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Aos meus pais,


agradecido.
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Aviso aos que se animarem a ler (pelo menos é curto,


dá para terminar rapidinho):

Todos os personagens, doutrinas e fatos aqui


apresentados são completamente reais, mesmo que tenham
sido parcialmente criados na minha imaginação, com o
resto tendo sido mal copiado de outros lugares.
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É um final de tarde, em um sábado ensolarado, na


cidade de Santos.
Na pequena escada que leva ao quintal azulejado, em
uma casa de esquina no José Menino, há um jovem, de
seus 17 anos, sentado, com os cotovelos apoiados nos
joelhos, a cabeça enterrada nas mãos e os olhos fechados.
Está praticamente imóvel, já há um bom tempo.
Se pudéssemos, de alguma forma, penetrar em seu
íntimo, veríamos que os seus sentimentos estão em um
círculo vicioso, como se sob um comando de repetição
sem fim. Algum pequeno incidente no jogo de futebol,
uma pequena falha (ou a ideia de que tivesse havido uma
falha), era usado como pretexto para entrar nesse estado.
“Sou um fracasso”. Se a dor parecia diminuir, a mente
vinha em seu auxílio, renovando o movimento: mais uma
volta! E pensamentos sobre erros passados, se não tivesse
acontecido nada substancioso no dia, sempre podiam ser
invocados.

Eu fico ali sentado até me sentir satisfeito: a


identificação completa com a nulidade, o desvalor total.
Estranho alimento, com o qual me sustento por dias, até
necessitar de outra dose.
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II

No final das aulas, as portas das salas começam a se


abrir. Os estudantes saem. Lá estou eu: mais para magro;
não o mais alto da turma, mas quase; não o pior aluno da
sala, longe disso, mas certamente um dos mais
desinteressados.
O coração está aos pulos, embora isso não se perceba
de fora. Apenas a palidez e o suor, além de um certo
isolamento dos colegas, poderiam denunciar, aos que por
acaso prestassem atenção, a tensão interna.
É sexta, não há aulas à noite; as ruas na frente da
escola estão vazias. Esse detalhe é importante, pois
também entrou no planejamento: menos testemunhas.
Desde o começo do ano estou apaixonado por Vilma, e
resolvi que hoje, com a desculpa de que vou à livraria, irei
acompanhá-la. E vou convidá-la para ir ao cinema! É um
pequeno passo para a humanidade, eu sei, mas, para
alguém tão tímido, é como transpor o quase
intransponível.
Repasso mentalmente, mais uma vez: atravessar a rua,
como quem não quer nada. “Oi, Vilma, posso te
acompanhar?” Com um sorriso, ela responde: “Claro”.
“Vou ao Gonzaga, comprar ‘Rosinha, minha canoa’; você
já fez o resumo?” E assim por diante. Quinze minutos de
caminhada devem ser suficientes para que eu junte a
coragem necessária para o convite.
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Mas todo o cuidadoso esquema vem abaixo, pois ela


vai indo embora com amigas, e isso é demais para a minha
determinação. Dou-me por vencido.
Como consolo, penso que, pelo menos, estive perto de
tentar. O alívio que acompanha o momento é bom, e acaba
por me tranqüilizar.
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III

Estou na aula de português, quando a professora,


moderninha, e que gosta de inventar atividades diferentes,
não se restringindo apenas à matéria, vem com uma
pergunta: como se sabe que há amor entre duas pessoas?
E, para responder, ela vai escolher aleatoriamente um
número de chamada. O meu coração gela, de antemão. "Só
faltava sair o meu número", eu penso.
Ela olha para o livro de chamada, olha para a classe e
fala: "número 22". "Sou eu! Vai ter azar assim lá na
China". Fico trêmulo, vermelho. "O quê que eu sei sobre
isso? O quê que eu poderia saber sobre isso? Tenho só
quinze anos"!
Até hoje, só tive paixões platônicas. A menina da
primeira comunhão, que cheirava a sabonete Phebo. A
loirinha do colégio na frente de casa, blusa branca e saia
verde, a qual, aliás, nunca vi de perto. Gisleine, que eu
encarava na fila na entrada da aula, na 5a série.

Volto à realidade, nada boa, da sala de aula. Parece que


preciso responder, não há escapatória. Não sei de onde me
vem uma resposta, que até me pareceu lógica na hora (e
que ainda me parece, até hoje, fazer algum sentido):
"Quando as duas pessoas afirmam um compromisso".
Gargalhadas. Olho para trás e George, o meu melhor
amigo, quase cai da carteira, de tanto rir. Depois de um
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tempo, nem me lembro se a professora perguntou para


outros, ela mesma responde: "é pelo olhar".
Que enigma, uma situação tão estranha, não entendi
nada do que tinha acontecido. Depois da aula, George me
explicou: "ela fez isso porque a Tânia não tira os olhos de
você, cara; a 'fessora' quis dar uma forcinha, só isso. E
você nem se liga. Aliás, o que é muito bom para mim, que
gosto dela não é de hoje. Um a menos na concorrência,
que já não é pequena".

Mas só hoje me ocorre que não fui sorteado por causa


do meu azar. A professora me escolheu de propósito.
Desgramada!
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IV

Nos meses de maio e junho, em Santos, o clima


adquire características especiais. O ar fica fino, claro; o
sol, apesar de brilhar em um céu azul e sem nuvens, não
está tão forte, e faz até um pouco de frio.
As aulas de educação física têm sido na praia do
Gonzaga, pois a escola está reformando a quadra. Na noite
passada houve uma forte ressaca, e a areia está molhada
até a altura dos jardins.
Depois da pelada (pois é a isso que se resume a nossa
“educação física”) sempre se forma uma rodinha. Hoje
estamos conversando sobre o que cada um quer fazer na
vida. Na minha vez, empolgado, digo que quero fazer
filmes, e que vou começar pela estória da minha vida.
George ri, e diz: "cara, se a tua vida fosse um filme,
ninguém ia querer assistir".

Isso é só para mostrar como é o meu melhor amigo.


Pelo menos é sincero. E não consigo evitar o pensamento
de que provavelmente ele está cheio de razão.
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Afinal consegui terminar o colegial. Foram três anos


em que me arrastei penosamente. Basta dizer que o melhor
que a escola oferecia era o futebol jogado com bola de
tênis no recreio.
À minha frente, uma viagem para a Inglaterra, para um
curso de inglês. O combinado é fazer o curso, e viajar por
um mês pela Europa. Depois, voltar para fazer o vestibular
para Direito (ou Medicina). No aeroporto de Viracopos,
despedindo dos meus pais, penso que "esqueci" de dizer a
eles que pretendo continuar por lá, depois dos seis meses
de duração do curso.
- Então, filho, escreva toda semana, e lembre-se de
telefonar uma vez no mês. Mas se você achar um daqueles
telefones públicos com defeito, ligue todo dia.
- Tá bom, mãe.
- Até daqui a sete meses, filho.
- Até, pai.

Meses antes, conversando com eles sobre "o meu


futuro", consigo dizer a eles que gostaria de fazer cinema.
- Cinema? É muito bonito, realmente, meu filho, mas,
no Brasil, não dá sustento para ninguém.
- Você sabe o Milton, casado com a prima do seu pai,
formou na ECA, e hoje vive de fazer propaganda para os
milicos.
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Volto ao presente, pensando que é por isso mesmo que


vou estudar cinema na Europa, já que aqui não dá. Vou
dizer a eles aos poucos, para não traumatizar.
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VI

Desde pequeno eu gostei de ler. Gastava toda a minha


mesada comprando gibis. Do Pato Donald ao Pererê, da
Luluzinha ao Brucutu.
Depois veio a fase de super-herois. Meus preferidos
variaram com o tempo, mas talvez aquele com o qual eu
mais me identifiquei tenha sido o Homem Aranha. Ele
conseguia sair de situações impossíveis, através de um
esforço gigantesco de superação, tendo sempre como
motivação salvar alguém; afinal, era um heroi. Porém,
como Peter Parker, a sua identidade secreta, quase sempre
se dava mal.

Passei aos poucos para os livros. Lia tudo que me


chegava às mãos, era uma verdadeira "traça". Livros
policiais, de aventura, romances históricos, ficção
científica: eu nem escolhia.
Estórias que aconteciam em outras realidades sempre
me atraíram. Tarzan, no meio da selva, descobria em uma
caverna a entrada para um mundo subterrâneo, onde as
pessoas viviam como na Roma Antiga! Um jovem, ao ir
para o Velho Oeste, torna-se, em virtude de suas
habilidades, um renomado cowboy! Um cientista, na
Inglaterra vitoriana, era transportado, não me lembro por
meio de quais aparelhos que ele mesmo havia construído,
para outro planeta! Irresistível.
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Até posso como que ouvir George explicar: "é que


você é mesmo de outro mundo, vive completamente fora
da realidade".

Depois dos 15 anos, sentindo uma sede súbita de


conhecer e de compreender, que a escola não satisfazia,
comecei a ler livros de química, física, até eletrônica.
Enveredei pela psicologia e psicanálise, após ler a
"Interpretação dos Sonhos", de Freud. Mas, se houve algo
que nunca me despertou interesse, foi filosofia, tudo que
tentei ler me pareceu conversa para boi dormir.
O que mais me impressionou foram livros sobre
espiritualidade. Diziam haver uma outra realidade (e isso
me fisgou de maneira irremediável), mas falando desse
nosso mundo mesmo, ampliando os seus limites. Outras
vidas, outras dimensões, o desenvolvimento de poderes
internos latentes! Isso foi um prato cheio para a minha
imaginação.
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Mas nada disso explica...

...como eu vim parar aqui, no Nepal, aos 21 anos,


morrendo depois de cair por um barranco. "Mas quem
mandou você sair sozinho por aí, sem conhecer o local,
sem preparo nenhum? E ainda quis escalar aquela pedra,
para ver a paisagem!", diria a minha mãe.
Bom, talvez ainda não tenha chegado a minha hora.
Dizem que no momento da morte revemos a nossa vida
como um filme, em sequência, e eu estou revendo
aleatoriamente, em flashes desencontrados, acho que de
modo não muito diferente do padrão associativo comum.
Mas perdi sangue; sinto dor, difusamente, e não
consigo me mover. E já estou aqui há um bom tempo,
acho que já apaguei algumas vezes. Talvez não esteja
morrendo, ainda. Mas parece que irei.

Como explicar, então? Talvez tenham sido os sonhos.

Quando criança, sonhava muito frequentemente com


montanhas e paisagens geladas. Eu tinha um amigo, que
sempre me acompanhava, e me servia de guia em meus
passeios por esses locais. Realmente os conhecia muito
bem, pois me explicava tudo que eu perguntasse.
Ele me mostrava casas, bem diferentes das que eu
conhecia, habitadas por pessoas sorridentes, e que usavam
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chapéus engraçados. Ele me dizia que eram de um país do


Oriente, bem distante, bem próximo do céu.
Às vezes percorríamos lugares comuns, da minha vida
mesmo, então era ele que ficava meio deslocado, e quem
pedia explicações.
Não sei por quanto tempo isso se repetiu, mas, aos
poucos, deixei de encontrar meu companheiro de sonhos,
que passaram a ser sem importância, corriqueiros.
Somente a partir do meio da adolescência tive
novamente sonhos que deixaram marcas, deles me lembro
até hoje. Neles eu vivi coisas que me pareceram bem mais
do que sonho, tão reais como as experiências do dia-a-dia,
talvez até mais significativas.

No primeiro deles, que serviu como que de introdução


ao tema, havia três baleias perto da praia; uma delas era
chamada de “a mais velha”, e a ela eu pedia que me
‘ensinasse os segredos’. Que segredos eram? Não sei, ao
acordar não me lembrava se ela havia respondido.

Por essa época, sonhos com montanhas voltaram a


ocorrer. Eu via paisagens e pessoas que afinal identifiquei
como sendo tibetanas. Vez ou outra havia um personagem,
como que um monge, em vestes de um vermelho quase
vinho, que me parecia muito familiar.
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O segundo sonho marcante foi assim: estava em uma


casa assombrada; meus pés são, subitamente, presos no
chão de tábuas, por um fantasma que está por baixo dele.
Faço algo como uma conjuração e o forço a aparecer,
porém ele se rompe, como um balão pressionado por duas
forças contrárias, e some novamente. Vou atrás, busco-o,
quero conversar, fazer amizade. Encontro-o e peço que
apareça, da forma como era antes de morrer. Pergunto-lhe
como é a morte.
De repente, estou deitado e não consigo me mover;
sinto como que mordidas pelo corpo. Vem a compreensão,
sei que estou em um túmulo, e pergunto ao meu
interlocutor: “É assim, foi assim?”. Com o passar do
tempo (apenas horas, ou dias?), consigo, aos poucos,
mover o braço, ou a cabeça; estou ainda sob a terra,
embora não mais totalmente preso. Meu amigo sempre
passa por lá, para conversarmos.
Um dia, estou ao seu lado, consegui sair do caixão, e
nem havia percebido como. Peço para que ele me mostre
qual era eu (o local está cheio de cadáveres, dos mais
diversos aspectos, bem como vários caixões enfileirados).
Ele me diz, sem palavras, que sempre é assim, os que
morrem querem ver o próprio corpo. E me responde:
“qualquer um é o seu, são todos iguais”.
Saio pelo local, feliz com a liberdade. Sinto então forte
desejo de ver meus pais, dar-lhes algum sinal. Sei que, se
o desejar intensamente, irei imediatamente ao local onde
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estão; e isso realmente acontece. Logo estou em Santos,


indo por uma rua quase sem movimento; eu chorava e
gemia por tudo que havia perdido. Virei uma alma penada,
penso, e começo a rir. Pelo menos não perdi a capacidade
de achar graça.
Lá estava minha mãe, na varanda, mas pouco mudara;
não havia, concluo, se passado muito tempo. Olha em
minha direção, mas não me vê. A porta se abre e sai meu
pai. Lentamente fui acordando.
Esse sonho me deixou meio que fora do ar, por uns
bons dias. Senti como tendo sido uma experiência
realmente vivida, o que é engraçado, pois não foi uma
vivência, e, sim, uma “morrência”.
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O jogo

Algum tempo depois sonhei que ia participar de um


jogo. Eu estava vestindo botas, luvas, estava em um
vestiário, talvez houvesse outros como eu, também se
preparando.
Nos anos 70 passou um filme nos cinemas, chamado
“Rollerball”. A lembrança que eu tenho é de que a estória
se passava no futuro, e havia esse jogo, que era o grande
sucesso popular, tipo “pão e circo”, de uma sociedade
decadente; era como um hóquei sobre patins, muito
violento, paulada pura. O clima, durante a minha
preparação, era como se eu fosse participar de algo
semelhante ao que ocorria no filme.
Entro em uma grande arena. Havia muitas pessoas,
formamos uma roda. Aos poucos, começamos a fazer um
movimento circular, lento, e iniciamos um canto, que
marcava o ritmo dos participantes.
“Eu rodo e sou rodado, eu rodo e sou rodado” era o
refrão. A música vai acelerando. Movimentamos braços e
pernas, e há como que correntes, ou laços, em nossos
membros. Essas correntes, ao tocar em outras pessoas, se
prendem a pontos especiais das vestimentas, com uma
força de ligação variável. Cada pessoa tem, em suas
indumentárias, várias correntes e vários pontos de ligação.
Tudo vai bem enquanto o ritmo é lento, e os
movimentos permanecem suaves. Mas isso se intensifica,
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a música aumenta, o círculo se faz e desfaz rapidamente.


Parece que não há limite, a cada volta se acelera o ritmo.
As ligações se fazem e desfazem com mais violência,
freneticamente. Começam a ser amputados membros,
sangue jorra por todos os lados, gritos de dor e sofrimento
se misturam à música.
Em dado momento, vejo novamente uma mulher, em
quem já havia reparado logo no início. Linda. O meu
coração se constrange por sua dor, gostaria de ajudá-la,
mas isso, é claro, é impossível. Em diversas ocasiões isso
se repete, o meu olhar é atraído por sua beleza e sua dor.
Durante essas voltas, o que era só um círculo se
transforma em vários, uns dentro dos outros, movimento
vertiginoso. Os mais fortes resistem mais, mas também
são feridos, destroçados.
E não parece haver fim possível, realmente, a não ser
com a morte de todos.
Súbito, no auge do meu desespero e sofrimento, ouço
que me dizem que o que mantém o jogo é a força, a
resistência que cada um emprega para tentar não ser
despedaçado, o que, além de ser, a médio e longo prazo,
ineficaz, acaba causando o destroçar dos outros. E
recomendam:

“Não resista!”

“Entrega-te ao movimento!”
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“Aceita!”

Vejo que quem me fala é alguém que está livre das


correntes. Participa, ainda, do jogo, mas de uma outra
forma, em função de auxílio. Quem está imerso no
desespero e na dor, no ritmo alucinante do movimento,
não consegue perceber nada além do próprio sofrimento,
eu concluo, pois não me parecera, antes, haver
participantes que estivessem em condição diferente da
minha.
E tento seguir os seus conselhos. A princípio, sinto que
serei ainda mais despedaçado, se não resistir, mas insisto
nessa nova abordagem.
Maravilha! Aos poucos, consigo entrar na dança, os
braços acompanham o mover dos outros, as pernas
também o fazem, e me faço parte do movimento, não mais
contra ele, agora sou um com o ritmo, um com a música.

E percebo que estou livre.


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Em um grande salão

É um grande salão de festas, com suas paredes pintadas


em padrões florais, repetitivos, com muitos detalhes em
dourado. No teto, pinturas, também ornamentadas em
dourado, representando cenas e paisagens de uma vida de
fausto.
O salão é iluminado por muitos candelabros de cristal,
e os numerosos espelhos refletem sua luminosidade por
todos os lados.
Na grande mesa, apenas uma mulher, vestida em trajes
suntuosos, janta. À sua frente, diversos pratos, de rica
aparência.
Mas, por mais que coma, sente-se cada vez mais
esfomeada. Continua, então, freneticamente, a comer; traz
para perto as travessas, serve-se de mais alimento, serve-se
de mais e variados temperos.
Por um tempo isso se mantém, até que ela cai em si.
Apesar de comer, emagreceu a olhos vistos, aos poucos se
revelando apenas pele e ossos, esquelética.
As luzes esmaecem, o que antes era riqueza mostra-se,
agora, ilusão. Sujeira, decadência, decomposição. Suas
roupas, que pareciam tão belas, são na realidade apenas
andrajos.
E todas aquelas ricas iguarias, as quais comia
insaciavelmente, eram suas próprias entranhas.
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Crepúsculo

As sombras se estendem sobre a paisagem. Longe, em


um caminho circundado por montanhas de ferro, vem a
mulher. À sua frente, apenas desolação. E, até onde a vista
alcança, olhando na direção de onde ela veio, também
apenas terras desertas; como único aspecto diferente, bem
ao longe, vê-se o brilho prateado de um rio cheio de
curvas.
Ela não sabe mais seu nome, nem há quanto tempo
caminha. Não consegue concentrar seus pensamentos por
um segundo sequer, eles voam desenfreados, como folhas
ao vento, e não lhe dão descanso.
Ouve sons como de uma tempestade se aproximando,
trovões que a assustam terrivelmente, pois é como se
pudesse distinguir, neles, vozes que a ameaçam:
“Vamos matá-la!”
“Cortem-na em pedaços!”

Às vezes, em breves momentos de alguma calma


interior, pensa que há algo errado: não deveria estar
sozinha, não deveria estar ali.

Mas logo se distrai novamente.


E segue caminhando.
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Feras

Já não aguenta mais correr. Cai, e não consegue se


erguer.
Suas roupas estão rasgadas, pelo contato com os
espinhos e galhos da floresta em que se encontra. É uma
floresta silenciosa e cinza, não há pássaros, não há a luz do
sol.
Seu corpo está todo lanhado, a pele feita em pedaços,
com sangue ressecado misturado a sangue recente, ainda
quente.
Sua respiração, ruidosa, gera nuvens de vapor, ao se
condensar. Sente o frio, porém, não em sua pele, mas por
dentro, como que no interior nos ossos.
Ouve os uivos das feras. Treme de pavor, o medo
preenche o seu peito. Volta-se e, à distância, em uma
clareira no topo de uma montanha, vê enormes cães,
negros e disformes. Eles a vêm perseguindo há dias,
incansavelmente.

Arranjando forças não sabe onde, ergue-se, e volta a


correr.
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Labirinto

Em um momento de lucidez, em que quase se lembra


do próprio nome, vê a si mesma no centro de um círculo.
À sua volta, ela mesma, repetidas vezes, em variadas
situações, como cenas de um filme, formando um labirinto
intricado: fugindo de feras em uma floresta; em um salão
de festas ricamente decorado; em um caminho desolado; e
vários outros cenários, todos eles ruins. É como se
estivesse presa em um pesadelo interminável.

“O que estou fazendo aqui?”, ela se pergunta. “Quero


sair!”
Mas não vê saída.

É obrigada? Obriga-se? Sabe apenas que iniciará o


mesmo percurso, novamente. E que, quando o terminar,
voltará a se perguntar onde está, voltará a procurar uma
saída que não vê, e voltará a percorrê-lo do início ao fim.

Em um grande salão de festas...


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IX

Mas a minha vida realmente só tomou outro rumo


depois que eu cheguei na Inglaterra.
Tudo me parecia muito familiar. As paisagens de
Bournemouth, a pequena cidade litorânea para onde eu
tinha ido, não me lembravam de Santos, nem um pouco,
mas uma estranha sensação de reconhecimento vez ou
outra me surpreendia.
Fui para Londres, em um final de semana logo no
segundo mês da minha estada, e aquela impressão, antes
apenas eventual, se intensificou muito. As pessoas, as ruas,
o clima cinzento e frio, a língua e os seus diferentes
sotaques, tudo ressoava internamente.
Experimentei, em diversos momentos, sensações de
dejá-vu. Eu chegava a uma esquina e, antes de virá-la,
vinha-me à mente a ideia de como seria a outra rua, e
algumas vezes era como se isso se confirmasse, embora,
outras vezes, não, o que sempre me deixava com a
impressão de ter sido enganado.
Isso se repetiu também nas outras duas ou três vezes
em que lá estive, em outros finais de semana durante o
período do curso. Eu me dizia, brincando, que só poderiam
ser lembranças de outra vida. A verdade era que lá, em
Londres, eu me sentia em casa, e, aos poucos, acostumei-
me com aquela sensação.
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Ao mesmo tempo em que isso acontecia, retornaram os


sonhos com montanhas cheias de neve. Essas imagens me
vinham à mente frequentemente, nas aulas, nos passeios,
em todos os momentos. Resolvi desistir de estudar cinema,
pois agora tal ideia me parecia infantil, um pálido
propósito comparado a algo que estava começando a se
aproximar de uma obsessão.
Após os seis meses de estudo mudei-me para Londres.
Comecei a trabalhar para juntar dinheiro; como imigrante
ilegal, os empregos que podia ter eram "marginais":
auxiliar de cozinha em um pequeno café, carregador de
malas em um hotel de subúrbio, e assim por diante. Mas
não faltaram oportunidades.
Meus pais, depois do trauma inicial, quando lhes disse
que não voltaria tão cedo, continuaram a me mandar uma
grana, esperando que aquilo fosse apenas uma loucura
passageira, nada além de uma aventura juvenil.

Assim, quase dois anos se passaram, durante os quais


eu busquei, minimamente, me preparar para atingir o
objetivo que, não sei exatamente por que, eu escolhera: o
Annapurna, no Nepal. É claro que não pretendia escalá-lo,
isso estava além das minhas habilidades. Eu fizera
algumas excursões a montanhas na Escócia, que, embora
não sendo altas, proporcionaram-me alguma experiência, a
qual julguei suficiente.
!26

Curiosamente, observei que durante esse período, em


que me consagrei quase integralmente à concretização de
um fim, de alguma forma foram alterados antigos padrões
emocionais. Não me entregava mais às sessões de
"autotortura", embora o sentimento de fracasso, vez ou
outra, ainda manifestasse a sua presença.
E surgira em mim uma sensação nova, de
autoconfiança. Eu me sentia capaz de poder explorar um
pouco a décima mais alta montanha do planeta, e, quem
sabe, ao mesmo tempo desvendar as causas da atração que
ela exercia.
!27

O menino...

...saiu da tenda, tecida com pelo de iaque, e olhou para


o céu, de um azul cristalino, limpo de nuvens. O dia estava
ainda muito frio, mas ensolarado. A neve que caíra à noite
logo começaria a ser derretida pelo calor do sol.
O vento lhe trazia os sons da ordenha, que sua mãe e
sua irmã haviam iniciado, como em todos os dias.
Ovelhas, cabras e iaques constituíam a riqueza de sua
família, que vivia, da mesma forma que seus antepassados
o fizeram, por gerações incontáveis, do seu manejo.

À sua frente se estendia uma grande planície,


entremeada com elevações de diversas alturas e aspectos.
Bem ao longe, ele avistava vários picos montanhosos,
cobertos de neve. Respirou fundo, sorriu um sorriso de
felicidade infantil, sem motivo, e tornou a entrar na tenda.
Havia um fogo aceso, alimentado por esterco de iaque, ao
qual podia ainda se aquecer um pouco mais, enquanto
terminava de comer sua tsampa.
Aos sete anos, ainda não tinha muitas obrigações.
Acompanhava seus irmãos, quando eles levavam os
rebanhos para pastar, preparando-se para fazer o mesmo,
no futuro. Na maior parte do tempo, apenas brincava e se
divertia, junto com as outras crianças do pequeno
acampamento, que era compartilhado por apenas quatro
famílias.
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Hoje seria um dia especial, pois sairia em viagem, pela


primeira vez, com seu pai e seu irmão, para irem
comerciar carne, manteiga, lã e peles, bem como o sal que
haviam recolhido às margens de um dos lagos do
changtang, o platô norte tibetano.
Isso ocorria anualmente, pois o pastoreio estrito não
lhes fornecia alguns dos itens necessários para a
sobrevivência, como os grãos, o chá e diversos produtos
manufaturados, e precisavam do intercâmbio com os
fazendeiros e artesãos que os produziam.
Feita sob os rigores do inverno, quando podem ocorrer,
em um mesmo dia, todas as variações climáticas possíveis,
e sendo necessário cruzar vários passos entre as
montanhas, com altitudes acima dos 5.000 metros, onde a
temperatura fica muito abaixo de 0 graus, essa jornada não
era exatamente um passeio no campo.
Porém, os nômades encaravam o desafio como parte de
suas vidas, e não apenas não se queixavam, mas ainda o
aguardavam com alegre antecipação.
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Na pequena vila

Após um mês de viagem, chegaram ao local onde o


comércio seria realizado.
O pequeno ajuntamento de casas mal poderia ser
chamado de vila durante a maior parte do ano. Mas, a cada
inverno, centenas de nômades e de comerciantes ali se
estabeleciam. A riqueza produzida na vastidão do
changtang era essencial à vida em todo o Tibet, e essa e
várias outras pequenas localidades como ela eram os seus
pontos de entrada na 'corrente sanguínea' da nação, à qual
vivificava e nutria.

O movimento, as cores, o burburinho, tudo isso era


novo para o menino. Mas algo especialmente chamou-lhe
a atenção. Em meio aos comerciantes e nômades
barulhentos havia pessoas diferentes, vestidas de
vermelho, que tinham as cabeças raspadas. O contraste
que eles ofereciam era marcante, pois eram mais
silenciosos, tinham os gestos mais comedidos, e um certo
ar de algo diferente, que o menino, é claro, não saberia
explicar.
Apontando-os, perguntou a seu pai quem eram.
- São monges.
- Mas o que são monges?
- São pessoas que não vivem como nômades, nem
como fazendeiros, nem como comerciantes. Moram
!30

juntos, em um templo, compartilhando-o como uma


família compartilha a sua tenda. Dedicam-se a uma vida
meritória, seguindo os ensinamentos do Budha.

Curioso, passou a acompanhá-los, inicialmente de


longe, e aos poucos se aproximando. Um deles, apenas
algo mais velho que seu irmão, interessou-se por ele,
dando-lhe atenção, contando estórias, conversando.
Tal incidente, em si tão simples, traria algumas graves
consequências, nos próximos meses.

Quase uma semana após terem chegado, tendo


conseguido todas as mercadorias de que necessitariam
durante o próximo ano, partiram de volta rumo ao
changtang.
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De volta

A imagem dos monges ficou em sua cabeça. Começou


a sentir algo que não conseguia traduzir em palavras, e que
seu organismo expressou na forma de uma agitação, uma
inquietação insatisfeita.
O céu, o ar tão fino do deserto e as cores esplendorosas
da paisagem já não atraíam o seu olhar pela manhã, nem
lhe davam o mesmo prazer incontido.
Quando entendeu que era algo que queria, e o quê era
esse algo, disse a seus pais: "quero ser monge".

No início, sequer lhe deram atenção, pois um nômade é


um nômade. É claro que havia estórias sobre nômades que
se tornaram monges, mas isso era quase incompreensível
para eles. Apesar de saberem que os méritos que se
acumulam por uma vida como monge são muitos, nem
assim cogitariam trocar a vida livre e fácil que levavam
pela árdua vida em um mosteiro.

Mas o menino parou de brincar; por mais que sua irmã


o chamasse, já não era atraído por aquelas coisas que um
menino nômade fazia, e que havia feito até então; as outras
crianças, alegres por tão pouco, capazes de transformar,
em sua imaginação, pedras amontoadas em fortalezas, ou
que, com a ajuda de um par de chifres de antílope, se
transmutavam elas mesmas nesses animais, passaram a ser
!32

como estranhos, era como se falassem uma língua


diferente, ou como se vivessem em um outro mundo, sem
brilho e desinteressante.

A chegada do verão amenizou em certa medida essa


situação, pois o ressurgimento da vida, luxuriante e bela,
espalha por todos os lados do platô tibetano uma poderosa
mensagem, à qual o menino não conseguiu ficar
indiferente.
Seus pais ficaram felizes, pensaram que o filho já havia
se recuperado, e esqueceram o assunto.
!33

No inverno seguinte

Os pais, quando a época de viajar chegou, cogitaram


que seria melhor não expor o filho novamente, tão cedo,
àquela influência perturbadora. Não lhe disseram nada,
porém. Simplesmente um dia, ao acordar, o menino viu
que seu pai e o seu irmão haviam partido.

Em seu retorno, mais de dois meses depois, eles


encontraram o menino adoecido. Não conseguia comer,
não levantava do leito, seus olhos não tinham mais o
mesmo brilho.
Imediatamente, seu pai se pôs novamente em viagem,
em busca da ajuda de um nômade de outro acampamento,
distante dois dias de caminhada, o qual tinha capacidades
mediúnicas.

Após acender incenso e algumas lâmpadas de


manteiga, em oferecimento aos deuses das montanhas, o
nômade xamã entoou mantras, durante um tempo que
pareceu muito longo. Em seu transe, as divindades falaram
através de sua voz: "para permanecer nessa vida, e ter
chance de cumprir seu Dharma, o menino deve se dedicar
à Luz Sem Limites".
Depois de um curto silêncio, mais algumas palavras, à
guisa de indicações de localização, e só. O médium aos
poucos saiu daquele estado, e, cansado, dispensou o pai do
!34

menino, dizendo-lhe que não poderia ajudá-lo mais, pois


nunca tinha consciência do que as divindades diziam
através dele, e que, se os pais tivessem mérito suficiente,
compreenderiam o significado da mensagem.
!35

No mosteiro

Era um mosteiro pequeno, não mais do que vinte


monges viviam ali. Erigido a meio caminho de uma
montanha com belos picos nevados, acima de um pequeno
vale cultivável, por seu isolamento demonstrava que, ali, a
meditação e o recolhimento eram a prioridade.
A prestação de serviços religiosos aos leigos, que, em
mosteiros menos isolados, responde por boa parte da
receita dos monges, ali não era praticada, exceto em raras
e excepcionais ocasiões.
Para o seu sustento, os monges plantavam um pouco
de cevada, que consumiam como farinha torrada, a
tsampa; tinham, também, um grande rebanho de cabras e
ovelhas, arrendado a famílias de pastores, de quem
recebiam, anualmente, uma determinada quantia de
manteiga e lã.
Veneravam odpagme, ou Amitabha, o Budha da Luz
Infinita, que assegura uma passagem propícia pelo bardo
da morte, e praticavam as técnicas de transferência da
consciência, que trazem a habilidade de transitar
conscientemente pelos seis bardos da existência.

Lá, o menino foi recebido com satisfação, pois, mesmo


no Tibet, poucos são os que se tornam monges por uma
vocação real, por sentirem uma atração irresistível pelo
!36

árduo e longo caminho da liberação do Samsara, a roda


cíclica dos nascimentos e mortes.
Ele começara a recuperar a saúde uma semana após a
volta de seu pai, e participara, com crescente entusiasmo,
do esforço que sua família empreendeu para compreender
o sentido da mensagem que lhes transmitira o xamã.
Foi preciso esperar, após descoberta a destinação, até
que o menino estivesse forte o bastante para suportar a
longa viagem necessária. Porém, esta transcorreu sem
problemas, e, aos nove anos, o menino foi entregue por
seus pais à vida monástica, sendo aceito como noviço pelo
lama abade.
!37

Em pouco tempo...

...o menino recuperou a vivacidade, estado mais


apropriado à sua idade e temperamento. Logo, de maneira
natural, acostumou-se com a disciplina monástica, apesar
desta ser estrita e rigorosa.
O aprendizado da leitura, e, posteriormente, da escrita,
ocupou a maior parte dos seus dias, durante os primeiros
anos depois da sua chegada. À memorização dos textos
sagrados e dos rituais, que é o primeiro estágio da
formação dos monges tibetanos, entregou-se como a um
jogo, a uma brincadeira, e, também nessa área,
demonstrou facilidade desconcertante.
Afeiçoou-se a alguns monges mais do que a outros,
como seria de se esperar. Entre esses, aquele a quem
chamavam de tsherma, ou Espinho, que também parecia
distinguí-lo com mais atenção do que os outros, ocupando-
se, sempre que possível, da sua educação.
A seus olhos de criança, Espinho era como que um
mago, pois era capaz de dar nomes diferentes a todas as
coisas, nomes que ninguém mais entendia, e sempre
mostrava, com seus comentários e ações, pontos de vista
intrigantes, que os outros monges, exceção feita ao abade,
não pareciam entender.
Com o passar do tempo, desenvolveram um
relacionamento de professor-aluno, ou mestre-discípulo,
outra importante faceta do caminho monástico no Tibet.
!38

Bardos

- Irmão Espinho, esclareça-me, por favor, em relação a


uma questão, para a qual não consegui encontrar resposta.
Durante a viagem que fiz para vir ao mosteiro, anos atrás,
fizemos uma estadia em uma cidade, e lá vi algo que me
encheu de assombro, e que, desde então, às vezes
frequenta o meu pensamento. Recentemente, ao ler certas
passagens das nossas escrituras, voltaram-me à mente
essas lembranças.
- E o que foi que lhe causou tal perturbação, pequeno
irmão?
- Eu estava fazendo a perambulação ao redor do
templo, e havia, na rua de trás, uma mulher, junto à qual
estavam várias pessoas, que a ouviam atentamente e, por
fim, lhe davam esmolas. Ela contava que, em sua
juventude, pouco após o seu casamento, tinha morrido, e,
após seis dias no além-vida, disseram-lhe que houvera um
engano, não era ainda a hora da sua morte, e que ela
deveria voltar a esse mundo.
Ela descrevia a sua estada no reino de shinjé, o Senhor
dos Mortos, com suas paisagens terríveis, terras desoladas
com altas montanhas de ferro, com florestas cujas árvores
têm navalhas por folhas, e as penas pelas quais os seus
habitantes passavam. Muitos deles lhe pediram que
transmitisse mensagens aos entes queridos ainda vivos,
!39

que lhes dissesse que vivessem conforme os preceitos do


Budha, senão, como eles, sofreriam aqueles tormentos.
Desde que voltara ao seu corpo e à sua vida, passava os
dias orando e relatando, a quem quisesse ouvir, as suas
experiências no além.
Na ocasião, lembro-me de ter sentido muito medo de
que aquilo acontecesse comigo. A possibilidade de que
enganos pudessem ocorrer, quanto ao momento do término
dessa minha atual existência, trouxe-me uma certa
insegurança.
- Compreendo. Essa mulher que você descreveu é uma
délok, alguém que foi ao mundo dos mortos e voltou. Se o
que permite que isso aconteça é um engano, não o sei. Os
relatos, pois há vários casos antigos registrados, parecem
concordar nesse ponto.
- Porém, irmão Espinho, o que não consegui
compreender é que, em meus estudos, aprendi que a
passagem pelos domínios de shinjé é limitada no tempo,
durando apenas quarenta e nove dias. E, no entanto, essa
mulher dizia ter encontrado pessoas que lá estavam havia
vários anos, como se presas ou retidas.

Nesse instante, ocorreu um silêncio na conversa, e o


jovem monge teve a percepção de que algo diferente se
passava com o monge mais velho, algo como que uma
ausência, um distanciamento, e viu uma sugestão de
sofrimento em sua face, sempre tão equilibrada. Mas isso
!40

durou apenas um fugaz momento, sua expressão logo


recuperou a costumeira calma, e ele retomou a fala.
- Sim, jovem irmão, isso parece ocorrer eventualmente.
Quanto aos motivos porque isso se dá dessa forma, já não
há muita clareza. Veja, o bardo dos mortos, a passagem
entre uma vida que termina e o próximo nascimento, é
apenas um dos seis principais bardos, os períodos
transicionais entre os planos da existência.
De certa forma, podemos até considerar todo pequeno
instante de nossas vidas como um bardo, pois cada um
deles sempre é a transição entre o que foi e o que virá a
ser, oferecendo, bem como exigindo, escolhas.
Penso que, da mesma forma que podem ocorrer
obstáculos que dificultem o livre fluxo de nossas vidas,
como o medo que paralisa, ou o ódio que cega, tais
impedimentos podem surgir durante os seis bardos
maiores, gerando como consequência a continuidade de
algo que deveria ser apenas transitório.
O caminho específico que seguimos em nosso mosteiro
leva à liberação através do domínio consciente e perfeito
desses estados de transição, quer sejam curtos ou de longa
duração, e, com esse domínio, a livre passagem de um
para outro, à vontade, é atingida. Tal conquista permite,
àquele que a obteve, auxiliar, por compaixão, aos seres
sencientes que porventura se encontrem nessa condição de
suspensão do fluxo contínuo da existência.
!41

Carma e compaixão

Durante a época do plantio, o jovem aproveitava para


acompanhar os monges mais velhos, auxiliando-os, e, em
troca, ouvia estórias e ensinamentos. Em uma dessas
ocasiões, pediu:
- Irmão Espinho, por favor, esclareça-me sobre o
carma e a compaixão.
- O carma é algo como o modo que os nômades
amarram suas cabras na hora da ordenha - decerto você
ainda se lembra como isso é feito - a cabeça de uma ao
lado da cabeça da anterior, voltadas em direções opostas,
formando uma longa corrente.
Entre dois ou mais seres sencientes se estabelece essa
ligação, como consequência dos seus atos. A cada ação
corresponde uma reação, sendo que a série de ações e
reações pode ser benéfica ou maléfica, positiva ou
negativa. A compaixão é como soltar as amarras negativas,
ato que potencialmente liberta aqueles seres anteriormente
ligados. Para explicar melhor, vou lhe contar uma estória:

"Há cerca de 300 anos, em um pequeno vilarejo a leste


de lhasa, na região de kham, assumiu a liderança um
jovem, após a morte de seu pai em uma escaramuça com
bandoleiros. Essa região do Tibet é muito diferente das
vastidões áridas que você conhece, pois possui, em boa
parte de seu território, um clima mais ameno, com muitas
!42

florestas e muita água, tanto a trazida pelas monções no


verão, como a que vem do grande platô, e que dá
surgimento aos Quatro Grandes Rios.
Por lá passam muitas caravanas vindas da China, de
Burma e da Índia. Os seus moradores são pessoas muito
aguerridas e independentes, tendo, ao longo dos séculos,
enfrentado várias vezes tanto o poder central de lhasa
como invasões dos mongóis e dos chineses.
Aquele jovem, chamado tenzin, colocou-se como
objetivo pacificar a região sob o seu comando, e, para isso,
empreendeu vários ataques contra os muitos bandos que
assolavam aquelas terras.
Em poucos anos, com perseverança e diligência, ele
conseguiu o seu intento, e a prosperidade estabeleceu-se
em seus domínios. Com o tempo, constituiu família, teve
três filhos, e a vida lhe sorria.
Mas os bandoleiros sobreviventes se uniram, sob o
comando do mais terrível dentre eles e, aos poucos,
aumentaram suas forças. Quando se sentiram preparados,
um grupo criou uma cilada, atraindo o jovem líder a um
local um pouco distante, enquanto os restantes atacaram o
vilarejo, matando muitos, inclusive toda a sua família.
O que se seguiu foi uma feroz retomada das lutas entre
bandidos e o chefe tribal, já não tão jovem, endurecido
pelo ódio e pelo desejo de vingança. Jurou matar o chefe
dos bandoleiros, e o tentou, inutilmente, por muitos anos,
pois este sempre se lhe escapava.
!43

Essa estória, até aqui comum e igual a muitas outras,


muda de rumo com um encontro providencial entre o
chefe tribal, durante uma de suas buscas pelo inimigo, e
um anacoreta, que vivia em uma gruta isolada no alto de
uma montanha.
Vou lhe contar como isso se deu, embora estendendo
sobremaneira a minha narrativa, pois este evento contém
aspectos interessantes, que certamente servirão de
estímulo para que você forme uma melhor compreensão
dos nossos ensinamentos.
Era noite, e tenzin havia acendido uma fogueira, para
preparar a sua tsampa e o seu chá. De maneira totalmente
incomum, pelo menos nos últimos dez anos de sua vida,
ele estava com uma disposição de espírito que pode ser
descrita como de apreensão, quase medo.
Enfim, o ódio, que havia sido a sua única motivação
por tanto tempo, vinha cobrar o seu preço. O desgaste
contínuo de sua vitalidade, até então não percebido, ou,
talvez, sempre ferozmente negado, mostrou-se em seu real
tamanho: o completo esgotamento.
Um peso enorme se abateu sobre o seu corpo, que já
não mais lhe obedecia. Sentiu que a sua morte se
aproximava.
Nesse momento ele pensou ver, no movimento das
chamas, primeiro a face de sua esposa, depois, junto a ela,
seus três filhos. Eles lhe falaram com vozes inaudíveis, e
lhe disseram do seu tormento, inenarrável, no mundo dos
!44

mortos. O seu progresso havia sido obstado; algo que


devia ser apenas uma passagem tornara-se uma longa
permanência. E a causa era o ódio que tenzin sentia. Essa
terrível força era como grossas cadeias, que, vencendo a
separação entre essas duas diferentes dimensões da
realidade, prendiam-se aos seus membros. Para piorar,
todos os bandidos que ele matava, ao chegarem também
ao outro mundo, a essas correntes se prendiam, querendo
vingança.
Caíram as vendas que o cegavam, e ele pode perceber
todo o horror daquela situação. Viu as correntes de dor e
ódio se estendendo, em todas as direções, também rumo ao
passado e ao futuro, emaranhando centenas, milhares,
incontáveis seres.
Em seu íntimo, surgiu um forte remorso, incontrolável,
poderosa torrente levando tudo que se encontrava em seu
caminho, e que enfim verteu como lágrimas amargas,
acompanhadas por um choro convulsivo.
Quanto tempo isso durou, não se sabe, e talvez nem
importe. Sabemos que, quando voltou a si, viu, junto ao
fogo, um velhinho, preparando algo, que depois lhe deu
para beber. Esse era o anacoreta, que o acolheu e curou,
ensinando-lhe sobre o Budha, o Dharma e a Sangha.
Com ele também aprendeu o conhecimento dos cinco
elementos e dos três humores, bem como o uso das
dezoito qualidades de ervas e alimentos, para a cura dos
desequilíbrios do corpo e da mente.
!45

Após a morte do anacoreta, o ex-chefe tribal, agora


terapeuta, dirigiu-se para o Tibet Central, estabelecendo-se
nas proximidades das cavernas de sheldak, onde, séculos
antes, Guru Rinpoché meditara.
Sua fama como médico logo se espalhou, e o
procuravam tibetanos de todas as regiões. Até que um dia
foi levada a ele uma pessoa gravemente ferida. Qual não
foi a sua surpresa ao reconhecer naquele corpo, todo
quebrado, aquele que havia sido o objeto do seu profundo
ódio, por tantos anos.
Com o passar do tempo, o seu bando havia se tornado
muito poderoso, e ele espalhara o terror por áreas cada vez
mais amplas. Até que alguns dos seus asseclas, desejosos
de tomar o seu lugar, haviam lhe dado tremenda surra, e o
tinham deixado para morrer em local ermo. Porém ele foi
encontrado por monges em peregrinação, que o
transportaram até o local de moradia do médico.
Tenzin abraçou aquela oportunidade de concretizar na
realidade a mudança que se operara em seu interior, a
transformação do ódio em compaixão, e o tratou com
desvelo. Com isso, desfez os nós que o atavam a esse ser
desventurado, mergulhado na mais obscura das
ignorâncias, oferecendo-lhe, também, a chance de que ele
fizesse o mesmo.
Após meses, o bandoleiro, sentindo-se revigorado em
sua força malévola, agradeceu ao seu curador à sua
maneira, dando-lhe tremenda sova, deixando-o, por sua
!46

vez, às portas da morte. E seguiu atrás dos seus comparsas


para vingar-se, e retomar a sua liderança. Dizem que foi ao
encontro de um fim terrível, por sua própria escolha não
tirando proveito da dádiva de seu antigo adversário.
Quanto ao médico, com o tempo se recuperou, pois sua
mente não abrigava mais as três emoções perturbadoras, o
apego, a raiva e a ingenuidade, que transtornam o
organismo físico, impedindo a energia vital de fluir
livremente.
Aceitou o que acontecera como o resultado inevitável
de escolhas feitas no passado, e que não mais seriam feitas
no futuro. Depois de alguns anos, dirigiu-se para o oeste
do Tibet, onde fundou este nosso mosteiro."
!47

O Jovem

No terraço mais alto, voltado para o leste, o jovem


respirou fundo, mas, contrariamente ao seu costume, não
sorriu. Em seu rosto, ao mesmo tempo em que a
expectativa pela aventura, transparecia também a
nostalgia. Treze anos haviam se passado, desde que ali
chegara. Tradicionalmente, chegara o momento de deixar
o pequeno gonpa para ir estudar em um dos grandes
mosteiros no Tibet Central.
Mas não haveria a possibilidade de manter a tradição.
No ano anterior, um terremoto de grandes proporções
atingira toda a região, culminando uma série de sinais e
oráculos que previam perigo e transformações para o país.
Logo depois disso, os chineses invadiram o kham,
derrotando facilmente a pequena resistência oferecida
pelos khampas.
Espinho, agora abade, decidira pela fuga para o Nepal,
onde estabeleceriam novamente o mosteiro, em antigas
instalações que outrora haviam abrigado monges da
mesma ordem, mas que estavam abandonadas há muitos
anos.
Os preparativos para a mudança tomaram todo o
inverno. Iniciariam a viagem com a chegada da primavera,
assim que a melhora das condições climáticas o
permitisse. E se ainda houvesse tempo.
!48

Assalto

O abade Espinho havia se retirado do contato com o


mundo externo. Emparedado, em uma pequena gruta nas
proximidades do mosteiro, por um tempo ainda havia
recebido um pouco de alimento e água. Mas não mais.
Agora chegara a hora. Faria o seu movimento, para o
qual se preparara por anos.
Imobilizado em postura de meditação, proferiu
mentalmente o mantra de liberação. Fora do corpo físico,
retomou o caminho que já trilhara tantas vezes, e logo
estava à beira do rio que separa os dois mundos.
Até esse ponto já viera: aqui se encontrava a ponte,
único modo de chegar ao outro lado. Nunca tentara
atravessar, mas, dessa feita o faria. Chegando ao meio,
cortou, sem hesitar, o cordão de prata, que ainda o prendia
ao corpo físico. Não haveria mais retorno. Prosseguiu.
Ao pisar na outra margem, olhou à sua volta,
localizando-se. As referências coligidas nos velhos
manuscritos, bem como as suas próprias, pesquisadas
durante anos, apontaram-lhe a direção a seguir.

Tendo deixado para trás o primeiro agregado, o corpo


físico, peso, porém ao mesmo tempo envoltório protetor e
filtro amortecedor, suas emoções se agitavam mais
fortemente. A lembrança de sua amada, seu rosto, seu
sorriso, o som de sua voz, estavam mais vivos do que
!49

quando a vira pela última vez. Há quanto tempo fora isso?


Parecia uma eternidade, uma separação de séculos. Pouco
após o dia em que lhe deu o anel de noivado, sobreveio a
tragédia. Mas agora se aproximava o momento de
reencontrá-la.

Viu, à distância, os protetores dos domínios de yama


shinjé, feras e demônios, vindo em sua direção. Ouviu os
seus gritos, com vozes de trovão: “Matem-no! Destruam-
no!”
Estava preparado para enfrentá-los, arrostaria suas
hostes, fossem quantas fossem. Se preciso, enfrentaria o
próprio Senhor dos Mortos, com a determinação de fazer
prevalecer a sua vontade.
De seus olhos saíram raios de luz, chamas brancas de
consciência, que, indo de encontro aos atacantes, os
desfaziam, pois não passavam de ilusão.
A primeira oposição foi vencida facilmente. Seguiu em
frente. Sentiu então o ataque dos elementos. De início, um
forte vento o atingiu, seguido por torrencial tempestade,
água, gelo cortante, e terríveis raios aos poucos
entorpecendo os seus sentidos. Os agregados sensórios se
desfizeram, não foi capaz de mantê-los.
Sobravam-lhe ainda três envoltórios, a cognição, a
mente e a consciência. Devem bastar, pensou.
Reconhecendo o seu entorno, dirigiu-se em direção à
floresta, bastava atravessá-la. Suas árvores eram de metal,
!50

mas não imóveis; seus galhos, com folhas e espinhos que


cortavam onde encostavam, pareciam perceber os seus
movimentos, e a eles se opunham. Quanto tempo levou
para vencê-las? Qual medida de tempo lhe restava, para
que pudesse saber?
Eventualmente aquela travessia terminou. Porém, não
mais reconhecia a existência de algo externo a si mesmo;
não havia pontos de referência, nem direções. Notou
surgirem, ou virem à tona de si mesmo, os resíduos
imateriais da ilusão e do engano da vida de milhões de
células.
Células essas que, por sua vez, pertenceram a milhões
de corpos. Milhões de vidas, teve a consciência de milhões
de vidas, até merecer o nascimento como ser humano.
Quantas mais, depois disso? E tudo isso, naquela hora,
assomou-se sobre a sua vontade, o seu corpo mental,
condensando-o, solidificando-o, tornando difícil o mínimo
movimento. Seus membros, tornados pétreos, ferríferos, o
prendem ao chão.
Chão? Como chamar de chão algo que se estende por
todos os lados? Escuridão sólida, não apenas ausência de
luz, mas substância escurecedora, por toda parte.
Busca mais profundamente dentro de si, porém, níveis
de agregados após níveis de agregados se desfazem. Não
há nada? Nada real dentro de si? O peso da sombra enfim
o domina completamente.
!51

O Nada se prepara para abocanhá-lo, ou àquilo que


chamava de si mesmo, e que se despedaçou, desfez-se,
esfumaçando-se. O Nada. Afinal, seu mestre estava certo,
não há um "eu" intrínseco.
Mas, subitamente, antes de desaparecer totalmente,
percebe um ponto de luminosidade à distância. E, com a
imagem dela a guiá-lo, dando-lhe um resto de energia e
coesão, lança-se, cometa cruzando o espaço negro, na luz.
Luz absoluta, um átimo de luz total, absorvente, que o
rodeia por completo.
Passado esse micro milissegundo, medida de tempo
fora do tempo, vem a calma.
Sente-se bem. Acolhido.
Ainda tem a consciência de que, com a sua chegada,
teve início, de maneira automática, a tessitura: com um fio
prateado será formado o casulo.

Adormece.
!52

XI

Saio da inconsciência, e vejo um rosto sorridente, bem


próximo de mim. Cabeça raspada, vestes de monge. Como
sempre, desde que cheguei aqui, acho sua aparência
familiar. Todos aqui me parecem conhecidos.
Começo a apagar novamente, ele me sacode,
gentilmente, ao mesmo tempo falando: "Tulku, tulku".
E me fala, em inglês: "Você conseguiu chegar, tulku,
finalmente".

Trouxeram-me a este mosteiro já há alguns dias. Mas


eu só despertei mesmo ontem. Dizem-me que felizmente
não houve nenhuma fratura, embora tenha feito alguns
cortes, algumas lacerações e coisas assim.
Contaram-me que passei quase uma semana com febre,
semiconsciente, mal me alimentando. Não me lembro,
porém. E que fui achado somente devido ao meu bom
carma, ou à benevolência do Budha.
.
Mas hoje consigo levantar. Sinto-me bem. O monge
que me encontrou vem me ver com frequência, sempre
sorridente. E realmente ele me lembra alguém.
Pergunta se já estou forte, se estou recuperado. Parece
que há algo que ele deseja me mostrar, não entendo bem o
que ele quer.
!53

Leva-me a um aposento, na parte mais alta do


mosteiro. Enquanto íamos para lá, a velha sensação de
reconhecimento voltou, forte.
Um quarto simples, uma cama, uma escrivaninha, uma
estante ocupando toda uma parede. Janelas, nas três
paredes restantes, mostravam uma vista realmente
fantástica, e que eu já vira em sonhos: coroando uma
cadeia de picos menores, o Annapurna.

O monge aguarda um pouco, pede que eu me sente, e


me entrega um livro, páginas datilografadas encadernadas.
Insiste para que eu o leia, o que faço, curioso.
!54

I write in English...

...as it is my mother tongue, e eu espero que você


consiga me compreender.
Esse relato tem por objetivo lhe contar, de maneira
simples, os principais momentos de minha vida. Você pode
pensar que isso não lhe apresenta nenhum interesse, mas
devo iniciar essas linhas com uma afirmação que, espero,
prenderá a sua atenção:
- Eu sou você, em sua vida anterior.

Nasci no ano de 1880, na Inglaterra, em família


consideravelmente abastada. O que meu pai herdara havia
sido por ele utilizado, de maneira muito bem sucedida,
como base para maiores e mais vastas conquistas.
Aproveitou-se, para isso, da expansão do comércio
mundial, capitaneada pelos britânicos, na primeira metade
do século.
Seus navios mercantes transportavam de ópio a açúcar,
de carvão a vinho do porto, e navegavam por quase todos
os mares da Terra. Aos poucos, ele havia diversificado os
seus interesses, e acabou por ser proprietário de plantações
de chá na Índia, o qual exportava para a Inglaterra em seus
próprios navios.
Também percebeu, logo no início, as vantagens da
industrialização, e entrou no ramo de tecelagem, além do
simples comércio de algodão, que já praticava.
!55

Estabeleceu parcerias comerciais que ampliaram a sua


atuação até a área de financiamento e seguros, em diversas
partes do globo.
A morte de minha mãe, em 1885, em uma das
epidemias que em Londres então grassavam, veio, de certa
forma, a facilitar para ele essas atividades, pois as utilizou
como meio de esquecimento.

Para mim, a morte de minha mãe significou, além da


perda do seu afeto, o começo de minha vida itinerante. Fui
mandado para um colégio interno, no qual vivi até os meus
treze anos. A partir dessa idade, meu pai se encarregaria da
minha educação.
Passou a levar-me em suas viagens, por meio das quais
conheci os quatro cantos do planeta antes dos meus
dezoito anos.
Seus métodos de ensino eram bastante não-ortodoxos.
Dizia que, por nossa posição e fortuna, não apenas não
necessitaria eu de uma educação formal, como também
que uma tal formação me seria totalmente prejudicial.
Assim que eu principiava a dominar determinado
assunto ou habilidade, mudava-o imediatamente, passando
a algo completamente novo ou diferente. Com isso,
aprendi a vencer os obstáculos que impedem que
aprendamos, ou seja, aprendi a aprender.
!56

Ao longo desses anos foi me colocando a par de todos


os aspectos de seus negócios. De tal modo que, quando de
sua morte, eu estava apto a assumir o seu lugar.
Ele havia recentemente transformado a pequena
empresa familiar, baseada em parcerias, em uma sociedade
de capitais, da qual mantivera o controle acionário, o que
veio a facilitar sobremaneira a minha situação, após o seu
falecimento.
Eu tinha vinte e três anos. Apesar de jovem, por ter
fortuna e, principalmente, contatos, pude perseguir os
meus próprios interesses, notadamente a Ciência e os
grandes avanços tecnológicos. Arranjei os meus negócios
de maneira a me permitir o tempo para pesquisas e estudo.
Os próximos quatro anos foram fantásticos. Londres,
embora já não mais liderasse, ainda se mantinha como um
dos grandes centros do desenvolvimento ocidental. Tudo o
que eu desejava ou almejava estava ao meu alcance. O
futuro se me afigurava um caminho aberto.

Até que tudo mudou, de maneira súbita, logo após


completar vinte e oito anos. Os meus sonhos esvaneceram,
como névoa matinal que se desfaz com o passar do dia. A
completa falta de sentido de toda a existência me assolou,
jogando-me em uma tempestade de desespero e revolta.
Mas, não estando em mim por fim à minha vida com
minhas próprias mãos, ou permanecer em um leito, isolado
em um quarto fechado, pus-me a vagar pelo mundo. Os
!57

lugares pelos quais, antes, passara como um príncipe


herdeiro, agora visitava como um pária. Entreguei-me a
todos os vícios.
A violência fazia parte diária de minhas atividades;
buscava brigas e lutas, querendo encontrar um fim para o
meu sofrimento. Implorei, supliquei à Morte que me
levasse, mas ela se fez de rogada.
Até o dia em que, quase dois anos após abandonar a
Inglaterra, caí em mim, como o filho pródigo da parábola,
quando disputava alimento com ratos e aves de rapina em
um monturo de lixo.

Basta! Ouvi soar em algum recanto de meu ser. Se a


Morte se recusa a me ouvir, tomarei de assalto a sua
morada, entrarei à força em seus domínios! Envidarei
todos os esforços ao meu alcance para isso!

Conseguir sair das profundezas em que me afundara


foi, em si, uma proeza considerável. Por fim, retornei a
Londres, e retomei, com a mesma ânsia com que me
entregara à queda, o trabalho e as pesquisas científicas.
Tinha agora uma meta. Alimentada por ódio e revolta, mas
ainda assim uma meta.
!58

Espíritos

Estávamos na primavera de 1910.


Eu buscava, sem descanso, dia e noite, a integração da
Ciência com a metafísica, investigando os fenômenos
psíquicos, os poderes que jazem latentes no ser humano.
Entrei em contato com os diversos movimentos
espiritualistas, que floresciam no ocidente desde o final do
século anterior, e que diziam haver outras dimensões da
realidade, além dessa que vemos e palpamos, a qual não
passa de ínfima e pouco importante parcela do todo.
Através do contato com cientistas, que buscavam
investigar de maneira rigorosa esses fenômenos, vim a
conhecer alguns médiuns que conseguiam fazer a conexão
entre o mundo do além e o nosso mundo cotidiano.
Construí instrumentos, para inicialmente medir, e, por
que não, fazer o papel dessas pessoas, pois se o fenômeno
é real, pode ser cientificamente abordado, e, dessa forma,
registrado e reproduzido.
Sons, comunicações etéricas, foram recebidas por meio
desses aparelhos, e, embora ainda muito aquém do
conseguido pelos melhores médiuns, confirmavam a
possibilidade, e apontavam o caminho para o progresso da
técnica.

Durante a I Grande Guerra, dediquei-me


completamente ao aperfeiçoamento desses aparatos,
!59

aproveitando-me do momento de avanço tecnológico que


as guerras costumam proporcionar, pois, paradoxalmente,
é nessas épocas que o Homem concentra sobremaneira os
seus esforços criativos, buscando formas de melhor
destruir.
Mas os resultados eram poucos, e o desenvolvimento
das aparelhagens, muito lento para aplacar a imensa sede
que me consumia.
Abandonei esses esforços, cerca de dois anos após o
final da guerra, e me transferi para a Índia, tanto por
necessidades profissionais, pois o mundo enfrentava uma
retração nas atividades comerciais, o que demandava
constante atenção e inovação da minha parte, como para
continuar a perseguir o propósito que me impusera.
!60

Adyar

Segundo o entendimento dos que se dedicam ao estudo


dos fenômenos psíquicos, a mente é o poderoso dínamo
que gera e controla todas as manifestações físicas. Decidi,
após abandonar as pesquisas científicas, desenvolver
diretamente os poderes mentais, refinando e aperfeiçoando
esse instrumento, que se mostra, em algumas pessoas,
espontaneamente, mais poderoso do que os melhores
aparatos que eu havia conseguido construir.
Em Adyar, uma pequena localidade próximo à cidade
de Madras, no sul da Índia, passei a frequentar a
Sociedade Teosófica. Seus ensinamentos esotéricos, cuja
origem dizem remontar a misteriosos mestres ocultos,
forneceram-me a base para iniciar minha caminhada rumo
ao controle da minha própria mente.
No entanto, os melhores dias dessa sociedade, quando
ela representou, para um sem número de europeus, o portal
de abertura para o conhecimento oriental, já haviam
passado. Após algum tempo, pensando haver esgotado o
aprendizado que ali poderia obter, prossegui em minha
busca da fonte original daqueles ensinamentos.
!61

Arunachala

Após me deslocar de um lado para outro da Índia,


encontrando apenas eventualmente algo que pudesse me
auxiliar na consecução de meu objetivo, ouvi falar de um
grande santo, que vivia, ironicamente, não muito longe de
Madras, onde eu vivera por tanto tempo sem ter tido
qualquer notícia de sua existência.
Para lá me dirigi, certo dia do ano de 1927,
esperançoso de encontrar, não apenas respostas, mas
também orientação para atingir o desenvolvimento e o
controle mentais, que sabia serem imprescindíveis para
atingir a minha meta.

Cheguei já tarde da noite em um ashram simples, de


poucas construções, apenas vislumbradas na escuridão
circundante. Em uma delas havia luz, um salão não muito
grande, de onde saíram algumas pessoas, que disseram
estar esperando minha chegada. Segundo elas, o santo lhes
pedira para aguardar, não tendo ainda se retirado, pois
haveria uma visita tardia.
Um deles levou o meu condutor à cozinha, haviam
guardado comida para nós. Eu, impaciente, quis
imediatamente ser conduzido à presença do maharishi, o
que fizeram somente após minha insistência.
Em um dos cantos do salão, sentado em completa
imobilidade, parecendo feito de aço ou mármore,
!62

absorvido em profunda meditação, lá estava ele, alguns


devotos ao seu redor, também imóveis. Uma atmosfera de
paz, penetrante, envolveu-me, e, silenciosamente, sentei-
me, acompanhado pelos que me haviam recepcionado.
Não sei quanto tempo se passou, antes que me
conduzissem a um bangalô, onde passei o restante da
noite. Alguns poucos discípulos ainda se mantiveram no
salão, acompanhando o mestre, que permanecia
exatamente como antes.

No dia seguinte, sentindo a mente pacificada, como há


muitos anos não sentia, em um estado de lucidez e calma
que me pareceram fantásticos, voltei à presença do sábio.
Dessa vez, ele pareceu notar a minha presença, e
dirigiu seu olhar para mim, assim que entrei no salão.
Sorriu-me, e, em seus olhar, percebi amor e compreensão
imensuráveis. Percebi que a paz que ontem sentira jorrava
de seus olhos, como água brotando de uma fonte
inesgotável.

Seu ensinamento era que deveríamos nos libertar da


auto-ilusão que surge após o aparecimento do ego, a qual é
a origem de toda confusão e miséria. Para isso, bastava
fazer o movimento inverso, através da auto-inquirição
"Quem sou eu?". Tal prática, levando-nos além da origem
dos pensamentos, além da mente, traz a realização da real
natureza da consciência do "Eu". Dizia também ser
!63

possível chegar a esse resultado através da devoção, pela


entrega completa a um Guru.
Mas, para mim, aceitar esse ensinamento significaria
renunciar ao propósito que me mantivera vivo, nos últimos
dezessete anos, e ao qual me dedicava quase que
totalmente, não conhecendo nem descanso nem lazer. E
isso estava acima de minhas possibilidades, ou além da
minha vontade. Após ficar no ashram aos pés da montanha
sagrada pouco mais que uma semana, novamente parti.

Dessa vez, no entanto, resolvi abandonar de uma vez


por todas quaisquer atividades que não fossem concordes
ao meu objetivo. Transformei todo o meu capital, que não
era pouco, em riqueza transportável. Cortei os laços com
minha vida anterior, e segui para o norte, tendo como
destinação a mais impenetrável e misteriosa terra, o Tibet.
Fiz o voto solene de que seria a minha última tentativa.
Se fracassasse, voltaria ao sul da Índia, tomando refúgio
aos pés do sábio de Arunachala.
!64

Cheguei a Badrinath...

...vindo de Dehra Dun. Ali aguardei, por duas semanas,


a chegada de um grupo de tibetanos, com quem fizera
amizade no Kashmir, alguns meses antes. Um deles, a
quem os outros acompanhavam, pertencia a uma rica
família, e viera à Índia para estudar.
Tendo terminado seus estudos, enfim retornava à sua
terra natal. Por sua intermediação, contratei os serviços de
um de seus acompanhantes, um monge, para servir-me de
guia e intérprete, pois nossos caminhos iriam se separar
logo após a entrada no Tibet.

Segundo as informações que eu tinha conseguido


reunir, deveria me dirigir à região oeste do Tibet, vários
dias de viagem ao norte do monte Kailash. Lá, não muito
distante da margem ocidental do rio Indus, havia um
pequeno mosteiro, que minhas fontes garantiram abrigar o
conhecimento que eu buscava.
Não me interessa aqui narrar as vicissitudes da viagem,
que demorou muito mais tempo do que o previsto, tendo
eu encontrado e precisado superar uma grande quantidade
de obstáculos, mas que, afinal, chegou a bom termo.
Basta dizer que, ao ver o mosteiro, que, por entre a
névoa, parecia flutuar no ar, a meio caminho entre o céu e
a terra, tendo, por detrás, imponente montanha coberta de
neve, senti a certeza de ter chegado ao meu destino final.
!65

Após um ano

Após um ano probatório, durante o qual, além de


aprender o básico necessário para seguir a disciplina
monástica, melhorei sobremaneira o domínio da língua,
pude superar a barreira da dificuldade de comunicação.
Aos poucos, através de um esforço e dedicação
constantes, conseguira vencer o ceticismo com que os
monges me haviam inicialmente recebido.
Já quase sendo considerado, na prática cotidiana, como
um deles, pude comparecer à presença do lama abade, para
inquirí-lo quanto ao ensinamento ali ministrado, e,
conforme suas respostas, pleitear que fosse aceito como
noviço.

O abade me recebeu em seus aposentos, ao final da


tarde de um dia de trabalho físico particularmente intenso,
pois era tempo de plantio. Sentamo-nos, de frente um para
o outro, a uma distância de aproximadamente um metro.
Após um pequeno silêncio, eu me dirigi a ele, dizendo:
- Há quase vinte anos, deparei-me com a realidade da
existência da morte. Busquei, desde então, através de
métodos diversos, e empregando todas as minhas forças,
conhecer essa realidade, com o propósito de, desvendando
os seus segredos, vencê-la e conquistá-la. Mas, apesar de
todos os meus esforços, mesmo não tendo sido eles
!66

completamente infrutíferos, reconheço que estou longe de


ter atingido tal meta.
Seu olhar e sua face, calmos, transmitiam
compreensão. Porém, apenas me fitou, sem nada dizer. Fez
um leve gesto, com a cabeça, como que me instando a
prosseguir.
Então eu lhe perguntei:
- Vocês sabem a resposta, vocês têm esse
conhecimento?
- Sim.
E seu olhar mudou, expressando quase uma
expectativa, quase uma curiosidade.
O silêncio, antes tantas vezes tendo me oprimido,
agora era leve. Enfim! A solução para a minha busca, tão
almejada, estava ao meu alcance.

Súbito, das profundezas do meu inconsciente surgiu


um medo avassalador, que tomou todo o meu ser. Durante
o último ano eu havia percebido esse mesmo medo, qual
ave de rapina, a me espreitar; inúmeras vezes o pressentia,
e logo novamente ele se ocultava.
Agora, no entanto, surgiu ele em toda a sua terrível
força. Suor frio porejou por todo o meu corpo, pensei em
sair correndo daquele lugar, fugir, retornar ao calor e
conforto de minha antiga vida. O conforto da riqueza! O
oblívio que vem da simples manutenção das necessidades
vitais! Ouvi, brotando das profundezas, como que uma
!67

voz, composta por muitas vozes, dizer: "Ah! Deus, livrai-


nos da aniquilação!"
Pensei que tudo estava perdido. Desfaleci; o corpo se
preparava para seguir os infames ditames da consciência
inferior.

Mas consegui buscar auxílio em meu peito. Meu


coração, rebelando-se, expressou a sua motivação, gritou a
sua memória; cada célula de meu organismo, como se
despertando, seguiu o seu comando. A mente, fortalecida,
uniu corpo e alma. Tranquilizei-me, e, novamente íntegro
em torno de minha intenção, curvei-me, estendendo-lhe a
echarpe de seda branca que trouxera como símbolo de
minha entrega, e pedi:
- Aceite-me como discípulo.
O lama, sorrindo levemente, respondeu
afirmativamente. Com isso, minha vida, mais uma vez,
tomou novo rumo. O futuro, naquele momento ainda
totalmente, para mim, insondável, afigurou-se-me pleno da
perspectiva de sucesso.
!68

A partir de hoje...

...eu tomo refúgio no Budha.


A partir de hoje, eu tomo refúgio no Dharma.
A partir de hoje, eu tomo refúgio na Sangha.

Com esses votos, fui recebido na comunidade


monástica.
!69

Passaram-se vinte anos...

...que, para falar a verdade, parecem-me, ainda agora,


ter durado várias vidas, tantas foram as fases e
dificuldades por que passei.
A minha vontade, antes sujeita às mudanças
determinadas pelas circunstâncias, como folhas sendo
carregadas pelo vento, afinal se tornou firme e
inquebrantável.
A mente, antes inquieta como um incêndio
consumindo uma floresta, foi pacificada. Em sua
superfície, agora serena, refletiam-se, não mais
distorcidos, os fenômenos externos, e pude assim
apreender a sua real natureza.

Um dia, o mestre me chamou aos seus aposentos. Ele


vinha passando a maior parte do tempo quase que
totalmente em estado de meditação, retirado em seu
quarto, a poucos ainda recebendo.
O curso da vida, após ter se mantido como que
afastado, afinal transparecia em seu corpo. No entanto,
apenas a forma era envelhecida e frágil. Sua mente se
mantinha poderosa, ágil e livre. Com o passar dos anos eu
aprendera a enxergar, por trás de sua calma figura, a
compaixão e o amor por todos os seres, realização do ideal
budista.
Após momentos de silêncio profundo, ele me disse:
!70

- Você está, já há um bom tempo, preparado para


atingir o estágio final do nosso ensinamento. Você já
adquiriu o trânsito consciente pelos seis bardos da
existência, e é capaz de realizar as várias formas de
transferência da consciência. Abandonar o Samsara está
em suas mãos, basta que o queira.
- Sim, mestre, eu o sei.
- Você também sabe que aquilo que busca realizar não
tem realidade intrínseca, não passando de um sonho.
- Sim, como sei que toda criação é apenas imaginação,
resultado automático do funcionamento da mente.
- E, no entanto, você prosseguirá em seu caminho,
abrindo mão da liberação, o mais alto fim?
- Sim, rinpoche. Este é o meu dharma, o dever
virtuoso que escolhi. Se antes eu o queria por puro
egoísmo, para saciar a dor que me consumia, agora, que
não existe mais dor, o quero apenas por compaixão. E,
para isso, estou pronto a renunciar até ao fim de todo o
engano. Tenho em mim a determinação de ir mesmo aos
reinos infernais, se preciso for.
O mestre sorri, suavemente, e diz:
- Sim, isso pode bem ser assim como você o expressa.

Após breve silêncio, o lama completou:


- Logo esta minha vida chegará ao fim. Você, como o
mais adiantado de meus discípulos, assumirá o papel de
abade. Ensine seus irmãos monges, conduza-os pelo
!71

caminho que você trilhou, faça com que aprendam e


desenvolvam uma tal compaixão, comparável à de um
bodhisatva.
!72

Final. Ou início?

E foi o que fiz, nos últimos nove anos. Mas, também,


adaptando-me ao momento pelo qual passava a
humanidade, um intenso período de mudanças, propício,
afinal, à união das duas correntes de conhecimentos, a
ocidental e a oriental, retomei as pesquisas científicas, que
havia abandonado há muito.
Com isto, conseguimos, meus irmãos monges e eu,
proezas de outra maneira inimagináveis. Os poderes da
mente, desenvolvidos através das técnicas tibetanas,
podem ser grandemente ampliados com o uso da
tecnologia.
Afinal, considerando que estou preparado para atingir
o meu objetivo, entrarei amanhã em retiro absoluto, do
qual não sairei mais nessa vida. Esse é o meu plano
principal. Se, não obstante todos os esforços envidados, eu
não for bem sucedido, há um planejamento alternativo. O
qual deverá ser levado a cabo por você.

O domínio de certas técnicas abre-nos acesso a uma


dimensão sutil, conhecida por diferentes nomes, ao longo
das eras, por todas as civilizações. É nesse plano que
vivenciamos os diversos estados transitórios da existência,
como sonhos, ou as assim chamadas experiências místicas.
Isso, em conjunto com algumas das tecnologias que
!73

desenvolvemos, permitiu, após os anos de formação da sua


mente primária, que o localizássemos.
Nossos instrumentos buscaram os sinais característicos
à sua singular personalidade, extrapolada com base nos
padrões de minha própria mente, cuidadosamente
registrados nos últimos anos. A "signatura mental" pessoal,
ao final de uma existência, em grande parte se mantém na
seguinte, e pode assim ser reconhecida.
Enquanto que conseguir uma localização precisa no
plano tridimensional ainda se encontre além das nossas
possibilidades, nosso desenvolvimento técnico é suficiente
para estabelecermos contato no plano sutil.
Creio que você saberá facilmente a que estou me
referindo, e creio, também, que você já terá reconhecido
ogyen, pois foi ele o escolhido para se comunicar com
você, através da intervenção nos seus sonhos, a partir dos
seus cinco anos. Desde que ele chegou ao mosteiro, vinte
anos atrás, percebi o seu potencial, e lhe tenho ensinado
tudo que vim a aprender. Essa ligação terá certamente
facilitado as coisas.

Para entrar de posse de minhas/suas riquezas, bem


como da localização do laboratório em que conduzimos
nossas pesquisas, você terá que passar por uma série de
"provas".
Essas etapas foram planejadas para, cada uma delas,
despertar lembranças-chave de minha vida, bem como
!74

facilitar o ressurgir das capacidades que desenvolvi. O


domínio de corpo e mente é necessário para que você/eu
possamos atingir o meu objetivo.

Willian Thorne, 1958

A leitura me deixa em um estado difícil de descrever;


uma sensação onírica de irrealidade. Penso em me
beliscar, mas não o faço. Nada disso é possível!
Porém, se fosse mesmo assim, muitas coisas seriam
explicadas. Mas isso é impossível!

Os sonhos! Ele fala de comunicação através dos


sonhos!

Após algum tempo percebo que ainda há uma folha, e


a viro.
!75

Meu coração dá um pulo, e para.


Os pelos ao longo dos meus braços e da minha espinha
se arrepiam.
A respiração estanca.

Quanto tempo isso durou?


Um, dois, cinco, dez minutos?
Não sei.
Sei que, quando voltou a bater, meu coração bateu
diferente, era como se fosse um outro coração.
A foto, colada à página oposta, parecendo ser do início
do século, estava bem conservada. Apoiada a uma árvore,
em um parque, olhando diretamente para mim, uma
mulher aparecia. Embora de corpo inteiro, e tirada de
alguma distância, eu podia ver claramente as suas feições,
o seu sorriso, o seu olhar.
Entendi então o meu estado, os sentimentos e
sensações que, de dentro, haviam assomado: era como se
cada célula do meu corpo a reconhecesse!
No canto inferior, abaixo da data, em letra tão bela,
meus olhos, já úmidos, enchendo-se de lágrimas, vi a
dedicatória:

Love eternal,
Beatrix
!76

Se a minha vida fosse um filme, aqui terminaria a primeira


parte.

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