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REDEFINIÇÃO DE PAPÉIS
NA EXECUÇÃO DE
QUANTIA CERTA CONTRA
A FAZENDA PÚBLICA *
Ricardo Perlingeiro
RESUMO
Trata da execução de quantia certa contra a Fazenda Pública, em face do precatório judicial e dos demais meios de satisfação do título executivo.
Afirma que o precatório não é um procedimento de execução, e sim administrativo, complexo e voluntário, não significando, porém, que haja
impossibilidade de execução forçada contra a Fazenda Pública. Afinal, a efetividade da jurisdição só deve ceder diante da supremacia do interesse
público sobre o individual, a ser apurado no caso concreto.
Sustenta que a dispensa do precatório em caso de execução de pequenas quantias, por meio de emenda constitucional, ensejou a criação das
chamadas “RPVs – Requisições de Pequeno Valor”, bem como a execução forçada desses créditos. No caso, a questão diz respeito ao reconhecimento
da existência ou não dessa modalidade de execução contra a Fazenda Pública quando se trata de valores acima daqueles definidos como mínimos pelo
legislador. Assere, por fim, que na prática ela existe e defende sua previsão em lei.
PALAVRAS-CHAVE
Fazenda Pública; execução forçada, execução por quantia certa; precatório judicial – natureza jurídica; RPV - requisição de pequeno valor; Juizados
Especiais Federais.
*
Conferência proferida nas Jornadas de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito Processual, realizadas entre 10 e 14 de outubro de 2005, no
Blue Tree Alvorada Hotel, em Brasília-DF.
A
lei processual brasileira trata a Pública seja tema demasiadamente cução de quantia certa contra a Fa-
execução de sentenças contra instigante, limitar-me-ei à execução de zenda Pública, que sequer tem pre-
a Administração Pública de quantia certa, considerado pela legis- visão no Código de Processo Civil.
forma absolutamente incoerente, não lação o único procedimento especial O mal não está exatamente no
considerando, na escolha do proce- em relação aos particulares. precatório, mas na impossibilidade de
dimento, a natureza do litígio (públi- execução forçada, ou, mais grave,
co ou privado) nem a qualidade da 2 A NATUREZA JURÍDICA naquela interpretação de que o
parte (ente privado, ente público ou DO PRECATÓRIO E OS DEMAIS precatório constitucional implica a
ente privado no exercício de função MEIOS DE REALIZAÇÃO impossibilidade de expropriação ju-
pública). DO TÍTULO EXECUTIVO dicial da Fazenda Pública.
De acordo com o Código de Na verdade, qualquer título
Processo Civil, por exemplo, são idên- É tradição do Direito Constitu- executivo de quantia certa contra um
ticos os procedimentos de execução cional brasileiro prever o precatório ente particular pode ser realizado
de obrigação de fazer destinados ao judicial como procedimento de paga- voluntária ou involuntariamente. É na-
particular e à Fazenda Pública. mento de título executivo judicial con- tural, assim, que o devedor, desejan-
Nesse mesmo diploma, a exe- tra a Fazenda Pública. do pagar o título, procure o credor e
cução de quantia certa contra a Fa- Está convencionado que o promova a quitação extrajudicial, ou
zenda Pública é feita indistintamente precatório judicial impede a execução então, instado no processo de exe-
por meio de precatório judicial, pou- forçada, sujeitando o pagamento à cução, o faça judicialmente.
co importando ser oriunda de um cré- existência de dotação orçamentária Entretanto, não efetuando o
dito de direito privado. prévia, o que depende de lei e, por- pagamento, esse devedor estará su-
É ainda irrelevante, pelo Códi- tanto, de vontade política. jeito à execução forçada, de modo a
go de Processo Civil, que o devedor, A previsão constitucional do permitir a satisfação do título por meio
sendo pessoa jurídica de direito pri- precatório judicial associado às re- de expropriação judicial.
vado, esteja no exercício de função gras orçamentárias é inegavelmente É coerente e lógico que a Fa-
pública, realizando um serviço essen- incompatível com a expropriação ju- zenda Pública, pagando voluntaria-
cial à sociedade; nesse caso aplicar- dicial e já me levou a classificá-lo co- mente suas dívidas judiciais, o faça
se-ão as regras da execução contra mo uma execução impossível ou vo- por meio do precatório, sendo igual-
particulares1. luntária, na esteira dos ensinamentos mente lógico que, dependendo
A incoerência é patente, leva de Liebman 5. esse ato de vontade, seja indispen-
à perplexidade e a um sentimento Após novas reflexões, concluí sável uma previsão orçamentária.
de injustiça, pois a lei ora admite que o precatório judicial não é sequer Tudo aquilo que se gasta por von-
de modo indevido uma execução procedimento de execução, como tade própria depende de orçamen-
plena, ora restringe-a desnecessa- ocorre na obrigação de fazer infun- to prévio.
riamente2. gível, em que o devedor necessita ser Incoerente e incompreensível
Vale refletir sobre as seguintes instado, por meio de coerção, a reali- seria se estivéssemos diante de uma
situações: zar o título. execução forçada e a Fazenda Públi-
A execução de obrigação de O precatório judicial é um pro- ca dependesse de previsão orçamen-
fazer contra a Fazenda Pública, em- cedimento administrativo e comple- tária. Só se prevê aquilo que está no
bora envolva uma despesa milionária xo, que externa um ato de vontade âmbito de sua disponibilidade.
e com possibilidades de sacrificar o da Fazenda Pública devedora no Mas como o precatório é um
orçamento público, está sujeita a um cumprimento extrajudicial do título ato de vontade, essa vontade, para
procedimento idêntico ao da exe- executivo. ser materializada, depende de pre-
cução contra particulares, inclusive É administrativo porquanto as- visão.
quanto aos meios de coerção psico- sociado às regras e princípios orça- Está, ainda, intrinsecamente
lógica do art. 461 do CPC. mentários, internos e inerentes à Ad- vinculada ao precatório a observân-
Por outro lado, uma execução ministração Pública, a quem compe- cia à ordem de preferência, pois, se
de quantia certa de obrigação alimen- te, com exclusividade, gastar aquilo o pagamento é voluntário, em tese
tar, que, pela própria natureza, é es- que prevê. É complexo porque está poderia haver escolha de credor, sem
sencial à vida, dependerá de previ- sujeito a etapas que transitam por razoabilidade6 ou acobertando advo-
são orçamentária, e o seu pagamen- órgãos do Executivo, Legislativo e até cacia administrativa.
to ocorrerá, na melhor das hipóteses, mesmo do Judiciário, em função Entretanto, nunca é demais
no exercício financeiro seguinte 3. atípica, que é a do presidente do tri- lembrar que não assegurar o direito à
É uma anomalia de raízes pro- bunal. É voluntário porque depende execução é o mesmo que negar o di-
fundas, cercada de dogmas, e de in- de disponibilidade orçamentária em reito de ação7, não sendo admissível,
teira responsabilidade da doutrina lei e é extrajudicial por ser o paga- no atual estágio da sociedade, inter-
brasileira, que somente há pouco des- mento realizado sem que haja inter- pretar o princípio do Estado demo-
pertou para a necessidade de conso- ferência do juiz da execução. crático de Direito de modo a concluir
lidação de uma disciplina autônoma A natureza jurídica do preca- que não há execução contra a Fazen-
destinada ao processo civil das cau- tório, tal como proposta, é o cerne da da Pública 8.
sas de Direito Administrativo, Direito questão, tratando-se de premissa Não é o precatório que deve
Tributário e Direito Previdenciário, para básica para todo raciocínio e compre- impedir a execução forçada contra a
a qual Cássio Sacarpinella Bueno uti- ensão do sistema brasileiro de exe- Fazenda Pública, mas a supremacia
liza a expressão “Direito Processual cução de sentenças contra a Fazen- do interesse público sobre o indivi-
Público”4. da Pública. dual que, à luz do caso concreto, pode