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Epidemiologia e planejamento: a recomposição


das práticas epidemiológicas na gestão do SUS

Epidemiology and planning: the recomposition of


the epidemiological practices in management of
SUS

Jairnilson Silva Paim 1

Abstract This paper has the aims of syn- Resumo Com os objetivos de sistematizar
thesizing some of the approaches related os esforços para a utilização da epidemio-
with the use of epidemiology in health ser- logia nos serviços de saúde, descrever algu-
vices, of describing some proposals and of mas propostas construídas no Brasil e discu-
discussing the feasibility and obstacles for tir obstáculos e possibilidades de recompo-
structuring epidemiological practices inside sição das práticas epidemiológicas no Siste-
Unified Brazilian Health System (SUS). The ma Único de Saúde (SUS), o ensaio apresen-
essay describes some aspects of the epi- ta elementos da crise da epidemiologia e
demiology’s crisis and analysis some con- analisa certos constrangimentos impostos
straints to the use of epidemiological knowl- ao desenvolvimento da racionalidade téc-
edge in health services management. The nico-sanitária e à incorporação tecnológi-
main achievements and turn backs related ca do saber epidemiológico na gestão em
to that issue, during the SUS implementa- saúde. São identificados avanços e recuos
tion processes, are identified. Finally, some desses processos durante a implementação
proposals related to the development of a do SUS e apresentadas algumas proposições
counter hegemonic epidemiology are dis- para a construção coletiva de uma epide-
cussed looking forward the creation of a new miologia contra-hegemônica que contribua
public health practice based on planning na constituição de sujeitos sociais compro-
and management of a effective, democrat- metidos com uma prática sanitária que
ic, human and equitable health system. aposte na planificação e gestão de um siste-
Key words Epidemiology, Health services, ma de saúde efetivo, democrático, humani-
Planning zado e equânime.
Palavras-chave Planejamento e gestão em
saúde, Prática epidemiológica, Epidemio-
logia em serviços de saúde

1 Instituto de Saúde
Coletiva da Universidade
Federal da Bahia.
Rua Padre Feijó 29,
4 o andar. Campus Canela
40210-070, Salvador BA.
jairnil@canudos.ufba.br
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Introdução América Latina nas últimas décadas, descre-


ver algumas das propostas construídas no
Há quase meio século tem-se apontado para Brasil e discutir certos obstáculos e possibili-
os usos da epidemiologia na descrição da dades de recomposição das práticas epide-
doença na comunidade, na identificação de miológicas na gestão do Sistema Único de
grupos vulneráveis e na avaliação de serviços Saúde (SUS).
e programas de saúde (Morris, 1975). No en-
tanto, a constituição da epidemiologia como
disciplina científica e a reflexão epistemológi- O papel da epidemiologia nos serviços
ca sobre a mesma seguiram, por algum tem- e sistemas de saúde
po, os seus próprios caminhos, sem um vín-
culo mais consistente com a organização so- Nas duas últimas décadas a Organização Pan-
cial dos serviços de saúde, dada a relativa au- Americana de Saúde tem demonstrado uma
tonomia dos campos científicos. preocupação com processos de mudança nos
A ênfase nos estudos etiológicos, no de- procedimentos técnicos de prestação dos ser-
senvolvimento metodológico e mesmo na for- viços, no uso das tecnologias disponíveis, na
malização da disciplina (Barata, 1998) distan- integração dos conhecimentos, nas formas de
ciava, de certo modo, muitos dos epidemiolo- utilização dos recursos e nos modos de con-
gistas de um pensamento e ação sobre os ser- cretizar a participação social (OPS, 1984;
viços de saúde. A hegemonia das universida- 1988; 1991; Tigre et al., 1990).
des norte-americanas e dos centros de epide- Ao propugnar por ações integradas de
miologia dos Estados Unidos, a exemplo dos saúde, esse organismo internacional ratifica-
Centers for Disease Control and Prevention va o princípio da integralidade adotado pelo
(CDC, 1992), na formação de epidemiologis- movimento sanitário brasileiro desde a 8 a
tas do mundo inteiro e, particularmente, dos Conferência Nacional de Saúde e incluído
países dependentes, reforçava tal situação. Os como diretriz no capítulo saúde da Consti-
serviços de saúde, por sua vez, muito mais tuição de 1988. Recomendava, assim, um en-
orientados sob a lógica do mercado do que a foque global das ações agrupadas de acordo
das necessidades de saúde pareciam não ver a com o conjunto de problemas da população,
epidemiologia como uma ferramenta neces- sendo executadas de forma integral, evitan-
sária para o seu desenvolvimento. do-se os agrupamentos por patologias e pro-
Evidentemente que muitos países do “so- gramas isolados. Ademais, defendia um servi-
cialismo real” e aqueles capitalistas que reali- ço de saúde organizado para produzir mu-
zaram profundas modificações na organiza- dança no perfil epidemiológico com relação
ção dos serviços de saúde – como o Reino aos problemas de saúde (riscos e danos), cole-
Unido, com a implantação do National Health tivos e individuais.
Services a partir de 1948, e o Canadá, desde o Parte dessa discussão se expressou no de-
Relatório Lalonde em 1974 – exploraram de senvolvimento da proposta de Sistemas Lo-
forma mais ampla as potencialidades científi- cais de Saúde (Silos) e na reflexão e crítica aos
cas e tecnológicas da epidemiologia na gestão modelos de prestação de serviços de saúde ou
de sistemas de serviços de saúde (Paim, 2002). modelos de atenção possibilitadas pela con-
A identificação desse gap entre as possibi- cepção e implantação dos distritos sanitários,
lidades das práticas epidemiológicas e a sua como modos de reorganização das práticas de
utilização pelos serviços da saúde para além saúde (Paim, 1993).
do controle de doenças transmissíveis ou da Ao se discutir o uso da epidemiologia nos
vigilância epidemiológica estimulou a Orga- sistemas e serviços de saúde, é comum ressal-
nização Pan-Americana da Saúde e a Organi- tar o papel da disciplina na produção de co-
zação Mundial da Saúde (OPS/OMS) a apoia- nhecimentos para a tomada de decisões no
rem um conjunto de iniciativas visando à in- que se refere à formulação de políticas de saú-
corporação e à utilização desse saber no âm- de, à organização do sistema e às intervenções
bito dos sistemas de saúde (OPS, 1984; 1988; destinadas a dar solução a problemas especí-
1991). ficos (Tigre et al., 1990). Nesse particular,
O presente artigo tem como objetivos sis- identificam-se os seguintes campos de ação
tematizar os esforços visando à utilização da para a disciplina no âmbito dos serviços de
epidemiologia pelos serviços de saúde na saúde: a) estudos da situação de saúde em di-
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ferentes grupos da população, seus determi- da epidemiologia


nantes e tendências; b) vigilância epidemioló-
gica de doenças e de outros problemas de saú- Para a discussão deste tópico faz-se necessá-
de; c) investigação causal e explicativa sobre rio refletir sobre questões referentes à gestão
problemas prioritários de saúde; d) avaliação de sistemas e serviços de saúde, e visitar, ain-
do impacto em saúde dos serviços, de tecno- da que brevemente, alguns elementos da cha-
logias e de outras ações. mada “crise da epidemiologia” e certas pro-
Refletindo sobre os processos de tomada postas de superação.
de decisões em saúde e, particularmente, so-
bre a aproximação entre epidemiologia e ges- Redefinições da gestão
tão, Dussault (1995) enumera as seguintes
possibilidades de utilização: a) nas políticas Embora sem uma consistente elaboração
públicas de saúde, apoiando a definição de teórica, consubstanciada em investigações
prioridades, objetivos e estratégias; b) na con- concretas, é freqüente vincular a epidemiolo-
figuração dos serviços, especialmente na des- gia à gestão como se fora algo natural e racio-
centralização e integração dos serviços nos nal. Assim, prescrevem-se recomendações pa-
programas; c) nas práticas dos profissionais, ra a sua utilização no processo decisório co-
sobretudo na avaliação da eficiência e eficá- mo se a incorporação tecnológica pudesse ser
cia; d) nas práticas de gestão; e) nas priorida- efetivada num campo neutro ou inteiramente
des de investigação. receptivo face à racionalidade e aos benefícios
Após extensa revisão da literatura sobre desse saber.
limites e possibilidades do “enfoque epide- No entanto, a gestão em saúde pode ser re-
miológico”, Teixeira (1996) destaca o grande conhecida como a direção ou condução de
dinamismo da produção científica da área no processos político-institucionais relaciona-
Brasil e a contribuição da epidemiologia ao dos ao sistema de saúde, eminentemente con-
desenvolvimento teórico-metodológico do flituosos ou contraditórios, ainda que nos ní-
planejamento de saúde. Considera que a reo- veis técnico-administrativo e técnico-opera-
rientação da gestão, do financiamento, da or- cional desenvolva ações de planejamento, or-
ganização e do modelo assistencial do sistema ganização, gerenciamento, controle e avalia-
de serviços de saúde constituem processos ção dos recursos humanos, financeiros e ma-
que não podem prescindir da epidemiologia, teriais empregados na produção de serviços
enquanto saber científico e prática instru- de saúde. Nessa perspectiva, a noção de gestão
mental que confere especificidade aos objetos se aproxima da proposta de administração es-
de conhecimento e de intervenção no âmbito tratégica (OPS/OMS, 1992), na qual podem
da saúde em sua dimensão populacional, isto ser valorizados os componentes vinculados à
é coletiva (Teixeira, 1999). Nesse particular, distribuição dos diferentes tipos de poder em
enumera os seguintes usos da epidemiologia: saúde e à construção de viabilidade das inter-
a) no processo de formulação de políticas; b) venções desenhadas.
na definição de critérios para a repartição de Uma via de aproximação a essa temática
recursos; c) na elaboração de diagnósticos e desenvolvida no Brasil tem sido o recurso ao
análises de situação de saúde; d) na elabora- conceito de práticas de saúde, elaborado pio-
ção de planos e programas; e) na organização neiramente por Cecília Donnângelo e Ricardo
de ações e serviços; f) na avaliação de siste- Bruno Mendes-Gonçalves (Donnângelo,
mas, políticas, programas e serviços de saúde. 1976; Mendes-Gonçalves, 1994). Essa via ten-
Ao discutir os limites e as possibilidades de de a produzir reflexões e análises sobre plani-
desenvolvimento do “enfoque epidemiológi- ficação e gestão que não se limitam a pensar
co” no processo de reorientação da gestão e da objetos-meio (recursos financeiros, materiais,
organização social das práticas de saúde, a “informacionais”, de poder, etc.), isoladamen-
autora dedica uma reflexão especial para o te, mas suas articulações com objetos-fim (in-
papel da epidemiologia na própria definição tervenção, assistência, acolhimento, cuidado,
do objeto do planejamento de saúde. etc.) em uma totalidade social.
Desse modo, a formulação da teoria do
processo de trabalho em saúde possibilitou
Redefinições no estudo da gestão uma reflexão sobre o objeto, os meios de tra-
em saúde e tendências contemporâneas balho, as atividades e os agentes (agentes-su-
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jeitos ou sujeitos/agentes). Além disso, ao in- mento de necessidades, poder-se-ia investigar


vestigar as relações técnicas e sociais sob as o uso da epidemiologia para a apreensão da
quais se realiza o trabalho em saúde, o méto- dimensão coletiva dos problemas de saúde.
do histórico-estrutural permite o estudo das Essas indicações fazem supor a pertinên-
organizações, da distribuição do poder nas cia de estudos de incorporação tecnológica e
instituições e do processo decisório para a im- de inovação ou desenvolvimento institucio-
plementação de políticas (Paim, 2002). Essa nal para examinar a epidemiologia nos servi-
linha de estudos tem realizado, recentemente, ços de saúde. Ou seja, não basta o acúmulo de
abordagens mais processuais das organiza- um saber, a existência de uma tecnologia nem
ções, trazendo a interatividade e a comunica- o reconhecimento de uma necessidade social
ção dos sujeitos como objetos de reflexão, para que a epidemiologia seja utilizada por
deslocando a ênfase da administração das uma organização. Agentes capacitados, recur-
coisas e para a condução de processos políti- so ao planejamento, influência na gestão, li-
co-institucionais e de trabalho em saúde. derança, etc. podem ser variáveis a serem exa-
Converge, desse modo, com a gestão estratégi- minadas na análise das possibilidades de in-
ca na qual a “administração da incerteza” cen- corporação. Conceitos outros, compondo
tra-se na condução de processos coletivos de quadros teóricos distintos, poderiam apontar
trabalho (Mota, 1992), valorizando a constru- outras variáveis a serem contempladas em in-
ção de consensos. vestigações sobre políticas, instituições e prá-
Assim, a gestão não se reduz à ação instru- ticas de saúde (Paim, 2002).
mental sobre o mundo objetivo (Rivera, Ao se analisarem possíveis relações entre
1995). Pode ser considerada analiticamente epidemiologia, planejamento e gestão caberia
em uma dupla dimensão de ação social: ação examinar modos de articular as dimensões
estratégica dirigida a fins, com a criação de políticas com a técnico-científica nas inter-
consenso ativo entre dirigentes e dirigidos, e venções em saúde, tal como se propõe na dis-
ação comunicativa voltada para o entendi- cussão dos modelos assistenciais (Paim, 1993;
mento e para as trocas intersubjetivas na 2002). Além de uma “tecnologia de poder” ou
constituição de novos sujeitos das práticas de uma técnica que ajuda a dispor, arranjar e
institucionais de saúde. Nesse caso, cabe res- processar outras técnicas, bem como organi-
saltar a natureza ético-política da gestão em zar e dirigir processos de trabalho, o planeja-
saúde, como resposta a necessidades huma- mento pode ser um meio de auxiliar a intera-
nas e, simultaneamente, formas de sociabili- ção entre os sujeitos no sentido de viabilizar
dade (Paim, 1999). Ao se examinarem os sujei- um dado projeto ético-político para a saúde
tos em ação e em comunicação nas organiza- (Paim, 1999).
ções, é possível analisar a interação social,
identificar as racionalidades presentes na ges- Tendências da epidemiologia
tão e valorizar a intersubjetividade na explici-
tação de conflitos e na busca de entendimen- No que se refere à epidemiologia faz-se
to. O saber epidemiológico, nessa perspecti- necessário concebê-la, para fins de análise da
va, comporia parte da racionalidade técnico- sua utilização na gestão, como disciplina cien-
sanitária presente na explicação da situação tífica e como meio de trabalho.
de saúde (Teixeira, 1999) e compete, no pro- Na primeira acepção trata-se de pensar o
cesso decisório das instituições de saúde, com saber científico e os paradigmas em que se in-
outras racionalidades igualmente importan- sere a ciência epidemiológica, o que remete
tes: política, médico-assistencial, econômica e para uma trabalho teórico e para uma refle-
burocrática (Paim, 2002). xão epistemológica. Assim, caberia problema-
É possível que o recurso aos conceitos de tizar a crise do paradigma dominante, a capa-
tecnologias leves, leves-duras e duras (Merhy, cidade de formulação teórica, a ruptura dos
1997) e a análise dessas racionalidades aju- compromissos históricos, a relação com a
dem a compreender a incorporação da epide- práxis e a capacidade explicativa (Barreto,
miologia no planejamento e gestão em saúde. 1998). Segundo esse autor, a “crise da epide-
Assim, a partir de uma concepção de modelos miologia” no que diz respeito ao desgaste da
assistenciais ou modos estruturados de inter- sua capacidade explicativa se expressa nas se-
venção em saúde que signifiquem combina- guintes situações: a) as propostas de preven-
ções de tecnologias orientadas para o atendi- ção fator a fator são de difícil implementação
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e apresentam uma “eficiência” limitada; b) a intervenções em saúde (Barreto, 1998).


avaliação de tecnologias não oferece um qua- No âmbito do planejamento e da gestão,
dro completo dos efeitos previstos e impre- caberia retomar propostas de diagnósticos
vistos quando são utilizadas como parte de administrativo, estratégico e ideológico (Testa,
programas complexos de intervenção em saú- 1992), assumindo o poder como categoria
de; c) a capacidade de previsão dos efeitos dos central de análise e identificando como seus
programas e ações geralmente é baixa, inde- objetos os serviços, organizações e sistemas,
pendentemente das boas intenções e da con- além de necessidades/problemas de saúde
sistência dos conhecimentos disponíveis; d) (Teixeira, 1999). Esse objeto de trabalho po-
parecem esgotadas as possibilidades de gerar deria ser delimitado, portanto como a relação
novos conhecimentos acerca de fatores de ris- entre os problemas de saúde e as respostas so-
co com forças associativas elevadas ou com ciais aos mesmos (Sá, 1993), o que significa
alto grau de especificidade em relação aos pensar o planejamento e a gestão na sua arti-
seus efeitos. culação com as instâncias política, econômica
Consequentemente, mesmo epidemiolo- e ideológica que compõem a estrutura social.
gistas comprometidos com a melhoria dos Eis, portanto, um dos grandes desafios para o
serviços de saúde, como o referido autor, ain- planejamento e a gestão em saúde:
da são reticentes quanto às possibilidades da Articular em seu interior como prática so-
disciplina no interior do sistema de serviços cial, tanto a explicação dos problemas de saú-
de saúde. Todavia, a pujança dos vários con- de dos distintos grupos populacionais na pers-
gressos brasileiros de epidemiologia e de saú- pectiva apontada pela “epidemiologia críti-
de coletiva no Brasil parece indicar o contrá- ca”, enfatizando as relações entre os proble-
rio, quando se destacam as suas contribuições mas de saúde, as condições de vida e seus de-
no estudo das desigualdades, na planificação, terminantes histórico-estruturais, quanto a
gestão e avaliação das intervenções em saúde compreensão das representações sociais acer-
(Teixeira, 1996). ca da saúde-doença e atenção à saúde dos di-
Pensar a epidemiologia como meio de tra- versos grupos, o que indica a necessidade de
balho significa concebê-la como tecnologia, um planejamento participativo, em que os es-
ou seja, ferramenta de gestão. Assim, a epide- pecialistas e população sejam atores e autores
miologia, como saber tecnológico, pode ser das respostas sociais aos problemas (Teixeira,
investigada na sua aplicação como instru- 1999).
mento para a formulação de políticas, para a
planificação e para avaliação em saúde
(Schraiber et al., 1999). Nessa perspectiva, po- A epidemiologia no Sistema
der-se-ia examinar a sua utilização na análise Único de Saúde
da situação de saúde (investigando o modo e
as condições de vida dos grupos sociais que se A preocupação com a melhoria dos serviços
inserem e se movimentam no espaço urbano), do SUS e com a efetividade das intervenções
no desenvolvimento de tecnologias, na elabo- sobre a situação de saúde tem motivado al-
ração e teste de modelos assistenciais. O saber guns autores a indagar sobre a incorporação
epidemiológico, como tecnologia não mate- da epidemiologia nas organizações de saúde
rial, poderia ser utilizado na organização de em diferentes níveis do sistema de serviços de
processos de trabalho, de serviços e de siste- saúde e, especialmente, a sua utilização nas
mas de saúde, bem como na planificação, ges- práticas de saúde (Schraiber, 1990; Paim,
tão, vigilância e avaliação em saúde (Paim, 1993; Teixeira, 1999; Drumond, 2001).
1999). Ainda que a Constituição da República e a
Lei Orgânica da Saúde (8.080/90), comple-
Epidemiologia e gestão: alguns desafios mentada pela lei 8.142/4, indicassem muitos
caminhos para a incorporação da epidemio-
Na perspectiva da saúde coletiva, entre os logia no planejamento e gestão do SUS, ele-
desafios da epidemiologia estão o estudo das mentos de inércia burocrática da saúde públi-
desigualdades em saúde; o desenvolvimento ca institucionalizada juntamente com a lógi-
de um pensamento sobre ambiente, qualida- ca inampsiana que dirigia o modelo médico
de de vida, conceito e medidas de saúde; a pes- assistencial privatista dificultavam o desen-
quisa sobre avaliação, seleção de tecnologias e volvimento das práticas epidemiológicas.
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delos assistenciais iniciado nos anos 80 e dis-


A epidemiologia na implantação do SUS seminado na década de 1990. Já as mudanças
nas formas de utilização dos recursos e de
No início da década de 1990, a epidemio- participação social tiveram proeminência
logia era confinada, no nível federal, à Funda- com a edição da lei 8.142/90 e, especialmente,
ção Nacional de Saúde (Funasa), instituída com a vigência das NOB/93 e NOB/96 (Brasil,
nos primeiros dias do Governo Collor, reu- 1993; 1996). Ao se examinar o contexto nacio-
nindo a Superintendência de Campanhas de nal, podem ser identificados componentes do
Saúde Pública (Sucam) e a Fundação do Servi- arcabouço legal e normativo do SUS permeá-
ço Especial de Saúde Pública (FSESP). A cria- veis à utilização da epidemiologia bem como
ção do Centro Nacional de Epidemiologia certas relações desse saber com o planeja-
(Cenepi), apesar de saudada por muitos epi- mento e com os chamados modelos tecnoas-
demiologistas brasileiros e não obstante cer- sistenciais.
tos esforços dos seus primeiros dirigentes no
sentido de disseminar o saber epidemiológico Epidemiologia e descentralização
entre as instituições de saúde (Teixeira, 1999),
não reduziu a perspectiva de confinamento. A NOB/93, apesar de contribuir para o
No nível estadual, concentrava-se, por sua vez, avanço da municipalização das ações e servi-
nas ações de vigilância epidemiológica, sobre- ços de saúde, praticamente não contou com o
tudo mediante os programas de imunização e participação das instâncias responsáveis pela
controle de doenças implementados pelas es- epidemiologia no SUS, de modo que as suas
truturas próprias das secretarias de saúde, re- orientações técnico-administrativas deixam
forçando a dicotomia com as Coordenações grandes vazios para o uso do saber epidemio-
Regionais da Funasa. E no âmbito municipal, lógico como ferramenta de gestão. A adoção
a epidemiologia tendia a ser residual, graças à simultânea de políticas econômicas de ajuste
própria insignificância que a lei 6.259/75 re- estrutural, a implantação de propostas de Re-
servava para o município no então Sistema forma do Estado, a restrição de recursos fi-
Nacional de Vigilância Epidemiológica, além nanceiros para o setor saúde e a opção por
da fragilidade institucional das secretarias mecanismos de financiamento que privile-
municipais de saúde. Portanto, os esforços giam a lógica do mercado transformavam o
para o uso da epidemiologia no planejamento setor público em prestador de serviços e o pla-
e na gestão naquele período limitavam-se às nejamento em mero instrumento de captação
proposições dos Planos Diretores de Epide- de recursos. A gestão tendia a se concentrar
miologia (Drumond Jr., 2001) e às tentativas em aspectos administrativos, reproduzindo
locais de desenvolvimento de modelos assis- um estilo que privilegia a gerência contábil e
tenciais alternativos, com o apoio de universi- o atendimento à demanda por serviços médi-
dades e de organismos de cooperação técnica co-ambulatoriais e hospitalares em detrimen-
(Teixeira, 2002). to das ações promocionais e de prevenção de
Mesmo assim, em seminário realizado agravos e danos à saúde coletiva, reforçando a
pelo Cenepi, baseado em documento propon- iniqüidade no acesso aos serviços e desigual-
do a reorganização do Sistema de Vigilância dades das condições de vida e saúde da popu-
Epidemiológica na perspectiva do SUS (Paim lação (Teixeira, 1999).
& Teixeira, 1992), considerou-se que era ne- Assim, mesmo municípios sob a forma de
cessário romper a dicotomia tradicional entre gestão plena do sistema de saúde apresenta-
vigilância e assistência, possível a partir do ram resultados modestos no que se refere ao
aprofundamento da discussão das propostas uso da epidemiologia e à reorganização das
de Vigilância à Saúde e pela incorporação das práticas de saúde (Heimann et al., 1998), seja
ações de vigilância em todas as unidades de em relação à redefinição do objeto, dos meios
atenção à saúde, inclusive hospitais (Seminá- de trabalho, do trabalho propriamente dito
rio Nacional de Vigilância Epidemiológica, ou das relações técnicas e sociais sob as quais
1992). é realizado o trabalho.
Alguns elementos dessa mudança sobre os Contudo, as possibilidades abertas com a
procedimentos técnicos, o uso de tecnologias implantação do SUS para a experimentação
e a integração de conhecimentos configuram, de modelos assistenciais; a produção teórica,
no caso brasileiro, o debate em torno dos mo- epistemológica e metodológica sobre a epide-
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miologia na América Latina; o conjunto de


proposições políticas e técnicas contidas nos Agenda de saúde e avaliação:
Planos Diretores para o Desenvolvimento da uns passos adiante
Epidemiologia no Brasil I (1990-1994), II
(1995-1999) e III (2000-2004) elaborados pela A partir da NOB/96 e, especialmente, com
Associação Brasileira de Saúde Coletiva a expansão dos Programas de Agentes Comu-
(Abrasco); e a implementação da política de nitários de Saúde e de Saúde da Família (-
municipalização das ações e serviços de saú- PACS/ PSF), favorecida pela adoção do Piso
de na última década compuseram um contex- Assistencial Básico (PAB) em 1998, o Ministé-
to no qual poderia favorecer a construção de rio da Saúde, através da Secretaria de Política
uma “epidemiologia em serviços de saúde” de Saúde (SPS), vem introduzindo, progressi-
(Drumond Jr, 2001). Nesse particular, as pro- vamente, certos dispositivos que tendem a va-
messas do Cenepi mediante o Vigisus (Brasil, lorizar a incorporação de práticas epidemio-
1998) chegaram a mobilizar secretarias de lógicas na gestão do SUS, incluindo o apoio a
saúde interessadas em implementar o modelo estudos sobre avaliação de políticas e progra-
da Vigilância da Saúde (Teixeira, 2002). mas (Vieira da Silva et al., 2002).
Ao levantar as formas predominantes dos Nessa perspectiva, a aprovação pelo Con-
instrumentos e modos de fazer epidemiologia selho Nacional de Saúde dos Eixos Prioritá-
que têm sido utilizados nos serviços de saúde rios de Intervenção para o Ano 2001 ilustra
no Brasil (Drumond Jr., 2001), o autor revelou um passo importante para o envolvimento de
usos criativos e inovadores da epidemiologia estados e municípios na Agenda Nacional de
em serviços de saúde do SUS fornecendo in- Saúde (Brasil, 2001). Entre as intervenções
dicações que já permitem vislumbrar certa propostas destacam-se a redução da mortali-
reorganização das práticas sanitárias. Assim, dade infantil e materna e o controle de doen-
os projetos Nascer em Curitiba, Risco Evolu- ças e agravos prioritários, nos quais se in-
tivo e Mãe Curitibana são bons exemplos dos cluem as “doenças da pobreza” (imunopreve-
modelos assistenciais correspondentes à ofer- níveis, transmitidas por vetores, diarréias, tu-
ta organizada (incluindo busca ativa), ao tra- berculose, hanseníase, etc.), as doenças crôni-
balho programático (ações programáticas de co-degenerativas (câncer, diabetes e hiperten-
saúde) e à vigilância da saúde, implementa- são) e os chamados “novos desafios” (Aids e
dos de forma complementar. Segundo o men- morbimortalidade por causas externas). As
cionado autor, os modelos de planejamento, demais intervenções – 1) reorientação do mo-
tecnoassistenciais e de organização dos servi- delo assistencial e descentralização; 2) melho-
ços propostos no país, apesar de muitas iden- ria da gestão, do acesso e da qualidade das
tidades, têm visões diferenciadas sobre a ênfa- ações e serviços de saúde; 3) desenvolvimento
se e o uso da epidemiologia nos serviços de de recursos humanos do setor saúde; e 4) qua-
saúde (Drumond Jr., 2001). Por conseguinte, lificação do controle social – representam,
uma das grandes contribuições desse estudo também, espaços para o desenvolvimento de
foi ressaltar as possibilidades e a criatividade práticas epidemiológicas.
de novos enfoques e temas realizando refle-
xões muito apropriadas sobre inovação insti- Conjuntura pós-XI Conferência Nacional
tucional e incorporação tecnológica. Nessa de Saúde: os tortuosos caminhos do SUS
oportunidade, o autor critica o diagnóstico
normativo em saúde pelo seu caráter ritualis- No caso da recente Norma Operacional de
ta, formalista e irresponsável em relação à Assistência à Saúde (Brasil, 2001), em que pe-
gestão e à reorientação dos modos de inter- se a ausência no debate público da XI Confe-
venção em saúde. Assinala que a pretensa oni- rência Nacional de Saúde, os riscos de recen-
potência da epidemiologia em definir neces- tralizacão da política setorial, o privilégio da
sidades e prioridades em saúde deve ser ques- hierarquização da assistência médico-hospi-
tionada e relativizada, ainda que possa ser talar sob a denominação de “regionalização
considerada uma ferramenta de grande utili- da assistência à saúde”, bem como a ênfase na
dade, até no diagnóstico estratégico de análise noção de economia de escala e a visão restrita
de situação de saúde. E assim o autor anuncia de integralidade da atenção (centrada na de-
uma “epidemiologia do cotidiano e do atrevi- manda espontânea e reduzida à idéia de con-
mento”. tinuidade da assistência médica), caberia
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aproveitar a oportunidade da sua implemen- caráter político-institucional que configuram uma


tação para introduzir o saber epidemiológico trama complexa de decisões acerca do processo de
nos processos de gestão (Teixeira, 2002). construção do SUS, nem sempre coerentes e articula-
Assim, a criação de “módulos assisten- das (Teixeira, 2002). A autora se refere nesse caso à
ciais” e de “sistemas microrregionais de saú- proposta de criação da Agência Federal de Preven-
de” poderá ensejar um debate que venha a in- ção e Controle de Doenças (Apec), autarquia vincu-
corporar e articular práticas de promoção da lada ao Ministério da Saúde, como “agência executi-
saúde e prevenção de riscos e agravos, bem co- va”, subsidiária da chamada Reforma do Estado.
mo a reorientação da assistência individual e Na realidade, sob o manto aparente de Reforma
coletiva (Teixeira, 2002). Enfim, a incorpora- do Estado e de modernização da burocracia sanitá-
ção da proposta de Vigilância da Saúde ao pla- ria, toma corpo um processo de desmantelamento
nejamento municipal e regional poderá cons- do organismo capaz de reduzir o paralelismo dos
tituir uma alternativa de superação do viés serviços e ações de saúde, ou seja, o Ministério da
economicista da Programação Pactuada Inte- Saúde, responsável pela gestão nacional do SUS (-
grada – PPI, basicamente um instrumento de Paim, 2001). Esse “esquartejamento” do SUS se ini-
racionalização da oferta de serviços pelas uni- cia com a promulgação da Constituição quando as-
dades de saúde, que não problematiza o con- segurou que a saúde é livre à iniciativa privada. Mas
teúdo das práticas que são realizadas nem a avançou em 1998, com a criação da Agência Nacio-
sua adequação às necessidades e problemas de nal de Vigilância Sanitária (Anvisa), após uma ava-
saúde da população (Teixeira, 2002). A partir lanche de denúncias de falsificação de medicamen-
das propostas da autora, poderiam ser desta- tos envolvendo empresas farmacêuticas multinacio-
cadas a redefinição das ações programáticas nais de renome. No ano seguinte, tem continuidade
de saúde no âmbito das unidades básicas, a com o estabelecimento da Agência Nacional de Saú-
reestruturação dos estabelecimentos de saúde de Suplementar, depois de um conjunto de denún-
para assegurar a oferta organizada e progra- cias sobre os chamados “planos de saúde”, vincula-
mada das ações e serviços e a formulação de dos ao Sistema de Assistência Médica Supletiva (-
políticas públicas que tomem como referên- SAMS). Em 2000 já se discutia uma “agência de vigi-
cias básicas a promoção e a proteção da saúde lância epidemiológica”, cuja proposta de Medida
(cidades saudáveis, vigilância sanitária em de- Provisória foi encaminhada pelo ministro da Saúde
fesa da saúde, ação intersetorial em saúde, em- em julho do ano seguinte. No entanto, como das ou-
powerment, etc.). tras vezes, foi necessária a existência de mais denún-
A conjuntura em que a XI Conferência cias na mídia – no caso vinculadas à incompetência
Nacional de Saúde defende o compromisso dos dos governos diante da epidemia de dengue – para
governos com políticas públicas integradas, que a Presidência da República editasse mais uma
com articulação intersetorial, capazes de asse- Medida Provisória (MP 33, 19/2/02) visando à trans-
gurar as condições necessárias à produção, formação da Funasa em Apec (Brasil, 2002).
promoção e preservação da saúde é a mesma Verifica-se, desse modo, que a conjuntura pós-
em que o Conselho Nacional de Saúde aprova XI Conferência Nacional de Saúde, ao lado de certos
a Política Nacional de Redução da Morbimor- avanços, traz sérios retrocessos no que diz respeito à
talidade por Acidentes e Violências e o Minis- incorporação das práticas epidemiológicas na ges-
tério da Saúde, implementa o Programa Na- tão do SUS, conforme a avaliação da Abrasco:
cional de Controle do Tabagismo (Barros, Esta MP ressuscita a lei 6.259/75, que instituiu o
2002), avança no Programa de Saúde da Famí- Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica, ig-
lia (PSF) – um dos espaços institucionais que norando o papel do município (...). Do mesmo modo
emprega a prática epidemiológica – e busca, atenta contra o princípio constitucional da integrali-
atualmente, formular uma política de promo- dade da atenção. Ao dispor sobre o Sistema Nacional
ção da saúde e uma política nacional de ciên- de Epidemiologia confina o saber epidemiológico e a
cia & tecnologia em saúde. Epidemiologia, como disciplina científica, a um “sis-
tema” paralelo, subordinado a uma agência para a
O agenciamento da epidemiologia: execução das ações de prevenção e controle, justa-
muitos passos atrás mente quando o país tenta avançar na adoção de
modelos assistenciais mais integrais (...). Apresenta
As iniciativas mencionadas, ao lado da formula- proposições mais truculentas e retrógradas que as de-
ção e implementação da NOAS, ocorrem em um senvolvidas pela polícia sanitária do Brasil no início
contexto marcado pela multiplicidade de eventos de do século XX (...) A partir de uma vaga e indefinida
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“situação de risco”, atenta contra os direitos dos indi- aquela que constrange os cidadãos, submetendo-os
víduos e comunidades colocando-os no mesmo nível à “autoridade de epidemiologia” que pode ser um
dos animais! (Abrasco, 2002). ministro da Saúde, um presidente de Agência, um
Sob o ponto de vista da gestão das secretarias es- secretário de Saúde, um tecnoburocrata ou um ins-
taduais e municipais de saúde, a pulverização do co- petor de quarteirão? (Abrasco, 2002). A epidemiolo-
mando federal sobre o SUS, além de configurar o ris- gia que gera informação relevante para os que so-
co de fragmentação das orientações políticas, princi- frem os processos destrutivos da organização das ci-
palmente por separar o que se havia tentado unir, is- dades e, em última análise, da lógica capitalista ou a
to é, a assistência médica (antigo Inamps), a vigilân- epidemiologia que mascara a realidade, domestica e
cia epidemiológica e sanitária (antigo MS), repre- controla as populações de acordo com os interesses
senta um acréscimo de complexidade nas relações de tecnoburocratas e em função dos projetos políti-
intergovernamentais com o nível federal (Teixeira, co-ideológicos das classes dirigentes? Uma epide-
2002). Ademais, os níveis estadual e municipal do miologia dos “de cima” para reproduzir seus privilé-
SUS podem vir a reproduzir, mecanicamente, à ima- gios e exclusão social ou dos “de baixo” para produ-
gem e semelhança das estruturas federais, produ- zir informação e poder em busca da eqüidade e da
zindo o reconfinamento da epidemiologia em cer- efetividade?
tos guetos da burocracia sanitária. Como já se aler- Portanto, a epidemiologia, como disciplina cien-
tara há uma década, a organização sanitária brasi- tífica ou como ferramenta de gestão, não é inocente,
leira já pagou um alto preço pelo mimetismo organi- neutra, nem paira sobre os interesses de classes e os
zacional e pelo artificialismo das reformas adminis- respectivos projetos políticos e ideológicos. Como
trativas (Paim & Teixeira, 1992). prática social, não se encontra livre das determina-
Diante desse quadro, o CNS aprovou a proposi- ções que a estrutura social faz incidir sobre as práti-
ção de transformar a MP 33 em projeto de lei e o cas de saúde. Diante da crise da disciplina, distintas
Congresso Nacional rejeitou tal MP em 17/4/02. La- propostas têm sido formuladas por epidemiologis-
mentavelmente, o projeto de lei que substituiu a MP tas e pensadores da medicina social e da saúde cole-
ignorou olimpicamente as críticas e sugestões apre- tiva latino-americana tais como: a) recuperar as ex-
sentadas no V Congresso Brasileiro de Epidemiolo- periências relevantes acumuladas na história da epi-
gia e insiste na criação da Apec, mantendo o “estado demiologia e de outras disciplinas que estudam a
de quarentena federal” no qual os cidadãos terão de saúde e seus determinantes; b) redirecionar o desen-
se reportar, periodicamente, à “autoridade de epide- volvimento teórico, metodológico e operacional da
miologia” (Abrasco, 2002). disciplina; c) deslocar o atual modus operandi da
Assim, a Reforma do Estado que o Governo tem prática científica da epidemiologia para temas de
implementado no setor saúde nos últimos anos, prevenção e para o desenvolvimento de novas bases
longe de atender aos pressupostos modernizantes e éticas, coerentes com seus compromissos sociais e
democratizantes anunciados (Pereira & Grau, históricos (Barreto, 1998); d) proceder a uma análise
1999), caracteriza-se pela criação de agências como crítico-epistemológica de categorias centrais como
parte das reações espasmódicas diante da crise sani- “causalidade”, “determinação”, “risco”, “exposição”;
tária e das denúncias da mídia. Nesse contexto, a ra- e) promover uma discussão ampla sobre metodolo-
cionalidade técnico-sanitária que a epidemiologia gia (Breilh, 2002).
poderia proporcionar à gestão do sistema de servi- Se a epidemiologia for pensada para além da sua
ços de saúde praticamente desaparece no processo dimensão técnica, outros desafios apresentar-se-iam
decisório, predominando um conjunto de interesses diante da práxis. Nessa perspectiva, teria de ser uma
menores da burocracia associados aos das classes testemunha crítica dos processos destrutivos para a
hegemônicas. vida que se realizam na sociedade, uma ferramenta
de monitoramento da qualidade de vida e da saúde,
um instrumento de “empoderamento” da popula-
Comentários finais ção e uma arma de planificação estratégica e partici-
pativa (Breilh, 1998).
Diante dos fatos acima examinados e ao se discuti- Portanto, revisar criticamente o paradigma
rem certas possibilidades de as práticas epidemioló- científico dominante pode ser uma via de analisar
gicas serem recuperadas para a gestão do SUS, é per- certas possibilidades de transição paradigmática no
tinente indagar qual epidemiologia está no horizon- campo da saúde coletiva, diante da complexidade
te das propostas? A epidemiologia solidária à efeti- do objeto da epidemiologia. Nesse caso, caberia
vação do SUS, através do acesso, qualidade e huma- aproximar a ciência da sociedade e seus problemas,
nização na atenção à saúde, com controle social, ou ampliando sua capacidade de produzir conhecimen-
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to crítico e propositivo. Conhecimento ético, emanci- ando fundábamos el movimiento de la salud co-
pador, solidário e democrático (Drumond, 2001). lectiva en la década de los setenta e trabajábamos
Evidentemente que numa estrutura social que nega en las primeras rupturas (...). No somos los mis-
tais valores, a epidemiologia enfrenta sérias contra- mos pero somos iguales. No somos los mismos
dições: na sua tensão entre disciplina científica e porque nuestra praxis há experimentado cambios
campo profissional, a epidemiologia traz à tona, pa- y acumulaciones decisivas, nuestras propuestas se
ra os seus praticantes, independentemente de onde han enriquecido, nuestras ideas han crecido en
estejam situados, os desafios da dialética entre o so- amplitud y estensión. Pero somos iguales, porque
nhar e o fazer, entre a utopia e a realidade, entre a seguimos siendo humanistas, en el más profundo
técnica e a política (Barreto, 1998). y marxista sentido de la palabra, el sentido de for-
Ainda que muitas questões relevantes na atua- jar identidad e recrear utopía emancipadora (-
lidade sejam insuficientemente consideradas pela Breilh, 2002).
epidemiologia hegemônica, caberia destacar certos Uma epidemiologia que contribua na
“objetivos essenciais” de um saber que tome parti- constituição de sujeitos sociais comprometi-
do pela vida e pela emancipação dos seres huma- dos com uma prática sanitária voltada para a
nos. Uma epidemiologia que fundamente as ações generosidade, a solidariedade e a ética na luta
em saúde coletiva, inspirada nos seus compromis- pela saúde e qualidade de vida, representa
sos democráticos desde as lutas históricas do mo- uma aposta na planificação e gestão de um sis-
vimento sanitário contra o autoritarismo. Uma tema de saúde que se pretende efetivo, demo-
epidemiologia que possa garantir o conhecimento crático, humanizado e equânime. Mais que
do processo saúde-doença na realidade complexa e uma aposta, tais processos de construção con-
concreta; reconhecer e abordar suas relações em di- tra-hegemônica implicam una articulación
ferentes níveis da realidade buscando se integrar organizativa entre sujetos como condición pre-
com as visões de diferentes disciplinas e profissio- via a la transformación de las prácticas, tal co-
nais para orientar intervenções; e contribuir na re- mo lo queria Gramsci, al generar un nuovo
dução do sofrimento humano, das iniqüidades so- pensamiento que no sólo cuestiona los saberes
ciais detectadas e no movimento em defesa da vida tradicionales sino que pude constituirse en el
(Drumond Jr., 2001). Trata-se, enfim, de construir liderazgo para proponer uma nuova manera
coletivamente as bases de uma epidemiologia con- de hacer las cosas (Testa, 1997). Portanto, a ex-
tra-hegemônica que examine o movimento geral plicitação, a disseminação e a apropriação des-
da sociedade e suas relações com o modo de vida ses valores pelas classes subalternas e seus in-
dos grupos sociais e com o estilo de vida das pes- telectuais orgânicos poderá favorecer a cons-
soas, identificando processos críticos de exposição trução de identidades capazes de influir na
ou de imposição (Breilh, 2002), conforme as pala- mobilização de subjetividades e vontades po-
vras do autor: líticas para a concretização de práticas epide-
Hablar de praxis epidemiológica a comienzos miológicas e de gestão comprometidas com os
del novo milenio no es lo mismo que hacerlo cu- princípios e diretrizes originais do SUS.

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Artigo apresentado em 20/10/2002


Aprovado em 30/11/2002
Versão final apresentada em 10/12/002

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