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LUCIANO FIGUEIREDO

Narrativas
das rebeliões

Linguagem política e
idéias radicais na
América Portuguesa
moderna

“ El lenguaje es por

a
Este texto faz parte da pesquisa
Rebeliões e Insurreições na Améri-
ca Portuguesa Moderna: 1640-
1789, financiada pelo CNPq atra-
vés de bolsa produtividade.
experiência da conquista e colonização
do Novo Mundo pelas monarquias

modernas européias proporciona um


notável esgarçamento nas condições

do bom governo na república desses


príncipes de virtudes excelsas e per-

feitas. O império construído sob o rei-


no de Portugal na América não esca-

pou desse imprevisto, devorado pela


naturaleza equívoco”
(Ortega y Gasset,
Historia como Sistema).

vertigem colonizadora que, sob rela-

LUCIANO FIGUEIREDO ções comerciais e políticas desiguais,


é professor do
Departamento de História drenou riquezas e inquietações para a
da Universidade Federal
Fluminense. metrópole.

6 REVISTA USP, São Paulo, n.57, p. 6-27, março/maio 2003


No Brasil colônia, construção extem-

porânea, os vassalos do rei, colonos in


habitu, assistiam diuturnamente a seus

direitos naturais serem desrespeitados.


Tais circunstâncias produzem uma po-

lêmica vigorosa, que cruza os mares e


os séculos, em torno da qualidade das

relações que uniam soberano e vassalos,


ainda que pouco nítida para a historio-

grafia de cariz nacionalista desacostu-


mada a viagens de retorno ao universo

político português. Ela será alimentada

por discursos de toda a sorte regidos


pela cultura letrada e suas estratégias

persuasórias, em que súditos na Amé-


rica Portuguesa afetam padecimentos

aos mil: comedimento da liberalidade


régia em relação ao desprendimento

da conquista, despotismo dos gover-


nos locais, dificuldade de acesso aos

cargos da república, desordens na ad-

ministração do patrimônio régio, viola-


ção do bem comum e outros.

Essa produção discursiva, contudo,

conhecerá uma metamorfose significa-


tiva quando os apelos foram seguidos

pela sublevação dos povos, em rebe-


liões que explodiram com incômoda fre-

qüência na América. A despeito das for-


mas ritualizadas e da relativa naturalida-

de com que esse tipo de encaminha-

mento era concebido na cultura política


de então, os enunciados evoluem para

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discursos politicamente mais radicais – ais dessa época pudesse constituir uma cha-
entendido isso sem anacronismos, uma vez ve interpretativa, possibilitando uma melhor
situados nas possibilidades do universo do compreensão das especificidades apresen-
pensamento e das práticas políticas euro- tadas pelos seus conteúdos” (3).
péias do século XVII e primeira metade
do século XVIII –, aproximando-se da
crítica aos princípios da colonização, ao
1 Alguns aspectos desse tema, soberano e à soberania (1). DISCURSOS NA REPÚBLICA DA
direcionados para a cultura po-
Como não poderia deixar de ser, o de-
lítica de Minas Gerais, foram
desenvolvidos em nosso artigo:
“O Império em Apuros: Notas
bate e as ações traziam as marcas do seu AMÉRICA
para o Estudo das Alterações tempo. Os ideais do Príncipe perfeito, aque-
Ultramarinas no Império Portu-
guês, Séculos XVII e XVIII”, in le que é o garante da defesa do bem co- As fórmulas textuais recorrentes com
Júnia Ferreira Furtado (org.), mum, da constituição, da justiça, prosperi-
Diálogos Oceânicos, Belo Ho-
que vassalos das mais diversas regiões do
rizonte, Edufmg, 2001, pp. dade e felicidade do reino, representaram o Brasil manifestavam o respeito aos direi-
197-254.
terreno habitual em que se fundamentavam tos que lhes cabiam em uma república cris-
2 Diogo Ramada Curto, O Dis-
curso Político em Portugal os discursos das elites coloniais, conselhei- tã e justa desenrolavam-se sob a afetação
(1600-1650), Lisboa, Centro ros e governadores, partilhando de uma de padecimento de ruínas e misérias, limi-
de Estudos de História e Cultu-
ra Portuguesa, 1988, p. 173 noção de comunidade política que se so- tações ao exercício de cargos na república,
3 Ângela Barreto Xavier, “El Rei brepunha, então, às concepções que, mais justiça inoperante e lenta, empobrecimen-
aonde póde, & não aonde tarde, irão distinguir colônia e metrópole. to, avareza na liberalidade régia, lançamen-
quer”. Razões da Política no
Portugal Seiscentista, Lisboa, Por outro lado, o pensamento político na to de tributos sem consulta, excessos e de-
Colibri, 1998, p. 14.
Península Ibérica atravessa um momento sordem na Fazenda real, tirania das autori-
4 Alcir Pécora (org.), Escritos His-
tóricos e Políticos . Antônio
extremamente rico na fase subseqüente à dades coloniais, dificuldade de representa-
Vieira, São Paulo, Martins Fon- crise do império filipino, assistindo Portu- ção junto ao soberano e aos tribunais
tes, 1995, p. XII.
gal a intensos debates a respeito do papel reinóis. Tudo isso instrumentalizado, qua-
5 “Auto de 8 de novembro de
1660” (citado por: José Vieira do soberano, da origem do poder régio e se sempre, pela noção do afastamento em
Fazenda, Antiqualhas e Memó- das relações com os súditos, tanto na Res- que viviam em relação ao soberano. A ele,
rias do Rio de Janeiro, 5 v., Rio
de Janeiro, Imprensa Nacional, tauração portuguesa em 1640 quanto na afinal, cabia fazer respeitar os princípios
1921-27, t. 88, p. 497).
reunião das Cortes em 1668. Ademais, a da “concórdia das gentes e ordens do rei-
6 “Requerimento dos moradores
do sertão do São Francisco ao
dissolução do império espanhol produziu no, suavidade e proporcionalidade dos
general Gomes Freire, redigi- experiências decisivas para a renovação do impostos, honestidade e proficiência dos
do e registrado pelo tabelião
do distrito de São Romão Ale- pensamento e das práticas políticas no ministros, exemplaridade dos atos do so-
xandre de Castro Roiz, tendo Ocidente moderno, como as revoltas da berano, etc.” (4).
como juiz ordinário Francisco
Soares Ferreira. São Romão, 6 Catalunha, Nápoles e dos Países Baixos.
de julho de 1736”. Lisboa, Ar-
quivos Nacionais/ Torre do Privilegiamos neste ensaio certas “regu-
Tombo (doravante ANTT), Mss. laridades discursivas”, conforme sugeriu
do Brasil, liv. 10, f. 38-39.
Diogo Ramada Curto (2), do conjunto de Na distância de mais de mil léguas
7 “Padre noço [sic] dos morado-
tópicos dominantes que despontam nos dis-
res das minas gerais, minas
novas dos currais, minas de
vários metais, minas do rio das
cursos endereçados às autoridades metro- do trono
mortes, minas do sabará, fortes politanas – ruína, distância, opressão, libe-
minas do serro do frio, minas
de prover seu brio, minas de ralidade, justiça, respeito à constituição do Circunstâncias decorrentes da sensação
goiases, minas dos topázios, mi- reino e alguns outros – para sustentar certas de opressão quase sempre apresentavam-
nas do inferno, minas, minas de
todo o delírio”, Lisboa, ANTT, reivindicações ou justificar ações políticas se sob a dura imagem da destruição dos
Mss. do Brasil, liv. 10, f. 210
(publicado em: Luciano produzidas pela elite social da América ou patrimônios e do bem-estar dos súditos na
Figueiredo, “Furores Sertanejos pelas autoridades, governadores, conselhei- América. “Magoados, queixosos e oprimi-
na América Portuguesa: Rebe-
lião e Cultura Política no Sertão ros a fim de enfrentar tensões de diversas dos das vexações, tiranias, tributos, fintas,
do Rio São Francisco, Minas
origens. Ainda que esses discursos estives- pedidos, destruições de fazendas”, apresen-
Gerais – 1736”, in Revista
Oceanos, no 40, “Fronteiras do sem fortemente marcados pelos procedimen- tavam-se os moradores do Rio de Janeiro
Brasil Colonial”, Lisboa, Comis-
são Nacional para as Come- tos retóricos, acreditamos, como salienta ao rei, através de auto elaborado em no-
morações dos Descobrimentos Ângela Barreto Xavier, que “a natureza vembro de 1660, contrários à continuidade
Portugueses, dezembro de
1999, pp. 128-44). argumentativa e retórica das rotinas textu- do governador Salvador Correa de Sá e

8 REVISTA USP, São Paulo, n.57, p. 6-27, março/maio 2003


Benevides, responsabilizado por toda a dia à qualidade dos funcionários régios que
sorte de tirania (5). No sertão de Minas governavam. A célebre referência do pa-
Gerais, à margem da economia mineradora, dre Antônio Vieira de que “alguns minis-
poderosos criadores de gado em 1736 tam- tros de Sua Majestade não vem cá buscar
bém diziam-se, em requerimento ao gover- nosso bem, vem cá buscar nossos bens”
nador, “bexados [sic] e oprimidos com tão (11) prefigura a força que a elaboração alu-
emssessivio [sic] tributo” que, “pelas suas siva à prepotência, venalidade e exorbi-
impossibilidades”, não podem pagar (6). tância do poder dessas autoridades mere-
Recorrem esses sertanistas à oração do pai- ceu no discurso dos súditos ultramarinos
nosso como paródia, a fim de reforçar, sob endereçado ao soberano. Quando em seu 8 “Súplica da câmara de Outu
ao rei. Outu, 30 de agosto de
o apelo à piedade sacra, os padecimentos sermonário fustiga os riscos da morosida- 1732”. Lisboa, ANTT, Papéis
de súditos cristãos: “Todos os pobres anda- de dos despachos régios e a distância da do Brasil, cód. 6, f. 87.

mos/ arostados para vos pagar/ por que os Corte para o bom governo da república, 9 “Representação da Câmara de
Vila Rica contra a Lei Novíssima
ricos não querem emprestar […] Estes quin- pergunta Vieira, em seu “Sermão da Pri- das Casas de Fundição. Vila
Rica, 24-4-1751”, in Códice
tos vossos/ nos arrastam pelo chão/ por eles meira Dominga do Advento”: “E da parte Costa Matoso, Belo Horizon-
todos vos estão/ devedores” (7). dos beneméritos que deixastes de fora, quais te, Fundação João Pinheiro/
Fapemig, Coleção Mineiriana,
Repisam a imagem sofrida da miséria serão [as conseqüências]? Ficarem os mes- 2000, vol. 1, p. 525.
os oficiais da câmara de Itu em São Paulo mos beneméritos sem o prêmio devido a 10 “Requerimento dos moradores
em 1681, reclamando da cobrança intermi- seus serviços, ficarem seus filhos e netos de Guarapiranga, 1746” (ci-
tado em: Maria Leônia Cha-
nável do dote para os casamentos reais, sem remédio e sem honra, depois de seus ves de Resende, Gentios
Brasílicos. Índios Coloniais em
lembrando que aquela comunidade “se pais e avós lha terem ganhado com sangue, Minas Gerais Setecentista, tese
compõe de homens pobres e os mais deles porque vós lha tirastes; ficar a república de doutorado, Campinas, De-
partamento de História, 2003,
ausentes por Minas, deixando suas mulhe- mal servida, os bons escandalizados, os p. 57). Para o mesmo enunci-
ado dentre os paulistas ver:
res com tanta pobreza e necessidade”, que príncipes murmurados, o governo odiado, John M. Monteiro, Negros da
por isso elas “se expõem já a vender os seus o mesmo conselho em que assistis ou Terra. Índios e Bandeirantes
nas Origens de São Paulo, São
próprios vestidos para o mesmo fim [isto é, presidis infamado, o merecimento sem es- Paulo, Companhia das Letras,
o pagamento do dote]” (8). Câmaras mi- perança, o prêmio sem justiça, o descon- 1994, esp. cap. 2.

neiras foram useiras desse recurso ao se tentamento com desculpa, Deus ofendido, 11 João L. de Azevedo (comp.),
Cartas do Padre Antônio
queixarem contra a forma de cobrança do o rei enganado, a Pátria destruída” (12). Vieira, 3 v., Coimbra, Impren-
sa da Universidade, 1925-28.
quinto, amiúde trazendo à “Vossa Majes- Os maus funcionários percorrem ine- Apud Emanuel Araújo, O Tea-
tade […] conhecimento da pobreza das lutavelmente as estratégias persuasivas di- tro dos Vícios. Transgressão e
Transigência na Sociedade
Minas”, de acordo com a afirmação que recionadas à Corte, onde Vossa Majestade Urbana Colonial, Rio de Janei-
ro, José Olympio, 1993, p.
consta em uma das súplicas a respeito do seria sensibilizada a enviar para a América
291.
restabelecimento das casas de fundição e bons ministros, “para que tudo não seja ti-
12 In Alcir Pécora (org.), op. cit.,
da derrama em 1751 (9). rania, interesses, e aumento da fazenda pró- p. 94.
A miséria que afligia os vassalos deve- pria, em grande prejuízo dos vassalos de 13 “Carta do provedor-mor da
fazenda do estado do Brasil
ria ainda persuadir as autoridades régias a Vossa Majestade”, conforme se apela do Lourenço de Brito Correia….
consentir ações em esferas delicadas da vida Rio de Janeiro (13). Dessa mesma cidade, Bahia, 27 de abril de 1661”
(publicado em: L. Norton, A
colonial. Seguindo os rastros do discurso em 1666, seus oficiais camarários afirmam Dinastia dos Sá no Brasil: a
dos paulistas que adentravam o sertão em que “pela glória de seu trono, felicidade e Fundação do Rio de Janeiro e
a Restauração de Angola, Lis-
busca de “remédio para a sua pobreza”, amparo dos vassalos, pede e clama seja boa, Agência Geral do Ultra-
mar, 1965, pp. 336-7).
moradores das Minas escrevem ao rei afir- servido dar eficazes providências na esco-
14 Vivaldo Coaracy, O Rio de
mando-se penalizados com os ataques dos lha de homens para o governo desta terra” Janeiro no Século Dezessete,
“bugres gentio brabo”, buscando, na ob- (14). A cobiça dos funcionários motivava Rio de Janeiro, J. Olympio,
1965, p. 27.
tenção de licença régia para preparar expe- que o povo padecesse com “abusos e inso-
15 “Consulta do Conselho da
dições para prear índios e buscar jazidas lências” dos ministros, conforme denuncia- Fazenda sobre os regimentos
em suas terras, remédio para a “miséria e va a câmara (15). que se deviam dar aos Prove-
dores e mais oficiais da Fazen-
consternação em que se vêem” (10). Nos pareceres do Conselho Ultramari- da do Rio de Janeiro… Lisboa,
24 de outubro de 1643”, Lis-
A elaboração da imagem de vexação no, a tópica também teria destaque para a boa, Arquivo Histórico Ultra-
em terras coloniais esteve associada tam- audiência régia: “os governadores que se marino (doravante AHU), Rio
de Janeiro (Castro e Almeida),
bém à presença de ministros ruins, que alu- lhe mandam [para o Brasil], ministros e doc. 311.

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oficiais […] vão cheios de ambição, e o seu patrimônio da república, se adensaria so-
principal objeto é enriquecerem-se, valen- bremodo com a renovação do tomismo sob
do-se para isto de todos os meios lícitos e a teorização dos restauracionistas de 1640,
ilícitos”, condenava um dos mais destaca- onde o rei usufruía o poder a fim de realizar
dos conselheiros (16). o bem comum (20). Deveria ele cuidar desse
A unidade política amparada nos ideais fundamento, compreendido como bem-es-
do bom governo, tendo el-rei à cabeça, sob tar material e como expressão dos fins eter-
a qual evoluíam tais discursos, proporcio- nos do homem (21).
nou a freqüente referência à imagem do rei Ao príncipe recomendava-se respeitar
pai e protetor. Súditos do Rio de Janeiro as exigências do justo governo, conside-
argumentavam esperar, durante rebelião rando os direitos costumeiros dos vassalos
que transcorre em 1660-61, “que Sua Ma- e sabendo ouvir suas súplicas. Os limites
jestade […] os devia amparar e não des- determinados pela distância que separava
truir”. A imagem de pai seria enunciada a América da sede do reino apareciam por
pelo conselheiro Antônio Rodrigues da isso como elementos poderosos da argu-
Costa, ao reiterar o papel dos reis diante mentação persuasória, seja porque subli-
dos colonos da América, sendo aquela a nhavam as opressões cometidas graças ao
“principal máxima dos senhores reis de afastamento do rei, seja porque afetavam
Portugal […] tratarem os seus vassalos padecimentos que o rei deveria acudir. O
como pais e não como senhores” (17). recurso retórico à posição de longínqua
Na linguagem política que expressa a conquista conectava-se assim à vexação
experiência da colonização, o Novo Mundo sofrida pelos vassalos ao tornarem-se
parecia assistir ao solapamento do bem co- inelegíveis à liberalidade régia de que se
mum. São célebres as passagens de frei fariam merecedores, especialmente em
Vicente do Salvador e de Ambrósio decorrência de seus empenhos em uma ter-
Fernandes Brandão a esse respeito elabora- ra de conquista. Inúmeros enunciados refe-
das no princípio do século XVII. O jesuíta rentes à qualidade do governo dos súditos
admoestava que “nenhum homem nesta ter- na América estiveram presididos pela afe-
ra é repúblico, nem zela ou trata do bem tação da distância. O afastamento do rei
16 “Parecer de Antônio Rodrigues comum, senão cada um do bem particular”, magnânimo e protetor perpassou discursos
da Costa de 9-1-1721”, Lis-
boa, AHU, cód. 233, f. 223. ao passo que o senhor de engenho em que, indiferente ao lugar do emissor
17 “Parecer do Conselheiro Antô- pernambucano, escorado na voz de (governadores, câmaras, vassalos na Amé-
nio Rodrigues da Costa Brandônio, ilustrava a “negligência e pouca rica, ministros do Conselho Ultramarino),
[1732]”, in Revista do Instituto
Histórico Geográfico Brasilei- indústria” dos moradores do Brasil figuran- provocava-se uma das regras que zelosa-
ro (RIHGB), 1847, t. 7, v. 7, p.
475.
do estes nas gentes – mercadores, oficiais mente deveriam ser guardadas para o bom
mecânicos, serviçais assalariados nas em- governo da república. A tópica reconhecia
18 Frei Vicente do Salvador, His-
tória do Brasil, 1500-1627, presas coloniais – que, por seus diferentes o espaço de léguas de afastamento do trono
Belo Horizonte, Itatiaia, 1982,
p. 58; Ambrósio Fernandes modos, “não têm nenhum cuidado do bem régio afirmando um lugar de desproteção
Brandão, Diálogos das Gran- geral” (18). Sob nova paisagem que a Amé- que chamava o rei as suas obrigações de
dezas do Brasil, São Paulo,
Melhoramentos, 1977, pp. 33- rica oferecia, fustigava-se a velha cepa que dispensador de segurança ao seu povo.
4.
sustentava a própria constituição do poder A oração do pai-nosso que circula den-
19 Vitorino Magalhães Godinho,
“Finanças Públicas e Estrutura
régio em Portugal. O bem comum, confor- tre os moradores do sertão das Minas no
do Estado”, in Ensaios II, Lis- me salientado por Vitorino Magalhães século XVIII, dirigida ao “Rei e senhor
boa, pp. 29-74, pp. 44-5.
Godinho, confundia-se com a própria legi- soberano”, que ao invés de ser destinada ao
20 Ângela Barreto Xavier, op. cit.,
pp. 128-9. timidade dos reis lusitanos (“propter bonum Senhor do universo, apela, “Se vós cá
21 Luís Reis Torgal, Ideologia Polí-
commune regit”) desde que, no século XIV, quiserdes vir/ uma vez de quando em quan-
tica e Teoria do Estado na Res- vingou o princípio de que os reis não são do”, manifestava ao que parece menos de
tauração, Coimbra, Biblioteca
Geral da Universidade, 1981, proprietários de seus reinos, mas sim seus um desejo da presença régia na América
p. 7.
defensores, acrescentadores e administrado- que jogo de efeito a sublinhar os padeci-
22 “Padre noço [sic] dos morado- res (19). O princípio teológico-político, que mentos dos vassalos (22). “Vossa Majesta-
res das Minas Gerais…”, op.
cit. ordenava a manutenção dos equilíbrios e o de”, lembrava em 1666 um requerimento

10 REVISTA USP, São Paulo, n.57, p. 6-27, março/maio 2003


de moradores fluminenses com dificulda- Para os conselheiros e administradores
des de apelar ao rei, deve sempre “pesar os régios a tópica comparece como instrumen-
inconvenientes de uma autoridade sem li- to para mover a política colonial à prudên-
mitação na distância de mais de mil léguas cia. Os conselhos que preparavam os admi-
do Trono” onde, como muitas vezes ocor- nistradores para governar na América re-
reu, “não devem chegar os nossos clamo- ger-se-iam à base desta. Ninguém melhor
res e gritos da nossa dor” e as “aflições e que o Conselho Ultramarino para prescre-
perseguições que não ficamos expostos, ver “a harmonia daquele governo” como
debaixo de uma autoridade regida por pai- sendo “a base mais firme da conservação
xões e caprichos, que pelo interesse da dos estados e especialissimamente neces-
Justiça e serviço de Vossa Majestade, sus- sária para aquele do Brasil por estar tão
tentado por parentes e amigos poderosos distante da cabeça e coração da Monarquia
que rodeiam o Trono Augusto em que Deus por se achar tão opulento e por se saber e ter
colocou Vossa Majestade” (23). experimentado proximamente em quase
A lonjura em relação ao “bafo do rei”, todos os governos, a pouca sujeição e obe-
ativada pela tópica, denunciava a usurpação diência de seus moradores às ordens reais,
de direitos dos súditos diante das autorida- e a grande desafeição que tem ao reino, e às
des figuradas como venais e despóticas. A disposições que receiam dele” (27).
proposta expressa em um dos itens dos
capítulos encaminhados pelos amotinados
de 1660 ao rei sugeria que o governador
fosse assessorado “com parecer de pessoas O peso dos tributos
doutas e sábias” para auxiliar as injustiças
praticadas pelos “ministros de justiça infe- Os constantes pedidos de contribuições
riores” que se valiam para isso da distância fiscais e o controle rigoroso do comércio
23 Vivaldo Coaracy, op. cit., p.
e do tempo que demorava a apelação (24). da América motivaram debates, resistên- 27.
A distância associava-se ainda à lentidão cias e toda a sorte de afetações associadas 24 “Carta de Tomás Correia
da aplicação da justiça régia, dependente à ruína, tirania, injustiça, desrespeito aos Alvarenga” e “Capítulos que
propõem o povo deste recôn-
das decisões do centro, sujeitando os súdi- estatutos corporativos e abalos à plena fe- cavo desta cidade que se ajun-
tou na ponta do barbalho ao
tos ultramarinos a injustiças. Pregavam os licidade dos povos. Das formas que assu- Senhor governador Tomé Cor-
conselheiros do Tribunal do Ultramar, miu a imagem de opressão, poucas abala- reia de Alvarenga por mão dos
quatro procuradores… 8-4-
quando cientes da demora no julgamento vam de modo mais contundente a imagem 1661”, Lisboa, Biblioteca
Nacional de Lisboa-Reserva-
das sentenças: “por a dilação na adminis- do bom governo como os constrangimen- dos (doravante BNL-res), Cx.
tração da justiça ser de ruim exemplo e de tos relacionados à balança do dever e do 199, n. 47.

grande desconsolação para vassalos ausen- haver das finanças coloniais. 25 “Consulta do Conselho Ultra-
marino. Lisboa, 1 de fevereiro
tes da presença de Vossa Majestade, ino- António Manuel Hespanha, ao analisar de 1662”. Lisboa, AHU, cód.
centes ou culpados” (25). os discursos a respeito da Fazenda real em 16, f. 34v.

Outras vezes os textos se referem às Portugal, recorda que “as regras de ouro da 26 “Petição dos moradores do
sertão da América à rainha
dificuldades de encontrarem meios de re- gestão financeira” eram “as mesmas que Dona Maria I. s.l. [1776]”,
Lisboa, ANTT, Papéis do Bra-
correr ao julgamento real. Da petição que presidiam a toda a atividade de governo: as sil, Avulsos no 3, documento no
preparam à rainha protestando contra as da justiça, ou seja, de que qualquer intromis- 13, fls. 140-143, f. 142.
“desordens indizíveis”, advertem os serta- são do rei no património dos vassalos deve- 27 “Parecer do Conselho Ultrama-
rino. Lisboa 1-5-1716”, Lisboa,
nejos moradores do interior da Bahia, Per- ria ser excepcional e que só seria legítima AHU, Bahia (documentação
nambuco e Goiás sofrerem com a falta de precedendo justa causa, igualdade e justiça avulsa não-identificada), cx. 9,
doc. 5.
representatividade de seus interesses junto materiais e processo devido […]” (28). Cer-
28 António Manuel Hespanha, “A
ao rei. Na melhor tradição apelativa afir- to Manifesto do ano de 1700 em forma de Fazenda”, in História de Portu-
gal – O Antigo Regime, Lisboa,
mam que “choram os miseráveis vassalos profecias, assinado por um “Engenho de Rio Estampa, 1993, v. 4, p. 204;
de Vossa Majestade nesta longínqua con- de Janeiro”, assinala situação bem diversa no tocante aos dilemas do
exercício financeiro da monar-
quista, sem haver um ministro que o[s] re- vivenciada no Brasil. Ali, queixava-se: “Tri- quia portuguesa ver especial-
presente [n]o Real Conselho, e lhe acudir butos no sal, nos vinhos, aguardentes, azei- mente o segmento “constrangi-
mentos do cálculo financeiro
com pronto remédio” (26). tes, couros e tabacos, e dez por cento de tri- em Portugal”, pp. 205-13.

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butos nas fazendas de mar em fora para sus- violência da cobrança, como ficou repre-
tentar o Presídio! E passa isso em uma con- sentado na celebrizada passagem das Car-
quista, onde os estrangeiros já puseram as tas Chilenas, “envia bons soldados às
mãos, e cada hora põem as quilhas, e há Comarcas,/ E manda-lhes, que cobrem, ou
Tribunal da Prudência que isto despache. que metam/ A quantos não pagarem nas
Aqui del-rei, aqui del-rei [isto é, socorro!] Cadeias […]. O pobre, porque é pobre,
que nos acuda, que isto não” (29). Em outra pague tudo,/ E o rico, porque é rico, vai
passagem não menos contundente, eis: pagando/ Sem soldados à porta, com sosse-
go!” (33).
“Estes são os ministros dessa era que tem As recomendações contrárias à imposi-
por máxima, e conduta irrefragável: ‘ve- ção de tributos aos súditos amparavam-se
nha para cá o ouro de sua majestade que solidamente na teologia moral escolástica,
lhe queremos pôr a mão por cima, e os que definia a ilicitude dos impostos novos
bugios [isto é, macacos] do Brasil que se a partir de quatro justificativas: a falta de
esfolem, e das próprias peles paguem os poder tributário de quem criou; não visa-
presídios, que há de defender as suas ter- rem o bem comum; por incidirem sobre os
ras como se elas não foram conquistas do bens de sustentação; se sobrecarregarem
mesmo Rei pio, e cristão’. […] acorda mais os pobres que os ricos, sendo despro-
meus senhores e senão não nos dará Deus porcionais (34). Noção contígua a esta, a
ouro para dourarmos os nossos couches, do excesso de carga fiscal que atingia aque-
que eu não sei donde ele venha senão das les vassalos, apareceria reforçada na lavra
29 “Manifesto do encoberto e o
encoberto manifesto para guia conquistas. […]” (30). do conselheiro Antônio Rodrigues da Cos-
de tontos, espelho de cegos, e ta quando recomendava equilíbrio entre o
despenhadeiro de cobiçosos.
Dedicado aos presos do Li- Na América, os discursos dos colonos “peso dos tributos” e as “forças e cabedais
moeiro de Lisboa. Composto
por um engenho de Rio de Ja- mostraram-se ciosos em relação aos prejuí- dos vassalos” na política financeira aplica-
neiro. Ano de 1700”, Londres, zos que a sobrecarga fiscal causava. Com da junto ao Brasil (35). Cuidando de argüir
British Museum. Additional
Papers, no 15195, f. 248-255. freqüência falou-se da ruína que atingia todo em especial a tributação nas alfândegas e o
30 Idem, ibidem, f. 253 e 255. o povo. A figura dos privilegiados que se dote para o casamento real, condenava a
31 “Particulares de que necessita isentavam do fisco foi notória em muitas sobrecarga na fiscalidade colonial, superi-
o povo da cidade da Bahia que das queixas. Em carta do procurador do or à que se verificava na “nação portugue-
propõem a Vossa Majestade
por seu procurador, na forma e povo da cidade da Bahia ao rei de 1656, sa”, parecendo zombar: “nem os portugue-
maneira seguinte… 1656” (pu-
blicado em: Ignácio Accioli e pedia-se que de “todos os tributos, fintas, ses souberam nunca pronunciar sete mi-
Braz do Amaral, Memória His- contribuições e pedidos que se lançarem lhões”. Flertava aqui com a boa razão dos
tórica e Política da Província
da Bahia, Salvador, Imprensa naquele povo para sustento de guerra da- príncipes ao evitar tributos aos povos: “Se-
Oficial do Estado, 1931, v. 3,
p. 116).
quele presídio […] se não isentem deles nhor. Nunca tributos e quando tributos
as pessoas privilegiadas ricas e podero- poucos, porque dos muitos tributos vimos
32 Minas Gerais, Arquivo Históri-
co da Câmara Municipal do sas, nem por respeitos particulares, por- já resultar terríveis casos não em o novo
Serro Frio, cx. 17, liv. 1, f. 180.
quanto a contribuição há de ser geral e não mundo buscaremos exemplo, caseiros os
33 Tomás Antônio Gonzaga, “Car-
ta 7a”, in Cartas Chilenas, in- particular, por ser comum o dano que hou- temos. Espanha pelos muitos tributos per-
trodução, cronologia, notas e ver […]” (31). deu este reino; por muitos também teve
estabelecimento de texto de
Joaci Pereira Furtado, São Pau- Também nas comarcas mineiras a atri- perdido Nápoles, Milão e Sicília, e de
lo, Companhia das Letras,
1995, pp. 164 e 166.
buição de desigualdade da tributação pare- muitos tributos será Catalunha grande tes-
cia ferir a parte mais humilde da comunida- temunha e com grande dano: tirar dos po-
34 António Manuel Hespanha, “A
Fazenda”, op. cit., p. 206. de. Diante da contingência de se recolher vos cinco para lhe restituir doze é obra de
35 “Parecer do Conselheiro Antô- recursos para o sustento das crianças ex- Deus, mas tirar por tirar é só obra dos ho-
nio Rodrigues da Costa
[1732]”, op. cit., pp. 477 e postas, denunciava a câmara do Serro Frio mens”, alertou o marquês de Cascais em
479. a “extraordinária multidão de pessoas pri- seu Discurso Político (36).
36 “Discurso político que fez o vilegiadas e isentas de pagar semelhantes Também a duração interminável de
Marquez de Cascais manda-
do pelo Príncipe N. Sr. sobre a fintas”, o que fazia recair “a satisfação delas muitas contribuições seria lembrada diu-
proposta abaixo declarada”, sobre a parte mais fraca do povo…” (32). turnamente, tanto nos protestos dos vassalos
BNL-res, Códice 1566, fl. 19-
23. À desigualdade mesclava-se comumente a quanto nas recomendações dos conselhei-

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ros régios, valorizando a situação de sofri- obra para a qual o tinham dado” (41). Os
mento. Os edis fluminenses anunciam-se riscos envolvidos com a alteração do lugar
em fins do Seiscentos vivendo “no mais da aplicação do tributo em relação àquele
miserável estado que se pode considerar”, que motivara sua cobrança não escaparam
com as cadeias “ocupadas com a nobreza mais uma vez ao conselheiro ultramarino
daquela república, [com] seus bens arre- Antônio Rodrigues da Costa. O que se pas-
matados”, quando apelam à bondade régia sava com a cobrança do dote real, ao qual
pela diminuição da cobrança do dote para já fizemos alusão, parecia-lhe uma prática
os casamentos reais (37). A incontinência bem próxima da deslealdade de Portugal
das cobranças fiscais também foi objeto de para com tais súditos. Em seu testemunho
repreensão da parte de Antônio Rodrigues insuspeito, anuía que tal contribuição “já
da Costa ao condenar o prolongamento do não é necessária para o fim, para que foi
recolhimento do dote, pois a cada cobrança pedida, pois já os casamentos reais estão
anual “vem a se repetir as feridas sobre a celebrados […] sem que fosse preciso em-
primeira” (38). Perseguia o erudito conse- penharem-se as rendas reais para esta cele-
lheiro as advertências dos livros de regi- bridade” (42). 37 “Sobre o que escrevem os ofi-
mentos de príncipes: “… não acumule te- De outra parte, a configuração do peso ciais da câmara da capitania
do Rio de Janeiro… Parecer do
souros”, avisava João de Solórzano Perei- dos tributos sobre os colonos aparecia rela- Conselho Ultramarino de 28
de janeiro de 1681”. Lisboa,
ra, pois “qualquer coisa que enriqueça ou cionada a sua forma de sua aprovação. Os AHU, cód. 232, f. 30.
empobreça os cidadãos enriquece ou em- “homens de negócio” da Bahia em 1728 38 “Parecer do Conselheiro Antô-
pobrece quem reina” (39). buscam persuadir o rei a respeito da ilegi- nio Rodrigues da Costa
[1732]”, op. cit., p. 480.
Não raro, a contundência da crítica fis- timidade de um tributo a que se viam obri-
39 Emblema LXXXII, Francisco
cal apareceu valorizada ao se referir à sua gados a pagar. Para que ele fosse justo, seria António de Novaes Campos,
aplicação em finalidades diversas daque- preciso que fossem “convocados e ouvidos Príncipe Perfeito. Emblemas de
D. João de Solórzano [1790],
las que justificaram a adoção do imposto. os povos, e se ajustasse este tributo em Lisboa, Instituto de Cultura e
Língua Portuguesa, 1985, p.
O desvio das receitas acabava por assanhar Cortes” (43). 103-4.
a natureza ilegítima e odiosa da fiscalidade Imagens vigorosas também sustentaram 40 “Sobre o que escrevem os ofi-
sobre os vassalos, uma vez que a suspeita ainda os debates em torno do monopólio ciais da câmara e governador
da capitania do Rio de Janei-
de se estar enganando os povos indica con- comercial (44). Os moradores da cidade do ro… Parecer do Conselho Ul-
duta dos administradores incompatível com Rio de Janeiro dirigem-se ao rei em 1653, tramarino de 13 de janeiro de
1689”, Lisboa, AHU, cód.
a virtude que deve presidir a república. “Por reclamando sua proteção e graça diante da 232, f. 58v-60.
que nos tributos lançados aos Povos para ação dos negociantes metropolitanos orga- 41 “Parecer do duque do Cadaval
enviado a Diogo de Mendon-
remédio da pública necessidade, se não nizados na Companhia Geral do Comér- ça Corte-Real. Lisboa, 2 de
davam ordenados aos Tesoureiros […] cio, “que sobre a ruína dos povos têm ar- dezembro de 1718” (apud
Virgínia Rau e Maria F. G. da
porque o dinheiro que se tirava não só dos mado a hidra da discórdia e desconfiança, Silva, Os Manuscritos do Ar-
vassalos ricos mas dos pobres para acudir limitando o comércio, quando Deus, abrin- quivo da Casa de Cadaval
Respeitantes ao Brasil ,
algum aperto público não era justo que se do os mares para a comunicação recíproca Coimbra, s.e., 1955, p. 214).
devirtisse [sic] em mãos particulares mas dos povos, o deixou livre e ilimitado” (45). 42 “Parecer do Conselheiro Antô-
nio Rodrigues da Costa
tudo se encaminhe ao remédio para que se O aparente paradoxo que sugere a reclama- [1732]”, op. cit., p. 480.
lançou …” (40), pediam os camaristas do ção por comércio “livre e ilimitado”, tendo 43 “Consulta do Conselho Ultra-
Rio de Janeiro em fins do século XVII. em vista a importância do exclusivo co- marino. Lisboa Ocidental, 21
de agosto de 1728”, Lisboa,
O respeito à boa regra motiva recomen- mercial, é a chave para compreender a na- AHU, Bahia (documentação
dação edificante do duque do Cadaval, tureza dos discursos desenvolvidos sob a avulsa não-identificada), cx.
27 (1728), doc. 83.
quando, já adentrado o século XVIII, reco- égide da realeza com a força do providen-
44 Fernando Novais, em Portugal
mendava, a respeito da prioridade a ser dada cialismo cristão a indicar o esforço per- e Brasil na Crise do Antigo Sis-
tema Colonial, 1777-1808
ao abastecimento de água no Rio de Janei- suasório dos colonos. (São Paulo, Hucitec, 1979,
ro, “que el-rei mandasse repor da sua fa- Os apelos que registravam o empobre- pp. 191 e segs.), discute as
resistências dos colonos aos
zenda, tudo o que para ela se devertiu [sic] cimento e desabastecimento dos vassalos monopólios e ao estanco.
da consignação da água, para que os mora- em decorrência do regime comercial das 45 “Carta dos oficiais da câmara
dores do Rio de Janeiro vissem que não frotas também integrariam os textos dos do Rio de Janeiro. 1653” (pu-
blicado em: Vivaldo Coaracy,
eram enganados e se gastava o subsídio na soteropolitanos. No documento “Queixa- op. cit., p. 148).

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se o povo da cidade da Bahia de Todos os arrendamentos não convinham a eles: “as-
Santos e partes do Estado do Brasil a Vossa sim ficarão livres da opressão dos contra-
Majestade que Deus Guarde, por seu pro- tos estes pobres moradores, cujo aumento
curador, do dano, que recebe da Junta, e depende muito de se lhes não limitarem as
Companhia Geral do Comércio do dito franquezas comerciais” (49).
Estado…” (46), de 1652, os pequenos
mercadores alijados do sistema de frotas
produziam a imagem de uma carestia ge-
neralizada, a fim de encontrar espaço lon- À custa de sangue, vidas e
ge do monopólio para propor que navios
mercantes fossem licenciados pelo rei e, fazendas
46 Apud Virgínia Rau e Maria
“se os administradores da Companhia não
Fernanda G. da Silva, op. cit., quisessem carregar neles os quatro gêne- A linguagem da lealdade entre os súdi-
v. 1, pp. 102-4.
ros, que o pudesse fazer livremente quem o tos e o rei que embalou as elaborações
47 Idem, ibidem, p. 104.
pretendesse, para provimento do povo” discursivas era disputada por ambos. De-
48 Gregório de Matos, Gregório
de Matos: Obra Poética, 2a (47). O horror da fome, aqui produzida monstrações retóricas da fidelidade e afei-
ed., ed. James Amado, prepa- como argumento retórico para conter a ação ção foram lembradas amiúde. Em parecer
ração e notas de Emanuel Araú-
jo, Rio de Janeiro, Record, exclusivista, esteve presente a esse tempo do Conselho Ultramarino, Antônio
1990, v. 1, pp. 339-40.
nas sátiras atribuídas a Gregório de Mattos. Rodrigues da Costa repisava a máxima: “a
49 “Ofício do governador Gomes A frota, se “não traz nada/ Por que razão conservação dos Estados consiste principal-
Freire ao Rei. s.l. 13 de outu-
bro de 1685” (apud João Fran- leva tudo?/ … frota com a tripa cheia,/ e mente no amor e afeição dos súditos” (50).
cisco Lisboa, Crônica do Brasil
Colonial (Apontamentos para povo com pança oca!’…” (48). As palavras do conselheiro traduziam,
a História do Maranhão), intr. A virtude provedora do príncipe apare- para as relações com súditos do ultramar,
Peregrino Jr. e Graça Aranha,
Rio de Janeiro/Brasília, Vozes/ cia subvertida na América não apenas em uma das sábias máximas que servia de li-
INL, 1976, pp. 482-3).
razão dos comerciantes, mas também foi ção elementar aos príncipes: “Desgraçado
50 “Parecer do Conselheiro Antô-
nio Rodrigues da Costa
associada nesses documentos aos arren- o Príncipe a quem os vassalos não servem
[1732]”, op. cit., pp. 480-1. datários de contratos. Figurados como ho- por amor; e pouca é a República a quem o
51 “Discurso político que fez o mens cobiçosos, queixavam-se os verea- Príncipe não paga muitos agrados, e afetos,
Marquez de Cascais manda-
do pelo Príncipe N. Sr. sobre a dores da Bahia desses que “se animam a senão somente serviços; o amor dos
proposta abaixo declarada”, levar os contratos sem atenderem mais que vassalos pode-se sofrer aguado; mas o do
op. cit.
algumas razões suas e pouco convenientes Príncipe há de ser puro; mais Príncipes se
52 “Carta em que o governador
propôs à Câmara deviam con- ao serviço de Vossa Majestade”. No Mara- perderam por austeros que por familiares,
tinuar em concorrer para a nhão, a associação de contratos e miséria
defesa da terra e fortificações,
e fáceis; porque como do trato nasce o amor,
e resolução da Câmara para emana do próprio governador Gomes também nasce da estranheza a espicança
se continuar tributos nos vinhos.
Luis Barbalho Bezerra. 5-7- Freire, nos estertores da revolta de [sic; isto é, a mágoa]” (51).
1643”. Lisboa, ANTT. Manus- Beckman, reconhecendo então o estado Em carta do governador Luis Barbalho
critos remetidos pelo Ministério
da Instrução Pública, liv. 42, generalizado de pobreza dos moradores, tão em 1643 à câmara, quando pretendia
“Coleção segunda em que se
contém vários documentos que
“à mingua de cabedais”. Conclui que tais convencê-la a ampliar seus dispêndios com
servem de comprovação aos a defesa do porto do Rio, lembrava da con-
mapas cronológicos dos con-
tratos do ultramar”, f. 9v-10v. tribuição espontânea de “vassalos com
53 “Termo porque se mostra se aquele amor, e antiga lealdade de portu-
haviam mandado continuar os gueses” (52).
impostos, de que o povo se
alterou, porém se conclue, que A mesma tópica serviria, contrariamente,
tinham muito dinheiro naquele
ano, não só para a própria para que, em outras ocasiões, os vassalos
defensão da terra, mas para rejeitassem tributos excessivos. Na mesma
outros empregos”, Lisboa,
ANTT, manuscritos remetidos capitania, nos primeiros atos das contesta-
pelo Ministério da Instrução
Pública , liv. 42, “Coleção se-
ções de 1660, um termo do povo lembrava as
gunda em que se contém vá- inúmeras contribuições oferecidas ao rei, “fa-
rios documentos que servem de
comprovação aos mapas cro- zendo isso como leais vassalos de Sua Majes-
nológicos dos contratos do ul- tade” (53). Nas Minas, alimentando a caloro-
tramar” , f. 22-23v; idem AHU,
cód. 1279, f. 19-20. sa oposição ao restabelecimento da casa de

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fundição, no encerramento da representação Afonso VI em 1667, persuadindo os povos
da câmara de Vila Rica ao rei, anunciava-se e as Cortes para as virtudes do infante Dom
a infelicidade de não serem atendidos em suas Pedro, assumindo este a capacidade de pre-
súplicas, quando diante do exagero da co- servar a liberdade que os reis anteriores ti-
brança dos direitos régios perderiam “os bens nham conquistado e mantido “à custa do
e a própria vida, porém em nós será sempre sangue, da honra e fazenda dos vassalos”
firmíssima a obediência” (54). (57). A tópica fixava as demonstrações da
Nesses discursos emergiu com notável liberalidade imemorial do reino, graças ao
regularidade a tópica do empenho e libera- empenho dos súditos em prol de soberanos
lidade com que os súditos concorreram para virtuosos capazes de preservar a constitui-
o luzimento da monarquia e do reino, for- ção e a liberdade naquele instante de tensão.
ma de ideal de suas virtudes, presente nos A oportunidade e as exigências de vo-
regimentos de príncipes. Expressão vigo- luntarismo ante as adversidades de todo o
rosa dessas noções, que articulam o reino tipo a que se expunham na América tornou
sob o ideal do bem comum onde o patrimô- o enunciado ali especialmente notório.
nio dos vassalos inexiste se não for para Revelava-se argumento de persuasão que
servir ao rei, tutor da felicidade dos povos, reunia a liberalidade dos vassalos, a sina
conduz ao enunciado “à custa do sangue, das fronteiras inóspitas do império e a ar-
vidas e fazendas”. Prova do amor, a libera- gúcia da expectativa de reconhecimento de
lidade do súdito com o príncipe, a ele devo- um lugar na república. Afetavam-se libe-
tando sua vida e bens, constitui a condição rais para demonstrarem-se merecedores de
mesma de prosperidade da república, pela prêmios com que o príncipe faz florescer o
busca de utilidade e conservação, uma vez reino: “com prêmios tudo assim floresce”, 54 “Representação da Câmara de
Vila Rica contra a Lei Novíssima
que o príncipe é a garantia delas (55). instruía o magistrado espanhol Dom João das Casas de Fundição. Vila
Rica, 24-4-1751”, op. cit.
O referencial movido pela tópica na de Solórzano Pereira (58).
América resgata uma fórmula cara à figu- O vocabulário serviria para frei Vicente 55 Maria Helena de Teves Costa
U. Prieto, “Introdução”, in Fran-
ração da nobreza européia. Confrontada do Salvador enaltecer a conduta do gover- cisco António de Novaes Cam-
pos, op. cit.
pelo Estado, temeroso de que os nobres nador Teles Barreto em defesa dos senho-
56 Apud Rosario Villari, “O Rebel-
locais pudessem articular a oposição das res de açúcar contra os interesses dos nego- de”, in Rosario Villari (org.), O
províncias e das cidades contra o governo ciantes que “vinham a destruir a terra”: “foi Homem Barroco, Lisboa, Edi-
torial Presença, 1995, pp. 95-
central, os grandes empregavam a tópica este governador mui amigo e favorável aos 114.
na defesa de seus direitos, precedências e moradores […] pera que os mercadores os 57 Ângela Barreto Xavier, op. cit.,
autonomia. Episódio representativo disso não executassem nas fábricas de suas fa- p. 34.

se passa no reino de Granada sob as pesa- zendas […] e os moradores eram os que a 58 Francisco António de Novaes
Campos, op. cit., pp. 162-3.
das tensões que marcavam a resistência à conservavam [a região]e acrescentavam
59 Frei Vicente do Salvador, His-
centralização promovida pelo conde-duque com seu trabalho, e haviam conquistado à tória do Brasil: 1500-1627
[1627], São Paulo/Belo Hori-
de Olivares quando, patrocinando a agres- custa do seu sangue” (59). Na mesma dire-
zonte, Edusp/Itatiaia, 1982,
são ao procurador da cidade de Granada, ção, no prelúdio à petição que encaminham p. 251.
protesta este: “os meus progenitores con-
quistaram cidades e terras para os nossos
reis, defenderam os seus reinos, derrama-
ram o seu sangue e sacrificaram as vidas ao
seu serviço” (56). Na cultura política mo-
derna, noção do sacrifício vinculado ao ser-
viço real e aos sucessos do reino foi acio-
nada nos momentos em que os expoentes
da nobreza sentiam-se ameaçados em seus
direitos, privilégios e autonomia.
O enunciado apareceria nas estratégias
retóricas ativadas quando da grave crise que
em Portugal levou à deposição do rei Dom

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à soberana dona Maria I, os sertanejos do Alteza os livrasse do sentimento com que
interior do Brasil erigem de modo edificante os naturais da dita capitania estavam ven-
sua figura de “suplicantes [que] têm desco- do-se inabilitados [sic], sendo por suas
berto, conquistado, e povoado o mesmo pessoas e procedimentos merecedores dos
sertão à sua custa com o maior desvelo, tais lugares pois seus pais e avós foram
cuidado, e risco das próprias vidas…”, ante naturais deste reino e Vossa Alteza os
as destruições dos gentios, dos “tigres, mandou em seu serviço à povoação daque-
onças e outras feras, que lhes matam a cria- le estado depois de o conquistarem, e de
ção […]” (60). justiça os devia Vossa Alteza preferir para
Em Pernambuco colonial, foi notável a o servirem nos lugares dele”. Lembrando
capacidade da açucarocracia de instrumen- que dispunham por isso do “maior mereci-
talizar a memória em torno de empenhos mento”, persuadiram com algum sucesso o
com a expulsão holandesa para fundamen- soberano de que tal nascimento no Brasil
tar um discurso político justificando a pre- não poderia “ser a causa e estorvo para
dominância de seus direitos contra interes- deixarem de mandar seus filhos com tantos
ses locais rivais e a necessidade de uma riscos e dispêndios a servirem a Vossa
redefinição nos “vínculos coloniais” com a Alteza neste reino e naquele Estado [Bahia]
metrópole (61). Ali, o “confisco da restau- como seus vassalos naturais” (65).
ração pela açucarocracia”, como percebeu Às dificuldades que, nessas e em outras
pioneiramente Evaldo Cabral de Mello, ser- circunstâncias, padeciam os “vassalos na-
viu para justificar o direito de seu domínio turais” da distante América, que se confi-
político da capitania, sobretudo através da guram nessas situações como conquista-
60 “Petição dos moradores do câmara de Olinda, agente desse “discurso dores bravos, leais e desprendidos em nome
sertão da América…”, op. cit.,
f. 141. político do nativismo nobiliárquico” (62). do rei, preteridos contudo das posições de
61 Evaldo C. de Mello, Rubro Veio: A invocação da fórmula “à custa de governo, contrapunham-se os obstáculos
o Imaginário da Restauração nosso sangue, vidas e fazendas”, ainda que para serem ouvidos pelo soberano. Ainda
Pernambucana, Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 1986, particu- “com base em pronunciamentos fragmen- que o direito dos grupos das elites regio-
larmente cap. 3, pp. 100-50.
tários e esporádicos” (63), seria feita com nais tenha sido modestamente assegurado
62 Idem, ibidem, p. 101.
freqüência sempre que se tratasse de justi- em algumas das reuniões das Cortes em
63 Idem, ibidem, pp. 100-1. Em ficar uma recusa ou se estabelecer uma ne- Portugal (como ocorre em 1668), a primei-
seu livro seguinte, A Fronda dos
Mazombos , Nobres Contra gociação para as comunidades estabe- ra decisão a respeito, quando em 1643 as
Mascates: Pernambuco 1666-
1715 (São Paulo, Companhia lecidas na América Portuguesa. Para a açu- diversas câmaras da capitania da Bahia so-
das Letras, 1995), o autor am- carocracia, esse discurso serviu para sus- licitam o direito de enviarem procuradores
pliaria essa leitura. Ver, em
especial, pp. 141-2. tentar pretensões de “reservas dos cargos para ali se sentarem, é negativa (66). Os
64 Idem, ibidem. locais para os moradores da capitania, ou desgovernos do governo real na América
65 “Sobre o que escrevem os ofici- para reforçar uma reivindicação de nature- eram reconhecidos neste particular por An-
ais da câmara do Rio de Janei- za fiscal” (64). tônio Rodrigues da Costa, quando supõe
ro acerca de serem preteridos
os naturais daquela capitania As demandas dos vassalos da América ser uma das causas da insatisfação colonial
aos lugares da relação da
Bahia. Lisboa, 17 de novem- Portuguesa pelo direito de se fazerem re- para com o governo metropolitano a “difi-
bro de 1678”, Lisboa, AHU, presentar no corpo da república amiúde culdade do recurso à Corte” (67): o “ódio
cód. 232, f. 18v-19.
eram justificadas por argumentos que va- que concebem contra os dominantes [isto
66 “Resolução de D. João IV ne-
gando deferir a petição dos mo- lorizavam os empenhos em nome da glória é, autoridades régias]” explica-se em gran-
radores do Rio de Janeiro para do reino. Em reação aos obstáculos ante- de parte pela “dificuldade, trabalho, despe-
terem lugar e voto em cortes,
pois também os não possuíam postos pelo Conselho Ultramarino de que sa e demora de que necessitam para recor-
os da cidade da Baía, cabeça
do Estado do Brasil. S.l., 11 de os “naturais do Brasil”, especialmente os rerem à Corte, para se queixarem das sem-
fevereiro de 1643” (apud nascidos na Bahia, pudessem ser providos razões que padecem, e injustiças que lhe
Virgínia Rau e Maria Fernanda
G. da Silva, op. cit., v.1, p. como desembargadores do Tribunal da Re- fazem, e de lhes ser preciso remirem [isto
31.
lação, os camaristas do Rio de Janeiro, re- é, indenizar] as vexações que lhes fazem,
67 “Parecer de Antônio Rodrigues ou conseguirem as suas melhoras a peso de
da Costa (1732)”, op. cit., p.
clamando “não serem ouvidos”, interpõem
477. em 1678 recurso em que “se animavam a ouro […]” (68).
68 Idem, ibidem. pedir e esperar da real grandeza de Vossa A vexação se completava pelas “injú-

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rias e violências com que são tratados pelos ros tiranos, não houve nunca trabalho, nem
governadores, da iniquidade com que são perigo que os fizesse de maior, nem
julgadas as suas causas pelos ministros da acobardá-los do valoroso ânimo de bons
justiça” (69). A queixa havia sido decisiva vassalos com que a vista de suas fazendas,
para a eclosão da revolta da cachaça no Rio do seu sangue, e das próprias vidas defen-
de Janeiro em 1660: “[…] a tirania impediu deram sempre estas terras para que hoje
a chegada aos reais pés de Vossa Majesta- com o sossego delas tenha Vossa Majesta-
de os repetidos clamores deste Povo a quem de nos efeitos de sua lavouras tão conside-
a violência não permitiu fossem ouvidos, a ráveis quantias dos reais direitos que pa-
apertada urgência das opressões que pade- gam […]” (73).
cia, a quem o poder tirou a liberdade de sua Emergem aqui as adversidades da con-
notícia, e finalmente a impossibilidade dos quista, que ganhavam atributos de verossi-
meios ordinários, e recurso comum dos milhança no documento, e a noção de uni-
Povos a seu Rei e senhor natural, já por dade entre os gestos dos súditos e a felici-
cartas, já por procuradores com que o desta dade do reino governado pela majestade
cidade recorreu os anos passados a Vossa régia. A Mesa do Comércio da Bahia ex-
Majestade a quem danosas inteligências põe seu pedido contra as elevadas taxas a 69 Idem, ibidem.
nessa Corte negaram o acesso, e nessa terra serem cobradas nas alfândegas, levando- 70 “Carta dos oficiais da câmara
a insolência tirou a vida…” [70]. se em conta todas as contribuições que do Rio de Janeiro, dirigida ao
Rei. Rio de Janeiro, 31 de de-
Os paulistas também lançariam mão de costumavam pagar os comerciantes, estan- zembro de 1660” (publicado
parcialmente em: Eduardo Cas-
argumentação semelhante em que disputa- do assim na iminência de “sacrificarem não tro e Almeida, “Inventário dos
riam a exclusividade na repartição das la- só os frutos da sua indústria, mas talvez os Documentos Relativos ao Brasil
Existentes no Arquivo de Mari-
vras da região do ouro, por eles descoberta patrimônios que herdavam dos seus ante- nha e Ultramar de Lisboa [Bahia
e desbravada “à custa de suas vidas e gasto passados para comodidades do seu sobera- e Rio de Janeiro]”, in ABNRJ. v.
39, 1917, pp. 94-5).
de suas fazendas, sem dispêndio da Fazen- no, e glória de leais vassalos” (74). O argu-
71 Apud Odilon Nogueira de
da real”, conforme argumentavam em 1700, mento apareceria ainda nas refutações às Matos, “A Guerra dos
Emboabas”, in Sérgio B.
em representação da câmara de São Paulo famigeradas fintas para sustentar os gastos Holanda (dir.), História Geral
(71). A expressão teria largo uso ainda no da infantaria das cidades litorâneas. A so- da Civilização Brasileira, 4a
ed., São Paulo, Difel, 1972, t.
discurso peticionário com que os entrantes brecarga fiscal com mais essa exigência 1, v. 2, p. 297.
em Minas Gerais pediam mercês por conta financeira parecera um excesso aos ca- 72 Francisco Eduardo de
de descobrimentos de minas. Em represen- maristas baianos, que se reconheciam como Andrade, A Invenção das Mi-
nas Gerais: Empresas, Desco-
tação endereçada ao rei, o sertanista “vassalos que no amor iguais aos maiores, brimentos e Entradas nos Ser-
tões do Ouro (1680-1822),
Bartolomeu Pais de Abreu em 1720 se ofe- no dispêndio de suas fazendas, tanto quan- tese de doutorado, São Paulo,
receu para fazer uma entrada ao Rio Gran- to os que mais podem são os do Brasil, pois Universidade de São Paulo,
2002, p. 98 (sobre o rito pe-
de e um caminho que ligasse a São Paulo. em serviço de seu Rei, e senhor, tem sacri- ticionário ver pp. 95-107).
Dentre seus recursos persuasivos, refere que ficado tantos filhos, dando tanto de suas 73 “Cachoeira, 2 de outubro de
sua empresa transcorreria “sem a menor fazendas, suprimindo tantos castigos dos 1728”, Lisboa, AHU, Bahia
(documentação avulsa não-
despesa da Fazenda real … à custa da mi- tiranos, por tantas vezes queimadas suas identificada), cx. 27, doc. 97.
nha fazenda e riscos de vida” (72). fazendas, e sempre ostentando amor, zelo, 74 “Bahia, 23 de agosto de
1727”, Lisboa, AHU, Bahia
Tal noção reaparece na súplica dos ofi- liberalidade […]” (75). O mesmo emprego (documentação avulsa não-
ciais da vila de Cachoeira na Bahia, na qual ocorre no discurso destinado a justificar a identificada), doc. 36.

apelavam à liberalidade régia por honras e premência da organização de entradas para 75 “Carta dos oficiais da câmara
da cidade de Salvador. 15 de
privilégios, mercês de que se considera- atacar índios em Minas Gerais. Os oficiais junho de 1655”, Lisboa, AHU,
vam merecedores pela aceitação da contri- da Câmara de Mariana endereçam repre- Bahia, (documentação avulsa
não-identificada), cx. 1, doc.
buição para o dote destinado aos casamen- sentação ao soberano, em 1775, queixan- 131.
tos reais, vivendo estes em uma “terra in- do-se de “atrocidades do gentio que cerca 76 Lisboa, AHU, 8417, cx. 108,
doc. 75 (citado em: Maria
festada de bárbaro gentio [onde] nossos an- a mesma capitania pela parte do mar, des- Leônia Chaves de Resende,
tepassados expostos com as vidas e fazen- truindo vidas e fazendas que muitos mora- Gentios Brasílicos. Índios Co-
loniais em Minas Gerais
das a evidente perigo de perderem uma e dores deixam os sítios […]” (76). Setecentista, tese de doutora-
outra coisa pelos contínuos assaltos que Mas, na realidade, o recurso ao sacrifí- do, Campinas, Departamento
de História da Unicamp,
estavam experimentando daqueles bárba- cio patrimonial e existencial pelos vassalos 2003).

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e suas famílias serviria também aos inte- oficiais da câmara do Rio de Janeiro em
resses metropolitanos, conforme notaria 1678, depois de se verem preteridos de ocu-
Evaldo Cabral de Mello (77). A fim de par cargo no Tribunal da Relação da Bahia
garantir a passagem pacífica da cobrança (81). Em outras ocasiões a reivindicação
das rendas reais na capitania da Bahia, pro- ganhava tom mais ácido, quando, em 1688,
cesso que se generalizava na segunda me- protestavam os homens bons da Bahia ao
tade do século XVII, o Conselho Ultrama- seu procurador na Corte portuguesa: “[…]
rino daria provas de comiseração ao defen- que não somos vassalos conquistados se-
der o “alívio daqueles leais vassalos mora- não muito obedientes…” (82).
dores no Brasil, tão dignos dele, e de fazer,
pelo que tem merecido no serviço de Vossa
Majestade à custa das vidas e fazendas, e
de comiseração pelos tributos com que se A PERSUASÃO PELA REVOLTA
acham tão sobrecarregados” (78).
O discurso, que tornava mais contun- A produção dos discursos deve ser en-
77 Evaldo C de Mello, op. cit., dentes aos ouvidos misericordiosos do so- tendida na América Portuguesa acompa-
pp. 120-2.
berano os sacrifícios de ordem natural e nhada por outra forma de contestação me-
78 “Parecer do Conselho Ultrama-
rino, Lisboa, 1 de fevereiro de
patrimonial que no Novo Mundo padeci- nos prudente, ainda que também marcada
1664”, Lisboa, AHU, Bahia am seus vassalos, revertia-se a favor da pela retórica das palavras e pelo ritual de
(documentação avulsa não-
identificada), cx. 2, doc. 39. reafirmação da unidade política, a mere- gestos. O significado das ações políticas
79 John Locke, “Segundo Tratado cer a liberalidade esperada do soberano com a sublevação geral do povo, recurso
sobre o Governo”, in John com reconhecimentos, honras, graças e adotado em diversas ocasiões pelas elites
Locke, trad. Anoar Aiex e E.
Jacy Monteiro, 3 a ed., São concessões. regionais, produz, sob tais circunstâncias,
Paulo, Abril Cultural, 1983, pp.
100-1. Na linguagem dos súditos portugueses enunciados radicais. Travejados por cate-
80 Luís Reis Torgal, op. cit., pp.
na América reivindicou-se, com insistência, gorias identitárias que emergem da reela-
27-8. o respeito à condição de “vassalos naturais”, boração da condição de vassalo e do sobe-
81 “Sobre o que escrevem os ofici- chamando para si direitos que deveriam pre- rano nas regiões coloniais, revoltas ofere-
ais da câmara do Rio de Janei-
ro acerca de serem preteridos sidir a boa relação com o soberano. O “direi- cem condições para se refletir sobre o
os naturais daquela capitania to natural” residia, segundo John Locke, na adensamento da cultura política portugue-
aos lugares da relação da
Bahia. Lisboa, 17 de novem- base da sociedade política, instituída para sa no território colonial.
bro de 1678”, Lisboa, AHU,
cód. 232, f. 18v-19.
que os homens protegessem suas vidas, li-
berdades e bens (79). A referência fora
82 “Carta dos Homens Bons da
Bahia ao procurador da Corte. reavivada pelos juristas portugueses empe-
Salvador, 12 de agosto de
1688” (publicado em: Luiz nhados em justificar o rompimento com o Revoluções modernas
Monteiro da Costa, Na Bahia rei espanhol, baseados nas concepções de
Colonial. Apontamentos para
História Militar da Cidade do Francisco Suárez e Francisco Velasco de Desenrolando-se sob um sentido ritual
Salvador, Bahia, Liv. Progresso
Ed., s/d, p. 114). A ênfase faz Gouveia quando postulam a existência de marcante, as revoltas no Brasil colônia cul-
lembrar, a despeito das distin- um “pacto social” amparado no direito na- tivaram uma espécie de dramaturgia social
ções decorrentes do peso dos
princípios religiosos nas con- tural derivado de Deus, mas concretizado na que buscava sustentar e persuadir o sobera-
cepções políticas, a considera-
comunidade humana. Para além do papel no para certas demandas (83). Talvez por
ção do inglês John Locke, que
defendia que o vassalo de um que esse princípio representou, ao definir isso constituíssem recursos políticos exer-
príncipe absoluto tem a mesma
posição do escravo (Segundo que o poder político é atributo dos homens cidos com certa freqüência e naturalidade,
Tratado, op. cit., p. 68). que o detêm in habitu, podendo em certos ativados sempre que os canais de negocia-
83 Luciano Figueiredo, “A Revolta casos reassumi-lo in actu, a essência do pacto ção habituais haviam fracassado. “Emocio-
É uma Festa: Relações entre
Protestos e Festas na América político entre rei e povo é que ao governo nar o povo até a sedição”, nas palavras de
Portuguesa”, in István Jancsó e
Iris Kantor (orgs.), Festa – Cultu-
régio cabe a administração da justiça, defe- Jean Delumeau (84), mobilizar os morado-
ra e Sociabilidade na América sa, conservação e prosperidade (80). res dos campos e das vilas, percorrer certos
Portuguesa, São Paulo, Edusp/
Hucitec, 2001, pp. 263-76. Com base nessa herança, súditos da rituais de aparente descontrole social, ata-
84 Jean Delumeau, O Medo no América lembravam os riscos e dispêndios car e ofender autoridades associadas ao
Ocidente: 1300-1800 uma Ci- com que serviam a Vossa Alteza, “como desconforto comunitário, assinalavam al-
dade Sitiada, São Paulo, Com-
panhia das Letras, 1989. seus vassalos naturais”, como escrevem os gumas dessas passagens que se repetiam

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nos protestos. Eles compartilham certa “cul- rárquicas, destruições de bens, invasão e
tura da revolta”, conforme designação ado- ocupação das instituições de governo, se-
tada por Roger Chartier para a situação da guiam-se após a mobilização original. Ex-
França setecentista, em que o conjunto da pressões recorrentes nas narrativas das au-
comunidade, apoiado em solidariedades de toridades ameaçadas referiam-se àqueles
vizinhança sem distinções sociais, reage à que estavam “tocando o sino, articulando
violação de seus direitos ancestrais (85). vozes” e procedendo a “demais ações de
O momento inicial das rebeliões passa- amotinador”. A investida ganhava cunho
va-se com grandes assembléias e evoluía ainda mais dramático quando se brandiam
para um movimento de dispersão em que o armas que circulavam entre o povo furioso
coletivo iria convocar mais participantes, e as espadas eram desembainhadas amea-
atacar casas e prédios, ofender autoridades çadoramente contra os poderes locais. O
locais, preparar a defesa militar para o caso emprego do “concurso de armas” de “espa-
de reação e negociar através de magistra- da nua”, como os registros denunciam, foi
dos locais e procuradores do povo as de- gesto de caráter simbólico, a reforçar com-
mandas que justificavam aquele ato políti- promisso com a resistência militar em dire-
co. A mobilização ampla e geral era o fun- ção às conquistas do movimento.
damento que assegurava, pela amplitude Se o ato de rebelião propiciava situa-
social, a legitimidade das demandas aos ções de desordem, violências e ameaças
olhos das autoridades, e servia não apenas aparentes, os meios de controle adotados e
para demarcar diante dos administradores as formas de negociações revelam um ca-
a subtração da autoridade de sua soberania, ráter ordenador no desenrolar daqueles
mas como poder ameaçador nos instantes acontecimentos. As lideranças nomeadas
mais decisivos de negociação. Por isso a para conduzir as negociações são quase
constituição do motim exigiu a congrega- sempre homens bem posicionados na so-
ção de variadas camadas sociais, concor- ciedade local, afirmando-se fiéis e leais ao
rendo para seu caráter popular, entendido à soberano, ainda que amparados pela fúria
época como a representação da totalidade de escravos, agregados e homens pobres
da comunidade, composta pelos grupos mobilizados para o estado de insurreição
habituais da sociedade colonial: soldados, que cumpriam nos cercos, invasões, pas-
agricultores, oficiais mecânicos, padres, co- seatas e mascaradas. As negociações atra-
merciantes. Instaurava-se, na ocasião, uma vés de advogados ou procuradores do povo
autêntica “promiscuidade estamental”, a que discutiam as reivindicações com as
que José Antonio Maravall certa vez se autoridades régias representaram, por
referiu para a festa barroca (86), tendo em outro lado, a força do modelo “jurisdicista”
vista o compromisso da defesa do bem (87) que regulava as as relações estabe-
comum. Tal apelo à participação popular lecidas entre súditos na condição de re-
de amplo espectro, sem o qual o cenário beldes e o soberano.
não estaria completo, era alcançado pela As proclamações de amor, lealdade e
incorporação de demandas que tinham for- fidelidade ao soberano percorriam os ges-
te apelo popular, como a suspensão das tos e as produção dos registros escritos
cobranças tributárias violentas, a redução durante essas rebeliões. Brados de “Viva
de preços dos gêneros básicos, a melhoria el-rei de Portugal nosso senhor…” , feitos
85 Roger Chartier, A História Cul-
da oferta de produtos básicos, o fim da gra- com os amotinados de pé, desembainhan- tural: entre Práticas e Represen-
tações, Rio de Janeiro, Bertrand
vação dos povos para despesas com milita- do espadas, na frente ou dentro das câma- Brasil, 1990, pp. 199-200.
res, a coerção aos odiados contratadores ou ras municipais ou de cartórios, com gritos 86 José Antonio Maravall, A Cul-
a expulsão dos jesuítas. coletivos em uma só voz (“a voz de todos tura do Barroco, São Paulo,
Edusp, 1995.
O estado de rebelião exigia gestos à geralmente”), repetidos por duas ou três
87 António Manuel Hespanha,
altura, executados pela multidão que assu- vezes, inauguraram muitos desses movi- “Revoltas e Revoluções: a Re-
mira o controle da república: vozes, sinos, mentos. A afirmação dessa imagem do “rei sistência das Elites Provinciais”,
in Análise Social, no 28 (120),
tropel, agressões, desafios e inversões hie- justiceiro”, presente nas críticas ao tirano 1993, pp. 81-103.

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espanhol que estimulou as inquietações jeitas à conquista de outras potências nacio-
sociais em Portugal que prepararam a Res- nais. Nos momentos em que as contesta-
tauração de 1640, sinalizava que o sobera- ções alcançaram a forma de movimentos
no apóia o respeito aos costumes e a justeza armados e mobilizações populares de rua
da rebelião, pois quem contraria as liberda- os discursos tenderam a ultrapassar os ter-
des tradicionais viola o próprio soberano mos originais mais comedidos. Afinal, as
(88). A instituição da monarquia, segundo elaborações gestuais construídas em nome
uma das correntes do pensamento restau- do rei não deixavam de arranhar sua auto-
racionista português, aparecia “mediada ridade e tópicas que indicavam ameaças à
pelos povos, instrumentos de instituição do política colonial e graves críticas à sobera-
monarca”, uma vez que ela derivava do nia portuguesa confrontavam o equilíbrio
pactum subjectionis pelo qual a comunida- sob a monarquia.
de aceitava um soberano e se submetia a Como ocorreu em diversas rebeliões,
ele sob certas condições (89). Porém, con- precedendo a invasão da câmara do Rio de
forme defendem tais escritores, o soberano Janeiro pelo “povo armado”, consignou-se
que governasse com tirania, contrariando o imediatamente o reconhecimento ao sobe-
direito natural, tornar-se-ia ilegítimo, ca- rano português através de “Vivas a El Rei
bendo aos povos – instituidores da autori- D. Afonso VI, de quem eram fiéis vassalos”
dade legítima – o direito à resistência (90). (92). A rotina reapareceria na abertura do
Ainda que os brados de “Viva el-rei” texto reivindicatório preparado em capítu-
pudessem ser substituídos, no decorrer de los: “Em primeiro lugar protesta o dito povo
alguns dos protestos, por “viva o povo, que são muito leais vassalos a El rei nosso
morte aos traidores!”, ao contrário de re- senhor Dom Afonso …” (93). Ao lado dos
presentar possíveis reveses no seu encami- brados de “Vivas” ao soberano reinante,
nhamento político, reafirmavam as peculia- clamava-se porém contra a usurpação de
ridades do exercício político de então. Tra- direitos tradicionais de súditos promovida
ta-se de vozes que correspondem quase pelos funcionários régios no ultramar.
sempre a etapas distintas do andamento das Formuladores de discursos persuasórios
rebeliões. A primeira, sublinhando a afei- cultivados sob a valorização do sentimento
ção ao trono real e reiterando a condição de de distância do trono régio, sairia reforça-
súditos achacados por algum funcionário da nos momentos das rebeliões a imagem
traidor da vontade do rei; a segunda, assi- do rei traído, para a qual concorriam as
nalando a mesma intenção de tocar as sen- práticas tirânicas desempenhadas pelos seus
sibilidades coletivas para, no entanto, pre- prepostos no Brasil. Na revolta de 1736 tal
parar a resistência diante de rumores de rea- noção reforça o ódio contra Martinho de
88 Roger Chartier, op. cit., p. ção e contra-revolta. Mendonça, governador sobre o qual se
200; António de Oliveira,
Poder e Oposição Política em Tamanho diálogo com a figura régia aten- construiriam imagens associadas à humi-
Portugal no Período Filipino dia às concepções neotomistas da segunda lhação e abuso praticados: “[…] para que
(1580-1640), Lisboa, Difel,
1990, p. 195. escolástica portuguesa que, conforme sali- não nos cavalgue o Sr. Martinho de Men-
89 Ângela Barreto Xavier, op. cit., entou Luis Torgal, fundaram um sentido donça; como tem cavalgado as Minas[…]”.
p. 127.
ético inerente à atuação política (91). Ao apresentarem o requerimento que fa-
90 Luís Reis Torgal, op. cit., p. 8.
zem os moradores do sertão às vésperas da
91 Idem, ibidem, p. 30. eclosão do protesto, “se puseram de pés
92 “Auto dos motivos que deram apelidando a voz de todos geralmente viva
causa ao rompimento do povo
contra o seu governador. 8 de
Tópicas rebeldes ou idéias radicais? El Rei de Portugal Dom João o quinto, e
novembro de 1660” (publica-
do em: Baltazar da Silva Lis- todos os seus vassalos repetindo duas e tres
boa, Anais do Rio de Janeiro, O vocabulário ativado nessas ocasiões vezes a mesma voz”. No entanto, talvez
v. 4, pp. 3 e 5).
revelava por vezes um conteúdo extrema- derivado da forte presença de grupos su-
93 “Carta de Tomé Correia de
Alvarenga ao Rei Dom Afonso mente contundente, sobretudo porque trans- balternos nessa rebelião, logo se substitui-
VI. Lisboa, 8 de abril de corria sob impulso de sublevações popula- ria aquele brado leal por “Viva o Povo e
1661”, BNL-res, caixa 199,
n. 47, [fl.2]. res em comunidades afastadas do rei e su- morram os traidores”.

20 REVISTA USP, São Paulo, n.57, p. 6-27, março/maio 2003


Três ilustrações
de Debret: ao
lado, Aceitação
Provisória da
Constituição de
Lisboa; abaixo,
Um Funcionário
a Passeio com
sua Família; e,
por último,
Aclamação
do Rei Dom
João VI

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A atribuição aos revoltosos de medidas das autoridades nomeadas pela metrópole.
que subvertiam as formas tradicionais de Por outro lado, emergem na narrativa
organização do governo político ganha de algumas dessas rebeliões propostas que
expressão na tópica do parlamento, confi- pareciam contrariar frontalmente as condi-
gurada na ampliação da participação e da ções da política colonial. Na revolta de Vila
representação, assim como, por vezes, na Rica há alusão à busca de um “porto fran-
incorporação de setores sociais desqua- co” com apoio dos moradores do Rio de
lificados. No Rio, após a conquista da câ- Janeiro. O suposto desejo de obter merca-
mara pelos revoltosos em 1660, a melhoria do livre para o comércio parecia indicar
da representatividade política foi buscada desequilíbrios nas condições de exercício
na inclusão de homens das regiões do da soberania régia. A resistência ao mono-
Recôncavo, estabelecendo-se junto à câma- pólio revestia-se de insubordinação políti-
ra um conselho de “quarenta cidadãos … ca. Através de parecer Antônio Rodrigues
dos mais antigos” que seriam chamados a da Costa sinalizou, certa ocasião, para os
decidir sobre diversas matérias de governo danos “à união e conservação da monar-
(94). Sobre essa experiência, o monsenhor quia” proporcionados pela generalização
Pizarro irá se referir ao parlamento que do contrabando, “por que a conveniência
governou a cidade após a revolta, “com os que os vassalos do Brasil experimentam
oficiais camaristas eleitos a seu jeito e von- nesta negociação com os navios estrangei-
tade” (95). Nos furores sertanejos das Mi- ros os faz desejar que lhe franqueiem os
nas de 1736 um dos oficiais encarregados da portos às nações estranhas, e a aborrecer o
repressão denuncia “a idéia de um Parla- governo que lho impede, e a desejar outro
mento que se intentou fazer agora”, vitupe- que lho permita, de que não pode deixar de
rando “que esta gente não são vassalos del se recear ou a ruína ou a divisão da monar-
rei de Portugal mas Turcos”. quia, porque além de outros estímulos e
Nos idos de 1720 em Vila Rica rebelde motivos que têm para desejarem governar-
enunciou-se a proposta de uma “repúbli- se sem subordinação a Portugal, que já co-
ca” de homens virtuosos, semelhante ao meçaram a brotar em Pernambuco [Revol-
modelo veneziano, “[…] a República que ta dos Mascates, 1710-11], se lhes acrescer
os cabeças queriam formar de vinte e qua- este que é comum a todos os grandes e
tro pessoas” (96). Vale lembrar a análise pequenos, pois todos são interessados em
arguta de Carla Anastasia que, depois de comprarem por menor preço o de que ne-
observar a polissemia que o termo “repú- cessitam para o sustento da vida, e para o
94 “Correição da Câmara da ci- blica” guardava no pensamento moderno, luxo é muito para recear que aqueles
dade do Rio de Janeiro, de 3
de dezembro de 1661”, destaca que, nas Minas setecentistas, quan- vassalos cometam o desatino de se separa-
ibidem, pp. 499-500. do empregado nos textos de seus governa- rem da cabeça da monarquia o que temem
95 J. J. S. Azevedo Pizarro de Araú- dores, “república significava autonomia, li- muitas pessoas prudentes que trataram e
jo, Memórias Históricas do Rio
de Janeiro, Livro 3, 1820, p. berdade, sempre presente nas manifesta- tentearam os ânimos daqueles vassalos
207.
ções coloniais contrárias aos interesses me- […]” (98).
96 Publicado em Feu de Carvalho,
Ementário da História de Mi-
tropolitanos” (97). Discursos ambíguos eram produzidos
nas; Felipe dos Santos na Sedi- A expressão das noções de “república” nos instantes de rebelião. Se os gritos de
ção de Vila Rica, 1720, Belo
Horizonte, Edições Históricas, e de “parlamento” aventadas nas rebeliões “Viva o rei” inauguravam os protestos co-
s/d, p. 176. parecia responder à intenção de se superar, loniais, logo o enunciado progredia para
97 “A Idéia de República na In- através de uma organização política mais emprego mais radical. A tópica do rompi-
confidência Mineira”, Anuário
do Museu da Inconfidência, v. aberta, os constrangimentos das limitações mento dos súditos com o domínio régio por-
IX,1993, p. 125.
à participação política na gestão da ordem tuguês e a busca do amparo de outra coroa,
98 “Parecer do Conselho Ultrama-
rino acerca da carta do Mar-
comunitária, tornando mais diligentes as presente nos discursos das autoridades co-
quês de Angeja, vice-rei e ca- decisões, mais representativa a participa- loniais e dos agentes metropolitanos quan-
pitão geral do Estado do Bra-
sil, de 26-8-1714”, in Docu- ção dos grupos sociais existentes, mais do se referem às rebeliões de grande vulto,
mentos Históricos, Rio de Janei- equilibrada em relação aos costumes das conduz ao paroxismo o perigo atribuído a
ro, Biblioteca Nacional, 1952,
v. 96, p. 180. elites locais, menos sujeita ao despotismo esses movimentos.

22 REVISTA USP, São Paulo, n.57, p. 6-27, março/maio 2003


Em Pernambuco a proposta de se li- de vários afortunados da Bahia para Ingla-
bertar a capitania da suserania da coroa terra, levando “grossos cabedais em ouro e
portuguesa é ventilada pela primeira vez tabaco para negociarem […]” (103). No
em seguida à guerra de expulsão do inimi- Maranhão, durante o conflito promovido
go batavo, quando os colonos tentam ela- pela família dos Beckman contra os jesuítas
borar sob novos termos o estatuto de suas e a Companhia de comércio, há suspeitas de
relações com Portugal. O empenho da re- que buscariam o amparo de algum príncipe
gião na guerra, a memória das lutas e fa- estranho, contando com o apoio dos france-
çanhas e a crença de investimentos unila- ses (104). Mesmo durante os conflitos que
terais colocarão os pernambucanos à von- opuseram paulistas e emboabas em Minas
tade para pleitear maiores direitos do que Gerais na primeira década do século XVIII
a condição colonial parecia supor. Quase manifestaram-se nos discursos fortes indí-
um século depois, no contexto da Guerra cios de idéias semelhantes de rompimento
dos Mascates, retomariam a reivindicação com Portugal (105).
de um novo contrato com a metrópole, De qualquer modo, no esforço persua-
sugerindo novamente o rompimento com sório voltado para a condenação dos
a fidelidade lusa (99). A ameaça de recur- amotinamentos, autoridades cuidaram de
so a outra soberania seria utilizada dora- atribuir-lhes o desenvolvimento de proje-
vante sempre que os conflitos com Portu- tos mais radicais. Se nas situações de resis-
gal se estreitassem (100). tências e barganhas as tópicas desenrolam-
Na resistência armada promovida no Rio se sob as condições do bom governo, dian-
contra Salvador Correia e sua camarilha, te das rebeliões elas se refinariam assumin-
ventilou-se a notícia do apoio militar de do significados mais contundentes.A ca-
tropas de infantes espanhóis e holandeses, racterização do perigo rebelde desdobra-se
99 Evaldo C. de Mello, A
naquele momento sediadas na Bacia do na atribuição de imagens deletérias: recusa Fronda dos Mazombos…,
Prata. Chegam aos ouvidos dos conselhei- ao pacto colonial, irreligiosidade, rompi- op. cit.

ros ultramarinos palavras de impacto a esse mento das formas convencionais de exer- 100 Idem, Rubro Veio…, op. cit.

respeito: “[…] que os amotinados cada vez cício político na república e alta traição. 101 “Carta do provedor-mor da
Fazenda do Estado do Bra-
mais se fazem insolentes e publicam [isto Ao lado dessas ameaças e suspeitas, a sil Lourenço de Brito
é, tornam público] que sendo-lhes necessá- freqüência com que os vassalos do Brasil Correa… Bahia, 23 de abril
de 1661”, Lisboa, AHU, Rio
rio para a sua conservação fazerem-se promoviam rebeliões gerou inquietação de Janeiro. Castro e Almei-
da, doc. 850 (publicado
mouros, o hão de fazer, e também se enten- dentre as autoridades reinóis. Inúmeros re- parcialmente em: Eduardo
de que por mar e por terra, querem avisar a gistros textuais sublinham a intensidade Castro e Almeida, op. cit.,
v. 39, p. 92, 1917).
Buenos Aires e ao Rio da Prata donde as- rebelde, chegando a se mencionar a moda
102 “Carta do governador Pedro
siste um mestre de campo de Flandres com de tumultuar que tomava conta dos súditos de Vasconcelos e Sousa ao
600 infantes de presídio, e também sabe- no Brasil. Em parte isso se justifica pela Rei” (citada por: Alberto
Lamego, “Os Motins do Ma-
mos que dando dali rebate às suas cidades marcante influência da ideologia política e neta na Bahia” in RIGHBa,
n. 55, 1929, p. 360).
que tem em o sertão foi socorrido com 4000 das contestações na crise do império espa-
103 Pedro Calmon, História do
homens em os navios holandeses, e de Se- nhol em 1640 que restauram na cultura Brasil, Rio de Janeiro, José
vilha, que sempre continuam aquele porto política moderna o direito à resistência e, Olympio, 1953, p. 997.

[…]” (101). conforme Rosário Villari já postulou, trans- 104 Manuel de Oliveira Lima,
Formação Histórica da Na-
Bem mais tarde, nas ruas de Salvador, formam em valor positivo a rebelião contra cionalidade Brasileira, 2a
no transcurso do motim do Maneta em pas- a tirania (106). ed., Rio de Janeiro,
Topbooks, 1997, p. 137;
quins novamente se ameaça “reconhecer Nos discursos de governadores atingi- J. F. Lisboa, op. cit, pp. 470-
1.
vassalagem a outro Senhor se não fosse dos por motins recorreu-se a outras suposi-
105 Ver Adriana Romeiro, Um
suspensa a execução dos novos tributos” ções de existência de projetos radicais den- Visionário na Corte de Dom
(102). Pedro Calmon, em sua História do tre os súditos. Comentaria o governador- João V – Revolta e
Milenarismo nas Minas Ge-
Brasil, considera que a ameaça de aceita- geral em carta a Salvador Correia que, em rais, Belo Horizonte, Edito-
ção de outro príncipe caso continuassem ra da UFMG, 2001, p.
abril de 1661, “[…] ser mui diferente o es-
245.
oprimidos é sugerida pela invasão de tado que o Rio de Janeiro se acha de que seus
106 Rosário Villari, “O rebelde”,
Duclerc no Rio de Janeiro ou pela viagem primeiros movimentos prometiam. A um op. cit.

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abismo se vai seguindo outro, e já os danos dem temer semelhantes desordens em gen-
presentes fazem parecer menores os sedicios tes de poucas obrigações, movidos de
passados” (107). Também no sertão de 1736 desesperação, ou do temor” (110). Outra
desconfiava-se de projetos dessas dimen- ocasião em que isso ocorreu foi em Minas
107 “Carta para Salvador Correa
de Sá e Benevides. Bahia,
sões. Diante da patente fragilidade da sobe- Gerais nos idos de 1720. O conde de
29 de abril de 1661”, in Do- rania portuguesa naquela região suspeitava- Assumar admitiu ter sido aquela uma “cons-
cumentos Históricos, v. 5, p.
128. se que “[…] o desígnio desta canalha não é piração mui semelhante a da Catalunha”
108 Rosário Villari, “Revoluciones só o pertender a absolvição da capitação nem (111).
Periféricas y Declive de la perdão de suas sublevações, mas usurpar a As suspeitas de irredentismo vinham
Monarquía Española”, in J.
H. Elliott et alii, 1640: la el Rei o domínio das Minas”. acompanhadas por indícios de acentuação
Monarquía Hispánica en
Crisis, Barcelona, Crítica, Ainda que se aceite que a busca de outra da crítica ao soberano na América, elemen-
1992; J. H. Elliott, La sujeição constituísse uma utopia à época, to novo mesmo no cenário político do sé-
Rebelión de los Catalanes
(1598-1640) . Un Estudio ou ainda que se tratasse de uma tópica de culo XVIII, em que o estranhamento cres-
sobre la Decadencia de
España (1598-1640), Méxi-
efeito para horrorizar os monarcas e detratar cente em relação ao rei corresponde a pro-
co, Siglo XXI, 1986. os inquietos moradores do Brasil, o pro- cesso verificado por Chartier para a França
109 Pedro Puntoni, A Guerra dos cesso de dissolução do império espanhol do século XVIII (112). Em pasquins que
Bárbaros: Povos Indígenas e
a Colonização do Sertão em 1640 produziu casos de irredentismo circulam nos sertões da capitania de Minas
Nordeste do Brasil, 1650- que contribuem para sustentar novas con- Gerais, durante os furores sertanejos de
1720, São Paulo, Hucitec/
Edusp, 2002, p. 65. cepções políticas. Em Nápoles e na Cata- 1736, parodiando a oração do pai-nosso em
110 “Carta do provedor mor da lunha, e mesmo no reino de Portugal, intro- grossa crítica à cobrança do quinto do ouro,
Fazenda do Estado do Bra-
duziu-se uma nova prática política nas re- desafiava-se o rei às escâncaras. Pediam
sil, Lourenço de Brito Correa.
Bahia, 23 de abril de 1661” lações entre reinos e soberanos (108). A que para lá viesse o soberano a fim de ver
(apud Luis Norton, op. cit.,
pp. 336-7). tópica da ameaça de recurso a outra sobe- as aflições dos súditos (“Se vós cá quizerdes
111 Apud Carla Maria Junho rania, argumento extremamente eficaz ten- vir/ uma vez de quando em quando …”),
Anastasia, Vassalos Rebel- do em vista tais casos de abandono do do- advertiam para suas obrigações de rei-pro-
des. Violência Coletiva nas
Minas na Primeira Metade do mínio espanhol, revestia-se de importân- vedor que “Não queirais fazer-se celeiro/ do
Século XVIII, Belo Horizonte,
C/ Arte, 1998, p. 52.
cia ainda maior tendo em vista a fragilida- suor de tais vassalos” e, ainda, insinuavam
de do controle marítimo e do interior e as franca desobediência: “E sabeis que com a
112 Luciano Figueiredo, O Impé-
rio em Apuros…, op. cit., p. ameaças de invasão de potências concor- vontade estreita/ os pobres vos obedece [sic]/
236; Roger Chartier, A His-
tória Cultural: entre Práticas rentes. A única investida de sucesso nessa porque vossa crueldade merece/ Não se faça
e Representações, Rio de Ja- direção parece ter sido a viagem que fez o a vossa vontade” (113). De outra parte, pou-
neiro, Bertrand Brasil, 1990,
p. 211. índio Antônio Paraupaba em data próxima co tempo depois nas mesmas Minas, sob a
113 Luciano Figueiredo, “Furores a 1654 para a Holanda em busca de apoio trama que envolve Pedro Hanequim, a su-
Sertanejos na América Portu-
guesa”, op. cit. Segundo
para a revolta dos tapuias contra os con- posta conspiração que planejava aclamar na
Jean Delumeau, a noção do quistadores de terras (109). América o infante Dom Manuel, irmão de
“príncipe provedor” é criada
no teatro alemão do século Ainda assim, não se deve desprezar os Dom João V, rompendo-se com o domínio
XVI, incorporada como mo- enunciados emitidos pela metrópole sobre de Portugal, parecia indicar alternativas
delo também por Lutero (O
Medo no Ocidente: 1300- as sublevações dos vassalos do Brasil. Às políticas inquietantes (114).
1800 uma Cidade Sitiada,
op. cit., p. 170). advertências do conselheiro Antônio Ro- O aparecimento em 1733 em Alagoas
114 Adriana Romeiro, op. cit.
drigues da Costa, experimentado no julga- de um jovem padre que se intitulava
mento de tantas rebeliões, somam-se as re- “Sereníssimo Príncipe do Brasil” e conce-
115 Stuart Schwartz, “Gente da
Terra Braziliense da Nasção. ferências de governadores ao caso da dia honras e mercês, nomeando marqueses
Pensando o Brasil: a Cons-
trução de um Povo”, in Carlos Catalunha. A revolta do Rio de Janeiro de e condes que se unem contra a soberania
G. Mota (org.), Viagem In- 1660, a primeira depois da Restauração de portuguesa, reforçava, ainda que de ma-
completa. A Experiência Bra-
sileira (1500-2000). Forma- 1640 em que se assiste ao controle de um neira episódica, as fissuras nas relações dos
ção: Histórias, São Paulo,
Editora Senac, 2000, pp.
governo local por súditos sublevados que súditos da América com o soberano (115).
116-8. depuseram a autoridade acusada de tirania, No século anterior, o paulista Antônio Dorta
116 “Consulta do Conselho Ultra- foi associada ao caso da rebelião dos fora acusado de ofender Dom João IV, ao
marino sobre a devassa que
veio do Brasil. Lisboa, 2 de catalães contra o domínio espanhol. Afir- chamá-lo “rei de copas ou de comédia”, e
março de 1655”, Lisboa, mou uma das autoridades atacadas que de exaltar o rei espanhol (116). Em Minas
AHU, Bahia, Luiza da Fonse-
ca, doc. no 1589. “pelos mais exemplos de Catalunha se po- Gerais nos idos de 1761, logo em seguida

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à expulsão dos jesuítas de Portugal, magis- do sul a capitania de São Paulo” (121).
trados e padres da vila de Curvelo são sus- Dentre as “gentes das Minas… é muito na-
peitos de conspirarem contra Dom José I. tural a desobediência e renitência às ordens
Em pasquins afirmavam “que o dito sobe- que lhes parece lhe são prejudiciais” (122).
rano Monarca era qua outro, ou pior que
Nero que por estar demente, ou pateta, su-
jeitava o despotismo do seu governo ao
homem mais cruel do mundo, qual era o Espelhos partidos: identidades
Ilustríssimo, e Excelentíssimo Marquês de
Pombal” (117). políticas coloniais
Os discursos do Conselho Ultramarino
e dos agentes metropolitanos a respeito dos Nos discursos dos súditos rebeldes apa-
súditos ultramarinos gradativamente pare- receu reavivada a noção do empenho dos
cem enquadrá-los como súditos inquietos. vassalos, quando buscavam justificar o re-
Estar-se-ia aqui sinalizando a existência curso à sublevação. As destruições que cau-
para estes de um julgamento diferenciado sava a “tirania dos Correias” sobre o Rio de
em relação aos reinóis? A freqüência com Janeiro, argumentavam os amotinados de
que aqueles súditos ativavam o expediente dezembro de 1660, obrigaram-nos à revol- 117 Apud Laura de Mello e Sou-
da rebelião na América desde meados do ta, na condição de “obedientes vassalos” za, Norma e Conflito. As-
pectos da História de Minas
século XVII e ao longo do seguinte, a gra- incumbidos de “procurar o bem desta Re- no Século XVIII, Belo Hori-
zonte, Editora da UFMG,
vidade das ameaças sugeridas nessas oca- pública”. Pediam pela “paz, concórdia, 1999, p. 102.
siões, a patente dificuldade reconhecida por quietação destes Povos tão oprimidos há 118 “Carta do governador con-
segmentos do Conselho Ultramarino em tantos anos com o jugo desta gente, pelo de de Assumar ao Secretá-
rio de Estado Diogo de Men-
respeitar ali as regras do bom governo, as bem desta república [que se] tem escanda- donça, 14 de dezembro de
visões sobre a natureza do território e as lizada das tiranias dos Correias pela con- 1720” (publicada em: Feu
de Carvalho, op. cit., pp.
constantes queixas dos governadores a res- servação de tão leais vassalos que sempre 22 e 164-5).
peito do caráter dissoluto daquelas gentes se mostraram servidores de Vossa Majes- 119 Stuart Schwartz, “Gente da
Terra Braziliense da
produziam valores diferenciados para es- tade com amor, com fidelidade, com vidas, Nasção”, op. cit., pp. 109-
ses vassalos por parte dos agentes metro- com fazendas porque tudo largaram pelo 16.
politanos. O conde de Assumar traduziu serviço de Vossa Majestade” (123). 120 “Papel do Duque sobre a
moeda da Bahia em que se
essa mudança ao lidar com a presença de Da mesma forma em Pernambuco, o conforma, com o papel aci-
súditos portugueses mobilizados na rebe- tema desempenharia papel central nas rea- ma do Almotacel mor Lisboa,
24 de dezembro de 1693”,
lião de 1720: “parece conto fabuloso que ções da “nobreza da terra” contra a ascen- Londres, British Museum,
Additional Papers, n o
em ânimos portugueses coubesse tanta re- são da mascataria, à época da eclosão das 15170, f. 207-207v.
beldia, e tanta soltura” (118). A se conside- “alterações de Pernambuco” em 1711. Em 121 “Representação de Francis-
rar a instigante hipótese de Stuart Schwartz, representação com que a câmara de Olinda co de Brito Freire a el-Rei dom
João IV de 2 de setembro de
o início do século XVIII amadureceu a reage à elevação de Recife à condição de 1654 sobre minas de São
sensação de que o Brasil possuía deficiên- vila, o sacrifício dos pais e avós dos senho- Paulo, frotas e negócios do
Brasil”, Lisboa, ANTT, Ma-
cia de habitantes de qualidade despertando res da açucarocracia contra o inimigo ho- nuscritos da Livraria, livro
1116, f. 1-8.
a metrópole para a desconfiança com a landês não seria esquecido, porque outro-
122 “Parecer do Conselho Ultra-
“gente da terra braziliense” (119). ra, “sem dinheiro, sem armas e sem poder marino”. Lisboa, AHU, cód
O mau vassalo corresponderia a ima- algum, mais que cegos da sua afeição, pu- 233, f. 218-223v. O trecho
transcrito é de autoria de
gens de detratação dos moradores das par- blicam liberdade e acometem com atrevi- Antônio Rodrigues da Cos-
tes do Brasil, opostas aos modelos de fide- mento nunca visto ao inimigo, senhor ab- ta. O vice-rei do Brasil em
1716 se refere ao “inquieto
lidade e lealdade, que proliferam nas penas soluto de poderosas armadas, de todas as e soberbo gênio de seus
naturais ao tratar dos mora-
letradas dos agentes da política reinol. A capitanias e fortalezas delas. E suposto viam dores da capitania de Mi-
“gente da Bahia” é vista como “muito co- suas amadas mulheres e filhos já queima- nas Gerais” (Lisboa, AHU,
Bahia, caixa 9, oc. 44).
biçosa e altiva, por uma inveterada nature- dos em chamas de fogo ou darem as vidas
123 “Carta dos oficiais da câ-
za” (120). Os “ânimos” dos moradores de aos cruéis fios das espadas e, desterradas mara do Rio de Janeiro, 31
São Paulo são “sediciosos, e trebulentos de dezembro de 1660”, Lis-
pelos sertões, serem pasto das feras ou dos boa, AHU, Rio de Janeiro,
[sic; isto é, turbulentos], porque é a Rochela bárbaros e, livres destes, morrerem à fome Castro e Almeida, doc. 869.

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e à sede e tudo o que era fazenda sua con- que os colonos transformaram criando no-
vertida em cinzas, faltos à lástima, incon- vas paisagens físicas e sociais; as conquis-
trastáveis à pena e invencíveis à perda, tan- tas sociais e econômicas alcançadas na
to fizeram até que viram rendida a soberba experiência no Novo Mundo; os modelos
[da Holanda] sujeitar-se humilde ao rei fundamentais de comportamento e organi-
português” (124). zação de uma sociedade civilizada e, final-
Em 1736, em meio aos furores do ser- mente, a História, ou seja a experiência
tão às margens do Rio São Francisco, seus coletiva partilhada por gerações de mora-
moradores recusaram o pagamento do di- dores em um mesmo lugar específico (128).
reito real do quinto através da capitação. A elaboração identitária fragmentada e
Os sertanejos tinham sua memória curtida enraizada nas diferentes “pátrias” assinala
pelos riscos perenes, conforme avisaram nítida contraposição no discurso e nas prá-
pouco antes de estalar o protesto: “eles por ticas que condena ações amparadas pelo
si e seus antepassados descobriram estes rei que ferem o bem comum na América.
sertões e os povoaram à custa de seu san- Nesse sentido, a afirmação de identidades
gue e fazendas conquistando dele o gentio coloniais, manifesta em diferentes circuns-
bravo com que foi o dito sertão e de presen- tâncias conforme a região, reforça os vín-
124 “Papel que o senado da câ- te é infestado de gentio, as quais [sic] estão culos específicos com a “pátria”, entendi-
mara da cidade de Olinda e
mais nobreza e povo desta
as suas custas [sic] defendendo continua- da como lugar de nascimento, sem se con-
capitania faz em presente as mente, do dito gentio com suas armas e fundir com a nação. À pátria se contra-
justificadas razões que têm
para se não tratar na oca- fazendas e perca de muitas vidas há mais põem os desgastes provocados pelos
sião presente da vila do Re- de quarenta anos a esta parte” (125). desgovernos de Portugal na América, jus-
cife […]”, s/d., [1711]
(apud Evaldo C. de Mello, Não somente nas revoltas e nos con- tificados pelas noções de violação do pac-
Fronda dos Mazombos…,
op. cit., p. 143). frontos com as diretrizes da política colo- to constitucional e dos direitos dos vassalos
125 “Requerimento ao sr. general
nial o empenho de vassalos serviu para diante da fiscalidade excessiva, das diver-
Gomes Freire dos amotinados representar o vínculo com a região e os in- sas formas de injustiça e do sentimento de
redigido e registrado pelo
tabelião do distrito de São vestimentos ali deixados. Outras oportuni- desproteção. Não são outros os temas que
Romão Alexandre de Castro. percorrem os pareceres do arguto Antô-
dades da conquista da América ofereceram
São Romão, 6 de julho de
1736”, Lisboa, ANTT, Mss. condições para a elaboração de identida- nio Rodrigues da Costa desde o início do
do Brasil, liv. 10, fl.38-39.
des amparadas nas virtudes e nos feitos na século XVIII, sumariados no parecer-tes-
126 Evaldo C. de Mello, A Fronda
dos Mazombos…, op. cit., terra. Os pernambucanos, como já foi sali- tamento de 1732 (129).
p. 100. entado, enalteceram suas virtudes proje- Essas identidades, por outro lado, cons-
127 John Manuel Monteiro, “Os tadas no sucesso da luta de expulsão dos tituem na ação contestatória princípios e
Caminhos da Memória:
Paulistas no Códice Costa holandeses, elaborando o “discurso políti- idéias radicais porque se opõem aos princí-
Matoso”, in Varia História, co do primeiro nativismo pernambucano” pios centrais à reiteração da política colo-
v. 21, 1999, pp. 86-99.
(126). Os paulistas, por seu turno, com a nial, aproximam-se a crítica ao soberano e
128 Jack P. Greene, “Changing
Identity in the British descoberta das minas de ouro instituem emergem de identidades políticas regionais.
Caribbean Barbados as a
Case Study”, in A. Pagden argumentação a fim de elaborar uma iden- A reunião sob essas regularidades discur-
and N. Canny (eds.), Colo- tidade positiva, em um esforço calculado e sivas de enunciados de porto franco, a tra-
nial Identity in the Atlantic
World, 1500-1800, New desmedido de sacudir a pecha de rebeldes duzir a crítica ao monopólio, república, a
Jersey, Princeton University
e desleais que traziam (127). revelar a busca de maior autonomia políti-
Press, 1987, pp. 213-4.
O imaginário político na América Por- ca das comunidades, troca de soberania,
129 “Parecer do conselheiro An-
tônio Rodrigues da Costa tuguesa seria responsável pela produção com a condenação do soberano em razão
[1732]”, op. cit. (sobre este
parecer ver: Luciano Raposo dessas novas formas do discurso, cuja fun- do recorrente desrespeito às regras do bom
de A. Figueiredo, Revoltas, damentação residia em um senso de iden- governo, parece sugerir um adensamento
Fiscalidade e Identidade na
América Portuguesa: Rio de tidade colonial proporcionado por uma da crítica política na América Portuguesa.
Janeiro, Bahia e Minas Ge-
rais, 1641-1761, tese de
combinação de elementos que apenas a acu- É instigante refletir que os enunciados
doutorado, São Paulo, USP, mulação secular de experiências poderia de rompimento com a soberania de Portu-
1996, esp. subcap.
“Antonius Rodiricius Costius: proporcionar. Sob essa dinâmica, conjuga- gal tenham sido emitidos a partir de regiões
Prudência, Consciência Crí- va-se, conforme o modelo sugerido por Jack que, ao mesmo tempo que desenvolveram
tica e o ‘Terceiro Perigo’”,
pp. 393-408). P. Greene, o senso de lugar, isto é, o espaço um vigoroso sentimento identitário, vive-

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ram sob permanentes tensões derivadas da cional, num esforço combinado. Por outro
política colonial. Assim, não é de somenos lado, restaurar o significado das linhas do
importância que esse conteúdo tenha sido pensamento político moderno, da força do
anunciado com ênfase em São Paulo, Mi- espectro régio e da unidade teológico-po-
nas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro e lítica das monarquias nesse quadro de dis-
Bahia, locais onde, ainda que relacionados putas na América Portuguesa, revela-se
a situações específicas, exigiu-se os me- decisivo para calibrar o peso das condi-
lhores esforços e empenhos de gerações de ções políticas sob as relações entre Brasil
vassalos. Expulsar invasores estrangeiros, e Portugal. O papel das variáveis econô-
combater exércitos europeus, enfrentar pi- micas é, assim, deslocado para um lugar
ratas, dizimar índios brabos, descobrir mi- subordinado à expressão primacial do
nérios configuram gestos de liberalidade, é político, referido aqui ao peso dos valores
verdade que muitas vezes anunciados como dos condicionantes intrínsecos à sobera-
moeda de troca por concessões da metró- nia régia, princípio ordenador dominante
pole, mas também afirmam um senso de que conduzia a vida dos homens naqueles
comunidade e uma memória comum den- tempos, não importa de que lado do Atlân-
tre as elites regionais em suas gestas. tico estivessem.
Diante disso, a elaboração do enuncia- Se reside aqui o perigo de reificação, só
do de rompimento com Portugal talvez in- é possível superá-lo através da considera-
dique uma percepção do encaminhamento ção dos mecanismos decisivos que movi-
de um destino político que conhecia am a exploração comercial da América
similitude com as alternativas patrióticas moderna pelo reino sob o exclusivo, ainda
das lutas antiespanholas do século XVII. que estes escapassem da percepção dos
Em outras palavras, a afirmação de uma vassalos da América, como sinaliza, de um
identidade com a “pátria” conjugada à cor- lado, o insistente esforço discursivo pela
rosão dos princípios estruturadores da fi- assunção de sua condição de vassalos na-
delidade, uma vez que a política colonial turais e, de outro, a resistência a se consi-
urdida na Corte do soberano desrespeitava derarem como súditos conquistados ou, vale
princípios ordenadores do equilíbrio de dizer, colonos.
vassalos e do reino – unidade política deter- Todavia, isso não é bastante. Como já
minante –, parecia indicar a vontade de se vê, longe estamos de verter o vinho ve-
separação da monarquia portuguesa. Não lho em odres novos, tendência verificada
foi senão este o dilema dos napolitanos em em recentes leituras do império português,
1647, analisado no instigante estudo de praticantes de uma aceitação e reconheci-
Rosário Villari, Per il re o per la patria, em mento de supostas equivalências políticas
que indica que “a monarquia espanhola e institucionais unificadoras entre o reino e
havia provocado a ruptura” do pacto cons- a América, convenientemente desconside-
titucional, restando à comunidade do reino rando o enquadramento do sistema coloni-
de Nápoles a opção pela fidelidade à patria al mercantilista. Se a experiência de súdi-
e não ao rei espanhol (130). tos no Antigo Regime em uma ótica pueril
de análise parece reificar Portugal na Amé-
••• rica, quando subordinada às circunstâncias
da dinâmica colonizadora e combinada aos
De certo modo, nossa abordagem sobre quadros da soberania régia e das expectati-
a linguagem política e as manifestações das vas de “vassalagem natural” que estiveram
lutas políticas na América Portuguesa pro- secularmente garroteadas na América Por-
curou sinalizar para elas um novo lugar. tuguesa pelos constrangimentos derivados
Nessa medida considera-se esgotado aqui das limitações que forcejavam o sistema 130 Rosário Villari, Per il re o per
la patria . La Fedeltá nel
o cariz nacionalista que tendia a compreen- colonial moderno, a vivência dos brazi- Seicento (con “il Cittadino
der tais conflitos como lutas contra Portu- lienses produz a emergência de novas iden- Fedele” e altri Scritti Politici),
Roma, Laterza, 1994, p.
gal e reflexo da germinação do espírito na- tidades políticas. 25.

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