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Abstract This paper has the aims of syn- Resumo Com os objetivos de sistematizar
thesizing some of the approaches related os esforços para a utilização da epidemio-
with the use of epidemiology in health ser- logia nos serviços de saúde, descrever algu-
vices, of describing some proposals and of mas propostas construídas no Brasil e discu-
discussing the feasibility and obstacles for tir obstáculos e possibilidades de recompo-
structuring epidemiological practices inside sição das práticas epidemiológicas no Siste-
Unified Brazilian Health System (SUS). The ma Único de Saúde (SUS), o ensaio apresen-
essay describes some aspects of the epi- ta elementos da crise da epidemiologia e
demiology’s crisis and analysis some con- analisa certos constrangimentos impostos
straints to the use of epidemiological knowl- ao desenvolvimento da racionalidade téc-
edge in health services management. The nico-sanitária e à incorporação tecnológi-
main achievements and turn backs related ca do saber epidemiológico na gestão em
to that issue, during the SUS implementa- saúde. São identificados avanços e recuos
tion processes, are identified. Finally, some desses processos durante a implementação
proposals related to the development of a do SUS e apresentadas algumas proposições
counter hegemonic epidemiology are dis- para a construção coletiva de uma epide-
cussed looking forward the creation of a new miologia contra-hegemônica que contribua
public health practice based on planning na constituição de sujeitos sociais compro-
and management of a effective, democrat- metidos com uma prática sanitária que
ic, human and equitable health system. aposte na planificação e gestão de um siste-
Key words Epidemiology, Health services, ma de saúde efetivo, democrático, humani-
Planning zado e equânime.
Palavras-chave Planejamento e gestão em
saúde, Prática epidemiológica, Epidemio-
logia em serviços de saúde
1 Instituto de Saúde
Coletiva da Universidade
Federal da Bahia.
Rua Padre Feijó 29,
4 o andar. Campus Canela
40210-070, Salvador BA.
jairnil@canudos.ufba.br
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“situação de risco”, atenta contra os direitos dos indi- aquela que constrange os cidadãos, submetendo-os
víduos e comunidades colocando-os no mesmo nível à “autoridade de epidemiologia” que pode ser um
dos animais! (Abrasco, 2002). ministro da Saúde, um presidente de Agência, um
Sob o ponto de vista da gestão das secretarias es- secretário de Saúde, um tecnoburocrata ou um ins-
taduais e municipais de saúde, a pulverização do co- petor de quarteirão? (Abrasco, 2002). A epidemiolo-
mando federal sobre o SUS, além de configurar o ris- gia que gera informação relevante para os que so-
co de fragmentação das orientações políticas, princi- frem os processos destrutivos da organização das ci-
palmente por separar o que se havia tentado unir, is- dades e, em última análise, da lógica capitalista ou a
to é, a assistência médica (antigo Inamps), a vigilân- epidemiologia que mascara a realidade, domestica e
cia epidemiológica e sanitária (antigo MS), repre- controla as populações de acordo com os interesses
senta um acréscimo de complexidade nas relações de tecnoburocratas e em função dos projetos políti-
intergovernamentais com o nível federal (Teixeira, co-ideológicos das classes dirigentes? Uma epide-
2002). Ademais, os níveis estadual e municipal do miologia dos “de cima” para reproduzir seus privilé-
SUS podem vir a reproduzir, mecanicamente, à ima- gios e exclusão social ou dos “de baixo” para produ-
gem e semelhança das estruturas federais, produ- zir informação e poder em busca da eqüidade e da
zindo o reconfinamento da epidemiologia em cer- efetividade?
tos guetos da burocracia sanitária. Como já se aler- Portanto, a epidemiologia, como disciplina cien-
tara há uma década, a organização sanitária brasi- tífica ou como ferramenta de gestão, não é inocente,
leira já pagou um alto preço pelo mimetismo organi- neutra, nem paira sobre os interesses de classes e os
zacional e pelo artificialismo das reformas adminis- respectivos projetos políticos e ideológicos. Como
trativas (Paim & Teixeira, 1992). prática social, não se encontra livre das determina-
Diante desse quadro, o CNS aprovou a proposi- ções que a estrutura social faz incidir sobre as práti-
ção de transformar a MP 33 em projeto de lei e o cas de saúde. Diante da crise da disciplina, distintas
Congresso Nacional rejeitou tal MP em 17/4/02. La- propostas têm sido formuladas por epidemiologis-
mentavelmente, o projeto de lei que substituiu a MP tas e pensadores da medicina social e da saúde cole-
ignorou olimpicamente as críticas e sugestões apre- tiva latino-americana tais como: a) recuperar as ex-
sentadas no V Congresso Brasileiro de Epidemiolo- periências relevantes acumuladas na história da epi-
gia e insiste na criação da Apec, mantendo o “estado demiologia e de outras disciplinas que estudam a
de quarentena federal” no qual os cidadãos terão de saúde e seus determinantes; b) redirecionar o desen-
se reportar, periodicamente, à “autoridade de epide- volvimento teórico, metodológico e operacional da
miologia” (Abrasco, 2002). disciplina; c) deslocar o atual modus operandi da
Assim, a Reforma do Estado que o Governo tem prática científica da epidemiologia para temas de
implementado no setor saúde nos últimos anos, prevenção e para o desenvolvimento de novas bases
longe de atender aos pressupostos modernizantes e éticas, coerentes com seus compromissos sociais e
democratizantes anunciados (Pereira & Grau, históricos (Barreto, 1998); d) proceder a uma análise
1999), caracteriza-se pela criação de agências como crítico-epistemológica de categorias centrais como
parte das reações espasmódicas diante da crise sani- “causalidade”, “determinação”, “risco”, “exposição”;
tária e das denúncias da mídia. Nesse contexto, a ra- e) promover uma discussão ampla sobre metodolo-
cionalidade técnico-sanitária que a epidemiologia gia (Breilh, 2002).
poderia proporcionar à gestão do sistema de servi- Se a epidemiologia for pensada para além da sua
ços de saúde praticamente desaparece no processo dimensão técnica, outros desafios apresentar-se-iam
decisório, predominando um conjunto de interesses diante da práxis. Nessa perspectiva, teria de ser uma
menores da burocracia associados aos das classes testemunha crítica dos processos destrutivos para a
hegemônicas. vida que se realizam na sociedade, uma ferramenta
de monitoramento da qualidade de vida e da saúde,
um instrumento de “empoderamento” da popula-
Comentários finais ção e uma arma de planificação estratégica e partici-
pativa (Breilh, 1998).
Diante dos fatos acima examinados e ao se discuti- Portanto, revisar criticamente o paradigma
rem certas possibilidades de as práticas epidemioló- científico dominante pode ser uma via de analisar
gicas serem recuperadas para a gestão do SUS, é per- certas possibilidades de transição paradigmática no
tinente indagar qual epidemiologia está no horizon- campo da saúde coletiva, diante da complexidade
te das propostas? A epidemiologia solidária à efeti- do objeto da epidemiologia. Nesse caso, caberia
vação do SUS, através do acesso, qualidade e huma- aproximar a ciência da sociedade e seus problemas,
nização na atenção à saúde, com controle social, ou ampliando sua capacidade de produzir conhecimen-
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to crítico e propositivo. Conhecimento ético, emanci- ando fundábamos el movimiento de la salud co-
pador, solidário e democrático (Drumond, 2001). lectiva en la década de los setenta e trabajábamos
Evidentemente que numa estrutura social que nega en las primeras rupturas (...). No somos los mis-
tais valores, a epidemiologia enfrenta sérias contra- mos pero somos iguales. No somos los mismos
dições: na sua tensão entre disciplina científica e porque nuestra praxis há experimentado cambios
campo profissional, a epidemiologia traz à tona, pa- y acumulaciones decisivas, nuestras propuestas se
ra os seus praticantes, independentemente de onde han enriquecido, nuestras ideas han crecido en
estejam situados, os desafios da dialética entre o so- amplitud y estensión. Pero somos iguales, porque
nhar e o fazer, entre a utopia e a realidade, entre a seguimos siendo humanistas, en el más profundo
técnica e a política (Barreto, 1998). y marxista sentido de la palabra, el sentido de for-
Ainda que muitas questões relevantes na atua- jar identidad e recrear utopía emancipadora (-
lidade sejam insuficientemente consideradas pela Breilh, 2002).
epidemiologia hegemônica, caberia destacar certos Uma epidemiologia que contribua na
“objetivos essenciais” de um saber que tome parti- constituição de sujeitos sociais comprometi-
do pela vida e pela emancipação dos seres huma- dos com uma prática sanitária voltada para a
nos. Uma epidemiologia que fundamente as ações generosidade, a solidariedade e a ética na luta
em saúde coletiva, inspirada nos seus compromis- pela saúde e qualidade de vida, representa
sos democráticos desde as lutas históricas do mo- uma aposta na planificação e gestão de um sis-
vimento sanitário contra o autoritarismo. Uma tema de saúde que se pretende efetivo, demo-
epidemiologia que possa garantir o conhecimento crático, humanizado e equânime. Mais que
do processo saúde-doença na realidade complexa e uma aposta, tais processos de construção con-
concreta; reconhecer e abordar suas relações em di- tra-hegemônica implicam una articulación
ferentes níveis da realidade buscando se integrar organizativa entre sujetos como condición pre-
com as visões de diferentes disciplinas e profissio- via a la transformación de las prácticas, tal co-
nais para orientar intervenções; e contribuir na re- mo lo queria Gramsci, al generar un nuovo
dução do sofrimento humano, das iniqüidades so- pensamiento que no sólo cuestiona los saberes
ciais detectadas e no movimento em defesa da vida tradicionales sino que pude constituirse en el
(Drumond Jr., 2001). Trata-se, enfim, de construir liderazgo para proponer uma nuova manera
coletivamente as bases de uma epidemiologia con- de hacer las cosas (Testa, 1997). Portanto, a ex-
tra-hegemônica que examine o movimento geral plicitação, a disseminação e a apropriação des-
da sociedade e suas relações com o modo de vida ses valores pelas classes subalternas e seus in-
dos grupos sociais e com o estilo de vida das pes- telectuais orgânicos poderá favorecer a cons-
soas, identificando processos críticos de exposição trução de identidades capazes de influir na
ou de imposição (Breilh, 2002), conforme as pala- mobilização de subjetividades e vontades po-
vras do autor: líticas para a concretização de práticas epide-
Hablar de praxis epidemiológica a comienzos miológicas e de gestão comprometidas com os
del novo milenio no es lo mismo que hacerlo cu- princípios e diretrizes originais do SUS.
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