REVISTA DA

SOCIEDADE DE PSICOLOGIA
DO RIO GRANDE DO SUL
SEÇÃO 3 - PREMIADOS

Generocentrismo – e o encarceramento
de uma identidade de gênero
através de uma criação sociocultural*

Generocentrismo - and the imprisonment

of a gender identity
through a socio2cultural creation

Autor: Marcelo Moura Zwonok**

Resumo: O presente ensaio é um estudo
sobre a identidade dos homens, buscando a
desnaturalização dessa mesma identidade. A
desnaturalização é um processo que provoca
a desconstrução de uma identidade
preconcebida de ser homem – figura do
homem metafísico. O homem metafísico é a
ideia de que existe um modo de ser homem,
independentemente da própria existência
deste, ou seja, um molde de existir como
homem, antes mesmo de o homem existir.
Reflito e desconstruo essa forma de pensar os
gêneros, pois acredito que a figura do
homem e da mulher não seriam
naturalmente metafísicas, e sim, uma
construção sociocultural.
Abstract: This essay is a study on the identity
of the men, seeking the denaturalization of
that identity. The denaturalization is a process
that causes a deconstruction of a
preconceived identity as a man – the man
metaphysical figure. The metaphysical man is
the idea that there is a way of being a man,
regardless of the existence of this, i.e., a mold
to exist as a man even before man existed.
Reflect and deconstruct this way of thinking
about gender, because I believe that the
figure of the man and woman would not
naturally be metaphysical, but a social and
cultural construction.

Palavras-chave: Identidade de Gênero – Keywords: Gender identity - Sociocultural

Criação Sociocultural - Homem Metafísico Creation – Metaphysical Man

* 3º lugar no III Prêmio Recém-Formados da SPRGS Sistema de Avaliação: Double Blind Review
** Psicólogo, Rede Metodista de Educação do Sul, IPA. E-mail: zackarr9@gmail.com
 O Conto do Homem
Um bebê nasceu!
Tem um pênis, não tem vagina e faltam-lhe os seios: Homem
não é xx, é xy... sim, isso mesmo: Homem.
Talvez ainda não um espécime adulto do macho humano...
muito mais para um menino do sexo masculino... mas ainda
assim: Homem
Mas será? Será um homem mesmo?
Conforme ele vai crescendo, percebemos que ele, Pedro, precisa
saber como é ser um homem de verdade, e cabe a todos nós
ensinar:
-Isso não é coisa de menino brincar!
-Que vergonha meu filho... já disse que meninos não brincam
com isso...
-Que isso?... ele te bateu e tu deixou barato? bate de volta, não
deixa ninguém passar por cima de ti!
-Tu tá triste? bichinha bichinha... lalalala... vai correndo chorar
pra mamãe agora também, vai...
-Tu deixou eles te xingarem assim? Faz alguma coisa não deixa
assim, tu não és homem?
-Nãaao, tu nunca mais veste as minhas roupas menino,
imagina o que os outros diriam se te vissem assim?
-Não quero filho meu homossexual!
-Engole esse choro, onde já se viu homem chorando?
-Tu vais deixar ela carregar as compras?
-Cadê o homem da casa pra subir a escada e pendurar isso pra
mim?
-Claro que ela não vai te dar bola, tu que tem que "chegar na
mulher"...
-Não podes demonstrar fraqueza, as mulheres gostam dos
caras seguros!
-Tu não vais abrir a porta pra ela?
-O homem que paga a conta né!
-Tens que pedir a mão da noiva em casamento pro pai dela...
será que ele deixa?
-O noivo que compra a aliança né...
-Pedro, dá um jeito nesse teu filho que não
para de choramingar...
Agora sim, Pedro é Homem de verdade! Mas só agora que ele
sabe como é ser um homem! Antes ele não era um, e como
não era um homem também não era um ser humano, já que
os seres humanos são divididos em apenas dois tipos: homem
e mulher... não sendo ele homem nem mulher... não era
humano, ou seja, não existia!
O presente ensaio é um estudo sobre a identidade dos
homens, buscando a desnaturalização dessa mesma identidade.
A desnaturalização é um processo que provoca uma desconstru-
ção de uma identidade pré-concebida de ser homem – figura do
homem metafísico. O homem metafísico é a ideia de que existe
um modo de ser homem, independentemente da própria
existência deste, ou seja, um molde de existir como homem,
antes mesmo de o homem existir. Refiro-me aqui a uma tradição
metafísica do nosso pensamento, presente na História ocidental
e alicerçada desde Platão, onde a existência de um outro mundo,
além deste em que vivemos, é o que dita os modelos de como a
vida deve ser.
Essa tradição metafísica aponta uma distinção entre um
mundo modelar e outro composto de elementos que se
modificam. Ou seja, há uma divisão entre o que Platão chama de
mundo das ideias e mundo dos corpos. O mundo das ideias é
onde estão os modelos a serem seguidos, sob o qual o mundo
corruptível dos corpos, ou seja, o nosso mundo, deve se ordenar.
Este modelo ainda está presente em nossos modos de viver,
mesmo que tenha sofrido modificações a cada tempo histórico. O
recorte que faço neste ensaio é em relação ao homem metafísico.
Esse homem é aquele que obedece aos ideais de "ser homem",
seguindo uma identidade que lhe espera antes mesmo de nascer.
Para desnaturalizar o homem metafísico, seria necessário dar-se
conta da construção social desse homem imposto e da não-real
existência desse homem metafísico.
Eu escolhi falar sobre a figura do masculino porque, desde o
início da faculdade, o feminismo e o femismo foram assuntos
muito abordados e refletidos, mas pouco se falava do masculino.
E, quando este aparecia, a figura do homem era geralmente a do
agressor, do macho que precisa de tratamento e reparação, e a
mulher como uma figura submissa e que sofre por causa desse
exemplo de homem. Tomamos contato, na Psicologia, com
correntes feministas, com as conquistas da mulher, e todo o
trabalho sobre as várias visões do feminino e da feminilidade,
mas do homem só se falava de um tipo; que até se acreditava
poder existir outros tipos de homem, mas esses não eram
comentados e, muitas vezes, desconsiderados nas discussões,
como se não existissem. É claro que esta questão não aparece
somente no contexto da faculdade de Psicologia. Através das
experiências da minha vida, pude perceber e repensar diversas
vezes questões que trarei aqui nesta escrita, sobre a masculinida-
de – até mesmo, a minha própria. Em minha experiência
pessoal, não me identificava com essas falas sobre o homem,
sobre os relatos de violência contra a mulher, e acredito não ser o
único que não se identifica com essa imagem. Também através
das correntes mais filosóficas da Psicologia, pude problematizar
todas essas ideias até o ponto de querer criar um trabalho sobre
isso. Assim, eu comecei a pensar: não teriam os homens sofrido
transformações na forma de ser, de forma velada e sem chamar a
atenção das massas, conforme a passagem dos tempos? Não há
outras possibilidades de ser homem, distantes da imagem do
homem metafísico? O gênero não seria uma espécie de clausura?
Sem responder com precisão estas questões, quero problema-
tizá-las, questionando essa forma generalizada de ser homem,
que é uma construção sociocultural afirmada por homens e
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mulheres, em que as identidades pré-estabelecidas se constituí-
ram através da cultura e seriam reforçadas pela sociedade
ocidental. Ao identificarmos o homem de forma precisa,
denominando-lhe e classificando-lhe – assim como faríamos
com uma cadeira, por exemplo –, acabamos por eliminar suas
singularidades e possibilidades, acreditando assim só haver um
meio de ser homem.
O conto que escrevi parte do princípio de que, em algum
momento na vida, todos nós já estivemos perto de uma situação
parecida e, com certeza, já ouvimos frases parecidas com
aquelas. O sentido é mostrar que frases, supostamente inofensi-
vas, têm um teor machista altíssimo, e constroem esse tipo de
homem enjaulado e impotente, sem poder escolher a sua
masculinidade do jeito que quiser e lhe parecer certo.
Através do meu conto, trago uma ideia fictícia de vida de um
menino desde seu nascimento, mas o objetivo é mostrar
justamente o quão impregnados estamos de uma ideia de sexo
como gênero normatizador. Mais ainda, o quanto essa ficção está
presente em nossas vidas cotidianas. Pelo uso do gênero Ensaio,
pretendo expressar a minha pesquisa cartográfica, que inclui
elementos da minha própria experiência, assim como a pesquisa
bibliográfica que surge pela vontade de problematizá-los. Este
trajeto apoia-se naquilo que o pensamento, aqui entendido
como indissociável da experiência, vai encontrando.
A escolha pelo ensaio neste artigo também advêm de uma
vontade de poder ser mais lúdico e aventureiro em relação à
minha escrita temporal, já que aborda questões atuais e só tem
sentido a partir de nossa construção social contemporânea,
tendo também a possibilidade de problematizar as próprias
amarras, formas co-mo a Academia proíbe e elege as suas
escritas. Adorno apresenta a forma lúdica e aventureira do ensaio
com a seguinte frase:
[...] seus esforços ainda espelham a disponibilidade de quem, como uma
criança, não tem vergonha de se entusiasmar com o que os outros já
fizeram. O ensaio reflete o que é amado e odiado, em vez de conceber o
espírito como uma criação a partir do nada, segundo o modelo de uma
irrestrita moral do trabalho. Felicidade e jogo lhe são essenciais. Ele não
começa com Adão e Eva, mas com aquilo sobre o que se deseja falar; diz o
que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim, não onde
nada mais resta a dizer: ocupa, deste modo, um lugar entre os despropósi-
tos (Adorno, 2003, p. 16-17).
Adorno também menciona a característica do ensaio de estar
ancorado e incrustado no tempo, assumindo um caráter
temporário, efêmero, e sua própria finitude. O ensaísta não
escreve algo para o eterno ou atemporal, ou tão pouco para algo
ou nada, mas sim para um contexto cultural determinado. Há
uma citação sua que fala o seguinte:
[...] o ensaio revolta-se contra essa antiga injustiça cometida contra o
transitório. [...] O ensaio recua, assustado, diante da violência do dogma,
que atribui dignidade ontológica ao resultado da abstração, ao conceito
invariável no tempo, por oposição ao individual nele subsumido. [...]) Não
se deixa intimidar pelo depravado pensamento profundo, que contrapõe
verdade e história como opostos irreconciliáveis (Adorno, 2003, p. 25-26).
Homem metafísico
O homem metafísico, ou seja, este conjunto de ideias de
como ser homem, sofreu poucas alterações através dos tempos.
Ele nada mais é do que o homem que se houve falar no senso
comum. As mulheres falam que estes são todos iguais; eles têm
que provar, a todo instante, que são machos, se autoafirmando
com comportamento rude e se assemelhando muitas vezes a
bárbaros. Esses homens se desafiam continuamente para provar
a sua virilidade e o quanto podem vencer o outro, seja por
inteligência ou malandragem. Expressam essas características
seja pela força física (disputando poder), seja aprendendo a
passar por cima dos outros e nunca ser passado para trás, com
ensinamentos como "Se alguém te bater, tens que bater mais
forte". Esse tipo de pensamento retroalimenta uma violência em
sociedade, pois, quando as pessoas que assumem esse
comportamento se sentem ameaçadas, logo colocam em prática
esse ensinamento. O comportamento é rechaçado pelo
movimento feminista e outros, ao mesmo tempo em que está
ainda presente nos modos de vida de homens e mulheres. Além
disso, as exigências de corresponder a uma identidade que já
estaria pressuposta mesmo antes de nossas experiências,
também aparecem em nossa cultura capitalista.
É interessante para o Capitalismo ter pessoas que pensem em
se dar bem a qualquer custo, pois é esse tipo de gente que vai
render mais dinheiro, adequando-se às leis de mercado. "Se dar
bem", culturalmente, é ter dinheiro. A importância pessoal são os
bens materiais que se tem, ao invés de conhecimento ou esforço
para adquirir os mesmos. Junto a isto, está uma produção de
normatização, necessária para que tudo funcione.
Isso funciona através da produção de desejo que incide nos
modos de subjetivação, pois, através desse pensamento, cria-se
uma ilusão de segurança e poder, que seriam alcançados através
do consumo e do dinheiro. Além dessa imagem vendida dos
produtos e dos compradores, também se cria um perfil do
vendedor. É importante para nosso sistema, uma engrenagem
onde todos confirmem a necessidade de consumo, não só de
bens materiais, mas de "modos de ser". É claro que isto não está
separado na sociedade capitalista, por isso o "se dar bem" ou
"lucrar mais do que o outro" está implícito em várias ideias,
inclusive na de ser homem. Neste sentido, somos todos
produtores, vendedores e consumidores de ideias-produtos. No
caso do homem, essa engrenagem precisa de identificação
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universal.
Tanto homens quanto mulheres são envolvidos pela venda
de imagem do homem forte, macho, bonitão, implacável,
fazendo com que ele se espelhe e deseje isso, e que ela seja
seduzida pelo mesmo. Se o homem não se enquadra nessa
imagem, é visto e se sente como inferior, "menos homem", pois
não consegue atingir os deveres perante a sociedade (esse é o
cara que paga a conta, provedor, por exemplo)..
Ao mesmo tempo em que esse papel do homem é algo ruim,
paralelamente, é visto como bom. Se não abre a porta do carro,
isso é algo negativo, mas, se oferece uma rosa, é positivo. O
machismo só não é interessante quando a mulher se sente
desrespeitada por uma questão de dominação e força do
homem, mas, quando estas ações são convenientes, não há
reclamações, pois elas acabam por se sentir "especiais" e
"paparicadas" por deixar os homens agirem. Esta aceitação de
características, quando convenientes, expressa a vontade de
existência desse homem metafísico, mesmo que isso não
apareça no discurso contemporâneo acerca destes temas.
Eu acredito também que, a partir das mudanças fortemente
conquistadas de direitos femininos, que estouraram na década
de 60 e vem seguindo até hoje, elas passaram a se constituir de
algumas características desse homem metafísico. Ou seja, as
mulheres, principalmente pelo fato de cada vez mais consegui-
rem espaço na sociedade, aderem a novos modelos, também
metafísicos, calcados na engrenagem capitalista, que produz
modos de pensar que lhe são convenientes.
Essa mesma forma de pensar construída socialmente cria um
paradoxo: o homem é criticado pela mulher e pelos movimentos
feministas, mas acaba por ser objeto de desejo desta, ou serve de
parâmetro neste mesmo modo de ser. Através deste foco, são
aplicadas as mesmas medidas desde a infância, que os meninos
aprendiam e aprendem a seguir, com frases como "tu tens que
ser mais esperta, passar os outros pra trás", ou ainda a exigência
de corresponder a características consideradas masculinas para
obter sucesso. Podemos também supor que, através desta nova
forma machista de ser mulher, padrões de comportamento que
em gran-de parte da nossa história sempre foram atribuídos ao
homem passam a ser de domínio destas também, e característi-
cas supos-tamente masculinas acabam significando conquista
de espaço. Por exemplo, trair o parceiro, ser mais agressiva, entre
outros, as-sumindo uma série de comportamentos que criticam
nos homens.
Considerando que estas mulheres estão exercendo novos
papéis, sendo mais ativas nas iniciativas de trabalho, nos
relacionamentos e na política, podemos dizer que um dos fatores
deste conjunto de acontecimentos é o espelhamento na figura
metafísica do homem na cultura capitalista.
Partindo do pressuposto de que não existe apenas um
modelo de homem machista, como havíamos comentado, que
outro tipo de homem é esse? Como ele é? Menos homem? Gay?
Homem diferente? Quando não se pode mais falar de um único
modelo hegemônico de homem e de mulher, do qual uma
simples classificação binária (masculino versus feminino) dava
conta, essa parece ser uma boa técnica para restaurar a classifica-
ção de gênero, mesmo que às avessas. Isto é, parece-nos que,
muitas vezes, mesmo quando se considera um desapego das
questões de gênero, abre-se quase que imediatamente outro
conjunto de necessidades que querem a definição precisa deste
"novo tipo". Dessa maneira, instalam-se outra vez modelos
metafísicos. No entanto, insistimos sobre outros modos de ser
homem ou mulher que não sejam marcados por essas necessi-
dades.
Damatta (1997) não aborda especificamente a crise da
masculinidade, mas nos fala das inseguranças do homem. Para
ele, num cenário em que se prega que a sexualidade se efetiva
pela atração pelos opostos, a construção da masculinidade é
atravessada por pontos de insegurança traduzidos principal-
mente pelo medo do homossexualismo e da impotência. Assim,
dentre outros aspectos, os comportamentos masculinos
apontam para o fato de que, para que uma pessoa possa ser um
homem, deve primeiro sentir-se ameaçada de virar mulher.
Junto a esses medos, o homem também pode concentrar a sua
preocupação de, mesmo sendo equipado para funcionar como
macho, falhar na "hora H". Nesse sentido, mais do que ter um
pênis, é saber se relacionar. Relacionar-se, para Damatta,
consiste basicamente em descobrir que "ser homem" não é o
mesmo que "sentir-se como homem". Ser homem é receber de
uma mulher o atestado ou a prova de que se é verdadeiramente
"homem".
Goldenberg (1991), de certa forma, questiona a existência
da crise do macho. Talvez o "machão" esteja realmente em crise,
mas é possível que até ele consiga sobreviver, só que será
obrigado a coexistir com outras formas de masculino. O que não
sobrevive mais é um modelo hegemônico de masculinidade com
base em força, poder e virilidade, embora homens (e mulheres)
continuem alimentando esse ideal. Assim, independentemente
de existir ou não a crise da masculinidade, o fato é que, paralela-
mente aos res-quícios dos padrões patriarcais para uns e a
vigência desses pa-drões para outros, experimentamos
atualmente a possibilidade de construirmos a sexualidade
masculina a partir de outros referenciais. Gomes (1998) diz que
há momentos em que conseguimos dar mais voz à nossa forma
de ser e, em outras vezes, reproduzimos os modelos, ficando até
mesmo na caricatura desses modelos.
A ideia não é atribuir uma nova definição a todos, porque, se
todos tiverem um novo significado, as milhares de identidades
masculinas perderão sua individualidade e suas características
únicas. Temos que fugir dessa obrigatoriedade identificadora tão
forte que temos em relação aos gêneros e nos desapegar do
generocentrismo.
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 Generocentrismo
Generocentrismo é um termo que criei para tentar explicar
um pensamento e fenômeno social muito comum. Este acontece
quando os homens e as mulheres são direcionados a conceber o
seu gênero, enquanto figura metafísica e biológica, como centro
das suas características socioculturais, seja como vantagem ou
desvantagem. Por exemplo: "Todos os homens são iguais" ou
"Ninguém entende as mulheres". As pessoas generocêntricas
estão naturalizadas na sua forma de pensar, colocam seu gênero
no centro de crenças, escolhas e atitudes. Sem perceber, nesta
construção não há um deslocamento para condição do outro e o
entendimento das diferenças torna-se limitado, aumentando os
preconceitos. A convivência entre gêneros passa a ser cindida
numa lógica dualista, em que masculino e feminino estão
separados em lados opostos. Esta forma de pensamento deixa
em segurança os indivíduos que são tranquilizados por uma
lógica generalizadora, supostamente compreendendo a forma
de agir de todo um gênero:
Coube aos homens, situados do lado exterior, do oficial, do público, do
direito, [...] realizar todos os atos ao mesmo tempo breves, perigosos e
espetaculares [...]. As mulheres pelo contrário, estando situadas no âmbito
privado, vêm ser-lhe atribuídos todos os trabalhos domésticos, ou seja,
privados e escondidos ou até mesmo invisíveis e vergonhosos (Bourdieu,
1999, p.41).
Bourdieu acredita que esta cosmologia androcêntrica
entendia a apropriação social dos corpos como uma condição
natural, ou seja, naturalizaram-se os comportamentos sexuais
de homens e mulheres, estabelecendo uma assimetria entre os
gêneros. Padrões culturais e necessidades econômicas de
diversas gerações produziram suas próprias exigências de
comportamentos para homens e mulheres.
É mais fácil lidar com a pessoa de uma forma mais genérica,
pois as formas singulares de perceber e lidar o com mundo,
únicas e complexas em cada pessoa, são impossíveis de serem
conhecidas de antemão. Lidar com o indivíduo traria angústias,
medos e dilemas, muitas vezes não explicados. A repercussão do
pré-conhecimento generocêntrico e ilusório do outro perpetua a
construção sociocultural, criando a dicotomia entre os sexos.
Esse homem – que consegue fugir minimamente, parcial-
mente ou de grande parte dessa construção social – tem tido um
papel interessante na sociedade, por andar nessa direção
contrária a uma construção milenar generocêntrica. Antigamen-
te, homens assim, que não conseguiam cumprir seus deveres de
"ser homem", eram descartados na sociedade. Tempos atrás,
esse "homem do capital", interessante para o sistema e
importante para a sociedade, não era criticado, pois, antigamen-
te, antes das revoluções femininas, o mundo era fortemente
machista e unicamente patriarcal; uma sociedade na qual a
figura paterna é a comandante dentro da família, em que a mãe e
os filhos seguem e são sustentados pelos conhecimentos e ideais
paternos. Sendo assim, os deveres dos homens mais rígidos, e a
grande maioria deles não conseguia enxergar uma forma de
poder abrir mão desses direitos. Com o crescimento do espaço da
mulher, a queda do patriarcado e a participação do homem nas
atividades que originalmente não pertenciam ao macho, este
tem conseguido mais espaço nessa nova forma de se pensar
homem, conseguindo se modificar e dando força às suas
vontades, antes reprimidas. Com o aumento da procura de novos
modos de ser homem, Butler (2013) acredita que não só não
existiria uma forma de ser homem ou mulher, como também que
o gênero é performado: estamos seguindo um papel como se
fôssemos atores:
Significativamente, se o gênero é instituído por meio do qual os atos são
internamente descontínuos, então a aparência da substância é
precisamente isto, uma identidade construída, uma realização
performativa pelo qual, o público-social, mundano, incluindo os próprios
atores, vem a acreditar e a performar, de forma a acreditar. Se a base da
identidade de gênero é a repetição estilizada de atos através do tempo, e
não uma identidade aparentemente perfeita, então as possibilidades de
transformação do género encontran-se na relação arbitraria entre tais atos,
na possibilidade de um tipo diferente de repetição, na quebra ou repetição
subversiva desse estilo. (Butler, 1988, p.520, tradução nossa).
Essa pessoa pode mostrar o tipo de homem que ela escolher
ser, sem seguir apenas a ideia pré-concebida, e, assim, com o
crescimento deste movimento, o generocentrismo pode diminuir,
e as pessoas podem se compreender mais verdadeiramente,
desmistificando e desdemonizando o homem como sendo
aquela figura clássica do machão e machista que a sociedade
acredita. Através de experiências, pesquisas e reflexões,
podemos perceber como se formam as singularidades destes
homens.
Com base na ideia do homem metafísico, se percebe que,
des-de o nascimento do menino na nossa sociedade, são
impostos a ele deveres e formas de ser masculinidade, que
muitas vezes são trazidas pela mãe ou por familiares como algo
indiscutível, certo e belo. Muitas vezes, com o fracasso desses
ensinamentos, vem o próprio rechaço familiar e social, o que faz
com que muitos acreditem ser inferiores em relação aos demais,
sentindo-se como se ti-vessem falhado no seu dever. Mesmo
aqueles que conseguem passar por isso sem se abalar, muitas
vezes se sentem oprimidos por todo pensamento dessa
sociedade, mas, ainda assim, são esses próprios homens a prova
viva daquilo que estou tentando mostrar.
O gênero expõe, ainda, o dilema da diferença, a construção
de desigualdades binárias, de diferenças pretensamente
Diaphora | Porto Alegre, v15(1) | Jan/Jul2015| p. 71
naturais. Significa lutar contra padrões consolidados por
comparações nunca estabelecidas, pontos de vista jamais
expressos como tais. Uma diferença que deve se impor também
na conceituação de gênero, na medida em que, muitas vezes, os
termos mulher e homem são utilizados enquanto categorias
homogêneas e sem história, ou sem relação entre si. Connell
(2005) foi a responsável por introduzir a ideia da inexistência de
uma forma única na construção do masculino nas sociedades,
defendendo a ideia de que as masculinidades deveriam ser
compreendidas como configurações de prática em torno da
posição dos homens nas relações de gênero.
Concordamos com o posicionamento de Butler (2013), para
quem o conceito de gênero possui peculiaridades que o
distanciam de uma postura de cunho estritamente biológico,
mas o implica em uma construção agenciada socialmente,
possibilitando a emergência de sujeitos não circunscritos a uma
heterossexualidade normalizadora. Em razão da definição do
conceito de gênero apoiar-se demasiadamente no sexo
biológico dos sujeitos, diríamos que os estudos de gênero são
proveitosos, pois tratam de uma categoria que afeta os múltiplos
domínios da vida humana. O conceito de sexo que trazemos, na
esteira do que Butler (2008) trabalha, está intimamente
relacionado com o gênero, ou seja, não apenas existe o homem
como ser biológico do sexo masculino, como também, por ser
homem, ele automaticamente é definido pelo seu gênero. Nessa
linha, podemos perceber que sexo e gênero estão ligados de
forma a se espelharem e se restringirem. Para Butler, a ideia
biológica dos sexos é tão fortemente construída socialmente
quanto os gêneros. Ela diz que: "… a rigor, talvez o sexo sempre
tenha sido gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e
gênero revela-se absolutamente nenhuma" (Butler, 2008, p. 25).
Através dessa citação, reafirmamos a forma de pensar de que
sexo e gênero estão entrelaçados de forma a se definirem e
definirem todos os sujeitos.
A individualidade do homem que consegue se desviar das
amarras sociais, por não sofrer tanta ação da cultura, pode ser
desenvolvida por infinitos caminhos, podendo criar símbolos e
culturas próprias, mostrando, assim, diversas formas e possibili-
dades de ser homem, aparecendo desde homens com linhas que
muitos diriam "mais femininas", que gostariam de se vestir,
maquiar e se pentear como bem desejassem até os que têm tanto
carinho e apreço a uma criança quanto uma mãe, passando pelos
que são leais, monogâmicos, românticos e compreensivos, que
são "histéricos", animados, fofoqueiros e risonhos, fracos,
elegantes, generosos e carinhosos. E, quando falamos aqui de
"linhas mais femininas", é justamente para desfazê-las,
mostrando os estereótipos que guardam os gêneros. O que
afirmamos com estas distintas possibilidades de expressão é a
ideia de homens do seu jeito, mas não por isso menos homens.
E como as mulheres veem esse "novo" homem?
As mulheres, assim como os homens, não estão a salvo de
uma ideia pré-estabelecida de feminilidade. Não podemos
pensar numa resposta automática de pensamento de todas em
relação ao homem, mas esta, que vou chamar de mulher
metafísica, também fora instruída a pensar no homem de forma
generocêntrica e metafísica. Normalmente, são atraídas pelo
típico homem musculoso, alto, forte, seguro e economicamente
estável, que advém da venda capitalista introjetada sob este
mesmo, embora os discursos feministas critiquem essa mesma
imagem. A ideia socioculturalmente criada e vendida desse
homem torna quase impossível que ela se sinta atraída por outro,
já que, desde pequena, foi submetida a um discurso que enaltece
e admira essa figura de homem.
Claro que, embora possamos ver e definir essa construção do
macho na sociedade, não podemos cair na armadilha de achar
que todo homem que siga os padrões metafísicos seja igual a
outro. A metafísica define os deveres e a construção de ser
homem, mas mesmo os que se adaptam a ela têm uma
singularidade e são dife-rentes uns dos outros. Não necessaria-
mente por alguém ser ma-chista, vai agredir uma mulher, e não
necessariamente uma pes-soa tenha todas as ideias machistas,
como "as mulheres que enal-tecem uma forma de machismo e
excluem outras", ou "homens que mandam em mulheres, mas
nunca aceitariam agir com agres-sividade física". Ainda assim,
percebe-se que, mesmo com suas in-dividualidades, esses
homens que seguem o construto sociocultural do macho não
têm como largar de mão alguns pensamentos fundamentais
dessa criação, por exemplo, o pensamento de "se dar bem", pois
as crianças são fortemente ensinadas a seguir esse padrão para
aceitação social, e muito dificilmente vão escapar disso. Lógico
que não apenas o homem metafísico é guiado por esses
ensinamentos de "como ser homem" na infância, mas os
meninos que conseguem lutar contra essas crenças também.
Mesmo aqueles que conseguem escapar dos "vômitos de
deveres", ficam com sequelas, pois algumas coisas são tão
ferozmente impostas que o homem não consegue se despir.
Embora se critique bastante a ideia da construção machista
do homem, ele em si não é o alvo das críticas deste ensaio, nem
algo para ser desmerecido, afinal, claro que vão existir pessoas
que se sentem bem nessa forma de pensar e ser. A problemática
que trazemos é em relação à grande violência que acontece com
os meninos/homens, pelo fato de eles serem obrigados a ouvir e
ser assim para ter uma sensação de pertencimento, de valia e de
aceitação. Muitos homens são obrigados a "engolir" as feminili-
dades, os medos, as vontades, de uma forma muitas vezes que os
impedirá de expressar ou experimentar ao longo de sua vida.
Acabam, em suas relações com outros homens, por muitas vezes
nunca percebendo qualquer tipo de vontade outra, que não a
imposta socioculturalmente, até porque a própria comunicação
que muitas vezes irá se estabelecer entre os sujeitos será mais
fácil, pois ela é apenas uma máscara padronizada de agir,
reproduzindo comportamentos socialmente aceitos. As tristezas
Diaphora | Porto Alegre, v15(1) | Jan/Jul2015| p. 72
não são ditas, não podem ser faladas, talvez por não conseguirem
voltar para sua casca, e também, pelo medo de não conseguirem
guardar tudo só pra si de novo.
Desta forma, também o homem que se encontra de várias
maneiras ainda ligado ao masculino, com suas características de
poder sobre a mulher e de virilidade, força e agressividade, torna-
se, baseado em Bourdieu (1999), de maneira geral, vítima do seu
próprio afã de dominação sobre o gênero feminino. Se a tradição
falocêntrica subjugou as mulheres, colocando-as em posições
subalternas, também produziu determinados tabus e mitos para
a sexualidade masculina. Não apenas as mulheres aprendem a
ser femininas e submissas, e são controladas nisto, como
também os homens são vigiados na manutenção de sua
masculinidade. Um sistema de divisão sexual de papéis muda
lentamente, frequentemente por deslizamentos de sentido
graduais. E isso não diz respeito apenas às mulheres; os homens
devem aprender a ser dominadores e ativos, e as mulheres,
submissas.
O negativo deste construto social é quase que puramente a
construção da violência psicológica de mandar e determinar o
jeito como alguém deve ser, partindo de pressupostos filosóficos
de desconsideração de uma verdade absoluta e de um correto a
se seguir, ter vontade e se sentir bem em ser machista.
Conclusão
grandes problemas sociais contemporâneos, como a violência
doméstica. Não acreditar que o gênero é uma construção social,
dicotomizar e generalizar os sexos acaba por nublar nossa
criatividade de lidar com os problemas socioculturais, enjaula e
generaliza os sexos de uma forma violenta, e impede a crença na
forma de ser e existir singular de cada um.
Referências
Adorno, T. W. (2003). O ensaio como forma. (J. M. B. de Oliveira trad.).
São Paulo: Duas Cidades; Editora 34.
Bourdieu, P. (1999). A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil.
Butler, J. (1988/2008). Performative acts and gender constitution: an
essay in phenomenology and feminist theory. Theatre Journal,
40(4), p. 519-531.
Butler, J. (2013). Seu comportamento cria seu gênero. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=9MlqEoCFtPM
Connell, Raewyn (2005). Handbook of Studies on Men and Masculini-
ties (co-editado com M.Kimmell e J.Hearn), Sage

Damatta, R. (1997). Tem pente aí?(p. 31-4). In D. Caldas (org.).

Nós agimos como se ser homem ou mulher fosse uma
Homens. São Paulo: Editora Senac.
verdade interna nossa, pré-existente no mundo, mas, ao
contrário disso, podemos ver que é um fenômeno produzido e Goldberg, M. (1991). Ser homem, ser mulher: dentro e fora do
reproduzido a todo momento de forma normatizadora. Então, a casamento. Estudos antropológicos. Rio de Janeiro: Editora
partir da ideia de Butler (2013) sobre o gênero ser performativo, Revan.
podemos afirmar que ninguém pertence a uma ideia de gênero
desde o nascimento, mas acaba por aprender a se portar dessa Gomes, R. (1998). As questões de gênero e o exercício da paternida-
forma e atuá-la, como a forma de ser do homem metafísico. de. In P. Silveira (org.). Exercício da paternidade (p. 175-182).
Butler (2013) também fala que há práticas sociais informais, Porto Alegre: Editora Artes Médicas.
como bullying e pressão familiar, e poderes institucionais, como a
Psiquiatria normalizadora, que tentam nos manter em nossos Gomes, R. (2003). Sexualidade masculina e saúde do homem:
lugares de gênero, muitas vezes agindo de forma violenta. Assim, proposta para uma discussão. Ciência & Saúde Coletiva, 8(3), 825-
829.
este ensaio vem propor uma forma diferente para pensar os
gêneros, na qual possamos discutir questões ligadas ao homem Silva, S. G. (2006). A crise da masculinidade: uma crítica à identidade
e à mulher de forma menos generalizadora, determinista e de gênero e à literatura masculinista. Psicol. cienc. Prof., 26(1).
generocêntrica, dentro do âmbito da Psicologia, de nossas falas
do dia a dia, entre outros.
Escolher a figura do homem foi de extrema importância para
representar o que se quer afirmar, pois o ser homem é tão
metafisicamente construído na sociedade, que muitas vezes
somos pegos na armadilha de pensamentos automaticamente
machistas, ou de não pensarmos neles como seres individuais. A
forma pré-concebida de ensinarmos homens e mulheres a
existir, fundamentada através do generocentrismo, é a causa das
desavenças e dos desencontros entre os sexos, e o motivo de
Diaphora | Porto Alegre, v15(1) | Jan/Jul2015| p. 73