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LEONEL BRIZOLA MONASTIRSKI
constituído através dos estratos do tempo, quanto coletiva (FREIRE; PEREIRA, 2002).
mas também, pelos olhares do presente Porém, mesmo com a a�rmação em Freire
que, associados, compõem diversos desdo- e Pereira, de H. ROUSSO 1 de que nunca
bramentos conceituais sobre ele e sobre o a demanda social da história memória,
espaço em que está inserido. presença do passado - esteve tão forte, nun-
Esses componentes, denominados de ca foi parte tão integrante da cultura, nem
traços, compõem a coesão de tempos di- tão valorizada, experimenta-se também
ferentes no presente (LEPETIT, 2001) e um processo inverso, ao menos em países
formam o conjunto de fragmentos disso- periféricos, de uma verdadeira eliminação
nantes de que as cidades são feitas. O traço do passado, um desejo e uma expectativa
resulta de um distanciamento entre ritmos pelo novo. Essa ambivalência, que se dá em
de evoluções diferentes. cada lugar segundo uma lógica particular
A apropriação do espaço implica a de organização, pressupõe um confronto.
constante revivi�cação dos traços. Essa Com este paradoxo, o con�ito competi-
forma herdada atribui ao espaço uma tivo entre o velho e o novo, entre a ordem
funcionalidade que está em constante mo- herdada e a ordem projetada (SOJA, 1993),
vimento, pois o uso da herança é realizado sobre a valorização/participação da his-
pela sociedade vigente. Todas as formas tória na cultura - por desdobramento: da
de apropriação do espaço delimitação, memória social e do patrimônio cultural ,
ocupação, expulsão, construção, destrui- rea�rma-se a necessidade de novos enfo-
ção, transformação etc são realizadas ques intelectuais para o tema. Um objeto
basicamente em função dos mecanismos de conhecimento que só pode ser analisa-
de mercado e das decisões políticas - as do através de processos constitutivos das
práticas de poder da sociedade naquele ciências humanas e, neste caso, com uma
determinado momento. visão particular da Geogra�a.
A própria relação do espaço com a so-
ciedade, passando pela memória, torna-se
um traço a ser considerado. Há, portanto, MEMÓRIA SOCIAL
uma história/memória de um espaço, por
sua genealogia e o resultado da história das O reconhecimento do patrimônio cultu-
relações desse espaço com a sociedade. E ral se estabelece pela identi�cação dos seus
esses espaços associam-se à sociedade e se signi�cados. A percepção da carga simbó-
destacam no meio urbano especialmente lica contida em cada patrimônio auxilia a
por apresentarem um suporte patrimonial desvendar o signi�cado histórico-social
seja ele material e/ou intangível. deste patrimônio. O valor simbólico que
As discussões a respeito do patrimô- é atribuído aos objetos decorre da impor-
nio cultural e da memória têm sido cada tância que lhes atribui a memória coletiva
vez mais pertinentes devido à ampliação (ARANTES, 1984). E é esta memória que
das relações estabelecidas com a cultura impele a ver o passado e a inventar o
na chamada era da indústria cultural e patrimônio dentro dos limites possíveis
da mundialização cultural. Há um novo estabelecidos pelo conhecimento.
fascínio pela história neste �nal/início de
século em função de que a velocidade das
mudanças que as sociedades experimen- 1 ROUSSO, H. Usos do passado na França de Hoje. In: SIM-
SON, V. MORAES, O. Os desa�os contemporâneos da história
tam nos últimos tempos, promovidas pela oral. Campinas: CMU/UNICAMP, 1997. ROUSSO, H. Usos do
globalização, causa impactos sobre a cons- passado na França de Hoje. In: SIMSON, V. MORAES, O. Os
desa�os contemporâneos da história oral. Campinas: CMU/
tituição da identidade, tanto individual UNICAMP, 1997.
derna da virada do século que enaltece A memória, por seus laços afetivos e de
a necessidade de (re)conhecer estágios pertencimento, é aberta e em permanente
passados no processo contínuo da história evolução e liga-se à repetição e à tradição,
e que gradualmente está se incorporando sacralizando o vivido do grupo social. A
às necessidades sociais da população bra- história, ao contrário, dessacraliza a me-
sileira e das políticas públicas. mória, constituindo-se tão somente em
representação do passado. A memória se
enraíza no concreto, no espaço, no gesto,
Memória e história na imagem, no objeto. A história liga-se
às continuidades temporais, às evoluções
Memória e história são antônimas e às relações das coisas. A memória é a
(NORA, 1993, p.23). A história como vida, sempre carregada por grupos vivos
relato, disciplina ou gênero, com regras, e, neste sentido, em permanente evolução,
instituições e procedimentos próprios, não aberta à dialética da lembrança e do esque-
pode suplantar a memória coletiva (FÉLIX, cimento, inconsciente de suas deformações
1998). Tradição, memória e história são as sucessivas, vulneráveis a todos os usos
três posições diferentes com que o presente e manipulações, susceptível de longas
vê o passado: a tradição santi�ca o passado latências e de repentinas revitalizações.
e justi�ca o status-quo, a memória petri�ca A história é a reconstrução sempre pro-
e estrati�ca este passado, enquanto a histó- blemática e incompleta do que não existe
ria é analítica e crítica a ele (RODRIGUES3 mais. A memória é um fenômeno sempre
citado por FELIX, 1998, p. 44). atual, um elo vivido no eterno presente,
História e memória possuem, portanto, enquanto que a história uma representação
signi�cados diferentes e se apresentam do passado. Porque é afetiva e mágica, a
eficazes metodologicamente ao serem memória não se acomoda a detalhes que a
usadas com distinção e/ou compiladas, confortam e se alimentam de lembranças
dependendo do sentido da pesquisa 4. vagas, telescópicas, globais ou �utuantes,
Enquanto a história permite sistematizar particulares ou simbólicas, sensível a to-
o passado, oferecendo dados pontuais, das as transferências, cenas, censuras ou
causas e conseqüências, a memória per- projeções. A história, porque operação
mite uma compreensão ora complementar intelectual e laicizante, demanda análise
ora diferenciada à história, por apresentar e discurso crítico. A memória instala a
laços afetivo-emotivos e de pertencimento lembrança no sagrado; a história a liberta
social. e a torna sempre prosaica. A memória
A associação das idéias entre Memória emerge de um grupo que ela une, o que
e história: a problemática dos lugares quer dizer, como Halbwachs o fez, que há
(NORA, 1993) e História e memória: a tantas memórias quantos grupos existem;
problemática da pesquisa (FÉLIX, 1998) que ela é, por natureza, múltipla e desace-
permite estabelecer as diferenças entre os lerada, coletiva, plural e individualizada.
conceitos, enquanto referencial metodoló- A história, ao contrário, pertence a todos
gico e de análise. e a ninguém, o que lhe dá uma vocação ao
universal. A memória é um absoluto e a
história só conhece o relativo. A memória
3 RODRIGUES J. H. A tradição, memória e história. Brasil tempo
e cultura 3, João Pessoa, 1980.
perdura-se em lugares, e a história, em
4 Distinção básica entre memória e história, iniciada por Hal- acontecimentos.
bawachs, também realizada pelos historiadores Nora (1984),
Le Goff (1988), Davis (1989), Rousso (1996; 1998) e Pomian
(1999).
p.41). E essa genealogia pode estar, como em cada lugar) têm-se uma idéia sobre o
indica CUCHE (2002, P. 180), na heredita- que deve ser preservado.
riedade, na língua, na cultura, na religião,
na psicologia coletiva e no vínculo com o Em cada época a sociedade e autoridades têm
território. uma idéia sobre o que deve ser preservado.
Antes dos anos 30, achava-se que nada tinha
Desta forma, todo lugar apresenta sedi-
para ser preservado. Depois passou-se a defen-
mentação histórica e, portanto, várias me- der a preservação do período colonial (cidades
mórias. A diferença entre os lugares, por este mineiras e igrejas barrocas). Atualmente, o
viés, é que a memória de cada lugar pode ser patrimônio arquitetônico está conectado não
mais ou menos privilegiada, enfatizada, con- só com o passado e a memória nacionais, mas
siderada segundo o resultado dos embates também com a vida dos moradores da cidade.
O conjunto urbanístico, assim como a paisagem
entre os atores sociais. O lugar é de�nido,
está fazendo parte do patrimônio cultural que se
segundo a memória escolhida. inter-relaciona com a noção de espaço turístico.
Todavia, se todos os lugares são lugares (OLIVEIRA , 2002, p. 11).
de memória, potencialmente tudo poderia
ser preservado. O excesso, a liberação in�- Desta forma, mesmo sendo a preserva-
nita de todas as memórias ameaça o êxito e ção9 do patrimônio cultural uma prática
a gestão da própria memória (JEUDY, 1990). social, em que o processo exige ser aceito e
É necessário, portanto, que as escolhas das constantemente reiterado pela sociedade,
memórias seja o resultado de um processo a sua constituição e defesa esbarram em
(democrático) que evite a banalização da me- questões ideológicas.
mória, ou a dessacralização do patrimônio, O patrimônio cultural, diretamente
como sugere (FONSECA, 1997). Neste sen-
relacionado à memória coletiva, é sempre
tido, obter-se-á maior luz sobre a memória,
o lugar de memória e o patrimônio. produto de uma escolha e, portanto, tem
um caráter arbitrário. Todas as ações polí-
ticas e sociais, resultado das lutas políticas
e ideológicas, conduzem para uma maior
PATRIMÔNIO CULTURAL:
ou menor intervenção no processo de res-
ESCOLHA, PRESERVAÇÃO E USO
signi�cação do patrimônio cultural.
A difusão do patrimônio cultural está O patrimônio passou a ser uma cons-
atrelada às nuances de interpretação que o trução social de extrema importância
patrimônio apresenta (especialmente com política, pois signi�ca a constituição de
relação à memória) e às interferências pos- algo que será a representação do passado
tas em curso por instituições que regulam histórico e cultural de uma sociedade e,
o processo de escolha, preservação e uso. neste sentido, a palavra patrimônio indica
Considerar a participação do Estado e das
escolhas o�ciais, que envolvem exclusões
forças do capital na ingerência do patri-
num processo associativo e semelhante à
mônio cultural, tanto no tempo pretérito
quanto no tempo presente é imprescin- memória. O caráter sedutor que o assunto
dível, pois é a ação conjunta desses dois passa a ter revela-se perigoso, pois pode
agentes que melhor determina o caráter ocasionar inadequada apropriação política
do patrimônio cultural das cidades brasi-
9 Entende-se por política de preservação a reunião dos prin-
leiras. E nesse sentido há uma alteração das cípios especí�cos de preservação do patrimônio: conservação,
políticas públicas nacionais com relação ao documentação, aquisição, processamento técnico, pesquisa,
acesso, disseminação, treinamento, restauração e segurança do
patrimônio cultural, pois em cada época (e patrimônio (BARROS e PACHECO, 1995 citado por CHAGAS,
2003, p. 165).
FELIX, Loiva O. História e memória: a problemática NORA, Pierre. Entre a memória e a história: a pro-
blemática dos lugares. Projeto História, São Paulo,
da pesquisa. Passo Fundo: Ediupf, 1998.
n. 10, 1995.
FONSECA, Maria Cecília L. O patrimônio em pro- ______. Lês lieux de memórie. Tradução de Yara
cesso: trajetória da política federal de preservação Aun Khoury. Paris: Gallimard, 1994.
no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ/IPHAN, 1997. OLIVEIRA, Lúcia L. (Org.). Cidade: história e de-
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FREIRE, D.; PEREIRA, L. L. História oral, memória
PINHEIRO, Augusto I. F. Aprendendo com o patri-
e turismo cultural. In: MORAES, A. C. R. Território
mônio. In: OLIVEIRA, L. L. (Org.). Cidade: história
e história no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2002. e desa�os. Rio de Janeiro: FGV, 2002.
Recebido em 14/10/2009
Aceito em 06/12/2009