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Coletânea do Estoriador

Os melhores contos de Biancardine, o


Estoriador
Por
Victor Biancardine
Dedico esta coletânea para três mulheres,
todas com um impacto importante em minha vida: Ianna, Caroline e Carla.
Obrigado por tudo, e espero que leiam isto, algum dia.

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Sumário
A Vida de Dave McCloud ...................................................................................................................................................................... 4
O Sentido da Vida ................................................................................................................................................................................ 9
Querido Diário ................................................................................................................................................................................... 18
Um Novo Ano ............................................................................................................................................................................... 18
O Novo ......................................................................................................................................................................................... 20
Novas Paixões ............................................................................................................................................................................... 22
Capa dura, namorado mole .......................................................................................................................................................... 24
More Than a Feeling ..................................................................................................................................................................... 26
O Segredo ..................................................................................................................................................................................... 28
A Dança no Parque ....................................................................................................................................................................... 30
Filho da... ...................................................................................................................................................................................... 31
Confusão ...................................................................................................................................................................................... 33
A Primeira Vez .............................................................................................................................................................................. 34
... Oh... .......................................................................................................................................................................................... 35
Inesperado ................................................................................................................................................................................... 36
Cidade dos Sonhos Esquecidos .......................................................................................................................................................... 38
Collin .................................................................................................................................................................................................. 40
Et Iudicium ......................................................................................................................................................................................... 42
Contos de Bar..................................................................................................................................................................................... 44
Quando os Ratos se Apaixonam ................................................................................................................................................... 44
Sendo parado por um policial: O que não se deve fazer .............................................................................................................. 47
Minha Noite de Sexta-Feira (Segundo Testemunhas Oculares) .................................................................................................... 49
Revelações, Bariloche e Outras Insanidades................................................................................................................................. 52
Missão Possível Porém Altamente Improvável: Invadindo os Estúdios da Globo RJ ..................................................................... 54
Insira Texto Provocativo Aqui ....................................................................................................................................................... 57
Chanel .......................................................................................................................................................................................... 60
Jornada para o Inferno: Um dia sem Eletricidade ......................................................................................................................... 62
Runnin’ Wolves .................................................................................................................................................................................. 64
Prólogo ......................................................................................................................................................................................... 64
Capítulo Um.................................................................................................................................................................................. 64
Capítulo Dois ................................................................................................................................................................................ 67
Capítulo Três ................................................................................................................................................................................ 69
Capítulo Quatro ............................................................................................................................................................................ 72
Capítulo Cinco .............................................................................................................................................................................. 75
Capítulo Seis ................................................................................................................................................................................. 77
Capítulo Final ................................................................................................................................................................................ 79
O Sol de Cada Manhã ......................................................................................................................................................................... 82
Capítulo Um.................................................................................................................................................................................. 82
Capítulo Dois ................................................................................................................................................................................ 84
Capítulo Três ................................................................................................................................................................................ 88
Capítulo Quatro ............................................................................................................................................................................ 90
Capítulo Cinco .............................................................................................................................................................................. 94
Capítulo Final ................................................................................................................................................................................ 96
O Cavaleiro e o Dragão .................................................................................................................................................................... 100
Sobre o Autor & Agradecimentos .................................................................................................................................................... 102

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A Vida de Dave McCloud

D ave se vestiu, sorrindo. Saiu de seu prédio, e entrou no Metrô de Nova York. Mantendo
o sorriso, saiu do Metrô e entrou no prédio aonde trabalhava. Ignorou seu chefe, e
subiu até seu escritório.

No escritório, ele ajustou sua gravata, retirou o paletó, abriu a janela de seu escritório, e subiu.
Virou-se, e, abrindo um sorriso para seus colegas de trabalho exasperados, deixou-se cair para
trás.

O telefone tocou. Um jovem, dormindo em sua cadeira, rosnou e virou-se, voltando a cair no
sono. O telefone tocou outra vez. Ele se levantou, irritado. O telefone tocou uma última vez, e
o jovem atendeu.

- Alô?
- Detetive Harrison! - Era sua secretária.
- Betty, o que eu te disse sobre me acordar de manhã?
- Eu sei, Sean, mas o detetive chefe Gus ligou. Ele quer que você vá para a rua Hayton, perto do
Times Square. Disse que você vai saber quando chegar.

Sean Harrison desligou o telefone, sem se despedir. Ultimamente seu chefe tem lhe
importunado descomunalmente. Ele pôs seu sobretudo - Era inverno - E saiu às ruas, dirigindo
seu velho Chevrolet.

Na neve fina de Nova York, sorrindo alto para os céus de forma que aterrorizava Sean, estava o
cadáver de Dave McCloud. Gus estava logo ao lado do corpo, e, tomando um gole de café,
chutou de leve a cabeça dele.

- É assim que você trata os recém-partidos? - Sean interrompeu-o, claramente irritado.


- E o que importa? Recém-partido ou há muito enterrado, todos fedem.
- Diferente de você, acredito.
- Muito engraçado, Sean.
- Então, qual é o caso?
- Não tem caso, esse palhaço se jogou.
- Por que você me chamou aqui, Gus? - Ele estava sem paciência para as idiotices de Gus.
- Como vai a esposa, Sean?
- Vai bem, mas não é mais minha esposa. Você sabe disso.
- Sei. Eu vi você dormindo no escritório, chorando o nome dela.
- Por que você me chamou aqui, Gus? - Sua paciência havia se esgotado.
- Eu queria que você soubesse como você ficaria se decidisse sair da maneira fácil. Não é uma
vista bonita.
- Existe algo nesta cidade que seja?
- Talvez não, mas um jovem de vinte e sete anos se matando porque sente saudades da esposa
não vai ajudar a paisagem, vai?
- Eu não vou me matar, Gus.
- Assim você diz. Enfim. Eu tenho que ir cuidar de alguns casos de verdade. Faça-me um favor,
e preencha a ficha de ocorrência dele. Questione testemunhas, etc.

Gus deixou Sean ao lado do corpo, junto com seu copo vazio de café. Sean se ajoelhou,

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fechando os olhos sorridentes do cadáver. Gus nunca dava conselhos sem ter um forte auxílio
visual.

Michelle era uma garota de cidade pequena, do tipo que nunca conheceu nada que estivesse
fora do alcance das ruas aonde crescera. Quando um homem de Nova York apareceu em sua
vida, ninguém se surpreendeu quando ela largou tudo para segui-lo, apesar de ter apenas
quinze anos.

Ela esfregava as lágrimas furiosamente, tentando não lamentar a morte de seu amante,
dividida entre odiá-lo e amá-lo. Odiava seu trabalho na cafeteria, e tinha o sonho de que seu
amante iria levá-la para longe. Seus sonhos foram destruídos, como o barulho que Sean fez ao
esbarrar em uma das garçonetes.

- Com licença, - Sean chamou a atenção de Michelle - Eu gostaria de um copo de café.


- Tudo bem. Vai querer com adoçante ou açúcar? - Ela tentou manter seu profissionalismo,
apesar das lágrimas que rolavam por seu rosto.
- Está tudo bem com a senhora? Está chorando.
- Não, eu estou... - Ela lançou um olhar aonde o corpo de Dave estava minutos atrás, e soluçou,
tentando conter o choro. - Estou bem.
- A senhorita conhecia Dave McCloud?
- Não! Quero dizer... Sim, eu conhecia. Me desculpe, é que eu era a... - Ela engasgou.
- Você era a...?
- Eu era a amante dele.
- A amante dele? Então você pode me dizer aonde ele morava?
- Não! Eu...
- Por favor - Sean segurou na mão dela, fitando-a nos olhos - Qualquer informação poderá ser
crucial para minha investigação.
- Tudo bem. - Ela respondeu, depois de alguns segundos - Ele morava na rua Holt, número 55,
apartamento 901.
- Obrigado. Aqui, tome meu cartão de trabalho. Caso precise de ajuda, ligue.

Sean foi embora, deixando a pobre garçonete com seus próprios demônios para lutar. Ele
seguiu à pé para a rua indicada, e, chegando no prédio, tocou o interfone do 601. Quem
atendeu foi uma mulher com uma voz sedutora.

- Alô? Quem está aí?


- Alô. Aqui é o Detetive Harrison, da Polícia de Nova York. Eu gostaria de lhe fazer algumas
perguntas acerca de Dave McCloud. - Sean percebeu que possivelmente seria o homem que
contaria para ela sobre a morte de seu marido.
- Dave? Tudo bem. - A voz melodiosa dela alterou-se ao ouvir o nome do marido - Suba.

Scarlett, ao contrário do que o nome fazia acreditar, era uma loira. Seus lábios carnudos
encantavam Sean, e lembravam-no de uma paixão antiga que tivera quando o mundo ainda
era colorido para si.

A jovem mulher havia gostado do detetive. Seu marido não lhe importava mais, estando
sempre com sua amante. Ela teria deixado-o, mas sua criação advertia-lhe contra.

Havia nascido e crescido em Nova York, e sua família sempre tivera dinheiro sobrando. Seu pai
trabalhava com bolsas de valores, e sua mãe era uma dona-de-casa.

- Senhorita...

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- Scarlett. O nome é Scarlett.
- Senhorita Scarlett McCloud, meu nome é Sean Harrison, do departamento de polícia. Eu sinto
lhe informar que... Seu marido, Dave McCloud, faleceu esta manhã.
- Minha... - A expressão de Scarlett se alterou completamente - Minha nossa. Como?
- Suicídio, é o que imaginamos. Ele contemplava se matar?
- Não. Ele era feliz. Pelo menos era o que eu achava. Ele sempre saía de noite, fosse comigo ou
com aquela rameira que ele chama de "Michelle". E algumas vezes saía sozinho, e voltava
tarde.
- Você sabia da amante dele?
- Sim, eu sabia. Sentia pena da coitada, se deixando levar pelas promessas vazias dele de levá-
la para conhecer o mundo.
- Mas não fazia nada?
- Não era a coisa certa a se fazer. Mamãe sempre me dizia: "Obedeça seu marido! Ele te
alimenta e te dá um teto, você deve sua vida a ele!"
- Entendo - Sean coçou a testa - E ele não fazia nada que lhe... Parecia estranho?
- Agora que você diz... Ele mantinha um diário. Nunca deixava eu ler, então eu não sei o que
pode ter nele. Mas, se você quiser ver, não posso lhe impedir.

O diário era, por falta de uma expressão melhor, uma bagunça. Como as memórias de um
homem insano. Sean notou, no entanto, que Dave era obcecado com algum tipo de "Ilusão".
Sem conseguir uma resposta melhor, fechou o diário.

- Então, tem algo aí que vá lhe ajudar? - Sean assustou-se com uma Scarlett esperançosa. Mas
se assustou ainda mais com sua lingerie com ainda mais esperança.
- Não. Tudo que ele escreveu é muito confuso. Mas obrigado mesmo assim, e... - Scarlett havia
se aproximado de forma perigosa. Seu corpo lúgubre se mostrava encantador pela
transparência da roupa - Eu tenho que ir embora.
- Tem certeza? Não pode ficar mais um pouco? Por favor, faça um pouco de companhia a esta
pobre viúva.
- Bem, eu... - Já era tarde demais. Sean deixara-se seduzir.

Ele saiu do apartamento duas horas depois, cansado e sentindo-se culpado. Nunca deveria se
envolver com viúvas, ainda mais viúvas emocionalmente abaladas, e sabia disso. Deixou seu
telefone na mesa da sala, por pena de Scarlett.

- Descobriu alguma coisa? - Gus, seu chefe, o interceptou ao caminho de seu escritório na
Delegacia.
- Nada de interessante. Acho que Dave era meio doido.
- Meio doido? - Coçou o queixo.
- Eu investiguei a casa dele - Sean continuou - Ele mantinha um diário.
- Nada de doido nisso. Um pouco feminino, talvez, mas nada de doido.
- Ele era obcecado com uma tal "Ilusão". Na última página, ele começou a repetir "Descobri,
descobri!", e a data era a do dia anterior à morte dele.
- Huh - Gus tomou um gole de café - Acho que já sabemos então o que fez ele fingir que era
um frango e tentar voar.
- Frangos não voam.
- Muito menos Dave.
- Suas piadas às custas dos mortos sempre me deixam desconfortável, sabia disso?
- Melhor que suas sobre malditos carros de corrida. Mas, sobre outros assuntos: Como vai a
esposa?
- Vai bem. Está no Caribe com o novo namorado.
- Não diga - Gus disfarçou surpresa - Mas sabe como é: Um detetive está fadado a perder mais

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mulheres do que casos - Na mente de Sean, Gus tinha uma ex-mulher para cada fio de barba
mal-feita que ele usava com orgulho.
- Bem, Gus, se isso é tudo, eu tenho que trabalhar no meu caso.
- O quê, você ainda não o fechou? O cara era doido. Pirado. Achou que era...
- Sim, eu entendi. "Achou que era frango e resolveu voar". Muito engraçado. Mas alguma coisa
não faz sentido. Eu quero entender o que é, OK?
- Hey, é o seu funeral. Ou o dele. Ou dos dois, se você seguir o exemplo dele - Ele mostrou uma
face séria e levemente triste, e voltou para seu escritório, balançando a cabeça, e Sean foi para
seu próprio.

Ele passou a tarde pensando na "Ilusão". Do que seria a ilusão? O amor da sua esposa? O seu
trabalho? O que, afinal, fez ele sorrir ao se jogar do topo de um prédio? A imagem do sorriso
fez com que Sean tivesse um calafrio. Acabou cochilando em sua cadeira, e foi acordado pelo
toque de seu telefone.

- Alô?
- Alô! Detetive Sean?! - Era a voz de Michelle, e parecia desesperada.
- Sim, houve alguma coisa?
- Dave, ele... Ele... - Sean entendeu então o que ela estava dizendo.
- Ele está morto. Achei que você já soubesse disso.
- Não! Não é isso! Ele me deixou uma carta! - O detetive esbugalhou os olhos.
- Uma carta? Mas... Como?
- Não sei. E eu não tive coragem de abri-la.
- Tudo bem, eu vou até aí, e eu irei ler tal carta - Sean deixou-se levar pela curiosidade.

O apartamento de Michelle era pequeno. Minúsculo, até. Nele, encontrava-se uma mulher
chorando e assustada, segurando em suas mãos uma carta lacrada com o remetente de seu
amante. Ela abraçou Sean, deprimida, e deu-lhe a carta. Ele a abriu, cauteloso. Como previra,
mais incoerências sobre uma "Grande Ilusão", junto com um pedido de desculpas para
Michelle. Ele fechou-a, sem revelar o conteúdo da carta para a pobre garçonete.

- O que diz na carta?


- Apenas... - Sean suspirou - Apenas uma confirmação de minhas suspeitas: Dave era louco.
- Não! Ele não... Ele não podia ser - Os olhos de Michelle se acenderam com incerteza. O
detetive balançou a cabeça, e se preparou para ir embora.
- Sendo louco ou não, ele se matou. É aqui onde eu encerro o caso. Até mais, Michelle.
- Por favor, ele não se matou!
- E que outra pessoa teria matado ele?
- Eu... Eu não sei... Por favor, não vá embora.
- Não posso. Tenho que encerrar este caso ainda hoje.
- Quando Dave ainda era vivo... - Ela pareceu estar finalmente aceitando a morte dele - Ele
costumava dizer que passar uma noite sozinha era como apostar na loteria: Você sempre
perdia no final, não importa o que fizesse.
- Isso não faz sentido, Michelle. Muito menos o que ele costumava escrever, sobre uma tal
"Ilusão".
- Eu... Eu sei. Eu apenas não quero ficar sozinha de novo. Não vá embora. Não até a noite
terminar.

Sean nunca soube o que fez ele ficar. Talvez fosse o whiskey. Talvez fosse a depressão, ou
talvez fosse a própria garçonete, por quem ele sentia uma grande atração. Ele estava acordado
no escuro, ao lado dela, e saiu da cama, começando a se arrumar. Michelle sentiu a ausência
do calor dele, e disse, enquanto sonhava "Dave... Volte para a cama...".

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Então Sean entendeu. A loucura. O caderno. Scarlett, Michelle, sua ex-mulher. Entendeu tudo.
Um suspiro havia feito-a entender, assim como havia destruído seu coração meses atrás. Ele
terminou de se vestir, e correu do apartamento, deixando uma Michelle sem esperanças e
solitária, no escuro que havia construído para si mesma - E para outros, se tivesse a chance.

Foi ao apartamento de Scarlett, que, surpreendentemente, já o aguardava, usando um decote


que, sem falhas, deixou Sean pasmo. Ele sorriu, entendendo o que havia de fato acontecido.
Ele entendeu tudo, afinal de contas. Aquela era a chance dele. Com um sorriso diabólico ainda
percorrendo seu rosto, ele beijou sua nova mulher.

Sean acordou no dia seguinte, sorrindo. Levantou-se e vestiu, dando um beijo de "Adeus" em
sua esposa. Saiu do prédio. Pegou o Metrô. Entrou no prédio aonde trabalhava, e, ignorando
seu chefe, foi até o décimo quinto andar, aonde ficava seu escritório. Tirou seu paletó e sua
gravata, e subiu no peitoril da janela. Virou-se de volta para seus colegas de trabalho - Agora
horrorizados -, e pensou consigo mesmo:

"Eu não quero ser Dave McCloud"

Então ele sorriu.

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O Sentido da Vida
muitas vezes dito que a história é escrita pelos heróis, e que estes são imortalizados por

É ela. Enquanto é de fato verdade que existem aqueles que serão para sempre lembrados,
não é menos verdade que muitos desses heróis estariam mortos, decapitados e muito
provavelmente defecados em cima caso não fossem agradáveis com aqueles que os ajudaram
a chegar onde chegaram.

Embora a história seja algo interessante de se discutir, muitas vezes as pessoas comuns
preferem falar sobre algo mais surreal e inexistente do que a própria origem: O sentido da
vida. Também é conhecido que muitos ganham a vida fingindo tentar descobrir essa questão
não tão fundamental.

E, embora também fale de origens históricas e o fálico sentido da vida, esta história não se
trata de nenhum destes. Esta história é sobre um homem e uma mulher, que compartilhavam
um mútuo amor entre si, e por Dire Straits.

O homem desta história não é um herói. De fato, ele gosta muito de se achar um “Cara
malvado”, apesar de, na verdade, ser um “Cara bacana”. E, como todo “Cara bacana”, John era
um “Corno”.

John trabalhava para o governo. Não gostava do trabalho, e nem do governo. Ele tinha uma
paixão pela escrita, mas nunca tomou uma chance com ela, e simplesmente se acomodou no
trabalho miserável que tinha.

Ele, como grande parte de sua geração, aprendeu sobre o amor com filmes românticos,
músicas de pop mal-escritas e cenários shakespearianos de Romeu & Julieta em geral. Ele era,
portanto, um tolo.

Lily, no entanto, não acreditava no amor. Ela acreditava que existiam idiotas, e que existiam os
chatos, e que ela era da segunda categoria, apesar das tentativas desesperadas de seus pais de
fazê-la ter mais fé na vida.

Ela, ao contrário de John, gostava de sair, apesar de sempre reclamar das músicas. John
gostava de rock, apesar de sempre reclamar de sair. Naquela festa mal-sucedida, no entanto,
John compareceu, sob ameaças de morte pelos seus amigos mais próximos.

Ele andava pelo bar, pensando em sabe-se lá o quê, quando esbarrou na garota que gosta de
ser chamada de Lily, num sentido bem literal da palavra.

Quando ele olhou Lily pela primeira vez, ele pensou em como os olhos verdes dela eram
lindos, seus cabelos castanhos bem destacados, seu corpo extremamente bem delineado, e
em como a sorte parecia ter lhe sorrido pela primeira vez em vários anos.

Ela, por sua vez, considerou tal encontro inconveniente, um pouco irritante, e um tanto
quanto doloroso. Mark, amigo de John, no entanto, achou aquilo um tanto quanto surreal para
ser verdadeiro.

- Ai! - Foram as primeiras palavras escutadas por John de Lily.


- Desculpa, eu estava distraído.

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- É, você deveria se desculpar. Isso doeu. Preste atenção, droga!
- Olha, eu já me desculpei. Quer que eu faça o quê? Volte no tempo e impeça-me de esbarrar
em você?
- Tá, tá, dane-se. Nem sei porquê vim aqui de qualquer forma...
- Bem, eu realmente sinto muito... Será que eu posso te... Pagar uma bebida?
- Ah, você bate em mim, e depois se oferece para me pagar uma bebida?
- Eu não bati em você! Eu esbarrei em você!
- Certo, certo. Bem, já que você vai me pagar uma bebida, você vai me dizer o seu nome?
- É John.
- Bem, John, você é um desastrado. Obrigada pela bebida, o nome é Lily, e adeus.

Para John, aquilo era o começo de algo estranho. Bom, mas ainda assim estranho. Não chegou
a descobrir, mas estava certo. Lily simplesmente estava irritada demais para achar alguma
coisa. No entanto, depois se sentiu mal por ter descontado naquele “Pobre garoto”.

A raridade de John sair de casa, ainda mais para ir para uma festa, sempre era marcada com
sua total reclusão logo após, geralmente acompanhada de uma ressaca. E, se ele tivesse um
pouco de sorte, apenas 20% de sua mente desejava se matar, que era rapidamente calada por
uma dose descomunal de aspirina.

- Noite difícil? - Disse a figura que quase o fez ter um ataque cardíaco.
- Como você entrou?
- Não importa. Como foi a festa?
- Como você entrou? - John repetiu, no mesmo tom de desespero.
- Como foi a festa?
- Eu te digo se você me disser como entrou.
- Tudo bem. Você me deu uma chave extra há uns dois meses.
- Eu nunca te dei uma chave extra!
- Olha, não interessa. Como foi a festa?
- Foi... Bem. Eu esbarrei numa mulher tão bonita que faria qualquer outra parecer um demônio
mal-encarado, ela ficou irritada comigo, eu paguei uma bebida para ela e ela foi embora
reclamando. Depois disso eu não me lembro mais nada.
- Belo modo de insultar sua melhor amiga e ainda por cima demonstrar traços de alcoolismo.
- Obrigado, eu pratiquei a manhã toda.
- Pensei que você estivesse desacordado a manhã toda.
- Não, eu acordei umas três horas atrás. Estava me decidindo entre me levantar para tomar
aspirina ou me levantar para tomar veneno.
- Eu ainda sonho com o dia em que você vai parar de brincar com uma coisa tão séria quanto
suicídio.
- E eu ainda sonho com o dia em que você vai parar de entrar no meu apartamento e me dar
ataques cardíacos.
- Como desejar, Sr. John. - Ela se lembrou de uma brincadeira que os dois faziam quando eram
crianças.
- Muito obrigado, Sra. Lidna. - O nome dela, John se lembrou, foi um erro no cartório para o
nome “Linda”. Ela, no entanto, gostava disso, pois assim não “a confundiam com Linda
McCartney”. Qual sentido isso fazia ele não sabia.
- Bem, eu tenho que ir trabalhar, quando você for embora tranque a casa, ok?
- Não, não, eu vou com você. Você me dá uma carona até em casa.
- E por “Carona” você quer dizer pagar a sua passagem de ônibus.
- Você me entende - Ela sorriu, sarcástica.

John todo dia chegava atrasado ao trabalho. Ele não chegava atrasado por desejar, ou por

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erro, ele chegava atrasado por simplesmente ficar preso no trânsito de oito da manhã, e não
querer fazer como seu chefe e sair de casa duas horas antes.

Seu chefe, como diriam os imbecis que acham que estão fazendo algo de útil quando se
chamam de “Filósofos”, era um niilista, e portanto não ligava a mínima para si, para seus
empregados, e sentia um desprezo inacreditável por John. Ele não era de fato um niilista, era
apenas rabugento, mas “Niilista” soa melhor que “Babaca”.

- John! É a oitava vez seguida que você chega atrasado! Onde você tem andado, seu imbecil?
- Não no trânsito, eu lhe garanto.
- Escute! Eu não quero saber do trânsito! Eu não quero saber se você quer se matar! Você tem
que chegar aqui na hora, e tem que chegar sempre! Se isso significa que você tem que sair da
porra da favela às três da manhã, faça! É sua última chance, rapaz... Se você chegar atrasado
de novo...
- Você vai fazer o quê? Me demitir? Nós trabalhamos para o governo, não tem como alguém
ser demitido sem uma audiência antes.
- Talvez não, mas isso não me impede de transferi-lo para algum confim do Brasil! Você
prefere o Acre, ou a Amazônia?
- Senhor Marks, acho que você tem uma visão extremamente errada sobre essas duas áreas.
- dane-se! Escute, rapaz. Eu não ligo a mínima para o Acre, Amazônia, Brasília, e o resto. Eu ligo
para mim. Ninguém se importa comigo exceto eu, assim como ninguém se importa com você
exceto você. Agora, ou você começa a chegar na hora, ou vai ter que ligar para si mesmo na
floresta, no meio de um bando de índios!

Por uma estranha coincidência inacreditavelmente improvável, quase que para provar a visão
dele, um pequeno peixe, um arenque, se formou espontaneamente no tanque de gasolina do
carro do Sr. Marks, que, em seu breve período de vida, teve apenas o pensamento “Tomara
que não tenham pescadores aqui” antes de ser sugado para o motor do carro e efetivamente
triturado.

John estava deitado, deprimido e sem ter o que fazer, como toda Segunda à noite. De fato,
como todo dia à noite. Seu celular estava tocando, mas ele resolveu esperar doze segundos e
meio antes de atender. O porquê, embora ele não soubesse, vinha de um de seus familiares
distantes, que, sendo um poeta e músico reconhecido mundialmente, sabia muito bem que
qualquer música boa deveria ter doze segundos e meio para cada cinco notas. Ele, é claro,
desconhecia que um de seus familiares usaria esse mesmo tempo como tempo de espera
antes de atender uma ligação, o que provavelmente o faria gritar “atende o telefone, babaca!”
para ele.

- Alô? - Passaram-se doze segundos e meio.


- John! Eu preciso te pedir um favor. - Era Lidna.
- Às... Oito da noite? - John desistiu de arranjar uma desculpa, percebendo o quanto patético
estava - Tudo bem. O que é?
- Uma amiga minha está presa numa festa. O namorado à largou lá, depois de brigar com ela, e
ela não tem dinheiro para ir para casa.
- E você não pode ir por quê...?
- Porque eu estou trabalhando, caso você não se lembre.
- Ah, é, você trabalha como stripper.
- Bartender, idiota. Mas você pode buscá-la para mim? Ela está no clube Mikhail und
Lieberschain.
- Tudo bem, eu busco ela.
- Obrigada. Depois eu te dou o dinheiro da passagem.

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- Não, não precisa.
- Tudo bem então. Eu vou ligar pra ela e avisá-la.

Mikhail und Lieberschain era a maior boate do Rio de Janeiro. Ela tocava péssima música -
Funk em geral -, mas era bem-sucedida pelo simples fato de ter um nome em alemão e se
chamar de “A boate mais exclusiva do Rio”. Como resultado, toda a elite do Rio de Janeiro -
Sendo considerado “Elite” qualquer um que tenha feito um papel numa novela - encontrava
seu lar lá, em meio à péssima música e bebidas ainda piores.

John, no entanto, não ligava a mínima para a boate, para o funk, para a elite e nem para
novelas. Ele simplesmente estava entediado o suficiente para fazer algo altruísta. Na porta do
clube, no entanto, ele se surpreendeu.

Sentada no banco do ônibus, estava Lily, quem ele conhecera na festa, e que simplesmente
tomou uma bebida e foi embora. Seu primeiro instinto foi deixá-la ali, mas algo nele o fez sair
do ônibus e chamar por ela.

- Lily?
- Sim! Você é o amigo da Lidna?
- Sim, sim.
- Espera, você me parece familiar...
- Ontem eu te paguei uma bebida numa festa, e você me insultou.
- Eu sabia que você parecia familiar. E se me lembro bem, você bateu em mim.
- Eu esbarrei - John corrigiu rispidamente - em você. E já pedi desculpas mais vezes do que
posso contar. Mas, isso não importa, eu vou te levar para casa.
- E como você pretende fazer isso?
- De ônibus.
- O mesmo ônibus que acaba de sair?
- Sim, o mesmo ônibus que acaba de sair - John retrucou firmemente, apesar de ter tentado
apalpar o - Já não mais ali - ônibus.
- Belo resgate, John.
- Obrigado. E obrigado de novo por lembrar-se do meu nome. Agora, quando passa o próximo
ônibus?
- Acho que em uma hora.
- Uma hora? Eu posso ir para casa a pé mais rápido que isso.
- É, bem, eu não posso. Você pode me emprestar dinheiro para um táxi?
- Com prazer, se eu tivesse.
- “Se” você tivesse? Que tipo de idiota anda na rua com dinheiro exato para a passagem de
ônibus?
- É, é... Eu sou um idiota, blá blá... Escuta, aqui está o dinheiro para o ônibus, adeus e obrigado
por todos os insultos - John se virou para ir embora, quando ouviu a voz relutante de Lily.
- Ei... John?
- Sim?
- Será que você pode... Esperar comigo? Não conheço essas partes, e não quero ficar sozinha.
- Sozinha? Tudo bem... Eu fico com você.
- Obrigada.
- De nada, medrosa.
- Vá se ferrar.
- É, bem, por mais que eu adore nossas conversas, eu vou ouvir um pouco de música. Sinta-se
livre para continuar falando, no entanto. Aposto que, se passar algum médico por aqui, ele
pode te pôr num manicômio.

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Lily passou meia hora sem falar nada, e já estava morta de tédio. Por mais que detestasse a
idéia, tentou puxar assunto com o idiota ao seu lado. Que, por sinal, estava quase fazendo a
mesma coisa. Não por tédio, mas por interesse.

- Então... - Ela começou.


- Sim?
- Que música você está ouvindo?
- Ah... Você provavelmente não vai gostar.
- Vamos, me diga.
- Tudo bem... - John passou um dos fones de ouvido para ela, que imediatamente reconheceu
o som da guitarra de Eric Clapton tocando “Strange Brew”.
- Cream? Você gosta de Cream?
- Sim, eu adoro. Gosto de música velha mesmo.
- Inacreditável.
- O quê?
- Eu também.
- Uau.
- O quê?
- Você não parece o tipo de pessoa que goste de Rock.
- É bem, você também não. Você parece do tipo que gosta de Pop.
- E você parece do tipo que gosta de “Proibidão” - John sabia que ia levar um tapa. E, de fato,
levou, com a surpresa de que ambos estavam rindo.

Os dois passaram duas horas conversando, embora parecessem ter passado apenas dez
minutos. Por fim, desistiram do ônibus. John queria chamá-la para ir para a casa dele, mas não
tinha a coragem para isso. Ela, no entanto, se ofereceu para ir. Ambos nunca saberiam, mas o
fato de quase nunca passarem ônibus em frente ao Mikhail und Lieberschain era um dos
fatores decisivos para a “exclusividade” do clube.

O apartamento de John era, assim como ele próprio, uma bagunça. Lily não pareceu se
importar, inclusive dizendo que “A lembrava de sua casa”. Sentou-se na cama, esperando
algum tipo de cantada barata por parte de John, que quebraria instantaneamente todo o
interesse que ela sentia por ele. Nunca ocorreu.

- Aqui está o dinheiro para o táxi - John ofereceu uma quantia de dinheiro, timidamente.
- Eu mudei de idéia.
- Hein?
- Posso passar a noite aqui?
- Ah... Pode! - Na mente dele, ele levou um tapa de sua consciência - Eu vou dormir na sala,
então você pode ficar na cama - Ele levou outro tapa.
- Tudo bem... Mas você vai dormir agora?
- Não, por quê?
- Nada, só quero conversar um pouco mais.
- Tudo bem... Só vou botar uma música então, ok? Vou botar baixo, não se preocupe.

John pôs para tocar sua seleção de “Rock & Roll” que ele passava horas baixando. Começou
com Jimi Hendrix, o que causou a começa da conversa, que, de outra forma, seria mais tímida.
Depois de alguns minutos de conversa, no entanto, começou a tocar Dire Straits.

Existe uma certa magia relacionada à Dire Straits. Numa pesquisa britânica para descobrir
quais eram os afrodisíacos mais potentes que não fosse drogas, Dire Straits ficou em segundo,
perdendo apenas para dinheiro, o que provavelmente demonstra uma certa ironia.

13
John acordou na manhã seguinte, sozinho - E sim,os dois transaram. Em um resumo breve, ele
foi bom o suficiente para ela falar para Lidna -, com seu celular tocando. Ele atendeu após doze
segundos e meio, ouvindo insultos imaginários de seu ancestral músico.

- Eu disse pra você ir buscá-la! Não transar com ela!


- Bem, da próxima vez seja mais específica.
- Muito engraçado. Afinal, o que diabos você acha que está fazendo?
- “O que diabos estou fazendo”? Como assim?
- Ela está namorando, seu tonto.
- É, você me falou isso ontem.
- E você não está sentindo nem ao menos uma pontada de ironia com isso tudo?
Especialmente desde que sua última namorada...
- Eu ainda me lembro o que aconteceu entre minha ex-namorada e seu ex-namorado, mas isso
não importa. Foi coisa de uma vez apenas. Eu nem tenho o telefone dela, e nem ela o meu.
Não é como se ela fosse contar para o namorado nem nada. E, de vez em quando, é bom ser
cruel com o mundo, especialmente quando ele só te tratou mal.
- Detesto interromper sua lenta descida à insanidade e vadiagem, mas ela me contou, o que
significa que talvez ela também conte para o namorado.
- Bem, eu duvido. Ei, que horas são?
- Nove, por quê? - John quase engasgou.
- Estou atrasado! Tenho que ir, tchau!

John, como não deve ser surpresa, chegou atrasado. E foi apresentado duas escolhas
igualmente desastrosas e deprimentes: Ser transferido para Manaus, ou pedir demissão. Ele
escolheu a segunda.

Em casa, perambulava sem rumo. Tinha dinheiro o suficiente para se manter por três meses,
mas era só. Se acabassem esses três meses e ele ainda estivesse sem emprego, estaria
acabado. Não teria dinheiro para o aluguel, não teria dinheiro para comer, não teria saída.

No entanto, ele simplesmente ligou o computador. Checou os e-mails abriu o Word, e bateu a
cabeça no teclado, formando, por uma estranha coincidência, a palavra “Merda”, entre outras
coisas ilegíveis.

John não era o tipo de homem que lidava bem com situações desesperadoras. E, como todo
homem que não lida bem com situações desesperadoras, ele se embebedou. Se embebedou e
escreveu, durante uma semana.

Ao final da semana, ele estava morto. Bem, não morto, mas devidamente exausto. E não se
animou muito quando ouviu a porta do seu quarto se abrindo. Era, para seu desgosto, Lidna.
Ela se jogou em cima dele, tentando ressuscitá-lo.

- Lidna.
- Ei! Você está bem! Você sabe o susto que me deu? Você passou a semana inteira sem nem ao
menos dar notícias! Não entrou no MSN, não atendeu o telefone, nada! Eu pensei que você
tivesse morrido!
- Bem, eu estou morto de cansaço, mas agradeço a preocupação. Você pode sair de cima de
mim agora?
- Ah, sim, claro, claro - Ela se levantou, um pouco envergonhada.
- Ei, o que é isso? - Ela começou a ler o que John passou a semana inteira escrevendo.
- Nada! Não é nada! Vamos, saia daí.

14
- Hey, isso é bom. Engraçado. Quem escreveu?
- Fui... Eu.
- Você? Jura? Mas você não tinha desistido de escrever?
- É, eu tinha, mas eu fui demitido.
- O quê! Demitido? Mas você não trabalha - Bem, trabalhava, para o governo?
- Sim, e eu não fui “Demitido” por alguém me demitir, eu pedi demissão.
- Pediu?! Seu idiota! Eu sei que é ruim, mas você precisa trabalhar!
- Se eu ficasse, eu seria transferido para Manaus.
- Ah. Bem... Então... É diferente. Deveria ter falado logo.
- É, talvez eu devesse.
- Mas, sobre o texto...
- Não.
- É bom. Você tem talento. Sempre teve.
- Não!
- Isso está bom, John. Por que você não tenta publicar? Eu já vi que tem umas duzentas e
poucas páginas.
- Está completo, e eu não vou tentar publicar.
- Por que não?
- Porque não. Eu não sou bom em escrever.
- Se você diz... - Ela suspirou - Ah! Isso me lembra. A Lily andou falando comigo sobre você, e
quer que você dê uma ligada para ela.
- Quer? Por quê?
- Não sei. Mas aqui está o telefone. Ligue se quiser.
- Tudo bem, obrigado.
- Bem, eu vou embora então, já que você não é um cadáver.
- É, muito obrigado por quase me matar tentando me salvar.
- De nada, amigo. Ligue se precisar de mais uma dose.
- Você é minha amiga, não meu traficante!
- Tanto faz! - E foi embora.

John ponderou sobre o telefone durante algum tempo. Era tempo o suficiente para decorá-lo,
mas não o suficiente para que ele pudesse alucinar olhando para o pedaço de papel. Por fim,
desistiu, e ligou.

- Lily?
- Oi! Sabia que você ia ligar.
- Bem, eu quase não liguei.
- Não? Por quê?
- Porque, sinceramente, eu quase fui morto pela Lidna enquanto ela tentava me “Salvar”.
- Ah - Ela riu, eu sei como é. Foi assim comigo quando eu tomei meu primeiro porre.
- Comigo também, só que na época ela era bem menor.
- Quantos anos vocês tinham?
- Foram uns... Seis anos atrás... Eu tinha 14.
- Uau. Parece chato.
- Não, era divertido. O chato foi ela pulando na minha barriga.
- Posso imaginar - Ela riu outra vez. - Escuta, o motivo que eu queria que você me ligasse... Eu
quero te ver de novo... Mas eu não quero largar meu namorado. Será que eu posso ir aí hoje
de noite?

Uma coisa interessante e curiosa de se observar é o efeito de uma mulher sobre um homem.
John passou de um anti-social rabugento que mal saía de casa para um anti-social rabugento
que saía de casa para ir visitar sua amante. Talvez não fosse uma grande mudança, mas ainda

15
assim era uma mudança.

Três meses vieram e foram, e John sentia-se mais e mais apaixonado por Lily. No entanto, o
mais que ele se aproximava dela, mais ele se distanciava de Lidna, que, por sua vez, também
não falava com ele. Foi só ao fim de três meses sem fazer nada exceto passar tempo com ela
que a vida dele desabou por completo.

- John.
- Sim?
- John, eu não posso mais fazer isso.
- Como assim?
- Eu não posso mais vir aqui, nem você vir em minha casa...
- Por que não?!
- John, ontem à noite, meu namorado me fez uma proposta.
- Que proposta? - Ele perguntou, mesmo já sabendo a resposta.
- Ele... - Ela não conseguiu falar. Apenas mostrou o anel em seu dedo.
- Mas... Mas você me ama!
- Não, eu não amo.
- Sim, você ama. E você sabe que ama!
- Eu não amo, e nunca amei! O que nós fizemos foi um erro, e eu não quero mais te ver!
- Certo... - John disse, simplesmente - Continue repetindo isso. Quem sabe algum dia alguém
acredite em você. Já que é adeus, então pode ir. Eu não vou te impedir.
- John... Eu... Sinto muito. Adeus.

John se jogou na cama, exausto, deprimido, e chorando. Não conseguia manter aquilo dentro
de si, mas não lembrava de ninguém para compartilhá-lo. Então, por acaso, se lembrou de
Lidna. Procurou o telefone dela, e ligou. Meia hora depois, ela estava na casa dele.

- Então... Ela vai se casar.


- Sim.
- E você não vai fazer nada?
- Não.
- Como assim, não?! John, você ama ela.
- Sim, eu amo, mas quem se importa?
- Como?
- Você, por acaso, seria capaz de acabar com a felicidade de duas pessoas apenas pela sua
própria? Que muito provavelmente nem vá durar?
- John...
- Eu sei que ela me ama, eu sei. Mas ela ama o namorado mais. Eu não quero estragar a
felicidade de outras pessoas só pela minha própria. Eu conheço esse tipo de cara, e eu odeio
esse tipo de cara. Eu não quero me tornar ele. Eu...
- John! Cale a boca!
- Hein?! - Ele se calou, assustado.
- Argh, toda vez. Toda vez, é assim, John. Você acha algo que quer, que você deseja, mas nunca
vai atrás. Você nunca se arrisca, nunca aproveita uma chance, sempre se amedronta e foge
para o que lhe parece mais seguro! Desculpe, John, eu te amo, e eu te amei por onze anos,
mas isso é demais. Eu não sou mais sua amiga. Eu não te conheço mais. Não me ligue. Eu não
quero ter de sofrer só porque você não consegue perceber o que é importante ou não. Adeus.
- Lidna! Espere!
- Não. Adeus. - E, da mesma maneira que Lily, foi embora, para sempre.

John foi deixado à própria sorte, na escuridão. Ele deitou no chão, pensando. Lidna estava

16
certa. Ele não podia ficar a vida inteira se escondendo. Ele tinha que se arriscar. E, naquele
momento, era tudo ou nada.

No dia seguinte, de manhã cedo, ele tomou banho, e se arrumou. Pegou o que tinha que
pegar, e saiu. Atravessou a cidade em quinze minutos, e finalmente chegou aonde queria.
Segurou o pacote com força, e entrou no prédio. Acima da porta, liam-se as palavras “Editora
Redação”.

Bem, e assim termina a história de John. Pelo menos a história que será contada hoje. Talvez
vocês reclamem que ele não terminou nem com Lily, e nem com Lidna, mas a vida não
funciona assim. Muitas vezes, um “Adeus” de fato é para sempre.

Mas, quem sabe? Talvez no futuro. A vida dá voltas.

Agora, sobre o “Sentido da Vida” prometido no título, ele já foi entregue. Caso você tenha
perdido, re-leia o conto.

Re-leu? Ainda não achou? Então vou te contar.

O Sentido da Vida, caro leitor, é como um arenque espontaneamente formado no tanque de


gasolina de um carro. Não faz muito sentido, dura pouco, e, honestamente, não importa
muito. Exceto para o dono do carro, claro.

Não gostou? Pois bem. Há um número de anos, um escritor descobriu o sentido da vida, mas
ele era tão simples, numérico e inocente, que foi simplesmente tomado como piada e
ignorado pela maioria. A ironia - A vida está cheia delas -, é que aquilo era, de fato, o sentido
da vida.

A humanidade, caro leitor, é um tanto quanto louca. Isso é, quando é interessante, claro. Ela
busca incessantemente por um sentido para o que faz, ao invés de simplesmente fazer. A vida,
afinal de contas, não precisa de um sentido. Até porque, ela não faz sentido.

Nós passamos muito tempo nos concentrando em tentar achar um sentido em deuses, livros,
comédias, dramas, paradas, luas, poemas, e etc., ao invés de simplesmente apreciá-los pelo
que realmente são. Existem aqueles que não podem lidar com o conceito de não ter um
sentido, um propósito, e substituem esse vazio com uma entidade, muitas vezes levando tal
crença a níveis absurdos, de causar até mesmo violência ou intolerância à outras crenças. Tudo
porque eles discordam sobre qual de seus “Deuses” é o que é o verdadeiro sentido da vida.

Talvez seja apenas humano, talvez seja apenas social, talvez seja apenas pura burrice
patológica e sem sentido, mas todos buscam um sentido, por mais que ele seja impossível de
ser encontrado. Mas, sabe como é. É a vida.

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Querido Diário
Um Novo Ano

E u... Eh... Eu não gosto de escrever. Eu realmente não gosto. Acho chato, ridículo. Só
desempregados e bêbados fazem isso. Mas, meu professor insistiu que cada aluno
mantivesse um diário por um mês, então acho que não tenho escolha. Se você precisa
saber, eu sou estudante do CAP, do Rio de Janeiro. Há uns doze ou treze dias começaram as
aulas. Estou no segundo ano do segundo grau, e até agora ninguém fez uma piada sobre "22",
o que é algo bom.

Como toda pessoa sã, ou no meu caso insana, eu não gosto de escola. Bem, eu tenho amizades
que gostam, mas essas são anomalias naturais. Eu gosto de ouvir música. Toco um pouco de
guitarra, junto com uma bandinha tosca que eu arrumei no colégio. Não são exatamente bons,
mas eu também não sou. Meu maior sonho é tocar numa banda boa.

Hoje de manhã eu me atrasei. Acordei com pressa, e me arrumei o mais rápido que pude.
Tropecei e bati o braço enquanto vestia a calça, quase me sufoquei com a camisa, arrumei a
mochila e saí de casa correndo. Só quando estava no elevador do prédio, já no térreo, que me
dei conta: Tinha esquecido de vestir o sutiã. Voltei para casa, me atrasando ainda mais.

O meu colégio é o que você chamaria de um "Lixão". O pátio fedia à mijo, os banheiros fediam
à mijo, um dos professores fedia à mijo. Mas, fora o fedor, era uma escola agradável. Eu ainda
a odeio, mas pelo menos meus amigos deixam as coisas menos desagradáveis. Eu tenho cinco
amigos, e duas amigas. Não sei o porquê, mas me dou melhor com meus amigos. Um deles, o
Lúcio, ficou na minha sala neste ano, junto com minha amiga Vívia.

- Suzana! - Lúcio me chamou no começo da aula. Como sempre, ele tinha uma barba ridícula,
que insistia em deixar.
- Ei, Lúcio. Bom ver que você ficou na minha sala. Assim eu sei quem vai ser o pervertido atrás
de mim bufando o ano inteiro.
- Você, como sempre, é tão agradável quando uma seringa no pescoço.
- Não se preocupe, com essa barba ninguém vai achar seu pescoço.
- Por que você não vai se ferrar?
- Logo atrás de você, princesa. - Lancei para ele um olhar desafiador. Por um momento, ele
pareceu se irritar, mas logo depois se acalmou.
- Isso não é maneira de se tratar um amigo de infância... Enfim, venha cá, me dê um abraço. -
Me abraçou com força, como sempre fazia. Já fechava meu punho, esperando ele tentar abrir
meu sutiã. E, como sempre, ele tentou. E eu soquei ele.

Lúcio pode ser um tarado, mas ele ainda é um bom amigo. Um bom amigo que fica sempre
tentando tirar meu sutiã, mas como todo bom amigo, ele pode ser disciplinado com um soco.
E depois eu me sinto mal por ter batido num cachorro. Vá entender, vai ver eu sou assim
mesmo. Nossa primeira aula do dia foi de matemática, que, para ser honesta, eu não poderia
me importar menos. É tão redundante.

Depois da aula de matemática, eu tive redação. Eu nunca gostei de redação, mas hoje foi
diferente. Tínhamos um professor novo, um tal de Gustavo. Ele começou falando de como a
história era escrita pelos escritores, ou alguma baboseira assim. Eu não estava prestando

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muita atenção. Outra coisa sobre mim é que eu gosto de desenhar. Não tenho altas
esperanças sobre isso, mas é algo que me agrada quando estou entediada.

Quando cheguei em casa, cansada, meu pai estava dormindo no sofá. Ele ainda não estava
muito bem, desde que ocorreu. Sentei do lado dele, e, cansada, acabei adormecendo do lado
dele. Ele me acordou depois, com o jantar na mesa. Meu pai é gentil comigo, mas ele anda
muito deprimido. Às vezes eu me preocupo sobre o que ele vai fazer se algum dia eu for
embora.

Ah, está tarde demais para pensar sobre isso. Amanhã eu volto a escrever mais. Agora eu vou
dormir... Então... Boa noite, diário.

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O Novo

N a aula de redação de hoje meu professor falou que era importante manter datas no
diário, então... Hoje é uma Terça-Feira, dia 16 de Março. Meu pai me levou para a aula,
já que chovia. Eu nunca entendo meu pai direito, mas ele sempre parece ter dinheiro,
mesmo sem trabalhar. Ele me disse que é aposentado, mas ele não tem nem quarenta anos.
Ah, bem, tanto faz.

Na aula, novamente tivemos Redação. Na outra aula eu tinha dormido, mas desta vez teve
algo de... Interessante. O professor falava com paixão de livros, escritores, quase deixava o
assunto interessante. Hoje também apareceu um novo aluno, que, aparentemente, resolveu
faltar todas as outras aulas antes de hoje. Ele era bonitinho. Quando eu comentei isso com a
Vívia, o Lúcio ficou morto de inveja. Eu cheguei a rir da reação dele.

O garoto novo, como que eu posso definir? Era um idiota. Bem, todos são, mas este caso era
especial. O cara parecia querer parecer idiota. Tinha cabelo curto, uma barbinha tosca. Com
um cigarro ele ficaria parecendo um daqueles garotos de quem você desvia na rua. Vívia, no
entanto, ficou vidrada nele. Até o final da aula. E, no final da aula, ela me pediu para ir falar
com ele. Tem horas que eu odeio a Vívia.

- Eh... Olá? - Eu comecei, a contra-gosto.


- Ei, você é a... Suzana, né?
- Parabéns, acertou meu nome.
- Qual o prêmio?
- Um encontro com a Vívia. Aquela ali, de cabelo castanho e longo. E olhos verdes. O que está
esperando? Vá reclamar seu prêmio.
- Você não é muito boa nisso - Ele riu-se.
- Hein?
- Nisso. Em ajudar a amiga à conquistar o cara.
- Ah, obrigada. Agora eu posso desistir da minha carreira como Hitch.
- Ainda bem. Você seria uma péssima Will Smith.
- Você mal me conhece e já faz piadas, que ótimo. - Eu pus a mão na cara. Sou uma tonta
mesmo.
- Ah, que isso. Você não é tonta - Ele levantou da cadeira.
- É, certo. De qualquer modo, eu vou avisá-la de que você não está interessado.
- Ei, espera.
- O quê? - O cara de repente beijou minha bochecha.
- Não estou interessado nela. Você, por outro lado... - Ele sorriu. Eu dei um soco nele. Ele riu. -
Vai ter que ser mais forte pra me machucar... Aliás, você está vermelha.
- V-v-vá se **Censurado**! Babaca! - Dei um tapa nele e saí dali.
- Mas que Porcaria foi aquela?!? - A Vívia estava **Censurado** comigo. Ótimo.
- Ele beijou minha bochecha, e eu esmurrei ele. Ah, e ele não está interessado em você.
- E em você?
- Como?
- Ele te beijou.
- Bem... Eu nunca vou gostar desse babaca.
- Uhum, certo. Vamos pra casa, a chuva parou.

A Vívia mora num prédio perto do meu, então sempre pegamos o metrô juntas. Quando
cheguei em casa, meu pai estava escrevendo alguma besteira. Sentei irritada no sofá e fiquei
jogando. Morri demais na internet. Garoto idiota. Completamente sem-noção. E eu nem ao

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menos sei o nome dele! Argh, se meu pai soubesse...

- Soubesse o quê? - Lixo. Eu estava falando sozinha. De novo.


- Ah! Nada, nada...
- Vamos, pode falar.
- ... Bem, já que você precisa saber...
- O que houve?
- Hoje na aula...
- Sim?
- Eu beijei... Uma garota. - De vez em quando eu gosto de torturar meu pai. A expressão na
cara dele foi impagável.
- Quê?! Como?! Quando? Quem? E... Ah, sua maldita! - Ele ficou irado quando eu caí no chão
rindo - Você me paga por essa...
- Ok, desculpa, pai. Quer jogar comigo? - Ofereci um dos controles para ele.
- Tudo bem. Vamos ver você sorrindo assim depois de morrer três vezes seguidas. - Ele perdeu.
Feio.
- Você é uma droga nesse jogo.
- Bem, não é justo, você teve prática!
- Pai, tá tudo bem. Sua garotinha ganha de você em video-games. Acontece.
- Mas... Tudo bem, tudo bem - Ele suspirou de repente - Mas você não é mais uma "Garotinha"
há algum tempo.
- É, mas eu tento agir assim perto de você.
- Ah, é? Por que?
- Para te proteger.
- Proteger do que?
- Bem, se eu te contasse tudo que eu faço com meus amigos...
- Ok! Chega! Você pode estar se tornando uma mulher, mas não precisa me contar isso!
- Pai, só estou brincando! - Ri de novo.
- Ainda bem, acho. Bem, eu vou pedir nosso jantar. Está com vontade de comer o quê?

Nós comemos comida chinesa depois que eu insisti. Ele queria comer carne, mas eu queria
comer comida japonesa. Então decidimos comer chinesa. E... Foi isso. Agora eu vou tomar
banho, estou cansada e amanhã eu tenho treino. Então... Tchau (?)

21
Novas Paixões

Q uarta-Feira, 17 de Março.

Eu tenho uma nova paixão: Filmes antigos. Meu pai trouxe uns dois quando eu cheguei
em casa, e eu simplesmente adorei os dois. Um foi Rocky, e o outro O Iluminado. Meu pai
morreu de medo do segundo.

Hoje de manhã começou aquela época do mês. O pior de tudo é que hoje tinha Educação
Física, que eu geralmente adoro, e não pude fazer nada. Fiquei sentada na arquibancada a aula
inteira. E o babaca que tinha beijado minha bochecha apareceu, puxando conversa.

- Hey, não gosta de educação física?


- Argh, você não tinha esquecido de mim?
- Não. E você nem teve a mera cortesia de perguntar seu nome.
- No momento que você dá nome você começa à se importar. E filhotes são mais agradáveis.
- Boa - Ele riu, mostrando os dentes. Eu faria algum comentário sobre amarelos e tortos, mas
não eram.
- O que você quer?
- Bem, eu quero que você saiba que meu nome é Bernardo, e eu quero que você me conheça
um pouco melhor - Ele sentou do meu lado e pôs a mão na minha perna. Eu dei outro soco
nele.
- Você é um tarado, sabia disso?
- Não, não sou. E, se você me conhecesse, também acharia isso. Que tal a gente sair hoje?
- Hein?!
- Você, eu, e um lugar qualquer. Vamos sair.
- Não!
- Ora, vamos. Você sabe que quer - Ele se inclinou quando eu virei o rosto - Eu consigo te ver
corada, sabe.
- N... Tudo bem. Vamos sair depois da escola, mas se você contar pra alguém, eu vou...
- Você vai?
- Não sei, mas eu vou pensar em algo bem doloroso para fazer e fazê-lo com você!
- Tudo bem, entendido.

Eu não sabia o que estava pensando. Acho que meu pai deixou cair cachaça no meu café sem
querer. É a única explicação plausível. O resto da aula passou como qualquer dia normal, com
a exceção da Vívia ter me xingado uma vez ou duas, e o Lúcio ter me abraçado, dito: "Você
está virando uma mulher.", e ter tentado tirar meu sutiã. Algumas coisas nunca mudam.

Depois da aula, eu tentei correr para casa, sem o Bernardo me ver. Se não tivesse tropeçado,
caído e ficado meia-hora reclamando da dor, teria conseguido. Ele me alcançou, e tentou me
ajudar a levantar. Eu recusei a ajuda.

- Então, pensou no castigo?


- Sim, durante a aula de educação sexual.
- Ah...
- Olhe pelo lado bom: Você será pioneiro no esporte de Bungie-Jumping testicular.
- Ainda bem que não contei para ninguém.
- É, sorte a sua. Então... Você... Quer ir aonde?
- Bem, primeiro nós vamos passar na minha casa, e você vai ficar por lá mesmo.
- Ha ha - Eu dei um soco nele. Esse garoto deve ser masoquista.

22
- Bem, vamos por aqui.
- Afinal, onde você está me levando?
- Não se preocupe, você vai gostar.
- Não é com isso que estou me preocupando, é com você que estou preocupada.
- Que fofo. Por que está preocupada?
- Bem, se você tentar me atacar de qualquer forma, eu teria que te espancar muito, com força.
E isso simplesmente estragaria meu dia.
- Retiro o que disse. Enfim, venha. Estamos quase chegando.

Ele me levou num parque de diversões abandonado, que tinha fechado mesmo antes de
nascermos. Estava surpresa, não vi nem mesmo um mendigo. Ele foi numa caverna de papelão
gigante, me chamando. O lugar era escuro, úmido, e a água que passava ali fedia.

- Que lugar é esse?


- Esse? Bem, eles chamavam isto de Túnel do Amor. Acho que isso não existe mais há algum
tempo.
- E... Por que chamam de Túnel do Amor? É melhor que seja uma referência àquela música.
- Bem, é que as pessoas aproveitavam o escuro e a privacidade para... - Ele chegou perto de
mim, e me beijou. Foi inevitável, foi... Bom. Eu senti meu coração pular uma batida, meus
olhos fecharem. Eu o abracei, ele me abraçou. E, por fim, eu dei um tapa nele. Ele riu outra
vez, e nos beijamos uma última vez.

Cheguei em casa flutuando, e meu pai me mostrou os dois filmes. Assistimos juntos, e depois
eu vim para meu quarto. Acho que meu coração não é apenas burro, como eu achava. Ele
também é retardado, cego e masoquista.

23
Capa dura, namorado mole

Q uinta-Feira, 18 de Março.

Bem, agora já é 19, mas isso aconteceu no dia 18. Primeiro, eu acordei feliz de ir para a
escola, o que deixou meu pai suspeito. Na escola, contei para a Vívia o que aconteceu ontem, e
ela... Bem, ela me chamou de nomes.

No intervalo entre aulas, o Bernardo me chamou para ir à um "Lugar" que ele conhecia. O
lugar era o salão de atividades do colégio, que ficava vazio durante a maior parte do ano. Ele
me beijou novamente ali, e eu senti meu coração acelerar outra vez. Isso é, até o pervertido
tentar pegar nos meus seios.

- Gah!! - Eu gritei, me afastando dele.


- O que foi?!
- O que você está fazendo?
- Bem... Eu pensei que fôssemos...
- O quê?! Seu idiota, você só queria fazer isso?!?
- Não, não, me desculpa. Eu pensei que você...
- Que eu...?!
- Sabe, já... Fizesse esse tipo de coisa.
- C-Como? Você acha que eu sou quem? Qualquer vadiazinha que você pega, transa e dá no
pé?
- Não! Eu nunca achei isso. Olha, me desculpa. Eu me precipitei. Vamos, deixa eu me remediar.
- Se você tentar de novo, Bernardo...
- Não vou tentar, prometo - Ele me beijou de novo. E dessa vez, tentou segurar minha bunda.
Eu dei um tapa nele. Ele pareceu irritado. Idiota.
- Tudo bem, chega. Até mais, Suzana. Te vejo depois da aula - E foi embora. Babaca.

Depois da aula, eu fiquei sem falar com o Bernardo, mesmo ele tendo tentado se desculpar. A
Vívia pediu que eu fosse na biblioteca com ela, e eu sinceramente queria conversar com
alguém.

- Vívia.
- Sim? - Ela estava lendo a contra-capa de um livro, distraída.
- Hoje, durante o intervalo...
- O que houve?
- Bem, o Bernardo tentou... Pegar nos meus... - Ela fitou-me, com uma cara de quem acabou
de levar um tiro na perna.
- Ele tentou pegar nos seus...
- Peitos.
- E você fez o quê?
- Dei um tapa nele.
- Bom.
- Bom?
- É. Bom. Eu teria feito o mesmo. Garotos acham que, só porque estamos namorando eles,
temos que fazer sexo com eles. É bom ver que nem todas concordam com eles. - Ela me sorriu.
- Então, você nunca?
- Ah, eu já fiz. Lembra do meu ex? É, eu fiz com ele. Mas eu gostava muito dele. E eu também
queria.
- Queria?

24
- Ah, sim. Tem uma hora que você, não só ele, quer. E, se for com alguém que você goste, é
melhor ainda.
- Huh - Eu sentei numa cadeira que tinha por perto, pensativa.

A Vívia se misturou na área de livros mais antigos e grossos, enquanto eu olhava distraída a
área de romances. Em uma estante, sentado sozinho, estava um livro chamado "Uma Cabana
de Inverno". O que me deixou interessada, no entanto, foi o nome do autor: "Júlio Olinda de
Marcques". Era o mesmo sobrenome que o meu, exatamente.

- O que que você está olhando? - A Vívia voltou, carregando três livros.
- Esse livro.
- "Uma Cabana de Inverno"? Nunca li esse. Quem é o autor? Também nunca ouvi falar. Hey!
Ele tem o mesmo sobrenome que o seu.
- É, eu sei.
- Que coincidência.
- Com certeza. Ei, posso te pedir um favor?
- Odeio quando você diz isso. O quê?
- Você pode pegar este livro para mim? Eu não tenho associação com... Esta biblioteca.
- Você quis dizer "Nenhuma biblioteca". E tudo bem, eu pego. Mas me devolva em uma
semana, ou eu pago multa.
- Tudo bem.

Quando cheguei em casa, eu assisti "Curtindo a Vida Adoidado" com meu pai. Ele falou alguma
coisa sobre como eu não falava mais da minha vida pra ele, mas eu estava gostando demais do
filme para prestar atenção. Depois do jantar, eu comecei a ler o livro, e só me dei conta da
hora quando dei uma pausa. Agora, diário, eu vou dormir. Amanhã eu ainda tenho um longo
dia pela frente. Ainda bem que será Sexta-Feira!

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More Than a Feeling

S exta-Feira, 19 de Março.

Eu adoro rock. É de família. Meu pai adora rock, meu avô muito provavelmente adorava
rock, e assim por diante. Meu pai, especialmente gosta de ficar no escritório dele ouvindo
rock. Especialmente Boston. Não passa um dia nessa casa sem alguém tocar "More Than a
Feeling".

Hoje, no entanto, eu toquei porque estava chateada. Deprimida. Eu terminei com o Bernardo.
Durante o intervalo, de novo, o idiota tentou pegar em mim. E eu, de novo, dei tapas nele. E
ele ficou irritado, e simplesmente disse "Chega. Cansei. Adeus." e foi embora.

Eu, como a mulher madura e bem composta que sou... Ah, quem estou enganando? Eu chorei.
Garoto idiota. Eu também fui idiota, por chorar por ele. Passei o dia inteiro deprimida, e ainda
por cima levei uma bronca do professor de geometria por isso.

Depois da aula, o professor de redação veio falar comigo. Ele parecia preocupado. Também,
não o culpo. Passei o dia inteiro olhando para meu caderno feito uma tonta. Ele sentou na
cadeira da frente, fitando-me.

- Suzana.
- Eu?
- Você está bem? Ficou quieta a aula inteira.
- Sim, eu... Não. O Bernardo terminou comigo.
- Bernardo? O garoto novo? Vocês estavam namorando?
- Bem, eu acho que sim. Há uns dois dias que ele me convidou pra sair depois da aula, e me
beijou. Parecia quase mágica.
- Huh - O professor suspirou - Bem, existe algum motivo para ele ter terminado?
- Ele... Ele queria... Quer que eu... Faça... - Fiquei sem palavras. Não conseguia dizer sem
soluçar, ou chorar um pouco.
- Ah. Entendi. Ele queria que você fizesse sexo com ele.
- É! Por que todos os garotos só querem isso?! Bando de pervertidos!
- Bem, nem todos são assim. E, se você disse que não queria, mas ele não aceitou isso, acho
que você fez a escolha certa.
- Como assim?
- Bem... Eu tenho uma amiga - O professor, eu lembrei, tinha vinte e poucos anos - E essa
amiga estava sob constante pressão por conta do namorado, que queria fazer sexo com ela.
Ela, no final, não aceitou, e ele terminou com ela. Claro, no começo ela chorou, mas depois ela
viu que, apesar de tudo, fez a escolha certa. Ela não estava preparada. E, assim como ela, você
também vai saber quando estiver.
- Você... Promete?
- Bem, prometo até onde posso prometer. Agora, vá para casa. O Antônio - Antônio é o nome
do meu pai - deve estar ficando preocupado, não concorda?

O professor de redação era amigo de bebidas do meu pai, se eu me lembro corretamente. Ele
já passou pela minha casa antes de virar professor. Sempre achei ele um cara muito bacana.
Depois que cheguei em casa, me sentindo um pouco melhor, voltei a ler o livro que a Vívia
pegou para mim.

Meu pai me interrompeu quando o Maurício - Meu professor - ligou perguntando se eu tinha

26
chego em casa bem. Quando ele me perguntou o que houve, eu contei do Bernardo. Contei da
Vívia, contei do livro, contei tudo. Fazia tempo que eu não tinha uma conversa tão aberta com
meu pai.

- Bem, acho que você já resolveu isso tudo sem minha ajuda. Pode doer agora, mas acredite,
até a pior das dores se cura com o tempo.
- Obrigada, pai.
- Agora, qual era o nome do livro que você estava lendo, mesmo?
- "Uma Cabana de Inverno".
- D-Do Júlio Olinda de Marcques?!
- É! Você já ouviu falar dele? A Vívia nunca, e ela é a que mais lê no colégio.
- Sim, sim... Eu já ouvi falar dele.
- Ele é parente nosso?
- Hein?
- Ele tem o mesmo sobrenome que o meu. Ele é parente nosso?
- Bem... É uma longa história. Está tarde, e eu aluguei para vermos "Ghostbusters". Que tal eu
te contar amanhã?

Ghostbusters é um excelente filme. Morri de rir com ele. Depois de ver o filme, sem que meu
pai soubesse, eu abri a Wikipédia e procurei por "Júlio Olinda de Marcques". Mas só pude ler
"Presumido morto" antes que meu pai me chamasse dizendo que ia fechar a água. Então fui
tomar banho.

Acho que é só. Não estou com a menor vontade de que Segunda chegue e ver a cara idiota do
Bernardo. Talvez eu nunca encontre um rapaz que só se importe com sexo, mas acho que não
custa nada sonhar. Vou dormir, estou exausta.

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O Segredo

S ábado, 20 de Março.

Meu pai me levou hoje para o forte do Posto 6 de Copacabana. Era um lugar lindo, dava
para ver a praia, o mar, e tudo com um lindo pôr-do-Sol... Como eu queria que algum garoto
me levasse ali. Meu pai pediu uma cerveja para ele e uma Coca Zero para mim - Ele ainda acha
que eu não bebo.

- Bem...
- Você ia me dizer algo sobre o autor do livro.
- É, eu ia. Eu vou.
- Quem é ele? É um parente distante?
- Não.
- É alguém que você conheça?
- Bem, pode-se dizer isso. Eu era o autor do livro.
- Você era? Como assim, você era?
- Bem, você tinha uns cinco anos quando aconteceu, então não me surpreende muito que você
não lembre, mas você e sua mãe foram o motivo que eu troquei meu nome.
- Mas isso não faz sentido. O sobrenome do autor do livro era exatamente igual ao meu. O seu
sobrenome é "Bolton de Sá".
- Bem, eu mudei para meu nome de solteiro quando sua mãe morreu.
- Espera. Você adotou o nome dela? Que nem o...
- É, bem, eu gostei da idéia.
- Mas, afinal, o que aconteceu?
- Bem, você, sua mãe e eu vivíamos numa casa na Barra. Eu consegui fazer sucesso com alguns
livros, tipo o que você está lendo, e assim eu ganhei algum dinheiro. No entanto, um dia, eu
não sei como, e não sei porque, começou um incêndio na casa. Sua mãe estava dormindo, e eu
estava cuidando de você, que estava tendo pesadelos.

"Eu acordei sua mãe quando vi o fogo, e corremos para fora da casa. Só que, ao passarmos
pela cozinha, que ficava no caminho da saída, o gás escapou e explodiu mais da metade da
casa, e trancou sua mãe dentro dela. Eu não tinha escolha, eu tinha que te tirar dali. Depois, os
bombeiros me disseram que não puderam salvá-la.

Às vezes eu me arrependo de não ter voltado e tentado salvar ela, mas aí eu penso em você, e
lembro que fiz a escolha certa, que sua mãe queria que eu fizesse. Mas enfim. Depois do
incêndio, eu queria paz. A imprensa iria acabar com a sua privacidade, e a minha, e eu não
queria isso. Eu mudei de primeiro nome, e troquei para meu nome de solteiro. Eu ganhei
dinheiro suficiente escrevendo para não ter que trabalhar por um tempo, e desde então me
dediquei a cuidar de você."

Meu pai e eu conversamos durante o resto da tarde, e depois vimos um filme nos cinemas. Eu
dormi no filme, então nem consigo lembrar qual era o título. Era bem chatinho. Ainda tenho
que pensar um pouco sobre o que meu pai me falou. Acho que amanhã não vou escrever no
diário, não sei.

Estou feliz que meu pai finalmente tenha me contado o que sempre escondia, mas eu achei
que fosse algo terrível, um crime que ele tivesse cometido... Mas... Era só... Uma dor. Meu pai
sempre foi assim para mim, mesmo que eu não soubesse qual era a fonte dela, mas eu sempre
soube que tinha uma.

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Ainda assim, pelo menos agora eu entendo mais ele. Acho que me distanciei demais dele
nesses últimos anos. Vou tentar evitar que isso volte a ocorrer. De qualquer forma, vou
terminar de ler o livro que meu pai escreveu. Estou curiosa para ver o que acontece.

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A Dança no Parque

H oje, 21 de Março, um Domingo, o Lúcio me chamou para sair. Eu estava cansada, mas
resolvi sair de qualquer forma. Não era todo dia que ele fazia algo, e não era todo dia
mesmo que ele me convidava para fazer algo com ele.

Ele me levou para um parque de Copacabana, perto daonde ele mora. Era um dia calmo,
tranqüilo. Os pássaros cantavam nos poleiros, os casais andavam de mãos dadas, os cachorros
defecavam na grama... Tudo bem, não era um dia perfeito. Mas era um bom dia.

- Então - O Lúcio me olhou, parecendo preocupado - Como que você está... Sabe, se
segurando?
- Como?
- Bem, eu soube da história que rolou com o Bernardo...
- Ah, eu estou bem.
- Mas, ele te machucou? Foi... Gentil com você?
- Hein?!
- Bem, ele contou pra sala inteira que ele... Transou... Com...
- COMIGO?!
- Ele transou mesmo?
- Não!
- Mas...
- Ele é um idiota! Mentiroso! Ele tentou pegar nos meus peitos, e eu bati nele, aí ele terminou
comigo!
- Bem, não foi isso que ele contou pra sala.
- Aquele babaca! Eu vou quebrar o nariz dele amanhã!
- Bem, estou feliz que você não transou com aquele babaca. - Ele sorriu.

Depois disso, começou a chover, e corremos para a casa dele. Passei o dia conversando com
ele, jogando, etc. Eu fiquei surpresa: Ele nenhuma vez tentou tirar meu sutiã. Quando voltei
para casa, a Vívia me ligou, chorando.

- Suzana?!
- Ei! Vívia! Se acalme. O que houve?
- O Bernardo! Ele... Ele!
- Eu não transei com ele, não importa o que ele diga!
- Não, eu sei que não transou!
- Então o que houve?
- Ele transou comigo!
- O quê?!
- E filmou!
- O QUÊ?!
- Ele disse que vai manter...

O telefone ficou mudo. Era tarde, eu liguei para ela de novo duas vezes, para o celular dela, e
nada. Não consegui dormir direito, então estou escrevendo aqui antes de tentar mais uma vez.
Ah, Vívia, o que você foi fazer...

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Filho da...

H oje eu corri para a aula, preocupada com a Vívia. Ela estava chorando na aula, e o
Bernardo estava conversando com uns garotos, rindo e mostrando alguma coisa no
celular dele. Babaca. Sentei do lado da Vívia, e ela se jogou em cima de mim.

- Maldito!
- Hey, hey...
- Cachorro! Maldito!
- Vai ficar tudo bem...
- Não! Não vai! Esse babaca disse que ia postar tudo no Youtube!
- Mas por quê?
- Eu não sei! Por favor, Suzana, me ajuda!
- Eu?! O que que eu posso fazer?!
- Sei lá! Mas... - Ela me fitou, desesperada. Depois, voltou a se apoiar em mim, chorando.

Bernardo ia pagar. Aquele idiota, imbecil... Argh, nem consigo descrever ele direito.

- Bernardo!
- Opa, olá Suzana - Ele me deu um sorriso amarelado. Me deu vontade de socar os dentes dele.
- Bernardo, por que você foi filmar a Vívia?
- Ah, ela te contou.
- Sim, ela me contou. Ela é minha amiga.
- E você não está irritada com ela? Por ela ter...
- Sim, eu estou, mas ela continua minha amiga, transando com você ou não, e eu me preocupo
com ela. Então... Apague o vídeo dela, ok?
- Ok. Com uma condição.
- Qual?
- No salão de atividades, durante o intervalo. Se você quer que eu delete o vídeo, você vai ter
que fazer algo por mim.
- O quê?! Você não espera mesmo que eu vá... - Eu olhei para a Vívia, chorando - ... Tudo bem.
Durante o intervalo. Mas você vai deletar o vídeo depois disso!
- Feito.

Voltei para meu lugar, já que o professor tinha chego. Fiquei sem falar com ninguém, e não
consegui me concentrar. Quando deu o intervalo, eu fui para o auditório. Lá estava ele, com
aquele sorriso imbecil. Ele falou alguma coisa, eu ignorei.

- Bem - Ele pegou o celular do bolso - Aqui está - Eu fui pegar, ele afastou a mão - Mas antes... -
Ele pôs o celular de volta no bolso.
- Tudo bem. Você pode... Fazer... Isso comigo.

Ele me beijou. Me segurou, e soltou meu sutiã. Me virou de costas, e levantou minha camisa.
Começou a mexer com meus seios como se fossem brinquedos. Eu pus uma mão atrás de sua
cabeça e o beijei. Comecei a sentir o "Objeto" dele se projetar nas minhas costas. Botei a mão
no bolso dele.

Ele mudou uma das mãos para minha vagina. Eu me segurei para não dar um tapa nele. Minha
mão mexia quase que freneticamente no bolso dele. Ele sorriu para mim, e disse "Que bom ver
que você está gostando". Eu peguei o celular do bolso dele, e dei uma cotovelada no nariz
dele.

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- Argh! - Ele gritou, com o nariz sangrando - Sua **Censurado**!
- Eu te avisei, Bernardo - Mostrei o celular para ele - Você deveria ter deletado.
- Eu vou te expulsar desse colégio, sua **Censurado**!
- Ah, vá em frente. Chore para o professor sobre como você apanhou para mim. Eu conto da
sua chantagenzinha para eles. Vamos ver quem expulsará quem.
- Me devolva meu celular!
- Pra quê? Você só usa pra ouvir funk mesmo. Adeus, Bernardo. Espero que tenha aprendido
alguma coisa. - Pus o sutiã, abaixei a camisa e fui embora.

- Hey.
- Ei, Suzana... Escuta, o Bernardo me contou o que ele ia fazer com você... Eu entendo se você
não pôde deletar o vídeo...
- Bem... - Eu entreguei o celular para ela - Achei que você fosse preferir deletar você mesma.
- Esse... Esse é o celular dele!
- Yep. - Eu sorri.
- Então ele... - Ela olhou para minha calça.
- Não!
- Então como... - Nesse momento, o Bernardo entrou na sala, enfezado. O nariz dele sangrava
muito.
- Bem, ele mereceu - Sentei do lado dela.
- Mas... Como...

A Vívia, depois de me encher de perguntas, me convidou para dormir na casa dela. Eu passei
em casa para pegar roupas e você, diário, e depois fiquei conversando com ela, que só se deu
por satisfeita quando eu repeti a história de como peguei o celular do Bernardo umas treze
vezes.

Vou dormir, acho que já tive aventuras demais por hoje, e amanhã tenho que acordar cedo.

32
Confusão

E u estou... Estranha. Quando acordei de manhã, estava me sentindo bem, triunfante,


alegre. Fui para a aula com a Vívia, ríamos, cantávamos alguma besteirinha improvisada,
etc. Agora, eu estou pensando seriamente sobre o que vou fazer.

O Bernardo não apareceu para a aula, o que me deixou contente, e o Lúcio comentou sobre
ele estar reclamando e xingando como se fosse um doido com tourettes. Depois do recreio, o
Lúcio me convidou para irmos no cinema ver "Alice no país das maravilhas".

Quando a aula acabou, fomos. Ele me levou por um caminho onde eu não conhecia muito
bem, em Copacabana. Ele segurou minha mão enquanto andávamos, apesar de ter mais medo
do que eu de... Absolutamente tudo.

Depois do filme, ele me levou pelo mesmo caminho, mas fez um desvio. Esse desvio levava
para um pequeno terreno no meio da cidade que tinha uma árvore. Essa árvore se encontrava
justamente no meio, e estava começando a perder folhas. Sentamos embaixo da sombra dela,
enquanto o Sol se punha no horizonte.

- Então, o que achou do filme? - Eu comecei, cansada do dia.


- Tim Burton é Tim Burton.
- Ah, é, eu tinha esquecido desse seu fetiche com ele.
- Não é fetiche, eu só gosto dos filmes dele.
- É, e masoquistas não tem fetiches por dor, eles apenas gostam do jeito que sentem cera
queimada na pele deles.
- Você acha que vamos passar um dia de nossas vidas sem você me sacanear?
- Bem, eu posso passar um dia sem falar com você, se você quiser.
- Prefiro as sacaneações, obrigado.
- Pensei que fosse.
- Sabe, eu adoro passar o tempo com você.
- Ah, obrigada. Você também não é um porre.
- Não, é sério. Eu adoro você.
- Bem, você também é um bom amigo.
- Você é minha melhor amiga - Ele se virou para mim.
- Bem, você é meu melhor amigo - Me virei para ele.
- É uma pena...
- O quê?
- Bem... Eu não sei ser romântico nem nada, mas... - Ele me beijou. Por uns bons dez segundos,
antes de eu sair correndo para casa.

Por que ele foi me beijar, droga? Ele é meu amigo, e talvez sinta algo a mais por mim, mas eu
não sinto isso por ele! Lixo. E agora? Se eu namorar ele, mesmo não sentindo o que ele sente,
estarei mentindo para ele. Se eu disser "Não", eu vou magoá-lo. Por que esse tolo foi se
apaixonar por mim?

33
A Primeira Vez

D iário, eu sei que eu fiquei sem escrever em você há uma semana, mas me dê uma folga,
eu tive uma semana exaustiva. E ainda é Quarta-Feira! Na verdade, eu estou
escrevendo porque... Bem, eu mudei. Passei uns dois dias equilibrando o que o Lúcio
sentia por mim e o que eu não sabia sentir por ele, mas no final ele ganhou.

Acho que ele sempre foi assim, embora seja um tanto quanto chato isso. Ele gosta de mim, eu
gosto dele. Eu sempre gostei dele, ele sempre foi meu amigo. Meu melhor amigo. Mas aí ele
me beija e diz que quer mais do que isso. E me deixa completamente confusa. Tem horas que
até melhores amigos são cruéis com você.

Ele passou um dia inteiro ora pedindo desculpas ora tentando me "Conquistar", até que eu
finalmente cansei, falei para ele ficar quieto e beijei ele. Acho que, no final, eu também sentia
algo por ele. Ontem, depois da aula, fomos para a casa dele.

Estávamos nos beijando, deitados na cama dele, quando eu percebo algo estranho vindo de
mim. Uma sensação nova. Quase dominadora. Pelo visto, ele também sentiu, porque
começamos a nos tocar ali mesmo. Do nada, ele parou, e começou a pedir desculpas feito um
louco.

- Hey! - Eu ri, aliviada. Estava nervosa com o que estava para acontecer.
- Me desculpa! Eu sei que foi assim que começou aquela bobagem com o Bernardo, me
desculpa!
- Ei. Acalma.
- Você... Me perdoa?
- Não precisa pedir perdão.
- Não?
- Não.
- Então, o que...
- Lembra quando eu disse, que queria fazer com alguém especial, quando estivesse preparada?
- Lembro. Você começou a citar nomes e me deu pesadelos.
- Bem. Você é especial. E eu estou preparada. - Os olhos do Lúcio se arregalaram.
- Você quer fazer isso aqui?! Agora?!
- Bem, contanto que você tenha uma camisinha... - Abri a gaveta dele. Tinham treze ali, como
eu já sabia.

Ele demorou um pouco, mas depois já estava pronto. Nú, diante de mim, pronto. Eu me deixei
levar pelos instintos, e tirei a roupa, peça por peça. Não me sentia eu naquele momento, me
sentia outra pessoa. Uma pessoa que me agradava muito naquela hora.

Ele me beijou ternamente, e prosseguiu, levemente, e cautelosamente com a penetração. De


início, doeu um pouco. Mas depois a dor passou. Era prazeroso, bom. Senti ele respirando em
cima de meu peito, que começava a arfar conforme aumentava a velocidade. Meu coração
batia acelerado, até o ponto que veio: Um prazer inexplicável, enquanto ele também soltava o
que tinha. Parecia mágica.

Depois, eu deitei abraçada à ele, cansada, mas satisfeita. Ele me beijou uma última vez, antes
de fechar os olhos e dormir. Contou-me depois que também foi a primeira vez dele. Tudo bem,
ele viu pornografia para saber o que fazer na hora, e provavelmente "Praticava", mas valeu a
pena. Foi perfeito.

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... Oh...

L ixo. Três semanas. Três semanas sem nem ao menos tocar no meu diário. Hoje de manhã
eu estava enjoada. Vomitei umas três vezes, antes de meu pai chamar um médico, e eu
pedir pra ele não chamar. Na segunda vez eu já sabia o que era.

Lúcio veio me procurar antes da aula, desesperado, e carregando três sacolas com testes de
gravidez. Eu peguei um pacote, abri, e peguei um dos palitos. Quinze minutos depois, um sinal
de "+" apareceu, como um sinal de que minha vida acabaria em nove meses.

Fui até o Lúcio, tentando falar algo. Eu caí. Chorei no ombro dele. Não tinha o que discutir, não
tinha o que fazer. Ele me abraçou, entendendo a situação.

- Mas... Nós...
- Elas não são... 100% seguras.
- O que vamos fazer?
- O que podemos fazer?
- Nós podemos... Não ter o bebê.
- Você é capaz de viver com isso?
- ... Não.
- Nem eu.
- Bem, eu te prometo uma coisa.
- O quê?
- Eu vou estar aqui. Eu não vou fugir. Eu vou te ajudar.
- Promete?
- Prometo.

Eu deitei na cama, deprimida, e ele deitou do meu lado. Nenhum de nós foi à aula, e meu pai
fez o máximo que pôde para não dar uma ataque. Depois, o Lúcio foi embora, e eu me
tranquei no meu quarto. Não consigo acreditar. Não quero acreditar. Estou grávida. E agora?

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Inesperado

E u tinha me acostumado à idéia de ter uma filha. Eu estava me preparando, fisica e


psicologicamente, assim como financeiramente. Lúcio e eu arranjamos trabalho, e
durante dois meses, parecia que não seria o fim do mundo.

Eu já estava começando a amar aquele bebê, que nem tinha nascido ainda. E Lúcio também,
apesar de nosso mútuo medo e de nossas incertezas. Por fim, eu arranjei um modo de
continuar na escola e de balancear isso com meu trabalho.

Meu pai, no entanto, parecia cada vez mais e mais distante de mim. Algumas vezes, eu
conseguia ouvi-lo resmungando algo sobre "Cedo demais", ou "Não era hora", e o encontrava
falando durante o sono. Paramos de ver filmes juntos.

Há uma semana, eu fui no médico para checar como estava o meu filho. Ele me deixou
chocada.

- Eh... Suzana?
- Sim? O que houve?
- Bem, eu estou olhando no ultra-som, e...
- E?
- O bebê
- Que que tem ele?!
- Ele está pequeno demais para ter dois meses.
- Como?!
- Ele está morto, e por isso não cresceu.
- Mas!
- Sinto, Suzana, mas temos que tirar ele daí, caso contrário você poderá ter complicações. Eu
sei que é difícil, mas tente se acalmar. Vai acabar em breve.

Doeu. Muito. Tanto fisica quanto psicologicamente. Eu passei dois dias na cama, sem falar com
ninguém. Sem querer ouvir nada, sem fazer nada. só chorando. Eu não estava preparada, eu
não queria estar, mas... Algo dentro de mim... Alguma coisa, simplesmente sabia que ia dar
certo, e que eu ia amar essa criança que, assim como chegou inesperadamente, sumiu
inesperadamente, e ainda por cima brutalmente.

Depois, meu pai voltou a falar comigo. Ele sentou na minha cama, fez um pouco de carinho na
minha cabeça e disse:

- Escuta, querida, eu sei que você está chateada. Eu sei que você está deprimida. Mas não
deixe que sua vida acabe por isso. Você ainda é muito jovem, e você ainda terá outras
oportunidades para ter um bebê. Essa oportunidade não era a oportunidade certa, acredite.
Você ainda vai ter um filho. Talvez, mesmo que você esteja deprimida agora, você vá perceber
no futuro que isso foi para melhor.
- Pai! Você está falando do meu filho! Do seu neto! Você acha mesmo que a morte do seu neto
é para melhor?!
- Talvez. Eu aprendi algum tempo atrás que há males e mortes que vem para bem. Todo
mundo morre um dia, e eu estou feliz que esse alguém de hoje não foi você. De vez em
quando eu tenho que ser frio para poder te proteger, Suzana. Muito embora eu não possa
mais te proteger como protegia.
- ... Obrigada, pai.

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- De nada. Eu vou te deixar sozinha agora, a não ser que você queira ver "A Vida de Brian"
comigo.
- Vamos, vamos ver. Estou cansada de ficar no meu quarto.
- Ok então.

Nós dois rimos enquanto víamos "A Vida de Brian", terminando com a música "Always Look on
the Bright Side of Life", que me animou um pouco. Depois, Lúcio, Vívia e até mesmo o idiota
do Bernardo vieram me visitar. Foi uma surpresa agradável.

Por fim, acho que eu vou melhorar. Dói agora, e muito, mas, como meu pai disse, nem tudo de
ruim vai ser algo que te prejudique. Talvez tenha sido para melhor, talvez não. Eu nunca
saberei com certeza. Mas pelo menos, meu pai tem razão em uma coisa: Eu vou ficar bem.
Gostaria que ele soubesse o quanto significa para mim, apesar de nossa distância.

Bem, já é tarde. Estou cansada. Acho que, depois de tudo isso, você já tem uma história e
tanto, meu querido diário. Quem sabe em alguns anos eu não te encontro novamente, re-leio
você e me lembro, nostalgicamente, dos momentos que passei? Essa é sua função, não é?
Então... Até daqui à alguns anos, e tenha uma boa vida até então.

Adeus.

37
Cidade dos Sonhos Esquecidos

V ou te contar de um lugar. É um lugar estranho, e ao mesmo tempo interessante.


Aterrorizante, mas ainda assim belo. É uma coisa peculiar, essa cidade, onde o céu é
roxo e a terra azul. Onde os peixes vivem nas nuvens e homens conduzem carruagens
guiadas por burros e elefantes.

É um lugar perigoso, cheio de mistérios, aonde porcos são a lei, e a lei é uma palhaçada. Os
habitantes voam de lugar à outro, sempre ligeiros, sem nunca dar uma pausa. E, deixe eu lhe
contar uma coisa, meu caro: Nesse lugar, você nunca é você.

Entre as cobras que dançam tango com os bois, você sempre será uma lesma, tolerável, se
tiver sorte. Entre os ratos, que lutam com ferocidade para alimentar suas famílias, no entanto,
você será um rei. Só no seu canto que você voltará a si mesmo.

Nessa cidade, veja bem, existe uma dama. Uma dama tão bela, que excede suas expectativas
do que pode ser beleza. Seu cabelo muda de cor conforme a hora do dia, e aonde ela for, o Sol
a ilumina, sempre irradiando felicidade e paixão.

As flores se rebelam em lamúrios ao ouvir ela passar, lutando para se erguer da terra azul e
segui-la. Mas elas são presas, e ali que para sempre ficarão, entre suas cores de lilás, cinza,
vermelho e preto. Só a visão dessa bela dama é capaz de enlouquecer qualquer homem. Isto é,
se ele já não fosse louco.

Mas não se deve tocar nessa dama de cabelos mutáveis, pois o toque humano é como veneno
para ela. Pois assim como a matéria que nos compõe, ela murchará e morrerá, levando anos
para voltar à vida. Apenas o mais puro dos homens pode ousar encostá-la, ou amá-la.

Nessa cidade também reside um homem. Um senhor de idade aparente, que nunca parece
falar, mas que sempre é entendido. Ele carrega um relógio consigo, sempre lembrando-lhe do
"Tic Tac" que faz. Ele nunca está à vista quando é procurado, mas sempre presente quando
não é desejado.

Na maior casa da vila, mora uma sombra. A sombra sempre toma a forma que mais agrada
com quem conversa, e sempre repete o que a pessoa fez durante a vida. Muitos que a
conhecem não retornam, fadados a amarem e odiarem essa sombra, que, por sua própria
maldição, é obrigada a viver e reviver todas as memórias dos outros, sem nunca ter suas
próprias.

Também têm quatro crianças na cidade, sempre dançando uma ciranda obscena de rimas
tristes, prendendo entre eles uma pequena garota, de olhos e cabelos vermelhos como o fogo.
Todo dia, é possível ouvi-la chorar, e ver suas lágrimas de sangue.

Na casa que me cederam, moram também três mulheres. Três das mais belas mulheres que já
tocaram meu corpo. A primeira sempre me beijava, intoxicando-me com seus dons. A segunda
sempre me espetava com as unhas, e a última, a mais bela de todas, drenava lentamente
minha vida.

Um dia, na cidade, um garoto veio correndo até mim, chorando. Pedia por sua família, mas a
família estava morta. E ele os matou. Ele intercalava risos e choros enquanto contava de seus

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pais, enquanto seu rosto mais e mais se distorcia da face inocente da primeira vez que o vi.

A última coisa que conheci antes de ir embora foi uma voz sem corpo. Ela falava em mil vozes
simultâneamente, mas sempre mantendo o tom choroso de arrependimento. Ela me chamava,
pedindo que eu ficasse, pedindo que eu não a deixasse. Mas eu tinha que ir embora, afinal de
contas.

Quando fui embora, o solo ficou negro como breu, assim como o céu. Talvez eu tenha saído
dali, mas a cidade ganhou um novo cidadão, para sempre amaldiçoado a viver ali. Um cidadão
tão indescritível, tão terrível, que me dá calafrios só de dizer o nome dele: Eu saí dali, mas ao
mesmo tempo, fiquei preso no lugar. Estou ao mesmo tempo dentro e fora. Ao mesmo tempo
livre e escravizado.

Eu sempre estarei na cidade dos sonhos esquecidos.

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Collin

-C ollin, eu sei que você está dormindo... Mas eu estou me sentindo um pouco
sozinho. Vamos conversar, que tal? ... Tudo bem, não precisa me responder.
Collin, eu realmente gostaria que você acordasse... Tudo bem. Tudo bem. Não
vou tentar te acordar. Eu só queria te contar uma história. Eu estava me lembrando da minha
mãe. Moça gentil ela era.
- Eu lembro que ela toda manhã me acordava para ir ao colégio, que naquela época ainda era
separado entre meninos e meninas... Não que isso faça muita diferença para você. Me servia
um copo de café, preto, bom. E depois me levava até a rua pra se despedir. E quando eu
voltava, mesmo ela estando cansada arranjava um modo de conversar comigo. Era uma dona-
de-casa, coitada, nunca aprendeu a ler direito, mas era tão esperta que até me ajudava em
matemática.
- Eu adorava meu colégio. Minhas professoras eram novas, mas sabiam muito. Nós, os alunos,
sempre tentávamos aquelas gracinhas que garotos de quinze anos tentam. Um dos garotos, o
Elroy, tenho quase certeza que ele conseguiu pelo menos ver a nossa professora de literatura
de sutiã. É claro que, naquela época, ver um sutiã era quase como perder a virgindade. As
revistas para adultos eram mulheres de sutiã.
- Na frente do meu colégio, você vê, tinha um outro colégio, de meninas. Os dois colégios
dividiam o pátio na hora do almoço, e nós sempre arranjávamos uma desculpa para ficar até
depois do recreio conversando com as moçoilas. Uma delas, Collin, você conhece. Elisabete,
aquela ternura de cabelos negros e olhos verdes. Os pais dela eram franceses, e sempre
tentavam me ensinar quando eu ia namorar a filha deles.
- Pra falar a verdade, eu só fui aprender francês quando eu tinha dezoito anos, quando resolvi
casar com a Elisabete. Eu lembro até hoje, veja só: Me casei com os mesmo sapatos que usei
quando a conheci. É claro que meu pé cresceu um pouco entre o encontro e o casamento, mas
eu insisti. Era a nossa "Coisa velha". Agora a coisa velha sou eu.
- E nós fomos felizes, Collin. Ela sempre me ajudava. É claro que teve o dia em que minha mãe
morreu. Eu chorei muito naquele dia. E comecei a trair minha mulher, embora me arrependa
muito. Eu dormi no sofá por dois anos, quando finalmente larguei o álcool e as mulheres. Mas
quando eu larguei, fomos felizes de novo. Até que teve um dia que ela me falou. Estava
grávida.
- Naqueles tempos, Collin, eu tinha uns trinta anos. E era mais alegre do que poderia contar.
Meus amigos todos já tinham tido seus filhos aos vinte, e me achavam meio estranho, mas eu
não ligava. Agora eu ia ter meu filho, meu próprio, e estava feliz com isso. Foram nove meses
que nós vivemos, e nove meses que jogamos fora, no final.
- O bebê, Collin. O bebê era uma garota. Mas não apenas uma garota, uma garota morta.
Nasceu morta. Não queria respirar. Minha mulher ficou muito deprimida. Eu não entendi o
porquê de eu não ter chorado por isso. Eu queria ter chorado. Eu ainda quero. Mas só minha
mulher chorou. E eu sentia que ela me odiava por eu também não chorar. Ela não queria mais
sair da cama. Não queria sair de casa. Não queria falar comigo.
- Foi justamente nessa época, vinte e poucos anos atrás, que eu te comprei. Te vi numa loja
aqui por perto, e o modo como você olhou pra mim simplesmente não dava pra não comprar.
Vocês cachorros se vendem sozinhos, Collin. Levei você naquela caixa com furos de presente
para Elisabete, e ela simplesmente te jogou para o lado, se lembra?
- Mas com o tempo foi melhorando. Ela acabou superando a morte da nossa filha, e começou
a te dar atenção, carinho, amor. Mas a cada dia que passava ela continuava ficando mais
pálida, mais fraca. Por fim eu não tive escolha, por mais que ela dissesse que estava bem.
Levei-a no médico. Eu fui com ela e voltei sem ninguém. Estava com câncer, se você não sabia
ainda. Acho que agora já existem tratamentos melhores contra cancêr, mas antigamente

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câncer era morte.
- E ela chorava. Como ela chorava. Eu não podia te levar para visitá-la, o que me deixava ainda
mais deprimido. Ela te amava muito, Collin. Por fim, depois de eu ter passado três noites indo
e voltando, ela morreu. Simplesmente desistiu. Às vezes eu acho que, se eu tivesse levado
você, ela ainda estaria viva, sabe, e que você ainda falaria comigo.
- Mas ela morreu. Eu não pude fazer nada, nem você, nem deus, nem ninguém. E ficamos eu e
você, aqui em casa. Meus amigos todos sumiram, meu trabalho me aposentou, e com o tempo
até você começou a passar mais tempo dormindo do que falando comigo. Hoje em dia você
fica aí, deitado, sem nem me dar atenção. Sabe, Collin, eu realmente gostaria que você
acordasse. Por favor, acorde...
- Tudo bem. Não vou insistir. Também vou dormir, estou cansado...
- Boa noite, Collin.

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Et Iudicium

E u estava sozinho. O quarto girava ao meu redor. Suas paredes mudavam de cor. Minhas
mãos suavam. Eu sentia frio. Sentia calor. Sentia dor. Sentia prazer. Então, eu parava de
sentir. Eu estava sozinho. Eu estava sozinho. E o quarto girava. A casa estava escura, eu
estava morto? O silêncio não mais me satisfazia. Eu estava... Acompanhado.

O quarto estava vazio, mas alguém estava lá. Alguém que não era eu. Ele queria me machucar,
queria me matar. Eu não podia vê-lo, mas ele estava lá. Tramando, planejando, observando,
espiando. Preparou-se para o bote, e eu corri. Os corredores já não eram pequenos e largos,
eram longos e estreitos. Cheguei à porta. Trancada. Eu estava... Condenado.

A presença sumiu. O som de risos me alarmou, vindo do nada. Procurei em vão a fonte, mas
ela não estava em lugar algum para ser achada. As risadas me acharam, no entanto. Uma
ciranda de crianças, rindo, cantando. As risadas eram malignas. As canções, pornográficas. Ao
centro, eu vi uma garota. Nua, ela chorava, aterrorizada.

As crianças tomavam vez em judiar da garota, rindo ainda mais com cada soluço dela. Eu
levantei a mão, enfurecido. Para minha surpresa, havia uma arma nela. Eu apertei o gatilho, e
a ciranda sumiu. Fui até a garota, e a abracei, confortando-a. E então, ela riu. Ela sangrava por
todo o corpo, mas me segurava com força, rindo, me enforcando.

Lutei para me soltar, e vi que os olhos dela haviam mudado. Não mais carregavam uma
inocência infantil, mas sim uma malícia pervertida. E eu escapei. A arma havia sumido, e, com
ela, a garota. O quarto ficou escuro. Ao fundo, eu vi uma luz, acesa, imponente. Corri em sua
direção, torcendo por um ponto seguro. A luz apagou.

E as trevas me envolveram. Me seduziram, me cantaram. Lutei para me conter, mas elas eram
mais fortes. Brincavam com minha mente, chamavam por meu nome, confortavam o meu
corpo. E eu não me contive. Deixei-me levar pela escuridão. E ela me guiou, sorrindo. Ela me
prometia o mundo, e eu ouvia, com cada palavra ficando mais alegre.

No entanto, ela me deixou. Me seduziu e me deixou. Me amou e me deixou. Eu estava


abandonado. Mas não estava desacompanhado. Atrás de mim, estava eu. Não apenas um, mas
dois. Ambos de mãos dadas, ambos sorrindo. Ambos debochando de mim. E eu enlouqueci.
Fiquei furioso. E ataquei. Ambos sumiram, do mesmo modo que chegaram. E levaram consigo
uma parte de mim.

Eu chorei. No escuro, as trevas me observavam, mudando de forma, de voz. Todas mulheres,


todas belas. Todas me odiavam, mas ao mesmo tempo me seduziam. Tentaram me torturar
novamente, mas eu me contive. Elas não me ganharam desta vez. E, sem sucesso, me
deixaram. E eu ouvi uma voz.

Era uma aberração. Um monstro de pessoa. Mas era uma pessoa. Era tanto homem quanto
mulher, e me observava desapontado. Falou em uma voz grotesca, e eu me enfureci. Ataquei-
o, e ele morreu. Seu corpo se tornou dois, de um homem e uma mulher, ambos conhecidos,
ambos monstros. Monstros, mas uma pessoa. E eu fugi, novamente.

E eu a vi. Ela. Ela me encantava, me amava. Ela não me deixaria. Me beijou, e eu a beijei de
volta. Éramos um novamente, e nada a faria se separar de mim. A escuridão nos envolvia, mas

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era confortável. Era suportável. Enquanto ela estivesse comigo, eu podia domá-la. Eu podia
matá-la. E ela iria obedecer.

No entanto, ela sumiu. Outra vez, fiquei desolado. Fiquei acompanhado apenas da escuridão. E
ela sentia minha raiva, sentia meus desejos. Ela queria a mim, queria meu corpo. E ofereceu
em troca minha amada. Guiou-me novamente, até seu lar. Sussurrava promessas no meu
ouvido, encantos no meu corpo, mentiras na minha mente. E me levou à ela.

E ela esperava. Ela sorria. Ela se mostrava. Ela me obedecia. E a escuridão propôs. Minha
mente, minha vida, meu corpo... Em troca dela. E eu aceitei. Fui reunido com minha amada. E
ela sorria, se mostrava, obedecia. Ela... Obedecia. Então eu percebi: Fui enganado. E a
escuridão sorriu, vitoriosa. Levou de mim tudo, e me deixou com nada. E eu fiquei, pela última
vez, sozinho.

Eu corri. Eu chorei. Eu xinguei. Mas, no final, não havia solução. A escuridão havia me tomado,
e eu a havia dado tal permissão. Eu estava condenado, e sabia disso. Não havia luz, não havia
esperança. Não havia um fio de sanidade. Apenas eu, a escuridão, e tudo que ela tirasse de
mim. E ela me fez amar-lhe. E eu a amei, odiando-a. Odiando a todos.

A culpa era deles. Era de todos. Toda essa maldição. Era uma insanidade, e quem havia a
lançado sobre mim eram os outros. Malditos. Malditos, todos eles! Me deixaram morto, me
deixaram desolado, me deixaram quebrado. Todos, todos estão contra mim. Todos estão
contra mim. Todos estão contra mim...

E a escuridão propôs novamente, se deliciando com minha raiva. Morte. Morte para todos. Ela
se propôs a matar todos, a me fazer de todos eles, um rei. Me obedeceriam, dementados. Ela
me beijou, e eu a beijei de volta. Amando-a, embora a odiasse. Eles iriam pagar. Eles iriam
pagar... Traidores, todos iriam pagar!

E eles sofreram, pelas minhas mãos. Eram meus brinquedos, meus servos. A escuridão era
minha rainha, e deitava-se comigo por cima do reino. Eu era rei, eu era deus! Mas... Não havia
nada. Eu estava sozinho. A escuridão me amava, mas era um amor sórdido. Era um amor...
Vazio. Eu não queria aquilo. Eu não quero ser um boneco de uma escuridão gananciosa!

Então eu fugi. Fugi do meu reino. Fugi da minha rainha. E ela me perseguiu. Ela me encontrou.
Ela me beijou. Mas eu não a beijei de volta. Eu estava determinado. Eu iria escapar. Mas ela
ganhou de mim, por uma última vez. Mas a escuridão morreu. Morta por ela. E ela sumiu,
sorrindo. Então, eu fui preso. Preso por mim mesmo.

As luzes se acenderam, cegando-me. A corte se pôs. O juíz se levantou, e todos adentraram.


Sob uma máscara, estava eu. O juíz falou, e eu não ouvi. Ele riu, e eu não senti. Ele me
chamou, mas eu não me movi. O júri se espantou, e conversou entre si. Em uníssono,
declararam, mas eu não entendi. O juíz balançou a cabeça, e repetiu.

"Culpado, mas não sem esperanças."

E o silêncio voltou. O quarto parou de girar. A luz acendia, e eu podia falar. Eu podia ver, podia
ouvir. E eu podia sentir. Estava deitado, suado, mas não estava morto. Estava cansado, mas
não estava exausto. Estava trancado, mas não excluído. Eu estava sozinho, mas não por muito
tempo.

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Contos de Bar
Quando os Ratos se Apaixonam
(Eu não tenho a menor idéia sobre como nomear esta crônica)

E ra noite. Tarde da noite. Ou poderia ser dia. Eu não sei, meus óculos escuros deixavam
até mesmo o Sol parecendo a Lua. E eu nunca saio de casa sem óculos escuros... Pois eu
nunca saio de casa sem uma ressaca. Era tarde da noite de Sábado (Eu acho), e eu fui ao
escritório de meu editor, Sérgio, que tinha pedido minha presença com urgência.

Normalmente eu teria mandado ele ir se catar, mas minha intuição me dizia que era melhor eu
comparecer. Minha intuição, e a viatura de polícia que estava estacionada em frente ao meu
prédio havia meia hora. Eu toquei na porta do escritório. Primeiro duas vezes. Depois três.
Então eu improvisei uma batida de "We Will Rock You".

A secretária dele abriu a porta, justamente quando eu estava no solo de guitarra. Entrei no
escritório, sem dar bola para a expressão perplexada da mulher, que, momentos atrás, tinha
visto um homem balançar as mãos fingindo estar tocando guitarra na chuva. Ou era dia claro?
Eu não faço idéia.

- Então, Clarice...

- Beatriz - Ela corrigiu. Eu fitei-a, fazendo o melhor que podia para manter uma cara séria. A
face dela parecia serena, calma. Parecia uma mulher que sofreu os tempos da vida, mas que
não havia desistido ainda, que ainda tinha esperança. Seus olhos, no entanto, gritavam
"Chocolícia!" como três hipopótamos treinados subitamente desempregados.

- Então, Clarice-Beatriz... Como vai o Sr. Sérgio?

- Ele está um pouco rabugento. Gritou comigo o dia inteiro. É um babaca. - Eu ri da observação
dela. Ela não tinha experiência no emprego, mas já conhecia o Sérgio muito bem.

- Pois bem, eu vou fazer uma visita à ele. Acho melhor você ficar com isso até eu voltar - Eu a
entreguei uma garrafa de whiskey que eu mantinha no bolso em casos de emergências. Ela
olhou desconfiada para a garrafa, e em seguida tomou um longo gole. Eu não me importei
muito. Nunca carregava Jack Daniels naquela garrafa, apenas uma marca de whiskey mais
barata. A marca tinha gosto de cigarro usado.

Eu entrei no escritório do meu editor. Ele andava de um lado para outro, preocupado. Assim
que eu entrei, ele pulou em cima da cadeira e pegou seu guarda-chuva, esperando um ataque.
Ele era um editor de jornal, afinal de contas. Me sentei na cadeira, e comecei a comer uma noz
que estava na mesa ao lado. Ela tinha um gosto extraordinário, como um Sauvignon 1977 bem
conservado. Ou então chiclete de tuti-fruti.

- Victor! Estamos mortos! - Ele sentou na cadeira, exprimindo todo seu desespero, e suando
como um porco. Que tipo de noz ele tinha comprado? Macadêmia?

- Ok, primeiro de tudo, por quê você me chamou aqui numa noite de Sábado?

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- É Quarta de manhã. - Ele me encarou, incrédulo quanto à minha reação. A noz não poderia
ser macadêmia, o Sérgio era pão-duro demais para comprar uma noz cara para o escritório
dele. Teria que ser uma noz mais barata, como... Macadêmia, se ela for barata.

- Bem, sendo ou não sendo Sábado de noite, qual é a droga do problema? - Eu continuei
mastigando a noz, que estranhamente parecia não terminar. Talvez fosse Bogno? Não, espera,
isso é um tipo de árvore.
(Bogno é uma árvore?)

- Seu texto! Esse é o problema! Ele foi considerado altamente polêmico pela Igreja Evangélica,
e ela quer que você seja demitido. - Eu não ouvi o que ele dizia. Estava concentrado demais na
textura fina ou então grossa... Ou alguma coisa da noz. Seu gosto de vinho ou tuti-fruti
(Embora eu tivesse começado a sentir um gosto único de Filet Mignon). Eu tinha que saber
aonde ele comprou essa noz, mas meu orgulho nunca permitiria que eu perguntasse. Eu teria
que invadir a casa dele mais tarde, e ver as despesas dele. Uma Quinta-Feira como sempre.

- Aonde você comprou essas nozes? - Meu orgulho é um covarde.

- Nozes?

- Sim, essas nozes. Ela tem uma coloração distinta, um gosto específico... É simplesmente
espetacular.

- Victor, você está mastigando uma vela.

- Ah. - Eu removi a (Agora óbvia) vela da boca, observando-a por um momento. Depois eu
continuei a mastigá-la, pois ela continuava tendo gosto de tuti-frutti (Ou seria Filet Mignon?).

- Victor, o que nós vamos fazer sobre o protesto contra seus artigos?

- Ugh. Se eu soubesse que você iria falar sobre isso, eu não teria deixado minha garrafa de
whiskey com sua secretária.

- Secretária? - Ele me perguntou, parecendo perplexo. Ou melhor, tentando parecer perplexo.


As bochechas ridiculamente grandes dele tornavam-o impossivelmente cômico.

- É, sua secretária, que abriu a porta do seu escritório para mim.

- Biancardine - Toda vez que eu fazia alguma idiotice ele me chamava de "Biancardine". Porco
babaca - Você está na minha casa. Quem foi abrir a porta foi minha filha.

- A de dezoito anos com quem...

- Não, a de doze anos. Que eu nunca deixei você nem sequer ver sem usar óculos especiais. -
Era verdade, ele mantinha um par de óculos na gaveta do escritório dele para toda vez que a
filha dele ia visitá-lo no trabalho. Era uma coisa estúpida, eu nunca faria nada com a filha de
doze anos dele. Exceto oferecer um cigarro, como todo bom cidadão.

- Eu nunca vou receber minha garrafa de volta, não é?

- E eu nunca vou ter uma filha que não seja uma alcoólatra... - Ele disse, enxugando as
lágrimas.

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- Então, o mesmo de sempre? - Eu sorri, sendo o mais condescendente quanto possível.

- Vá de uma vez antes que eu chame a polícia.

Eu dei um último "Até amanhã, chefe", e pulei pela janela. Eu provavelmente quebrei minha
perna, e com certeza xinguei a esposa do Sérgio mais de uma vez, mas consegui me arrastar
até um lugar seguro e longe da vista dos policiais, aonde passei o resto do dia tirando cacos de
vidro do meu corpo.

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Sendo parado por um policial: O que não se
deve fazer

E u estava dirigindo um carro. Eu não gosto de carros, mas daquela vez valia a pena. Não
era o meu carro, óbvio, era o carro de meu amigo Paulo. Eu tinha roubado o carro dele,
pois ele me obrigou a assistir Avatar com sua companhia. Eu pretendia atiçar fogo nele,
mas aí não teria mais ninguém para pagar minha fiança exceto meu editor.

Eu ouvi um "Hmmph!" no banco traseiro. Era a namorada do Paulo. Ou a mãe dele. Ou a irmã
dele. Ou então uma mulher completamente sem relação com o Paulo mas que estava presa,
amarrada, e amordaçada no banco de trás do carro dele por algum motivo que não consigo me
recordar direito agora. Acho que eu só fui com a corrente mesmo.

Então eu ouvi as sirenes de um carro de polícia. Merda. Olhei para o espelho retrovisor, que
estava pichado com imagens obscenas de genitálias humanas e um zebu. Era uma viatura de
polícia, mandando que eu parasse. Meu primeiro instinto foi acelerar e tentar escapar, mas eu
lembrei que, mesmo no carro do Paulo, quem iria preso seria eu. Então eu parei.

Por um momento, nada aconteceu. Então, para o total desespero da


mulher/irmã/namorada/mãe/prostituta com muita má sorte, nada continou a acontecer. Por
fim, o nada disse "Foda-se" e foi tomar uns porres, permitindo que um policial saísse da
viatura.

Eu vasculhei meu carro freneticamente, tentando achar algum tipo de alucinógeno, que eu
sabia que estaria no carro do Paulo. Por fim, eu achei um saco com três pedras de Crack. Paulo
sempre foi um retardado. Eu escondi na calça, que ficou parecendo uma ereção
desafortunada. Mas pelo menos o tamanho poderia intimidar o policial, se eu tivesse sorte. Se
eu não tivesse, poderia excitá-lo, e ninguém quer ver isso.

No porta-luvas, ou seja lá como chamam essa porcaria, eu achei uma banana, o que era inútil,
já que porcos só comem bacon (Eu acho). De qualquer modo, joguei-a pela janela, torcendo
para que ele se distraísse como um cachorro que vê uma bola.

Ele parou. Olhou para a banana e pôs a mão na cabeça, provavelmente pensando que eu era
um racista. Ah, eu mencionei que ele era negro? É, eu acho que deveria ter mencionado antes.
E a banana não foi exatamente a melhor idéia do mundo, agora que eu penso sobre isso.

Ele se aproximou da janela do carro (Ou seja lá qual seja o termo para esse vidro que não faz
nada para te proteger de tiros), com uma postura intimidadora que me fez pôr a mão na cara.
Ou então era o fato de que ele estava propositalmente mostrando a pélvis contra a janela. Um
dos dois.

"Você sabe por que eu te parei?"

"Não, senhor, eu não sei." - Eu respondi, tentando fazer o meu dedo do meio levantado
parecer o mais casual quanto possível. Então eu abri um grande sorriso porque, hey, policiais
também gostam de sorrisos. E quem sabe assim eu confundia ele e conseguia escapar.

"A placa de seu carro está ilegível. Está pichada com alguma coisa sobre 'James Cameron pode
chupar meu pênis azul!' por cima." - Ele manteve sua postura - E pélvis -, apesar da minha

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tática de confusão.

"Bem, isso foi uma coisa que meu amigo pichou. Mas não é nada demais, não é?"

"E o que essa mulher está fazendo no banco de trás, amarrada e amordaçada?!" Ele pareceu
estranhamente surpreso em ver uma mulher de algemas, especialmente sendo um policial.

"É minha namorada. É dia de... 'Novelização'."

"Novelização?"

"Sim! É que ela adora esse tipo de coisa, entende? Ela adora ser amarrada, algemada,
amordaçada e carregada no banco traseiro de um carro até aonde diabos quer que eu esteja
indo."

"Senhor," Ele esfregou os olhos, obviamente estando cansado de minhas insanidades. "Tentar
ocultar o número do seu carro é uma obstrução de justiça muito, muito séria. Agora,
seqüestro é pior ainda."

"Err..." Eu tentei inventar uma resposta "Mas não deve ser pior que David Hasselhoff e Rosie
O'Donnell transando, não é?"

O homem ficou embasbacado com a imagem mental que eu havia instalado em sua mente. Ou
então com o fato de eu ter pensado em alguma coisa tão idiota e tão sem a ver com o assunto
em questão. De qualquer forma, eu aproveitei a brecha para acelerar e tentar escapar de uma
multa e uma prisão.

Ele me perseguiu longa e arduamente (Por aproximadamente quinze segundos), atirando


frenéticamente. Eu teria escapado, mas quando se tratam de tiros, eu prefiro parar a porra do
carro. O homem novamente saiu do veículo, dessa vez com uma pistola em mãos.

Eu, já desesperado, procurei meu carro feito um louco para achar uma arma. Qualquer arma.
Embaixo do banco do motorista, eu achei uma colher. Não era muito, mas foda-se, era uma
arma. Eu saí do carro, colher em punhos, e tentando parecer o mais ameaçador quanto
possível.

Ele olhou para mim, exasperado, tentando se decidir se eu era insano ou se a colher era um
explosivo altamente avançado. Ele se decidiu pelo primeiro, e foi chegando cada vez mais
perto de mim. Eu brandi a colher, apontando para ele, e ele parou, apontando sua arma para
mim.

Na beira da estrada, aconteceu uma luta de nervos de proporções bíblicas. A minha colher
contra a pistola dele. Sansão contra Golias. Uma formiga contra um lobo. Luke Skywalker
contra Darth Vader. Qualquer ser humano na Terra contra Clint Eastwood. Um zebu contra um
Exterminador do Futuro. Um germe contra... Qualquer coisa.

O policial e eu nos encaramos por alguns segundos. Ele deu um passo para frente. Eu segurei a
colher com mais força. Ele deu outro passo. Eu comecei a suar frio. Ele chegou o mais perto
que pôde, e eu bati na testa dele com a colher.

"Ah! Seu filho da puta!" Ele xingou, enquanto me algemava. Por fim, eu passei a noite na
cadeia. Uma Sexta como sempre.

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Minha Noite de Sexta-Feira (Segundo
Testemunhas Oculares)

F ui acordado por um tapa na cabeça. Não era um tapa amigável. Não era nem ao menos o
tipo de tapa que te pague um jantar e flores antes de te estapear. Era um tapa
violentador de cabeças. E a vítima era minha nuca.

Movi minhas mãos de forma limitada, reconhecendo as familiares algemas prendendo meus
pulsos atrás da cadeira na qual me sentava. Olhei para o dono do tapa agressor, me
perguntando se eu poderia processá-lo por danos morais. Desisti da idéia: Era um policial, e
não uma mulher que gosta de ser “Dura”.

– Bom dia senhor Biancardine.


– Não me chame de senhor. – O policial fitou-me com raiva.
– E por que não deveria?
– Faz eu me sentir velho.
– Senhor...
– Quero dizer, eu sei que tenho um pouco de cara de velho, cabelos brancos, etc... mas eu não
sou velho!
– Cale a boca! – O policial me interrompeu, sendo rude como a maioria dos policiais que eu
conhecia.
– Pelo menos se desculpe pelo tapa que você deu na minha cabeça. Foi rude, e eu me senti
violentado. – Ele piscou duas vezes, não acreditando no que eu tinha acabado de falar.
– C... Como?
– Bem, você sabe. Eu não te dei permissão para me estapear. Não foi consensual. Foi um
estupro de tapas. – O policial levou a mão à face, balançando a cabeça.

A porta abriu com um estouro. Por ela entrou caindo uma mulher desajeitada, que também
usava um uniforme policial, o que era uma pena, pois ela era bem agradável aos olhos. Ela se
levantou, se desculpando. Ela parecia mais amigável e disposta a engolir minhas idiotices,
então eu me concentrei em conversar com ela.

– Senhor Biancardine...
– O que eu disse sobre me chamar de senhor?
– SENHOR Biancardine, esta é minha parceira, Lúcia.
– Olá, Lúcia – Eu esbocei um sorriso na escuridão da sala de interrogação.
– Boa tarde, boa tarde.
– Espere! Já é de tarde?
– Sim, são quatro e meia da tarde.

– Huh – Eu cocei meu queixo da melhor forma que podia enquanto algemado, pensativo –
Meu editor irá à loucura tentando me encontrar, então.
– Você quer ligar para ele? Nós te damos quinze minutos – Lúcia ofereceu, obviamente sendo
a policial amigável da dupla.
– Não, não. É divertido aterrorizar o Paulo.
– Bem, Sr. Biancardine, há uma boa chance de que o seu editor esteja morto.

Um silêncio tomou conta do quarto. Lúcia colocava objetos na mesa, com certo medo de tocar
em alguns. Era compreensível. Metade dos objetos que eu possuo são mandados para serem
queimados depois que eu me desfaço deles.

49
– Como... Como que ele morreu?
– Com isso – Ele levantou um pedaço particularmente grande de algodão doce, que parecia
suculento.
– Ah. Então ele morreu de forma honrosa... Tendo um ataque cardíaco?
– Não. A máquina de algodão doce que o senhor roubou de uma feira explodiu no seu
escritório, segundo quinze testemunhas. A explosão matou metade de seus colegas de
trabalho, e machucou severamente os colunistas e seu editor, que estão num hospital.
– Ufa! Ainda bem. – O policial que ainda não me disse seu nome me olhou torto.
– Bem – Eu expliquei – É que o Paulo sempre quis morrer... Sendo explodido por algodão doce.
– Mas e a hiena que você mantinha numa jaula embaixo do escritório de um tal de “Sandro”?
– Bem, em minha defesa, o Sandro sempre ficava rindo de tudo, então ele nunca percebeu a
hiena que eu mantive embaixo da cadeira dele por um ano.
– Sim, Sr. Biancardine, esse é o problema. Você manteve um animal ilegal embaixo da cadeira
do seu colega, sem comida e sem água. É um milagre que ela tenha sobrevivido por dois anos.
– Só se você chama os hábitos alimentares do Sandro um “Milagre”. – Eu sorri, tentando ser o
mais charmoso quanto possível. Aparentemente não funcionou, mas eu consegui improvisar
uma piscadela para Lúcia, que anotava tudo veemente.
– Senhor Biancardine... – Ele continuou, ficando sem paciência. Meu estômago roncava –
Quando a máquina de algodão doce explodiu – Ei, o algodão ainda estava em cima da mesa.
Será que eu conseguia comê-lo sem o policial perceber? Bem, se não tentasse, eu nunca iria
descobrir – A gaiola da hiena se soltou. E ela, faminta, começou a devorar os seus colegas e...
Afinal, mas que merda o senhor está fazendo?! – Ele interrompeu seu discurso quando me viu
debruçado sobre a mesa, comendo o algodão doce.
– Eu estou com fome.
– Escute. A sua hiena devorou oito pessoas antes que pudéssemos prendê-la.
– Hey, ela nunca foi minha. Era do Sandro. Prendam ele.
– Ele está no hospital. A hiena lacerou severamente a genitália dele. – Nesse momento, eu caí
da cadeira rindo.
– Ah! Uau! Que... Uau! Genial. Genial. Simplesmente genial... – Eu disse, enxugando as
lágrimas com minha camisa de tanto rir. – A ironia é uma coisa cruel, não é, oficial...
Bochechas?
– Bochechas?
– Você nunca me disse seu nome, então eu estou inventando um para você.
– Meu nome é Hugo.
– Tarde demais, Bochechas.
– Ugh. Dane-se. Senhor Biancardine, não só você explodiu boa parte do prédio aonde você
trabalhava, como também sua hiena devorou oito pessoas. Uma delas sendo um dos políticos
mais respeitados da região.
– Espere, vocês me trouxeram aqui para me parabenizar?
– Não! Suas ofensas são muito sérias, senhor Biancardine. E o que você tem a me dizer disto? –
Ele levantou um... Quadrado. Parecia pesado, e era preto.
– O que diabos é isso, Bochechas?
– Pare de me chamar de Bochechas. Isto é o objeto que você, e eu cito de uma de nossas
testemunhas, “Usou para matar a hiena que estava mastigando o corpo de uma mulher, e
então usou a pele da hiena como cinzeiro. Depois disso, ele perguntou se a mulher gostaria de
‘Ir dançar com ele e o Jaguar nas suas costas’. A mulher correu, e o homem começou a xingá-
la, jogando a pele de hiena coberta com algodão doce no esgoto.”
– Como vocês podem saber que era eu?
– “O homem tinha mais ou menos um metro e meio de altura, cabelos castanhos, com
algumas mechas destoadas, usava uma jaqueta de couro com uma camisa do Pink Floyd, e
uma calça Jeans levemente rasgada.”

50
– Ainda não estou convencido – Eu retruquei, cobrindo minha camisa do Pink Floyd o melhor
que podia enquanto algemado.
– “Então ele bebeu uma garrafa de Jack Daniels enquanto perguntava se alguma mulher
gostaria de ‘Aprender como que se fazem as coisas na estrada.”
– Ok, era eu. Mas eu nego todo o resto!
– Escute aqui, seu pedaço de... Escute. Você matou várias pessoas, traficou uma hiena, foi
cruel com tal hiena, e ainda por cima expôs-se para diversas mulheres. O que você tem a dizer
em sua defesa?
– Eu só quero um pouco de algodão doce, estou morto de fome... – O Bochechas atirou o
quadrado preto na minha testa. Eu estava certo, ele era pesado.
– Esqueça a porra do algodão doce! Você vai passar anos na cadeia, seu degenerado!
– Mas... Eu sou jornalista!
– Jornalista? – Bochechas e Lúcia trocaram olhares, preocupados – De qual... Jornal?
– Jornal Opinião. Eu sou um colunista e escrevo crônicas de comédia.
– Ah. Bem, senhor Biancardine, porque nós não esquecemos esse episódio, e você vai escrever
bem sobre a gente?
– Com uma condição – Eu aproveitei a oportunidade, claro –: Eu quero esse algodão doce. Ah,
e se puder me dar o telefone da Lúcia ali, eu ficarei muito agradecido. – Eu pisquei para ela,
que retribuiu a piscada. Sorte a minha, acho.
– Eh... – O Bochechas levou uma das mãos à face, não acreditando no que iria fazer. – Tudo
bem. Aqui o algodão doce. Vou tirar suas algemas... – Ele tirou minhas algemas – E você está
livre para ir embora.
– Hey, se importa se eu ficar com as algemas? Eu conheço uma amiga que irá adorá-las.
– VÁ DE UMA VEZ! – Eu considerei isso como um sim, e saí correndo.

51
Revelações, Bariloche e Outras Insanidades

"P
essoal, isto é muito, muito sério." Meu editor gritava com a equipe, sem piedade.
Eu, no entanto, estava furiosamente ignorando-o, pois quando seu editor grita com
você, a melhor coisa a fazer é ignorá-lo: Ele fica impotente e irritado, que nem
quando alguém castra um filhote. A diferença é que eu sinto pena de castrar filhotes, claro.
"Se nós não conseguirmos mais publicidade, nós vamos falir!" - Com essa frase, eu tive uma
epifania. Uma realização que mudaria minha vida para sempre, e que eu nunca poderia voltar.
Eu me levantei, assustando a todos na sala que acreditavam que eu estava em um coma
alcoólico – Isto é, todos – e gritei com todos os meus pulmões minha epifania:
"Espere um minuto! Eu tenho dinheiro suficiente para fazer uma viagem!" E saí correndo do
prédio, decidido. Dirigi furiosamente até o aeroporto mais próximo – Uns cinqüenta
quilômetros, se não estou enganado – E comprei a primeira passagem que pude para
Bariloche. Então eu esperei doze horas até o horário do meu vôo, porque comprar passagens
de última hora não funciona que nem nos filmes.
Duas horas antes do vôo, eu fui fazer o Check-In. Entreguei a bagagem de roupas de
emergência que sempre deixava no meu escritório – Ela continha cinco trajes de roupa para
calor e frio, um frasco pequeno de viagra e um pacote de camisinhas. E também Jack Daniels,
claro – E levei a bagagem de emergência que roubei do escritório do meu editor – Não sei o
que de fato ele guardava na bagagem, mas não resisti à tentação de roubar alguma idiotice
dele.

"Senhor..." O segurança do detector de metais chamou minha atenção depois que eu tentei
atacá-lo com um guarda-chuva que eu achei não-sei-aonde quando ele tentou pegar minha
mala de mão. Ele era surpreendentemente atencioso e gentil "Por favor, ponha sua bagagem
de mão no Raio X e passe pelo detector de metais, antes que eu decida que você é um
terrorista e resolva atirar na sua cabeça por 'Defesa Própria', ok?" Extremamente atencioso e
gentil.
"Promete que não vai roubá-la?"
"Sim, eu prometo."
"E muito menos falar para meu editor que eu a roubei?"
"Si... Espera, o quê?"
"Nada, nada. Vamos ao detector."

Eu sei que muitos de vocês provavelmente já previram como vai acabar essa história, mas
vocês todos estão errados. "Por que?", vocês perguntam? Porque a Sorte me ama. Ou amava
até eu prometer que ligaria na manhã seguinte e nunca mais falei com ela. A Sorte é
surpreendentemente vingativa.

Eu passei pelo detector de metais, sem um pingo de problemas. Já estava começando minha
"Dança Metálica da Vitória" – Criada exclusivamente para o acaso de se passar por um
detector de metais sem o mesmo apitar, ou para a improvável relação sexual com um
andróide de Blade Runner... Ou qualquer andróide, pra falar a verdade –, que consistia em
uma dança metade erótica e metade "Dança do Robô" e completamente inapropriada para
qualquer lugar, quando o segurança voltou a chamar minha atenção.

"Senhor, poderia, por favor, abrir sua bagagem de mão?"


"Eh..." Eu hesitei. Eu não sabia o que estava na bagagem de mão do meu editor, mas eu
conhecia o Sérgio (Ou Paulo. Ou Ramón. Ou Hans... Acho que começava com "X"): Deveria ter
no mínimo, uma AK-47 para minha eventual insanidade estilo O Iluminado "Tudo bem." E abri
a mala. Assim que eu vi o que havia dentro, eu lancei para tal conteúdo o mesmo olhar que

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lançaria para um ornitorrinco sodomizando um elefante, ou para algum livro de Stephenie
Meyer: O de nojo horrorizado.

Provavelmente, vocês devem estar curiosos para o que tem dentro da mala. Mas eu respeito
muito o Gustavo (Ou Caio, ou Xenu, ou...), e ele me respeita muito também. Eu nunca seria
capaz de discreditá-lo neste texto, e muito menos interferir com sua privacidade ao divulgar o
conteúdo da mala dele, então eu sinto muito, mas eu não vos direi o que havia na mala.

"Três garrafas de lubrificante..." O segurança vai fazer isso por mim "Um par de algemas..."
Então ele suspirou, e completou a lista "E um frasco de viagra" Hey, desastres acontecem em
qualquer lugar "Isso é algum tipo de piada, ou você realmente pretendia passar com... Isso por
aqui?" Ele apontou para o frasco de viagra, estranhamente, então eu notei-o com mais
atenção: Era alto, muito mais alto que eu, tinha um cabelo castanho: Um pouco como o meu,
só que menos cinza, e seu sotaque alemão (Ou poderia ser australiano, sou péssimo com
sotaques) o tornariam o garoto propaganda da "Raça Superior" (Ou da censura australiana).
"Como você justifica tudo isso?"
"Bem, é que..." Eu tentei inventar uma resposta inteligente, sofisticada, hilária e que me
deixasse sair sem culpa "Meu amigo, ele..." E assim que falhei, tentei culpar outra pessoa.
"Ah!" Os olhos do segurança se acenderam como chamas. Ou, para ser menos clichê, como as
calças do meu amigo que, depois de beber o máximo que achava humanamente possível,
olhou para uma vela e me disse – Ou melhor, me berrou – "Ei! Tive uma idéia genial!"
"Entendi." Ele continuou "Entendi completamente... Vocês dois são... Um casal?"
"Mas hein?!" Eu tentei compreender o que diabos ele quis dizer com aquilo "O que diabos
você quer dizer com isso?!"
"Você e..." Ele deu uma olhada para as algemas "Seu amigo."

Eu me deparei, horrorizado, com duas escolhas: Ou eu era "inspecionado" pelo segurança, ou


eu fingia ter um "Amigo" que me inspecionava. Obviamente, eu fui com a segunda opção.
Meia-hora – E um telefone com os dizeres "Me liga!" que eu nunca iria em minha vida discar –
depois, eu estava no meu assento, indo para Bariloche.

Em Bariloche, eu passei quinze segundos aproveitando o frio, oito aproveitando a neve, doze
tendo a idéia de manchar a neve com meus fluidos corporais, um minuto manchando a neve
com meus fluidos corporais, doze minutos sendo perseguido pela polícia de Bariloche por
exposição em público, três dias na cadeia e quatro esperando para ser deportado de volta para
o Brasil.

Dou para Bariloche três estrelas de dez.

***

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Missão Possível Porém Altamente
Improvável: Invadindo os Estúdios da Globo
RJ

"E
vocês vão ficar aí até resolverem suas diferenças, ou um devorar o coração do
outro, emergindo vitorioso. Entenderam?" E tranquei a porta da Sala de Discussões.

A Sala de Discussões era um escritório pequeno abandonado, que muitos diziam ser mal-
assombrado. Eu discordava disso, pois já dormi naquele escritório várias vezes, e só acordei ao
lado de uma mulher transparente uma vez (Ou poderia ser uma modelo anoréxica, eu nunca
sei a diferença). Uma vez, quando eu estava com uma ressaca infernal, eu ouvi um casal
gritando nos cubículos aonde ficavam os jornalistas (Todos os colunistas do Jornal Opinião
dividem um escritório, pelo simples fato de que os jornalistas têm medo de ficar perto de mim
- E não sem motivo, devo admitir).

Eu fui para o escritório dos colunistas, dando um tapa no Fabiano e um soco no Sandro (Era
Segunda-Feira, então eles com certeza fizeram algo para merecer. Especialmente o Sandro), e
me sentei na minha cadeira, notando a ausência de gritos horrorizados por parte dos
discutintes (Eu havia contrabandeado um tigre para a Sala de Discussões).

"Victor" Meu editor, Sérgio (Eu anotei o nome dele em sua testa com um marcador
permanente para que pudesse me lembrar) chamou minha atenção. Eu atirei o meu
grampeador nele, que habilmente desviou, já esperando o ataque. "Você soube que um dos
atores da novela RETIRADO PELA GLOBO POR MOTIVOS DE COPYRIGHT foi pego roubando?"
"O quê?!" Eu pulei na cadeira, ainda atirando coisas aleatórias no Sérgio. Uma vez, eu o
ataquei com um guaxinim "Ele foi preso?"
"Não, e - Ah, pelos céus. Ponha ele no chão!" Eu olhei para o que segurava acima de minha
cabeça. Era um dos estagiários, horrorizados. Ele havia urinado em si mesmo. Sem dar ouvidos
à Sérgio, atirei-o no chão. Era um estagiário, afinal de contas.
"Eu não sei como que você evita processos judiciais." Sérgio levou a mão à face.
"Eu tenho uma amiga que é uma juíz... E uma amiga que é policial... E uma amiga que é
advogada."
"Ah. Isso explica. Falando nisso, eu vi que você trancou dois jornalistas na Sala de Discussões."
"Sim," Eu cocei o queixo, ainda tentando ouvir o grito de terror dos dois "Mas acho que o tigre
ainda não acordou."
"Eu doei o tigre para um zoológico ontem."
"Você doou o Sr. Bigodes?" Eu estendi a mão, indo pegar meu guaxinim no palito e fazendo
Sérgio ficar nervoso.
"Nós tivemos que" Ele girou as mãos como se "Nós" fosse um termo para "Eu estava morto de
medo do tigre".
"E o lêmure? Você também doou o lêmure?"
"Não. Minha filha adora ver ele, então deixei ele ficar."
"Ufa."
"Por que, 'Ufa'?" Sérgio desconfiou de minhas intenções, não sem motivo.
"Nada, é que hoje de manhã eu dei Ecstasy com LSD para o Lêmure"
"Você..." Nesse momento, um grito de horror terrivelmente satisfatório percorreu o andar
"Você deu Ecstasy e LSD para o lêmure? Por que?"
"Hey, e você doou o Sr. Bigodes. Estamos quites. E o porquê, meu caro amigo Sérgio, é que eu
estou treinando ele. Toda vez que ele atirar fezes em você, eu vou dar para ele a dose preciosa

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dele. Mas para isso, claro, eu tenho que viciá-lo."
"Biancardine" Sérgio levou a mão à face novamente "Lêmures não atiram fezes. Babuínos
atiram."
"Ah. Entendi. Podemos contrabandear um babuíno?"
"Não." Nesse momento, eu bati no Sérgio com meu Guaxinim no Palito (Para ser patenteado)
"Bem, estou indo nessa, Sérgio."
"O quê? Aonde você vai?"
"Globo. Vou rodar essa matéria, e vou conseguir algumas entrevistas."
"A matéria do roubo? Mas o ator simplesmente roubou um pedaço de goma de mascar!"
"Foda-se! Eu quero uma crônica, e essa será ela!"

Eu vesti meu fedora e sobre-tudo (Apesar do calor infernal, eu gosto de me vestir como um
jornalista sério), e fui para as ruas (Ruas lendo-se: "Estúdios da Globo"). Dirigi meu ônibus
(Leia-se: Sentei ao lado de um mendigo se masturbando e de uma mulher obesa que ficava
dormindo no meu ombro) até os estúdios, e assim que entrei, pensei nas alternativas que
tinha para conseguir uma entrevista sem ser nocauteado e ter um de meus rins roubados (De
novo).

Após vários minutos (Três segundos, que foi o tempo que levou para eu tomar um bom gole de
Jack Daniels), eu corri em câmera lenta para dentro dos estúdios, firme na minha esperança de
ser um filho bastardo de David Hasselhoff, e ter herdado os poderes mágicos dele de
Baywatch. Para meu desapontamento, não havia uma Pamela Anderson para me dar
assistência.

"Eh... Com licença, senhor?" A secretária interrompeu minha corrida em câmera lenta até a
porta. Aparentemente, eu não sou filho de Hasselhoff. Eu tentaria correr pelas paredes feito o
Neo, mas a idéia de ser filho de Keanu Reeves me apavora.
"Sim?" Eu abri o sorriso mais encantador que podia. Ela ficou vermelha. Excelente sinal.
"Senhor, aonde estão suas calças?" Eu olhei para baixo, e me vi de cuecas e sobre-tudo.
Felizmente, ainda estava de fedora.
"Eu vendi para comprar uma passagem de ônibus" Infelizmente, eu não estava mentindo.
"Eh... Por que?" Ela ficou ainda mais vermelha. Aumentei meu sorriso.
"Sou jornalista." Respondi, simplesmente.
"Ah, compreendo."
"Então, eu posso entrar?"
"Pode." Eu pisquei os olhos, incrédulo.
"Jura? Quero dizer, eu sei que posso, mas... Se importa de dizer o porquê?"
"Bem... Você não está aqui pelo tour?"
"Sim! Claro! O Tour! Sabe, se eu não tivesse meu caderno de anotações" Eu mostrei um
guardanapo manchado de cerveja com alguns rabiscos nele "Seria incapaz de escrever uma
matéria sequer."
"Bem," Ela deu uma risada. Excelente sinal "O grupo já saiu, mas acho que você ainda pode
alcançá-los se correr."

Eu dei um último "Até mais" para a secretária, e, quando ela disse "Não" para minha pergunta
sobre irmos num local aonde não haviam câmeras de seguranças (Mas hey, ela me deu um
"Mais tarde, quem sabe" também, então é meia-vitória), fui até o camarim do ator ladrão da
maneira mais discreta quanto possível. Um esforço provado inútil, já que eu estava
cantarolando a música do Missão Impossível.

Quando eu estava na porta do ator, eu dei dois toques na porta. De dentro, veio a voz "Quem
é?". Pensando rápido, eu respondi "Serviço de quarto" (A Globo tem um serviço de prostitutas

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que são entregues à domicílio, né?). Após um silêncio desconfortável, a voz respondeu
fracamente: "Entre." Com um pulo, eu abri a porta do quarto, praticamente berrando "Como
você se sente sendo um ladrão de goma de mascar?". Então tudo ficou escuro.

Eu acordei horas depois, numa banheira cheia de gelo. Na minha testa, estava um bilhete
dizendo "Melhoras" com o símbolo da Globo logo abaixo.

... Filha da mãe.

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Insira Texto Provocativo Aqui

E u acordei. Estava escuro. Ao fundo, alguns sons se faziam ouvir. Eu abri os olhos. Ainda
estava escuro. Eu levantei uma mão. Não estava amarrado. Ok, então eu já estava
parcialmente bem. Tentei levantar uma perna. Não consegui. Estava sentado, com as
pernas presas. Provavelmente era refém de algum vilão do mal, ou robô. Ou, se minha sorte
estivesse se sentindo alegre (Leia-se: Dopada), uma mulher sem muitos escrúpulos e que iria
me manter refém para chantagear meu jornal, e dividir o lucro comigo.

Então uma luz se acendeu, destruindo tanto minha fantasia da mulher chantageadora quanto
minha ilusão de não estar de ressaca. Eu xinguei alto, conforme esfregava meus olhos com
desdém. Olhei para o que estava prendendo minhas pernas: Minha mesa.

"Bom dia" Era o Sérgio, meu editor. O que diabos ele estava fazendo na minha casa/calabouço
aonde eu estava aprisionado?
"Não grite. O que diabos você está fazendo na minha casa? Ou neste calabouço?"
"Bem, você está metade certo. Você está no seu escritório. Passou a noite aqui."
"Ah. Eu estava acompanhado?"
"Sim, claro. Por três super-modelos e a Scarlett Johansson" Ele sempre sabia quando mentir
para me agradar.
"Faz sentido." Mas eu nunca iria deixar ele ficar feliz em me agradar. Que tipo de amizade seria
essa? "Me passe meus óculos, por favor."
"Aqui." Ele me passou meus óculos, daonde faltava uma lente. Maravilha. De qualquer forma,
os coloquei, fingindo não perceber a lente faltando. "Sabe, os jornalistas estão começando a
achar que você tem glaucoma."
"E por quê eles achariam isso?"
"Por causa de... Você sabe, quase sempre estar de óculos."
"Ah. Bem, melhor do que acharem que sou alcoólatra." Eu tinha um acordo com Sérgio: Se ele
me chamasse de alcoólatra, seria jogado aos tubarões convenientemente colocados no
piscinão de ramos (Uma pessoa faltando, duas... Quem iria notar? De fato, eu sinto pena é dos
tubarões) "Me passe um café, vai."
"Aqui, com muito açúcar"
"Obrigado, secretária."
"Cale a boca." Eu tomei um gole do café. Precisava de mais açúcar, e estava quente demais.
Murmurei uma coisa sobre açúcar, e coloquei-o no Lucas, minha mesa (Devido a cortes no
orçamento, fomos obrigados a promover nossos estagiários para mobília). Ele tremeu um
pouco com o calor, mas depois se manteve firme.
"Então, o que te traz até mim nesta adorável Quinta-Feira de tarde?" Eu sorri da maneira mais
falsa que pude.
"É Terça-Feira, são nove da manhã, e você ainda não me entregou sua crônica para amanhã."
Merda. Eu tinha esquecido completamente dela.
"Merda! Steve, seu computador inútil!" Eu dei um tapa na cabeça de Steve, o estagiário que
era meu computador na hora de escrever. Ainda bem que não era Júlya, a estagiária que era
meu computador na hora de ver pornografia. Eu já posso ser preso por muitas coisas, mas
preferiria que "Espancador de mulheres" não estivesse na lista. "Está demitido!" Os olhos dele
se encheram de esperança.
"Jura?!"
"... Não." A esperança dele foi completamente destruída, como sempre. "Agora vá me trazer
mais açúcar, e, depois disso, se espanque no corredor."
"Victor, é sério. Você precisa me entregar a crônica até hoje de tarde."
"Hey, chefe" Sempre que eu estava prestes a fazê-lo levar a mão à face, eu chamava-o de

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chefe. Ele já havia preparado sua mão "Se importa se eu fizer uma crônica erótica?" E bam! Ele
levou a mão à face.
"Óbvio que eu me importo. Você não pode fazer uma crônica de sexo."
"Isso é algum tipo de censura?!" Me levantei da Cyrlene, que caiu no chão, exausta, e fitei meu
chefe.
"Victor, você sabe que não pode fazer nada explicitamente sexual. Você já vem forçando a
barra ultimamente. Relaxe um pouco. Escreva sobre... Gaivotas." Eu gostei da idéia.
"Gaivotas? Parece uma boa idéia."
"Viu? Não é tão difícil."
"Uma orgia de gaivotas no meio do oceano Pacífico... Ou Atlântico? Em qual oceano têm
gaivotas? Espera, gaivota é um peixe, certo?"
"Biancardine..."
"Você está me censurando!" Eu gritei, trazendo a atenção de todos os jornalistas, colunistas,
estagiários, mendigos que alugavam nossos estagiários como camas (Exceto pelo mendigo-
colunista Sandro, que estava dormindo profundamente sobre Fábio)
"Hey, hey. Não estou te censurando. Apenas te pedindo para ser razoável."
"Não, Sérgio. Essa foi a última gota. Agora é pessoal. Agora é uma questão de honra! De
liberdade de expressão! De pornografia jornalística! Você e eu, um duelo. Aqui, agora."
"Você deve estar brincando"

Não houve resposta. Eu fiz a cara mais assustadora que podia, enquanto fitava-o furiosamente.
Ao fundo, um grupo de estagiários levemente afinados entoavam The Trio de Ennio Morricone
(Cortes no orçamento nos obrigaram a vender nosso sistema de som 5.1, junto com alguns
CD's do Fabiano. A maioria eram álbuns repetidos do Justin Bieber, então não houveram
muitos protestos - Exceto do próprio Fabiano, claro) Em um momento de tensão semi-nula,
Sérgio e eu nos encaramos. Eu me preparando para atacá-lo com Caio, o ex-segurança que
resolveu fazer jornalismo, e ele pensando se o seguro dele cobria ataques de colegas de
trabalho claramente insanos insanos.

Por fim, ele riu, e eu atirei o Caio em cima dele (Leia-se: Ameacei Caio com uma ordem de
demissão e obriguei-o a se jogar em cima do Sérgio). Ele desviou completamente do
destrambelhado, e balançou a cabeça, obviamente reprovando meus métodos de tratamento
com estagiários.

"Ok, dane-se. Faça sua crônica erótica. Eu vou editar todo o conteúdo pornográfico fora de
qualquer forma."
"Isso!" Eu comemorei. O grupo de estagiários encarregados de cantarem então começaram a
entoar Don't Stop Believing, que era a música errada (A correta seria Eye of the Tiger). Eles
seriam demitidos por tal incompetência. Ou então obrigados a cantar Lady GaGa em frente à
casa do Sérgio durante uma noite inteira, ainda não me decidi. "Obrigado, Sérgio! Você não vai
se arrepender!"
"Não vou?" Ele pareceu confuso.
"Er... Ok, você vai. Muito. Mas ainda assim, vai ser divertido!" Ele me olhou, sem esperanças.
Não iria ser divertido. Por fim, ele saiu, me deixando a sós com minha possível genialidade. Eu
tinha a chance de escrever a crônica erótica do século!

Sentei-me na minha nova cadeira, Karen (Quem foi que disse que sou cruel com estagiários?) e
chamei ambos meus computadores. Então minha mente ficou em branco. Toda aquela
inspiração possivelmente pornográfica havia sumido. Nem mesmo com o auxílio de Júlya a
situação melhorou. Mas, por final, sendo o homem calmo e sensato que sou, eu escrevi uma
crônica (Esta, e só depois de ter gritado tanto com meu computador que ele começou a
chorar). Semana que vêm, quem sabe, eu não escrevo a crônica erótica? (Nota do editor:

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"Não, não vai." Já disse que meu editor é um tirano que censura a verdadeira arte?) De
qualquer forma, espero que tenham apreciado esta crônica. E, se algum de vocês for do
departamento de direitos humanos e tiver ficado chocado com meus métodos de treinar
estagiários... Bem, terão que passar pelo meu castelo construído com carteiros antes.

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Chanel

E ntrei num bar. Era um bar qualquer, que tinha o cheiro que todo bar deveria ter: Vômito.
Sentei no balcão. O cheiro fétido faria qualquer cérebro alarmar seu dono que ele
deveria “Dar no pé”, mas, felizmente, essa habilidade já estava suprimida no meu.

Ao meu lado – Que, devido ao cheiro, fui obrigado a olhar, tentando tirar minha mente já não
tão funcional dele –, estava uma mulher que, eu aprendi, não queria conversar, e um homem
de cabelos “Seda”, e roupas da marca “Ecko”, que me fizeram olhá-lo com certo desdém.

- Ei, a bebida daqui é boa? – Meu cérebro inebriado achou que seria uma boa idéia bater um
pouco de papo com alguém mais receptivo. O homem me olhou de cima a baixo, e, com um
certo desprezo, retrucou.
- Isso depende. Se você pagar pouco, não.
- Tudo bem, então. Eu irei beber um chope. Garçom, me vê um chope, e com colarinho, hein. –
Me senti como em um comercial besta da Brahma.
- Então – Eu me voltei para encher o desprezador ser ao meu lado. – Roupas de marca...
Devem ter sido caras.
- É... – Ele parecia assustado – Por favor, só não me machuca.
- Como?
- Leve o que quiser, só não me machuca.
- Não vou te roubar, cara. Só estava batendo papo. Sabe, conversa.
- Ah... Então que diabos você quer?
- Não faço idéia. Só achei uma boa idéia tentar conversar.
- Por quê?
- Não faço idéia.
- Ah.
- Enfim, por que você está bem vestido num bar que cheira a vômito?
- É sempre bom se vestir bem, e eu levei um fora.
- Ah. Foi mal. Isso passa.
- Passa?
- Eu sei lá. Dizem que sim. Eu nunca vi passar.
- Continuamos falando do mesmo assunto?
- Provavelmente – Ele me olhou com cara de desentendido. Achou que eu estava bêbado,
claro.
- Tá, deixa eu beber em paz. Você é meio estranho.
- Eu sou estranho? Você que tá com seu cabelinho Seda.
- Bem, eu – Ele parou. Ecoou um som de “Beep” no bar, e ele rapidamente pegou o celular.
Nokia, “N95”. Tinha que ser. Deu uma risada, e digitou algo. Depois guardou o telefone.
- “Bem, eu” o quê?
- Como?
- Você ia dizer alguma coisa – Franzi a testa. Não dá para se manter uma conversa – Por mais
fajuta que seja – assim. Precisava de pelo menos um pouco de consistência.
- Ah. Claro. Eu ia dizer que meu cabelo não é Seda, é L’oréal.
- E isso lá faz diferença?
- Claro que faz! Seda é para cabelos mais longos, enquanto L’oréal é para cabelos curtos.
- Uau, esse é exatamente o tipo de conversa que eu geralmente tenho com uma mulher –
Comecei a ficar irritado.
- O que você quer dizer com isso?
- Nada. E quanto às roupas?
- São da Ecko. Importadas. É muito importante se vestir de acordo, pois afinal, a marca é o que

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representa sua personalidade, afinal, você não vive se for um barbudo sem cuidados... Que
nem você.
- Sabe do que mais, eu mudei de idéia. Me passa o relógio, isso é um assalto.

61
Jornada para o Inferno: Um dia sem
Eletricidade

1 º de Agosto 2010, 18:51

A eletricidade fora cortada há uns dez minutos atrás. Não é lá grandes coisas, ficar no
escuro. Meu cachorro, por exemplo, está adorando. Meu cachorro é um completo tarado,
aliás. De qualquer forma, acendi algumas velas e chamei a Carla pelo celular. Hmm... A bateria
está acabando. Quando a luz voltar vou ter que carregá-lo.

1º de Agosto, 2010, 18:54

Estou entediado. Estou entediado. Droga, que diabos se pode fazer quando está em casa sem
luz?
...
Bem, exceto isso. E mais, a Carla vai chegar em breve. Vamos ter bastante tempo para isso
mais tarde. Agora vou ficar atirando uma bola contra a parede para ver se meu cachorro vai
tentar atacar a parede. Ele não está atacando a parede, o maldito covarde. Vou obrigá-lo a
comer a bola, pois esta é a punição para os fracos. Epa, interfone. Deve ser a Carla. Hora de
fazer aquilo.

1º de Agosto, 2010, 18:56

Mas... Que... Diabos?! Estou jogando Banco Imobiliário com a Carla. BANCO IMOBILIÁRIO! Eu
já estava vestido para fazer aquilo(Ou seja: Nu), e ela ri e tira o jogo da mochila. Lembrete para
mim mesmo: Depois do Banco Imobiliário, jogar a Carla na minha cama e fazer tudo aquilo que
deveríamos ter feito em primeiro lugar. Epa, espera. Isso não se qualifica como estupro?
...
Acho melhor parar de beber agora.

1º de Agosto, 2010, 19:03

Maldição! Perdi no Banco Imobiliário. Para demonstrar o quanto estava feliz pela Carla, eu
derrubei a porcaria toda da mesa, e quase taquei fogo na casa. O triste é que eu quase tacar
fogo na casa é tão comum para ela que ela nem ao menos ficou surpresa. Acho que deveria me
desculpar, mas Ele me garantiu que era errado. Me garantiu que ela estava agindo de forma
horrível...

1º de Agosto, 2010, 19:43

Estou cansado. A Carla, depois de ter perdido de forma humilhante para mim na rodada que
tivemos de Banco Imobiliário e ter derrubado o jogo e quase tacado fogo na casa, me
convenceu a ir para a cama com ela. Eu sei que ela está me usando. Sei que ela está
planejando me trair... Eu posso jurar que estou vendo ela pegar uma faca da cozinha... Assim
como Ele me avisou que ela faria!

1º de Agosto, 2010, 19:44

Me tranquei no meu quarto, a Carla está me chamando, tentando me seduzir. Gritando


mentiras para meus ouvidos... Mas Ele está comigo. A Bola de Borracha para Cachorros... Ele

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fala comigo. Ele me ajuda, Ele nunca me trairia... Não como a Carla.
"Você pode trazer a luz..." Ele me falou.
"Você pode salvar a si mesmo..."
"Tudo que você precisa fazer..."
"É sacrificar... A Outra..." E Ele me falou.
"Mas..." Eu retruquei, não querendo sacrificar a Carla "Eu não quero sacrificar a Carla."
"Com a eletricidade de volta" Ele me ofereceu "A internet vai voltar a funcionar."
"Fechado." Eu sacudi a... Bola.

1º de Agosto, 2010, 19:53

Consegui! Hahaha! Depois de convencer a Carla que estava tudo bem, que o sangue na minha
cabeça era apenas uma pancadinha leve, e que o meu machado (Eu o chamei de "Jack", em
memória à um amigo muito querido... Que perseguiu a família com um machado) era apenas
decoração, eu a tranquei num quarto, nua, com meu cachorro. A vitória era minha, e agora a
eletricidade iria voltar.
"Seu TOLO!" Ele gritou comigo, as trevas emanando da bola para cachorros.
"O quê?"
"Você deve sacrificá-la! Você deve se banhar em seu sangue, se deliciar com sua carne! Você
deve se tornar uma arma de Cthulhu!"
"Sério, Cthulhu, o que diabos há com você e sacrifícios? Desde que você emanou sua presença
da bola de borracha do meu cachorro é 'Sacrifício isso, sacrifício aquilo, Botas de látex para
encomenda'."
"Você quer voltar a ter luz, ou não?"
"Eu quero. Mas não se preocupe, a Carla está trancada com meu cachorro."
"E?"
"E meu cachorro é um tarado... E ela está nua."
"Ainda assim, só a luxúria de um animal sendo realizada sobre a fonte não será o suficiente.
Apenas seu sangue será capaz de trazer a luz de volta!"
"Err... Tem alguma escolha que não envolva eu matar a garota que namoro? Sabe, aquela
velha do 'Não morda a mão que te masturba'?"
"TOLO!" E então as trevas saíram da bola de borracha e me envolveram... Um estupro de
trevas... Digamos apenas que, se isto fosse um filme de Hollywood, as "Trevas" seriam o cara
que fez Latrel em As Branquelas.

Dia do Apocalipse, 2012, 13:45, Rio de Janeiro, Ceará

Cthulhu me chama. Cthulhu me chama. Ele me odeia, ele me possui. Ele é o Grande Velho, o
Dominador Antigo, e ele me chama. Não há escapatória, estou à mercê das trevas. Nunca mais
verei Carla... Oh, Carla, o que fiz com você. Me perdoe. Me perdoe... Eu nunca conseguirei sair
daqui.

1º de Agosto, 2010, 20:03

A luz voltou, e eu finalmente posso parar de bater na parede. Maldita falta de luz. Abri a porta
da cozinha, e a Carla me deu um tapa. Meu cachorro abanou o rabo, e eu notei que a perna da
Carla tinha um líquido escorrendo por sua coxa.
"O que você estava pensando ao me trancar aqui na cozinha com seu cachorro?!"
E então, subitamente, tudo voltou. A briga. O sexo. A tranca da porta da cozinha da minha
namorada com um cachorro tarado que provavelmente trepou com a perna dela. Cthulhu.
"Bem..." Eu suspirei "Cthulhu me obrigou a fazê-lo. "

63
Runnin’ Wolves
Prólogo

O
cicatriz.
Sol se pôs no horizonte, dando lugar à chuva. Numa planície deserta, longe da estrada
de terra, encontrava-se um homem. Ele tinha cabelos curtos e negros, tinha um corpo
alto e magro, e por entre seus olhos, quase de encontro com seu nariz, estava uma

Ajoelhado, o homem olhava deprimido uma cova, que desportava uma simples cruz de
madeira amarrada com o que conseguiram achar no momento. Flores brancas estavam
depositadas na terra que cobria o corpo. Não havia uma lápide.

Ao longe, um trovão se fez ouvir, assustando o cavalo branco do homem. Ele se levantou,
tocou levemente na face de sua montaria, subiu, e partiu noite adentro, com a chuva zunindo
em seus ouvidos. Em sua mente, sorria uma pessoa.

Após algum tempo na estrada, ele chegou numa cidade. Já estava de noite, e ele estava
encharcado. Prendeu o cavalo perto de uma das casas, e entrou na mesma. Jogou o chapéu de
lado, e foi deitar na cama. No dia seguinte, a única coisa que lhe mantinha vivo o acordou,
chorando.

Capítulo Um

O Sol brilhou fraco na janela do quarto, iluminando um homem, sentado em sua cama,
com uma mulher do seu lado. Ele não lembrava o nome dela, e nem se importava.
Acendeu um cigarro, e vestiu suas roupas. Pegou suas coisas, e tentou abrir a porta do
quarto vagarosamente, sem fazer barulho. Não conseguiu.

- Walt? - A mulher acordou com o barulho.


- Walt, por que você já está vestido? Ainda é cedo.
- Adeus - O homem desenrolou alguns dólares, jogando-os na cama - E obrigado.

Foi embora, deixando a prostituta fazer o que quisesse com o dinheiro. Provavelmente iria
comprar bebidas. E ele sabia disso. Saiu da porta do bordel, lembrando subitamente que
estava em Carcaça Perdida, uma cidade mexicana. Procurou seu cavalo, que, para sua
surpresa, estava lutando contra um ladrão.

- Ei! Algum problema? - O homem gritou, assustando o ladrão.


- Gringo! O que diabos você quer?
- Esse - Ele apontou para o cavalo - É meu meio de transporte. A não ser que você queira
comprá-lo, eu recomendo que você suma da minha vista. Comprende, amigo?
- Ah, senhor, mil desculpas! Deixe-me... - O ladrão sacou seu revólver. O homem, no entanto,
foi mais rápido e atirou no braço dele.
- Tente uma gracinha dessa de novo, imbecil, e eu não serei tão bonzinho. Agora, seu rato, vá
embora.

O ladrão correu. O homem chegou perto de seu cavalo, acalmando-o. Alguns minutos depois,

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montou-o. Preparou-se para correr estrada afora, quando ouviu um grito em espanhol. Virou-
se, e tinham seis mexicanos, montados, e armados. O ladrão estava entre eles.

- Cabrón! Achas que pode simplesmente chegar en México e atirar num dos nossos? - O
homem não respondeu.
- És surdo? Talvez devêssemos então sujar esta linda estrada com seus sangue, o que achas?
- Eu não faria isso se fosse você, amigo.
- Ah, então tu sabes hablar! Escute, cabrón, dê-nos o teu cavalo, e nós não te matamos, que
tal?
- Escute, "Cabrón". Vocês vão dar meia-volta agora, e vocês vão me deixar em paz. Hoje é um
bom dia, e eu não quero estragá-lo tendo que matar vocês.

Os homens riram. Então sacaram suas armas, apontando para ele. O homem suspirou, jogou o
cigarro fora. Sacou o revólver, e atirou cinco vezes, antes que os homens pudessem reagir.
Logo após, todos exceto o ladrão estavam no chão, mortos.

- Ladrão... - O homem desceu do cavalo, andando até ele, com o revólver apontado para sua
cabeça.
- No! No, señor! No me mates! - O homem encostou o revólver na testa do ladrão.
- Ah, é? Me dê um bom motivo.
- Eu tenho dinheiro! Sim, tenho! E posso te dar! Todo ele! Só não me mate!
- Se dinheiro me salvasse, ladrão, eu não estaria nesse buraco, não é?
- Senhor! No! Por favor!
- Walter.
- Como?
- O nome. É Walter Burns.
- Por que... Está me dizendo seu nome?
- Acho rude matar alguém que nem ao menos me conhece. - Apertou o gatilho.

Walter subiu em seu cavalo, agora observando a estrada de terra atrás dele, manchada com o
sangue de seis vermes. Acendeu um cigarro, e saiu estrada afora, indo à noroeste, para perto
da fronteira americana. Perto da ponte que ligava México e Estados Unidos, saiu da estrada,
seguindo oeste.

Por fim, chegou num círculo de casas abandonadas e corroídas pelo tempo. Prendeu seu
cavalo perto do bar abandonado, e entrou. Foi recebido com risadas e gritos. Na mesa ao
centro, jogando poker, estava seu amigo de infância e criador da gangue, Mack. Sorriu,
contente de estar em casa.

- Walter! Achamos que você tinha morrido.


- Uma noite com uma prostituta, e eu já estou morto? Precisaria ser muito mais lento que isso,
Mack.
- Bem, bem... Ninguém se lembra direito das merdas que fizemos na Carcaça. O velho Hugo ali
acabou acordando na cadeia! - Mack riu. Walter juntou-se à ele, e em breve, todo o bar estava
rindo. Exceto por Hugo, que abaixou o chapéu.
- Então, Mack, você conseguiu o que queria na cidade?
- Se consegui? Consegui ainda melhor!
- Quer dizer que...
- Walter, o banco não só estava cheio de dinheiro, como também tinha isso - Ele abriu uma
carta em cima da mesa - Eu não sei o que diz, mas estava lacrado no cofre. Com certeza é algo
importante.

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Walter debruçou-se sobre a mesa, lendo o papel. Apesar de algumas manchas de sangue,
estava bem legível. Nele, lia-se: "Nove, Maio, 1889. Transferência monetária de New York à ser
executada por trem no dia Quatorze de Junho, com dinheiro a ser distribuido de bancos desde
Southplains até os bancos mexicanos com americanos."

- Mack! Isso é uma mina de ouro!


- Mina?!
- Eles vão trazer dinheiro de New York para cá! Para todos os bancos americanos e mexicanos
que fazem fronteira! Você tem idéia de quanto dinheiro é isso?
- Quanto?
- No mínimo, quinze mil. - Mack se engasgou.
- Quinze mil?! Quando vai ser isso, homem?!
- Em um mês, por trem!
- Haha! Walter, nós vamos nos esbaldar em dinheiro! Em um mês, estaremos mais que ricos!
Gangue! Três dias até conseguirmos tanto dinheiro quanto vocês acharam imaginável! Vocês
poderão comprar casas em Southplains e ainda ter dinheiro de sobra! - Então começaram a
celebrar.

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Capítulo Dois

-M ack! Se concentra! - Mack acordou, assustado. Walter fitava-o, irritado. Ele


olhou em volta. Estava no bar da cidade abandonada, justamente na mesa
principal, e a mais perto do balcão, aonde um bartender velho servia bebidas
para os seus companheiros.
- Hein? O que foi?
- Mack... - John se sentou em sua cadeira, se acalmando - Se nós vamos roubar quinze mil
dólares, nós temos que planejar.
- Planejar? - Ele riu - Pra quê? Vamos pular no trem, roubar o dinheiro, e matar quem ficar no
nosso caminho, como sempre fazemos!
- Boa idéia. Faça isso, e os canalhas vão ficar na nossa cola até estarmos seis palmos abaixo da
terra! São quinze mil dólares, de todas as cidades grandes da America até o México! Cruzar a
fronteira não vai nos salvar dessa vez.
- Então como vamos roubar essa porra? Você que começou com essa idéia em primeiro lugar!
- Tudo bem, tudo bem... - Walter se levantou - Eu vou pensar em algo.
- Aonde você está indo, babaca?
- Tenho que cuidar de outros assuntos - Ele pôs o chapéu - Não fique com ciúmes, eu voltarei.

O homem saiu do bar, ouvindo uma garrafa sendo jogada contra a parede e estilhaçada por
tal. Subiu em seu cavalo, e seguiu caminho, mantendo o Sol nascente no seu lado esquerdo.
No caminho, encontrou um coiote ferido. Ignorou-o, até que esse tentou atacá-lo. Então ele o
matou com sua faca.

Por fim, quando o Sol já marcava oito horas, ele chegou num pequeno vilarejo. Desceu de seu
cavalo, prendendo-o no poste mais perto. O vento carregava consigo uma sarça, quando ele
ouviu gritos. Gritos de uma mulher. Vindos de uma das casas.

De dentro da casa, saiu uma garota que aparentava ter quinze anos, e atrás dela saíram três
homens armados. Um deles pegou a garota pelos pés, e ela caiu no chão. Eles começaram a
tentar rasgar as roupas dela, e ela tentava jogá-los para longe de si. Por fim, Walter sacou seu
revólver e atirou para cima.

- Fora.
- O que?
- Fora. Vocês.
- Isso é uma brincadeira, gringo?
- Não, não é uma brincadeira. Saiam daqui, antes que o cemitério da vila ganhe três novas
lápides.
- Gringo, ela é novinha. Consegue agüentar nós quatro. Por qu - Walter atirou nele. Um deles
tentou atirar de volta, apenas para levar o mesmo destino do companheiro. O último tentou
correr, e levou um tiro na perna.
- Agora... - Ele tocou o revólver na cabeça do homem.
- Não! - Ele implorou, começando a chorar.
- Ugh... - Walter expressou desgosto, e então se virou para a garota - Você está bem?
- Sim, estou. Obrigada, pai. Você chegou bem na hora. Você vai...
- Não sei. Ele definitivamente merece uma cova.
- Por favor, não mate ele.
- Você sempre foi boazinha - Ele suspirou. - Tudo bem - Ele tirou o revólver da cabeça do
sujeito, e então atirou em sua genitália, fazendo o dono dela gritar de dor, e se arrastar para
longe - Mas vou ter certeza que ele nunca mais fará algo desse tipo. Aliás, por que esses

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homens estavam atrás de você?
- Por que eu...
- Por que ela estava no bar! - Ela foi interrompida por uma mulher. Era uma mulher um pouco
mais baixa que Walter, obviamente latina, mas que falava inglês fluentemente. Seu cabelo
negro e olhos verdes sempre atraíram Walter.
- Estava no bar?! Mas que diabos você estava fazendo no bar?!
- Eu estava...
- Ela estava bebendo!
- Be... - Ele gaguejou, começando a gritar - Bebendo?! Você enlouqueceu?!
- Como se você pudesse falar! Você matou esses homens, lembra?! - Ao ouvir, Walter
suspirou, sentando-se na calçada de madeira perto de uma das casas.
- Escute, Allie, o motivo que eu não quero você bebendo em bares, morando perto da
gangue... É que eu não quero que você cometa os mesmos erros que eu. Por isso que eu tento
tanto conseguir dinheiro, para que possamos deixar essa vida toda para trás. Entende? - Allie
ficou quieta.
- Allisson - A mulher começou - Vá para casa tomar um banho, essas roupas estão fedendo à
álcool.

Allisson obedeceu, entrando em casa, e deixando escapar um resmungo. A mulher sentou-se


ao lado de Walter, que esfregava o suor da testa com desinteresse. Ela abraçou-o, e foi atrás
da filha dele. Walter agradeceu aos céus por uma mulher como Eva, e passou o resto do dia na
cidade.

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Capítulo Três

W alter estava na cidade de Deadhorse, sentado do lado de fora do Saloon. Olhava a


estação de trem com certo interesse. Na estação, além da cabine de bilhetes, o
banco para pessoas se sentarem, ele viu que o vendedor de bilhetes tinha espaço
extra embaixo do balcão. Ele acendeu um cigarro, e o trem parou na estação.

- Máquinas extraordinárias, não concorda? - Um desconhecido falou com ele, assustando-o.


Logo em seguida, sacou seu revólver, apontando para o queixo do homem de pé. Ele usava
terno e gravata.
- Eu não atiraria se fosse você.
- Ah, é? Por que não?
- Por isso - Ele sentiu um objeto tocar em sua nuca, parecendo uma pistola. E definitivamente
era.
- Muito bem... Dois contra um. - Walter guardou sua arma, e o outro homem fez o mesmo -
Acho que é melhor não morrer hoje. O que você quer, pomposo?
- Eu? Bem, eu quero um salário mensal de três mil, uma casa em Nova York, e você numa cova
rasa. - Walter ameaçou sacar o revólver novamente - Mas não se preocupe, Walter. Eu
trabalho para alguém que quer conversar com você.
- Bem, eu não poderia recusar um convite tão agradável. Ainda mais quando ele usa terno!
- Muito engraçado. Siga-me, rapaz, antes que eu resolva me agradar.
- Se você não me dá escolha, tudo bem.

Entraram pela cidade, caminhando calmamente. O Sol começava à se pôr no horizonte.


Seguiram a estrada principal, passando pela cadeia, alguns prédios, o prestíbulo, e, por fim,
uma pequena igreja, suja e quebrada. Entraram na Igreja. Ela continha poucos bancos, um
pequeno altar, e uma cruz partida pela metade atrás do mesmo. Em um dos assentos, estava
um homem de cabelos ruivos. Quando o homem de terno o chamou, ele mostrou uma face
aparentemente jovial, parecendo um pouco mais novo que Walter. O nariz dele se destacava,
e os olhos davam a aparência de cansaço, apesar da pouca idade.

- Ah! O famoso Desperado, Walter "O Lobo" Burns! É, de fato, um prazer conhecer alguém da
sua espécie!
- E você é?
- Meu nome, meu caro, é Montgomery Henrington III.
- É um prazer, Monty - Ele estendeu a mão. O homem encarou-a, demonstrando o que
aparentava ser nojo.
- Pois bem. Esses cavalheiros que lhe escoltaram até mim, caso não tenham se apresentado
ainda, são Henry Jackson - Ele apontou para o homem de terno e extremamente pálido - E
Braun Steffan - Dessa vez, mostrando o homem armado, que era mais alto, forte, e bruto do
que qualquer um da gangue de Mack.
- Tudo bem. Mas chega de... - Walter coçou o queixo, procurando o que dizer.
- Elegâncias? - Montgomery sugeriu.
- Pode ser. O que vocês querem?
- Bem, Sr. Burns... Nós sabemos que a sua... - Ele parou por um momento - Pequena "Gangue"
dos "Lobos Perdidos" estão planejando um assaulto à um trem. De uns... Quinze mil dólares?
Era isso?
- Como diabos você sabe disso? - O pistoleiro apontou a arma para o homem. Os dois capangas
sacaram suas armas e apontaram para ele.
- Relaxem, relaxem - Montgomery disse sem nem ao menos piscar. Deu um sorriso leve, e
continuou - Nós não queremos que você não roube o dinheiro, Walter.

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- Hein? - Walter abaixou a arma, mas manteve-a em sua mão.
- Nós queremos... - Ele fez uma pausa. Walter ficou ainda mais irritado - Bem - Ele deu um
sorriso amarelo - Nós queremos que você roube o dinheiro.
- E precisava me ameaçar para isso? Eu teria feito sem saber que vocês existiam, muito
obrigado.
- Ah, mas eis o 'x' da questão. Nós queremos que você roube o dinheiro, e dê ele para nós.
- Você enlouqueceu! - Ele riu, cuspindo no sapato de Monty, e se virou para ir embora. Os
capangas impediram sua passagem.
- Sabe, você está certo. Nós enlouquecemos. Pode ir embora. Até mais.
- Obrigado. E... Adeus. - Ele foi até a porta.
- Aliás, você tem uma filha linda.
- Como?! - Ele voltou a encará-lo.
- Allisson. É um belo nome. Sabe, eu sempre pensei que, se eu tivesse uma filha, eu a chamaria
de Allisson. Mas eu tive um filho, então o chamei de... - Ele riu - Walter.
- O que você sabe da minha filha, seu babaca? - Ele encostou o revólver na barriga do homem,
jogando-o contra a parede mais próxima.
- Vá em frente, atire. Atire, e nós contaremos para o seu... Amigo, "Mack", não é o nome? É,
nós contaremos para ele de seu precioso segredo. Seu precioso segredinho. A sua filhinha, que
você tanto tenta guardar só para você. Me diga, você quer mesmo salvá-la de seus "amigos",
ou só não quer dividi-la? - Walter deu um soco no rosto de Monty com o revólver.
- E se eu matar todos vocês? Aí o meu "Segredo" não vai ser contado para ninguém.
- Ah, não se preocupe. Eles irão saber. Você vê, Walter, nós todos trabalhamos para uma força
maior. Uma força de mudança! E... Se nós morrermos, alguém mais irá contar. O único modo
de você manter seu segredo à salvo é trabalhando para nós. Compreendido? - Walter soltou o
homem, e, com raiva, chutou o banco perto dele, e se sentou no que ainda estava em pé.
- Tudo bem. Mas se eu vou roubar dinheiro para vocês, eu quero saber o motivo.
- Ah, mas que maravilhoso! - Ele se sentou no banco do lado dele - Extremamente
maravilhoso!
- O motivo, Montgomery. Qual é o motivo?
- Bem, o que você acha?
- O que eu acho? Eu acho o mundo um lugar idiota, mesquinho e cruel. Você vive e morre
sozinho.
- Bem, e o que você acha do governador Franco Müller?
- Ele é idiota, mesquinho e cruel. Como ele morre é problema dele.
- Excelente, excelente! - Monty riu, dando tapinhas nas costas dele - Veja bem... Nós
trabalhamos para o candidato à governador Dennis Laurence. Ele, Sr. Burns, ele é um
candidato confiável!
- Se ele é tão confiável, por que eu vou roubar quinze mil para ele?
- Olha só! Você até que é esperto! Ainda mais para um selvagem...
- O que você quer dizer com isso, Monty?
- Ah, nada, nada. Bem, Walter, o motivo que você vai roubar esse dinheiro para nós, é para
que nós possamos devolvê-lo.
- Devolver o dinheiro? Que tal deixar o dinheiro aonde está então?
- Ah, mas o grande problema, Walter, é que o governador em pessoa está coordenando a
transferência. Se o dinheiro sumir, ele ficará manchado em Nova York, assim como aqui! E os
eleitores ficarão furiosos!
Então, quando nós tivermos o dinheiro, devolveremos ele para seus legítimos donos!
- Mas quem vai levar a culpa?
- Bem, é aí que você entra.
- Você quer que eu leve a culpa? Você enlouqueceu mesmo.
- Não, não! Mas é claro que não. Você tem que roubar esse dinheiro, mas ninguém pode saber
que foi você. Ninguém! Assim, não terão como negar quando acusarmos o prefeito de desviar

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o dinheiro. Brilhante, não?
- Não, e eu não me importo. Mas, se é para manter minha filha à salvo, acho que não tenho
escolha. - Ele se levantou, e foi até a porta.
- Você está ajudando uma boa causa, Walter - Montgomery tentou assegurá-lo.
- Boa causa? - Ele deu uma leve risada - Não existem boas causas, Monty. Apenas aquele que
sobrevive - E foi embora.

Saiu da igreja, e foi em direção ao Saloon, aonde tinha prendido seu cavalo. Montou, e seguiu
a estrada até o México. No meio do caminho, passou por um pequeno lago. Parou nele, e
tomou um pouco d'água. Percebeu que a água refletia sua imagem.

Seus olhos verdes mostravam idade.

"Alisson..."

Seu nariz soltava pequenas gotas de suor.

"Como eles descobriram?"

Ele coçou seu queixo protuberante, e então secou o suor de sua testa.

"Como eles sabem quem eu sou?"

Lavou o rosto, e sentiu sua barba por fazer deixar cair pingos d'água.

"Mack, me desculpe pelo que vou ter que fazer."

Ele pôs o chapéu, percebendo que não tinha escolha. Voltou a montar seu cavalo, e, depois
que este tomou um pouco de água, partiu de volta para o México, para ver sua filha, e, mais
importante, para pensar no que iria fazer.

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Capítulo Quatro

O Sol estava alto quando o Pistoleiro chutou a porta do Saloon. No mesmo instante,
toda a atividade no lugar parou. O pianista que ficava diretamente abaixo da escada
deixou de tocar, a mesa de poker à frente da porta parou de olhar, e um dos
integrantes parou de marcar cartas. As mesas sobressalentes também deixaram de fazer o que
estivessem fazendo para observar o homem.

Ele caminhou lentamente até o bar, olhando de lado à outro. Levantou o braço direito, e o
Saloon inteiro se alarmou. Ele então re-ajustou seu poncho, que estava torto, tirou o cigarro de
sua boca e o deixou cair no chão, pisando nele logo em seguida. No bar, ele puxou uma jovem
que bebia whiskey, para o espanto de um homem que a observava atentamente.

- Você enlouqueceu de vez?! - Ele bronqueou a mulher.


- Pai, me solta!
- O que você pensa que está fazendo?!
- Bebendo, e daí?!
- E daí? E daí?! Você perdeu a noção das coisas? O Sol te afetou?! Foi isso?!
- O que diabos te importa o que eu faço com minha vida?
- "O que diabos me importa"? Que tal, "Tudo"? Eu faço o possível para tentar nos conseguir
uma vida melhor, e você fica se destruindo por vontade própria!
- Mas...
- Não. Vamos, você vai para casa.

Walter segurou-a pelo braço, arrastando-a para fora do Saloon, que ainda fitava-o espantado.
Passaram pela mesa de poker, quando um homem se levantou. Quando chegaram perto das
portas, ele barrou a passagem, mostrando claramente seu rosto envelhecido e seus cabelos já
no caminho de ficarem grisalhos.

- Esse homem está te perturbando, senhorita?


- Quem diabos é você? - Walter olhou desconfiado para ele, ainda segurando o braço de
Allisson.
- Meu nome é Jonah Houston, e você não me conhece. Mas, infelizmente, eu te conheço,
embora não saiba seu nome.
- Meu nome não é para todos os ouvidos, obrigado. Saia do caminho, amigo, eu quero sair. -
Ele pôs a mão no ombro de Jonah.
- Eu não sou seu amigo - Ele tirou a mão - E você não vai embora desta cidade com vida. - Ele
ameaçou sacar sua arma, mas Walter foi mais rápido, apontando-a para a face do homem.
- Bem - Ele deu uma risada falsa - Você é rápido. O que você vai fazer, seu verme? Vai atirar em
mim? Vai me matar? Que nem você matou meu filho?
- Allisson - Walter falou, sem se mover - Vá para casa.
- Mas pai... -
- Escute seu pai, garota. - Ela deu uma última olhada para os dois, e foi embora correndo.
- Escute, amigo - Walter começou, quando sua filha já estava longe - Eu nunca matei crianças.
- Ah, pode ser que não, mas eu reconheço esse poncho. Você é de uma gangue, não é? É, eu
reconheço esse poncho... Pois num certo dia, a gangue que usa esse poncho matou tudo que
mais me era precioso na vida.
- Eu nunca matei crianças, Jonah, e não quero ter que matar um adulto hoje também.
- Você sabe como é... O que você sente... Quando você enterra seu próprio filho?
- Escute - Walter ficou irritado - Eu não matei seu filho. Agora saia do caminho, e ambos
sairemos daqui com vida.

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- Um duelo.
- Como?
- Eu te desafio para um duelo, senhor. - Ele cuspiu no sapato de Walter - Você matou meu filho
de forma desonrosa, mas eu sou um homem de princípios. Estou te oferecendo a chance de
morrer de forma honrosa.
- E se eu atirar primeiro? - Walter riu de leve.
- Aí... Bem, pelo menos eu me juntarei ao meu filho.
- Eu não quero te matar, amigo, mas se você não me dá escolha, eu aceito. - Ele abaixou a
arma, guardando-a no coldre.
- Muito bem. Ei, você aí - Ele falou com o bartender, que se escondia embaixo do balcão -
Toque o sino, ok?
- T-t-tudo bem!

Os dois saíram do Saloon. O Sol apontava meio-dia, observando atentamente todo e qualquer
movimento na Terra. O vento estava forte, carregando consigo folhas e jornais. Os dois
homens tomaram posição na rua, roupas chacoalhando ao vento na direção do bar, aonde um
bartender amedrontado segurava a corda de um sino instalado na parede mais próxima.

Walter inspirou e olhou em volta sem mover a cabeça. O vento carregou consigo uma bola de
sarça, e subitamente parou, como se estivesse ele mesmo prendendo a respiração. Ao seu
redor estavam pessoas ansiosas, curiosas, ou simplesmente com vontade de ver sangue. No
meio delas, ele reconheceu Eva, segurando um punho contra o peito e fazendo o sinal da cruz.
Voltou a olhar seu oponente.

Segundos se passaram. O som de um sino se fez ouvir. Jonah sacou seu revólver. Eva segurou a
respiração. Ele mirou na cabeça de seu oponente. Eva fechou um dos olhos, deixando o outro
entre-aberto. Walter apertou o gatilho, acertando o punho e desarmando o homem. Guardou
o revólver.

A platéia misturou aplausos e olhares incrédulos, enquanto Jonah olhava aterrorizado para seu
punho, e então para o homem que causou tal estrago, que andava em sua direção. O homem
ficou em um joelho só, pegou o revólver dele do chão, e guardou-o num dos bolsos.

- Só para ter certeza que você não irá se matar. - E se afastou, indo para casa. Eva correu ao
seu encontro, mostrando excitação e um pouco de medo. Ele abraçou o corpo moreno e
magro dela com um braço.
- Por que você... Não matou ele?
- Não vejo motivo em matar quem já está morto.
- Como assim?
- Ele... Perdeu o filho. Alguém da gangue matou o filho dele.
- Dios mio.
- Eu entendo o que ele sente. Se algo acontecesse à Allisson, eu não seria capaz de continuar
vivendo. E... É por isso que eu tenho que te contar uma coisa, quando chegarmos em casa.

Quando estavam em casa, Walter contou para Eva tudo que tinha ocorrido, desde descobrirem
a transferência do trem até o governo abordá-lo sobre o mesmo. Quando acabou, ela estava
inquieta, e ele cansado.

- Mas o que nós vamos fazer?


- O que podemos fazer? Eu vou ter que roubar o dinheiro, e vou ter que entregá-lo para os
políticos.
- Mas e se eles te matarem no minuto que você der o dinheiro?!

73
- Eu preferiria morrer do que ver você e Allisson em perigo. E... - Ele pegou a arma de Jonah do
bolso - Eu quero que você fique com isso. Eu tenho medo que a paz que vocês tinham por aqui
pode acabar à qualquer momento, e, se acabar, não quero que vocês estejam desarmadas.
- O... - Ela pegou a arma, incerta - Obrigada.
- Você sabe usá-la?
- Sim, eu sei.
- Ok então. Eu vou voltar para a gangue, Mack vai ficar com suspeitas se eu ficar tempo demais
longe de repente.
- Espera! Você não pode ficar só mais um pouco? - Ela segurou-o pelo braço.

O Sol se punha quando Walter cavalgava para sua gangue, tentando pôr o poncho em
movimento. Ele pensou sobre Jonah, e o filho dele, em Eva, em Allisson, e o que podia fazer
para protegê-las. Por fim, ele pensou no trem, e no dinheiro. Não conseguiu pensar em
nenhuma solução, então cavalgou para casa mais rápido, conseguindo vestir o poncho.

74
Capítulo Cinco

-A h! Que espetacular! Você enfim chegou! - Monty acenou para Walter do outro
lado do aposento. Walter andou pelo quarto, passando por uma mesa com
cadeiras para seis, parando perto de duas janelas na parede em sua frente.
- Bem, já que você está aqui, vamos aos negócios.
- Pois bem... - Ele continuou quando Walter não respondeu - Você deve estar se perguntando
por quê te trouxemos aqui.
- Além de quererem que eu roube o dinheiro do trem para vocês?
- Bem... Sim. Você vê, nosso competidor prometeu que uma certa pessoa seria levada à justiça.
- E?
- E que ele não conseguiu até agora. E desistiu. Se nós conseguirmos, será mais eleitores que
ganharemos!
- E vocês precisam de mim por quê?
- Bem, nós enviamos dois homens atrás dele. Um deles voltou.
- Com o bandido?
- Com cinco tiros.
- Bem, pelo menos ele não voltou de mãos vazias - Walter riu um pouco.
- Muito engraçado, senhor Burns. Nós queremos que você capture esse bandido.
- Hah! Agora você quem está fazendo piada, Monty.
- Escute aqui, seu inútil. Nós precisamos dele. E precisamos dele vivo.
- Tudo bem, mas eu nem sei quem ele é, e nem aonde encontrá-lo.
- Muito justo. Vamos levá-lo até ele então.

Os dois saíram do prédio, que, segundo uma placa dizia, era um banco. Montgomery montou
num cavalo marrom e branco, e um de seus capangas, Braun, apareceu estrada abaixo,
andando num cavalo negro. Walter montou em seu cavalo branco, e seguiram norte da cidade,
entrando numa cadeia de montanhas depois de alguns minutos.

No labirinto de montanhas, encontraram após algum tempo uma casa. Era uma casa grande,
de dois andares, que tinha um pátio em sua frente. Antes que pudessem desmontar, um tiro
acertou o cavalo de Walter na cabeça, matando-o instantaneamente derrubando-o, e
salvando-o do próximo tiro, que teria sido fatal.

Walter xingou, e se protegeu no muro baixo do pátio. Montgomery e Braun fizeram o mesmo.
Quatro tiros acertaram na parede. Walter xingou de novo, e sacou seu revólver, tentando
adivinhar daonde vinha o som dos tiros. Outro tiro acertou na parede.

- Merda! - Monty pareceu desesperado - O que vamos fazer?


- Bem - Walter pensou, ouvindo outro tiro - Ele tem que recarregar alguma hora. Mas eu
preciso saber que arma ele está usando antes de poder tentar atirar. - Nesse momento, Braun
espiou por cima do muro.
- Ele está usando uma pistola. Ela parece ter seis cartu... - Sangue jorrou de seu olho esquerdo,
conforme um tiro acertava-o. Monty se encolheu de medo.
- Bem... - Walter continuou calmo, acendendo um cigarro - Belo tiro.

Ele levantou, vendo o bandido na janela do segundo andar, recarregando. Atirou nas duas
mãos dele, que então correu para longe da janela. Ele deu um tapa em Monty e correram para
dentro da casa. A casa mantinha um ar velho, estagnado. Passaram pela sala de estar
depressa, e subiram as escadas que estavam próximas.

75
Um som de vidro quebrando se fez ouvir, e eles correram ainda mais. Walter se desviou a
tempo de uma faca, que atingiu com o punho a testa de Monty, nocauteando-o. O pistoleiro
xingou de leve, apreciando um pouco de justiça irônica, e atirou três vezes no ar. E entrou no
quarto.

Quase que imediatamente, uma pá atingiu-o no peito, deixando-o sem ar. Ele apontou o
revólver contra o atacante, que levantou as mãos sangrentas para o ar. Ele então deu uma
olhada melhor para o quarto. Completamente destruído e em pedaços, a única mobília era um
sofá corroído.

O homem se encontrava em frente à única janela do quarto, era feio, ruivo, e carregava dois
coldres. Ele abaixou um dos braços para sacar o outro revólver, e Walter chutou-o, que caiu
pela janela. Ele então atirou na cabeça do homem.

Se virou para sair, e viu o corpo de Monty desacordado no chão. Ele suspirou, e carregou-o até
os cavalos. Montou no antigo cavalo de Braun, e amarrou Monty no cavalo dele. Tocou as
rédeas e voltou para a cidade.

Montgomery acordou algumas horas depois, cansado e com dor de cabeça. Henry fitava-o
preocupado, seus olhos castanhos atentos.

- Henry? O que aconteceu?


- Você foi nocauteado, senhor.
- Por quem?
- Pelo bandido que você e o senhor Burns estavam tentando prender.
- Mas... Braun morreu. Quem me carregou até aqui?
- O senhor Burns.
- Ele me carregou de volta? Por que?
- Não sei, senhor. Ele apenas me disse o que ocorreu, e foi embora.
- E o que ocorreu?
- Ele matou o bandido, senhor. Um tiro na cabeça.
- Que... - Monty parou. Olhou para o alto por um momento, e disse, pensativo: - Bom, eu acho.

76
Capítulo Seis

O som de gritos ecoou pelo quarto escuro, acordando o pistoleiro. Ele levantou-se da
cama, ouvindo atentamente. Era uma mulher. Olhou ao redor do seu quarto,
procurando o poncho. Achou-o, e vestiu-o com pressa, saíndo do quarto. Estava no
segundo andar do Saloon da cidade abandonada da gangue dos Lobos.

Ele pulou o corrimão, caindo em cima de uma das mesas, e acordando os homens que
dormiam nas cadeiras adjacentes. Andou até a porta do estabelecimento, sacou sua arma e,
dando um suspiro, saiu. Olhou ao redor da cidade circular, cuja única fonte de iluminação,
além das luzes dos prédios, era uma fogueira no centro.

Três Lobos despiam rindo e bebendo uma mulher. Era uma das prostitutas da cidade, e gritava
por socorro. Walter deu um assobio, e os homens fitaram-no, deixando a prostituta respirar
um pouco. Um deles cuspiu no chão e voltou a mexer com sua acompanhante involuntária.

- Hey, rapazes. Deixem-na em paz.


- E quem é você pra me dar ordem, Walter? - Um dos homens retrucou.
- Eu sou um dos líderes, John. E, caso tenha se esquecido, eu sou quem te salvou de ser
enforcado.
- Você é um covarde! Sempre se escondendo atrás do Mack. Como um pequeno cachorrinho -
John riu, debochando.
- Escute aqui, deixem essa mulher ir.
- Ela é uma rameira, seu imbecil. Ela é nossa puta. Ela nos chupa, e nós deixamos ela viver.
Você esqueceu como isso funciona também?
- Você vai concordar... - Ele lançou um olhar para a prostituta - Que ela já trabalhou o
suficiente para um dia só. Vamos, deixem-na ir. - Receosos, eles soltaram a mulher, que correu
para sua casa no prestíbulo da cidade - Obrigado, rapazes. Durmam bem, amanhã nós teremos
um longo dia.

Ele se virou, e começou a andar de volta para o Saloon, quando John sacou sua arma e atirou
no chapéu dele. Walter parou. Respirou fundo. Ouviu o som de três homens engatilhando seus
revólveres. Ele se virou, sacou sua arma, e atirou no braço de todos os três, desarmando-os.

- Jesus! O que diabos aconteceu aqui?! - Mack saiu correndo do Saloon.


- Apenas uma noite movimentada, Mack. Vamos, me pague uma cerveja.
- Então, Walter, o que vamos fazer amanhã? - Mack indagou, depois de três cervejas.
- É bem simples, Mack. Amanhã nós temos que entrar, pegar o dinheiro, e saírmos sem sermos
vistos ou identificados. Se eles souberem quem somos, vão nos caçar até que estejamos
mortos.
- Então o que diabos podemos fazer?! - Ele gritou, batendo na mesa.
- Acalme-se. Eu vou entrar no trem. Eu vou abrir o cofre, e vou pegar o dinheiro. Vocês criarão
uma distração na cidade. Nós nos encontraremos aqui antes do pôr do Sol.
- Tudo bem então. Conto com você, Walter.
- Pode deixar, Mack. Agora, se você me der licença, eu tenho que cuidar de outros assuntos.
- De novo? Aonde você vai dessa vez?
- Cuidar de outros assuntos, Mack. Eu não posso te contar tudo sempre.
- Tudo bem então. Mas não vá se matar! Vamos precisar de você.

O Sol começava a se levantar quando chegou no vilarejo aonde morava sua filha. Em sua casa,
ele notou um coche, e de dentro dele, Monty conversava, descontraído, com Allisson. Ele se

77
aproximou devagar, ouvindo brevemente a conversa dos dois.

- Ah! Sr. Burns!


- Olá Monty. O que você está fazendo tão ao Sul da fronteira?
- Apenas passando o tempo, Walter... E também quis conhecer pessoalmente seu pequeno
tesouro.
- Bem, você conhece. Que tal ir embora agora?
- Hah, não tão cedo. Não tão cedo... Diga-me, doçura, vá para sua casa. Eu tenho que discutir
alguns assuntos com seu pai. - Allisson obedeceu, correndo para casa.
- Então...
- Tsc, tsc... Nessa idade elas são tão... Deslumbrantes. - Monty balançou a cabeça,
resmungando. Walter pôs sua mão no coldre do revólver, por segurança.
- O que você quer, Montgomery?
- Eu quero, senhor Burns, saber se amanhã você irá roubar o trem. E queria te lembrar
também o que aconteceria caso você não o fizesse.
- Como você sabia que eu estava vindo para cá?
- Bem, senhor Burns, quando um homem teme por sua filha, ele se torna espantosamente
previsível.
- Pois bem. Eu vou roubar o dinheiro para vocês, se isso lhe importa tanto. Só não espere mais
alguma cooperação de minha parte depois disso.
- Excelente! Excelente... Então o que vou lhe falar será de valor inestimável: Eles têm guardas
posicionados em todas as trilhas. Se você não der um jeito de entrar e sair sem ser visto, eles
irão saber que é você, e vão...
- Me caçar até os confins da Terra. Eu sei.
- Bem, para um selvagem, até que você é esperto. E... Boa sorte, Walter.
- Obrigado, Monty.

Montgomery deu uma palavra para o cocheiro, que tocou as rédeas, levando-os de volta para
os Estados Unidos. Walter explicou a situação para Allisson, que ele descobriu estar ouvindo
atrás da porta, e foi embora, lembrando de dar um último "Adeus" para Eva. Ele sabia que,
agora, ele iria roubar o dinheiro - Ou morrer tentando.

78
Capítulo Final

O Sol iluminava entediado a estação de trem. Fora da cidade, doze homens se


encontravam, escondidos e sussurrando. O trem ainda se encontrava longe no
horizonte, marchando em uma velocidade estupendamente alta.

- O.k. - Walter começou, acalmando a gangue - Eis o que vamos fazer. Vocês - Ele apontou para
o grupo da esquerda - Vão começar um tumulto. Ele tem que atrair a atenção dos guardas.
Assim que eles estiverem distraídos, Clark e eu entraremos no trem, e roubaremos o dinheiro.
Para evitar atrair atenção, vamos pular do trem quando ele estiver em movimento, da traseira.
Nos encontraremos depois da fronteira.
- Tudo bem. Vão entrar em posição - Mack continuou, suando de nervoso - Nós começaremos
o tumulto. Mas, por tudo que é mais sagrado, entrem naquele trem!

Os dois grupos trocaram um último balançar de cabeça, e partiram caminhos. O coração de


Walter batia pesado, dividido entre trair seu amigo de infância ou ver sua filha se tornar uma
prostituta da gangue. E tudo por causa daquele maldito Montgomery.

Clark e o Pistoleiro assumiram posições, aguardando o sinal de Mack. Um tiro foi disparado. Os
guardas, alarmados, seguiram o som do tiro, armas em mão. Aproveitando a chance, os dois
pularam dentro do trem, se escondendo da melhor maneira que pudessem com os sacos de
areia que ficavam no último vagão.

Minutos se passaram. O tumulto havia terminado, mas nada do trem se mover. Walter suava
com ansiedade. Mais de uma hora se passou, sem nenhum deles sequer se mover. Por fim,
ouviram o grito de um dos guardas, e o trem começou a mover.

Após o trem ter ganho mais alguma velocidade, eles saíram do esconderijo, e pularam para o
telhado do trem. Sorriram com a ausência de quaiquer guardas ali, e caminharam lentamente
até a cabine aonde guardavam malas e cofres.

Eles entraram furtivamente, vendo que tinha um guarda ali. Walter esgueirou-se até ele, e,
agindo rápido, enfiou uma faca em sua garganta, matando-o no mesmo instante. Subitamente,
ele ouviu o clique de um revólver engatilhando. Clark. Ele sentiu o metal contra sua nuca.

- Então... Você que vai abrir o cofre?


- Sim.
- Quem combinou isso? Foi o Mack? Ou foi o Montgomery?
- O qu... - Ele gaguejou. No mesmo momento, Walter girou no chão, e esfaqueou o braço dele.
Logo em seguida, segurou a boca dele para que ele não fizesse barulho.
- Eu sabia que tinha um rato na gangue. Só podia. Pois bem, velho colega, hora de morrer. - O
Pistoleiro cortou a garganta de Clark friamente.

Ele deixou o corpo de Clark cair no chão, tendo uma idéia. Ele vestiu as roupas do guarda no
rato, e jogou seu corpo para fora do trem, aproveitando que estavam numa ponte. Virou-se
para o cofre, respirando fundo. Começou a abri-lo.

Virou para a direita.


Ele ouviu passos acima dele.
Acertou o número.
Barulhos no outro vagão começaram a aumentar.

79
Ele virou para a esquerda.
Uma garrafa se quebrou, ao longe.
Acertou o número.
Virou para a direita novamente.
Alguém atirou um revólver.
Acertou o número, e abriu o cofre. Dentro, quatro sacos, todos recheados com moedas de
ouro, sentavam majestosamente. Ele pegou-os rapidamente, enfiando o que podia nos bolsos,
e o resto pendurando no cinto. Ele saiu da cabine, e começou a fazer seu caminho para os
fundos do trem.

Chegou no vagão aonde ele se escondera, e viu que ele agora estava sendo vigiado por um
guarda. Pegando uma corda, ele aproveitou que o guarda estava distraído e amarrou-o.
Carregando-o consigo, pulou para fora do trem.

Encontrou-se no deserto, longe de comida e cavalos. Sem se desesperar, andou o mais longe
possível dos trilhos. Após horas, ele chegou num oásis d'água. Ouvindo o guarda xingando em
suas costas, ele amarrou uma pedra na corda, e jogou-o no fundo do lago. "Perfeito" ele
pensou.

Bebeu um pouco da água, e, vendo alguns cavalos, domesticou um deles o melhor que pôde
com o resto de corda que tinha. Galopou para a cidade de Dead Horse, aonde iria se encontrar
com Montgomery. Chegou pelo fim da tarde. Foi até o prédio do governo, e encontrou-o
conversando com Henry.

- Aqui o dinheiro, seu maldito. - Ele entregou os sacos com desgosto.


- Ah! Excelente, excelente... Mas... Acho que...
- Que está faltando alguém? Clark tentou me matar. Então eu o matei.
- Que... - Ele procurou a expressão - Infortúnio. Mas não vamos ficar nos deprimindo pela
morte de um rato! Nosso político irá adorar essa notícia.
- O.k. então. Eu vou embora. Adeus.
- Espere, senhor Burns?
- Sim?
- Aqui - Ele jogou dois sacos de dinheiro. 7.500 dólares em ouro - Vai soar suspeito se
tivéssemos recuperado todo o dinheiro. E com 7.500, senhor Burns, você já pode comprar um
apartamento em Nova York.
- Obrigado, Monty - Ele sorriu genuinamente antes de sair.

Walter, uma vez fora do prédio, cavalgou o mais rápido que pôde para sua filha. Seu coração
bombeava com excitação. Allisson teria uma vida normal. Uma vida longe do crime, longe de
gangues. Ele parou, subitamente. A cidade estava pegando fogo.

Todas as casas estavam destruídas. No centro da cidade, estava uma placa. Escrito nela, estava
a mensagem com a letra que ele reconheceu como sendo de sua filha. A mensagem dizia:

"Nós pegamos sua filha.


Se quiser vê-la novamente, traga os 15.000 para nós.

Mack"

Ele xingou entre lágrimas Montgomery e Mack. Subiu de volta em seu cavalo, indo direto à
cidade abandonada, sem se importar com os gritos de seu cavalo. Chegou na cidade quando a
noite já estava no meio, e não viu ninguém. Ele sacou seu revólver.

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Andou até o meio da cidade, olhando ao redor freneticamente. Quando estava perto da
fogueira, ouviu vários cliques de armas vindos dos prédios. Ele sacou seu outro revólver, e
atirou em doze deles. No mesmo instante, correu para dentro do Saloon, levando um tiro na
perna direita.

O Saloon estava vazio, exceto por uma prostituta terrivelmente assustada. Ele se protegeu na
parede, ouvindo atentamente. Ele tinha seus balas restantes. Ouviu atentamente. Silêncio.
Olhando ao redor, ele pegou um copo de cerveja, e jogou-o para fora da porta. Menos de um
segundo depois, o copo explodiu com o impacto de uma bala nele. Walter esfregou os olhos.
Era Mack.

- Mack? - Ele perguntou, não esperando resposta.


- Walter!
- Olá, Mack.
- Walter, nos dê o dinheiro. Nós prometemos que vamos deixar ela ir embora. - Ele olhou pela
fresta. Sua filha estava presa pelo pescoço com o braço de Mack.
- Não posso, Mack. Não tenho o dinheiro.
- Então sinto muito, Walter.
- Eu não quero te matar, Mack. Deixe-a ir.
- Deixá-la ir?! E depois disso o quê, me entregar ao governo? Walter, você nos traiu. Você era
meu irmão! E você se vendeu por uma... Putinha!
- Mack. Me escute. Eu não quero ter que te matar. Deixe-a ir embora.
- Quantas balas você tem sobrando, Walter?
- Seis. Quantos homens você tem sobrando?
- Uns quinze. Acho que você vai morrer, no final de contas.
- Provável. Mas se você não soltar minha filha, eu vou te levar comigo pro Inferno.
- Então venha aqui fora! Resolva isso como homem!

O Pistoleiro suspirou uma última vez. Com o revólver em punho, saiu pela porta. Seis homens
com revólveres apontavam para ele, com Mack no meio. Em lugares mais elevados, capangas
com rifles recarregavam, nervosos. Walter tirou o chapéu, deixando-o cair no chão.

Ele mirou e atirou seis vezes. Seis homens caíram no chão, mortos. Entre eles, o corpo de Mack
sorria, com um furo na testa. Allisson caiu no chão, podendo respirar novamente. Walter
gritou para ela fugir, e ela obedeceu.

Nove pessoas apontaram seus rifles para o Pistoleiro. Ele sorriu, e deixou o revólver cair no
chão. Allisson parou o cavalo ao ouvir nove tiros ao mesmo tempo, e, chorando, continuou
correndo, atravessando a fronteira. Ela sabia quem tinha feito aquilo. Montgomery iria pagar.

81
O Sol de Cada Manhã

Capítulo Um

C harlie roubava frutas. Maçãs, pêras, uvas. Todos os dias ia no mercado em frente ao seu
prédio e, quando não estava sendo observado, surrupiava alguns exemplares. Ele
gostava muito de maçãs verdes, suculentas por dentro.

Charlie tinha dez anos. Sua mãe passava o dia dormindo, e, quando ele ia para a cama, ela saía
para a rua. Ele não sabia o que sua mãe fazia, mas não queria saber. Só sabia que tinha maçãs,
e que gostava delas. Também tinha pêras, mas essas tinham um gosto estranho.

Certo dia, ele estava saindo de casa, quando viu que a porta de seu vizinho estava aberta. Sua
mãe o avisou que naquele apartamento morava um homem mau, e sempre ouviu as
empregadas domésticas falarem do "Escritor de 405". Ele não resistiu, e entrou no
apartamento.

O corredor era estreito, mas passava sem dificuldades. Depois do corredor, estava a sala. Tinha
uma mesa no canto, um sofá e uma TV. Era bem cara - Aos seus olhos de criança. Na cozinha,
ele viu uma chaleira que parecia valer uma fortuna. Ele a segurou, receoso. Sentia que a
qualquer momento soaria um alarme. Não soou. Ele se apressou para sair daquele
apartamento.

- Ei! - Charlie sentiu seu sangue gelar. Virou-se lentamente, tentando esconder a chaleira. O
homem que chamara sua atenção meteu medo nele. Usava uma calça jeans amassada, junto
com uma camisa amassada. O cabelo curto parecia espetar tanto quanto sua barba cerrada.
Seus olhos estavam vermelhos de alguma desavença com o álcool.
- Si... Sim?
- Quem é você?
- Eu sou... o... o...
- Charlie, né? Já ouvi sua mãe falando de você.
- Sim, eu sou.
- Então, Charlie, o que você faz aqui, no meu apartamento?
- Bem, se... senhor, a porta estava ab-b-berta. - Ele lembrou de sua mãe contando sobre o
escritor andar armado.
- Ah. Bem, me devolva minha chaleira, vamos. - Sem pensar duas vezes, entregou-a.
- Me d-d-desculpe, senhor, m-m-mas você não é o escritor? - O homem fitou-o, curioso.
- "O escritor". Bem, sou um escritor. Agora, se sou "O", já se torna discutível - Ele olhou para o
alto por um minuto - Charlie. É um nome engraçado para um brasileiro. Você nasceu na
Inglaterra?
- Eh, não senhor! - Tomou coragem - Meu pai era inglês. Nunca o conheci. Minha mãe disse
que ele era um grande homem. De ambos os sentidos. Não entendo o que isso quer dizer.
- ... Bem. Talvez seja melhor que você fique sem entender por mais um tempo. Err... William.
- Como?
- Meu nome. William.
- Ah. Prazer - Charlie sorriu, singelo.
- Ah, William! - Ele chamou novamente a atenção do homem. Ele havia entrado em devaneio -
Será... Será que você poderia me contar uma história?

82
- Uma história?
- Sim! Uma história! Você é um escritor, afinal!
- Tudo bem, então façamos o seguinte: Devolva meus cigarros, que eu te conto uma história -
Ele surpreendeu-se, embaraçado.
- Muito bem - William pôs um cigarro à boca -, vejamos... Que tal a história do Cavalei - Não -
Charlie interrompeu.
- Não?
- Não.
- Como assim?
- Essas histórias são chatas. Já ouvi milhares de vezes. Esses finais felizes nunca acontecem.
- Huh... Bem... Eu estou meio sem histórias sem finais felizes.
- William?
- Hein?
- Por favor - A fingida inocência de Charlie aplacou-o.
- Argh. Tudo bem. Vou contar uma história da minha vida então. Já vou avisando, é meio dura.
Mas, não tem final feliz. Pelo menos, não ainda.
- Ok!
- ... Ok...

"Eu tinha por volta de doze anos. Doze? Sim, sim, eram doze. Meu pai tinha abandonado
minha mãe já faziam dois anos, e eu bebia escondido quando tinha a chance. Brigava com
minha mãe todo dia. Ela chorava dizendo que eu não ia à escola, não ia à Igreja. Dizia que eu
estava me tornando produto de Satanás. Satanás é um monstro malvado. Depois eu te explico
mais.

Continuando... Minha mãe já estava decepcionada comigo pois eu não tinha feito a Primeira
Comunhão. Dizia que eu não era filho dela. Que o filho dela havia morrido no dia que não
tomei a hóstia. A hóstia é uma baboseira que dizem ser o corpo de Jesus. Que também é uma
baboseira, aliás.

Um dia, eu tinha arranjado uma briga feia. Dois garotos evangélicos vieram me bater porque
eu era 'Filho de Satanás'. Foram celebrados pela Igreja depois como Obreiros de Cristo. Minha
mãe me expulsou de casa naquele dia. Passar a noite na rua também não é tão glamouroso
quanto parece.

Eu aprendi a sobreviver na rua. Disputava comida com mendigos e pedia esmola, mas era
melhor que a morte. Quero dizer, eu acho. Eu lembro de um amigo que eu tive nessa época, o
Marquinhos... Ele sempre distraía os padeiros enquanto eu roubava os pães. Foi espancado até
a morte por uns riquínhos da Barra.

Eu passei acho que um mês morando na rua. Depois, um homem chegou até mim e me
prometeu casa e comida. Perguntei quem ele era, mas não me respondeu. Eu descobri mais
tarde que era um fazendeiro. Fui morar em sua fazenda, afinal, era bem melhor que pedir
esmola. Pelo menos era o que parecia."

- O que aconteceu?
- Heh, é uma longa história. Acho que não vou conseguir te contar inteira hoje. Vá para casa.
Amanhã eu conto.
- ... Sim, senhor.
- Ah, e Charlie - William chamou-o antes que fosse embora.
- Sim?
- Prazer em te conhecer. - Apagou o cigarro.

83
Capítulo Dois

C harlie passou uma semana sem ouvir uma história. William ensinou-o algumas coisas,
mas a que ele mais prestou atenção, e mais se divertiu, foi aprender a ler. "É como se
um novo mundo se abrisse para você, e, em cada página, uma nova história se forme.
Não há emoção comparável ao de abrir um livro, sentindo a textura do papel, o cheiro, e
submergindo-se à outras realidades." Como ele passionalmente contestou.

Sua mãe estava dormindo na sala. Roncava alguma coisa incompreensível. O garoto
aproveitou-se da situação, e partiu sorrateiro para a casa de William. Dessa vez estava
decidido em ouvir o resto da história.

Bateu na porta. Não houve resposta. Ele ouviu um rangido ao longe. Entrou cautelosamente. O
rangido aumentou, e um gemido o sucedeu. Vinha do quarto de William. Charlie lentamente
abriu a porta, e soltou um grito. Saiu correndo, no entanto, tropeçou e caiu.

- Ei, você está bem? - Era William. Estava fechando o zíper da calça.
- O que você estava fazendo?!
- Acalme-se. Deixe-me ver seu joelho.
- Quem era aquela moça?!?
- Vamos, deixe-me ver seu joelho.
- O que era aquilo!?!? Ei! - William agarrou o joelho do garoto.
- Você ficará bem. Vamos para a sala.

- Quem é aquela mulher? - Charlie sentou no sofá, em frente à William


- Uma amiga.
- Amigos fazem isso com amigas?
- ... Sim, depois de uma certa idade. Os dois percebem que "Aquilo" sem compromissos é
divertido, e começam a fazê-lo.
- O que é "Aquilo"?
- ... Basicamente, é um jogo de Tetris, mas com apenas uma peça na vertical e três espaços
para peças.
- E como se ganha?
- Quando os espaços desmaiam.
- Desmaiam?
- Longa história. Ei, já vai para casa? - A amiga de William tinha saído do quarto. Era bem
bonita.
- Já... Meu namorado tem ciúmes de você. Acha que estou traíndo ele.
- Bem, não é sem razão.
- É, mas ainda assim, é chato.
- Bem, ok. Até mais. - Ela abaixou para beijá-lo.
- E-eu - Charlie gaguejou - Eu espero poder jogar Tetris com você algum dia! Parece divertido.
- Tetris? Bem, tudo bem. Adoro Tetris. Costumava carregar um comigo quando era criança e
ficar usando na escola... Ok, garotinho, até mais. - Ela ficou sem entender o motivo de risos de
William.
- Pra você também!

- Ok, Charlie - William ouviu o bater da porta. - O que você veio fazer aqui?
- Você prometeu que ia terminar aquela história.
- É mesmo. Eu prometi. Ok. Se quiser beber algo, etc, faça agora. Não vou ficar interrompendo
a cada doze minutos.

84
"Aonde estávamos? Ah, sim, claro. A fazenda. Veja bem: Eu morava na rua. Quando chegou
um homem e falou que me daria casa e comida, eu não pensei duas vezes. Foram várias horas
de viagem na picape dele. Eu tive que ir na carroceria. Por fim, chegamos à uma enorme
fazenda, até hoje não sei aonde.

Ela tinha uma horta gigante. Você podia botar uns dois campos de futebol nela e ainda iria
sobrar espaço. A casa, que ficava no fim da plantação, era rústica, mas era bonita de se olhar.
Eu achei que finalmente tinha encontrado um lar. Ah, como estava enganado. Assim que
chegamos à casa, ele abriu as escadarias para o porão e me trancou lá dentro, nas senzalas.

Acontece que eu não estava sozinho. Tinham outros comigo. Eu fiquei amigo em especial com
dois deles. Um se chamava Pedro, era mais velho que eu, e o outro era Jóvis, da minha idade.
Aquele homem seqüestrava crianças de rua e as fazia de escravos.

Eu passei um dos piores momentos da minha vida nessa fazenda. Acordava todo dia ao raiar
do Sol, trabalhava nas plantações, tentava escapar, era chicoteado. Todos éramos. Tinham
aqueles que desistiam e simplesmente obedeciam, que, com o tempo, se tornou a maioria. Eu,
no entanto, continuei apanhando toda noite.

Chegou um dia em que Jóvis conseguiu escapar. Fugiu pelos campos até a estrada de terra. O
homem entrou na picape e atropelou-no. Ficou paraplégico, como achamos. Depois amarrou-o
ao carro e dirigiu de volta para a fazenda, com ele sendo arrastado por uma estrada de terra e
pedras.

Quando ele chegou , já não havia pele em sua carne. O fazendeiro então pendurou-o como
espantalho, como um aviso para nós. Quem tocasse nele era chicoteado. Por fim, Jóvis
morreu. Foi retirado pelo fazendeiro por causa do cheiro, e fez sua carne nosso jantar.

O fazendeiro era casado, como me lembro. E tinha uma filha. Era uma garota tão doce, que
você não conseguia acreditar que era filho daquele monstro. Toda noite, depois que seu pai ia
dormir, ela nos trazia comida. Só fui descobrir muito depois que ela era violentada pelo pai
todas as noites, e que só assim nos conseguia trazer a comida.

Enfim. A morte de Jóvis foi a gota d'água. Pedro e eu arrumamos um plano, e conseguimos
roubar um forcado. Quebramos dois dos dentes, e arrombamos a fechadura da porta.
Poderíamos ter simplesmente fugido na calada da noite, mas queríamos vingar o Jóvis. E a nós
também, claro. Invadimos a casa do fazendeiro. Fomos até seu quarto, e, antes que ele
pudesse fazer algo, amarramos-no e sua esposa à cama.

Começamos a insultá-lo, bater nele, e até mesmo em sua esposa. Detestava aquela mulher.
Toda noite ela fazia alguém dar banho nela e depois servir a água do banho para as outras
"Crianças". Estávamos nos cansando, quando ouvimos a voz de Pedro.

Ele estava à frente, e, atrás, dois garotos carregavam a filha do fazendeiro. Eles a botaram em
pé, segurando-a pelos braços, e arrancaram suas roupas.

- Pedro! - Eu gritei.
- Que foi?
- O que você está fazendo?
- Estou mostrando pra esse velho babaca o que que ele merece!
- Pedro, a Luíza - Esse era o nome dela, aliás - sempre foi boa conosco! Pare com isso!

85
- Parar? Vou te mostrar como que se faz, garoto! Observe e aprenda!

Pedro arriou as calças. A Luíza começou a gritar, chorar, espernear, querer fugir, mas não
houve jeito. Seu pai nos ameaçou de morte, mas eu estava chocado demais para ouvir.
Lágrimas escorriam de meus olhos. Se era assim que retribuíamos quem nos ajudava, então
não éramos melhores que o fazendeiro. Eu botei a mão na mesa de cabeceira do velho.
Encostei em algo que parecia ser uma arma. Era.

Sem pensar duas vezes, atirei para a parede. Tentei fazer com que Pedro se assustasse e
parasse, mas errei a mira. O tiro foi diretamente pela cabeça dele. Ainda lembro do olhar
assustado de Luíza ao ver aquele sangue até hoje.

- Estão vendo?!? Vocês todos não passam de nojentos! Desalmadas crianças nojentas, que
merecem todas morrerem! AH, mas quando eu sair daqui, vocês todas irão DIRETO PARA O
INFERNO!!!

Atirei no fazendeiro logo após. Notei que os garotos voltavam suas atenções para Luíza
novamente, e atirei uma terceira vez, para o alto.

- Escutem. - Minha voz estava rouca. - Ninguém mais toca na Luíza. Se precisam mesmo fazer
isso, façam com a viúva aqui. Eu vou levar a Luíza para fora desta fazenda.

E cumpri o que falei. Levei Luíza para fora da fazenda, e prometi cuidar dela até chegarmos em
uma cidade qualquer. Encontramos uma em umas duas semanas, aonde, por sorte, moravam
parentes dela. Quando souberam do ocorrido, cuspiram em minha cara e me expulsaram de
seus apartamentos. Pelo menos só cuspiram."

Charlie notou uma lágrima secando no rosto de William. Ia comentar sobre algo, quando um
barulho de quebrado ecoou no andar.

- Isso foi aqui? - William já se encontrava sério.


- Acho que foi.
- Venha, eu vou te levar para casa.

William se adiantou e abriu a porta do apartamento. No de Charlie, a porta estava aberta.


Cautelosamente, ele entrou. Encontrou a mãe do garoto de quatro, núa, no sofá. Tinha um
homem fodendo-a por trás, gritando algo que William não compreendeu.

- EI!
- Mas o quê - O homem assustou-se. - Ei, sai daqui, garoto! Essa mulher aqui só trabalha pra
homem!
- Como é?
- Você não ouviu ele? Vai embora!
- Você é a mãe de Charlie, não é?
- Sim, ela é. Agora, se você não se importa, eu quero acabar aqui!
- Escute, colega. Você vai tirar seu pau murcho daí, e vai para casa. Você pode se masturbar
pensando nela lá.
- Ah, mas eu acho que você não entendeu - O homem levantou, e ficou cara-a-cara com
William. Era bem pálido, aparentava ter uns quarenta anos - Essa mulher é propriedade minha.
- Propriedade sua?
- SIM! Propriedade MINHA! Eu sou o cafetão dela, ela trabalha pra mim! E eu digo que ela vai
foder quem eu quiser, na hora que eu quiser, cobrando o QUANTO eu quiser, e agora, eu

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estava aproveitando...
- Estava se aproveitando dela. Já entendi. Ok, então, senhor "Cafetão", vá para casa. E, no
caminho, porque você não aproveita e compra um pouco de loção hidratante? Seu pau tá
parecendo que ficou duas semanas numa bacia de sal.
- COMO É?!?! Ah, mas agora você vai ter. Meu pau tá "Murcho"? Então você vai hidratá-lo.
Você vai chupar ele, até eu dizer chega, ENTENDEU?
- Pff. Não me faça rir. Vá embora, garoto.
- Escuta aqui - O homem pegou um soco inglês - Você foi se meter comigo, agora você vai
chupar, ou vai dançar. Escolhe, fia da Mulher da Vida.
- Você - William sacou uma arma, apontando-a entre os olhos do cafetão - Vai para casa.
Entendeu?
- Eh... Sim, entendi.
- Ótimo. Se vista. Você também - Ele olhou para a mãe de Charlie -. Seu filho está preocupado
na minha casa. Afinal, o que quebrou aqui?
- Meu vidro - A mulher respondeu.
- Seu vidro?
- É, meu vidro.
- Vidro de quê?
- De quê? De fumar CRACK, sua besta! - O cafetão retorquiu. William sacudiu a arma, e ele
voltou a se arrumar.
- Então escute, mãe do Charlie...
- Soninha.
- Como?
- Soninha. Meu nome é Sônia, mas todos me chamam de Soninha - "Boca de veludo!", o
cafetão acrescentou.
- Muito bem então, Soninha. Vista-se. Seu filho está preocupadíssimo na minha cas... - Antes
que pudesse terminar a frase, Soninha caiu, desacordada.

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Capítulo Três

W illiam balançou seu copo de whiskey levemente. Jack Daniels, black label. Sem gelo.
Sem gosto. Whiskey comprado em bares nunca era de qualidade. Se preparava para
entrar no crepúsculo do seu humor.

Ouviu seu celular tocando. Viu o número. Era à cobrar. Desligou. Tomou um gole de whiskey.
Novamente, seu celular voltou a tocar. À cobrar. Desligou novamente. Tomou outro gole. Uma
terceira ligação. Ele desistiu, e atendeu.

- Alô?
- Alô? William?
- Sim. Quem fala?
- Sou eu, Charlie!
- Ei, Charlie. Por que você está me ligando à cobrar?
- Estou na escola!
- Ainda? Mas são sete da noite.
- Minha mãe esqueceu de vir me buscar. Liguei para ela, mas atendeu um homem que eu não
sabia quem era.
- Espere aí. Vou te buscar. - William foi desligar. Depois voltou a falar - Só uma pergunta:
Aonde é sua escola?

Uma moto desceu cantando pela rua da escola de Charlie. Uma Honda Shadow, 750cc. Roxa,
linda. Charlie não prestou muita atenção, esperava a chegada de William. Estava com frio, e
com fome. Queria ir para casa.

- Charlie! - Ele pulou de susto. O homem na moto era William.


- William? O que você está dirigindo?
- Se chama moto. Suba. Vou te levar para casa. Aliás, você deve estar com fome, te levo numa
pizzaria aqui por perto primeiro.
- Como que eu subo?
- Está vendo aquele pedal? Ponha seu pé esquerdo nele, levante-se, e passe a perna direita
pela moto. Aí você senta e se segura.
- Aonde vamos? - Charlie perguntou, já acomodado.
- Num lugar chamado "Queijo na Massa". Vende a melhor pizza que eu já comi.

O lugar era bem decadente. As mesas aparentavam ter quinhentos anos de idade, as paredes
estavam descascadas, e o lugar estava vazio. William, sem parecer notar, sentou em uma mesa
e - Quando um garçom foi atendê-los - pediu uma pizza de calabresa.

- Me diz: Como você comprou aquela moto?!?!


- Bem, garoto, eu não comprei... Eu... Roubei - William sussurrou para o lado.
- Você roubou?!?! De quem?!?
- Bem...

"Tinham uns meses que eu tinha escapado daquela fazenda infernal. Eu acabei indo parar em
Cabo Frio. É uma cidade aqui perto do Rio de Janeiro. Menos de três horas para chegar lá. Eu
passei uns dias na cidade, estava aplicando um golpe num dos - esparsos- hoteís da cidade.

Eu estava num bairro meio pobre da cidade, quando ouço uma voz extremamente familiar,
embora não tenha reconhecido no exato momento. Era meu pai. Como havia ficado três anos

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sem vê-lo, decidi aplicar-lhe uma peça. Entrei no que assumi ser sua casa, e o vi na sala, vendo
TV com sua esposa e seus filhos. O mais velho aparentava ter oito anos.

Na garagem, eu vi uma moto. Era essa mesma que está estacionada aí fora. Eu estava com
raiva do meu pai. Queria inflingir-lhe a mesma dor que ele me causou. Esperei que fossem
dormir. Naquela noite, eu invadi sua casa. Roubei as chaves da moto, e levei-a comigo.
Desligada, para não fazer barulho.

Quando já estava há uma boa distância, liguei a moto e parti pela estrada. Bem, na segunda
tentativa. Na primeira eu quase caí. Mas, depois que aprendi direito a andar, parti pela
estrada. Agora, desses meus dois anos pela estrada, existem três momentos que valem a pena
serem ressaltados.

Um deles foi como eu consegui uma arma. Você vê, a arma que eu consegui na fazenda era
enferrujada, e não funcionava direito. Joguei-a fora quando tive a chance. Enfim. Eu estava
dirigindo pela estrada, morto de sede. Vi um posto de gasolina com loja. Eu não tinha dinheiro,
mas resolvi cometer uns atos ilícitos para conseguir uma bebida e gasolina.

Parei a moto, desci, e coloquei a gasolina. Enquanto isso, fui comprar cervejas. O homem tinha
uma cara de quem tinha sido atropelado por um caminhão que carregava pianos. Eu fui até a
geladeira, peguei um pacote com seis.

O caixa me olhou feio. Eu fingi catar umas moedas, então peguei o pacote e saí correndo para
a moto. Tudo bem, não era o melhor plano. Subi na moto, quando ouvi um barulho alto. Senti
uma dor lascinante no meu braço direito. O vendedor atirou no meu braço. Eu teria saído
correndo, mas paralizei. Estava suando frio.

Senti metal gelado contra minha cabeça. Ótimo. Morrer por causa de seis cervejas. Me virei. O
homem estava olhando para mim de cima - Estava sentado na moto -. Ele olhou para mim,
soltou um riso de maldade, e começou a balbuciar o que eu entendi por palavras.

- Muito bem, sua besta. Você queria cervejas? Agora você vai pagar por elas. - Nesse
momento, ouvi o barulho de um zíper abrindo.

Eu já estava desesperado. Busquei com a mão direita - Cujo braço havia sido baleado - uma
coisa para me apoiar e evitar que caísse. Me apoiei no acelerador da moto. E caí. A moto, para
minha sorte, girou ao meu redor, e atingiu o pervertido de lado. Ele caiu no chão, e, antes que
pudesse fazer algo, me joguei para alcançar a pistola.

- Muito bem, senhor pervertido. Acho que quem dá as cartas agora sou eu.
- Não, não me mata! Por favor! - Foi a primeira coisa que me ocorreu quando eu segurei
novamente uma arma. Matá-lo. Ele merecia, não merecia? Mas, por fim, decidi que não.
Peguei as cervejas, guardei a arma, e dirigi para fora dali - Mas não sem antes garantir que ele
nunca mais fosse tentar abusar de ninguém."

A pizza chegou. Os dois comeram, rindo e se divertindo. Por fim, William o levou de volta para
casa. Charlie dormiu ouvindo o barulho de uma cama rangindo ao longe. E William dormiu com
um copo de whiskey nas mãos e - Como constatou no dia seguinte - uma garota nos braços.

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Capítulo Quatro

-V amos! Me deixe entrar! - Foi tudo o que William ouviu.


- Mãe! Me deixa entrar!
- Ei, Charlie - Charlie sobressaltou-se.
- Ei! William, minha mãe não me deixa entrar em casa!
- Por que você ainda está de uniforme?
- O quê? Isso não importa! Eu quero ir pra casa!
- Você saiu, ou algo do gênero?
- Você está me ouvindo? Minha mãe me trancou do lado de fora de casa!
- Sua mãe está trabalhando - William ficou de saco cheio - Você sabe disso. Venha, você pode
ficar no meu apartamento até ela... Tirar uma folga.

O apartamento de William cheirava à cigarros, whiskey, e boceta. Charlie sentou-se no sofá,


perto da televisão. Ele, contudo, se sentou perto da mesa de cabeceira, com um copo de
whiskey nas mãos, e um cigarro na boca.

- OK. Agora me diga: Aonde você estava?


- Hein? Na rua.
- Na rua? - O olhar desferido à Charlie gelou seu sangue.
- Sim. Na rua. Eu saí.
- Saiu... Com quem?
- Com...
- Com...?
- Uma garota.
- Ah - William riu - Meus parabéns! Ela te beijou?
- Sim. Ela também fez uma coisa estranha... Mas que foi muito boa.
- Uma coisa estranha?
- Sim... Ela tirou as roupas dela. E as minhas - Ele assentiu, esbugalhado - E começou a brincar
com meu... - Charlie apontou para seu pênis.
- ... Huh. Bem... Acho que... Já estava na idade, né... Você tem treze anos...
- Tenho dez.
- ... Então não estava mesmo na idade. Mas, pelo menos, é uma coisa a menos na sua lista de
"Transas à fazer". Ah, e meus parabéns. Você jogou Tetris.
- William.
- Hein?
- Eu já tinha entendido.
- Ah. Bem, pelo menos agora você sabe como é sexo. Só por curiosidade, quantos anos ela
tinha?
- Não sei. Mas ela era do Segundo Grau.
- Ah - A expressão na face de William era deprimente.
- Foi bom.
- Como?
- O que ela fez. Foi muito bom.
- Bem, agora você sabe porque os adultos fazem. Se você fosse um pouco mais velho, eu te
daria um copo de whiskey como comemoração.
- Comemoração? Minha mãe me dá isso quando eu não consigo dormir.
- ... Bem, é outra opção. Mas para dormir, eu prefiro as pílulas mesmo.
- Que pílulas?
- Eh, nada. Ei, já que você já sabe como é sexo, eu posso te contar o resto da história sem ter

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que usar metáforas. O que é chato, já que eu passei a semana inteira pensando nisso.
- Você pode contar agora?
- Claro. Claro. Se acomode, pois desta vez são duas histórias em uma.

"Vamos começar por como eu perdi a virgindade. É uma história curta, mas acho que, já que
estamos no assunto...

Eu tinha treze anos - Isso mesmo, você ganhou de mim -, e estava viajando. Sem dinheiro,
como sempre. Estava de noite, e eu estava morto de sono. Achei um Motel. Estacionei a moto
em um lugar parcialmente escondido, e procurei um quarto aonde parecesse não ter ninguém.

Achei um. Arrombei a fechadura, e entrei. Assim que entrei, deitei na cama e assim fiquei. Só
depois de algum tempo, eu notei um barulho: Um chuveiro. Estava desligando. Pulei da cama,
e corri para a porta, quando ouço:

- Quem raios é você?


- Bem... - Me virei. À minha frente estava uma mulher linda, nua. Aparentava ter uns vinte
anos. No seu seio direito, tinha uma cicatriz.
- Eu... Err...
- Vamos! Responda! Quem é você?
- Eu... Olha... Desculpa. Eu só queria um lugar para passar a noite. Não tenho dinheiro para
pagar por um quarto. Vou procurar outro que esteja vazio. Só por favor, não me denuncie.
- ... Bem... - A mulher me fitou com um olhar de pena - Você pode passar a noite aqui. Feche a
porta.

Quinze minutos depois, estávamos na cama. Ela continuava nua, e seu corpo à luz do luar
refletia com um brilho estranho. Achei maravilhoso. Ela soltou um grunhido. Achei estranho.
Ela virou-se, e fitou-me com aqueles olhos penetrantes. Achei excelente.

- Você é gay?
- Hein?
- Gay. Homossexual. Bicha.
- Eh, não.
- Tem certeza?
- Sim. Tenho. Por quê?
- Qualquer homem já teria me comido.
- Te comido?!
- Sim. Sexo.
- ... Ah.
- O quê foi?
- Más lembranças disso.
- Por que, alguém já te enfiou o dedo? - Ela começou a rir descontroladamente.
- Não! Mas... Esquece.
- ... Tudo bem. Ah, se você quiser me comer, pode ir em frente.
- ... Você sempre é assim?
- Como?
- Você não tem amor próprio? "Se você quiser me comer" ... Vamos, você tem que se amar um
pouco mais.
- Como é?!
- Eu só estou dizendo... Você tem uma atitude de...
- De...? Vamos, completa!
- De puta. - Ela ficou furiosa.

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- ESTÁ ME ACHANDO UMA PUTA?!? POIS BEM, ENTÃO VOU AGIR COMO UMA! - Ela montou
em mim - O que acha disso?
- Ei, mas o quê - Ela me beijou. Abriu minhas calças. Voltou a olhar para meu rosto. Deu uma
risada, e começou. Eu não sabia se ficava alegre, prazeroso, ou insultado. Decidi pelo segundo.

Eu ejaculei em quinze segundos. Era minha primeira vez, afinal. Ela sentiu. Fitou-me,
espantada.

- Quantos anos você tem?


- E-eu tenho... Treze.
- Então eu...
- Sim.
- Eu... Eu sinto muito - Ela caiu sobre mim. Seu rosto estava cheio de lágrimas. Tentei consolá-
la, mas ela adormeceu. No dia seguinte, saí sorrateiramente. Nunca soube seu nome.

Agora, o segundo momento foi quando eu comecei a gostar de sexo.

Eu já tinha quatorze anos, e tinha acabado de chegar numa pequena cidade evangélica. Era
bem evangélica. O pastor, praticamente prefeito da vila, me deixou passar umas noites na
Igreja. Ele tinha uma filha, da minha idade. Muito bonita.

A filha se chamava Alessandra. Era bem singela. Humilde, simples. Tinha cabelos loiros,
daqueles tipos que a mídia vende como sendo 'Perfeitos'. Ficamos amigos bem rápido. Eu
lembro que fiquei umas duas semanas na cidade.

Pois bem. Alessandra já estava na idade - Acreditavam eles - para se casar. O marido que lhe
arranjaram era um velho de quarenta e poucos anos. Ela estava receosa com aquilo. Eu sentia
aquilo. Uma noite, eu fui acordado sendo acariciado por alguém. Primeiramente, quase pulei
da cama - Achei que era o pastor. Era Alessandra.

- ... Alessandra...?
- Shh.
- Desculpa. O que você está fazendo aqui?
- Nada. Estava sem sono, e tive vontade de te ver. Por que, isso é ruim?
- Não... Apenas gostaria que você não tivesse me acariciado assim. Me assustou.
- Por que?
- Bem... Sendo honesto, eu achei que fosse seu pai - Ela soltou uma risada fraca. existia algo de
reconfortante nela.
- Acho que meu pai não prefere esse tipo de amor.
- Acho que tem razão. Mas agora, seja você a honesta: Por que está aqui?
- Meu casamento é amanhã.
- Sim, eu sei. Prometi que ficaria, não prometi?
- Eu não quero me casar - Uma lágrima desceu de seus olhos.
- Como?
- Eu não quero me casar. Estou com medo. Aquele... Velho... É um pervertido.
- Alessandra... Eu... Gostaria de poder fazer alguma coisa.
- Você pode.
- Posso?!
- Si... Não. Esqueça.
- Não! Eu quero ajudar - Eu me sentei. Ela me olhou com uma expressão tão triste que
qualquer outro homem teria chorado.
- Escute, Alessandra, se tiver como eu ajud - Ela me beijou. Rolamos na cama. Eu acabei em

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cima dela. Ela assentiu levemente com a cabeça, e eu tirei sua roupa. Era linda. Perfeita. Era de
outro homem. Bem, eu pretendia mudar isso.

No dia seguinte, o pai dela nos descobriu na cama, e expulsou nós dois da cidade. Eu a levei de
moto até uma cidade que, segundo ela, moravam alguns parentes dela. Depois que ela foi
expulsa, ela mudou. Ficou deprimida, triste. Não conversava, só respondia
monossilabicamente.

Mas, depois de duas semanas, finalmente chegamos à cidade. Achamos a casa dos parentes
dela (Ela se lembrava do endereço dos presentes de aniversário que chegavam pelo correio), e
ela se despediu de mim, da mesma maneira que passou a viagem. Não parecia certo. Ela ia
tocar na campainha da casa, quando eu a chamei. Ela se virou, e a beijei.

- Lembre-se, Alessandra: As pessoas podem te magoar, mas sempre terá uma pessoa que te
ama: Eu. Qualquer coisa, é só chamar. - Eu esperava um tapa, um soco, ou até mesmo um
choro, mas tudo que ela fez foi me beijar de volta. Depois, eu subi na moto, ela tocou a
campainha, e nunca mais nos vimos."

Charlie ouviu tudo atentamente. Seus olhos pareciam brilhar.

- Então... Você amou aquela garota, Alessandra?


- Sim. E ainda amo. Às vezes, quando estou sozinho no escuro, me lembro de como eram seus
cabelos dourados, o perfume que exalavam... E relaxo. Eu gostaria de ter conhecido-a em
outra época, outra situação...
- Mas você não tinha uma outra namorada, aqui? Eu lembro de uma mulher ter morado aqui.
- Bem, Charlie, eu sou um homem capaz de amar mais de uma mulher. Agora vá, sua mãe já
deve estar de "Folga".

Charlie correu para casa, deixando William sozinho, no escuro. Ele apagou seu cigarro, e
terminou seu whiskey. Jogou os pés em cima do sofá, pensou em Alessandra, e dormiu, como
não conseguia há anos.

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Capítulo Cinco

"O
k." William começou. Charlie tinha voltado do colégio com um 10, a condição para
que ele contasse mais uma história - Imposta pela falta de vontade de William de
contá-la. "Já que você quer tanto, eu vou contar.

Eu fiquei uns dois anos viajando sem rumo pelo país. Por fim, eu descobri que tinha
acidentalmente voltado para Cabo Frio, aonde morava meu pai. Eu já estava de saco cheio da
estrada. Lembro que na época estava usando umas roupas de motoqueiro que já fediam. E
estavam praticamente estragando.

Então eu decidi ficar em Cabo Frio. Eu tinha quinze anos, ou seja, quatro anos atrás. Cabo Frio
ainda era relativamente vazia, então eu não tive muitos problemas em arranjar um
apartamento barato. Consegui um pequeno emprego como entregador de pizza. Não era o
melhor emprego do mundo, mas pagava o aluguel.

Mas então, o alguel subiu. Mas meu salário não. Portanto, eu comecei a procurar por outros
empregos. Meu antigo colega de trabalho, Hugo, me disse que conhecia um excelente lugar
para negócios. Era só pegar uma mercadoria que vinha do Rio e trazê-la à um amigo dele. Eu
faria isso toda semana, e receberia mil por semana. Não pude recusar.

Acontece que a "Mercadoria" era tráfico de drogas. Eu não me importei, já havia feito coisas
piores. E, inclusive, decidi experimentar. Comecei com maconha. Era bom. Relaxava,
descansava. Depois de três meses, decidi tentar cocaína. Gostei. Viciei.

Um dia, eu tive uma briga feia com Hugo, que passou a ser meu fornecedor. Parei de trabalhar
com ele. Ouvi notícia que um jornal estava começando, e precisava de jornalistas. Decidi
tentar. O editor-chefe era bem humorado, e, aparentemente, "Viu potencial em mim".

Eu era um escritor mediano. Nunca expressava muita coisa, e minhas crônicas - Que eu
também fazia - Sempre se tratavam de algumas piadas frouxas organizadas de forma
inteligente. Não era grandes coisas, mas eu gostava.

Certo dia, Hugo me ligou. Disse que tinha algo que iria "Arrasar com o que eu considerava
viagem". Fui à sua casa. Ele tinha LSD. Experimentei. LSD é uma droga que você ingere. Quase
uma pílula. Não dá pra explicar direito. Enfim. Minha vida mudou depois daquilo.

A primeira coisa, foi que fiquei mais ousado. Minhas crônicas agora tinham opiniões. Eu
arranjei umas brigas com prefeitos, candidatos, etc. E tudo que eles falavam de mim, eu
retrucava humilhando. E eles nunca podiam fazer nada. Mesmo embora eu fosse um maldito,
eu era um maldito esperto. Nessa época, eu ganhei o apelido de "Navalha".

Mas eu era ultra-dependente de LSD. E, no final, tudo despencou. Eu fui pego. Fiquei preso por
dois meses - Advogados do jornal eram bons. Depois disso, decidi largar da droga. Avisei para
meu editor-chefe que iria largar, e que ele me deixasse em paz até que eu tivesse livre do
vício.

Mas eu não quis ir para uma clínica de re-habilitação. Aquilo era bobagem na época, e nunca
funcionava. Eu me tranquei no meu apartamento, e fiquei lá por seis meses. Os primeiros dois
foram os piores. Eu sentia frio, calor, depressão, ânsia, tudo ao mesmo tempo. Achava que iria

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morrer.

O tempo se arrastava lentamente. Um dia parecia dez anos. Dois meses pareceram para mim
dois milênios. Mas, por fim, eu parei de ansiar a droga. Fisicamente, quero dizer. Eu ainda
fiquei mais quatro meses encarcerado, por garantia.

Mas, no final, eu estava livre. O vício era algo do passado. Eu voltei a trabalhar, mas foi por
pouco tempo. O Navalha estava acabado, e eu não queria que ele voltasse. Então eu pedi que
me deixassem como redator por correspondência, e me mudei para cá, Rio de Janeiro.

Eu passei dois anos aqui sem muitas coisas acontecerem de fato. Criei para mim mesmo uma
reputação de "Seguidor das Três Leis" - Isto é, Sexo, Drogas (Embora eu apenas fumasse e
bebesse. Mesmo em excesso), e Rock & Roll -. Era - Ainda sou, mas isso não importa muito -
um mulherengo. Bêbado. Mas me divertia.

Eu voltei a falar com uma amiga minha, que eu conheci quando tinha sete anos. É algo
interessante, mas isso eu te conto outra hora."

- Sabe...
- Sim?
- Eu nunca vou usar drogas.
- Hah... Excelente então. Se eu influenciei alguém à ir pelo caminho certo, então acho que
minha vida teve algum propósito. Agora vá, já está tarde.

William estava bebendo um whiskey, quando Charlie soltou um berro. Ele correu para o
apartamento dele. A porta estava fechada. Arrombou-a. Encontrou-o na sala, chorando. No
sofá, estava sua mãe.

- Charlie?
- Minha mãe, ela...
- Acalme-se... Deixe-me ver - Não tinha pulsação. Ele percebeu que o purificador dela estava
no seu colo. "Ótimo", pensou ele. "Ela teve uma overdose com crack. E agora?" Charlie chorou
mais alto quando viu a expressão de William. "Agora," Ele se repreendeu. "Você vai levar o
Charlie para a cama. Agora isso não importa."

Charlie ficou sozinho no seu quarto, chorando. William estava no apartamento dele, cobrindo
o corpo da mãe com um lençol. Depois voltou para casa. Charlie chorou no seu ombro a noite
inteira. "Mas... E agora?"

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Capítulo Final

C harlie seria adotado. Não havia escolha. Não havia discussão. Era a coisa certa a fazer, e
ambos sabiam disso. Ele passou a semana na casa de William, deprimido. Mal saía da
cama. William entrevistou pessoalmente casais querendo adotar, e ameaçou três
pedófilos.

Por fim, encontrou um que achou ser perfeito. Eram de classe média alta, e eram estéreis, e
desejavam muito um filho. O homem era alto, do tamanho dele, e a mulher era bem amigável
- Demais, até. Ele decidiu que eles seriam os escolhidos, mesmo que aquilo o matasse.

Era o dia que Charlie iria embora. Os dois estavam sentados no sofá, um fitando o outro. Por
fim, Charlie desistiu.

- William?
- Sim?
- Você pode terminar a história? Eu não quero ir embora sem que você a termine.
- Ah... Claro. Acho que eles ainda demorarão um bocado.

"Vamos terminar então. Eu estava com dezoito anos. Estava namorando uma garota que não
me amava - Queria fazer ciúmes no homem que ela amava, mas que não a amava -, e
trabalhando como redator correspondente no jornal. Eu gostava de sair à noite, mesmo que a
Lúcia ficasse emburrada reclamando do amor da vida dela.

Um dia, ela me largou. O cara que ela amava finalmente deu alguma bola para ela.
Sinceramente, não pude deixar de notar a semelhança entre a atitude dela, e a atitude de um
cachorro com seu dono. Provavelmente o cara adorava isso. Enfim.

Eu nunca me importei muito com ela, de qualquer forma. Na noite que ela me deixou, eu
marquei com uma amiga de infância minha, a Layla, e saímos. Fomos num bar de Rock- Que
por sinal, tem a melhor seleção de músicas para um bar que eu já ouvi até hoje - e bebemos
bastante. Mas bebemos muito. No dia seguinte, ela percebeu que tinha feito o maior erro da
vida dela: Transado comigo.

Você vê, na época, a Layla namorava um completo babaca. Eu conhecia ele muito bem: Era o
tipo especial de babaca que você vê por aí, que trata mulher como lixo. Honestamente, eu
detestava aquele cara. Aliás, ainda detesto. Enfim.

O que foi um erro de uma noite, um acidente bêbado, passou a ser mais que isso. Layla e eu
começamos a gostar um do outro. De uma outra maneira. É meio irônico, já que ela sempre
me chamava de mulherengo, alcoólatra, e umas outras palavras que me faziam rir.

Até que a casa de cartas caiu, como sempre ocorre. O namorado dela descobriu, e pegou-nos
no ato. Meteu um soco no meu nariz - Isso eu admito: Ele tem um gancho extraordinário -, e
deu um tapa na face da Layla. Foi aí que eu fiquei irritado. Tudo bem que saí totalmente
dolorido, e com um braço torcido, mas ele tomou um pouco de justiça - Isso sem contar que
eu era manco naquela época. Ah, é uma longa história. Acidente de moto, nervo danificado.
Três meses atrás, nervo simplesmente rompeu, e o seguro pagou a cirurgia. Enfim,
continuemos.

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À partir daí, Layla e eu namoramos. Eu já a amava perdidamente antes, mesmo sem saber,
mas agora era simplesmente excelente. Era um tipo estranho de excelente. Mantinhamos um
relacionamento aberto - Isso é, podíamos transar com outras pessoas, que não era traição.

Eu até hoje acho que ela simplesmente sabia que, uma hora ou outra, eu acabaria fazendo
isso. Talvez estivesse certa, eu não sei. Não acho que seria capaz de machucá-la. Mas, por fim,
o relacionamento dava certo. Namoramos por oito meses.

Numa ocasião, o pai da Layla morreu. O funeral foi deprimente. Eu não me aproximei do
caixão. Encontrei minha ex-namorada lá, a Lúcia. Ela ficou parada do meu lado durante todo o
velório, e, apenas no final que ela começou a conversar comigo. Sem nem ao menos olhar para
mim.

- Então... Você arranjou uma nova namorada.


- Yep.
- Huh.
- ... Pois é.
- Eu já sabia que vocês iam acabar juntos.
- Obrigado. Eu acho.
- Não deu certo.
- Como?
- Ele e eu. Me deixou por uma biscate aí qualquer.
- Ah.
- Você estava certo.
- Hein?
- Eu deveria ter esquecido do assunto.
- Ah... Bem, todos somos tolos quando se trata de amor.
- Talvez. Acho que só estou cansada.
- Bem, o que se vai fazer.
- Não sei. Estou pensando em me enterrar viva. Quer me acompanhar?
- ... Bem, a Layla vai ficar sem falar comigo e de luto por uma semana. Claro. Devo levar minha
própria pá?
- Sempre levamos.

As conversas com a Lúcia sempre eram estranhas. Mas, antes que eu me esqueça, foi o pai da
Layla que deu esse nome para ela. Ele amava a música do Eric Clapton. O que me deixou com
uma série de perguntas que eu nunca saberia, mas não acho que importa. Enfim. Depois da
morte do pai da Layla, ela se desprendeu totalmente da família - Ela e sua mãe sempre
brigavam um bocado. Ela passou a freqüentar minha casa.

Estranhamente, ela não usava interfones para avisar que estava querendo subir. Ela arranjou
um método estranho de atirar pombos mortos com mensagens na minha janela. Alguns
simplesmente diziam 'Olha o que achei na rua.', enquanto outros eram ainda mais inúteis.
Decidi que, antes que chamassem o Ibama, ela deveria morar comigo.

E ela morou comigo por dois, três meses. Nessa época, eu tinha acabado de fazer uma cirurgia
na minha perna, devido à minha manqueira do nervo da minha perna, então ela praticamente
fazia tudo na casa. Umas duas semanas antes que eu removesse o gesso, ela começou a agir
estranho.

Ela estava flutuando. Parecia estar variando entre extrema depressão e euforia. Eu conhecia
aquilo. Era o sintoma de drogado. Uma semana depois de ter tirado o gesso, eu encontrei uma

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seringa usada no meu armário. Era heroína.

Eu passei a noite esperando por ela. Ela chegou completamente dopada. Eu mostrei as
agulhas. Ela ficou extremamente irritada comigo. Fugiu. Eu tentei me acalmar um pouco -
Estava tremendo de raiva, tristeza, e um infernal desejo pela droga. E fui atrás dela.

Ela já tinha escapado havia tempo. Fui na casa da mãe dela. Ela cuspiu no meu olho. Fiquei
meia hora na rua, quando comecei a raciocinar. Quem poderia ter vendido a droga? Alguém
deveria saber quem eu sou. Subitamente, eu percebi quem era. Quem tinha se mudado para o
Rio dois meses depois de mim, que havia me perturbado durante o resto do tempo.

Bati na porta, e ele atendeu. Hugo, o maldito traficante. Me viciou, e tinha viciado a Layla.
Genial. Assim que eu ouvi sua risada dopada, aquilo foi suficiente. Eu poderia ter morrido ali.
Nada me deixou mais deprimido em toda minha vida do que aquilo. O som da Layla sendo
corrompida por uma seringa emporcalhada. Aquilo foi demais para mim.

Peguei a Layla. Carreguei-a para fora. Hugo gritou comigo. Eu a pus no chão. Dei um soco no
nariz dele - É, também sou bom de ganchos -. Ele pegou uma faca e enfiou-a na minha perna.
Justo a que era manca. Eu saquei meu revólver. Aquilo foi a gota d'água. Atirei na cabeça dele.
Não deveria ter feito aquilo, e me torturo todo dia por causa disso, mas não havia como reagir
de outra maneira.

Por fim, eu deixei a Layla na casa da mãe dela. Ela a mandou para uma clínica de re-
habilitação, e não me disse aonde era. Até que um dia ela veio pegar as roupas dela aqui. Eu já
estava mais do que deprimido. Ela percebeu, e, finalmente, me disse aonde era a clínica.

Eu fui no dia seguinte. A visão era horrível. Layla, numa cama, num quarto totalmente branco.
Ela sentou quando me viu. Seus olhos só desejavam uma coisa: Heroína. Não havia o que fazer.
Ela me puxou. Pediu drogas. Eu recusei. Nem ao menos carregava. Ela começou a me xingar.
Não parecia mais a mesma pessoa. Eu não tinha escolha. A mãe dela estava certa: Enquanto
ela continuasse a me ver, nunca superaria o vício. Tudo terminou ali, com ela inconsciente
demais para entender."

- William?
- Sim?
- Você algum dia voltou a falar com ela?
- Não.
- Mas vai voltar, certo?
- Bem, Charlie... Eu não sei. - William olhou o relógio.
- Ainda não está na hora. Temos tempo para mais uma história - Ele esfregou as lágrimas -,
mas não tenho mais nenhuma da minha vida.
- William...
- Fale.
- Você pode me contar uma história de cavaleiros? Aquelas com princesas, dragões?! - Os
olhos de Charlie brilharam. Quase parecia de propósito.
- ... Tudo bem.

William contou uma história, ao seu ver, mediana. Bem clichê, mas era o que Charlie queria.
Por fim, os pais adotivos chegaram. William levou-os ao elevador, junto com Charlie. Antes de
ir embora, o garoto correu e abraçou-o, ambos em lágrimas. A mãe adotiva chamou William
para um canto.

98
- Ele parece realmente gostar de você.
- Sim... Ele realmente é um garoto incrível.
- Bem... - Ela entregou-o um pedaço de papel - Ligue-me algum dia. Podemos discutir sobre o
Charlie... E algo mais.
- ... Olhe... - William enxugou as lágrimas uma última vez - Obrigado. Eu vou guardar isso.

Por fim, Charlie foi com seus pais adotivos. William ficou debruçado na janela, e assim passou
a noite inteira. Sentiu o Sol raiar, iluminando sua face. Tirou do bolso o telefone da mulher.
Deu uma última olhada, amassou-o, e jogou pela janela. Terminou seu whiskey.

99
O Cavaleiro e o Dragão

Parte Um:
O Cavaleiro

R aios de luz desceram aos seus olhos, enquanto ele observava a trilha, triunfante. A
caverna do dragão estava próxima. Em suas mãos, ele carregava uma espada, e em suas
costas, um arco, e sua aljava ainda cheia.

O vilarejo tinha medo daquele Dragão. Era o último de sua espécie, e por isso, poderia ser o
mais violento. Foi aí que o herói entrou. Ele viu no Dragão sua chance de conseguir fama, e
aproveitou-a.

E o herói chegou na caverna. O cheiro de fogo entrou por suas narinas, enquanto ele
venturava por aquelas cavernas maliciosas. Por fim, ele viu o temido Dragão.

Suas escamas douradas brilhavam juntas mais que o Sol. Suas asas eram inigualáveis, e fariam
inveja a qualquer ave. Seu porte deixaria até mesmo o maior dos reis parecendo um mendigo
bêbado.

O herói correu para o ataque, urrando. O Dragão por um segundo não notou sua presença,
mas depois tentou desviar, sem sucesso. O herói fincou sua espada nas costelas do Dragão,
que gritou de dor.

Mas então o Dragão revidou, e levantou vôo, jogando o cavaleiro, e sua espada, no chão. O
cavaleiro então sacou seu arco, e começou a atirar contra o Dragão.

Por fim, o Dragão caiu, e o Herói saiu vitorioso. E ele voltou para o vilarejo, mas não sem antes
arrancar a cabeça do Dragão. Não existiriam outras manhãs para ele.

Parte Dois:
O Dragão

E scuridão. Ele olhou ao redor, e não viu nada. Tentou se mover, mas viu que estava preso.
Tentou forçar, e ouviu um estalo. Viu um feixe de luz, e, forçando ainda mais, viu que o
feixe aumentou. Forçou ainda mais, e o ovo quebrou.
Viu árvores, plantas, e flores. Pássaros voavam altos no céu azul, e ele viu outros como ele,
outros Dragões, de diferentes cores. Olhou para baixo e viu que tinha pequenas escamas
douradas.

Olhou para algumas flores roxas, e decidiu vê-las de perto. Cambaleou até elas, e cheirou.
Reconheceu aquele cheiro como bom, e se alegrou. Ouviu um chamado, e, olhando para a
fonte do som, viu um Dragão enorme, que seu instinto chamou de "Mamãe".

E sua mãe o ensinou sobre a floresta, sobre a vida, sobre tudo. Nunca conheceu seu pai. E o
pequeno Dragão foi crescendo, ficando mais forte, maior.

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Mas, quando ficou adolescente, uma catastrofe ocorreu. Ele vivia normalmente na tribo, e sua
família - Sua mãe - o amava muito. A vida era boa, então.

Entretanto, num dia toda sua vida mudou. Humanos atacaram a tribo, milhares de humanos,
coisa que nem os Dragões conseguiram lidar. Os mais velhos lutaram bravamente, e
morreram. Os mais novos foram aniquilados.

E o jovem Dragão foi atacado, e ferido. Sua mãe ordenou que ele corresse, e ele o fez. Fugiu
voando, ainda ferido, e ouviu os urros de sua mãe morrendo.

Sua raiva suplantou completamente sua razão. Ele pensava em voltar e se vingar, de matar
todos aqueles humano miseráveis pelos crimes que eles fizeram, mas ele caiu atordoado antes
que pudesse dar meia-volta.
Acordou mais tarde, e viu uma faixa cobrindo seu ferimento. Olhou ao redor, e viu um humano
cuidando dele. Primeiro pensou em atacá-lo, mas depois pensou duas vezes. Viu que o
humano estava ajudando ele.
Depois de se curar totalmente, agradeceu o humano, e foi embora. Começou a duvidar sobre
os humanos, e acabou por resolver que não iria se vingar. Afinal, nem todos os humanos eram
maus.

Os anos passaram, e ele escolheu uma caverna para viver. Vivia deprimido, com a solidão. Era
o último de sua espécie, e nunca mais veria outra fêmea novamente.

Então aconteceu o inesperado. Um homem entrou em sua caverna, e começou a atacá-lo, sem
nem ao menos falar nada. Ele enfiou uma espada em suas costelas, enquanto o Dragão urrou
de dor.

Tentando não machucar o cavaleiro, o Dragão começou a voar, na esperança de espantar o


atacante. Por fim, levou tantas flechadas que caiu, morto, aos pés do cavaleiro. E, no fim, viu
sua mãe, sua família, e sua tribo.

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Sobre o Autor & Agradecimentos

V ictor Biancardine é, acima de tudo, um vagabundo. Ele também escreve nas horas
vagas, e costumava manter um blog, o “Biancardine, o Estoriador”, que fora
recentemente fechado. Ao perceber que tinha conteúdo o suficiente para encher um
pequeno livro, ele o fez, e ainda está no processo de revisá-lo para modificar alguns erros de
revisão e etc.

O autor pode ser contatado tanto em seu e-mail (victorbiancardine@hotmail.com), quanto em


seu twitter (@Biancardine). Ele gostaria de aproveitar a ocasião para agradecer você, o leitor,
por ter lido até aqui, e torce para que tenha aproveitado os textos aqui apresentados.

Nota: Todos os textos aqui apresentados foram criados e finalizados entre 2008 e Fevereiro de
2010.

“Obrigado pela leitura, e espero que goste de outros trabalhos meus, que poderão ser
encontrados no meu Scribd (http://www.scribd.com/vBiancardine).”

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