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Para citar este artículo: Pires, R. R, Ximenes, V. M., & Nepomuceno, B. B. (2013). Práticas de cuidado em saúde mental no Brasil : análise
a partir do conceito de cidadania. Avances en Psicología Latinoamericana, 31 (3), 507-521.
asylum model is still present, expressed in new clothes O objetivo desse trabalho é analisar como as
and developed for new services, as well as discontinuity práticas de cuidado em saúde mental contemplam
of practices and lack of funding for the development of a dimensão da cidadania, a partir do fortalecimento
innovative activities. e/ou da construção do exercício destas pelos usuá-
Keywords: mental health, citizenship, care rios. Para tanto, realizou-se uma revisão integrativa
da produção científica sobre as práticas de cuidado
Resumen no campo da saúde mental, analisadas sob a pers-
pectiva da cidadania. Para tanto, foram revisados
Este estudio, a través de una revisión integradora de la artigos científicos brasileiros publicados nas bases
literatura científica, analiza cómo las prácticas de aten- de dados LILACS/BVS e SCIELO, no período de
ción de la salud mental incluyen la dimensión de la ciu- 2002 a 2011, atentando para as características das
dadanía, basada en el fortalecimiento y/o construcción práticas empreendidas, os locais onde ocorreram,
de su ejercicio. El trabajo trata sobre el panorama actual a forma como foram realizadas e os resultados
de las nuevas prácticas de cuidado en salud mental, apresentados.
desarrolladas desde el paradigma psicosocial, con base As práticas de cuidado são entendidas aqui
en las propuestas de la reforma psiquiátrica brasileña. como atos individuais e coletivos realizados pelos
Para tal fin, se analizaron los artículos brasileños publi- profissionais que envolvem a abordagem clínica
cados en las bases de datos Lilacs/ BVS y Scielo, en el dos problemas de saúde através da conjugação dos
período de 2002 a 2011, que presentaran experiencias diferentes saberes implicados na produção de saú-
de actividades de cuidado en salud mental en el ámbito de. Elas produzem-se através de relações de uma
del Sistema Único de Salud, respecto a la forma como pessoa que atua sobre a outra, num jogo intersub-
son desarrolladas, sus avances y desafíos. Los resulta- jetivo onde se produzem falas, escutas, interpre-
dos indican que en la actualidad, una gran variedad de tações, possibilidades de acolhida. Estas práticas
nuevas prácticas se desarrolla en diferentes servicios de cuidado, conforme assinala Merhy (2002), se
por parte de equipos multidisciplinarios y que éstas produzem na interseção do uso dos instrumentos
traen innovaciones importantes en el quehacer frente a tecnológicos disponíveis pelos saberes da saúde,
la demencia. Sin embargo, todavía está presente el mo- mas incluem as “tecnologias leves” (Merhy, 2002)
delo del manicomio, expresado de una nueva manera y que envolvem os processos relacionais estabeleci-
desarrollado por los nuevos servicios. Asimismo, hay dos no encontro entre usuários e profissionais da
discontinuidad en las prácticas y falta de financiamiento saúde.
para el desarrollo de actividades innovadoras. O cuidado seria uma categoria reconstrutiva de
Palabras clave: salud mental, ciudadanía, cuidado fundamental importância para pensar as práticas
de assistência. Segundo Ayres (2004), a ação em
saúde não pode se restringir à apenas às tecnolo-
Na atualidade, a cidadania como princípio das prá- gias do campo institucional das práticas de saúde,
ticas de cuidado tem ocupado um lugar especial na ela implica não só o uso de determinados saberes
assistência em saúde aos sujeitos em sofrimento e tecnologias, mas também sujeitos em relação.
psíquico. No cenário internacional, legislações de Sendo assim, a intervenção técnica do profissio-
diversos países e sistemas de saúde em diferentes nal necessita se articular com outros aspectos não
contextos têm destacado a importância do resgate tecnológicos. Portanto, a promoção de um cuidado
da dignidade daqueles sujeitos, a partir de atuações efetivo prescinde da necessidade de expansão dos
na perspectiva da reinserção social. É importante horizontes conceituais dos profissionais que ope-
lembrar que nem sempre essa concepção se fez ram esse cuidado como também da expansão dos
presente e o que vemos hoje é fruto de intensas âmbitos de atuação destes.
reivindicações, questionamentos e lutas em defesa Neste sentido, a relevância deste trabalho con-
da dignidade e dos direitos humanos das pessoas siste em contribuir para uma reflexão sobre as no-
com transtorno mental. vas práticas de cuidado implementadas no campo
respostas mais libertadoras e éticas no trato com a Sendo assim, a cidadania no âmbito da Reforma
loucura. Buscou-se uma ruptura com o paradigma Psiquiátrica exige uma compreensão desta para
do manicômio, a criação de novos espaços de cui- além da noção restrita de garantia e acesso aos di-
dado em saúde mental, assim como a criação de um reitos na vida pública. O que requer considerar esta
novo lugar social da loucura na sociedade, reivindi- condição como pré-requisito fundamental para a
cando a condição de cidadão do louco (Amarante, participação na vida social. No entanto, é necessá-
2007; Dimenstein & Sales, 2009). rio que a cidadania contemple também, como apon-
No cenário da Reforma Psiquiátrica Brasilei- ta Barreto (2008), as dimensões da liberdade, da
ra, a cidadania passa então a ocupar um lugar de diferença e da criação, próprias do reconhecimento
destaque na formulação das políticas e das práti- da subjetividade rompendo com visões dicotômicas
cas de cuidado em saúde mental, tornando-se um entre o coletivo e o individual.
conceito chave. A cidadania tem sido compreendida Na busca de efetivar as práticas que atentem à
tradicionalmente como a efetivação da aquisição construção de sujeitos ativos e participativos, a ex-
e do exercício de direitos. No entanto, para o seu periência brasileira vem instituindo-se no país, com
entendimento Hirdes (2009) considera que não um considerável aparato legal e de instrumentos re-
podemos perder de vista de que a cidadania é fruto gulatórios que buscam a promoção da garantia dos
de uma construção histórica resultante das proble- direitos no campo da assistência em saúde mental.
matizações concretas que cada sociedade produz. Um marco na história do país foi a Lei 10.216, de
Compreende que a cidadania se constitui como 2001, que dispõe sobre os direitos das pessoas em
um processo em andamento onde a sociedade de- sofrimento psíquico e propõe a reorientação da as-
ve estar empenhada na luta e problematização da sistência psiquiátrica em todo o território nacional
realidade desigual em que se encontra. A cidadania (Brasil, 2001).
não é algo dado e acabado, mas necessita estar em Neste contexto, a reorientação do modelo as-
permanente afirmação e construção. Sob esse olhar, sistencial tem empreendido uma gradual extinção
ser cidadão é, segundo a autora, ter a competência da assistência de base hospitalar e a concomitante
de fazer-se sujeito histórico assumindo a condução criação de uma rede integral de atenção em saúde
do seu destino. mental, que se propõe a ser substitutiva às insti-
Problematizar a cidadania no campo da saúde tuições hospitalares. Esta se caracteriza por ser de
mental exige lidar com termos antagônicos, uma base comunitária e aberta, pautada na liberdade e na
vez que a noção de cidadania é fundada na razão afirmação dos direitos das pessoas em sofrimento
(Souza, 2008) e a loucura é compreendida como o psíquico.
negativo desta razão, como desrazão. Imprimindo Uma das ideias centrais dessa assistência é a
a necessidade de convívio com diferentes formas desinstitucionalização (Rotelli, Leonardis & Mau-
de estar no mundo e suas diferentes linguagens e rí, 2001), que significa não apenas romper com as
lógicas. estruturas físicas do hospital, mas promover uma
Outra questão que se apresenta é a de que fre- reformulação do paradigma do cuidado conside-
quentemente entende-se que as práticas terapêuti- rando o sujeito em sua existência e suas condições
cas, automaticamente são associadas a cidadania concretas de vida. O tratamento deixa de ser ba-
pelo simples fato de promover o acesso aos ser- seado no confinamento e exclusão para se tornar
viços. Contudo ela também pode ser entendida um espaço de criação de possibilidades concretas
como um resultado final, objetivo dessas práticas de sociabilidade e subjetividade (Amarante, 1995).
(Souza, 2008). De um lado então, temos a cidadania Desse modo, o paradigma da atenção psicos-
compreendida como acesso aos serviços e de outro, social, como tem sido denominado, pretende ser
como um resultado buscado, a promoção dos usuá- um operador de práticas que tenham como meta a
rios como protagonistas de suas vidas, da afirmação produção da cidadania. Sendo assim, a afirmação e
de seus direitos e de sua participação na vida social. o fortalecimento do exercício desta tornam-se um
fim a ser alcançado pelas atividades de assistência Residenciais Terapêuticos (SRT), que são moradias
desenvolvidas. Diante de um ideal tão ambicioso é assistidas inseridas na comunidade.
preciso atentar-se aos seus novos desafios e riscos Além dos serviços acima citados a rede inclui
considerando a possibilidade da perpetuação dos outros equipamentos intersetoriais presentes nas
antigos mecanismos asilares nos novos dispositivos políticas de assistência social, educação e outras. O
de cuidado (Pinto & Ferreira, 2010). intuito da rede é de que ela possa, pela presença de
Atualmente, há mais de dez anos da Lei 10.216 variados serviços, oferecer suporte aos usuários em
(Brasil, 2001), percebe-se que muito já foi con- suas diferentes necessidades. Reconhece-se desta
quistado com a diversidade de serviços criados nos forma a importância de um maior investimento nos
vários níveis de atenção em todo território brasilei- recursos comunitários, para que não só a doença e
ro. Contudo além de ampliar a rede de cuidado em seus sintomas sejam foco de intervenção e cuida-
saúde mental, é necessário qualificá-la e problema- do, mas também todo o entorno e suas dimensões
tizar suas práticas, a fim de fortalecê-la e torná-la sociais, econômicas e culturais.
efetivamente substitutiva. Acredita-se que apesar A simples implementação de tais serviços e a
das dificuldades ainda hoje presentes, a experiência criação de leis, embora tenham seu valor no proces-
brasileira pode servir de base para iluminar outras so de transformação das práticas em saúde mental,
experiências latino-americanas. não asseguram por si só uma efetiva transformação.
Tal rede, denominada Rede de Atenção Psicos- É preciso pensar que, como afirma Ronzani (2007),
social (Brasil, 2011), é composta por uma diver- as políticas, em si, não têm o poder de realizar
sidade de dispositivos que de maneira articulada as mudanças que pretendem, sendo necessário
buscam promover o cuidado integral nos diversos observar como são construídas as crenças sobre
níveis de atenção. Entre os componentes e serviços essas práticas e como estas se inserem no contexto
da rede destacam-se: Atenção Básica em Saú- histórico-cultural do país e na singularidade do
de: que desenvolve ações de promoção da saúde, cotidiano das instituições.
prevenção, recuperação, reabilitação de doenças Essa tarefa bastante complexa e de grande im-
e agravos na população, de maneira continua- portância traz como desafio não só a superação
da e longitudinal no território, em nível primário da lógica da segregação como instrumento de tra-
de assistência, a partir das Unidades Básicas de tamento, mas também da segregação abrandada
Saúde (UBS) e dos Centros de Convivência, uma sob a forma de redes de tutela social. Desse modo,
estratégia para a inclusão social através da criação procura-se evitar, como aponta Barreto (2008), a
de espaços de convívio com a diferença na comu- perpetuação de velhos problemas sob uma roupa-
nidade; Atenção Psicossocial Especializada: des- gem nova e de aparência menos bizarra.
envolvida a partir dos Centros de Atenção Psicos- Observa-se que a visão negativa e amedronta-
social (CAPS), serviços substitutivos ao hospital dora da loucura não foi totalmente superada. Con-
psiquiátrico, responsáveis pela atenção a pessoas forme afirma Furtado e Onocko-Campos (2005),
com sofrimento mental grave e/ou persistente; ainda existem nas sociedades formas de resistência
Atenção de Urgência e Emergência: responsável e defesa, gerando espaços de exclusão às pessoas
pela atenção aos casos de urgência e emergência; em sofrimento psíquico. Sendo assim, torna-se
Atenção Hospitalar: responsável pelo acolhimento um desafio aos sistemas de saúde promover a de-
hospitalar dia e noite aos casos graves, oferecido codificação dos princípios políticos e ideológicos
através dos leitos especializados em Hospitais Ge- da Reforma Psiquiátrica e seus preceitos antima-
rais ou em outros hospitais de referencia local ou nicomiais para as práticas nos novos serviços im-
regional; e Estratégias de Desinstitucionalização: plementados.
desenvolvidas para o acolhimento de pessoas com A necessidade de mudança requerida exige o
histórico de longas internações psiquiátricas e per- desenvolvimento de práticas inovadoras no campo
da dos vínculos familiares e comunitários, neste ní- da saúde mental. Tais práticas como afirma Bosi
vel os dispositivos que se destacam são os Serviços et al. (2011) se constituem como um processo que
Tabela 1
Lista de artigos analisados
Nº Título Autores Revista Ano
Oficinas em saúde mental: a representação dos usuários dos Lappann-Botti e Texto & contexto
1 2004
serviços de saúde mental Labate enfermagem
A reforma psiquiátrica e os desafios na desinstitucionalização da
2 Alverga e Dimenstein Interface (Botucatu) 2006
loucura
Usuários do Hospital-Dia: uma discussão sobre performatividade Guareschi, Reis,
3 Rev. mal-estar 2008
em saúde e doença mental Oliven e Hüning
Psicologia de orientação positiva: uma proposta de intervenção Lemos e Cavalcante
4 Ciênc. saúde coletiva 2009
no trabalho com grupos em saúde mental Júnior
Saúde mental e atenção básica em saúde: análise de uma
5 Silveira e Vieira Ciênc. Saúde coletiva 2009
experiência no nível local
A interface entre as políticas públicas de saúde mental e Caçapava, Colvero e
6 Saúde soc. 2009
promoção da saúde Pereira
Acompanhamento terapêutico na proposta de alta-assistida
7 implementada em hospital psiquiátrico: relato de uma Bezerra e Dimenstein Psicol. clin. [online] 2009
experiência.
Práticas corporais em cena na saúde mental: potencialidades
Abib, Fraga, Wachs,
8 de uma oficina de futebol em um centro de atenção Pensar prát 2010
Alves
psicossocial de Porto Alegre
Práticas territoriais de cuidado em saúde mental: experiências
Rev. eletrônica saúde
9 de um centro de atenção psicossocial no município do Rio de Castro e Maxta 2010
mental álcool drogas
Janeiro
A banalização da prescrição de psicofármacos em um Ferrazza, Luzio, Paidéia (Ribeirão
10 2010
ambulatório de saúde mental Rocha e Sanches Preto) [online]
Construção de um projeto de cuidado em saúde mental
11 Ramos e Massih Pio Psicol. ciênc. prof. 2010.
na atenção básica
Cuidado em saúde mental por meio de grupos terapêuticos Benevides, Pinto, Interface (Botucatu)
12 2010
de um hospital-dia: perspectivas dos trabalhadores de saúde Cavalcante e Jorge [online]
Interdisciplinaridade no processo de trabalho em Centro Jorge, Sales, Pinto e Rev. bras. Promoç.
13 2010
de Atenção Psicossocial Sampaio saúde
Apoio Matricial: um Caminho de Fortalecimento das Redes Prestes, Araújo, Costa, Rev. bras. ciênc.
14 2011
de Atenção à Saúde em Palmas-TO Nascimento e Oliveira saúde
As novas práticas em saúde mental e o trabalho no serviço Esc. Anna Nery
15 Silva e Azevedo 2011
residencial terapêutico [online]
esse trabalho se dá de maneira lenta e que existem familiares, comunitários e sociais proporciona a
dificuldades com relação à precariedade da estrutu- garantia da cidadania e dignidade através do acesso
ra física e dos recursos materiais e humanos (Silva a este direito. Contudo cabe observar que os trabal-
& Azevedo, 2011). hadores deste equipamento necessitam dar maior
A oferta de uma moradia à pessoas que por ênfase à promoção da participação dos moradores
longos períodos de internação perderam seus laços como sujeitos ativos e utilizar os recursos da comu-
nidade para que se possa pensar a cidadania como mesmo tempo, lugar de reconhecimento do outro
a construção de sujeitos autônomos e protagonistas e afirmação da dimensão coletiva da existência.
de suas ações, atuando no fortalecimento e resgate
dos vínculos sociais. As ações realizadas no serviço Oficinas Terapêuticas
ainda encontram-se limitadas ao controle da medi-
cação e ao acompanhamento do trajeto dos usuários De acordo com os artigos encontrados, as oficinas
a outros serviços de saúde. Além disso, a falta de terapêuticas têm por objetivos promover a expres-
um financiamento destinado exclusivamente para são, a socialização e inserção social. As oficinas são
os SRT compromete seu funcionamento tendo em atividades grupais de caráter pontual, realizadas por
vista que grande parte dos municípios brasileiros diversas categorias profissionais e por usuários.
não dispõem de orçamento suficiente para manter Elas possibilitam um lugar de fala, expressão e
esse equipamento por conta própria. acolhimento, utilizando-se de atividades manuais
ou técnicas de expressão. Os CAPS e a comunida-
Atividades Grupais de foram os locais mencionados para a realização
destas atividades.
Tais atividades são relatadas em 08 artigos, nos Lappann-Botti e Labate (2004) afirmam que
trabalhos de: Caçapava, Colvero e Pereira (2009), embora haja uma percepção recorrente de que as
Ramos e Massih Pio (2010), Benevides, Pinto, oficinas são somente um espaço para a distração
Cavalcante e Jorge (2010), Jorge, Sales, Pinto e ou fuga da realidade, elas se configuram, antes de
Sampaio (2010), Lappann-Botti e Labate (2004), tudo, como um lugar de reflexão sobre a vida e de
Lemos e Cavalcante Júnior (2009), Abib, Wachs e cultivo da convivência grupal. Tornam-se campo
Alves (2010) e Castro e Maxta (2010). Estas ativi- de intervenção de diversos saberes e produzem
dades são desenvolvidas de acordo com diferentes uma aproximação maior entre os profissionais,
perspectivas metodológicas (oficinas terapêuticas, usuários e comunidade, pois trabalham numa pers-
grupos terapêuticos e grupos educativos) e em di- pectiva horizontal das relações de hierarquia.
versos locais, como: UBS, CAPS, Hospital-Dia, Há nas oficinas a inclusão da participação dos
comunidade. familiares e estas se diferenciam do modelo ma-
É expressiva a importância das atividades gru- nicomial por ocorrerem em espaços diversos e
pais no cuidado em saúde mental. Elas, de uma apontarem para a tomada da existência-sofrimento
forma geral, contribuem para a afirmação da cida- como objeto das práticas (Lappann-Botti & Labate,
dania e fortalecimento das pessoas em sofrimento 2004). Isso significa a ampliação do olhar antes
psíquico, pois possibilitam a criação de formas voltado exclusivamente para a doença e suas ma-
mais solidárias de relação entre os sujeitos partici- nifestações sintomáticas, para outras dimensões
pantes, de espaços de expressão do sofrimento e de importantes da vida concreta do sujeito.
convívio com a diversidade, além de um resgate dos Em uma oficina de futebol realizada com usuá-
vínculos comunitários. Elas contribuem com o que rios e técnicos dos CAPS, como relata Abib, Wachs
Barreto (2008) denomina de reinvenção do espaço e Alves (2010), percebeu-se que a atividade pro-
público como um lugar de recriação da liberdade posta propiciou o protagonismo dos usuários na
contribuindo assim na estruturação de um mundo criação das regras, na resolução de conflitos e no
de convívio. A possibilidade de reinvenção propor- desenvolvimento da própria atividade. Esse tipo
cionada pela convivência grupal pode ampliar a de atividade contribuiu para uma mudança nas
noção de cidadania, para além de uma perspectiva relações estabelecidas entre usuário e profissional,
legalista da garantia de direitos individuais, para permitindo uma maior horizontalidade entre estes.
um reconhecimento da dimensão do sujeito em sua Consideramos que a oficina de futebol possibilitou
dimensão singular e coletiva, na medida em que o um espaço para consolidar o que Hirdes (2009) des-
grupo é lugar de expressão de idiossincrasias e, ao taca como a necessidade de fortalecimento e afir-
mação dos usuários como sujeitos de sua história, assim como um instrumento potencializador de
por haver uma divisão de papéis na atividade que uma melhoria nas relações sociofamiliares.
estimularam a participação e ampliaram a tomada Os grupos terapêuticos aparecem nos artigos
de decisões para além dos técnicos responsáveis de Jorge et al. (2010), Lemos e Cavalcante Júnior
pela execução da oficina. (2009), Benevides et al. (2010) e Ramos e Massih
O estudo de Castro e Maxta (2010) apresenta Pio (2010) que relatam experiências desenvolvidas
oficinas realizadas no território com recursos pre- em CAPS, atenção básica e Hospital-Dia. Esses
sentes na comunidade, como: praça pública, biblio- grupos são realizados por diferentes categorias
teca e feira livre. As atividades descritas permitiram profissionais (terapeutas ocupacionais, assistentes
a criação de espaços de convivência entre a comu- sociais, sociólogos, musicoterapeutas, psicólogos,
nidade e os usuários do CAPS, favorecendo uma enfermeiros e outros) com objetivos bastante di-
maior inserção no território e um conhecimento e versos.
enfrentamento de fatores sociais condicionantes do No grupo terapêutico apresentado por Lemos e
processo saúde-doença. Cavalcante Júnior (2009), a metodologia, baseada
Embora possamos notar a importância de tais na orientação rogeriano-humanista, tem como foco
práticas, uma vez que a partir destas se promove o desenvolvimento dos potenciais humanos dire-
o fortalecimento do protagonismo dos usuários e cionando o olhar dos profissionais para os aspectos
uma intervenção na vida social da cidade, uma das positivos da mente. A atividade se mostra como
dificuldades relatadas foi a falta de recursos mate- uma estratégia que desafoga agendas e consultórios
riais e financeiros para o desenvolvimento, manu- abarrotados e coloca demandas outras de ordem so-
tenção e continuidade das oficinas. Isso evidencia cial comunitária para as equipes multiprofissionais.
que um dos desafios à efetivação de práticas que Por ter um olhar orientado para a potenciali-
se propõem a promoção da cidadania é justamente dade do ser humano, apresenta uma inovação ao
a garantia dos recursos financeiros, para que não trazer uma perspectiva mais voltada à saúde que
se tornem atividades pontuais e esporádicas, e que à doença. No entanto, na construção do grupo
possam ser valorizadas e compreendidas como observamos que o diagnóstico do usuário serve
fundamentais para os propósitos da Reforma Psi- como critério para o agrupamento destes. Dessa
quiátrica. Percebe-se que, embora tal movimento forma, a superação do rótulo de doente necessária
pretenda a conversão de recursos antes utilizados para o rompimento da lógica do manicômio, como
no hospital psiquiátrico para os novos serviços, ain- afirma Basaglia (1985), fica assim sob suspeita.
da é necessário repensar as formas de alocação dos Problematiza-se aqui se não há ainda dificuldades
recursos financeiros, não atrelando estas exclusiva- em perceber a possibilidade da convivência de su-
mente a critérios diagnósticos, mas em tecnologias jeitos singulares num mesmo espaço público res-
produtoras de saúde desenvolvidas em função das peitando as diferentes formas de estar no mundo.
necessidades de saúde da população. Sendo assim, práticas que contemplem a cidadania
requerem também a consideração da expressão e
Grupos Terapêuticos convívio das diferenças.
No artigo de Benevides et al. (2010) identifica-
Os grupos terapêuticos foram apresentados como se práticas de cuidado que incluem a participação
atividades rotineiras e permanentes em diversos da família do usuário no processo de reabilitação.
serviços de saúde mental. Destacou-se como fina- De acordo com o relato dos autores, nas atividades
lidade potencializar uma abordagem psicossocial de grupos em que há o envolvimento das famílias
aos problemas de saúde mental com o foco na percebe-se uma melhoria das relações entre usuá-
expressão de sentimentos e emoções dos sujeitos, rios e familiares. Esse é um aspecto interessante,
na educação em saúde e na ampliação do conheci- pois não é muito frequente a proposição e inclusão
mento sobre o processo saúde-doença. Pretendem da família nas atividades de cuidado na saúde
ser um dispositivo de cuidado em saúde mental, mental.
Neste último, destaca-se a necessidade de invenção de qualidade é algo necessário, contudo ainda
de novas modalidades de cuidado, no qual o grupo pouco presente em muitos serviços de saúde men-
tem lugar privilegiado. Onocko-Campos (2001) tal (Onocko-Campos, 2001). O questionamento
questiona se não haveria se construído uma sobre- aponta na direção da qualidade desta, que não deve
posição do grupo, operando uma negação da clínica reduzir-se ao sintoma, à doença e a supressão des-
no sentido de suprimir os espaços de escuta e apoio tes, mas deve centrar-se na totalidade da existência
das demandas particulares. do sujeito e na construção de novas possibilidades
Entre os trabalhos que mencionam práticas de e sentidos do viver (Amarante, 2007).
atendimentos individuais, estão o de Silveira e
Vieira (2009), Ferrazza, Luzio, Rocha e Sanches Acompanhamento Terapêutico
(2010), Benevides et al. (2010) e Jorge et al. (2010).
Os atendimentos relatados têm como cenário a Es- A prática do acompanhamento terapêutico foi en-
tratégia Saúde da Família, o CAPS, o hospital e o contrada no artigo de Bezerra e Dimenstein (2009)
ambulatório de saúde mental. realizada em um hospital psiquiátrico com a pro-
O trabalho de Ferraza et al. (2010) e Jorge et al. posta de alta-assistida. De acordo com os autores,
(2010) evidenciam que nesses atendimentos reali- o acompanhamento terapêutico é uma importante
zados existe uma cultura médico-centrada, percebi- estratégia de inserção social dos sujeitos em sofri-
da pela alta busca e encaminhamento a psiquiatria. mento psíquico na vida extramanicomial podendo
Há uma grande frequência de prescrição prévia de ser realizado por diferentes profissionais e técnicos
psicofármacos a pacientes que apresentam queixas de saúde.
de sofrimento psíquico, com baixos índices de alta. O acompanhamento terapêutico é uma prática
Os processos de trabalho nesses estudos eviden- que se desenvolve tanto no interior dos serviços de
ciam a dificuldade em promover práticas de cui- saúde, como em diferentes espaços públicos por
dado que possam intervir nas diferentes esferas da onde o sujeito circula, extrapolando o universo da
vida do sujeito, elegendo como objetivo central da instituição, o que caracteriza esta prática como uma
intervenção a supressão do sintoma. “clínica sem muros” (Bezerra & Dimenstein, 2009,
Silveira e Vieira (2009) relatam práticas des- p. 28). Por ir além do espaço hospitalar, adentra
envolvidas na Estratégia Saúde da Família em que o universo da interação do sujeito com a cidade
destacam o despreparo para lidar com o sofrimento e trabalha questões referentes a esta relação. Sua
psíquico por parte das equipes e, assim como nos potência situa-se neste aspecto, pois possibilita um
artigos anteriormente citados, uma visível tendên- olhar integral do sujeito e uma intervenção em sua
cia à medicalização dos sintomas. As longas filas de vida pessoal e social, abordando questões singula-
espera e as condições precárias do serviço diante da res, familiares, comunitárias e sociais, fundamen-
demanda se apresentam ainda como uma dificulda- tais para o exercício da cidadania (Barreto, 2008).
de no oferecimento da assistência em saúde. Desse Apesar do grande potencial de reintegração dos
modo, percebe-se que o acesso aos serviços, uma usuários a vida social, a realização de tal prática
das dimensões mais básicas de garantia dos direitos ainda sofre muitas resistências no contexto hospita-
e da cidadania dos usuários (Hirdes, 2009), encon- lar. Dentre os empecilhos para a concretização des-
tra-se ainda por ser efetivado em nossa realidade. ta prática citada por Bezerra e Dimenstein (2009)
Ao problematizar a clínica individual na atenção encontram-se o desconhecimento da proposta pelo
psicossocial, a partir dos exemplos apresentados, corpo técnico; a falta de adesão de profissionais à
vê-se que a cultura médico-centrada e o foco na proposta; a ausência de acompanhamento/segui-
medicalização dos sintomas ainda é muito presente mento cotidiano da atividade; a falta de recursos
inclusive em serviços criados a partir dos ideais da financeiros para o desenvolvimento de atividades
Reforma Psiquiátrica. Não se pretende aqui negar externas; a pouca articulação com a rede de ser-
tal prática e sua importãncia, ao contrário, sabe-se viços de saúde mental; e a ausência de um trabalho
o quanto o acesso a um atendimento individual sistemático com as famílias.
O apoio matricial é uma prática que articula Muitas das práticas encontradas relataram expe-
atenção básica e atenção psicossocial especializada riências de cuidado pautadas no paradigma psicos-
(CAPS). Caracteriza-se por ser um suporte técnico social, com um olhar voltado para o sujeito e sua
especializado em saúde mental a nível assistencial e existência. Sendo assim a contribuição destas para a
técnico-pedagógico, no qual conhecimento e ações afirmação da cidadania situa-se numa maior consi-
considerados como próprios das áreas “psis” são deração do sujeito em sua realidade concreta, visto
ofertados a demais profissionais da área da saúde que as atividades buscam intervir em diferentes
no intuito de aumentar a capacidade resolutiva de espaços sociais, o que facilita uma maior contratua-
casos individuais, familiares e comunitários em lidade e fortalecimento da autonomia dos sujeitos.
saúde mental e fortalecer a rede de atenção em É notável que há um avanço na proposição de
saúde mental. Os trabalhos de Prestes, Araújo, novas práticas, que configuram um amplo leque
Costa, Nascimento e Oliveira (2011) e Ramos e de possibilidades de intervenções. Diferentes ca-
Massih Pio (2010) mencionam experiências de tegorias profissionais tem se empenhado neste
apoio matricial. trabalho e a atuação multiprofissional tem sido
uma condição para execução dessas práticas. Isso Brasil, na forma de bolsa de mestrado do primeiro
demonstra o reconhecimento da importância da in- e do terceiro autor e do Conselho Nacional de Des-
terdisciplinaridade na abordagem da complexidade envolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ),
dos problemas de saúde mental. Brasil, na forma de bolsa de pesquisadora em pro-
O fortalecimento do protagonismo dos usuários dutividade (PQ) da segunda autora.
foi apontado em muitos objetivos das práticas de
cuidado e isso remete a um movimento de busca Referências
da garantia da condição de cidadão da pessoa com
transtorno mental. Considera-se de fundamental Abib, L. T., Wachs, F., & Alves, C. T. (2010). Práticas
importância que isto seja salientado, pois percebe- corporais em cena na saúde mental: potenciali-
se um redirecionamento do cuidado, que se des- dades de uma oficina de futebol em um centro de
envolve não entre um ser que toma o outro como atenção psicossocial em Porto Alegre, RS. Pensar
objeto, mas a partir de um encontro entre sujeitos a Prática, 13 (12), 1-15.
ativos na produção de sua história e existência. Amarante, P. (1995). Novos Sujeitos, Novos Direitos: O
Apesar das inovações encontradas destacam-se debate em torno da Reforma Psiquiátrica. Cader-
algumas dificuldades. Uma delas é a perpetuação nos de Saúde Pública, 11 (3), 491-494.
de práticas asilares e manicomiais em alguns ser- Amarante, P. (2007). Saúde Mental e Atenção Psicosso-
viços, inclusive nos novos dispositivos de cuidado. cial (2ª ed.). Rio de Janeiro: Fiocruz.
Outra remete-se a questão do acesso aos serviços. Amorim, A., & Dimenstein, M. (2009). Loucura e ci-
Estes não conseguem responder a alta demanda de dade: cenas biopolíticas e incursões (des) institu-
cuidados em saúde mental deixando muitas pessoas cionalizantes. Fractal: Revista de Psicologia, 21
na fila de espera ou sem atendimento. Além disso, (2), 319-336.
existem dificuldades como: a descontinuidade das Ayres, J. R. C. M. (2004). Cuidado e reconstrução das
ações e o financiamento inadequado para o pleno práticas de Saúde. Interface - Comunicação, Saú-
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Historicamente, grande parte da população em Barreto, J. (2008). Cidadania, subjetividade e Reforma
sofrimento psíquico foi expropriada de seus direitos Psiquiátrica. Physis - Revista de Saúde Coletiva,
e sua dignidade. Ainda hoje, apresenta-se como um 18 (2), 27-34.
desafio fomentar e fortalecer espaços e políticas Basaglia, F. (1985). A instituição negada: relato de um
públicas de saúde mental que ampliem os cuidados hospital psiquiátrico (3ª ed.). (Heloísa Jahn, Trad.)
para além da doença e que se possa reconhecer e Rio de Janeiro: Graal.
intervir sobre a existência concreta desses sujeitos. Benevides, D. S, Pinto, A. G. A, Cavalcante, C. M., &
Assim como, o desenvolvimento de práticas cada Jorge, M. S. B. (2010). Cuidado em saúde mental
vez mais horizontalizadas e realizadas mediante o por meio de grupos terapêuticos de um hospital-
diálogo entre os saberes científicos e populares e dia: perspectivas dos trabalhadores de saúde. In-
de uma escuta real das necessidades da população. terface: comunicação, saúde e educação, 14 (32),
Sendo a cidadania um processo a ser conquistado e 127-138.
afirmado historicamente, sua efetivação e seu for- Berlinck, M. T. (2009). La Reforma Psiquiátrica Brasi-
talecimento através das práticas de cuidado passam leña: perspectivas e problemas. Salud mental, 32
pela necessidade de fomentar movimentos em de- (4), 265-267.
fesa de políticas públicas orientadas por princípios Bezerra, C. G., & Dimenstein, M. (2009). Acompanha-
antimanicomiais de cuidado em liberdade. mento Terapêutico na proposta de alta-assistida
implementada em hospital psiquiátrico: relato
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