Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
,167,78,d¯(6(6(86
$*(17(61$3(563(&7,9$'$
+,67Ð5,$62&,$/
&tQWLD9LHLUD6RXWR² 0DUFHOR9LDQQD
$QD3DXOD.RUQG|UIHU² 7KLDJR$JXLDUGH0RUDHV
RUJDQL]DGRUHV
ESPAÇOS DE SABER E PODER: INSTITUIÇÕES E SEUS AGENTES NA
PERSPECTIVA DA HISTÓRIA SOCIAL
Crédito fotografia de capa
Walter Só Jobim (Secretário de Obras Públicas entre 26.10.1937 e 27.12.1939) e engenheiros do DAER -
homenagem - Boletim do DAER, n.º 6, ano II, janeiro de 1940.
CÍNTIA VIEIRA SOUTO
MARCELO VIANNA
(Organizadores)
2014
Copyright dos autores (2014)
Editoração: Marcelo Vianna, Ana Paula Korndörfer, Thiago Aguiar de Moraes, Cristiano
Enrique de Brum
Revisão: autores, Sônia Beatriz da Silva Pinto, Marcelo Vianna, Ana Paula Korndörfer, Thiago
Aguiar de Moraes
E77 Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da história social /
Organizadores: Cíntia Vieira Souto et al. -- Porto Alegre: Memorial do Ministério
Público do Estado do Rio Grande do Sul, 2014.
ISBN 978-85-88802-20-9
1. Histografia. 2. História social. 3. Ministério Público - Rio Grande do Sul - História.
I. Souto, Cíntia Vieira. II. Vianna, Marcelo. III. Korndörfer, Ana Paula. IV. Moraes,
Thiago Aguiar de.
CDU 930.2
Catalogação na Publicação:
Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil - CRB 10/1184
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
MESAS
MARISÂNGELA MARTINS
ESCRITORES COMUNISTAS E AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO E DE
CONSAGRAÇÃO LITERÁRIAS EM PORTO ALEGRE (1920-1960)........................................ 26
HERNÁN RAMÍREZ
A PROSOPOGRAFÍA ALÉM DO MÉTODO: USOS NO ESTUDO DO
NEOLIBERALISMO ............................................................................................................................... 34
MARCELO VIANNA
PROMOTOR PÚBLICO COMO PROFISSÃO: REFLEXOS DO PROCESSO DE
INSTITUCIONALIZAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO RS ENTRE OS ANOS 1930
E 1960.......................................................................................................................................................... 48
TATIANE BARTMANN
QUESTÕES TRABALHISTAS NAS EMPRESAS FUNDADORAS DO CINFA (1941-1945)
.................................................................................................................................................................... 109
COMUNICAÇÕES
CARINA MARTINY
UMA TRAJETÓRIA, MUITAS RELAÇÕES: O LÍDER REPUBLICANO JÚLIO PRATES
DE CASTILHOS E SEUS CORRELIGIONÁRIOS ....................................................................... 204
FLAVIO M. HEINZ1
ANA P. KORNDÖRFER2
aninha.korndorfer@gmail.com
chave essencial das evoluções política, econômica e cultural”. Descimon, reconhecendo o peso
da tradição na formação do direito e da história, se interrogava, contudo, sobre o fato de que esta
se tornara uma forma ultrapassada da atividade histórica, pouco influenciada pelas diferentes
correntes da nova história. Fazer uma história de instituições era realizar uma história das normas
e dos personagens que habitavam o Estado.3
Concluindo, Descimon fazia uma observação que parece, hoje, quase um vaticínio: “Via
difícil – o tratamento quantitativo não se aplica facilmente à política – mas promissora na medida
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
em que apenas ela é capaz de realizar um salto epistemológico a estes setores muito tradicionais
das disciplinas históricas e de criar as condições para uma verdadeira história comparativa”
(p.372).
Um programa de pesquisa possível para uma história social das instituições é aquele que
se orienta pelo desvelamento das características e condicionantes sociais dos agentes que operam
nas instituições. Trata-se de pensar esses agentes à luz de suas propriedades recorrentes, de suas
histórias comuns, dos nexos familiares e de formação. O método que muitos historiadores, como
nós, têm utilizado para este tipo de trabalho é o da prosopografia ou das biografias coletivas. Mas
a prosopografia não encerra em si todas as possibilidades de pesquisa em história social de
instituições. A diversidade de situações de pesquisa sobre instituições é imensa, a escala de
investigação, muito variada. Hoje, por exemplo, há jovens pesquisadores trabalhando sobre
associações privadas de caráter político-ideológico, instituições universitárias, instituições
culturais, órgãos públicos, empresas, fundações privadas e governo, provando a força da pesquisa
em história social das instituições.
3 DESCIMON, R. “Institutions” In: BURGUIÈRE, André (éd), Dictionnaire des sciences historiques. Paris: Presses
Universitaires de France, 1986, pp.369-372.
4 Centre National de la Recherche Scientifique, principal agência francesa de fomento à pesquisa.
8
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Uma história social das instituições deveria possibilitar alguns ganhos para a pesquisa
histórica. O primeiro seria orientar a reflexão histórica não para a natureza normativa ou legal das
instituições, o que poderia ser realizado por uma história do direito, por exemplo. O que nos
interessa aqui são as relações sociais que constituem estas instituições. Sai de cena o ímpeto
descritivo e formalista e entram em cena as perguntas “sociais”: quem são, como aí chegaram,
como se definem, enfim, como agem os personagens deste cenário. De certa forma, trata-se de ir
buscar a “carne” da história, os sujeitos (para usar um termo que já teve o seu momento de glória,
mas que caiu num surpreendente desuso) que a fazem.
Um segundo ponto a ser observado diz respeito à necessidade de se buscar a gênese dos
processos institucionais. Aqui é preciso se dizer que, do ponto de vista da perspectiva empregada,
é indiferente saber se estamos diante de uma instituição altamente codificada e estruturada, como
é o caso das instituições públicas de justiça, por exemplo, ou se tratamos de outras organizações,
associações, projetos, departamentos ou coletivos. Não é indiferente quanto às soluções
metodológicas a serem utilizadas, é claro, mas afirmamos que é possível estabelecer a mesma
perspectiva de análise centrada na investigação da gênese do processo, no espírito daquilo que
Bourdieu chamou de “sociologia genética”, em diferentes realidades institucionais ou formais.
9
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
formação dos primeiros comitês, na escolha de seus agentes, no desenho das primeiras agências e
na história de sua atuação, dos desmembramentos, regrupamentos que podem funcionar como
sinalizadores de mudanças de rotas da decisão política e da acomodação de setores. Uma agência
pública é tudo menos um corpo paralisado. Ela carrega uma história densa, práticas sociais e uma
memória institucional capazes de revelar ao historiador disposto a procurar muito mais do que
aparenta representar.
objeto – seja ele uma agência pública, um parlamento, uma faculdade, uma associação, um comitê
ou uma política de Estado – como único. Popularmente falando, comparar ajuda a “desentocar”
o historiador, e sabemos todos como, às vezes, é necessário resgatar os historiadores de suas
“tocas” temáticas.
Por fim, é preciso reconhecer que tal programa colabora para uma dessacralização da
ideia de instituição: com efeito, esta só existe pela presença e ação de certos indivíduos. Mesmo
instituições com histórias densas, que parecem dar sentido e perenidade à sua existência, não são
espaços imutáveis, mas campos onde o movimento interno de luta e acomodação é de baixa
intensidade. Instituições jovens são, normalmente, menos estruturadas e codificadas, o acesso a
elas é mais “fácil”, menos regulado, são permeáveis ao social quase de uma forma visível, nelas o
movimento é de média ou alta intensidade. Um exemplo pode ser encontrado na dissertação de
Marcelo Vianna, que analisou a constituição do Ministério Público do RS. No passado, o MP
precisou estruturar-se, mas o fez aos poucos, adaptando-se a modelos externos, incluindo
procedimentos para escolha de promotores, institucionalizando-se. Nenhuma instituição nasce
pronta, pois ela é, sempre, o equilíbrio entre o desenho institucional que se projeta e um arranjo
10
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
mais ou menos político (mas sempre, em alguma medida, político, entre os agentes que a definem
e a compõem).
11
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
No texto seguinte, A Revista Egatea e a profissão de engenheiro no Rio Grande do Sul: a defesa da
técnica, da experimentação e da ciência, Monia Franciele Wazlawoski da Silva discute a legitimação da
profissão de engenheiro no Rio Grande do Sul a partir da Revista Egatea, periódico oficial da
Escola de Engenharia de Porto Alegre, instituição fundada em 1896. A Revista, criada em 1914,
defendeu o conhecimento técnico e científico como característica da formação de engenheiros na
12
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
instituição de ensino gaúcha e apresentou a engenharia como solução para os problemas do país,
e os engenheiros, como profissionais do progresso.
Em A função do Ministério Público do Rio Grande do Sul, seu acervo e o acesso à informação, Luciana
Baggio Bortolotto e Vanessa Berwanger Sandri apresentam, brevemente, o trabalho realizado na
gestão dos documentos produzidos e recebidos pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul
(MPRS), no cumprimento de suas funções, destacando os Procedimentos Investigatórios –
conjuntos documentais que contextualizam um fato desde sua notícia até seu desfecho –,
armazenados exclusivamente nos arquivos do MPRS, quando não ajuizados. Além disso, o texto
aborda também a Lei de Acesso à Informação (LAI, 2011) e a busca por adequação, no que se
refere à legislação e à estrutura, por parte do Ministério Público estadual.
Em Ações de saúde pública em Santa Maria-RS como um processo de formação de poder, Daiane
Silveira Rossi discute algumas questões referentes a projeto de pesquisa ainda em fase inicial,
buscando compreender em que medida as ações públicas da Intendência de Santa Maria, em fins
13
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
O texto de Bruno Cortês Scherer, Instituições espíritas e suas ações sociais: a Sociedade Espírita
Feminina Estudo e Caridade, Santa Maria – RS, décadas de 1940 e 1950, apresenta as reflexões iniciais
de pesquisa que pretende analisar as ações sociais desenvolvidas pelo movimento espírita na
região central do Rio Grande do Sul, enfocando a atuação da Sociedade Espírita Feminina
Estudo e Caridade em Santa Maria durante as décadas de 1940 e 1950. A partir da análise de
livros de atas e relatórios anuais de atividades da instituição, o autor busca compreender as
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
formas de inserção e difusão dessa perspectiva religiosa na região através de ações nas áreas da
saúde, educação e assistência social num período de afirmação da hegemonia católica no país.
Já em “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”: Os registros paroquiais como fontes de acesso às
relações de poder numa Porto Alegre de Antigo Regime (1772-1822), Denize Terezinha Leal Freitas busca
demonstrar a importâncias dos registros paroquiais – documentos de cunho religioso que trazem
informações sobre batismo, casamento e óbito – como fonte para o estudo das relações sociais e
14
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
de poder em Porto Alegre na passagem do século XVIII para o XIX, possibilitando vislumbrar,
por exemplo, estratégias de mobilidade e ascensão social.
No artigo Uma Trajetória, Muitas Relações: o Líder Republicano Júlio Prates de Castilhos e Seus
Correligionários, Carina Martiny busca compreender o papel central desempenhado por Júlio de
Castilhos e as relações estabelecidas com seus partidários nos primeiros anos da República para
construir uma hegemonia política no Rio Grande do Sul. Para isso, a autora valeu-se de
correspondências dos correligionários do PRR e suas tentativas de obter vantagens pessoais
(econômicas, sociais, políticas) com o líder republicano. Um recurso notável nesta pesquisa foi a
combinação entre análise quantitativa e qualitativa das correspondências para apurar quem eram e
quais os mecanismos utilizados pelos remetentes.
15
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
No texto que segue, intitulado Caso Diários Associados X João Freire, de 1946 – possibilidade de
pesquisa histórica, Daniel Augusto Pereira Marcilio aponta, a partir da análise do caso dos Diários
Associados (de Assis Chateaubriand) contra João Freire (1946-1956), como a utilização de fontes
judiciais pode indicar novas possibilidades de análise da história do jornalismo no Rio Grande do
Sul, levando a outras abordagens.
E por fim, João Batista Santafé Aguiar defende, em Comunicação – atividade permanentemente
em construção, a importância da comunicação com a sociedade como atividade diária necessária de
quaisquer organismos das áreas de museus, arquivos e de gestão de acervos do setor público
como meio para informar e educar os cidadãos. O autor aponta meios para superar dificuldades
identificadas neste sentido, enfocando a experiência do Memorial do Judiciário.
16
OS CONSTRANGIMENTOS ECONÔMICOS DO TRABALHO INTELECTUAL –
AURÉLIO PORTO E AS ANOTAÇÕES DO PROCESSO DOS FARRAPOS
Aurélio Porto
Segundo Ieda Gutfreind (1992), Aurélio Porto teve um papel importante na reversão
ocorrida na historiografia rio-grandense na década de 1920, da ênfase dada às teses platinistas
para o sistemático realce à contribuição lusitana para a formação do Rio Grande do Sul, e de
afirmação da Revolução Farroupilha como movimento brasileiro e não separatista. Para a
historiadora, Aurélio Porto seria o responsável pelo lançamento do “círculo historiográfico
lusitano”.
Assim como para a maioria dos intelectuais da época, é relativamente difícil estabelecer a
profissão/ocupação de Aurélio Porto, pois ele possuía múltiplas atividades. No quadro de
fundadores do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRGS), a profissão
apontada é “jornalista”, entretanto, além das funções de redator e diretor de pequenos jornais no
interior do estado, em cidades como Rosário do Sul, Quaraí, Cachoeira do Sul e Santa Maria,
atuou como professor em algumas dessas localidades. Na política, exerceu a função de
Intendente em Garibaldi e Montenegro. Nas décadas de 1920 e 1930, ocupou posição na
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
burocracia como funcionário do Museu Júlio de Castilhos, sendo, às vezes, cedido para outras
atividades, sem perder o vínculo com o Estado. No período que interessa a este trabalho, seu
sustento dependeu da sua atividade como arquivista no Museu do Estado, portanto, a ocupação
aqui considerada será a de funcionário público.
Filiado ao Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), Aurélio Porto se habilitava a
participar das redes clientelísticas do partido hegemônico no estado até o final da década de 1920,
e assim ocupar postos no funcionalismo público, que, na prática, era espaço reservado para os
republicanos e seus apadrinhados, ficando de fora desse quadro todos os oposicionistas. Os
intelectuais-políticos eram normalmente lotados nos órgãos públicos voltados à cultura, como o
Museu do Estado, o Arquivo Público, a Biblioteca do Estado, a Biblioteca e Arquivo Municipal. 4
Ainda como parte de sua trajetória profissional e política, Porto ocupou a função de redator de A
Federação, o jornal oficial do PRR (Martins, 1978).
A par dessas ocupações profissionais, Aurélio Porto desenvolveu atividades intelectuais
escrevendo livros de poesia, romance e história. Seu primeiro trabalho como ensaísta foi um livro
18
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
sobre a cidade de Cachoeira do Sul, chamado Município de Cachoeira, história e estatística (1910).
Antes disso, havia publicado, pela Livraria do Globo de Porto Alegre, uma peça em verso
denominada O Milagre (1906).
No final dos anos 1920 – contexto da preparação dos intelectuais gaúchos para as
comemorações do centenário da Revolução Farroupilha5 – Emílio Fernandes de Souza Docca6,
enquanto estava no Rio de Janeiro, ofereceu ao Instituto Histórico do Rio Grande do Sul seus
préstimos para copiar O Processo dos Farrapos, no Arquivo Nacional, trabalho que seria realizado
“mediante pequena retribuição pecuniária, quase que só como pagamento do trabalho material
como sejam dois contos de réis por volume ou seis por toda a obra, fielmente datilografada e
anotada”.7 Entretanto, Souza Docca, que era militar, foi promovido e transferido para o Mato
Grosso e não pode concluir o trabalho de transcrição a que se propusera.
O Arquivo Nacional, a partir de 1924, passou a publicar documentos coevos às “gloriosas
datas centenárias”, a começar pelo centenário da Revolução do Equador. Quando se aproximou a
comemoração do centenário farroupilha, aquele instituto nacional decidiu publicar O Processo dos
Farrapos. Para isso, o diretor do Arquivo Nacional, Dr. Alcides Bezerra, buscou um especialista
em história rio-grandense, pois “tornava-se imprescindível o auxílio de um funcionário
perfeitamente conhecedor do seu arquivo, ou de um estudioso da história local”.8 Coube,
5 A primeira reunião de diretoria do Instituto realizada com o fim específico de determinar “atuação que o Instituto
viria a ter na comemoração do centenário farroupilha”, uma vez que o Instituto era “o órgão legítimo da mentalidade
rio-grandense, contando com o apoio moral e material do governo do Estado”, foi realizada com bastante
antecedência em 10 de julho de 1929.
6 Historiador e militar. Um dos fundadores do IHGRGS.
7 Livro de Atas do IHGRGS, 17 de novembro de 1927.
8 PORTO, Aurélio. O Processo. v.1. p. V e VI.
19
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Esteio, onde estou há mais de um mês, fica além de Canoas, e da a ideia de uma
estância com os seus campos e caponetes (sic), e tenho passado aqui magnificamente.
Mas, já estou cansado de nada fazer. Quem como eu trabalha até de mais não se
acomoda muito bem a este far niente. Tenho saudades dos meus livros, dos meus
documentos, das minhas pesquisas e isso me deixa às vezes aflito. Mas, não sei se
continuarei mais o trabalho que estava realizando aí [no Rio de Janeiro] com tanto
carinho.9
A contrariedade de Aurélio Porto era tanto maior, pois já estava o trabalho quase
finalizado quando saiu a decisão do chefe do governo gaúcho de suspender os seus vencimentos.
Por isso, insistia, tendo escrito ao desembargador Florêncio de Abreu, presidente honorário do
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, que morava no Rio de Janeiro e era
concunhado de Getúlio Vargas, para mediar a revogação do despacho do general Flores da
Cunha. O Dr. Florêncio de Abreu lhe garantiu: “congregaria todos os nossos companheiros
empenhados na continuação do trabalho, a fim de, num memorial, mostrar ao general a
necessidade de continuar a obra”. No entanto, até aquele momento, Porto não sabia se algo havia
sido feito, por isso solicitava a Souza Docca: “se tiveres ocasião de falar com o Florencio vê se ele
fez alguma cousa nesse sentido”.12
Essa situação ilustra o grau de dependência da posição dos intelectuais, reconhecidos e
legitimados como tal por seus pares, em relação ao espaço de poder e seus agentes. Expõe os
limites e constrangimentos objetivos de uma posição em relação à outra, através da correlação
desigual das forças. Essa dependência, agudizada nesse caso, entretanto, não permite avaliar que a
lógica que orientava os intelectuais fosse a mesma pela qual os políticos tomavam suas decisões.
Assim, para Porto importava, através do acionamento de sua rede de relações, convencer o
general do valor do trabalho que ele estava realizando, pois, dizia, “atribuo unicamente essa
resolução do interventor a não conhecer o trabalho que estou executando”. Para o historiador, o
20
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
valor do trabalho era tão que evidente que o levava a concluir: “para mim basta só mostrar ao
general realmente o que se tem feito e ele revogará o seu despacho”.13 Por outro lado, essas
afirmações são, ao mesmo tempo, denegações tácitas, pois, se era importante o “empenho” para
mostrar ao general a “conveniência de continuar o trabalho”, fica implícito que Aurélio Porto
sabia que o valor intrínseco da obra não era suficiente para persuadir o general a mudar seu
parecer, sem que houvesse a mobilização de amigos seus, políticos e intelectuais. De um lado, o
reconhecimento da importância do trabalho realizado, e, de outro, o pouco apreço recebido do
interventor apontam para a dificuldade encontrada pelos intelectuais em operar a conversão de
seus trunfos intelectuais legítimos em capital simbólico com peso relativo no espaço das decisões
políticas. Assim, a solução era apelar ao recurso das relações pessoais.
Esses embaraços deixam entrever as estruturas objetivas que ocultam. As mesmas
disposições sociais que permitem que Aurélio Porto admita “me sacrificar pelas cousas do Rio
Grande” e justificam a luta do escritor para “dar aos historiadores futuros elementos com que
possam fazer a história verdadeira e destruir os falsos preconceitos de que ela está cheia”, essas
mesmas disposições vedam-lhe o “direito” de “sacrificar a família”.14 As justificativas enunciadas
por Aurélio Porto ocultam ou obliteram a natureza e os interesses econômicos do trabalho
intelectual. Segundo Bourdieu, tanto mais eficiente é o capital simbólico quanto mais ele
O meio aqui e, para mim, as condições de vida com que ficarei, sem as
vantagens dessa comissão, fazem a gente perder o estímulo. Eu terei de cuidar de
outra vida, pois também, como todo mundo tenho o direito de viver. Estou resolvido a
relegar a história para o segundo plano. (grifos meus).15
com o livro de poesias Farrapíada. O valor da premiação era 2:000$000, que foram divididos entre Aurélio Porto e
Homero Prates.
17 Jonatas da Costa do Rego Monteiro.
18 Em fevereiro de 1936, Aurélio Porto informa Souza Docca que ainda não havia recebido o valor do prêmio.
21
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
todo caso sai mais esse volume e é possível que eu tenha de ir ai [ao Rio] a fim de
ultimá-lo. Estou organizando a obra Terra Farroupilha e só poderei ir depois de ela
pronta. Talvez em princípios do inverno, que desejaria não passar aqui. 25
22
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Vejo pela tua carta que está encaminhado o negócio das Publicações do Itamarati, mas,
infelizmente, se não tiver aí vantagens reais não poderei aceitar o encargo. O ministro
das Relações Exteriores se dirigiu ao Governador pedindo me pusesse à disposição do
Ministério com as vantagens que eu tivera anteriormente e o despacho do Flores, que li,
me manda por a disposição desse ministério, mas sem vantagens de espécie alguma,
inclusive os vencimentos do cargo que exerço. Ora, eu não posso ir para o Rio dessa
forma, como sabes. Não sei o motivo desse ato do Governador. Parece que decaí da
sua simpatia. Como não le o que se escreve, pensa talvez que nada faço aí senão
passear. É um índice dos tempos. Talvez outros que nada produzam tenham vantagens
melhores. 26
Ah! Se eu tivesse essa ideia! Não teria naturalmente perdido o meu tempo,
embranquecendo os meus cabelos a cavar pelos arquivos tanta cousa, que hoje não me
serve para nada. A solução era fácil bastava um pouco de açúcar, transformado em
balas, um horrível Bento Gonçalves a cavalo, de espada e lança e isso era tudo... 29
26 Aurélio Porto a Souza Docca, Esteio, 2 de fevereiro de 1936. Entretanto, em dezembro de 1936, Porto retornou
ao Rio de Janeiro a fim de trabalhar na publicação dos Anais do Itamarati (1937).
27 Idem.
28 Idem.
29 Aurélio a Souza Docca, Esteio, 3 de fevereiro de 1935.
23
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Considerações Finais
Todo este episódio expressa o grau de aprofundamento da dependência nas relações entre
intelectuais e políticos no Rio Grande do Sul, na primeira metade do século XX, e as limitações
da esfera intelectual em relação ao espaço de poder, intensificadas pelas instabilidades
conjunturais. Porém, ele também revela como os intelectuais agiam para contornar aquelas
limitações, através do acionamento de redes de solidariedades intelectuais e políticas. Finalmente,
esta ocorrência põe em relevo as contradições entre o discurso desinteressado dos intelectuais e os
constrangimentos econômicos que envolviam a atividade intelectual.
Referências
ABREU, Alzira Alves de (et. Al.). Dicionário histórico-biográfico brasileiro: pós-1930. Rio de Janeiro:
FGV, 2001.
BOURDIEU, Pierre. O campo intelectual: um mundo à parte. In: Coisas Ditas. São Paulo:
Brasiliense, 2004.
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
______. Campo del poder, campo intelectual y habitus de clase. In: Intelectuales, política y poder.
Buenos Aires: Eudeba, 2006.
______. Razões Práticas sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus Editora, 2008.
LOVE, Joseph. O regionalismo gaúcho e as origens da revolução de 1930. São Paulo: Perspectiva, 1975.
MARTINS, Ari. Escritores do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS/IEL,
1978.
Referências Documentais
24
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
25
ESCRITORES COMUNISTAS E AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO E DE
CONSAGRAÇÃO LITERÁRIAS EM PORTO ALEGRE (1920-1960)
MARISÂNGELA T. A. MARTINS1
1
Doutora em História pela UFRGS. E-mail: marisangelamartins@gmail.com.
de seus homenageados e era reconhecido como legítimo participante do jogo, estabelecendo e/ou
reforçando importantes laços de amizade que poderiam ser úteis em outros espaços sociais.
Mas Bahlis não fazia parte do polo dominante da literatura porto-alegrense. Podemos
cogitar algumas razões para isso: talvez, por não se dedicar aos gêneros predominantes daquele
momento – a prosa e o conto regionalistas; talvez, por não pretender fazer carreira na literatura,
mas na pesquisa histórica, atividade para a qual passou a se dedicar exclusivamente no fim da
década; talvez, ainda, por suas posições políticas alheias aos princípios republicanos dos
frequentadores da Livraria do Globo.
Nos anos 1920, os chamados “homens de letras” publicavam seus escritos principalmente
em revistas – como Máscara, Kosmos, Kodak e Madrugada – e jornais - como A Federação e Correio do
Povo. A atividade editorial, segundo Eliana Dutra (2004, p.4-5), era considerada de risco, devido
(1º) ao Brasil ser um país de poucos leitores, (2º) às oficinas tipográficas sem tecnologia suficiente
para edição de livros, (3º) ao baixo investimento no ramo de edições, (4º) ao alto preço e à
circulação restrita dos livros, (5º) além das publicações serem pouco atraentes e da fraca
publicidade. A Livraria do Globo, criada em 1883, era de propriedade de José Bertaso nos anos
1920 e disputava espaço com pequenas tipografias e editoras em funcionamento na cidade havia
anos (Esperança, Apolo, Müller, Ítalo-Brasileira, Centro, etc.), cujas publicações eram financiadas
27
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
construir um painel da vida intelectual gaúcha desde suas origens até o fim da década de 1970,
deixando clara a intenção de se concentrar nos momentos decisivos da formação literária e nas
obras representativas de cada período. Os literatos da década de 1930 comentados por ela são
Cyro Martins, Pedro Wayne, Aureliano de Figueiredo Pinto e Ivan Pedro de Martins – como
ilustrativos da transformação na narrativa regionalista – Dyonélio Machado e Erico Verissimo –
representando a nova ficção urbana. No fim do livro, Zilberman apresenta um quadro, elaborado
com a colaboração de Maria Eunice Moreira, no qual são destacados, para a década de 1930,
autores como Athos Damasceno Ferreira, Cyro Martins, Darcy Azambuja, De Souza Júnior,
Dyonélio Machado, Erico Verissimo, Mário Quintana, Paulo Correa Lopes, Othelo Rosa, Pedro
Wayne, Reynaldo Moura, Telmo Vergara, Theodomiro Tostes e Vianna Moog, contistas,
romancistas e poetas ligados à Livraria do Globo.
Na mesma década, os membros da Academia Rio-Grandense de Letras produziram
ensaios de caráter historiográfico, contos e poesias, mas – com exceção de Othelo Rosa e de
Manoelito de Ornellas, editados pela casa de José Bertaso e seus assíduos frequentadores – os
demais não fazem parte desse livro sintetizador da produção literária no Rio Grande do Sul.
Nomes como João Maya, João Cândido de Freitas, Jorge Bahlis, Bento Fernandes, Dario de
28
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Bittencourt, De Paranhos Antunes e Sante Uberto Barbieri são praticamente desconhecidos por
manuais contemporâneos.
Pelo menos nos últimos dez anos, os membros da Academia Rio-Grandense de Letras e
seus textos não integraram a relação de leituras obrigatórias do mais disputado concurso
vestibular no Rio Grande do Sul. Do universo de escritores atuantes no estado entre os anos
1920 e 1960, é possível observar que a Universidade Federal do Rio Grande do Sul cobrou, em
2011, 2010 e 2009, a leitura de Porteira Fechada, de Cyro Martins; em 2007, do livro Os Ratos, de
Dyonélio Machado, O Arquipélago, de Erico Verissimo e Camilo Mortágua, de Josué Guimarães;
nos anos de 2004, 2003 e 2002, a leitura de O Continente, de Verissimo. O resultado da
orquestração liderada pelos empreendimentos Globo foi/segue sendo reafirmada pelas
posteriores instâncias de consagração literária.
A confluência entre as firmas da família Bertaso parece ter contribuído para limitar a
procura do público leitor, na medida em que a Revista do Globo promovia as obras à venda na
Livraria, principalmente as editadas pela casa. A Globo fechava o mercado literário em torno de
si, impondo critérios de classificação e de legitimação elaborados a partir de demandas
propriamente artísticas e literárias, mas também políticas e econômicas. A mobilização
revolucionária dos intelectuais ligados à Livraria do Globo a favor de Vargas no movimento de
29
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Dyonélio Machado.
Jorge Amado seguiu narrando que a carta do amigo gaúcho despertara seu interesse pelo
livro e pelo autor: “comunista e preso, credenciais maiores”. Ele encontrou os originais nas
dependências do Boletim de Ariel, leu-os e vibrou de entusiasmo, resolvendo visitar o primo para
interceder pelo candidato. Amado contou que Gilberto sequer havia lido os originais dos
concorrentes, alegando não ter tempo. Estava decidido a votar com Gastão Cruls, em cujo gosto
e parecer confiava. Jorge, então, falou-lhe que Erico, apesar de estar na disputa, havia
recomendado o romance de “um desconhecido”, “romanção, novidade em matéria de ficção
brasileira”, acabando por interessar o jurado, que pediu para encontrar o manuscrito entre os
originais para que os lesse. E prometeu: “vou ler, se achar que Erico e você têm razão até posso
votar nele”. No dia seguinte, Gilberto telefonou para Jorge: “livro extraordinário, muito mal
escrito, mas que romance! Voto nele”. O prêmio acabou sendo dividido entre os quatro livros.
A premiação de Os Ratos é demonstrativa de outro ângulo da relação entre os escritores e
as classes dirigentes brasileiras, distinto dos abordados por estudos clássicos, como os de Sergio
Miceli (2001) e de Daniel Pécaut (1990). Enquanto elas mobilizavam recursos de ordem jurídica
para classificar como criminosos indivíduos e grupos que iam de encontro a seus interesses –
provando a existência de um inimigo objetivo – e para justificar a perseguição e a repressão
30
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
desencadeadas sobre eles, os escritores sujeitados a essa classificação lançavam mão dos meios de
que dispunham para resistir à dominação: o poder de criação, o poder da consagração, enfim, o
“poder do escritor”. (Amado, 1992, p.197).
A partir de 1939, em pleno Estado Novo, ao invés de serem banidos, os escritores
comunistas ganharam mais espaço e visibilidade na Revista do Globo e na Editora Globo. Como
isso foi possível? Nesse ano, um jornalista e militante do PCB chamado Justino Martins assumiu
a direção da Revista do Globo. Reconhecido por seu talento e sua competência em gerar lucros para
a firma (Bones; Laitano, 2006, p.739-740), Justino tinha a proteção de José Bertaso e conseguiu
promover uma série de transformações no quinzenário. Para além das modificações de ordem
técnica, Justino publicou textos abertamente favoráveis à União Soviética – em luta contra o Eixo
na Segunda Guerra – e ao comunismo (Martins, 2010); introduziu reportagens denunciando
problemas sociais e temas ligados às classes populares em diversas matérias, chegando, inclusive,
a citar Karl Marx (Martins, 2013); além de abrir espaço para fotógrafos, tradutores, contistas,
gravuristas, romancistas e poetas comunistas. Justino Martins desempenhou um papel estratégico
extremamente importante.
Amparados por ele, os escritores comunistas ganharam ampla visibilidade na Revista do
Globo e conseguiram publicar seus escritos pela Editora Globo. Dyonélio Machado voltou a ser
31
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
eleitos por sua legenda. Eram os primeiros efeitos da Guerra Fria e da opção do conservador
governo de Eurico Dutra em manter-se alinhado aos Estados Unidos. Para os escritores, o ano
de 1947 teve ainda um agravante: a transferência de Justino para Paris, como correspondente da
Revista do Globo.
A saída de Justino combinada com o contexto internacional da Guerra Fria, a retomada
da perseguição aos comunistas pelo governo, a intensificação do discurso anticomunista, além da
radicalização da linha do PCB e da crise do livro, no fim da década de 1940, configurou um
momento difícil para os comunistas produtores de literatura. As portas da Editora, da Revista do
Globo e também da recentemente criada revista Província de São Pedro, sob responsabilidade de
Moysés Vellinho, fecharam-se, bem como os cadernos literários dos jornais Correio do Povo e do
Diário de Notícias, outros concorridos espaços de publicação na época.
Sem espaço nos veículos oficiais e num cenário político desfavorável, os militantes do
PCB conseguiram colocar em funcionamento periódicos e editoras do Partido. Em Porto Alegre,
a revista Horizonte, a editora Cadernos da Horizonte, a Agência Farroupilha e a Livraria Piratini
constituíram-se em importantes canais de difusão da literatura produzida pelos escritores que
militavam ou eram próximos ao Partido Comunista da década de 1950. A despeito de sua
condição ilegal e das proibições, o PCB construiu espaços institucionais seguros para seus
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
32
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
interior do universo literário, utilizando recursos de distintas naturezas e tendo, por vezes,
motivações e finalidades alheias ao mundo da literatura.
Referências
AMADO, Jorge. Navegação de Cabotagem. Apontamentos para um livro de memórias que jamais
escreverei. São Paulo: Círculo do Livro, 1992.
DUTRA, Eliana de Freitas. Companhia Editora Nacional: tradição editorial e cultura nacional. I
Seminário Brasileiro sobre Livro e História Editorial, Rio de Janeiro, 8 a 11 de nov. 2004. Disponível
em: http://www.livroehistoriaeditorial.pro.br/pdf/elianadutra.pdf. Acesso em: 16 nov. 2009.
BONES, Elmar; LAITANO, Cláudia. Carlos Reverbel. Textos escolhidos. Porto Alegre: JÁ Editores,
2006.
______. À esquerda de seu tempo. Escritores e o Partido Comunista do Brasil (Porto Alegre/1927-1957).
2012. Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2012.
______. O comunismo de Justino Martins e a evidência das classes populares da Revista do Globo
MICELI, Sergio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
PÉCAUT, Daniel. Intelectuais e a política no Brasil. Entre o povo e a nação. São Paulo: Editora Ática,
1990.
ZILBERMAN, Regina. A Literatura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980.
33
A PROSOPOGRAFÍA ALÉM DO MÉTODO: USOS NO ESTUDO DO
NEOLIBERALISMO
HERNÁN RAMÍREZ1
temáticas de pesquisa, neste caso o neoliberalismo, e atender aos objetivos que me traço, que têm
sido um pouco mais ambiciosos com o decorrer dos anos. Por isso, as contínuas referências a
esse percurso, que, como ocorre com a maioria, tem doses de meticuloso planejamento e outras
do mais puro acaso, sendo que não vejo esse apenas como um infortunado desvio, mas como
uma janela para que o ar fresco penetre e nos renove.
O caminho até chegar à temática do neoliberalismo foi longo, mas a prosopografia como
método sempre esteve presente. Minha primeira experiência individual de pesquisa teve como
objeto a história da Universidad de Córdoba, em particular o período que vai desde 1613, quando
foi fundada, até 1853, momento em que era nacionalizada. Embora extenso, pouco mais de dois
mil alunos assistiram a essa casa de estudos durante tal época, sobre os quais conservava alguns
registros, que foram tabulados para poder traçar um perfil da instituição e que ajudaram a
desvendar o modo como ela compunha a engrenagem colonial.
Paralelamente, integrava a equipe coordenada por Guillermo Beato, que procurava
entender o processo de formação da burguesia cordobesa, assim como de outro grupo chefiado
por Eduardo Bajo, que se ocupava de estudar o perfil exportador do empresariado local,
particularmente intrigante devido ao seu caráter mediterrâneo, nos quais também realizamos
estudos semelhantes ao anterior.
35
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Ampliação do universo de análise que foi vital para compreender o enraizamento dos preceitos
neoliberais.
Efetivamente, as três instituições que pesquisava tiveram grande protagonismo,
envolvendo-se na deslegitimação dos governos democraticamente eleitos, nos golpes de Estado
que se sucederam no Brasil e na Argentina, assim como deram embasamento ideológico a tais
regimes, inclusive aportando quadros para suas administrações, que aplicaram medidas de caráter
neoliberal na região. Dessa maneira, podemos qualificar esta como a sua primeira etapa de
implantação, embora não tão nítida como a segunda ocorrida nas décadas de 1980 e 1990, devido
a que ainda tinham que vencer resistências internas, seja dentro do próprio governo ou em
setores mais vastos, o que nos diz um pouco do grau de coesão desses regimes, muitas vezes
sobredimensionado, com clivagens que devem ser analisadas de forma mais profunda.
Novamente, a prosopografía foi um dos métodos que me auxiliou melhor, permitindo
sistematizar uma grande massa documental sem perder seus aspectos qualitativos, fundamental
num estudo de natureza eidética. Num rápido balanço, podemos dizer que as narrativas
biográficas tendem a centrar suas explicações no indivíduo uma vez que os grandes números
omitem o sujeito, que se torna um anônimo.
Assim, devido à sua natureza centáurica, com genes na biografia e na estatística, o método
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
prosopográfico pode converter-se num elo que conecte esses dois universos, muitas vezes
colocados como antagônicos, mas que se empregados em doses salutares tornam nossas
explicações mais potentes.
De todo modo, apesar do grande investimento realizado, logo ficou claro que a tarefa de
desvendar o nosso objeto apenas tinha começado. Os economistas, cientistas políticos e
sociólogos, majoritariamente, abordaram com profusão o neoliberalismo. No entanto, fieis às
suas origens, debruçaram-se sobre os momentos de auge, mais contemporâneos, desconhecendo,
na maioria das vezes, as suas origens, que ainda permanecem na penumbra. Todavia, esse
conhecimento é vital para compreender seu desenvolvimento posterior, especialmente no que se
refere às nuances locais.
Prosseguir era imperativo, retrocedendo no tempo, mas também tínhamos que ver o
processo de uma forma mais complexa, não só como uma mera imposição externa e conjuntural.
De tal maneira, um dos pontos centrais do estudo passou a ser aquele que pretendia determinar
quais ideias foram importadas e quais outras se deveram a aportes locais, inclusive os que
posteriormente foram incorporados ao processo geral de desenvolvimento do neoliberalismo, o
que aumentava a densidade do assunto. Já não lidávamos apenas com casos locais, também
devíamos compreender dialeticamente o processo geral no qual eles se inseriam. Ou seja,
36
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
interpretá-lo como um processo unitário, mas com enraizamentos pontuais que não se lhe
correspondiam, necessariamente, vis-à-vis (Ramírez, 2013, entre outros).
Por exemplo, a convertibilidade aplicada na Argentina não se condizia com a ideia do
Consenso de Washington, que estabelecia como norma um tipo de câmbio flutuante. De
qualquer modo não era uma ideia totalmente extemporânea, embora ainda seja difícil estabelecer
o curso que seguiu2 até se converter na chave das políticas públicas da Argentina durante os anos
1990 até a sua fenestração na crise de 2001, que a teve como pivô.
Dieter Plehwe (2011) demonstra como a medida era bastante conhecida no mundo das
instituições econômicas internacionais a partir do caso de Hong Kong, que o círculo argentino
conhecia perfeitamente devido a Joaquín Alberto Cottani, pesquisador da FM e representante no
Banco Mundial, onde travou contato com a ideia, que tinha assumido o cargo de subsecretario de
Planejamento Econômico, um dos mais importantes na equipe econômica. A relação próxima
com o Ministro fica demonstrada não apenas na confiança depositada para desempenhar posto
tão decisivo, mas também no fato de realizarem algumas publicações conjuntas, casualmente
sobre o tema da convertibilidade (Cavallo; Cottani, 1997).
No entanto, sabemos que Domingo Cavallo é uma personalidade de opiniões firmes e a
ideia não teria sido aplicada sem ter como substrato um campo fértil e solidificado previamente.
2Antonio Camou (1997, p. 235-240) e Alexander Roig (2007) realizaram alguns dos rastreamentos mais minuciosos
das origens da convertibilidade.
37
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
tipo de câmbio flutuante tenha sido uma medida tão consensual, desmitificando desse modo a
solidez da proposta de John Williamson, formulada numa conferência de 1990 e publicada um
ano depois, mas que o próprio admitiria posteriormente ser mais um mito do que uma
constatação empírica de fato (1991).
Como se depreende e é costumeiro, à medida que avançávamos por respostas
terminávamos por achar mais questões novas do que soluções. A primeira delas era que o
neoliberalismo parecia ser um construto ex post, criado a partir de diversas correntes de
pensamento, algumas vezes convergentes, mas não sempre, cujas raízes estavam espalhadas por,
pelo menos, dois continentes e várias nações, cujo tramado recém começamos a compreender,
fenômeno que tinha origem tanto na particular forma em que se dá a difusão de ideias quanto na
alta mobilidade que seus cultores tiveram.
Depreende-se disso seu caráter transnacional, cuja compreensão escapa à ótica de um
indivíduo isolado e me atrevo dizer até de um grupo reduzido de pesquisadores. Por tal motivo,
seu estudo mais completo se dará na base de uma ampla rede constituída desse modo, tal como
nos indicam alguns trabalhos empreendidos desde essa perspectiva, como as coletâneas
organizadas por Dieter Plehwe, Bernhard Walpen e Gisela Neunhöffer (2006), e Philip Mirowski
e Dieter Plehwe (2009), por exemplo.
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
Os estudos transnacionais resultam muito mais propícios para uma primeira resposta por
serem mais flexíveis do que os estudos comparativos em sentido estrito, que engessam demasiado
as possibilidades devido à prescrição de formas mais rigorosas, o que lhe permite avançar sobre
um universo extenso com menos custos. De todos os modos, não desdenhamos totalmente esse
outro método, já que possui algumas vantagens significativas sobre aquele, que tem como um dos
seus maiores problemas o de encontrar mais semelhanças do que diferenças3.
Tampouco devemos ver essas duas perspectivas como contraditórias, que na maioria dos
casos são compatíveis (Haupt; Kocka, 2009 e Weinstein, 2013). O método comparativo exige que
os objetos possam ser comparados de forma sistemática. Para tal, devem de ter certo grau de
compatibilidade. Ou seja, serem objetos mais ou menos parecidos e estarem inseridos em
estruturas similares, o que nos afasta das comparações enormes às quais era tão avesso Charles
Tilly (1991). Já a perspectiva transnacional se ocupa de seguir pessoas, ideias, instituições por trás
das fronteiras, sem se importar demasiado com seus contextos, razão pela qual uma abordagem
conjunta parece ser uma das soluções mais aconselháveis.
3 Num trabalho recente tenho aprofundado sobre essas duas perspectivas, baseado principalmente nos aportes de
Linda Basch, Nina Glick-Schiller e Cristina Szanton-Blanc (1993), Marilyn Strathern (2004) e Barbara Weinstein
(2013) para o viés transnacional, assim como os de Charles Tilly (1991), Micol Seigel (2005) e Heinz-Gerhard Haupt
e Jürgen Kocka (2009) no que diz ao método comparativo. Nesse último caso, contei também com as contribuições
de uma coletânea local, organizada por Flávio Heinz (2009), particularmente com o capítulo de Rosa Congost (2009).
38
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
O desafio consiste em combinar uma perspectiva que enfoque os casos nacionais e que
seja mais ampla, pairando sobre as fronteiras dos países, sob o risco de só vermos a árvore ou
sermos demasiado panorâmicos se nos restringimos apenas a alguma delas.
De tal maneira, consolidada a pesquisa no Brasil e na Argentina, mas ainda insuficiente
para entender o processo em toda sua complexidade, incorporei o Chile para um olhar
comparatista, por ser esse o país onde a ideologia neoliberal funcionou de forma mais prístina e
profunda, obtendo relativo sucesso e, por isso, foi indicado como modelo.
Embora a nação transandina tivesse estruturas um pouco diferentes dos seus vizinhos, em
particular uma indústria menor, girando sua economia em torno da atividade extrativista, a
comparação não apenas era possível, mas aconselhável. Também, apesar de ser uma das
democracias mais sólidas do continente, o que o distinguia de outras nações vizinhas, seu sistema
político registrou uma fratura similar à de seus coirmãos do Cone Sul, período em que as
posições neoliberais se tornaram políticas públicas, com tal força que partidos que se diziam
contrários capitularam diante delas, adotando-as como próprias há pouco de produzida a
transição da renascida democracia.
Igualmente, constatamos que a potência desse ideário excedeu o econômico e se
manifestou de forma ampla, plasmada inclusive juridicamente na Constituição chilena de 1980,
39
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
em determinadas ocasiões estão mais para recrutas do Exército Brancaleone do que enviados
divinos, como sugere Malabre no título do seu livro (1994).
Dessa forma, a abordagem não pode ser outra que a transdisciplinar, não apenas por
modismo, mas por ser a mais adequada. De qualquer maneira, ela tem que estar longe daquela
que tem sido qualificada como banal (Strathern, 2004 e 2006; Weingart; Stehr, 2000), bastante
praticada nas ciências sociais, já que a familiarização com determinados conceitos de outras
ciências nos dá a falsa sensação de estar contemplando tal perspectiva, quando na realidade o que
fazemos é uma aproximação superficial.
Longe dessa prática corriqueira está a transdisciplinariedade acadêmica4, que não se refere
a um método ou uma teoria em particular, senão a um princípio de pesquisa e concepção da
ciência, pelo qual nos vemos obrigados, necessariamente, a realizar uma imersão nos enfoques de
outras disciplinas, o que aumenta a capacidade de reformular nossas perspectivas, objetivo que
unicamente se alcança mediante a produção de um texto comum, no qual se fundem os
componentes disciplinares (Mittelstrass, 2011), integrando ao conhecimento tudo aquilo que não
pode ser explicado pelo domínio de apenas um campo (Bourguignon, 2001).
Desse ponto de vista, podemos ver que a ideia do pensamento único foi um mero
espantalho, a realidade era muito mais complexa. A gênese do neoliberalismo é polimorfa e
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
policentrada, resultado de uma intrincada trama, e desse modo tem que ser abordada. Mais do
que um centro irradiador, o que temos é uma ampla rede, constituída por constelações que
giravam em torno de microcentros que se interconectavam, estabelecendo coalizões entre eles,
muitas bastante estáveis5.
Como se pode apreciar, a tarefa de nos aproximar desse universo é monumental.
Devemos conhecer parte dos percursos de milhares de indivíduos e empresas – a maioria
multinacionais –, centenas de instituições – particularmente corporações, think tanks,
universidades, fundações e fóruns de notáveis –, dezenas de governos e algum punhado de
instituições multilaterais – principalmente o Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e
Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento, que depende desse.
Por tal motivo, o método prosopográfico parecia ser o mais adequado para conjugar
todas essas abordagens, pois ele é transversal a várias ciências e pode ser usado tanto em estudos
transnacionais quanto comparativos. De qualquer modo, ainda assim, é insuficiente para poder
dar conta do fenômeno em toda a sua plenitude, particularmente pelos efeitos redutores que às
vezes produz, em especial referente à compreensão do papel desempenhado por certas
4 Nossas apreciações sobre transdiciplinariedade baseiam-se, sobretudo, nas leituras de Hilton Japiassu (1976),
Basarab Nicolescu (1997), Peter Weingart e Nico Stehr (2000), e Edgar Morin (2001).
5 Sobre os conceito de constelações hegemônicas e coalizões discursivas, ver Javier Balsa (2007).
40
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
41
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
embandeiraram sob aquela doutrina fizeram apropriações desse termo ou da palavra liberdade,
algumas vezes inscritas até nas suas siglas. De todas as formas, ao analisar os estatutos da
Sociedade Mont Pèlerin, se depreende claramente que são duas ideologias distintas. Inclusive, em
momento algum esses dispositivos tocam na liberdade política, a que se pressupõe consequência
natural da liberdade econômica.
Por tal motivo, não existiu contradição alguma no apoio que os governos ditatoriais
receberam por parte dessas instituições e personalidades, inclusive porque supostamente tais
regimes foram estabelecidos para resguardar a democracia, supostamente ameaçada pelo avanço
do comunismo, assim como também se entende melhor a estreita aliança que fizeram com outros
governos conservadores, particularmente com os de Ronald Reagan e Margareth Thatcher, que
tolheram liberdades individuais em nome da liberdade econômica, por exemplo.
Novamente isto conduz para outra problemática, já que o fato de empregar meios às
vezes escusos para impor tal ideologia coloca a descoberto o mito da competência técnica dessas
instituições. Evidentemente que são possuidoras de um elevado grau de expertise, mas as
evidências empíricas coletadas através de tabelas e outras fontes mostram algo um pouco
diferente. Elas recrutavam tecnocratas de certo prestígio, mas essas credenciais às vezes não eram
suficientes para elevá-los aos degraus máximos do governo, preferindo outras na hora de ocupar
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
esses cargos, como as de origem social, por exemplo. Tal fenômeno se observa claramente na
FIEL, circunstância que já tinha sido marcada por Mariana Heredia (2004) e também é salientada
de forma semelhante por Medvetz (2006) para os think tanks norte-americanos.
Essa aparente contradição nos leva a pensar nas formas em que a classe dominante delega
o poder em outros atores, que são os que realizam o exercício cotidiano do poder e sobre os
quais tem que realizar um controle indireto.
Pesquisar sobre essa temática é de vital importância devido ao fato de que o domínio
ideológico pode ser muito mais potente do que a força física, mas ele se exerce de maneira sutil e
é difícil de mensurar. Em tal sentido, observei como as instituições moldavam e enquadravam,
literalmente, as pessoas. Visível no caso da FIEL quando foram incorporados um grupo de
economistas provenientes do Instituto Di Tella. Entretanto, isso nem sempre era possível,
produzindo-se tensões em alguns momentos, como a que aconteceria com a maioria desses
indivíduos, que abandonaria a instituição após um curto período, talvez por não suportar a
pressão que lhes era imposta, manifesta de forma descarnada no amargo relato de Juan Carlos de
Pablo (1995).
Por outro lado, essas incorporações resultavam-me estranhas, principalmente porque a
instituição de origem estava fortemente associada a ideias heterodoxas e à matriz substitutiva, o
42
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
que não se condizia com a entidade de “acolhida”. Uma explicação plausível a encontramos na
interpretação que Ricardo Bielchovsky (1995) realiza acerca do desenvolvimentismo brasileiro, na
qual demonstra como a sua vertente mais conservadora se afastou desse núcleo à medida que
esse se radicalizava, aliando-se a posições ortodoxas, para conservar o status quo, que acreditavam
ameaçado.
Esse comportamento ziguezagueante parece que não foi só uma anomalia argentina e
também foi observado nos decursos seguidos por algumas personalidades brasileiras, em
particular os casos de Roberto Campos e José Gerdau Johannpeter, entre os mais emblemáticos.
Inclusive, esse último experimentou outro giro mais recentemente, sem poder estabelecer
claramente se eles se deram por convicção ou por oportunismo.
Igualmente, analisando a trajetória desses indivíduos, notamos como a suposta
neutralidade da tecnocracia lhes permitia fazer reconversões rápidas de um governo a outro.
Nesse sentido, a figura de Domingo Cavallo se revela como o caso paradigmático, quem
registrara a proeza de servir a regimes autoritários e democráticos, sendo que nestes serviu a um
de orientação peronista e a outro radical, na acepção argentina do termo, que em primeira
instância aparecem como antagônicas. Tal comportamento é mais desconcertante ainda devido às
duras penalidades que a cultura política do país impunha para quem ousasse tamanho sacrilégio.
43
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Faz um tempo que desterramos os dogmas, cuja pureza nos conduzia a prisões
cognoscitivas, como Hirschman e Santos (1970) advertiram claramente, mas, tal constatação não
nos deve induzir ao ecletismo absoluto. Autores mais radicais, como Martyn Hammerseley
(1995), por exemplo, rejeitam toda possibilidade de isolar um conjunto claro de suposições
paradigmáticas e alegam que só existe um continuum epistemológico, no qual cada pesquisa
particular invoca seus próprios princípios epistêmicos. Não obstante, alguns limites
demarcatórios devem se impor, caso contrário, reduziríamos à sua mínima expressão a força
interpretativa das teorias, sendo válida aqui também a advertência que René Passet (2001) nos
formulara a respeito de sermos responsáveis com o uso da transdisciplinariedade.
A prosopografia, vista dessa forma, é uma ferramenta poderosa, por ser híbrida e muito maleável,
não apenas para ser adaptada aos nossos objetos, senão também porque ela pode crescer, como
uma obra em módulos, e se aprofundar, incorporando variáveis não previstas, assim como teria a
capacidade para se constituir em um elo, em torno do qual se articulem outros métodos, quanti e
qualitativos, bem como permite a colaboração, intra e extra fronteiras, sejam essas nacionais ou
disciplinares.
Referências
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
BALSA, Javier. Hegemonías, sujetos y revolución pasiva. Tareas, nº 125. CELA, Centro de
Estudios Latinoamericanos Justo Arosemena, Panamá, 2007.
CAMOU, Antonio. De cómo las ideas tienen consecuencias. Analistas simbólicos y usinas de pensamiento en la
elaboración de la política económica argentina (1983-1985). Tese de doutorado. México: FLACSO,
agosto de 1997.
CAVALLO, Domingo F. Los efectos estangflacionarios de las políticas monetarias de estabilización. Tese de
doutorado. New York: Universidade de Harvard, 1977.
______; COTTANI, Joaquin A. Argentina's Convertibility Plan and the IMF, AEA Papers and
Proceedings, Vol. 87, nº 2, maio de 1997, pp. 17-22.
44
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
pesquisa. In: HEINZ, Flávio (Org.). Experiências nacionais, temas transversais: subsídios para uma
história comparada da América Latina. São Leopoldo: Oikos, 2009, pp. 44-55.
DREIFUSS, René Armand. 1964: A conquista do Estado. Ação Política, Poder e Golpe de Classe.
Petrópolis: Editora Vozes, 1981.
EVANS, Peter B. The State as Problem and Solution: Predation, Embedded Autonomy, and
Structural Change. In: HAGGAR, Stephan e KAUFMAN, Robert R. (eds.), The Politics of Economic
Adjustment. Princeton: Princeton University Press, 1992, pp. 139-181.
HAMMERSELEY, Martyn. The politics of social research. Londres: Sage Publications, 1995.
HAUPT, Heinz-Gerhard e KOCKA, Jürgen. Comparative and Transtational History. Central european
approaches and new perspectives. Nova Iorque e Oxford: Berghan Books, 2009.
HEINZ, Flávio (org.). Experiências nacionais, temas transversais: subsídios para uma história comparada da
América Latina. São Leopoldo: Oikos, 2009.
______. Por outra história das elites. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
HUNTINGTON, Samuel P. The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order. New York:
Simon & Schuster, 1996.
______. The Clash of Civilizations? Foreign Affairs, vol. 72, summer 1993, pp. 22-49.
KAHLER, Miles. Orthodoxy and its Alternatives: Explaining Approaches to Stabilization and
Adjustment. IN: NELSON, Joan (ed.). Economic Crisis and Policy Choice. Princeton: Princeton
University Press, 1989.
MALABRE, Alfred L. Lost prophets: An insider’s history of the modern economists. Boston: Harvard
Business School Press, 1994.
MEDVETZ, Thomas. Hybrid intellectuals: toward a social praxeology of U.S. think tank experts, 2006.
MIROWSKI, Philip e PLEHWE, Dieter (eds.). The Road from Mont Pèlerin. The Making of the
Neoliberal Thought Collective. Cambridge/London: Harvard University Press, 2009.
45
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
PABLO, Juan Carlos de. Apuntes a mitad de camino (economía sin corbata). Buenos Aires: Ediciones
Macchi, 1995.
PLEHWE, Dieter. Transnational discourse coalitions and monetary policy: Argentina and the
limited powers of the “Washington Consensus”, Critical Policy Studies, vol. 5, nº 2, 2011, pp. 127-
148.
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
SEIGEL, Micol. Beyond Compare: Comparative Method after the Transnational Turn. Radical
History Review, nº 91, winter, 2005, pp. 62-90.
______. A community of critics? Thoughts on new knowledge. Journal of the Royal Anthropological
Institute, vol. 12, nº 1, 2006, pp. 191-209.
TILLY, Charles. Grandes estructuras, procesos amplios, comparaciones enormes. Madrid: Alianza Editorial,
1991.
46
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Press, 2000.
WILLIAMSON, John. Policy Reform in Latin America in the 1980s. Comunicação apresentada
na conferencia Structural Adjustement: Retrospect and Prospect, American University, Washington DC,
março de 1991.
47
PROMOTOR PÚBLICO COMO PROFISSÃO: REFLEXOS DO PROCESSO DE
INSTITUCIONALIZAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO RS ENTRE OS ANOS
1930 E 1960
MARCELO VIANNA1
1 Doutorando em História na PUCRS. Integrante do Laboratório de História Comparada do Cone Sul (LabConeSul).
E-mail: maverian@brturbo.com.br
2 Disponível em <http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1194> acesso em 10.12.2012.
3 O projeto de emenda apresentado pelo deputado federal Lourival Mendes (PT do B - MA) intencionava impedir
que outros órgãos, especialmente o MP, realizassem investigações desse tipo. Os agentes do MP, através de suas
associações de classe, articularam a derrota do projeto, em especial com apoio da mídia (através da bandeira
“anticorrupção”) por ocasião das manifestações de junho. Em 25.06.2013, o projeto foi arquivado (430 votos
contrários, nove a favor). O projeto pode ser consultado em <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/
prop_mostrarintegra;jsessionid=A83AC320DFACAF72F560A131759DDA0B.node1?codteor=969478&filename=P
EC+37/2011> acesso em 12.05.2013.
4 Para Rogério Arantes (2002), o ponto de inflexão foram as articulações dos membros do MP em torno do novo
Código de Processo Civil em 1973, que resultaram na possibilidade de intervirem em processos cíveis em nome do
interesse público quando constatado. A partir daí, novas articulações políticas e novas conquistas institucionais,
como a Lei Orgânica do MP de 1981 e as prerrogativas da Constituição Federal de 1988.
5 Podem os agentes sociais, pelos mais diversos interesses, buscar a institucionalização de seus espaços de atuação
social – isso pode compreender a formação de órgãos, institutos, associações, sociedades... que são acompanhados de
uma série de arcabouços legais que organizam esse espaço e ditam as regras de participação, funcionamento, atuação.
Muitos se gestam no Estado e surgem por demandas organizacionais do Estado (TILLY, 2003), dando origem a
burocracias (WEBER, 1999) mas não necessariamente envolvendo os agentes que irão atuar nos órgãos criados –
mas podem esses burocratas (e outros interessados) vislumbrar aí possibilidade de reforçar suas posições, seus
saberes e suas atuações. Aqui os agentes podem reforçar o espaço social que atuam com apoio ou em oposição ao
Estado (BOURDIEU, 2001).
6 Para Norbert Elias, profissões podem ser entendidas como “funções sociais especializadas que as pessoas
desempenham em resposta a necessidades especializadas de outras; são, ao menos em sua forma mais desenvolvida,
conjuntos especializados de relações humanas” (2001). O movimento de reconhecimento de profissões reforça a
especialização fundada na expertise, credencialismo e autonomia (FREIDSON, 1998).
49
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Transição (1930-1937)
50
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
51
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
certa estabilidade funcional para o promotor, que deixava de ser demissível ad nutum. Abdon de
Mello por sua vez, atuante desde 1920 na instituição, seria um propagador do ethos profissional.
Não se restringiu apenas a obras jurídicas, mas conseguiu articular – quando obteve a chefia
institucional – a organização da carreira de promotor público, além de conceber a Associação do
MP e a Revista do MP, como espaços de divulgação e consagração dos valores da classe
ministerial.
A reorganização do MP envolveu os 126 promotores atuantes durante o Estado Novo e
encerrou a época de promotores rábulas ou diletantes, que incluíam muitos militantes de Flores
da Cunha, alguns poetas e militares e até um jogador de futebol pouco esforçado nas práticas do
Parquet. Uma nova geração ascendeu graças ao contexto de fechamento da participação político-
partidária, legitimados pelos concursos públicos nesse período. Prova disto é que dos 67
nomeados à época, a média de carreira foi de 20,24 anos.
Ainda eram presentes, no entanto, nomeações de promotores interinos para então
efetivarem-se em concurso público – uma prática que continuou até 1947 e que exigia dos
aspirantes à promotoria uma série de capitais e recursos tais como origens notáveis, formação em
escolas de elite e contatos políticos. Figuras consagradas no MP, como Paulo Pinto de Carvalho,
Peri Condessa, Henrique Fonseca de Araújo, Floriano Maia D’Ávila, José Barros Vasconcellos,
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
João Lyra de Faria ingressariam dessa forma na instituição e integrariam uma elite institucional
que dominou o MP entre 1947 e 1970.
As pressões políticas, especialmente sensíveis diante um regime autoritário, continuaram.
Pouco o MPRS pôde fazer frente à ação policial do Estado Novo, especialmente contra a
população imigrante alemã e italiana7, assim como os desmandos de autoridades públicas eram de
difícil judicialização8. Ainda assim, houve exceções, como o caso que envolveu o assassinato
Valpírio da Dutra Cruz na cidade de Passo Fundo a mando do comandante Creso de Barros
Monteiro.
Ocorrido às vésperas do Estado Novo, o caso ganhou expressão durante o período
autoritário à medida que os promotores João Boeira Guedes e Sophia Galanternick buscaram
promover uma ação penal contra ele. No entanto, eles sofreram diversas pressões, incluindo uma
7 Um exemplo dos abusos ocorreu por ocasião do rompimento diplomático entre o Brasil e os países do Eixo.
Houve ordens do governo federal para que se recolhesse uma série de bens dos descendentes desses países como
armas, livros, rádios, embarcações e aviões. Esses objetos deveriam ser recolhidos pela Polícia para depósitos
públicos, mas logo os excessos ocorreram – além de apreender todo tipo de objetos, os bens eram mal estocados
pelos corredores da Repartição Central de Polícia, dando margem a numerosos furtos. Somente após o Estado Novo
que o MP seria mobilizado a participar de uma comissão de inquérito para averiguar a apropriação “indébita” dos
bens dos súditos do Eixo (1946), resultando em um longo e polêmico processo judicial contra a antiga cúpula da
Polícia (1947) e no incêndio do Tribunal de Justiça (1949).
8 Nesse sentido, o Boletim nº 3 emitido pelo Procurador-Geral do Estado Anor Butler Maciel em 15.01.1941
mandava os promotores informarem todos os processos que envolvessem autoridades e os enviassem para posterior
análise da Procuradoria.
52
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
ordem do Procurador-Geral Anor Butler Maciel para “acomodar” o caso, o que contribuiu para
abreviar a carreira da primeira promotora do Rio Grande do Sul. O processo seguiu para Porto
Alegre em 1942, onde, apesar dos esforços do promotor Henrique Fonseca de Araújo e do
Procurador-Geral Abdon de Mello, o réu foi inocentado. No entanto, o feito tornou-se simbólico
pelas ações dos promotores envolvidos que, ao ver de seus pares, mostraram os valores desejáveis
da classe tais como independência, destemor e cultura jurídica.
A última fase desse período compreende o período pós-Estado Novo até o Golpe Militar
de 1964. Nesse processo, graças à atuação de agentes do MPRS eleitos para Constituinte Estadual
de 1946, surgiu o Conselho Superior do MP (CSMP) em 1947, uma instância que consagrou uma
elite institucional formada no Estado Novo. O tempo na instituição e a experiência adquirida em
promotorias no interior contribuíram para que os integrantes da elite, ao alcançar as posições de
comando da instituição, pudessem exercer um controle sobre os demais. Os conselheiros
cuidavam da ordem institucional, dos privilégios e prerrogativas obtidas, e controlavam, através
de sanção e louvores, as ações dos demais membros da instituição. Eles cultivavam e defendiam o
9 Os promotores públicos passaram a contar com um maior investimento em sua expertise, aprimorado pela
Corregedoria, que aperfeiçoou o controle do CSMP e refinou as técnicas de seus agentes no interior do estado,
incluindo a realização de visitas e discussões coletivas sobre suas atividades.
53
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Embora a queixa sobre baixos salários fosse a tônica dos agentes do MPRS ao longo de
décadas, é notável uma melhora, especialmente se comparado à magistratura, quando se
reduziram as diferenças salariais entre as classes, como mostra a tabela a seguir:
entrância entrância
1944 Cr$21.000,00 ao Cr$30.000,00 ao 42,86% Cr$33.000,00 ao Cr$48.000,00 ao 25%
ano ano ano ano
1964 Cr$2.700.000,00 Cr$2.760.000,00 2,22% Cr$3.120.000,00 Cr$3.360.000,00 7,14%
ao ano ao ano ao ano ao ano
Fonte: História do Orçamento do Judiciário Gaúcho, Orçamento do Ministério Público do RS (1944-1964).
54
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
10Como foi o caso do promotor Ruy Chaise Villas Boas que trocou tiros com advogados desafetos dentro do fórum
de Carazinho em 1958.
55
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Campos, Octavio Omar Cardoso, Júlio Marino de Carvalho, Henrique Fonseca de Araújo,
Hermes Pereira e Mário Mondino. Havia protestos e propostas para separar esses vínculos
político-partidários, mas não foram bem sucedidas, mesmo quando impediram os promotores de
acumularem proventos ou quando eliminou-se as eleições internas para o CSMP no início dos
anos 1960. Da mesma forma havia aqueles que compreendiam, graças ao ethos do promotor
público, que o promotor era um sujeito ideal para moralização da tão desacreditada política
local.11 Essa questão não seria solucionada nem mesmo com o Golpe Militar de 1964 e a dura
perseguição realizada contra promotores e procuradores considerados subversivos.
Ao longo desse percurso, ainda não é possível falar em uma “independência” institucional
do MPRS nos moldes obtidos a partir da Constituição de 1988. Mas, dos anos 1930 ao Golpe
Militar de 1964, um importante percurso dinâmico entre institucionalização e profissionalização
fortaleceu a condição do promotor público. A construção do ethos do promotor público nos anos
1930 encontrou espaço para ser reproduzido no MPRS especialmente a partir do Estado Novo e
tornou-se referencial a partir do controle exercido pelo CSMP já no período democrático.
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
11 “A Política dolorosamente neste país equaciona via de regra interesses pessoais, e os conflitos emergentes se
resolvem em termos de retaliação pessoal. A magnitude da função do Promotor poderá ser denegrida e
comprometida no exercício de atividade política. Em contrapartida, a participação do MP no terreno político importa
em carrear para esse setor da vida pública aquele espírito de seriedade, de respeito à lei, e de identidade tão peculiares
à formação moral e jurídica do promotor.” (CARVALHO, 1973, p. 84-85, grifos do autor)
56
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
difíceis de obter.
O Golpe Militar de 1964, embora tenha trazido uma letargia nos avanços institucionais
até o início dos anos 1970, não encerrou esse modo de ser promotor público. Seriam os mesmos
agentes do MPRS, unidos pelo ethos profissional e mobilizados politicamente, capazes de obter
uma nova série de conquistas institucionais e corporativas em um ambiente de restrições de
direitos que foi o Regime Militar. Se estendida à realidade nacional, talvez esteja aí uma das raízes
do paradoxo no qual Rogério Arantes observou persistir no MP contemporâneo.
Referências
ARANTES, Rogério Bastos. Ministério Público e Política no Brasil. São Paulo: Fapesp, 2002.
BARRETO, Afonso Henriques de Lima. História e Sonhos. Rio de Janeiro: Gianlorenzo Schettino,
1920.
CARVALHO, Paulo Pinto de. Caminhos da Democracia. Porto Alegre: Flama, 1973.
ELIAS, Norbert. Estudos sobre a gênese da profissão naval: cavalheiros e tarpaulins. In: Mana
v.7 n.º 1 Rio de Janeiro abril 2001. p. 89-116
ENGELMANN, Fabiano. A Formação da Elite Jurídica no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS,
2001. (Dissertação de mestrado).
FREIDSON, Eliot. Renascimento do profissionalismo: teoria, profecia e política. São Paulo: Edusp, 1998.
KRIEGER, Daniel. Desde as Missões... saudades, lutas, esperanças. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1977.
LYRA, Roberto. Teoria e Prática da Promotoria Pública. Rio de Janeiro: Jacintho, 1937.
MEMORIAL do Judiciário. História do Orçamento do Judiciário. Porto Alegre: TJRS, 2004. (Cadernos
de Pesquisa volume 2)
MOOG, Vianna. Um rio imita o Reno. 4. ed. Porto Alegre: Globo, 1943.
57
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
TILLY, Charles. Contention & Democracy in Europe, 1650-2000. Cambridge: Cambridge University
Press, 2003.
WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: UnB, 1999. 2v.
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
58
A ELITE DA PROPAGANDA REPUBLICANA RIO-GRANDENSE: UM PERFIL
SOCIOLÓGICO
Nas últimas décadas do século XIX, o regime político adotado no Brasil já dava sinais de
seu esgotamento. A alternativa republicana ganhava, gradativamente, a simpatia de vários grupos
sociais e encontrara, em meio a esses, propagandistas fervorosos. Do mesmo modo, ideias como
a da abolição da escravidão, a secularização das instituições e o federalismo foram ganhando cada
vez mais espaço no terreno político e, não por acaso, eram defendidas - na maioria das vezes -
pelos mesmos grupos.2
Na província do Rio Grande do Sul, a propaganda republicana começou a tomar forma
com a criação do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), no ano de 1882.3 Foi a partir daí
que um grupo de propagandistas passou a divulgar a república de forma mais organizada e
sistemática. A este grupo, formado por indivíduos tais como Assis Brasil, Júlio de Castilhos,
Pinheiro Machado, Borges de Medeiros, Demétrio Ribeiro, Ramiro Barcellos e Venâncio Ayres,
chamaremos de a elite da propaganda republicana rio-grandense. Junto a esses, que se tornaram alguns
dos nomes mais conhecidos historiograficamente, muitos outros indivíduos colaboraram na
propaganda e também ganharão espaço nas páginas deste texto.
Assim sendo, nosso estudo propõe algumas reflexões acerca do grupo formado pelos
membros mais influentes ou pelas principais lideranças do PRR durante a década de 1880. O
grupo era formado por indivíduos que contestavam o regime monárquico e o sistema político
vigente e que visavam ascender ao poder, através das vias legais. De início é importante ressaltar
que se tratam, na sua grande maioria, de jovens que faziam parte da elite econômica da província
e que tinham plenas condições materiais de manifestar suas opiniões, financiando jornais,
organizando conferências públicas, investindo em candidaturas e excursões eleitorais. Esses
jovens, embora fizessem parte de um movimento que vinha ganhando força em diversas partes
do Brasil, constituíam minorias políticas que assumiam posições arriscadas ao se manifestarem
contra a ordem vigente.
1 Graduada em História pela Universidade Federal de Santa Maria (2010). Mestre em História pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2013). Atualmente é professora da rede pública estadual de ensino. E-
mail para contato: tassianasaccol@yahoo.com.br.
2 Sobre a conjuntura dos últimos anos do Império e as novas ideias que circulavam à época ver, por exemplo: Alonso
por alguns intelectuais tais como Francisco Xavier da Cunha e os irmãos Apeles e Apolinário Porto Alegre.
Nosso objetivo é o de conhecer algumas das principais características dos líderes do PRR,
e, a partir daí, traçar um perfil socioeconômico do grupo por eles formado. Conforme veremos
ao longo do texto, a existência de características sociais comuns e experiências compartilhadas
pelos membros do grupo eram alguns dos fatores que facilitavam a sua mobilização conjunta,
numa década em que os republicanos ainda se constituíam como grupos minoritários, embora
conquistassem cada vez mais espaço no terreno político. Mas antes de adentrarmos na análise do
perfil da elite da propaganda republicana rio-grandense, vejamos quais as principais afirmações
trazidas pelos trabalhos que investigaram esse movimento político e suas principais lideranças na
província do Rio Grande do Sul.
4 Veja-se, por exemplo, o perfil biográfico de Joaquim Francisco de Assis Brasil, elaborado por Carmem Aita (2006)
e o trabalho de Sérgio da Costa Franco (1967), referente a atuação política de Júlio de Castilhos.
60
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Por outro lado, Joseph Love pontuou que a partir da Proclamação da República e,
especialmente, da guerra de 1893, processou-se uma mudança no poder, “de uma elite estancieira
para uma outra, próxima desta” (Love, 1975, p. 79). Para esse autor, os dirigentes dos partidos
Liberal e Conservador formavam a aristocracia da Província, possuindo as maiores e mais antigas
estâncias além de muitos deles possuírem títulos imperiais, ao passo que “Castilhos e seus
companheiros eram um pouco menos ricos e tinham vínculos mais tênues com a nobreza
provincial” (Love, 1975, p. 79). Love concluiu que, de maneira geral, os estancieiros continuaram
a dominar o Rio Grande durante a República, assim como no Império; entretanto, havia uma
diferença com relação à origem regional dos líderes: “nas posições, em outros tempos ocupadas
em sua maioria por líderes vindos da campanha, assentaram-se cada vez mais os naturais da
Serra” (Love, 1975, p. 79).
Sendo assim, na década de 1970, em trabalho de extremo rigor científico, baseado em
profunda pesquisa empírica, Love já havia apontado para uma origem também agrária dos
principais líderes do PRR – ainda que enfatize uma diferença em termos de origem regional em
relação às elites monarquistas – bem como para a existência de vínculos parentais de algumas
dessas lideranças com famílias nobres da Província. Entretanto, embora sua pesquisa tenha sido
constantemente revisitada, a vinculação entre os novos grupos urbanos e o republicanismo
O grupo em estudo constitui-se de elementos muito jovens, com uma instrução formal
excepcional para o contexto intelectual em que viviam, e que, em sua grande maioria,
pertencia à classe média urbana. Portanto, trata-se de um grupo que não estava
envolvido diretamente nos interesses do grupo dominante da campanha ou de grupos
dominantes das regiões mais pobres do norte da província. A propaganda republicana
foi feita à revelia destes segmentos da sociedade gaúcha e por isto mesmo o movimento
não obedeceu aos interesses de cada uma das regiões (Pinto, 1979, p. 101).
5 Integram o “grupo dos 71” indivíduos que participaram da Convenção de 1882, que foram representantes de
núcleos republicanos nos congressos anuais do partido, que se candidataram oficialmente às eleições municipais e
provinciais e, por fim, indivíduos que integraram a bancada gaúcha na constituinte estadual e federal de 1891.
61
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Seria errôneo afirmar que os jovens fundadores do PRR não eram membros da elite
econômica rio-grandense. Entretanto, deve ter-se presente que não pertenciam à tradicional elite
pecuária da campanha, que quase em sua totalidade, formava o Partido Liberal. Eram, na sua
maioria provenientes da região norte do Estado, de ocupação recente e mais pobre do que a campanha
[...]. Portanto, se eram estancieiros, não eram membros da oligarquia política rio-grandense. (Pinto,
1986, p. 9) (grifo nosso).
6Franco defendia que os federalistas eram muito mais ricos e tinham suas bases nas grandes estâncias da campanha,
enquanto que os republicanos eram os mais pobres, pertencentes a uma classe média urbana com forte traço
urbanizado (Franco, 1993).
62
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
a respeito dele fossem se colocando ao longo dos anos, ainda que essas mesmas pesquisas
apresentassem também algumas divergências entre si.
O modelo de interpretação da propaganda republicana rio-grandense e do perfil dos seus
principais líderes, inaugurado com esses trabalhos, ainda se mantém com significativa importância
historiográfica, tendo sido reproduzido, na íntegra, em sínteses mais recentes.7 Em suma, o
quadro geral que podemos construir a partir das contribuições dos autores citados é o seguinte:
a) os membros do PRR não possuíam ligação com a classe econômica tradicional do Rio
Grande do Sul, seja da campanha, seja do planalto serrano. Essa classe era
representada pelo Partido Liberal;
b) o republicanismo foi um movimento eminentemente urbano e os seus líderes
pertenciam a uma classe média localizada nas cidades, devido a sua atuação
profissional;
c) os membros do PRR não possuíam ligações com a nobreza monárquica e estavam
excluídos dos centros de poder político do período;
d) o PRR era um partido formado por jovens com uma educação acima da média.
7 Veja-se, por ezexemplo, o trabalho de Ricardo Pacheco (2007). Alguns anos antes, o modelo também havia sido
reproduzido por Trindade (1979).
63
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
O grupo aqui analisado e que formava a elite da propaganda republicana rio-grandense foi
composto a partir de três listagens básicas. A primeira delas foi a mencionada relação de
propagandistas rio-grandenses elaborada por Walter Spalding (1952, p. 57-136), contendo os
principais líderes do movimento republicano provincial em todos os seis círculos eleitorais. Sua
lista apresenta o nome de 46 indivíduos e traz informações biográficas para todos eles. A segunda
fonte utilizada foi a relação dos membros do Club 20 de Setembro na década de 1880.8 Essa
organização reunia todos os estudantes rio-grandenses que eram republicanos e passaram pela
Academia de Direito de São Paulo, onde o Club funcionava. O Club foi o principal núcleo
intelectual do PRR e formador de boa parte das lideranças do partido. Essa lista soma 36
indivíduos. A terceira lista foi organizada por Celi Pinto (1979) e é composta por candidatos do
PRR às eleições da época, líderes nas convenções e reuniões do partido e indivíduos que foram
eleitos tanto na primeira Constituinte Republicana Estadual, quanto Federal, entre 1890 e 1891. A
relação de Pinto reúne 72 indivíduos. No entanto, resolvemos excluir vários deles por serem
“adesistas”, ou seja, políticos com reconhecida trajetória política monárquica e que se filiaram ao
PRR nas vésperas do 15 de novembro ou depois dele.
64
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Somando todos os indivíduos que aparecem nas três listas e excluindo os “adesistas” e
aqueles que se repetiam em outras relações, nos restou um grupo final de 87 líderes republicanos,
que optamos por denominar Grupo Lideranças. A análise do grupo foi realizada a partir do método
prosopográfico. Lawrence Stone definiu o método da seguinte maneira:
65
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Logo, os dados encontrados confirmam a ideia, trazida pelos trabalhos mais clássicos, de
que os republicanos constituíam uma elite bastante educada. Entretanto, não é possível falarmos
de uma elite mais educada se comparada aos monarquistas, já que esses últimos tinham um nível
de instrução bastante semelhante ao dos republicanos. Ainda no que se refere ao nível de
instrução, é importante salientar que, dos 44 bacharéis em Direito, somente 3 não se formaram
em São Paulo. Isso comprova a importância da Academia paulista na formação dos republicanos
rio-grandenses. Do mesmo modo, sugere a existência de uma socialização comum e de trocas de
experiências que possivelmente ocorreram nessa faculdade.9
A segunda variável analisada foi a idade média dos líderes republicanos. Pelo fato de
muitos deles terem sido estudantes nas décadas de 1870 e 1880, o grupo apresenta uma grande
quantidade de jovens. O mais velho republicano do grupo era Felicíssimo de Azevedo, nascido
em 1823 e contando com 59 anos por ocasião da fundação do PRR, em 1882. Em relação às
datas de nascimento dos membros do Grupo Lideranças, conseguimos informações para 50 dos 87
relacionados. Entre esses, dois haviam nascido na década de 1830 e outros dois na década de
1840, atingindo, no início dos anos 1880, entre 40 e 50 anos. Tratava-se de um grupo minoritário
e composto por líderes experientes, como Francisco Xavier da Cunha e Apolinário Porto Alegre,
por exemplo.
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
Tomando o ano de 1882 como um ponto de chegada dos membros aqui analisados,
percebemos que mais da metade deles (27 membros) possuía, nessa data, entre 23 e 32 anos.
Eram todos nascidos entre 1850 e 1859. Os nascidos em 1860 e 1861, somavam 9 indivíduos e,
junto com os nascidos em 1859, compõem a principal faixa etária (os nascidos entre 1859 e 1861
somavam 15 membros). Ao longo da década de 1880, outros 9 jovens, nascidos entre 1862 e
1866, incorporaram-se ao grupo. Portanto, não resta dúvida de que os republicanos formavam
um grupo jovem, se comparado àquele dos membros da elite política monárquica, estudado por
Jonas Vargas. Na década de 1880, os membros da elite política monarquista possuíam, em média,
50 anos. Sendo assim, no que se refere à variável ‘idade média dos agentes’, os dados encontrados
para o Grupo Lideranças estão de acordo com os trabalhos anteriormente mencionados.
Com relação às categorias sócio-ocupacionais e atividades econômicas desenvolvidas,
temos informações para 81 dos 87 líderes arrolados. Os números realmente demonstram se tratar
de um grupo de profissionais, tal como os trabalhos mais clássicos já afirmavam. Pelo menos 37
dos membros do grupo eram advogados, ou seja, 42,5% do total. Trata-se de um índice muito
9 De fato, vários dos propagandistas aqui analisados foram colegas de faculdade. Muitos deles fizeram as suas
primeiras incursões na imprensa, participando conjuntamente de jornais de propaganda, enquanto ainda eram
estudantes. Portanto, quando retornaram ao Rio Grande do Sul já contavam com certa experiência em manifestar
suas opiniões políticas, além de já possuírem laços sociais entre si. Para mais informações sobre a passagem desses
indivíduos pela Faculdade de Direito de São Paulo, ver: Vampré (1924).
66
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
próximo àquele dos políticos monarquistas estudados por Vargas, o que demonstra que o
republicanismo não se dissociou do bacharelismo que marcou a elite monarquista. Nesse grupo
profissional temos ainda 5 engenheiros e 7 médicos. Tendo em vista a multiplicidade de funções,
tem-se também 11 jornalistas, sendo que somente 5 foram classificados como jornalistas a partir
das informações que conseguimos. Entre os funcionários públicos temos 2 juízes municipais e 1
promotor. Entre os não diplomados temos 4 fazendeiros, 2 comerciantes, 1 dentista, 1 relojoeiro,
2 rábulas e 2 professores.
Percebe-se que, pelo fato de o número de diplomados ser bastante alto, o percentual de
indivíduos que compõe o subgrupo fazendeiros/criadores acaba caindo, uma vez que
classificamos enquanto tal somente aqueles homens que não possuíam uma profissão técnica.
Talvez esse seja um dos grandes problemas dessa divisão socioprofissional. Para remediá-lo,
agora verificaremos as origens sociais, analisando as atividades dos familiares desses líderes. 10
Como já foi afirmado, ao definirmos as famílias como unidades políticas principais e não os
indivíduos, a visão de que o movimento era eminentemente urbano e profissionalizado,
descolado das estruturas agrárias mais tradicionais e da nobreza monarquista, pode ser
fortemente relativizada.
Uma análise que comece investigando o local de nascimento dos líderes republicanos já
10 Conforme mencionamos anteriormente, Luiz Alberto Grijó (2005) já havia tecido algumas considerações,
relativizando a tese de que a origem social das principais lideranças do PRR estaria ligada a uma classe media urbana
e que a mobilização do PRR poderia ser explicada, em grande medida, como uma contraposição aos interesses
dominantes da oligarquia rural gaúcha, por se encontrarem num estado de marginalização política. No entanto,
devido ao fato de não ter sido seu objeto direto de estudo, o autor não chega a trazer dados para comprovar tais
afirmações.
67
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
acontecer entre os republicanos. A título de exemplo, Joaquim Francisco de Assis Brasil, um dos
membros da elite republicana rio-grandense, mesmo depois de portar o diploma de bacharel em
Direito, apresentava-se ao eleitorado republicano, quando disputara as eleições à deputação
provincial e geral, como fazendeiro, atividade desenvolvida por todo o núcleo familiar, que tinha
uma grande estância no município de São Gabriel.11 Em outras palavras, sua família, amigos e
parentes constituíram importante base econômica e política na região da campanha. Portanto, o
fato de exercer uma atividade profissional – advogado – não o descolava de sua origem agrária,
pois era de lá que vieram os votos que possibilitaram a sua eleição na década de 1880.
A seguir, ofereceremos uma série de exemplos de que essa origem social rural era
característica de boa parte dos republicanos que formavam o grupo aqui analisado. O fato de
pertencerem a essas famílias de origem agrária – e não a famílias de classe média urbana,
descoladas das elites mais tradicionais da província – indica que os republicanos estavam
intrinsecamente ligados às elites mais tradicionais da província e situados dentro de uma tradição
política, especialmente conservadora.
11 ‘Circular aos eleitores do terceiro círculo eleitoral’. In: Jornal A Federação. 26.06.1884. Acervo do NPH (UFRGS).
68
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
casou-se com Vicente Candido Figueira de Sabóia. O Visconde, assim como o seu sogro,
também foi diretor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, durante a década de 1880,
período em que também foi nomeado médico da casa imperial e se tornou médico particular do
Imperador (Carvalho, 1937).12 Portanto, a família Jobim tinha grande influência e prestígio
político, além de laços extremamente estreitos com a Corte.
Tomemos o caso de Júlio de Castilhos. Seu pai, Francisco Ferreira de Castilhos, era um
estancieiro de considerável fortuna em São Martinho e um dos maiores senhores de escravos da
região.13 Além disso, pelo lado materno, Júlio de Castilhos descendia de família aristocrática. Seu
avô era o Capitão Fidelis Nepomuceno Prates, grande estancieiro em São Gabriel, que chegou a
ajudar financeiramente os rebeldes farrapos e foi deputado na Constituinte da República Rio-
Grandense. Outros dois parentes também ligavam a família à elite provincial. O primeiro deles
foi Dom Feliciano José Rodrigues Prates, primeiro bispo do Rio Grande do Sul e cuja influência
política devia ser grande. O segundo foi Fidêncio Nepomuceno Prates, médico em São Gabriel e
deputado provincial entre 1848 e 1859 e geral entre 1853 e 1856 (Soares, 1996, p. 9).
As redes sociais da família de Castilhos estenderam-se até o mundo da Corte quando
Fidêncio se casou com a filha do Barão de Antonina. Esse era senador do Império pela Província
do Paraná e já havia sido deputado em São Paulo, para onde enviava tropas de mulas. O Barão de
12 As informações a respeito das lideranças republicanas e de seus familiares, fornecidas a seguir, encontram-se no
mesmo livro.
13 Num levantamento de todos os inventários post mortem que apresentavam escravos entre os bens de herança, para o
município onde Francisco residia, organizado pelo Arquivo Público, ele foi apontado como o maior senhor de
escravos da região, possuindo cerca de 56 escravos – um plantel muito acima da média daquela região (Pessi, 2011, p.
304).
69
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Parlamento nacional. Os Pinheiro Machado também eram parentes dos Oliveira Ayres, família a
qual pertencia o também paulista Venâncio Ayres, cunhado de José Gomes e que contribuiu
muito com a propaganda republicana na Província, após ter sido deputado em São Paulo pelo
Partido Conservador.
Vejamos agora os exemplos dos Abbott e dos Ribeiro de Almeida. Os Abbott eram uma
família de estancieiros e médicos com base em São Gabriel e eleitores do Partido Conservador. O
pai, Jonathas Abbott, era comendador. Fernando e João Abbott foram os principais membros da
família a aderirem ao republicanismo na década de 1880. Ambos eram cunhados de João Borges
Fortes Filho, cujo pai era o grande chefe do Partido Conservador na região da campanha. O
Doutor Borges Fortes foi deputado provincial (1850 a 1863, 1869 a 1872 e 1887 a 1888) e geral
(1857 a 1860).14 Os Ribeiro de Almeida, por sua vez, eram uma família igualmente conservadora,
com forte influência em Alegrete, Quaraí, Uruguaiana e Livramento, onde possuíam estâncias.
Severino Ribeiro foi o chefe político máximo da família, tornando-se deputado provincial (1885-
1886) e geral (1877, 1882-1884 e 1886). O republicano da família foi seu irmão caçula, Vitorino,
que havia sido colega de Assis Brasil e de Castilhos na Faculdade de Direito. Ambos eram filhos
do Barão de São Borja – comandante de destaque na Guerra do Paraguai e um dos principais
chefes conservadores da região da campanha – e netos de Bento Manoel Ribeiro, estancieiro que
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
pegou em armas em 1835, mas passou para o lado legalista por duas vezes.
Podemos citar outros casos de forma mais resumida. Demétrio Ribeiro era sobrinho do
Barão de Santana do Livramento, antigo líder conservador de Alegrete, mas que, por desavenças
com os Ribeiro de Almeida, se tornou o principal chefe liberal-gasparista da região. Além disso,
um outro tio, Francisco Nunes de Miranda, foi deputado provincial. Marçal Escobar, por
exemplo, era neto do poderoso Barão de São Lucas – rico estancieiro são-borjense. Alfredo Lobo
d’Eça era filho do Barão de Batovi, marechal do Exército e estancieiro com enorme destaque na
campanha do Paraguai e com terras em São Gabriel. Enéias Galvão era filho do Visconde de
Maracajú, outro militar que chegou a ser Ministro da Guerra e que era irmão do Barão de Rio
Apa, principal repressor da Revolta do Vintém, na Corte.
Temos outros exemplos. Ramiro Barcellos era sobrinho do Barão de Viamão, chefe do
Partido Conservador de Cachoeira. Os irmãos Carlos e José Barbosa pertenciam a uma
importante família de estancieiros de Jaguarão e eram sobrinhos-netos de Bento Gonçalves da
Silva. Antônio Francisco de Abreu era filho do Barão de Santos Abreu, rico comerciante
pelotense. O Barão de Candiota, outro importante estancieiro gabrielense que possuía terras em
14Além disso, uma das filhas do Doutor Borges Fortes casou-se com Carlos Prates de Castilhos, irmão de Júlio de
Castilhos.
70
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
diversos municípios da região da campanha e que era primo do Senador e Ministro Henrique
D’Avila, era pai de José Maria Chagas.
Também havia republicanos entre as famílias charqueadores de Pelotas, que constituíam,
segundo Vargas, a elite mais rica do Rio Grande do Sul (Vargas, 2013). Alexandre Cassiano do
Nascimento era filho do Capitão Manoel Lourenço do Nascimento, charqueador e deputado
provincial. Alberto Cunha e Possidônio Cunha eram, respectivamente, filho e sobrinho do Barão
de Corrientes, um rico capitalista e charqueador pelotense. João Jacintho Mendonça pertencia a
uma rica família de charqueadores conservadores de Pelotas e Adolpho Osório era filho do
General Osório e Marquês do Herval, principal chefe político do Rio Grande do Sul nos anos
1870, ligado ao Partido Liberal. Antônio e Henrique Chaves eram filhos de João Maria e Antônio
Gonçalves Chaves, charqueadores que se destacaram entre as maiores fortunas na década de
1870 e 1880. Ismael Simões Lopes, por sua vez, era filho do Visconde da Graça, outro rico
charqueador pelotense que também foi presidente da Província e era o chefe do Partido
Conservador em Pelotas. Seu irmão, o Dr. Ildefonso, foi deputado geral.
Portanto, a partir da análise dos dados referentes à origem social dos líderes do PRR,
pode-se concluir que, ao invés de os republicanos pertencerem a uma camada social afastada das
elites mais tradicionais da província, – configurando assim uma nova classe média urbana,
71
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Ou seja, não é possível afirmar que os líderes republicanos da propaganda formavam uma elite
“mais educada” em comparação com a elite política monarquista. Os números apresentados por
Vargas são extremamente eloquentes nesse sentido e são, inclusive, superiores aos índices que
encontramos para os propagandistas republicamos mencionados anteriormente.
Em segundo lugar, a relação “juventude = republicanismo”, enfatizada por Pinto, deve
ser relativizada, pois ela aconteceu justamente porque as academias estavam se tornando
importantes focos de crítica à Monarquia e, obviamente, eram redutos de jovem estudantes.
Entretanto, fora dali, e até mesmo naqueles espaços, existiam tanto jovens monarquistas quanto
republicanos de idade mais avançada. Nas turmas da academia paulista, entre 1878 e 1885, por
exemplo, uma série de jovens monarquistas também veio a diplomar-se, engrossando as fileiras
liberais e conservadoras da Província. Estavam entre eles Manoel de Campos Cartier, Carlos
Ferreira Ramos, Carlos Silveira Martins, José Vieira da Cunha, Antônio Lara da Fontoura
Palmeiro e Severino de Freitas Prestes, entre outros.
Acima de tudo, não é possível afirmar que os republicanos não possuíam ligação com as
elites políticas monarquistas e, especialmente, com os estancieiros da região da campanha que,
conforme os autores mencionados, em sua maioria, formavam o Partido Liberal. A partir da
investigação dos dados familiares e da origem social dos líderes republicanos, foi possível
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
concluir que uma parte significativa desses, notadamente os principais, pertencia a tradicionais
famílias rio-grandenses, repletas de títulos de nobreza, membros com importantes cargos
políticos e possuidoras de fortuna com destacado patrimônio agrário.15
Em suma, os propagandistas republicanos possuíam muito mais em comum com os
monarquistas do que acreditava a historiografia tradicional do estado. Eles possuíam, no seu
círculo parental mais próximo, nobres monarquistas, ricos escravistas e membros da elite política
provincial e imperial. Portanto, não estavam tão excluídos dos centros de poder político e não
eram socialmente desprestigiados.
15 Inclusive, foi somente no terceiro círculo eleitoral (composto por municípios da região da campanha e do núcleo
missioneiro) que os republicanos conseguiram eleger um representante ao parlamento provincial durante o período
da propaganda. Em outra oportunidade, pude demonstrar que os laços do candidato Assis Brasil com os membros
da elite conservadora da região foram importantes a ponto de se traduzirem em apoio eleitoral e troca de votos que
foram essenciais para a sua vitória nas urnas. Além disso, através da leitura dos discursos parlamentares de Assis
Brasil, foi possível perceber que os interesses que o mesmo defendia no parlamento eram justamente os dos
criadores de gado daquela região, atividade desenvolvida por boa parte dos seus eleitores, pela sua família e também
pelas famílias da maioria das lideranças republicanas. Para mais informações, ver: Saccol (2013).
72
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Referências
AITA, Carmem (Org.). Joaquim Francisco de Assis Brasil: perfil biográfico e discursos (1857-1938). Porto
Alegre: Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, 2006.
ALONSO, Angela. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil Império. São Paulo: Paz e
Terra, 2002.
ASSIS BRASIL, Joaquim Francisco de. História da República Rio-Grandense. Porto Alegre: ERUS,
1981.
BARETTA, Sílvio Rogério Duncán. Political violence and regime change: a study of the 1893 civil war in
southern Brazil. Pittsburgh: University of Pittsburgh, 1985.
CARVALHO, Mário Teixeira de. Nobiliário sul-riograndense. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da
Livraria do Globo, 1937.
COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à República: momentos decisivos. 7. ed. São Paulo: Fundação
Editora da UNESP, 1999.
FRANCO, Sérgio da Costa. A guerra civil de 1893. Porto Alegre: UFRGS, 1993.
LOVE, Joseph. O regionalismo gaúcho e as origens da Revolução de 1930. São Paulo: Perspectiva, 1975.
PINTO, Celi Regina Jardim. Contribuição ao estudo do Partido Republicano Rio-Grandense. Dissertação
(Mestrado em Ciência Política) – Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, UFRGS,
Porto Alegre, 1979.
______. Positivismo: um projeto político alternativo (RS: 1889-1930). Porto Alegre: L&PM, 1986.
73
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-
1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SOARES, Mozart Pereira Soares. Júlio de Castilhos. Porto Alegre: IEL, 1996.
VAMPRÉ, Spencer. Memórias para a história da Academia de São Paulo. São Paulo: Saraiva e Cia.,
1924. v. II.
______. Entre a paróquia e a Corte: os mediadores e as estratégias familiares da elite política do Rio Grande do
Sul (1850-1889). Santa Maria: UFSM/Anpuh-RS, 2010.
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
Referências Documentais
74
ATUAÇÃO DO EMPRESARIADO GAÚCHO ATRAVÉS DO IPESUL (1962-1971)1
Nos anos 1960, frente à ascensão de João Goulart a Presidente da República, os setores
mais conservadores da sociedade mobilizaram-se para desestabilizar seu governo, visto que,
segundo esses setores, representava um processo de “comunização”3 do país nos moldes
cubanos. Logo após João Goulart assumir a presidência, foi criado o Instituto de Pesquisas e
Estudos Sociais (IPÊS) por empresários e militares, com o objetivo de informar a população a
respeito dos problemas pelos quais o país estava passando e defender a “democracia” frente ao
avanço do “comunismo” (cf. Dreifuss, 1986). O IPÊS foi criado inicialmente em São Paulo,
estendendo-se para o Rio de Janeiro e posteriormente para diversas outras cidades, incluindo
Porto Alegre. Nesta foi criado o Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais do Rio Grande do
Sul (IPESUL) em março de 1962. Tinha como proposta difundir a ideia da “humanização do
trabalho”, “harmonia” entre empregador e empregado e “democratização” do capital da empresa
para os trabalhadores.
Desde outubro de 1962 o IPESUL publicava uma revista chamada Democracia e Emprêsa
(DE), mensário com alguns artigos próprios e muitos selecionados de jornais e revistas, além de
transcrições de palestras e estudos técnicos. Circulou até 1971, sendo que desde 1970 mudou seu
nome para Desenvolvimento e Emprêsa. Essa revista tinha como objetivo difundir uma nova
“mentalidade” empresarial para que fosse possível defender a “democracia” contra o
“comunismo”. Através de modernizações, a nova empresa seria capaz de contemplar as
demandas sociais do período e evitar a “comunização” do país. A revista contribuiu para a
construção desse consenso, e o IPESUL participou ativamente da conspiração golpista civil-
militar pela deposição de João Goulart e continuou atuando durante a ditadura civil-militar. O
principal instrumento de difusão das ideias do IPESUL era, portanto, a revista DE.
O objetivo deste artigo é evidenciar a atuação de uma parcela da classe empresarial gaúcha
através da revista Democracia e Emprêsa e de ações por parte do IPESUL e de seus indivíduos no
pré-golpe e durante a ditadura civil-militar. Parte-se da interpretação de que os discursos da
revista e a ação da entidade eram voltados para a própria classe empresarial, tendo em vista a
construção de um consenso intraclasse. Inicialmente, apresentaremos um panorama sobre o
1 Trata-se de uma versão reduzida do primeiro capítulo de minha dissertação de mestrado (MORAES, 2012).
2 Doutorando em História na PUCRS, bolsista do CNPq e integrante do Laboratório de História Comparada do
Cone Sul (LabConeSul). E-mail: thiagomoraes.hist@gmail.com.
3 Utilizaremos termos como “democracia”, “comunismo”, “mentalidade” e suas derivações entre aspas, pois se trata
IPESUL e seu funcionamento no contexto dos anos 1960 antes do golpe, e posteriormente
informações sobre a entidade no pós-golpe.
4 MOURÃO FILHO, Olympio. Memórias: a verdade de um revolucionário. Porto Alegre: L&PM, 1978.
5 INSTITUTO DE PESQUISAS ECONÔMICAS E SOCIAIS DO RIO GRANDE DO SUL. Ata da assembléia geral
de constituição. 1962. Protocolo de Inscrição n. 156.461, p. 8.
6 Ibid., p. 1.
7 INSTITUTO DE PESQUISAS ECONÔMICAS E SOCIAIS DO RIO GRANDE DO SUL Estatutos do Instituto de
Pesquisas Econômicas e Sociais do Rio Grande do Sul (IPESUL). Protocolo de Inscrição n. 156.461, p. 1.
8 Idem.
9 Ibid., p. 2.
10 Ibid., p. 4.
11 Ibid., p. 5.
76
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
contatos externos para assegurar os objetivos do Instituto; o terceiro era encarregado das tarefas
administrativas.12
A sede do IPESUL era em Porto Alegre, no Palácio do Comércio, 4º andar, conjunto
433. O Conselho Orientador, que era formado pelos sócios fundadores, tinha 29 pessoas13, em
grande parte empresários importantes na economia do Rio Grande do Sul, como A. J. Renner,
Fábio Araújo dos Santos e Paulo Vellinho. Havia representantes de cada uma das principais
forças econômicas do estado naquele momento dentre os sócios-fundadores: Álvaro Coelho
Borges era presidente da Federação das Associações Comerciais e de Serviços do Rio Grande do
Sul (FEDERASUL) de 1959-1963, e Antônio Saint-Pastous era presidente da Federação da
Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (FARSUL) de 1961-1963. A Comissão Diretora de
1962-1964 tinha como presidente Álvaro Coelho Borges, como vice-presidente Carlos Osório
Lopes, e como coordenador o economista Eraldo de Luca. O primeiro fez parte de empresas
como a Moinhos Rio-grandenses S.A., a Bunge & Born, e outras (Dreifuss, 1986, p. 511). O
segundo foi pioneiro da área de radiologia no Brasil, fundador do Colégio Brasileiro de
Radiologia e Diagnóstico por Imagem (CBR) em 194814 e criador do consultório de radiologia
CROL, em Porto Alegre. O terceiro foi Assessor Econômico da Associação Comercial de Porto
Alegre e membro do Conselho Regional de Economistas Profissionais da 4ª Região.15 O cargo de
12 Ibid., p. 5-6.
13 Os sócios-fundadores eram: A. J. Renner, Álvaro Coelho Borges, Antonio Chaves Barcellos, Antonio Saint
Pastous, Carlos Dreher Neto, Carlos Osório Lopes, David Enzo Guaspari, Diego Blanco, Don Charles Bird,
Eugênio Martins Pereira, Fábio Araújo Santos, Imério Kuhn, João Dico de Barros, João Alves Osório, Jorge Sehbe,
Julio Eberle, Kurt Weissheimer, Leopoldo de Azevedo Bastian, Luiz F. Guerra Blessmann, Marius Smith, Moziul
Moreira Lima, Paulo Barbosa Lessa, Paulo Simões Lopes, Paulo Vellinho, Rico Harbich, Roberto H. Nickohrn,
Sérgio Freytag de Azevedo Bastian, Walter Cechella, Werner P. Wallig (Democracia e Emprêsa, out. 1962, contracapa)
14 COLÉGIO BRASIEIRO DE RADIOLOGIA E DIAGNÓSTICO POR IMAGEM. Histórico. Disponível em:
op.cit., p. 8.
77
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
função social do capital, sob a égide de um novo tipo de capitalismo, que não seria mais
individualista nem pautado unicamente pela busca incessante do lucro, mas um que se colocasse
como terceira via entre o “totalitarismo” de esquerda, que eliminaria a liberdade do indivíduo no
desenvolvimento econômico, ficando sob o comando do Estado, e o capitalismo “egoísta”, que
seria o oposto.
A publicação oficial do IPESUL era a revista DE, mensário editado de outubro de 1962 a
julho/dezembro de 1969 (referente à última edição), com algumas variações na periodicidade.
Após, mudou o nome para Desenvolvimento e Emprêsa, com a primeira edição em janeiro/março de
1970, e que durou mais um ano, até janeiro/março de 1971, somando 5 edições. Cabe lembrar
que todas as edições das duas revistas foram impressas pela Livraria do Globo, como é possível
observar nas capas. No total, somando ambas, são 48 edições.
As duas publicações eram constituídas de seleções de matérias de jornais e revistas
consideradas pertinentes às ideias do IPESUL, além de alguns artigos e pesquisas de autoria do
Instituto, transcrições de palestras, entre outros. O fio condutor dos textos publicados era a
defesa da “democracia”, que remetia ao anticomunismo. No campo da recepção pressupomos os
empresários, visto o tom de orientação para o empresariado que os artigos muitas vezes
assumem. É importante ressaltar que o IPESUL foi declarado de utilidade pública através do
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
Decreto Estadual 15.113, de 07/05/63. Nesse período, quem governava o estado era Ildo
Meneghetti, do Partido Social Democrático (PSD). Visto que a publicação era anticomunista e
sustentava posições contrárias ao governo federal, esse decreto adquire um significado
importante.
Nesse sentido, cabe lembrar que a data de publicação da primeira edição de DE, outubro
de 1962, coincide com as eleições gerais ocorridas no Brasil. O Rio Grande do Sul, que até então
era governado por Leonel Brizola, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), ficou sob comando de
Ildo Meneghetti, que apoiou o golpe em 1964. Sobre uma reunião na casa do bispo Dom Vítor
José Sartori, em Santa Maria, à qual compareceram personagens influentes na política nacional e
regional, inclusive o general Olympio Mourão Filho, Dreifuss argumenta que
Ou seja, já havia uma organização prévia do empresariado gaúcho com o político que lhes
interessava ganhar as eleições para governador do Rio Grande do Sul, pois tinha uma postura
anticomunista e era rival do PTB.
78
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Essa ação política apropriada trata-se da instauração da ditadura civil-militar, regime que
pôde reprimir fortemente as mobilizações sociais. Já a equiparação da iniciativa privada à
“democracia” se refere à possibilidade de “mudança” apresentada pelos empresários e
representada por uma “terceira via”. Essa ideia foi bastante trabalhada e divulgada pelo IPESUL
[...] é preciso que se incremente cada vez mais e que se generalize amplamente a difusão
dessas idéias para que o público tome conhecimento de uma vez por tôdas que as
classes empresariais não estão se omitindo e que têm consciência da sua alta
responsabilidade social.
Aos proprietários de jornais presentes a este conclave, dirigimos especialmente o nosso
apelo para que assumam decisivamente posição frente ao problema, conscientes do
papel que lhes cabe na formulação de uma nova ordem de valores morais que irá nos
permitir alcançar a ao desejada paz social em nosso País. 19
1963, p. 7.
79
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Após o golpe civil-militar de 1964 a revista DE, publicação oficial do IPESUL, sofreu
gradativamente uma transformação no seu perfil editorial e na sua periodicidade, além de
manifestar claramente seu apoio ao novo regime. O número de edições da DE após o golpe, de
abril/maio de 1964 a janeiro/março de 1971, é de 30, e de 1962 a 1964, é de 18. Portanto, há
uma redução considerável, levando-se em conta que após o golpe a revista dura cerca de 7 anos.
Esta redução quantitativa deveu-se a restrições financeiras, como podemos ver através do
seguinte apelo feito pela revista, após alguns meses sem edições da DE:
Embora enfrentando dificuldades de ordem financeira, nossa revista volta aos seus
leitores depois de alguns meses de ausência.
Todos compreenderão a razão disso. Nossos recursos são pequenos e o custo da revista
é elevado. [...]
Esperamos que nossos leitores aceitem nossas explicações, compreendam nossos
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
80
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
9.
28 I Ciclo: Fábio Araújo Santos, Hugo di Primio Paz (também cursou a ESG na turma de 1965), Ibá Mesquita Ilha
Moreira e Paulo de Souza Jardim. II Ciclo: Elvo Clemente, Júlio Castilhos de Azevedo e Pedro Américo Leal
(ADESG, 1965, p. 167-171; p. 133-135).
29 RIO GRANDE DO SUL. Diário Oficial... op. cit., p. 12.
30 Democracia e Emprêsa, Porto Alegre, ano 6, n. 1, jan./jun. 1968.
81
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
transcrições taquigráficas ou ao programa em si, mas a veiculação pela Rádio Difusora indica que
o conteúdo de tais transmissões provavelmente era anticomunista. A rádio transmitia A Voz do
Pastor, pertencia à Ordem dos Frades Menores Capuchinhos (Ferraretto, 2007, p. 78) e tinha uma
programação variada, embora parte dela fosse voltada especificamente à religião (Ferraretto,
2007, p. 79).
Considerações Finais
82
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Referências
FERRARETTO, Luiz Artur. Rádio e capitalismo no Rio Grande do Sul: as emissoras comerciais e suas
estratégias de programação na segunda metade do século 20. Canoas: Ed. ULBRA, 2007.
MORAES, Thiago Aguiar de. “Entreguemos a emprêsa ao povo antes que o comunista a entregue ao
Estado”: os discursos da fração “vanguardista” da classe empresarial gaúcha na revista “Democracia e Emprêsa”
do Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais do Rio Grande do Sul (1962-1971). Porto Alegre: PUCRS,
2012. 228 f. Dissertação de mestrado – Programa de Pós-Graduação em História, Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto
______. As organizações anticomunistas em Porto Alegre (1962-1991). In: Jornada de Estudos sobre
ditaduras e direitos humanos: Anais. Porto Alegre: APERS, 2011. Disponível em:
<http://www.apers.rs.gov.br/arquivos/1314800293.I_Jornada_Ditaduras_e_Direitos_Humanos
_Ebook.pdf>. Acesso em: 23 ago. 2013. p. 114-123.
RAMÍREZ, Hernán Ramiro. Os institutos econômicos de organizações empresariais e sua relação com o
Estado em perspectiva comparada: Argentina e Brasil, 1961-1996. Porto Alegre: UFRGS, 2005. 709 p.
Tese de Doutorado - Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.
STARLING, Heloisa Maria Murgel. Os senhores das gerais: os novos inconfidentes e o golpe de 1964.
Petrópolis: Editora Vozes, 1986.
Referências Documentais
83
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
COSTA, Octavio Pereira da. As Fôrças Armadas e as Classes Empresariais. Democracia e Emprêsa,
Porto Alegre, ano 3, n. 3-4, dez./jan. 1965, p. 1-14.
______. Estatutos do Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais do Rio Grande do Sul (IPESUL). 1962b.
Protocolo de Inscrição n. 156.461.
LUCA, Eraldo de. Enciclopédia das sociedades comerciais. Porto Alegre: Sulina, 1961.
MOURÃO FILHO, Olympio. Memórias: a verdade de um revolucionário. Porto Alegre: L&PM, 1978.
RIO GRANDE DO SUL. Diário Oficial Indústria e Comércio, Porto Alegre, ano XVI, n. 77, 23 abr.
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
1991.
84
A REVISTA EGATEA E A PROFISSÃO DE ENGENHEIRO NO RIO GRANDE DO
SUL: A DEFESA DA TÉCNICA, DA EXPERIMENTAÇÃO E DA CIÊNCIA
Introdução
estabelecimento e principalmente, aqueles a que a Escola deve sua vida e prosperidade são
individualidades filiadas ao nosso partido e trabalham pelo progresso homogêneo e uniforme do
RS (...)”.4 Apesar disso, na época de sua criação, a EEPA foi fundada como instituição privada e
continuou de tal modo durante mais de trinta anos, pois servia à comunidade e “(...) porque os
fundadores nenhum provento ou direito exclusivo, estabeleceram para si (...)”5.
As atividades da instituição iniciaram com os cursos de engenharia e agrimensura e para
René Gertz “(...) desde o início se evitou o bacharelismo, típico do ensino superior brasileiro da
época, e se optou por uma escola prática, inserida no contexto social circundante. (...)” (2002, p.
152). Nessa mesma página o autor afirma que ao contrário de outras escolas de engenharia
brasileiras, que seguiam o modelo de escola politécnica francesa, a escola de Porto Alegre optou
por matrizes que referenciassem o ensino técnico e prático, o saber fazer, como as
TechnischeHochschule alemãs e o modelo de ensino norte-americano. Mesmo que a maioria dos
idealizadores da instituição fosse formada pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro, eles não
queriam seguir os moldes daquele ensino, nem serem equiparados às faculdades oficiais do
governo.
86
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
No nosso, como em quasi todos os paízes, da grande massa que se dedica ao estudo
clássico e as profissões liberaes, apenas limitadíssimo numero aufere resultados que
compensem os extenuantes esforços dispendidos. (...) Ao desejo tão natural dos paes
de educarem convenientemente os filhos à ancia de progredir sempre e de fazer
progredir a terra que nos é berço, devem coaresponder os poderes públicos com a
organização do ensino profissional e technico (...).E, para se integrar o apparelho
educacional do Estado, cumpre organizar o ensino profissional technico, em que os
alumnos pratiquem nas artes e industrias a que se destinem, ensino este que tem sido o
principal factor do grande progresso econômico dos Estados Unidos e da Allemanha. 6
EEPA, o que demonstra que naquela época, as demais instituições de ensino brasileiras não davam conta das
aspirações da Escola gaúcha.
87
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
a EEPA de outras instituições de ensino brasileiras, tornando-a reconhecida pelo seu inovador
sistema de ensino.
Assim, em 1914 quando já estava estabilizada e organizada em modernos institutos de
ensino, a EEPA investiu na concretização de outro projeto: a criação de uma revista oficial da
instituição.
9 Na época em que a Revista foi criada, seu nome foi alvo de curiosidade, conforme relatam os dirigentes da EEPA.
Na verdade, tratava-se de uma combinação simples, com as iniciais dos seis institutos que formavam a Escola na
época. Instituto de Engenharia, Instituto Ginasial Júlio de Castilhos, Instituto Astronômico e Meteorológico,
Instituto Técnico Profissional, Instituto de Eletro-Técnica e Instituto de Agronomia.
10 EGATEA. Revista Egatea: Porto Alegre, Volume1, nº 1, julho e agosto de 1914, p. 1.
88
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
meses11 falhou em diversos momentos, tanto que a irregularidade da publicação foi colocada
como um dos motivos na baixa das assinaturas.
Pode-se dizer que a pouca diversidade de colaboradores fazia com que a temática dos
artigos se repetisse, uma vez que cada professor escrevia sobre assuntos de sua especialidade e
sobre as disciplinas que ministrava na Escola. Portanto, pouca diversidade de colaboradores,
significava variedade limitada de temáticas discutidas nos artigos. Há de se considerar que a
EEPA possuía diversos professores, mas eles lecionavam muitas matérias cada um, disciplinas, às
vezes, fora de sua área de atuação. Muitos também atuavam em cargos públicos ou tinham seus
próprios escritórios de engenharia, não podendo dedicar-se integralmente as atividades da
instituição, o que pode ser um indício para a pouca colaboração em relação à Egatea.12
A tendência dos textos publicados também dependia do editor-chefe. Até 1920, exerceu
esse cargo o Engenheiro Mecânico-Eletricista Vivaldo de Vivaldi Coaracy13, chefe do Instituto de
Eletrotécnica. Nesse período, discussões sobre eletricidade foram destaque na revista. A partir
1921, o enólogo Celeste Gobbato assumiu o posto. Passou-se então, a explorar os temas ligados
à agricultura e suas indústrias, sobretudo a importância de seu caráter prático.
Nesse momento os editores da revista assumiram a necessidade de dar um caráter mais
científico ao periódico14. No olhar de seus novos editores, não era o tipo de publicação
11 Em geral, cada volume da EGATEA era anual, e formado por seis números, publicados a cada dois meses. Em
diversos momentos, porém, seja por questões financeiras ou poucos colaboradores de artigos, a revista não
conseguiu cumprir o objetivo de ser publicada bimestralmente.
12Relatório da Escola de Engenharia de Porto Alegre. Porto Alegre: 1918, p. 196.
13 Vivaldo de Vivaldi Coaracy tinha experiência na imprensa quando assumiu o cargo de redator chefe da EGATEA.
Ele nasceu no Rio de Janeiro em 1882 e era filho da jornalista Corina Coaracy. Seguindo os passos da mãe iniciou
sua carreira na imprensa carioca, porém, mudou-se para o RS e trabalhou em jornais de Porto Alegre. Em 1911 já
morando no RS formou-se pela EEPA, tornando-se depois professor.
14Relatório da Escola de Engenharia de Porto Alegre. Porto Alegre: 1923, p. 4.
15 Ibidem.
89
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
comum a Egatea publicar traduções de artigos escritos por estadunidenses e ingleses. Mais
comum ainda era a publicação de matérias que defendessem o ensino técnico profissional e a
engenharia como essenciais ao desenvolvimento econômico do Estado e do país. Em 1915, por
exemplo, em um artigo intitulado “A Engenharia como profissão” podia-se encontrar nas páginas
da Revista Egatea a seguinte afirmação:
Si cada estudante que entra para um curso technico considerasse a vastidão coberta pela
carreira que elle escolheu para ser o trabalho de sua existencia, e a importancia dessa
carreira para a especie humana, uma de duas cousas succederia – ou elle ficaria inteiramente
desanimado e perderia a coragem; ou seria erguido a um tal grao de enthusiasmo que
resolveria corajosamente empregar os seus melhores esforços para se tornar um digno
membro da confraria dos engenheiros. No primeiro caso elle procederá bem si desistir do seu
intento, porque todo o engenheiro de valor é necessariamente um homem de coragem; nesta profissão
não ha logar para fracos (...). 16 (grifo nosso).
demonstra o interesse e a necessidade de justificar e valorizar a profissão que durante maior parte
da história brasileira foi desvalorizada17. Os assuntos que o periódico tratava estavam em
consonância com as mudanças urbanísticas e econômicas do período. Era o engenheiro, o
profissional preparado para executar essas mudanças. Os mestres de obras que muitas vezes
substituíram os engenheiros em diversos empreendimentos não davam mais conta dos rápidos
avanços tecnológicos e científicos daquele momento.
Desse modo, a Egatea justificava a necessidade de formar profissionais técnicos e
especializados. Justificava, portanto, a própria EEPA. Trata-se de um processo que culminou na
consolidação da profissão de engenheiros nos anos 1930. Sendo dessa forma, a revista precisava
circular, efetivamente, entre os próprios engenheiros, entre outras instituições de engenharia,
16 WADDEL & HARRINGTON. A Engenharia como profissão. Revista EGATEA. Porto Alegre: Volume II, nº 3,
novembro e dezembro de 1915, p. 141.
17 Diversos autores discutiram a questão do desprestígio da profissão de engenheiro até o século XIX. É importante
salientar, que esse desprestígio é relacionado ao outro, ao opositor, isto é, aos bacharéis. Embora engenheiros
fizessem parte de uma elite, de uma pequena parcela da população que tinha acesso ao ensino superior, a profissão
era desprestigiada se comparada aos médicos e bacharéis. Foi, inclusive, a oposição aos bacharéis um dos fatores de
unidade entre os engenheiros, fator que os auxiliou a se organizarem como grupo profissional.
90
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
entre elites intelectuais, econômicas e políticas18. Afinal, seriam esses grupos que poderiam
atender aos interesses da Engenharia como profissão.
Considerações Finais
18A cerca do conceito de elite, entende-se tratar de um grupo de indivíduos que se sobressai aos demais por possuir
algum tipo de privilégio não comum à maioria da sociedade (HEINZ, 2006).
91
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Referências
ALONSO, Angela. Social Frustration and Republicanism in 19th century Brazil. In: LATIN
AMERICAN STUDIES ASSOCIATION, Chicago, Illinois, September 24-26, 1998. Disponível
em: <http://lasa.international.pitt.edu/LASA98/Alonso.pdf>. Acesso em 23 de maio de 2011.
AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário: 1968-1978:) O exercício
cotidiano da dominação e da resistência O Estado de São Paulo e Movimento. Bauru: EDUSC,
1999.
BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa – Brasil (1900-2000). 1ed. Rio de Janeiro:
MAUADX, 2007, vol. 1.
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
DIAS, José Luciano Mattos. “Os engenheiros do Brasil”, In: GOMES, Angela castro (coord.)
Engenheiros e economistas: novas elites burocráticas. Rio de janeiro: Editora FGV, 1994.
GERTZ, René. Capítulo 6. In: ______. O aviador e o carroceiro. Política, etnia e religião no Rio
Grande do Sul dos anos 1920. Porto Alegre: Edipucrs, 2002.
HEINZ, Flavio M. Por outra história das elites. Rio de Janeiro: FGV, 2006.
QUELUZ, Gilson Leandro. Concepções de Ensino Técnico na República Velha: 1909-1930. Curitiba:
CEFET/PR, 2000, 237p.
TELLES, Pedro Carlos da Silva. História da Engenharia no Brasil. Rio de Janeiro: Clavero
Editoração, 1984-1993, 2 vol.
92
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Referências Documentais
WADDEL & HARRINGTON. A Engenharia como profissão. Revista EGATEA. Porto Alegre:
Volume II, nº 3, novembro e dezembro de 1915, p. 141.
93
A MEDICINA NO RIO GRANDE SUL: REGULAMENTAÇÃO E CONSTRUÇÃO
DAS ESPECIFICIDADES DO CAMPO PROFISSIONAL
Não raro, vemos a medicina ser caracterizada como um saber milenar, praticado desde
tempos remotos. Esse tipo de visão atribui uma atemporalidade para o conhecimento e para as
práticas concebidas atualmente como parte do saber médico.
A ideia de uma medicina erudita e acadêmica, tida como um saber superior às demais
práticas populares e legitimada pelo manto da neutralidade científica, parecia um fato
inquestionável para os trabalhos pioneiros sobre o tema, produzidos quase exclusivamente por
médicos. Ao lermos seus textos, temos a impressão de que a medicina se constituía como um
corpo unificado, dotada da prerrogativa de decidir não só sobre a vida e morte dos pacientes, mas
também como saber capaz de decidir sobre os rumos da nação.
No entanto, ao analisarmos os trabalhos produzidos recentemente na área de História da
Saúde2 e História da Medicina, percebemos como essa perspectiva foi sendo construída ao longo
das primeiras décadas do século XX pelos próprios profissionais da área médica3. Esses estudos
foram responsáveis pela colocação de alguns dos problemas que se tornaram caros aos estudiosos
do tema.
Em primeiro lugar, porque mostraram como, ao longo dos três primeiros séculos da
história do Brasil, apenas uma tênue fronteira distanciava o saber médico oficial dos saberes
populares, sem que houvesse uma hierarquia entre eles. A diversidade de práticos de cura num
mesmo período era enorme. Suas formações eram as mais diversas e nem todos eram chamados
de médicos. No que se refere ao Brasil, sempre houve uma grande variedade de métodos de cura
desde o período colonial. Havia os físicos, que eram bacharéis licenciados por universidades
ibéricas. Os doutores eram aqueles que defendiam conclusões magnas ou teses em Coimbra,
Montpellier e Edimburgo. Os barbeiros praticavam pequenas cirurgias, além de cortar cabelo e
fazer a barba. Já os boticários comerciavam drogas e concorriam com os físicos e cirurgiões-
barbeiros no tratamento de doenças. Havia ainda aqueles que, sem habilitação formal, receitavam
1 Doutoranda do Programa de Pós Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e
bolsista CAPES. E-mail: geandradm@gmail.com
2 Nikelen Witter define a área de História da Saúde como “um campo que se configura complexo e abrangente,
através do qual a vida social, política e cultural dos grupos humanos pode ser percebida e analisada pelo historiador a
partir da ocorrência de enfermidades individuais ou coletivas. A proposta é utilizar saúde – visto como um termo que
abrange desde práticas populares e científicas até ações e políticas públicas, ocorrência de doenças, interação com o
ambiente, etc. – como um veículo para a investigação da organização social (Witter, 2007, p. 20).
3 Não pretendemos nos aprofundar nas questões sobre o debate historiográfico da área. Uma ótima síntese sobre os
trabalhos recentes na área e a sua contribuição pode ser encontrada em Witter (2005).
remédios e faziam curativos, de acordo com horizontes culturais diversos – pajés, benzedores,
curandeiros, etc (Weber, 1999, p. 21).
Em segundo lugar, indicaram a existência de conflitos não apenas entre a medicina e suas
concorrentes populares, mas entre os próprios médicos acadêmicos, fazendo dessa uma área
marcada pela diversidade de correntes e pelas incertezas e contradições em torno de diferentes
métodos terapêuticos no tratamento de doenças e no combate a epidemias, daí a necessidade do
uso do termo “medicinas”. Até que conselhos técnicos pudessem decidir sobre questões relativas
à vida e à morte, desenvolveu-se uma feroz luta entre esses diferentes atores sociais pela posse da
verdade.
Em terceiro lugar, destacaram a ideia de que medicina e magia permaneceram associadas
para uma boa parte da população brasileira, influenciando suas escolhas terapêuticas e a busca de
curadores – médicos ou curandeiros – até meados do século XX. Práticas consideradas como
superstições conviviam com práticas ditas científicas. Os próprios médicos, envolvidos com
pesquisas e portando um discurso modernizador e progressista, eram, não raro, indivíduos
profundamente religiosos. O conhecimento médico, apesar do discurso de objetividade, possuía
explicações mágicas para uma série de fenômenos incompreensíveis pelos métodos da época.
Além disso, muitas práticas como o vitalismo4, hoje tidas como crenças, eram aceitas como
4 O vitalismo foi uma teoria defendida por filósofos e cientistas entre meados do séc. XVIII e meados do séc. XIX.
Caracterizava-se por postular a existência de uma força ou impulso vital (ou elã vital, conforme classificou Bergson)
sem o qual a vida não poderia ser explicada. Tratar-se-ia, assim, de uma força específica, distinta da energia –
estudada pela Física e outras ciências naturais – que, ao atuar sobre a matéria organizada, teria como resultado a vida.
Os vitalistas estabelecem uma fronteira clara entre o mundo vivo e o inerte. A morte não seria entendida como efeito
da deterioração da organização do sistema, mas como resultado da perda do impulso vital ou da sua separação do
corpo material. Em biologia, esse quadro teórico teve um momento fecundo, porque afastava o vivo do mecanismo
e explicações causais e redutivas do pensamento cartesiano, sem cair em explicações de cunho sobrenatural. O
vitalismo baseia-se em três proposições principais: 1) os fenômenos vitais não podem ser inteiramente explicados por
causas mecânicas; 2) um organismo vivo nunca poderá ser produzido artificialmente pelo homem num laboratório
de bioquímica; 3) a vida sobre a terra, ou, em geral, no universo, não teve origem natural ou histórica decorrente da
organização e do desenvolvimento da substância do universo, mas é fruto de um plano providencial ou de uma
criação divina. Para mais informações, ver Solano e Gutiérrez (2005).
95
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
convergência de opiniões em meio aos seus conflitos internos, pois o livre exercício da cura
ameaçava diretamente os profissionais diplomados.
Mesmo que defendessem diferentes propostas terapêuticas e discordassem sobre elas,
certamente concordavam que seus métodos eram superiores ao dos “curandeiros” e dos
“charlatães”. Primeiro, porque seu conhecimento estava associado à ciência, diferente dos
“curandeiros”, que se baseavam em crenças populares e irracionais. Segundo, porque a medicina,
enquanto arte e próxima ao sacerdócio, era fruto da dedicação e caridade, estando “estreitamente
vinculada ao que de mais profundo existe na alma humana”5. De forma alguma poderiam ser
comparados à “malta voraz de famintos aventureiros”, ávidos de ganho e “faltos de consciência”,
responsáveis pelo “aviltamento” e pela “desmoralização da profissão”.
Foi essa coesão que possibilitou aos médicos unirem-se e formar um órgão que
representasse as suas reivindicações enquanto grupo. Em sessão solene, no dia 21 de maio de
1931, mais de uma centena de médicos atuantes no estado atenderam ao convite publicado nos
“principais jornais da Capital” e compareceram ao salão nobre da Faculdade de Medicina de
Porto Alegre a fim de fundarem uma associação destinada a “defender os interesses morais e
materiais da classe, com o nome de Sindicato Médico do Rio Grande do Sul”6.
Desde suas primeiras ações, fica claro que o objetivo prioritário e mais urgente do
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
Um dos fatores que tornou possível a esses profissionais da área médica se identificarem
em torno de uma questão comum foi o reconhecimento, por parte desses médicos, de que
pertenciam a um mesmo grupo, com uma função e interesses compartilhados. Além disso, foi
necessário também que esses fossem reconhecidos como detentores de um saber específico e
legítimo, o que os tornaria aptos a intervir e dar o seu parecer sobre questões relacionadas ao seu
96
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
campo de conhecimento. Esse processo de profissionalização foi marcado pelo conflito entre
médicos e demais práticos de cura em torno dos limites da sua atuação e da busca de entidades
médicas – como sindicatos, conselhos e associações – por autonomia e autorregulação8. É dentro
desse quadro de disputa que vai se estabelecer uma separação entre práticas de cura “leigas”,
caracterizadas, conforme os discursos médicos, pela ignorância, pela superstição e pela ineficácia,
e uma medicina acadêmica e “oficial”, assentada num conhecimento científico e “superior”.9
Conforme aponta Roberto Machado, “a medicina não pode desempenhar esta função política
sem instituir a figura normalizada do médico, através, sobretudo, da criação do médico, e
produzir a personagem desviante do charlatão para a qual exigirá a repressão do Estado”
(Machado, 1978, p. 156).
Essa normatização da qual fala Machado implica, a nosso ver, a institucionalização e a
oficialização de uma classificação a respeito dos próprios médicos, da medicina enquanto
atividade profissional legítima e da habilitação necessária para exercê-la. Ao mesmo tempo, essa
taxonomia pressupõe a caracterização de certos indivíduos como não habilitados a exercerem
determinadas funções atribuídas aos médicos e que, por isso, praticariam a medicina de forma
ilegal (Vieira, 2009, p. 58).
Dessa forma, é possível afirmar que a importância da medicina enquanto “corporação”
8 De acordo com Bourdieu, “os detentores de um mesmo título tendem a constituir-se em grupo e a dotar-se de
organizações permanentes – ordens de médicos, associações de antigos alunos, etc. – destinadas a assegurar a coesão
de grupo – reuniões periódicas, etc. – e a promover seus interesses materiais e simbólicos” (Bourdieu, 2007, p.149).
9 De acordo com Nancy Leys Stepan, “O período de 1880 a 1930 foi de considerável crescimento intelectual e
consolidação institucional da ciência. [...] De modo mais geral, a ciência foi amplamente reconhecida como essencial
à autoridade material e moral do Ocidente – às próprias definições de modernidade e civilização. Os intelectuais
latino-americanos leram com avidez os trabalhos dos importantes pensadores científicos da Europa. Eles abraçaram
a ciência como uma forma de reconhecimento progressista, uma alternativa para a visão religiosa da realidade e um
meio de estabelecer uma nova forma de poder cultural” (Stepan, 2005, p. 49-50).
97
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
para realizar a fiscalização. O cargo de delegado de higiene, por exemplo, era honorário e não
remunerado.
A questão da liberdade profissional era avidamente criticada pelos médicos rio-
grandenses. Segundo esses, a “licenciosidade profissional” abria espaço para a ação de indivíduos
inescrupulosos e “exploradores da ignorância do povo”. O governo do Rio Grande do Sul, ao
permitir que esses indivíduos atuassem, estaria promovendo o “patrocínio oficial dos homicídios
decorrentes da ação de charlatães”. Era preciso, “em nome da saúde pública” e dos “altos
interesses da nacionalidade”, um código que regulamentasse o exercício da medicina e pusesse
fim ao charlatanismo. Para isso, não bastava apenas a ação do Estado, mas dos próprios médicos
enquanto grupo, como podemos perceber na palestra proferida por Silveira Netto na primeira
sessão ordinária da Sociedade Médica Rio-Grandense:
No Estado estão regulamentadas profissões outras que interessam à saúde pública. Por
que não exigir, também em nome da saúde pública e portanto dos altos interesses da
nacionalidade um código que regulamente o exercício da medicina entre nós? É uma
oportunidade única para se fazer alguma coisa em prol da velha aspiração de médicos
rio-grandenses coletivamente desnivelados e decadentes materialmente, pela tolerância
patológica que demonstram. É preciso que os verdadeiros profissionais se unam,
tenham visão clara de seu papel na sociedade moderna e não continuem abrindo mão
dos direitos de defender este patrimônio moral que é o dever de atuarem em prol da
nossa gente contra os estelionatos profissionais, contra as mutilações cirúrgicas, o
empobrecimento de pacientes ignorantes e indefesos e os assassínios perpetrados
98
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Embora esses médicos atribuíssem a culpa pela ação dos licenciados ao Estado – por não
regulamentar a prática médica – e à ignorância da população local, essa não era uma prática
exclusiva do Rio Grande do Sul. Embora somente aqui ela tenha sido legalizada, é preciso
lembrar que em outros estados não havia faculdades de medicina e certamente a fiscalização do
exercício profissional devia ser bastante limitada. Se a condição da medicina no Rio Grande do
Sul contrastava com a realidade que se apresentava na capital federal no mesmo período, esse
mesmo quadro devia ser bem semelhante ao de outras regiões brasileiras, sobretudo aquelas mais
afastadas dos centros urbanos (Vieira, 2007, p. 37).
Além disso, no século XIX e início do XX, a medicina acadêmica ainda não possuía, aos
olhos da população, a superioridade almejada pelos médicos em relação ao curandeirismo, uma
vez que possuía recursos terapêuticos limitados e apresentava um grande número de fracassos
nos tratamentos empregados. Conforme Nikelen Witter:
Dessa forma, quando se volta a atenção para o século XIX, pode-se perceber que este
não constituía um domínio pacífico de uma medicina acadêmica totalmente
corporificada – como sugere a historiografia tradicional. Ao contrário, o que se tinha
Como podemos ver, a preferência pelos “curandeiros” não se explica apenas pela escassez
de médicos diplomados, pela falta de fiscalização ou pelo baixo nível de instrução da população
para escolher os profissionais “habilitados”. Não se pode supor uma hierarquia existente entre as
diferentes formas de curar apenas a partir de regulamentos oficiais, nem se deve pensar o
curandeirismo em total oposição à medicina acadêmica, somente existindo para cobrir as brechas
deixadas por esta, como se fossem dois saberes fechados em si. Os limites entre o saber médico
oriundo das faculdades e as práticas populares de cura eram bastante flexíveis. Não raro, médicos
diplomados e os chamados “curandeiros” faziam uso de recursos e tratamentos comuns, como
purgas e sangrias, e utilizavam os mesmos manuais, como o famoso Chernoviz (Vieira, 2009;
Witter, 2001; Guimarães, 2005).
99
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Até o início do século XX, em muitas regiões do Brasil, os médicos com formação
acadêmica contavam com pouca valorização e reconhecimento por parte da população e nem
mesmo detinham a legitimidade conferida pelo poder público. Além disso, longe de se apresentar
como um conhecimento unificado e autônomo, a medicina foi marcada pelas incertezas e
contradições em torno de diferentes métodos terapêuticos no tratamento de doenças e no
combate a epidemias.
As discussões travadas entre médicos não se limitavam aos periódicos e publicações
médicas, sendo levadas a público por meio de jornais e até mesmo nos tribunais11. Tal situação
não só prejudicava qualquer tentativa de corporificação, como contribuía para manter as outras
práticas de cura na posição que sempre ocuparam, reforçando o pouco conceito dos médicos
perante a população (Witter, 2001, p. 73-74).
No caso do Rio Grande do Sul, essas discussões se prolongaram até as primeiras décadas
do século XX, somadas à disputa pelo monopólio profissional e pela hierarquização das práticas
de cura, onde a medicina ocuparia a posição mais alta. Foram travadas lutas não só no campo
social e político, mas também no campo simbólico. Não bastava somente acabar com a
concorrência por meios legais, impondo o fim da liberdade profissional. Era preciso unificar o
grupo, superando as divergências, e também convencer a população de que a medicina acadêmica
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
Inúmeras foram as tentativas de negociação por parte do grupo médico gaúcho para
regulamentar a profissão e neutralizar a ação dos licenciados, pois, para alguns desses médicos, a
liberdade profissional era responsável pela “desmoralização da classe” e pelo “rebaixamento
moral da profissão”12. No entanto, essa mobilização só se intensifica após o Congresso de 1926.
11 Exemplos desses casos são relatados nos trabalhos de Beatriz Weber (1999) e André Faria Pereira Neto (2001) e
no artigo de Odaci Luiz Coradini (1996).
12 Boletim, 1932, p. 8.
100
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Durante o período da administração de Borges de Medeiros, pouco foi feito para pressionar o
governo em relação à regulamentação da profissão médica.
Ao analisarmos as primeiras publicações do periódico organizado pela Sociedade de
Medicina Rio-Grandense, encontramos raras menções ao curandeirismo ou a ação dos
licenciados13. Isso não significa que não havia necessariamente preocupação dos associados com
o assunto, mas que essa inquietação não poderia ser externada através da entidade. Após 1926,
com a realização do 9º Congresso Médico Brasileiro em Porto Alegre, a questão passa a ter mais
visibilidade na revista e durante as sessões da sociedade médica, ao mesmo tempo em que se
passa a discutir a criação de uma entidade dedicada a tratar dos assuntos referentes à
regulamentação da medicina no Rio Grande do Sul.
Com o enfraquecimento do PRR e o fim da “hegemonia borgiana”, decorrente da
reestruturação dos partidos de oposição e das crescentes contestações ao modelo governamental
vigente, ascendeu ao poder uma nova geração de republicanos, com uma visão mais conciliadora
do que a apresentada pelas lideranças anteriores (Axt, 2007, p. 101-102). Essas mudanças podem
ter favorecido o aumento das reivindicações em torno da questão da liberdade profissional, pois
parece ter havido mais espaço para que os médicos pudessem trazer esse assunto para debate.
Embora as possibilidades de negociação da segunda geração republicana sobre os princípios
13Fundada em 17 de maio de 1908, era uma entidade de caráter científico, conforme definiam seus dirigentes, com a
função de promover estudos clínicos (Archivos, 1920, p.41).
101
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Jacinto Gomes, presidente da Sociedade de Medicina eleito em 1928, propõe aos colegas
uma modificação das relações entre os médicos e o governo do estado, “abandonando a atitude
hostil adotada e mantida pela classe há 40 anos, para substituí-la por uma atitude mais cordial”14.
Assim, foi até Borges de Medeiros, que se mantinha ainda como liderança máxima do PRR. A
partir desse encontro, realizou-se uma conferência com Getúlio Vargas, para que fosse
encaminhada uma “solução prática ao problema do exercício da medicina”.
O bom relacionamento entre os médicos da Sociedade de Medicina e o governo estadual
deu mais um passo com a regulamentação do comércio de tóxicos através do decreto n. 4.089 de
13 de julho de 1928. De acordo com Jacinto Gomes, essa medida teve grande alcance do ponto
de vista médico social. O consumo de tais substâncias era visto pelos médicos como um “veneno
social”, capaz de promover a degeneração física, psíquica e moral dos indivíduos.
Cocaína, morfina, álcool, éter: como vedes os quatro obreiros da destruição orgânica,
os quatro obreiros da decadência física e da morte moral. [...] Com o uso dos tóxicos, a
ideia do interesse – grande móvel da atividade humana – revela-se ferida, graças ao
assassínio da ambição do homem e exteriorizado no desaparecimento de sua atividade
construtora, criadora, realizadora; a perda das energias físicas e morais do homem,
igualmente, são apreciadas à proporção que o mal avança e o aniquila; o
comprometimento do patrimônio intelectual da sociedade, igualmente, se revela na área
das letras, das artes, das ciências, o que nos adverte a perda das forças ativas e capazes
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
102
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
A sindicalização seria, a seu ver, não só “melhor maneira de organizar uma classe em sua
defesa”, como também o método “mais eficaz de obrigá-la a cooperação social”. Cita Oliveira
Vianna ao observar que, no Brasil, há um “fraco espírito associativo”, daí “o grau incipiente do
senso de solidariedade em que ainda nos encontramos”. No entanto, lembra, alguns grupos
começaram a demonstrar um movimento de condensação, como a própria Sociedade de
Bittencourt congrega os colegas a organizarem-se em uma entidade sindical, pois sem isso
a “classe médica rio-grandense” não poderia ter seu “valor” reconhecido. Além disso, o Sindicato
Médico possuiria uma função “eminentemente social”, servindo de “intermediária entre as
necessidades sanitárias do povo e a força realizadora do poder público”. Embora a Sociedade de
Medicina, conforme argumentou, estivesse “quase se transformando em sindicato” tendo em
vista a sua atuação no período, era um “órgão imperfeito” para esse objetivo. A nova agremiação
deveria ser criada a partir da própria Sociedade, aproveitando assim a sua “tradição e autoridade”.
Inúmeros debates foram realizados em torno dessa questão, e as opiniões se dividiam
entre a criação de um sindicato ou de uma associação médica. Em sessão na Sociedade de
Medicina, o vice-presidente Guerra Blessman questionou os associados a respeito dessa medida:
“Devemos ter associações de caráter científico independentes das de caráter profissional ou
103
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
ambos os assuntos podem ser cuidados em uma mesma associação? Convém a criação de um
sindicato médico?”19.
Aqueles que eram contrários à formação de sindicato manifestavam opinião favorável à
fundação de uma Associação Médica Rio-Grandense, dividida em três departamentos: um para
assuntos científicos, um de medicina social e outro para cuidar dos “interesses profissionais”.
Argumentavam que o termo associação parecia “mais simpático”, fugindo de “possíveis
explorações tendentes a pôr em evidência o interesse material”. Aqueles que se manifestassem
contra a denominação de sindicato provavelmente o faziam para evitar a identificação associada a
este com o movimento operário e com posicionamentos político-ideológicos.
Já os que defendiam a proposta sindical inspiraram-se na fundação do Sindicato Médico
Brasileiro, no Rio de Janeiro, e no Sindicato Médico Uruguaio. Para esse grupo, a Sociedade
deveria cuidar apenas do “terreno mais espiritual, das questões de ordem puramente técnica e
científica” e não poderia continuar a agitar-se com uma “questão heterogênea” como a de
liberdade profissional (Vieira, 2009).
É visível a influência de um ideário corporativista nesses discursos pró- sindicalização.
Esse esquema corporativo esteve presente, desde os anos de 1920, no Brasil, através de distintos
projetos políticos e concepções intelectuais que vão ganhar força a partir da década seguinte. De
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
O esquema corporativo estará nas origens das medidas adotadas após 1930:
regulamentação das profissões, leis trabalhistas de 1932, legislação sindical. Essas foram
as bases que Wanderley Guilherme dos Santos qualificou como sistema de ‘cidadania
regulada’, que se apoia na atribuição de direitos moldados em função da filiação
profissional (Pécaut, 1990, p. 53).
A possibilidade da criação de uma entidade sindical era vista não só como uma maneira
de “defender os interesses imediatos das classes que representam”. De acordo com o médico
Thomaz Mariante, em texto intitulado “O Estado e os Sindicatos”, publicado no periódico do
Sindicato, Boletins do Sindicato Médico, “sua ação deve ir muito mais longe, deve alcançar a
totalidade de interesses da coletividade, influindo direta e decisivamente no governo da nação”.
Argumenta que a organização do Estado nos “modelos clássicos da representação política está
em franco desacordo com as necessidades e aspirações do povo”, sendo o parlamentarismo uma
instituição falida. Entretanto, alerta, como parece ser “uma necessidade entre nós a manutenção
do governo com seus parlamentos políticos”, é preciso achar um meio de “corrigir os
desmandos” e impor medidas necessárias para a promoção do bem público “sem as peias das
104
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
conveniências partidárias”. Esse meio seria a organização das classes por meio dos sindicatos,
pois esses, ao promoverem a união e a coesão, teriam a força necessária para diminuir as falhas e
os abusos cometidos pelos parlamentos políticos, obrigando seus membros a “pensar mais nos
seus deveres e nas necessidades da coletividade do que nos próprios interesses ou dos respectivos
partidos”. À medicina, por ser uma das profissões que “mais atingem a integridade da raça” e a
saúde do indivíduo, não poderia ser negada a regulamentação profissional.
Aos médicos, que constituem a classe mais culta do Brasil, na opinião unânime dos que
têm estudado a nossa sociedade, e que, por força da sua profissão, estão em contato
mais íntimo com o povo, em todas as suas camadas, que conhecem os seus
sofrimentos, ouvem as suas queixas, sabem das suas necessidades e das suas aspirações,
cabe, imperativamente, o papel mais importante na pública administração. Ao Sindicato
médico está reservada a missão árdua e nobre de velar pelo bem público, zelando pela
saúde e felicidade de nossa gente e, na futura Constituinte deverá ter uma representação
forte e competente, para que não descuidem as necessidades imediatas do povo
brasileiro, a sua saúde e seu bem estar, pois, é sabido que o homem só trabalha bem
quando goza de boa saúde, está bem nutrido e é feliz, do contrário o seu trabalho será
ineficiente e, o que é ainda pior, o seu sofrimento o fará um revoltado, cujo desespero
explodirá em convulsões violentas, ao primeiro aceno de melhores dias, embora tragam
em seu bojo a morte e a destruição20.
105
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Como vedes, não se trata de um simples problema de higiene preventiva, prisma pela
qual vulgarmente são vistas estas questões. Não é apenas a conservação do indivíduo
que está em debate: é o crescimento em número e, sobretudo, em qualidade, da
população que está em jogo. Em síntese – é a questão de desenvolvimento eugênico da
raça que está pedindo atenção. Não basta publicarem-se as regras da puericultura para
uma população, na maior parte, de analfabetos, dominados pelo curandeirismo de
todos os credos e explorados por charlatães de todas as procedências, sob a tutela dos
mais esdrúxulos dogmas filosóficos. Seria pregar no deserto... 21
O Sindicato Médico do Rio Grande do Sul, fundado em 1931, foi a forma que os médicos
encontraram para dar vazão às suas reivindicações. Essa instituição, diferente da Sociedade de
Medicina, tinha como papel tratar dos seus interesses morais e materiais, garantindo a
representação da totalidade da classe e atuando como uma espécie de “frente única”,
congregando a “classe” para superar as divergências internas existentes e representando suas
demandas, dando representatividade às suas reivindicações no campo político.
O Sindicato deveria ser o novo porta-voz, promovendo a corporificação de um grupo
que procurava determinar e instituir a definição do que era ser médico e da “classe médica”. Não
só esse processo vai ser responsável pela transformação de um grupo bastante divergente em
uma “classe” com interesses comuns, como vai ser responsável pelo estabelecimento de uma
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
identidade que diferenciasse os médicos licenciados dos outros profissionais que exerciam as
artes de curar, agora identificados como antagonistas, criando a figura do “charlatão”. Além
disso, vai ser estabelecido um código de deontologia, definindo as responsabilidades dos médicos
e delimitando o campo de ação de outros ofícios da saúde, como odontologia, farmácia,
enfermagem e a função das parteiras.
Com relação à liberdade profissional, apesar dos esforços do Sindicato, a medicina só
consegue se efetivar como profissão regulamentada, como vimos, em 1938. Embora as disputas
entre médicos e licenciados não tenham se extinguido após esse processo, pode-se dizer que
houve uma vitória formal dos primeiros, que garantiram seus interesses, passando a regular o
universo da saúde pública e dos hospitais.
Referências
ABRÃO, Janete Silveira. Banalização da morte na cidade calada: a hespanhola em Porto Alegre, 1918.
2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009.
ALONSO, Angela. Ideias em Movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil Império. São Paulo:
Paz e Terra, 2002.
106
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007.
______. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
BRESCIANI, Maria Stella Martins. O charme da ciência e a sedução da objetividade: Oliveira Vianna
entre os intérpretes do Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
FELIX, Loiva Otero. Coronelismo, borgismo e cooptação política. 2. ed. rev. ampl. Porto Alegre: Editora
da Universidade /UFRGS, 1996.
PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: Entre o povo e a nação. São Paulo: Ática,
1990.
STEPAN, Nancy Leys. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro:
Editora FIOCRUZ, 2005.
WEBER, Beatriz. As artes de curar: medicina, religião, magia e Positivismo na República Rio-
Grandense, 1889-1928. Santa Maria: Ed. UFSM; Bauru: EDUSC, 1999.
______. Médicos e charlatanismo: uma história de profissionalização no sul do Brasil. In: SILVA,
Mozart Linhares da (Org.). História, medicina e sociedade no Brasil. Santa Cruz do Sul: EDUNISC,
2003.
107
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
WITTER, Nikelen Acosta. Curar como Arte e Ofício: contribuições para um debate
historiográfico sobre saúde, doença e cura. Tempo, Rio de Janeiro, nº 19, pp. 13-25,
2005.
______. Dizem que foi feitiço: as práticas de cura no sul do Brasil (1845 a 1880). Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2001.
______. Males e epidemias: sofredores, governantes e curadores no sul do Brasil (Rio Grande do
Sul, século XIX). 2007. 292 f. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Ciências Humanas e
Filosofia, Universidade Federal Fluminense, 2007.
Referências Documentais
BOLETINS do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: n. 1- 26, 1931 a 1939.
PANTEÃO Médico Riograndense: Síntese Histórica e Cultural. São Paulo: Ramos, Franco
Editores, 1943.
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
108
QUESTÕES TRABALHISTAS NAS EMPRESAS FUNDADORAS DO CINFA
(1941-1945)
TATIANE BARTMANN1
Introdução
O presente artigo é composto inicialmente por uma breve revisão historiográfica sobre a
temática da industrialização no Rio Grande do Sul, abordando questões relativas a origem da
indústria a fim de retomar as principais correntes historiográficas que explicam a formação
industrial. Na sequência, é tratado sobre as características de colonização e desenvolvimento
econômico do sul do Brasil, uma vez que, estas questões influenciaram diretamente no processo
industrial. Também são abordados os fatores de industrialização como, por exemplo, as
interligações entre os dois núcleos produtivos do Estado: o pecuarista e o colonial; bem como, a
formação do mercado regional que se dá a partir dessa interligação. Toda essa análise da
historiografia selecionada, busca compreender o papel do imigrante, em especial, o alemão no
processo de industrialização.
1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
e-mail: Tati_bartmann@hotmail.com
Juntas, as ações de trabalho eram distribuídas igualmente entre ambas. Assim, o número de
dissídios levantados na 1ª J.C.J. é praticamente o mesmo que tramitou na 2ª Junta.
Dessa forma, após percorrer pela historiografia, tratar, ainda que brevemente, sobre a
formação do Centro da Indústria Fabril, parte-se para a análise das relações de trabalho nas
indústrias fundadoras do Cinfa. A partir do levantamento numérico dos dissídios, se aposta em
algumas inferências sobre o estudo, no entanto, a pesquisa encontra-se em processo de
desenvolvimento, por isso, alguns aspectos necessitam de maior aprofundamento interpretativo.
Industrialização e Migração
Nas obras cujo foco é a industrialização Sul-Rio-Grandense, pode-se apreender uma série
de informações que são úteis para analisar a formação industrial, bem como, os agentes atuantes
nesse processo. Diante disso, identificam-se algumas questões fundamentais para a compreensão
do desenvolvimento industrial no Rio Grande do Sul, dentre as quais, não se pode deixar de
discutir a Origem da Indústria, suas características principais, seus fatores importantes como a
formação do mercado regional e a participação imigrante.
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
Segundo Paul Singer, a indústria não se desenvolve através do artesanato, pois este último
desaparece quando os proprietários de terras adquirem renda suficiente para importar os
produtos do exterior. Devido à incapacidade de concorrência entre o artesanato e o produto bem
acabado vindo de fora, os estabelecimentos artesanais se extinguem antes mesmo de se
transformarem em indústrias. Sua análise explicativa para a industrialização nacional se
110
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
fundamenta em uma visão capitalista monopolista, assim, a base dos investimentos que permitem
a industrialização é proveniente do exterior, ou seja, está no capital externo a origem industrial.
Nesse ponto, os autores criticam a teoria de Singer quando ele fala que o artesanato
desapareceu. Para Ramos nem a estagnação artesanal, nem sua evolução contínua, a origem
industrial corresponde a uma “curva sinuosa que em certos momentos provoca avanços e recuos
ao desenvolvimento industrial” (RAMOS, 1969: 46).
Heloisa Jochims Reichelt, por sua vez, em “A Industrialização no Rio Grande do Sul na
República Velha” (1979) analisa comparativamente o desenvolvimento industrial do Rio Grande
111
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
do Sul ao de São Paulo, para ela, a falta de capital comercial aparece como fator explicativo ao
menor desenvolvimento industrial do Sul. Segundo a autora, tanto o baixo nível de capital
acumulado, quanto sua pequena capacidade de reprodução, demonstra porque a estrutura
industrial gaúcha fica atrás da paulista.
Ao longo do tempo, esta visão teórica que enfatiza o capital comercial acumulado para
explicar a origem da indústria no Rio Grande do Sul foi frequentemente retomada pelos autores.
Seus estudos também contribuíram para se pensar nas características e nos fatores de
industrialização. Dentre as características situa-se a ideia da divisão do Rio Grande do Sul em
duas zonas distintas de produção, dois “subsistemas” (HERRLEIN, 2000, p. 21).
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
Pode-se pensar, então, que existem estabelecimentos organizados em torno das cidades
de Rio Grande e Pelotas como, por exemplo, a indústria têxtil Rheingantz e a fábrica de velas e
112
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
sabões de Lang, mas, o que permite a inversão econômica para a indústria e a construção desses
estabelecimentos é a atuação do comerciante na acumulação do capital e não daquele antigo
charqueador enriquecido, mas estagnado.
Pesavento (1985) aborda a atuação das relações comerciais em diferentes categorias. Ela
considera os comerciantes do interior, mais isolados dos estímulos do mercado e confere maior
capacidade cumulativa aos comerciantes intermediários. Como exemplo, a autora cita São
Sebastião do Caí, “colônia central que gozava de uma excepcional posição, atendendo o
abastecimento tanto da zona propriamente alemã quanto da italiana” onde se formavam grupos
empresariais como: “Renner, Trein, Ritter, Mantz, Oderich” (PESAVENTO, 1985, p. 29).
Muitas das empresas citadas acima são de origem germânica e nasceram em Caí, mas
posteriormente, se estabeleceram em torno de Porto Alegre que se tornou o maior porto de
escoamento dos produtos diversificados. Herrlein explica que “Porto Alegre, devido à sua função
113
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
O autor também destaca a interligação entre os dois subsistemas. Esta interligação ocorre
no período republicano quando é colocada em prática uma série de medidas que definem os
contornos fronteiriços a oeste do Estado (Montevidéo, Bagé, Livramento, Uruguaiana) por onde
entravam produtos contrabandeados. Assim, fechando esta porta de entrada ilegal, acontece a
ampliação do mercado interno regional e o aumento da produção nas zonas industrializadas cujos
núcleos urbanos são: Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas.
agente da industrialização.
Desde a corrente explicativa desenvolvida por Limeira Tejo (1939) a qual compreende a
industrialização a partir da evolução do artesanato, o imigrante é o antigo artesão. Assim, segundo
o autor o “neto do ferreiro, do tecelão, do sapateiro, do marceneiro, (...) o neto desses imigrantes
é que nossa era veio surpreender em sua quase generalidade como chefe de indústria” (TEJO,
1939, p. 19).
Por outro lado, o “pequeno artesão” ou “artesão rural” é o imigrante que posteriormente
irá constituir a mão-de-obra nas indústrias. Segundo Haas (1971), o pequeno artesão se destaca
por possuir a técnica necessária para suprir a mão-de-obra mais qualificada nos futuros
estabelecimentos industriais.
114
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Contudo, apesar das diferentes concepções sobre a origem da indústria, em todas elas, o
imigrante possui atuação. A historiografia aponta para diversas atividades promovidas pelo
imigrante que se relacionam diretamente com o processo de industrialização.
Nesse sentido, observa-se que a formação do Centro da Indústria Fabril (Cinfa) em Porto
Alegre se dá pela união de vários empresários que são de origem germânica. Em sete de
novembro de 1930 é criado o Cinfa, neste contexto outros Estados como o Rio de Janeiro,
pioneiro na organização da classe empresarial, e São Paulo estão formando os grupos
empresariais que estabelecem o diálogo político com o Estado. Conforme Ana Monteiro Costa
(2010) “o processo associativo da burguesia industrial do centro do país deu-se mais
2 “(...) Enquanto aquela já buscava atuar junto ao governo central, procurando diminuir ao máximo possível suas
desvantagens na questão social, que passaria a ser regulamentada pelo Estado, aqui havia uma negação dessa
regulamentação por parte do PRR, garantindo, in loco, a negociação entre capital e trabalho”. Sobre isso ver: COSTA,
Ana Monteiro. A Gênese do Empresário Gaúcho: uma interpretação a partir dos modelos de matriz institucional e de construção
mental de Douglass North. 2010. 186 f. Tese (Doutorado em Economia) – Faculdade de Ciências Econômicas.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010.
115
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Assim, Ana Monteiro Costa (2010) analisando a gênese do empresário gaúcho, explica
que a germanidade é um vetor que impulsiona o desenvolvimento capitalista no Rio Grande do
Sul. Através de um viés Weberiano a autora trabalha “o legado cultural germânico” sendo
formado “por duas instituições informais: a ética protestante e a superação da condição adversa
de vida” justificando, dessa forma, porque a formação do empresário gaúcho ocorre entre os
imigrantes alemães e não a partir da elite charqueadora3.
Ana Costa enumera os “vetores principais, que originam instituições formais e informais,
que servem de estímulo ao aparecimento do empresariado no estado”, assim, segundo o esquema
proposto pela autora, tem-se: “ i) o legado cultural germânico; ii) a dominação do capital e a
disciplina do trabalho; iii) a aliança com o Estado e; iv) a constituição da classe empresarial”
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
Com isso, concorda-se que é muito coerente levar em consideração o legado cultural
germânico ao analisar a formação do grupo empresarial no Rio Grande do Sul. No entanto,
acredita-se que o conjunto de valores comuns partilhados entre os empresários alemães tenha
menos relevância na constituição empresarial, ou seja, explicar o êxito da elite empresarial gaúcha
priorizando o legado cultural germânico não parece ajudar na compreensão prática do Cinfa, por
exemplo.
3Estas questões foram brevemente analisadas na primeira parte do trabalho, para mais detalhes, ver: PESAVENTO,
Sandra Jatahy. RS: agropecuária colonial e industrialização. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.
116
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
desenvolve uma abordagem econômica, política e religiosa do seu grupo empresarial. A elite
delimitada por Andrius Noronha é posteriormente categorizada seguindo sua orientação religiosa
distribuida entre: Evangélicos e Católicos.
A partir dessa classificação inicial, Andrius Noronha analisa a atuação da elite empresarial
local em relação ao empreendedorismo, a atuação política, o nível de escolaridade, localidade de
nascimento, situação como acionista de capital aberto, e outras várias características dessa elite.
Por fim, ele chega ao resultado que muito espantaria os autores que tendem a explicar a
industrialização Sul-Rio-Grandense carregando demais nos aspectos da germanidade
empreendedora. Noronha conclui que a homogeneidade étnica germânica não explica o sucesso
da elite empresarial, pois existem outros fatores que demonstram maior relevância.
O “ethos da burguesia Guilhermina” está presente, segundo Norbert Elias, nas Relações
Trabalhistas das empresas alemãs ou de origem germânica, onde o chefe industrial segue
princípios disciplinares muito semelhantes de seus empregados por compartilharem de uma
mesma cultura. Nesse sentido, será possível falar em “ethos Guilhermino” no contexto do Brasil?
117
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Art. 6º - Para ser sócio do Centro é necessário ter boa reputação e legalmente exercer a
indústria fabril no Estado do Rio Grande do Sul, com estabelecimento em que
normalmente trabalhem pelo menos em um só turno, vinte e cinco (25) operários. (Ata
nº 3 de Reunião Conjunta do Centro da Indústria Fabril do Rio Grande do Sul).
Sendo assim, entende-se como Indústria, as empresas fundadoras do Cinfa4, pois estas,
além de seguirem os critérios estabelecidos pelo Centro, ainda tiveram a consciência de classe
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
para unir-se. A partir dessa definição inicial, serão analisadas as ações trabalhistas movidas contra
as indústrias gaúchas fundadoras desse Centro empresarial.
Para isso, foi elaborado um sistema de categorização temática que parte da natureza da
reclamação feita pelo empregado, mas considera também o vínculo do trabalhador com o
estabelecimento reclamado no momento em que este dá início a ação. São quatro as categorias
4Empresas fundadoras do Cinfa: A.J. Renner e Cia; Frederico Casper e Cia; Oscar Campani e Cia (Moveleiro);
Kluwe Müller e Cia; Barcellos Bertaso e Cia; Nedel Jung Hermann e Cia; Hugo Gerdau; Alberto Jung (Calçadista);
Ernesto Neugebauer; Walter Gerdau; Wallig; Otto Brutschke; J. R. da Fonseca e Cia; Herbert Bier; Cia de Vidros
Sul-Brasileira; Sociedade da Banha Sul-Rio-Grandense Ltda; Cia Fiação e Tecidos Porto Alegrense; Kessler,
Vasconcellos e Cia; Tannhauser e Cia Ltda; Cia Souza Cruz (fábrica); H. Stanley Smith; Oscar Teichmann e Cia;
Bopp, Sassen e Ritter e Cia; Cia Geral de Indústrias; F. C. Kessler e Cia; Fábrica Berta (Alberto Bins); Fábrica Rio
Guahyba; Sociedade Industria e Comércio Ltda.
118
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
A categoria “Despedidas e Demissões” refere-se, então, aos trabalhadores que não mais
compõem o quadro de funcionários da indústria requerida. Portanto, as reclamações que
preenchem esta categoria são de empregados que foram realmente demitidos ou que se
consideram como tal, visto que, a empresa não oferece serviço ao reclamante. Para exemplificar
esse último, existem algumas reclamações onde o empregado deixa claro que não foi
Dessa forma, pode-se pensar no rigor disciplinar existente nas indústrias que punem com
a suspensão o empregado faltoso, o não pontual, ou aquele que desrespeita a hierarquia. O
desconto salarial se dá quando existe erro na execução do trabalho por parte do operário, já o
rebaixamento de categoria ocorre quando o empregado infringiu alguma regra de boa conduta
que caracteriza o ato de insubordinação. Assim, o empregado inicia a ação porque se sente
injustiçado.
119
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
disciplinar”.
5 Sobre o assunto, ver: WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra Capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2003.
120
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
empresas, percebe-se que o número de reclamações é relevante. No âmbito dessa pesquisa, são
avaliados apenas os processos que tramitaram na 1ª JCJ sendo que, no ano de 1941, foram criadas
duas J.C.J.s em Porto Alegre e ambas possuem praticamente os mesmo números processuais
tramitando no período de 1941 até 1945.
É possível afirmar também que a qualidade das reclamações, ou seja, o tipo de reclamação
não demonstra nenhum indício de que as relações de trabalho nas indústrias de origem germânica
sejam diferentes das empresas cujos donos possuam outra descendência étnica. Sendo assim, o
legado cultural germânico, provavelmente, tenha terreno fértil em empresas alemãs onde
empregados e empregadores partilham de uma mesma cultura, mas o que se percebe no Rio
Grande do Sul, nas indústrias de origem germânica são relações de trabalho conflituosas como
em qualquer outra indústria.
O conflito existente dentro do setor fabril, muitas vezes, é motivado pela própria
diversidade étnica. É difícil reconhecer através da documentação os trabalhadores descendentes
de alemães, pois, mesmo sendo loiro de olhos azuis, nascendo no Brasil, é registrado como
brasileiro. Apesar disso, é possível verificar que existe diversidade étnica dentro das indústrias
analisadas. Há casos trabalhistas, os quais compõem as categorias apresentadas, que resultam
Referências
121
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
COSTA, Ana Monteiro. A Gênese do Empresário Gaúcho: uma interpretação a partir dos modelos de matriz
institucional e de construção mental de Douglass North. 2010. 186 f. Tese (Doutorado em Economia) –
Faculdade de Ciências Econômicas. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
2010.
ELIAS, Norbert. “Sobre o ethos da burguesia Guilhermina”. In: ELIAS, Norbert. Os Alemães: A
luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
HAAS, Ani Maria Schiphorst. O Empresário Industrial do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS,
1971.
HERRLEIN Jr., Ronaldo. Rio Grande do Sul, 1889-1930: Um outro capitalismo no Brasil Meridional?
2000. 168 f. Tese (Doutorado em Economia) – Instituto de Economia, Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, 2000.
LANGEMANN, Eugênio. A Industrialização no Rio Grande do Sul (Um estudo Histórico). Porto
Alegre: IEPE/UFRGS, 1978.
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
LOBO, Valéria Marques. O Processo Trabalhista como fonte para a pesquisa em História. Disponível em:
sitemason.vanderbilt.edu/files/dAxFGU/Valeria%20Lobo.pdf Acesso em: 15 de abr. 2013.
NORONHA, Andrius Estevam. Beneméritos Empresários: História Social de uma Elite de Origem
imigrante do Sul do Brasil (Santa Cruz do Sul, 1905-1966). 2012. 372 f. Tese (Doutorado em História)
– Programa de Pós-Graduação em História. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre, 2012.
OSÓRIO, Ivan Dall’Igna; RAMOS, José Hugo. Industrialização Posta à Prova. Porto Alegre:
[UFRGS], 1969. Trabalho datilografado.
SINGER, Paul. Desenvolvimento econômico e evolução urbana : análise da evolução econômica de São Paulo,
Blumenau, Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife. São Paulo: Nacional, 1968.
122
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
_______________. RS: agropecuária colonial e industrialização. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.
REICHEL, Heloísa Jochims. A Industrialização no Rio Grande do Sul na República Velha. In:
DACANAL, José Hildebrando; GONZAGA, Sérgius (Orgs.). RS: Economia e Política. Porto
Alegre: Mercado Aberto, 1979. p. 255-275.
_______________. A Estrutura da Indústria Rio-grandense nos inícios da década de trinta. Porto Alegre,
Estudos Ibero-americanos, v.7, n.1/2, p. 81-87, 1981.
TEJO, Limeira. A Indústria Rio-Grandense em Função da Economia Nacional. Porto Alegre: Globo,
1939.
WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra Capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2003.
123
A FUNÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO RIO GRANDE DO SUL, SEU
ACERVO E O ACESSO À INFORMAÇÃO
Introdução
Lei 7.347/85 – Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados
ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético,
histórico, turístico e paisagístico (VETADO) e dá outras providências
...
Art. 5o Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:
I - o Ministério Público;
...
§ 1º O Ministério Público, se não intervier no processo como parte, atuará
obrigatoriamente como fiscal da lei.
125
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
126
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
127
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
128
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
129
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
bem como metas e indicadores propostos; e a informação sobre inspeções, auditorias, prestações
e tomadas de contas realizadas pelos órgãos de controle interno e externo, inclusive de exercícios
anteriores.
Os órgãos públicos têm por dever primordial garantir aos cidadãos o que chamamos de
transparência ativa, ou seja, garantir, independentemente de requerimentos, a divulgação em
local de fácil acesso de informações de interesse coletivo ou geral, na sua esfera de competência.
Os dados devem ser divulgados nos sítios oficiais da rede mundial de computadores (internet).
O acesso às informações deve ser assegurado mediante a criação de um serviço que
atenda e oriente o público quanto ao acesso sobre informações, sobre a tramitação de
documentos nas unidades administrativas e que protocole documentos, e requerimentos de
acesso a informações.
As informações podem ser solicitadas por qualquer pessoa, sendo necessária apenas a
identificação do requerente e a especificação da informação requerida, sem que possa ser exigida
justificativa de tal solicitação, e o fornecimento deve ser imediato ou num prazo de 20 dias. Em
caso de negativa, o solicitante deve ser informado da possibilidade de recurso.
A Lei de Acesso traz alterações significativas em relação à diminuição dos prazos de
restrição de acesso, sendo que apenas o prazo de sigilo de informação classificada como
130
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
ultrassecreta pode ser prorrogado. Os prazos máximos de restrição de acesso à informação são 25
(vinte e cinco) anos para a ultrassecreta, 15 (quinze) anos para a secreta e 5 (cinco) anos para a
reservada, sendo que as Informações Pessoais terão restrição de acesso por no máximo 100 (cem)
anos.
Para atender a todas as exigências da LAI, o Ministério Público fez uma série de
adequações de legislação e estruturais, tomando providencias como a criação do Serviço de
Informações e Atendimento ao Cidadão (SIAC) e inclusão do SIAC na página da internet, com o
Formulário de Solicitação de Informações e a Consulta Processual. Em relação à legislação
interna, foram elaboradas as seguintes normativas:
A partir de então foi elaborado um curso para todos os membros e servidores para
informar sobre a Lei de Acesso à Informação e capacitar para a atuação ministerial e aplicação no
Ministério Público.
Conclusão
131
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
daqueles já trabalhados, por Área (Série), Matéria (Assunto), Tipo Documental, Motivo de
Arquivamento, Datas e Partes e os Documentos administrativos estão classificados considerando
a função a partir da qual foram produzidos.
O Ministério Público do Rio Grande do Sul também está trabalhando na adequação da
Lei de Acesso à Informação às suas atividades, através da elaboração de instrumentos que
garantam sua aplicação e treinando seus membros e servidores a fim de garantir, como preconiza
a lei, as diretrizes de publicidade como regra geral e sigilo como exceção.
Referências
BRASIL. Lei 7.347 de 24 de julho de 1985 – Disciplina a ação civil pública de responsabilidade
por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico,
estético, histórico, turístico e paisagístico e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7347orig.htm>. Acesso em: jun. 2013.
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
132
AÇÕES DE SAÚDE PÚBLICA EM SANTA MARIA-RS COMO UM PROCESSO DE
FORMAÇÃO DE PODER
Contexto sanitário de Santa Maria na virada dos séculos XIX e XX: a efetivação das ações
públicas em torno da saúde e higiene
1Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História – UFSM, sob orientação da Profª. Drª. Beatriz Teixeira
Weber. Bolsista CAPES. E-mail: daisrossi@gmail.com
Nas determinações do Código de Posturas, percebe-se uma relação muito estreita entre o
que é público e o privado, pois regrava tanto as ações da população dentro de suas residências,
quanto nas ruas que a cercavam, além de estabelecer responsabilidades dos órgãos públicos. Tem-
se como exemplo, o artigo 14 “Os donos de quintal ou pátios, são obrigados a tê-los limpos e
asseados, e a dar passagem às águas dos vizinhos para a rua, quando eles não possam diretamente
encaminhá-las”. Também determinava que “ficava sob responsabilidade da Câmara designar um
local apropriado para o depósito das sujeiras, lixo e águas servidas3”.
Num âmbito mais global, outro dado relevante sobre a situação sanitária está relacionado
à mortalidade infantil. Historiadores apontam que a rarefação de certas epidemias justifica-se por
várias medidas de proteção contra o contágio. Essas se davam através do progresso na
administração das cidades, aperfeiçoamento das técnicas agrícolas, controle do desequilíbrio
demográfico, mas, sobretudo, devem-se às melhorias das condições de higiene e à universalização
da educação. Além disso, merece destaque a diminuição da taxa de mortalidade infantil,
“enquanto esta permanece muito alta – as crianças são mais vulneráveis que os adultos às ínfimas
condições de higiene – o equilíbrio demográfico só pode ser garantido por uma alta taxa de
2 Código de Posturas da Câmara Municipal da Vila de Santa Maria da Boca do Monte – Coleção Leis e resoluções,
Tomo XXVII, 1874.
3 Legislação do Rio Grande do Sul, 1874, apud WEBER; QUEVEDO, 2001.
134
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
natalidade” (ADAM; HERZLICH, 2001, p. 21). Nesse sentido, pode-se compreender melhor o
contexto santa-mariense em relação às taxas de mortalidade infantil do final do século XIX,
conforme aponta a tabela.
0 a 15 De 15 De 6 De 2 12 a 25 a 40 a 55 a 70 70 a 80 a 90 a Total:
dias dias a 6 meses anos a 25 40 55 anos 80 90 100
meses a2 12 anos anos anos anos anos anos
anos anos
H M H M H M H M H M H M H M H M H M H M H M H M
14 2 14 14 19 9 7 2 5 7 12 6 7 - 7 5 7 6 2 1 - 1 94 53
Total de óbitos crianças (0 a 12 anos): 81
Total de óbitos de jovens e adultos (12 a 55 37
anos):
Total de óbitos idosos (55 a 100 anos): 29
Total de óbitos em 1899: 147
Desta tabela podem-se extrair dados relevantes para compreendermos o contexto do final
do século XIX em Santa Maria. Primeiro apontamento que se faz é sobre quem coletou os dados,
o Delegado de Higiene da cidade, Dr. Astrogildo César de Azevedo. Destaca-se que 55,1% das
mortes ocorriam ainda quando crianças, sendo que destes, 54,3% ocorriam nos seis primeiros
4
Fonte: Relatório da Diretoria de Higiene - Correspondências expedidas da Intendência Municipal 1893-1930, maço
359, caixa 193 – AHRS.
5 Diretor de Higiene do Estado, 1916, apud WEBER, 1999, p. 62.
135
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
das principais epidemias que assolaram o Estado no período. Tem-se como exemplo: a varíola
em 1905, o tifo em 1909 e a peste bubônica em 1912.
Como se pode perceber, o cenário do início do século XX não se modificou muito, se
comparado à segunda metade do século XIX. Mesmo que os intendentes e os médicos
percebessem as fragilidades no que diz respeito às condições insalubres em que se encontrava a
cidade, as medidas para evitar epidemias ainda ficavam restritas ao isolamento e desinfecção dos
locais onde a doença se manifestava. Em 1904, por exemplo, quando houve uma ameaça de surto
de peste bubônica, foram distribuídos raticidas à população para exterminar os ratos da cidade. Já
em 1912, foi regularizada “a construção de reservatórios sanitários, construídos dentro de
algumas propriedades particulares e, em período determinado, o material era retirado através de
uma bomba de sucção e levado ao local adequado” (WEBER; QUEVEDO, 2001, p. 60).
Nesse contexto, reformas urbanísticas estavam sendo efetuadas na cidade, como o
calçamento das vias e iluminação pública e então era preciso que, pelo menos aparentemente, as
ruas passassem uma impressão salubre. Porém, isso ficou muito mais restrito à aparência do que
na efetivação de políticas e de fiscalização. A despreocupação era tanta que, em 1911, mesmo
com ameaça da peste, foi dispensado o Inspetor de Higiene e foi fechada a Inspetoria, por
alegação do bom estado de saúde da cidade. Coincidência ou não, em 1912 houve o maior surto
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
136
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
para a desinfecção e isolamento dos locais nos quais ocorreram casos de contaminação. Além
disso, ficou determinado que praças da Brigada Militar fariam o policiamento dos ambientes
infectados, a fim de não deixar ninguém se aproximar. Em casos de residências particulares, a
fiscalização era para que não entrassem nem saíssem até que fosse dizimada a doença6.
No trabalho final de graduação defendido em 2012, trabalhou-se com a hipótese de que, a
partir da peste bubônica, as ações em torno da saúde pública se tornaram mais efetivas. Justifica-
se isso porque, analisando a documentação referente ao Diretor de Higiene do período, Dr.
Astrogildo de Azevedo, no ano seguinte ao término da epidemia, 1913, já se percebeu menções à
elaboração de um projeto de saneamento para a cidade, alegando ser uma medida necessária para
o controle e contra a propagação de doenças no local. Azevedo articulou contatos com o
engenheiro sanitarista Saturnino de Brito, sendo que essa parceria tornou-se mais efetiva a partir
de 1916, quando Astrogildo assume a Intendência de Santa Maria, tendo como principal objetivo
de governo a implantação do saneamento para a cidade. Em 1918, Saturnino de Brito foi Santa
Maria, onde elaborou uma planta da cidade e determinou por quais ruas o sistema de esgoto
passará. O projeto inicial de Saturnino e Astrogildo privilegiava a zona central do município,
sendo que este não era o local onde havia mais moradores. Dessa forma, abre-se brecha para
refletir se o projeto teria mesmo um objetivo sanitário, de controle da propagação de doenças; ou
Considerações Finais
Ao longo do final do século XIX e início do XX, foi possível perceber algumas ações do
poder público visando à higiene e à saúde de Santa Maria. Sob a perspectiva de saúde pública
conforme Dorothy Porter, a qual atribuirá à Saúde Pública a questão da medicalização da
sociedade, afirmando que a saúde só se tornaria pública quando houvesse uma negociação entre
os saberes médicos, a administração pública e os interesses particulares, propiciando, dessa
forma, que se configurem sistemas de saúde pública. (PORTER, 1994; 2001). Compreende-se
que, embora não houvesse, até fins do século XIX, uma política pública de saúde regulamentada,
já se notava ações coletivas objetivando prevenir doenças e interferir nos ambientes, como, por
exemplo, o isolamento dos doentes, utilizado para proteger os saudáveis.
Outro ponto em destaque é a questão sanitária como um meio de modernizar a cidade
através de um controle da população e dos espaços. Analisando as estratégias urbanísticas dos
137
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
administradores, de apenas elaborar um plano para coleta dos dejetos e do abastecimento de água
para as ruas mais centrais, percebe-se que, além da preocupação com a saúde da população, a
grande questão era dar a cidade um aspecto salubre, especialmente nas áreas de maior circulação,
limitando-se ao centro. Em nome de uma cidade limpa e saudável, era permitido agir com
elementos coercitivos para quem descumprisse o Código de Posturas do município, pois,
conforme discurso do médico Azevedo, os problemas de saúde em Santa Maria davam-se devido
aos maus hábitos de seus habitantes. Nesse ponto, retoma-se a ideologia positivista, a qual
pretendia uma sociedade saudável e com maiores liberdades profissionais. Dessa forma, com base
neste pensamento, e amparados pela Constituição de 1891, os intendentes municipais eram livres
para intervir a fim de manter a cidade salubre e longe de doenças.
Dessa forma, acredita-se na hipótese de que a elaboração do projeto de saneamento foi
também uma questão urbanística, mas, sobretudo, seria o primeiro ato efetivo do poder público
em torno da saúde. Tendo em vista que essa ação perpassou pelo aumento da consciência pública
sobre a responsabilidade do Estado pela saúde e higiene. Por isto, agiram de forma a intervir no
ambiente a fim de combater uma epidemia, como foi o caso da peste bubônica, efetivando, dessa
maneira, a primeira ação de saúde pública na cidade.
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
Referências
ADAM, Philippe. HERZLICH, Claudine. Sociologia da doença e da medicina. Bauru: EDUSC, 2001.
FLORES, Ana Paula Marquesine. Descanse em paz: testamentos e cemitérios extramuros na Santa Maria de
1850 a 1900. Porto Alegre: PUCRS, 2006. Dissertação (Mestrado em História).
HOCHMAN, Gilberto. A era do saneamento: as bases da política de Saúde pública no Brasil. São Paulo:
HUCITEC/ANPOCS, 1998.
MORALES, Neida Ceccim (org.). Santa Maria memória (1848-2008). Santa Maria: Palloti, 2008.
PRESTES, Flávia dos Santos. A peste em Santa Maria: a cidade sitiada (1912-1924). Santa Maria:
UNIFRA, 2010. Trabalho Final (Graduação em História).
PORTER, Dorothy. (ed.) The History of the Public Health and the Modern State. Atlanta: Rodopi,
1994.
______. Public Health. In: BYNUM, W.F and PORTER, Roy (eds). Companion Enciclopedia of the
History of Medicine. Vol 1. London and New York: Routledge, 2001, p.1231-1261.
ROSSI, Daiane Silveira. Uma profilaxia urbana: o projeto de saneamento de Santa Maria/RS no início do
século XX. Santa Maria: UNIFRA, 2012. Trabalho Final (Graduação em História).
138
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
VIGARELLO, Georges. História das práticas de saúde: a saúde e a doença desde a Idade Média. Lisboa:
Editorial Notícias, 2001.
WEBER, Beatriz Teixeira. As artes de curar: Medicina, Religião, Magia e Positivismo na República Rio-
Grandense – 1889/1928. Santa Maria/Bauru: UFSM/EDUSC, 1999.
______; QUEVEDO, Éverton Reis. Santa Maria e a Medicina na passagem do século. In: Revista
Sociais e Humanas, Santa Maria, v. 14, n. 01, 2001, p. 73-85.
WITTER, Nikelen Acosta. Dizem que foi feitiço: as práticas de cura no sul do Brasil (1845 a 1880). Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2001.
______. Apontamentos para uma História da Doença no Rio Grande do Sul (séculos XVIII e
XIX). História em Revista. Pelotas, dez. 2005, v. 11, p. 1-29.
______. Males e epidemias: sofredores, governantes e curadores no sul do Brasil (Rio Grande do Sul, século
XIX). Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2007. Tese (Doutorado em História).
139
POSTO DE HIGIENE X MORADORES DE CAXIAS: RESISTÊNCIAS E REAÇÕES
AO REGULAMENTO DO DEPARTAMENTO ESTADUAL DE SAÚDE DO RIO
GRANDE DO SUL
Correio do Povo: “Uma commissão do Syndicato dos Barbeiros esteve, hontem no Palacio do
Governo, a fim de tratar com o interventor federal de interesse da classe, tendo sido feita uma
exposição sobre as actuais exigências do D.E.S.”3.
Não tivemos acesso ao conteúdo da pauta, mas, possivelmente, os líderes dos barbeiros
estavam preocupados com os artigos 223 e 242 do Regulamento que exigiam a existência, nas
barbearias e nos cabeleireiros, de lavatórios de mármore, aparelhos para esterilização, toalhas de
uso individual, lavagem de roupas e toalhas em lavanderias, entre outras especificações comuns a
outros negócios. Nesse caso, o Interventor Cordeiro de Farias “prometteu à comissão estudar o
assumpto para uma solução conciliatoria”4.
Na cidade de Caxias, quem se reuniu, por sua vez, para deliberar sobre as exigências do
DES foi a Associação de Proprietários de Imóveis, em setembro de 1940, conforme coluna no
jornal local.5 Não ficou claro que ponto específico do Regulamento seria discutido ou quais
seriam as ações tomadas pela associação. Acreditamos, porém, que essa classe profissional foi a
mais atingida pelas requisições do Regulamento do DES, de modo que lhe diziam respeito, além
de todos os artigos referentes à construção de habitações, os que diziam respeito a moradias
coletivas, e, também, todas as exigências do “habite-se” (artigo 232) e outras disposições de
polícia sanitária. Dessa maneira, além do componente econômico, o Regulamento da Saúde
Vargas. Arquivo Getúlio Vargas - Vol. XXXIII/7. GV c 1940.01.07. Microfilmagem: rolo 6 fot. 0479.
141
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
varejista caxiense:
7 Associação dos Comerciantes X Posto de Higiene. Nesta cidade o Dr. Bonifácio Costa. O Momento, Caxias do Sul, 7
ago. 1939, p. 1.
8 Os comerciantes varejistas pela voz dos seus representantes. A Época, Caxias do Sul, 16 jul. 1939, p. 1.
9 A Íntegra do Memorial da Associação dos Comerciantes de Caxias. A Época, Caxias do Sul, 16 jul. 1939, p. 1.
142
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
sempre têm um fundo econômico. Na cidade de Caxias, porém, os conflitos parecem ter sido
mais intensos, devido talvez ao tipo de arquitetura que se desenvolveu na cidade. Os tradicionais
casarões comerciais de madeira e outros chalés menores, muitas vezes comportavam negócios na
parte da frente e moradia na parte de trás ou nos níveis superiores.
Esses prédios de madeira e de uso misto precisariam de diversas alterações para se
adequarem aos artigos do Regulamento da saúde pública estadual, e, em alguns casos, uma
reconstrução completa. Dessa maneira, apontavam os comerciantes que “as exigências impostas
não encontravam correspondência com a realidade local”10.
Visitemos agora as exigências do posto de higiene de Caxias:
Para os varejistas, “[...] Essas exigências, em sendo legais, não encontram correspondencia
com a realidade local. Não se cogita, aqui, da aplicabilidade destas medidas no terreno da higiene
e, sim, na sua viabilidade prática e econômica”12.
Após apontar inúmeras dificuldades e empecilhos para a realização das obras, os
comerciantes declaram que: “[...] o comercio varejista de Caxias atenderá as exigências da Higiene
dentro de um prazo que a possibilite executa-las, com exceção dos pisos de cimento e do
revestimento das paredes que, como foi dito, são impraticáveis”13.
O médico Túlio Rapone, chefe do posto de higiene da cidade, a maior autoridade de
saúde local, medindo os prós e contras, apontava defendendo o regulamento:
143
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Assim, é que, varias pequenas casas de comércio a varejo, mercadinhos e quitandas, não
mais poderão funcionar, si não tomarem medidas radicais.
A impermeabilização dos assoalhos terá que ser feita de qualquer maneira. É uma
medida lógica, que se impõe de imediato, porque a madeira não oferece a garantia
suficiente para a sua utilização. Devo salientar que essa particularidade, como todas as
demais, figuram no Regulamento do Departamento Estadual de Saude.14
Um breve olhar sobre esses conflitos permitiu perceber que a aceitação ao Regulamento
não se deu de maneira amistosa e sem atritos. Os principais pontos de desencontro entre as
classes profissionais e o DES foram aqueles que atingiram o elemento econômico, exigindo dos
comerciantes grandes alterações materiais em seus estabelecimentos. Havia exigências inviáveis
em alguns casos. Por outro lado, o tempo para a regularização foi fator predominante em todas
as descrições.
Entretanto, mesmo com os ânimos conciliados pelas autoridades, satisfazendo os
negociantes caxienses, a situação desencadeada já havia colocado sob suspeita a eficácia e validade
do código sanitário estadual e de seus inspetores.
14 O Chefe do Posto de Saúde presta declarações. A Época, Caxias do Sul, 16 jul. 1939, p. 1.
15 Telegrama ao Sr. Interventor Federal. A Época, Caxias do Sul, 16 jul. 1939, p. 1.
16 Foi solucionada, ontem à noite, a momentosa questão da Classe Varejista com o Posto de Higiene local. A Época,
1939, p. 1.
144
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Referências
ABREU, Luciano Aronne de. Um olhar regional sobre o Estado Novo. Porto Alegre: EdiPUCRS,
2007. p. 265.
SERRES, Juliane Conceição Primon. O Rio Grande do Sul na Agenda Sanitária Nacional nos
anos de 1930 e 1940. Boletim da Saúde, Porto Alegre, v. 21, n. 1, p. 39-50, 2007.
Referências Documentais
Associação dos Comerciantes X Posto de Higiene. Nesta cidade o Dr. Bonifácio Costa. O
Momento, Caxias do Sul, 7 ago. 1939.
DUTRA, Valzumiro. [Carta]. 7 jan. 1940. Porto Alegre, [para] Getúlio Vargas. Localização:
Foi solucionada, ontem à noite, a momentosa questão da Classe Varejista com o Posto de
Higiene local. A Época, Caxias do Sul, 6 ago. 1939.
Impressões do Dr. Diretor do Departamento Estadual de Saúde. A Época, Caxias do Sul, 6 ago.
1939.
O Chefe do Posto de Saúde presta declarações. A Época, Caxias do Sul, 16 jul. 1939.
O que dizem o Presidente da Associação dos Comerciantes e seu consultor jurídico. A Época,
Caxias do Sul, 6 ago. 1939.
Os comerciantes varejistas pela voz dos seus representantes. A Época, Caxias do Sul, 16 jul. 1939.
145
INSTITUIÇÕES ESPÍRITAS E SUAS AÇÕES SOCIAIS: A SOCIEDADE ESPÍRITA
FEMININA ESTUDO E CARIDADE, SANTA MARIA - RS, DÉCADAS DE 1940 E
1950
Introdução
1Graduação em História pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Mestrando do Programa de Pós-
Graduação em História – UFSM. Bolsista CAPES. E-mail: brunocs.hist@gmail.com
147
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
fato, o apoio do regime varguista lhe permitiria não apenas combater o “comunismo ateu”, como
também se impor como a religião hegemônica no país em detrimento das igrejas protestantes,
evangélicas, das religiosidades afro-brasileiras e do próprio espiritismo.
Da parte do Estado, essa aliança era proveitosa na medida em que este poderia valer-se da
influência católica sobre a classe trabalhadora, o que ia ao encontro das suas preocupações em
controlar o operariado e combater o comunismo. Essa reaproximação teve forte impacto nos
meios espíritas brasileiros, pois exigiu a tomada de posição de suas lideranças e a formulação de
estratégias que garantissem sua permanência e atuação no campo religioso.
Dessa forma, na medida em que a Federação Espírita Brasileira (FEB)2 despontou como a
principal instituição dirigente em nível nacional, a estratégia adotada pelo espiritismo foi o
afastamento de práticas que o colocassem em conflito com os agentes opositores. Também a
adoção de uma postura não conflitiva e de neutralidade político-partidária foi a ordem do dia em
relação ao Estado durante a “Era Vargas” (Silva, 2005; Miguel, 2007).
Tais iniciativas foram viabilizadas pela conformação de um modelo de espiritismo
religioso centrado na ideia de caridade, a qual veio definir as ações sociais como uma de suas
principais formas de legitimação social no país. Segundo Giumbelli (1997) e Arribas (2010), para
garantir sua sobrevivência, o espiritismo procurou adequar-se às condições da realidade brasileira
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
2
A Federação Espírita Brasileira (FEB) foi fundada em 1884 com o intuito de reunir de maneira institucional os
grupos espíritas dispersos no centro no Brasil. Nos últimos anos do século XIX e nas primeiras décadas do
século XX, atuou intensamente no sentido de efetivar a organização do movimento espírita nacional, assumindo
oficialmente sua direção no final da década de 1940. Sobre o processo de organização do movimento espírita
brasileiro e a FEB, ver Damazio, 1994; Silva, 2005; Miguel, 2007; e Arribas, 2010.
148
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Situada numa região de trânsito entre o litoral e o interior do Rio Grande do Sul, o
município de Santa Maria foi fundado em 1858, destacando-se pela atividade comercial e por sua
diversidade cultural. Estas características se intensificaram com o advento da ferrovia, em 1885,
ligando a cidade a outras regiões do estado e do Brasil, o que proporcionou grande
desenvolvimento econômico e social para a região. As origens do movimento espírita na cidade
remontam a esse contexto e à fundação da Sociedade Espírita Paz, Amor e Caridade na
localidade de Água Boa, atual distrito de Arroio do Só, em 1903.
A primeira instituição de que se tem registro na sede do município data de 1910, a
Sociedade Espírita Mont’Alverne, seguida, em 1915, pela Sociedade Espírita Dr. Adolfo Bezerra
de Menezes. Em 1921, foi criada a Aliança Espírita Santa-Mariense (AES), com o objetivo de
congregar os grupos espíritas existentes. A partir de então, o movimento ganhou força com a
fundação de importantes entidades, nos anos subseqüentes, cujas atividades mantêm-se até o
presente.
Uma das instituições com significativa atuação, ocupando um lugar de destaque no
movimento espírita local, é a Sociedade Espírita Feminina Estudo e Caridade (SEFEC), fundada
3 As considerações apresentadas neste item e no seguinte sintetizam as reflexões contidas em meu estudo
monográfico sobre a atuação da Sociedade Espírita Feminina Estudo e Caridade na cidade de Santa Maria – RS,
entre as décadas de 1930 e 1950. Ver Scherer, 2013.
149
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
fundamentado nas obras de Allan Kardec. A aplicação desses princípios resultou na organização,
em 1932, do “Abrigo Espírita Instrução e Trabalho”, com o objetivo de atender crianças
desamparadas da cidade. Essa instituição veio a tornar-se o centro de toda ação da SEFEC, de
forma que, ao longo das décadas de 1930 e 1940, ela reuniu as condições estruturais necessárias
ao oferecimento de uma série de serviços aos abrigados.
Esses foram definidos através do internato, alimentação, instrução profissional e religiosa,
ensino escolar e cuidados médicos. Inicialmente, o Abrigo deveria receber meninas órfãs ou cujas
famílias não dispusessem de recursos suficientes para mantê-las. Entretanto, nas décadas de 1940
e 1950, as atividades foram ampliadas com a fundação, em 1944, de uma Seção Masculina, no
então distrito de Itaara, que funcionou como uma espécie de escola rural até 1956,
proporcionando atendimento a meninos carentes da cidade e da região.
Dessa forma, um dos aspectos que recebeu especial atenção por parte da SEFEC foi o
ensino escolar, voltado inicialmente aos abrigados e, posteriormente, estendido a outras crianças
necessitadas da comunidade. Em 1934, foram organizadas as primeiras aulas para os internos,
serviço que foi ampliado em 1952 com a criação da “Escola do Abrigo Espírita Instrução e
Trabalho”, que contou com o respaldo das autoridades do município.
4
Ata n. 1, de 13 de abril de 1927. Livro de Atas n. 1. Acervo da Sociedade Espírita Estudo e Caridade.
150
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
A saúde foi outra frente de atuação, também contemplando os abrigados, suas famílias e
membros da comunidade local. Em 1940 foi inaugurado um ambulatório médico junto à
instituição, a fim de atender os abrigados e os alunos da escola. Anos mais tarde, foi construída
uma enfermaria que, em 1952, deu origem ao “Hospital Infantil Nenê Aquino Nessi”, prestando
atendimento à comunidade em geral até o fim de suas atividades em 1963.
Por fim, todas as atividades oferecidas através do Abrigo Espírita Instrução e Trabalho
mobilizaram diversos esforços da SEFEC no sentido de angariar recursos humanos e materiais
necessários a sua execução. Isso se efetivou através da colaboração voluntária de professores,
médicos, dentistas e outros profissionais; doações de estabelecimentos comerciais e empresas;
solicitações aos poderes públicos e realização de eventos beneficentes.
Em 1959, o Abrigo passou a denominar-se “Lar de Joaquina” em homenagem à Joaquina
Flores de Carvalho, primeira diretora da instituição, e denominação pela qual a própria SEFEC
tornou-se mais conhecida na cidade. Estima-se que entre 1932 e 1997, ano em que o regime de
internato foi suspenso, a instituição tenha atendido cerca de 600 abrigados, a maioria em
permanência prolongada.
151
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
em níveis local, estadual e nacional, por meio de uma série de correspondências e intercâmbio de
informações sobre a organização das instituições, eleição de suas diretorias, emissão e
recebimento de materiais informativos, também notificações sobre projetos sociais em
desenvolvimento, bem como pedidos de auxílio para os mesmos.
Especialmente pelo contato mantido com a FEB e a Federação Espírita do Rio Grande
do Sul (FERGS), evidencia-se que o grupo tinha conhecimento das discussões e propostas que se
desenvolviam dentro do movimento espírita no período contemplado por esta análise. Os
periódicos O Reformador e A Reencarnação, respectivamente, editados por essas federações, estão
presentes no material de leitura e informação da SEFEC.
Esses meios de interação sugerem a existência de uma rede de cooperação entre os
grupos espíritas, o que certamente teria sido de grande importância para o desenvolvimento e
continuidade de suas atividades. Além disso, possibilitaria que as instituições encontrassem
orientação, tomando conhecimento das ações e estratégias a serem adotadas a fim de evitar
atritos com outros agentes e instâncias da sociedade.
A esse respeito, também por meio dos registros de correspondentes, identificam-se
contatos com os poderes públicos municipais, estaduais e federais, órgãos de imprensa, agências
bancárias, instituições filantrópicas, empresas comerciais, militares e profissionais liberais. Como
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
152
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
com a legislação vigente. Exemplos dessa postura são os relatórios de atividades, elaborados
periodicamente e destinados aos associados e aos colaboradores da instituição.
Por fim, a SEFEC e as demais instituições espíritas que se dedicaram a esse tipo de
intervenção no meio social contavam com o capital simbólico representado pela prática da
caridade, enquanto uma qualidade moral cristã. De posse desses elementos, a SEFEC e outras
instituições locais5 que desenvolveram formas de atuação semelhantes foram capazes de garantir
sua inserção na sociedade local e também do próprio espiritismo enquanto integrante ativo no
quadro de diversidade do campo religioso.
Considerações finais
5
Dentre elas destacam-se duas de ampla projeção na cidade, também contempladas pela pesquisa: o Instituto
Espírita Leocádio José Correa, fundado em 1936, com atividades voltadas para a instrução profissional e
assistência social em geral; e o Abrigo Espírita Oscar José Pithan, fundado em 1949, voltado para a assistência
integral a idosos carentes e/ou em estado de abandono social.
153
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Referências
BORIN, Marta Rosa. Por um Brasil católico: tensão e conflito no campo religioso da república.
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Vários tradutores. São Paulo: Perspectiva,
2011. 361 p.
DAMAZIO, Sylvia F. Da elite ao povo: advento e expansão do espiritismo no Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994. 164 p.
MIGUEL, Sinuê Neckel. Espiritismo unificado: Movimento espírita brasileiro e suas relações com o
Estado (1937-1951). 2007. 110 f. Monografia (Bacharelado em História) – Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007.
SCHERER, Bruno Cortês. Ações Sociais do Espiritismo: A Sociedade Espírita Feminina Estudo e
Caridade, Santa Maria - RS (1932-1957). 2013. 87 f. Monografia (Bacharelado em História) –
Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2013.
SILVA, Fabio Luiz da. Espiritismo: História e Poder (1938-1949). Londrina: EDUEL, 2005. 161 p.
154
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
WEBER, Beatriz Teixeira. As Artes de Curar. Medicina, religião, magia e positivismo na República
Rio-grandense. Santa Maria/Bauru: EDUFSM/EDUSC, 1999. 252 p.
Referências Documentais
155
A CÂMARA MUNICIPAL E OS EXPOSTOS: A CARIDADE E A FILANTROPIA NA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DO ABANDONO EM PORTO ALEGRE (1772-1822)
Introdução
bebê. De forma cilíndrica e com uma divisória no meio, esse dispositivo era fixado no muro ou na janela da
instituição. No tabuleiro inferior da parte externa, o expositor colocava a criancinha que enjeitava, girava a Roda e
puxava um cordão com uma sineta para avisar à vigilante – ou Rodeira- que um bebê acabara de ser abandonado,
retirando-se furtivamente do local, sem ser reconhecido. (MARCÍLIO, 1998, p.56).
Ariadne4. Esse cruzamento nominativo nos dá o acesso a alguns destinos que tomaram essas
crianças que foram “dadas a criar” pelo “Senado da Câmara”.
Dessa forma é reservado para o primeiro momento, um breve panorama da Câmara de
Rio Grande, que após 1810 passa ser propriamente a de Porto Alegre, mostrando, também, como
foi institucionalizado e organizado o fenômeno do abandono. Tratado isso, os próximos
parágrafos ficaram destinados aos dois pensamentos panos de fundo que foram fundamentais
para a manutenção dos expostos. Um deles era a filantropia iluminista que a “monarquia
esclarecida” procurava colocar em prática, pressionando as Câmaras ultramarinas na salvaguarda
dos expostos, tornando-os vassalos úteis a coroa5. Em paralelo, a ação da Câmara, a “caridade
privada” que incentivava famílias a criarem expostos como forma de expiarem seus pecados a fim
de buscar redenção celestial e praticarem a caridade cristã. E por fim, mostro um pouco do perfil
social dos indivíduos e/ou famílias que criaram algum (ou mais de um) exposto.
4 Trata-se de uma metáfora, usada por Carlo Ginzburg (2007), referente ao mito grego (em que Teseu recebe, de
Ariadne, um fio que o orienta pelo labirinto, onde encontrou e matou o minotauro). Nesse sentido, o nome é o fio
que nos orienta, através do cruzamento de fontes, para se reconstituir a História.
5 Desde as Ordenações Manuelinas (1521), determinou-se que as Câmaras Municipais seriam, em última instância, as
responsáveis pela proteção e criação de seus próprios expostos. Quando nem os pais, nem parentes pudessem
responsabilizar-se pela criança, a comunidade deveria fazê-lo, mandando-as para hospitais ou casas de enjeitados. Na
falta destes, as crianças deveriam ser criadas sob a supervisão municipal e através de fundos dos seus conselhos.
Estes tinham autorização para criarem um imposto especial – a finta dos expostos – para arcar com esse encargo.
Esta lei passou para as Ordenações Filipinas. (MARCILIO, 2010, p. 14-37).
157
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
burocrático.6 Anos mais tarde (1773), por decisão do governador José Marcelino, a câmara foi
transferida novamente para a recém-fundada Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre. Além da
Câmara, deste momento em diante, a freguesia passou a sediar a casa do governador, a
provedoria da fazenda real e a vara do juízo eclesiástico. Tornava-se, desse modo, capital do
continente do Rio Grande de São Pedro (MIRANDA, 2000, p.55-62). Nesse sentido, até 1810,
quando a freguesia de Porto Alegre foi oficialmente elevada ao estatuto de Vila, é a Câmara de
Rio Grande que se encontrava estabelecida naquela freguesia. Após esse período a Câmara
passava a ter jurisdição apenas sobre a Vila de Porto Alegre e seu termo foi formado pelas
freguesias: Nossa Senhora Madre de Deus de Porto Alegre, Nossa Senhora da Conceição de
Viamão, Nosso Senhor Bom Jesus do Triunfo e Nossa Senhora da Aldeia dos Anjos.
A Câmara de Rio Grande, e após a de Porto Alegre, a principio mantinham o
regulamento oficial das ordenações do reino e as exigências do vice-rei. Era composta pelos
oficiais da câmara, (seis oficiais eleitos anualmente) que se distribuíam entre juízes (dois ordinários),
vereadores (três, que se revezavam ao longo do ano); um tesoureiro; e o procurador do conselho
(geralmente estava sob a autoridade dele a distribuição das crianças expostas às famílias
criadeiras). Ainda havia outros cargos de menor importância e cargos específicos criados para a
localidade, como o escrivão da sisa (cobrava os impostos) e o arruador (avaliava os terrenos e
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
expedia licenças para construções das casas). Cabe ressaltar que esses oficiais da câmara não eram
elencados aleatoriamente, deveriam ser “homens bons”, designação que se referia a uma elite
local que deveria atender uma série de quesitos: ser maior de 25 anos, casado ou emancipado,
católico e sem "nenhuma impureza de sangue", isto é, nenhum tipo de mestiçagem racial.
Também era necessário que fossem homens de cabedal, o que significava, de alguma forma,
serem proprietários de terra7.
Podemos afirmar que a câmara, desde que foi transferida para Porto Alegre, colocou o
tema da exposição como primeira preocupação entre os assuntos tratados. Já na primeira ata de
reunião da Câmara realizada em Porto Alegre, datada de 06 de setembro de 1773, o Senado se
propôs a administrar a prática do abandono a partir da contratação de amas de leite, como já
vinha fazendo ao tempo em que a instituição atuava na vila de Rio Grande.
6 Em correspondências da Câmara de Rio Grande com o Conselho Ultramarino ficam registrado os danos que
causou aos comerciantes e como tiveram que se retirarem as pressas. (COMISSOLI; GIL, 2012, p.242)
7 No capítulo “conselheiros municipais e irmãos de caridade”, Boxer ainda comenta que esses oficiais usufruíam de
regalias como a dispensa do serviço militar e recebiam a isenção do confisco de qualquer bem para uso da Coroa.
(BOXER, 1977, p. 263-282)
158
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Desde a sua instalação, como pudemos perceber, a Câmara Municipal que funcionou em
Porto Alegre se mostrou preocupada com o abandono infantil. Logo nos primeiros anos, a
Câmara mandou preparar um livro de matrícula9 para os expostos e se propôs a pagar os
“salários” para as pessoas que se encarregassem da criação dos pequenos enjeitados. Esses
salários permaneceram estáveis e com o mesmo valor para o período analisado. Os salários pagos
as “famílias criadeiras” de expostos variavam de acordo com a idade da criança: até os três anos
de idade, o valor pago era de 3$200 réis por mês; dos três aos sete anos, o valor cairia pela
metade, passando para 1$600 réis por mês. A esses valores acrescentava-se ainda o pagamento
anual de 3$200 réis pelo vestuário da criança. Esse salário oferecido para criação de expostos
parece modesto, entretanto se somarmos os três primeiros anos de criação (3$200 réis mensais
159
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Desde o século XVI, a Coroa portuguesa e a Igreja se preocuparam em salvar essas almas
do destino iminente, a mortalidade infantil10. O procedimento padrão ao se receber uma criança
exposta era primeiramente batizar a inocente alma, seguindo os procedimentos estipulados pela
Igreja. No Brasil do século XVI até inicio do século XIX, as crianças expostas tinham como
escudo protetor a “caridade cristã”.
Era por essa corrente de pensamento que as Misericórdias tornaram-se uma das grandes
instituições de acolhimento dos expostos. A questão é que as Santas Casas ficavam restritas às
áreas de maior densidade populacional e desenvolvimento urbano. Como no caso de Porto
Alegre, que só em 1838 teve uma Roda dos Expostos aglutinada à Santa Casa 11. Sendo assim, a
Câmara Municipal ficou como a responsável legal para custear a criação dos expostos, conforme
determinavam as Ordenações do Reino. Por numerosas vezes, a Câmara alegou não ter mais
condições financeiras para o custo da exposição. Nessa situação, a Câmara apelava ao chamado
da caridade ou de doações de particulares para a manutenção financeira destinada a criação dos
expostos.
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
Essas doações eram feitas por particulares, “caridade privada”, ou por vezes, “caridade
pública”. Também, a própria governadoria geral poderia financiar a caridade, na forma da
“caridade oficial”. É interessante ressaltar que tanto doadores particulares, quanto órgãos oficiais
justificavam suas doações como “dádivas”, e essas dádivas, como argumenta Guimarães Sá, eram
praticadas por todas as camadas sociais13.
Essas ações de proteção à infância abandonada, como salientei, tinham, num primeiro
momento, esse caráter caritativo pela prática cristã de particulares ou de instituições. Nesse
10 Estudos anteriores de Jonathan Fachini da Silva (2012) mostraram esses elevados percentuais de mortalidade
infantil de expostos na Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre, bem como as principais moléstias que os
acometia.
11 A Roda dos Expostos em Porto Alegre foi contemplada no grandioso estudo de Jurema M. Gertze (1990).
12 AMPAMV, Termo de vereança, 25/08/1813. [grifos nossos]
13 O ato de dar, por sua vez, não envolvia apenas os ricos: generalizava-se a todos os que estivessem na situação de
prescindir de algum bem material e, sobretudo, que quisessem servir aos outros. Na sociedade do dom, dar era um
ato acessível a todos e não envolvia bens materiais mas sobretudo serviço. (SÁ, 1997, p.17).
160
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
princípio de caridade cristã, criar uma criança exposta era salvar a pobre alma ao batizá-la, e
exercer um ato de benevolência, praticar a “dádiva”, que no mundo católico da época poderia
servir para redimir as culpas no pós-morte e receber prestígio social em vida.
Esse pensamento é cruzado pela racionalidade da filantropia, colocando em prática uma
nova Razão de Estado que vigorava na Europa iluminista. Não bastava apenas salvar a alma dos
expostos, mas torná-los úteis à nação. Podemos ilustrar esse contexto pela lei promulgada pelo
chefe da Intendência Geral, Pina Manique, em 1783. A lei ordenava a fundação de Casas da Roda
para acolher expostos em todas as vilas e cidades do reino14. Os expostos passaram a ser vidas de
interesse para a Coroa portuguesa, que a pátria não deveria perder. Eles poderiam servir aos
exércitos, trabalhar em serviços pesados e contabilizar vidas para a Coroa. Pode-se pensar esse
pensamento em relação aos expostos para o contexto ocupacional da Freguesia Madre de Deus
de Porto Alegre, no extremo sul da América portuguesa. Pois se tem evidenciado a pressão
sofrida da Câmara pela metrópole devido à sua política de ocupação territorial baseada no
principio do uti possidetis15. Por esse viés, salvar essas vidas era salvar vassalos aptos a ocupar o
território.
14 Esta circular ilustrava: “(...) o aumento da População como um dos objetos mais interessantes e próprios de uma bem regulada
polícia, por consistirem as forças e riquezas de um Estado na multidão dos habitantes...”. (A Ordem Circular de Pina Manique,
1783, Livro 1º, fl 150).
15 Segundo Fábio Kühn (2007), tratava-se de um princípio de direito, segundo o qual os que de fato ocupam um
território possuem direito sobre este. No século XVIII o tratado de Madri (o mais importante até então) reconheceu
o princípio do uti possidetis, assegurando aos portugueses os territórios que haviam ocupado no Continente do Rio
Grande a partir da década de 1730.
16 Segundo a já referida Guimarães Sá (1992, p.115), trata-se de um aspecto fundamental da infância no Antigo
Regime: a circulação de crianças, isto é, a transferência temporária ou definitiva da criança biológica para outros grupos
familiares. Esta circulação de crianças podia assumir várias modalidades, desde o aleitamento por amas de leite até ao
abandono em instituições, passando pela educação dos adolescentes. O fato é, que uma vez considerada a
mobilidade da criança, a qual podia ser confiada a vários grupos familiares desde o nascimento, muitas são as formas
de que esta circulação se podia revestir.
161
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
1768 foi Juiz de barrete; em 1769 foi Juiz; em 1773 novamente Juiz de barrete. Entre os criadores
de expostos de famílias abastadas há também a recorrência de “Donas” e “viúvas”. O fato de
muitas serem as viúvas que recebiam para criar expostos pode indicar uma tentativa de recompor
uma situação de estabilidade, colocada em causa pela viuvez. Possivelmente, na ausência do
marido estavam angariando renda extra para sustento do lar.
Para Laura de Mello e Souza (2006, p.54), essas famílias exerciam esse papel para legitimar
sua posição social: “Para homens e mulheres melhor situados na sociedade, a criação dessas
crianças poderia ter o objetivo de aumentar o número de agregados e apaniguados, visando antes
conferir estima e status do que trazer vantagens pecuniárias”. Entretanto, uma questão fica em
aberto na investigação, se essas famílias abastadas criavam os expostos por prestígio social ou por
uma possível “moeda de troca” (em casamentos não muito vantajosos, ou mesmo reduzir o
exposto à um agregado). Nesse caso, a questão é: por que recorriam ao pecúlio camarário?
Entretanto essas famílias de prestígio social, geralmente, recorriam pelo salário de criação
de apenas um exposto. O que não se deve pensar que poderia haver outros expostos nos seus
fogos sendo criados gratuitamente. Também parece que era uma rede de criação, onde pagavam e
17 Sobre o caso de Dona Anna Marques de Sampaio como receptora de expostos ver: Denize T. Leal Freitas &
Jonathan Fachini da Silva (2013).
18 AHPAMV, Termo de vereança, 17/07/1784.
162
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
recebiam salários para esse fim. Já quanto às famílias composta por forros a demanda por salários
é maior, visto que criavam, geralmente, mais de um exposto, como é o exemplo do quadro
abaixo:
Fica evidente que os interesses pela criação desses recém-nascidos abandonados podem
mudar conforme o estatuto social da família que recebeu o exposto em sua porta ou que recebeu
a criança por via da Câmara. Mesmo que nem todos os representantes de famílias abastadas, os
163
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Considerações finais
dependia de muitos fatores. Começamos pelo lar em que foi acolhida ou “dada a criar”, seja a
atribuição que esse pequenino vai receber dentro do fogo. As hierarquias familiares do Antigo
regime eram rígidas, e, pelo que remete a historiografia, nem sempre ser abandonado em um lar
abastado garantiria o sucesso do inocente. Ele poderia ser um agregado ocupando o papel de
serviçal da família, ou uma moeda de troca para formar alianças. Entre as famílias forras, poderia
ter permanecido somente até os sete anos e após ser transferido para outra porta. Essa
multiplicidade de destinos possíveis é questão que fica aberta para reflexão e o futuro dessa
pesquisa.
Referências
BERUTE, Gabriel Santos. Dos escravos que partem para os portos do sul: características do tráfico negreiro no
Rio Grande de São Pedro do Sul, c.1790 - c. 1825. Porto Alegre: UFRGS, 2006. Dissertação (Mestrado
em História)
BOXER, Charles H. O Império Colonial Português (1415-1825). 2. ed. Lisboa: Edições 70, 1977.
COMISSOLI, Adriano. Os “homens bons” e a Câmara Municipal de Porto Alegre (1767-1808). Niterói:
UFF, 2006. (Dissertação de Mestrado em História).
164
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
______; GIL, Tiago Luís. Camaristas e potentados no extremo da Conquista, Rio Grande de São
Pedro, 1770-1810. In: FRAGOSO, João; SAMPAIO, Antonio C. J. (orgs.) Monarquia
Pluricontinental e a governança da terra no ultramar atlântico luso: séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro:
Mauad X, 2012. p. 241-260.
FREITAS, Denize T. Leal; SILVA, Jonathan Fachini. Dona Anna Marques de Sampaio: uma
mulher de família, da Igreja, dona de escravos e proprietária de terras na Freguesia da Madre de
Deus de Porto Alegre (finais do XVIII e meados do XIX). XXVII Simpósio Nacional de História -
ANPUH/NATAL- RN, 2013.
GERTZE, Jurema M. Infância em Perigo: a assistência às crianças abandonadas em Porto Alegre: 1837-
1880. Porto Alegre: PUCRS, 1990. Dissertação (Mestrado em História).
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. Verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras,
2007.
KÜHN, Fábio. Breve História do Rio Grande do Sul. 3. ed. Porto Alegre: Leitura XXI, 2007.
MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança abandonada. São Paulo: Ed. HUCITEC, 1998.
MIRANDA, Márcia Eckert. Continente de São Pedro: Administração pública no período colonial. Porto
Alegre, Assembleia Legislativa do estado do RS/Ministério público o Estado do RS/CORAG,
2000.
NADALIN, Sérgio Odilon. História e Demografia: elementos para um diálogo. Campinas: ABEP, 2004.
______. Quando o rico se faz pobre: misericórdias, caridade e poder no Império Português: 1500-1800.
Comissão Nacional para as comemorações dos descobrimentos portugueses, 1997.
Referências Documentais
165
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
PORTO ALEGRE. Termo de vereança. Livro de Atas I-X (1773-1837). Localização: Arquivo
Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho.
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
166
“MANDA QUEM PODE, OBEDECE QUEM TEM JUÍZO”: OS REGISTROS
PAROQUIAIS COMO FONTES DE ACESSO ÀS RELAÇÕES DE PODER NUMA
PORTO ALEGRE DE ANTIGO REGIME (1772-1822)
Os registros paroquiais são uma importante fonte de acesso ao mundo das relações
sociais e de poder no que tange aos estudos do passado colonial brasileiro. No caso de regiões
onde o processo de povoamento deu-se de maneira tardia comparada às outras áreas da América
Portuguesa, como é o caso de Porto Alegre, esse conjunto documental fornece dados
imprescindíveis para conhecermos a população que nasceu, viveu, casou, passou ou morreu nesta
localidade. Através dos párocos, nossos principais interlocutores desta sociedade, podemos
identificar diferentes nuances de como se refletiam nesses registros fragmentos das relações
sociais e de poder dessa época.
É através dos silêncios, ou da predileção dos párocos ao descrever quem batizavam, quem
casavam ou quem morria, que podemos observar a organização social e as diferenças sociais que
marcavam os jogos de poder implícitos numa sociedade com características que remetiam ao
Antigo Regime. Dentre os principais exemplos, podemos destacar as omissões relativas aos
registros da população escrava, liberta ou indígena; o destaque e a riqueza de detalhes dedicados
aos registros das famílias abastadas; a identificação de estereótipos que qualificavam ou – na
maioria das vezes – desqualificavam os indivíduos, os adendos de retificação quanto a
paternidades e maternidades ilegítimas, bem como as importantes referências às relações de
compadrio e demais laços constituídos e afirmados pelas alianças entre os diferentes grupos
sociais.
Mais do que pontuar as características das populações através das naturalidades, moradias,
idades e causas mortis, esses registros nos proporcionam identificar e classificar os diferentes
arranjos familiares e, a partir desses, perceber os inúmeros vínculos e laços de consanguinidade e
reciprocidade ao longo da vida dos indivíduos. Além disso, mapear através das trajetórias
possíveis estratégias de sobrevivência, mobilidade social e ascensão social através do imbricado
jogo das relações de poder envoltos das relações familiares e sociais que essas fontes nos revelam.
Pensar as relações de poder nesse período exige-nos refletir sobre o importante papel das
famílias nesse contexto. Não apenas no que tange às famílias pioneiras quanto ao povoamento,
mas, sobretudo, a inserção de outras famílias que chegam através do constante fluxo populacional
que marca essa localidade durante o período. A chegada de reinóis e demais luso-brasileiras
somadas aos demais estrangeiros que aportam na Freguesia Da Madre de Deus de Porto Alegre
são indicativos fundamentais de como a inserção desses diferentes indivíduos exige pensarmos o
quanto os registros são importantes para a demarcação dos espaços e, sobretudo, do status de
poder de cada componente social.
Nossa intenção nos remete a compreender essas fontes como elos fundamentais para
destacar os complexos caminhos que os indivíduos tecem em suas vidas, tendo em vista a
dicotômica relação entre a teoria e a prática. Privilegia-se um olhar no qual se revele a outra face
da aplicação das normas de conduta aplicadas pela Igreja. Isto é, perceber o sutil entrelaçamento
entre o sagrado e o profano e, mais ainda, sinalizar os interesses que estavam por trás dos
silêncios e desdobramentos daquilo que se quer afirmar ou omitir no papel.
Todavia, podemo-nos questionar até que ponto há como perceber espaços de poder
implícitos nesses maços documentais de cunho religioso? Compreendermos o papel da Igreja e
do Estado nesse momento torna-se fundamental para respondermos a essa questão. Segundo
Torres-Londoño (1999), o padroado régio forneceu à Igreja um poder local imprescindível e
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
168
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
169
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
o Sucplicante pedir a [....] que para seu Respeitar Duplicado invalidado aquelle
assentamento e seja novamente aberto outro pela forma seguinte = Antero, filho
legitimo de Francisco Vieira de Castro natural de Portugal; e de D. Francisca
Innocencia de Castro natural desta [...] neto parterno de Francisco Vieira de Castro e de
Anna Angelica de Castro naturaes de Portugal de ambos já falecidos, e netto materna
de pais incognitos, foi padrinho Custodio Joze Teixeira de Magalhaes e Madrinha D.
Senhorinha Teixeira de Oliveira, e isso. (PARÓQUIA NOSSA SENHORA MADRE
DE DEUS PORTO ALEGRE, 1824, 6° Livro de Batismo, s/fl.)
seu filho natural” tido com D. Bernardina Candida dos Anjos de nome João. Segundo o
ilustríssimo vereador, João foi batizado “no Oratorio aprovado de sua chácara no caminho novo”
pelo “seu capelão que então hera o R. Ignacio Soares Vianna”. No entanto, “acontece que esse
acento não foi lançado no livro competente, e porque bem [sabe] de seu direito assim necessita
que se faça, para extrahir documento portanto”. Todavia, vale ressaltar que esse documento foi
requerido quando o solicitante encontrava-se viúvo.
Negociações à parte, os casos mostram uma tensão de poder no qual temos, de um lado,
os solicitantes redimindo suas faltas contra a “moral e os bons costumes vigentes da época”, e do
outro, os párocos sendo intimados a tomar atitudes “inconvenientes” dos ditos “homens bons”
da época. Mais do que isso, esses exemplos mostram a importância do batismo e das relações dos
párocos com a sociedade.
Para Farinatti (2007, p. 210) os batismos nos possibilitam verificar as relações de
compadrio e a imensa teia de relações ascendentes e descentes promovidas através da família.
Tais escolhas “tinham absoluta primazia na estruturação das lealdades e prestações entre os
sujeitos”. Não obstante, Kühn (2006, p. 25) salienta que “as relações de apadrinhamento criavam
2 A respeito do papel da Câmara de Vereadores e da atuação política e social desses ditos “homens bons” ver:
Comissoli, 2008. Destaque para a importância dos cargos camarários e a formação de poderes locais de acordo com
o estudo de Bicalho, 2001.
170
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
No Primeiro dia do mez de Janeiro de mil oito centos e quatorze annos no Oratorio
Approvado das Cazas de residencia do Chefe de Divisão Bernardino Joze de Castro na
Cidade da Bahia, com as licenças necessarias e a do Reverendo Parocho da Freguezia de
S. Pedro Velho Lourenço da Silva Magalhães Cardozo; forão recebidos em Matrimonio
na forma do Sagrado Consilio Tridentino com palavras de prezente em que expressarão
seu mutuo consentimento de Brigadeiro de Salvador Jozé Masciel natural e baptizado
na Freguezia de Nossa Senhora das Mercez da Cidade de Lisboa filho legitimo de João
Teixeira Pinto e de Dona Magdalena da Cunha com Dona Felicidade Perpetua Masciel
natural baptizada na Freguezia de S. Nicolau da mesma Cidade de Lisboa, filha legitima
de Antonio Jozé da Rocha e de Dona Maria dos Anjos da Cunha e Rocha. Receberão as
Bençãos na forma do Ritual Romano depois do dia da Epiphania do mesmo anno pelo
seu proprio Parocho sento Testemunhas deste Matrimonio Francisco de Paula da
3Vale salientar que o número de casos encontrados avança progressivamente à medida que entramos no século XIX,
para obter mais informações ver Freitas (2011).
171
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
4 Para a realidade portuguesa, Scott (1999) demonstra em seus estudos que as condições de acesso a terra, a
possibilidade de migração masculina e a condição econômica dos nubentes eram fatores indispensáveis no momento
de optar ou não pelo matrimônio nessa sociedade.
172
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Causa
Nome Natural Data Observações
Morte
Manoel Dias Ilha do Pico Diarreia 06/05/180 "faleceu no Hospital"
8
Antonio Vila Peniche, - 10/01/180 "faleceu em sua Fazenda em
Ferreira Portugal 8 Pedras Brancas"
Leitão
Joseph Freitas Rio de Janeiro Afogado 02/02/180 "viva na marinha'
8
Joana - Bexigas 14/10/180 filha legitima de Isidoro de Tal,
8 parda, "faleceu do outro lado do
rio"
Maria - Parto 19/11/180 filha legitima de pais negros forros,
8 "faleceu na mesma hora em que
nasceu"
Cirurgião Desterro Intrevad 17/04/180 Casado, "não fez testamento por
Ricardo (Florianópolis) o 9 pobre"
Joseph da
Sylva
João Ignacio Ilha Terceira Molestia 21/01/181 "Não fez testamento por muito
A escolha desses registros de óbito e a disposição das informações no quadro acima têm
como objetivo mostrar ao leitor como podemos dispor de dados referentes à posição social dos
sujeitos, bem como das suas relações de poder nessa sociedade. Podemos inferir, de modo geral,
que nem sempre a riqueza estava associada diretamente à hierarquia social e à disposição de
173
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
títulos de nobreza. Todavia as manobras de beneficiamento desses grupos abastados devem ser
levadas em consideração5.
Dentre outros aspectos a serem analisados está a importância das Irmandades6, a
disposição do testamento e o recebimento dos sacramentos que mesclam os interesses terrenos e
espirituais e, portanto, distinguiam os sujeito mesmo depois da morte. Ganha destaque,
sobretudo, as condições precárias de vida das camadas menos abastadas socialmente. Conforme a
fonte, verificamos indígenas “sobre o poder” de Capitães, bem como, a tenra mortalidade das
crianças pobres, forras e/ou expostas7. Enfim, um verdadeiro caleidoscópio social que permite
identificar em diferentes ângulos e cores as relações sociais e de poder dos indivíduos no final da
vida.
Considerações Finais
Os registros paroquiais são um espelho dessas hierarquias sociais e, por sua vez, dão voz e
cores através das relações de poder entre as diferentes camadas sociais. Enfim, esses registros
eclesiásticos atuam como as chaves de identidades dessa população, atuam como fontes
privilegiadas para entender o ciclo de vida e os espaços de poder dos sujeitos tecidas ao longo do
tempo, sobretudo, durante as principais etapas da vida, isto é, o marco do nascimento, do
casamento e da morte.
Referências
BERTRAND, Michel. De la família a la red de sociabilidad. In: Revista Mexicana de Sociología. Vol.
61, n°. 2, Abr. - Jun., 1999. p. 107-135.
5 Em outras palavras, necessariamente nem todo nobre era rico, porém, de alguma maneira, a riqueza estava
associada aqueles que detinham destaque e posição abastada na sociedade.
6 A respeito das Irmandades em Porto Alegre ver: Tavares, 2008.
7 Relativo aos índices de mortalidade de crianças expostas ver: Silva, 2012.
174
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Minas patriarcal família e sociedade (São João Del Rei, Século XVIII e
XIX). 2002. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, 2002.
COMISSOLI, Adriano. Os “homens bons” e a Câmara Municipal de Porto Alegre (1767-1808). Porto
Alegre: Câmara Municipal, 2008.
FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Confins meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira
Sul do Brasil (1825-1865). 2007. 421 f. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 2007.
FREITAS, Denize Terezinha Leal. O casamento na Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre: a população
livre e suas relações matrimoniais de 1772-1835. Dissertação (Mestrado em História) -- Universidade
do Vale do Rio dos Sinos, Programa de Pós-Graduação em História, São Leopoldo, RS, 2011.
213 p.
GRAHAM, Richard. Clientelismo e Política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,
1997.
KÜHN, Fábio. Gente da fronteira: família, sociedade e poder no sul da América portuguesa – Século XVIII.
2006b. 479 f. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2006b. Disponível em:
SCOTT, Ana Silvia Volpi. Famílias, formas de união e reprodução social no noroeste português (séculos
XVIII e XIX). Guimarães: NEPS, 1999.
SILVA, Jonathan Fachini. Destinos incertos: Um olhar sobre a exposição e a mortalidade infantil
em Porto Alegre (1772-1810). Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 7, n.° 1, junho de 2012.
Disponível em: http://www.ichs.ufop.br/cadernosdehistoria/ojs/index.php/cadernosdehistoria/
article/view/256. Acessado em 02/07/2013.
TAVARES, Mauro Dillmann. Irmandades, igreja, devoção no sul do Império Brasil. São Leopoldo:
Oikos, 2008.
Referências Documentais
175
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
176
METODOLOGIA E FONTES PARA ANÁLISE DA PENITENCIÁRIA FEMININA
MADRE PELLETIER1
1
Parte do texto originalmente apresentado no XXVII Simpósio Nacional de História (ANPUH) com o título: Igreja
e Estado: proposta metodológica e de fontes no caso da Penitenciária Feminina Madre Pelletier.
2
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul (bolsista CNPq). E-mail: deborakarpowicz@gmail.com
3 INFOPEN (2008). Sistema Nacional de Informações Penitenciárias. Departamento Penitenciário Nacional.
Decreto-Lei n.º 3.689, de 03 de outubro de 1941). Em 1977, a Lei nº. 6.416 alterou a redação do
artigo, incluindo neste o benefício do trabalho externo a essas mulheres (Código Penal, Lei nº.
6.416, de 24 de maio de 1977).
Tal fato incitou-me curiosidade acerca da necessidade de proceder-se à separação dos
apenados no Estado do Rio Grande do Sul utilizando-se o critério de gênero, tendo em vista que
as tratativas para a fundação da obra de assistência às internas do Sistema Penitenciária do Estado
iniciaram quatro anos antes. Em 13 de junho de 1936, assinou-se o primeiro contrato entre a
congregação Bom Pastor d’Angers e o Estado, e em fevereiro de 1937 chegaram à casa do Bom
Pastor as primeiras internas, que, sob os cuidados das irmãs, foram recolhidas sem que ainda
houvesse uma estrutura física definida para acolhê-las. Em 5 de dezembro de 1938, pelo Decreto
Estadual n.º 7.601, essa instituição foi incorporada às instituições prisionais do Estado. Abaixo,
transcrevo um excerto da documentação existente:
178
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
A desordem, no entanto, desde a antiguidade fora tratada de forma a não contaminar a ordem,
sendo o isolamento a prática mais usual. Tudo o que era insalubre, perigoso, deveria ser
bloqueado como forma de proteção aos locais limpos (GAUER, 2005, p. 399-402). Nesse
sentido, destaco as palavras de Ruth Gauer: “daí a importância de Mary Douglas quando lembra
que o reconhecimento de qualquer coisa fora do lugar constitui-se em ameaça, e assim
consideramos desagradáveis e os varremos vigorosamente, pois são perigos em potencial”
(GAUER, 2005, p. 412).
A tutela legada ao Estado e à religião encontrava justificativa nos primeiros estudos
sobre a criminologia feminina. Ainda no final do século XIX, em 1892, Cesare Lombroso em
obra – La Donna Delinquente – defendeu que a mulher tem uma imobilidade e passividade
particular que é determinada fisiologicamente. A imagem da mulher foi construída como a de um
objeto fraco, produto de falhas genéticas. Outra característica destacada foi a inclinação para o
mal, por sua menor resistência à tentação, pois nela predomina a carnalidade em detrimento da
espiritualidade, nesse sentido, porém, segundo Lombroso, a mulher se adapta melhor e obedece
mais às leis que os homens (ESPINOZA, 2002, p. 38).
Outro fator que, somado à visão endógena do final do século XIX, teve peso para a
tomada de decisão quanto à separação de apenados homens de mulheres, foram as mudanças
179
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
delinquência e a importância da punição, eram pautados assuntos como a estrutura das prisões e
dos estabelecimentos para o cumprimento de penas, além de se questionar sobre o melhor
modelo punitivo e acerca das maneiras ideais de organizar o cárcere (ANDRADE, 2011, p. 67-
68). Também o contato dos penitenciaristas brasileiros com o exemplo dos países Latino-
americanos, que já possuíam cárceres femininos – Chile (1864); Peru (1871) e Argentina (1880) –
fomentaram os discursos sobre as práticas penais brasileiras (ANDRADE, 2011, p.192).
Através de relatórios esparsos e de alguns periódicos da época – que retratavam a
situação das mulheres nas prisões e casas de correções brasileiras – descrevendo não só a
condição em que se encontravam, mas também o pequeno número de apenadas condenadas,
esses profissionais foram de suma importância para a reflexão acerca do encarceramento no país
(ANDRADE, 2011, p. 25-26). Foram os responsáveis pelas principais reformas nas práticas
penais, aliando ciência ao destino que se há de dar àqueles que cometem delitos tipificados como
crime. Diversas foram as razões, segundo esses estudiosos, para a separação das apenadas, dentre
as principais, a promiscuidade sexual em ambientes nos quais conviviam juntos homens e
mulheres; a precariedade dos espaços que sobravam para as mulheres nas penitenciárias e cadeias;
a promiscuidade das próprias detentas entre si, e o inadequado convívio de detentas em situação
de “aguardando julgamento”, estarem juntas a reclusas com sentença transitada em julgado, pois
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
eram presas na mesma cela “mulheres honestas” e as “criminosas mais sórdidas” (ANDRADE,
2011, p. 191-192).
Como exemplo, trago um excerto do relatório produzido pelo penitenciarista Lemos de
Britto sobre as condições das penitenciárias já no ano de 1916:
Tínhamos nós uma penitenciaria que mais parecia um antro, amiúde devastados os
reclusos por males epidêmicos, dadas as suas péssimas condições hygienicas. Alguns
dos últimos governos melhoraram-n’a. Mas, na realidade, Ella em nada nos honra os
foros de terra onde se formaram os maiores juristas deste paiz, como Teixeira de
Freitas e Ruy Barbosa (BRITO, 1919, p. 24).
Tal pauta engendrou discussões no país inteiro, que, de toda a sorte, tiveram como foco
o resgate da moral, da feminilidade e do aprendizado das tarefas femininas como principais
objetivos daqueles que se dedicavam à causa das mulheres presas. Era esperado que a mulher,
enquanto sexo frágil, desempenhasse o papel de cuidar dos filhos, do lar e do marido, exigiam de
homens e mulheres papéis sociais específicos ditados por regras de condutas pré-estabelecidas.
O desvio deste ideal padrão, ditado pela sociedade tida como moderna no início do
século XX, foi enquadrado como inadequado e punido de acordo com as leis. Nesse contexto
social e com o intuito de resgatar a feminilidade e os valores de boa mãe e de esposa cativa,
enfim, de reintegrar tais mulheres nos parâmetros sociais a elas destinados como adequados, que
180
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
o Estado, a exemplo dos países Latino-americanos, legou a guarda das mulheres condenadas às
irmãs da Congregação Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor d’Angers, responsável pelo
papel de administração do primeiro cárcere feminino do Brasil, que mais tarde terá o nome
Madre Pelletier, em homenagem à fundadora da Congregação Madre Maria Eufrásia Pelletier
(Informe Técnico nº. 5, 1998, p.21).
5 ESP – Escola Penitenciária Rio Grande do Sul. Voluntários da Pátria, 1358 - 4º andar CEP 90230-010 - Porto
Alegre/RS – Brasil. Fundada em 1968 pela Lei nº 5.720 com o objetivo de qualificar os serviços penitenciários
promovendo a pesquisa e a difusão de assuntos referentes à criminologia. Disponível em
<http://www.susepe.rs.gov.br/especial.php>. Acesso em 03/10/2012.
6
Após diversas tentativas, o primeiro contato com o Sr. Manuel Aristimunha foi feito dia 24/07/2011, por telefone.
O Sr. Manuel hoje está lotado na PASC (Penitenciaria de Alta Segurança de Charqueadas), mas por anos trabalhou
no Madre Pelletier. O contato com o Sr. Manuel foi indicação da psicóloga e doutoranda em Psicologia pela PUCRS
Daniela Canazaro, que além de ter contato diário com a penitenciária, desenvolve pesquisa sobre as mães presas do
Madre Pelletier. O segundo contato com o Sr. Manuel foi dia 11/10/2012, em entrevista realizada na PUCRS.
7 Dia 30/10/2012 consegui a primeira entrevista com a administradora do Pensionato do Bom Pastor, Marizabel
Biedrzycki. Com Marizabel consegui contatos e informações precisas sobre a administração das irmãs e onde
encontrá-las. Tive acesso à bibliografia sobre a história do Bom Pastor d’Angers e fotos.
181
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
(SAL).8 Nessa primeira etapa das entrevistas, chamada ponto zero (MEIHY; HOLANDA, 200,
p.49).9 em história oral, obtiveram-se os primeiros indicativos para dar continuidade à pesquisa.
Além da documentação específica sobre a congregação Bom Pastor d’Angers – que
conta com duas obras escritas pela própria congregação10 e alguns sites oficiais da instituição11 –,
também será utilizada como referência de consulta a dissertação de mestrado de Bruna Angotti
de Andrade, que dispõe de um capítulo sobre essa congregação. Como as fontes secundárias
existentes não abordam em específico o trabalho que foi desenvolvido pelas irmãs do Bom
Pastor em Porto Alegre, apenas contam a história da instituição de uma forma geral, far-se-ão
entrevistas com as irmãs remanescentes e com as pessoas que vivenciaram a administração da
congregação.
Na terceira etapa da pesquisa, optou-se por fazer um levantamento dos documentos
oficiais referentes à instituição Madre Pelletier. Iniciou-se a pesquisa pelo IPHAE (Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico do Estado), no qual havia referência a um Processo de
Tombamento e Restauro da Capela Bom Pastor, localizada dentro da penitenciária. Encontrou-se
não apenas um, mas dois processos – Nº. 7261200906 – 02/ jul de 1990; Nº. 47362200919 – 11/
jul de 1991 – que ficaram por 20 anos arquivados na secretaria da Cultura do Estado e somente
em 2011 foram retomados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado IPHAE.
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
Tais processos forneceram dados valiosos sobre a fundação da instituição, datas de assinatura de
contratos e números de processos promulgados na época, além de imagens das irmãs junto às
presidiárias em comemoração aos 40 anos de administração do Bom Pastor.
Documentos referentes ao Reformatório de Mulheres Criminosas foram localizados em
catálogo do núcleo executivo, no Arquivo Público do Rio Grande do Sul (APERS). Também
foram encontradas, em caixas da Diretoria de Presídios e Anexos, informações que fazem alusão
ao contexto histórico da época de fundação da instituição, à Casa de Correção e documentos
sobre o Conselho Penitenciário. Esse material irá compor o corpus documental do primeiro
período analisado.
Congregação do Bom Pastor na Província Sul do Brasil – pinceladas históricas. São Paulo: [s.n], 1981.
POINSENET, Marie Dominique. Nada Impossível ao Amor. Tradução de Maria Margarida Campos. Salvador:
Editora Mensageiro da Fé, 1968.
11 Sites oficiais da congregação disponíveis para pesquisa: Hermanas del Buen Pastor Vocaciones en Norteamérica:
182
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
12 Presidente do Conselho Penitenciário do Distrito Federal, inspetor geral penitenciário, ex-professor da faculdade
Nacional de Direito e presidente da Sociedade Brasileira de Criminologia.
13 Diretor da Penitenciária central do Distrito Federal.
14 Livre-docente da faculdade Nacional de Direito, professor catedrático da Faculdade de Direito do Rio de Janeiro,
início do século XX. Criou o Conselho Penitenciário e a Inspetoria Geral Penitenciária, carregava a bandeira de
“elevar os nossos cárceres à altura da civilização brasileira”. Arquivos penitenciários do Brasil, Vol. I, 1940, p. 68.
183
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Não obstante toda a documentação oficial existente, percebe-se nos depoimentos das
irmãs, dos diretores do presídio e dos funcionários mais antigos, uma riqueza de fatos que o
documento por si só é incapaz de retratar, por isso, destaca-se a importância da utilização da
história oral como aporte metodológico. Todavia, salienta-se que a história oral será uma fonte
subsidiária, complementando as lacunas deixadas pela documentação oficial.
Nessas fontes, procurar-se-á analisar o contexto histórico e social dos anos de 1936 e
1981, bem como os anos circunscritos a esses períodos. Buscar-se-á compreender por que o
Estado legou às irmãs do Bom Pastor d’Angers a incumbência de cuidar das mulheres apenadas
do Estado, bem como buscar-se-á compreender o porquê da mudança administrativa, o que
levou as irmãs a deixarem o comando da penitenciária, já que a supervisão dos serviços esteve
sob seu comando por mais de 40 anos. Da mesma forma, buscar-se-á elencar as diferenças
administrativas ocorridas nesse período, o que mudou com a saída da congregação das irmãs do
Bom Pastor d’Angers.
Em suma, em termos de proposta metodológica, o estudo parte da revisão bibliográfica,
pesquisa de campo e levantamento de documentação oficial para a reconstrução da história do
Madre Pelletier; encontra na história das ideias um campo fértil para investigar o pensamento dos
penitenciaristas envolvidos no processo de modernização do cárcere; e, por fim, também percebe
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
no emprego a História Oral híbrida16 (MEIHY; HOLANDA, 2007, p.48) uma chave teórico-
metodológica para o desenvolvimento dos objetivos elencados no presente projeto de tese.
Referências
ANDRADE, Bruna Soares Angotti Batista de. Entre as leis da Ciência, do Estado, e de Deus: surgimento
dos presídios femininos no Brasil. São Paulo: USP, 2011. Tese (Doutorado em Antropologia).
ARTUR, Angela Teixeira. As origens do “Presídio de Mulheres” do estado de São Paulo. São Paulo: USP,
2011. Tese (Doutorado em História).
ARMELIN, Bruna Dal Fiume; MELLO, Daniela Canazaro de; GAUER, Gabriel José Chittó.
Filhos do Cárcere: Estudo sobre as mães que vivem com seus filhos em regime fechado. Revista
da Graduação: Publicação de TCC, Porto Alegre, v.3, n.2, Dados eletrônicos, 2010.
<http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/graduacao/article/viewFile/7901/5586>.
BAUMER, Franklin L. O pensamento Europeu Moderno: séculos XVII e XVIII (Vol. 1). Lisboa:
Edições 70, 1977.
BIERRENBACH, Maria Ignês. A Mulher Presa. In: ILANUD (Instituto Latino-Americano das
Nações Unidas para a Prevenção do Delito do Delinquente), São Paulo, n.º 12, 1998, p. 71- 91.
16 Os procedimentos utilizados em história oral são: História oral pura: feita com diálogos internos das falas
apreendidas. História oral híbrida: quando as narrativas concorrem com outros suportes documentais.
184
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
CONSTANTINO, Núncia Santoro de. Caixas no porão: vozes, imagens, histórias. Porto Alegre:
BIBLOS, 2004.
GAUER, Ruth Maria Chittó. Da diferença perigosa ao perigo da igualdade: reflexões em torno
do paradoxo moderno. Civitas - revista de ciências sociais, Porto Alegre, v.5, n.2, p. 399-413, 2005.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom; HOLANDA, Fabíola. História Oral: como fazer, como pensar. São
Paulo: Contexto, 2007.
UZIEL, Anna Paula. Radiografias da prisão Feminina: um mosaico. PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva,
Rio de Janeiro, 14 (1): 147-171, 2004.
Referências Documentais
BIBLIOTECA NACIONAL
185
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Pelletier.
FONTE ORAL
Helena Maria Bianchi – Madre Superiora da Congregação Bom Jesus – Contatos dias:
27/09/2012 e 01/10/2012
Luisa Celeste Biazus – Irmã da Congregação Bom Jesus – Contato dia: 01/10/2012.
Marília dos Santos Simões – Diretora da Penitenciária Madre Pelletier – contato dia 25/10/2012
Manoel Aristimunha – Agente Penitenciário – contatos dias: 24/07/2012, 11/10/2012.
Marizabel Biedzycki – Responsável pelo Pensionato Bom Pastor de POA – contato dia:
30/12/2012.
Irmã Maria do Carmo Capuano – responsável pela Congregação do Bom Pastor d’Angers no RS.
Irmã Suzana Franco – Provincial da América Latina da Congregação do Bom Pastor d’ Angers.
Irmã Maria Edith – Última administradora da Penitenciária Madre Pelletier quando estava sob os
cuidados das Irmãs do Bom Pastor d’Angers, trabalhou nos últimos 15 anos na instituição.
Entrevista dia: 15/05/2013.
186
A TRAJETÓRIA ADMINISTRATIVA DO MARQUÊS DE ALEGRETE NA
CAPITANIA DE SÃO PEDRO DO RIO GRANDE DO SUL (1814-1818)1
CLARISSA MEDEIROS2
O presente artigo tem como propósito apresentar os estudos iniciais sobre o trabalho a
ser desenvolvido sobre a trajetória administrativa do Marquês de Alegrete no período de sua
administração como Governador e Capitão-General da Capitania de São Pedro do Rio Grande
do Sul (1814-1818).
A análise da trajetória administrativa do Marquês de Alegrete, proposta para a dissertação
de mestrado, tem como finalidade observar, a partir das cartas enviadas e recebidas pelo Marquês,
de forma a estabelecer a sua rede de relações sociais e políticas, além de avaliar os objetivos do
Império Português para esta região, a região da fronteira platina, nos âmbitos administrativos e
políticos. E a partir das relações sociais estabelecidas por ele, observar as estratégias de um
indivíduo em busca da inserção social e da continuidade política do Império Português.
A trajetória administrativa do Marquês de Alegrete é uma via de acesso interessante para
compreender as diferentes estratégias políticas e administrativas do Império Português na
América, em fins do período colonial. Sendo um português pertencente à nobreza, percebe-se em
sua trajetória as características propostas pela Coroa portuguesa para a melhor governabilidade de
seu Império ultramarino.
Vale frisar que não há nenhum estudo específico sobre a trajetória do Marquês de
Alegrete, que meramente figura como coadjuvante em obras e trabalhos que têm por objeto o
Rio Grande do Sul no período do Império Português. Esse, inclusive, é um dos fatos que
motivou o presente trabalho.
Além disso, é possível que este estudo revele questões interessantes a respeito da forma
de atuação do Marquês de Alegrete na sua posição de Governador da Capitania, como também
do funcionamento da sua rede de relacionamentos sociais e políticos e a consequente influência
desta na política regional.
Quanto à pesquisa documental, pretende-se analisar as correspondências do Marquês de
Alegrete no período de sua administração como Governador da Capitania de São Pedro (1814-
1818). As fontes utilizadas para a análise são as correspondências oficiais do Marquês do
Alegrete, existentes no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS). A partir das
1
O presente artigo tem por objetivo apresentar o trabalho que está sendo desenvolvido para a dissertação de
mestrado no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), na Linha de
Pesquisa “Integração, Política e Fronteira” tendo como orientador o Prof. Dr. Luís Augusto Ebling Farinatti.
2
E-mail: clarissapmedeiros@yahoo.com.br
188
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Vale lembrar que o Marquês de Alegrete estava se inserindo em uma sociedade ainda
marcada pelas práticas do Antigo Regime, oriundas da própria Coroa portuguesa, que, por sua
vez, lançava mão dessas práticas como forma de vincular, identificar, os seus vassalos
ultramarinos com o Império português.
Assim, nesta perspectiva, a busca pelos indivíduos dentro de seus respectivos contextos
objetiva perceber a condição social destes, como asseguram seu espaço na rígida
estrutura social do Antigo Regime, e como para tanto, se inserem em diferentes círculos
de sociabilidade perseguindo espaços de legitimação. (MENEGATTI, 2009, p. 29)
Isso posto, dados os motivos acima elencados, vê-se que a pesquisa acerca da trajetória
administrativa do Marquês do Alegrete é deveras interessante pelo prisma de suas relações sociais
e de poder, em que o objeto de estudo é um ícone do processo de integração política na fronteira
do Império Português.
Dessa forma, o presente trabalho será desenvolvido na perspectiva da micro-história
italiana, especialmente identificada com a história social, na qual está compreendida como um
sistema de observação que necessariamente se constitui a partir da análise em conjunto dos níveis
micro e macro. Isso faz dos dois níveis um sistema novo de entendimento e, portanto, de
interpretação. A partir da Linha de Pesquisa “Integração, Política e Fronteira”, pretende-se
189
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
de Alegrete, objeto de estudo deste projeto, deve ser analisado dentro da sociedade na qual tenta
se inserir - a Capitania de São Pedro do Rio Grande do Sul, no período de sua administração, de
1814 a 1818 -, observando as relações sociais e de poder que construiu.
Por se tratar de um trabalho que visa à análise das relações sociais e de poder do Marquês
de Alegrete, é necessário compreender o conceito de rede social adotado. Para isso, vale citar o
trabalho de Adriano Comissoli (2011):
Assim, no presente estudo, pode-se dizer que o Marquês de Alegrete pode ser chamado
de “estrela de primeira ordem” (COMISSOLI, 2011). É a partir dele e de suas relações sociais
que será possível perceber as interações entre diferentes indivíduos e a dinâmica dessas relações,
dando início, dessa forma, à análise da rede social desse indivíduo.
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
Nesse sentido, faz-se necessário esclarecer que essas relações sociais se constituem no seio
de uma sociedade com elementos herdados do Antigo Regime, manifestando-se, em Portugal,
sob a lógica do dom. Segundo Marcel Mauss, Ângela Barreto Xavier e António Manuel Hespanha
baseavam-se numa tríade de obrigações: dar, receber e restituir. Para cada benefício concedido a
uma pessoa havia o dever de retribuição, denominado contradom. Essa lógica estava arraigada em
todos os segmentos daquela sociedade, servindo de base para as suas relações políticas e sociais.
O dom podia acabar por tornar-se um princípio e epifania de Poder. Assim, era
frequente que o prestígio político de uma pessoa estivesse estreitamente ligado à sua
capacidade de dispensar benefícios, bem como à sua fiabilidade no modo de retribuição
dos benefícios recebidos. (XAVIER; HESPANHA, s/d, p.382).
190
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Antes de tudo, a hierarquia social colonial deriva daquilo que denomino de Antigo
Regime nos trópicos. Portanto, além de seus aspectos econômicos, seria forjada por
vetores políticos e culturais, onde os grupos sociais se percebiam e eram percebidos por
suas qualidades. Como se sabe, na antiga sociedade lusa cabia ao governo cuidar do bem
comum da República: dirigir a organização social e política das regiões, sendo isto feito
pelas pessoas de melhor qualidade da localidade – reunidas na Câmara – e pelos
ministros do Rei, ambos subordinados à Coroa. (FRAGOSO, 2002, p. 44)
Os trabalhos acima citados fundamentam a pesquisa, uma vez que tratam das trajetórias
individuais influenciadas pelo Império Português, dentro de uma sociedade em que as práticas do
Antigo Regime ainda permanecem. Dessa forma, a partir desse tipo de trabalho buscar-se-á
analisar as relações sociais e de poder construídas pelo Marquês do Alegrete.
Diante de tudo isso, o trabalho que está sendo desenvolvido tem como objetivo uma
análise em redução de escala do período colonial brasileiro, em especial da fronteira da Capitania
de São Pedro do Rio Grande do Sul nos anos de 1814 a 1818, através das correspondências
recebidas e expedidas pelo Marquês de Alegrete - português recém-chegado para atuar como
Governador e Capitão-General da Capitania - nesse período. Com essa análise, visa-se obter
conhecimento das práticas administrativas e políticas da época e também das estratégias militares,
políticas e administrativas desenhadas pelo Império Português para o ultramar aqui aplicadas pelo
enviado do Império, o Marquês de Alegrete.
FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Confins Meridionais: famílias de elite e a sociedade agrária na
fronteira meridional do Brasil. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2010.
______. Construção de séries e microanálise: notas sobre o tratamento de fontes para a história
social. Anos 90 (UFRGS. Impresso), v. 15, p. 57-72, 2008.
FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima; BICALHO, Maria Fernanda. Uma leitura do Brasil
Colonial: Bases da materialidade e da governabilidade no Império. Penélope, nº 23, 2000. p. 67-88.
GINZBURG, Carlo. O nome e o como. Troca desigual e mercado historiográfico. In: A micro-
história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989.
191
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
HESPANHA, Antonio Manuel. Depois do Leviathan. In: Almanack braziliense. S/l, nº5, maio de
2007.
LEVI, Giovanni. A herança imaterial: Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio
de Janeiro: Civilização brasileira, 2001.
LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro:
Civilização brasileira, 2006.
MENEGAT, Carla. O tramado, a pena e as tropas: família, política e negócios do casal Domingos
José de Almeida e Bernardina Rodrigues Barcellos. (Rio Grande de São Pedro, Século XIX).
Porto Alegre: PPG-História UFRGS, 2009. (Dissertação de Mestrado).
XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. As redes clientelares. In: MATTOSO,
José (dir.). História de Portugal: o Antigo Regime. Lisboa, editorial Estampa, s/d. p. 381-393.
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
192
A TRAJETÓRIA DO GABINETE TOPOGRÁFICO DE SÃO PAULO: A FORMAÇÃO
DE ENGENHEIROS PRÁTICOS CONSTRUTORES DE ESTRADAS NA
PROVÍNCIA DE SÃO PAULO (1835-1849)
1. Introdução
Se os séculos XVI e XVII foram marcados pela expansão marítima de alguns países
europeus e a consequente conquista de novos territórios coloniais na África, Ásia e América,
pode-se dizer que o século XVIII registra uma mudança desta “cultura de latitude”, ou expansão
marítima, para uma “cultura de longitude”, ou expansão terrestre. (BUENO, 2004, p. 230). O papel
desempenhado por padres jesuítas e engenheiros militares foi fundamental para o processo de
interiorização e formação do território da América Portuguesa, no qual se devassaram os sertões
e se levantaram as potencialidades econômicas e informações geográficas que garantiram melhor
controle do território sob domínio português (BUENO, 2004, p. 230).
Para a vinda de padres jesuítas e engenheiros militares à América Portuguesa, foi
determinante a leitura que Guillaume Delisle (1675-1726), primeiro geógrafo do rei da França, fez
de sua dissertação perante a Academia Real das Ciências de Paris. As correções feitas por Delisle
expunham a transferência de soberania operada pela cartografia portuguesa em relação ao vasto
território espanhol situado a oeste de Tordesilhas.
Assim que recebeu notícias das conclusões de Delisle, D. João V (1689-1750)
convenceu-se de que era indispensável renovar a cartografia portuguesa através dos novos
métodos, especialmente da cultura astronômica, a fim de conferir base científica à diplomacia
portuguesa e “obviar as futuras alegações do governo espanhol, fundadas na situação do meridiano de
Tordesilhas” (CORTESÃO, 2006, p. 277-280).
Assim, em 1722, D. João V manda vir a Portugal dois padres jesuítas napolitanos
especialistas em matemática, astronomia, geografia e cartografia: João Batista Carbone (1694-
1750) e Domingos Capacci (1694-1736). A eles juntou-se Diogo Soares (1684-1748), também
jesuíta, natural de Lisboa e professor da “aula de Esfera” no Real Colégio de Santo Antão. Em
1729, D. João V enviou Soares e Capacci ao “Estado do Brasil” com a tarefa de “fazerem-se mapas das
terras do dito Estado não só pela marinha, mas pelos sertões; (...) e para esta diligência nomeei dois religiosos da
1Mestrando em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da USP. E-mail: rogerio.beier@usp.br
Companhia de Jesus, peritos em matemáticas, que são Diogo Soares e Domingos Capacci, que mando na presente
ocasião para o Rio de Janeiro” (TOLEDO, 1981, p. 33-34).
Além dos padres matemáticos, outros profissionais a serviço da Coroa com a
responsabilidade de devassar e mapear os sertões da América Portuguesa foram os engenheiros
militares. Enviados a partir da segunda metade do século XVIII, vinham com a missão de
elaborar cartas topográficas que viabilizassem a execução dos tratados de limites celebrados entre
as coroas ibéricas, em especial os de Madri (1750) e Santo Idelfonso (1777). A obra científica
iniciada por padres matemáticos na primeira metade do século XVIII foi, portanto, continuada
na segunda metade por exploradores e demarcadores de limites, em boa parte engenheiros
militares.
De modo que, a partir da segunda metade do século XVIII, cartógrafos, astrônomos e
engenheiros militares constituíram importante elo de transmissão dos conhecimentos
estratégicos, tais como território e população, que subsidiaram a construção de novas alternativas
e alianças entre as elites regionais e a corte bragantina (KANTOR, 2012, p. 239).
194
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
195
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
provincial de 24 de março de 1835. Segundo o texto da Lei, o Gabinete deveria conter: um diretor;
uma escola para estradas; os instrumentos necessários para trabalhos geodésicos; a coleção de todos os documentos
topográficos da província e uma biblioteca análoga ao estabelecimento. 2
Mais do que uma escola de engenheiros de estradas, o Gabinete Topográfico era uma
repartição provincial de obras públicas (CAMPOS JR., 1997, p. 69). Ao descrever as atribuições
do diretor do Gabinete Topográfico, o artigo 3º da Lei que criou o estabelecimento evidencia que
o objetivo principal da instituição era formar profissionais para a construção de estradas.
Levou mais de um ano para que o Gabinete Topográfico entrasse em funcionamento. Em
janeiro de 1836, como ainda não havia sido instalado, o então presidente da província, José
Cesário de Miranda Ribeiro (1835-1836), justificava em seu discurso aos membros da Assembleia
Legislativa que “o governo esperava installal-o [Gabinete Topográfico] brevemente, e já não o fôra por falta
de uma sala conveniente” (EGAS, 1926, p. 59).
Enquanto não era instalado, um diretor para o Gabinete Topográfico foi nomeado, a fim
de que providenciasse a organização, instalação e o colocasse em funcionamento. O oficial-
engenheiro nomeado para o cargo foi o tenente-coronel José Marcelino de Vasconcelos que, em
2 SÃO PAULO. Lei n. 10, de 24 de março de 1835. Cria nesta capital um gabinete topográfico. Disponível em:
<http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/1835/lei%20n.10,%20de%2024.03.1835.pdf>. Acesso em: 01
fev. 2012.
196
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
ofício de 14 de julho de 1836 dirigido ao presidente da província, se diz honrado pela nomeação
ao cargo, “aceitando-a com satisfação”. 3
O Gabinete Topográfico começou a funcionar na capital em 1º de Agosto de 1836, como
revela o ofício de José Marcelino de Vasconcelos enviado ao presidente da província nessa data.
(AESP, cx. 78, pasta 1, doc. 181). Meses depois, o próprio presidente Gavião Peixoto reafirmaria
essa informação no discurso de abertura dos trabalhos da Assembleia Legislativa Provincial, aos 7
de janeiro de 1837, informando que o Gabinete Topográfico já estava em funcionamento “desde o
dia 1º de Agosto do anno passado [e] que tem sido frequentado por 14 alumnos a tres dos quaes mandei contar
gratificação” (EGAS, 1926, p. 64).
Variando de 13 a 16 anos de idade, a maior parte dos alunos (9 de 14) eram filhos de
militares, sendo também nove o total dos estudantes naturais de São Paulo. A dotação destinada
pelo governo à organização, instalação e funcionamento do Gabinete Topográfico foi de:
3:200$000, sendo 600$000 para seu diretor, 438$000 para a gratificação dos alunos, 2:000$000
para a compra de livros e instrumentos e mais 162$000 para o expediente. 4
No entanto, em 1838, assim que uma nova legislatura tomou posse na Assembleia
Legislativa Provincial, o diretor José Marcelino de Vasconcelos foi chamado pelos deputados
para prestar esclarecimentos sobre os obstáculos que estariam “tornando infrutífero o estabelecimento”,
3 Arquivo Público do Estado de São Paulo. Ofícios diversos. Cx. 78, pasta 1, doc. 179.
4 Em termos comparativos, em 1836, um lente proprietário da Academia de Direito de São Paulo recebia a
remuneração de 1:200$000, enquanto um substituto recebia o valor de 800$000 anuais. (Müller, 1978, pp. 256-261).
Já um lente efetivo da Academia Militar do Rio de Janeiro recebia, em 1835, remuneração de 1:000$000. (Silva Telles,
1994, p. 102).
5 Arquivo Público do Estado de São Paulo. Ofícios diversos, cx. 84, pasta 2, doc. 36.
6 SÃO PAULO (Província). Lei n. 29, de 31 de março de 1838. Suspende a execução da Lei de 24 de Março de 1835, que
197
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Foram necessários dois anos até que o Gabinete Topográfico fosse restabelecido pela Lei
nº 12, de 12 de março de 1840. 7 Em janeiro de 1841, Rafael Tobias de Aguiar informava aos
deputados da Assembleia que o Gabinete ainda não havia podido principiar seus trabalhos, mas
já contava com um diretor muito capacitado que acabava de ser nomeado: Daniel Pedro Müller
(AGUIAR, 1841, p. 6-7). 8
Pouco antes de falecer, Müller trabalhava na reorganização do Gabinete Topográfico.
Para ele, seria impossível reorganizar o estabelecimento sem que se reformasse a Lei que o havia
restabelecido. A nova organização do Gabinete Topográfico pretendida por Müller deveria seguir
o exemplo da Escola dos Engenheiros Medidores de Niterói, por essa haver correspondido às
expectativas que se tinha dela.
A morte de Müller retardou o restabelecimento do Gabinete Topográfico e, como em
1842 o mesmo ainda não estivesse restabelecido, Miguel de Souza Mello e Alvim, então
presidente da província, discursou aos deputados da Assembleia lembrando a carência de
engenheiros nas obras públicas e da necessidade em se restaurar o Gabinete Topográfico.
Enquanto isso não ocorria, foi enviado da Corte o “2º Tenente do Imperial Corpo de
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
Engenheiros (sic)”, José Jacques da Costa Ourique (1815-1853), que logo foi nomeado diretor do
Gabinete Topográfico no lugar de Müller. (SOUZA E MELLO, 1844, p. 13-14). Tão logo
chegara, Ourique enviou um ofício ao presidente da província propondo alterações para a Lei de
criação daquele estabelecimento, expondo algumas adaptações que julgava necessárias no plano
de estudos do mesmo. 9
Para Ourique, o arranjo adequado para as novas matérias do Gabinete Topográfico
deveria privilegiar matérias teóricas que visavam formar “o pratico de Estradas”. Quanto aos
exercícios práticos que deveriam ser executados pelos alunos, sua sugestão era:
(...) nas férias os exercícios estabelleci um todos os dias uteis do anno inteiro para que
pudesse encumbir os discípulos de vários pedaços, que reunidos deverião formar um
exercício completo; para o que eu pedi então a V. Exa. que visto não haver quem cuide
imediatamente do arruamento, e calçamento da cidade commuta-la ao Gabinete. V.
Exa. bem sente que os discípulos lucrarão bastante com esta pratica. 10
7 SÃO PAULO (Província). Lei n. 12, de 12 de março de 1840. Restabelece o Gabinete Topográfico. Disponível em:
<http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/1840/lei%20n.12,%20de%2012.03.1840.htm>. Acesso em: 06
mar. 2013.
8 Embora oficialmente nomeado diretor do Gabinete Topográfico, em 1840, Müller jamais chegou a exercer a função
198
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
11 São eles: 1º Antônio Alexandrino dos Passos; 2º João José Soares; 3º Saturnino Francisco Villalva; 4º Gil Florindo
de Moraes; 5º Antônio José Vaz; 6º Firmino Antônio de Campos Penteado e 7º Francisco Delfino de Vasconcelos.
(Lima e Silva, 1845, pp. 12-13).
12 SÃO PAULO (Província). Lei n. 36, de 15 de março de 1844. Cria uma diretoria de obras públicas e autoriza o presidente da
199
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
o Gabinete Topográfico. Vicente Pires da Motta foi quem sancionou a Lei n. 27 onde se lê: “Fica
supprimido o gabinete topographico, revogada a Lei de sua creação”. (SÃO PAULO, Lei n. 27, de 23 de
abril de 1849).
Muitos alunos passaram pelas cadeiras do Gabinete Topográfico nos anos em que esse
funcionou em São Paulo. Alguns desses alunos chegaram a se formar como engenheiros práticos
e seus trabalhos contribuíram para o desenvolvimento viário da província de São Paulo.
José Porfírio de Lima (c. 1810-1887), por exemplo, foi um dos alunos da primeira fase do
Gabinete Topográfico. Tão logo concluiu o curso do Gabinete, ganhou uma bolsa para cursar a
Aula dos Arquitetos Medidores, em Niterói (CAMPOS JR., 1997, p. 71). Voltou para São Paulo em
1843 e, já no ano seguinte, foi nomeado membro da diretoria da recém-instituída Diretoria de
Obras Públicas. Em 1854, propôs projeto de pavimentação das ruas de São Paulo, tendo seu plano
negado pela câmara por essa se declarar desprovida de conhecimento técnico necessário para
executá-la (FAGGIN, 2009, p. 117). Aposentou-se do cargo de engenheiro da Câmara da Capital
em 1879 (CAMPOS JR., 1997, p. 71).
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
200
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Por fim, o engenheiro civil Antônio José Vaz, também da segunda fase, foi encarregado
dos reparos das pontes grande e pequena no aterrado de Sant’Anna, em 1858. (Egas, 1926, p.
269). Vaz também fora encarregado de averiguar o local mais apropriado para a construção de
uma ponte com cabeceiras de pedra sobre o rio Piracicaba na cidade de Constituição, tendo esse
engenheiro escolhido o local, realizado o plano e orçado a obra em 18.614$670 rs (Egas, 1926, p.
275).
Em 1894, por ocasião da inauguração da Escola Politécnica, Antônio Francisco de Paula e
Souza, organizador e primeiro diretor da Escola, fez menção honrosa aos criadores do Gabinete
Topográfico em sua oração:
A Victoria hoje alcançada, foi em lucta porfianda; porque a Idea que hoje venceu não é
nova – Nossos avós já a tinham, tentaram realisal-a. – Elles bem avaliavam as grandes
vantagens que a esta região adviria da divulgação de conhecimentos mathematicos –
Crearam, por isso, uma escola de Engenheiros constructores de Estradas, que
modestamente denominaram “Gabinete Topographico” (CAMPOS JR., 2004, p. 7).
5. Considerações finais
201
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Referências
BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. A produção de um território chamado Brasil. In: BUENO,
Beatriz et al (Ed.) Laboratório do mundo: idéias e saberes do século XVIII. São Paulo:
Pinacoteca/Imprensa Oficial, 2004, 229-243.
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
CAMPOS, Ernesto de Souza. História da Universidade de São Paulo. São Paulo: Edusp, 2004.
CAMPOS JR. Eudes de Mello. Arquitetura paulistana sob o Império: aspectos da formação da cultura
burguesa em São Paulo. 1997. Tese (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 1997, vol. 1.
CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri. Tomo I. Brasília; São Paulo:
Fundação Alexandre de Gusmão; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.
DOLHNIKOFF, Miriam. Caminhos da conciliação: o poder provincial paulista (1835-1850). São Paulo,
1993. 145 f. Dissertação (Mestrado em História Econômica) – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
EGAS, Eugenio. Galeria dos Presidentes de S. Paulo. Período Monarchico: 1822-1889. São Paulo: Secção
de Obras D’ O Estado de S. Paulo, 1926.
FAGGIN, Carlos Augusto Mattei. Arquitetos de São Paulo: dicionário de artífices, carpinteiros, mestres-de-
obras, engenheiros militares, engenheiros civis e arquitetos nos primeiros 350 anos contados da fundação da cidade.
São Paulo: FAUUSP, 2009.
FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Uma capitania dos novos tempos: economia, sociedade e política
na São Paulo restaurada (1765-1822). In: Anais do Museu Paulista. São Paulo, v. 17, n.2, jul./dez.
2009, pp. 237-250.
LAGO, Laurênio. Brigadeiros e Generais de D. João VI e D. Pedro I no Brasil: dados biográficos (1808-
1831). Rio de Janeiro: Imprensa Militar, 1938.
202
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
KANTOR, Iris. Cultura cartográfica e gestão territorial na época da instalação da corte portuguesa. In:
KURY, Lorelai; GESTEIRA, Heloísa (orgs.). Ensaios de História das Ciências no Brasil: das Luzes à
nação independente. Rio de Janeiro: Eduerj, 2012, pp. 239-250.
SALGADO, Ivone. Profissionais das obras públicas na província de São Paulo na primeira
metade do século XIX: atuação no campo da engenharia civil. In: Histórica – Revista Eletrônica do
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Nº 41, Ano 6, abr. 2010, pp. 1-10.
SANTOS, Cel. Horácio Madureira dos. Catálogo dos decretos do extinto Conselho de Guerra na
parte não publicada pelo General Cláudio de Chaby. Separata do Boletim do Arquivo Histórico Militar,
V volume (Reinado de D. Maria I (2ª Parte: janeiro de 1794 a dezembro de 1806). Lisboa: Arquivo
Histórico Militar, 1965, p. 548.
SILVA TELLES, Pedro Carlos da. História da Engenharia no Brasil: séculos XVI a XIX. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Clavero, 1994.
TOLEDO, Benedito Lima de. O real corpo de engenheiros na capitania de São Paulo. São Paulo: João
Fortes Engenharia, 1981.
Referências Documentais
ACERVO Histórico da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Série: Ofícios e Pareceres.
SÃO PAULO (Província). Discursos e relatórios dos presidentes da província de São Paulo (1835-1850).
Disponível em: <http://www.crl.edu/brazil/provincial/s%C3%A3o_paulo>. Acesso em 22 abr.
2013.
MÜLLER, Daniel Pedro. Ensaio d’um quadro estatístico da provincia de S.Paulo: ordenado pelas Leis
provinciaes de 11 de abril de 1836 e 10 de março de 1837. Reedição litteral. São Paulo: secção de obras
d’ “O Estado de S.Paulo”, 1923 (1838).
203
UMA TRAJETÓRIA, MUITAS RELAÇÕES: O LÍDER REPUBLICANO JÚLIO
PRATES DE CASTILHOS E SEUS CORRELIGIONÁRIOS
CARINA MARTINY1
Introdução
em 1881 pela Faculdade de Direito de São Paulo. De volta à província, participou da fundação do
PRR e do jornal republicano A Federação. Depois de proclamada a República, em 1889, exerceu
por duas vezes o cargo de presidente do Estado (em 1891 e de 1893 a 1898).
Este artigo analisa o papel central exercido por Júlio de Castilhos como líder republicano
nos anos iniciais da República, algumas estratégias de construção da hegemonia política
republicana no estado e a ação dos correligionários em busca de vantagens pessoais através da
prática da barganha e da negociação política.
O conjunto documental utilizado para a análise compreende as correspondências
enviadas por correligionários a Júlio de Castilhos entre novembro de 1889 e fevereiro de 1893.
Determinamos como marco inicial novembro de 1889 por corresponder à data da Proclamação
da República no Brasil e encerramos em fevereiro de 1893, por corresponder ao início da
Revolução Federalista, a guerra civil que opôs republicanos e federalistas no estado e que
encerrou apenas em 1895, com a vitória dos republicanos.
Através da análise quantitativa das correspondências determinamos os principais
remetentes, os períodos de maior envio de correspondências e os locais de origem delas. A
análise qualitativa, por sua vez, permite determinar, a partir do conteúdo das cartas, os assuntos
tratados e a natureza das relações que os correligionários teciam com o líder do partido.
205
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
neste artigo. Como é possível perceber, não contabilizamos nenhuma correspondência nos meses
de novembro e dezembro de 1889 e em janeiro de 1893, antes da eclosão da Revolução
Federalista. Das 102 correspondências, 84 foram enviadas no ano de 1890, uma no ano de 1891 e
17 no ano de 1892.
enviadas no ano de 1890, sendo que as demais três foram enviadas por Frederico Bastos no ano
de 1892.
Nesta fase inicial da pesquisa ainda é tarefa difícil caracterizar esse grupo de republicanos,
mas podemos arriscar algumas sinalizações. Podemos supor que eram membros ou simpatizantes
do PRR. Muitos deles, como demonstra o teor das correspondências, eram líderes republicanos
nos seus respectivos municípios. Silvestre Corrêa da Silveira, por exemplo, pecuarista em
Encruzilhada e Rio Pardo, um dos campeões de correspondências a Castilhos nos anos em
análise, foi o primeiro intendente de Encruzilhada e grande líder republicano no município.
Quanto ao local de origem das correspondências temos, no conjunto de 102
correspondências, 34 diferentes locais de origem no Rio Grande do Sul. Este dado, por si só, já
sugere que correligionários dos mais diferentes locais do estado entravam em contato com o
chefe do PRR. O quadro abaixo é demonstrativo dos locais de onde partiam as correspondências.
O quadro demonstra a grande diversidade de locais de origem das correspondências,
evidenciando que a base de apoio local ao PRR estava disseminada por todo estado.
Correspondências partiam da região do Planalto, da Serra, da Campanha e do Litoral. Assim,
percebe-se que, mesmo antes de estourar a guerra civil em 1893, o PRR já contava com uma base
de apoio em vários municípios do RS e com líderes que se intitulavam defensores da causa
207
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Fonte: AHRGS. Fundo Arquivo Particular Júlio de Castilhos. Correligionários, Correspondências recebidas, 1890-
1892, Maços 28, 30, 31 e 32.
208
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
na correspondência que enviou a oito de outubro de 1892, informa a Castilhos que “Estamos
trabalhando no alistamento eleitoral, que segundo cremos sahirá bem feito”.5
Em muitas das correspondências, os remetentes reafirmam seu apoio a Castilhos, ao
partido republicano e à causa republicana. Alguns fazem menção às inúmeras dificuldades que
têm encontrado por assumirem a defesa da causa. Outros lembram dos esforços empregados a
favor da República e do partido. Este costuma ser o tom introdutório da maioria das
correspondências, seguindo-se, então, pedidos a Castilhos. Favores a amigos e parentes ou a si
próprios, nomeações a cargos, promoções militares e outras barganhas políticas delineiam o
conteúdo de um grande número de correspondências. Vejamos mais especificamente através de
alguns casos.
Júlio Pereira dos Santos, o campeão de correspondências no período em análise, escreveu
a Castilhos a três de abril de 1890 afirmando que,
Esta tem por fim fazer um grande pedido e estou certo que o atenderá pois é justíssimo.
Trata-se de um nosso distinto amigo e correligionário que tudo tem feito em prol da santa causa que
defendemos.
Sei que há promoção ao primeiro posto agora em Novembro e desejo que empenhe-se
bastante por este nosso amigo.
Chama-se o distinto cadete a quem me refiro, Arthur Oscar de Souza, é praça há 9 para
10 anos. Não tem notas, e sim elogios.
Peço que faça tudo por ele, pois o que por este nosso amigo fizer fará a mim.
Desde já agradeço o grande favor que vem prestar-me.
Bem vê que ele é justo, por ser, um rapaz distinto, nosso companheiro e antigo de praça e que
tem sido muito preterido.
A República ou a morte, eis o nosso lema. 7
5 AHRGS. Fundo Arquivo Particular Júlio de Castilhos. Correligionários, Correspondências recebidas, Maço 32.
Carta enviada por Frederico Bastos a Júlio de Castilhos. Rio Grande, 8 de outubro de 1892.
6 AHRGS. Fundo Arquivo Particular Júlio de Castilhos. Correligionários, Correspondências recebidas, Maço 30.
Carta enviada por Júlio Pereira dos Santos a Júlio de Castilhos. São Martinho, 3 de abril de 1890..
7 AHRGS. Fundo Arquivo Particular Júlio de Castilhos. Correligionários, Correspondências recebidas, Maço 32.
Carta enviada por José Ricardo de Abreu Salgado a Júlio de Castilhos. Jaguarão, 07 de setembro de 1892.
209
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
uma negociação: em troca dos préstimos prestados pelo cadete “que tudo tem feito em prol da
santa causa que defendemos”, sua promoção ao primeiro posto.
De Pelotas, em 1º de novembro de 1892 escrevia o advogado E. Piratinino de Almeida ao
“ilustríssimo amigo dr. Júlio de Castilhos” com o “único fim” de “pedir sua valiosa intervenção
para a nomeação do nosso bom correligionário Antonio Corteguso, de praticante ao Correio
neste Estado”.8 Luiz dos Reis Cabral de Teive, que servia no 3º Batalhão de Artilharia de Posição
de Rio Grande escreve a Castilhos em setembro de 1892 pedindo sua transferência para o
batalhão de Engenheiros de Porto Alegre, já que, segundo aponta, tem interesses de família na
capital.9
Como demonstram as correspondências, essa base de apoio local ao poder do PRR
assentava-se em negociações e barganhas políticas entre as partes, sendo estas fundamentais para
a afirmação do poder político dos republicanos no Rio Grande do Sul nos anos iniciais da
República, quando o partido ainda não era numericamente hegemônico no estado.
Considerações finais
demonstra que republicanos de diferentes locais do Rio Grande do Sul usaram da prática de
corresponder-se com o líder republicano com o fim de conquistar vantagens econômicas,
políticas e sociais. Acesso a cargos e promoções era o que, em muitos casos, moviam os
correligionários, que buscavam em Castilhos a via de acesso a tais vantagens.
Se a prática de corresponder-se e negociar com o líder garantiu aos correligionários
vantagens e privilégios, a Castilhos e ao PRR a negociação com correligionários parece ter se
constituído como uma forma de garantir a ampliação da base de apoio político no estado,
fundamental para a construção da hegemonia política ainda não garantida nos anos iniciais da
República.
Referências
CARVALHO, José Murilo de. A Construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de Sombras: a
política imperial. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
GRIJÓ, Luiz Alberto. Foi o PRR em “partido político”? Logos, Canoas, p. 65-68, 1999.
8 AHRGS. Fundo Arquivo Particular Júlio de Castilhos. Correligionários, Correspondências recebidas, Maço 32.
Carta enviada por E. Piratinino de Almeida a Júlio de Castilhos. Pelotas, 01 de novembro de 1892.
9 AHRGS. Fundo Arquivo Particular Júlio de Castilhos. Correligionários, Correspondências recebidas, Maço 32.
Carta enviada por Luiz dos Reis Cabral de Teive a Júlio de Castilhos. Rio Grande, 05 de setembro de 1892.
210
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
RAMOS, Eloisa Helena Capovilla da Luz. O Partido Republicano Rio-Grandense e o Poder Local no
Litoral Norte do Rio Grande do Sul – 1882/1895. 284 f. Dissertação (Mestrado em História) – Curso
de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 1990.
RECKZIEGEL, Ana Luiza Setti. 1893: A Revolução além fronteira. In: RECKZIEGEL, Ana
Luiza Setti; AXT, Gunter (dir.). República: República Velha (1889-1930). Passo Fundo: Méritos,
2007. v. 3, t. 1, p.23-56. (Coleção História Geral do Rio Grande do Sul).
WASSERMAN, Claudia. O Rio Grande do Sul e as elites gaúchas na Primeira República: guerra
civil e crise no bloco do poder. In: GRIJÓ, Luís Alberto [et al.]. Capítulos de história do Rio Grande
do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2004. p. 273-289.
Referências Documentais
AHRGS – Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Fundo Arquivo Particular Júlio de
Castilhos. Correligionários, Correspondências recebidas, 1889-1900, Maços 28, 30, 31 e 32.
211
CASO DIÁRIOS ASSOCIADOS X JOÃO FREIRE, DE 1946 – POSSIBILIDADES DE
PESQUISA HISTÓRICA
Entre as décadas de 1930 a 1950, a rede dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand2,
havia se expandido para todo o país, ajudando a integrar as várias regiões brasileiras por meio dos
veículos de comunicação. Em Porto Alegre, o jornal Diário de Notícias, fundado em 1925,
pertencia ao grupo dos Associados desde 1931, próximo ao período em que Getúlio Vargas chegou
ao poder. É nesse periódico que João Freire, um dos personagens centrais desse processo judicial,
foi escolhido, em 1939, para assumir o cargo de diretor-gerente. Era uma função de destaque,
pois ele era responsável pelo controle do caixa, cuidando do orçamento e das rendas com
publicidade.
3No processo analisado, que é onde aparece essa informação, não está claro para quem Chateaubriand devia tal
quantia.
213
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Portanto, a ideia era usar o lucro que surgisse das futuras publicidades para acertar os
débitos com os credores. Para isso, a Rede Diários Associados transferiu, em quatro parcelas, a soma
total de 7.825.000 cruzeiros a João Freire, sendo que, desse valor, 4 milhões estavam destinados
ao pagamento da cessão da Rádio Farroupilha. O dinheiro da operação provinha de empréstimos, e
Freire recebeu uma cota de 5 mil cruzeiros para figurar como sócio, podendo, assim, gerenciar a
empresa radiofônica. Ao todo, Freire figurava como proprietário de uma cota de 110 mil
cruzeiros distribuídos nos três veículos de comunicação, mesmo sem ter contribuído diretamente.
Na ordem externa, ele procedia como proprietário, mas agia, internamente, como mandatário das
decisões tomadas no Rio de Janeiro. Ao sugerir a ramificação, João Freire tomava a iniciativa para
que os Associados crescessem de forma rápida, ampliando a força dos empreendimentos de
Chateaubriand.
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
214
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Por último, a Difusora, que havia sido criada como uma rádio estritamente comercial,
pertencia a Arthur Pizzoli, empresário que, no início da década de 1940, também possuía o
controle acionário da rádio Gaúcha. Assim, ele mantinha investimento em duas das três estações
radiofônicas de Porto Alegre, mas, em um mercado publicitário ainda incipiente, Pizzoli começou
a enfrentar dificuldades de comercialização. Por isso, optou pela venda da Difusora, permitindo
que seus capitais na área radiofônica fossem direcionados apenas para a Gaúcha (FERRARETO,
2002, p. 157).
Os Diários Associados deram as precisas instruções a João Freire e, como foi visto,
forneceram a quantia das várias aquisições por meio de empréstimos. Os valores exatos de cada
parcela e a procedência do dinheiro chegaram, inclusive, a ser divulgados pelo jornal Diário de
Notícias:
Após a aquisição das empresas, tratou-se a transferência das cotas e a formação de novas
sociedades. Por conveniência, as cotas foram distribuídas entre os dois sócios principais – Assis
Chateaubriand e Leão Gondim5 – e mais quatro pessoas de confiança, entre as quais estava João
Freire. Porém, nessa distribuição, não aparecia o nome da Sociedade Diários Associados Ltda., apesar
de ter sido a financiadora de todo o negócio. De qualquer maneira, foi assim que Assis
215
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Chateaubriand, que já era o maior acionista do Diário de Notícias S.A., passou a ser o maior cotista
da Rádio Farroupilha, Rádio Difusora e da empresa A Razão Ltda.
No entanto, João Freire, que havia participado diretamente das negociações, entrou em
conflito com seus superiores nos Diários Associados. Ao que parece6, Assis Chateaubriand
mandava publicar anúncios nos jornais e ficava com o dinheiro – “mandava publicar sem que a
receita correspondente entrasse nos cofres da sociedade anônima”7 – e, em determinado
momento, chegou a dever ao Diário de Notícias e às emissoras associadas no Rio Grande do Sul
mais de cinco milhões de cruzeiros. João Freire teria colocado obstáculos a essa prática, vedada
por lei, e isso levou à sua demissão.
Freire acabou sendo destituído das funções do diretor do Diário de Notícias e despedido do
cargo efetivo de chefe de publicidade. O motivo alegado foi as faltas denunciadas por um dos
funcionários do jornal: Mário Borba Caminha, que exercia funções de caixa. Entre as tarefas
administrativas, estava incluída a retirada diária de duas vias das fichas que deviam ficar em poder
do chefe do escritório, Ernani de Oliveira, para o devido confronto após o expediente. Na mesa
de Freire, eram colocados todos os dias os mapas das operações feitas, com os devidos
comprovantes e vistos dos responsáveis. Contudo, certa vez, as duas fichas apareceram
misteriosamente nas mãos do caixa Mario Borba. Descoberto o desfalque, foram tomadas as
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
devidas providências – João Freire, que já estava em uma situação desconfortável, foi penalizado.
Acusado de má gestão, ele recebeu, em novembro de 1945, uma carta, exigindo que a
administração das empresas fosse passada para o jornalista Armando de Oliveira, chefe dos
escritórios dos Diários Associados em São Paulo.
Contrariado, Freire decidiu entrar com uma ação na Justiça do Trabalho, que julgou, em
duas instâncias, que não havia motivo para a rescisão do contrato. Ele ainda era o dono de parte
das cotas sociais das empresas dos Diários Associados no Sul. Por isso é que Freire resolveu pedir a
dissolução judicial da Rádio Farroupilha, a notificação na posse do jornal A Razão e a notificação
dissolutória da Rádio Difusora Porto-Alegrense – medidas que, se ele ganhasse, dar-lhe-iam meios de
sobreviver enquanto não encontrava um novo emprego. Proposta a ação, quando estava nos
embargos infringentes, foi Freire notificado que a liquidação nada daria, porque Chateaubriand,
usando seu prestígio, já tinha promessa de que, caso a sociedade fosse à liquidação, ele manteria a
frequência de onda da Farroupilha. Assim, desapareceu o maior valor da sociedade, e a partilha,
se ocorresse, pouco beneficiaria Freire.
6 As informações foram retiradas da defesa de João Freire, que consta no processo analisado, e não foi possível
confirmá-las.
7 Correio do Povo, Porto Alegre, 15/05/1946, p. 6.
216
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
8 Em particular, trata-se das obras escritas por FERRARETO (2002, 2007), RÜDIGER (2003) e DE GRANDI
(2005).
217
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Por exemplo, Ernesto Corrêa, diretor do jornal Diário de Notícias, de Porto Alegre, diz
possuir conhecimento de que, por critério pessoal de Assis Chateaubriand, todas as indenizações
feitas a funcionários demitidos dos Diários Associados, como é o caso de João Freire, foram
superiores à legislação em vigor. Sobre isso, Say Marques, também jornalista do Diários de Notícias,
explicita que os Diários Associados são “um patrimônio comum, indivisível de todos os seus
funcionários e trabalhadores enquanto neles permanecerem”9. É uma colocação reafirmada
repetidas vezes, quando menciona, por exemplo, que: “os Diários Associados são integrados por
homens idealistas e dignos, antes de ser uma empresa comercial de tipo comum, é também um
pacto de honra, uma aliança moral”10. Por extensão, percebe-se que Say Marques desqualifica
João Freire com essa frase, já que este não teria honrado sua aliança com o grupo midiático de
Chateaubriand ao permanecer com as cotas sociais das empresas de comunicação gaúchas.
João Freire, por sua vez, afirma que não tinha nenhuma relação com os Diários Associados,
salvo as comerciais – ele era gerente administrativo e cuidava, em particular, da área publicitária.
Além disso, no processo existe uma cópia de uma carta confidencial de Freire a Leão Gondim,
algo que é citado de passagem no depoimento do réu ao Juiz. Foi uma resposta às acusações
contra a vida funcional e privada de João Freire, que “teria pecado contra a lealdade e a
sinceridade, que são o binômio das relações entre chefes e companheiros”11, segundo o escrito de
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
Freire. Mas o depoimento de Leão Gondim é ainda mais agressivo. Ele é o único entre as
testemunhas a comentar que “Freire entrou como empregado e como tal saiu, do qual saiu muito
mal”12. Em outra passagem, expõe atos íntimos e particulares de Freire, como o fato de “ter
abandonado mulher e filhos e de ser visto em estado de embriaguez no ambiente de trabalho”13.
Em termos de conservação, o conteúdo do processo encontra-se em bom estado. Como
a ação iniciou em meados da década de 1940 – mais precisamente no ano de 1946 –, época em
que as máquinas de escrever já eram comuns, a maior parte do material está datilografada, o que
facilita enormemente a leitura. Arquivos judiciais do começo do século XX eram feitos à pena de
tinta, em uma caligrafia apressada, exigindo esforço para serem compreendidos. Não é o caso
desse documento. Técnicas paleográficas não serão necessárias para estudá-lo, já que os raros
trechos escritos à mão utilizam letra de forma, simples de ler. Porém, algumas folhas estão
amareladas e rasgadas, com muitas dobras e borrões. A numeração das páginas está confusa, por
existirem diversos números concorrentes, e há anotações e riscos de lápis de cor ao lado de certos
depoimentos. Nada disso, entretanto, compromete o entendimento da fonte.
218
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
O processo termina em 1956, com ganho de causa para os Diários Associados. A ação foi
julgada procedente desde a primeira instância, mas os vários recursos apelados por João Freire
arrastaram a decisão por dez anos. Apesar da vitória, o grupo começou a decair nessa década,
pelo menos no Rio Grande do Sul. Basta lembrar as manifestações de 1954 em Porto Alegre,
quando uma multidão, revoltada com a campanha antivarguista da rede de Chateaubriand,
invadiu as instalações das rádios Difusora e Farroupilha, causando a destruição que culminou no
incêndio do prédio do jornal O Diário de Notícias.
Assim, perceber o contexto em que essa ação cível se desenrolou ajuda a destrinchar a teia
das relações de poder que se formava por trás das aparências das empresas de comunicação.
Nesse sentido, vale mencionar as palavras de Jacques Le Goff (1990, p. 545): “o documento não
é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou
segundo as relações de forças que aí detinham o poder”. A fonte aqui descrita não pode,
portanto, ser vista como um documento inócuo, um processo que permaneceu arquivado e foi
esquecido por um motivo qualquer. Seguindo o caminho apontado por Le Goff, deve-se
considerar o documento como monumento, ou seja, identificar quais intenções confluíram para
que ele existisse e fosse perpetuado.
Partindo dessa perspectiva, cabe novamente destacar que os detalhes desse processo são
219
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Referências
CARNEIRO, Glauco. Brasil, primeiro: A história dos Diários Associados. Brasília, Fundação Assis
Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social -
Chateaubriand, 1999.
DE GRANDI, Celito. Diário de Notícias: O romance de um jornal. Porto Alegre: L&PM, 2005.
FERRARETO, Luiz Artur. Rádio e capitalismo no Rio Grande do Sul: As emissoras comerciais e suas
estratégias de programação na segunda metade do século 20. Canoas: Editora da Ulbra, 2007.
______. Rádio no Rio Grande do Sul (anos 20, 30 e 40): dos pioneiros às emissoras comerciais.
Canoas: Editora da Ulbra, 2002
MORAIS, Fernando. Chatô: O rei do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1994.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2011.
220
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Referências Documentais
221
COMUNICAÇÃO – ATIVIDADE PERMANENTEMENTE EM CONSTRUÇÃO
A Lei Federal nº 11.904, de 2009, que instituiu o Estatuto dos Museus, prevê, em seu
capítulo II, que “as ações de comunicação constituem formas de se fazer conhecer os bens
culturais incorporados ou depositados no museu, de forma a propiciar o acesso público”2.
Nossas instituições de memória, em geral, apresentam grande incapacidade de criar, gerir e
manter, com a energia necessária, ações de comunicação.
A visualização da necessidade e do dever-agir é dificultada pelo pouco entendimento das
possibilidades advindas pelo uso de ferramentas efetivas de comunicação para a consecução dos
objetivos institucionais. Não se trata de utilizar as ações de comunicação somente para fins
educacionais, mas sim de agir mais amplamente para permitir o “acesso público” à história e à
construção da cultura ao longo do tempo.
É necessária a sensibilização dos gestores políticos de maior hierarquia para que
organicamente envolvam os profissionais de comunicação da própria instituição, de forma a
trabalharem com o órgão ou setor de memória para a construção de ações efetivas. Acresça-se a
isso, a possibilidade de estabelecer a formação continuada de comunicadores nas equipes – que
não precisam, necessariamente, da presença permanente de jornalistas.
O trabalho apresentado por Juliana Siqueira no IV ENEMU – Museologia e
Interdisciplinariedade, Goiânia, 2011, trata do “educomunicador”, que consistiria no
“profissional que atua na formação de cidadãos críticos, participativos e inseridos em seu meio
social na luta pelo direito à comunicação”. Aponta Juliana, que o educomunicador “assessora o
sistema de meios de comunicação e o sistema educativo, implementando programas e projetos e
pesquisando os fenômenos próprios da Educomunicação” (Idem).
Há diferentes entendimentos sobre quem pode informar e comunicar. Jaurês Palma, em
seu livro sobre jornalismo empresarial, e relevante neste artigo, considerando uma instituição
como “empresa” em sentido lato, destaca que “a política de informação na empresa, como em
outros setores, só pode ser criada, planejada e executada por profissionais especializados” (Palma,
1994, p. 69).
Interação
“[...] devemos levar em conta que a empresa gera interações tanto entre as pessoas do
quadro que a compõem, quanto com o público a que ela serve, dado seu objetivo e
função social. Assim, para que o processo se estabeleça e se mantenha, a organização
recebe, processa e dá informação, estabelecendo COMUNICAÇÃO. Sem a troca de
informação, não haveria mudanças, não haveria desenvolvimento e, conseqüentemente,
não sobreviveria qualquer sistema, qualquer forma”. (Palma, 1994, p. 58)
Diz ainda o mesmo autor que “a mensagem estará mais perto de alcançar os objetivos,
quando contiver perguntas ou estímulos que levem à oportunidade de manifestação escrita, falada
ou contida em posturas e reações” (Palma, 1994, p. 60-61).
Mais que representar mero interesse pessoal, procurar comunicar-se com a sociedade
deve ser vista como necessária atividade diária de quaisquer organismos das áreas de museus,
arquivos e de gestão de acervo do setor público. Poucas são as que se utilizam com grande
eficácia, por diferentes motivos, dos meios existentes para informar e educar os cidadãos, para
quem é dirigido, afinal, todo o trabalho.
Considerando dificuldades na viabilização da contratação de profissionais de
223
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Memorial do Judiciário
comunicar com seus públicos específicos, formado principalmente por magistrados e servidores
do Poder Judiciário, escolas, e pesquisadores. Informar e comunicar sempre foi considerado
como básico nas rotinas da equipe de trabalho.
Em levantamento junto ao setor de Imprensa do Tribunal de Justiça, com o apoio do
Departamento de Informática, foram localizadas 351 notícias com citação ao trabalho do
Memorial, entre 2002 e maio de 2013.
Informe-se que as notícias divulgadas pelo setor de imprensa são produzidas e
distribuídas a dezenas de jornais e rádios, multiplicando a repercussão.
Vejam-se os gráficos de apoio:
224
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Tabela 1 – Notícias envolvendo o Memorial do Judiciário, por ano e quantidade, de 2002 a 2013
O número de notícias publicadas mostra-se ascendente, com picos positivos nas épocas
da anual Feira do Livro de Porto Alegre. Por iniciativa da equipe, há mais de três anos o
Memorial passou a remeter a cerca de 1400 pessoas e instituições, incluindo escolas, magistrados
e servidores, via e-mail, o Palavra do Memorial. E o número de destinatários está em contínuo
crescimento. Também incluiu noticiário impresso em seus principais projetos como no Formando
Gerações. Há alguns meses, criou e passou a manter duas contas no Facebook. O uso do Twitter é
mais antigo. O organismo do Tribunal de Justiça está procurando ampliar o público em geral
atingido.
A equipe é composta por cinco servidores, com variada formação acadêmica, e mais o
mesmo número de estagiários de História, Biblioteconomia e Museologia.
225
I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Conclusão
Referências
SIQUEIRA, Juliana. Educomunicação museal: ação educativa para museus vetores na construção de cidadania.
Disponível em: <https://sites.google.com/site/educomunicacaomuseal/apresentacoes>. Acesso
em 16 dez. 2013.
PALMA, Jaurês. Jornalismo Empresarial. 2ª ed. Porto Alegre: Sagra-DC Luzzatto Editores, 1994.
Referências Documentais
226
LABCONESUL2014
LABCONESUL2014
Esta publicação reúne parte dos trabalhos debatidos
no I Encontro de História do Ministério Público do
RS. Realizado entre os dias 05 e 06 de junho de 2013,
com a organização do Memorial do Ministério
Público do RS e apoio do Laboratório de História
Comparada do Cone Sul/PUCRS/CNPq, o evento
buscou agregar trabalhos em torno do tema “Espaços
de saber e poder: instituições na perspectiva da
História Social”. Deste modo, as pesquisas aqui
presentes mostram as diferentes dimensões e
perspectivas destes espaços em distintos períodos e
locais – como se originaram e como se organizavam –
e quem eram os indivíduos que neles atuavam.