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Presidente da República
José Sarney
Ministro da Educação
Jorge Bornhausen
Secretário-Geral do MEC
Aloisio Sotero
Prêmio
Grandes Educadores
Brasileiros
Monografias Premiadas
1985
Série Grandes Educadores, 2
Inclui bibliografia
CDU37.011.3(81):92
Presidente da República
José Sarney
Ministro da Educação
Jorge Bornhausen
Secretário-Geral do MEC
Aloisio Sotero
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Prêmio
Grandes Educadores
Brasileiros
Monografías Premiadas
1985
Brasilia
1986
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Diretor-Geral
Pedro Demo
Diretora de Estudos e Pesquisas
Acácia Zeneida Kuenzer
Diretor de Planejamento e Administração
Carmo Nunes
Diretora de Documentação e Informação
Magda Maciel Montenegro
Revisão
Adriana Morgado Loureiro
Andréa Studart Corrêa
Marlow Santos
Revisão Tipográfica
Corina Barra Soares
Vania Velloso
Normalização Bibliográfica
Regina Célia Soares
Capa e Diagramação
Ana Maria Boaventura
PREFÁCIO 7
OS AUTORES: DADOS BIOGRÁFICOS 11
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES 13
PRIMEIRA PARTE
SEGUNDA PARTE
Vanilda Paiva
Os autores: dados biográficos
****
FERNANDO CORREIA DIAS, natural de Tres Pontas, Minas Gerais, iniciou sua vi-
da funcional na Secretaria da Fazenda de Minas Gerais e é hoje assessor do Ministério
da Cultura.
É bacharel em Direito, em Sociologia e Política e em Administração Pública pela
Universidade Federal de Minas Gerais. como jornalista, foi repórter da Folha de Minas,
redator político e cronista parlamentar junto à Assembléia Legislativa desse mesmo Es-
tado. Prestou assessoria técnica a várias entidades estaduais e dirigiu o Centro de Estu-
dos Mineiros da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Doutor em Ciências Sociais pela UFMG, defendeu tese sobre O Movimento Moder-
nista em Minas: uma Interpretação Sociológica. Em sua carreira docente como profes-
sor titular da Universidade Católica de Minas Gerais, atuou em diferentes disciplinas da
área de Sociologia, em nível de graduação e de pós-graduacão.
Participou da implantação dos cursos de mestrado e doutorado em Sociologia na
Universidade de Brasilia (UnB) e foram numerosas as monografias de mestrado e teses
de doutorado sob sua orientação.
Participou das bancas examinadoras de monografias e teses e da comissão julgadora
do concurso para professor titular da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Inúmeras e eficientes foram suas atividades, não só docentes e culturais em cursos
de extensão, congressos e reuniões em diferentes regiões do país, como ainda em asso-
ciações científicas e culturais, destacando-se as de assessoria ao Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), à Coordenação do Aperfeiçoamen-
to de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e ao Conselho Federal de Educação (CFE).
Realizou atividades de pesquisa e consultoria em diferentes projetos, podendo-se
destacar Universidade de Minas: Visão Ilustrada e Projeto Político, recentemente de-
senvolvido.
São numerosos os trabalhos de autoria de Fernando Correia Dias publicados em pe-
riódicos técnicos e revistas universitárias, envolvendo diferentes tipos como ensaios,
crônicas, análises sociológicas e resenhas.
Premiado pela Portobrás com viagem à Amazônia por monografia sobre o monopó-
lio estatal do petróleo, foi agraciado ainda com outros prêmios pela Academia Mineira
de Letras e pela União Brasileira de Escritores, pelos trabalhos João Alphonsus: Tempo
e Modo e Presença de Max Weber na Sociologia Brasileira Contemporânea. O seu livro
A Imagem de Minas foi selecionado para publicação pela Imprensa Oficial de Minas Ge-
rais.
O trabalho do professor Fernando Correia Dias intitulado A Renovação da Escola
Pública — Idéias e Práticas Educativas de Firmino Costa, premiado no concurso do
Prêmio Grandes Educadores Brasileiros, tem o mérito de trazer para a galeria dos gran-
des educadores brasileiros uma personalidade pouco conhecida, cuja atuação foi de
elevado mérito e que, enquanto viveu numa localidade restrita do país, teve sua ativida-
de caracterizada pela participação eficiente e anônima na obra de outros educadores já
conhecidos como eminentes.
Considerações preliminares *
* Discursos proferidos pelos autores por ocasião da solenidade de entrega do Prêmio Grandes
Educadores Brasileiros, cm 15/10/85.
do-se por adições e enxertos, andava divorciada do meio e renhida com os interesses
fundamentais da vida nacional e da civilização. O triunfo da burocracia no ensino -
burocracia estreita, aparatosa e niveladora; a rigidez de uniformização que tendia a tor-
ná-lo artificial; a legislação draconiana, o empirismo com que eram tratados problemas
tão complexos, como os da educação, o caráter antiquado do sistema escolar (...)"•
Fernando de Azevedo foi um crítico consciente da importância da educação para o
desenvolvimento do país. Lembremos, por exemplo, a abertura do Manifesto dos Pio-
neiros, de 1932, que ele redigiu: "Na hierarquia dos problemas nacionais, nenhum so-
breleva em importância e gravidade ao da educação. Nem mesmo os de caráter econô-
mico lhe podem disputar a primazia nos planos de reconstrução nacional". Mas tinha
também consciência dos limites da escola. No mesmo ano do Manifesto, escreveu: "A
primeira conclusão a que nos levam os estudos sociais, é a limitação do papel da esco-
la na sociedade".
Mas Fernando de Azevedo ultrapassou a crítica. Elaborou planos, tomou iniciativas,
promoveu reformas. Ao entrar para a Academia Brasileira de Letras, em 1968, conside-
rou-se "um escritor de idéias radicais, de espírito inquieto e insatisfeito consigo mesmo
e com quase tudo o que vê à volta de si, dominado pelo demônio da reforma que é um
de seus companheiros mais constantes nas horas de solidão".
como poderemos esquecer a importante reforma que promoveu nesta cidade do Rio
de Janeiro, de 1927 a 1930? Sua administração à frente da Diretoria de Instrução Pú-
blica do então Distrito Federal mereceu cerca de 7.000 notícias na imprensa da época.
Suas propostas foram debatidas, contestadas, aplaudidas. Não havia neutralidade. Os
princípios da reforma — extensão do ensino, articulação de graus e modalidades, adap-
tação ao meio (urbano, rural e marítimo) e às idéias modernas de educação (escola úni-
ca, escola do trabalho e escola-comunidade) - continuam a ter significativa atualidade
e ainda constituem metas a atingir.
como podemos esquecer sua atuação no movimento de fundação da Universidade
de São Paulo em 1934? A Universidade, segundo Fernando de Azevedo, representa a
vitória da inteligência e da liberdade contra a força e a violência: "Pois, nesta época
rudemente trabalhada por duas correntes sociais e políticas que, fazendo apelo à força, à
vontade e à ação, tendem a esmagar a inteligência e a liberdade sob o rolo compressor
da máquina do Estado, o governo de São Paulo criou a Universidade, como um protes-
to e afirmação de fé na liberdade de pensamento e de investigação, de crítica e de de-
bate, que constitui os fundamentos das instituições democráticas e universitárias".
Professor de Latim, Psicologia e Sociologia, crítico literário, sociólogo, reformador
da educação, Fernando de Azevedo elegeu o humanismo moderno, que integra as artes,
as letras e as ciências, como núcleo inspirador do seu pensamento e da sua ação. Dire-
tor de Instrução Pública do Distrito Federal, duas vezes Secretário de Educação do Es-
tado de São Paulo, Secretário de Educação do Município de São Paulo, fundador da
Universidade de São Paulo e Diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, des-
sa Universidade, Presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia, Diretor do Centro
Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo, membro da Academia Brasileira de
Letras, Fernando de Azevedo teve destacada atuação de mais de meio século na vida
educacional e cultural do país. Deixou-nos obras importantes, principalmente nos cam-
pos das Ciências Sociais e da Educação. A Cultura Brasileira é uma obra indispensável
para quem queira conhecer nossa história.
Fernando de Azevedo foi um sonhador, um idealista, mas foi, sobretudo, um bata-
lhador. É sua filha quem testemunha: "Meu pai era um forte, uma grande inteligência,
um trabalhador incansável, um batalhador. Um homem muito aberto para tudo, olhan-
do sempre para o futuro. Até o fim trabalhou e lutou pelos seus ideais, pelo bem de
sua família, com tôda sua força e energia."
Antônio Cândido de Mello e Souza, discípulo e amigo de Fernando de Azevedo,
também nos dá testemunho de sua combatividade: "Fernando de Azevedo foi um
exemplo raro de homem que gosta da responsabilidade e cuja lucidez é aguçada, não
embotada, pelas dificuldades, porque elas espicaçam o seu ânimo combativo."
Permitam-me, para concluir, que lhes exponha uma última questão que me preocu-
pa neste momento: apesar da marcante atuação de educadores como Anísio Teixeira,
Lourenço Filho, Fernando de Azevedo e outros, a educação brasileira tem ainda um
longo caminho a percorrer. É que a mudança na educação não é tarefa para uma só
pessoa, por mais genial que seja. É uma obra coletiva. Creio que aos poderes públicos
cabe motivar, estimular, abrir caminhos, convocar, coordenar, providenciar recursos.
O analfabetismo — como outros graves problemas que o Brasil enfrenta no campo edu-
cacional -, por exemplo, poderia ser superado ou ao menos substancialmente reduzi-
do, com a aplicação, na prática, do princípio federativo: a partir de cada comunidade,
que contaria com o apoio das municipalidades. Estas seriam coordenadas pelos Estados
que, por sua vez, se integrariam num movimento de âmbito nacional, orientado e coor-
denado pelo Ministério da Educação. Municípios, Estados e União dividiriam e coorde-
nariam suas responsabilidades num movimento que iria procurar o analfabeto no lugar
em que vive, ao invés de esperá-lo na sala de aula. Num movimento que poderia enga-
jar — por que não? - os estudantes universitários, os professores e outros grupos so-
ciais dispostos a dar sua colaboração.
Esta proposta, ainda que pouco elaborada, é a expressão do sentimento de que os
problemas da educação nacional são altamente prioritários e de que sua solução já não
pode ser postergada. Funda-se na convicção, fortalecida pelo estudo de Fernando de
Azevedo, de que o desenvolvimento do país passa necessariamente pela educação aces-
sível a todos os brasileiros. Funda-se também na esperança. Esperança que se realizará
na medida em que nos empenharmos na construção de um novo dia, pois, citando as
palavras de Fernando de Azevedo, escritas em 1957 e que não deixam de ter atualida-
de: "O velho relógio da educação, 'emperrado e dissonante (escrevia eu em 1926) anda
com atraso de quase meio século, marcando as primeiras horas de um crepúsculo mati-
nal, sonolento e sombrio'... Se é certo que não parou, continua com enorme atraso. A
julgar pela hora que marca, apenas raiou para nós a madrugada."
***
Palavras de Fernando Correia Dias
É para mim motivo de grande alegria estar aqui nesta solenidade para receber o
prêmio outorgado pelo INEP à monografia que elaborei sobre Firmino Costa.
Alegra-me o reconhecimento público a esse trabalho de pesquisa, no qual me empe-
nhei intensamente, movido pela admiração que nutro pelo grande educador mineiro. A
forte simpatia humana que Firmino Costa me suscita não suplantou a simpatia crítica.
Desse modo, não compus um texto laudatòrio, mas um estudo analítico das práticas
educativas características de determinada época e de determinado meio social.
Outro motivo de satisfação pessoal reside na oportunidade que vejo abrir-se para a
divulgação do nome e da obra de um mestre injustamente esquecido nas últimas déca-
das. Sua memória só é cultivada por círculos muito restritos e pelos seus conterrâneos
da cidade mineira de Lavras. Agrada-me o fato de estar contribuindo para a recupera-
ção ampla da memória de Firmino Costa; enfim, para que as novas gerações possam co-
nhecê-lo e admirá-lo.
Não foi ele um macroadministrador de sistemas educacionais nem se distinguiu como
invulgar pensador; foi, entretanto, um extraordinário mestre-escola, dotado de notável
capacidade criadora, atualizado com o pensamento pedagógico de seu tempo, total-
mente receptivo às inovações significativas.
Erudito e culto, era mais bem informado sobre educação do que a média dos pro-
fessores que lhe foram contemporâneos, inclusive os radicados nos grandes centros urba-
nos brasileiros. Recebia periódicos especializados estrangeiros e conhecia profundamente
a história da Pedagogia. Esses traços de sua vida intelectual assumem maior expressivi-
dade na medida em que tratava-se de um autodidata. Cursou tão-sòmente os prepara-
tórios, em São Paulo, se bem que o tenha feito com alguns mestres eminentes. Quando
foi convidado a dirigir o Grupo Escolar de Lavras, em 1907, era apenas um comercian-
te. Já lecionava, nas horas vagas, Língua Portuguesa e Literatura no Instituto Evangéli-
co.
A trajetória do mestre há de ser visualizada dentro do contexto social e político
da Primeira República, período marcado por iniciativas tendentes a atualizar o ensino
em seus métodos e objetivos. Difundia-se a crença liberal de que educação poderia mo-
delar a sociedade.
Em Minas Gerais, a antiga tradição intelectual ilustrada tem assumido, historica-
mente, de modo alternado ou não, as vertentes da razão humanística e da razão prag-
mática João Pinheiro é bem o representante da segunda tendência, nos quadros da elite
intelectual e política da região. De formação positivista, orientou-se no sentido da
melhoria técnica do setor agropecuário, procurando, ao mesmo tempo, racionalizar to-
da a atividade produtiva em Minas. Em seu programa de governo, a instrução pública.
como instrumento de preparação da força de trabalho para a nova era econômica, assu-
miu um papel fundamental. Eleito pelo sufrágio direto em 1906, João Pinheiro não
cumpriu todo o seu mandato por ter falecido em 1908. Foi-lhe possível, contudo, du-
rante esse breve governo, realizar profunda reforma da instrução. Instituiu, como prin-
cipal novidade, o grupo escolar, que veio a substituir as antigas escolas isoladas ou sin-
gulares; nestas, alunos de diferentes níveis de escolaridade se juntavam na mesma clas-
se, sob as ordens de um único docente, em geral mal preparado. O programa do ensino
primário e as instruções que o acompanhavam eram inovadores para a época. Insistia-se
no método intuitivo e na aprendizagem voltada para a vida prática.
Coube a Firmino Costa, diretor - na ordem cronológica - do terceiro dos grupos
escolares fundados em Minas, construir o modelo da escola renovada; encarregou-se de
dar o tom à reforma João Pinheiro, executada por Carvalho de Brito, titular da Secre-
taria do Interior, a qual abrangia o setor da instrução.
Dentro do espírito da época, o educador lavrense lançou-se com todo o entusiasmo
à tarefa de organizar sua escola, que contava inicialmente com dez classes, e de propa-
gar o valor da educação junto a seus conterrâneos. Fundou, para isso, um boletim quin-
zenal, quase totalmente redigido por ele próprio, onde discutia questões práticas e as-
suntos doutrinários. O objetivo principal era o de criar uma consciência comunitária
em torno da importância social da escola.
Firmino Costa não se restringiu a discutir e a complementar as instruções recebidas
de Belo Horizonte: aventava alternativas, cumpria as prescrições de um modo crítico e
propunha inovações. Criou suas próprias técnicas didáticas no ensino da geografia e da
história locais, valendo-se de excursões e do conhecimento direto da realidade. como
filólogo e pedagogo, preocupou-se especialmente com o ensino da língua materna, ramo
do conhecimento a que deu uma contribuição substancial. O ensino da linguagem era,
para ele, uma forma de ensinar a pensar. Concebia a expressão oral e escrita, sobre
cujos problemas de aprendizagem debruçou-se durante décadas, como instrumento para
a vida. A essa visão instrumental acrescentava uma dimensão estética, que lhe advinha
de excelente formação literária de cunho clássico, mas aberta aos escritores contempo-
râneos e à evolução da língua.
Lembremos que Firmino Costa conseguiu perfeita interação da comunidade com a
escola, tornando-se o grupo escolar o centro coordenador da instrução no município;
instituiu, desde 1910, o Dia da Cidade, anualmente comemorado desde então; implan-
tou assistência médico-dentária para os alunos; instituiu o ensino complementar, de
cunho profissionalizante, com oficinas de marcenaria, selaria, sapataria, além de horti-
cultura e trabalhos de costura para as meninas; organizou a Caixa Escolar, de assistên-
cia aos alunos carentes; arborizou o pátio da escola, transformando-o num bosque:
criou a sala do município, a biblioteca e o museu escolar; relatou em vários livros sua
prática educativa.
Desde o início, tendo em vista algumas deficiências da reforma João Pinheiro, preo-
cupou-se com a adequada formação das normalistas. Elas deveriam ter, ao lado de uma
formação propedêutica e do domínio do conteúdo das disciplinas do ensino básico,
uma capacitação profissional, através dos conhecimentos de Psicologia Educacional,
Didática, História da Educação, etc. O esquema de um novo Curso Normal, por ele
proposto desde 1915, somente muitos anos depois acabaria por ser adotado em Minas.
Outra relevante inovação consistiu em criar, junto ao grupo escolar, um curso para
normalistas rurais, certamente o primeiro, no gênero, a organizar-se no Brasil e cuja ex-
periência seria retomada, anos depois, pela professora Helena Antipoff na Fazenda do
Rosário.
Firmino Costa tornou-se conhecido em Minas pela difusão de suas idéias e pelo rela-
to de suas atividades, através do boletim Vida Escolar, dos relatórios anuais que envia-
va à administração estadual (publicados pelo órgão oficial Minas Gerais) e da publicação
de dois livros, respectivamente em 1913 e 1920, O Ensino Popular e O Ensino Primá-
rio. Dirigiu o Grupo Escolar de Lavras de 1907 a 1925. Neste último ano foi convidado
para ser o reitor do antigo internato do Ginásio Mineiro, na cidade de Barbacena. Após
realizar ali uma experiência pedagógica bem sucedida, foi convocado para trabalhar em
Belo Horizonte no período do governo Antônio Carlos, que encetara nova reforma do
ensino em Minas, de maior alcance do que as anteriores. A transformação educacional
efetivou-se sob a direção de Francisco Campos, auxiliado de perto por Mário Casassan-
ta, o principal executor do projeto.
Firmino Costa debateu os princípios da Escola Ativa, que ele próprio, por intuição.
vinha levando à prática desde o começo do século; participou de cursos de aperfeiçoa-
mento para professores primários e pessoal técnico da Instrução Pública, lecionando
Metodologia do Ensino de Português, História do Brasil e Educação Moral e Cívica e
da elaboração do novo Programa do Ensino Primário (1927), do qual foi um dos prin-
cipais autores; proferiu palestras sobre a História da Educação e seus grandes mestres.
Pode-se dizer que, dentre eles, elegeu alguns paradigmas; Pestalozzi, que considerava
como modelo de vida sob muitos aspectos, especialmente o da dedicação à infância e à
juventude; Horace Man, o fundador da primeira escola normal nas Américas e John De-
wey, pelos princípios pedagógicos da socialização por meio da solidariedade social. O
mestre de Lavras foi um dos primeiros brasileiros a inteirar-se dos trabalhos de Piaget
em Genebra e a mencioná-los em seus escritos.
A principal tarefa de Firmino Costa, em Belo Horizonte, foi a de dirigir a Escola
Normal-Modelo, primeiramente como diretor-técnico do respectivo Curso de Aplica-
ção, depois como diretor-geral, cargo que exerceu até 1937, quando aposentou-se por
limite de idade. Nesse estabelecimento realizou, com perfeita eficácia, o projeto de for-
mação de normalistas que acalentara desde a juventude. Firmino Costa faleceu em
1939, aos setenta anos, cercado da admiração e do carinho de colegas, alunos e ex-alu-
nos.
com essas palavras, procurei transmitir uma idéia, embora esquemática, da vida e
das realizações de Firmino Costa. Todos esses aspectos foram devidamente desenvolvi-
dos na monografia. Devo agora dizer que me encontro afetivamente ligado à figura do
educador que estudei - e esta é outra razão de agradecimento por estar aqui nesta cir-
cunstância. Foi ele professor de minha mãe, Judith Correia Dias, em Lavras, na época
em que freqüentou o Colégio Nossa Senhora de Lourdes e estagiou no Grupo Escolar,
sob a orientação do mestre. O diário que ela redigiu, em 1919, relatando as observa-
ções e os acontecimentos do período de prática profissional, constituiu uma das fontes
para meu estudo. Trata-se do primeiro documento que despertou meu interesse pelo
biografado, sendo também o filão pelo qual pude seguir adiante em minhas pesquisas.
Minha mãe, que experimentou benéfica influência de Firmino Costa, faleceu recen-
temente, aos noventa anos de idade, quarenta e tantos dos quais dedicados ao ensino
público como professora e diretora de escola primária. Neste momento, peço licença
para dedicar à memória de minha mãe o trabalho que realizei e o prêmio que ora rece-
bo.
Gostaria ainda de saudar as pessoas da família de Firmino Costa que se encontram
neste recinto, especialmente sua filha. Dona Júlia Costa Pirillo. Pensando não apenas
no grande educador, mas também na figura humana de extraordinária integridade pes-
soal, evoco sua memória de verdadeiro sábio, citando algumas frases bíblicas que, se-
gundo suponho, serão do agrado dos descendentes de Firmino Costa:
Fernando de Azevedo
A Educação como Desafio
Nelson Piletti
Fernando de Azevedo
(1894-1974)
Introdução
Seria temeridade pretender, nas poucas páginas de uma monografia, penetrar a fun-
do nas múltiplas e complexas realidades que constituem a vida de uma pessoa. Mesmo
que esta pessoa tenha realizado uma profícua obra escrita e uma rica vida pública, co-
mo é o caso de Fernando de Azevedo. Certamente, o impresso e o público estão mais
ou menos sombreados pelo lado oculto da personalidade ; talvez o público exerça até
uma função de ocultamento mais que de revelação.
Esta monografia pode ser definida como um trabalho exploratório, que busca traçar
uma visão panorâmica do grande educador que foi Fernando de Azevedo, visão pano-
râmica que vai se construindo aos poucos, passo a passo, na trilha do que foram sua
produção e sua vida.
A linha mestra, o eixo central, é a sua obra. É nela que busquei o seu pensamento.
Um pensamento que não é estático, meramente abstrato, mas que é dinâmico, que é
movimento, que é histórico. O que me preocupou, basicamente, foi a procura da histo-
ricidade no pensamento e na ação de Fernando de Azevedo. Historicidade claramente
manifesta em sua trajetória: de especialista em educação física e educador, em sentido
amplo; de crítico literário a sociólogo. Educador e sociólogo sempre dominado pelo
que ele próprio chama, já no final de sua vida, de "demônio da reforma".
Cada capítulo compreende uma faceta de sua produção e, ao mesmo tempo, um
momento específico da sua história. É assim que se sucedem as principais facetas e
os principais momentos, cada um dos quais, se devidamente aprofundado e analisado,
pode constituir um estudo independente: o ponto de partida é a visão que o educador
tem de si mesmo. Seguem-se, na medida do possível em ordem cronológica, as manifes-
tações que considero mais características da sua presença: A Poesia do Corpo, a respei-
to dos escritos sobre a educação física e os esportes; Máscaras e Retratos, compreen-
dendo a crítica literária; Educação na Encruzilhada, focalizando o inquérito que reali-
zou em São Paulo, em 1926; Novos Caminhos e Novos Fins, analisando a reforma edu-
cacional que promoveu no Rio de Janeiro, de 1927 a 1930; Pioneiro entre os Pionei-
ros, enfatizando sua ação pioneira, juntamente com outros educadores, na luta por mu-
danças educacionais no Brasil; A Missão da Universidade, sobre o seu papel na funda-
ção da Universidade de São Paulo e na defesa de uma particular concepção de vida uni-
versitária; A Cultura Brasileira, abordando suas contribuições teóricas e práticas ao
avanço das ciências sociais; Na Batalha do Humanismo, em que se manifesta a defesa
intransigente de um novo humanismo; O Brasil Corre para o Oeste, em que a análise
sociológica é aplicada a fenômenos importantes de nossa história; e Um Sonho Latino-
-americano. sobre alguns aspectos de sua atuação à frente do Centro Regional de Pes-
quisas Educacionais de São Paulo.
Os três apêndices respondem à necessidade de uma compreensão mais global, menos
técnica e mais humana, do educador Femando de Azevedo. Com este fim selecionei
uma página manuscrita; trechos do seu discurso ao tomar posse na Academia Brasileira
de Letras, em 1968, quando faz um balanço geral de suas idéias e de sua vida; e um
depoimento exclusivo de sua filha, Lollia de Azevedo Marx.
Além de estudo exploratório, passível de inúmeros e variados desdobramentos, este
é também um trabalho de divulgação. É por demais urgente que resgatemos nossa me-
mória educacional, não apenas a fim de conhecermos aqueles que contribuíram decisi-
vamente para construir o arcabouço educacional que temos hoje, mas principalmente
para que, compreendendo o caráter histórico dessa construção, tenhamos a coragem de
dar-lhe continuidade, modi ficando-a onde e quando necessário.
A recuperação do nosso atraso em matéria de educação nao é tarefa fácil, nem mis-
são para um punhado de supostos iluminados. É uma obra coletiva, mas é preciso que a
coletividade, de modo especial aqueles mais diretamente envolvidos na educação esco-
lar - administradores, professores e alunos - ampliem constantemente seu espaço e
seu tempo de atuação e sua força transformadora. Já não digo para que alcancemos a
meta inúmeras vezes proposta — mais como discurso demagógico do que como empe-
nho real - de oferecer uma educação digna desse nome a todos quantos dela precisem
e pelo tempo necessário, mas ao menos para que seja cumprido o preceito constitucio-
nal que manda oferecer o ensino básico a todas as crianças de sete a 14 anos.
O trabalho que ora apresento resultou do momento e das circunstâncias em que foi
elaborado. Constitui, portanto, uma visão particular e provisória, sujeita às necessárias
modificações exigidas pela própria historicidade que caracteriza o ser humano. Resul-
tou também da cooperação direta ou indireta de muitas pessoas, com as quais convivi
ao longo da minha vida. Quero mencionar especialmente meus familiares, amigos, cole-
gas e professores.
Não poderia deixar de expressar meus agradecimentos aos professores Heladio C. G.
Antunha e Maria de Lourdes M. Haidar, que despertaram meu interesse pelo estudo
de História da Educação Brasileira; às professoras Vanilda Paiva, Diretora-Geral do
INEP, e Leticia Maria Santos de Faria, Secretária-Executiva do Prêmio Grandes Edu-
cadores Brasileiros, pela atenção que me dispensaram; os professores Durmeval Tri-
gueiro, Clarice Nunes, Eliana Teixeira Lopes, Ester Buffa e José Oliveira Arapira-
ca, membros da comissão julgadora; e à familia de Femando de Azevedo, na pessoa de
sua filha Lollia de Azevedo Marx, que, com seu depoimento vivo e autèntico, abriu-nos
importante via de acesso a uma compreensão mais humana da personalidade do seu
pai.
Fernando de Azevedo por ele mesmo
(*) Curriculum vitae datilografado, parte do Arquivo Fernando de Azevedo existente no Instituto
de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.
Suas Obras Completas, publicadas pela Melhoramentos, compreendem 27 volumes.
Neste trabalho pretendeu-se analisar os aspectos mais relevantes do pensamento e da
ação de Fernando de Azevedo, em particular aqueles mais diretamente ligados à educa-
ção brasileira. Alguns desses aspectos, em virtude da própria natureza geral do trabalho
e da perspectiva adotada, podem ter escapado a este estudo ou ter sido objeto de uma
análise mais rápida do que seria necessário. Entretanto, o que sempre se procurou foi
manter uma fidelidade tao auténtica quanto possivel ao pensamento de Fernando de
Azevedo, expresso em sua obra e, por isso mesmo, tornaram-se necessárias freqüentes
citações da mesma.
Na medida em que se buscou analisar a contribuição de Fernando de Azevedo à
educação e à cultura brasileiras, não se deu atenção a outros aspectos de sua existência,
como a vida familiar. No entanto, com o objetivo de tornar mais ampla e completa a
visão aqui apresentada, incluiu-se em apêndice um depoimento exclusivo de Lollia de
Azevedo Marx, filha do educador.
A poesia do corpo
Mais de 60 anos após as palavras de Artur Neiva, apontando um quase paradoxo nas
atividades de Fernando de Azevedo, Antônio Cândido oferece-nos uma explicação
para o problema: foi a Antigüidade que inspirou ao educador o culto pela educação fí-
sica. Talvez isso tenha ocorrido. Entretanto, o mais provável é que entre os estudos da
Antigüidade e o interesse pela educação física tenha havido uma relação de mútua in-
fluência. Esta suposição baseia-se no fato de que a primeira obra publicada por Fernan-
do de Azevedo foi justamente um estudo sobre a educação física: a tese com que con-
correu à cadeira de Educação Física no Ginásio do Estado, em Belo Horizonte, em
1915. Depois disso, no decorrer da década de 1920, o educador publicou tanto traba-
lhos sobre a educação física e o esporte quanto estudos a respeito da Antigüidade Gre-
co-romana, o que faz supor uma interdependência das duas áreas.
Fernando de Azevedo parece corroborar a explicação de Antônio Cândido, embora
a anteceda de um estratégico "talvez": "(...) não foi a despeito de minha formação ini-
cial, impregnada de humanismo clássico, mas talvez por força e sob a inspiração desse
humanismo mais grego do que latino que meu pensamento e minha ação se voltaram
na mocidade para a cultura física e as atividades atléticas."1
O certo é que a educação física e a Antigüidade Grego-romana coexistiram na mo-
cidade de Fernando de Azevedo. Especificamente em relação à primeira, além da obra
Da Educação Física2, publicada pela primeira vez em 1916, o educador lançou, ainda,
Antinous - um Estudo de Cultura Atlética3, em 1920, e A Evolução do Esporte no
Prefácio à 3a edição do livro Da educação física. São Paulo, Melhoramentos, s.d. p. 12.
A edição de 1920 foi publicada por Weiszflog Irmãos, de São Paulo. A edição de 1916, a pri-
meira, não foi localizada.
3
São Paulo, Weiszflog Irmãos, 1920.
Brasil e Outros Estudos de Educação Física e Higiene Social4, em 1930. As três obras
foram reunidas no volume I das Obras Completas organizadas pela Editora Melhora-
mentos, edição que é utilizada neste trabalho.5
Da Educação Física, segundo O Estado de S. Paulo, constitui "um espléndido tra-
balho de crítica como ainda em parte alguma do mundo se tentara, sendo nele feito
um completo e perfeito estudo comparativo dos métodos e das escolas de educação
física no tempo e no espaço..."6 Para que se tenha uma idéia da extensão e da profun-
didade desse trabalho que Fernando de Azevedo escreveu aos 20 anos, basta que se
atente para o número de páginas (306, na edição de 1920) e para a bibliografia (87
livros, dos quais apenas dois em língua portuguesa). A grande maioria é constituída por
textos franceses (65 livros) e alemães (12 livros), distribuindo-se os restantes entre o
italiano, o inglês, o latim e o espanhol. Não se pode esquecer que o trabalho foi escri-
to como tese para o concurso à cadeira de Educação Física no Ginásio do Estado. Atual-
mente, um trabalho com tais características poderia muito bem ser apresentado em
concurso de professor titular em grande parte das universidades brasileiras.
A obra divide-se em três partes. Na primeira parte - O Estado da Questão. Fatos e
Interrogações - o autor discute algumas questões básicas: origem e evolução da educa-
ção física; bases científicas, objeto e concepção moderna da educação física; importân-
cia e valor da educação física; o exercício e seu papel na idade pubertária; a ação psi-
cológica do exercício; a fadiga e o exercício; definição e plano geral de educação físi-
ca; exercícios físicos: como se classificam; o prazer e o exercício físico; o papel dos jo-
gos na infância; da ginástica escolar ou pedagógica e sua natureza; os esportes e sua jus-
ta situação num programa escolar; a educação física da mulher: o aspecto social do
problema; eugenia e plástica;o papel do professor de educação física.
As escolas e os métodos constituem o objeto de estudo na segunda parte : Diver-
gências de Escolas: em que se Baseiam, focalizando a escola amorosiana; o sistema de
Sandow: a idolatria do músculo; ginástica de Müller e sistema sandowiano: ginásticas
de quarto — escolas que se digladiam; o jiu-jitsu como esporte e como método de edu-
cação física; escola anglo-americana: predominância esportiva; o método de Ling: seu
valor e supremacia do ponto de vista de ginástica educativa; as ginásticas sueca, france-
sa e alemã (ou de aparelhos): suas diferenças. O naturismo da escola hebertiana; a ginás-
tica escolar e seus princípios; a individualização do ensino e a pedologia; os fatores do
clima, da raça, da idade e do sexo na escolha do sistema; a educação física e sua vista
de conjunto e na articulação de seus detalhes; o valor relativo de cada escola.
Os problemas brasileiros concernentes à educação física são analisados na terceira
parte - Importância e Situação do Problema no Brasil:a rotina da educação física em
nossas escolas; a ergastenia escolar e suas causas. O treinamento e o empirismo na edu-
cação física; abusões e preconceitos. A situação, entre nós, do professor de educação
física; a importância da ginástica respiratória: ginástica respiratória individual e coleti-
va; o futebol: o verdadeiro valor do esporte inglés no plano geral da educação física; a
hidroterapia na educação física; o nosso programa: princípios em que se baseia; idéias
O Volume I das Obras Completas apresenta 332 páginas assim distribuídas: Da educação fí-
sica:p. 3-219; Antinous:p. 221-278; A evolução do esporte no Brasil:p. 279-332.
6
O Estado de S. Paulo (Edição da Noite), 8-6-1920.
a adotar: a) antropometria escolar; b) colaboração médico-pedagógica; c) mensuração
semestral do coeficiente de robustez; d) os boletins das mensurações corporais; pato-
logia escolar. O papel da ginástica médica ou ortopédica na escola; higiene da educação
física; o problema da higiene social pela educação física; organização nacional e educa-
ção física.
A simples vista dos assuntos tratados permite-nos avaliar a grande importancia da
obra, ponto de partida de quase duas décadas de intensas atividades em prol da educa-
ção física, de modo especial como atividade escolar e em praças que haveriam de cons-
tituir centros de jogos para crianças.
No prefácio de 1915, Fernando de Azevedo justifica a escolha do título original do
livro Poesia do Corpo: "À atlética, no alto sentido que lhe atribuímos, se ajustaria ono-
me de 'poesia do corpo', por procurar tanto a saúde e o vigor quanto o equilíbrio e a
harmonia, a beleza e a graça. É a expressão sintética da concepção moderna da ginásti-
ca, que, no seu elevado intuito pedagógico, é de fato e não pode deixar de ser 'poesia':
criação. Disciplina e arte a um tempo — baseia-se tôda na biologia, nos princípios ana-
tómico-fisiológicos para alcançar a saúde do corpo, que é a condição fundamental da
do espírito, e tem a realizar também um fim estético — o belo na forma e no movimen-
to." 7
A obra de Fernando de Azevedo apareceu em segunda edição em 1920, já então
com o título Da Educação Física, mais adequado à amplitude do trabalho, refundido
e aumentado de dez capítulos, conforme o sumário aqui apresentado. Mais do que an-
tes, como transparece claramente no prefácio da 2a edição, parece que agora o entu-
siasmo do autor pela educação física cresceu de forma extraordinária, encarando-a qua-
se como uma panacéia universal: "... o preparo físico - pelo estímulo enérgico que
provocam os exercícios no funcionamento fisiológico de todos os órgãos, inclusive do
cérebro, que largamente beneficiam, estimulando intensamente seu desenvolvimento e
sua nutrição - é um grande fator social e educativo, maravilhoso instrumento de recupe-
ração física e transformação estética do indivíduo e uma das forças mais eficazes do
desenvolvimento da mentalidade, da formação do caráter e da vontade, sobre os quais
exerce poderosa e incontestável influência."
Mas Fernando de Azevedo vai muito além Não é apenas o indivíduo que se benefi-
cia com a prática da educação física. Esta, em conjunto com outras medidas eugénicas,
teria importante papel na construção de uma nova sociedade, fortificando e enrique-
cendo nossa gente "pela criação incessante de indivíduos robustos". uma nova etnia,
que se imponha pelas suas graças físicas, mas também por uma mentalidade crítica e
aberta. Em suma, um belo sonho cujo alcance só as próprias palavras do autor podem
transmitir. A conclusão da obra é quase patética: "Aplicada convenientemente a edu-
cação física em gerações sucessivas e apoiada num conjunto sistemático de medidas
eugénicas, poderá chegar-se mais rapidamente à afirmação de tipos característicos, com
seus traços somáticos comuns - a um grupo talvez extremo e definitivo, representante
nacional genuíno de uma nova etnia, que venha a constituir a comunidade nacional e
possa ir florescendo, através do tempo, numa juventude cada vez mais robusta, rubra
nos glóbulos vermelhos e morena na tez requeimada da pele. uma mocidade que se im-
ponha não só pelas graças físicas, pela saúde, força e beleza, mas também, com a con-
7
AZEVEDO, F. de. Da educação física. 3. ed. São Paulo, Melhoramentos, s.d.p. 24-5.
NAGLE, J. Educação e sociedade na Primeira República. São Paulo. Ed. Pedagógica e Uni-
versitária, 1974.
11
AZEVEDO. F. de. Da educação física. Op. cit., p. 229.
12
Idem, ibidem, p. 247.
co e aparvoado do fraco pela alegria desabotoada e sugestiva do forte."13
Sem dúvida trata-se de um ponto de vista pelo menos discutível. Afinal de contas,
no tempo dos bandeirantes, nem todos, provavelmente só uma minoria, tinham a robus-
tez de um Fernão Dias Pais Leme e, assim mesmo, cabe perguntar até que ponto tal
fibra foi resultado da atlética. Por outro lado, as doenças sao conseqüências de fatores
estruturais, como a desigualdade sócio-econômica exacerbada que, durante séculos,
permitiu a uns viverem nababescamente à custa da miséria e da fome da grande maioria.
Outros fatores, como a imigração e o clima, também não constituiriam obstáculo à
ação da eugenia, já que não há clima inóspito ante o poder da ciência.
No segundo estudo — Atlética Antiga e Atlética Moderna — o autor exalta a atlética
antiga e condena as restrições que a civilização moderna oferece ao exercício. Cada
nova descoberta da ciência reduz as condições de exercício, reduz o campo da ação
muscular: "O maior exercício contra o exercício é a própria civilização moderna."'4
O texto A Evolução do Esporte no Brasil (1822-1922) foi escrito para a edição espe-
cial do jornal O Estado de S. Paulo, comemorativa do 19 Centenário da Independên-
cia do Brasil. Nele Fernando de Azevedo traça um painel dos vários esportes - equita-
ção, caça, cavalhadas, touradas, capoeira, esportes anglo-saxõnicos, etc. - acalentando
em seu final "a esperança de chegar um dia em que possamos também fazer inveja a
outras nações pela organização modelar de nossa educação física."15
Em trabalho para justificar a necessidade da construção de praças de jogos para cri-
anças, na cidade de São Paulo, Fernando de Azevedo apontou a tríplice função educa-
tiva dos jogos infantis: "a) higiênica, porque o jogo ao ar livre é condição indispensá-
vel ao seu desenvolvimento físico; b) intelectual, porque servindo para lhes educar e
apurar os sentidos e lhes dar hábitos de cálculo, reflexão e previdência, contribuem
para a formação de sua mentalidade; e c) social, porque, estreitando o convívio de cri-
anças de várias origens, têm por finalidade eliminar-lhes ou atenuar-lhes o preconceito
de classes e, aproximando crianças rudes de educadas, despertar nestas o amor e o res-
peito pelos humildes e naquelas o hábito e as maneiras das que já foram beneficiadas
pela educação no lar e nas escolas."16
No mesmo trabalho, o autor apresentou o que seria "a instalação de uma praça
ideal", diferente de todas as "existentes no estrangeiro", com as dimensões de 100x150
metros. Apenas para que se tenha uma idéia da sofisticação da praça, vejamos algumas
de suas instalações: estabelecimento balneário, piscina, estabelecimento de duchas,
rouparia, lavabo, consultório médico, espaços livres, campos para jogos (de areia e de
relva, este substituível por um rinque de patinação), gramado, tanque de vadiar, sala
de ginástica com todos os equipamentos, pátio de aparelhos, oito caixas de areia, insta-
lação sanitária, etc.
No final do traballio, Fernando de Azevedo oferece uma série de recomendações
aos poderes públicos. Algumas dessas recomendações são particularmente interessantes
por envolverem iniciativas tomadas apenas nas últimas décadas pelos poderes públicos
e, assim mesmo, de maneira limitada:
Os editores desses estudos de Fernando de Azevedo, em sua primeira edição, foram os Ir-
mãos Marrano (No tempo de Petronio e Jardins de Salústio); a Editora Nova Era (O segre-
do da Renascença e outras conferências); e a Editora Melhoramentos (Páginas latinas); todos
de São Paulo.
2
Prefácio de Máscaras e retratos. 2. ed. São Paulo, Melhoramentos, 1962. p. 11-2.
Fernando de Azevedo
Entretanto, o que se viu na realidade foi bem diferente. A frustração dos ideais re-
publicanos conduziu o Brasil, as vésperas da Revolução de 1930, a enfrentar sérias cri-
ses em todos os setores da vida nacional. Crises que foram importantes fatores de mu-
dança e fizeram avançar nossa história:
" • A federação foi frustrada pela centralização do poder promovida pelo controle
do coronelismo, pela política dos governadores e pela 'dieta do café-com-leite'.
• Vários fatos contribuíram para a frustração do ideal democrático: só podiam vo-
tar os maiores de 21 anos do sexo masculino; as eleições eram fraudadas, para
manter sempre o mesmo grupo no poder - atas eleitorais eram falsificadas, a
mesma pessoa votava diversas vezes, defuntos compareciam às mesas eleitorais,
etc.
13) Sendo questão vital para o ensino a formação de professores, não concorda em
que, com o ensino normal, reorganizado em bases novas, devem entrar em colaboração
ao lado e acima dele, o curso periódico de conferências nas férias e uma escola normal
superior?
14) Que me diz da Faculdade de Educação, segundo a Reforma de 1920 e as 'modifi-
cações' introduzidas pela Reforma de 1925? Quais os princípios que deverão inspirar a
sua organização para que, instalada, não redunde um dia no mais completo descalabro?
15) Qual o melhor processo de seleção para o provimento de cadeiras, no ensino pri-
mário, no ensino normal secundário e no ensino normal superior?
16) como se poderia organizar em São Paulo praticamente uma obra eficaz particu-
lar, de orientação e propaganda do ensino, e de assistência econômica, higiênica e judi-
ciária a todo o professorado?"9
Para responder a essas questões, Fernando de Azevedo convidou seis educadores:
Francisco Azzi, advogado e catedrático da Escola Normal de Casa Branca; A. Almeida
Júnior, médico e lente da Escola Normal do Brás, na capital; Renato Jardim, ex-profes-
sor catedrático, ex-diretor do Ginásio de Ribeirão Preto e da Escola Normal da Capital;
José Escobar, professor da Escola Normal da Praça da República; Sud Menucci, ex-de-
legado regional de ensino; Lourenço Filho, professor da Escola Normal da Praça da Re-
pública.
Nao caberia aqui uma análise das respostas oferecidas ao questionário pelos educa-
dores citados, mesmo porque o que está em pauta é o pensamento de Fernando de
Azevedo, implícito nas próprias perguntas e em grande parte corroborado pelos seis
professores. De qualquer forma, no final do capítulo, apresentaremos uma síntese dos
resultados do inquérito, segundo palavras do seu organizador.
a) de maneira que se integrem num sistema único, mas sob direção autônoma, as facul-
dades profissionais (de medicina, de engenharia e de direito), institutos técnicos de es-
pecialização (farmácia, odontologia) e institutos de altos estudos (faculdades de filoso-
fia e letras; de ciências matemáticas, físicas e naturais; de ciências econômicas e sociais;
de educação, etc);
b) e de maneira que, sem perder o seu caráter de 'universalidade', se possa desenvolver.
como uma 'instituição orgânica e viva', posta pelo seu espírito científico, pelo nível dos
estudos e pela natureza e eficácia de sua ação, a serviço da formação e desenvolvimento
da cultura nacional?
11) Por onde se deveria atacar logo, de maneira prática, no Estado, esse problema
complexo de cuja solução depende a organização de verdadeiros núcleos de pensamen-
to original e fecundo, de pesquisa e de disciplina mental, capazes de abrir caminho ao
desenvolvimento da ciência e cultura nacionais?
12) Não reconhece que é de tôda a necessidade, em São Paulo, a criação de uma secre-
taria autònoma e, no governo federal, de um ministério de saúde e instrução pública.
sob cuja direção única, respectivamente no Estado e na República, fique todo o apare-
lhamento do ensino de qualquer natureza e em todos os seus graus?"1 '
Para responder a essas questões foram convidados oito especialistas: Rui Paula Sousa,
professor da Escola Normal da Capital e um dos fundadores e primeiro diretor do Li-
ceu Franco-Brasileiro; Mário de Sousa Lima, professor do Ginásio da Capital; Amadeu
Amaral, jornalista; Ovídio Pires de Campos, professor e um dos fundadores da Faculda-
de de Medicina; Raul Briquet, professor da Faculdade de Medicina de São Paulo; Teo-
doro Ramos, engenheiro, matemático e professor da Escola de Engenharia de São Pau-
lo; Reinaldo Porchat, professor da Faculdade de Direito; Artur Neiva. cientista e escri-
tor.
Das questões e das propostas levantadas no inquérito não é difícil perceber a abertu-
ra de caminhos que iriam ser trilhados ao longo das décadas seguintes: após 1930 criou-
-se o Ministério da Educação e Saúde, fundou-se a Universidade de São Paulo e iniciou-
-se a organização de um sistema nacional de educação, entre outras iniciativas previstas
como necessárias por Fernando de Azevedo. Deve-se reconhecer, contudo, que muitas
outras iniciativas ainda hoje estão longe de serem concretizadas, como a adaptação da
escola ao meio em que se situa, a consciência da finalidade da educação em todos os
seus graus, a eficiência do ensino técnico, etc.
Vejamos as principais críticas à instrução paulista da época, segundo a interpretação
de Fernando de Azevedo às respostas aos seus questionários: "As críticas gerais, mais
importantes? A de que a educação se ressentia da falta de planejamento e que, sem
plano e sem alvo, desenvolvendo-se 'por adições e enxertos', andava divorciada do
meio e renhida com os interesses fundamentais da vida nacional e da civilização. O
triunfo da burocracia no ensino — burocracia estreita, aparatosa e niveladora — a ri-
gidez de uniformização que tendia a torná-lo artificial; a legislação draconiana; o em-
pirismo com que eram tratados problemas tão complexos, como os da educação;
o caráter antiquado do sistema escolar sofreram uma carga cerrada e críticas as mais
severas de todos os lados. E a escola primária como foi então julgada? uma escola
que falhou, sem finalidade educativa e montada para uma concepção social vencida.
E o ensino técnico? Construção suspensa pouco acima dos alicerces; ensino, cujo de-
senvolvimento se considerava, pois, irrisório, sem estrutura para se pôr de pé, deba-
tendo-se num estado caótico sem a menor organização. Do ensino secundário, o me-
11
Idem, ibidem, p. 192-3.
nos que se disse é que, vítima de um regime de aventuras e experiências, atropelado
sob um montão de leis e projetos contraditórios, acabou por degenerar numa 'grande
chaga' que tinha sua origem na multiplicidade de reformas inadequadas e, sobretudo,
na falta de qualquer instituição preposta à formação do professorado secundário. E
quanto ao ensino superior, a falha capital que se apontou foi a ausência de universi-
dades ou a tremenda deficiência de instituições de altos estudos e de pesquisas."12
E quais as principais medidas propostas com vistas ao encaminhamento de solu-
ções para esses problemas? "A necessidade de uma política de educação, com unidade
de concepção e de plano, nas suas diretrizes e linhas gerais, como a de colocar os
problemas de educação em face das novas condições econômicas e sociais e de adap-
tar o ensino às necessidades regionais; a reconstrução da escola 'para a formação de
valores socialmente úteis'; a organização da escola primária como escola do traba-
lho e escola-comunidade; o problema da preparação do professor e a elevação do seu
status social; a cooperação da família e da escola; as bibliotecas escolares, operárias
e circulantes; o apelo ao cinema e ao rádio como instrumentos educativos e o seu pa-
pel na escola; a orientação e a seleção profissional pelos métodos psicotécnicos; a va-
lorização técnica do elemento humano; o ensino secundário baseado nas línguas mo-
dernas e nas ciências; o papel da ciência e da técnica na civilização industrial; a cria-
ção de universidades como institutos de investigação científica e de altos estudos; a
associação do ensino e da pesquisa; eis aí várias das questões mais discutidas e das
medidas propostas no inquérito, e em torno de algumas das quais se estabeleceu uma
notável convergência de pontos de vista. Esse acordo geral dos espíritos sobre pontos
essenciais, bem definidos, além de implicar o reconhecimento deles por verdadeiros,
autorizava um prognóstico seguro de uma sucessão de esforços para inseri-los no
real."13
Na parte final do prefácio à segunda edição de Educação na Encruzilhada, escrito
em setembro de 1957, Fernando de Azevedo considera ainda desoladora a situação do
ensino nacional: "Duas faces de um único problema — a cultura das elites e a educação
do povo - continuaram a ser tratadas como dois problemas distintos que se pudessem
atacar separadamente, quando estão, de fato, intimamente ligados. Por isso, sem subes-
timarmos os progressos quantitativos e, em alguns setores, também qualitativos, reali-
zados nesse longo período que medeia entre a época em que se procedeu ao inquérito
e o momento atual somos obrigados a reconhecer que, no tocante ao ensino primário
e ao ensino médio secundário e técnico, é ainda sob muitos aspectos, nebuloso e deso-
lador o quadro que se oferece aos nossos olhos, com mais de 50% de analfabetos na
população do país. O velho relógio da educação, 'emperrado e dissonante (escrevia eu
em 1926) anda com atraso de quase meio século, marcando as primeiras horas de um
crepúsculo matinal, sonolento e sombrio'... Se é certo que não parou, continua com
enorme atraso. A julgar pela hora que marca, apenas raiou para nós a madrugada."14
12
Idem, ibidem, p. 22.
13
Idem, ibidem, p. 20.
14
Idem, ibidem, p. 23.
Novos caminhos e novos fins
0 censo escolar
2
Duas manifestações, apenas a título de exemplo: A grande causa está confiada a um apóstolo
clarividente (A Pátria, 18.01.27); o que intriga no caso é que o Sr. Prado Jr. só encontre em São
Paulo quem entendia de instrução (Correio da Manhí, 08.02.27).
mos alguns dos seus argumentos:
A Pátria: "Basta dizer que para agir conscientemente nessa matéria era preciso,
antes de tudo, o recenseamento da população escolar. Sem essa primeira condição, to-
do e qualquer plano, mesmo bem orientado, ou produziria resultados insignificantes ou
falharia, apesar das novas despesas necessárias à sua realização" (18.01.27).
O Imparcial: "Excelente, nao há dúvida, a idéia do recenseamento da população in-
fantil em idade escolar. Do conhecimento exato do número de crianças dessa cidade
depende o êxito de uma sábia política pedagógica (...)" (10.03.27).
Sud Menucci, em várias entrevistas à imprensa, procurou justificar a necessidade do
censo afirmando entre outras coisas que a projeção dos dados de 1920. além de não
ser rigorosa, não permitiria selecionar os lugares mais adequados para localizar as novas
escolas.
Em 23 de março de 1927, com o concurso da aviação do Exército, que lançou fo-
lhetos convocando a população para colaborar, e da imprensa, que publicou apelos no
mesmo sentido, teve início o trabalho censuario. O otimismo era geral, inclusive de
jornais que desde o início se manifestaram contra o censo: "O êxito do primeiro dia
excedeu todas as expectativas" Jornal do Brasil; "Correu admiràvelmente o primeiro dia
dos trabalhos" Gazeta de Notícias; "O magistério carioca desincumbiu-se galharda-
mente de sua missão" Correio da Manhã; "A população carioca, culta e cavalheiresca
como sempre, colaborou eficazmente para o recenseamento infantil" O Brasil.
Sud Menucci teceu elogios às professoras: "As professoras do Distrito Federal são
modelares e é grato trabalhar e vencer com essas sacerdotisas do bem" (Jornal do Bra-
sil, 24.03.27).
Os resultados foram publicados em 29 de abril de 1927, mostrando que, de 141.123
crianças em idade escolar, 89.960 (63,7%) estavam freqüentando a escola e 51.163
(36,3%) estavam fora da escola.
Além da falta de escolas, outro problema reconhecido por todos era o da precarie-
dade das instalações escolares existentes, como o atestam algumas manifestações da
imprensa, selecionadas entre muitas outras: "Não exageramos, afirmando que na maio-
ria as escolas públicas se acham instaladas em edifícios ainda em condições muitíssimo
inferiores às dos prédios da Favela" (O Brasil. 03.02.27); "Muitas das aulas públicas
funcionam em pardieiros de todo o ponto impróprios às nobres funções que neles se
exercem" (O Jornal, 23.02.27); "Tudo que é casa velha, inutilizada, imprópria para
aluguel, imunda e em ruínas, é aproveitada para escola pública" (Jornal do Brasil,
03.04.27).
Fernando de Azevedo tinha plena consciência da difícil situação, de tal forma que,
em todas as oportunidades, repetia que o que existia não podia continuar, defendendo
a necessidade de uma reconstrução total de tôda a legislação e de todo o aparelho de
ensino, como única saída para suplantar o caos em que se transformara a instrução pú-
blica no Distrito Federal, "ofensiva ao próprio decoro político da nação".
Abrangência da reforma
4
PILETTI.N. Op.cit., p. 82.
5
Gazeta de Notícias, 26.11.27.
10) Das instituições auxiliares de ensino: do Boletim de Educação Pública; da literatura
pedagógica; das bibliotecas e museus escolares; do cinema escolar e do rádio; do esco-
tismo; do intercâmbio interestadual e internacional escolar.
11) Das disposições relativas aos funcionários técnicos e administrativos de ensino: dos
direitos e deveres dos funcionários de ensino; das faltas de exercício, das licenças e
substituições dos funcionários de ensino.
12) Do código disciplinar: das faltas disciplinares e sua repressão; da competência, do
processo e do recurso.
13) Do fundo escolar: de sua constituição e aplicação.
14) Das disposições gerais e transitórias: disposições gerais; disposições transitórias.
Evidentemente, nos estreitos limites deste trabalho, que pretende uma visão geral e
compreensiva do pensamento e da obra de Fernando de Azevedo, nao cabe uma análi-
se mais profunda de cada um dos tópicos da reforma.6 Restrinjo-me, assim, a uma bre-
ve apresentação dos princípios que fundamentaram a remodelação do ensino no Distri-
to Federal.
Princípios da reforma
9
Idem, ibidem, p. 7.
10
AZEVEDO, F. de. A cultura brasileira. 5. ed. São Paulo, Melhoramentos, 1971. p. 656-7.
Pioneiro entre os pioneiros
0 governo que assumiu o poder com a Revolução de 1930 encontrou o ensino brasi-
leiro numa situação tão precária quanto estava no início da República. Apesar dos
ideais republicanos, pouco ou nada havíamos avançado em matéria de educação públi-
ca. Ainda não tínhamos um sistema nacional de educação: "O Governo Federal nada
dizia e nada fazia em termos de ensino primário, que ficava ao encargo dos reduzidos
recursos dos Estados; o ensino secundário continuava minado pelo ensino irregular,
não-seriado, tendo como principal objetivo preparar para o ensino superior; quanto a
este, ainda não tínhamos uma universidade funcionando."1
Uma das primeiras iniciativas do governo provisório, que assumiu em 1930, foi a
criação do Ministério da Educação e das Secretarias de Educação dos Estados que, co-
mo vimos, havia sido proposta no inquérito organizado por Fernando de Azevedo em
1926. Para Ministro da Educação foi nomeado Francisco Campos, que na década ante-
rior havia promovido a reforma da instrução pública em Minas Gerais. Com isso, os
educadores que participavam da renovação da educação nacional, reunidos em torno
da Associação Brasileira de Educação, passaram a ter grande influência nas iniciativas
governamentais em matéria de educação. Tal influência exerceu-se, por exemplo, na
própria criação do Ministério e das Secretarias de Educação e na inserção, na Consti-
tuição de 1934, de um capítulo especial sobre a educação, em que se fixaram os novos
princípios educacionais.
No entender de Heladio C. G. Antunha, com a criação do Ministério da Educação,
0 governo federal procurou alcançar três objetivos:
2
ANTUNHA, H.C.G. A educação brasileira no período republicano. In: BREJON. M. org. Estru-
tura e funcionamento do ensino de 19 e 2? graus. São Paulo, Pioneira, 1973. p. 63.
3
Cf. ANTUNHA, H.C.G. Op. cit., p. 63-4.
4
PILETTI.C. & PILETTI, N. Op. cit., p. 208.
comprometidos com a renovação da educação nacional, resolveu marcar presença na
orientação do ensino brasileiro, no momento em que a República passava por um pe-
ríodo de transição. Essa presença já existia, mas esse grupo julgou oportuno reunir suas
idéias num manifesto à Nação, para que não pairassem dúvidas quanto à sua natureza e
aceitação entre os educadores. Fernando de Azevedo redigiu o manifesto — A Recons-
trução Educacional no Brasil - Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova - assinado
por mais 25 educadores e/ou escritores: Afrânio Peixoto, A. de Sampaio Dória, Anísio
Teixeira, Lourenço Filho, Roquette Pinto, Frota Pessoa, Júlio de Mesquita Filho, Raul
Briquet, Mário Casassanta, C. Delgado de Carvalho, A. Ferreira de Almeida Júnior, J.
P. Fontenelle, Roldão Lopes de Barros, Noemi M. da Silveira, Hermes Lima, Atílio Vi-
vacqua, Francisco Venâncio Filho, Paulo Maranhão, Cecília Meireles, Edgar Sussekind
de Mendonça, Amanda Álvaro Alberto, Garcia de Resende, C. Nobre da Cunha, Pas-
coal Leme e Raul Gomes.
A abertura do Manifesto de 1932 é, por si só, bastante significativa, expressando de
maneira insofismável a importância que os seus signatários atribuíam à educação e à
necessidade urgente de sua reorganização, em consonância com a realidade do país:
"Na hierarquia dos problemas nacionais, nenhum sobreleva em importância e gravidade
ao da educação. Nem mesmo os de caráter econômico lhe podem disputar a primazia
nos planos de reconstrução nacional. Pois, se a evolução orgânica do sistema cultural
de um país depende de suas condições econômicas, é impossível desenvolver as forças
econômicas ou de produção, sem o preparo intensivo das forças culturais e o desenvol-
vimento das aptidões à invenção e à iniciativa que são os fatores fundamentais do
acréscimo de riqueza de uma sociedade. No entanto, se depois de 43 anos de regime re-
publicano, se der um balanço ao estado geral da educação pública, no Brasil, se verifi-
cará que, dissociadas sempre as reformas econômicas e educacionais, que era indispen-
sável entrelaçar e encadear, dirigindo-as no mesmo sentido, todos os nossos esforços,
sem unidade de plano e sem espírito de continuidade, não lograram ainda criar um sis-
tema de organização escolar à altura das necessidades modernas e das necessidades do
país. Tudo fragmentário e desarticulado."5
Do manifesto foram selecionadas algumas passagens que mostram suas linhas mes-
tras, os princípios básicos, alguns dos quais incluídos na Constituição de 1934 e ou-
tros integrados na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1961 :
1) A educação como instrumento de desenvolvimento da democracia: "A educação
nova, alargando a sua finalidade para além dos limites das classes, assume, com
uma feição mais humana, a sua verdadeira função social, preparando-se para formar
"a hierarquia democrática' pela 'hierarquia das capacidades', recrutadas em todos os
grupos sociais, a que se abrem as mesmas oportunidades de educação."
2) A educação como uma função essencialmente pública: "Mas do direito de cada in-
divíduo à sua educação integral decorre logicamente para o Estado, que o reconhece
e o proclama, o dever de considerar a educação, na variedade de seus graus e mani-
festações, como uma função social e eminentemente pública, que ele é chamado a
realizar, com a cooperação de todas as instituições sociais."
3) A educação através da escola única: "Afastada a idéia do monopólio da educação
pelo Estado num país, em que o Estado, pela sua situação financeira não está ainda
AZEVEDO, F. de. A educação entre dois mundos. São Paulo, Melhoramentos, 1958. p. 59. A
primeira edição do Manifesto foi lançada em São Paulo, pela Companhia Editora Nacional, em
1932.
em condições de assumir a sua responsabilidade exclusiva, e em que, portanto, se
torna necessário estimular, sob sua vigilância, as instituições privadas idôneas, a 'es-
cola única' se entenderá, entre nós, não como 'uma conscrição precoce', arrolando,
da escola infantil à universidade, todos os brasileiros e submetendo-os durante o
maior tempo possível a uma formação idêntica, para ramificações posteriores em
vista de destinos diversos, mas antes como a escola oficial, única, em que todas as
crianças, de 7 a 15, todas ao menos que, nessa idade, sejam confiadas pelos pais à
escola pública, tenham uma educação comum, igual para todos."
4) A educação leiga, gratuita, obrigatória e sem qualquer segregação econômica, social
ou religiosa: "A laicidade, gratuidade, obrigatoriedade e co-educação são outros tan-
tos princípios em que assenta a escola unificada e que decorrem tanto da subordina-
ção à finalidade biológica da educação de todos os fins particulares e parciais (de clas-
ses, grupos ou crenças), como do reconhecimento do direito biológico que cada ser
humano tem à educação."
5) A educação organizada com base no princípio da descentralização: "A organização
da educação brasileira unitária sobre a base e os princípios do Estado, no espírito da
verdadeira comunidade popular e no cuidado da unidade nacional, não implica um
centralismo estéril e odioso, ao qual se opõem as condições geográficas do país e a
necessidade de adaptação crescente da escola aos interesses e às exigências regionais.
Unidade não significa uniformidade. A unidade pressupõe multiplicidade."
6) A educação centrada no aluno: "A nova doutrina, que não considera a função edu-
cacional como uma função de superposição ou de acréscimo, segundo a qual o edu-
cando é 'modelado exteriormente' (escola tradicional), mas uma função complexa
de ações e reações em que o espírito cresce de 'dentro para fora', substitui o meca-
nismo pela vida (atividade funcional) e transfere para a criança e para o respeito de
sua personalidade o eixo da escola e o centro de gravidade do problema da educa-
ção."
7) A educação como processo contínuo de formação da personalidade integral atra-
vés dos métodos ativos: "A partir da escola infantil (4 a 6 anos) até à Universidade,
com escala pela educação primária (7 a 12 anos) e pela secundária (12 a 18 anos),
a 'continuação ininterrupta de esforços criadores' deve levar à formação da perso-
nalidade integral do aluno e ao desenvolvimento de sua faculdade produtora e de
seu poder criador, pela aplicação, na escola, para a aquisição ativa de conhecimen-
tos, dos mesmos métodos (observação, pesquisa e experiência) que segue o espíri-
to maduro, nas investigações científicas."
8) A educação universitária gratuita e aberta a novos horizontes: "A educação supe-
rior ou universitária, a partir dos 18 anos, inteiramente gratuita como as demais,
deve tender, de fato, não somente à formação profissional e técnica, no seu máxi-
mo desenvolvimento, como à formação de pesquisadores, em todos os ramos de
conhecimentos humanos. Ela deve ser organizada de maneira que possa desem-
penhar a tríplice função que lhe cabe de elaboradora ou criadora de ciência (inves-
tigação), docente ou transmissora de conhecimentos (ciência feita) e de vulgari-
zadora ou popularizadora, pelas instituições de extensão universitária, das ciên-
cias e das artes."
9) A formação universitária e unificada de todos os professores: "A tradição das hierar-
quias docentes, baseadas na diferenciação dos graus de ensino, e que a linguagem fi-
xou em denominações diferentes (mestre, professor e catedrático) é inteiramente
contrária ao princípio da unidade da função educacional, que, aplicado às funções
docentes, importa a incorporação dos estudos do magistério às universidades e, por-
tanto, a libertação espiritual e economica do professor, mediante uma formação e
remuneração equivalentes que lhe permitam manter, com a eficiência no trabalho, a
dignidade e o prestígio indispensáveis aos educadores. A formação universitária dos
professores não é somente uma necessidade da função educativa, mas o único meio
de, elevando-lhes em verticalidade a cultura, e abrindo-lhes a vida sobre todos os
horizontes, estabelecer, entre todos, para a realização da obra educacional, uma
compreensão recíproca, uma vida sentimental comum e um vigoroso espírito co-
mum nas aspirações e nos ideais."
10) A educação como o dever mais importante do Estado: "Mas, de todos os deve-
res que incumbem ao Estado, o que exige maior capacidade de dedicação e jus-
tiça, maior soma de sacrifícios; aquele com que não é possível transigir sem a
perda irreparável de algumas gerações; aquele em cujo cumprimento os erros pra-
ticados se projetam mais longe nas suas conseqüências, agravando-se à medida
que recuam no tempo; o dever mais alto, mais penoso e mais grave é, de certo, o
da educação que, dando ao povo a consciência de si mesmo e de seus destinos e a
força para afirmar-se e realizá-los, entretém, cultiva e perpetua a identidade da
consciência nacional, na sua comunhão íntima com a consciência humana."
Do manifesto foi extraído um programa educacional básico, esquematizado em
dez pontos, cuja importância, principalmente pela influência que exerceu sobre a polí-
tica educacional posterior, leva-nos a reproduzi-lo integralmente nestas páginas:
"I - Estabelecimento de um sistema completo de educação, com uma estrutura or-
gânica. conforme as necessidades brasileiras, as novas diretrizes econômicas e sociais da
civilização atual e os seguintes princípios gerais:
a) a educação é considerada em todos os seus graus como uma função social e um
serviço essencialmente público que o Estado é chamado a realizar com a coopera-
ção de todas as instituições sociais;
b) cabe aos Estados federados organizar, custear e ministrar o ensino em todos os
graus, de acordo com os princípios e as normas gerais estabelecidas na Constitui-
ção e em leis ordinárias pela União a quem compete a educação na capital do
país, uma ação supletiva onde quer que haja deficiência de meios e a ação fisca-
lizadora, coordenadora e estimuladora pelo Ministério da Educação;
c) o sistema escolar deve ser estabelecido nas bases de uma educação integral;em co-
mum para os alunos de um e outro sexo e de acordo com as suas aptidões natu-
rais; única para todos e leiga, sendo a educação primária, gratuita e obrigatória;
o ensino deve tender progressivamente à obrigatoriedade até 18 anos e à gratui-
dade em todos os graus.
a) para a defesa da saúde dos escolares, como os serviços médico e dentário escola-
res (com função preventiva, educativa ou formadora de hábitos sanitários, e clí-
nica, pelas clínicas escolares, colônias de férias e escolas para débeis) e para a
prática de educação física (praças de jogos para crianças, praças de esportes, pis-
cinas e estádios);
b) para a criação de um meio escolar natural e social e o desenvolvimento do espíri-
to de solidariedade e cooperação social (como as caixas escolares, cooperativas
escolares, etc);
c) para a articulação da escola com o meio social (círculos de pais e professores,
conselhos escolares) e intercâmbio interestadual e internacional de alunos e pro-
fessores;
d) e para a intensificação e extensão da obra da educação e cultura (bibliotecas es-
colares, fixas ou circulantes, museus escolares, rádio e cinema educativo).
IX - Reorganização da administração escolar e dos serviços técnicos de ensino, em
todos os departamentos, de tal maneira que todos esses serviços possam ser:
a) executados com rapidez e eficiência, tendo em vista o máximo de resultado com
o mínimo de despesa;
b) estudados, analisados e medidos cientificamente, e, portanto, rigorosamente con-
trolados nos seus resultados;
c) constantemente estimulados e revistos, renovados e aperfeiçoados por um corpo
técnico de analistas e investigadores pedagógicos e sociais, por meio de pesquisas,
inquéritos, estatística e experiências.
6
Idem, ibidem, p. 88-90.
CHAGAS, V. Educação brasileira: o ensino de 1? e 29 graus. 2. ed. São Paulo, Saraiva, 1980.
p.58.
Estado e remunerado pelos cofres publicos.8
Inúmeros educadores levantaram-se em defesa da escola pública, como a única de
caráter eminentemente democrático e capaz de atender a toda a população, indepen-
dentemente de suas condições sócio-econômicas. Mais uma vez, Fernando de Azevedo
veio a público em grande estilo. Agora o Manifesto dos Educadores - Mais uma Vez
Convocados foi assinado por 180 educadores, entre os quais alguns dos signatários
de 1932, como o próprio Fernando de Azevedo, Almeida Júnior, Anísio Teixeira,
Carneiro Leão, Paulo Maranhão, Mário Casassanta, etc. A estes somaram-se numerosos
jovens educadores, que haveriam de ter uma atuação marcante nos futuros destinos da
educação e da cultura brasileiras: Nelson Werneck Sodré, Florestan Fernandes, João
Cruz Costa, Antônio Cândido de Mello e Souza, César Lattes, Paulo Duarte, Sérgio
Buarque de Holanda, Miguel Reale, Fernando Henrique Cardoso, Darci Ribeiro são
apenas alguns dos novos nomes.
O novo Manifesto ao povo e ao governo, que veio a público pela primeira vez a 19
de julho de 1959 9 , mais de 25 anos após a mensagem de 1932, marcou "nova etapa no
movimento de reconstrução educacional que se procurou então desencadear, e que
agora recebe a solidariedade e o apoio de educadores da nova geração".10
Afirma, ainda, o novo Manifesto: "Não renegamos nenhum dos princípios por que
nos batemos em 1932, e cuja atualidade é ainda tão viva, tão palpitante que esse docu-
mento, já velho de mais de 25 anos, se diria pensado e escrito nestes dias. Vendo embo-
ra com outros olhos a realidade, múltipla e complexa - porque ela mudou e profun-
damente sob vários aspectos - e continuando a ser homens de nosso tempo, partimos
do ponto em que ficamos, não para um grito de guerra que soaria mal na boca de edu-
cadores, mas para uma tomada de consciência da realidade atual e uma retomada, fran-
ca e decidida, de posição em face dela e em favor, como antes, da educação democráti-
ca, da escola democrática e progressista que tem como postulados a liberdade de pen-
samento e a igualdade de oportunidades para todos." 11
Todo o documento constitui uma candente defesa da escola pública, pois ela é víti-
ma e não "responsável pelo abandono a que a relegaram os governos": "Não foi, por-
tanto, o sistema de ensino público que falhou, mas os que deviam prever-lhe a expan-
são, aumentar-lhe o número de escolas na medida das necessidades e segundo planos ra-
cionais, prover às suas instalações, preparar-lhe cada vez mais solidamente o professo-
rado e aparelhá-lo dos recursos indispensáveis ao desenvolvimento de suas múltiplas ati-
vidades."12
E o que pretendiam os que se opunham à escola pública? "A tudo isso, como a
qualquer plano de organização, em bases mais sólidas e democráticas, da educação na-
cional, opõem-se abertamente as forças reacionárias, e nós sabemos muito bem onde
8
Cf. O Estado de S.Paulo, 07-01-59.
Redigido por Fernando de Azevedo, o Manifesto foi publicado pela primeira vez a 19 de julho
de 1959, simultaneamente, por O Estado de S. Paulo e pelo Diário do Congresso Nacional. Pos-
teriormente, foi reproduzido pelo Diário de Notícias e pelo Jornal do Comércio, ambos do Rio
de Janeiro, bem como pelo Boletim do Centro Regional de Pesquisas Educacionais de Sao Paulo
e pela Revista de Estudos Pedagógicos.
10
BARROS, R. S. M. de. ore. Diretrizes e Bases da Educação Nacional. São Paulo, Pioneira, 1960.
p.58.
Idem, ibidem.
Idem, ibidem, p. 60-1.
elas se encontram e quais são os seus maiores redutos de resistência. Na luta que agora
se desfechou e para a qual interesses de várias ordens, ideológicos e econômicos, empur-
raram os grupos empenhados em sustentá-la, o que disputam afinal, em nome e sob a
capa de liberdade, é a reconquista da direção ideológica da sociedade - uma espécie de
retomo à Idade Média — e os recursos do erário público para manterem instituições
privadas que, no entanto, custeadas, na hipótese, pelo Estado, mas não fiscalizadas,
ainda se reservariam o direito de cobrar o ensino, até a mais desenvolta mercantilização
das escolas." 13
13
Idem, ibidem, p. 79.
A missão da universidade
Paulo Duarte
1
ANTUNHA, H.C.G. Universidade de São Paulo: fundação e retorma. São Paulo, Centro Regio-
nal de Pesquisas Educacionais do Sudeste, 1974. p. 53. Nota 1.
colocado de forma clara e incisiva. Na formulação das questões, Fernando de Azevedo
insinuava o tipo de instituição de ensino universitário que defendia e instava os depo-
entes a manifestarem-se a respeito. Não custa recordarmos as duas questões que tratam
do assunto:
"9 - Se é problema capital, em uma democracia, a formação das elites intelectuais,
não lhe parece urgente tratarmos da fundação de estabelecimentos de pesquisa cientí-
fica e de cultura livre e desinteressada, que tenham por objetivo menos a organização
de um ensino geral do que a contribuição para o progresso do saber humano?
10 — Que pensa pois da criação de uma universidade em São Paulo, organizada den-
tro do espírito universitário moderno:
a) de maneira que se integrem num sistema único, mas sob direção autônoma, as fa-
culdades profissionais (de medicina, de engenharia e de direito), institutos técni-
cos de especialização (farmácia, odontologia) e institutos de altos estudos (facul-
dades de filosofia e letras; de ciências matemáticas, físicas e naturais; de ciências
econômicas e sociais; de educação, etc);
b) e de maneira que, sem perder o seu caráter de 'universalidade', se possa desenvol-
ver, como uma 'instituição orgânica e viva', posta pelo seu espírito científico, pe-
lo nível dos estudos e pela natureza e eficácia de sua ação, a serviço da formação
e desenvolvimento da cultura nacional?"2
como se vê, a universidade era vista como uma exigência da "formação das elites in-
telectuais" e da "formação e desenvolvimento da cultura nacional", objetivos a serem
atingidos através da integração num único sistema da formação profissional, da especia-
lização e dos altos estudos.
Além da reivindicação dos intelectuais e da legislação pertinente, outro fator contri-
buiu decisivamente para a fundação da Universidade de São Paulo. Foi a circunstância
histórica que envolvia São Paulo na primeira metade da década de 1930. Derrotado
duas vezes — em 1930 e em 1932 - São Paulo, no entender de suas elites, devia con-
quistar no terreno cultural a hegemonia que perdera no campo político. Nesse sentido,
são extremamente significativas as palavras de Júlio de Mesquita Filho: "Vencidos pe-
las armas, sabíamos perfeitamente que só pela ciência e pela perseverança no esforço
voltaríamos a exercer a hegemonia que durante longas décadas desfrutáramos no seio
da Federação. Paulistas até a medula, herdáramos da nossa ascendência bandeirante o
gosto pelos planos arrojados e a paciência necessária à execução dos grandes empreen-
dimentos. Ora, que maior monumento poderíamos erguer aos que haviam consentido
no sacrifício supremo para preservar contra o vandalismo que acabava de aviltar a obra
de nossos maiores, das bandeiras à independência e da Regência à República, do que a
Universidade?"3
Na mesma linha de pensamento, Fernando de Azevedo entende a criação da Univer-
sidade de São Paulo como a vitória da inteligência e da liberdade contra a força e a vio-
lência: "Pois, nesta época rudemente trabalhada por duas correntes sociais e políticas
que, fazendo apelo à força, à vontade e à ação, tendem a esmagar a inteligência e a li-
berdade sob o rolo compressor da máquina do Estado, o governo de São Paulo criou a
2
AZEVEDO, F. de. A educação na encruzilhada. Op. cit., p. 192-3.
3
MESQUITA FILHO, Júlio de. Política e cultura. São Paulo, Liv. Martins Fontes, 1969. p. 199.
Universidade, como um protesto e afirmação de fé na liberdade de pensamento e de in-
vestigação, de critica e de debate, que constitui os fundamentos das instituições demo-
cráticas e universitárias. É a resposta de São Paulo aos ideais da força e da violência."4
Os fundadores da Universidade de São Paulo discutiram exaustivamente o modelo
de universidade a ser implantado, chegando a cinco projetos fundamentais, todos eles
concretizados em maior ou menor intensidade :
4) Ainda uma Vez Convocado (Para cumprir os deveres da luta e do pensamento): dis-
curso proferido a 19 de julho de 1941, ao tomar posse do cargo de diretor da Facul-
dade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de S. Paulo.
AZEVEDO, F. de. Princípios de sociologia. 8 ed. São Paulo, Melhoramentos, 1958. p. 3-4.
duzindo os alunos à observação e à pesquisa, em campos e com objetivos limitados, pa-
ra que possam adquirir com segurança e aplicar o método estatístico e as técnicas de
análise de casos ou de culturas, de investigação ecológica e de inquéritos ou levanta-
mentos sociais de situações determinadas."2
A Sociologia só poderá tomar-se ciência na medida em que atribuir a seus estudos
um caráter eminentemente objetivo: "E, por último, como a ciência é o 'estudo obje-
tivo e desinteressado de uma realidade determinada', as concepções ideais, artificiais e
arbitrárias, da sociedade, só podem perturbar a visão das formas reais e das leis de evo-
lução das sociedades humanas. A Sociologia, como qualquer outra ciência, não tem
por objetivo o estudo 'do que deve ser', mas 'do que é'; não do ideal, mas de fatos e de
suas uniformidades constantes ou relações necessárias."3
Já em sua Sociologia Educacional, Fernando de Azevedo particulariza mais seu ob-
jeto de estudo, enfatizando apenas um entre os múltiplos fenómenos sociais - a educa-
ção —, embora este seja visto em suas relações com os outros fenômenos sociais. 0 es-
tudo da educação como fenômeno essencialmente social, com ênfase mais no social do
que no individual do fenômeno educativo, dependente das estruturas sociais vigentes
em determinada sociedade, é o aspecto mais evidente da obra de Fernando de Azeve-
do, claramente aparente nos títulos da introdução das quatro partes e dos vinte e um
capítulos:
Introdução:o que é Sociologia e o que é Sociologia Educacional.
I — A Educação, fenômeno social: o individual e o social; a coesão social e a tradi-
ção; a integração do indivíduo no grupo; a natureza sociológica do fenômeno de educa-
ção; a educação, um processo social geral; a educação nas sociedades primitivas.
II — As origens e a evolução da escola: a família e a educação;o grupo profissional
pedagógico; escola, uma instituição social; a rotina na educação: formadores e reforma-
dores; a educação e o progresso.
III — Os sistemas escolares: os sistemas escolares e os sistemas sociais gerais; a educa-
ção e as classes sociais; a complexidade e a crise em educação; a organização dos siste-
mas escolares.
IV — Os problemas sociais pedagógicos: as cidades e os campos e os problemas de
educação; o Estado e a educação; política e educação; o problema dos fins em educa-
ção; a escola, o patriotismo e a unidade nacional;a opinião pública e a educação.
A ênfase no social, Fernando de Azevedo a desenvolveu inspirado principalmente em
E. Durkheim, seu grande mestre no campo da Sociologia. Assim, a Sociologia seria uma
das formas de se fazer o estudo científico da educação, de modo especial dos fatos so-
ciológicos da educação, que são os predominantes: "Assim, pois, a Sociologia, como se
vê, é uma das vias de acesso por onde se pode abordar o estudo científico da educação,
como tato ou conjunto de tatos suscetíveis de observação, como sejam, 'o conteúdo
da civilização' que a educação transmite (idéias, sentimentos coletivos, tradições, hábi-
tos e técnica), as formas diversas que reveste (instituições escolares) sob a pressão da
estrutura social, e a aparelhagem ou instrumental próprio (livro, material, etc.) de que
se serve para transmiti-la."4
Idem, ibidem, p. 5.
Idem, ibidem, p. 8.
AZEVEDO, F. de. Sociologia educacional. 4 ed. Sao Paulo, Melhoramentos. 1957. p. 28.
Mas a Sociologia desenvolve um modo particular, diferente das outras áreas de co-
nhecimento, para aproximar-se da realidade educacional: "Ora, a Sociologia, constituin-
do-se como ciência, sugere-nos um método novo para atingir a realidade educacional, a
saber, considerá-la como um aspecto ou um setor da realidade social e analisá-la nas
suas relações com os outros fenômenos da vida coletiva."5
É ainda o caráter social da educação, sempre presente, que fundamenta a necessida-
de do estudo da Sociologia para o educador: "Mas para que se tenha uma idéia ainda
mais precisa de quanto interessa e é necessário ao educador o conhecimento da Sociolo-
gia, como base científica de sua profissão, basta atentar-se para esses três fatos funda-
mentais: a) a natureza sociológica do fenômeno da educação; b) as relações dos fatos
sociais pedagógicos e os outros fenômenos coletivos; c) e as variações, em conseqüên-
cia, segundo os povos e sob a pressão das condições sociais, não só das instituições es-
colares, como também dos tipos de mentalidade ou dos ideais que se transmitem pela
educação (...) Os sistemas de educação, determinados pelas estruturas sociais, não po-
dem ser senão o que elas são numa sociedade dada."6
A Cultura Brasileira, uma vasta obra de 809 páginas em sua quinta edição, abrange
quinze capítulos distribuídos em três grandes partes:
I — Os fatores da cultura: o país e a raça;o trabalho humano; as formações urbanas;
a evolução social e política; psicologia do povo brasileiro.
II — A cultura: instituições e crenças religiosas; a vida intelectual — as profissões li-
berais; a vida literária; a cultura científica; a cultura artística.
III — A transmissão da cultura: o sentido da educação colonial; as origens das insti-
tuições escolares; a descentralização e a dualidade de sistemas; a renovação e a unifica-
ção do sistema educativo;o ensino geral e os ensinos especiais.
Carlos Guilherme Mota tece a seguinte apreciação geral a respeito da forma como
Fernando de Azevedo interpreta a cultura brasileira: "O tom geral da obra é otimista,
equilibrado, incorporando em sua concepção de cultura as manifestações dos vários
campos do saber e, nesses campos, as diversas tendências. Não há antagonismos apa-
rentes entre as variadas 'escolas' apresentadas. A plasticidade do conceito de cultura
empregado garante a harmonia entre as diferentes posições. No máximo, pode-se regis-
trar menos apreço pelas formas de organização do saber dentro dos quadros de institui-
ções religiosas; afinal, o grande personagem é o ensino público, veiculador do saber lai-
co — a fidelidade do pensamento de Fernando de Azevedo ao ensino laico vai permane-
cer como paradigma nas campanhas em defesa da escola pública, nos fins dos anos 50,
das quais participou ao lado de Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Almeida Júnior, figu-
ras maiores da história da educação no Brasil contemporâneo. Figuras à sombra das
quais se formaram representantes do pensamento radical no Brasil, como Darci Ribei-
ro (discípulo dileto de Anísio Teixeira) e Florestan Fernandes e Antônio Cândido (dis-
cípulos escolhidos por Fernando de Azevedo).
O 'esforço incessante para a unidade', eis a meta de Fernando de Azevedo. As forças
culturais devem ser assimiladas entre si, incorporando a experiência do passado, a 'he-
rança sagrada, que deve ser imortal, de nossa história e de nossas tradições'. E nesse
processo de assimilação dos contrários não teriam escapado elementos antagônicos re-
presentativos da democracia liberal e do socialismo, que se absorveram, compondo um
MOTA,C. G. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974). 4. ed. São Paulo, Ática, 1978. p. 75-6.
8
AZEVEDO, F. de. A cultura brasileira. 5. ed. São Paulo, Melhoramentos, 1971. p. 693-4.
A bem da verdade, é necessário que se diga que, embora o humanismo clássico te-
nha constituído o ponto de partida e a inspiração original da produção intelectual e,
mesmo, da atuação prática de Fernando de Azevedo, seu pensamento evoluiu no senti-
do de um novo humanismo, integrador das letras e das ciências, como se verá no decor-
rer deste capítulo.
0 essencial do pensamento de Fernando de Azevedo sobre o humanismo encontra-
-se em três discursos, duas conferências e um ensaio, produzidos na segunda metade da
década de 1940 e nos primeiros anos do decênio seguinte, reunidos, juntamente com
outros textos, em seu livro Na Batalha do Humanismo:1
1) Técnica, Humanismo e Educação: discurso proferido no dia 25 de junho de
1947, como Secretário da Educação e Saúde do Estado de São Paulo, por ocasião da
homenagem que lhe foi prestada pelos médicos, professores e autoridades escolares e
sanitárias.
2) Pelo Humanismo que Ainda Está em Vós: discurso pronunciado a 24 de julho de
1947, por ocasião da homenagem prestada a Georges Duhamel, da Academia Francesa.
3) Na Batalha do Humanismo: conferência proferida a 27 de outubro de 1947, em
Belo Horizonte, na Universidade de Minas Gerais, em sessão solene presidida pelo Dr.
Milton Campos, governador do Estado.
4) Rui e o Humanismo: conferência pronunciada a 10 de novembro de 1949, em
Salvador, a convite do governo da Bahia, nas festas comemorativas do centenário do
nascimento de Rui Barbosa.
5) No Caminho de um Humanismo Novo: discurso proferido a 27 de dezembro de
1950, no Teatro Municipal de São Paulo, na qualidade de paraninfo, na sessão solene
1
AZEVEDO, F. de. Na batalha do humanismo e outras conferências. São Paulo, Melhoramentos,
1952. Os estudos sobre o humanismo encontram-se nas seguintes páginas:Te'cnica, humanismo
e educação: p. 1-10; Pelo humanismo que ainda está em vós: p. 11-20; Na batalha do humanis-
mo: p. 21-38; Rui e o humanismo: p. 111-32; No caminho de um humanismo novo:p. 133-46;
As universidades e o problema do humanismo :p. 147-70.
de colação de grau dos bacharéis e licenciados pela Faculdade de Filosofía, Ciências e
Letras da Universidade de São Paulo.
6) As Universidades no Século XX e o Problema do Humanismo: ensaio escrito es-
pecialmente para a obra As Universidades no Século XX, comemorativa do 49 cente-
nário da fundação da Universidade Mayor de San Marcos, de Lima (Peru), e organizada
pela Faculdade de Educação dessa Universidade.
É claro que a presença do humanismo na obra de Fernando de Azevedo não se limi-
ta a esses textos. O humanismo foi uma presença constante, mais ou menos explícita,
em todo o seu pensamento e em tôda a sua ação, perpassando cada momento de sua
vida, desde a sua formação inicial. Dele pode-se, mesmo, afirmar o que ele disse em
relação a Rui Barbosa: "O seu humanismo, por isso, não era apenas uma concepção
da vida, uma atitude mental em face do homem e do mundo. Era uma idéia em mar-
cha, um pensamento em ação. Difundiu-se por tôda a sua obra como a seiva que sobe
nas árvores, do tronco para os ramos, lhes matiza as flores e lhes dá sabor aos frutos,
ou como o sangue, vigorosamente impelido, nos organismos jovens, até a periferia pe-
lo poderoso músculo central, e com batimentos de sistole e diàstole, semelhantes aos
do coração, pela elasticidade das artérias."2
Mas o humanismo onipresente de Fernando de Azevedo é também um humanismo
compreensivo, abrangente, conciliador de tendências e interpretações diversas, assim
como o foi sua vida, em que conviveram pacificamente o liberalismo e o socialismo:
"Republicano, ou antes liberal por necessidade e reflexão, contrário a todos os regimes
de força e de tirania, socialista desde jovem e profundamente preocupado com os pro-
blemas sociais, homem de meu tempo, sempre me pareceu possível conciliar a justiça
social com a liberdade, o socialismo com as idéias e instituições democráticas. É nessa
conciliação que deverão concentrar-se todas as nossas energias."3
Em sua tentativa de buscar o denominador comum do humanismo, Fernando de
Azevedo procura identificar sua continuidade histórica, em que se alternam momentos
de maior e de menor expressão humanista: "Quando falamos em 'humanismo' (...), o
que queremos significar é, afinal, um movimento de espírito, uma corrente de pensa-
mento e de opinião, que se vem desenvolvendo através do tempo, tomando a cor e a
tempera da cultura em que floresceu, e cujas manifestações diversas não se podem con-
siderar senão como 'períodos de uma evolução' ou elos da mesma cadeia de pensamen-
to. O humanismo, por exemplo, dos Morus e dos Erasmos, nos princípios do século
XVI, longe de voltar as costas à tradição, não fez senão continuar os grandes pensado-
res, cristãos é árabes, da Idade Média, 'herdeiros, eles próprios, das mais antigas sabedo-
rias'. Ele sempre foi ou pretendeu ser 'uma assimilação verdadeira dos valores humanos.
sedimentados no curso da história', e que se foram enriquecendo com a cultura grega
e romana; com o triunfo e a expansão do cristianismo na Idade Média; com o Renas-
cimento que se volta para a Antigüidade; com a definição do 'honnête-homme', em que
já não se trata do mundo antigo; com a Declaração dos Direitos do Homem, na Revolu-
ção Francesa, de 89; com o romantismo do século XIX, e, afinal, com o desenvolvi-
mento das literaturas modernas e o espantoso progresso das ciências."4
Entrevista ao seminário político Diretrizes. Rio de Janeiro. 30-6-1944. In: AZEVEDO, F. de.
Seguindo meu caminho. Conferências sobre educação e cultura. São Paulo, Companhia Editora
Nacional, 1946. p. 165-6.
Florestan Fernandes
AZEVEDO, F. de. Canaviais e engenhos na vida política do Brasil. 2. ed. São Paulo, Melhora-
mentos. 1958. p. 179-80.
3
Idem, ibidem, p. 181.
Idem, ibidem.
nhor, mas ainda estreitamente ligado ao campo, e dando lugar a um outro tipo social,
- o usineiro — que representa o ideal burguês, uma vitória da técnica contra a vida, da
indústria contra a lavoura, e uma ruptura das relações do homem contra a natureza,
diante da qual poderá extasiar-se, como um homem culto, pela sua sensibilidade, mas de
que nao participará como o homem do campo, integrado na paisagem rural, pelo seu
íntimo contato e pela sua quase convivência com o meio, as plantas e os animais. como tipo ou líder po
das pelo seu poderio econômico. Já não é mais um representante da lavoura e dos cana-
viais, mas da burguesia urbana, sem a nostalgia do campo, que acometia, nas suas fu-
gas para a cidade, os antigos senhores de engenho. A realidade, apanhada na sua fonte
mais viva — a natureza como ela é e se apresenta -, diminui de fato, em proporção
geométrica, em função mesma do aperfeiçoamento dos processos técnicos."5
6
AZEVEDO, F. de. Um trem corre para o oeste. 2. ed. São Paulo, Melhoramentos, s.d. p. 217.
7
Os outros estudos incluídos no livro são os seguintes: Introdução ao estudo das ciências no Bra-
sil (Introdução escrita para a obra As ciências no Brasil, organizada e publicada sob a direção do
autor); Introdução às ciências sociais (Trabalho que abre a seção de Ciências Sociais da Enciclo-
pédia Delta - Larousse); Ciências Sociais e Ciências Naturais (Conferência pronunciada em São
Paulo, na sessão de encerramento de uma das reuniões regionais da Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência); A Antropologia e a Sociologia no Brasil (também escrito para a obra As
ciências no Brasil); As atitudes humanas em face das mudanças sociais; A educação como agente
de mudança social; Mudanças sociais e variações semânticas; relação entre esses dois tipos de
mudanças; A idéia de progresso. É possível uma noção científica de progresso? A evolução das
elites políticas no Brasil contemporâneo e, particularmente, em São Paulo; Da palestra ao está-
dio. Reflexões sociológicas sobre a educação física (Aula inaugural proferida a 7 de março de
1961, na abertura dos cursos da Escola de Educação Física do Estado de São Paulo); Verdades
amargas; Face a face com a realidade brasileira (Discurso proferido a 28 de novembro de 1961.
em banquete oferecido por amigos e colegas no Automóvel Clube de São Paulo).
porte; a pequena produtividade; as precárias condições de vida e de trabalho do traba-
lhador rural; a desigual distribuição da terra; os métodos empíricos, fundados na rotina
e em práticas primitivas, sao apenas os principais entre muitos outros.
Por um lado, esses problemas vêm sendo superados na medida em que muitas con-
quistas tecnológicas urbanas vão atingindo a população rural: "Certamente o automó-
vel e outros meios de transporte; as boas estradas; o cine, o rádio e a televisão, na me-
dida em que alcançam a população rural e por ela se difundem esses instrumentos 'de
penetração dinâmica ainda não compreendida em toda a sua potencialidade'; a parti-
cipação que tende a crescer em algumas regiões, dos trabalhadores do campo e suas fa-
mílias na vida econômica e social de algum centro urbano, grande ou pequeno, e outros
fatores têm contribuído, em graus variáveis, para produzir mudanças nos sistemas de
relação e nos modos de vida dessas comunidades, eliminando algumas e reduzindo mui-
tas das diferenças que separam a população rural da população urbana."8
Por outro lado, as oposições entre a cidade e o campo, ligadas a uma série de dife-
renças entre as populações do campo e da cidade - sociais, econômicas, culturais, téc-
nicas, etc. — estão longe de serem superadas, e o progresso industrial é apenas um dos
fatores, embora poderoso, do progresso rural: "É muito duvidoso, porém, que o pro-
gresso industrial, atingindo certo grau de intensidade e certo nível, venha a provocar
por si mesmo, automaticamente, o progresso rural. Concorrerá certamente para isso,
como uma força poderosa, mas não dispensará um conjunto sistemático de severas me-
didas diretamente ordenadas à integração da economia agrícola na economia indus-
trial (...)." 9
A primeira dessas medidas parece ser a reforma agrária, "de que parece sentirem to-
dos a necessidade, mas sobre cujas bases e diretrizes se verificam mais divergências do
que concordâncias de pensamento". Na reforma agrária que interessa à agricultura, al-
guns problemas devem merecer um destaque privilegiado, sob pena de a questão agrá-
ria permanecer sem solução: "Assim, pois, se se trata de reformas agrárias que cuidem
antes da salvação da agricultura do que de grupos e classes interessadas na perpetuação
de uma estrutura anacrônica, quase feudal, o regime ou sistema de vinculações do
homem com a terra, a distribuição ou mais fácil acesso à terra, de acordo com as neces-
sidades econômicas e sociais de cada região, e o amparo ao homem que a ocupa, são
problemas que se transferem ao primeiro plano das cogitações em projetos ou refor-
mas dessa natureza. Mas, não será somente com a reforma de estrutura ou de sistemas
de distribuição da propriedade e controle da terra que se resolverá questão tão difícil
e complexa como a questão agrária."10
Além da distribuição da terra, outro fator importante para a solução dos problemas
agrários é a "industrialização e motomecanização das atividades agrícolas": "O desen-
volvimento e a intensificação da produção agrícola estão, de fato, ligados a uma larga
política de equipamento rural, de mecanização e tecnização, que se proponha tanto a
modernizar e a aumentar o parque de tratores e máquinas agrícolas quanto a promover
a introdução de novos métodos ou técnicas de exploração da terra."11
AZEVEDO, F. de. A cidade e o campo na civilização industrial e outros estados. São Paulo, Me-
lhoramentos. 1962. o. 219.
9
Idem. ibidem, p. 220.
10
Idem. ibidem, p. 225.
Idem. ibidem, p. 226.
Em linhas gerais, a solução para Fernando de Azevedo está no que ele chama de
"urbanização dos campos": "E, como a vida rural se caracteriza pela seu fraco estímu-
lo para todo o progresso, ao contrário da vida urbana que oferece mais oportunidades
para melhorar as condições de vida, a evolução da vida rural para as formas urbanas e
da economia agropecuária para a industrial constitui a primeira e principal condição
para que a escola e o ensino, a educação e a cultura, se desenvolvam nas comunidades
rurais sob o duplo impacto da cidade e da indústria que são, ainda nas palavras de
Louis Reissig, 'uma conquista laboriosa do homem' e, marcando a passagem de um
processo vegetativo para um processo técnico, abrem caminho a novas formas de vida
e de civilização."12
12
Idem, ibidem, p. 228-9.
Um sonho latino-americano
Eduardo Gaicano
Idem, ibidem.
Dom Quixote da Liberdade', em cuja defesa pôs a palavra, a pena e a espada: Dom Juan
de Montalvo, equatoriano, 'centro e esperança da opinião radical', o adversário terrível
de Garcia Moreno, que ele combateu dentro e fora do país, com essa sobranceria e in-
dependência que lhe valeram uma imensa autoridade moral no Equador; um Manuel
González Prada, peruano, 'espírito retilíneo, de afirmações e negações claras, homem
de sacrifício, batalhador democrático, prosador vigoroso de Páginas Libres cujo estilo
tem a naturalidade e a força vital de um 'movimento respiratório'."5
E assim prossegue Fernando de Azevedo, citando prosadores e poetas da América
Espanhola, do século passado e deste século, tecendo um cántico de louvor à terra e
aos homens: "Glória, pois, à América Espanhola, agitada e inconstante, como um
mar que nao encontrou suas praias, mas fiel às tradições de liberdade, cultura e soli-
dariedade continental, e em cujos ímpetos e ardor románticos, ligados às suas origens
peninsulares, se pode buscar a nascente de sua inquietação espiritual em face das coisas
e da vida. Glória aos criadores desse romance apaixonante, que é a grande aventura hu-
mana da descoberta, conquista, colonização, independência da América e da expansão
dramática, por paisagens fragosas e bravias, da civilização ocidental."
A união latino-americana com que sonha Fernando de Azevedo parece ser a união
promovida pela integração das elites "criollas" cujo espírito, nascido da luta pela
emancipação política, devemos procurar cultivar com vistas a um maior conhecimento
recíproco e para melhor servirmos à educação: "A despeito da cordilheira e das distân-
cias que se interpõem entre nós, não será muito difícil multiplicar esses contatos em
que se acentuam sobre os fatores de diferenciação os fatores de convergência, para nos
compreendermos melhor uns aos outros e, alcançando um grau mais alto de conheci-
mento recíproco, servirmos mais eficazmente à obra comum de educação."7
Aos educadores cabe importante responsabilidade no preparo e na orientação do mo-
vimento de união latino-americana: "Provocar e entreter o diálogo; integrar as visões
parciais, correspondentes a cada uma das culturas, numa visão mais ampla, deliberada-
mente americana e humanística; apertar os laços que se tecem não só entre o solo, o
meio social e o homem, como também entre todos os países e a civilização a que per-
tencem; 'transformar em consciência uma experiência tão larga quanto possivel', como
propõe Malraux pela voz de Tchen, se não é tarefa a que somente educadores possam
meter ombros - porque ela é coletiva, histórica, cultural e política -, é certo que é su-
mamente importante a parte que nos cabe no preparo e na orientação desse movimen-
to." 8
Aproximando-se e agrupando-se para atividades comuns, os educadores da América
Latina não estão somente realizando o sonho de união latino-americana, mas também
fundando "uma nova civilização": "É, de fato, aproximando educadores de todos os
países da América; abrindo-lhes possibilidades para troca de idéias e de impressões e
para a intercomunicação do que seus respectivos países tenham de mais autêntico e
original, nas diversas esferas da cultura; é agrupando-os para cursos de atividades e
9
Idem, ibidem, p. 67-8.
GALEANO, E. As veias abertas da América Latina. 6. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.
p. 280-1.
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PILETTI, Claudino & PILETTI, Nelson. Filosofia e história da educação. São Paulo,
Ática, 1985.
É uma alta distinção que me concedestes, elegendo-me membro desta Academia sem
que eu tivesse, em qualquer momento, disputado a honra de participar de vosso con-
vívio. Não vos tendo batido à porta nem pleiteado a preferência que gostaria de mere-
cer, tivestes para comigo a cativante gentileza de incluir-me entre seus pares, impondo-
-me o capuz de uma irmandade que, em pouco mais de meio século, já se constituiu,
no mundo das letras, em corporação das mais ilustres tradições. Eu vos agradeço, pe-
nhorado. Se não me apresentei nem me dispunha a ser candidato a uma poltrona nesta
Casa, foi por pensar (e é um ponto de vista discutível, mas antigo) que honrarías, dis-
tinções ou postos de comando não se disputam; aceitam-se, aquelas, desde que espon-
taneamente conferidas, e estes, em certas condições, quando somos convocados. A deli-
beração de uma assembléia redobra de força, e a escolha, de desvanecimento para os
eleitos, quando nela não intervém senão a vontade dos juízes; com a plena liberdade
de iniciativa e de julgamento.
Aprecio, em tôda sua plenitude, a nobre e grave missão cultural de uma Academia
de Letras. E já seria bastante para tê-las, a todas as instituições dessa ordem, na consi-
deração que merecem. Mas, quando se trata de um grêmio, em que brilham valores dos
mais altos na constelação literária do país e figuraram (para citar apenas alguns de seus
grandes, entre os mortos) escritores do porte de Alcântara Machado, Monteiro Lobato
e Mário de Andrade, historiadores da categoria de um Basílio de Magalhães e de um
Afonso Taunay, poetas como Vicente de Carvalho, um dos maiores do Brasil, e Ama-
deu Amaral, jornalistas da estirpe de um Plínio Barreto, pregadores da eloqüência e
unção religiosa de um Monsenhor Francisco de Paula Rodrigues, o famoso Pe. Chico,
homens de Estado da estatura de um Washington Luis, historiador, eu me pergunto sr
seria lícito a alguém hesitar na aceitação de tão luzido encargo como este em que me
investistes, na vossa benevolência inesgotável em surpresas?
Essa atitude de discrição e reserva, quase de indiferença em face de títulos e mercês
honoríficas, não penseis, porém, ser de ontem, em relação à Academia a que me honro
de pertencer. Ela é mais antiga do que se possa imaginar. Por quatro vezes, desde mi-
nha mocidade, consegui sem esforço resistir à tentação de apresentar-me candidato
á Academia Brasileira de Letras. Tinha 27 anos quando, pela primeira vez, um de seus
vultos mais eminentes, Coelho Netto, tendo-me por digno, apesar da pouca idade, de
fazer parte daquela Academia, solicitava me preparasse para disputar, na oportunida-
de, uma de suas cadeiras. Foi em 1921. Mais tarde, em 1923, voltava à carga o meu ge-
neroso amigo. Sentir-me-ia constrangido em repetir de público as palavras que me diri-
giu em carta de 26 de novembro de 1923, quando já andava pela casa dos 29 anos. Em
1924, insiste: 'Tive há dias (escreve-me em 24 de fevereiro daquele ano) grande ale-
gria, ouvindo duas vezes o teu nome citado por Laudelino Freire, no formoso discurso
com que vai tomar posse da cadeira-Rui, na Academia. Co neças a entrar, meu velho. É
o primeiro raio de sol que se insinua no oriente, antes do surgimento. Praza a Deus que
eu possa gozar esse grande dia." O dia não veio a esse tempo nem em qualquer outro,
porque jamais concordei em disputar uma vaga na Casa de Machado de Assis. Por essa
época já havia Coelho Netto obtido os votos de vários acadêmicos, entre os quais se
achavam Goulart de Andrade, Laudelino Freire, Humberto de Campos e Afrânio Pei-
xoto.
Em um estudo sobre Múcio Leão, contou Humberto de Campos que, perguntado
certa vez a quem daria o voto para lhe suceder na Academia, se fosse atribuído ao
acadêmico indicar seu sucessor, respondeu sem vacilar: "Múcio Leão ou Fernando de
Azevedo." Quando faleceu o notável poeta, escritor e crítico literário, meus amigos,
acadêmicos ou não, voltaram a insistir comigo para que me apresentas' candidato, em
obediência à vontade de Humberto de Campos. Respondi-lhes, a todos, que somente
me inscreveria, para lhes atender aos desejos, se Múcio Leão, o primeiro nome citado,
não concorresse à vaga aberta com a morte de quem me surpreendera, na sua delica-
deza para comigo, com tão alto julgamento. Felizmente não tive necessidade de lhe
pleitear a cadeira: Múcio Leão inscreveu-se, e era ele o candidato de minha predile-
ção. Sucederam-se novas manifestações, tão significativas quanto generosas, de uma das
quais um dia participaram, reunidos num lar amigo, Rodrigo Octavio, então presiden-
te da Academia, Álvaro Lins, Josué Montello, Múcio Leão, Barbosa Lima Sobrinho,
entre outros, a que devo a fineza de inequívocas expressões de interesse pela candi-
datura de escritor tão obscuro. Todos, ao que pude sentir, votariam em meu nome, já
engrandecido com suas preferências, no caso de me dispor a concorrer a uma das pri-
meiras vagas que se verificassem. Não me foi possível, porém, mudar a posição que to-
mara: não me apresentei candidato a nenhuma delas.
Tal atitude, por estranha que pareça, foi firmemente mantida, como vedes, mesmo
nos momentos em que tudo conspirava para me compelir a modificá-la. Dir-se-ia ex-
pressão de uma superioridade desdenhosa - vaidade ou, ao menos, desinteresse em
face de associações dessa natureza. Mas, quanto posso julgar e se é que bem me conhe-
ço, não corresponde ela senão à dúvida angustiante sobre méritos que me têm sido atri-
buídos, ao sentimento de renúncia e de abandono, resultante de outro, extremamente
vivo, da precariedade e transitoriedade das coisas. De minha formação inicial o que me
ficara, além da crença em Deus e na vida sobrenatural, foram a inquietação diante do
problema religioso, o sentimento da morte, que penetra profundamente minha vida
e minha obra, e me parece decorrer menos de uma opinião lógica do que de um temor
metafísico, a procura constante de mim mesmo e, daí, o gosto da solidão. Si tu sarai
solo, tu sarai tuto tuo, na profunda observação de Leonardo da Vinci, protótipo do
uomo universale da Renascença. Mas, vós, que me conheceis como homem de pen-
samento e de ação, tendes o direito de me interrogar como esses sentimentos, próprios
da vida contemplativa e radicados por força de antiga disciplina ascética, puderam con-
ciliar-se com o dinamismo interior, o amor à luta, o gosto de viver dentro da tempesta-
de, enfrentando ventanias, o impulso para tudo reformar, a vontade de pensar e agir
depressa e o interesse vigilante pelas coisas, pelos homens e pelos acontecimentos?
E eu vos responderei, perguntando se tudo isso não refletirá, em suas aparentes
contradições internas, a tendência, não procurada mas instintiva, de encher e devorar o
tempo que se vive cada dia e com que não se pode contar no dia seguinte, e talvez
uma fuga da idéia da morte, pela plenitude do espírito criador e da ação que nos fazem
esquecê-la e, porventura, superá-la? Fogem uns, quando o problema os inquieta, pela
busca desesperada do prazer (evasão de superfície) e outros, pela atividade intensa e
ininterrupta (evasão em profundidade). É por isso que muitas vezes me tenho detido
no pensamento de Goethe, quando nos afirma - creio que em suas "Conversações
com Eckermann" - que "a mais nobre felicidade do homem que pensa é ter explora-
do o concebível e reverenciar em paz o incognoscível". Sim, explorar o concebível,
inserir o ideal no real, mas atento às reações da realidade aos esforços para modificá-la,
e reverenciar em paz e humildade o incognoscível, eis em que se tem consumido a vida,
retraída e solitária, do sociólogo, escritor e reformador da educação, que hoje recebéis
e que, por modesto que seja nos três planos, da ciência, das letras e da ação, é um
homem que sempre procedeu nobremente porque nada pretendeu dos outros, e procu-
rou, antes de tudo (e só Deus sabe quanto me custou), ser fiel a si mesmo e às suas
convicções.
Se no mundo literário, de que é a nossa Academia uma das mais legítimas e altas ex-
pressões, se no domínio científico ou no plano da vida pública me foi dado trazer
alguma contribuição original, não me ficou sombra de vaidade, que esta há muito me
desertou do coração. Quando não me viesse de minha juventude, ocupada em medita-
ções e sangrada de sofrimentos, bastariam os longos anos já vividos para me incutirem
esse sentimento da relatividade das coisas, que nos leva a manter uma atitude de ironia
e piedade em face da vida, dos homens e dos acontecimentos. Pois, à medida que re-
cuamos no tempo - e não para tempos distantes, mas ainda recentes -, vão-se apagando
tão rapidamente situações e figuras humanas, que nos aparecem, quando as evocamos,
através de névoa, per speculum in aenigmate, segundo a expressão paulina. Na clari-
dade, mas já esbatida como num crepúsculo em que "as sombras quanto vai sendo mais
tarde tanto vão sendo maiores", surgem apenas, dentre os que ficaram para trás, os
mais eminentes ou os que se situam mais perto de nós. No entanto, pela velocidade
atordoante com que se processam as mudanças de valores, de critérios e de mentali-
dade, e pela rápida ascensão de elementos novos, os longes e os pertos tornam-se muito
relativos e de tal modo que às vezes se faz longe o que aconteceu ou surgiu há poucas
semanas ou alguns dias.
O tempo (reza um provérbio alemão) "é um moinho que mói lentamente, mas mói
fino". É, de fato, um terrível peneirador de que nunca se sabe o que retém e o que
deixa passar, joeirando e cirandando, com seu crivo de fios finamente trançados. Não
raro os que rejeitam os contemporáneos passam à posteridade, e os que conquis-
tam, em vida, as graças do público resistem a duas gerações. Numa época, a projeção
e o prestígio — antecipações ilusórias de uma glória póstuma —, para se reduzirem, os
que foram mais cortejados, às suas reais dimensões, na época seguinte, em que mal se
entrevêem à meia luz, apoucados e mesquinhos. E quantas vezes, ao contrário, os es-
quecidos, mal interpretados ou incompreendidos não tiveram, depois da morte, a con-
sagração com que não haviam sonhado e que, em vida, não lhes fora concedido prelibar
na boca habituada ao sabor amargo das decepções? Peneirador implacável, o tempo.
triturador de grandezas e reabilitador de valores! "A posteridade abrevia, como lembra
Émile Faguet; e está no seu direito, porque escrevemos para ela; e é seu dever também
e, por menos que pareça, um dever piedoso, pois não abrevia senão para não perder
tudo." Os notáveis, os verdadeiramente grandes, os prosadores e poetas, mais eles mes-
mos, mais originais e mais humanos a um tempo, e, exatamente por isso, mais profun-
dos, sedutores e poderosos, aqueles que falam ou podem falar para os povos de todas
as latitudes e de todas as épocas, só eles é que ficam, eles é que são eternos - em cada
país, os maiores de sua história literária, e que nem sempre, em suas mensagens, se
revelam tão extraordinários que possam incorporar-se ao quadro olímpico, ainda mais
restrito, dos gênios da literatura universal'.
"Na cadeira em que me concedestes suceder a Plínio Ayrosa, que, no correr dos
anos, se foi desencantando dos homens, da vida e dos acontecimentos, e se recolhera
afinal a uma solidão quase monástica, surge agora um escritor que teve a felicidade ou
a desgraça, o prêmio ou o castigo de conservar ainda acesa a chama que lhe ardia na
mocidade, e, por mais viva que pareça, já nao tem a força nem o calor irradiante dos
meus melhores tempos de inconformismo, de independência até à rebeldia, e de lutas
obstinadas.
Já vedes, Senhores Acadêmicos, que imprudência não teria sido a vossa, se tivésseis
escolhido mais cedo para membro desta ilustre Academia um escritor de idéias radicais,
de espírito inquieto e insatisfeito consigo mesmo e com quase tudo o que vê à volta de
si, dominado pelo demônio da reforma que é um de seus companheiros mais cons-
tantes nas horas de solidão. Tivesse sido outra a idade em que me fósseis buscar, e es-
taria logo com a mão no arranque, para, naturalmente, sem me dar conta das reações
desfavoráveis, pôr a minha máquina reformadora em movimento. Pois, em época já
bem distante, eu me perguntava porque as Academias de Letras nao se haviam ainda
disposto a adotar um regime misto de seleção de seus membros, combinando sabia-
mente a iniciativa livre com o processo de escolha na base de competição dos candi-
datos. Verificada uma vaga, teria a primazia, por sistema, a apreciação de proposta de
nome de alto valor (jovem ainda ou já consagrado), assinada por, no mínimo, dez de
seus membros: uma vez aprovada, em escrutínio secreto, estaria livremente escolhido,
sem que tivesse pleiteado a cadeira, o novo acadêmico. Não se abririam, portanto, ins-
crições senão no caso de nao haver proposta ou de não alcançar maioria absoluta de
votos a que se apresentou. A segunda pergunta entre outras, a que, sem me dar respos-
ta aplausível, me arriscava em tempos idos (velha história, como vedes), dizia respeito à
resistência que então se opunha - e parece ainda muito viva — à admissão de mulheres de
letras, escritoras e poetisas, realmente dignas de figurarem nos quadros acadêmicos.
Lembro-me do caso de Colette, um dos grandes escritores franceses de seu sexo.
Nao a recebeu a Academia Francesa que, nas palavras de Pierre Brodin, "em matéria de
vestes não admite senão as dos cardeais. Mas a Academia da Bélgica sentiu-se muito fe-
liz em suprir essa deficiência e receber Colette com grande pompa em 4 de abril de
1936, na cadeira de Anna de Noailles. Ela deu assim uma pequena lição aos Quarenta,
muitos dos quais, aliás, se teriam sentido realmente bem felizes, não fosse a tradição,
de chamar ao seu convívio um dos maiores poetas em prosa do século XX". Certa-
mente, quando me fazia essas interrogações indiscretas, eram poucas no país as mulhe-
res que se podiam considerar grandes talentos. Mas no momento atual já são em maior
número e de qualidade incontestável. Numa época difícil, sem estímulos, em meio da
indiferença geral, poetisas e prosadoras, de méritos desiguais, souberam resistir ao de-
sânimo e entreter, com sopros, fracos, uns, e outros, vigorosos, o foco a cujo calor
iriam desabrochar um dia algumas de nossas maiores vocações literárias. Permiti-me
prestar-lhes minhas homenagens, às pioneiras desse movimento e às que se tornaram
glórias indiscutíveis da literatura feminina no país. Confesso que sua ausência nesta
Casa de tão nobres tradições me faz falta e que, por senti-la vivamente, se me houvesse
sido dado entrar aqui, em minha mocidade, já teria batalhado, como um mosqueteiro,
em favor da admissão, na Academia, das mulheres de letras, que, para sua maior glória
e nosso prazer, acrescentariam ao vigor e à força comunicativa dos homens as graças de
seu espírito e a surpresa amável de suas luminosas intuições.
Mas, nesta altura da vida, tereis, para a tranqüilidade de todos, a segurança de que o
homem que hoje recebéis, já de cabelos brancos, embora fiel às suas idéias e à sua vo-
cação de reformador, nem tem os mesmos impulsos da mocidade ou da idade madura
nem terá tempo para vos perturbar o sossego dos estudos e a alegria dos serões literá-
rios. Escolhendo-me agora, e somente agora, destes mais uma prova, entre tantas ou-
tras, de raro equilíbrio, de um vivo sentido de oportunidade, de sense of humour, se-
não de fina ironia, a que soubestes juntar a delicadeza e o calor humano, nas manifes-
tações cativantes de simpatia pelo escritor que atraístes ao vosso convívio. Viestes, de
fato, ao encontro de um homem de lutas, mas já um tanto cansado delas, de um incen-
diario que o foi, na mocidade, e se dispôs, com os anos, a transferir-se para o corpo de
bombeiros, e, quando estivesse na plenitude de suas forças, tudo aqui, neste ambiente
acolhedor, conspiraria para lhe quebrar os últimos ímpetos revolucionários. É que ten-
des uma confiança tranqüila na missão conservadora das Academias, guardias da boa
linguagem e das boas maneiras, dos valores tradicionais e do patrimônio literário que
nos foi legado pela história. Formas de controle ideológico, desempenham elas papel
importante no processo de seleção cultural e, quando não sejam propriamente refratá-
rias ao novo, se mantém em guarda e, não raro, numa atitude de expectativa armada
contra as inovações, e tanto mais quanto mais bruscamente estabelecem uma ruptura
com o passado.
É por isso, por sua função eminentemente conservadora, que relutam as Academias
em reorganizar-se em novas bases e em escolher, para delas participarem, abridores de
caminho, escritores de idéias avançadas. Nenhum movimento renovador, que eu saiba,
terá partido delas, que funcionam mais como um sistema de freios do que como um
sistema de pistões, antes para retardar do que para acelerar o processo de renovações.
Estão no seu papel, fiéis ao modelo em que se inspiraram, estruturando-se segundo o
tipo de instituições destinadas a preservar os valores tradicionais e não como laborató-
rios de experiências estéticas. Daí, a atitude de prudência senão de desconfiança que
assumem, em face de problemas como, por exemplo, os das novas correntes de pen-
samento literário e, mais particularmente, os do neo-humanismo, aos quais, embora de-
batidos, fora delas, com vigor e paixão, parece manterem-se indiferentes. E são proble-
mas de interesse capital para as letras e uma nova visão do mundo, e em cuja discussão
têm intervindo cientistas e escritores desde os famosos debates travados na Câmara de
Deputados da França, em 1834, entre o poeta Lamartine e o sábio Arago. No entanto,
em assuntos de tal importância, ventilados em assembléias políticas e em simpósios
internacionais, não se ouviu ainda a voz das Academias de Letras nem a das de Ciên-
cias, reunidas, para o debate da questão, em sessões especiais destas ou daquelas, ou
em sessões conjuntas, prepostas a uma análise e confrontação sistemática de pontos de
vista de homens de ciência e de homens de letras.
É do humanismo literário clássico, de origem e preponderância latinas, que nelas
ainda se tala, quando se tala (o que raramente acontece), como se fosse possível subsis-
tir o humanismo na forma antiga que assumiu e manteve através de séculos, correspon-
dente a um tipo ou a uma forma já superada de civilização. Problema apaixonante, tem
de ser, de fato, reexaminado a uma nova luz, em face do progresso das ciências e da
técnica, em seus mais diversos aspectos e em suas implicações literárias, pedagógicas e
humanas. Entre os títulos com que, na sua benevolência para comigo, me honram críti-
cos e acadêmicos, e, certamente, um dos mais gratos ao meu espírito, é o de humanis-
ta, mas, ao ouvi-los falar, a propósito do amável qualificativo, e falando-lhes eu próprio
sobre humanismo, tenho às vezes a impressão de estarmos falando línguas diferentes.
Pois, é ao humanismo, ainda remanescente, de inspiração latina, que se referem ou
parecem referir-se, e é para outra forma de humanismo que se volta meu pensamento
— um humanismo, tout court, sem adjetivos, mas em cuja elaboração entrem, por
igual, ao lado das línguas antigas, as línguas e literaturas modernas, e a cultura científi-
ca que tem, também ela, um alto valor humano, e é "suscetível de abrir ao espírito os
mais vastos horizontes, permitindo-lhe apanhar melhor o sentido do esforço humano".
Para onde se volta, fortemente atraído, o meu pensamento é para o humanismo, sim,
mas um humanismo penetrado de espírito crítico e experimental, que começou a so-
prar na Grécia, onde com um Pitágoras, matemático, um Hipócrates, fundador da me-
dicina, o geòmetra Euclides, o físico Arquimedes, e um Aristóteles, filósofo, talento
sólido e robusto, de espírito positivo, se embebem as raízes da nova civilização, de base
científica e técnica.
Quando tratamos do humanismo, herdeiro e vulgarizador da sabedoria e civilização
antigas, esquecemo-nos facilmente de que se exprimiam somente ou sobretudo pelas
letras latinas essa cultura e civilização, embora penetradas da filosofia, das letras e das
artes gregas. Não é, porém, rejeitar o humanismo, buscar-lhe as raízes mais profun-
das e dar-lhe, sob a inspiração helênica, a amplitude e substância que comportam as
contribuições do espírito matemático e científico, originário da Grécia clássica e que
melhor corresponde às exigências e aspirações da civilização atual. Ou, por outras pala-
vras, não é a língua latina o único nem o mais poderoso veículo desse pensamento e
dessa cultura. Na preponderância, por tantos séculos, do latim, como língua literária,
está aliás uma das razões da decadência das literaturas em língua vulgar em vários paí-
ses do ocidente europeu, e da demora dos progressos das línguas e literaturas moder-
nas. Nem seria preciso lembrar ainda que, tornando-se filólogos letrados e eruditos, os
humanistas, de inspiração latina, se foram afastando cada vez mais do público para se
dirigirem a uma elite; e, é descendo às fontes mais abundantes da sabedoria antiga que
encontramos, com as origens remotas da nova civilização, de fundamentos científicos,
os estímulos e os meios de restabelecer o contato das elites com o povo e a comunhão
das letras que, nas palavras de Anatole France, "são a flor das ciências, e das ciências
que são a substância das letras".
É por aí, por essa interpenetração, pelas raízes, das ciências e das letras (e nos com-
pete a nós intensificá-la por meio de conferências e diálogos de cientistas e escritores),
é por essa integração no espírito e na forma da civilização atual, que podemos adqui-
rir da vida e das coisas uma nova visão, mais profunda e original. Teremos então maio-
res possibilidades de alcançar essa coisa extraordinária, apontada por Arthur Miller na
atriz Marilyn Monroe, de "ter o ar de ver sempre tudo pela primeira vez. É um dom
maravilhoso (comenta Miller) mas também uma fonte de sofrimentos. Em geral, prefe-
rem as pessoas envolver-se de tédio e conformismo para melhor se protegerem da fadi-
ga de renovar seus pontos de vista. Ela, não; não se enfastia, nunca cede diante do
hábito. É muito fatigante ser assim, pois, para alguém exprimir verdadeiras emoções,
reações pessoais e não convencionais, precisa estar dentro da vida e do tempo até o
pescoço". Em todo caso, se, com o espantoso progresso das ciências e o reflorescimen-
to das letras e das artes, em todas as suas manifestações, estamos na vigília de uma
"nova idade clássica", como admitia Lunatscharsky, de uma repetição do "milagre
grego", a que se referia Renan, de uma civilização só comparável mas em tudo superior
à Renascença, em que tem suas origens o mundo moderno, e a essa "idade de ouro",
que foi o século XIX, nós não seremos "os dignos continuadores dos gregos senão na
medida em que formos os contemporâneos de nossa civilização como eles eram da sua.
Que importa saber 1er Platão no texto quando se é incapaz (pergunta Léon Brunschvieg)
de compreender Einstein, de ter consciência do ponto a que a humanidade de hoje
levou o escrúpulo da verdade? Eu me desculpo se, para ser breve e claro, tomo um ar
aparentemente peremptório, mas duvido se possa nao digo resolver mas somente pôr o
problema do humanismo, sem começar por meditar longamente sobre a herança de
sinceridade, precisão e profundidade que o feliz esforço da ciência conquistou para
nossos filhos".
Não sei bem se o discurso que me cabia proferir, ao tomar posse, em tão bela sole-
nidade, de uma cadeira desta Casa, atendeu às exigências acadêmicas. Nunca me foi
possível dobrar-me, ainda que o procurasse, a imposições de um ritual e a normas pro-
tocolares, consagradas pela tradição. Já me habituei tanto a ser eu mesmo que rara-
mente tanho conseguido, no falar e no agir, contentar a todos. Se tenho porventura
agradado quando escrevo, terá sido menos pelas idéias, sempre muito discutidas, do
que pela maneira de exprimi-las, à qual não costumam faltar a clareza e a independên-
cia de julgamentos. como jamais, ainda em hora dificil e incerta, me utilizei de másca-
ras para dissimular-me aos olhos dos outros, nao havia de ser agora que afivelasse al-
guma delas a um rosto, tão pouco amável e já tão conhecido de vós que seria inútil a
tentativa de encobri-lo com disfarces e artifícios. Mas essa mesma sinceridade com que
vos falei, dirigindo-me a prosadores, poetas e homens notáveis, é mais uma expressão
— e talvez a mais significativa - de meus sentimentos de respeito pela insigne Com-
panhia a que, por vossa espontânea vontade, me senti de uma hora para outra incor-
porado, e com tanto maior surpresa para mim quanto se ergueram, para vos apoiarem
e aplaudirem a decisão, sem um voto discrepante, tôda a imprensa e as mais diversas
correntes de pensamento, literário e político. Eu vos sou agradecido a todos por essas
manifestações que, pelo calor tocaram as raias de inesperada consagração, e, de modo
particular, ao vosso ilustre presidente, o escritor e poeta Aristeu Seixas. por ser o maior
responsável pela delicada lembrança de meu nome e por haver escolhido, para saudar-
-me de vossa parte, o eminente educador brasileiro M.B. Lourenço Filho, a que me
prende amizade velha, mantida sem desmaios há mais de 40 anos, mas que, apesar da
solidariedade fraternal a companheiros de ideais e de lutas, conserva, inalterável, para
com os mais achegados ao seu coração, essa liberdade de opinião e de crítica que é,
com a probidade profissional, um dos mais altos títulos de glória dos escritores.
Educador de largas vistas, um dos maiores da América, cientista de renome na espe-
cialidade a que se dedicou — a psicologia - e escritor primoroso, é um dos poucos que,
através de todas as vicissitudes, se mantiveram fiéis a si mesmos e às suas idéias neste
mundo sacudido de contradições e de lutas dramáticas. Não é só em sua linguagem, en-
xuta e de rara limpidez, mas também nas atitudes e decisões que se revela o sentido de
equilíbrio e de medida, menos do seu temperamento do que do poder que adquiriu e
apurou, com os anos, de conter, disciplinar e dirigir seus impulsos naturais. Mas o amor
à independência até à altivez e sua serenidade, proveniente de um vigilante domínio de
si mesmo, nunca chegaram a abafar, em Lourenço Filho, a sensibilidade e a ternura nas
relações humanas. De tudo, pois, que tenha escrito de amável a meu respeito, sobre
meu nome e minha obra, tereis de descontar — porque ele guarda tesouros de afetivi-
dade - o que emergiu de sua capacidade de amar e de admirar, de sua inteligência,
compreensiva e humana, como também da consciência do encargo de que se incumbiu,
em obediência à vossa expressa decisão. O autor de obras já clássicas, como, entre
outras, a "Introdução ao estudo da Escola Nova", sem igual na literatura estrangeira,
tomou a si, por deliberação vossa, interpretar sentimentos que, sendo dele próprio, são
os desta Companhia, constituída de escritores e poetas, em que se aliam à consciência
de sua alta missão intelectual a fidalguia e a indulgência, nunca tão manifestas na histó-
ria da Academia como no acolhimento que dispensastes, e vivamente me tocou no cora-
ção, a este novo acadêmico em fim de carreira e de vida, já envolto pelas últimas som-
bras do crepúsculo vespertino.
FERNANDO DE AZEVEDO, MEU PAI
Nossa vida em casa era diferente da de outras casas que freqüentávamos. Percebi
isso quando fui crescendo. Pelo fato de papai ser um homem excessivamente preocu-
pado com a família, muito autoritário apesar de muito carinhoso. A preocupação era
tão grande que, nos resguardando de tudo, nos tolhia muito.
Quando papai chegava em casa, depois de falar conosco e nos beijar, afastávamo-nos
indo brincar onde não nos ouvisse. "Seu pai precisa trabalhar", como minha mãe dizia,
sempre vigilante para que ele tivesse a paz necessária.
Nossa convivência com papai era mais às horas de refeições que, por isso mesmo,
eram muito prolongadas. Nesses momentos papai e mamãe conversavam sobre nós e
conosco, sobre assuntos gerais e sérios. Quando crianças, nem sempre nos interessavam
essas conversas, mas prestávamos atenção. com a idade fomos ficando muito bem in-
formados. Quando meus pais não queriam que entendêssemos, falavam em francês.
É claro que não demorou muito e acabamos entendendo; era a hora em que ficávamos
mais atentos.
Papai recebia sempre muitos amigos, que em geral ficavam para almoçar ou jantar.
Nós, as crianças, estávamos sempre à mesa e, para mim, era um encantamento poder
ouvir o que diziam esses homens tão inteligentes e cultos. Queria muito ser como eles
quando crescesse. A admiração que sentia por esses homens crescia comigo. Conheci
todos, ou quase todos: Venâncio Filho, Frota Pessoa, Anísio Teixeira, Abgar Renault
entre tantos e tantos outros. Grandes homens!
Quando adolescentes sentimos muito, principalmente meu irmão, a falta de liber-
dade que tínhamos. Meu irmão a conquistou, vencendo meu pai pela insistência e re-
beldia. Mas nós, as mulheres, continuamos sob controle até nos casarmos. Meu irmão.
como único filho homem, era para papai a esperança de um prosseguimento em seu
trabalho, para mamãe o preferido e para as irmãs muito querido.
Quando rapaz meu irmão sofreu um gravíssimo acidente de carro, tendo que ficar
hospitalizado por meses. Quase morreu. Papai largou tudo, dedicando-se exclusiva-
mente a ele. Foi nessa ocasião que ficou com os cabelos brancos rapidamente. Foi
horrível para todos nós. Quando meu irmão já casado e com três filhos adoeceu, tendo
que fazer três grandes operações e falecendo, meu pai ficou desesperado. Junto a mi-
nha mãe, que era uma mulher mais resistente ao sofrimento, alegre e uma grande com-
panheira, ele sobreviveu. Um ano depois perderam Lívia, a filha mais velha, sempre
tão amiga e tão ligada a eles: foi outro golpe terrível, quando ainda não estavam refei-
tos da perda do Fábio. Papai ficou muito amargurado, um pouco agressivo, o que se
nota em seus escritos nessa época. com o passar do tempo essa dor foi-se amenizando,
papai ficou calmo, muito bom. Sempre forte, dominando na família, querendo sempre
resolver os problemas das filhas e netos.
Papai, depois de duas operações, foi perdendo a visão, só tendo-lhe restado 10% nu-
ma das vistas, ficou quase cego. Fui então trabalhar com ele, ajudá-lo e com ele fiquei
até seu falecimento. Escreveu até o fim de sua vida. Conseguia escrever mesmo sem
enxergar, depois eu lia o que ele havia escrito, corrigia ou modificava se assim ele
achasse necessário.
Meu pai era um forte, uma grande inteligência, um trabalhador incansável, um bata-
lhador. Um homem muito aberto para tudo, olhando sempre para o futuro. Até o fim
trabalhou e lutou pelos seus ideais, pelo bem de sua família, com tôda sua força e
energia.
Firmino Costa
Para uma análise da consolidação do capitalismo e do papel de São Paulo nesse processo, consul-
te-se o trabalho de CARDOSO Fernando Henrique "Condições sociais da industrialização". In:
Mudanças sociais na América Latina, São Paulo, Ditei, s.d.
Sobre a reforma do ensino em São Paulo, consultar o livro de REIS FILHO, Casemiro dos. A
educação e a ilusão liberal. São Paulo, Cortez, Autores Associados, 1981. Especialmente o
cap. 3.
nos sistemas escolares de vários Estados.3 Tais reformas devem ser consideradas como
parte da intensa inquietação política e intelectual que agitava o país. O movimento
modernista, deflagrado simbolicamente pela Semana de Arte Moderna de Sao Paulo, em
1922, difundira-se entre escritores e artistas de outros centros, como o Rio de Janeiro
e diversas capitais estaduais. Em Minas, além de Belo Horizonte, também na pequena
Cataguases.4 O tenentismo representava o anseio, expresso pela jovem oficialidade do
Exército, de maior representatividade do poder nacional e superação das práticas clien-
telísticas por parte das oligarquias regionais. Estas, com suas contradições internas, en-
tram em crise de legitimidade. A fundação do Partido Comunista, a Coluna Prestes
(1924) e as lutas sindicais por melhores condições de trabalho configuram um nascen-
te processo de mobilização de massas.
É nesse quadro, sumariamente exposto, caracterizado pela articulação política das
classes médias urbanas como dado fundamental, que surge, entre as elites, os projetos
modernizadores da educação. Aparecem em meio a uma crença entusiástica nos efeitos
da escola sobre a sociedade em geral.5
A reforma do ensino primário e do ensino normal, proposta por Francisco Campos
em nome do governo Antônio Carlos, era das mais ambiciosas. Dela se ocupará um dos
capítulos deste trabalho.
Veja-se o texto clássico de FRIEIRO, Eduardo. O Diabo na livraria do Cônego. Belo Horizonte,
Itatiaia, 1958.
Razão pragmática e razão humanística
Confluência: a universidade
O caminho percorrido
Tempo de formação
Para maiores informações sobre a família Sales, de Lavras, consulte-se o livro de CARVALHO.
Daniel de. Francisco Sales: um político de outros tempos.
Cf. SEQUEIRA, Francisco Mário Bueno de (Cônego). Firmino Costa (discurso). Belo Horizon-
te, EMIL, s.d. A genealogia da família Costa Pereira foi elaborada recentemente por um sobri-
nho de Firmino Costa, o eng. Ismael Costa Pereira, que teve a gentileza de nos fornecer uma có-
pia. Fez acuradas pesquisas sobre seu bisavô, junto ao consulado holandês em Belo Horizonte, a
fim de rastrear a existência dele no Brasil.
21 anos depois. Nasceram antes quatro de suas cinco irmãs: Josefina, Carminha, Ernes-
tina e Francisca; todas elas vieram a casar-se. Nasceram depois dele os irmãos João Ba-
tista, Delminda, Abdon e Antônio José, este em 1878. O pai e a mãe de Firmino fale-
ceram, respectivamente, em 1897 e em 1899.
Supõe-se que tenha sido relativamente rápida a passagem de Costa Pereira por ter-
ras fluminenses, de tal modo ele se encontrou sempre vinculado a Lavras. A razão da ida
para tão longe foi a saúde da esposa. Dona Maria Custódia. Um médico ilustre, o Dr.
Augusto Silva, a ser citado outras vezes no presente trabalho, aconselhou o marido a le-
vá-la para o litoral a fim de que banhos de mar auxiliassem o tratamento de sua debili-
dade física. O conselho foi acatado. Durante a permanência em Niterói é que nasceu
Firmino Costa, em 1869.3
Ele próprio casou-se aos 29 anos de idade (em 1898) com Dona Alice Bueno da
Costa, de família tradicional do lugar. Era ela descendente de Amador Bueno, o céle-
bre paulista, "por via de um dos filhos deste - Diogo Bueno da Fonseca".4 Este últi-
mo e seu irmão Francisco participaram do grupo de paulistas que desbravou essa re-
gião mineira no início do século XVIII; são tidos como fundadores da capela inicial de
Campo de Sant'Ana das Lavras do Funil.
Firmino e Alice tiveram oito filhos: Aguinaldo, Aurélio, Lucilia, Lívia, Júlia, Alice,
Marta e Maria.5
O meio doméstico marcou bastante a personalidade de Firmino. A respeito de duas
pessoas deixou testemunho eloqüente: o pai e o tio Firmino Sales. Sobre este último
afirmaria: "Foi um homem de ação e de vontade. Educado na escola do dever e do tra-
balho, acostumado desde a infância a uma vida austera, sem conhecer nenhum dos ví-
cios do mundo, ele imprimiu à sua existência um tal caráter de seriedade e de energia
que a todos inspirava confiança e respeito. Se houvesse cursado estudos regulares, te-
ria sido, o tenente Firmino Sales, um extraordinário homem de governo, com a pronti-
dão de resolver e executar, com a sua admirável dedicação ao trabalho, com seu eleva-
do tino administrativo."6
Um dos motivos de admiração era o fato de esse austero fazendeiro haver tomado a
iniciativa de dotar Lavras, em 1884, de abastecimento de água potável. Além de ter ad-
Informação dada por Ismael Costa Pereira, em sua residência, em Belo Horizonte.
4
Cf. SEQUEIRA, Francisco Maria Bueno de (Cônego), Op. cit.
Aguinaldo Costa foi juiz municipal em Belo Horizonte; era bacharel pela turma de 1924, na
Faculdade de Direito da mesma cidade; essa turma foi a mesma de Gustavo Capanema, orador
da colação de grau. Aguinaldo Costa foi também professor no Rio de Janeiro. Casou-se com D.
Maria Bueno Costa. Aurélio Costa era cirurgião dentista; exerceu por pouco tempo essa profis-
são, passando a ser procurador de partes; vítima de prolongada enfermidade, faleceu em idade
avançada. Lucilia Costa, também já falecida, foi professora em Lavras e funcionária da antiga
Escola de Aperfeiçoamento. Lívia Costa Gulikers, viúva de João Gulikers, é professora, apo-
sentada como diretora de Grupo Escolar em Belo Horizonte. Júlia Costa Pirillo, funcionária
aposentada, é viúva de Antônio Pirillo. Alice Costa, antiga servidora da Escola de Aperfeiçoa-
mento, trabalhou longos anos na secretaria da Escola Técnica de Belo Horizonte, estando agora
aposentada. Marta e Maria são falecidas; a primeira, doente, faleceu de acidente aos 12 anos de
idade. De ligação anterior a seu casamento, Firmino Costa possuía outro filho, Samuel, também
já falecido. Este foi amparado pelo pai, que o encaminhou na educação e no trabalho. Era pes-
soa altamente estimada em Belo Horizonte.
6
VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 13, p. 3.
ministrado o serviço, com a ajuda do Capitão Costa Pereira, chegou a adiantar recursos
à Câmara Municipal, para financiar as obras, sem cobrar quaisquer juros.
Quanto ao pai, a admiração de Firmino Costa se fundava em várias razões. Encare-
cia nele o amor ao trabalho e a dedicação à família, fazendo com que desse aos filhos
a melhor educação possível à época, e o espírito comunitário: além das obras mencio-
nadas acima, ajudou na construção de um cemitério. Ao lado dessas qualidades, pos-
suía interesse e aptidão para os trabalhos manuais. Comerciante e pequeno agricultor.
mantinha oficinas de marcenaria e selaria para os próprios serviços dos respectivos esta-
belecimentos. Foi observando esse trabalho que Firmino Costa haveria de inspirar-se
para construir, mais tarde, as oficinas de formação técnica que instalou junto às salas
de aula do grupo escolar de Lavras.7
Outro traço da personalidade do Capitão fascinava o filho:o das convicções políti-
cas que sempre sustentou. Participara da Revolução de 1842, sendo com certeza o
combatente mais jovem. Fracassado o movimento, fora levado para Lavras por um dos
dirigentes revolucionários, o lavrense Jorge Silva, recomeçando a vida como simples
lavrador. Num escrito da maturidade ou do limiar da velhice. Firmino alude ao pai co-
mo "liberal extremado" naturalmente em confronto com a moderação do filho.8
Falando a respeito da origem do pensamento político paterno afirmava, já em
1907, que ele, "ao doce aconchego da família preferia as provações, azares e perigos
dos combates, onde ia servir suas idéias liberais". Acrescenta que, "com a delicada
compleição, mal podia ele empunhar a carabina, e por ser ainda inexperiente da vi-
da, dobrados sofrimentos deviam sem dúvida aguardá-lo nos campos de luta". 9
Aduz, finalmente, sem mencionar o vínculo de parentesco que os unia:
"Conhecemo-lo mui de perto: seu caráter era inquebrantável, constante e intenso
o seu amor ao trabalho, sincero e entusiástico o seu devotamento aos princípios li-
berais. E são essas as armas de confiança para alcançar na vida o verdadeiro triunfo.
que consiste sobretudo em ser útil à sua família e ao meio social."1 °
O meio social a que se refere sempre o autor dessas linhas é, em primeiro lugar, a
própria comunidade em que vive e sobre a qual voltaremos mais detidamente depois.
Firmino Costa realizou seus estudos preparatórios em São Paulo. Preparatórios,
palavra hoje em desuso, correspondia ao ensino secundário da época. Signitica o ter-
mo, segundo o Novo Aurélio, "estudos prévios para efeito de matrícula nos cursos
superiores e em alguns especiais". Na verdade, o educador lavrense nunca seguiu cur-
sos superiores: parou nos preparatórios, talvez por causa dos encargos familiares.
Nao dispomos de informação precisa sobre a época desses estudos. Em 1889, aos
vinte anos, encontrava-se em Lavras, tendo participado, em novembro, de manifesta-
ções populares de regozijo pela proclamação da República. Colaborava na imprensa
local e pronunciou discurso sobre a implantação do novo regime. ' '
11
' VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 33, p. 2.
Exerceu funções públicas - de secretário da Cámara Municipal — na qual desem-
penhou também mandato de vereador. Antes de se tornar um mestre-escola, foi so-
bretudo comerciante, atividade que parece tê-lo marcado de forma indelével. É pro-
vável que, com a morte do pai e ao tempo do próprio casamento, haja assumido a
atividade comercial.
Seus professores, em São Paulo, foram o arcediago Francisco de Paula Rodrigues,
Augusto Freire da Silva e o Dr. John Melchert.12
O primeiro deles nasceu na capital paulista em 1840, sendo quase trinta anos mais
velho do que seu aluno mineiro. Veio a falecer em 1915, aos 75 anos de idade. Orde-
nou-se, depois dos estudos, no Seminário Episcopal de São Paulo e obteve, em Roma.
o título de doutor. Num chamado Curso Anexo lecionou Filosofia, Francês, Retórica,
História Universal e História do Brasil. Que disciplina ou disciplinas terá cursado com
ele Firmino Costa? Cognominado Padre Chico, esse sacerdote era um famoso latinista.
Publicou textos religiosos e sermões, marcados todos pelo caráter apologético. Sua ca-
pacidade intelectual é muito elogiada pelos letrados paulistas que lhe foram contem-
porâneos. É provável que Firmino Costa haja estudado com ele Francês e História.
Outro professor, Augusto Freire da Silva, era natural de São Luis do Maranhão, on-
de nasceu em 1836. No Rio, estudou arte taquigráfica: pretendia ser taquígrafo, certa-
mente no Parlamento ou em algum tribunal. Por influência de um amigo, transferiu-se.
entretanto, para São Paulo, tornando-se subdiretor do Colégio Ipiranga. Exerceu ali o
magistério. Mais tarde formou-se em Direito, passando à função de magistrado. Freire
da Silva compôs diversos manuais didáticos na área da gramática e da linguagem.13
Firmino Costa refere-se a seu professor de Português, cujos ensinamentos conside-
rava insuficientes, do ponto de vista metodológico. como a referência é ao autor de
uma gramática, com quase tôda a certeza se trata de Augusto Freire da Silva. Diz o
antigo aluno:
"Quando eu era estudante de língua portuguesa, tive um professor competente e so-
lícito, autor de uma ótima gramática. Nem por isso eu me contentava com sua orienta-
ção didática, sentindo que havia alguma coisa de inconsistente nos pontos basilares de
seu ensino.
Mais tarde, tornando-me professor de português, continuei insatisfeito com a orien-
tação que podia imprimir ao ensino da língua. Consultei vários compêndios de meto-
dologia, mas. sem atinar com o que faltava, permaneci nas minhas dúvidas.
Só ulteriormente consegui solucionar as dúvidas e daí surgiu a idéia de compor uma
gramática baseada em um novo princípio.
Era este o sentido das expressões como verdadeira base do estudo da língua." 14
É importante observar o espírito crítico que impulsionava, desde o início, sua sede
de aprender: noutras palavras, a inquietação intelectual.
12
A informação sobre os professores de Firmino Costa em São Paulo consta de resumo biográfico
divulgado pelo Museu de Lavras.
13
As informações biográficas de Francisco de Paula Rodrigues podem ser encontradas no Dicioná-
rio de Sacramento Blake, v. 1; também em Luis Correia de Melo, Dicionário de autores paulistas
e no volume da Revista da Academia Paulista de Letras comemorativo aos 70 anos da institui-
ção (texto referente à cadeira nº 11). Sobre Augusto Freire da Silva, consulte-se Blake, Op. cit.
14
Aula transcrita na Revista do Ensino, 4 (36), ago. 1929.
O hábito do estudo sistemático era anterior à experiencia em Sao Paulo; com ela,
porém, consolidou-se definitivamente. Firmino Costa procurou, a partir de então,
incutir esse mesmo hábito nas outras pessoas, amigos, alunos e colegas.
Numa de suas reminiscências, no fim da vida, fala do assunto:
"Outrora, chegado de S. Paulo, onde terminara os preparatórios, convivi na minha
pequenina cidade com um amigo, nós dois ainda rapazes, e tanto lhe falei sobre o valor
do estudo, que ele resolveu estudar consigo mesmo, tornando-se hábil advogado, sem
jamais ter seguido o curso jurídico. Os nossos coloquios diários deram-lhe energia bas-
tante para dedicar-se, sozinho, à ciência do direito."15
Analogamente ao pai, Firmino Costa formou sua mentalidade, na maior parte do
tempo, por meio da leitura solitária. com a diferença de que os alicerces que foi er-
guendo sustentaram depois uma carreira intelectual. O pai, revelaria depois, desejava
que ele seguisse a "carreira das letras"; acabou seguindo a de mestre-escola.1 6
A mais antiga lembrança que conservou da leitura foi a do contato, ainda menino,
com um livro que o deslumbrou, Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano. "Esta-
va chuvosa a noite" lembra, "e mandaram-me levar uma carta ao correio. Saí às pressas,
sem fazer caso da chuva, e voltei logo para engolfar-me novamente no precioso roman-
ce".
O hábito da leitura foi-se tornando disciplinado, exigindo anotações, e foi-se am-
pliando quanto aos interesses intelectuais. Ao proferir uma aula em Belo Horizonte, no
ano de 1929, recorre às anotações que fizera num livrinho de apontamentos bem anti-
go, isto é, de 1886, quando contava apenas dezessete anos de idade. Tratava-se de uma
citação extraída das Memórias de Goethe, sobre o fato, ocorrido com alguém, da re-
núncia da vocação: "Só a humanidade inteira é o verdadeiro homem;o indivíduo, para
ser feliz e contente, deve ter a coragem de sentir-se parte desse todo."
Embora a palavra hábito apareça, às vezes, na verdade era o prazer da leitura que
buscava. Em muitas passagens de seus escritos, tal sensação se evidencia de modo ine-
quívoco.
Se a leitura foi solitária — no sentido de ter sido autodidática -, nem toda a medita-
ção em torno dos livros foi também solitária. Teve a sorte de encontrar, mesmo no fun-
do da Província, alguns amigos mais velhos e experimentados, com os quais pôde man-
ter proveitoso intercâmbio. Eram pessoas que haviam acumulado sabedoria - mais do
que simples conhecimentos - e a partilhavam com o então jovem conterrâneo.
Conforme ressalta, "sem haver alcançado diploma de curso superior", entregou-se
com afinco ao estudo. Atribui isso, em grande parte, às suas relações, "desde a moci-
dade, com ilustres intelectuais, cuja conversação instrutiva" encaminharam-no para
o amor das letras. Ao evocá-lo, está discorrendo sobre a importância da conversação,
da palestra bem conduzida, para o enriquecimento do espírito. "Não fossem essas ho-
ras inolvidáveis que eles me concederam com o encanto e o fulgor de sua prosa, e eu de
certo ter-me-ia deixado ficar indiferente ao convívio dos livros." 17
Dentre as pessoas que ele menciona, estão o Dr. Augusto Silva, médico de grande
competência e líder comunitário em Lavras, autor de livros inéditos de ficção e de tra-
Trajetória profissional
I8
A referência a Eurico, o Presbítero, encontra-se em artigo na Revista do Ensino 4. mar. 1929.
Sobre seu amigo Padre Licas, veja-se o artigo Mons. Aureliano Brasileiro, que publicou no Minas
Gerais. Belo Horizonte, 1936.
Daí para frente, até às vésperas de seu falecimento, em 1939, andou pelas salas de
aula e pelos gabinetes da administração escolar. Quis ser apenas um professor.
Em janeiro de 1907, foi nomeado por João Pinheiro, com a chancela do Secretário
do Interior, Carvalho Brito, para dirigir o Grupo Escolar de Lavras. Durante alguns me-
ses esteve preparando as instalações do estabelecimento, sediado em dois casarões do
século XIX. O Grupo, mais tarde chamado Firmino Costa, ainda hoje funciona no
mesmo local.
Deu-se a inauguração a 13 de maio de 1907, num ambiente festivo. Tratava-se, afi-
nal, do terceiro grupo escolar a funcionar em Minas. O diretor profere o principal dis-
curso da solenidade: ressalta o significado daquele ato e pede a cooperação de todos,
principalmente dos pais de família, para que a nova modalidade de ensino prosperasse
de modo adequado na cidade, em benefício dos educandos e da própria vida social de
Lavras.
O Dr. Gammon insistiu com ele para que dividisse o seu tempo entre a administração
do grupo e sua atividade docente no Instituto Evangélico. A idéia não foi aceita, pois
pretendia dedicar-se inteiramente, na fase inicial, às tarefas de implantação e consolida-
ção da nova escola.
A formação pedagógica do professor lavrense era inteiramente autodidática. Uma de
suas fontes, citada desde o início, era a revista especializada L'Educateur, que se edita-
va em Lausanne, na Suíça. Ele a assinou e a consultava com freqüência. A informação
do que se passava no mundo, inclusive nos meios especializados da educação, era obti-
da pela quotidiana leitura dos jornais. Firmino era notavelmente bem informado. Co-
mo indício do fato, recorde-se que mencionou e traduziu os princípios do escotismo,
pouco tempo depois de haver o Coronel Baden-Pawell instituído esse movimento edu-
cativo na Inglaterra.
Nos primeiros números de Vida Escolar, o boletim do Grupo de Lavras, editado
quinzenalmente e durante dois anos, aparecem outros sinais desse excelente nível de
informação do diretor, cujas reflexões e relatos, muitos recolhidos depois em livro, co-
meçam também a ser publicados.
De 1907 a 1925, permaneceu como diretor do Grupo Escolar de Lavras. Nele se in-
troduziram várias inovações como a caixa escolar, o ensino profissional ligado ao curso
primário, a formação de normalistas rurais, a assistência médico-odontológica a alunos
pobres, a arborização do terreno da escola, a biblioteca escolar, as festas comunitárias
com a participação dos alunos e da população da cidade.
Simultaneamente e na medida em que os trabalhos de diretor do Grupo permitiam,
Firmino Costa colaborou com os demais estabelecimentos de ensino de Lavras, espe-
cialmente com o Instituto Evangélico e com a Escola Normal Nossa Senhora de Lour-
des. Organizou, para esta última, a prática profissional. As normalistas faziam estágio
no grupo escolar sob a orientação do diretor. Lecionou também Literatura naquele es-
tabelecimento mantido pelas Irmãs da Piedade.
A cada ano mandava ao Secretário do Interior o relatório do grupo. Alguns foram
publicados em opúsculo; todos o foram pelas colunas do órgão oficial do Estado, o
Minas Gerais. Esse e outros fatos fizeram com que Firmino Costa se tornasse conheci-
do nos meios pedagógicos e administrativos.
Com o falecimento, em 1924, do presidente Raul Soares, foi eleito Fernando de
Melo Viana, antigo Secretário do Interior que exercia as atividades de advogado e de
magistrado, para terminar o mandato. O novo governante conhecera o Grupo de Lavras
deixando no respectivo livro de visitas uma impressão lisonjeira. Em 1925, convida
Firmino Costa para o cargo de reitor do internato do Ginásio Mineiro, que se reinaugu-
rava em Barbacena. Durante cerca de dois anos, vive uma experiencia diferente: a de di-
rigir estabelecimento de ensino secundário para rapazes. Consagra-se a essa nova missão
e obtém bons resultados.
Desde o início de sua carreira pedagógica vinha preocupado com o ensino normal e
com a necessidade de profissionalizar o magistério. Nos tempos da Vida Escolar, come-
çara a discutir o tema, focalizando sempre a necessidade da dupla formação dos candi-
datos à docência primária: nos conteúdos dos programas de conhecimentos a transmitir
e na técnico-profissional.
Quando se instala o governo Antônio Carlos, o reitor do Ginásio de Barbacena é
convidado a proferir conferências pedagógicas em Belo Horizonte. Quem o convida é
o novo Secretário do Interior, Francisco Campos. Essa iniciativa era apenas o prelúdio
de uma convocação a ser feita algum tempo depois. Firmino Costa é chamado a Belo
Horizonte, onde permanecerá, com pequenos intervalos de ausência, até 1939, quan-
do falece. Na capital, irá colaborar na reforma do ensino, debatendo os temas pedagógi-
cos. Logo depois foi nomeado diretor-técnico do Curso de Aplicação da Escola Normal
de Belo Horizonte, setor correspondente à parte de formação técnico-profissional das
normalistas. Posteriormente, assumia a direção geral do estabelecimento, cargo em que
permanece até sua aposentadoria compulsória, aos 68 anos de idade, em 1937. Nesse
cargo exerceu ação inovadora do ponto de vista das técnicas pedagógicas e da organiza-
ção escolar. Na mesma época, esporadicamente, leciona Português nos colégios Isabela
Hendrix e Batista Mineiro, ambos de orientação evangélica, sendo o primeiro uma das
mais antigas instituições mantidas pela Igreja Metodista no Brasil. No fim da vida, de-
pois de aposentado como diretor da Escola Normal, exerceu apenas a função de inspe-
tor de ensino no Colégio Isabela.
Na década de 30 torna-se um nome nacionalmente conhecido nos meios educacio-
nais. É o período em que publica seus trabalhos mais importantes de filologia portu-
guesa e de doutrina pedagógica. Participa de reuniões especializadas; representa, por
exemplo, o governo de Minas numa das Conferências da Associação Brasileira de Edu-
cação. A convite da Professora Helena Antipoff pronuncia conferência sobre Pestaloz-
zi.
Traços de personalidade
Por todos os lugares por onde andou, deixou sempre recordação indelével. Nas remi-
niscências de antigos alunos e colegas, a invocação do mestre é sempre carinhosa.
Suas aptidões para o ensino — para o contato positivo com crianças, adolescentes e
jovens — foram cuidadosamente cultivadas por ele. Energia, polidez, tolerância, perse-
verança, simplicidade: eis algumas virtudes que menciona com freqüência e que gosta-
ria de ver cultivadas pelos outros. Ele próprio as possuía em alto grau e de modo cons-
ciente.
Sendo um defensor pertinaz da profissionalização do magistério, teria que buscar es-
sa condição para si mesmo. Exercitava suas tarefas com a seriedade de um artesão con-
centrado sobre o trabalho. Isso o levava a uma disciplina constante nas leituras, nos
contatos, nos horários de trabalho, provavelmente restringindo outras atividades so-
ciais.
Sua pessoa é lembrada assim por um dos primeiros alunos a freqüentar o Grupo,
fundado em 1907: "Estatura mediana, olhos azuis, cabelo alourado, Firmino era pes-
soa de humor sempre igual, parecendo feliz; mas, de vez em quando, uma nuvem de es-
pessa melancolia ofuscava-lhe o olhar, tornando-o taciturno. Aparecia à porta de nossa sa-
la, com as mãos cruzadas nas costas, lançava sobre a classe um olhar meigo e paternal e,
sem dizer uma só palavra, desaparecia, rumo às outras classes. Ninguém, entre nós ou-
tros, sabia onde esse homem havia aprendido tanto nem onde havia haurido tamanha
carga de afeto e carinho."2 °
Outros testemunhos falam de seu senso de humor. Fazia-o transparecer nas aulas e
nas reuniões. Era um sentimento espontâneo, destituído de sarcasmo. Nas aulas de prá-
tica profissional, junto às normalistas de Lavras, fazia comentários jocosos sobre os pro-
gramas escolares. Contava casos ocorridos na família, especialmente as peripécias co-
merciais de um irmão. Muito bem informado, pelo hábito da leitura diária de jornais,
ilustrava sempre suas exposições com o relato de ocorrências interessantes.2 l
Dotado de grande dose de entusiasmo, era capaz de transmiti-lo a auxiliares e alu-
nos. Assinale-se, ainda, o sentido do dever — nos planos familiar, profissional, da soli-
dariedade humana - como atributo muito arraigado em seu espírito. Nesse sentido,
sua trajetória de servidor público foi um constante testemunho. Por vezes, esse traço
cor purificava-se em verdadeiro senso de missão a cumprir.
Sua modéstia — ausência de presunção — não o impedia de aquilatar bem suas qua-
lidades pessoais, seu valor. Por fim, o espírito independente diante do poder e da rique-
za.
Outras características serão postas em evidência depois. Foram as que marcaram
seus últimos dias de vida.
Dentre outras fontes, o diário da estagiária (normalista do Colégio N. Sra. de Lourdes), d. Ju-
dith. Correa Dias.
Escritos e sentimentos
A obra escrita
Proporemos, neste capítulo, um panorama dos trabalhos escritos por Firmino Cos-
ta. Publicou diversos livros desde 1913 até meados da década de 30. Deixou dois volu-
mes inéditos.1 Sobre cada um dos volumes serão oferecidos os elementos informativos
básicos, aprofundando-se o exame de certos aspectos nos capítulos subseqüentes.
Antes da divulgação do primeiro livro, colaborou com a imprensa de Minas, tanto
na terra natal, como em Belo Horizonte. Os primeiros textos vindos a público surgi-
ram, certamente, na imprensa de Lavras.
Destaque-se, nesse sentido, a criação do periódico Vida Escolar. Publicou-se, du-
rante dois anos, circulando apenas nos períodos letivos. Saíram 34 números, entre
o dia 19 de maio de 1907 e o dia 15 de novembro de 1908. A assinatura anual custava
dois mil réis, com pagamento adiantado. Constava o jornal de quatro páginas, havendo
as seguintes seções fixas referentes a acontecimentos, locais ou não, de interesse do en-
sino: notícias; comemorações; história de Lavras; grupo escolar; corografìa de Lavras.
Além disso, publicava comentários pedagógicos. Estes eram quase sempre de autoria do
próprio diretor do jornal e do Grupo; alguns foram assinados por outras pessoas: os
professores Jacinto de Almeida e Suzana Alvarenga e o deputado Zoroasto de Alvaren-
ga. Vários escritos de Firmino Costa aí editados foram reproduzidos depois em seus li-
vros sobre questões pedagógicas. Alguns exemplos: Disciplina Escolar, Freqüência Es-
colar, Trabalhos Manuais, A Bem da Infância, Ensino Profissional, A Pressa, Vosso Fi-
lho. Curioso documento foi estampado pelo pequeno jornal: uma carta do Visconde
de Castilho a Camilo Castelo Branco a respeito dos problemas da instrução pública;
o documento era então inédito. uma cópia foi cedida a Firmino Costa por seu conter-
râneo Gastão Vilela.2
Também na Vida Escolar saíram os primeiros relatórios, que se tornariam famosos,
dirigidos ao Secretário do Interior de Minas, a respeito de sua ação à frente do grupo es-
colar. Davam conta, freqüentemente, das iniciativas e inovações postas em prática, as-
sim como veiculavam opiniões do diretor do estabelecimento a respeito de política
educacional.
No Minas Gerais, encontramos um artigo, de 1908, a respeito das mudanças do
programa da cadeira de Português no Ginásio Nacional, o Pedro II, que muda de nome
no início do período republicano, para voltar depois à antiga denominação. O artigo
contém críticas à nova proposta do programa.
Em 1913 edita, pela Imprensa Oficial do Estado de Minas, um volume intitulado O
Segundo o informe biográfico preparado pelo Museu de Lavras, Firmino Costa deixou dois volu-
mes inéditos: Memorial de linguagem c Edifício da vida.
2
VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 9/10, p. 2.
Ensino Popular: Vários Escritos. Compõe-se de 108 páginas.
O prefácio se abre com um pensamento de Emerson: "Não tendes que contar-me
em palavras e por títulos os livros que haveis lido. Deveis fazer-me sentir que página
haveis vivido." Queria dizer que as páginas colocadas ante o leitor eram resultado de
uma prática ao longo dos seis primeiros anos de funcionamento do grupo escolar. O
cerne do livro, afirma, reside no relevo que dá "à instante necessidade de cooperação
do povo e do governo para tornar a escola primária a instituição mais bem organizada
e querida no Brasil. Relatará os esforços para uma educação completa, preparando os
alunos para a vida profissional e a vida social".3
Abrange o volume alguns textos já divulgados na Vida Escolar: o discurso inaugural
do grupo, o relatório do ano de 1912 e outros, escritos especialmente para o volume.
uma das novidades é uma referência ao nascente movimento escotista, traduzindo-se o
decálogo dos escoteiros.
Pode-se dizer que O Ensino Popular contempla aspectos do conteúdo das principais
disciplinas do ensino elementar —Português,Geografia, História, Trabalhos Manuais - e
também a metodologia considerada mais pertinente à transmissão desses conhecimen-
tos às crianças. O autor trata ainda do ambiente da escola, das atividades extra-classe e
da avaliação escolar. Começa a discutir a formação profissional do professor primário,
tema que irá desenvolver durante toda a sua carreira docente.
O livro interessava aos professores em geral, especialmente aos mineiros, e também
às autoridades do ensino. A principal utilidade desses escritos residia na discussão do
lado prático da implantação dos novos dispositivos legais introduzidos (1906) pelo go-
verno João Pinheiro. Firmino Costa começava a "dar o tom" da reforma. Ganham rele-
vo os relatos de suas experiências didáticas (aula utilizando material da imprensa, por
exemplo), de administração (implementação da Caixa Escolar), além de questões mais
amplas, como as do método intuitivo e do ensino simultâneo, discutidas à luz de atenta
observação da realidade.
Em 1920, ainda pela Imprensa Oficial, lança sua Gramática Portuguesa. Resultante
de pesquisa eminentemente pessoal, o livro trazia alguns modos novos de perceber a
língua falada e escrita no Brasil. Sob mais de um aspecto, trata-se de uma concepção
original de gramática. Não se limitava a expor doutrina ou doutrinas sobre a língua cul-
ta, mas buscava inferir normas e tendências com base em abundante exemplificação,
retirada dos clássicos portugueses e de autores modernos, especialmente brasileiros.
Nem todos eram consagrados. Firmino Costa chegou a citar textos inéditos (de ficção)
de seu conterrâneo Augusto Silva, considerado pelo gramático como um bom estilista.
Desse, assim como dos demais livros dedicados à linguagem, faremos análise crítica
mais detida no capítulo correspondente a esse assunto.
Terceiro de suas obras, o livro O Ensino Primário reproduz muitos dos temas ante-
riormente versados; é quase uma edição ampliada de O Ensino Popular, onde acrescen-
ta algumas matérias novas. uma das idéias aí contidas, a ser depois desenvolvida em
livro próprio, é a do calendário escolar:em cada dia do ano, lembrava-se, na escola, uma
efeméride correspondente à data, acompanhada de um pensamento que houvera sido
enunciado pela personalidade histórica evocada. Lembravam-se, de preferência, os fei-
tos do mundo intelectual e do mundo científico; às vezes os do mundo político; rara-
mente ocorrências militares. O Ensino Primário (Belo Horizonte, Imprensa Oficial,
1921) encerra-se com o calendário escolar do Grupo de Lavras. Esse texto já fora enca-
Dos setenta anos que quase completou (morreu três meses antes de alcançá-los), Fir-
mino Costa viveu vinte deles no periodo monárquico e cinqüenta no republicano.
Acompanhou diversas mudanças políticas que tiveram reflexos no campo que particu-
larmente lhe interessava: o da educação. Foi, assim, uma testemunha qualificada dessas
oscilações; no plano regional, e isso ficará patente neste trabalho, influiu bastante e de
modo positivo no pensamento pedagógico.
Tinha uma visão liberal do mundo. É muito provável que a tradição doméstica lhe
tenha pesado para que houvesse adotado tais idéias. O adjetivo liberal aplicado a perso-
nalidades da vida pública e a atos das pessoas nas relações sociais, tinha uma conota-
ção elogiosa quando ele o usava.
Quanto a Minas, era essa a tradição que prezava. Assim o transparece, em sua crôni-
ca de Lavras, ao referir-se à participação dos líderes locais na Revolução de 1842; ou,
noutro plano, em suas referências ao papel de João Pinheiro na vida política do Es-
tado.
É evidente que se tornou republicano. Encarou com esperança a implantação do
novo regime, tal como ocorreu a muitos intelectuais de sua geração. Admirava, como
bom ilustrado, as qualidades de Dom Pedro II, mas era também muito crítico no que
tange à qualidade do ensino existente antes da República. Especialmente criticava o
caráter autoritário das relações professor/educando na velha escola brasileira.
Na perspectiva ilustrada, atribuía papel político decisivo à escola. "É ela, a instru-
ção, e não as formas de governo, que implanta a verdadeira democracia, fazendo vicejar
a justiça e a liberdade! Vede-a fulgurante lá no pequenino reino da Dinamarca e na pe-
quenina república da Suíça, irradiando para o mundo mais torrentes de luz, muito mais
do que tôda a claridade esparzida pelo maior império da Europa ou da Ásia! Vede-a,
através da história da humanidade, na sua forma genuína que é a educação popular,
séculos e séculos desprezada, apesar do ensino público e intuitivo de Jesus, 'o mestre
único', como lhe chamou Pestalozzi, vede-a, a escola do povo, que ressurge ao bafejo
da Reforma e da Renascença, e com o seu farol triunfante por entre mil tropeços, vem
rasgando e varando as trevas, abrindo caminho para a civilização, que hoje tanto nos
maravilha e deslumbra com seus inventos assombrosos!"4
Esse trecho inclui-se num discurso, de paraninfo, lido no começo deste século. O
tom candente de eloqüência, raro em textos de Firmino Costa, exprime bem o seu
entusiasmo pela instrução pública e pela sua perspectiva histórica.
Há fortes indícios de que tenha sido igualmente um militante abolicionista. Essa
atitude da mocidade terá deixado suas marcas. Mostrava-se muito atento ao destino das
crianças de cor no campo do trabalho. Revoltava-se contra o tratamento cruel que mui-
tas pessoas davam aos seus protegidos (meninos empregados para serviço doméstico)
nas casas de família em Lavras. Citou, tirando dele uma lição, o comentário de Rui
"Um pobre pretinho, por exemplo, freqüentava o Grupo, onde ia aprendendo com vantagem.
quando sua protetora o tirou da escola para ele ficar em casa pajeando criança. Por essa forma.
com umas roupinhas baratas e com uns pratos de comida, dá-se ao coitado do pretinho uma
proteção valiosíssima, fazendo dele um analfabeto". (Vida Escolar, n. 16, 15 dez. 1907).
Discurso inaugural. Vida Escolar, n. 2, 15 maio 1907, reproduzido em outros locais. Trata do
mesmo assunto no artigo Freqüência do Grupo, publicado também na Vida Escolar.
Cartas são datadas por ele do Rio, em 1937, como uma enviada a Cristiano Machado, Secretário
da Educação de Minas, lembrando a comemoração do 309 aniversário do grupo de Lavras; en-
contramos também uma dedicatória a Agripino Grieco, no exemplar de Vocabulário Analógico
que lhe foi oferecido, datada do Rio em 1937; este volume se encontra agora na biblioteca da
UnB, em Brasília.
Apenas um professor
Ao longo de sua extensa carreira profissional, quis ser apenas um professor. Nada
mais do que um mestre-escola. Na verdade, foi um mestre-escola altamente qualificado,
com vasto conhecimento dos conteúdos das disciplinas lecionadas no ensino funda-
mental e no ensino normal.
Na área pedagógica foi um perfeito autodidata. Nenhum conhecimento sobre educa-
ção lhe foi transmitido em cursos regulares. Muito poucos obteve ouvindo palestras e
aulas de colegas.1 '
As afirmativas acima não significam que a atividade docente tenha-se limitado à sala
de aula propriamente dita. De 1906, quando começa a lecionar no Instituto Evangéli-
co, até aposentar-se, a 28 de dezembro de 1937, passou todos os seus dias de trabalho en-
tre as paredes de escola ou perante classes de alunos ou nos gabinetes de diretor ou pe-
los corredores e saguões, acompanhando a vida escolar sob sua responsabilidade. Mes-
mo depois da aposentadoria como diretor da Escola Normal continuou, ainda, por
pouco de tempo, no trabalho de inspetor escolar junto ao Colégio Isabela Hendrix.
Os dois marcos formais da carreira de professor público — do início e do término -
são decretos dos governantes de Minas. O presidente João Pinheiro o nomeia diretor
do Grupo de Lavras e o governador Benedito Valadares o aposenta por ter atingido o
limite da compulsória, então 68 anos.
Num questionário preenchido na década de 30 (sem data. mas talvez de 1934 ou
35), ele fornece todas as informações sobre sua vida funcional. A ficha foi distribuída
Aconselhava os professores a assistirem às aulas dos colegas, num espírito de cooperação. Ele
mesmo assistiu a conferências de João Toledo, em Lavras, no Colégio Carlota Kemper.
aos servidores para que preenchessem os claros. Vinha encimada por um aviso: "Para
atender a um pedido urgente da Secretaria da Educação, peça a todos os funcionários
desta Escola o obséquio de responder ao questionário seguinte, apresentando-me tam-
bém, para o mesmo fim, os documentos abaixo relacionados." Pediam-se: título eleito-
ral, três fotografias, diploma, prova de quitação com o serviço militar e certidão de
idade fornecida pelo registro civil.
Eis os dados fornecidos, de próprio punho, por Firmino Costà, nesse questionário:
"Nome do funcionário: Firmino da Costa Pereira;estado civil: viúvo;cargo inicial: Di-
retor do Grupo Escolar de Lavras, hoje G. E. Firmino Costa; data do contrato: nao
houve; data da nomeação provisória: não houve; data da nomeação interina: não hou-
ve ; data da nomeação efetiva : 16 de janeiro de 1907 ; data da posse e exercício : 6 de
abril de 1907;se obteve abono de faltas: não;se esteve afastado em que caráter: não;se
obteve férias especiais: não; se esteve em comissão: não me lembro; se deixou de fun-
cionar com perda de vencimento: não; quais os substitutos que teve e qual o período
da substituição: nenhum; se esteve sujeito a pena: não; se mereceu algum elogio: o
maior de todos foi dar meu nome ao Grupo;se obteve permissão para mudança de no-
me: não; se obteve remoção ou permuta (em branco)." 12
Por esses dados, verifica-se que ele trabalhou ininterruptamente, sem uma só falta
ao serviço, durante longo período.
Os últimos anos de vida de Firmino Costa foram marcados por sofrimento intenso.
Ficara viúvo desde 1931. Seu segundo filho, já formado em Odontologia, foi acometi-
do de grave doença mental, de que não se recuperou nunca. Por fim, ele próprio adoe-
ce, sofrendo câncer na face, onde foi operado mais de uma vez.
São numerosos os testemunhos sobre sua coragem ante tanta adversidade. Nesses
últimos anos, manteve a mesma atitude de serenidade que caracterizou toda a sua exis-
tência.
Em certo momento venceu a enfermidade, conforme assinala seu colega e amigo Vi-
torio Bergo: "Ainda há pouco o vi e dele recebi novos alentos. A insidiosa moléstia que
o acometera, graças aos Céus debelada, menos pela Ciência do que pelo Poder Divino,
não abateu um instante seu valoroso espírito de educador. A sua inteligência, esclareci-
da e laboriosa, não teve férias nem nos dias de mais atroz padecimento. O prelo já ha-
via jorrado a mancheias mais um produto da sua longa e madura experiência pedagógi-
ca, de que, por coincidência, segundo me declarou, ainda convalescente de melindrosa
intervenção cirúrgica, havia feito seu cartão de visita, para apresentar-se ao novo Secre-
tário da Educação. Era seu precioso livro Aprender a Estudar. (...) Dois novos livros ele
está preparando." 13
E provável que a aposentadoria compulsória, afastando-o do ambiente em que sem-
pre viveu, tenha apressado seu falecimento, decorrente de uma crise de uremia. Mas
até os últimos dias continuou trabalhando, isto é, lendo, escrevendo, ensinando.
12
Documento cedido pela família Firmino Costa.
13
Vitorio Bergo, discurso de paraninfo em Lavras. 1936, citado nas notas biográficas de Aguinal-
do Costa.
Novo ensino público
No quadro republicano
1
MENEGALE, Heli. A Instrução. In: CÉSAR, Guilhermino, org. Minas Gerais, terra e povo. Por-
to Alegre, Globo, 1970. p. 138. Trata-se de excelente síntese interpretativa da evolução do en-
sino em Minas.
castigos físicos e outras crueldades. Daí o entusiasmo, entre os professores mais cons-
cientes, em torno da modernidade do novo ensino público, a partir do governo João
Pinheiro,2
João Pinheiro reforma o ensino
João Pinheiro da Silva foi eleito presidente de Minas a 7 de março de 1906 para o
quadriênio de 7 de setembro do mesmo ano a 7 de setembro de 1910. Seu vice-presi-
dente era Júlio Bueno Brandão. Este assume o governo a 25 de outubro de 1908, em
virtude do falecimento do titular do cargo, ficando no poder até a posse de Wenceslau
Brás, eleito para completar o mandato. Bueno Brandão, por sua vez, elegeu-se presiden-
te para o quadriênio seguinte.
A julgar pelo noticiário do Minas Gerais, os eleitos foram recebidos em Belo Hori-
zonte, na véspera da posse, com um entusiasmo incomum, com a presença das mais
eminentes figuras da política nacional.3 Realmente, a expectativa era intensa, talvez
em virtude do prestígio nacional alcançado por Pinheiro e pelas idéias de como gover-
nar, que expusera na plataforma de candidato e em entrevistas de repercussão. Seus pla-
nos sobre o ensino, por exemplo, constavam desses documentos e passaram depois a
constar das Mensagens ao Legislativo.
Seu Secretário do Interior, a quem estava afeto o setor de Instrução, era Manoel To-
más Carvalho de Brito, então com 34 anos, mas com intensa vida pública. O Minas pu-
blicara também a biografia oficial dos auxiliares do novo presidente. Carvalho de Brito
nasceu em Itabira do Mato Dentro. Muito precoce, "aos nove anos de idade, foi ple-
namente aprovado em todas as matérias do curso primário"; seguiu preparatórios em
sua terra e em São Paulo, para depois formar-se numa das primeiras turmas da Faculda-
de de Direito de Ouro Preto. Casou-se e trabalhou como jornalista em São Paulo, ini-
ciando, depois, sua carreira pública em Minas, onde foi eleito, sucessivamente, deputa-
do estadual e federal. A nota biográfica termina da seguinte maneira:
"É um dos que melhor assimila as idéias políticas do Dr. João Pinheiro, tendo com
ele vários pontos de contato, notadamente em ser um self-made man.
Não há muito voltou de viagens de estudos em S. Paulo e República Argentina."4
A última anotação é relevante ao ponto de vista educacional. Que estudos teriam si-
do esses? Em São Paulo, na década anterior, tinham sido introduzidas modificações no
ensino fundamental. Criou-se ali o primeiro grupo escolar.
Quanto à Argentina, temos uma notícia reveladora num livro escrito sobre aquele
país por um brasileiro, mineiro e também político: Mário Brant. Trata-se do volume
Viagem a Buenos Aires, de 1917, do qual só conhecemos a edição argentina (1980). A
notícia revela que, no Brasil, são conhecidos há anos a organização e os resultados do
ensino público argentino. Acrescenta que, quando foi convidado para ser Secretário do
Interior de João Pinheiro, Carvalho de Brito começou a estudar a organização do ensi-
no primário daquele país, "que introduziu, de volta, em Minas Gerais, com resultados
hoje notórios".
Sem uma análise comparativa da legislação, nos dois casos, seria impossível detec-
Apud MOURÃO, Paulo Krüger Corrêa. História de Belo Horizonte; de 1897 a 1930. Belo Hori-
zonte. Imprensa Oficial, 1970. p. 106.
alunos pobres que revelem aptidões, possibilitando-lhes matrícula gratuita no Gi-
násio Mineiro ou em estabelecimentos equiparados. Amparo a alunos pobres que
revelem "decidida aptidão para as artes mecânicas e as belas-artes" e cujo estudo
poderá ser mantido no país ou no exterior;
• criação de uma escola normal-modelo em Belo Horizonte e de escolas normais re-
gionais. Restrições ao aparecimento de novas escolas normais equiparadas;
• organização completa das escolas normais para formar "bons professores", ad-
quirindo os alunos "as qualidades pedagógicas indispensáveis aos que se destinam
ao magistério público";
• previsão de criação de um sistema de fiscalização e inspeção escolar.
E mais importante :
Os grupos escolares
Quanto ao curso primário, a principal novidade residia na instituição dos grupos es-
colares. Significava isso o fim, como único padrão, das escolas isoladas existentes em
todas as etapas anteriores: colonial, imperial e da própria República.
"Admira como durante anos tenham sido mantidas escolas isoladas em cidades onde
as havia em número suficiente para se reunirem em grupos. O raciocínio parecia sim-
ples: em lugar de quatro escolas isoladas, cada uma com quatro classes, poder-se-ia reu-
nir estas escolas numa só, de modo que cada professor apenas lecionasse em uma classe
ou ano escolar.
A idéia simples, afinal, firmou-se em instituição e coube ao governo de João Pinhei-
ro introduzi-la em Minas Gerais (...)."6
6
MOURÃO, Paulo Krüger Corrêa. João Pinheiro e a instrução. In: COELHO, Copernico Pinto,
org. Coletânea do Centenário de Nascimento de João Pinheiro da Silva. Revista do Insti-
tuto Histórico e Geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte, 1960. Número especial.
Quem faz esses comentários é um historiador do ensino mineiro. O fato é que essa
idéia do grupo escolar já tinha sido adotada em São Paulo, depois da República; em
Minas aparecia a expressão, pela primeira vez, num diploma legal.
Outro historiador, também emérito educador, afirma: "Desatou-se o nó de uma difi-
culdade secular, criando os grupos escolares, isto é, agrupando as escolas em que alunos
de vários planos de adiantamento recebiam ensino juntos, na mesma sala de aulas. As clas-
ses passaram a distinguir-se em quatro graus e cada professor deveria lecionar a alunos de
nível escolar igual. Disto resultou ser o mesmo número de professores aproveitado mui-
to melhor e ter-se resolvido automaticamente a velha questão do ensino simultáneo."7
Além dos grupos, persistiam as escolas isoladas em pequenas localidades ou no
meio rural. Por sua vez, criavam-se escolas-modelo, em anexo às escolar. normais, fun-
cionando como classes de aplicação.
Heli Menegale aponta os aspectos positivos e os negativos dessa legislação. Baixa-
ram-se regulamentos muito minuciosos, em face da circunstância de que os professores
nao haviam sido consultados nem treinados para as inovações. "Havia em tudo interes-
santes vestígios dos melhores processos pedagógicos da época, quanto a material didáti-
co, aprendizagem da leitura, ensino das normas gramaticais." A crítica incide, principal-
mente, sobre os rumos excessivamente simplificados que se imprimiram ao ensino nor-
mal. A escola normal-modelo demorou a ser instalada; seu currículo era deficiente, nao
incluindo matérias pedagógicas; limitava-se ao exercício de uma prática, por parte das
normalistas, junto às escolas primárias.8
Quem organizou essa legislação? Sem dúvida, na técnica legislativa, encontra-se a
presença do próprio secretário Carvalho de Brito e também nos conteúdos do regulamen-
to, por certo inspirados em contato com outras realidades sociais, durante as viagens
de observação à Argentina e a São Paulo. Artur Joviano, competente professor de Por-
tugués, terá sido, com tôda a certeza, o autor das instruções e dos programas de Leitu-
ra, Escrita e Língua Pátria. Outra pessoa que colaborou estreitamente na elaboração
do regulamento foi Cipriano de Carvalho, depois diretor da Escola Normal-Modelo,
conforme ele próprio o afirma numa comunicação apresentada em Congresso, em
1912.9
Foram alcançadas as metas da reforma? Só não o foram mais amplamente porque
o seu idealizador faleceu no meio da jornada. Em grande medida, obteve-se êxito. As
duas primeiras mensagens enviadas ao Legislativo, a 15 de junho, respectivamente de
1907 e 1908, dão testemunho dos resultados atingidos. Expressas em texto conciso
e objetivo, relatam as medidas governamentais implementadas, aí incluídas as refe-
rentes à educação.
Na primeira não existem dados, pois tudo se encontrava em fase de implantação.
Refere-se especialmente ao Decreto n° 1.960, de 16 de dezembro do ano anterior, que
regulamenta o ensino público. Acrescenta que a reforma "teve de ser completa e total
quanto aos métodos de ensino, à disciplina escolar e à fiscalização severa do serviço, es-
tando o governo cuidando das casas escolares apropriadas e do respectivo mobiliário.
Vejam-se os decretos referentes à reforma do ensino, cujos dispositivos são aqui citados, na bi-
bliografia, item "documentação".
SILVA, João Pinheijo da. Mensagens ao Congresso Mineiro. In: BARBOSA, Francisco de Assis,
org. Idéias políticas de João Pinheiro. Brasília, Senado Federal, Fundação Casa de Rui Bar-
bosa, 1980.P.351.
11
Idem, ibidem, p. 351.
cuias escolares depois da reforma. Nos 22 grupos, achavam-se matriculados 10.090 alu-
nos. Encontravam-se em fase de preparo e adaptação outros prédios destinados a gru-
pos. Registra, entretanto, o documento esta cifra preocupante: das 800.000 crianças
existentes em Minas, em idade escolar, nada menos de 700.000 encontravam-se ainda
fora das escolas. Tal verificação representa um primeiro passo no sentido do diagnósti-
co realista da situação escolar.
Pretendeu João Pinheiro vincular o ensino à formação da força de trabalho. Tinha
uma percepção idealizada dos efeitos possíveis do emprego de tecnologia agrícola. Em
um dos seus textos, chega a falar da enxada como instrumento humilhante por lembrar
a escravidão. Mal poderia prever que, quase um século depois da Lei Áurea, nos dias
correntes, continua a enxada a ser empregada. Para ele, a rentabilidade do trabalho
humano, com uso dos meios técnicos modernos, teria um papel libertador.
Costuma-se lamentar a morte precoce desse governante mineiro, sempre com o
pensamento em especulações sobre o seu provável destino, no plano nacional, talvez
como Presidente da República, o que, presumidamente, poderia ter mudado os rumos
da vida nacional e do regime republicano. Todo esse raciocínio tem muito de gratuida-
de, parecendo ser mero jogo de conjecturas.
E inegável, contudo, que João Pinheiro fez falta a Minas: sua presença teria feito
com que se completasse seu programa de governo e se lançasse mais solidamente o ali-
cerce de maior prosperidade regional.
De qualquer modo, ficaram suas atitudes como paradigmáticas de ações encetadas
algumas décadas depois. Tanto Juscelino Kubitschek como Israel Pinheiro, este filho
do antigo estadista, parecem ter-se inspirado em idéias de João Pinheiro a respeito da
expansão das forças produtivas do Estado. Ambos, em conjuntura totalmente diversa,
adotaram medidas com o mesmo cunho pragmático.
A busca de apoio
16
SILVA, João Pinheiro. O último discurso. In: BARBOSA. ¡Francisco de Assis. Op. cit., p. 395-
96.
17
Para o exame das oscilações da carreira de Manoel Tomás Carvalho de Brito, consultar, FRAN-
CO, Afonso Arinos de Melo. Um estadista da Republica. Rio de Janeiro. Nova Aguilar. 1977;
WIRTH, John D. O fiel da balança; Minas Gerais na federação brasileira. Rio de Janeiro, Paz e
Terra. 1982.
Um modo de executar
A educação popular
4
VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 1, p. 2.
6
VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 26, p. 4.
7
VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 23, p. 2.
8
COSTA, Firmino. Aprender a çstudar.p 100-5.
do sempre dados estatísticos do movimento escolar. Sugere também, num dos primei-
ros números da Vida Escolar, modificação nos critérios de substituição de professo-
res.9
Não se satisfez com as instruções do programa do curso primário e, por esse motivo,
acrescentou alguns esclarecimentos, destinados aos professores. Sobre a didática das
principais disciplinas, também escreveu. Supriu faltas: por exemplo, um programa de
higiene escolar.
Em todos os casos, foi além da letra da lei. Preocupou-se, em sua escola, com por-
menores que a outros passariam despercebidos: a arborização do largo pátio, formando
quase um bosque; a boa conservação do equipamento e rigoroso asseio em tudo; a or-
namentação das aulas.
Inovando e renovando
Se, em muitos aspectos, renovou a aplicação dos preceitos legais, em outros foi o ca-
so de inovar por completo.
0 espírito inovador manifestou-se, em primeiro lugar, quanto aos métodos de ensi-
no. Era necessário colocar a criança como centro das atenções da escola. Em Minas, co-
mo em São Paulo, a instrução primária tomara o rumo do método intuitivo. A própria
legislação era explícita quanto às novas diretrizes, como se pode verificar pela leitura
das Instruções baixadas e que se encontram transcritas em apêndice do presente traba-
lho.
0 que levou Firmino Costa a sistematizar o uso dessa atitude didática foi o seu co-
nhecimento da experiência pedagógica de outros países, adquirido por meio da leitura
da revista L'Educateur e das biografias dos grandes educadores. Contribuíram também,
para tanto, sua capacidade de observação e as conversas com o Dr. Gammon.
Alguns dos interesses didáticos especiais o acompanharam sempre: o ensino da leitu-
ra, o uso das excursões para o estudo da geografia e da história locais, a transmissão das
práticas de higiene, a compreensão da história tendo como base a experiência pessoal e
imediata dos alunos.
Outros aspectos são discutidos pelas colunas da Vida Escolar. Referimo-nos à disci-
plina escolar, por exemplo, a ser baseada no despertar do interesse e da atenção do alu-
no, conciliando-se com certo grau de liberdade e só diretiva em certas circunstâncias.
Seguiu, a respeito, certas propostas de Spencer.1 °
Mudam duas coisas, principalmente, no novo ensino em geral e, em particular, em
sua execução por Firmino Costa: a capacidade de incentivar o interesse dos alunos pelo
ambiente escolar e pelo conteúdo do aprendizado; e, associado ao precedente, a rela-
ção educador/educando, a ser definida pelo conhecimento da criança e pelo respeito
a ela.
Insistamos em que esse é o testemunho dos educadores e dos intelectuais que estu-
daram pelo antigo sistema de disciplina imposta, de ensino puramente memorizado, de
truculência dos mestres.
Gustavo Pena, escritor mineiro conhecido pelos seus relatos de viagem ao exterior,
nascido em Lavras, deixou estas impressões no livro de visitas do Grupo local:
9
VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 6. p. 1.
10
VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 4/5, p. I.
"Que extraordinária e consoladora diferença entre o passado e o presente; entre a
antiga escola do professor Teófilo — em que aprendi a 1er, nesta minha doce e adorável
terra natal - e este instituto!...
A escola moderna é a grande e nobre oficina, onde se burila o caráter, desbastam-se
as asperezas de temperamento, faceta-se o espírito, o qual, à semelhança das pedras ra-
ras, não brilha sem o trabalho de lapidação paciente. Por isso, a missão de ensinar, inse-
parável da tarefa de educar (e educar sem a brutal selvageria de outrora), requer um es-
forço abnegado e quase esgotante.
Sirvam estas linhas de testemunho de apreço e afetuosa simpatia ao que dirige, com
tanta dedicação e competência, este Grupo escolar, e aos que aqui lecionam."
Outro filho ilustre de Lavras, Zoroasto Alvarenga, deputado e depois Diretor de Hi-
giene do Estado de Minas, acompanhou de perto os trabalhos iniciais executados por
seu amigo Firmino Costa, tendo escrito também vários artigos para a Vida Escolar. Na
edição de 15 de janeiro de 1908, publica este testemunho:
"Sao apenas transcorridos oito meses que se instalou o Grupo Escolar desta cidade e
já aparecem em plena evidência os resultados brilhantes da reforma do ensino.
Até agora o menino, dado como pronto na escola pública, pouco excedia nos seus
conhecimentos ao saber assinar o nome, em letra garranchosa, de sorte a poder quali-
ficar-se eleitor. Tirante disso quase mais nada: cacarejar uma leitura, escrever ao lojei-
ro um bilhete ou uma informação ao doutor era tarefa sempre dificil.
Agora um pirralho do Grupo conversa em sujeito e predicado, faz cálculos mentais
e fala em aritmética; não desconhece a geografia e a história de sua terra e coisa de ad-
mirar! entra pelas ciências físicas e naturais, desvendando os rudimentos delas.
Um desses petizes já me falou em Colombo, Anchieta e outros da história pátria
com o mesmo desembaraço com que se ufanava de contar, olhinhos vivos e carinha ro-
sada, que uma planta tem tantas partes, que uma flor tem sépalas e pétalas, estâmes e
pistilo. Tudo isso em oito meses!
Os professores devem estar contentes com os resultados de seus esforços; os frutos
colhidos pagam que farte a energia despendida e aí hão de ficar como elemento de pro-
va da excelência do novo método aos espíritos duvidosos e ramerraneiros irredutí-
veis."11
São no mesmo sentido as impressões do Cônego Sequeira. Transcrever esses depoi-
mentos não significa endossar certa idealização do papel da escola; significa ilustrar a
afirmação de que houve mudança qualitativa na forma e no conteúdo da educação pri-
mária e que essa mudança foi mais profunda no Grupo de Lavras, o qual, de certa forma,
deu o tom do novo ensino público mineiro.
Além das inovações nos métodos, houve-as, igualmente, nas instituições escolares.
Citemos, em primeiro lugar, a organização de uma biblioteca. Em outubro de 1908, di-
zia o diretor que ela seria inaugurada em breve.
"Deverá constar a biblioteca de tratados de pedagogia; de livros didáticos e obras de
consulta sobre as matérias do curso primário; de manuais sobre artes, ofícios e indús-
trias; de enciclopédias e dicionários; de publicações concernentes ao Brasil; de obras
clássicas e literárias escolhidas; de coleções de leis e relatórios; de revistas e jornais. As
publicações recebidas em duplicata ou as que se considerarem impróprias serão permu-
tadas por outras."12
11
VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 18, p. 1.
12
VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 31. p. 1.
Relata depois as doações recebidas: a Revista do Arquivo Público Mineiro, a coleção
completa da Revista Ilustrada, de Angelo Agostini, a História Geral do Brasil, do Vis-
conde de Porto Seguro, a História Universal, de César Cantu, o Grande Dicionário La-
rousse e o Novo Larousse Ilustrado. De sua parte, afirma o diretor, irá dotar a bibliote-
ca de algumas coleções de jornais locais, "grandemente estimáveis por serem únicas." 13
Ao anunciar o melhoramento, Firmino discorre sobre a função da biblioteca, tanto
internamente para alunos e mestres, como também para a cidade.
A biblioteca foi organizada no dia 19 de dezembro de 1908. Passou a ter quatro di-
visões: Biblioteca Infantil Custódio de Souza Pinto; biblioteca do professor primário;
obras em português ; obras em língua estrangeira.
Em seu relatório de 1917, dirá o diretor: "A primeira foi fundada em 10 de outubro
de 1913 e recebeu o nome de seu ilustre doador; a segunda está sendo organizada de
acordo com o plano, que apresentei em meu relatório anterior, onde enumerei todas as
obras, em número de cem, que devem compô-la; as demais divisões sao constituídas
por quaisquer volumes, que pela sua natureza não se incluem nas duas primeiras. "com
o fim de melhor despertar nos alunos mais adiantados sua predileção à leitura, organi-
zei uma biblioteca infantil, formada de vinte obras escolhidas, para de preferência se-
rem lidas por eles, fornecendo-se-lhes a relação das mesmas, caso queiram adquiri-las
para seu uso."
Nesse mesmo relatório é possível interar-se o leitor das demais instituições escolares
ali criadas:
• Museu escolar, previsto na legislação, mas organizado segundo um projeto pes-
soal de Firmino Costa e enviado ao governo no relatório anterior.
• Assistência infantil, destinada a suprir os alunos carentes de elementos necessá-
rios ao acompanhamento das aulas. Fornecia merenda diária, distribuía roupas.
fornecia material escolar, escovas para dentes, canecas para água, "emprestava fa-
cas para descascar frutas no recreio", providenciava corte de cabelo, mantinha
farmácia escolar, promovia vacinação, fazia revista de asseio, visitava os alunos
doentes em suas casas.
Estava sendo providenciada a construção de instalações para a assistência dentária;
no mesmo pavilhão seriam instalados três chuveiros e apetrechos para corte de cabelo.
No mesmo relatório, o diretor apresenta um minucioso projeto de farmácia escolar.
• Sociedade Infantil de Estudo, uma espécie de clube de estudo e de ciência. Tinha
por objetivo desenvolver a biblioteca e o museu. Seu lema: "Saber melhor para
melhor querer e melhor agir."
• Caixa Escolar Dr. Augusto Silva, que se constituía em um fundo de assistência
aos alunos pobres, semelhante às que foram criadas na mesma época em Minas,
constituindo uma tradição até hoje vigente. A Secretaria do Interior enviava à
Caixa material escolar. Vivia de doações dos próprios alunos e de pessoas da
comunidade. O curso de Trabalhos Domésticos fornecia refeições e confecciona-
va roupas para os alunos.
• Prêmios, instituídos com o objetivo de incentivar a freqüência e aproveitamento
dos alunos. Eram doados por pessoas interessadas em ajudar e recebiam nomes.
em geral, de beneméritos da localidade.
• Comemorações de festas escolares, como o sete de setembro (ali também o Dia
13
Idem, ibidem, p. 1.
da Árvore), 15 de novembro e outras datas. 0 Dia da Cidade foi instituído pelo
grupo escolar.
Outras inovações introduzidas naquela escola se referiam à abrangência do ensino.
Além do ensino elementar propriamente dito, criaram-se os cursos Rural de Professo-
res e o Complementar.
Sobre o segundo, pode-se 1er, por exemplo, no Relatório de 1913:
"Este curso prepara marceneiros, serralheiros, sapateiros e costureiras. Seu ensino,
além de abranger a prática desses ofícios, compreende desenho e revisão das matérias
do curso primário.
A matrícula do curso constou de 34 alunos, sendo 19 do sexo masculino e 15 do fe-
minino.
A freqüência legal foi de 20 alunos no primeiro semestre, e de 20 no segundo."14
Lamenta que a freqüência não tenha podido ser maior. Isso se devia ao acanhamen-
to das instalações e também às dificuldades de manutenção dos alunos pobres. Sugere
que o governo encontre meios, possivelmente com apoio das municipalidades, para ofe-
recer prêmios (o que corresponderia às atuais bolsas de estudo) para que os alunos po-
bres pudessem se dedicar mais a essa aprendizagem.
Esses cursos, mantidos sempre em Lavras, correspondiam a uma ampliação dos ob-
jetivos da reforma, e cuidavam principalmente do ensino agrícola.
Em Lavras, havia também aulas de horticultura para rapazes e meninas. O plano de
aproveitamento do terreno doado ao Grupo pela Câmara Municipal foi feito pelo pro-
fessor norte-americano Benjamin H. Hannicut, da Escola Agricola.15
Certamente, por causa das dificuldades práticas, o curso complementar foi-se restrin-
gindo com o tempo. Chegaram a funcionar apenas, em certa época, os de marcenaria e
de trabalhos domésticos.
Muitos artesãos e artífices formados pelo Grupo de Lavras, segundo a tradição oral
e segundo alguns depoimentos escritos, eram muito considerados, no mercado de tra-
balho, pela sua competência e senso de responsabilidade.
Quanto ao Curso Rural de Professores, faremos a apreciação de seu significado no
capítulo sobre o magistério como profissão. Era mantido pela municipalidade e super-
visionado pelo diretor do grupo escolar.
Num relatório do Presidente da Câmara Municipal, lê-se a seguinte apreciação:
"Durante este ano (1926), a Câmara despendeu com este serviço a quantia de
4:320$000.
Os professores diplomados por este curso têm dado as melhores provas de si, estan-
do alguns deles colocados em escolas rurais estaduais. A Câmara, a nosso ver, andou
bem, fundando e mantendo o Curso Rural de Professores, pois a falta de professores pa-
ra as escolas rurais e mesmo distritais se vinha fazendo sentir de maneira assustadora."16
14
Relatório ao Secretário do Interior. Belo Horizonte, 10 e 11 mar. 1909.
O Professor Hannicut, autor de um livro sobre a cultura do milho no Brasil, foi diretor da Esco-
la Agrícola de Lavras. A Vida Escolar informa, em seu n. 26, de 15 de julho de 1908: "Já foi
arado o terreno para a horta escolar do Grupo. O plano traçado pelo Sr. Dr. Benjamin Hannicut
para esse grande melhoramento mereceu elogios do Sr. Dr. Carvalho de Brito, Secretário do In-
terior."
16
Relatório do Dr. Paulo Menicucci, presidente da Câmara Municipal. Lavras, 1927.
Outra inovação assinalável foi a de estabelecer novas relações entre a escola e a co-
munidade. Sobre tal assunto se discorrerá mais amplamente no próximo capítulo. Tra-
tava-se, por um lado, de levar a propaganda da instrução, considerada esta como um di-
reito social básico,a todas as camadas da comunidade; por outro, de promover a articu-
lação comunitária, tendo a escola pública elementar como centro. Essa idéia foi depois
incorporada à Reforma Antônio Carlos, sob a forma de federações escolares.
Em resumo, as inovações se deram sob os aspectos institucionais; do aprimoramento
dos métodos de ensino; da abrangência do ensino (ampliando-se quanto ao ensino nor-
mal rural e ao técnico-profissional ao nível do grau primário); do relacionamento com
a comunidade.
Ocorreram outras práticas, que nao eram propriamente inovadoras, mas de renova-
ção de idéias e práticas já existentes no sistema de ensino mineiro. Assim, sem romper
com a tradição regional e nacional, adotaram-se certas tônicas diferentes: o civismo vis-
to do ângulo da cidadania foi posto em prática por Firmino Costa;do mesmo modo,o
ensino da história a partir do presente e do imediato;e, mais importante ainda, a nova
visão do ensino normal. Na consideração deste último tema, nos deteremos melhor
mais adiante.
Os famosos relatórios
17
Relatório ao Secretário da Interior. Belo Horizonte, 1909.
Comunidade e cidadania
Sempre Lavras
Cioso de suas raízes familiares, Firmino Costa identificou-se, desde cedo e de forma
bastante concreta, com a cidade de Lavras, por ele evocada com ternura crescente nos
últimos anos de vida. Tratava-se, por certo, de um sentimento muito particular, mas
fecundado por uma tendência cultural de Minas.
Já se notou o vivo sentido municipalista que se exprime no pensamento e na atua-
ção de intelectuais mineiros. Ao analisar as características das diversas regiões, em seu
estudo interpretativo da literatura brasileira, Viana Moog versou o tema com inegável
propriedade. Por mais nacionalmente famoso que seja um escritor mineiro, tende sem-
pre a vincular a própria imagem ao município de origem.1 Por sua vez, o traço munici-
palista foi sempre alimentado pela força atribuída ao poder local: as lutas políticas de
família invariavelmente se ferem nos horizontes das pequenas comunas. Lavras não es-
tá ausente desse panorama; não está isenta dessas paixões. Para desgosto de Firmino
Costa, que postulava a impessoalidade como norma de atuação dos dirigentes educacio-
nais, o expediente clientelistico sempre acompanhou essas disputas.
A personalidade do educador lavrense talvez fosse, em alguma proporção, resultante
de dois vetores familiares quase opostos. Do lado paterno, o espírito de aventura, a ca-
pacidade de ousar e de apostar no futuro; do lado materno, o sedentarismo rural de
várias gerações de agricultores. Procurou o equilíbrio entre cultivar as tradições locais e
abrir caminho em direção ao futuro. Pelo casamento, ligou-se a uma família de descen-
dentes de bandeirantes, fundadores da cidade, os Buenos.
Esse cultuar a comunidade de origem pôde encontrar bom suporte nos dispositivos
legais referentes à reorganização do ensino primário, isto é, na legislação baixada por
João Pinheiro e Carvalho de Brito. Está ali contida a idéia de se começar a transmitir a
percepção da realidade geográfica por meio do contato com a sede da unidade escolar,
como se pode verificar nas instruções reproduzidas em apéndice e, principalmente, no
próprio programa. Dispositivos semelhantes, recomendando o uso do ambiente local
como ponto de partida, foram estabelecidos para o estudo da História do Brasil.
Percebe-se que as instruções e os itens programáticos se inspiravam nos princípios do
ensino intuitivo, pretendendo a transmissão de conhecimentos a partir do mais concre-
to e imediato. Mas pareciam pretender, igualmente, lembrar aos pequenos alunos sua
ligação afetiva com o meio social que os envolvia. Primeiro a família, depois o muni-
cípio - era a orientação.
Num artigo muito antigo, nosso mestre propõe sua própria forma de iniciação dos
escolares no conhecimento geográfico. Faria com eles uma excursão, levando-os a lugar
Cf. MOOG, Viana. uma interpretação da literatura brasileira. Rio de Janeiro, Casa do Estudante
do Brasil, 1943. Esp. cap. 6; há uma segunda edição, com o subtítulo Um arquipélago cultural.
Antares, INL, 1983.
elevado, donde se pudesse descortinar largo horizonte. Apontaria ali os pontos cardeais.
determinando cada um deles pela posição dos prédios correspondentes; o edifício do
prédio escolar seria indicado da mesma forma. Em mais um ou dois passeios seguintes,
observaria com os alunos os diversos acidentes geográficos da localidade, a serem de-
pois representados num tabuleiro de areia. Mais tarde se faria o esboço cartográfico da
povoação. O primeiro semestre seria encerrado com o estudo dessa carta: "Ruas, praças
e avenidas principais, espécie de arborização e calçamento, iluminação e água potável,
meios de transporte e Viação férrea, serviço postal e telegráfico, tudo isso daria assunto
para um ensino tão vantajoso quão interessante." Haveria também referência ao clima,
aos edifícios públicos, estabelecimentos comerciais, estações do ano, enfim todo tipo
de informação sobre a paisagem, a vida econômica, as relações sociais.2
No segundo semestre, mostraria que a cidade ou vila em que viviam os alunos era
parte pequeniníssima de uma grande totalidade, o mundo. Esta, ao contrário, não po-
deria ser visualizada diretamente, mas pela figuração num globo terrestre. Propõe que
se construísse o globo de forma simplificada, com os mares e os continentes. Neles se
fixariam os territórios do Brasil e de Portugal, como preparação para um estudo con-
junto histórico-geográfico das unidades políticas.
Para justificar esse ponto de vista, Firmino Costa usa uma frase de surpreendente
poesia: "0 sol e a lua, o dia e a noite, o céu e as nuvens, como velhos conhecidos
dos alunos, têm o direito de preceder na escola o distrito e o município, que serão
aprendidos mais tarde." 3
Em seu grupo escolar, essa variante do programa oficial certamente foi seguida. As
excursões foram usadas e preconizadas por ele como um recurso didático de grande
valia e uma forma de contato benéfico com a natureza.4
0 seguro conhecimento dos aspectos geográficos e históricos de Lavras e de sua re-
gião era bastante anterior à atividade de mestre; esse domínio derivava do culto à tradi-
ção local e do bom relacionamento com os cidadãos mais antigos e bem informados do
lugar. Ao assumir a direção do grupo escolar, estava não apenas em condições de fazer
executar o programa oficial, com relação à história do município, como de produzir bem
elaborada monografia sobre o assunto. Em capítulos sucessivos, foi publicado no bole-
tim quinzenal do Grupo.
"Coordenando os trabalhos publicados na Vida Escolar, organizei-os com estes tí-
tulos para enfeixá-los em livro: o quadro histórico;cronologia;documentos históricos;
igrejas e vigários de Lavras; ruas e praças; primeiros anos do município; revolução mi-
neira de 1842; a proclamação da República; distritos; governo municipal ¡divisão judi-
ciária; lavrenses beneméritos; corografia, compreendendo o município, a cidade e os
distritos."5
Quase todos esses temas foram versados na publicação: a parte histórica, numa série
de vinte e quatro apontamentos numerados por algarismos romanos; a parte de coro-
grafia foi interrompida com o encerramento da circulação da Vida Escolar, no número
34. Os apontamentos da História de Lavras foram reproduzidos pela Revista do Arqui-
2
COSTA, Firmino. O ensino primário, p. 125.
3
COSTA, Firmino. O ensino popular, p. 54.
4
COSTA, Firmino. O ensino primário, p. 129.
5
COSTA, Firmino. Aprender a estudar, p. 52.
vo Público Mineiro, juntamente com a notícia de instalação do grupo escolar. Anotou
a redação daquela revista: "Esta excelente monografia é devida à pena do nosso ilustre
colaborador Firmino Costa, diretor do grupo escolar da cidade de Lavras."6
Trata-se de criterioso trabalho historiográfico, em que se usam simultaneamente a
tradição oral e documentos escritos; alguns deles foram pesquisados pessoalmente por
ele no arquivo paroquial e no da Câmara Municipal. Ao escrever o relato da repercus-
são, em sua cidade, da Proclamação da República, o autor estava usando seu próprio
testemunho de participante dos fatos. Curiosamente, há um longo hiato, quanto a
acontecimentos políticos, entre a Revolução Liberal e o 15 de Novembro de 1889.
Tal tarefa, realizada aliás com presteza e segurança, era por ele encarada como o
cumprimento de uma obrigação. "Ão grupo", afirma, "cabe naturalmente o dever de
redigir a história e a corografia locais. Mesmo que esse trabalho já tenha sido feito, ca-
be-lhe retificá-lo e desenvolvê-lo, dando-lhe publicidade".
Entendia competir ao grupo escolar não apenas ser uma "casa de educação" para os
seus alunos, mas também ser um centro educacional para as demais escolas primárias
do município. Do grupo "terá que partir a orientação do trabalho didático para as es-
colas singulares, unindo-as em fortes laços de solidariedade, fazendo-as adotar os mo-
dernos métodos de ensino, animando-as sempre no desempenho de sua elevada mis-
são".''
Mais ainda, incumbe-lhe ser o guardião e o animador das tradições da localidade.
Deveriam estas ser retiradas do esquecimento, para receber celebração condigna. Para
tanto, propõe que cada grupo escolar crie uma "sala do município", repositório vivo
de tudo que fosse concernente à comunidade.
É claro que essa visão tinha muito mais sentido numa sociedade menos complexa do
que a atual sociedade brasileira. Havia a esse tempo, em regra, uma única escola pública
maior em cada município;eram poucas as instituições comunitárias capazes de exercer
funções essenciais à vida coletiva local. Esperava-se muito da escola.
Firmino Costa, desde o início, desde o discurso inaugural da escola que iria dirigir,
dispôs-se a dar tudo de si pela sua cidade.
"Quanto a mim poderia dar a este estabelecimento uma direção que o torne equipa-
rável a seus congêneres? Só o tempo poderá responder. Se eu, porém, atingir a este al-
vo, bem o sei, não será por mim, mas devido principalmente ao nosso meio social. Esta
atmosfera de paz e de moralidade, que se respira em Lavras, é em extremo favorável à
educação popular. Num meio tão apropriado não poderá deixar de desenvolver-se esta
casa de educação. O povo compreenderá que é dele o Grupo Escolar e tratará o mesmo
como uma de suas mais valiosas propriedades.
He virá auxiliar minha direção com sua experiência e seu entusiasmo. E é o que es-
pero, porque neste posto não terei outra vaidade senão a de servir ao povo, sendo meu
único objetivo a educação da infância de minha terra." 8
COSTA, Firmino. História de Lavras; apontamentos. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo
Horizonte, 1913. p. 125.
' COSTA, Firmino. Centro de instrução municipal. Revista do Ensino. Belo Horizonte, mar./out.
1925. p. 187-8.
a
COSTA. Firmino. O ensino popular, p. 12.
Antes de dizer o que fez Lavras, será interessante comparar essa opinião dele - a de
que os méritos eram da cidade - com a de seu amigo Mário Casassanta, no sentido con-
trário, de que Firmino Costa transformara a atmosfera local. Registrando a aposentado-
ria do velho mestre, em 1938, afirma Casassanta: "Graças a essa vontade de aprender e
a uma extraordinária capacidade de abnegação, esse professor, que antes de ensinar os
outros se ensinou a si mesmo, construiu em Lavras a melhor escola primária de Minas
Gerais e imprimiu à comunhão lavrense em cunho indelével de polidez e de eleva-
ção." 9
Enfim, o que transparece de tudo é a identidade entre o cidadão e sua terra natal.
Além de criar a sala do município, no grupo escolar, instituiu também uma data fes-
tiva. Propôs que o dia 20 de julho, data da elevação de Lavras à categoria de cidade, em
1868, fosse consagrado à festa da cidade.
Em 1914, a festa comemorativa alcançou muito brilho. O Cine-Jornal, órgão do ci-
nema Internacional, da empresa F. Pizzolante (vespertino diário de distribuição gratui-
ta), assinala a data com um número especial. Estampa fotografìa de Firmino Costa na
primeira página e um artigo dele, intitulado Cidade de Lavras, que é um esboço da his-
tória do município. Num texto assinado por Nelly, provavelmente um pseudónimo, o
diretor do grupo escolar recebe calorosos elogios, mas também sob um ângulo pouco
usual: "é um dos elementos mais.indispensáveis para a tão necessária libertação do hu-
mano pensamento dos nocivos preconceitos metafísicos que a Idéia Moderna procura
abater para substituir pela sólida Fé Científica".1 ° Essa imagem de um antimetafísico,
proposta talvez por algum ou alguma positivista, não parece corresponder à linha domi-
nante do pensamento de Firmino Costa. Não obstante, num dos itens do Calendário
Escolar, considerou Augusto Comte como o maior filósofo do século XIX.
O cultivo das figuras consideradas representativas da história local foi realizado pe-
las colunas da Vida Escolar, na seção Comemorações. Apareceram sucessivamente os
seguintes nomes: Comendador José Esteves, dirigente político, administrador e filan-
tropo (nº 1 do jornal); Martins de Andrade, antigo deputado provincial, jornalista e
propagandista da República (nº 2); José Custódio, simples artesão, exemplo de traba-
lho e generosidade (nº 7); Pedro Rodrigues, fazendeiro e benemérito da Casa de Mise-
ricórdia (nº 7); Vigário José Bento (Ferreira de Mesquita), pároco dedicado e caridoso
(nº 11); José Esteves, médico e membro do antigo Conselho Distrital (nº11); Romão
Fagundes, faiscador de ouro no século XVIII e construtor da Matriz (nº 12); Tenente
Firmino Sales, pai de Francisco Sales, responsável por várias iniciativas, inclusive a do
abastecimento d'água da localidade (nº 13); Major Ferreira, farmacêutico prático e fi-
lantropo (nº 14); Capitão Costa Pereira, pai de Firmino Costa, combatente na Revolu-
ção de 1842 (nº 15); Augusto Silva, médico, escritor, líder espírita (nº 17); Evaristo
Alvarenga, "espírito liberal e patriota, que se interessava muito pela causa pública"
(nº 18); José Jorge da Silva, um dos chefes do movimento de 1842 em Minas, pai de
Augusto Silva (n927).
O que se pretendia era oferecer o exemplo de vidas dedicadas ao trabalho e ao bem
coletivo. Foram também pessoas que participaram do progresso do município e da re-
CASASSANTA, Mário. Firmino Costa, Belo Horizonte, s. ed. 1938.
11
VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 24.
Futuros cidadãos
São nesse sentido os conselhos que deu à turma de formandos em 1915, no grupo
escolar, em outro discurso de paraninfo:
"Fazeis parte da cidade desde pequenos, e de ora em diante não podereis de todo
desertar o vosso posto. Estudantes, empregados ou auxiliares de vossos pais, que sereis
agora, mais tarde ocupando qualquer posição social, procedei sempre como verdadeiros
cidadãos.
São dignos deste nome todos aqueles que sabem servir fielmente a sua cidade, tan-
to na ordem social, como na ordem política. Obras de beneficência e de educação, ser-
viços públicos, administração municipal, tudo que for a bem do desenvolvimento da ci-
dade merece vossa inteligente cooperação.
Tal como o jequitibá, que na floresta se eleva cada vez mais alteroso e frondejante,
até ficar sobranceiro às outras árvores, assim vosso amor à cidade erguer-se-á cada
vez mais adiante, até envolver numa auréola de patriotismo esta grande nacionalidade.
É de amor que precisa a Pátria, é falta de amor a crise em que ela se debate." 15
Essa idéia de civismo, que aparece aqui um pouco convencionalmente, foi sendo de-
purada, pelo mestre, ao longo de sua vida. Nesse momento pensava no exercício dos
deveres dos cidadãos em face da comunidade, como primeiro passo para a consciência
da lealdade em face da sociedade nacional.
Noção de civismo
Iria retomar, muitos anos depois, a concepção de civismo, esboçada naquele discur-
so de paraninfo. Em artigo escrito para a Revista do Ensino, em 1932, propõe o rateio
das responsabilidades sociais pela educação cívica, entre os diversos segmentos sociais.
"Somente o civismo dos poderes constituídos e dos orientadores da opinião pública -
diz ele — conseguirá restabelecer a confiança na República Nova. É necessária uma rea-
bilitação política para garantir o futuro do Brasil."
Esse artigo começa com uma frase entre aspas: "Ensinar o menino a pensar para lhe
ensinar a viver; fazer dele um homem, e do homem um cidadão, eis o que já recomen-
davam os homens da Renascença e, em particular, Rabelais e Montaigne." Essa escala
Cf. SEQUEIRA, Francisco Maria Bueno de (Cônego), Firmino Costa. Op. cit.
17
COSTA. Firmino. Pela escota ativa. p. 128.
é realizada no âmbito escolar: "Ora, o professor, especialmente o professor primário,
este verdadeiro protetor da cidade, como lhe chamavam os judeus, terá percorrido
aquela escola?"
No restante do escrito, discute a necessidade de boa formação cívica do futuro pro-
fessor primário; insiste em examinar o papel da escola normal nesse processo. (Essa
perspectiva, àquela altura, ele já estava aplicando, na direção da Escola Normal Mode-
lo, de Belo Horizonte).
Traça ainda os limites entre patriotismo e civismo. Considera o primeiro como "sen-
timento instintivo", quer dizer, impulso para a ação em momentos decisivos, mas sujei-
to a distorções: "às vezes ele degenera em bairrismo, regionalismo e jacobinismo". Pro-
pOe depois esta comparação: "O patriotismo é como se fora a floresta, que está cheia
de perigos e de belezas. A floresta pode conter surpresas entre os seus encantos. Quem
se sente garantido no interior dela? Não são menores as surpresas do patriotismo quan-
do ele degenera, quer na paz, quer na guerra. Assim como se faz preciso cultivar a flo-
resta para transformá-la em plantações, searas, pastagens, parques, assim também cum-
pre que o patriotismo seja cultivado, para se elevar em civismo. O patriotismo está para
o civismo assim como a floresta para a seara. Pode-se dizer que o civismo é o patriotis-
mo cultivado."18
Firmino Costa foi depurando o seu sentido de civismo. Tornou-se isento de ufanis-
mo. Os apelos aos jovens e crianças, por ele enunciados, eram calorosos, plenos de sen-
timento, porém nunca resvalavam para o tom piegas, tão comum entre os seus colegas
de todos os tempos.
Para formar bons cidadãos, nenhum instrumento era mais válido, para esse educa-
dor, do que a boa preparação profissional, levando o amor ao trabalho.
Do ponto de vista de sua posição social, Firmino Costa era um intelectual pequeno
burguês, de família de origem rural, tendo vivido durante décadas em pequena mas
florescente cidade mais ou menos equidistante das metrópoles da Região Sudeste do
país. Lavras contava com comércio razoavelmente desenvolvido e era um centro fer-
roviário de relevo, abrigando oficinas da Oeste de Minas (depois Rede Mineira de Via-
ção); contava igualmente com indústria têxtil.
Possuía Firmino Costa sincera satisfação na convivência com duas categorias de
gènte: as pessoas de espírito cultivado e os artesãos. A valorização do trabalho bem
feito - especialmente o artesanal — transparece em vários de seus escritos.
O modelo mercantil
Numa atitude curiosa, em muitos momentos Firmino Costa se vale do simile do mo-
delo da atividade mercantil (que foi a ocupação de sua juventude) para caracterizar a
atividade do ensino. Ora o professor é comparado ao comerciante, tanto um como ou-
tro ordenando seus materiais em compartimentos e gavetas, tanto um como outro ofe-
recendo amostras aos clientes; ora o conhecimento é comparado ao capital e também
contabilizado. É claro que suas metáforas derivavam, em geral, da vida concreta que le-
vara,1 9 Certa vez, em conferência sobre Pestalozzi, comparou - aliás com notável deli-
18
Idem, ibidem, p. 153.
19
Idem, ibidem, p. 90.
cadeza de linguagem - a padronização do ensino à padronagem dos tecidos. w
Seria, contudo, diminuir o alcance do pensamento desse educador considerar que
tivesse uma visáo capitalista do ensino ou que considerasse o conhecimento mercado-
ria como qualquer outra. O reformador educacional era, sob o prisma do pensamento
político-econômico, um reformista que fazia restrições ao capitalismo como sistema.
Tal pode ser avaliado por um escrito da maturidade sobre a vida profissional. Preo-
cupado com a questão do desemprego, exprime-se desta maneira:
"Não menos perniciosa do que a ociosidade e do que o excesso de trabalho é a fal-
ta deste para quem o procura e nao encontra, caindo assim na penúria. Isso vem produ-
zindo no mundo uma das crises mais tormentosas.
São problemas que somente a reforma integral do sistema educativo e da organiza-
ção econômica poderá algum dia resolver. Certamente a escola verbalista de hoje jamais
conseguirá solucioná-lo, porém a verdadeira escola ativa terá capacidade para fazê-lo."
Vê-se que considerava a educação como instrumento necessário, mas não suficiente
para as transformações sociais. Que nova organização econômica seria essa, capaz de
solucionar uma questão como a do desemprego? Sugere uma organização cooperativis-
ta: "Paulo Cuminal, em memória apresentada ao 39Congresso Internacional de Educa-
ção Moral, propõe para o organismo econômico a cooperação que vem trazer-lhe a har-
monia entre o capital e o trabalho, e, ainda melhor, a preponderância do trabalho inteli-
gente e organizador. Um capital que não exige dividendo, que se contenta com um in-
teresse fixo, eis o capital cooperativo. Ele prescreve a especulação e a exploração, pres-
tando-se apenas ao bom funcionamento da empresa. Em o negócio cooperativo, o capi-
tal não é senhor, é unicamente o auxiliar. O capital cooperativo, esse capital organiza-
dor, se levanta pouco a pouco contra o capital antigo, medíocre organizador, muitas
vezes desorganizador e dividido aliás em fragmentos que lutam uns contra os outros,
até se destruírem."21
Não poderia, naturalmente, ao tempo em que fez essa crítica e adotou essa espécie
de utopia cooperativista, prever a extrema eficácia - acompanhada de irracionalidade,
como a da destruição da natureza — de que se revestiria o capitalismo monopolista nos
dias atuais.
Voltando, enfim, à aplicação do modelo mercantil, tentemos fazer, no caso, um
exercício de estruturalismo genético à Lucien Goldman.22 Que haveria de comum, em
termos de traços estruturais, entre a concepção de ensino adotada por Firmino Costa
e a prática do comércio vigente em Lavras no começo do século? Pelo menos uma con-
vergência é possível vislumbrar. 0 ensino por ele proposto deveria levar em conta, co-
mo ponto básico, a individualidade do aluno, com quem deveria o professor estabele-
cer efetiva relação interpessoal, procurando conhecer sua personalidade e as condições
de vida da família; do mesmo modo, o comerciante numa pequena cidade conhece ca-
da freguês, ou desconhece quando é forasteiro, de qualquer forma oferece a cada um
tratamento individualizado, às vezes até quanto ao preço das mercadorias. Nao have-
ria aí um começo de homología entre um peculiar pensamento pedagógico e uma pe-
23
Minas Gerais. Belo Horizonte, 21 jan. 1931, p. 2. Ibidem, Firmino Costa. A escola mineira, 21
jan. 1931, p. 2.
O magistério como profissão
Contribuições
A primeira contribuição efetiva que deu foi a da criação do Curso Rural no Grupo
de Lavras. A idéia nasceu quando Firmino Costa tomou contato com a existência de
um professor da roça que era velho, surdo e ignorante... Era ministrado em dois anos,
segundo o princípio do notável educador, para quem era preferível, em certos casos,
"ensinar pouco para ensinar bem, formar o espírito e não enchê-lo". Das alunas que se
destacavam no curso primário, eram escolhidas as candidatas a freqüentar o novo cur-
so. Os conhecimentos do ensino primário eram revistos e aprofundados, acompanhados
de prática profissional. Lecionavam nesse curso professores primários escolhidos, desta-
cados especialmente para a tarefa. Os futuros professores rurais freqüentavam também
2
VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 6, p. 2.
as aulas do curso técnico. Essa iniciativa tinha o apoio da Cámara Municipal de Lavras;
proporcionou-se, dessa forma, a capacitação de várias turmas de mestres rurais, em
geral, dedicados e competentes. Antes do término, os diplomandos tinham que respon-
der a um questionário elaborado pelo diretor, contendo informação e conhecimento
básico das disciplinas do curso fundamental e da organização escolar.
"Por que é que os diplomados no curso rural aceitarão de bom grado ir para a roça,
quando as normalistas, em geral, não querem ir?" A essa pergunta, que considera pro-
vável, Firmino Costa responde, num trabalho que apresentou à Segunda Conferência
Nacional de Educação:
"Aquele curso, pela sua própria natureza muito modesto, além de gratuito, não
dando direito senão às cadeiras rurais, será naturalmente freqüentado por alunos po-
bres. Ora, estes já se acostumaram, desde a infância, a contentar-se com pouco e não
estranharão o viver monótono da roça. Os pobres não têm tanto medo como os
ricos e remediados, e sabem relevar melhor do que estes as faltas da vida. Assim
sendo, eu creio que os diplomados do curso rural estarão prontos a ir para a roça.
O plano adotado prende-se principalmente à formação de professores, que estejam
dispostos a ir para a roça e que se adaptem à vida do campo. Este é o eixo da ques-
tão." 3
Naturalmente, as resistências a ir morar na roça são ainda grandes hoje, valendo a
observação para professores ou quaisquer outros profissionais, especialmente os forma-
dos nas grandes cidades. Mas é evidente também que as diferenças culturais entre o ru-
ral e o urbano não serão hoje, de modo geral, tão grandes como o eram no começo do
século, no Brasil.
A segunda contribuição foi a de se criar, mediante um programa de estudos sistemá-
ticos, a prática profissional para as alunas da Escola Normal Nossa Senhora de Lourdes,
em Lavras. O programa foi apresentado ao Secretário do Interior, no relatório referente
ao ano 1916, e vai transcrito como apêndice deste trabalho.
Tivemos acesso ao diário de uma normalista, escrito no ano de 1919, e no qual ela
ia registrando diariamente as ocorrências da prática profissional. Assinala, às vezes com
entusiasmo, às vezes carinhosamente, mas sempre com objetividade, o conteúdo das
preleções de Firmino Costa, seu desempenho próprio e de suas colegas quando encarre-
gadas de alguma lição. Muitas das observações dos escritos do professor aparecem nesse
diário da estagiária: por exemplo a valorização do desenho como ferramenta didática.4
Num diálogo bem antigo, transcrito ou inventado (mais provável a primeira hipóte-
se), intitulado A normalista, o professor pergunta a uma jovem recém-formada. D. Jú-
lia, pelo que ela aprendeu na prática profissional em sua escola. Ela vai dizendo: apren-
deu a instalar a sala de aula, com todos os requisitos regulamentares; a organizar a
classe; a regê-la. A normalista afirma, a certa altura: "para saber como ensinar, explica-
va-nos o nosso professor , deve-se primeiramente saber o que se vai ensinar e a quem se
vai transmitir o ensino. Não pode ensinar bem tanto aquele que sabe mal a mataria
como o que conhece mal os alunos".
E com humor: "uma coisa merecia grande cuidado de nosso professor - era a edu-
cação da voz, o principal órgão de trabalho no magistério. Ele nos ensinava os meios de
3
COSTA, Firmino. Pela escola ativa. p. 57.
4
Diário de Judith Correia Dias, 1919 (Lavras). O Museu de Lavras guarda outros documentos do
mesmo gênero.
conservar a voz, de ajustar sua intensidade e altura às condições da sala e dos alunos, de
dar-lhe a necessária inflexão para nao se tornar monótona. Não queria que desperdiçás-
semos o grito, dizia ele, para não estragar a voz e inutilizar aquele meio eficaz de disci-
plina. Quanto à dicção, ele procurava que nós a tivéssemos correta, clara e desapressa-
da." 5
Nos escritos mais antigos, preocupa-se mais com os métodos de ensino normal do
que com os defeitos do currículo das escolas. Preocupava-se com a correta assimilação
do método intuitivo pelos futuros professores primários.
Preocupava-se ainda com a necessidade de se escolher com impessoalidade e por cri-
térios de mérito, nunca por injunções políticas.
"É preciso - argumenta - que o professor deva a nomeação à sua própria capaci-
dade, e não a outras causas. Se ele não conseguir impor-se pela aptidão, perderá a con-
fiança em seus merecimentos, e ficará descrente do valor da educação. Seu exemplo
mostrará então aos alunos que mais vale na vida a lisonja ou o favoritismo do que a
competência e o cumprimento do dever."6
A questão da profissionalização do professor passa a ser o centro de suas atenções
a partir de determinado momento. Inicia, então, a crítica à estrutura curricular vigente
em Minas, mais próxima da do antigo curso secundário. Era uma formação de humani-
dades, sem qualquer iniciação à pedagogia ou á psicologia educacional.
Firmino Costa afirma que a idéia bem nítida de um curso normal com caráter profis-
sional, de preferência de nível superior, para formação de professores bem capacitados,
no Brasil, adveio-lhe em noites de vigília, quando da gripe espanhola: "A incrível epi-
demia que assolava o mundo irrompera numa pequena cidade. Alguém vira adoecer
todos os seus, mas fora poupado pela epidemia. Em horas de tão cruel ansiedade, vie-
ra-lhe ao pensamento, de modo inexplicável, a idéia da elevação do ensino normal a
curso técnico-pedagógico. Pensava muito naqueles dias e acabara por elaborar um
plano do novo curso, de que pôde fazer a apresentação oficial. Estava lançada a semen-
te, e decorreram anos..." 7
Ora, a apresentação oficial a que se refere deu-se nesse mesmo ano de 1918. Fora
convidado para ser orador de um festival em benefício da Caixa Escola Dr. Estevão
Pinto, do Grupo Barão do Rio Branco, em Belo Horizonte.
"O fim das escolas normais - dirá na conferência - é ensinar a ensinar, é formar
educadores. O curso normal constitui uma especialidade e tem caráter profissional.
Não se pode confundir com o curso secundário, que se propõe a dar uma instrução ge-
ral, que é um desenvolvimento do ensino primário. Nos cursos jurídicos, por exemplo,
não se ensina a língua portuguesa, aliás tão necessária ao advogado como ao professor.
Entretanto, as escolas normais não se diferençam dos liceus ou ginásios, são verdadei-
ros cursos secundários. Basta comparar os respectivos programas para verificar-se a se-
melhança deles."
Fala depois da deficiência do preparo pedagógico, especialmente da psicologia apli-
cada à educação. Dá como exemplo a atenção e de como suscitá-la como auxiliar da
disciplina. Isso só é possível com conhecimento psicológico. Propõe, por esses motivos,
"Esta, mutatis mutandis, a organização que tem presentemente o ensino normal na Alemanha,
na Inglaterra, na Áustria e nos Estados Unidos. A diferença está, apenas, em que nesses países a
tendência é de alargar o curso, aumentando-lhe as exigências, elevando o seu padrão intelectual.
Na Alemanha, na Austria e nos Estados Unidos já a organização do ensino normal tende a nive-
lá-lo ao ensino universitário, partindo do princípio de que as técnicas do ensino primário só se
adquirem mediante estudos teóricos largos, progressivos e completos." Francisco Campos, ex-
posição de motivos sobre o regulamento do ensino normal. In: Educação e Cultura, 2. ed.
Olympio, 1951, p. 32.
-geral da Escola Normal Modelo constituiu para o mestre o merecido coroamento de
sua carreira: era a vitória de seus planos, de seus sonhos, do trabalho de uma vida.
A mulher e a escola
12
COSTA. Firmino. O ensino popular, p. 71-2.
COSTA, Firmino. Aprender a estudar, p. 18.
neiro de 1907. ass.) João Pinheiro da Silva e Manoel Tomás Carvalho de Brito."
Anotado no verso: "Vencimento anual, 3:000$000. ass.)Duval Epaminondas."O outro
ato : "O Governador do Estado de Minas Gerais resolve aposentar o diretor da Escola Nor-
mal da Capital, Firmino Costa, por haver atingido a idade de 68 anos, nos termos da le-
gislação em vigor. Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte, 28 de dezembro de 1937.
ass.) Benedito Valadares Ribeiro e Cristiano Monteiro Machado." No verso : "Vencimen-
to anual, 15:600$000. Gratificação adicional de que trata a Lei nº 425, 1:560$000;
abono provisório de que trata a Lei 130, de 1937: 1:560$000 ass.) C. Camargos." O
Secretário da Escola fez a anotação no livro próprio: era ele Orosimbo Herculano de
Mello, discípulo e amigo de Firmino Costa, o segundo diretor do Grupo de Lavras.14
Obteve, também na década de 30, já no fim da vida, o lugar de inspetor federal de
ensino, provavelmente por iniciativa ou interferência de Gustavo Capanema, que muito
o admirava.
De qualquer forma, com família grande, lutou sempre com dificuldades e viveu mo-
destamente. É provável que se locomovesse de bonde em Belo Horizonte. Num artigo
sobre Maurício Murgel, quando da morte dele, narra, como fato relevante, que esse
seu colega o conduziu de automóvel, uma tarde em seu retorno ao lar.15
Anedota ou não, conta-se que sonhava com uma viagem à Europa; como seus ven-
cimentos não eram suficientes para essa aventura da viagem internacional (que seu ami-
go Gustavo Pena fizera tanto), alimentava a ilusão da loteria. Teria sido encontrado,
depois de falecido, entre seus guardados, um livro contábil em que guardava os bilhe-
tes em branco. Na capa, a inscrição Meu sonho.1 6
Encaminhou uma de suas filhas, Lívia, ao magistério primário; esta aposentou-se re-
centemente como diretora de escola estadual, em Belo Horizonte.
Ainda em Lavras, em 1925, naturalmente sem saber que em breve partiria para ou-
tras missões, em Barbacena e Belo Horizonte, tenta encaminhar, também no magisté-
r i o ^ filha mais jovem, Lucilia, consolidando sua situação num colégio.
É interessante a carta que escreve a um dos diretores do Instituto Evangélico, o Dr.
Knight, reveladora do interesse pelo destino dos filhos e também de um certo traço de
proteção patriarcal: "Porque tive sempre em alto apreço o Instituto Evangélico, do
qual sou sincero amigo, não me acanho em vir expor-lhe o que penso sobre o trabalho
da Lucilia no Kemper."
Depois de considerar outras possibilidades da filha (que, entretanto, prefere traba-
lhar no Colégio Kemper), propõe: "O que acabo de considerar parece-me bastante para
fazer-lhe uma proposta razoável: dar à Lucilia, neste ano, ordenado de 2:000$000. O
amigo tem o espírito muito reto, e sem dúvida concordará comigo."
14
Obtivemos cópias desses atos oficiais, pertencentes ao arquivo da família de Firmino Costa, em
Belo Horizonte.
15
"Um dia teve a gentileza de levar-me de automóvel para casa. Nesse percurso disse-lhe eu:
'Ninguém melhor do que você, Maurício, poderia auxiliar-me na direção da Escola Normal'."
Homenagem à memória de Maurício Murgel. Minas Gerais. Belo Horizonte, 3 maio 1934.
Referência ao autor feita pelo professor Guilhermino César, que conviveu em Belo Horizonte
com Firmino Costa.
O professor ideal
Por último, retomemos a imagem do professor ideal que ele traçou no inicio de sua
carreira. Nesse perfil marcado pelo modo de vida de uma pequena comunidade agrário-
-mercantil e pelas limitações políticas ali existentes, fala-se no magistério como sacer-
docio; fala-se pouco nos direitos do professor. Mas vale reproduzi-la como um convite
a esta reflexão: o que haveria de transitório e conjuntural e o que haveria de perma-
nente e ainda válido nessa definição?
"Ser professor é dedicar-se inteiramente à instrução, é querer como o seu próprio o
progresso dos alunos, é prezar a profissão e reconhecer a primazia dela, é dilatar sempre
os seus conhecimentos, é fazer da vida um exempio constante de virtudes cívicas e mo-
rais. Despretensioso e benévolo, não deve o professor aspirar aos mimos fascinantes da
popularidade, e menos ainda às lutas infrutíferas do partidarismo; liberal e tolerante, a
ele cumpre acolher e difundir as conquistas da civilização, sem todavia melindrar as
idéias e crenças contrárias; criterioso e perspicaz, ele tem de ser cuidadoso em suas pa-
lavras, ele há de ser pronto no entender e às vezes no calar."17
Trata-se do retrato do professor que ele quis ser, dentro da circunstância em que vi-
veu.
Nos capítulos seguintes, voltaremos à época em que foi diretor da Escola Normal
de Belo Horizonte e às suas idéias sobre o ensino.
17
COSTA. Firmino. O ensino popular, p. 59.
Formação pedagógica e paradigmas
Descoberta da educação
No livro Aprendei a estudar, fala da aplicação da técnica. Propõe resumos biográficos de perso-
nalidades de sua preferência: Barão do Rio Branco, Oswaldo Cruz, Pasteur, Barão de Macaúbas.
p.77.
O texto dessa palestra foi publicado na Revista do Ensino e depois no livro Pela escola ativa
p. 88. Curiosamente, na segunda publicação, suprimiu dois pequenos trechos: o parágrafo que
começa pela frase "acredito em sonho" e a referência a Jesus Cristo.
veu o ensino normal; Sarmiento contribuiu para a instrução da classe operária e fundou
a primeira escola normal na Argentina; Froebel criou os jardins da infância, etc.
Por fim, nova referência ao papel da Escola de Aperfeiçoamento como sede do cur-
so técnico-pedagógico, "um dos principais do nosso país" e um apelo caloroso para
que as professoras seguissem os ensinamentos dos grandes pedagogos, com cujas "cen-
telhas geniais" de "heróicos construtores da civilização" elas deveriam aquecer suas al-
mas.
Na direção da Escola Normal de Belo Horizonte, iria propor a criação de uma bi-
blioteca pedagógica. 0 elenco básico compunha-se de cinqüenta títulos, em que apa-
reciam livros e periódicos, em geral em português, francês e espanhol. Iam desde os
teóricos da Escola Ativa, como Ad. Ferrière, Anísio Teixeira, Lourenço Filho e Fer-
nando de Azevedo, até historiadores como Compayré e Francois Guex, passando por pen-
sadores clássicos, psicólogos modernos e outros. São mencionados vários livros de
Dewey, dentre os quais Democracia e Educação, já traduzido para o português. Um
autor mineiro, lago Pimentel, professor da Escola Normal, comparecia com o seu com-
pêndio Noções de Psicologia. Um autor que não era propriamente um pedagogo, mas
um famoso moralista, Charles Wagner, entrava também na lista com seus livros Pour
les Petits et les Grands e mais A Vida Simples e O Valor. Esses trabalhos eram usados
por Firmino Costa em suas preleções sobre educação moral.
Quando se inaugura a Biblioteca Pedagógica do Estado, o diretor da Escola Normal
profere um discurso modelar de análise da função educativa do empreendimento. "O
segredo da educação - afirma - aqui se acha patente na freqüência da biblioteca. Con-
signada como matéria das mais importantes, a biblioteca já foi compreendida pelas alu-
nas como se fosse uma disciplina não só escolar mas também pós-escolar. Algum dia
findará a escola para as alunas, mas a biblioteca é que jamais findará, se elas quiserem
honrar seu diploma, se elas anelarem ter vida intelectual."9
Os paradigmas
É preciso deixar claro que os grandes mestres não influíram com a mesma intensida-
de no pensamento e na prática de Firmino Costa. Percebe-se nitidamente a maior pon-
deração de alguns deles.
Pestalozzi aparece, desde muito cedo, como paradigma. O grande educador suíço
tornara-se conhecido no Brasil, desde o século XIX, embora inicialmente apenas num
círculo restrito de especialistas. Em São Paulo, no sistema de ensino estabelecido na
década de 1890, seu nome é citado com alguma constância, inspirando práticas do en-
sino intuitivo. Rui Barbosa, tradutor da Lição das Coisas, de Calkins, tinha plena cons-
ciência da importância histórica e do papel inovador de Pestalozzi.1 °
Para Firmino Costa, insistamos neste ponto, tratava-se não apenas do criador de um
método, mas também de um modelo de vida. Perceba-se bem: modelo sob alguns as-
pectos, dentre eles o da consagração integral á prática educativa e o da aspiração de ser
apenas um mestre.
9
COSTA, Firmino. Pela escola ativa. p. 74.
14
"O Prof. Firmino Costa era um notável educador a quem Minas Gerais muito deve. Fundou a
Escola Normal Doméstica em Lavras e foi diretor da Escola Normal Modelo, hoje Instituto de
Educação de Belo Horizonte; pensador, autor de vários livros de pedagogia e um dos promoto-
res da reforma do ensino em Minas, em 1927. Homem bom e generoso, um dos primeiros mem-
bros da Sociedade Pestalozzi, aceitou sem vacilar o convite para colaborar neste programa de pa-
lestras, dando sua contribuição valiosa sobre um dos seus heróis prediletos - PESTALOZZI."
São as palavras finais do prefácio de Helena Antipoff, à segunda edição da conferência de l u -
mino Costa.
A afinidade de Firmino Costa com Pestalozzi era publicamente reconhecida. Mário
Casassanta, depois de comentar sua obra de filólogo, afirma:
"A sua virtude mestra, porém, é a de educador.
Firmino Costa pertence à família pestalozziana.
Como obrigassem a dirigir uma escola, pensou, e bem, que educar crianças não devia
ser obra de mero instinto, mas obra de ciência e consciência, com seu sistema de leis
e com seu conjunto de normas práticas.
Calculou o que quase ninguém até então entre nós havia presumido, e era que, co-
mo havia uma ciência e uma arte para o engenheiro, o médico, o eletricista, o agrôno-
mo, também deveria existir uma ciência e uma arte de ensinar.
Procurou conhecer a bibliografia da matéria, mais de vinte anos antes de que essas
idéias viessem a ser ventiladas, no país, e foi dos primeiros dos nossos professores a es-
tudar os pedagogos de nosso tempo."
A lembrança dos colegas de magistério coincide com a impressão de alguns ex-alu-
nos. Escritora lavrense, Maria Eugènia Montenegro, no livro de memórias Saudade,Teu
Nome é Menina, recorda sua entrada no grupo escolar da cidade natal: "De mãos da-
das, fomo-nos, rua acima, minha irmã mais velha e eu, até chegar ao Grupo Escolar,
que ficava depois da Igreja Matriz. Um belo prédio colonial, com grades de ferro na
sala principal e altas vidraças. À entrada, subindo poucos degraus, lousas nas paredes la-
terais com máximas e frases cívicas. O diretor - o Sr. Firmino Costa -, o Pestalozzi
mineiro. As crianças, tratava-as como pai bondoso e enérgico."
O outro dos grandes paradigmas é o educador norte-americano Horace Mann. Fir-
mino Costa conhecia bem a vida desse antigo político, administrador da instrução pú-
blica e pioneiro de muitas iniciativas nos Estados Unidos. São muitas as citações que
faz de pensamentos e atos produzidos por ele. Conhecia-o através de livros e, certa-
mente, pelas informações oferecidas por educadores estadunidenses residentes em La-
vras, em particular Samuel Gammon. Num discurso de paraninfo, fez o elogio do fun-
dador do Instituto Evangélico, "que sabe honrar a grande pátria de Horace Mann!"
Referência semelhante foi feita também à viagem das professoras da Escola de Aperfei-
çoamento que tinham ido aperfeiçoar-se na Universidade de Columbia.15
Do ponto de vista da metodologia didática, Horace Mann era um admirador das ex-
periências pestalozzianas que conhecera numa viagem á Prússia, durante longa excur-
são à Europa. O elogio desses métodos, feito publicamente num relatório, despertara
controvérsias e discordancias no meio educacional norte-americano. Uma preocupação
dele, comum a Firmino Costa, era com o ensino da leitura.
Mas eram outros os motivos mais fortes de admiração, por parte do educador mi-
neiro. Apreciava em Mann o fato de ter sido o criador da primeira escola normal na
América, em 1839, como sinal de grande interesse pela formação adequada de profes-
sores para o ensino fundamental. E ainda o empenho no desenvolvimento da escola pú-
blica para todos; o lado apostolar, que o levava a uma permanente campanha de propa-
ganda da educação do povo, e a disseminação que realizou de bibliotecas escolares.
Gostava de citar uma frase de Mann, pronunciada pouco antes de seu falecimento:
"Tende vergonha de morrer antes de haver alcançado uma vitória para a humanidade."
No mesma discurso de paraninfo, a normalistas de Lavras, fez um resumo da vida
15
Veja-se: A bem da reforma. Revista do Ensino, ano 5, n. 46, jun. 1930. p. 68, que trata da via-
gem de um grupo de jovens professoras mineiras para estudar em Columbia. Voltaremos ao te-
ma no capítulo Colaborando nas mudanças.
de Horace Mann, para quem, gostava de lembrar, "a escola é a maior descoberta que a
humanidade fez". Recorda também a origem humilde do pedagogo e o extraordinário
amor á natureza que sempre demonstrou desde a juventude.
Alguns anos mais tarde, na inauguração do prédio novo - ainda hoje uma constru-
ção imponente — da Escola Normal Modelo, seu diretor discursou para destacar a im-
portância do acontecimento. Novamente lembrou a criação da primeira escola normal
nas Américas e a forma dramática como ela se instalou, a 3 de julho de 1839.
"Nesse dia — relata —, em hora de chuva torrencial, estavam reunidos alguns ho-
mens e três meninas tímidas, que iam prestar exame. Entre aqueles achavam-se Horace
Mann e Cyrus Pierce, respectivamente fundador e diretor da referida escola. O primeiro
havia vendido a sua biblioteca para adquirir a mobília e aparelhos destinados ao novo
estabelecimento de ensino; o segundo, que pelas suas alunas era chamado o pai Pierce,
declarara, ao aceitar a nomeação, que 'preferia morrer antes que ser mal-sucedido'."
O início, relembra, foi difícil. O número de alunas, entretanto, cresceu em poucos
meses. Já em outubro do mesmo ano, foi criada uma classe anexa para prática peda-
gógica das futuras professoras.
"Mas não se suponha que cresceu entre flores a primeira Escola Normal da Améri-
ca. Contra ela se desencadeou forte oposição, até da parte das professoras. Entretanto,
tal oposição foi ardorosamente rebatida, e as próprias alunas se ergueram como uma
unidade, diz o historiador, e refutaram todas as calúnias, provando sua falsidade."
Propõe que se tirem lições do fato. Apela para a solidariedade das alunas em torno
do ensino normal. Mostra a diferença de ambiente que tem cercado o estabelecimento
em Belo Horizonte. Se não é preciso defendê-la, impõe-se zelar pelo seu aprimora-
mento. 16
Há outras convergências entre os dois pedagogos. O hábito de fazer relatórios admi-
nistrativos - recheados de observações práticas e de reflexões doutrinárias - é comum
aos dois educadores, não se sabendo se estamos diante de simples coincidência ou se
Firmino Costa teria de fato assimilado conscientemente esse exemplo.
As semelhanças abrangem ainda outros domínios. O apostolado da escola pública -
e de uma escola pública eficiente e democrática - aparece em ambos os casos. Basta
que se recorde, no caso de Firmino Costa, a campanha de divulgação, empreendida em
Lavras pessoalmente por ele, indo de casa em casa para convencer as pessoas a coloca-
rem os filhos na escola e a colaborarem com a instrução. O mesmo trabalho de persua-
são foi feito pela imprensa.
Outro traço comum é o empenho na organização de bibliotecas e o incentivo a seu
uso constante. O mestre mineiro fundou, primeiramente, a biblioteca do Grupo, de
dimensões avantajadas para a época e a localidade. Sugeriu, posteriormente, bibliote-
cas especializadas: a infantil, a do professor, etc. Criou, finalmente, a Biblioteca Peda-
gógica em Belo Horizonte. Numa entrevista, concedida no Rio em 1933, deu um ba-
lanço do assunto, dentro da reforma Antônio Carlos: "Em primeiro lugar, cumpre por
em realce a importância que acertadamente se tem dado ao uso da biblioteca, tanto no
curso primário, como no curso normal. Na Escola Normal de Belo Horizonte funciona
a Biblioteca Pedagógica do Estado, òtimamente instalada e contendo grande número
de obras de valor, dispostas em salas convenientemente mobiliadas, sob a direção ime-
16
Discurso na inauguração da Escola Normal, Minas Gerais, Belo Horizonte, 16 mar. 1934. p. 15.
diata de dedicadas bibliotecárias. Na mencionada escola todas as alunas, cerca de mil,
freqüentam a biblioteca." '17
Esse movimento, apoiado pelas autoridades educacionais de Minas, muito devia à
persistente campanha do diretor da Escola Normal.
Nao se limitava às bibliotecas escolares. Participava de todo esforço em favor de bi-
bliotecas públicas. Em 1932, apoia o trabalho do professor J. Guimarães Menegale, no
sentido de ampliar e reorganizar a biblioteca mantida pela Prefeitura de Belo Hori-
zonte, a fim de transformá-la numa verdadeira biblioteca pública. Firmino Costa escre-
ve-lhe uma carta calorosa, que foi publicada pela imprensa da Capital mineira.18
com essas observações, quisemos mostrar como a admiração por Horace Mann de-
corria da identidade com certas práticas educativas por ele realizadas nos Estados
Unidos. Do ponto de vista teórico, a não ser Pestalozzi como fonte comum, não há
maior identidade. Pode-se mesmo afirmar, com base em relatos históricos, que a pers-
pectiva doutrinária de Mann era muito mais pobre, mesmo levando-se em conta a dife-
rença de épocas em que viveram ambos os educadores. Sua principal fundamentação
era a frenologia, hoje inteiramente ultrapassada, e que nunca teve maior repercussão na
prática educativa brasileira.
John Dewey, terceiro paradigma a destacar, penetra mais tarde no universo de co-
nhecimento do mestre mineiro. Corresponde a influência ao período da plena identifi-
cação com a Escola Ativa. Nos trabalhos já escritos em Belo Horizonte, sua citação é
freqüente. Considera-o "um dos nomes culminantes da pedagogia moderna, principal
criador da escola nova, filósofo, psicólogo e pedagogista que atualmente talvez exerça
mais profunda influência na vida pedagógica mundial, como mestre dos mestres que
assim pode ser considerado".19
Desde o início do Grupo de Lavras, havia ele adotado, por intuição, certos princí-
pios e certas práticas que corresponderiam mais tarde aos conceitos aprendidos em
Dewey. Atribuía essa percepção antecipada ao contato com o espírito prático de Sa-
muel Gammon.
No texto mais extenso e elaborado que escreveu sobre a escola ativa, Firmino Costa
inicia sua argumentação citando um resumo dos pressupostos dessa corrente pedagó-
gica, formulados por Dewey e extraídos de uma resenha realizada por Jesse Newlon:
"I. Dewey pôs em foco, para a consideração dos professores, a natureza e as neces-
sidades da infância, centralizando as atividades escolares antes no desenvolvimento
da criança do que nas exigências das matérias de estudo, distinção essa de suma im-
portância.
II. A educação é um constante processo de reconstrução de experiência, destinado
a ampliar e aprofundar o conteúdo social.
III. O terceiro princípio encontra-se na doutrina do interesse e do esforço, que cons-
titui um corolário da teoria, segundo a qual a educação é experiência. A tarefa de
organização de um programa, que satisfaça as condições de interesse, representa um
dos problemas mais complexos e difíceis da educação.
17
A organização do ensino em Minas. Entrevista de Firmino Costa ao jornal A Noite, Rio de Ja-
neiro, out. 1937.
18
Carta a J. Guimarães Menegale, publicada pelo Minas Gerais. Belo Horizonte, 10 maio 1932,p.9.
20
COSTA, Firmino. Pela escola ativa. p. 5.
21
Metodologia da História e da Instrução Moral e Cívica; Curso de Aperfeiçoamento para o Pro-
fessorado Primário. Revista do Ensino, Belo Horizonte, 5(44): 6 3 , 1930.
lar (Horace Mann); o terceiro, por fim, exerceu o desafio sobre a inteligência, pela sua
proposta integrada de vida, democracia e escola (John Dewey). Cada um representou
um momento especial na existência de Firmino Costa: o contato inicial com crianças e
adolescentes em sala de aula e nos ambientes familiares de Lavras; a luta pelo ensino
normal eficiente;e a formulação final das idéias da Escola Ativa.
Há uma palavra sobre Dewey, a qual, guardadas as devidas proporções, pode ser in-
vocada a propósito de Firmino Costa: "A propósito das influências intelectuais experi-
mentadas, é necessário, contudo, ter em conta o que o próprio Dewey pensava. Em sua
opinião, o que mais tinha influído em seu modo de pensar nao haviam sido os livros,
mas seus contatos pessoais e suas experiências práticas, especialmente no campo da
educação." 22
Firmino Costa poderia dizer o mesmo. E disse algo também pertinente sobre o seu
labor de escrever. As primeiras linhas do prefácio de seu primeiro livro, publicado em
1913, são estas:
"Nao tendes que perguntar-me, diz Emerson, em palavras e por títulos os catálogos
dos livros que haveis lido. De veis fazer-me sentir que páginas haveis vivido.
As páginas singelas, publicadas no presente volume, foram vividas por mim, posso
dizê-lo, desde quando, há seis anos, assumi a direção do ensino público desta cidade.
Derivam elas do que tenho mediado e posto em prática para conseguir uma educa-
ção primária completa, capaz de dar aos alunos o desenvolvimento necessário, que os
habilite tanto quanto possível à vida social e profissional adaptada às exigências de nos-
sa civilização."23
Enfim, aprendeu nos livros e aprendeu fazendo. Ele era, no entanto, um inveterado
leitor.
Políticos e intelectuais
Lê-se em MENEGALE, Heli. Op. cit., p. 142: "Pedagogos de influência internacional, como Cla-
paréde e Simon, a psicóloga Helena Antipoff, Orner Buyse, para organização do ensino técnico,
as mestras de desenho e modelagem, Artus Perrelet e Jeanne Milde, integraram a missão euro-
péia que, contratada pelo governo mineiro, participou dos cursos de introdução da reforma."
Sobre o grupo que estudou nos Estados Unidos: "Simultaneamente, enviou o governo um gru-
po de professores aos Estados Unidos, onde no Teacher's College ,da Universidade de Columbia.
participaram de cursos, seminários, conferências e de atividades de observação, com um único
objetivo: formar-se nos novos métodos e processos, preparando-se para constituir, através da Es-
cola de Aperfeiçoamento, o núcleo gerador do processo de renovação, que se esperava das esco-
las mineiras."
Grande responsabilidade pesava sobre os ombros das professoras Inácia Guimarães, Alda Lodi,
Amélia de Castro Monteiro, Benedita Valladares e Lúcia Schmidt Monteiro de Castro (Lúcia
Monteiro Casassanta): "Não quero certificados, atestados ou diplomas. Venham apenas prepa-
radas", disse-lhes Campos no momento do embarque. Regressando ao Brasil em março de
1929, já no dia seguinte à sua chegada deram início aos trabalhos para a instalação da Escola
de Aperfeiçoamento. Informações contidas no livro de PEIXOTO, Anamaria Casassanta. Edu-
caçfo no Brasil, anos 20. Sao Paulo, Loyola, 1983. p. 146.
tema de estatística escolar. Trata ainda da direção superior do ensino, com dispositivos
sobre as atribuições do presidente e do secretário, da Inspetoria Geral da Instrução
Pública e do Conselho Superior da Instrução. Este passa a ser dividido em duas se-
ções: a administrativa e a técnica. Dispõe depois sobre inspeção e assistência técnica.
uma das atribuições da seção técnica do Conselho Superior da Instrução era a de
"estudar e ensaiar, sob a sua direção técnica, os recentes processos de instrução primá-
ria, tais como os de Decroly, Dalton Plane, Escola Livre, Escola Ativa, etc, sugerindo
meios práticos de introduzi-los gradativamente na instrução pública do Estado". Atri-
buía-se, ainda, ao referido setor "incentivar a aplicação dos testes pedagógicos e pro-
mover a sua padronagem".8
A reforma Francisco Campos, embora não tenha sido a primeira iniciativa estadual
nesse sentido, na década de 20, foi sem dúvida a que se antecipou e foi mais a fundo
nos esforços em prol da Escola Nova, isto é, do ensino ativo e participado, por meio de
centros de interesse e segundo técnicas pedagógicas baseadas na psicologia experi-
mental.
Outra característica dessa transformação foi a de incentivar a relação da escola com
a comunidade local, por meio de instituições como a Associação de Mães de Família
(existentes desde o governo anterior), dos conselhos escolares (constituídos por auto-
ridades do poder público local, autoridades religiosas e escolares), das caixas escolares,
destinadas estas a promover a assistência aos alunos carentes. O outro elo entre a vida
escolar e a da cidade era a realização do auditorium, espaço para manifestações artísti-
cas, canto coral, exposições, audições musicais, além de palestras de interesse público
ou, por exemplo, de educação para a saúde.
Estavam previstas, por outro lado, instituições extraclasse para congregar os alunos,
tais como os clubes de leitura, os "pelotões de saúde", etc.
A escola infantil era dividida em maternal e jardim de infância, com atividades dife-
renciadas.
Os grupos escolares, sediados em localidades com pelo menos 300 crianças em idade
escolar, tinham os respectivos cursos primários com duração de quatro anos. As escolas
rurais e as singulares, de três; neste caso, havia o acréscimo de um ano escolar.
Estruturou-se a carreira docente, com possibilidade de promoções e estímulos atra-
vés de prêmios para os professores mais eficientes.
Nas escolas urbanas, estavam previstas as seguintes disciplinas: Desenho, Leitura e
Escrita; Língua Pátria; Aritmética; Cálculo Mental e Noções de Geometria; Noções de
Cousas, em torno de centros de interesse infantil, segundo o método Decroly; Geogra-
fia Geral e do Brasil, especialmente de Minas Gerais; Noções de Educação Moral e Cívi-
ca e de Urbanidade ; rudimentos de Ciências Naturais e Higiene; Canto; Exercícios Físi-
cos. Além de seguir essas matérias, os alunos dos grupos escolares deveriam executar
trabalhos manuais. Essa relação denota um elenco mais diversificado e mais complexo
de disciplinas do que o estabelecido pela reforma João Pinheiro/Carvalho de Brito.
Comparado com o dessa última, o programa do ensino primário baixado no governo
Antônio Carlos é bem mais extenso (juntamente com as instruções). Aprovado pelo
Decreto n° 8.094, de 22 de dezembro de 1927, esse documento está editado num vo-
lume de 406 páginas, intitulado : Instruções e Programas do Ensino Primário do Estado
a
Em alguns pontos, valemo-nos do resumo feito por MOURAO. Paulo Krüger Corrêa. O ensino
em Minas Gerais no tempo da República (1889-1930). Belo Horizonte, Centro Regional de
Pesquisas Educacionais, 1962. p. 372.
de Minas Gerais. Desse numero de páginas, 274 sao dedicadas às instruções (67,5% do
total) e o restante ao programa propriamente dito e mais o horário em que se distri-
buem as disciplinas.9
Nessas instruções, às vezes, se discute o significado da disciplinais vezes, suas pos-
sibilidades de aplicação; outras, os pontos mais relevantes do programa. Antes de en-
trar na análise de cada mate'ria, fala-se sobre a escola, o aluno, o professor, a Caixa Es-
colar, a organização da classe.
uma novidade das instruções é a parte referente a Noções de Cousas: aí, segundo a
idéia de centros de interesse (método Decroly), apresentam-se sugestões de temas e
seu desenvolvimento na sala de aula: "A nova disciplina, que assim se pode chamar, in-
troduz na escola a observação direta do meio. Ela faz derivar do exercício de observa-
ção todas as atividades escolares. É um programa de idéias associadas, em sua educa-
ção. A leitura dos quadros da nova disciplina mostrará por si só as evidentes vantagens
do método empregado."
com referência ao ensino normal, foram muitas as inovações introduzidas pelo Re-
gulamento.
Estabelece o art. 19 que esse ramo tem "por objeto formar professores e demais
pessoal técnico para o ensino primário do Estado, e será ministrado em duas categorias
de Escolas: - a do primeiro e a do segundo graus".10
A seguir, estabelece que, nos grupos escolares de primeira e segunda categorias,
haveria um curso de dois anos para a formação de professores rurais. Nesse ponto o
regulamento assimilava a experiência pessoal de Firmino Costa em Lavras e em sua
região de influência.
As de segundo grau eram oficiais, em número de dez, segundo cinco regiões do Es-
tado, sendo as primeiras instaladas em Belo Horizonte, em Juiz de Fora e em Ouro
Fino. Esse curso destinava-se a formar normalistas "completas" que poderiam também
ser professoras de metodologia e prática profissional nas escolas normais. Constava de
três etapas: curso de adaptação (em dois anos), o preparatório (três anos) e o de apli-
cação (dois anos).
Esta última etapa era propriamente a formação técnico-profissional das futuras nor-
malistas, constando o currículo das seguintes matérias: Psicologia Educacional; Biolo-
gia e Higiene; Metodologia; História da Civilização, particularmente História dos Méto-
dos e Processos da Educação;e Prática Profissional.
Para se chegar a essa etapa, as outras duas deveriam ser percorridas. O curso de
adaptação constava de: Português, Francês, Aritmética, Noções de História do Brasil e
Educação Cívica, Geografia, Noções de Ciências Naturais, Desenho, Educação Física e
Canto. Era um reforço do conhecimento adquirido no primário.
Já o preparatório, "destinado a ministrar a cultura geral indispensável à formação
do magistério primário", era seriado da seguinte forma:
Primeiro ano: Português, Francês, Aritmética, Geografia, Desenho, Trabalhos Ma-
nuais e Modelagem, Música e Canto Coral e Educação Física;
Segundo ano: Português, Francês, Aritmética, Geometria, Corografia do Brasil, De-
MIN AS GERAIS, Governo. Instruções e Programas do Ensino Primário do Estado de Minas Ge-
rais. Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1927. p. 69-146.
A respeito do assunto, consulte-se PEIXOTO, Anamaria Casassanta, Op. cit., todo o cap. 5.
Implementação da Reforma.
uma poderosa região industrial do setor metalúrgico.
Finalmente, cabe dizer que nao tivemos intenção, neste capítulo, de esgotar o as-
sunto da reforma Francisco Campos/Mário Casassanta em Minas. Nosso intuito foi tão-
-sòmente de situar, do ponto de vista do contexto político, esse momento e, dentro
dele, o papel de Firmino Costa.
Para análise ideológica da reforma e do contexto econômico de Minas Gerais, na Pri-
meira República, consulte-se o excelente trabalho de Anamaria Casassanta Peixoto, ci-
tado na nota 6 do presente capítulo.
Colaborando nas mudanças
No ginásio de Barbacena
A Revista do Ensino, mar./out. 1925, publica duas matérias: uma anônima, O Grupo de Lavras,
outra, de autoria de Firmino Costa, Centro de Instrução Municipal, p. 112 e 187, respectiva-
mente.
dindo novas idéias pedagógicas, participando de uma experiência fecunda de ensino
normal.
Mas Barbacena nao foi um interlùdio estéril e sem brilho. Consagrou toda a sua ha-
bitual energia para dirigir com eficácia o internato. As diretrizes de sua administração
foram traçadas com nitidez no discurso pronunciado durante a inauguração solene do
educandário. Ressaltou a colaboração que esperava entre os professores e a influên-
cia destes sobre os alunos. "Para servir de guia — disse - considere-se o educador como
representante da autoridade e da liberdade. Fazendo os alunos exercitarem-se nesta, ao
mesmo tempo ele os fará compreender o valor da autoridade na organização social.
Dentro da verdadeira liberdade, a obediência deixará de ser passiva para tornar-se ativa,
longe de ser um ato puramente externo, ela resultará da boa vontade dos alunos." Tra-
ça todo um programa de orientação nos estudos e de cuidados com a saúde dos estu-
dantes, para propor, a seguir, rumos da organização do ginásio, especialmente quanto
ao uso da biblioteca e do auditório. Diz aceitar o novo desafio e termina por falar da
virtude da perseverança como indispensável à vida intelectual.2
A julgar pelos elogios expressos na imprensa local, a gestão de Firmino Costa agra-
dava aos barbacenenses. São impressões transmitidas em notícia sobre seu aniversário
e dando conta das conferências que fizera em Belo Horizonte, a convite de Francisco
Campos.
Tais palestras pedagógicas, realizou-as em outubro de 1926, na Escola Normal Mo-
delo, portanto, pouco depois da posse do governo Antônio Carlos. O Minas Gerais do
dia seis, nas Notas Oficiais, registra que haviam conferenciado, na véspera, com o Se-
cretário do Interior (Francisco Campos) "as seguintes pessoas: Prof. Firmino Costa. Dr.
Isauro Epifanio, deputado Washington Pires, Dr. Martins de Almeida e coronel Poli-
doro dos Reis". Teria sido simples visita de cortesia? É plausível conjecturar que trata-
ram de assuntos administrativos e pedagógicos e que tenha sido já solicitada a colabora-
ção do educador aos planos de renovação do ensino que seriam implementados a partir
do ano seguinte.
As palestras se realizaram nos dias subseqüentes, parecendo ter despertado bastante
interesse. Compareceram autoridades e dirigentes de estabelecimentos de ensino; con-
vidou-se todo o professorado da Capital. O conferencista expôs, em dias sucessivos, os
seguintes temas: Um Grupo Escolar (relato e interpretação da experiência realizada em
Lavras), A Língua Pátria, O Método Intuitivo, Ensino Distrital e Rural e Calendário
Escolar. Esse contato com os meios intelectuais de Belo Horizonte deve ter sido decisi-
vo na convocação futura de Firmino Costa para novas missões na Capital.3
Foi marcante, ressalte-se de novo, a passagem por Barbacena. Depois de sua saída.
os alunos organizaram no Ginásio o Grêmio Literário Firmino Costa. Na administração
seguinte, em 1928, a congregação aprovou um voto de louvor ao ex-reitor, afirmando
que ele "prestou a esta casa os melhores serviços, quer reitoria, quer no período inicial
de reorganização do Internato, quer nos dois anos de sua reitoria, elevando moralmen-
te o renome glorioso deste estabelecimento de ensino. Emérito educador, distinguiu-se
entre nós pela linha impecável da mais esmerada polidez, imprimindo a seus atos todos
o traço rùtilo da bondade, da prudência, da justiça, revelando-se sempre à altura das
2
COSTA, Firmino. Pela escola ativa. p. 78.
3
A presença de Firmino Costa em Belo Horizonte foi registrada pelo Minas Gerais, do dia 6 ao
dia 14 de outubro de 1926.
delicadas funções de que esteve revestido, exercendo a reitoria."
Acrescentava a moção que ele só deixara ali amigos e admiradores fervorosos.'
Preparando a reforma
Executando a reforma
Preservando a reforma
"Sim, meus caros amigos, neste entardecer da vida, em que a palavra deve ser fide-
líssima aos sentimentos, diz-me a consciência que acima de tudo desejo o bem da Esco-
la Normal, e confesso-me feliz com os colaboradores e as colaboradoras que encontrei
neste instituto."12
10
Direção técnica. Minas Gerais, 21 set. 1930. p. 6.
11
Discurso na reabertura dos cursos da Escola Normal, Belo Horizonte, Minas Gerais. 16 mar.
1934.
12
A bem da reforma. Idem, ibidem, p. 69.
Receberia, na mesma década, incumbências honrosas por parte do governo de Mi-
nas, que o enviou como representante seu a algumas reuniões pedagógicas de âmbito
nacional.
Em outubro de 1933, vai ao Rio de Janeiro, representando a administração estadual
na Conferência Nacional de Proteção à Infância. Concedeu uma entrevista ao jornal A
Noite, na qual faz um balanço da organização do ensino em Minas. Entendia que a es-
truturação do primário achava-se firmada em bases sólidas e duradouras, "que corres-
pondem ao espírito da escola ativa". Narrou, pormenorizadamente, a implantação da
Escola Normal e da Escola de Aperfeiçoamento, ressaltando o espírito novo que as
animava. Concluiu a longa entrevista com a apreciação sobre o ambiente das escolas
elementares: "Nem há outro meio igual à socialização para suprimir o artificialismo
que ainda perdura no trabalho escolar. Para mim a escola deveria funcionar como uma
sociedade ideal, fazendo o milagre de tornar o dia letivo mais aprazível e querido do
que o dia feriado. A escola precisa de ser a casa do aluno, onde ele encontre o conforto
e o encanto que lhe são necessários para compreender a vantagem da cultura intelec-
tual." 13
Era um cidadão participante, empenhado em causas que ultrapassavam os limites da
vida estritamente profissional. Recorde-se sua presença nos debates da Campanha Eco-
nômica no início da década. Em dado momento participou até mesmo do debate polí-
tico. Durante a Revolução Constitucionalista de 1932, assumiu francamente a atitude
de oposição a São Paulo, invocando o princípio da unidade territorial do Brasil, amea-
çada por "políticos profissionais". Mário Casassanta havia tomado a iniciativa de expor
o ponto de vista oficial de Minas sobre esse acontecimento, proferindo uma série de pa-
lestras a respeito, pelo microfone da Rádio Mineira; essas preleções foram depois reu-
nidas no livro As Razões de Minas. Firmino Costa, em apoio a seu amigo, com quem se
identificava inteiramente, nesse e em outros assuntos, compareceu à rádio para 1er um
manifesto de solidariedade á causa mineira.
O louvor à liberdade é o tema de um dos últimos escritos do velho mestre: o dis-
curso de paraninfo das normalistas de Belo Horizonte, turma de 1937, ano de sua apo-
sentadoria. Significativamente, o tema era versado no momento em que o Brasil ingres-
sava na ditadura estadonovista, implantada a 10 de novembro daquele ano. É fora de
dúvida de que ele se conservou, até o fim, completamente fiel aos princípios liberais do
início de sua existência.
A amizade com colegas de magistério se aprofunda nos últimos anos de sua presen-
ça em Belo Horizonte. Destaquem-se os nomes de Helena Antipoff, Mário Casassanta,
Noraldino de Lima, Maurício Murgel, Aníbal Matos, ao lado de pessoas mais jovens,
como suas colegas Maria Isabel Vieira e Maria José de Melo Paiva, ambas também da di-
reção da Escola Normal.
Homenagem final
13
A organização do ensino em Minas. Entrevista ao jornal A Noite, Rio de Janeiro, out. 1933.
tabelecimento de ensino, as seguintes entidades: Academia Mineira de Letras, Conser-
vatório Mineiro de Música, Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, Grêmio
das Ex-alunas do Curso de Aplicação, Instituto São Rafael e Sociedade de Concertos
Sinfônicos. Depois dos discursos de saudação e de agradecimento, houve uma audição
artística, com música sinfònica, de càmera, e solos, além de declamação de poemas.
Saudaram-no o professor Aníbal Matos, num longo e eloqüente discurso de análise da
vida e da obra do homenageado, e a aluna Leda Piló, em nome do corpo docente.
Foi-lhe entregue ainda um álbum de desenhos, de autoria de Delpino, no qual estão
retratados o corpo docente e a turma de formandos da Escola Normal.
Em seu discurso de agradecimento, mostrava-se comovido com o calor da amizade
que lhe era dedicada. Dirigiu-se especialmente à Escola Normal, em que personificou o
alvo de sua afeição. Naquele momento, percebia também a profundeza das atribulações
nor que passava a humanidade: "Nesta hora de terríveis apreensões para o mundo, os
educadores felizmente permanecem vigilantes." Citou o movimento fundado na Ingla-
terra, por Noel Ede, denominado A Paz pela Amizade, que consistia no intercâmbio
internacional de jovens. Exaltou o sentimento de tolerância e a busca da harmonia que
deveriam reinar no ambiente da escola. Terminou por enaltecer o sentimento que sem-
pre cultivou, o da profissão bem realizada.
Essa talvez tenha sido a última ocasião em que falou em público. E era a manifes-
tação mais carinhosa e preparada com mais requinte, dentre as mais que recebeu na-
queles últimos anos de Belo Horizonte e de diretor da Escola Normal, e das quais se
encontram notícias em nossa bibliografia.
Enviaria logo a Lavras exemplares do discurso do professor Aníbal Matos. Numa
edição do jornal escolar dali foram comentadas a homenagem e as palavras de elogio ao
patrono do estabelecimento.
A carreira de educador chegara ao auge. Nos últimos tempos de vida, nem a doença
nem as preocupações familiares o abateram. Basta dizer que preparava dois novos li-
vros. Escasseava, porém, a colaboração na imprensa. Num dos últimos artigos, escrito
sobre a morte do amigo (por mais de cinqüenta anos) Monsenhor Aureliano Brasileiro.
relembra o início de seus estudos filológicos, sob a orientação do velho sacerdote. Con-
forme assinalou um conterrâneo, na imprensa de Lavras, nem o padecimento físico era
capaz de roubar-lhe o sentimento de suavidade com que se exprimia sobre sua terra e
as antigas afeições.
Reservamos para o próximo capítulo uma exposição mais pormenorizada dos estu-
dos sobre linguagem realizados pelo mestre mineiro.
Caminhos da linguagem
Desde o início
SEQUE1RA, Francisco Maria Bueno de (Cônego). Firmino Costa (Discurso). Belo Horizonte,
EMIL, p. 11. Ensinava-se português, através do latim. A respeito do ensino do português atra-
vés do latim, consulte-se MACHADO FILHO, Aires da Mata, Tomás Brandão. In: O ENIGMA
do Aleijadinho e outros estudos mineiros, Rio de Janeiro, J. Olympio, 1975. p. 129.
deu-se ainda com Ramiz Galvão, que dedicou seus últimos anos de vida a pesquisas le-
xicográficas. Relacionou-se,do mesmo modo, com Afonso D. Taunay, também dedica-
do ao estudo do léxico português.
Havia grande afinidade, sob todos os aspectos, entre Firmino e seu colega Mário
Casassanta, este bastante mais novo quando do conhecimento pessoal e da convivência
cotidiana que travam entre si no final da década de 1920 e início da de 30. Casassanta
comentou todos os livros de seu amigo, editados sobre os temas da língua portuguesa.
Tinha por ele o máximo apreço. Um traço comum era também a simplicidade de estilo
e a ausência de grandiloqüência.
Pode-se dizer que a Gramática Portuguesa, de Firmino Costa, obteve razoável reper-
cussão em Minas e fora do Estado. Na imprensa de Belo Horizonte, apareceram algu-
mas apreciações. Mário de Lima, escritor prestigioso, ligado aos meios oficiais, escreve
um artigo no Minas Gerais. À Margem de um Livro, em 1921. Elogia as inovações
contidas no volume, propondo retificação a respeito de determinadas classificações fei-
tas pelo autor criticado. Tal apreciação provoca uma réplica de um leitor, A. Hermeto
C. da Costa, publicada também pelo Minas, e seguida de novos esclarecimentos de Má-
rio de Lima. Dessa forma, Firmino Costa, que não era dado a polêmicas gramaticais.
acabou provocando uma delas. O mesmo órgão oficial estampou, em maio de 1921,
na sua seção Publicações, uma resenha anônima, muito simpática ao livro, recomendan-
do que fosse adotado nas escolas normais.
Houve várias outras apreciações nos jornais do interior de Minas, o que revela a boa
acolhida que tivera a gramática. Júlio de Oliveira, em O Turvo, publica uma Obra de
Valor; J. Goulart, em O Município, de Lavras, A Gramática de Firmino Costa; Márcio,
em O Itajubá, publica Aspectos sobre o mesmo assunto; no Correio do Sul, de Santa
Rita do Sapucaí, aparece também um artigo intitulado Firmino Costa (o pedagogista e
o filólogo) a propósito de sua Gramática Portuguesa. Nao sao artigos superficiais: pro-
curam apreender os objetivos inovadores do compêndio, de que em geral elogiam o
tom ameno, longe do padrão de casmurrice existente em livros do gênero. Estão todos
citados na bibliografia deste trabalho.
A Gramática constitui uma sóbria edição, um livro sólido como sempre soube fa-
zer a Imprensa Oficial de Belo Horizonte. Sob o ângulo da editoração, possui pequenos
defeitos: não conta com um índice geral, mas apenas com um analítico; a bibliografia.
correspondente aos exemplos citados em abono dos argumentos, é colocada no final
do volume, em forma de "abreviatura das obras citadas". Abrevia-se às vezes pelo no-
me do livro (Diálogos, de Frei Amador Arrais, por exemplo); às vezes, pelo nome do
autor (Lucena, História de S. Francisco Xavier, por exemplo). Na maioria dos casos.
não se fica sabendo de que edição se trata.
A despeito da ausência do índice sistemático, é possível inferir-se a estrutura do li-
vro, principalmente com a observação do que se poderia chamar, com alguma boa von-
tade, da programação visual utilizada. Em particular, com a observação dos recursos ti-
pográficos empregados nos títulos e subtítulos, o que pressupõe certa hierarquia dos
assuntos.
Um curto primeiro capítulo, à guisa de texto introdutório, define os princípios nor-
teadores do trabalho e o significado de gramática. Segue-se a taxionomia, depois a clas-
sificação das locuções e a classificação das cláusulas, em conexão com o exposto ante-
riormente a respeito das categorias gramaticais. O capítulo seguinte, Da Sintaxe, depois
de considerações preliminares, fala sobre a composição (o lado síntese da escrita) e a
análise (estudo das partes componentes do período). com destaque, discorre sobre o
período, em cujo ámbito trata da análise léxica, da análise lógica, das proposições.
Abre um título para as interjeições e, em Novo Complemento, discorre mais detidamen-
te sobre as técnicas e a metodologia da composição e sobre os recursos para desenvol-
ver a expressão, como a leitura constante e orientada, e as notas de leitura. Propõe, final-
mente, nesta parte, uma biblioteca literária básica aos aprendizes da língua portuguesa.
Nesse ponto da exposição, apresenta uma espécie de sumário:
"Fatos sintáticos sao fatos verificados entre os elementos construtivos do período.
Têm eles as seguintes denominações: concordância, ordem, regência.
Classificamos na taxionomia os materiais da construção, isto é, as palavras, as locu-
ções e as cláusulas, que todas, contorme vimos, se reduzem a palavras, e estudamos na
sintaxe a própria construção que é o período. Tendo já examinado os elementos do pe-
ríodo, parece-nos de razão que passemos a tratar dos elementos da palavra, antes de
nos ocuparmos dos fatos sintáticos.
As palavras têm elementos materiais, que são representados pelos sons, e elemen-
tos significantes, que compreendem os radicais, os afixos e as flexões. O estudo deste
denomina-se morfologia, e o daqueles chama-se fonologia. Assim fica completa a lexio-
logia, que se divide em três partes: taxionomia, fonologia, morfologia.
Já atendemos à primeira, iremos agora atender às duas últimas."2
Na fonologia, trata, sucessivamente, de homônimos, homófonos, homógrafos, paró-
nimos, rizotónicos, onomatopaicos, vozes de animais, sons das coisas; na fonética,
das vozes, das consonancias, dos grupos vocálicos, dos grupos consonantais; trata
ainda, na prosodia, dos valores dos fonemas e do acento tónico; na ortografía, dos
sinais ortográficos, do uso das maiúsculas, das abreviaturas, do sistema ortográfico e
das regras ortográficas. Na morfología, das palavras compostas, da prefixação, da
justaposição, da aglutinação, do hibridismo, das palavras derivadas; na derivação
própria, inclui nomes de pessoas, nomes de profissões, nomes de árvores, sufixos co-
letivos, sufixos diminutivos, sufixos aumentativos, sufixos qualitativos, designações
de sistemas, denominações de ação, adjetivos pátrios, relativos a partes do corpo,
adjetivos referentes a animais, adjetivos derivados e sufixos verbais; e derivação
imprópria. A seguir, trata das palavras variáveis: gênero, número, grau; flexões ver-
bais, com exemplos de conjugação, além de muitas classificações e particularidades dos
verbos.
Ocupa-se, na seqüência, conforme o sumário acima, dos fatos sintáticos: concordân-
cia (verbo, adjetivo, adjunto predicativo, voz passiva); ordem ou colocação (incluindo
colocação dos pronomes); regência (sujeito e verbo, adjunto adjetivo, adjunto adver-
bial, adjunto substantivo e adjunto predicativo). Trata ainda das figuras de sintaxe e
dos vícios de linguagem. Em todos esses casos, utiliza-se de abundante exemplificação,
argumentando com alternativas possíveis de uso na língua culta.
Finalmente, no trabalho de pesquisa que é mais elogiado pelos críticos, inclusive
os mais severos, Firmino Costa apresenta um capítulo denominado Particularidades
Sintáticas. Em ordem alfabética, a começar pelo a craseado até os vários usos do subs-
tantivo vez, o autor examina um grande número de peculiaridades da língua portugue-
O educador mineiro, ao que tudo indica, contava receber um dos prêmios da Acade-
mia. Ele se queixou de ter sido preterido, a julgar por uma carta que recebeu de Afon-
so Pena Jr., e que está reproduzida como anexo desta monografia.
Ao refutar, muito depois, as críticas que lhe foram feitas, ele se sentia confortado
pelas opiniões de dois escritores muito diversos entre si, Monteiro Lobato e Laudelino
Freire, representantes, afirma, respectivamente, de orientação renovadora e da linha
clássica.
Na Revista do Brasil, que dirigia, número de abril de 1921, Monteiro Lobato dedica
a primeira de suas resenhas a essa gramática. Afirma:
"Em matéria de língua caminhamos no sentido de criar uma língua nova. filha da
portuguesa.
A língua brasileira positivamente está a sair das faixas, e coexiste no Brasil ao lado
da língua portuguesa - como filha que cresce ao lado da mãe que envelhece. E tempo
virá em que veremos publicar-se a 'Gramática Brasileira'. Pois bem: a gramática de
F. C, sem que o autor pensasse nisso, é já um bom passo à frente para criação da gra-
mática brasileira.
Inúmeras peculiaridades do nosso falar, que as gramáticas anteriores, rigorosamen-
te portuguesas, consignavam condenando como crimes horríveis, F. C. consigna ino-
centando-as, isto é, registrando-as como fatos consumados da língua. Fez, pois, a mais
brasileira das gramáticas portuguesas."5
Naturalmente Firmino Costa pôde assim agir porque sempre fora atento observador
do falar cotidiano e comum das pessoas e porque utilizara, para seus exemplos, tanto
a literatura clássica como a contemporânea, às vezes até recorrendo a autores pouco co-
nhecidos, como o seu conterrâneo Augusto Silva, de quem menciona trecho de um ro-
mance inédito e transcreve um texto sobre o valor da leitura.
Diz depois Monteiro Lobato: "O seu sistema gram aricante é bastante inteligente.
Foge de muito do pedantismo consagrado e apresenta-se com uma clareza e uma singe-
leza extremas. O seu sistema decorre do conceito com que abre o livro: a palavra não
5
MONTEIRO LOBATO, José Bento. Firmino Costa: gramática portuguesa. Revista do Brasil.
São Paulo. (64): 63, abr. 1921.
vale tanto pela sua forma, mas principalmente porque exprime idéias e pensamentos; a
alma da palavra é o sentido, e a sua forma apenas matéria perecível."
Por sua vez, Laudelino Freire, depois de uma digressão em torno a freqüente disso-
ciação entre gramáticos e bons escritores, declara: "Não conhecemos o Prof. Firmino
Costa como escritor. Lemos, porém, a sua Gramática, e dela nos ficou ótima impres-
são; é completa, elaborada num ponto de vista original, e apresenta feição nova, a nos-
so ver conveniente ao ensino."
Termina por afirmar que o autor do compêndio prestara "à língua portuguesa não
pequeno serviço, e nenhum favor lhe faremos em o incluir no grupo dos nossos mes-
tres, e mais notáveis gramáticos". A despeito de tão rasgados elogios, Laudelino Freire,
conhecido por suas opiniões conservadoras, discorda bastante da gramática analisada.
Quanto a considerar descabida a identificação do pronome como substantivo, não ha-
via novidade, pois tal classificação não foi em geral bem aceita. Mas não concorda com
uma orientação do livro, que constitui seu grande mérito. Na "Biblioteca Literária",
proposta por Firmino Costa, entende que só uma dúzia dos quarenta escritores reco-
mendados merece a escolha; os demais "são escritores notoriamente incorretos, e noci-
vo é indicá-los como modelo de linguagem...".6
Antecedentes e conseqüentes
Antes de publicar a gramática, ele havia divulgado artigos e ensaios sobre temas cor-
relatos. Em 1909, comentou o programa e a bibliografia utilizados no Pedro II (então
Ginásio Nacional), criticando algumas das diretrizes estabelecidas, dentre as quais a lei-
tura dos clássicos portugueses mais antigos (a seu ver imprópria, por dificultosa) por
parte dos ginasianos iniciantes no estudo da língua materna. Anteriormente a esse, pu-
blicara dois outros artigos no Almanaque Brasileiro Gamier, edições de 1905 e 1909,
respectivamente.
No final de 1916, prolongando-se pelo ano seguinte, publica na Revista do Brasil,
dirigida por Monteiro Lobato, uma série de estudos sob o título geral de "Vocabulário
Analógico". Esses mesmos trabalhos seriam, anos depois, reproduzidos pelas páginas
do Minas Gerais e, posteriormente, reunidos como capítulos do livro do mesmo nome.
Se, no início da década de 30, quando se edita o volume, tratava-se de completa novi-
dade esse tipo de estudo, em língua portuguesa, com muito maior razão poderia ser
considerado como pioneiro nos idos de 1916.0 apresentador da série, na revista, o gra-
mático Eduardo Carlos Pereira, tece altos elogios ao trabalho e ao respectivo autor,
cuja obra pedagógica, em Lavras, dá mostras de conhecer pessoalmente.7
A publicação em livro era precedida de um prefácio de Afonso D. Taunay, uma
das mais felizes apreciações, de quantas foram feitas até hoje a respeito da personalida-
de e do trabalho de Firmino Costa.
Nesse livro, foi mais longe do que na gramática: utilizou-se de autores regionais e
até de noticiário da imprensa. com ele pretendia ajudar o estudo do vocabulário atra-
vés da analogia. Modestamente, tinha consciência de que era um primeiro passo na
construção de dicionários analógicos em português.
COSTA. Firmino. Vocabulário analógico. Revista do Brasil. São Paulo, 7(3), dez. 1916.
A repercussão do livro foi bastante favorável na imprensa: saíram registros e rese-
nhas no Jornal do Brasil, no Diário de Notícias, ambos do Rio de Janeiro; na imprensa
de Fortaleza; em Juiz de Fora (assinada por Henrique Hargreaves);em Lavras, artigo de
J.B. Alvarenga; no Diário Popular de São Paulo.
Das apreciações feitas, destaquem-se as de João Ribeiro e de Mário Casassanta: o
primeiro, na imprensa do Rio e o segundo, no Minas Gerais.
Do artigo de João Ribeiro, lembrando a antiga ligação sua com o autor:
"Desde muito conhecemos Firmino Costa e admiramos sua vasta cultura e erudição
em matéria do nosso idioma. Este livro bastaria para consagrá-lo, se outras provas não
existissem do seu admirável cabedal lingüístico.
Escreveu, não há muitos anos, uma gramática originalíssima, onde se percebem já
a orientação e a superioridade do seu saber vernáculo de primeira água. O Vocabulário
é uma amostra excelente da plenitude do seu espírito."
Assinalando que eram muito raios esses trabalhos em língua portuguesa, lembra
um manuscrito elaborado por Bilac e nunca editado, "talvez incompleto ou lacuno-
so". E afirma depois: "Pessoalmente falando ao autor, agradeço a nimia gentileza de
Firmino Costa em dedicar-me o seu Vocabulário, e sinto que isso não afeta a imparcia-
lidade com que, aliás, sempre considerei o professor mineiro (...)
Desde muito, foi Firmino Costa um dos mais preciosos colaboradores da minha Gra-
mática Portuguesa, para a qual enviou notas que já se encontram nas páginas da sintaxe
com o fulgor da sua valiosa erudição."8
É difícil dar uma idéia sintética da riqueza de conteúdo do Vocabulário quanto à si-
nonímia e à linguagem coloquial. Há um grupo de elementos informativos sobre desig-
nações de animais domésticos, respectivas cores e sobre linguagem sertaneja; há um ou-
tro sobre "expressões diversas", englobando, por exemplo, expressões de tempo e refe-
rentes à embriaguez; outro sobre graus de nomes; um capítulo para locuções, outro pa-
ra onomatopéias, e outros, respectivamente, para substantivos e sinônimos.
No domínio puramente filológico, o último livro editado pelo mestre foi Léxico
Gramatical. Nele ordenou em verbetes, por ordem alfabética, os conceitos e informa-
ções contidos na sua Gramática. Esse livro, cuja excelente justificativa vai publicada
em apéndice da presente monografia, é citado por outros autores que realizaram tra-
balhos semelhantes, como Antenor Nascentes e Celso Luft.
Nos últimos anos de trabalho. Firmino Costa produziu ainda aulas e conferências
sobre temas gramaticais; provavelmente compõem o livro inédito Memorial da Lingua-
gem.
Um desses trabalhos, "Dificuldades da língua", enumera e examina o seguinte: a
"anarquia ortográfica" então reinante; a ausência de um dicionário analógico; a inexis-
tência de um léxico de regência verbal, também à época, pois essa lacuna foi posterior-
mente suprida; o estudo dos sinônimos parónimos; os neologismos; e dicionário de si-
nônimos. A conferência foi publicada na Revista do Ensino, 1930. Outro trabalho rele-
vante foi de 1929, não publicado em livro: a série de aulas dadas no Curso de Aperfei-
çoamento para Assistentes Técnicos do Ensino. O título geral foi: Língua Portuguesa:
como Resolver Casos Controversos.9 Para a solução dos mesmos, remonta a seus
8
RIBEIRO, João. Crítica; filólogos. Rio de Janeiro, ALB, 1961, p. 262-5; CASASSANTA,
Mário. Vocabulário Analógico. Minas Gerais; Belo Horizonte, 12 out. 1933. p. 8.
Língua Portuguesa, aulas no Curso de Aperfeiçoamento para Assistentes Técnicos do Ensino;
casos controversos. Revista do Ensino. Belo Horizonte, 4(36), ago. 1929. Veja-se, BOLLNOW,
Otto Friedrich. Dificuldades da língua. Revista do Ensino, Belo Horizonte, 5(49), 1930.
"princípios" no estudo dos fatos de linguagem:
" 1 . A forma das expressões subordinar-se-á ao sentido delas, constituindo este o
princípio orientador dos fatos da linguagem. O pronome, por exemplo, terá
que ser classificado como substantivo, porque designa os seres, pouco impor-
tando que continue com a mesma denominação.
2. Não se deve decompor na análise a expressão que na idéia adquiriu unidade in-
dissolúvel. Estão nesse caso as locuções e as palavras compostas.
3. Se a proposição, por demasiado sintética em sua forma, tornar-se irredutível à
análise, desentranhar-se-á dela o sentido correspondente, que será analisado. Da
proposição chove desentranha-se cai chuva."
Passa a examinar os casos controversos: verbos pronominais, o pronome se e parti-
cularidades sintáticas. Nessa mesma série de aulas, fala sobre como organizar o próprio
estudo, sobre a aula na escola ativa, o grupo de disciplinas do núcleo da "língua pá-
tria", a prática da língua no curso primário (onde discute, segundo Piaget, a questão da
idade mais adequada ao início da aprendizagem da leitura), o ensino do vocabulário, os
exercícios de redação e o uso da biblioteca escolar.
Pedagogia da linguagem
Mais importantes que as questões filológicas, e para além delas, existiram as preocupa-
ções do mestre com os problemas de pedagogia da leitura, da escrita e da linguagem.
Foi um desafio que resolveu enfrentar desde o início. Em seu primeiro relatório do
Grupo de Lavras, publicado pela Vida Escolar em 1908, afirma: "Pelo que pude obser-
var, suponho ser o ensino da língua pátria o mais difícil de ministrar aos pequenos. Ele
requer, além do mais, grande conhecimento do vocabulário popular e certa habilidade
de fazer os alunos falar desembaraçadamente, de modo que a aula se torne interessante
para eles, que nela tomarão parte ativa, oferecendo-se desta maneira freqüentes oca-
siões de corrigir suas expressões incorretas ou impróprias."10
Não se trata, pois, de ditar normas formalizadas em gramáticas ou segundo padrões
congelados da língua culta. Trata-se antes de estabelecer o diálogo com os educandos,
numa atitude atenta à expressão espontânea.
Muitos anos depois, ao examinar a questão da leitura, afirma:
"Está na leitura o ensino da instrução metódica. Sem a aquisição desse meio pode-
roso, ficam desaproveitadas todas as conquistas importantes do passado, que são trans-
mitidas por intermédio do livro.
O problema da educação popular já tem definido o seu objetivo supremo, que não
é outro senão este : ensinar o povo a 1er para que ele tire da leitura o máximo de provei-
to social e econômico. Não basta ensinar a 1er. Isso seria simplesmente instrução, nada
mais do que uma ferramenta, cujo valor depende de seu acertado emprego."1
Segundo ele, para ensinar leitura, é preciso amar os livros.
Expõe uma série de princípios sobre o ensino intuitivo, em número de dez, nem to-
dos formulados por psicólogos. Há este, por exemplo, de Kant: "O melhor meio para
aprender é produzir. Aquilo que, mais ou menos, se aprende por si mesmo, é o que se
aprende mais solidamente e o que melhor se conserva."
10
VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 18, p.4.
11
COSTA, Firmino. Pela escola ativa. p. 157.
Outro é proposto por J. Roget: "O método de leitura ideovisual ou global está de
acordo com a tendência da criança, cuja memória é globalizante, porquanto sua per-
cepção é global. Chama-se ideovisual porque a imagem gráfica está sempre intimamen-
te ligada à cena ou objeto; global, porque apresenta o todo." 12
O ensino da leitura deve iniciar-se pelas proposições, embora os alunos possam res-
ponder com proposições elípticas (não plenas como as das perguntas). Trata-se de um
passo adiante ao método da palavração da reforma João Pinheiro.
Firmino Costa apresenta uma série de sugestões para aulas, com diálogos sobre os
objetos existentes na própria sala da escola.
Examina depois a questão da cartilha. Toma, para isso, uma das que considera me-
lhores, a de Mariano de Oliveira. 0 defeito fundamental que critica nesse livro é o fa-
to de se usarem palavras fora do universo cognitivo das crianças (pelo menos das crian-
ças com quem lidava Firmino Costa). Ê importante que os termos a serem lidos corres-
pondam a termos familiares, na linguagem oral das crianças.
Entende que, sem prejuízo da expressividade a ser adquirida depois na leitura inter-
pretativa ou do sentido das expressões, o ensino da leitura nos dois primeiros anos deve
ser mecánico. "O trabalho dos alunos consistirá em 1er a linguagem escrita, cujo senti-
do já conhecem bastante pela linguagem oral correspondente."
Cita, dentre outros termos da referida cartilha, estes: corcel, maca, peloiro, roca, se-
ge, saguim, gamo, dorna, lagosta, lhama, ema, guedelha, cavaca.
O mais interessante é esta proposta:
"A cartilha ideal seria aquela que, adstringindo-se aos princípios e conceitos já apre-
sentados, fosse composta pela professora de colaboração com a classe, para poder
adaptar-se melhor à mentalidade desta, ao meio escolar e aos interesses do momento.
Em tais circunstâncias, a colaboração entre a professora e os alunos desdobrar-se-ia
com maior eficiência dentro do ensino da leitura, combinado este não somente com a
escrita, senão também com o desenho, a modelagem e a língua pátria. No primeiro
ano, pelo menos, essas disciplinas se associariam para iniciar a classe na aprendizagem
da leitura.
Observando, falando, escrevendo, lendo, desenhando e modelando, a classe estaria
imprimindo a seu trabalho a plenitude do método intuitivo, e mais que de leitura, a
aula seria de expressão total do pensamento."
Sem discutir os aspectos técnicos dessa proposta, parece positiva a idéia inicial de
uma cartilha nascida do diálogo entre educador e educando.
como Ensinar Linguagem, como já se assinalou acima, é o livro mais organicamen-
te elaborado de quantos publicou Firmino Costa. Não é gramática nem um curso de
Português, mas sim um guia para os docentes dos cursos elementares. Destina-se a dis-
cutir e orientar o ensino da língua pátria (que abrange a escrita, a leitura e a linguagem,
significando esta, no contexto, a expressão oral e escrita) para os alunos desse nível. O
núcleo do trabalho é um programa analítico, elaborado, semestre por semestre, para o
antigo curso primário. Não apresenta modelos de aula, mas sugestões sobre os assuntos
a serem tratados. Trata-se de um repertório de lições ou, para usar o modelo mercantil
de Firmino Costa, "um sortimento de assuntos, em relação ao qual o professor deverá
proceder qual o comerciante, que não impõe a mercadoria ao freguês, antes satisfaz a
A dimensão estética
19
COSTA, Firmino. como ensinar linguagem no curso primário, p. 22-3.
COSTA, Firmino. O ensino popular, p. 4.
21
COSTA, Firmino. Aprender a estudar, p. 74.
22
COSTA, Firmino. Pela escola ativa. p. 45.
ta revisão". Expõe depois as qualidades de linguagem: clareza, concisão, graça e expres-
sões coloquiais.
O próprio Firmino Costa fora convidado por João Ribeiro a escrever livros escolares
destinados ao curso primário. Numa longa carta, foi-lhe proposta a colaboração con-
junta numa série de volumes com essa finalidade. Recusou a oferta da parceria, por
nao se considerar habilitado a esse tipo de tarefa. Talvez não se julgasse capaz do uso
de uma expressão mais solta e, por isso, mais eficaz para atrair a atenção das crianças.
Realmente, todos os seus escritos — com exceção de uma saudação â criança - se
dirigem à leitura ou à audiência dos adultos. Mas a estes, notadamente aos professores,
ofereceu notáveis e preciosos ensinamentos e sugestões de como lidar com os públicos
infantis por escrito ou pela palavra viva.
Anotações finais: memória e resgate
Derradeiros dias
Legado espiritual
As novas gerações nao conhecem Firmino Costa. A afirmação é válida tanto para as
pessoas comuns, como para os especialistas. Ignoram os novos a importância desse edu-
cador; muitos desconhecem até mesmo de quem se trata.
No entanto, não era um nome local. Provinciano nos afetos à terra e à gente, era um
homem universalmente aberto às conquistas do espírito, sem qualquer estreiteza nacio-
nalista. Alguém que participava com sabedoria dos acontecimentos de cada dia no Bra-
sil e no mundo.
É claro que os antigos alunos e colegas - onde quer que estejam agora, em Belo Ho-
rizonte, nas demais localidades mineiras ou pelo país afora — lembrarão sempre a figu-
ra, as idéias, os atos do mestre. Nos últimos anos não circulou em livro. Apenas um de
seus trabalhos foi reeditado: a conferência sobre Pestalozzi, proferida em 1935. Qual a
atualidade do pensamento pedagógico de Firmino Costa? Por que o esquecimento?
Mais do que qualquer proposta teórica ou doutrina acaso formulada, vale mais, no
caso, o exemplo de uma vida consagrada por inteiro à educação. Mais do que os livros,
valem as atitudes de compreensão ante o novo.
Do ponto de vista histórico, é inquestionável o pioneirismo dele em vários setores
da prática educativa. Seu papel foi também decisivo em momentos cruciais da evolução
recente do ensino. Tudo isso, acreditamos, ficou bem demonstrado nos capítulos ante-
cedentes deste trabalho.
Seus textos pedagógicos não são lidos ou relidos hoje em dia. Dá-se o fato por dife-
rentes motivos. O primeiro deles é que se encerram em livros atualmente raros, encon-
tráveis em poucas bibliotecas e ausentes naquelas onde deveriam existir, as bibliotecas
especializadas. Muitos deles são escritos circunstanciais, elaborados, por exemplo, com
o intuito de facilitar a aplicação de dispositivos regulamentares ou debater inovações
legais; surgiram em contextos históricos bastante diferentes da realidade atual. Assim,
a natureza conjuntural de muitos capítulos dos livros de Firmino Costa retira-lhes a
atualidade. Podem ser lidos, todavia, como testemunhos sempre valiosos para que se
compreendam os problemas então aflorados. Possuem, em qualquer caso, o sabor e a
validade de depoimentos históricos.
Existem, é preciso que se ressalte, temas e tratamentos, na obra do grande educa-
dor, que possuem interesse constante, para não dizer perene.
Relembremos, a esse respeito, certas preocupações que sempre alimentou: a de con-
ferir caráter nitidamente profissional à atividade do magistério em todos os seus níveis;
a de aprimorar as escolas normais, em virtude dos reflexos que exercem sobre o ensino
fundamental; a de estabelecer fecunda interação da comunidade com a escola; a de su-
perar o verbalismo na aprendizagem, substituindo as preleções enfadonhas e as exigên-
cias de memorização mecânica por aulas vivas, com emprego de técnicas participati-
vas; e a de usar a linguagem como recurso para aprender a pensar.
Todas essas preocupações continuam atualíssimas, especialmente em face da priori-
dade que se pretende conferir à expansão e ao aprimoramento da educação fundamen-
tal.
De modo sistemático, Firmino Costa colocou como altíssimo valor a dignidade do
trabalho humano, quer seja manual, quer seja intelectual. Privilegiou, nessa perspectiva,
o trabalho de artesão e a atividade do professor. Cremos vislumbrar, nessa apreciação, a
idéia implícita de que esses afazeres, quando conscientemente executados, levam a
uma integridade psicológica e ética dos trabalhadores.
como decorrência de sua valorização do trabalho do professor, deriva uma nítida
noção da responsabilidade social do mesmo. Acima de todas as facetas desse sentir-se
responsável, está o de cuidar da formação dos cidadãos em nossa sociedade.
Os estudos gramaticais que realizou - também estes de caráter sempre pioneiro -
encontram-se igualmente esquecidos. Mas esse não foi apenas o destino dos trabalhos
de Firmino Costa; do mesmo modo, gramáticas contemporâneas à sua (por exemplo, a
de Eduardo Carlos Pereira) não são mais adotadas nas escolas brasileiras. Será talvez
uma questão ligada à renovação mais recente dos estudos filológicos, intensificada des-
de que se criaram, no final da década de 30, várias Faculdades de Filosofia, Ciências e
Letras. Surgiram autores novos, que se impuseram pela pesquisa e por revitalizada me-
todologia. Assim, usam-se hoje mais os textos de Celso Cunha, para citar apenas um
nome, do que os de João Ribeiro ou Antenor Nascentes, este mesmo um inovador, li-
gado à antiga Faculdade Nacional de Filosofia.
Evidentemente, a verificação - mais do que uma queixa - de que o nome de Firmino
Costa não seja lembrado hoje não se aplica aos lavrenses. A memória coletiva de Lavras
mantém viva a lembrança do mestre querido. O nome está sempre presente, nos nomes
do Grupo e de uma rua; no acervo e nos trabalhos do Museu de Lavras, fundado por
Silvio (Bi) Moreira e hoje vinculado à Escola Superior de Agricultura (ESAL);nos tra-
balhos escolares da Faculdade de Filosofia local; nos escritos da imprensa, dos historia-
dores e cronistas; no busto que foi mandado erguer na Praça Dr. Augusto Silva; e,
principalmente, na conversa dos mais antigos, que vão passando, pela tradição oral, a
recordação do professor bondoso e enérgico. Quando o Grupo Escolar Firmino Costa,
em 1957, comemorou seu cinqüentenário, foram muitas as festas.
Memória a recuperar
1. Livros e Opúsculos
2. Publicados em periódicos
ABL. Concurso de obras sobre a língua portuguesa. Parecer. Revista da ABL, 10:262-
306.
ALVARENGA, J.B. Um filólogo e pedagogista lavrense. A Gazeta, Lavras, 3 dez. 1933.
CARVALHO. José. Um livro bom (sobre a Gramática Portuguesa). Diário da Manhã.
Vitória, maio 1921.
CARVALHO, Luciano. O refúgio da saudade. Jornalzinho Infantil. Lavras, 13 maio
1957.
CASASSANTA, Mário. Firmino Costa. Minas Gerais. Belo Horizonte, 1 jan. 1938.p.3.
Nosso Firmino. Estado de Minas, Belo Horizonte, 6 jul. 1939.
Nota pedagógica. Minas Gerais, Belo Horizonte, 24 maio 1933. p.3.
Vocabulário analógico. Minas Gerais. Belo Horizonte, 12 out. 1933. p.8.
COSTA, A. Hermeto C. À margem de um livro. Minas Gerais. Belo Horizonte, 5 jun.
1921. p.4.
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De João Ribeiro. Carta datada do Rio de Janeiro, 19 jun. 1913. Refere-se a O Ensi-
no Popular e propõe a elaboração com FC de livros de leitura encomendados pelo
editor Garnier.
De Monteiro Lobato. De São Paulo, 10 dez. 1918. Envia exemplares da Revista do
Brasil. Fala do interesse despertado pela publicação do Vocabulário Analógico, in-
clusive entre os estudiosos norte-americanos.
De Ramiz Galvão, duas cartas do Rio, respectivamente de 10 de set. e 18 de out.
1933, agradecendo a dedicatória do Léxico Gramatical. Do mesmo, carta de feverei-
ro de 1935.
De Fernando de Azevedo. São Paulo, 20 mar. 1934. Discute a possível publicação de
trabalhos de FC na col. Biblioteca Pedagógica Brasileira, que o missivista dirigia em
São Paulo. Discute também questões de direitos autorais.
Do Ministro Edmundo Lins. Do Rio de Janeiro, 9 ago. 1935. Faz uma consulta gra-
matical sobre o uso da expressão "o mais acérrimo dos inimigos". Timbre: "Gabine-
te do Presidente da Corte Suprema".
Da Prof? Cynira de Carvalho, então diretora do Grupo Escolar "Firmino Costa",
carta datada de Lavras, 14 abr. 1937. Comunica a próxima celebração do 309 Ani-
versário do Grupo, convida o ex-diretor e envia o programa das festas.
De Cristiano Machado, Secretário da Educação e Saúde Pública, agradecendo remes-
sa de livros de autoria de FC.
De João Carvalho, então presidente da Câmara Municipal de Lavras. Telegrama co-
inimicando sessão da Câmara em homenagem ao 309 Aniversário do Grupo.
De José Oswaldo Araújo. Telegrama. Comovida saudação ao professor que se apo-
senta (1937).
De Afonso Pena Jr., Secretário do Interior, 1921, sobre a Gramática e comentando a
nao concessão a ela do Prêmio da ABL. Refere-se a que muitos estranharam o fato.
"Sempre é melhor isto do que a estranheza contrária. Nao sou dos que fazem ques-
tâ"o do selo oficial e entendem que o 'pavilhão cobre a mercadoria'. Gostei muito de
sua obra e mantenho meu juízo que será incompetente, mas é muito sincero".
De Gustavo Capanema, Ministro da Educação:
"Rio de Janeiro, 20 de abril de 1936.
Meu caro professor Firmino Costa :
Ocupações de tôda sorte impediram-me, até agora, o cumprimento de um suave de-
ver: o de agradecer-lhe o oferecimento de seu livro Pela Escola Ativa. Mas, nem por
serem tardios, os meus agradecimentos perdem em cordialidade e em justo apreço
pela obra de repousada sabedoria que o Sr. acaba de proporcionar aos nossos educa-
dores. Há um belo sentido nessas páginas, escritas por mão experiente e que põe no
ensinar uma grande doçura de sentimento.
Faço os votos mais afetuosos pela sua saúde e mando-lhe um abraço muito cordial,
de admiração e sincera estima.
ass.) Capanema."
Apêndices
Escrita
O programa exige o tipo de letra vertical redonda, para o ensino da escrita. Fácil se-
rá adotá-lo, com os primeiros modelos fornecidos. Este tipo de letra, que vulgarmente
se chama letra em pé, além de ser fácil, é rápido, econômico e higiénico.
I. Nao se permita que as crianças fiquem entregues a si mesmas, ao traçarem as pri-
meiras letras; devem ter a mão educada no modo de pegar a pena e manejá-la de acordo
com o tipo de letra adotado.
II. No primeiro semestre desta disciplina, os alunos usarão ardósias ou lápis e papel,
em vez de pena, porque assim vencerão melhor as dificuldades mecânicas da primeira
aprendizagem.
Lingua Pátria
É a disciplina que mais requer o zelo e a atenção dos professores. Em todas as ou-
tras classes ela estará sempre atestando o modo mau ou bom com que é ensinada. Na
* Apêndice ao capítulo "Novo ensino público".
familia, nos seus brinquedos, na rua, em público, nas suas pequenas correspondências,
o menino revelará sempre os conhecimentos que adquire na escola, para a prática da
sua língua. Por isso mesmo nenhuma outra oferece tanta oportunidade para ser ensina-
da. A todo momento o professor tem ocasião de corrigir as expressões defeituosas, er-
ros de forma e faltas de ortografia de seus alunos.
I. Exercícios freqüentes de ditado, trabalhos escritos diariamente e recitações quan-
to possível.
II. Para a prática de composições e redação, habituem-se os alunos a observar bem o
que vêem; narrar a princípio, depois reproduzir por escrito tudo que lhes passou peles
olhos, exigindo-se que as frases sejam simples, as sentenças curtas, com o emprego fre-
qüente do ponto final, nos primeiros exercícios.
III. É preferível que os vocábulos invariáveis, as formas gramaticais e até a conjuga-
cao dos verbos sejam aprendidos com exercícios no quadro negro.
IV. As regras gramaticais serão deduzidas dos exercícios, nunca aprendidas de cor
sem terem sido antes aplicadas.
Aritmética
No estudo da aritmética tenha-se em vista que o menino precisa desta disciplina pa-
ra agir com prontidão e segurança nos cálculos comuns da prática da vida.
I. É necessário grande exercício de memória com os números simples, repetindo-os
com exemplos numerosos, freqüentemente.
II. Os cálculos, a princípio, devem ser por meio de dados concretos, até que che-
guem às abstrações. É recomendável o uso dos tornos de sapateiro, contadores mecâ-
nicos, cartas de Parker.
III. Não se deve passar às operações seguintes enquanto a anterior não estiver com-
pletamente aprendida.
IV. Evitem-se cálculos que não estejam na capacidade mental da criança, e questões
penosas que a façam tomar aversão a este ensino.
V. As dificuldades devem ser prolongadamente graduadas, procurando-se que os
exercícios sejam mais numerosos do que extensos.
Geografia
I. Dos fatos e coisas da nossa história deve-se fazer seleção do que for mais grandio-
so e importante, transmitindo a princípio em forma de anedota e depois em descrição
e narração simples, por conversa com os alunos.
II. Poucas idéias, claramente expressas, tendo em vista familiarizar os meninos com
os fatos históricos do país, apreciar o valor dos grandes homens e inspirar o sentimen-
to da pátria.
Somente no 3ºano se permitirá a adoção de um pequeno compêndio.
Geometria e Desenho
I. Todas as noções devem basear-se em coisas concretas, utilizando-se os objetos da
classe, do prédio, para o estudo das linhas, dos ângulos, das extensões lineares, quadra-
das e cúbicas, etc.
II. O desenho tenderá especialmente a habilitar o aluno à reprodução de objetos, a
princípio por linhas retas, depois por curvas, aumentando-se gradualmente as dificul-
dades.
I. Não se exigem, nestas matérias, senão breves noções gerais, que facilitem aos alu-
nos o conhecimento do corpo humano, das coisas que o cercam, animais, plantas, etc,
auxiliando-os nos demais estudos da classe, além de fornecer-lhes o vocabulário preciso
na exposição das suas idéias.
II. De higiene o professor aproveitará tudo quanto possa ministrar-lhes noções preci-
sas para a conservação da saúde e seu bem-estar físico, ensinando-lhes cuidar da sua
própria pessoa.
Exercícios Físicos
Não se descuide desta parte da educação das crianças na escola, porque dela depen-
de o desenvolvimento físico dos futuros cidadãos, muitos dos quais não terão em suas
casas os meios e ocasião dos exercícios que a escola lhes pode proporcionar.
Trabalhos Manuais
I. Familiarizem-se as meninas, desde o primeiro dia, com os utensílios do trabalho
doméstico, ensinando-lhes somente o que for útil e prático. Os trabalhos de fantasia
devem ser banidos, ficando esses aos cuidados da família.
II. Faça-se com que a menina, ao deixar a escola, possa se servir pelas próprias mãos,
na execução das peças do vestuário e mais trabalhos comuns da vida doméstica, para
ser desde logo útil a si e à familia.
III. Deverão as alunas conservar em coleção graduada todos os trabalhos, ou uma
peça de cada um que forem executando, para os exibirem como prova final.
Os trabalhos manuais que se exigem para os rapazes, até o 39ano, têm por objetivo
habituá-los ao exercício do trabalho metódico, familiarnando-os ainda com peças e
instrumentos de que tenham de fazer uso, no curso de Ensino Técnico Primário.
Música Vocal
I. Esta disciplina será ministrada por um artista especial, nos Grupos Escolares, em
hora apropriada. Tomarão parte na classe todos os alunos, ou quantos couberem na
sala para isso designada.
II. Nas Escolas Singulares, o canto se fará no primeiro e no último intervalos do ho-
rário das aulas. O próprio professor se encarregará de dirigir o canto, escolhendo hinos
apropriados ou os que se determinarem oficialmente.
Museu Escolar
Horário
Em seguida ao programa de cada ano do curso dos grupos escolares, encontra-se
o horário respectivo, pelo qual se regularão os trabalhos escolares, durante cada dia
da semana.
As aulas começarão às 10 horas da manhã, em ponto, encerrando-se às 2 horas
da tarde. Os alunos do quarto ano, porém, terão das 2 às 3 da tarde o curso de Ensi-
no Técnico Primário.
Janeiro
Dias
Fevereiro
5. Falece, em 1880, o Dr. José Jorge da Silva que, além de reais serviços prestados à
Pátria, foi um grande propugnador pelo progresso de Lavras.
13. Em 1887, publicação do primeiro jornal de Lavras, que se chamou O Lavrense,
fundado pelo ilustre jornalista Dr. Francisco Martins de Andrade.
20. Em 1895, é sepultado em Juiz de Fora o desembargador Barbosa Lima, que foi
juiz de direito de Lavras, onde promoveu a construção do atual prédio do Grupo
Escolar.
Março
24. Organiza-se em 1913, o serviço de merenda para os alunos pobres do Grupo Es-
colar de Lavras.
25. Inaugura-se, em 1912, a Rede Telefônica de Lavras.
26. Em 1898, rende a alma ao Criador a dedicada professora pública D. Guilhermina
Brasileiro, que durante longos anos fez de sua escola, na cidade de Lavras, uma
verdadeira casa de educação.
Abril
• Anotações extraídas do calendário escolar elaborado por Firmino Costa. Trata-se de apêndice
ao capítulo "Comunidade e cidadania".
12. Falece, em 1752, o capitão-mor Francisco Bueno da Fonseca, natural de Sao
Paulo, um dos principais fundadores de Lavras.
14. Em 1889, inaugura-se no município de Lavras a Estação de Ribeirão Vermelho,
da Oeste de Minas.
20. Em 1885, falecimento do comendador José Esteves de Andrade Botelho, um dos
maiores benfeitores da cidade de Lavras.
Maio
13. Libertação dos escravos em 1888, dia de festa nacional. Instalação do Grupo Es-
colar de Lavras em 1907, data de festa escolar.
25. Inaugura-se na cidade de Lavras, em 1908, a estação do telégrafo nacional.
Julho
15. Dia consagrado aos municípios limítrofes de Lavras: data da criação do municí-
pio de Bom Sucesso, em 1872.
20. Festa da cidade, instituída pelo Grupo Escolar: elevação de Lavras à categoria de
cidade, em 1868.
24. Inauguração da luz elétrica na cidade de Lavras, em 1909.
Agosto
Outubro
Dezembro
como provavelmente, ano vindouro, os alunos da Escola Normal desta cidade virio
exercer no grupo a prática profissional, lembrei-me de elaborar o seguinte programa,
cuja execução poderá ficar a meu cargo, desde que V-Exa. se digne conceder-me sua
necessária aprovação:
1 a Parte
"A atenção nada mais é do que a vontade no seu mais alto grau." (Firmino Costa).
Fomos para o grupo à uma e meia da tarde.
Deram aula Zilda e Quetinha.
Zilda deu primeiro; deu bem, só não tornou bastante interessante a sua aula; ela fa-
lou sobre as partes da planta, mas falou das plantas em geral, e então, quando o senhor
Firmino foi fazer a crítica, ele disse que se deve especificar uma planta, como a laran-
jeira, que é muito conhecida das crianças; como em tudo mais, partir sempre do conhe-
cido para o desconhecido;disse também que o ensino de História Natural deve ser liga-
do à Higiene, porque a Higiene faz parte da mesma cadeira. Quetinha fez o mesmo que
a Zilda, sendo que a Zilda deu sua aula com mais desembaraço, mais calma e com me-
lhor voz.
Viemos às três horas e alguns minutos. O bonde vinha descendo...
Segunda-feira
O senhor Firmino falou hoje conosco sobre o ensino do desenho. Disse-nos ele que
leva grande vantagem a pessoa (professora) que sabe desenhar e que muita gente con-
funde o desenho com a pintura; ele disse, convém que saibam desenhar; pintura, só na
Escola de Belas-Artes e para os gênios principalmente... Falou sobre o desenho no Ja-
pão e outros países mais adiantados do que o Brasil.
Fez uma dissertação sobre a força de vontade, contando-nos fatos interessantíssi-
mos que se deram na vida de um seu irmão (já falecido...)
Ainda, como sempre, falou sobre as falhas do programa de ensino das escolas nor-
mais, quando lhe dissemos que não ensinam desenho tirado do natural, mas, sim, có-
pia. O senhor Firmino muito nos fez rir com as comparações que ele fez de tal ensino.
A aula de hoje esteve, como todas, esplêndida.
Amanhã, vamos à modelagem. O senhor Firmino nos incumbiu de fazer um desenho
para ele ver.
Viemos às três horas e poucos minutos(...).
Quinta-feira, 20
A professora não pode, não deve improvisar a aula, disse-nos hoje o senhor Firmino;
demais, é preciso que cada um de nós reflita primeiro no que vai fazer (...)
O Léxico Gramatical, que ora apresento, nao passa de ser a minha gramática portu-
guesa dicionarizada nesta edição. Conforme se sabe, os índices remissivos facilitam ex-
traordinariamente a consulta dos livros, e o dicionário substitui com vantagem qual-
quer desses índices. Por isso mesmo o dicionário goza geralmente de maior apreço do
que a gramática. Dada a esta a forma daquele, é de esperar que ela se torne igualmente
apreciada.
Além disso, o dicionário, pela sua própria organização, nao segue nenhum programa
de ensino, ao passo que a gramática, devido à disposição das matérias, equivale a um
programa. Ora, o ensino integral da língua nao pode ficar preso a um programa deter-
minado, visto que deve atender às oportunidades oriundas do interesse da classe e do
ambiente social.
Entre outros conceitos emitidos sobre a minha gramática, posso desvanecer-me de
dois, que procedem de correntes literárias opostas.
A Revista do Brasil, pela palavra autorizada de Monteiro Lobato, que pertence à
corrente renovadora dos estudos gramaticais, declara que meu compêndio "apresenta-se
com uma clareza e uma singeleza extremas, e é já um bom passo à frente para a criação
da gramática brasileira".
A Revista da Língua Portuguesa, dirigida pelo ilustre filólogo Laudelino Freire sob
orientação clássica, julga que a minha gramática "é completa, elaborada num ponto de
vista propriamente original, e apresenta feição nova, conveniente ao ensino".
Tais conceitos, provindos de origens tão diversas, são bastantes para recomendar o
presente trabalho. Seguiu-se nele um plano realmente novo, o qual, pode-se dizer, ofe-
rece os seguintes relevos: o sentido das expressões como principal orientador do ensino
da língua, o estudo do vocabulário por meio da analogia, a divisão da sintaxe em com-
posição e análise, a leitura de obras constantes de uma biblioteca literária, o desenvolvi-
mento dado à morfologia e à sintaxe, e o reconhecimento da emancipação de nosso
idioma.
Tomando por base o sentido das expressões, teremos o melhor critério para resolver
os casos gramaticais, ainda os mais controvertidos. A começar pela classificação das pa-
lavras e concluir pela debatida questão do se sujeito, tudo se resolverá, desde que nos
guiarmos pelo sentido. Quando a este critério queremos superpor outros motivos, en-
tão complica-se a questão e surgem as contendas gramaticais, que servem quase sempre
para desvirtuar o estudo da língua. Nenhum proveito estimável poderemos auferir da
leitura, da análise e da composição, se nesses exercícios não atendermos antes de tudo
ao sentido.
Firmino Costa
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