ele dizia: “falta com a
verdade”. (KANT DE LIMA, 2011, p. 128)3

O marco desta pequena, mas significativa, contenda marca a passagem


entre duas posições no subcampo de estudos, uma de então dominante, a dos
juristas, e a outra, a do então desafiador. Estas posições voltam à cena quando da
decisão de nomear um Núcleo de Estudos sobre o tema.

Falei com o Sérgio Adorno no IMESC, onde assistira a um se-


minário dele sobre violência que me encantara. Nossa ideia era
fundar um Centro de Estudos dos Direitos Humanos, inspirado
pelo Centro da Columbia University. Desistimos de colocar esse
nome por causa dos nossos colegas de faculdade de direito, que
eventualmente nos obrigariam a ter que negociar com eles; e
cá com meus botões, disse ao Sérgio: “não vamos entrar nessa!”
(PINHEIRO, 2011, p. 48).

Para um campo que se vê como consolidado, nos dizeres do livro, ainda


há questões centrais para serem debeladas, uma vez que mesmo sua nomeação
é inconstante, registrado pelo próprio título da obra em revista com três termos
distintos (As ciências sociais e os pioneiros nos estudos sobre crime, violência e
direitos humanos no Brasil – grifo meu). Esta forma frágil de nomear o campo é
refletida em tensões no ambiente acadêmico, como por exemplo a resistência em
tratar do tema em algumas Universidades, ou na resistência em alguns ambientes
acadêmicos a trabalharem com polícias.
Parece haver aí a construção de um campo de ciência aplicada, com poten-
cial de demarcar posição com outros saberes, como os saberes jurídicos e mesmo
com as polícias. Daí surgem os cursos de extensão em Segurança Pública, a direção
da formação policial por cientistas sociais, até cursos de graduação em segurança
pública, que à época da entrevista com Kant de Lima não existia, mas agora já
se trata de uma concretização na Universidade Federal Fluminense, como está
registrado em seu site:

O Bacharelado em Segurança Pública e Social é um curso de gra-


duação, na perspectiva das Ciências Humanas, Sociais e Sociais

3 Referi-me às falas das entrevistas como se fossem os entrevistados os autores de um capítulo


presente no livro das entrevistas.

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Aplicadas. Tem por objetivo a formação de profissionais especia-


lizados, capazes de interagir com o tema da Segurança Pública a
partir do ponto de vista da sociedade.
Características do Curso: A proposta se erige marcadamente pela
contribuição das disciplinas científicas compromissadas com a
promoção do Estado Democrático de Direito – tais como a An-
tropologia, Sociologia, Direito, Ciência Política, entre outras dis-
ciplinas das Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas, que
analisam criticamente a cultura punitivo-repressiva tradicional
brasileira. Tem por compromisso o desenvolvimento pleno de
suas potencialidades, para o alargamento e maior efetividade
dos direitos de cidadania, contrário, portanto, a particularização
dos conhecimentos de Segurança Pública em benefício de grupos
corporativos, particularmente no interior do Estado. (UNIVERSI-
DADE FEDERAL FLUMINENSE, 2016).

Manter-se em contato, em proximidade, em relação com o Estado parece


uma constante entre a maioria dos entrevistados, seja ocupando cargos, seja para
a determinação de financiamento de pesquisas. Pois há outra questão que emerge
de algumas entrevistas: se a formação do campo surgiu de uma demanda da
realidade social, ou se foi produto do contexto político de abertura democrática
nos anos 1980. Paulo Sérgio Pinheiro descreve que, nos anos 1990, os Governo
FHC ajudaram a financiar diversas pesquisas para o seu recém fundado Núcleo
de Estudos da Violência. “Celso Amorim, meu amigo do Rio de Janeiro, quando
era chanceler, teve a ou- sadia de pedir ao NEV para preparar com outros centros
e ONGs os informes para os órgãos sobre os tratados de direitos humanos.”
(PINHEIRO, 2011, p. 52).
Por conta, menciona-se também a ação de movimentos sociais, como os
feministas (PORTO, 2011; PINHEIRO, 2011; SILVA, 2011).

[pergunta:] Vou falar um pouco da minha impressão, não é nem


uma pergunta. Tenho feito uma distinção, marcando a década de
1980 como os anos da descoberta do problema, um pouco fruto do
movimento dos direitos humanos e do movimento de mulheres
também. [resposta:] E os movimentos contra o racismo também,
todos se somaram... Gays, portadores de deficiências também.
(PINHEIRO, 2011, p. 56).

Resultado de todas estas tensões seria como o “campo” de “estudos” se


configura hoje, tendo, por balizas as tensões internas à universidade, tensões com
o estado, as relações com a sociedade civil. Para César Barreira o campo hoje:

A temática da violência e dos conflitos aparece hoje cada vez mais


instigante, diversificando-se, tornando-se complexa e ganhando
novas configurações. As pesquisas tentam abranger temas novos
ou antigos com recentes contornos, a exemplo das análises sobre
o sistema presidiário, a violência juvenil em diferentes situações
de classe social, o tráfego de drogas e um possível “contrapoder”
nas grandes cidades. O assassinato do índio Galdino, ocorrido
em Brasília, envolvendo jovens de classe média alta, ampliou
a problemática da violência juvenil em outro patamar e com
novos contornos sociais, sendo incorporados aos estudos outros

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setores sociais, antes restritos aos trabalhos com jovens negros,


das classes menos favorecidas e habitantes de favela. Os estudos
sobre as práticas juvenis, compreendidas como violentas, nas
escolas públicas e também nas privadas, passam a ocupar um
lugar importante nas análises sobre violência. (BARREIRA, 2011,
p. 201).

Doutro lado, há o fato concreto da criação de cursos específicos para gradu-


ação em segurança pública, sendo uma delas, fruto da ação direta, em sucessivas
tentativas, de um dos entrevistados. Menos do que na em uma suposta configura-
ção ampla e plural da composição do campo de estudos, é no seu desenvolvimento
específico para a construção de um campo de “saber técnico” na área de segu-
rança pública que o discurso montado pelo livro ganha maior sentido e encontra
correspondência.

Ocupação de cargos no Estado

Há uma relação bastante presente na trajetória dos entrevistados entre o


trabalho acadêmico e ocupação de cargos no Executivo na área da Segurança
Pública, que remontam ao início dos anos 1980, nos governos do Rio de Janeiro,
na primeira gestão de Leonel Brizola, com Julita Lemgruber; e no Estado de
Minas Gerais, na reformulação da formação das polícias, com Antônio Luiz Paixão
dialogando com o comando da Polícia Militar de MG; com Paulo Sérgio Pinheiro
ocupando uma assessoria em Direitos Humanos nos Governos Fernando Henrique
Cardoso (1995-2002); com um Luiz Eduardo Soares dirigindo a Secretaria Nacional
de Segurança Pública entre 2003 a 2006; com César Barreira dirigindo a Academia
de Polícias do Ceará; com um dos entrevistadores (José Luiz Ratton) ocupando a
coordenação do Pacto Pela Vida do Governo do Estado do Pernambuco nos anos
2011-2014.
A relação dos intelectuais com o Estado é problematizada em vista da
necessidade de aqueles terem “autonomia”, uma preocupação em não estarem
pautados pelas visões oficiais no ofício de pesquisadores.

A formulação, em si, da política pública não é um problema


sociológico. É um problema político, envolve os agentes encarre-
gados de traduzir conhecimentos em políticas, enfrentar dilemas
e produzir programas e planos de ação. Discordo que nós, como
sociólogos, tenhamos que dar receita do que deve ser feito. O
que devemos fazer como sociólogos é a análise dos problemas,
entender as suas configurações, entender aonde as questões são
social e politicamente mais sensíveis, colaborar para a formação
da vontade política, para uma vez mais lembrar Foucault. [...]
acho que o sociólogo tem um papel muito importante, mas não
lhe cabe a responsabilidade pela aplicação de tal ou qual políticas
de segurança. Nisto reside justamente sua autonomia, a de poder
fazer a crítica. (ADORNO, 2008, p. 87-88).

Vê-se aí uma marcação entre duas posições – intelectual e a política – com


suas respectivas atribuições; mas há também o surgimento de uma categoria

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associada à política pública, qual seja, Segurança Pública, distanciada da produção


de conhecimento.

não faz sentido pensar segurança pública como uma área de co-
nhecimento. Trata-se de uma política pública; o campo de conhe-
cimento é este que estamos discutindo aqui, são essas questões
ligadas à violência e à conflitualidade, com todos os possíveis
desdobramentos; aí está o campo novo, em processo de cons-
trução, mas também, em alguma medida, já consolidado e cuja
produção será, ou não, utilizada enquanto subsídio para políticas
públicas. Eu digo “ou não” porque há um limite para além do
qual já não podemos, ou não devemos, intervir enquanto, entre
aspas, agilizadores de políticas públicas. A universidade pode ser
espaço legítimo para preparar os formuladores de políticas, mas
continuo acreditando que o campo de conhecimento é uma coisa,
e o da política pública, outra. (PORTO, 2011, p. 230).

Experiências em contextos políticos e agendas de pesquisas

As informações que seguem compõem um sistema de disposições e manei-


ras de ser duráveis comuns aos sujeitos que atuam no subcampo da segurança
pública, e são produtos da condição de existência e posição no espaço social; são
pensadas neste trabalho como habitus. Na medida em que se refletem e se repetem
na constituição de um subcampo, enquadra-se como estruturas incorporadas e
estruturas mentais que tendem a se ajustar as estruturas sociais ou, em outros
termos, que as estruturas cognitivas e avaliativas. (BOURDIEU, 2015, p. 285-286).
Michel Misse relaciona uma sua experiência com a repressão do Regime
Militar, em 1971, quando foi arrastado ao DOI-Codi e faz uma associação com a o
tipo de interpretação que desenvolveu em seus trabalhos acadêmicos sobre crime.

Essa pesquisa [sobre delinquência juvenil] foi desenvolvida em


1971 e 1972, nos dois anos da faculdade. Para que se sinta um
pouco o clima da época, eu estava saindo de casa para ir a uma
reunião de pesquisa, quando fui sequestrado no meio da rua por
policiais não uniformizados, que me levaram para o famigerado
DOI-Codi, da Rua Barão de Mesquita. Essa foi uma experiência
muito forte, que provavelmente influenciou muito a perspectiva
que comecei a adotar na pesquisa, que era a de não aceitar o crime
como patologia, a de não adotar uma visão patologizante sobre o
autor de um crime. (MISSE, 2011, p.5).

Da mesma maneira, Alba Zaluar associa seu posicionamento político e


sua passagem por uma organização política e atuação contra a ditadura com seu
trabalho acadêmico, a conexão com um debate com o marxismo.

Era um grupo contra a guerrilha, contra a luta armada. Sempre


tivemos essa postura de que a coisa tinha que ser feita pela de-
mocracia. Éramos eurocomunistas, em conflito com os da linha
chinesa e cubana. [...] eu e meu ex-marido estávamos em dois
inquéritos policiais militares e tivemos que deixar o país em 1965.
[...] Mas isso é importante dizer, porque é indicador da postura

Saberes em perspectiva, Jequié, v. 7, n. 17, p. 95–112, jan./abr. 2017


106 Paulo César Ramos

que sempre tive em relação à violência dos traficantes. Uma parte


da esquerda achava que isso poderia ser libertador; que isso era
uma coisa, se não completamente boa, com grandes aspectos po-
sitivos, pois era o povo armado que poderia fazer a revolução.
Nunca me enganei sobre esse potencial revolucionário, porque as
armas não mudam nada se os corações e mentes das pessoas não
estiverem engajados. (ZALUAR, 2011, p. 62).

Paulo Sérgio Pinheiro, é quem conta uma passagem envolvendo mais


pessoas de atuação política de enfrentamento à ditadura e a descoberta do tema
das prisões; este momento é uma condição marcada pela classe social e realiza
uma aproximação com outros segmentos sociais. A prisão surge como um desafio
ao marxismo que grassava na academia naquele contexto.

Basicamente foi o senador Teotônio Vilela, com a comissão da


Anistia no Senado, que revelou as condições das prisões onde
estavam presos os membros da resistência pacífica ou armada à
ditadura. Quem descobre a temática das prisões são os presos
políticos. A prisão para minha classe simplesmente não existia.
Minha avó, que era sofisticada e pagou até minha psicanálise a
partir dos meus 19 anos, ficou assustada porque, quando voltei da
França, em 1971, comecei a me preocupar com direitos humanos
e prisões. Uma vez fui com o Suplicy, o Eduardo Muylaert, a Ruth
Escobar, o pintor Darcy Penteado e uma delegação de travestis
protestar, junto ao delegado geral da polícia de São Paulo, contra
um deputado que adorava espancar travestis. Depois de me ver
na televisão, minha avó me chamou e disse: “Paulo Sérgio, foi
para isso que você foi educado, para se meter com isso? Você não
tem nada a ver com essa gente!” E a academia, mesmo a mais
progressista, não dava a mínima para as prisões. Por quê? Porque
o marxismo local não incorporava nenhuma noção de direito
internacional, de direitos humanos, e a democracia era uma insti-
tuição burguesa que não interessava muito aos que queriam fazer
a revolução, então não defendiam nem a democracia. Só depois
da repressão, quando os presos começaram a ser torturados, é que
a democracia passou a ter um valor universal, como reconheceu
o pensador marxista Carlos Nelson Coutinho. (PINHEIRO, 2011,
p. 47).

Luciano de Oliveira, igualmente assume a influência da convivência com


torturados e sequestrados pelo Regime Militar na sua formação como intelectual,
bem como na sua agenda de pesquisa. Novamente a prisão surge como ponte
entre segmentos sociais distintos marcados pela classe social.

Muitas pessoas em Aracaju do meu círculo de amizades começa-


ram a desaparecer [...] [Pergunta] O processo de distensão já em
curso. [Resposta] Já em curso! Então todos desapareceram numa
noite de sexta-feira e reapareceram uma semana depois, pois já
não havia os famosos “desaparecimentos”, mas todos saíram com
marcas de tortura, inclusive amigos meus bem próximos. Isso foi
uma coisa que me chocou muito e, definitivamente, me marcou
como pessoa e intelectual. (OLIVEIRA, 2011, p. 102).

Saberes em perspectiva, Jequié, v. 7, n. 17, p. 95–112, jan./abr. 2017


A formação do campo de estudos da violência no Brasil. . . 107

[pergunta] E o Doutorado? Como foi sua aproximação com o


tema da tortura? [resposta] Óbvio. Em primeiro lugar, porque foi
a tortura dos meus colegas em Aracaju que me levou a pensar
nisso como um possível objeto teórico, como um objeto acadêmico.
(OLIVEIRA, 2011, p. 107).
Quer dizer, quando surge essa consciência, essa cultura crítica
da violência policial, isso se dá no rescaldo da luta contra a di-
tadura. Foi durante o regime militar que descobrimos o que era
o inferno das prisões brasileiras, e devemos isso a gente como
Gabeira, Betinho e vários outros que produziram toda aquela
literatura memorialista que veio à luz logo depois da abertura
política, relatando que se passava nos porões do regime, mas
que as classes populares brasileiras conheciam muito bem desde
sempre. (OLIVEIRA, 2011, p. 108).

José Vicente Tavares dos Santos, fazer a mesma associação entre a luta
contra a ditadura a atenção para o tema da violência.

A questão da violência nasceu como uma questão social durante


a ditadura militar, com as denúncias e as campanhas contra a
tortura e pela anistia. Surgiu no bojo de uma luta contra a dita-
dura, e isso marca, talvez como tenham sido as greves no século
XIX, sua emocionalidade e grande dramaticidade. (TAVARES
DOS SANTOS, 2011, p. 177).
Fui representante dos estudantes no Departamento de Ciências
Sociais e no Conselho Universitário da UFC. As atividades polí-
ticas nesse momento foram, em grande parte, continuidade das
minhas participações no movimento estudantil secundarista de
1968. Neste período de grande agitação estudantil, com alguns
embates com a polícia (pode ter sido daí que surgiram minhas
preocupações com a área da segurança), eu era presidente do
Centro Estudantil Secundarista do Ceará. (BARREIRA, 2011, p.
194).
Tenho como hipótese o fato de que os diferentes embates, enfren-
tados pelos movimentos sociais, a partir de 1970, impulsionaram,
direta ou indiretamente, uma reflexão sobre o assunto violên-
cia. O movimento feminista, por exemplo, que no começo tinha
como temática a desigualdade social, passou a ocupar-se com as
denúncias de violência contra as mulheres. Os movimentos dos
negros, dos trabalhadores rurais e os de bairros e favelas passa-
ram a situar a violência no centro não só das atenções dos poderes
públicos, mas também dos interesses acadêmicos. (BARREIRA,
2011, p. 195).
Não sei exatamente quanto tempo demorei ao todo, mas acho
que só fui defender em 1991 ou 1992, tendo defendido o mestrado
em 1980/81 e não parando de estudar. Portanto, foram uns nove
ou dez anos. Nesse meio tempo, além da tese, especificamente, a
problemática da violência na filosofia política e no marxismo, em
particular, permanecia em foco. Isso se conecta com a minha mili-
tância na época da ditadura. Fui membro do Partido Comunista
Brasileiro, o partidão, e o grupo com o qual me identificava tinha
uma posição fortemente contrária à violência. Nossa ala se au-
todenominava eurocomunista. Éramos, na verdade, reformistas
social-democratas. (SOARES, 2011, p.238).

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Quadro 1 – Dados resumidos dos entrevistados


Entrevistadores Nascido Instituição UF Tema de entrada Formação Disciplina
Michel Misse Renato Sérgio de Lima 1951 NECVU / UFRJ RJ Delinquência Juvenil Ciências Sociais Sociologia
Julita Lemgruber José Luiz Ratton e Lud- 1945 CESeC / UCAM RJ Prisões Ciências Sociais Sociologia
mila Ribeiro
Paulo Sérgio Pinheiro Renato Sérgio de Lima 1944 NEV/USP SP Repressão Policial / Direito Ciência Política
Autoritarismo
Alba Zaluar Renato Sérgio de Lima 1942 UERJ RJ Pobreza Ciências Sociais Antropologia
Sérgio Adorno Renato Sérgio de Lima 1952 NEV / USP SP Prisões / egressos Ciências Sociais Sociologia
Luciano de Oliveira José Luiz Ratton 1952 UFPE PE Direitos humanos e pri- Direito Sociologia
sões
Roberto Kant de Jacqueline Sinhoretto 1944 INEaC / UFF RJ Sistema de justiça / Po- Direito Antropologia
Lima der judiciário
Luiz Antonio Ma- Ludmila M. L. Ribeiro 1941 UFRJ/UERJ RJ Pobreza, marginali- Ciências Sociais Sociologia
chado da Silva dade, mercados ilegais,
jogo do bicho
José Vicente Tavares Renato Sérgio de Lima 1949 GPVC/UFRGS RS Conflitos no campo / Ciências Sociais Sociologia
dos Santos rural
César Barreira José Luiz Ratton 1947 LEV/UFC CE Conflitos no campo / Ciências Sociais Sociologia
rural
Maria Stela Grossi Renato Sérgio de Lima 1945 UnB DF Conflitos no campo / Ciências Sociais Sociologia
Porto rural
Luiz Eduardo Soares José Luiz Ratton 1954 UERJ RJ Filosofia Letras Antropologia
Gláucio Soares Ludmila M L Ribeiro 1934 IESP/UERJ RJ Violência Política / Re- Direito Sociologia
pressão
Claudio Beato José Luiz Ratton 1956 CRISP/UFMG MG Estudos com métodos Ciências Sociais Sociologia
Quantitativos / Suicí-
dios
Edmundo Campos Candido Mendes de Al- 1939 UFMG MG Pobreza, crime e crimi- Sociologia Sociologia
Coelho meida e Renan Springer nalização da pobreza
Antônio Luiz Paixão Edmundo Campos Coe- 1947 UFMG MG Prisões Ciências Sociais
lho
Fonte: Elaboração própria a partir de Lima e Ratton (2011)

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Paulo César Ramos
A formação do campo de estudos da violência no Brasil. . . 109

Considerações nais e as questões que surgem

É ao se construir as posições que o espaço do campo se constitui e cons-


truindo o espaço que as posições se constituem (BOURDIEU, 2015, p. 556): so-
ciólogos nascidos no interim e as imediações dos anos 1940 com enfrentamento
à ditadura defensores da democracia, com associações com grupos de esquerda
ou movimentos sociais, como certa simpatia pelo marxismo, experiência com
gestão pública. É como se a luta transformasse o lutador, como se as experiências
proporcionadas pelo mundo social fossem capazes de agenciar sujeitos no mundo
acadêmico – o que seria válido para nossos “pioneiros”, mas também para Elias,
Bourdieu e Willians, e também para par Marx, Weber e Durkheim. Mas o que há
fora disso ainda?
Na querela entre “segurança pública” e “violência”, ou entre “direito” e
“violência”, não há o Universo, mas há uma universalidade sobre a qual se reflete
a tensão entre campo do conhecimento e o campo de política pública, ou entre
o papel dos intelectuais e o papel dos políticos, cujas posições estão sempre em
diálogo ou em conflito, são posições, mesmo, escorregadias. Supera-se o finalismo
de um discurso que busca legitimidade do campo acadêmico, com produção
teórica “sólida”, referências intelectuais do “cânone” – retoma Durkheim – assim
como desfazer o mecanicismo da explicação de uma trajetória que se constrói
balizada pela necessidade de ver-se reconhecido pelo Estado por meio das políticas
públicas.
Há, contudo, um concorde entre duas extremidades dos relatos no livro:
uma extremidade que é o aceite da necessidade da criação de políticas públicas a
partir do trabalho de pesquisa cujo emblema é a criação de um curso de Graduação
em Segurança Pública, a outra extremidade é a consonância sobre o surgimento
da questão para cada um dos pesquisadores como legado do contexto político de
sua formação inicial. Quero dizer que o que é proposto como características da
Graduação em Segurança Pública está dito também na fundamentação de algumas
experiências retratadas pelos entrevistados e conectadas com sua acadêmica;
vivências ideologicamente posicionadas e historicamente datadas.
Encontrar uma interpretação que fugisse ao cânone do jurídico era uma,
talvez, condição para sustentar um novo regime político fornecesse maior abertura
para a criação de um novo sistema de direitos sociais, individuais, mas também
políticos. Esta nova interpretação não poderia estar ancorada em material concei-
tual flagrado impermeável à nova agenda política que emergia no tempo novo que
se vinha se anunciando, como o marxismo. Contudo, não se podia fazer ignorar
os “populares”, os “trabalhadores do campo e da cidade”, atendidos por aquela
escola teórica. Um novo regime político carecia de uma fala sobre o mundo social,
e as Ciências Sociais é que trariam isso, uma nova forma de criar o mundo social,
com uma lógica própria. (BOURDIEU, 2015).
As prisões, assim, foram o objeto mais imediato para fazer a ponte entre os
atores de um campo de pesquisa com semelhantes inclinações político-ideológicas
e as experiências populares; ponte esta construída pelo contexto político que apro-
ximou um grupo social com preocupações políticas de problemas sociais que eram,
de certo modo, gerais no Brasil, como a violência policial, as péssimas condições

Saberes em perspectiva, Jequié, v. 7, n. 17, p. 95–112, jan./abr. 2017


110 Paulo César Ramos

das prisões, a seletividade nos processos legais, o poder discricionário do Estado


em favor da propriedade privada etc. Por outro lado, a força da produção aca-
dêmica sobre tais problemas não espraiou como o problema social Brasil afora,
estando concentrada institucionalmente em uma Unidade Federativa, o Rio de
Janeiro, com sete dos 16 entrevistados, e em 10 universidades (sendo apenas uma
em São Paulo.
Mas esta concentração regional e institucional pode ser a própria força
da “consolidação” do campo ou do “tema da moda”, pois há quatro instituições
representadas no Rio de Janeiro, estado este que tem histórico de produzir uma
imagem do que é considerado nacional no imaginário brasileiro. Trata-se de um
estado em que há maiores condições de produzir pressão midiática sobre o poder
público, e este sente-me mais impingido a dar respostas públicas sobre eventos
de natureza polêmica. Daí surge a necessidade de haver discursos com poder
explicativo para um público variado. Polêmicas, mídia e moda talvez tenham
impulsionado o tratamento acadêmico do tema da violência nas Universidades
cariocas.
Outra característica do livro que o torna incompleto é a ausência do ele-
mento econômico, de financiamento de pesquisas, mercado de trabalho dos pes-
quisadores e condicionantes de publicação de livros. Talvez isso tenha ocorrido a
fim de evitar tornar patente a íntima dependência das fundações de cooperação
internacionais (como a Fundação Ford que financia o livro) e dos Organismos
estatais nacionais e estaduais, o que viria a ferir a noção de autonomia, mesmo
que relativa, do campo.
Nomes de outros pesquisadores que não foram entrevistados, diálogos com
outras áreas de estudos, como a área da Saúde, temas de interface com a violência
ignorados ou pouco estudados, como a questão racial, etc., são objetos de análise
que merecem e irão ser melhor estudados nos próximos meses e incorporados ao
trabalho.

Referências

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Saberes em perspectiva, Jequié, v. 7, n. 17, p. 95–112, jan./abr. 2017


112 Paulo César Ramos

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