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REVISITANDO A
MODERNIDADE
BRASILEIRA:
NACIONALISMO E
DESENVOLVIMENTISMO
Reviewing the Brazilian Modernity: MARIA THEREZA MIGUEL PERES
Doutora em história
nationalism and development pela USP e professora de
economia da Faculdade de
Resumo Este artigo revisita a modernidade brasileira, salientando os fundamentos, as Gestão e Negócios/UNIMEP
mtmperes@unimep.br
concepções e as prioridades que nortearam as ações construtoras do processo de de-
senvolvimento urbano-industrial como uma busca pela soberania e autonomia do
Brasil em relação ao exterior. Procuramos evidenciar as contradições desse processo ELIANA TADEU TERCI
Doutora em história pela USP,
modernizador, que, ao mesmo tempo que dinamizava e redimensionava a economia
professora de economia
e a sociedade, seguia reproduzindo seus principais limites: ingerência externa, insta- da Faculdade de Gestão e
bilidade econômica e desigualdade social. Negócios/UNIMEP e
pesquisadora do NPDR-UNIMEP
Palavras-chave MODERNIDADE – NACIONALISMO – DESENVOLVIMENTO – CIDA- etterci@unimep.br
DE – INDUSTRIALIZAÇÃO.

Abstract In this article we review Brazilian modernity focusing the basics, concep-
tions and priorities that guided the actions that started the industrial-urban develop-
ment process, as a quest for Brazil’s sovereignty and autonomy regarding foreign
countries. We tried to show the contradictions of such modernizing process, which
made economy and society more dynamic, while reproducing their main limits: fo-
reign influence, economic instability and social inequalities.

Keywords MODERNITY – NATIONALISM – DEVELOPMENT – CITY – INDUSTRIALI-

ZATION.

impulso nº 29 137
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INTRODUÇÃO

A
s sociedades capitalistas nos anos recentes vêm, de modo
geral, enfrentando mudanças significativas na vida cultural,
social e econômica, que têm provocado intenso debate so-
bre os impactos da modernidade, chegando-se até a diag-
nosticar que uma nova sociedade vem se estruturando, fer-
mentada pela análise pós-moderna.1 Nesse cenário de trans-
formações, discute-se urbanização, democratização, abertu-
ra econômica, reforma do Estado, emprego, papel do
consumo e do consumidor, globalização etc., subestimando muitas vezes o
contexto da realidade nacional, o que demonstra o quanto ainda as experiên-
cias e/ou modelos europeus e norte-americanos fascinam intelectuais e polí-
ticos no trato da modernidade brasileira. Mediante um resgate histórico e
econômico, entretanto, percebe-se que a construção da modernidade no Bra-
sil apresentou certas especificidades, marcadas, em alguns períodos, por um
grande apelo à autonomia socioeconômica e à soberania nacional.
Como não se trata de buscar uma reflexão definitiva, a questão que ini-
cialmente se coloca é compreender a própria modernidade como processo
histórico no qual as transformações envolvem situações diversificadas de ar-
ticulação entre interesses econômicos e políticos. São trajetórias variadas, ca-
pazes de desfazer a ilusão de um desenvolvimento socioeconômico racional
e coerente, isento de perturbações, impulsionado por uma lógica universal.
Pode-se também entender a modernidade como experiência que une e de-
sune homens, mulheres, cidades, países, mercados, na sua convivência social.
De fato, a modernidade é
um tipo de experiência vital – experiência de tempo e espaço, de si mes-
mo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida – que é compar-
tilhada por homens e mulheres em todo o mundo, hoje. Designarei esse
conjunto de experiências como “modernidade”. Ser moderno é encon-
trar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, cresci-
mento, autotransformação e transformação das coisas em redor – mas
ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo que sabemos,
tudo que somos. A experiência ambiental da modernidade anula todas
as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e
ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie
humana. Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade:
ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e
mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia.2

As palavras de Berman são oportunas, pois possibilitam revisitar a mo-

dernidade brasileira no seu processo de expansão urbano-industrial, identifi-
cando alguns marcos do seu crescimento econômico que, ao mesmo tempo,
dinamizaram as cidades e redefiniram várias dimensões da economia e da so-

1 HARVEY, 1993.
2 BERMAN, 1996, p. 15.

138 impulso nº 29
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ciedade. Porém, foram incapazes de eliminar a inge-
rência externa, a instabilidade econômica e a desi-
gualdade social, que têm, de forma geral, compro-
metido o alcance de seu projeto modernizador.
Confrontando o cenário internacional com a
experiência brasileira, pode-se dizer que a moderni-
dade aproximou essas fronteiras valendo-se de uma
articulação de interesses comuns, sem, contudo,
destruir a dimensão singular dos limites, problemas
e contradições presentes no movimento de
expansão das cidades brasileiras.
BRASIL MODERNO:
“A INSERÇÃO COMPULSÓRIA”
Relacionar Brasil e modernidade significa tra-
tar de uma inserção. Sim, pois o Brasil, e os demais
países latino-americanos, em razão de seu passado
colonial e suas decorrências – escravidão, latifúndio,
dependência econômica e política – tiveram seus
processos de desenvolvimento e formação econô-
mica limitados e, em grande medida, controlados
por esses estigmas que se cristalizaram na estrutura
produtiva e social, perdurando mesmo depois de a
industrialização tornar o sistema colonial vazio de
sentido. Em outros termos, o Brasil chegava às dé-
cadas finais do século XIX com boa parcela de sua
elite rural resistindo a abolir a escravidão, com sua
estrutura produtiva monocultora e latifundista de
base primário-exportadora.
A esse tempo, o mundo assistia estarrecido à
2.ª Revolução Industrial, ou Revolução Tecno-
científica, cujas características determinantes foram o
advento da grande empresa monopolista, a mundia-
lização da economia sob a regência do Estado e a
utilização da ciência como instrumento para o de-
senvolvimento de técnicas e materiais industriais.
Barracloug é firme em seu argumento: não há dúvi-
da que o mundo já não era o mesmo a partir de
1870!3
Era impossível ficar alheio ao turbilhão de no-
vidades impostas pela revolução tecnológica, por-
3 Cf. BARRACLOUG, 1983. É justamente o evento da 2.ª Revolução
Industrial que Barracloug toma como referência para demarcar o início da
história contemporânea. Mais precisamente a partir de 1890, quando os
efeitos da revolução tecnológica e a nova divisão internacional do trabalho
(novo imperialismo), que a acompanha, se fazem sentir no mundo inteiro.
impulso nº 29
que as transformações que decorriam não se mos-
travam ocasionais, como tinham sido na 1.ª Revo-
lução Industrial. Eram cientificamente planejadas:
surgiram os novos materiais, o aço, a eletricidade e o
petróleo substituíram o ferro e o vapor, e a medicina
foi revolucionada com os avanços da indústria quí-
mica e da farmácia, bem como com o advento das
novas ciências – a microbiologia, a bioquímica e a
bacteriologia –, que alteraram qualitativamente a
prática médica. Sem contar a revolução na agricul-
tura, provocada pela introdução dos fertilizantes ar-
tificiais, dos novos métodos de conservação dos ali-
mentos – a refrigeração, a pasteurização e a esterili-
zação – e, ainda, do aperfeiçoamento nos processos
de embalagem de alimentos enlatados. Essas inova-
ções permitiram o fornecimento regular e relativa-
mente mais barato de alimentos para a crescente po-
pulação mundial.4
Entretanto, essa revolução teve um endereço,
assim como a sua antecessora. Localizou-se na Eu-
ropa Ocidental e na América do Norte e estabele-
ceu a distinção entre as nações: o centro formado
pelos países industrializados e a periferia composta
pelos demais, basicamente de economia agrícola. O
Brasil, conforme apontamos, pela sua condição
agrário-exportadora, mantinha-se no segundo gru-
po. Por paradoxal que possa parecer à primeira vista,
a condição primário-exportadora da periferia foi o
que possibilitou a sua inserção na 2.ª Revolução In-
dustrial por meio do comércio internacional. Aliás,
como alertou Sevcenko, o comércio internacional
foi a via dessa inserção compulsória, determinada por
interesses mútuos: aos países industrializados inte-
ressava ter acesso às matérias-primas e alimentos
produzidos nos países primários-exportadores, e,
para estes últimos, essa era a única forma de obter
crédito para financiar sua produção agrícola, bem
como para poder consumir as novidades produzi-
das pela industrialização.5
A inserção compulsória, no entanto, se fazia de
maneira subordinada: para ter acesso ao crédito in-
ternacional era preciso inspirar confiança nos gru-
pos credores internacionais, era preciso modernizar
4 Ibid.
5 SEVCENKO, 1995.
139
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o país, construir uma imagem de respeitabilidade no
exterior capaz de ser, por si mesma, a avalista dos
devedores nacionais. E modernizar o país significa-
va, para as elites pensantes brasileiras, tirar o Brasil
do “atraso” em que ele se encontrava. Atraso iden-
tificado com base nos elementos formadores do
povo ou da raça brasileira, atribuídos ao passado co-
lonial e suas remanescências, e agravados pelo clima
tropical – negritude, indolência, preguiça. É nesse
sentido que Ribeiro e Cardoso identificam o deslo-
camento da ação reformadora e da construção da
república no Brasil do social para a nação, a constru-
ção da nacionalidade: “Todos os discursos tendem,
mais ou menos, a apresentar um país ‘sem povo’, ou
melhor, sem uma sociedade organizada, organica-
mente constituída, capaz de, por si, estabelecer as
dinâmicas constituidoras da nacionalidade”.6
Como alerta Renato Ortiz, a partir de então,
inaugura-se uma linha de pensamento que busca
“entender a questão da identidade nacional na sua
alteridade com o exterior”,7 excetuando-se, eviden-
temente, a antiga metrópole. Ou seja, ser moderno
significava estar atualizado com o mundo, acompa-
nhar a ordem urbano-industrial. Acompanhar é a pa-
lavra adequada, pois nem sempre nesse percurso
modernizante, iniciado com a abolição da escravi-
dão e o advento da república, urbanizar e industria-
lizar revelaram-se prioridades para as elites empre-
endedoras brasileiras. Aliás, são bastante conhecidas
as teses, especialmente a partir de Alberto Torres,
que postulavam um destino agrícola para o Brasil, es-
tabelecendo uma distinção entre a superioridade da
agricultura em relação à artificialidade das atividades
urbanas.8 Dito de outra forma, pelo menos até os
anos 30, não se pode dizer que houve uma proposi-
ção industrializante no Brasil, ainda que o mercado
interno haja se intensificado e dinamizado. Ao con-
trário, a economia agrário-exportadora constituía o
eixo dinâmico de sustentação do emprego e da ren-
da, e as elites proprietárias, mais precisamente a oli-
garquia cafeeira alinhada com os círculos financeiros
6
Cf. RIBEIRO, L. & CARDOSO, A. Da cidade à nação: gênese e evolu-
ção do urbanismo no Brasil, in: RIBEIRO et al., 1996, p. 57.
7 ORTIZ, 1994, p. 182.
8 SALIBA, 1981.
140
internacionais construía o seu ideário de moderni-
dade no qual exportar café era o sentido.
Isso não significou, entretanto, o desprezo às
cidades. Em que pese o fato de elas não terem se
consumado no eixo de intervenção das elites em-
preendedoras, acabaram canalizando boa parte dos
recursos produtivos, seja em decorrência do cresci-
mento das atividades urbanas subsidiárias do co-
mércio de exportação cafeeira – bancos, indústrias
de sacaria, casas de beneficiamento de café, ferrovia
etc. –, seja porque as cidades constituíam pólos de
atração para as populações pobres em busca de
oportunidades, seja ainda em razão de as cidades se
apresentarem como os locus privilegiados para
sedimentação do poder político das elites. Em ou-
tros termos, se o campo era o espaço de sustentação
econômica, de formação das fortunas e mesmo de
sedimentação da base política das elites, a cidade era
o lugar onde as atividades econômicas se realizavam
e o poder político se materializava.
Desse modo, tendo em vista as referências
determinadas pela conjuntura aberta com a 2.ª Re-
volução Industrial, a modernização do Brasil pas-
sava, impreterivelmente, pela transformação das
cidades, em especial as grandes cidades, as capitais,
pois elas representariam os esforços modernizan-
tes das elites brasileiras: verdadeiros cartões de vi-
sitas aos moldes do requintado gosto europeu. Es-
sa, na verdade, não era uma peculiaridade nacional.
A historiografia sobre as cidades aponta a forma-
ção do mercado de trabalho livre e a industrializa-
ção como os fenômenos baseados nos quais a ci-
dade se problematiza e a questão urbana passa a ser
pensada de forma racional. Surge a ciência urbana,
cuja preocupação é o reordenamento dos espaços
segundo métodos científicos de planejamento e
saneamento, com vistas a transformar o “caos” em
que as cidades se tornaram, com o advento do ca-
pitalismo e da industrialização, e a conseqüente de-
sarticulação das sociedades rurais, em espaços hi-
giênicos e civilizados, espaços modernos, contro-
lados.9
9 Cf. a respeito CHOAY, 1979 e 1994; BEGUIN, 1991; TOPALOV,
1991; e RIBEIRO et al., 1996.
impulso nº 29
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A CONSTRUÇÃO DA CIDADE
“PARA INGLÊS VER”
Nas décadas iniciais da República no Brasil, a
modernização das cidades se manifestou de forma
emblemática no processo que a imprensa denomi-
nou “regeneração” e que tomou conta da capital do
país. Sevcenko relata com riqueza de detalhes os re-
quintes dessa intervenção, marcada pela busca ob-
sessiva de se criar uma nova respeitabilidade repu-
blicana, e identifica quatro princípios norteadores,
que vale a pena destacar:
A condenação dos hábitos e costumes liga-
dos pela memória à sociedade tradicional; a
negação de todo e qualquer elemento de
cultura popular que pudesse macular a ima-
gem civilizada da sociedade dominante;
uma política rigorosa de expulsão dos gru-
pos populares da área central da cidade, que
será praticamente isolada para o desfrute ex-
clusivo das camadas aburguesadas; um cos-
mopolitismo agressivo, profundamente
identificado com a vida parisiense.10
Constituiu-se, assim, um modelo de gestão
pública para as cidades brasileiras que se torna
referência demarcatória da distinção entre o Brasil
“moderno” e o “atrasado”. O método era fornecido
pela ciência urbana: os elementos higiene, estética e
circularidade presidiam as ações dos reformadores
urbanos. E seriam médicos, engenheiros sanitaristas
e higienistas os primeiros reformadores.11
Além da capital do país, essa intervenção se
traduziu numa série de planos de saneamento e
expansão das cidades na virada do século XIX e, es-
pecialmente, na primeira década do século XX.12 Foi
o caso do plano do engenheiro sanitarista Saturnino
de Brito para a cidade de Santos, tido como uma das
primeiras obras do urbanismo moderno no Brasil,
visto que suas medidas de saneamento, higienização
e embelezamento nortearam-se pela capacidade de
10
SEVCENKO, 1995, p. 30.
11 LEME, 1991.
12 Há divergência entre os diversos estudos relativamente à identificação
das ações dos reformadores urbanos brasileiros na 1.ª República como
manifestações que podem ser consideradas obras da ciência urbana ou de
planejamento urbano, sobretudo quando a referência é o controle social.
Cf. RIBEIRO et al., 1996.
impulso nº 29
crescimento da cidade, antecipando o seu futuro.13
O projeto de Victor Freire, de remodelação do anel
viário de São Paulo, também ilustra essa proposição,
pois pressupõe a necessidade de preparar a cidade
para a futura expansão.14
Inscreve-se aqui também o plano de Aarão
Reis para construção de Belo Horizonte, de inspi-
ração haussmanniana, tanto na sua concepção higie-
nista quanto na idéia de organização, funcionalidade
e monumentalidade do espaço urbano.15 Finalmen-
te, para não ficarmos apenas nos exemplos das ca-
pitais e grandes cidades, acrescente-se a esse quadro
as medidas de administração pública do médico
Paulo de Moraes Barros para Piracicaba. Não se
sabe ao certo se elas obedeceram a um plano de ação
previamente estabelecido, mas é possível afirmar
que foram regidas pelos princípios norteadores do
urbanismo – iluminação, higienização e estética.16
Ribeiro e Cardoso, no entanto, referindo-se
às reformas urbanas na 1.ª República, chamam a
atenção para uma característica comum a todas
elas, a saber, a negação da apropriação do espaço
público pelas camadas populares, a sua expulsão
das áreas nobres da cidade, ou seja, a intenção de
construir uma cidade “para inglês ver”. Os autores
identificam nessa proposição absolutamente ex-
cludente o traço peculiar da intervenção urbana no
Brasil relacionado com moderno urbanismo euro-
peu: enquanto, na Europa, o urbanismo surgiu re-
vestido da idéia de reforma social, cujas ações prin-
cipais estão na origem de uma série de políticas do
welfare state, no Brasil, a reforma urbana visava a
afastar a todo preço as populações empobrecidas e
incultas dos locais mais visíveis – ruas, praças, áreas
centrais -, apoiando-se nas posturas e leis munici-
pais, na destruição das velhas construções coloniais,
que delineavam os centros urbanos, e nas leis con-
tra a vadiagem e a mendicância, que proliferaram
nesse período.17
13 ANDRADE, 1991.
14 LEME, 1991.
15 GUIMARÃES, B. A concepção e o projeto de Belo Horizonte: a uto-
pia de Aarão Reis, in: RIBEIRO et al., 1996.
16 Cf. TERCI, 1997.
17 Cf. RIBEIRO, L. & CARDOSO, A. Da cidade à nação: gênese e evo-
lução do urbanismo no Brasil, in: RIBEIRO et al., 1996.
141
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O DESPERTAR DE UM NOVO TEMPO
O advento da 1.ª Guerra Mundial, porém, ar-
rasa o cenário idílico da belle époque: ao romper com
o mito do internacionalismo liberal, a guerra desnu-
da a acirrada rivalidade que marcava as relações entre
as nações e desperta uma parcela dos políticos e in-
telectuais brasileiros para a necessidade de fortalecer
a nação e preservar sua soberania. Além disso, os
efeitos da guerra atingiam também o Brasil, seja por
conta da dupla crise imposta ao setor exportador
(retração das compras e do crédito internacional),
pela carestia dos preços dos alimentos (acarretada
pelo aumento das exportações desses gêneros e pe-
los mecanismos inflacionários de financiamento do
café e do déficit público), seja ainda pela dificuldade
de manter as exportações.18
A verdade é que a sociedade também era mui-
to diferente dos anos iniciais daquele século. A
industrialização, a urbanização e a constituição das
grandes cidades trouxeram com elas a diversificação
da população com o surgimento de novos grupa-
mentos sociais, sobretudo a formação de um ope-
rariado urbano, que, embora ainda em estágio em-
brionário, dava nova movimentação às cidades. Essa
nova diversidade social se construiu num clima de
enormes tensões sociais, envolvendo trabalhadores,
patronato e Estado, que se agudizaram no período
da guerra, notadamente em razão da carestia dos ali-
mentos, do desemprego, do arrocho salarial e da au-
sência de legislação trabalhista, contribuindo, por
sua vez, para o fortalecimento do movimento ope-
rário. O desfecho dramático foram as greves gerais
de 1917, 1918 e 1919, que, se de um lado, revelaram
novas formas de ocupação das ruas e dos espaços
públicos, bem distintos do que pretendiam as elites,
de outro, revelaram também o grau de tolerância
das classes dominantes e os limites do alargamento
da esfera pública: as greves foram tratadas como “ca-
so de polícia”, como sintetizou Washington Luiz, e
reprimidas violentamente.19
18 Para uma análise dessa conjuntura e de suas conseqüências, cf., entre
outros, SEVCENKO, 1992; MOREIRA, 1982; SALIBA, 1981; e LOVE,
1989.
19 Para maiores detalhes sobres as greves de 1917 a 1919, cf., entre outros,
FAUSTO, 1977; e PINHEIRO, 1977.
142
Os anos 20, entretanto, anunciavam o desper-
tar de um novo tempo. A conjuntura catastrófica
dos anos anteriores parecia superada. O fim da
guerra acrescentara novos conteúdos ao vocábulo
moderno, em virtude do caráter apocalíptico atribuí-
do à transição para o novo, ou seja, despertava o
mundo num chamamento místico para a constru-
ção do novo, saído do caos – o novo homem, a nova
ordem, o espírito novo e, especificamente no Brasil,
a nova nação.20
A conjuntura que se abria a partir de então
constituiu um momento de grande reflexão para as
elites brasileiras sobre os problemas nacionais, dan-
do origem à campanha nacionalista, que tomaria
conta do país. Esse movimento envolveu as princi-
pais capitais brasileiras, institucionalizando-se nas li-
gas nacionalistas estaduais, e, embora tivesse ainda
como elemento irradiador as transformações no ce-
nário das relações internacionais, diferia substancial-
mente do que fora o processo “regenerador” das
décadas iniciais da República, como alerta Sevcenko.
Tratava-se de um movimento introspectivo, e não
cosmopolita como o anterior, o centro irradiador
passou a ser São Paulo, não o Rio de Janeiro, e seu
objetivo consistiu na busca de uma identidade nacio-
nal que permitisse ao Brasil integrar o mundo mo-
derno e participar da divisão internacional do traba-
lho, preservando sua autonomia e soberania. Para
tanto, o resgate do passado, das raízes tradicionais,
da cultura popular, dos feitos de suas gentes desde
os áureos tempos do período colonial representava
uma âncora fundamental para a construção de um
futuro alicerçado na justaposição do velho e do no-
vo, do arcaico e do moderno.21
Ainda desta feita a estrutura social, política e
econômica não seria tocada. Os problemas relativos
ao modelo de desenvolvimento econômico voltado
para fora, alicerçado no comércio internacional não
seria questionado, visto que o processo de
modernização do país levado a termo nos anos an-
teriores não tinha revertido a situação vigente: a
industrialização e a urbanização se fizeram ancora-
20 Sobre as várias fases do modernismo, cf., BRADBURY & McFAR-
LANE, 1989. A respeito da construção da modernidade brasileira, cf.
ORTIZ, 1994.
21 SEVCENKO, 1992.
impulso nº 29
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das no setor de mercado externo, como atividades
secundárias ou subsidiárias a ele, sendo incapazes de
produzir novos grupos sociais com força suficiente
para enfrentar a oligarquia cafeeira, ou mesmo cons-
tituir-se como alternativa a ela.
Assim, o movimento modernizante instituído
a partir de então reforçava a posição ruralista da eco-
nomia brasileira e identificava, na esfera da política, os
entraves aos sonhos de grandeza do país: eram as oli-
garquias regionais e as mazelas eleitorais que as per-
petuavam no poder, impedindo a ascensão das
“oposições redentoras”. A reforma do sistema eleito-
ral, com a introdução do voto secreto, constituía a
principal bandeira do movimento nacionalista.22
São Paulo buscava galvanizar todas as possibi-
lidades dessa ascensão redentora: depositário da
maior riqueza nacional, o café, e de uma tradição
desbravadora que era motivo de seu maior orgulho,
o “bandeirantismo”, a unidade federativa emergente
desencadeia um movimento inclusivo, atingindo to-
dos os setores indistintamente, desde a imprensa,
passando pela literatura e pelas artes, até o governo.
Era a consagração do non ducor, duco, expressão lar-
gamente difundida na época, ou do “paulistismo”,
no dizer de Elias T. Saliba.23 Vale salientar que, em
nome dessa missão redentora e modernizante atri-
buída a São Paulo e ao café, aprofundam-se nos anos
20 as pressões da oligarquia cafeeira sobre o governo
federal para o alargamento das políticas e medidas
em defesa da lavoura cafeeira e de sua lucratividade,
cuja produção seguiria crescendo e os riscos de uma
superprodução crítica continuariam sem solução até
o final da década.24
No que se refere à intervenção urbana, ainda
que se mantenham as proposições saneadoras, higie-
nizadoras e segregadoras, a elas vêm se somar outros
conteúdos, contribuindo para uma nova forma de
interação entre o público e o espaço urbano: o em-
belezamento e a monumentalidade. Além da valo-
rização das construções suntuosas das habitações,
sedes comerciais e instituições, a ereção dos monu-
mentos alusivos a momentos ou personagens histó-
ricos são a marca do período do nacionalismo, gra-
22 Cf. SALIBA, 1981.
23 Ibid.
24 Cf. FURTADO, 1982.
impulso nº 29
ças à sua capacidade de, ao mesmo tempo, promo-
ver o culto ao passado, a imortalização dos persona-
gens e seus feitos, a arte e os artistas nacionais.
Segundo Sevcenko, mais significativos que os mo-
numentos, entretanto, são os festivais modernos: as
cidades tornam-se palco de uma série de rituais co-
memorativos aos grandes feitos nacionais, cujo efei-
to mais notável é o clima de comunhão nacional que
promovem nos habitantes.25
Os anos iniciais da década de 20 são o corolá-
rio dessa euforia modernista, cuja maior expressão é
a Semana de Arte Moderna de 1922. Esse ano de
1922 é de fato um marco. Data do Centenário da
Independência, proporciona o momento ideal para
a grande confraternização nacional. Para as come-
morações alusivas à data, o então presidente do Es-
tado de São Paulo, Washington Luiz, promove um
grande festival cívico, cujo ponto alto foi o concur-
so público criado para dar à sua capital uma série de
monumentos alusivos à data, envolvendo artistas e
associações mutuais, que, segundo Sevcenko, com-
puseram a mais sistemática campanha de embeleza-
mento da cidade desde os tempos do prefeito An-
tonio Prado.26
Ao que tudo indica, esse não foi um evento lo-
calizado apenas na capital. O interior também aca-
bou tocado pelo clima das comemorações e, na me-
dida do possível, as elites buscaram trazer o festival
moderno para as diversas localidades. Em Piracicaba,
por exemplo, organizou-se uma grande quermesse
cívica, cuja renda foi revertida para as obras da Santa
Casa local, trocaram-se as nomenclaturas das ruas
principais pelos nomes das personalidades ligadas à
Proclamação da Independência e da República e eri-
giu-se um primeiro monumento histórico em ho-
menagem ao dr. Paulo de Moraes Barros, o prefeito
que conquistara o título de administração modelo
para Piracicaba na primeira década do século XX.27
CONSERVADORISMO NACIONALISTA
As tensões se avolumavam, apesar do clima
de comoção geral patrocinado pela onda nacionalis-
25 SEVCENKO, 1992.
26 Ibid.
27 TERCI, 1997.
143
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ta. A política de valorização do café praticada pelo
governo federal promovia a “socialização das per-
das”, provocando a carestia dos preços e o descon-
tentamento das camadas urbanas.28 Na verdade,
eram as políticas de valorização o sustentáculo do
modelo primário exportador e da economia cafeei-
ra, a tal ponto que, ao final da década de 20, o receio
de que o novo presidente pudesse não sustentar a
política cafeeira levou Washington Luiz a defender o
nome de um paulista para a sua sucessão presiden-
cial. Dessa forma, rompeu o pacto que mantivera o
regime oligárquico federativo desde que o governo
de Campos Salles promulgou a legislação eleitoral
que ficou conhecida como a “política dos governa-
dores” ou a “política do café com leite”.29 Essa ati-
tude acabou empurrando a oligarquia mineira a ade-
rir à Aliança Liberal e à revolução varguista.
À crise política veio somar-se a derrocada fatal
do modelo primário-exportador com a crise de
1929. A queda vertiginosa das exportações cafeeiras
desnudava a vulnerabilidade de um modelo de de-
senvolvimento tão dependente do mercado exter-
no, de uma economia tão voltada para fora, como
era a brasileira. Foi nesse ambiente de dupla crise
política e econômica que a Aliança Liberal conduziu
Getúlio Vargas ao poder e esse clima abriu espaço
para a difusão de um novo projeto de modernização
para o Brasil, totalmente avesso ao ideário liberal
que vigorara até então, em que pesem os protestos
e insubordinações dos liberais paulistas.30
O novo projeto de modernidade então inau-
gurado produziu dois deslocamentos em relação ao
período anterior. O primeiro diz respeito ao diag-
nóstico do “atraso” – cuja formulação mais conhe-
cida encontra-se nos escritos de Oliveira Vianna –
28
O processo de socialização das perdas, expressão cunhada por Celso
Furtado, ocorria pelo fato de a política de valorização do café contar fun-
damentalmente com o mecanismo de ajuste cambial: ao desvalorizar a
moeda nacional, para manter a lucratividade do setor exportador, encare-
cia-se as importações e, portanto, quem delas dependia arcava com os pre-
juízos. Cf. FURTADO, 1982.
29 Sobre o governo Campos Salles e a política dos governadores, cf.
FAORO (1995). Como é sabido, desde a sua edição, São Paulo e Minas
Gerais se alteravam no governo federal, garantidos pela política dos gover-
nadores. Em 1929, seria a vez de Minas na sucessão presidencial.
30 Cf. CAPELATO, 1989. Segundo a autora, a facção liberal paulista, que
dera apoio ao golpe que conduziu Vargas ao poder não demorou a perce-
ber que os seus anseios estariam ameaçados com a centralização do poder
e a ditadura vindoura; pegou em armas e fez a sua revolução em 1932.
144
identificado com o latifúndio e a escravidão presen-
tes nas bases da sociabilidade brasileira, centrada na
autoridade pessoal do grande proprietário. Tal estru-
tura social, por sua vez, deu origem ao “caudilhis-
mo” e ao “coronelismo”, que dominavam a política
brasileira e fizeram do Estado um verdadeiro cartó-
rio em defesa dos interesses privados dos grandes
proprietários rurais. Segundo Oliveira Vianna, daí
teria resultado a inviabilidade do liberalismo no Bra-
sil: “para enfrentar a força do ‘caudilhismo’, que era
sempre uma ameaça à desintegração territorial e so-
cial, só um poder centralizador forte - metropolita-
no ou nacional –, que agisse como promotor da paz
e da ampla proteção dos cidadãos”.31
É o que justifica a modernização conservado-
ra: a realidade brasileira teria conseguido tornar de-
fensável o que, até então, teria sido indesejável; o
poder central, absoluto e autoritário teria se trans-
formado na única via de construção do Estado mo-
derno no Brasil, capaz de se orientar por mecanis-
mos racionais.32 Essa formulação, levada às últimas
conseqüências, produziu o ideário do Estado Novo,
cuja atenção voltou-se especialmente para a questão
social e a proposição de criar uma sociedade harmô-
nica sob a tutela do Estado.33 Já o segundo desloca-
mento advinha do novo padrão de acumulação sus-
tentado por grupos industriais e agrícolas emergen-
tes da expansão das atividades urbanas, promovidas
pelo crescimento do complexo cafeeiro centrado no
mercado interno – no desenvolvimento para dentro.34
Nesse novo modelo, a industrialização foi priorizada
como forma de tornar o Brasil o menos dependente
possível do comércio internacional.
A euforia nacionalista e defensiva que se ins-
taurou com a modernização conservadora não foi
capaz, no entanto, de promover um intenso proces-
so de substituição de importações de modo a pos-
sibilitar a diversificação do parque industrial brasilei-
ro, nem mesmo de romper a estrutura agrário-ex-
portadora centrada na monocultura e no latifúndio.
A tão almejada independência econômica, e conse-
31 GOMES, 1998, p. 509.
32 Ibid.
33 Ibid.
34 SINGER, 1968.
impulso nº 29
p g y p
qüentemente política, em relação ao mercado exter-
no esbarrava na relativa carência de base técnica da
economia brasileira, tornando o processo de
industrialização dependente da importação de tec-
nologia. Sendo assim, no período que se estende en-
tre as décadas de 30 e 50, a industrialização ficou
“restringida”, de acordo com o termo empregado
por Cardoso de Mello.35 Ou seja, seguiu a estrutura
previamente montada ou complementar a ela, com
grande expansão do setor têxtil e um crescimento
tímido da indústria de base emergente, especial-
mente borracha, cimento, mobiliário, papel e side-
rurgia.36
Da mesma forma, o urbano também não as-
sumiu o papel de destaque, como era de se esperar,
sobretudo porque as pressões das oligarquias regio-
nais presentes no pacto social de sustentação do
novo governo fizeram reproduzir o antiurbanismo
nos meios intelectuais e técnicos que formulavam
as proposições e políticas sociais.37 Assim, embora
o antiurbanismo não fosse absoluto – é possível
identificar a associação entre nacionalidade,
industrialização e urbanização no pensamento de
outros intelectuais influentes no governo, por
exemplo, Azevedo Amaral –, o urbano nos anos
30 ainda não era tematizado como questão. Preva-
leciam as formulações que idealizavam a cidade,
condenando a realidade e postulando uma inter-
venção pautada nos mesmos padrões produzidos
nos países centrais e reproduzidos no Brasil no iní-
cio do século XIX: embelezamento, monumentali-
dade e controle social.
Sedimenta-se, portanto, a concepção dual do
atraso brasileiro, traduzida na oposição campo versus
cidade, que vinha sendo cunhada desde o início do
século, conforme retratam as obras de Monteiro
Lobato e Euclides da Cunha. Somente a partir dos
anos 50, com a firme decisão de se industrializar o
Brasil a qualquer custo, a industrialização é prioriza-
da como o salto para a modernidade e a cidade passa
a ser tematizada como questão.
35MELLO, 1982.
36SINGER, 1968.
37RIBEIRO, L. & CARDOSO, A. Da cidade à nação: gênese e evolução
do urbanismo no Brasil, in: RIBEIRO et al., 1996.
impulso nº 29
A INDUSTRIALIZAÇÃO COMO
ESPELHO DA MODERNIDADE
Certamente, a década de 50 foi um período
marcado pelo clima de entusiasmo, oriundo das
possibilidades que as modernas fábricas passaram a
oferecer. Foi um dos grandes momentos da moder-
nidade brasileira e da sua inserção nos avanços tec-
nológicos provenientes da Revolução Industrial.
Cresceu o ritmo da produção e aceleraram-se as
oportunidades de emprego, de expansão do merca-
do e do consumo, com uma acentuada quantidade
e variedade de bens produzidos. O Brasil comparti-
lhava a euforia desenvolvimentista vivenciada em es-
cala mundial, proveniente da tranqüilidade e da feli-
cidade geral retomadas de um pós-guerra. A econo-
mia norte-americana se destacava e se expandia in-
terna e externamente. A Europa também não
perdeu lugar nesse movimento e enfrentou com ra-
dicalidade a reconstrução das suas economias.
A presença internacional de dois blocos, com
distintas características socioeconômicas, liderados
pelos Estados Unidos e União Soviética, reforçou a
tendência à internacionalização, na medida em que
os demais países puderam e foram levados a estabe-
lecer acordos e garantias de proteção mútua no
campo político, econômico e militar. Em nome da
democracia, ou da paz mundial, a intervenção ame-
ricana ou soviética era justificada. O Brasil se mos-
trou seduzido pelo modo de vida norte-americano e
as grandes cidades tornaram-se palco privilegiado
para o desenvolvimento de novos hábitos de con-
sumo. Consolidava-se, naquele momento, a socie-
dade urbano-industrial, com significativa repercus-
são no padrão de acumulação de capital no Brasil: de
um padrão contido e subordinado à dinâmica do se-
tor agrário-exportador, a economia brasileira, a partir
do qüinqüênio 1956-1960, desenvolveria a indústria
pesada e expandiria o seu processo de industrializa-
ção, diminuindo, assim, os entraves colocados até
então.
Os grandes centros urbanos, desde o início
dos anos 50, começavam a expressar um crescimen-
to marcado pela iniciativa de reformulação da estra-
tégia econômica do Estado nacional.
145
p g y p
Entre 1950 e 1954 (2.º período Vargas), a
economia explicitara a necessidade de con-
verter sua restringida indústria num proces-
so específico de industrialização, ou seja, de
instalar a indústria pesada. Nesse sentido,
foram importantes os estímulos estatais di-
retos e indiretos para os setores de infra-es-
trutura, indústria de base e autopeças, esta
última como o embrião da futura indústria
automobilística.38
A emergência de novos atores e instituições
sociais estimulava a sociedade brasileira a valorizar,
de forma deslumbrada, as novidades do momento,
deixando de lado as mazelas sociais ainda presentes
na realidade socioeconômica nacional. Em nome do
novo ignoravam-se as continuidades. De fato, no
campo econômico, a partir de meados da década de
50, novas iniciativas eram realizadas, mediante um
bloco de investimentos reconhecido por Cardoso
de Mello como uma verdadeira “onda de inovações
schumpeteriana”, quer pelo salto tecnológico atin-
gido quer pela capacidade produtiva que se ampliava
à frente da demanda preexistente.39
Vale a pena evidenciar o comportamento de
alguns indicadores que, a partir dos anos 30, confir-
mam o quanto esse período foi importante para o
desenvolvimento brasileiro.40 O Produto Interno
Bruto, entre 1928 e 1955, cresceu à taxa média anual
de 4,1%. Mesmo diante da crise cafeeira, o setor
agropecuário cresceu a uma taxa média anual de
2,6%, enquanto a demografia cresceu 2%. A
industrialização, a urbanização e a diversificação das
culturas de exportação exerceram forte estímulo à
expansão da fronteira agrícola com a corrida para o
oeste brasileiro, impactando positivamente também
o setor da construção, com a elevada taxa de cresci-
mento de 6,5% ao ano, entre 1939 e 1955. Mesmo
um setor pouco expressivo como o da mineração
cresceu a média anual de 3,5% nesse período. En-
38 CANO, 2000, pp. 169-170.
39 MELLO, 1982, p. 117.
40 Vários trabalhos vêm enfatizando o avanço da industrialização desde os
anos 30 pela ação política e econômica do Estado Nacional. Sobre esse
aspecto, afirma Sônia Draibe: “restam, hoje, poucas dúvidas sobre o fato de
que, entre 1930 e 1945, no mesmo período em que se desencadeava a pri-
meira fase da industrialização brasileira – a industrialização restringida –,
amadurecia também um projeto de industrialização pesada” (DRAIBE,
1983, p. 100). Cf. também CANO, 1993.
146
quanto o setor de serviços diminuiu a sua participa-
ção no PIB – de 60% para 53%, dado o crescimento
dos demais setores –, a indústria de transformação
foi a que apresentou melhores resultados: com uma
taxa anual de 6,3%, sua participação no PIB saltou de
12,5% para 20%.41
O que esses resultados trazem de novo não é
o fato de expressar apenas a expansão industrial,
mas também uma nova concepção urbana, marcada
por variáveis econômicas, culturais e políticas, entre
outras, “que a cada momento histórico dão uma
significação e um valor específico ao meio criado
pelo homem”.42 Para Henry Lefebvre, a
industrialização interfere na cidade de modo nega-
tivo, arruinando a cidade antiga. Esta passa a se lo-
comover “para os meios de produção e para os dis-
positivos da exploração do trabalho social por aque-
les que detêm a informação, a cultura, os próprios
poderes de decisão... A racionalidade dá um salto
para frente”.43 Realmente, a racionalidade adminis-
trativa passa a reger o padrão de intervenção urbana.
Abandona-se aquela orientação idealizadora da ci-
dade e adota-se uma proposição de gerir a cidade re-
al, agindo sobre as “distorções” advindas das “dis-
funcionalidades” do crescimento econômico.44
No contexto dos anos 50, entretanto, a socie-
dade brasileira apoiou, de modo geral, as transfor-
mações em curso, mostrando-se fascinada pelas
perspectivas progressistas, “mergulhada numa visão
acrítica do mercado moderno”.45 De fato, há uma
vasta análise que evidencia os problemas e contras-
tes dessa modernização e/ou modernidade, notada-
mente no seu aspecto social. Mas, evidentemente,
nos anos 50, a impressão que se tinha da cidade era
bem diversa da que anos mais tarde se apresentaria.
Algumas análises sociais confirmam o quanto a
expansão urbano-industrial desse período amorte-
ceu paradoxalmente as tensões sociais.
Esse é um aspecto importante quando se
constata que o desenvolvimento econômico brasi-
leiro tem enfrentado graves tensões sociais para se
41 CANO, 1993, pp. 170-171.
42 SANTOS, 1996, p. 111.
43 LEFEBVRE, 1991, p. 142.
44 RIBEIRO, L. & CARDOSO, A. Da cidade à nação: gênese e evolução
do urbanismo no Brasil, in: RIBEIRO et al., 1996.
45 ORTIZ, 1994, p. 36.
impulso nº 29
p g y p
inserir internacionalmente na marcha da moderni-
dade. O comportamento do PIB, nesse sentido, é re-
velador. Entre 1989 e 1998, o PIB cresceu à média
anual de 1,9%, pouco abaixo da média dos anos 80
(2,2%), reconhecida como a década perdida. Utili-
zando o Plano Real como referência, o quadro não
se altera. De 1989 a 1994, registrou-se a taxa de
1,3% e, entre 1994 e 1998, de 2,7%. Diante disso,
poderíamos constatar que tais resultados expressam
“o preço” da inserção do Brasil no cenário econô-
mico internacional, ou “na década prometida, aque-
la em que rumaríamos ao Primeiro Mundo”.46
Adalto L. Cardoso esclarece, em certa medida,
esse aspecto. Ele chama a atenção para o fato de a ci-
dade, embora priorizada como foco da intervenção
econômica, não ter perdido seu caráter simbólico,
sobretudo considerando-se o papel atribuído à cons-
trução de Brasília, “a meta síntese”. Em que pesem
todas as justificativas econômicas e estratégicas para
a edificação da nova capital, é evidente que a sua con-
cretização coroava de êxito o projeto nacional desen-
volvimentista: a possibilidade de modernizar o país
como ato de vontade política. Nas palavras do autor,
Desde o governo Vargas parece se manifes-
tar uma clara relação entre o espaço cons-
truído e os símbolos cívicos de constituição
da nacionalidade. Brasília, todavia, levará
esta relação ao extremo, ao criar um cenário
ideal para a reafirmação dos elementos bási-
cos da nacionalidade, por meio da visão do
Estado, sob uma ótica modernizadora. O
que estava em pauta, então, era essencial-
mente a construção do novo, do Brasil do
futuro.47
Embora tal papel estivesse reservado a Brasí-
lia, é fácil imaginar a difusão que essa dimensão sim-
bólica atribuída à cidade teve para as elites e os po-
deres públicos das mais diversas localidades brasilei-
ras na definição dos planos de modernização das ci-
dades. De fato, as cidades e as populações foram
tomadas pela euforia modernizadora e industriali-
zante, assistindo estarrecidas e deslumbradas a
46
CANO, 1993, p. 266.
47 CARDOSO, A.L. O urbanismo de Lúcio Costa: contribuição brasi-
leira ao concerto das nações, in: RIBEIRO et al., 1996, p. 112.
impulso nº 29
elevação dos seus primeiros arranha-céus, a inova-
ção tecnológica de suas indústrias e a estruturação
dos seus comércios nas modernas magazines, abar-
rotadas pelas novas mercadorias. Chegara, enfim, a
possibilidade de redenção do atraso.
Assim, a consolidação da industrialização pe-
sada no Brasil, no período compreendido entre 1956
e 1960, possibilitou a realização de uma das grandes
aspirações desenvolvimentistas presentes no Plano
de Metas do então presidente da República, Jusceli-
no Kubitschek. Um moderno aparato produtivo
tornou-se não só desejo nacional, como também
meta necessária para delegar ao Brasil uma outra
inserção internacional, baseada no impacto que a
mudança na estrutura econômica do país poderia
provocar na integração do mercado nacional. O PIB
cresceu à taxa média anual de 7,1%. Os investimen-
tos foram os principais responsáveis, já que apresen-
taram também elevadas taxas de crescimento (de
13,5% do PIB, em 1955, para 18%, em 1958-1959).
Apesar de os anos recentes revelarem caracte-
rísticas diferentes da década de 50, não deixam de
evidenciar a importância das políticas econômicas
quando seus formuladores ambicionam o desenvol-
vimento econômico. Os 50 anos materializados em
cinco, conforme as metas pretendidas por Kubits-
chek, mostraram que havia “uma brecha” para o
crescimento econômico, não pela imposição dos in-
teresses econômicos externos, mas pelos obstáculos
colocados à continuidade de um desenvolvimento
ditado pelo comportamento da exportação de seus
produtos primários.
A SOBERANIA PROMETIDA
Para alguns analistas, a modernidade brasilei-
ra, como meta do governo JK expressa pela
industrialização, não resulta de uma reação defensi-
va, meramente econômica, mas especialmente polí-
tica, na qual a noção de soberania encontra-se de
mãos dadas com a grandeza nacional.
Pretende-se soberania e considera-se que
aquilo que falta para tê-la é o enriquecimento.
Por isso a soberania almejada se iguala à au-
tonomia econômica, quando o país não de-
penderá de outros para solucionar seus pro-
blemas de carência de capital. Mas consegui-
147
p g y p
la envolve escolha entre alternativas, implica
opções, é matéria de política, portanto.48
Compreendendo que o Plano de Metas foi,
de modo geral, o momento de consagração da
industrialização e do avanço da sociedade brasileira,
no qual a direção econômica do Estado assumiu pa-
pel relevante, não pretendemos realizar uma análise
exaustiva desse projeto, mas assinalar algumas trans-
formações socioeconômicas fundamentais para o
progresso então almejado. Inicialmente, vale reco-
nhecer o mérito do Estado como agente fundamen-
tal na constituição plena das forças produtivas, es-
pecialmente capitalistas.49 Elas foram também con-
solidadas pela iniciativa privada, tanto estrangeira
como nacional. Nessa “aliança para o progresso”, é
curioso observar que o Estado apostou no desen-
volvimento sustentado pela atividade econômica,
abandonando as preocupações com a estabilidade e
as orientações ortodoxas.50
O Estado brasileiro reproduziu uma conduta
para o crescimento econômico inspirada no keyne-
sianismo, assumindo novos papéis e construindo
novos poderes institucionais, recebendo em troca o
apoio interno e externo dos capitais privados, nacio-
nais e estrangeiros, e da própria sociedade brasileira.
Desse modo, os rumos da modernização brasileira
distribuíram-se em 31 metas absorvidas em seis
grandes grupos:
• energia – metas de 1 a 5 – energia elétrica,
energia nuclear, carvão, produção de petró-
leo, refinação de petróleo;
• transportes – metas de 6 a 12 – reequipa-
mento de estradas de ferro, construção de
estradas de ferro, pavimentação de estradas
de rodagem, construção de estradas de ro-
dagem, de portos e de barragens, marinha
mercante, transportes aéreos;
• alimentação – metas de 13 a 18 – trigo,
armazéns e silos, frigoríficos, matadouros,
mecanização da agricultura, fertilizantes;
• indústrias de base – metas de 19 a 29 – aço,
alumínio, metais não-ferrosos, cimento, ál-
48 CARDOSO, 1978, pp. 101-102.
49 MELLO, 1982, p. 97.
50 CANO, 1993, p. 172.
148
calis, papel e celulose, borracha, exportação
de ferro, indústria de veículos motorizados,
indústria de construção naval, maquinaria
pesada e equipamento elétrico;
• educação – meta 30;
• construção de Brasília – meta-síntese.51
Entre essas metas é incontestável a importân-
cia do automóvel. A penetração desse produto no
mercado brasileiro aponta para outra direção. São
evidentes os estímulos para a nacionalização de veí-
culos e para a expansão da indústria mecânica. Ca-
minhões, ônibus, jipes e, mais tarde, tratores foram
sendo fabricados no Brasil numa escala crescente.
Em 1955, havia no país 700 fábricas de autopeças e
a Fábrica Nacional de Motores produzia 2.500 ca-
minhões por ano, com índice de 54% de nacionali-
zação. Em 1960, eram 1.200 fábricas de autopeças,
com a substituição por peças nacionais de aproxima-
damente 90% do peso dos veículos. Nas palavras de
Lessa, a expansão automobilística “tinha um duplo
aspecto: meta de produção e de índice de naciona-
lização”. Integrando verticalmente o parque indus-
trial, as empresas mecânicas e de material elétrico na
sua expansão constituíram um importante segmen-
to produtor de bens de capital do país”.52
A soberania prometida seria aquela alcançada
pelo desenvolvimento econômico, com a superação
do atraso e a aceleração do crescimento econômico.
Segundo Míriam Cardoso, Juscelino explorou nos
seus discursos o termo soberania, extraindo dele
grande parte do seu conteúdo político, privilegiando
intensamente a sua dimensão econômica. Desse mo-
do, a emancipação econômica não teria resultado de
uma ação propriamente política, vinculada à emanci-
pação política, mas simplesmente gerada pelo cresci-
mento econômico. Essa liberação econômica, como
garantia de prosperidade, fornece o elemento que fal-
ta aos países subdesenvolvidos para que, junto com a
ordem democrática, alcancem plena soberania.53
Desde o início dos anos 50, estudiosos e po-
líticos influenciados pela Comissão Econômica para
a América Latina (Cepal) já se preocupavam com a
construção de um projeto nacional para o Brasil. Na
51 BENEVIDES, 1979, p. 210.
52 LESSA, 1982, pp. 48-50.
53 CARDOSO, 1978, p. 103.
impulso nº 29
p g y p
visão cepalina, as condições para o desenvolvimento
da América Latina passavam pela superação da de-
pendência econômica que esses países, considera-
dos periferia, mantinham com os países capitalistas
desenvolvidos. Para isso, seria fundamental dinami-
zar as atividades industriais como um desafio nacio-
nal encampado pelo Estado. Subordinação, depen-
dência e atraso eram as características de um país cuja
dinâmica econômica ainda se encontrava, significa-
tivamente, ancorada nas atividades primário-expor-
tadoras. Com as metas do governo JK, a âncora da
modernidade brasileira passou a sustentar-se na eco-
nomia, com expansão industrial e soberania nacio-
nal, respondendo ao diagnóstico cepalino.
Nesses termos, estava claro para as chamadas
economias periféricas que o almejado desenvolvi-
mento não seria alcançado pelas livres forças de
mercado, e sim pela transformação em dois níveis:
interno e externo. A estrutura interna dinamizada
pela produção agrícola encontrava-se fortemente
concentrada, provocando baixo efeito de integração
com os demais setores produtivos e desemprego es-
trutural (as oportunidades de emprego não acompa-
nhavam a rápida expansão demográfica). Ao lado
desses limites, as relações com o exterior impediam
que os países periféricos se apropriassem dos ganhos
de produtividade, na medida em que a exportação de
produtos primários comprava uma quantidade cada
vez menor de produtos industriais. Em outras pala-
vras, tanto a reforma agrária como a industrializa-
ção, sob planejamento e intervenção estatal, seriam
capazes de sustentar um desenvolvimento com so-
berania nacional.
A superação do atraso, nessa perspectiva, era
vislumbrada pela industrialização e urbanização,
abandonando-se aquelas concepções que buscavam
a construção da nacionalidade na essência rural. No
caso do Brasil, o ideário cepalino foi contemplado
nos programas de governo e nas suas respectivas
ações concretas, particularmente a partir da segunda
metade dos anos 50. O pensamento econômico bra-
sileiro esteve representado nas fileiras cepalinas, com
nomes de relevante expressão, como Celso Furtado,
Maria da Conceição Tavares, Fernando Henrique
Cardoso, Carlos Lessa e A. Barros de Castro.54
54 MANTEGA, 1987, p. 32.
impulso nº 29
NOVOS CENÁRIOS E OS
LIMITES DE UMA NOVA CONDUÇÃO
É inquestionável que a industrialização do pe-
ríodo JK trouxe para a sociedade brasileira o otimis-
mo e a esperança de um futuro que marchava no
compasso da civilização moderna. O movimento de
repensar o Brasil aprimorou ações e intervenções
que recusavam a estabilidade e as orientações da or-
todoxia econômica. Não se apregoava que as vanta-
gens da modernidade seriam alcançadas como re-
compensa aos efeitos sociais e culturais destrutivos,
como um mal necessário à inserção do Brasil numa
nova posição econômica mundial. Pelo contrário,
nesse período, “o calor” das discussões sobre o Bra-
sil moderno podia ser constatado pela diversidade
de propostas e opiniões presentes nos debates inte-
lectuais e políticos, que convergiam com as análises
da Cepal. Elas viabilizavam, por um lado, a luta an-
tiimperalista (comunista) e, por outro, a defesa da
industrialização ancorada no Estado (nacionalista).
A Operação Panamericana, o rompimento
com o FMI e a preocupação com o Nordeste brasi-
leiro foram atitudes políticas que demonstrariam o
quanto o desenvolvimento estivera apoiado num efe-
tivo enfrentamento e controle de obstáculos à reali-
zação das metas delineadas. Se, de um lado, as atitu-
des políticas foram ousadas, de outro lado, as
intervenções econômicas foram instrumentalizadas
sem significativas inovações. Nas palavras de Lessa:
“Não houve neste período, salvo raras exceções, pre-
ocupação com a reformulação instrumental à redefi-
nição do papel do Estado (...). Persistiu e, de certa
forma, acentuou-se o caráter não harmônico e im-
provisado do instrumental de política econômica”.55
Portanto, cabe destacar que a industrialização
e o desenvolvimento foram alcançados a despeito da
estabilização, da ortodoxia e com inadequações ins-
titucionais, que, apesar disso, mudaram radicalmen-
te a estrutura econômica e social do país.56 Os cen-
tros urbanos passaram a exercer forte atração sobre
as populações rurais. A possibilidade de melhorar as
condições de vida era oferecida, a partir de então,
pelas cidades modernas, alterando a distribuição es-
pacial da população. Em 1950, 36% dos brasileiros
55 LESSA, 1982, p. 99.
149
p g y p
viviam nas cidades. Dez anos depois esse percentual
se elevou para 45%, conforme dados do IBGE.
Mesmo expandindo-se desordenadamente e
já sinalizando para a precariedade da sua infra-estru-
tura, as cidades foram se transformando mais uma
vez. Velhos bairros se descaracterizaram e redefini-
ram suas formas e funções. Moradores recém-che-
gados, edifícios e prédios ocuparam o lugar das an-
tigas casas térreas; bairros residenciais cederam es-
paço a centros comerciais e instituições prestadoras
de serviços. Nesse momento, a expansão urbana de-
sencadeou uma série de oportunidades de emprego
que diminuíram os prejuízos sociais da inflação e os
efeitos do comportamento modesto do emprego
industrial. A industrialização, nesse aspecto, veio já
marcada pela ocorrência de dois movimentos
contraditórios de expansão e contração: “a
expansão decorrente da implantação (ou expansão)
dos setores mais complexos, e a contração decor-
rente da modernização que ocorre nos setores de
bens de consumo não-duráveis”.57
Como momento específico da expansão da
sociedade de consumo no Brasil, o consumidor
como sujeito social já se evidencia nesse processo de
maturação dos investimentos econômicos. “Ator
passivo”, o consumidor manifesta desejos e canaliza
recursos para obter bens ou produtos, “transfor-
mando o poder aquisitivo e a exibição de bens ma-
teriais nos valores principais da sociabilidade”.58
Apesar da padronização do consumo atingir apenas
parcelas da população, é significativa a participação
das camadas médias urbanas no “desfrute” dos pro-
dutos modernos (automóvel, TV e geladeira).
As perspectivas de ascensão social podem ser
observadas tanto pelo comportamento dos salários
como pela valorização profissional. Com exceção
do salário mínimo legal, que em dezembro de 1958
era, em termos reais, 52,5% mais elevado do que sua
56
Como peças fundamentais do instrumental utilizado pelo Plano de
Metas podemos identificar um setor público conjugando formas adminis-
trativas flexíveis (empresas estatais e autarquias) com vinculações de fun-
dos financeiros não sujeitas a cortes orçamentários e um setor privado
recebendo fortes estímulos das políticas, por meio de entidades e grupos
executores específicos, como o BNDE (empréstimos a longo prazo e aval a
créditos externos) e a SUMOC (que regulava o acesso a importação e recur-
sos externos). Cf. Ibid., pp. 100-101.
57 CANO, 1993, p. 177.
58 SORJ, 2000, p. 50.
150
base de 1940, caindo para 34,5% em outubro de
1961, o movimento geral dos salários apresentou
um desempenho favorável, não sendo pressionado
para baixo.59 A valorização profissional, promovida
notadamente pelos padrões americanos de direção e
gestão empresarial, estimulava a formação de mão-
de-obra mais especializada. Engenheiros, adminis-
tradores, economistas e publicitários iam sendo for-
mados, atendendo à valorização do mercado e às de-
mandas das principais cidades brasileiras.
Esse foi um importante momento de integra-
ção do mercado nacional brasileiro. Mesmo reco-
nhecendo a posição privilegiada de São Paulo, que
formou um verdadeiro cinturão industrial em torno
da sua capital, com indústrias, estradas de rodagem
(Anchieta e Dutra) e ferrovias, os demais estados
brasileiros também registraram crescimento econô-
mico. Nas palavras de Marly Rodrigues, a
modernização do Brasil desencadeava nesse período
a “modernização dos homens, tornando-os cada
vez mais urbanos. Modernização de seus pensa-
mentos e hábitos, tornando-os consumistas.
Modernização do modo de vida, das cidades, da ar-
quitetura, das artes, da técnica, da ciência”.60
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A modernidade brasileira, ao ser revisitada,
demonstra claramente que sua análise passa pelas
transformações das cidades. Os esforços moderni-
zantes das elites brasileiras estiveram direcionados
aos grandes centros urbanos, como se eles fossem
capazes, de modo geral, de irradiar indistintamente
para a população os efeitos fantásticos das
intervenções políticas e inovações científico-tecno-
lógicas, implementadas para a superação da condi-
ção de país atrasado.
As tentativas históricas de intervenções urba-
nas, materializadas por ações específicas, tentavam
esconder as imagens de deformação da sociedade
brasileira. A partir dos anos 50, a modernização ga-
nhou maior velocidade com a expansão industrial,
desafiando, mais uma vez, as metas dos técnicos em
planejamento urbano. As cidades foram expondo,
59 CANO, 1993, p. 177.
60 RODRIGUES, 1992, p. 31.
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sem controle, a sua “feiúra urbana”. Favelas e bair-
ros de periferia avolumam-se em espaços físicos,
mal estruturados e mal assistidos, cada vez mais dis-
tantes ou excluídos do mercado consumidor que se
formara, desfazendo a crença no sucesso dessa face
modernizadora.
Em outros termos, a superação da concepção
idealizadora da cidade e das intervenções higienistas
e estéticas, bem como a adoção de posturas mais ra-
cionais buscando tematizar a cidade real não foram
suficientes para problematizar a cidade e produzir
ações satisfatórias, até mesmo em razão da comple-
xidade que a sociedade urbano-industrial acabou as-
sumindo. Na verdade, foi-se mais e mais perdendo
o controle, o que, aliás, não se mostrou exclusivida-
de brasileira. Num balanço resumido do percurso
da modernidade brasileira e de suas realizações,
pode-se constatar que a industrialização, na década
de 50, provocou uma intensa movimentação políti-
ca e social que animava o debate sobre o desenvol-
vimento socioeconômico brasileiro, pelo qual o país
parecia haver conquistado sua autonomia. Os anos
posteriores, entretanto, revelaram a fragilidade das
medidas tomadas por força de circunstâncias que,
efetivamente, não romperam com a “inserção com-
pulsória” do Brasil na modernidade. Ao contrário,
permaneceram na mesma rota, reproduzindo as ve-
lhas mazelas: dependência econômica e tecnológica,
exclusão social e inchaço urbano.
A economia brasileira, submetida na época
ao anseio nacional-desenvolvimentista, se afastou
das convicções liberais e dos princípios do laissez-
faire. No lugar do livre jogo do mercado, a burgue-
sia industrial brasileira se viu ao lado de um Estado
que passou a realocar recursos econômicos e fi-
nanceiros para viabilizar uma moderna infra-estru-
tura industrial, capaz de concorrer internacional-
mente. Em que pese o fato de a industrialização
acelerada e a rápida urbanização, empregando aqui
os termos de Mello e Novaes,61 terem sido cunha-
das num clima democrático e de grande eferves-
cência política, não resta dúvida de que o modelo
de desenvolvimento adotado teve continuidade
nas conjunturas posteriores, numa versão sofisti-
61 MELLO & NOVAES, 1998.
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cada e arrojada das políticas e ações do Estado.
Embora a propalada crise do padrão nacional-de-
senvolvimentista de intervenção tenha se feito pre-
sente nas décadas de 70 e 80, foi na de 90 que as
medidas liberalizantes passaram a dar a tônica das
agendas dos governos no Brasil.
A relevância de tais forças socioeconômicas
nas estruturas da sociedade brasileira ganha maior
sentido quando nos deparamos, nos anos 90, com a
economia brasileira abandonando, no campo eco-
nômico, a âncora estatal, com cortes radicais dos
gastos públicos, acompanhados por medidas de de-
sestatização econômica. A conseqüência é uma re-
definição do setor público, que rompe com os pa-
drões históricos do desenvolvimento brasileiro e
tenta recomeçar uma trajetória marcada pela aber-
tura do mercado às importações, motivado pelo im-
pulso globalizador, em que vantagens são obtidas
mediante as diferenças de produtividade e de custos
de produção entre os países. Sob novas cores, o li-
beralismo econômico recoloca o mercado como
um dos grandes baluartes da expansão econômica,
capaz de orientar o intercâmbio mundial de produ-
tos como uma imposição inelutável. Graças a esse
cenário, a sociedade brasileira enfrenta o descom-
passo entre o crescimento econômico e as condi-
ções de vida de significativa parcela da população.
Diante da perversa desigualdade social, a vio-
lência se propaga como instrumento de defesa e so-
brevivência. As cidades, locus privilegiado da vida
moderna, não conseguem cultivar a solidariedade
social. Nesse quadro socioeconômico, é inevitável a
constatação, de um lado, de um
Brasil Moderno, a grande empresa, os pe-
quenos e médios empresários eficientes,
seus trabalhadores e a classe média; de outro
os muito pobres e os miseráveis da agricul-
tura e dos serviços, legais e ilegais. De um la-
do, São Paulo, seu espaço econômico e os
enclaves modernos das regiões atrasadas; de
outro, o resto do Brasil e as manchas de mi-
séria das regiões desenvolvidas.62
62 MELLO, 1992, p. 64.
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