Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
J U R o· E N
ABE,RMa
I
o , •• -, ...... _ _
O'
, . /0
--
TE D
o *
JÜRGEN HABERMAS
O DISCURSO FILOSÓFICO
DA MODERNIDADE
Tradução de
Ana Maria Bernardo, José Rui Meirelles Pereira,
Manuel José Simões Loureiro, Maria Antónia Espadinha Soares,
Maria Helena Rodrigues de Carvalho, Maria Leopoldina de Almeida
e Sara Cabral Seruya
Revisão científica de
António Marques
~'
(Nova enciclopédia; 1)
II :
_ .
:
./ / ISBN 972-20-0811-0
CDU 1"19"
!
· ~.·
;: J' //.
J
,~~~:r, .~~ ./~/ Publicações Dom Quixote, Lda.
V
fj l'Y
""- ~
tt·" Av. Cintura do Porto de Lisboa
Urbanização da Malinha- Lote A- 2.° C
,{:)~ 1900 Lisboa - Portugal
;,. .f.:;,
ISBN: 972-20-0811-0
~SIDADf fE1JiJU:'.\;. U·;;) U:
•xBLIOTHC.i\ CENTr.!.'l\ W
ÍNDICE
~>-,· ch'vl·5~
251
--~
XI. UMA OUTRA SAÍDA DA FILOSOFIA DO SUJEITO: RAZÃO
COMUNICACIONAL VERSUS RAZÃO CENTRADA NO
SUJEITO..... .. .. .. . . .. . ... . .. .... ........... . . ......... . . 275
Excurso a propósito de «A instituição imaginária» de C. Casto-
·'
....
PREFÁCIO
11
Após o meu regresso à Universidade de Frankfurt dei lições sobre este
assunto no semestre de Verão de 1983 e no semestre de Inverno de 1983/84.
Juntou-se-lhes depois a s.a lição, que retoma um texto já publicado 4, bem
como a última, que foi elaborada recentemente - pelo que, nesse sentido, as
considero fictícias. As quatro primeiras lições foram proferidas pela primeira•
vez em Março de 1983 no ColH:ge de France em Paris. Com outros capítulos
participei em Setembro de 1984 nas Messenger l.ectures na Comell University,
Ithaca N .Y. As teses mais importantes foram também apresentadas e discutidas
em seminários no Boston College. As animadas discussões que pude manter em
todas estas oportunidades com colegas e alunos forneceram-me muito mais
sugestões do que as que foram fixadas retrospectivamente em notas de fim de
página.
Um volume da Suhrkamp Edition 5, publicado simultaneamente, contém
suplementos ao discurso filosófico da modernidade de teor mais político.
J. H.
4 In K. H. Bohrer (ed.), Mythos und Moderne (Mito e modernidade) Frankfurt/ Main, 1982,
pp. 415-430.
5 J. Habermas, Die Neue Unübersichtlichkeit (A nova opacidade), Frankfurt/Main, 1985.
12
_j
I. A CONSCiêNCIA DE ÉPOCA DA MODERNIDADE
E A SUA NECESSIDADE DE AUTOCERTIFICAÇÃO
13
(> - •
"
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
3 Artigo «Modernization» in : Encycl. Soe. Science, Vol. X, pp. 386 e segs., aqui p. 397. I
14
I
_j
A CONSCIÊNCIA DE ÉPOCA DA MODERNIDADE
4 A. Gehlen, <<Über kulturelle Kristallisatiom> (Sobre cristalização cultural) in: id., Studien zur
Anthropo/ogie und Soziologie (Estudos de antropologia ·e sociologia), Neuwied, 1963, p. 321.
5 De um ensaio de H. E. Holthusen, <<Heimweh nach Geschichte>> (Saudades da Histórica), in:
Merkur, N.0 430, Dez. 1984, p. 916, deduzo que Gehlen poderia ter ido buscar a expressão «Posthis-
toire» ao seu amigo Hendrick de Man, que lhe estava intelectualmente muito próximo.
- (k. o c\ - ~· ..r
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
11
6 Para o que se segue cf. R. Koselleck, Vergangene Zukunjt (0 futuro transacto), Frankfurt/ Main, 1979.
..
16
•.t
A CONSCIÊNCIA DE ÉPOCA DA MODERNIDADE
17
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
18
J
A CONSCIÊNCIA DE ÉPOCA DA MODERNIDADE
des Modernes» (Origem e significado da ideia de progresso na Querei/e des Anciens et des Moder-
nes), in: H. Kuhn, F. Wiedmann (ed.), Die Phi/osophie und die Frage nach dem Fortschritt (A filo-
sofia e a interrogação sobre o progresso), Munique, 1964, pp. 51 e segs.
19
O DISCURSO FIWSÓFICO DA MODERNIDADE
20
A CONSCIÊNCIA DE ÉPOCA DA MODERNIDADE
divino, o primeiro elemento seria indigerível, [... ] para a natureza humana» 20.
Baudelaire, na sua qualidade de crítico de arte, destaca na pintura moderna o
aspecto «da beleza fugaz, efémera da vida presente, o carácter daquilo que o
leitor nos permite designar por a modernidade [Modernitii.t] 21. Baudelaire
escreve a palavra modernidade [Modernitãt] entre aspas, porque tem plena
consciência de que essa palavra é nova e é usada terminologicamente de forma
peculiar. Consequentemente a obra autêntica está radicalmente presa ao
momento em que nasce; exactamente porque se consome na actualidade é que
pode deter o fluxo regular das trivialidades, romper a normalidade e saciar por
,_
um m()mento, o momento da efémera fusão do eterno com o_actual, o im~tal
-· ---
-anseio de beleza.
-
A beleza eterna desvenda-se apenas no disfarce de trajo da época; Benjam1
' - - -~~ ' -......__r
referir-se-á mais tarde a isto usando a expressão da imagem dialéctica. A obra
de arte moderna está marcada pela união do ·autêntico com o efémero. Este
carácter de actualidade fundamenta igualmente a afinidade da arte com a
.:.noda, ~ com o que é novo, com a óptica do ocioso, do génio assim como da
criança que, carecendo da protecção relativamente ao estímulo proporcionada
pelas formas de percepção que as convenções moderam, ficam vulneráveis aos
ataques da beleza, dos e~tí~ulos t.!ll~cend~ntes djssimulados no que há de
mais quotidiano. O papel do andY. consiste então em, com o seu ar negligente,
transformar em provocação este género de extra-quotidiano que outros experi-
mentam passivamente, e em tornar manifesto, pela provocação, esse mesmo ex-
tra-quotidiano 22. O dandy combina o que é ocioso e o que é rrwda com o pra-
zer de provocar o espanto - sem nunca se espantar. Ele é o especialista do
prazer fugaz do momento, do qual brota o que é novidade: «Ele procura esse
algo indefinido a que me permitirei chamar a modernidade [Modernitãt], à
falta de melhor termo para exprimir a ideia em causa. Para ele o que interessa
é extrair d&,moda tudo o que ela possa conter de poético no histórico, de eterno
no efémero» 23.
~alter Jknj~retoma este tema para encontrar uma solução para a tarefa
paradoxal de extrair critérios próprios a partir da contingência de uma moder-
nidade que se tornara simplesmente transitória. Enquanto Baudelaire se satisfi-
zera em pensar que a constelação de tempo e eternidade se produzia na genuína
obra de arte, Benjamin pretende retroverter esta experiência estética fundamen-
tal numa relação histórica. Forma para isso o conceito de (<tempo presen!e»
[Jetztzeit] em que se foram alojar estilhaços do tempo messiânico ou tempo con-
'
20 Baudelaire, Obras escolhidas, Vol. IV, p. 271.
21 Baudelaire, Obras escolhidas, Vol. IV, pp. 325 e segs.
22 <<A todos é comum o mesmo carácter de oposição e de revolta ; são todos representantes do que
há de melhor no orgulho e na altivez humana, dessa necessidade, tão rara actualmente, de ·combater
e de destruir a trivialidade». (Baudelaire, Obras escolhidas, Vol. IV, p. 302).
23 Baudelaire, Obras escolhidas, Vol. IV, p. 284.
21
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
EXCURSO SOBRE
AS TESES DE BENJAMIN SOBRE A FILOSOFIA DA HISTÓRIA
24 W. Benjamin «Über den Begriff der Geschichte» (Sobre o conceito da História), Obras esco·
/hidas, Vol. I, pp. 2, 701.
25 lbid., p. 704.
26 In: Obras escolhidas, Vol. I, p. 2.
22
A CONSCIÊNCIA DE ÉPOCA DA MODERNIDADE
tal como a união mística com o aparecimento do Messias, obrigam a uma para-
gem, a uma cristalização do acontecer momentâneo. Para Benjamin não se
trata aqui apenas da renovação enfática de uma consciência para a qual «cada
segundo (é) a porta estreita por onde poderia entrar o Messias» (teses 18). Ben-
ja!llin procede a uma tal inversão, em volta do eix9 ~o ~tempo-prêsênt~. da
orientação radical para o futuro, característica aliás da Idade Moderna, a ponto
de a transformar numa orientação ainda mais radical para o passado. 'A expec-
~~tiv§l d~ novo que o futuro oferece só se cumpre através da rememoração de
um. ~assado reprimido. Benjamin interpreta o sinal de uma tal cessação messiâ-
....... -......_.....-
nica dos acontecimentos como «oportunidade revolucionária na luta pelo pas-
sado repri~ (teses 17). .._.
- --':- K~se!!e~_ , no âmbito das suas investigações sobre a história dos concei-
tos caracterizou a consciência moderna de época, entre outras formas, pela
crescente diferença entre ~ (espaço experiência~ e <'h orizonte de expectativa) :
de --~
-- ~ -
«Segundo a minha tese a diferença na idade moderna entre experiência e expec-
tativa regista um progressivo aumento, ou, para ser mais rigoroso, a idade
moderna só se pode compreender como um tempo novo depois que as expecta-
tiVas passaram a afastar-se cada vez mais de todas as experiências feitas até
então» 27 ~/A orientação específica da idade moderna em direcção ao futuro
forma-se apenas na medida em que a modernização social destrói o campo
experimental da velha Europa, de mundos da vida de cunho rural e artesanal,
o mobiliza, e o desvaloriza enquanto conjunto de directivas que comandam a
expectativa. otug~r -destas experiên~ias legadas por anteriores gerações é ocu-
pado então por aquela mesma experiência de progresso que confere ao hori-
zonte de expectativa, até aí firmemente alicerçado no passado, uma «qualidade
"nova do ponto de vista histórico, constantemente susceptível de ser excedida
pela Qitopia>) 28.
Koselleck interpreta sem dúvida erradamente o facto de que o conceito de
progresso serviu não apenas para a secularização de esperanças escatológicas e
para a utópica abertura do horizonte de expectativa mas igualmente para, com
a ajuda de construções teleológicas de história, obstruir mais uma vez o futuro
enquanto fonte de inquietação. A polémica de Benjamin contra a nivelação so-
cial-evolucionista da concepção histórico-materialista da história tem como alvo
essa mesma degenerescência da consciência de época da modernidade, aberta
ao futuro. Onde o progresso petrifica em norma histórica a qualidade do que
é novo e o ênfase do imprevisível início são eliminádos da relação do presente
com o futuro. Nesta perspectiva o historicismo é para Benjamin apenas um
equivalente funcional da filosofia da história. O historiador dotado de empatia
23
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
24
-t.. A CONSCIÊNCIA DE ÉPOCA DA MODERNIDADE
29 «Não há nenhum documento de cultura que não seja ao mesmo tempo um documento da
barbárie. E como ele próprio não está isento de barbárie também o não está o processo de transmis-
são cultural pelo qual ele cai das mãos de uma cultura nas de outra» (7 .• Tese).
25
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
III
26
i
A CONSCIÊNCIA DE ÉPOCA DA MODERNIDADE
27
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
28
J
A CONSCIÊNCIA DE ÉPOCA DA MODERNIDADE
e não assumirem senão uma forma de que eu detenho inteiramente o poder» 44.
A realidade não atinge a expressão artística senão na refracção subjectiva da
alma sensível - ela é <<Uma mera manifestação através do eu».
Na modernidade, portanto, a vida religiosa, o Estado e a sociedade, bem
como a ciência, a moral e a arte transformam-se em outras tantas incarnações
do princípio da subjectividade 45 .. A sua estrutura é englobada como tal na
filosofia, nomeadamente como subjectividade abstracta no Cogito ergo sum de
Descartes, na forma da autoconsciência absoluta em Kant:/Trata-se da estrutura
da auto-relação do sujeito cognoscente que se debruça sobre si como sobre um
objecto para se compreender como uma imagem reflectida num espelho, preci-
samente, «numa atitude especulativa». Desta abordagem da filosofia da refle-
xão faz Kant a base das suas três «Críticas». Faz da razão o supremo tribunal
perante o qual tem de apresentar uma justificação tudo aquilo que de uma
forma geral reclama qualquer validade.
Com a análise dos fundamentos do conhecimento a Crítica da Razão Pura
assume a tarefa de uma crítica ao mau uso que fazemos da nossa faculdade de
conhecer talhada à medida dos fenómenos. Kant substitui o conceito substan-
cial da razão da tradição metafísica pelo conceito de uma razão cindida nos
seus momentos e cuja unidade não é já mais do que formal. Ele separa a facul-
dade da razão prática e a faculdade de julgar do.conhecimento teórico e assenta
cada uma delas nos seus fundamentos próprios. Ao fundar a possibilidade de
c~nh,ecimento objectivo, de discernimento moral e de valorização estética, a
razão crítica não apenas assegura as suas próprias faculdades subjectivas nem
apenas torna transparente a arquitectónica da razão, mas desempenha também
o papel de um juiz supremo mesmo perante a cultura no seu todo. Tal como
Emil Lask dirá mais tarde, a filosofia demarca uma das outras as esferas de
valor culturais tais como ciência e técnica, direito e moral, arte e crítica de arte,
partindo de pontos de vista exclusivamente formais, e legitima-as dentro desses
limites 46.
Até ao fim do séc. XVIII a ciência, a moral e a arte tinham-se diferenciado
umas das outras também do ponto de vista institucional como domínios de
29
•
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
actividade, nos quais eram trabalhadas de forma autónoma, isto é, sob o seu
aspecto específico de validade, questões da verdade, da justiça e do gosto.
E esta esfera do saber havia-se separado no seu todo da esfera da fé por um
lado e por Õutro lado das relações sociais organizadas segundo o direito bem
-cÕmÕ da vida quotidiana em comunidade Reconhecemos aqui precisamente as
~- ~
esferas que Hegel mais tarde co~ceb~u como expressões do princípio da subjec-
"-----
tividade. E Porque a reflexão transcendental, ém qÚe esse mesmo princípiÕ da
_... ---
- .... - --
~?jectividade surge por assim dizer na sua nudez, reivindica ao mesmo tempo
competências jurídicas fãce a e ssas esferas, Hegel vê na filosofia kantiana a
essência do mundo moderno concentrada como num foco.
IV
30
I
J
A CONSCIÊNCIA DE ÉPOCA DA MODERNIDADE
;C
à formação da liberdade subjectiva e _da reflexão e de minar a .:r~l,!.gii).o, que era
ãté aí o poder unificador por excelência, não é todavia suficientemente forte a
pontoderegenérar~ no medium da razão, o poder unificador da religião. A orgu-
lhosa cultura 'iluminista da reflexão, «separou-se [da religião] e colocou-a a par
~ de si ou colocou-se a si a par dela» 47. A despromoção da religião conduz a
t-' uma dissociação da fé e do saber que o iluminismo não consegue superar pelos
seus próprios meios. É por isso que este ·figura na Fenomenologia do Espírito
sob o título de um !!?-.l!i!d_o. _ali~~ado d~ si próprio :48 «Quanto mais progride a
formação [cultural] tanto mais multiforme é o desenvolvimento das manifesta-
ções da vida em que a mpartição se pode enlaçar, tanto mais forte se torna a
bipartição... tanto mais estranhos ao todo da formação [cultural] e tanto mais
insignificantes se tornam os esforços da vida ·(outrora a cargo da religião) para
se regenerar em harmonia» 49.
Esta frase consta de uma polémi'ca tida com Reinhold, o chamado «Diffe-
renzschrift» de 1801, em que Hegel concebe a ãestruí~a harmonia da víãã como
sendo o desafio prático e a necessidade da filosofia so. O facto de a consciên-
cia da época se ter destacado da totalidade e de o espírito se ter alienado de
~(pf"óprici"ccinstitui deddictarilente para Hegel um pressuposto do filosofar con-
. .
. -
crença; ele pretende encontrar uma resposta para a crise da'bipartição da própria
vida. Se não fosse assim não poderia a crítica filosófica propor-se satisfazer a
necessidade que ditou objectivamente o seu nascimento. A crítica do idealismo
subjectivo é ao mesmo tempo a crítica de uma modernidade que apenas por essa
via se pode certificar do seu próprio conceito e chegar a um equilíbrio a partir de
31
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
si própria. E ao fazê-lo não pode nem deve a crítica servir-se de qualquer outro
instrumento que não seja a reflexão na qual reconhece a mais pura expressão
do princípio dos tempos modernos 51. Na realidade, se se prerende que -a
modernidade s;fundamente a partir de si própria, Hegel tem de desenvolver
o conceito crítico de modernidade a partir de uma dialéctica inerente ao princí-
pio do próprio iluminismo.
Iremos ver a forma como Hegel realizará este programa e se deb!ará enredar
num dilema. Tendo levado ao seu termo a dialéctica do iluminismo rer-se-á
esgotado o impulso para ·uma crítica do tempo presente, impulso que fora o
único a pôr em movitp.ento essa dialéctica. Teremos de começar por mostrar o
que se esconde nessa «antecâmara da filosofia» onde Hegel instala o pressu-
posto do absoluto». Os motivos da filosofia da unificação remontam às expe-
riências de crise do jovem Hegel. Estão por detrás da convicção de que a razão
pode constituir uma força conciliadora contra as positividades de uma época
dilacerada. Esta versão mítico-poética de uma conciliação da modernidade,
partilhada inicialmente por Hegel com Holderlin e Schelling, prende-se decerto
ainda aos passados exemplares dos primórdios do cristianismo e da anúgui-
dade. Só durante o período de Iena é que Hegel, com base no seu próprio con-
ceito do saber absoluto, assume uma posição que lhe permite ultrapassar os
produtos do iluminismo - a arte romântica, a religião da razão e a sociedade
burguesa - sem se deixar guiar por modelos estranhos Este conceito do abso-
luto__constitui no entanto um recuo e Hegel fica aquém das suas inruições de
juventude : crê que a vitória sobre a subjectividade está dentro dos limites de
uma filosofia do sujeito. Daí deriva o seguinte dilema: Hegel terá de contestar
32
r
~RSIDADE FEOENAl 00 PA!ú
BIMLIOTBCA CENTR.U
:t
{.
33
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
.. politicamente,
-....-...~-- pelas ideias veiculadas pela Revolução Francesa. A ordem rigoro-
samente regulamentada da vida no Seminário desempenhavam uma função pro-
vocatória: «A teologia de Storr, o regulamento do convento e a constituição do
Estado que conferia a sua protecção a ambas pareciam à maioria (dos semina-
·-....- ·- - --
ristas) valerem uma revolução.» 3 No quadro dos estudos teológicos a que
---
Hegel e Schelling então se dedicavam este impulso rebelde assume a forma mais
-----
refre;d; de uma in;phàÇão refo~matóriãllõ-âmbi~;- do cristianism~ primi!!_vQ:_
-
34
O CONCEITO HEGEL/ANO DE MODERNIDADE
minismo.
~ o.sitivismo da etiçjdadel é, assim julga o jovem Hegel, o signo da
época!'As religiões que assentam somente na autoridade A-
e que não
.,.,p (i\
colocam o
valor do Homem na sua moral designa Hegel de positivas s;.:: prescrições
segundo as quais os crentes devem poder obte\"'\a graça de Deus por meio de
obras em vez de pelo a.,gir moral são positivas; positiva é a esperança de uma
i ndemnização no além;lb ositivo é o alheamento de uma doutrina concentrada
;_s mãos de alguns da vida e da propriedade de todos; ~ ositivo é ~~ap~rta
mento do ~~bey..,d,2t.tacerdote_s das Ç!WÇas feti~JE"stªª das massas, e o desvio
que . só pode conduzir à e%cidade por intermédio da auto.cidade e dos _;:u;t.QL
~~s de uma pessoa; positivas são as (}_§,sever,;:t~Ç>es e ªrn_e._aç2.s que visam
a mera legalidade do agir; ositivas são, por fim e antes de mais, a separação
da religi~~ privada da vi4a_pública.
Se tudo isto caracterizasse a crença positiva que o partido ortodoxo defende,
o partido filosófico teria o jogo na mão. Pois esta insiste no princípio de que
a religião não tem pura e simplesmente nada de positivo em si, mas que é auto-
l
35
®··
8. '(. .
~-., ;r,~ .
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
rizada pela razão universal dos Homens de modo que «todo o Homem discerne
e sente as obrigações dela caso passe a dar atenção a isso» 9. ~~~ ilumi_-
_nistas Hegel opõe, por sua vez, <llle a pura religi~o da.2!-zão, não m_eE_os que
a crença em fetiches, representa uma abstracção, pois ela é incapaz de interessar
.-o coração e de exercer influência sobre as sensações ~ as -~~e~sid~des/Também-
_...... ....
-----
ela leva apenas a um outro tipo de religião privada, porque está separada das
.....__
-
.... -.... -.
instituições da vida pública e não desperta qualquer entusiasmo. Só se a reli-
-~- ..... -
"\...
--
--
-~
----
constituição do Império Alemão 13. Tal como o espírito vivo do cristianismo
-
-------
--~---
primitivo se escapou da religião tornada positiva da ortodoxia contem orânea,
- ·-- --.. .... - ~ - -- - --- ---..- -
a~irp t~mbém_ na política as leis perderam a sua antiga vida, bem assim não
9 H ., Vol. I, p. 33.
!O H., Vol. I, p. 77.
11 H., Vol. I, p. 41.
12 H., Vol. I, p. 254.
13 Sobre os escritos políticos do jovem Hegel cf. Vol. I, pp. 255 e segs.; 268 e segs.; 428 e segs.;
451 e segs. - Claro que nos escritos políticos o pendor ainda é para a crítica do iluminismo. Hegel
recupera-a, como é conhecido, na/iEJomenologÍa- d---;-BsplritQJsob o título <<A liberdade absoluta e
o temor». Também aqui ela é dirigida contra um partido filosófico que, com reivindicações abstrac-
tas, se opõe a um regime velho e entrincheirado por detrás da sua positividade. Por outro lado, nos
{!~crito:)..p_p!ítlco~, a experiência da crise tem uma expressão mais eloquente, em todo o caso mais ime-
diata, que nos teológicos. Hegel proclama abertamente a penúria da época, o sentimento de contradi-
ção, a necessidade de modificação, o ímpeto de quebrar as restrições: <<~.imagem de _t~~pos melho-
res, mais jul!_tos, chegou à alma do homem com to<!_a a vitalidade, e uma ~o~~lg~a, um anseio de
~m~ situação mais pura, mais livre, comoveu todos os ânimos e apartou-os da rea)idade.>>
(H., Vol. I, pp. 268 e segs.). Cf. também o meu posfácio: G. W. F. Hegel, Politische Schrijten (Escri-
tos políticos), Frankfurt, 1966, pp. 343 e segs.
36
O CONCEITO HEGEL/ANO DE MODERNIDADE
--------------
mesmo princípio a que aquela é devida.
~
11
Nos seus primeiros escritos, Hegel opera com a força conciliadora de uma
razão que não é directamente deduzível da subjectividade.
Ele acentua o lado autoritário da autoconsciência sempre que tem em vista
----
a bipartição pela reflexão. Os fenómenos modernos do «positivo» desmascaram
~-- - - -
_Q_~ctividade como princípio da domi!!ação. E assim que a
,
14 H ., Vol. 1, p. 465.
15 H ., Vol. 1, pp. 219 e 234 e segs.
16 H ., Vol. 1, p. 118.
37
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
-
o poder da vida alienada pelo seu acto como um destino que lhe é hostil. Ele
~ .
sente como ne~essidade histórica de um destino aquilo que na verdade é apenas
o poder reactivo da vida reprimida e extinguida, Este deixa sofrer o culpado até
ele reconhecer na destruição da vida alheia uma falta da sua própria vida, no
_abandono da vida alheia a alienação de si mesmo; Nesta casualidade do destip._9
~ elo quebrado da totalidade ética retoma à consciência. A totalidade bipartida
só pode ser conciliada se da experiência da negatividade do bipartido ascender
a~a." da vida...r>~ - e, bem assim, quando esta obriga os implicados
a reconhecer na existência cindida do que lhes é estranho a sua própria natu-
reza renegada. Então ambos os partidos compreenderão a sua posição obsti-
nada um face ao outro como resultado da separação, da abstracção do contexto
colectivo da sua vida - e neste eles reconhecem o fundamento da sua exis-
tência.
Hegel contrapõe às leis abstractas da moral as leis completamente diferentes
de um contexto concreto de culpa que surge pela cisão de uma totalidade ética
pressuposta. Mas aquele processar do destino justo não pode ser deduzido,
como as leis da razão prática, do princípio da subjectividade por intermédio do
-~ --... ---
conceito da vontade autônoma. A dinâmica do destino resulta antes da desor-
dem das condições de simetria e das relações recíprocas de reconhecimento de
-
um ~~~texto -de vida ~con~it:_::~~ (jjjíerfub]ectivame~. dQ qu~l s~ isolQi. ui~
parte, tendo-se assim todas as outras também alienado de si mesmas e da sua
~ç_~ectiva. É só com este tipo de separação de um mundo da vida c~i
lhado intersubjectivamente que é gerada uma relação sujeito-objecto. Em todo
17 H. Vol. 1, p. 323.
18 H., Vol. 1, p . 342 e segs.
38
O CONCEITO HEGEL/ANO DE MODERNIDADE
' --
';,..lo~ .t. -~. u ~ (X...:..•:G,..:.oo: f<:'~~~ .-; "f'C.: ...,~s. r -.s(....:.nx~~- ~ e. t" u ( ·~ '-·"'
t.,.:...t. ~ '"'U:,~A ')('?0""' -:"l.- !C.Ao..,S1-·)..M$""-.t;'~r.,,,._...-~y~
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
III
20 R. Bubner (ed.), Das aelteste Systemprogramm (O mais antigo programa de sistema), Bona,
1973 ; acerca da proveniência do manuscrito cf. os contributos para: Chr. Jamme, H. Schneider (ed.),
Mythologie der Vernunft (Mitologia da Razão), Frankfurt, 1984.
40
O CONCEITO HEGEL/ANO DE MODERNIDADE
21 H ., Vol. I, p. 236.
22 «Assim os iluminados e os não-iluminados podem finalmente apertar as mãos, a mitologia
tem de se tornar filosófica e o povo racional, e a filosofia tem de se tornar mitológica para tornar
os filósofos sensíveis.» H., Vol. I, p. 236.
23 Cf. o excurso a seguir, na página 51 e segs.
24 Henrich (1971), pp. 61 e segs.
25 H., Vol. 2, p. 23.
41
~ O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
• sofre de@ sas 1dentidaat:_ , porque tanto no quotidiano como na filosofia, res-
pectivamente, eleva um condicionado a absoluto. Às positividades da fé e às
" instituições políticas, à eticidade bipartida, em geral, corresponde o dogma-
\:. tismo da Filosofia Kantiana. Esta absolutiza a autoconsciência do Homem
-·_, dotado de entendimento a qual «adquire coerência e firmeza objectiva, substan-
"- cialidade, multiplicidade e até mesmo realidade e possibilidade» da variedade
de um mundo que se desagrega em si, «- uma determinidade objectiva que o
~ :. ~f , '. Homem contempla e deita fora» 26. E o que é válido para a unidade do sub-
.. ~ ; ... ~ ~ jectivo e do objectivo no conhecimento é igualmente válido para a identidade
~ • ' :l
:1
~ ~ 1~ 8 do finito e do infinito, do singular e do universal, da liberdade e da necessidade
~'"' ~z - -i ;I ~I na religião, no Estado, na moralidade; tudo isto são identidades falsas - «a
3 11
" => "' '" unificação é violenta, uma toma a outra sob si... a identidade que devia ser
absoluta é incompleta» 27 .
0 anseio de uma .-..-:~~-----
entidade natura_ a necessidade de uma identidade dife-
rente da positiva, fixada em relações de poder, é para Hegel, como acabamos
de ver, autenticada pelas suas vivas experiências da crise. Se, porém, a verda-
deira identidade, por seu lado, tem de ser desenvolvida a partir do princípio da
filosofia da reflexão, ~ tem certamente de ser pensada como_a auto-refe-
rência de um sujeito/ p_orém, doravante com_o uma reflexão que não se impõe
meramente enquanto poder absoluto da subjectividade a um outro/ mas que, ao
mesmo tempo, não tem a sua subsistência e o seu movimento em nada mais que
~o-~~en~e~~m_§~ntrariar todas as absolutizações,(~:;. ~·· ._<::m eliminar reiteradã-
!Dente todo o positivo que ele gera. Por isso, Hegel coloca no lugar da oposição
abstracta entre finito e infinito a auto-referência absoluta de um sujeito que
alcançou a autoconsciência após ter saído da substância, que comporta em si
tanto a unidade quanto a diferença do finito e do infinito. Em contraste com
Hoelderlin e Schelling este sujeito absoluto não pode preceder o processo uni-
versal como ser ou intuição intelectual, pois tem de consistir unicamente no
processo da relação recíproca entre o finito e o infinito e, portanto, na activi-
dade devoradora do próprio retornar-a-si. O <ªi?"S'õili!m não é concebido nem
como substância nem como sujeito, mas apenas como processo mediador da
auto-relação que se produz sem qualquer condição 28.
Esta figura de pensamento característica de Hegel utiliza os meios da filoso-
fia do sujeito com o fim de uma superação da razão centrada no sujeito. Com
ela o Hegel da fase madura pode persuadir a modernidade dos seus erros sem
recorrer a mais nenhum outro princípio que não seja o da subjectividade que
é imanente a ela mesma. A sua estética fornece um exemplo instrutivo disso.
Os companheiros de Frankfurt não tinham posto a sua esperança só na
42
•
r,.
..
?c·::
<_, t
(lt:r.c:.:--
~
~CHiL.t.er:
: A~C:(i.t
.-.M;Wéio!\oC~ •
,...\-Ott';....:~"" ~ ~~~"'
i'~·
t:- tC".C't '.t.<q: ... ~ ..._~ ... ~~:.:.·~.:,. >
o~.,;c."•Vo:J'K: 1 10.)~ .. ~-~ •
UNi~~ "'\'e\;.•~"tll(.l.ll'
29 H. R. Jauss, <<Schlegels und Schillers Replik» (<<A réplica de Schlegel e de Schiller»), in id.,
1970, pp. 67 e segs.
30 H., Vol. 13, p. 89.
31 H., Vol. 13, p. 141.
43
O DISCURSO FIWSÓFICO DA MODERNIDADE
44
O CONCEITO HEGEL/ANO DE MODERNIDADE
IV
45
.
por consequência, meios para o fim do particular. Mas o fim particular confere
a si mesmo por meio da relação com outros a forma da universalidade e satis-
faz-se, satisfazendo ao mesmo tempo o bem-estar dos outros.» 37 Hegel des-
creve as €Íações de merca Q)como um domínio neutralizado eticamente para
a persecução estratégica de interesses privados, «cobiçosos», fundando estes,
além disso, um «sistema de dependências multilaterais». Na descrição de Hegel
~----·------
a sociedade civil aparece, por um lado, como <mma eticidade perdida nos seus
extremoo)>,- por ouúo: «cÕmo condenad-a à perversão»: 3f Por outro lado, ela,
«a criação do mundo moderno» 39, encontra a suadJ.Istíficaçãb\ na emancipa-
ção_do indivíduo ao qual coE_fere liberdade formal: o desencadeamento da arbi-
trariedade das necessidades e do trabalho é um momento necessário na via para
:<formar ~eybjectivida"®na sua particularidade» 40.
Embora o novo termo «sociedade civil» só apareça mais tarde na Filosofia
do Direito Hegel elaborou a nova concepção já durante o período de Iena. No
ensaio Sobre os modos de tratamento científico do direito natural (1802) refere-
-se à Economia Política para analisar «o sistema da dependência recíproca uni-
versal face às necessidades físicas, e ao trabalho e à acumulação em virtude das
mesmas» 41 como «sistema da propriedade e do direito». Já aqui se lhe coloca
o problema de como é que a sociedade civil pode ser concebida não meramente
como uma f§j_era do declín@ da eticidade substancial, mas ao mesmo tempo,
na sua negatividade, como um friwment_o_ f!gçessário) da ~icidadel Hegel parte
do princípio de que o ideal antigo de Estado não pode ser recuperado sob as
condições da sociedade moderna despolitizada. Por outro lado, ele retém a
ideia daquela totalidade ética que inicialmente o tinha ocupado sob o nome de
religião do povo. Ele tem, portanto, de mediar o ideal ético dos antigos, no sen-
_, tido em que ele é superior ao idealismo dos tempo~nÕs, com ;_s ;e~lid"à
des da moC{ernidade social. Co~ a diferenciação entre Estado e- sociedade qi:ie
Hegel, de facto, já então assume, ele demarca-se ao mesmo tenwo da filosofia
restaurativa do Estado bem como do direito natural e racional~Enquanto que
o direito de Estado da restauração não vai além das representações de uma eti-
cidade substancial e ainda concebe o Estado como uma relação familiar alar-
gada,.;o direito natural individualista não se eleva sequer até à ideia da eticidade
e identifica o Estado da necessidade e do entendimento com as relações de
direito privado da sociedade civil. A especificidade do Estado moderno só entra
J~ em consideração quando o princípio da sociedade civil é concebido como um
princípio de socialização em forma de mercado, i. e., Cili.
um modo não esta ta!)
39 H ., Vol. 7, p. 340.
40 H., Vol. 7, p. 343.
41 H ., Vol. 2, p. 482.
46 J ?L•'!< ~
~ - t> c ~'"'· : X) e ~ "' ~~
~t. : i"-i V ~'V \ ' ..;, ,.. .
"3 .sc~-z-~
<? >< • ' x~<.-vi.o ~·
, \-t. l.-'
Pois «O princípio do Estado moderno tem uma força e uma profundidade enor-
~que não deixam que o princípio da subjectividade se aperfeiçoe até extre~o
_autónomo da particularidade pessoal e, ao mesmo tempo, redu~lo à unidade
substancial, conservando-a deste modo dentro dele mesmo.» 42
Esta formulação caracteriza o problema da mediação entre Estado e socie-
dade, e caracteriza também a solução tendenciosa que Hegel propõe. Não é de
modo algum óbvio que a esfera da eticidade englobe a família, a sociedade, a
formação política da vontade e o aparelho de Estado como um todo, que só
se deva resumir, i. e., voltar a si mesma no Estado, mais precisamente no
governo e no seu cume monárquico. Inicialmente Hegel só pode tornar plausí-
vel que e porquê que no sistema das necessidades e do trabalho eclodem @nta-
~~nismqS) que não podem ser absorvidos apenas pela auto-regulação da socie-
dade civil; isto explica Hegel, sempre à altura da sua época, pela «queda de
uma grande massa abaixo da média de um certo modo de subsistência que, por
sua vez, comporta a grande facilidade em concentrar riquezas desproporciona-
das nas mãos de uns quantos» 43. Daí decorre, evidentemente, a necessidade
funcional da incorporação da sociedade antagónica numa esfera de viva etici-
dade. Esta universalidade, inicialmente apenas exigida, tem a forma dupla da
eticidade absoluta ue a sociedade engloba em si como um dos seus momentos
e a de um <Universal positivo» que se distingue da sociedade para absorver as
tendências de autodestruição e, ao mesmo tempo, preservar os resultados da
emancipação. Hegel pensa este positivo como Estado e resolve o problema da
mediaç~ pela «superação» da sociedade no plano da monarquia consti-
tucional. \,
Contudo, esta solução decorre necessariamente apenas com o pressuposto
de um~s~gundo o !!!odelo~~eferência e um
~jeito~~nte 44. A figura da@ oconsciênci já tinha impelido Hegel na
sua Filosofia Real de Iena a «pensar como unidade da individualidade e do
universal» o todo ético 45. Pois um sujeito que é relativo a si mesmo no conhe-
cimento encontra-se, simultaneamente, a si mesmo como um Weit;;-u~
que está perante o mundo como totalidade dos objectos do conhecimento
possível, e como um@"" individua que ocorre dentro deste mundo como uma
entre muitas outras entidades. Ora se o absoluto é pensado como subjectividade
infinita (que se gera eternamente na objectividade para se elevar da sua cinza
até ao esplendor do saber absoluto 46), os momentos do universal e do singu-
lar só podem ser pensados como unificados no quadro de referências do auto-
conhecimento monológico: por isso, no universal concreto o sujeito permanece
como primazia universal face ao sujeito enquanto _singl!lar:J?ara a esfera da eti-
cidade decorre desta lógica a primazia d ubjectividade fie alto grau do Estâdo
face à liberdade subjectiva do indivíduo. D. Henrich designou isto de «forte ins-
titucionalismo» da filosofia do direito de Hegel: «A vontade singular, que
Hegel denomina subjectiva, está inteiramente integrada na ordem das institui-
ções e, em geral, só nessa medida é justificada, do mesmo modo como esta
o é.» 47
Um outro modelo para a mediação do universal e do singular oferece a
intersubjectividade de alto grau da formação natural da vontade numa comuni-
dade comunicacional que se encontre sujeita à necessidade de cooperar: na uni-
versalidade de um consenso "Mtüfã , atingido entre Homens livres e iguais, os
indivíduos conservam uma instância de apelo que pode ser evocada também
contra formas particulares da concretização institucional da vontade colectiva.
Nos escritos de juventude de Hegel, como acabámos de ver, ficou em aberto
a opção de explicar a totalidade ética como uma razão comunicacional incorpo-
rada em contextos intersubjectivos de vida. Nesta linha, uma auto-organização
democrática da sociedade poderia ter ocupado o lugar do aparelho de Estado
monárquico. Em contrapartida, a lógica do sujeito que se concebe a si mesmo
impõe o institucionalismo de um Estado forte.
Quando, porém, o Estado da Filosofia do Direito é elevado à «efectividade
da vontade substancial, ao racional em e para si» daí decorre a consequência,
sentida como provocação já mesmo pelos contemporâneos, de que o movi-
mento político que se arroja além dos limites traçados pela filosofia, do ponto
·de vista de Hegel, transgride a própria razão/I Tal como a Filosofia da Religião
• .
que no final põe de lado as necessidades religiosas insatisfeitas do povo 48, a
filosofia do Estado também se retira da realidade política que é incapaz de apa-
ziguar. O anseio de autodeterminação democrática que se anuncia energica-
mente na revolução parisiense de Julho, e cautelosamente no projecto de gabi-
nete inglês para uma reforma eleitoral, soa aos ouvidos de Hegel como uma
46 Com estas palavras Hegel caracteriza a tragédia que o absoluto, em jogo constante consigo
mesmo, coloca em cena no domínio do ético; H., Vol. 2, p. 495.
47 Henrich, Einleitung zu Hegel (Introdução a Hegel), 1983, p. 31.
48 «Quando o Evangelho já não é pregado aos pobres, quando o sal se tornou tolice e todos
os festejos fundamentais foram furtivamente excluídos, então o povo, para cuja razão angustiada a
verdade só pode estar na representação, já não sabe como encarar a ansiedade do seu íntimo» (H.,
Vol. 17, p. 343).
48
O CONCEITO HEGEL/ANO DE MODERNIDADE
«dissonância» ainda mais aguda. Desta vez Hegel está tão inquieto com a dis-
crepância entre razão e actualidade histórica que se coloca com o seu ensaio
Sobre a Carta inglesa para reforma, francamente, do lado da restauração.
v
Mal tinha Hegel acabado de conceptualizar a @í?ãi';tiça da modernidade já
a rebelião e o movimento da modernidade se preparava para estilhaçar este con-
ceito. Isto explica-se pela circunstância de que Hegel só podia realizar a crítica
da subjectividade dentro do quadro da filosofia do sujeito. Qn_de o poder da
bipartição se deve tornar activo para que o absoluto se possa demonstrar como
sendo o poder da unificação, aí não pode haver mais positividades «falsas», mas
meras bipartições a que é permitido aspirar a um direito também relativo. Foi
o forte institucionalismo que guiou a pena de Hegel quando este, no prefácio
à Filosofia do Direito, declarou ser o real racional. É certo que nas lições prece-
dentes do semestre de Inverno de 1819/20 encontra-se a formulação mais fraca:
«0 que é racional devém real e o real devém racional.» 49 Contudo, mesmo esta
frase abre campo de manobra para U.RJ-a ~t~,!l,llil_adwré-_çiecidi®, pré-condenada.
Recordemos o "i'o blema iniéial ' uma modernidade sem modelo, aberta ao
~ futuro, ansiosa de inovações, só pode ir buscar os seus critérios a si mesma.
1
O princípio da subjectividade, donde provém a própria COJ1Sciência temporal da
modernidade, é oferecido como fonte única do normativo:0A filosofia da refle-
xão, que parte do facto básico da autoconsciência, conceptualiza este princípio.
~ faculdade de reflexão aplicada a si mesma revela-se, claro está, também o
negativo de uma subjectividade autonomizada, posta de modo absoluto~)Por
~·-
isso, a racionalidade do entendimento, que a modernidade sabe que é sua pro-
priedade e a qual reconhece como único víncul~, alarga-se até à fª._~ seguindo
as pegadas de uma dialéctica do iluminismo~~Co?!udo, enquanto s-aber abso-
luto, esta raz~o acab~ por_tomar uma forma que é de tal modo imponente que
!lão só resolve o problema inicial da autocertificação da modernidade como o
resolve demasiado b_em: a questão sobre a autocompreensão genuína da moder-
nidade perece ao som das gargalhadas irónicas da razão.fPois a razão ocupou
agora o lugar do .estino e sabe que todo o acontecer de significado essencial
já foi decidido%>Assim, a filosofia de Hegel satisfaz a necessidade da moderni-
dade de autofunda!llentação somente ao preço de um @:"arg~me;rt'o d a act~i;.
__g_~e de uma es~gudização da c..!ftica. Por fim, a filosofia retira o peso da
sua presença, destrói o interesse que- há por ela e recusa-lhe a vocação para ino-
vação autocrítica. Os problemas do tempo perdem o grau de provocações por-
que a filosofia, que está à altura do seu tempo, lhes retireu o sentido.
(
@ !., ~,.,;. (.y"o.M'"'V~"' \,;;\. A 't:-,)-~ \C •
49
»: ... (\..... \._(_~.:- ~
""' N '
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
---
modernidade, após ter não só penetrado na realidade, mas ter devindo nela
objectivo, Hegel vê a filosofia dispensada da tarefa de confrontar a existência
corrompida- da vida social e polítíca com o seu conceito. A esta@esagudização
~da c~corresponde a ilepreciaÇão da actuãtTaCiae) a que viram as c~s õS
~---
50
-- ;..1(: (· ( -t - '
-~-r~) y~~
• ~!E>~Sli1AIJE FEDEf'IAl 00 PW
.t (
' ~
-~~
'...::
1$UHJOTECA CEN1'R,U
nidade em declínio p~la via de uma outra dialéctica do iluminismo. Eles consti-
tuem, claro está, apenas um de vários partidos. Ambos os outros partidos que
lutam pela compreensão correcta da modernidade empreendem a tentativa de
dissolver a coesão interna entre modernidade, consciência do tempo e racionali-
dade; não obstante, eles não conseguem furtar-se à coacção conceptual desta
constelação. O partido dos @êoconservadÕr~ que se inspira no hegelianismo de
direita, abandona-se acriticamente à dinâmica que impele a modernidade
social, trivializando a consciência moderna da época e recortando a razão à
medida do entendimento e a racionalidade à medida da racionalidade orientada
para fins. A par da ciência autonomizada de modo cienticista a modernidade
cultural perde para eles qualquer vínculo. O partido dos ~con~erva~
que se inspira em Nietzsche excede a crítica dialéctica da época, radicalizando
a moderna consciência da época e desmascarando a razão como racionalidade
absolutizada orientada para fins, como forma de exercício despersonalizado do
poder. Nisto ela deve à arte vanguardista esteticamente autonomizada aquelas
normas inconfessadas perante as quais não pode subsistir, nem a modernidade
cultural, nem a modernidade da sociedade.
51
t• I
~ r.. •
que deve ser capaz e digno de trocar o ~tado da ne~essi~ãa'el pelo Estado dâ
Jiberdade.» (Vol. V, p. 579.) Se a arte deve poder cumprir a tarefa histórica de
conciliar consigo mesma a modernidade em decadência, ela não pode apenas
arrebatar os indivíduos, ela tem antes de transformar as formas de vida que os
indivíduos compartilham. Por isso, Schiller aposta na força comunicativa, insti-
tuinte de comunhão, solidária, no arácter público da arte. A sua análise da
_actualidade des~?Iboca na visão de que nas relaçõe-s modernas da vida as forças
particulares só se diferenciaram e desenvolveram ao preço da fragmentação da
totalidade.
Mais uma vez, a concorrência do novo com o velho fornece o ponto de
apoio para uma autôcertificação crítica da modernidade. A poesia e a arte gre-
gas também «dissecaram, porventura, a natureza humana e separaram as suas
partes ampliando-as na plêiade esplendorosa dos seus deuses, mas não foi por
elas a terem fragmentado, mas sim por terem misturado de diversas maneiras
as suas partes, que a humanidade estava presente em cada. um dos deuses.
Como é diferente entre nós! Entre nós a imagem do género humano também
foi dividida e ampliada em indivíduos - mas em fragmentos e não em misturas
>
:o. diversas, de modo que temos de interrogar os indivíduos um a um para conse-
guirmos obter uma leitura da totalidade do género humano.» (Vol. V, p. 582.)
Schiller critica a @ edade bÜrgu-e&à) como «sistema do e~~ísm~. As palavras
que escolhe fazem lembrar o jovem Marx. A mecânica de um relógio engenhoso
serve de modelo tanto para o processo económico coisificado que separa o pra-
zer do trabalho, o meio do fim, o esforço da recompensa (Vol. V, p. 584), como
igualmente para o â ~lho d~- Esta~o autonomizado que se aliena dos cida-
dãos, os «classifica» como objectos de administração e «subsume a frias leis»
(Vol. V, p. 585). Com a crítica do trabalho alienado e da burocracia, de um só
fôlego (Schiller) opõe-se a uma éfêncla intelectualizada, super-especializada que
se afasta dos problemas do quotidiano: «Esforçando-se no reino das ideias por
possessões inalienáveis, o espírito especulativo teve de se tornar no mundo dos
... sentidos um estranho, perdendo a matéria a favor da forma. O espírito
empreendedor, encerrado num círculo uniforme de objectos e ainda mais cons-
trangido neste pelas fórmulas, viu o todo da liberdade afastado do seu campo
de visão e empobrecer-se a par de toda a sua esfera ... Em consequência, o pen-
sador abstracto tem um coração frio, porque ele decompõe as impressões que,
apesar disso, afectam a alma apenas como um todo; frequentemente, o homem
de negócios tem um coração pouco sensível porque a sua imaginação está
encerrada no círculo uniforme da sua profissão e não se pode alargar a modos
de representação diferentes.» (Vol. V, pp. 585 e segs.)
Claro está que Schiller entende estes fenómenos de ~apenas como
efeitos secundários inevitáveis do progresso que, doutro modo, o género
humano não poderia ter efectuado. Schiller partilha da confiança da filosofia
crítica da história, serve-se da figura de pensamento teleológico, mesmo sem
52 ~u. (;:o,->;;.-
•-!> <:,.\'<:: --_. ti•
........
,.:._o.,.~(:, ,_..,;:i.. o. n.-.. tr4.-·..)r..;:.-:,.-..A. ~ ~Go l-ti·::: M.ce.tt.•- ,.,;.. .....,.~,~>-'-!
, ~..\.~j. ,_.'/.~.. (J""' ~ 4 .(• ""
~0--.t...c-o ~·r.'.c>t"
0
• ~~\.A~ ~N4.wV..c.o
i. ?p,.. t.. {-.tC:!-- .... ~~-'*'!l4"tQ.S b-\~
' ~,_::',)""tetv.."- ~"'-t.: '"T ~!~~
• t-...::.-
~ N.:J:.:t~.:: .. ,...__t•~
• 'R!:. ·rvn t...r\.o.~cm r ,_..t::>
\ ...}.. ~ • 'f"·l: ;c,.;.•
Freud in der Gegenwart. Frankfurter Beitrege zur Socio/ogie (Freud na actualidade. Contribuições
frankf urtianas para a sociologia), Vol. 6, Frankfurt, 1957, p. 438.
53
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
~ -
dade de julgar estética ara fazer desta, de facto, um uso histórico-filosófico.
-~- --~-
Para isso ele misturou tacitamente o conceito kantiano de faculdade do juízo
com o tradicional que, na tradição aristotélica (ainda até Hannah Arendt),
nunca perdeu inteiramente a ligação à concepção política de senso comum.
Assim, ele podia entender a arte como uma forma de@municaç~ [Mitteilung]
e atribuir-lhe a tarefa de inserir a «harmonia na sociedade»: «Todas as outras
formas da re resentação se aram a sociedade, porque se referem exclusivamente
~- --- - -__,_
ao que há de distinto entre os homens; só a bela comunicação [Mitteilung] uni-
__
ou à sensibilidade privada ou à perícia particular dos membros singulãres, logo,
54
O CONCEITO HEGEL/ANO DE MODERNIDADE
55
Ill. TRÊS PERSPECTIVAS:
HEGELIANOS DE ESQUERDA, HEGELIANOS DE DIREITA
E NIETZSCHE
F~i Hegel quem inaugurou o discurso da modernidade. Foi Hegel que intro.:-'
duziu o tema da certificação autocrítica da modernidade; foi Hegel quem esta-
beleceu as regras, pelas quais se torna possível submeter o tema a variações -
J
a dialéctica do iluminismo. Ao mesmo tempo que elevou a história contemporâ-
nea a um nível filosófico, Hegel pôs o eterno em contacto com o transitório,
o intemporal com o actual e, deste modo, transformou radicalmente o carácter
da filosofia. É certo que Hegel não queria de modo nenhum cortar com a tradi-
ção filosófica; é só a geração seguinte que toma consciência deste corte.
Arnold Ruge escreve em 1841 nos Anais Alemães (p. 594): «A filosofia hege-
liana apresenta logo na primeira fase da sua evolução histórica um carácter que
..______ ----
é essencialmente diferente do desenvolvimento de todos os sistemas que existi-
ram até hoje. Esta filosofia, que foi a primeira que declarou que toda a filoso-
fia outra coisa não era que o pensamento da sua époc~, foi também a primeira
que se reconheceu a si própria como sendo o p~ento da sua própria época.
Aquilo que as filosofias anteriores eram, sem que disso tivessem consciência e
num plano meramente abstracto, é-o a filosofia de Hegel de um modo cons-
ciente e concreto. É por isso que delas se pôde dizer com razão que eram ape-
nas pensamentos, e que como meros pensamentos permaneceram, enquanto que
a filosofia de Hegel se apresenta com o pensamento que não pode permanecer
como tal, mas que... se tem de transformar em acto... Neste sentido, a filosofia
de Hegel é a filosofia da revolução e, sobretudo, a última de todas as filosofias
57 -
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
I Cf. a brilhante exposição da tradição, em larga medida recalcada, da filosofia académica por
Schnaedelbach, Phi/osophie in Deutschland 1831-1933 (A filosofia na Alemanha 1831-1933), Frank-
furt/Main, 1983.
58
TRÊS PERSPECTIVAS: HEGELIANOS DE ESQUERDA, DE DIREITA E NIETZSCHE
É só nos anos vinte do nosso século que esta situação se irá modificar. Hed.
degger vai colocar de novo o discurso da modernidade numa corrente de pensa-\
mento genuinamente filosófica - e, sem dúvida, é também isto que sinaliza o
título Ser e Tempo. O mesmo se deve dizer dos marxistas hegelianos, de Lukács,
Horckheimer e_-Adorno~ os quais, com a ajuda de Max Weber, reinterpretam
O Capital no sentido duma teoria da reificação e restabelecem o elo quebrado
que ligava a economia à filosofia. É também pela via de uma crítica da ciência
que a filosofia recupera a sua competência para fazer a diagnose da sua época,
uma via que conduz do Husserl da última fase até Foucault, passando por
Bachelard. No entanto, será isto ainda a mesma filosofia que, aqui, tal como
no caso de Hegel, supera a sua diferenciação entre os referidos dois conceitos
de filosofia? Seja qual for o nome sob o qual a filosofia agora se manifesta,
seja como ontologia fundamental, como crítica, como dialéctica negativa,
desconstrução ou genealogia - , estes pseudónimos não são de modo nenhum
disfarces através dos quais transpareceria a figura tradicional da filosofia; pelo
contrário, o pregueado dos conceitos filosóficos destina-se a ocultar um fim da
filosofia que só precariamente se consegue dissimular.
Nós temos estado mergulhados, até hoje, na situação da consciência a que
os jovens hegelianos deram origem ao distanciarem-se de Hegel e, sobretudo,
da filosofia em geral. Desde essa altura verificam-se também aquelas atitudes
triunfais de superação recíproca, com as quais ignoramos de bom grado o facto
de que permanecemos contemporâneos dos neo-hegelianos. Foi Hegel quem
inaugurou o discurso da modernidade; mas foram só os neo-hegelianos que
implantaram esse discurso para perdurar. Com efeito, foram eles que libertaram
essa figura do pensamento que é a crítica da modernidade, a qual se inspira no
espírito da modernidade, do peso do conceito hegeliano de razão.
Vimos já como Hegel, com o seu enfático conceito de realidade entendida
como a unidade da essência e da existência, tinha posto de lado, precisamente
aquilo que tinha de ser de primordial importância para a modernidade -
nomeadamente, a transitoriedade do momer;tto pleno de significa~o no qual, em
cada instante, se entrelaçam num nó os problemas do futuro vindouro. Foi jus-
tamente a actualidade histórica, da qual deveria brotar a necessíôade da filoso-
fia, que o Hegel da última fase tinha retirado, na qualidade meramente empí-
rica de existência «contingente», «transitória», «irrelevante», «efémera»,
«atrofiada» de uma «má infinidade», da construção do acontecer essencial ou
racional. Em oposição a este conceito de uma realidade racional, o qual se eleva
sobre a facticidade, a contingência e a actualidade dos acontecimentos que têm
lugar e das evoluções que vêm a caminho, os neo-hegelianos lamentam (na
linha da filosofia tardia de Schelling e da última fase do idealismo de um
Immanuel Hermann Fichte) o peso da existência. Fel!_erbaéh reivindica a exis-
tência sensível na natureza interior e na exterior: sensação e paixão comprovam
a presença do próprio corpo e a resistência que o mundo material oferece.
59
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
2K. Loewith, Von Hegel zu Nietzsche (De Hegel a Nietzsche), Stuttgart, 1941.
3K. Loewith (ed.), Introdução a: D ie Hegelsche linke (A esquerda hegeliana), Stuttgart,
1962, p. 38.
4 Para o discurso da modernidade a ref erência à razão na história continua a ser um elemento
constitutivo - para bem, como para mal. Aqueles que participam neste discurso, e nisso até hoje
nada se modificou, fazem um determinado uso das expressões «razão» ou «racionalidade». Eles não
usam estas expressões nem segundo regras de jogo ontológicas a fim de caracterizar Deus ou
60
TRÊS PERSPECTIVAS: HEGEL/ANOS DE ESQUERDA, DE DIREITA E N/ETZSCHE
li
o ente em geral, nem segundo regras de jogo empíricas para caracterização das disposições de sujei-
tos com a capacidade de conhecer e de agir. A razão não é considerada nem como algo pronto e
acabado, como uma teleologia objectiva que se manifesta na natureza ou na história, nem como uma
mera faculdade subjectiva. Pelo contrário, os padrões estruturais detectados em desenvolvimentos
históricos fornecem indicações cifradas acerca dos caminhos seguidos por processos de formação que
ou ficaram por completar, ou foram interrompidos, ou foram mal dirigidos, processos esses que vão
além da consciência subjectiva do indivíduo. Na medida em que os sujeitos se comportam em relação
à natureza interna e externa, reproduz-se através deles o contexto social e cultural da vida no qual
eles se encontram. A reprodução das formas e percursos da vida deixa vestígios no ventre mole da
história que, sobre o olhar esforçado e atento de batedores, se condensam em esboços ou estruturas.
Esta óptica especificamente moderna é conduzida pelo interesse numa autocertificação: a partir das
configurações e estruturas que esta óptica, sempre preocupada com o perigo da ilusão e da auto-ilu-
são, apesar de tudo surpreende, ela torna legíveis processos de formação cultural suprasubjectivos,
nos quais se entrelaçam processos de aprendizagem e de desaprendizagem. Deste modo, é precisa-
mente a esfera do não-ente e do mutável que o discurso da modernidade coloca sob a alçada das
determinações da compreensão e do erro: ele traz a razão a um domínio que tanto a ontologia dos
gregos como a filosofia do sujeito dos tempos modernos tinham considerado pura e simplesmente
como não tendo sentido e como não sendo. susceptível de ser teorizado. Esta arriscada empresa resva-
lou, primeiramente, ao assumir falsos modelos teóricos; para o dogmatismo da filosofia da história,
e provocou, seguidamente, a reacção de defesa do historicismo. Mas aqueles que fazem o discurso
com seriedade sabem que têm de passar por entre Cila e Caríbdis.
61
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
62
:ií~hífci,SiBf..l.):; Fi::l1E~i:.~ .~~;~; r"' r,,, I
~ '~..,;.' ,~·' !J. j~
5 Discussão entre Michel Foucault e Gilles Deleuze sobre o tema «Les intellectuels et !e pou-
voin>, in L'ilrc, n.0 49, 1972, pp. 3 e segs. (ed. alemã: in id., Von der Subversion des Wissens (Sobre
a subversão do saber), Munique, 1974, pp. 128 e segs.)
63
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
64
TRÊS PERSPECTIVAS: HEGEL/ANOS DE ESQUERDA, DE DIREITA E NIETZSCHE
Estes adversários não saem dos parâmetros do seu discurso a fim de desviarem
a sua atenção para a autoridade de um passado paradigmático. Com efeito, a
referência dos conservadores da velha guarda às verdades religiosas ou metafísi-
cas é coisa que já não conta no discurso filosófico da modernidade - os anti-
gos valores da Europa perderam o seu valor. Ao partido do movimento
contrapõe-se um partido da inércia que outra coisa não quer a não ser manter
a todo o custo a dinâmica da sociedade buguesa. Este partido transforma a ten-
dência para a conservação na adesão neo-conservadora a uma mobilização que,
aliás, tem lugar com ou sem essa adesão. Com Nietzsche e o neo-romantismo
é um terceiro interlocutor que vem participar no discurso, e isto numa atitude
de oposição quer a um quer a outro dos dois participantes. Ele pretende tirar
a base tanto aos radicais de esquerda como aos neoconservadores; ele elimina
da crítica da razão o genitivus subjectivus, tirando-lhes das mãos este negócio
da razão que eles ainda detêm com firmeza. E é deste modo que cada qual se
pretende sobrepor aos outros.
Impõe-se agora que nos distanciemos deste discurso no seu conjunto, que
declaremos como obsoleta esta encenação do século XIX. São em número con-
siderável as tentativas de se sobrepor, pela nossa parte, como cada candidato
afirma, a este jogo da mútua sobreposição. Essas tentativas são facilmente reco-
nhecíveis graças a um prefixo de que todas fazem uso, graças aos neologismos
formados como «pós». Nem que seja por razões metodológicas, não creio que
nos seja possível, adaptando nós o ponto de vista rígido de uma fictícia etnolo-
gia da contemporaneidade, transformar o racionalismo ocidental num objecto
que nos é estranho, passível de ser observado numa atitude de neutralidade, e
que, assim, consigamos colocar-nos simplesmente do lado de fora do discurso
da modernidade. Por isso, proponho-me seguir um caminho mais trivial adap-
tando a perspectiva habitual de um participante que se recorda em traços gerais
do desenvolvimento da argumentação, a fim de descobrir em cada uma das três
posições as dificuldades que lhes são inerentes. Isto não nos conduzirá para
fora do discurso da modernidade, mas talvez nos faça compreender um pouco
melhor o seu tema. Para atingir este objectivo, tenho sem dúvida de aceitar sim-
plificações de vulto. Partindo da crítica que Marx faz a Hegel, pretendo obser-
var de que modo a transformação do conceito de reflexão no conceito de pro-
dução, bem como a substituição da «autoconsciência» por «trabalho», na linha
do marxismo ocidental, desemboca numa aporia. A metacrítica dos hegelianos
de direita insiste com boas razões no facto de que o grau de diferenciação do
sistema que foi alcançado em sociedades modernas não pode pura e simples-
mente ser anulado. Esta tradição dá origem a um neoconservadorismo, o qual,
por sua vez, depara sem sombra de dúvida com dificuldades de fundamentação
quando pretende explicar de que modo poderão ser contrabalançados e com-
pensados os custos e as instabilidades de um processo de modernização que
adquiriu uma dinâmica própria e autónoma.
65
J
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
III
66
TRÊS PERSPECTIVAS: HEGEL/ANOS DE ESQUERDA, DE DIREITA E NIETZSCH~\
67
I
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
11 Esta via é por ele fundamentada com o teorema da dessincronia do sincrónico: <<A filosofia alemã do
direito e do Estado é a única história alemã que está a! pari com a moderna contemporaneidade oficial ... Somos
contemporâneos filosóficos da contemporaneidade sem o sermos seus contemporâneos do ponto de vista da his-
tória.» (M/ E., Vol. I, p. 383).
12 O Marx da primeira fase ainda interpreta a relação entre Estado e sociedade em termos da teoria da acção
e da perspectiva dos papéis complementares do citoyen e do bourgeois, do cidadão do Estado e da pessoa jurídica
privada. O cidadão, aparentemente soberano, tem uma vida dupla - <<Uma vida celestial e uma vida terrena,
a vida na comunidade política, na qual ele é um ser comunitário, e uma vida na sociedade burguesa, na qual
ele actua como homem privado que considera os outros homens como meios, se degrada a si mesmo até um mero
meio e se torna instrumento de um jogo entre forças que lhe são estranhas>>. (M/E., Vol. I, p. 355.) Deste modo,
o idealismo do Estado burguês apenas oculta a consumação do materialismo que tem lugar na sociedade bur-
guesa, nomeadamente, a realização do seu conteúdo egoísta. A revolução burguesa tem um duplo sentido: ela
emancipa a sociedade burguesa da política, bem como ainda da aparência de um conteúdo universal; ao mesmo
tempo, ela instrumentaliza a comunidade, constituída em independência ideal, para <<O mundo das necessidades,
do trabalho, dos interesses privados, do direito privado>>, no qual o Estado encontra a sua base natural. Partindo
do conteúdo social dos direitos do homem, ~x põe em evidência o facto de <<a esfera em que ~ se
mantém como ser comunitário ser de passando a uma esfera na qual ele se comporta como um ser par-
C! _, ~ .d.eJJ.ãO-<;er-o- Irtrlfieffienquant itoyen, mas enquanto bourgeois, que ITomado como sendo o homem
{
verda~.m_-~.J!ll~n.ti~. (MIE., Vol. I, p. 366).
13 M/E., Vol. I, p. 370.
14 Aquilo a que chamo <<filosofia da praxis>> não entendo somente as diversas versões do marxismo ociden-
tal que remontam a Gramsci e Lukács (como a Teoria Crítica e a Escola de Budapeste; o Existencialismo de Sar-
tre, Merleau-Ponty e Castoriadis; a Fenomenologia de E. Paci e os filósofos iugoslavos da praxis), mas, além
disso, também as variantes democrático-radicais do Pragmatismo americano. (G. H . Mead e Dewey) e da Filosofia
Analitica (Ch. 1àylor). Cf. a instrutiva comparação de R. J. Bernstein, Praxis und Action, Philadelphia, 1971.
68
l
í
I
69
~r---------------~--~~~~====~~~~--------------------------~
1
prios produtos, nos quais ele .se poderia reencontrar e, ,deste medo, é também
alienado de si próprio. .
No caso paradigmático do trabalho assalariado é a apropriação privada da
riqueza produzida colectivamente que interrompe a circulação normal da pra-
xis. O regime de trabalho assalariado transforma o acto concreto de trabalho
numa prestação abstracta de trabalho, i. e., numa contribuição funcional para
o processo de autovalorização do capital, processo esse que, por assim dizer,
confisca o trabalho morto, o trabalho que foi tirado ao produtor. A troca assi-
métrica da força de trabalho por salário é o mecanismo que deverá explicar por
que motivo a esfera das forças vitais que foram alienadas dos trabalhadores
assalariados sistematicamente se autonomiza. Com esta premissa que se funda
na teoria do valor, o conteúdo estético-expressivo do conceito de praxis
70
_______________________ ______
._
TRÊS PERSPECTIVAS: HEGEL/ANOS DE ESQUERDA, DE DIREITA E NIETZSCHE
-
vidade crítico-revolucionária», i. e., a acção golítica autoconsciente com a qual
os trabalhadores associados quebram o feitiço capitalista que o trabalho morto
e~obr:_e o vivo e se apropriam das suas forças vitais alienadas pelo feti-
éhismo. Se, com efeito, a totalidade ética dilacerada é pensada como tiãbãrho
àlienado, e se este tem de ultrapassar a sua bipartição por si próprio, então a
praxis emancipatória tem também de poder brotar do próprio trabalho. Neste
ponto, Marx vê-se enredado em dificuldades, relativas aos conceitos fundamen-
tais, que são semelhantes às de Hegel. Com efeito, a filosofia da praxis não for-
nece os meios para pensar o trabalho morto éomo uma intersubjectividade
paralisada e mediatizada. A filosofia da praxis permanece uma variante da filo-
sofia do sujeito que, embora não coloque a razão na reflexão do sujeito cognos-
cente, não deixa de a colocar na racionalidade orientada para fins do sujeito
actuante. Nas relações entre o actor e um mundo de objectos perceptíveis e
manipuláveis, é só uma racionalidade cognitivo-instrumental que se pode afir-
mar como válida; e o poder unificador da razão, que agora é apresentado como
praxis emancipatória, não se dissolve nesta racionalidade orientada para fins.
A história do marxismo ocidental pôs a claro as dificuldades respeitantes
aos conceitos fundamentais da filosofia da praxis, bem como do conceito de
razão que esta filosofia defende. Estas dificuldades resultam sempre de pontos
obscuros acerca dos fundamentos normativos da crítica. Desejo aqui pelo
menos fazer lembrar três destas dificuldades.
a) O ajustamento do trabalho na sociedade ao modelo da «auto-activi-
dade», no sentido da auto-efectivação criadora, podia obter, em todo o caso,
uma certa plausibilidade a partir do modelo, transfigurado pelos românticos,
da actividade dos artesãos. Era em função deste modelo que se orientava, por
ex., o movimento reformista dessa época, de John Ruskin e William Morris, os
quais divulgavam o artesanato. No entanto, o desenvolvimento do trabalho
industrial afastava-se cada vez mais do modelo de um processo da produção
integral. Marx, por sua vez, também acabou por renunciar totalmente a tomar
como ponto de orientação a antiga praxis do artesanato, assim elevada à cate-
goria de modelo paradigmático. Contudo, ele incorpora sub-repticiamente os
controversos conteúdos normativos deste conceito de praxis nas premissas da
teoria do valor do trabalho e, ao mesmo tempo, torna-os irreconhecíveis. É isso
que explica por que motivo, na tradição marxista, o conceito de trabalho per-
maneceu tão ambíguo quanto a racionalidade orientada piua fins que lhe é
inerente.
Correlativamente, a ·avaliação das forças produtivas oscila entre dois
71
O DISCURSO FIWSÓFICO DA MODERNIDADE
72
\;0·~~;·.:1!t\t;D,):~!..:; .t ·.tL~b~···!.. .J.G \~·~~
..lU:.:I.OT~CL Ct;.W";~D.ll'
exigem uma fundamentação que não pode ser fornecida por investigações meto-
dologicamente discutíveis, sejam elas de natureza antropológica ou existencial-
-fenomenológica. Procedem de modo mais consequente aqueles que não põem
no conceito de praxis mais razão do que aquela que eles podem tirar da teleo-
-racionalidade que caracteriza o agir dirigido para um fim, bem assim como da
auto-afirmação 18.
É certo que o princípio do trabalho assegura à modernidade uma relação
assinalável com a racionalidade. No entanto, a filosofia da praxis encontra-se
perante a mesma tarefa em que, na sua época, se encontrava a filosofia da refle-
xão. A necessidade de auto-objectivação está radicada também na estrutura da
auto-exteriorização do mesmo modo que na estrutura da auto-referência: por
conseguinte, o processo de formação da espécie é determinado pela tendência
que os indivíduos trabalhadores, na medida da dominação da natureza exterior,
só adquirem a sua identidade pelo preço da repressão da sua própria natureza
interior. A fim de resolver este embrenhamento em si mesma de uma razão cen-
trada no sujeito, Hegel tinha outrora contraposto a automediação absoluta do
espírito à absolutização da autoconsciência. A filosofia da praxis, que abando-
nou esta via idealista por boas razões, vê"se no entanto colocada perante um
problema da mesma ordem; para ela este problema torna-se até mais agudo.
Pois, na verdade, o que é que esta filosofia pode contrapor à razão instrumental
de uma racionalidade orientada para fins empolada até ao plano de uma totali-
dade social, quando ela se tem de entender a si própria, em termos materialis-
tas, como parte integrante e resultado deste contexto reificado - quando a
pressão para a objectivação se faz sentir no mais profundo da razão que
critica?
Na sua Dialéctica do Iluminismo, Horckheimer e Adorno pretendiam ape-
nas desenvolver ainda mais esta aporia, não procurando já encontrar uma saída
de dentro dela. É certo que eles se opõem à razão instrumental com uma
«recordação» que vai no encalço das comoções de uma natureza revoltada e
que protesta contra a sua instrumentalização. Eles têm também um nome para
esta resistência: mimesis. O nome suscita associações que, de resto, são por eles
pretendidas: empatia e imitação. Isto faz lembrar uma relação entre duas pes-
soas, na qual a pacífica exteriorização de uma, pela qual ela se identifica com
o modelo da outra, não exige a renúncia à própria identidade, mas concede, ao
mesmo tempo, dependência e autonomia: «o estado de conciliação não anexa-
ria, numa atitude de imperialismo filosófico, o alheio, mas teria antes a sua
felicidade na circunstância de o longínquo e o diferente permanecerem em con-
sentida proximidade do outro lado tanto do heterogéneo como do próprio» 19.
Todavia, esta capacidade mimética escapa-se a uma conceptualidade que esteja
73
O DISCURSO FIWSÓFICO DA MODERNIDADE
IV
20 Cf. no V capítulo.
21 H. Steinfels, The Neoconservatives, N. Y., 1979; R. Saage, Neokonservatives Denken in der
Bundesrepublik» (O pensamento neoconservador na República Federal), in id., Rueckkehr zum star-
ken Staat? (Regressando ao Estado forte?) , Frankfurt, 1983, pp. 228 e segs.; H . Dubiel, Die Buchs-
tabierung des Fortschritts (A soletração do progresso), Frankfurt, 1985.
22 Os três volumes de Lorenz v. Stein, aparecidos em 1849, da Geschichte der sozialen Bewe-
gung in Frankreich (História do movimento social na França), Darmstadt, 1959, é uma continuação
da sua obra sobre o Sozialismus und Communismus des heutigen Frankreich (Socialism o e comu-
nismo da França de hoje).
74
TRÊS PERSPECTIVAS: HEGEL/ANOS DE ESQUERDA, DE DIREITA E NIETZSCHE
75
O DISCURSO FIWSÓF/CO DA MODERNIDADE
público, tem de pôr termo precisamente àquela situação que, segundo a concep-
ção dos seus adversários, seria causada exactamente por ela - i . e., a .completa
dissolução da eticidade substancial na concorrência não mediatizada dos inte-
resses naturais. Ambos os grupos, portanto, ajuizam a sociedade burguesa criti-
camente como o Estado da penúria e do entendimento que tem como fim uni-
camente o bem-estar e a subsistência do indivíduo, como conteúdo, o trabalho
e o prazer da pessoa privada, como princípio, a ·vontade natural e, como conse-
quência, a multiplicação das necessidades. É certo que os hegelianos de direita
vêem realizado, de u~ modo geral, na sociedade burgu'ésa o princípio do
social, e afirmam que este princípio iria alcançar o domínio absoluto logo que
fosse suprimida a diferença entre o político e o social 26. A sociedade aparece,
pela sua própria natureza, como uma esfera da desigualdade das necessidades,
aptidões e capacidades naturais; ela forma um contexto objectivo, cujos impe-
rativos funcionais penetram inevitavelmente as orientações subjectivas da acção.
Em consequência desta estrutura e complexidade têm de falhar todas as tentati-
vas que pretendam introduzir na sociedade o princípio cívico da igualdade e
submetê-lo à formação democrática da vontade dos produtores associados 27.
Posteriormente, Max Weber retomou esta crítica e aprofundou-a; ele tinha
razão quando fez a previsão de que a eliminação do capitalismo privado não
iria de modo nenhum significar o desmorü"namento da casa de aço do moderno
trabalho industrial. Com efeito, no «socialismo real», a tentativa de dissolver \l
a sociedade civil na sociedade política teve de facto como consequência apenas
a burocratização desta sociedade, tendo sido a pressão económica alargada ao
plano de um controle administrativo que atravessa todos os domínios da vida.
Por outro lado, a direita hegeliana naufragou, por sua vez, agarrada à sua
confiança nas capacidades regeneradoras de um Estado forte. Rosenkranz ainda
defendia a monarquia, porque só ela poderia garantir a neutralidade de um
governo que estivesse acima dos partidos, refrear os antagonismos dos interes-
ses e assegurar a unidade do particular com o universal. Do seu ponto de vista,
o governo tem também de permanecer como última instância na medida em
que só ele «pode ler no livro da opinião pública aquilo cuja falta se faz sen-
tir» 28. A partir daqui há uma linha histórico-espiritual que, passando por
Carl Schmitt, leva até àquelas doutrinas do direito de Estado que, em face da
impossibilidade da governação da república de Weimar, pensavam que deviam
26 Estas posições são sustentadas por H. Luebbe ainda hoje: «Aspekte der politischen philoso-
phie des Bürgers>> (Aspectos da filosofia política do cidadão) in Id., Philosophie nach der Aufklii-
rung (A filosofia depois do iluminismo), Düsseldorf, 1980, pp. 211 e segs.
27 <<Como se poderá administrar colectivamente algo que não constitui um todo perfeito e que
diariamente, na produção infinita e infinitamente diversificada dos indivíduos, se gera e configura
de novo?>> (Oppenheim, in Luebbe op. cit., p. 196).
28 Rosenkranz, in Luebbe, op. cit., p. 72.
76
I
TRÊS PERSPECTIVAS: HEGEL/ANOS DE ESQUERDA, DE DIREITA E NIETZSCHE
dar legitimidade ao Estado totalitário 29. Foi com base nesta linha tradicional
que o conceito de Estado substancial se pôde transformar no conceito de um
Estado abertamente autoritário, porque entretanto a hierarquia do espírito sub-
jectivo, objectivo e absoluto, que os hegelianos de direita continuavam a evocar,
tinha sido completamente destruída 30.
Após o fim do fascismo, os hegelianos de direita começam tudo do princí-
pio, procedendo a duas revisões. Por um lado, põem-se de acordo com uma teo-
ria da ciência que recusa à razão todo e qualquer direito fora da cultura intelec-
tual das ciências da natureza e das ciências do espírito que foi estabelecida; e,
por outro lado, aceitam as conclusões a que chegou o iluminismo sociológico,
segundo as quais o Estado (articulado em termos funcionais com a economia
capitalista) garante quanto muito a existência privada e profissional do indiví-
duo na sociedade industrial· estruturada pela divisão do trabalho, mas de modo
algum lhe dá mais dignidade moral. É partindo destas premissas que alguns
autores, como Hans Freyer e Joachim Ritter 31, procedem à renovação das
figuras do pensamento da di_reita hegeliana. Neste processo, cabe às ciências do
espírito a herança teórica da filosofia agora dispensada - e aos tradicionais
poderes da eticidade, da religião e da arte, o papel compensatório que deixa de
poder ser confiado ao Estado. É esta argumentação modificada que cria as
bases para a ligação da atitude positiva relativamente à modernidade social com
uma simultânea desvalorização da modernidade cultural. Este modelo de ava-
liação caracteriza hoje em dia os diagnósticos neoconservadores sobre a época
contemporânea, tanto nos Estados Unidos como na República Federal da Ale-
manha 32. É isto o que eu pretendo ilustrar por meio dos trabalhos de Joachim
Ritter, que exercem entre nós uma grande influência.
77
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
33 J. Ritter, Hegel und die franzosische Revolution (Hegel e a Revolução Francesa), Frankfurt,
1965, p. 62.
34 J. Ritter, op. cit., p . 45.
35 J. Ritter, op. cit., p. 70.
36 J. Ritter, «Subjektivitaet und industrielle Gesellschaft» (Subjectividade e sociedade indus-
trial), in id., Subjecktivitiit, Frankfurt, 1974, p. 138.
78
TRÊS PERSPECTIVAS: HEGELIANOS DE ESQUERDA, DE DIREITA E NIETZSCHE
79
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
39J. Ritter, «Landschaft. Zur Funktion des Aesthetischen in der modernen Gesellschaft», in id.,
1974, pp. 141 e segs.
40 Cf. capítulo XL
80
TRÊS PERSPECTIVAS: HEGEL/ANOS DE ESQUERDA, DE DIREITA E NIETZSCHE
41 Cf. sobre este tema H. Brunkhorst, «Paradigmakern und Theoriendynamik der Kritischen
Theorie der Gesellschaft» (O núcleo paradigmático e a dinâmica das teorias na teoria crítica da
sociedade), in Sozia/e Welt, 1983, pp. 25 e segs.
42 J. Habermas, Theorie des kommunikativen Handelns (Teoria do agir comunicacional),
Frankfurt, 1981.
81
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
43 G. Lukács, Zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins (Para uma ontologia do ser social),
82
TRÊS PERSPECTIVAS: HEGEL/ANOS DE ESQUERDA, DE DIREITA E NIETZSCHE
83
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
49 A. Heller, Das Alltagsleben (A vida quotidiana), Frankfurt, 1978; também id., Alltag und
Geschichte (O quotidiano e a história), Neuwied, 1970.
50 A. Heller, op. cit., 1978, pp. 182 e segs.
51 A . Heller, op. cit., 1970, pp. 25 e segs.
52 C. Offe, «Arbeit ais soziologische Schluesselkategorie?» (O trabalho é a categoria chave da
sociologia?), in J . Matthes (ed.), Krise der Arbeitsgesellschaft (A crise da sociedade de trabalho),
Frankfurt, 1983, pp. 33 e segs.
84
r
. ~~:'.ffR$íDAD€ FEu:2f'<A !.KJ Ftw
Tét.U..QTi;?.C4~ .ÇE.~J'T;P,j.'~
53 G. Markus, «Die Welt menschlicher Objeckte» (O mundo dos objectos humanos), in A. Hon-
neth, U. Jaeggi (ed.), Arbeit, Handlung, Normativitiit (Trabalho, acção, normatividade), Frankfurt,
1980, pp. 12 e segs.; versão ampliada: G. Markus, Langage et production, Paris, 1982.
54 Markus, op. cit., 1980, p. 28.
85
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
86
TRÊS PERSPECTIVAS: HEGEL/ANOS DE ESQUERDA, DE DIREITA E NIETZSCHE
88
IV. A ENTRADA NA MODERNIDADE:
NIETZSCHE COMO PONTO DE VIRAGEM
Nem Hegel nem os seus discípulos directos, à esquerda como à direita, pre-
tenderam alguma vez pôr em causa as conquistas da modernidade - ou seja,
a fonte onde a idade moderna ia buscar o seu orgulho e a sua autoconsciência.
A era moderna gira primordialmente sob o signo da liberdade subjectiva. Esta
realiza-se, na soctedade, sob a forma de um espaço de manobra garantido elo
-
direito privado para prossecução racional dos interesses próprios; no Estado,
enquanto participação - por princípio igual em direitos - na formação da
~
89
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
processo de iluminismo que é tão pouco passível de regressão, quão pouco foi
arbitrariamente engendrado. O iluminismo traz inerente a si a irreversibilidade
de processos de aprendizagem fundamentada no facto de que as formas de
compreensão não podem ser esquecidas a bel-prazer, mas sim e apenas
reprimidas ou corrigidas por outras melhores. Por isso o iluminismo só
consegue equilibrar as suas insuficiências através de um iluminismo radi-
calizado; por isso Hegel e os seus discípulos têm de depositar as suas espe-
ranças numa dialéctica do iluminismo onde a razão se valida enquanto equi-
valente do poder unificador da religião. Desenvolveram concepções de razão
destinadas a pôr em execução um tal programa. Pudemos ver como e porquê
essas tentativas falharam.
Hegel concebe a razão como autoconhecimento conciliador de um espírito
absoluto, a esquerda hegeliana como apropriação libertadora de forças essen-
ciais exteriorizadas produtivamente, mas sonegadas, a direita hegeliana como
compensação memorativa da dor emergente de bipartições inevitáveis. A con-
cepção de Hegel veio a revelar-se demasiado forte; o espírito absoluto ignora,
imperturbável, o processo da história aberto ao futuro, bem como o carácter
irreconciliado do presente. Daí que os jovens hegelianos reivindiquem - contra
o abandono quietista duma realidade irreconciliada pela casta sacerdotal de
filósofos - o direito profano a um presente que aguarda ainda a efectivação
do pensamento filosófico. Nesse processo não deixam, é certo, de trazer à liça
um conceito de praxis de alcance demasiado curto, conceito esse que apenas
potencia aquela força da racionalidade orientada para fins, absolutizada, que
afinal é sua função superar. Os neoconservadores podem enunciar perante a
filosofia da praxis a complexidade social que obstinadamente se afirma contra
todas as esperanças revolucionárias. lnflectem, por seu turno, a concepção de
razão de Hegel de tal modo que, simultaneamente com a racionalidade, também
a necessidade de indemnização da modernidade social é evidenciada. Esta con-
cepção, porém, não é por sua vez suficiente para tornar compreensível o esforço
de compensação dum historicismo chamado a manter vivas as forças .da tradi-
ção pelo medium das ciências humanas.
Contra esta formação [cultural] compensatória, bebida nas fontes de uma
historiografia de antiquário, F. Nietzsche valida a moderna consciê~o
t~ de modo semelhante ao que anteriormente os jovens hegelianos haviam
feito contra o objectivismo da filosofia hegeliana da história. Na segunda das
suas Considerações Inactuais acerca da «Utilidade e inconveniente da história
para a vida», Nietzsche analisa a inconsequência duma tradição cultural trun-
cada do agir, empurrada para a esfera da interioridade: «0 saber, tomado em
e~~esso, sew.- .fome, mesmo contra a necessidade, deixa agora de operãfCõino
mo.!b'o transformador, que impele para o exterior, mantendo-se oculto num
certo mundo_inte&im~.ca{}tiGo... Daí que toda a formação cultural moderna seja
essencialmente interior - um manual de formação interior para bárbaros
90
A ENTRADA NA MODERNIDADE: NIETZSCHE COMO PONTO DE VIRAGEM
91
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
92
~lJE!'1S!nA,_f ff.C2-;AL 00 PA 1
.. U~UOTRC.à C ENTRJt. l
vez que Nietzsche não nega a consciência moderna da época, antes a agudiza,
pode apresentar a arte moderna - que nas suas formas de expressão mais sub-
jectivas leva ao extremo esta consciência da época - como medium onde a
modernidade e o arcaico se tocam. Enquanto o historicismo encena o mundo
como uma exposição e transforma os contemporâneos que o fruem em especta-
dores blasés, apenas o poder supra-histórico de uma arte que se consome em
actualidade pode trazer a salvação à «verdadeira carência e miséria interior do
homem moderno» 10.
O jovem Nietzsche tem aqui diante dos olhos o programa de Richard Wag-
ner, que tinha aberto o seu ensaio sobre religião e arte com a seguinte frase:
«Poder-se-á dizer que, onde quer que a religião se torna artística, cabe à arte
salvar o cerne da religião, apreendendo os símbolos míticos - que a religião
pretende conhecer como tidos por verdadeiros no sentido próprio - pelo seu
valor emblemático, para que, através da apresentação ideal desses mesmos sím-
bolos, possa dar a conhecer a profunda verdade que neles se dissimula.» 11
Uma celebração religiosa tornada obra de arte deverá superar a interioridade da
formação [Bildum] histórica que se apropriou do privado através de uma esfera
pública renovada em termos culturais.
Uma mitologia esteticamente renovada deverá soltar as forças de integração
social cri.stalizadas na sociedade concorrencial. Descentralizará a consciência
moderna e abri-la-á às experiências arcaicas. Esta arte do futuro desmente-se
enquanto produto de um artista individual e estabelece «o próprio povo como
o artista do futuro» 12. Por isso Nietzsche celebra Wagner como «revolucioná-
rio da sociedade» e como «aquele que supera a cultura alexandrina». É sua
esperança que de Bayreuth venham a irradiar os efeitos das tragédias dionisía-
cas - «que Estado e sociedade e os próprios abismos que separam os homens
de outros homens cedam lugar a um sentimento avassalador de unidade que
reconduza ao coração da Natureza» 13.
Como é sabido, Nietzsche veio mais tarde a distanciar-se com aversão do
mundo da ópera wagneriana. Mais interessante do que as razões pessoais, polí-
ticas e estéticas desta defecção será a motivação filosófica que está por trás da
seguinte pergunta: «Como criar uma música que já não seja (como a wagne-
riana) de origem romântica, mas sim dionisíaca?» 14 Origem romântica tem a
ideia de uma nova mitologia, e romântico é também o .recurso a Dioniso como
o deus que está para vir. Todavia, Nietzsche afasta-se da aplicação romântica
93
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
II
15 M. Frank, Der kommende Gott (O deus que chega). Lições sobre a nova mitologia .
94
r fi?iVEJ~5lí"'~''.L1 í: l::::-;:~;:.1 ~_ DG Pf~
aiWUOTECb Cí:!.I:H'a ..U
95
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
96
A ENTRADA NA MODERNIDADE: NIETZSCHE COMO PONTO DE VIRAGEM
preservar, por assim dizer, também aquele capital de solidariedade social que,
no ocidente cristão, foi deitado a perder, juntamente com as formas arcaicas de
religiosidade. Por isso Hõlderlin associa ao mito de Dioniso essa figura singular
de interpretação histórica que podia trazer em si uma expectativa messiânica e
que se manteve viva e actuante até Heidegger. O Ocidente jaz entorpecido,
desde os primórdios, na noite da lonjura dos deuses ou do esquecimento do ser;
o deus do futuro renovará as forças perdidas da origem; e o deus iminente
torna a sua chegada perceptível através de um «Supremo distanciamento»;
fazendo sentir aos abandonados, com premência sempre crescente, aquilo de
que foram desapossados, torna mais convincente ainda a promessa do seu
regresso: no maior dos perigos se gera também aquilo que salva 28.
A originalidade de Nietzsche não reside propriamente na sua interpretação
dionisíaca da história. A tese histórica segundo a qual o coro da tragédia grega
deve a sua origem ao culto dionisíaco dos antigos gregos ganha a sua originali-
dade de crítica da modernidade a partir de um contexto já largamente desenvol-
vido no primeiro romantismo. Com maioria de razão, pois, há que explicar
qual o motivo por que Nietzsche se distancia deste pano de fundo romântico.
A chave, encontramo-la na equiparação entre Dioniso e Cristo, empreendida
não só por Hõlderlin como também em Novalis, Schelling, Creuzer e em toda
a recepção do mito no primeiro romantismo. Esta identificação do cambaleante
deus do vinho com o deus cristão redentor só é possível porque o messianismo
romântico almeja um rejuvenescimento, mas não uma destituição do Ocidente.
A nova mitologia deverá reinstaurar uma solidariedade deitada a perder, mas
não rejeitar a emancipação que a libertação dos poderes míticos originários
também veio trazer ao homem singular individualizado à face do Um Só
Deus 29. No romantismo, o recurso a Dioniso deverá explorar apenas aquela
dimensão da liberdade pública na qual as promessas cristãs se têm de realizar
neste mundo, para que o princípio da subjectividade, a um tempo aprofundado
e conduzido autoritariamente à dominação através da reforma e do iluminismo,
possa perder a sua estreiteza.
III
28 Cf. o início do salmo «Patmos»: «Onde, porém, estiver o perigo, aí também se gera o salví-
fico», in Hõlderlin, Siimtliche Werke (Obra completa), Vol. li, editado por V. F. Beissner, p. 173 .
29 A este propósito, Jacob Taubes faz a observação de que Schelling, no que respeita a este
limiar, fez uma acentuada distinção entre consciência arcaica e consciência histórica, entre filosofia
da mitologia e filosofia da revelação: «0 programa do último Schelling não é, pois, Ser e Tempo,
mas sim Ser e Tempos. Existe uma diferença qualitativa entre o tempo mítico e o tempo da revela-
ção». (J. Taubes, Zur Konjunktur des Polytheismus (Para a conjuntura do politeísmo), in Bohrer
(1983), p. 463.
97
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
98
A ENTRADA NA MODERNIDADE: NIETZSCHE COMO PONTO DE VIRAGEM
33 Ele estiliza Sócrates, que cai no erro de julgar que o pensamento penetra e atinge os abismos
mais profundos do ser, actuando como que em tipo antagónico teórico do artista: «Ora se o artista,
a cada desvelação da verdade, se mantém sempre suspenso, com olhares deleitados, daquilo que
mesmo agora, depois do desvelamento, permanece véu, o homem teórico encontra fruição e satisfa-
ção no véu atirado fora.» (N., Vol. I, p. 888.) Nietzsche insurge-se com igual energia contra a expli-
cação moral - abarcando de Aristóteles a Schiller - do estético: «Para explicar o mito trágico, o
primeiro requisito é precisamente procurar o prazer que lhe é próprio na esfera puramente estética,
sem extravasar abusivamente para a área da piedade, do medo, do ético-sublime. Como pode o feio
e desarmonioso, o conteúdo do mito trágico, despertar um prazer estético?» (N., Vol. I, p. 152.)
34 Nietzsche condensa esta teoria na seguinte frase: «Todo o mal cuja visão permite edificar um
deus é justificado.» (N., Vol. V, p. 304.)
99
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
100
A ENTRADA NA MODERNIDADE: NIETZSCHE COMO PONTO DE VIRAGEM
101
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
IV
102
A ENTRADA NA MODERNIDADE: NIETZSCHE COMO PONTO DE VIRAGEM
atingiu o seu fim essencial com o romantismo. Um confronto com Walter Ben-
jamin poderia mostrar quão escassamente Heidegger alguma vez foi tocado
pelas experiências genuínas da arte vanguardista. Daí que também ele não tenha
conseguido compreender por que razão apenas uma arte subjectivistamente
extremizada e radicalmente des-diferenciada, que desenvolve com tenacidade o
sentido próprio do estético a partir da auto-experiência de uma subjectividade
descentrada, se recomenda como inauguradora de uma nova mitologia 47. Mais
fácil lhe parece o nivelamento do «fenómeno estético» e a assimilação da arte
à metafísica. O belo faz reluzir o ser: «A beleza e a verdade relacionam-se
ambas com o ser, nomeadamente por via da desocultação do ser do ente.» 48
Mais tarde dirá que o poeta proclama o sagrado que se revela ao pensador.
Sendo certo que o poeta [Des Dichten] e o pensar remetem um para o outro,
a verdade é que, no fim de contas, é o poetar que há-de brotar do pensar ini-
cial 49. Depois da arte ter sido ontolologizada desta forma 50, a filosofia tem
novamente de assumir uma tarefa que no romantismo havia deixado à arte -
nomeadamente arranjar um equivalente para o poder unificador da religião,
para assim contrariar as bipartições da modernidade. Nietzsche confiara a supe-
ração do niilismo ao mito de Dioniso esteticamente renovado. Heidegger pro-
jecta este evento dionisíaco sobre a tela de uma crítica da metafísica que assim
se vê investida de significado histórico-universal.
Ora, é o ser que se retirou do ente e que anuncia a sua vinda indeterminada
através de uma ausência tornada perceptível e da crescente dor da privação.
O pensamento que segue na senda deste destino do esquecimento do ser a que
a filosofia ocidental foi condenada, tem uma função catalisadora. O pensa-
mento que simultaneamente emerge da metafísica, remete para um questionar
dos primórdios da metafísica, transpõe por dentro os limites da metafísica, já
não partilha da autoconfiança de uma razão que faz questão da sua autono-
mia. É certo que há que desgastar e remover os estratos sob os quais o ser está
soterrado. Mas o trabalho de destruição serve, contrariamente à força de refle-
xão, para ensaiar uma nova heteronomia. Ela orienta a sua energia exclusiva-
mente para a auto-superação e auto-renúncia de uma subjectividade que tem
47 Neste aspecto Oskar Becker demonstra uma sensibilidade incomparavelmente maior, com o
seu contra-esboço dualista da ontologia fundamental de Heidegger: O. Becker, «Von der Hinfãlligkeit
des Schónen und der Abenteurlichkeit des Künstlers»; ders., Von der Abenteurlichkeit des Künstlers
und der vorsichtigen Verwegenheit des Philosophen (Da fragilidade do belo e do aventureirismo do
artista, in id., Dasein und Dawesen (Ser-aí e essência-ai), Colectânea de ensaios filosóficos, Pfullin-
gen, 1963, pp. 11 e segs., e 103 e 103 e segs.
48 Heidegger (1961), Vol. I, p. 231.
49 Posfácio de «Was ist Metaphysik?» (O que é a metafísica ?), in M. Heidegger, Wegmarken,
Frankfurt-am-Main, 1978, p. 309.
so Heidegger resume a sua primeira Conferência sobre Nietzsche com estas palavras: «É a partir
da essência do ser que a arte deve ser compreendida como acontecimento fundamental do ente, como
o verdadeiramente criador.»
103
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
pois, o ser só pode ocorrer enquanto destino para o qual se encontram quando
muito abertos e aprontados aqueles que dele necessitam. A crítica heidegge-
riana d~ razão acaba no radicalismo distanciado de uma alteração de atitude
que tudo perpassa mas de conteúdo é vazia - sair fora da autonomia e avançar
para uma dádiva ao ser que supostamente deixa atrás de si o antagonismo entre
autonomia e heteronomia.
A crítica da razão inspirada em Nietzsche toma um outro rumo com
Bataille. Também ele aplica o conceito de sagrado para designar as experiências
descentrantes de um arrebatamento ambivalente nas quais a subjectividade
endurecida se desapossa de si própria. Toma como exemplos actos de sacrifício
religioso e fusão erótica em que o sujeito deseja «libertar-se da sua referencia-
ção ao em> e ceder o lugar a uma «continuidade do ser» restaurada 51. Tam-
bém Bataille persegue a pista de um poder originário que poderia sanar a frac-
tura entre o mundo racionalmente disciplinado do trabalho e o maldito outro
da razão. Para Bataille, o regresso avassalador a uma continuidade perdida do
ser afigura-se como erupção dos elementos adversos à razão como acto impres-
sionante de de-marcação do si-mesmo. Neste processo de dissolução, a subjecti-
vidade monadicamente fechada dos indivíduos afirmando-se uns perante os
outros é expropriada e precipitada no abismo.
É certo que Bataille não se aproxima deste poder dionisíaco, dirigido contra
o princípio da individuação, pela via recalcada de uma auto-superação do pen-
samento metafisicamente constrangido, sendo esta apresentada como um exercí-
cio devoto, fá-lo, sim, pela abordagem directamente descritiva e analítica de
fenómenos de auto-transgressão e auto-apagamento do sujeito actuando numa
perspectiva racional orientada para fins. É manifesto que são as características
báquicas de uma vontade orgiástica de poder que interessam a Bataille - a
actividade criadora, presenteadora de uma vontade de poder manifestando-se
não só no jogo, dança, efervescência e vertigem como nas excitações desenca-
deadas pela destruição, pelo espectáculo - fonte de horror e prazer - da dor
e da morte violenta. O olhar curioso com que Bataille pacientemente disseca
as experiências-limite do sacrifício ritual e do acto sexual é governado e infor-
mado por uma estética do terror. Aquelé que, durante longos anos, foi partidá-
\ rio e mais tarde opositor de André Breton, não passa, como Heidegger, ao lado
1\da experiência estética fundamental de ~retzsche, var, sim, atrás da radicaliza-
ção desta experiência no surrealismo. E como possesso que Bataille analisa
aquelas reacções emocionais de vergonha, nojo, horror e satisfação sadista
desencadeadas por impressões súbitas, irrompendo violentamente, que
5! G. Bataille, Der heilige Eros (O eras sagrado), Frankfurt-am-Main, Introdução, pp. 10 e segs.
104
A ENTRADA NA MODERNIDADE: NIETZSCHE COMO PONTO DE VIRAGEM
105
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
106
A ENTRADA NA MODERNIDADE: NIETZSCHE COMO PONTO DE VIRAGEM
107
..,
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
108
V. O ENTROSAMENID ENTRE O MIID E O ILUMINISMO:
HORKHEIMER E ADORNO
109
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
É constituído por um ensaio, com pouco mais de cinquenta páginas, dois excur-
sos e três apêndices, ocupando estes para cima de metade do texto. A forma
de exposição, que ronda o confuso, não permite identificar, à primeira vista, a
clara estrutura do fio do pensamento.
Por isso esclarecerei, em primeiro lugar, as duas teses centrais:
(I) A partir da apreciação da modernidade nasce o problema que me inte-
ressa acerca da situação actual: por que é que Horkheimer e Adorno querem
fazer o iluminismo iluminar-se radicalmente a si próprio; (11) o grande modelo
para uma auto-ultrapassagem totalizante da crítica da ideologia foi Nietzsche.
A comparação de Horkheimer e Adorno com Nietzsche não se limita a elucidar
sobre as direcções contrárias nas quais as duas partes levam a cabo a sua crítica
da cultura; (III) suscita também dúvida acerca do repetido processo por meio
do qual o iluminismo se torna reflexivo (IV).
1 K. Heinrich, Versuch über die Schwierigkeit Nein zu sagen (Ensaio sobre a dificuldade de
dizer não), Frankfurt-am-Main, 1964. -----..
2 Dialektik der Aufkliirung (Dialéctica do iluminismo), Amsterdão, 1947, 10; de ora em diante
designada por DI. Cf. também o meu posfácio à nova edição, Frankfurt-am-Main, 1985.
• N. do T.: «errante» e <<astuto» são a tradução encontrada para a expressão original <<im dop-
pelten Sinn verschlagen», em que se alude ao duplo sentido do adjectivo «verschlagen», precisamente
errante e astuto, os dois traços fundamentais por que é conhecido Ulisses.
110
O ENTROSAMENTO ENTRE O MITO E O ILUMINISMO: HORKHEIMER E ADORNO
111
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
o experimentado Ulisses tem de pagar pelo facto de o seu eu sair das aventuras
que passou reforçado e consolidado de forma análoga àquela por que o espírito
sai daquelas experiências da consciência das quais fala o fenomenólogo Hegel,
com o mesmo propósito com que Homero, o épico, fala das aventuras de Ulis-
ses. Os episódios relatam perigos, astúcias e escapadas, e a renúncia imposta
por si próprio através da qual o eu que aprende a dominar o perigo acede à
sua própria identidade e ao mesmo tempo se despede da união arcaica com a
natureza, tanto a natureza externa como a interna. O canto das sereias evoca
uma felicidade que outrora a relação flutuante com a natureza concedia; Ulis-
ses entrega-se às seduções como alguém que se sabe já acorrentado : «O domínio
do homem sobre si próprio, que funda o seu si-mesmo, é virtualmente sempre
a aniquilação do sujeito ao serviço do qual ocorre, pois que a substância domi-
nada, oprimida e dissolvida pela auto-preservação não é outra coisa senão o ser
vivo em relação ao qual, como função sua, única e exclusivamente se determi-
nam as realizações da auto-preservação - ou seja, justamente aquilo que deve
ser preservado» (DI, p. 71). Esta figura, de os homens formarem a sua identi-
dade na medida em que' aprendem a dominar a natureza exterior à custa da
repressão da sua natureza interior, fornece o padrão para uma descrição à luz
da qual o processo do iluminismo descobre a sua face de Janus. O preço da
renúncia, da auto-ocultação, da comunicação interrompida do eu com a sua
própria natureza, tornada, enquanto «isso» [Es] anónima, é interpretado como
consequência de uma introversão do sacrifício. O eu que outrora, no sacrifício,
tinha logrado o destino mítico, é de novo acometido por este logo que se vê
forçado à introjecção do sacrifício: «o si-mesmo, permanecente na sua identi-
dade, que surge na superação do sacrifício, volta imediatamente a ser um ritual
sacrificial duro e petrificado que o homem, na medida em que contrapõe ao
contexto da natureza a sua consciência, celebra a si próprio» (DI, p. 70).
A espécie humana afastou-se, portanto, sempre mais das origens no pro-
cesso histórico-universal do iluminismo, não se libertando todavia da compul-
são mítica de repetição. O mundo moderno, o mundo integralmente racionali-
zado, só aparentemente está desencantado. Sobre ele paira a maldição da
reificação demoníaca e do isolamento mortal. Os sintomas de paralisia de uma
emancipação que se torna vã expressam a vingância das potências da origem
sobre aqueles que tinham de se emancipar e todavia não conseguiram escapar-
-se. A compulsão para o controlo racional das forças da Natureza, pressio-
nando do exterior, colocou os sujeitos na senda de um processo de formação
que aumenta à desmesura as forças produtiyas por mor da pura autopreserva-
ção, mas que hipotrofia as forças da conciliação que transcendem a mera auto-
preservação. O senhorio sobre uma natureza exterior objectivizada e a natureza
interior reprimida é o signo permanente do iluminismo.
Desta forma Horkheimer e Adornei glosam o conhecido tema de Max
Weber, que no mundo moderno vê os antigos deuses desencantados erguerem-se
112
O ENTROSAMENTO ENTRE O MITO E O ILUMINISMO: HORKHEIMER E ADORNO
dos seus túmulos sob a forma de potências impessoais para renovarem o incon-
ciliável combate dos demónios 5.
O leitor que não se deixe dominar pela exposição retórica, que dê um passo
atrás e leve a sério a pretensão do texto de sentido inteiramente filosófico,
poderá ficar com a impressão:
- de que a tese que aqui está em causa não é menos arriscada do que o
diagnóstico do niilismo estabelecido de forma semelhante por Nietzsche;
- de que os autores estão conscientes desse risco e, ao contrário do que à
primeira vista parece, fazem uma tentativa conseq.uente de fundamentar a sua
crítica da cultura;
- de que ao fazê-lo, porém, aceitam abstracções e nivelamentos que põem
em questão a credibilidde do que levam a cabo.
Procurarei, em primeiro lugar, pôr à prova se esta impressão é acertada.
A própria razão destrói a humanidade que ela mesma possibilitou - ~e
de vasto alcance é, como vimos, fundamentada no primeiro excurso pelo facto
de o processo do iluminismo se dever, desde os seus primórdios, ao impulso de
autopreservação que mutila a razão porque só a reclama em formas de domina-
ção da natureza e do instinto orientada para fins, justamente como razão ins-
trumental. Isto não deixa ainda demonstrado que a razão - até aos seus pro-
dutos mais tardios, à ciência moderna, às representações jurídicas e morais
universalistas e à arte autónoma - permanece submetida ao ditame da raciona-
lidade orientada para fins. É esta comprovação que visam o ensaio que intitula
o livro a respeito do conceito de iluminismo, o excurso sobre iluminismo e
moral, bem assim como o apêndice acerca da indústria cultural.
Adorno e Horkheimer estão convencidos de que a ciência moderna assumiu
a sua forma própria no positivismo lógico e renunciou à pretensão empática de
conhecimento teórico a favor da aplicabilidade técnica: «Compreender aquilo
que se apresenta enquanto tal, não apenas apurar nos dados as suas conexões
abstractas espaço-temporais nas quais podemos então apreendê-los, mas tam-
bém, pelo contrário, pensá-los enquanto superfície, enquanto momentos con-
cepcionais mediados que só se cumprem no desenvolvimento do seu sentido
social e histórico humano - toda a pretensão de conhecimento é abandonada»
(DI, p. 39). A crítica anteriormente praticada à compreensão positivista da
ciência agudiza-se na censura global de que as próprias ciências são absorvidas
pela razão instrumental. .Tomando como fio condutor a Histoire de Juliette e
a Genealogia da moral, Horkheimer e Adorno procuram, além disso, mostrar
que a razão foi banida da moral e do direito porque, com a dissolução das
imagens religioso-metafísicas do mundo, todos os padrões normativos teriam
perdido o seu crédito ante a única autoridade permanecente - a da ciência:
5 M. Weber, Wissenschaft ais Beruf (A ciência como profissão), in Ges. Auf zur Wissenschafts-
leher (Obra completa sobre teoria da ciência), Ttibingen, 1968, p. 604.
113
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
«0 facto de não terem calado, mas sim clamado aos sete ventos a impossibili-
dade de produzir a partir da razão um argumento decisivo contra o assassínio,
fez acender o ódio com o qual os progressistas ainda hoje perseguem Sade e
Nietzsche» (DI, p. 142). E mais ainda: «Eles não pretenderam que a razão for-
mal esteja numa conexão mais íntima com a moral do que com a não-moral»
(DI, p. 141). A _crítica anteriormente formulada às reinterpretações meta-éticas
da moral redunda em concordância sarcástica com o cepticismo ético.
Com a sua análise da cultura de massas, Horkheimer e Adorno pretendem
finalmente comprovar que a arte fundida com entretenimento é paralisada na
sua força inovadora, esvaziada de todos os conteúdos críticos e utópicos:
«0 momento na obra de arte através do qual ela ultrapassa a realidade não
pode, na verdade, ser dissociado do estilo. Mas ele não consiste na harmonia
conseguida, na questionável unidade entre forma e conteúdo, interior e exterior,
indivíduo e sociedade, mas sim naqueles traços nos quais aparece a discrepân-
cia, no necessário fracasso do apaixonado esforço no sentido da identidade. Em
vez de se expor a este fracasso, no qual o estilo da grande obra de arte sempre
se negou, a obra de arte inferior sempre se ateve à semelhança com outras, ao
sucedâneo da identidade. A indústria da cultura, finalmente, introduz em abso-
luto a imitação» (DI, p. 156). A crítica anteriormente empreendida ao carácter
meramente afirmativo da cultura burguesa intensifica-se em cólera impotente
sobre a irónica justiça daquele juízo alegadamente irrevogável que a cultura de
massas emite em relação a uma arte que também sempre fora já ideológica.
A argumentação segue, pois, em termos da ciência, da moral e da arte, a
mesma figura: já a separação dos domínios culturais, a decadência da razão
substancial ainda corporizada na religião e na metafísica, desvitaliza a tal ponto
os momentos racionais isolados desapossados da sua coerência, que estes regri-
dem convertendo-se em racionalidade ao serviço da autopreservação tornada
selvagem. Na modernidade cultural a razão é despojada da sua pretensão de
validade e assimilada a mero poder. A capacidade crítica de tomar posição com
«sim» ou «não» é subvertida na medida em que as pretensões de poder e de
validade incorrem numa turva fusão.
Se se reduz a crítica da razão instrumental a este núcleo, torna-se claro por
que motivo a Dialéctica do iluminismo tem de nivelar de forma surpreendente
a imagem da modernidade. A dignidade própria da modernidade cultural con-
siste naquilo a que Max Weber chamou a obstinada des-diferenciação das esfe-
ras de valor. Com ela, porém, a força de negação, a capacidade de diferenciar
entre «sim» e «não» não é de modo algum tolhida, mas antes potenciada. Pois
agora questões de verdade, questões de justiça e de gosto podem ser tratadas
e desenvolvidas segundo a lógica que em cada caso lhes é própria. É certo que
com a economia capitalista e o Estado moderno se reforça também a tendência
para confinar todas as questões de validade ao horizonte limitado da racionali-
dade orientada para fins d~ _sujeitos que se autopreservam ou de sistemas
114
I
O ENTROSAMENTO ENTRE O MITO E O ILUMINISMO: HORKHEIMER E ADORNO
I
que se mantêm em existência. A este pendor para a regressão social da razão
opõe-se, porém, a compulsão, que não pode deixar de se considerar, induzida I
pela racionalização das imagens do mundo e dos mundos da vida, para a pro-
gressiva diferenciação de uma razão que assume uma forma processual. À assi- I
milação naturalista das pretensões de validade do poder, à destruição da capaci-
dade crítica, opõe-se o desenvolvimento das culturas de especialistas nas quais I
uma esfera de validade articulada proporciona às pretensões de verdade propo-
sicional, justeza normativa e autenticidade, um sentido próprio, sem dúvida I
também um sentido próprio esotérico, e uma vida própria por sua vez amea-
çada pela cisão da praxis comunicativa do quotidiano.
A Dialéctica do iluminismo não faz justiça ao conteúdo racional da moder-
nidade cultural que se fixou nos ideais burgueses (e que com eles também foi
instrumentalizada). Refiro-me à dinâmica teórica própria que leva as ciências
e mesmo a auto-reflexão das ciências sempre para lá da produção de um saber
tecnicamente aproveitável; refiro-me ainda aos alicerces universalistas do direito
e da moral que, nas instituições dos Estados constitucionais, em formas de for-
mação democrática da vontade, em padrões individualistas de formação da
identidade, apesar de tudo encontraram corporização (por mais desgastada e
imperfeita que ela seja); refiro-me finalmente à produtividade e à força explo-
siva das experiências estéticas fundamentais, que subtrai ao seu próprio descen-
tramento uma subjectividade liberta dos imperativos da actividade orientada
para fins e das convenções da percepção quotidiana - experiências que acedem
à expressão nas obras de arte de vanguarda que logram ser linguisticamente for-
muladas nos discursos de crítica de arte e que também alcançam um certo
efeito iluminador - pelo menos para efeitos instrutivos de contraste - nos
índices de valor inovadoramente enriquecidos da auto-efectivação. Se estas
palavras-chave fos~em suficientemente completadas para fins do meu argu-
mento, poderiam apoiar a impressão intuitiva, digamos com prudência de
incompletude e unilateralidade, que a leitura deste livro à primeira vista deixa
em nós. O leitor tem razão em sentir que a apresentação niveladora não leva
em consideração traços essenciais da modernidade cultural. Mas então impõe-se
a interrogação acerca dos motivos que terão levado Horkheimer e Adorno a
situar tão fundo o ponto de partida da sua crítica do iluminismo, que faz peri-
gar o próprio projecto do iluminismo; na verdade, a Dialéctica do Iluminismo
dificilmente abre qualquer perspectiva de escapar ao mito da racionalidade
orientada para fins tornada força objectiva. Para clarificar esta questão, gosta-
ria em primeiro lugar de identificar o lugar que a crítica marxista da ideologia
ocupa no processo global do iluminismo, para então apurar por que razão
Horkheimer e Adorno julgavam ter simultaneamente de abandonar e de ultra-
passar a crítica desta natureza.
115
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
11
116
O ENTROSAMENTO ENTRE O MITO E O ILUMINISMO: HORKHEIMER E ADORNO
117
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
7 T. W. Adorno, Ges. Schriften (Obra Completa), Vol. I, Frankfurt-am-Main, 1973, pp. 345
e segs.
118
r
III
A suspeita de idtrologia torna-se total, mas sem alterar a direcção. Volta-se
não apenas contra a irracional função dos ideais burgueses, mas também contra
o próprio potencial de razão da cultura burguesa, estendendo-se assim aos ali-
cerces de uma crítica da ideologia que se processa de forma imanente; mas per-
siste o propósito de visar um efeito de desvelamento. Inalterada mantém-se a
figura do pensamento na qual é inserido o cepticismo em relação à razão : agora
119
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
120
O ENTROSAMENTO ENTRE O MITO E O ILUMINISMO: HORKHEIMER E ADORNO
11 Cf. também P. Pütz, Nietzsche im Licht der Kritischen Theorie (Nietzsche à túz da teoria
crftica), in Nietzsche-Studien (Estudos sobre Nietzsche), Vol. 3, Berlim, 1974, pp. 175 e segs.
12 N., Vol. V. p. 322.
121
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
13 Ibid. .
14 Ibid.
15
J. Habermas, Posfácio a F. Nietzsche, Erkenntnistheoretische Schriften (Escritos sobre a teo-
ria do conhecimento), Frankfurt-am-Main, 1968, pp. 237 e segs.
122
O ENTROSAMENTO ENTRE O MITO E O ILUMINISMO: HORKHEIMER E ADORNO
123
'
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
124
O ENTROSAMENTO ENTRE O MITO E O ILUMINISMO: HORKHEIMER E ADORNO
125
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
IV
126
~Vt;R~íu'· "':- :· -- .
'""'-"i: Fc:.ue;.·ü~.t !i1:f"ll "''&.....
ilt!i:r.tO'r'"'C · """' ,..._
"'· ,J?. CG:t.J'i"~l.\ i
O ENTROSAMENTO ENTRE O MITO E O ILUMINISMO: HORKHEIMER E ADORNO
27 H. Fink-Eitel, «Michel Foucaults Analytik der Macht» («A analítica do poder de Michel
Foucault»), in F. A . Kittler (Ed .), Austreibung des Geistes aus den Geisteswissenschajten (Expulsão
do espírito das ciências do espírito), Paderborn, 1980, pp. 38 e segs.; A. Honneth, H . Joas, Soziales
Handeln und menschliche Natur (Agir social e natureza humana), Frankfurt-am-Main 1980, pp. 123
e segs.
127
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
128
r
129
;
VI. A CORROSÃO CRÍTICO-METAFÍSICA
DO RACIONALISMO OCIDENTAL: HEIDEGGER
131
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
1 Introdução a «Was ist die Metaphysik» («0 que a metafísica»), in Heidegger, 1967,
pp. 361-362.
2 Heidegger, 1961, Vol. 11, p. 333.
3 Heidegger, 1961, Vol. 11, p. 313.
4 Heidegger, 1961, Vol. 11, p. 61.
132
A CORROSÃO CRÍTICO-METAFÍSICA DO RACIONALISMO OCIDENTAL
5 Heidegger, 1961, Vol. II, pp. 141 e segs., pp. 159 e segs.
6 Heidegger, 1961, Vol. II, pp. 145-146.
7 Heidegger, 1961, Vol. II, p. 149.
133
r-
decidir «se esta época terminal será o fim da história ocidental ou a contrapar-
tida que conduz a um novo começo» 8. Trata-se de decidir «se o Ocidente
ainda se julga capaz de criar um objectivo acima de si e da história, ou se pre-
fere descer ao nível da preservação e do aumento de interesses mercantis e de
interesses próprios da vida, e contentar-se com o recurso àquilo que prevaleceu
até ao presente, como se isso fosse o absoluto» 9. A necessidade de um outro
começo 10 chama a atenção para o turbilhão do futuro. O retorno às origens,
à «proveniência essencial», só é concebível segundo o modo do avançar para
o «futuro do essencial». Este futuro apresenta-se sob a categoria do simples-
mente novo: «A consumação de uma época ... é a disposição, pela primeira vez
absoluta e de antemão completa, para o inesperado e para o que nunca se espe-
raria ... o novo.» 11 Evidentemente que o messianismo de Nietzsche, que ainda
dava margem a que «se fosse no encalço da salvação» (segundo uma expressão
da mística judaica), transforma-se em Heidegger na expectativa apocalíptica da
chegada catastrófica do que é novo. Simultaneamente, Heidegger vai pedir
emprestada a figura de pensamento do deus ausente aos modelos românticos,
nomeadamente a Hõlderlin, a fim de poder conceber o fim da metafísica como
«consumação» e, deste modo, como sinal iniludível de um «outro começo».
Tal como outrora Nietzsche esperara dar o salto gigantesco da ópera wagne-
riana para o passado vindouro da antiga tragédia grega, assim também Heideg-
ger gostaria de catapultar-se da metafísica nietzscheana da vontade de poder
para as origens pré-socráticas da metafísica. Antes porém de poder descrever
a história do Ocidente, entre os começos da metafísica e o seu fim, como a
noite do afastamento dos deuses, antes de poder descrever a consumação da
metafísica como o retorno do deus desaparecido, Heidegger tem de estabelecer
uma correspondência entre Dioniso e o objectivo da metafísica, que tem a ver
com o ser do ente. O semideus Dioniso apresentara-se, tanto aos românticos
como a Nietzsche, como o deus ausente, que através do seu «afastamento
extremo» dava a entender a uma modernidade abandonada pela divindade o
que lhe foi retirado em energias sociais de coesão no decurso do seu próprio
progresso. Ora a ideia de diferença ontológica serve de ponte entre a ideia de ·
Dioniso e a questão fundamental da metafísica. Heidegger separa o ser, que
fora sempre entendido como o ser do ente, do ente. É que o ser só pode funcio-
nar como portador do acontecer dionisíaco se se tornar até certo ponto autó-
'nomo - tal como o horizonte histórico, no interior do qual o ente surge pela
primeira vez. Só o ser distinto do ente de um modo hipostasiante pode assumir
o papel de Dioniso : «0 ente é abandonado pelo próprio ser. O abandono
134
~-
~ ---
do ser diz respeito ao ente no seu todo, e não só ao ente daquela espécie de
Homem que representa o ente como tal, em cujo representar o próprio ser se
lhe escapa na sua verdade.» 12
Heidegger salienta incansavelmente a força positiva desta privação do ser
como um acontecer da recusa. «A ausência do ser é o próprio ser na qualidade
dessa ausência.» 13 No esquecimento total do ser por parte da modernidade já
nem sequer se sente o aspecto negativo do abandono do ser. Daí se explica a
importância capital de uma anamnese da história do ser, que agora se dá a
conhecer como a destruição do auto-esquecimento da metafísica 14. Todo o
esforço de Heidegger visa «experienciar a ausência da desocultação do ser como
uma chegada do próprio ser, e reflectir sobre o que assim se experienciou» 15.
4) De facto, Heidegger não pode compreender a destruição da história da
metafísica como uma crítica desmascaradora, nem a superação da metafísica
como um último acto da desocultação. Isto porque a auto-reflexão que efectua
esse desocultamento ainda pertence à época da subjectividade moderna. Por
isso, o pensamento que utiliza a diferença ontológica como fio condutor deve
reivindicar uma competência cognitiva para lá da auto-reflexão, para lá do pen-
samento discursivo em geral. Nietzsche ainda se podia apoiar no facto de que-
rer «colocar a filosofia no campo da arte»; a Heidegger apenas resta o gesto
reconfortante de que para iniciados «existe um pensamento que é mais rigoroso
que o conceptual» 16. O pensamento científico e a investigação empreendida
metodicamente degeneram numa depreciação global, uma vez que se movem
dentro de uma compreensão do ser da modernidade que é traçada pela filosofia
do sujeito. Até mesmo a filosofia permanece na esfera do objectivismo,
enquanto não renunciar à argumentação. Também ela tem de admitir a censura
de que «toda a refutação no campo do pensamento essencial é insensata» 17.
Para tornar plausível, ainda que só superficialmente, a necessidade de recor-
rer ao saber específico, isto é, a um acesso privilegiado à verdade, Heidegger
tem evidentemente de nivelar de modo surpreendente as evoluções diferenciadas
das ciências e da filosofia depois de Hegel.
Na lição sobre Nietzsche proferida em 1939 encontra-se um interessante
capítulo intitulado «Compreensão e Cálculo». Nele Heidegger dirige-se como
sempre contra a abordagem monológica da filosofia da consciência. Esta parte
do sujeito singular que, discernindo e agindo, defronta o mundo objectivo
das coisas e dos acontecimentos. A consolidação da existência do sujeito
135
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
11
136
A CORROSÃO CRÍTICO-METAFÍSICA DO RACIONALISMO OCIDENTAL
137
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
138
A CORROSÃO CRÍTICO-METAFÍSICA DO RACIONALISMO OCIDENTAL
139
\
III
degger» em Phi/[osophische] Rundsch[au], Panorama Filosófico, 1953, pp. 65 e segs. e 211 e segs.
reproduzido em O. Põggeler (ed.) Heidegger, Colónia, 1969, pp. 95 e segs.
25 G. Simmel, «Zur Philosophie der Kultur» («Para a filosofia da cultura») em Philosophische
Kultur (Cultura filosófica) Berlim, 1983. Conferir igualmente o meu posfácio: «Simmel ais Zeitdiag-
nostiken> («Simmel como diagnosticador da época»), ibid., pp. 243-253.
140
A CORROSÃO CRÍTICO-METAFÍSICA DO RACIONALISMO OCIDENTAL
o mesmo que Husserl aponta quando reclama para a unidade da pessoa uma
constituição essencialmente diferente da das coisas da natureza... Faz parte da
essência da pessoa existir apenas na consumação dos actos intencionais ... Por-
tanto, o ser psíquico não tem nada a ver com o ser-pessoa. Os actos são realiza-
dos, a pessoa é o realizador de actos.» 26 Heidegger não se dá por satisfeito
com esta abordagem, e pergunta: «Mas qual é o sentido ontológico de executar,
como se pode determinar o modo de ser da pessoa de uma maneira ontologica-
mente positiva?» Heidegger serve-se do vocabulário da inflexão neo-ontológica
para levar mais longe a dissolução do conceito de subjectividade transcenden-
tal; mas com esta radicalização continua a preserverar na atitude transcendental
de uma clarificação reflexiva das condições da possibilidade do ser-pessoa
como ser-no-mundo. De contrário, a profusão articulada das estruturas deveria
afundar-se no turbilhão desdiferenciador da massa de conceitos da filosofia da
vida. A filosofia do sujeito deve ser superada por meio de uma conceptuali-
dade, tão precisa quanto sistemática, mas precisamente de profundo alcance, de
uma ontologia existencial que procede transcendentalmente. Sob este título Hei-
degger força de modo original a junção de abordagens teóricas até então
incompatíveis e que agora anunciam uma perspectiva significativa da investiga-
ção com vista ao objectivo de uma substituição sistemática dos conceitos fun-
damentais da filosofia do sujeito.
No capítulo introdutório de Ser e Tempo Heidegger toma aquelas três impo-
nentes decisões estratégico-conceptuais que franqueiam o caminho à ontologia
fundamental. Em primeiro lugar, confere à problemática transcendental um
sent~do ontológico. As ciências positivas ocupam-se de questões ônticas, fazem
afirmações sobre a natureza e a cultura, sobre alguma coisa do mundo. A aná-
lise das condições destes modos de conhecimento ôntico, efectuada de um
ponto de vista transcendental, esclarece pois a constituição categoria! de esferas
temáticas como domínios do ser. Neste sentido, Heidegger entende a crítica da
razão pura de Kant em primeira linha não como uma teoria do conhecimento,
mas sim como «lógica objectiva a priori do domínio do ser que é a natureza»
(p. 11). Compreende-se esta coloração ontologizante da filosofia transcendental
se se tiver em consideração que as ciências em si não remontam a produções
cognitivas em suspensão livre, como o afirmara O· neo-kantismo, mas estão
antes ancoradas em contextos existenciais concretos: «As ciências são modos de
ser da existência.» (p. 13) Husserl designara isso como o fundamento das ciên-
cias no mundo a vida. O sentido da disposição categoria! das esferas temáticas
científicas ou domínios do ser só se torna acessível recuando até à compreensão
do ser daqueles que na sua existência quotidiana já se comportam em relação
ao ente no mundo e que podem estilizar essa relação ingénua numa forma de
precisão da actividade científica. À existência situada, histórico-corpórea, cabe
26M. Heidegger, Sein und Zeit (Ser e Tempo), Tlibingen, 1949, pp. 47-48.
141
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
142
A CORROSÃO CRÍTICO-METAFÍSICA DO RACIONALISMO OCIDENTAL
\
menêutica ontológica, de modp a poder realizar a ontologia fundamental como
hermenêutica existencial; e, finalmente, ocupa a hermenêutica existencial com
motivos filosóficos existenciais para ainda poder integrar a empresa da ontolo-
gia fundamental nos contextos de interesses antes depreciados como meramente
J ônticos. Apenas nesta passagem se ultrapassa a diferença ontológica e se quebra
( a distinção metodológica rigorosa entre o geral dos existenciais acessíveis por
via transcendental e o particular dos problemas da vida concretamente expe-
rienciados.
Com esta associação parece que Heidegger consegue retirar à relação
sujeito-objecto o seu significado paradigmático. Com a viragem para a ontolo-
gia Heidegger rompe o primado da teoria do conhecimento, sem com isso aban-
donar a problemática transcendental. Uma vez que o ser do ente permanece
internamente relacionado com a compreensão do ser, uma vez que o ser só
143
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
144
A CORROSÃO CRÍTICO-METAFÍSICA DO RACIONALISMO OCIDENTAL
IV
Não é necessário aprofundar estas análises (§ 14-24), uma vez que elas não
vão para além do que foi conseguido pelo pragmatismo, desde Peirce a Mead
e Dewey. A originalidade reside no uso que Heidegger faz deste conceito de
mundo para uma crítica da filosofia da consciência. Este empreendimento,
porém, cessa de imediato. Isso revela-se na «questão acerca do quem do exis-
tente» (§ 25), à qual Heidegger responde primeiramente no sentido de que o
existente é o ente que eu mesmo sou a cada instante: «A questão do quem
responde-se a partir do próprio eu, do sujeito, do si mesmo. O quem é aquilo
que se mantém idêntico nas mudanças de modos de comportamento e de vivên-
cias, e ao mesmo tempo se refere a essa diversidade» (p. 114). Tal resposta iria
reconduzir natural e directamente à filosofia do sujeito. Por isso Heidegger
estende a sua análise do mundo das coisas ao mundo das relações sociais
entre vários actores, tal como aquele se tinha mostrado, da perspectiva de um
actor que trabalha sozinho, como um contexto condicional: «0 esclarecimento
145
O DISCURSO FIWSÓFICO DA MODERNIDADE
* Ver N. T. anterior.
146
A CORROSÃO CRÍTICO-METAFÍSICA DO RACIONALISMO OCIDENTAL
147
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
29 Aliás, tal revela-se igualmente na formulação das frases com a ajuda das quais Tugendhat
empreende uma reconstrução semântica do conteúdo da segunda parte de Sein und Zeit (Ser e
Tempo). Vide E. Tugendhat, Se/sbtbewusstsein und Se/sbtbestimmung (Consciência e Auto-Determi-
nação), Frankfurt-am-Main, 1979, s.•-10.• lições.
148
A CORROSÃO CRÍTICO-METAFÍSICA DO RACIONALISMO OCIDENTAL
149
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
150
A CORROSÃO CRÍTICO-METAFÍSICA DO RACIONALISMO OCIDENTAL
Este passo carece de tanta plausibilidade que não pode ser suficientemente
explicado a partir dos até agora denominados motivos internos. Presumo que
Heidegger só pôde encontrar a via para a filosofia temporalizada da origem da
última fase através da sua identificação temporária com o movimento do nacio-
nal-socialismo, ao qual ainda em 1935 ele atestara verdade intrínseca e gran-
deza.
Não é a «Declaração de partidário de Adolf Hitler e do estado nacional-
-socialista» de Heidegger (sob este título se divulgou o discurso de Heidegger
na Manifestação Eleitoral da Ciência Alemã em 11 de Novembro de 1933 em
Leipzig) que provoca o julgamento dos que nasceram posteriormente, e que não
sabem se não teriam igualmente falhado em situação idêntica. O que irrita é
unicamente a má vontade e a incapacidade do filósofo de, após o fim do regime
nacional-socialista, reconhecer o seu erro, politicamente com consequências tão
graves, com uma única frase que fosse. Em vez disso Heidegger cultiva a
máxima de que não são os criminosos os culpados, mas sim as próprias víti-
mas: «Evidentemente que é sempre arrojado as pessoas censurarem-se e atribuí-
rem a culpa umas às outras. Mas uma vez que se procuram culpados e se avalia
pela culpa, não haverá igualmente uma culpa por negligência essencial? Aque-
les que nessa altura já eram tão dotados profeticamente que viam o que estava
para vir - eu não era tão sábio assim - por que razão esperaram quase dez
anos para atacar tal calamidade? Por que é que aqueles que julgavam sabê-lo
em 1933, por que é que nessa altura essas mesmas pessoas não se ergueram e
desde o início não guiaram tudo para o bem?» 32 O que irrita é somente o
recalcamento da culpa de um homem que a si próprio passou um certificado
de saneamento, quando tudo tinha acabado, para de igual modo justificar a sua
opção pelo fascismo a partir da perspectiva do criado de quarto de intrigas da
Universidade. Do mesmo modo que Heidegger vai imputar imediatamente a sua
tomada de posse como reitor e as querelas subsequentes à «situação metafísica
32 O manuscrito de Heidegger do ano de 1945 foi publicado pela primeira vez em 1983 pelo
filho: Die Selbstbehauptung der deutschen Universitiit. Das Rektorat 1933/34 (A Auto-afirmação
da Universidade Alemã. A Reitoria em 1933/34), Frankfurt-am-Main, 1983,_p. 26. Em relação a esta
publicação, M. Schreiber relata sobre <<Neue Einzelheiten einer künftigen Heidegger-Biógraphie>>
(«Novos Pormenores para uma futura Biografia de Heidegger>>), no jornal Frankfurter Allgemeine
Zeitung de 20 de Julho de 1984, pormenores esses resultantes das investigações mais recentes do his-
toriador Hugo Ott, de Freiburg.
151
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
essencial da ciência» (id., ibid., p. 39), assim também ele vai finalmente sepa-
rar as suas acções e as declarações sobre si próprio como pessoa empírica e
vai atribuí-las a um destino que não pode ser considerado responsável. Foi
desta perspectiva que Heidegger examinou a sua própria evolução teórica; ele
não entendeu a chamada viragem como resultado de um esforço de pensa-
mento para resolver problemas nem como processo de investigação, mas sem-
pre como o acontecimento objectivo de uma superação da metafísica anoni-
mamente encenada pelo próprio ser. Até agora reconstruí a transição da
ontologia fundamental para o pensamento devoto do ser como uma saída
motivada internamente para fora do impasse da filosofia do sujeito, isto é,
como resolução do problema; Heidegger opor-se-ia enfaticamente a isso. Pre-
tendo demonstrar que há algo de verdade nesta oposição. A viragem é de
facto o resultado da experiência com o nacional-socialismo, portanto da expe-
riência com um acontecimento histórico que em certa medida aconteceu a
Heidegger. Só este momento de verdade na autocompreensão metafisicamente
idolatrada pode tornar plausível o que teria de permanecer incompreensível se
se partisse de uma perspectiva internalista de uma evolução da teoria condu-
zida por problemas, nomeadamente a questão de saber por que é que Heideg-
ger pôde entender a história do ser como acontecimento de verdade e mantê-
-la imune a concepções do mundo ou a interpretações históricas do mundo
perante um simples historicismo. A mim interessa-me saber de que modo o
fascismo interveio no próprio desenvolvimento da teoria heideggeriana.
Até 1933 Heidegger sentiu como tão pouco problemática a posição desen-
volvida em Ser e Tempo, posição essa várias vezes esclarecida nos anos seguin-
tes, que após a tomada do poder fez precisamente um uso original das implica-
ções da filosofia do sujeito do existente que se afirma a si próprio na sua
finitude - uso esse que decerto desloca consideravelmente as conotações e o
sentido original da analítica existencial. Em 1933 Heidegger preencheu com um
conteúdo novo os conceitos básicos da ontologia fundamental mantidos inalte-
ravelmente. Se até aqui utilizara «existente» [«Daseim>] inequivocamente como
denominação do indivíduo existencialmente isolado a caminhar para a morte,
substitui agora esta existência «que constantemente me pertence» pelo existente
colectivo povo que «constantemente nos pertence», existindo eleito pelo des-
tino 33. Todos os existenciais permanecem os mesmos, e contudo mudam
repentinamente de sentido, e não apenas de horizonte expressivo de significado.
As conotações que os existenciais devem à sua proveniência cristã, em especial
graças a Kierkegaard, transformam-se à luz do novo paganismo que então
33 Oskar Becker chamou a minha atenção para tal facto ainda durante o meu tempo de estu-
dante. Agradeço a Victor Farías o ter-me facultado a consulta da sua análise sobre a fase nacional-
-revolucionária de Heidegger, ainda a publicar.
152
A CORROSÃO CRITICO-METAFÍSICA DO RACIONALISMO OCIDENTAL
153
r
154
A CORROSÃO CRÍTICO-METAFÍSICA DO RACIONALISMO OCIDENTAL
38 William Richardson chamou a minha atenção para o ponto de contacto que esta concepção
já encontra na obra Vom Wesen der Wahrheit (Da Essência da Verdade). O 7.0 parágrafo trata da
<<não-verdade como extravio» [Irre ]. O extravio, tal como a verdade, pertence à condição da existên-
cia: <<0 extravio é a morada aberta do erro. O erro não são falhas isoladas, mas sim o reino (a domi-
nação) da história daquelas ciladas, entretecidas em si mesmas, de todos os modos do extraviar-se»
(Da Essência da Verdade, Frankfurt-am-Main, 1949, p. 22). Este conceito de extravio como um
espaço objectivo de manobra não oferece certamente mais do que um ponto de partida, pois o erro
e a verdade ainda se comportam um em relação ao outro do mesmo modo que desocultação e oculta-
ção do ente como tal (ibid., p. 23). Parece-me que o texto publicadÓ pela primeira vez em 1943, ao
qual serve de base o texto de uma conferência do ano de 1930 <<várias vezes revista», não permite
nenhuma interpretação inequívoca no sentido da filosofia da última fase.
39 M. Heidegger, Einführung die Metaphysik (Introdução à Metafísica), Thbingen, 1953, p. 152.
* O termo heideggeriano Geste/1 não encontra noutras línguas um termo correspondente satisfa-
tório, entendido contexto da problemática da história da metafísica interpretada por Heidegger. Na
sua acepção usual Geste/1 significa armação, estante para livros ou ainda o simples <<chassis» de um
carro. (Nota do rev. cient.)
40 Cf. a exposição precisa de R. Schürmann, <<Political Thinking in Heidegger», Soe. Research,
Vol. 45, 1978, p. 191.
155
VII. EXACERBAÇÃO DA FILOSOFIA TEMPORALIZADA
DA ORIGEM:
A CRÍTICA DE DERRIDA AO FONOCENTRISMO
I J. Derrida, Marges de la philosophie, Paris, 1972, «Les fins de l'homme», pp. 129 e segs. (ed.
alemã: Frankfurt, 1976, pp. 88 e segs.).
2 J. Derrida, De la grammatologie, Paris, 1967, p. 25 (ed. alemã: Frankfurt, 1974, p. 28).
157
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
158
EXACERBAÇÃO DA FILOSOFIA TEMPORALIZADA DA ORIGEM
7 I. J. Gelb, A study of writing, the joundations of grammato/ogy, 1952, 1963 (ed. alemã:
Stuttgart, 1958).
8 J. Derrida (1967) p. 21 (ed. ai.: p. 23).
159
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
verdade, mesmo aquelas que nos recorda Heidegger, para além da sua onto-
-teologia, não podem ser separadas da instância de um logos.» 9 Uma vez que
o logos, como veremos, é sempre inerente à palavra falada, Derrida quer atingir
o logocentrismo do ocidente na figura do fonocentrismo.
Para entender esta viragem surpreendente na direcção da gramatologia é útil
recordarmos as metáforas do «livro da natureza» e do «livro do mundo» que
remetem para a caligrafia de Deus, a qual, apesar de dificilmente legível, pode
ser decifrada se nos dermos a esse esforço. Derrida cita uma passagem de Jas-
pers: «0 mundo é o manuscrito de um outro mundo nunca inteiramente legí-
vel; só a existência o decifra.» Há livros no plural apenas porque o texto origi-
nal se perdeu. No entanto, Derrida tira a esta imagem qualquer acorde
optimista ao radicalizar kafkianamente a ideia do livro perdido. Este livro,
escrito na caligrafia de Deus, nunca existiu, mas há indícios dele, os quais,
porém, se dissiparam. Esta consciência marca a autocompreensão da moderni-
dade, em todo o caso, desde o século XIX : «Isto não significa só que se perdeu
a certeza teológica de se ver todas as páginas do livro juntarem-se por si mes-
mas no incomparável texto da verdade... compilação genealógica, Livro da
Razão desta vez, manuscrito infinito lido por um Deus que, de um modo mais
ou menos retardado, nos teria emprestado a sua pena. Esta certeza perdida, esta
ausência da escrita divina, i. e., primeiramente do Deus judeu que, ocasional-
mente, escrevia ele próprio, não define apenas vagamente algo como a moderni-
dade. Enquanto ausência e tribulação do sinal divino, (esta certeza) determina
toda a estética e crítica modernas.» 10 A modernidade busca os vestígios de
uma escrita que já não promete a totalidade de uma coerência semântica, como
o fazia o livro da natureza ou a escritura sagrada.
Num contexto catastrófico de transmissão o substrato dos sinais escritos é
a única coisa que resiste à corrupção. O texto escrito assegura duração à pala-
vra, que no medium pouco sólido da voz se volatiliza; a decifração deve prece-
der a interpretação. Com frequência, o texto está tão mutilado e fragmentado
que recusa a qualquer intérprete posterior o acesso ao conteúdo. Contudo,
mesmo do texto incompreensível se conservam os registos, os sinais - , sobre-
vive a matéria como vestígio de um espírito desaparecido.
Sem dúvida que Derrida, seguindo Levinas, é inspirado pela tradicional
compreensão judaica que, mais que a cristã, se afastou da ideia do livro e que,
exactamente por isso, permanece vinculada de um modo mais rigoroso à erudi-
ção da escrita. O programa de uma ciência da escrita com uma aspiração a crí-
tica da metafísica é retirada de fontes religiosas. No entanto, Derrida não quer
pensar teologicamente; enquanto heideggeriano ele proíbe a si mesmo qualquer
160
EXACERBAÇÃO DA FILOSOFIA TEMPORALIZADA DA ORIGEM
li J. Derrida, <<Signature événement contexte», in Marges ... , op. cit., pp. 365 e segs., sobretudo
pp. 375 e 381 (ed. alemã: op. cit. , 1976, pp. 124 e segs., sobretudo pp. 133 e 141).
12 J. Derrida, De la grammatologie, op. cit. p. 100 (ed. al.: p. 120).
161
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
II
162
-
EXACERBAÇÃO DA FILOSOFIA TEMPORALIZADA DA ORIGEM:
163
1
t)
suas partes constituintes. Este corte conceptual pode ser tornado mais nítido
pela passagem do discurso intersubjectivo para o monólogo interno - o ponto
de vista semântico satisfaz-se com os aspectos que são constitutivos para uma
utilização monológica de expressões linguísticas. Desta decisão a favor do plano
analítico da semântica formal decorre, de um modo ainda não necessário,
aquela posição semanticista que nega a ligação interna da linguagem, assim
caracterizada de modo semântico, com o discurso e que opera como se as fun-
ções pragmáticas da linguagem fossem exteriores. No quad~o da fenomenolo-
gia, Husserl representa precisamente esta posição; sob as premissas da filosofia
da consciência é óbvio que ele também não tem outra opção 18.
O ponto de partida monadológico do eu transcendental obriga Husserl a
reconstruir as relações intersubjectivas, que são produzidas na comunicação, da
perspectiva do indivíduo e da consciência dirigida para objectos intencionais.
O processo de compreensão decompõe-se na «informação» [Kundgabe] de um
falante que produz sons e associa a estes actos significantes, e no «ser infor-
mado» [Kundnahme] do ouvinte para o qual os sons percepcionados assinalam
as vivências psíquicas «informadas» [kundgegebenen]: «0 que torna possível
a convivência espiritual e o que faz do discurso discurso reside nesta correlação
mediatizada pelo aspecto físico do discurso, entre as vivências físicas e psíqui-
cas que estão intimamente ligadas, das pessoas em convivência recíproca.» 19
Uma vez que os sujeitos começam por estar face a face sem mediação e se per-
cepcionam por fora como objectos, a comunicação entre eles é representada
segundo o modelo da sinalização [Signalinerung] de conteúdos de vivências,
logo, de um modo expressivista. Os signos mediadores funcionam como sinais
para os actos que o outro começa por executar na sua vida espiritual solitária:
«Quando abrangemos este contexto reconhecemos de imediato que todas as
expressões funcionam no discurso comunicativo como sinais. Elas servem ao
ouvinte como signos dos pensamentos do falante, i. e., das vivências psíquicas
significantes do mesmo.» 20
Uma vez que Husserl atribui um estatuto originário à subjectividade dos
actos dadores de sentido face à intersubjectividade da compreensão mútua
criada linguisticamente, o processo da compreensão entre sujeitos tem de ser
representado segundo o modelo da transmissão e decifração de sinais de vivên-
cias. Recorrendo à distinção entre expressão e sinal, ele descreve a utilização
comunicacional de signos, de tal modo que estes assumem a função de indica-
ções [Auzeige] externas dos actos do falante, os quais são executados interior-
mente. Se as expressões linguísticas, porém, só são ligadas na comunicação,
164
EXACERBAÇÃO DA FIWSOFIA TEMPORALIZADA DA ORIGEM
165
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
166
EXACERBAÇÃO DA FIWSOFIA TEMPORALIZADA DA ORIGEM
III
167
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
análise da linguagem: «Com efeito, é claro que quando afirmamos que toda a
expressão subjectiva pode ser substituída por uma objectiva nada mais fazemos,
no fundo, qué enunciar a ausência de limites da razão objectiva.» 28 É esta
prévia limitação metafísica da linguagem pela razão, do significado pelo saber,
que provoca a resistência de Derrida. No conceito de evidência da verdade de
Husserl ele vê uma metafísica em elaboração que obriga a pensar o ser como
presença, como presentificação ou estar-presente.
É esta a passagem em que Derrida introduz a exterioridade do signo, a qual
na argumentação de Husserl tinha sido posta de lado como secundária - uma
visão semiótica, mas de modo algum linguístico-pragmática. No pensamento da
identidade autenticada pela presença revela-se a Derrida o núcleo metafísico da
fenomenologia - metafísica, na medida em que o modelo da intenção semân-
tica preenchida intuitivamente faz desaparecer justamente a diferença temporal
e a alteridade que são constitutivas para o acto da presentificação intuitiva do
mesmo objecto e, desse modo, também para a identidade do significado de uma
expressão linguística. Na sugestão husserliana da presença simples de um dado
por si mesmo perde-se aquela estrutura da repetição, sem a qual nada pode ser
resgatado ao fluxo do tempo e à corrente das vivências para poder ser tornado
presente como tal, portanto, para poder ser representado.
No quinto e central capítulo da La Voix et te Phénomene Derrida recorre às
análises husserlianas da consciência interna do tempo para desenvolver, com e con-
tra Husserl, a estrutura diferencial da intuição de algo que é dado actualmente, a
qual só se torna possível por meio de protenções e retenções. A presença simples
de um objecto indivisível e idêntico a si mesmo desagrega-se logo que a rede de pro-
tenções e retenções em que se enquadra toda a vivência actual se torna consciente.
A vivência que está presente «num instante» é devida a um acto de presentificação,
e a percepção a um reconhecer reprodutivo, de modo que à espontaneidade do ins-
tante vital é inerente a diferença de um intervalo de tempo e assim também um
momento da alteridade. A unidade internamente refundida do que é dado intuitiva-
mente revela-se, de facto, algo composto e produzido. Uma vez que o Husserl das
«Investigações lógicas» desconhece este processo originário da temporalização e da
modificação no coração da subjectividade transcendental, ele é levado a iludir-se
sobre o papel do signo na constituição de objectos e significados idênticos a si mes-
mos. Para toda a representação que relaciona passado e presente um com o outro
é imprescindível o signo: «Em certa medida, um fonema, ou um grafema, de cada
vez que se apresenta numa operação ou percepção, é sempre, necessariamente,
outro, mas ele só pode funcionar como signo (e, de um modo geral, como lingua-
gem) na medida em que a sua identidade formal permite usá-lo e reconhecê-lo de
novo. Esta identidade é necessariamente ideal.» 29 Em vez da identidade de
168
EXACERBAÇÃO DA FILOSOFIA TEMPORALIZA DA DA ORIGEM
significados em si, que Husserl separa tão rigorosamente, tanto dos actos do
significar e da comunicação, quanto do substrato semiológico da expressão e
do relator, Derrida recorre à «idealidade da forma sensível do significante» 30.
Esta explica ele não pragmaticamente, partindo do uso das regras, mas em con-
traste com o que ele chama a metafísica da presença de Husserl.
A objecção central de Derrida é que Husserl se deixou cegar pela ideia fun-
damental da metafísica ocidental, segundo a qual a idealidade do significado
idêntico a si mesmo só é garantida pela presença viva da vivência actual sem
mediação, a qual é intuitivamente acessível na interioridade da subjectividade
purificada de modo transcendental de todos os aditivos empíricos; caso contrá-
rio, ele não se poderia ter iludido sobre o facto de que no ponto de origem
deste presente absoluto se manifesta uma diferença e uma alteridade temporais
que Derrida caracteriza, simultaneamente, como diferença passiva e prorroga-
ção criadora de diferença. Este ainda-não de uma actualidade potencial e ainda
vindoura, que tinha sido retida, forma o fundo de referências sem o qual, em
geral, nada pode ser experienciado como actual. Derrida nega que uma inten-
ção semântica possa alguma vez desaparecer na intuição preenchida, coincidir
com ela, fundir-se nela. Uma intuição nunca poderá pagar a letra da intenção
do significado que é apresentada com a expressão. As vicissitudes temporais e
a alteridade temporal são, pelo contrário, constitutivas em ambos os casos -
tanto para a função semântica de uma expressão linguística, que tem de perma-
necer compreensível justamente na ausência daquilo a que se referem o signifi-
cado [Gemeinte] e o dito; como para a estrutura da experiência de um objecto,
a qual só pode ser identificada e fixada na antecipação de uma expressão inter-
pretativa, nomeadamente, que ultrapasse a vivência actual e, nessa medida, não
seja presente como algo percepcionado actualmente.
A toda a percepção é subjacente uma estrutura da repetição, que é pesqui-
sada pelo próprio Husserl com a ajuda dos conceitos de protenção e retenção.
Husserl não compreendeu que esta estrutura da actualização só é possível
devido à força simbolizante ou à função representante do signo. Só que na sua
exterioridade não sublimável, com a natureza de substrato, do carácter do
signo, a expressão engendra uma diferença insuperável, por um lado, entre si
e aquilo que representa - o seu significado e, por outro lado, entre a esfera
dos significados articulados linguisticamente e a esfera intramundana a que
pertencem o falante e o ouvinte a par das suas vivências, e a que pertencem
também o discurso e, antes de mais, os seus objectos. Derrida interpreta a rela-
ção em si diferenciada entre expressão, significado e vivência como a fissura
pela qual penetra aquela luz da linguagem, só em virtude da qual algo
enquanto algo pode ser presente e actual no mundo. Apenas a expressão e o
significado tomados conjuntamente podem representar ' algo - e Derrida
169
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
31 E. Husserl, 1913, p. 97
32 J. Derrida, La Voix et /e Phénomene , op. cit. , p. 88 (ed. ai.: p. 135).
33 J. Derrida, La Voix et /e Phénomene, op. cit. , p. 87 (ed. ai. : p. 134).
34 J. Der rida, De la grammatologie, op. cit. , p. 34 (ed. a i. : p. 39).
170
EXACERBAÇÃO DA FIWSOFIA TEMPORALIZADA DA ORIGEM
171
)
que dão lugar à descoberta do mundo e têm lugar entre o inteligível dos signifi-
cados e o empírico que se manifesta dentro do seu horizonte, ou seja, entre o
mundo e o que é intramundano. Este possibilitar é um processo de adiamento
no diferenciar. Deste ponto de vista, o inteligível, que é distinto do sensível,
manifesta-se ao mesmo tempo como sensível adiado, o conceito distinto da
intuição manifesta-se, simultaneamente, como intuição adiada, a cultura dife-
renciada da natureza como natureza adiada. Assim alcança Derrida uma inver-
são do fundamentalismo husserliano na medida em que a força transcendental
da origem passa da subjectividade criadora para a produtividade anónima e
instituidora da história da escrita. A presença daquilo que se mostra por si
mesmo na intuição actual torna-se pura e simplesmente dependente da força
representativa do signo.
Ora é importante ver que Derrida no decorrer deste movimento do pensa-
mento não corta de modo algum com a persistência fundamentalista da filoso-
fia do sujeito - ele limita-se a tornar aquilo que para esta valia como funda-
mental, dependente de um fundamento ainda mais profundo, o qual se torna
instável ou foi abalado, de um poder originário condensado temporalmente.
Derrida recorre despreocupadamente a esta «arqui-escritura», que deixa as suas
marcas sem sujeito e anonimamente, no estilo da filosofia da origem: «Seriam
necessários nomes diferentes dos do sinal ou da re-presentação para pensar esta
idade, para falar dela, bem assim como para se poder pensar normalmente e
pré-originariamente aquilo que Husserl julgava poder isolar enquanto experiên-
cia secundária particular, contingente, dependente: a experiência da derivação
infinita dos sinais que, à deriva e mudando constantemente de cena, encadeiam,
sem princípio nem fim, as re-presentações umas nas outras.» 37 Não é a histó-
ria do ser que é o início e o termo, mas sim uma imagem enigmática: os efeitos
labirínticos dos textos antigos cada um dos quais remete continuamente para
textos ainda mais antigos, sem despertar a esperança de alguma vez se vir a
possuir o escrito originário. Tal como aconteceu com Schelling na sua especula-
ção sobre o encaixamento sem tempo e temporalizante das idades do mundo
que são para ele o passado, o presente e o futuro, Derrida persiste na ideia ver-
tiginosa de um passado que nunca foi presente.
IV
37 J. Derrida, La Voix et /e Phénomene, op. cit., p. 116 (ed. al.: pp. 164 e segs.).
172
EXACERBAÇÃO DA FIWSOFIA TEMPORALIZA DA DA ORIGEM
38 J. Derrida, De la grammatologie , op. cit. , p. 65 (ed. ai. : p. 78); cf. t'!mbém a excelente expo·
e segs.).
173
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
174
j
EXACERBAÇÃO DA FILOSOFIA TEMPORALIZADA DA ORIGEM
actual para um primeiro plano ôntico para poder mover-se mais livremente e
com uma maior riqueza de associações na esfera do ontológico e da arqui-
-escrita. Mas a retórica que serve em Heidegger de iniciação ao factum do ser,
em Derrida favorece antes uma posição diferente, uma posição subversiva. Der-
rida está mais próximo do desejo anarquista de fazer explodir o continuum da
história do que do lema autoritário de se conformar com o destino 43.
Esta atitude antagonista poderia estar relacionada com o facto de Derrida,
não obstante todos os desmentidos, permanecer na proximidade da mística
judaica. Ele não quer recuar de modo neo-pagão para além dos princípios do
monoteísmo, para além do conceito de uma tradição que se liga aos vestígios
da escrita divina perdida e que é perpetuada pela exegese herética das escritu-
ras. Derrida cita com assentimento a palavra do rabbi Eliezer transmitida por
E. Levinas: «Mesmo que todos os mares fossem de tinta, todos os lagos semea-
dos com tinteiros, mesmo que o céu e a terra fossem de pergaminho e todos
os homens praticassem a arte da escrita, eles não esgotariam a Torah que eu
estudei, pois a Torah só diminuiria na mesma proporção de um mar em que
se mergulhasse a ponta de um pincel.» 44 Os cabalistas sempre tiveram inte-
resse em revalorizar a Torah oral, cuja origem é a palavra dos homens, face à
palavra presumidamente divina da Bíblia. Eles conferiam um alto valor aos
comentários pelos quais cada nova geração assimila a revelação. Pois a verdade
não é fixa, não se tornou positiva de uma vez por todas num conjunto de pro-
posições bem delimitado. Mais tarde esta concepção cabalística foi ainda mais
radicalizada. Desse modo, até mesmo a Torah escrita valia como uma tradução
problemática da palavra divina para linguagem dos homens - como uma mera
interpretação, e por isso discutível. Tudo é Torah oral, nenhuma sílaba é autên-
tica, nem mesmo a que é comunicada pela arqui-escritura. A Torah da árvore
do conhecimento é uma Torah oculta desde o início. Ela troca permanentemente
as suas vestes, e estas vestes são a tradição.
G. Scholem relata discussões que se desencadearam sobre a questão de se
os dez mandamentos do povo de Israel tinham sido trazidos por Moisés sem
alterações. Alguns cabalistas eram da opinião que só os dois primeiros, os man-
damentos que por assim dizer constituem o monoteísmo, provinham mesmo de
Deus; outros duvidavam mesmo da autenticidade das primeiras palavras trans-
mitidas por Moisés. O rabbi Mendel de Rymanow radicaliza uma ideia de Mai-
monides ainda mais : «Segundo ele nem mesmo os primeiros dois mandamentos
provêm de uma revelação a toda a comunidade de Israel. Tudo o que Israel
43 Derrida diz sobre a «différance»: <<Ela não comanda nada, não reina sobre nada e não exerce
qualquer autoridade. Ela não é anunciada por nenhuma maiúscula. Não só não existe um reino da
"différance" como esta fomenta a subversão de todo e qualquer reino», in Marges , op. cit., p. 22
(ed. ai. : p. 29).
44 J. Derrida, De la grammatologie, op. cit., pp. 27 e segs. (ed. ai. : p. 31).
175
O DISCURSO FIWSÓFICO DA MODERNIDADE
escutou não foi mais que aquele Aleph com o qual começa o texto hebraico da
Bíblia no primeiro mandamento... Isto parece-me ser, de facto», acrescenta
Scholem, <<Uma frase deveras notável e que motiva a minha ponderação. A con-
soante Aleph representa em hebraico nada mais que o movimento da laringe
que precede a pronunciação de uma vogal no começo da palavra. O Aleph
representa por assim dizer o elemento de que provém todo e qualquer som arti-
culado... Ouvir o Aleph não corresponde em princípio a nada, representa ape-
nas a transição para todas as línguas perceptíveis, e claro que não se pode dizer
que ele forneça por si um sentido específico. Com a sua ideia astuciosa... o
rabbi Mendel reduziu a revelação a uma revelação mística, i. e., a uma revelação
que, apesar de em si ser infinitamente repleta de sentido, não tem um sentido
específico. Ele representava algo que, para fundamentar a autoridade religiosa,
tinha de ser traduzido para a linguagem humana; e, no sentido desta concep-
ção, foi isso o que Moisés fez. Toda a fórmula que fundamente a autoridade
seria, apesar de muito válida e altamente qualificada, uma interpretação
humana de algo que a transcende.» 45 O Aleph do rabbi Mendel é similar ao
«a» mudo, que só pode ser discriminado pela escrita, em virtude de na indeter-
minação deste sinal delicado e ambíguo estar concentrada a plenitude da pro-
messa.
A concepção de Derrida de uma arqui-escrita circunscrita gramatologica-
mente, cujos vestígios exortam a cada vez mais interpretações quanto mais
imperceptíveis se tornam, renova o conceito místico da tradição enquanto acon-
tecer protelador da revelação. A autoridade religiosa conserva a sua força
enquanto ocultar o seu verdadeiro rosto, provocando desse modo a fúria deci-
fradora dos intérpretes. A desconstrução executada com persistência é o traba-
lho paradoxal da continuação de uma tradição em que a energia redentora só
se renova com o seu dispêndio. O trabalho de desconstrução deixa crescer cada
vez mais o entulho das interpretações, o qual ela pretende eliminar para libertar
os fundamentos obstruídos.
Derrida pensa ir além de Heidegger; felizmente ele fica aquém dele. Expe-
riências místicas só podiam desenvolver a sua força explosiva, a sua força ani-
quiladora e ameaçadora para instituições e dogmas, na transmissão cultural
judaica e cristã, porque nestes contextos elas permaneciam relativas a um Deus
oculto e que transcende o mundo. Iluminações que estão separadas desta fonte
concentradora de luz tornam-se, curiosamente, difusas. A via da sua profana-
ção consequente aponta para aquele domínio de experiências radicais que nos
foi aberto pela arte vanguardista. Foi do fascínio puramente estético da subjecti-
vidade ex-estática [ekstatischen], que se encontra fora de si, que Nietzsche retirou
a sua orientação. Heidegger ficou a meio caminho : ele queria reter a força
45 G. Scholem, Zur Kabbala und ihrer Symbolik (Acerca da cabala e da sua simbologia),
Frankfurt, 1973, pp. 47 e segs.
176
EXACERBAÇÃO DA FILOSOFIA TEMPORALIZADA DA ORIGEM
de uma iluminação que perdeu a direcção sem pagar o preço da sua profana-
ção. Assim, ele joga com uma aura que perdeu o seu santuário. De um modo
ôntico-místico, as iluminações regridem até ao plano do mágico. Na mística
neopagã, a partir do carisma - transgressor de limites do extra-quotidiano não
flui, como no plano estético, nem algo libertador nem, como no plano reli-
gioso, algo renovador - parte, quanto muito, um estímulo para a charlatana-
ria. Ora é deste estímulo que Derrida depura a mística do ser, reconduzida ao
contexto tradicional do monoteísmo 46 .
46 Vejo-me apoiado nesta interpretação por um artigo de Susan Handelman de que eu só mais
tarde (graças a uma indicação de J. Culler) tomei conhecimento: «Jacques Derrida and the Herecric
Hermeneutic», in M. Krapnick (ed.), Disp/acement, Derrida and After, Bloornington, Indiana,
1983, pp. 98 e segs. S. Handelman chama a atenção para uma interessante citação de Levinas que
Derrida (no seu ensaio sobre Levinas) põe em evidência: <<Amar a Torah mais que Deus significa
uma protecção contra a loucura de um contacto directo com o sagrado... » (L'Ecriture et la Diffé-
rence, op. cit. , p. 151) e sublinha o parentesco entre Derrida e a tradição rabínica e, em particular,
as suas radicalizações cabalísticas e heréticas: «The statement (of Levinas) is striking and erninently
Rabbinic - the Thora, the Law, Scripture, God, he says, are even more important than He. We
might say that Derrida and the Jewish herectic hermeneutic do precisely that : forsake God but per-
petuate a Thora, Scripture or Law in their own displaced and ambivalent way» (p. 115). S. Handel-
man reporta-se igualmente à desvalorização da tradição original da palavra divina a favor da Torah
oral, a qual, ao longo da história do exílio, reivindicava uma autoridade crescente e, por fim, até
mesmo preponderante. <<'fhat is, ali !ater Rabbinic interpretation shared the same divine origin as
the Thora of Moses; interpretation, in Derridas terms, was a/ways a/ready there. Human interpreta-
tion and commentary thus become part of the Divine Revelation The boundaries between text and
commentary are fluid in a way that is difficult to imagine for a sacred text, but this fluidity is a
central tenet of contemporary criticai theory, especially in Derrida.» (p. 101). De resto, S. Handel-
man coloca claramente a denúncia derridiana do logocentrismo ocidental enquanto fonocentrismo
no contexto histórico-religioso de uma defesa, reatada sempre de novo, da letra contra o espírito.
Deste modo, Derrida ocupa uma posição dentro da apologia judaica. O cristianismo paulino desa-
creditou a história das interpretações da Torah oral como <<palavra morta» (2.' Epístola aos Corín-
tios, 3,6) face ao <<espírito vivo» da presença imediata de Cristo. Paulo volta-se contra os judeus
que se fixam no texto e não querem abandonar a <<escritura» a favor do «logos» da revelação cristã:
<<Derrida's choice of writing to oppose to Western logocentrism is a re-emergence of Rabbinic her-
meneutics in a displaced way. Derrida will undo greco-Christian theology and move us back from
ontology to grammatology, from Being to Text, from Logos to Ecriture - Scripture.» (p. 111) Neste
contexto, é de grande importância o facto de Derrida não poder retirar da recepção romântica de
Dioniso, como Heidegger o faz por intermédio de Hõlderlin, o motivo do deus que actua por meio
da sua ausência e da sua privação e de não o poder dirigir enquanto motivo arcaico contra o mono-
teísmo. Pelo contrário, a ausência activa de Deus é um motivo que Derrida vai buscar por intermé-
dio de Levinas à tradição judaica: <<'fhe absent God of the Holocaust, the God who obscures his
face, paradoxically becomes for Levinas the condition of Jewish belief... Judaism is then defined
as this trust in an absent God.» (p. 115) Deste modo a crítica da metafísica de Derrida adquire um
significado diferente da de Heidegger. O trabalho da desconstrução serve então para a renovação
inconfessada de um diálogo com Deus, o qual foi quebrado nas condições modernas de uma ônto-
·teologia que se tornou facultativa. A intenção não seria então o ultrapassar da modernidade recor-
rendo a fontes arcaicas, mas uma tomada em conta das condições do moderno pensamento pós-
-metafísico, sob as quais o diálogo com Deus, camuflado de modo ônto-teológico, já não pode ser
continuado.
177
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
Se esta suposição não é inteiramente falsa, Derrida retoma àquele local his-
tórico em que a mística se transformou em iluminismo. Scholem reconstitui
durante toda a sua vida esta mutação que teve lugar no século XVIII . Sob as
condições do século xx, como observa Adorno, a mística e o iluminismo
encontraram-se de novo «pela última vez» em Benjamin, e isto com os meios
teóricos do materialismo histórico. A mim parece-me duvidoso que este movi-
mento de ideias possa ser repetido com os meios de um fundamentalismo nega-
tivo; em todo o caso ele teria de nos introduzir ainda mais profundamente na
modernidade que porém Nietzsche e os seus sucessores tinham querido ultra-
passar.
178
EXACERBAÇÃO DA FILOSOFIA TEMPORALIZADA DA ORIGEM
negação determinada - embora ela tenha perdido todo o apoio na textura cate-
goria! da Lógica Hegeliana - como se de um fetichismo do desencantamento
se tratasse. A fideliclade a um procedimento crítico que já não pode estar
seguro dos seus fundamentos explica-se pela circunstância de Adorno, ao con-
rário de Heidegger, não desprezar de um modo elitista o pensamento discursivo.
É certo que nós andamos à deriva no discursivo como no exílio; mas, apesar
disso, somente a força persistente, projectada contra si mesma, de uma reflexão
desprovida de qualquer fundamento preserva a ligação com a utopia de um
conhecimento há muito perdido, pertencente ao passado, franco e intuitivo 47.
Claro que o pensar discursivo não se pode, por si mesmo, identificar como
forma degenerada deste; só a experiência estética, adquirida no contacto com
a arte vanguardista, o ajuda a tal. A promessa, sobre a qual uma tradição filo-
sófica obsoleta já não tem qualquer poder, recolheu-se no escrito especular da
obra de arte esotérica e carece de uma decifração negativista. Deste trabalho de
decifração suga a filosofia aquele resto de confiança na razão, com a qual a
Dialéctica Negativa executa obstinadamente, no duplo sentido da palavra, as
suas contradições performativas.
Derrida não pode partilhar da confiança adorniana, esteticamente autenti-
cada, residual, numa razão tres-loucada, expulsa das regiões da filosofia, que
deveio utópica. !ao-pouco acreditava Derrida, evidentemente, que Heidegger, o
qual utiliza os conceitos da metafísica para depois os «riscar», se tinha despren-
dido do constrangimento conceptual da filosofia do sujeito. Claro que Derrida
quer continuar o caminho trilhado pela crítica da metafísica; e também quer
mais depressa evadir-se da situação paradoxal que assediá-la meditativamente.
Mas, como Adorno, ele fecha-se ao gesto de profundidade que Heidegger des-
preocupadamente imita, socorrendo-se do seu oposto, da filosofia da origem.
Por isso também há paralelos entre Derrida e Adorno. __.-
Esta similitude no gesto reflexivo carece de uma análise mais rigorosa.
Adorno e Derrida estão sensibilizados do mesmo modo contra modelos finalis-
tas, totalizantes, que incorporam tudo em si, particularmente, contra o orgânico
na obra de arte. Assim, ambos acentuam a primazia do alegórico face ao sim-
\ bólico, da metonímia face à metáfora, do romântico face ao clássico. Ambos
utilizam o fragmento como forma da exposição, colocam todo o sistema sob
suspeita. Ambos decifram perspicazmente o caso normal partindo dos seus
casos limites; ambos se encontram num extremismo negativo, descobrem o
essencial no marginal e secundário, põem o direito do lado do subversivo e do
repudiado, a verdade na periferia e no impróprio. A uma desconfiança perante
tudo o que é imediato e substancial corresponde o pressentimento intransigente
de mediações, pressuposições ocultas e de dependências. À crítica das origens,
179
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
180
EXACERBAÇÃO DA FILOSOFIA TEMPORALIZADA DA ORIGEM
181
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
da filosofia e da ciência em fins cognitivos, de tal modo que elas possam ser
depuradas de tudo o que é metafórico e meramente retórico, e libertas de todos
os aditivos literários. Na praxis desconstrutiva revela-se a debilidade da dife-
rença genérica entre filosofia e literatura; no fim, todas as diferenças genéricas
perecem numa coerência textual global que incorpora tudo em si. Derrida fala
do «texto universal» de um modo hipostaziante. Resta a escrita que se escreve
a si mesma como medium, no qual todo o texto está entretecido com todos os
outros. Todo o texto singular, todo o género particular, perdeu a sua autono-
mia, ainda antes de se ter manifestado, a favor de um contexto que tudo devora
e de um acontecer incontrolável de criação textual espontânea. Aí assenta a pri-
mazia da retórica, que tem a ver com as qualidades dos textos em geral, face
à lógica enquanto sistema de regras, a que estão subordinados de modo exclu-
sivo apenas determinados tipos de discursos dependentes da argumentação.
11
182
~-~~L><'T?J1 r<
• -.".;;.h.,,.,.v;: FCD.::.i"fi.
UU:.l.GTCC.L CCU.""n ~.
_....,.,..,;;
f-1~
EXACERBAÇÃO DA FIWSOFIA TEMPORALIZADA DA ORIGEM
48 Isso é válido principalmente para os críticos de Yale : Paul de Man, Geoffrey Hartmann, Hil-
lis Miller e Harold Bloom, cf. J. Arac, W. Godzich, W. Martin (Eds.), The Yale Critics : Deconstruc-
tion in America , Univ. o f Minnesota Press, Minneapolis, 1983. Importantes centros do desconstruti-
vismo são, além da Yale-University, entre outras, a University of Maryland, Baltimore, bem assim
como a Cornell-University, Ithaca N. Y.
49 Ch. Norris, Deconstruction. Theory and Practice , London e N. Y. , 1982, pp. 93 e 98.
183
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
184
EXACERBAÇÃO DA FIWSOFIA TEMPORALIZADA DA ORIGEM
185
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
186
EXACERBAÇÃO DA FIWSOFIA TEM PORALIZADA DA ORIGEM
55 John Searle, Speech Acts, Cambr., 1969; id., Expression and Meaning, Cambr. , 1979.
56 J. Culler, 1983, pp. 121 e segs.
187
J.
?
188
EXACERBAÇÃO DA FILOSOFIA TEMPORALIZADA DA ORIGEM
III
189
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
60 K. Buehler, Sprachtheorie (Teoria da linguagem), Iena, 1934; Stuttgart, 1965, pp. 24 e segs.
61 R. Jakobson, «Linguistik und Poetik», 1960, in id., Poetik, Frankfurt, 1979, p. 92.
62 R. Jakobson, 1979, pp. 92 e segs.
EXACERBAÇÃO DA FIWSOFIA TEMPORALIZADA DA OR,IGEM
191
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
67 Cf. também R. Ohmann, Speech, Literalure and lhe Space belween, New Literary History
5, 1974, pp. 34 e segs.
68 W. Labov, Language in lhe Inner Cily, Philadelphia, 1972.
69 M. L. Pratt, Speech Acl Theory of Lilerary Discourse , Bloomington, 1977; agradeço a
J. Culler ter-me chamado a atenção para este livro tão interessante.
192
EXACERBAÇÃO DA FIWSOFIA TEMPORALIZADA DA ORIGEM
193
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
VI
Uma vez que nega ambas as coisas, Derrida pode analisar todos os discur-
sos segundo o modelo da linguagem poética e fazer como se, em geral, a lin-
guagem fosse determinada pelo uso poético e especializado na descoberta do
mundo. Deste ponto de vista a linguagem como tal converge com a literatura
ou com o «escrever». A estetização da linguagem, que é resgatada ao preço da
dupla negação do sentido próprio do discurso normal e poético, explica tam-
bém a insensibilidade de Derrida perante uma polaridade repleta de tensões
entre a função poética e descobridora do mundo e as funções prosaicas e intra-
-mundanas da linguagem, a que faz justiça um esquema modificado das fun-
ções de Bühler 72.
Processos mediatizados pela linguagem, como a aquisição de conhecimentos
194
EXACERBAÇÃO DA FILOSOFIA TEMPORALIZADA DA ORIGEM
195
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
attention to itself and only later gets up to work.» 73 Vemos assim como o
pathos nietzscheano de uma filosofia da vida virada para o plano linguístico
ensombra as sóbrias opiniões do pragmatismo: na imagem que Rorty esboça,
o processo renovador da descoberta linguística do mundo não tem mais qual-
quer ponto de apoio no processo comprovativo da praxis intramundana.
O «sim» e o «não» dos actores que agem de modo comunicacional é tã9 prede-
terminado pelos contextos linguísticos e tão influenciado pela retórica que as
anomalias que se manifestam nas fases de esgotamento já só se apresentam
como sintomas de uma vitalidade evanescente, como processos do envelheci-
mento, como processos análogos aos naturais - e não como consequência de
soluções erróneas de problemas e como respostas inválidas.
A praxis intramundana da linguagem deve a sua força de negação a exigên-
cias de validade que apontam para além dos horizontes do contexto vigente em
cada momento dado. Mas a concepção contextualista da linguagem, agravada
com o aspecto da filosofia da vida, é insensível à força efectiva do contrafac-
tual, a qual se faz sentir nos pressupostos idealizantes do agir comunicacional.
Por isso, Derrida e Rorty ignoram também o estatuto peculiar dos discursos que
são retirados da comunicação quotidiana e recortados à medida de uma dimen-
são de validade (da da verdade ou da da correcção normativa), à medida de um
complexo de problemas (questões da verdade ou questões da justiça). Nas socie-
dades modernas, as esferas da ciência, da moral e do direito, cristalizam-se em
redor destas formas de argumentação. Os sistemas culturais de acção que lhes
correspondem geram capacidades para a solução de problemas de um modo
semelhante àquele como a actividade da arte e da literatura gera capacidades
de descoberta do mundo. Uma vez que super-generaliza, precisamente, a função
«poética» da linguagem, Derrida não tem qualquer visão da relação complexa
de uma praxis normal e linguística do quotidiano com as duas esferas extraquo-
tidianas que, por assim dizer, se diferenciaram em direcções opostas. Enquanto
que a tensão entre os pólos da descoberta do mundo e da solução de problemas
for mantida no feixe de funções da linguagem quotidiana, a arte e a literatura,
por um lado, e por outro, a moral e o direito especializam-se em experiências
e géneros de saber que podem ser formados e elaborados no domínio da inte-
gração de uma função da linguagem e de uma dimensão da validade. Derrida
nivela esta relação complicada de um modo holista a fim de assemelhar a filo-
sofia à literatura e à crítica. Ele ignora o estatuto particular que ambas, a
filosofia e a crítica literária, cada uma à sua maneira, ocupam como mediado-
ras entre as culturas dos especialistas e o mundo do quotidiano.
A crítica literária, fundada na Europa como instituição desde o século
xvm, participa por seu lado na diferenciação da arte. Ela reage à autonomi-
73 R. Rorty, Deconstruction and Circumvention , MS., 1983; cf. também: id., Consequences of
Pragmatism, Minneapolis, 1982, principalmente a introdução e os capítulos 6, 7 e 9.
196
EXACERBAÇÃO DA FILOSOFIA TEMPORALIZADA DA ORIGEM
197
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
198
EXACERBAÇÃO DA FILOSOFIA TEMPORALIZADA DA ORIGEM
pelo outro priva ambos da sua substância. Deste modo retornamos à questão
de onde partimos. Quem introduz a crítica literária no domínio da retórica a
fim de neutralizar o paradoxo da sua auto-referencialidade, deixa que a lâmina
da crítica literária fique embotada. A falsa pretensão de suprimir a diferença
genérica entre filosofia e literatura não nos pode conduzir a uma saída da
aporia 74.
74 Não obstante, a nossa reflexão conduziu-nos a um ponto do qual podemos ver por que é que
Heidegger, Adorno e Derrida, se enredaram nesta aporia. Todos eles se defendem de modo tal como
se ainda vivessem, como a primeira geração dos discípulos de Hegel, sob a sombra do <<últimO>> filó-
sofo; eles polemicam ainda contra aqueles conceitos «fortes>> de teoria, verdade e sistema que,
porém, há mais de 150 anos que pertencem ao passado. Eles ainda crêem ter de despertar a filosofia
daquilo que Derrida chama o «sonho do seu coração>>. Eles crêem ter de resgatar a filosofia à sua
ilusão de ter de apresentar uma teoriaque ex prima a última palavra. Um tal sistema global de prop; -
sições, fechado e definitivo, teria de ser formulado numa linguagem que se explica a si mesma, que
não requer ou permite qualquer comentário mais e que, deste modo, encerra a história das suas
influências, na qual urnas interpretações se acumulam sobre outras interpretações. Neste contexto
Rorty fala do anseio de uma linguagem «which can receive no. gloss, requires no interpretation, can-
not be distanced, cannot be sneered at by !ater generations. It"'is ·'t he hope for a vocabulary which
is intrinsically and self-evidently final, not only the most comprehensive and fruitful vocabulary we
have come up with so far». (R. Rorty, 1982, pp. 93 e segs.).
Se a razão fosse obrigada, sob ameaça do seu declínio, a fixar-se nestes objectivos clássicos visa-
dos desde Parménides até Hegel; se a razão como tal, também ainda segundo Hegel, estivesse
perante a alternativa de insistir nos conceitos fortes de teoria, verdade e sistema, tal como era habi- l
tua! na grande tradição, ou de contrário renunciar a si mesma, então uma crítica adequada da razãoJ
teria de facto de a apanhar pela raiz a uma tal profundídade que quase não poderia evitar o para-
doxo da auto-referencialidade. Assim o imaginou Nietzsche. E, infelizmente, Heidegger, Adorno e
Derrida, também parecem confundir ainda os questionamentos universalistas preservados na filoso-
fia a par daquelas aspirações estatutárias há muito abandonadas que, no passado, a filosofia tinha
reclamado para as suas respostas. Hoje em dia é evidente que o alcance das questões universalistas
- por exemplo, da questão das condições fundamentais da racionalidade dos enunciados, das pres-
suposições pragmáticas universais do agir cornunicacional e da argumentação - tem de se reflectir
na forma gramatical das proposições universais, mas de modo algum na incondicionalidade da vali-
dade ou da «última fundamentaçãO>> que tinha sido exigida para elas e para o seu quadro teórico.
A consciência falibilista das ciências também já alcançou a filosofia.
Com este falibilismo, nós, filósofos e, sobretudo, não filósofos, não renunciamos de modo
nenhum a aspirar à verdade. Na atitude performativa da primeira pessoa, esta aspiração só pode ser
afirmada de modo a que - enquanto aspiração - transcenda o espaço e o tempo. Mas nós também
sabemos que não existe um contexto nulo para as aspirações à verdade. Estas são apresentadas aqui
e agora, e são susceptíveis de crítica. Por isso, contamos com a possibilidade trivial de que elas ama-
nhã ou noutro local possam vir a ser revistas. A filosofia entende-se hoje como ontem como guardiã
da racionalidade, entendida no sentido de urna aspiração da razão que é endógena à nossa forma
de vida. Durante o seu trabalho, porém, ela prefere uma combinação de proposições fortes com aspi-
rações estatutárias fracas, a qual é tão pouco totalitária que contra ela não tem de ser apresentada
uma crítica forte da razão. Cf. J. Habermas, Die Philosophie ais Platzhalter und Interpret (A Filo-
sofia como guardiã e intérprete), in id., Moralbewusstsein und kommunicatives Hande/n (Consciên-
cia Moral e Agir Comunicacional), Frankfurt, 1983, pp. 7 e segs.
199
VIII. ENTRE EROTISMO E ECO O MIA GERAL:
BATAILLE
George Bataille», n.0 ' 195-196, 1963, p. 693 (ed. alemã: in id., Das A uge des Ethnologen (O Olho
do Etnólogo), Frankfurt, 1981, p. 75).
201
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
202
ENTRE EROTISMO E ECON OM IA GERAL: BATAILLE
2 M. Foucault, «Préface à la Transgression», in Critique , op. cit., p. 757 (ed. al. : Munique,
1974, p. 40).
3 M. Foucault, op. cit. , p. 761 (ed. al.: p. 44).
203
rr'------------------------------------------------~~~~~~~~~~--------------~--,
contexto de vida que se lhe tornou estranho, que foi excluído dos seus limites,
que foi mutilado e despedaçado. Com esta ideia da ilimitação [Entorenzung]
abre-se a Bataille uma perspectiva completamente diferente da de Heidegger: a
subjectividade que se transcende a si própria não é destronada nem desapos-
sada em favor de um destino superfundamentalista do ser, mas sim devolvido
à espontaneidade de pulsões que tinham sido amaldiçoadas. A abertura a um
domínio sacral não significa subjugação à autoridade de um destino indetermi-
nado apenas anunciado pela sua aura; a transgressão de fronteiras em direcção
ao sacral não significa uma demissão humilhante da subjectividade, mas a sua
libertação e o seu acesso à verdadeira soberania.
Não é por acaso que é o ser e não a soberania quem tem a última pala-
vra - pelo contrário, nisso revela-se uma proximidade, impensável para
Heidegger, ao conceito nietzscheano, de inspiração estética, de liberdade e de auto-
-afirmação sobre-humana. Para Bataille, tal como para Nietzsche, há uma con-
vergência entre a vontade de poder, que se auto-incrementa e dá sentido às coi-
sas, e o fatalismo cosmicamente arreigado do Eterno Retorno do Mesmo.
Bataille está ligado a Nietzsche por um traço essencialmente anarquista; uma
vez que este pensamento se dirige contra toda e qualquer autoridade, incluindo
o sagrado como tal, a doutrina da morte de Deus é entendida de uma forma
estritamente ateia. Em Heidegger, que repete esta tese num tom grandiloquente,
ela perde todo o radicalismo. Sem dúvida, Deus é negado como algo ôntico,
mas o acontecimento da revelação, do ponto de vista ontológico, circunscreve
de uma maneira muito significativa o local gramatical deixado livre pela projec-
ção destruída de Deus - como se a todos nós nos faltasse, entretanto, a fala
para nomear aquele cujo nome não se pode pronunciar. E assim, a questão de
Foucault: «Que significa matar Deus, se ele não existe, matar Deus que não
existe?» 4 é válida apenas para Bataille e não para Heidegger. Foucault reco-
nhece que Bataille terá de buscar o excesso da subjectividade que se transgride
a si mesma no domínio da experiência erótica, visto ele ter uma ideia do
sagrado rigorosamente ateia. Sem dúvida que a profanação do sagrado é o
modelo da transgressão, mas Bataille não se ilude com o facto que na moderni-
dade nada mais haja para ser profanado - e que não pode ser a tarefa da filo-
sofia a de arranjar um substituto dentro da mística do ser. Bataille estabelece
uma ligação íntima entre o horizonte sexual da experiência e a morte de
Deus - «não que ela ofereça conteúdos novos a gestos milenários, mas porque
autoriza uma profanação sem objecto, uma profanação vazia e voltada para si
própria, cujos instrumentos não são dirigidos para mais nada senão para si
mesmos.» 5
Pretendo apontar em seguida qual o significado da análise do fascismo
204
ENTRE EROTISMO E ECONOMIA GERAL: BATAILLE
II
205
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
7 G. Bataille, «La structure psychologique du fascisme» , in Critique Social, n.0 10 e n.0 li,
1933-1934; reeditado in Oeuvres completes , Vol. I (doravante: O. C., I), Paris, 1970 e segs., p. 348
(ed. ai.: Munique, 1978, p. 19).
8 G. Bataille, «La structure... », op. cit., p. 367 (ed. ai.: p. 38).
9 Cf. A. Mitscherlich, <<Massenpsychologie und Ich-Analyse>> (Psicologia de massas e análise do
eu), in id., Ges. Schriften (Obras Escolhidas), Vol. V, Frankfurt, 1988, pp. 83 e segs.
206
ENTRE EROTISMO E ECONOMIA GERAL: BATAILLE
207
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
das coisas, que quebra a homogeneidade que, embora pacífica, se torna fasti-
diosa e impotente de se manter pelas próprias forças» 12. Na dominação fas-
cista fundem-se elementos homogéneos e heterogéneos de uma maneira nova -
por um lado, aquelas propriedades que, como operacionalidade, disciplina,
amor à ordem, pertencem às exigências funcionais da sociedade homogénea e,
por outro, o êxtase das massas e a autoridade do chefe que revelam um reflexo
de verdadeira soberania. O Estado fascista faculta a unidade total dos elemen-
tos heterogéneos com os homogéneos, ele é a soberania estatizada. Ele herda
aquela .soberania que tinha tomado uma forma religiosa e militar nas socieda-
des tradicionais; ambos estes elementos estão sem dúvida diferenciados na
soberania do chefe. No fascismo o momento essencial da dominação dos
homens pelos homens apresenta-se na sua perfeita pureza. A aura do chefe
assegura uma lealdade das massas que está desconectada de qualquer necessi-
dade de legitimação. À semelhança de Carl Schmitt, Bataille explica esta aceita-
ção infundada com o facto de o poder de um senhor ser, no seu cerne, de natu-
reza carismática - estar arreigado no heterogéneo: «0 simples facto de
dominar os seus semelhantes implica a heterogeneidade do chefe, pelo menos,
na medida em que ele é o chefe: na medida em que ele evoca a sua natureza,
a sua qualidade pessoal, como uma justificação da sua autoridade, ele caracte-
riza esta natureza como o inteiramente outro, sem poder justificar isso racional-
mente.» 13 É precisamente o momento cativante, sequestrador dos sentidos,
perceptível no exercício do poder dos chefes fascistas, que Bataille remete para
uma soberania a que ele atribui autenticidade - aqui torna-se nítida a dife-
rença em relação à teoria do fascismo de Horckheimer e Adorno, que parte de
premissas semelhantes.
Estes concentram-se, como Bataille, sobre a fachada psicológica do fascis-
mo - pelo menos, nos «Elementos do Antisemitismo» 14. Na organização das
demonstrações de massas altamente ritualizadas, Horckheimer e Adorno deci-
fram «a caricatura da temível mimesis», portanto, o despertar e a manipulação
de um modelo ancestral de reacção. O fascismo utiliza para os seus próprios
fins o comportamento mimético destruído pela civilização. Ironicamente, a
repressão da ambivalência arcaica entre evasão e devoção, temor e fascínio
torna-se reflexiva: «No fascismo moderno a racionalidade alcançou um grau,
no qual ela já não se compraz simplesmente em oprimir a natureza; a racionali-
dade explora agora a natureza, assimilando no seu próprio sistema as potencia-
208
ENTRE EROTISMO E ECON OMIA GERAL: BATAILLE
!idades da natureza que se revoltam contra essa opressão.» 15 Até aqui a aná-
lise de Bataille ainda pode ser traduzida nos conceitos da Teoria Crítica: no
fundo, o fascismo só serve para subordinar a revolta da natureza interna contra
a razão instrumental aos imperativos desta última. A diferença decisiva, porém,
reside no modo como são determinadas as partes oprimidas, ou malditas, da
natureza subjectiva. Para Horckheimer e Adorno o impulso rnimético comporta
a promessa de uma «felicidade sem poder» 16, enquanto que para Bataille a
felicidade e o poder estão ligados indissoluvelmente no heterogéneo: Bataile
celebra no erótico, bem como no .sagrado, uma «violência elementar>> 17. Com
a ajuda da mesma figura de pensamento, ele justifica no fascismo aqu ele ele-
mento próprio de Carl Schmitt da dominação infundada ou «pura>> a que
Horckheimer e Adorno opõem a força do mimético da maneira mais decisiva.
Até mesmo Benjamin, que num dos seus primeiros artigos, ao reportar-se
ao mito de Sorel da greve geral, parece antecipar a concepção batailliana do
poder soberano sem mácula, não deixa escapar o ponto de referência de uma
intersubjectividade sem violência que tem lugar na compreensão mútua. A vio-
lência destinada aos actos revolucionários, dos actos que impõem um direito,
os quais na sua essência são anarquistas e que, não obstante, são subjacentes
a todas as instituições da liberdade (além de terem de ser mantidos presentes
nelas), inspiraram Benjamin a esboçar uma política dos «meios puros». Entre
esta e aquilo que o poder fascista quer ser, vai a espessura de um cabelo. Con-
tudo, aquele poder que se tem a si mesmo como fim, que não mediatiza a ·jus-
tiça de modo instrumental, mas que é poder que se manifesta e que executa,
permanece, segundo Benjamin, constantemente dirigido para a esfera da unifi-
cação sem violência. Esta esfera de concórdia humana, que «é completamente
inacessível» para o poder, permanece para Benjamin «a linguagem - a esfera
propriamente dita da compreensão mútua» 18 . Benjamin está de tal modo vin-
culado a esta ideia por intermédio da sua empresa de uma crítica redentora, que
até pretende ilustrar a ausência de violência dos «meios puros», socorrendo-se
do exemplo da greve geral do proletariado.
Sem um tal ponto de referência que transcenda a violência, Bataille tem de
ter dificuldades em tornar plausível aquela sua diferença em redor da qual tudo
gira - a diferença entre a revolução socialista e a tomada de poder fascista que
é, em relação à anterior, apenas semelhante. Aquilo que Benjamin afirma na
totalidade em relação ao empreendimento do surrealismo, o qual queria
15M. Horkheimer, Kritik der instrumentel/en Vernunft (Crítica da razão instrumental), Frank·
furt, 1967, p. 118.
16 Horkheimer, Adorno (1947), p. 204.
17 G. Bataille, L'Érotisme, in O. C. 10, p. 98 (ed. ai.: (1982), p. 89).
18 W. Benjamim, «Zur Kritik der Gewalt», in Angelus Novus, Ausgew. Schriften, Vol. 2,
Frankfurt, 1966, p. 55.
209
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
III
210
ENTRE EROTISMO E ECONOMIA GERAL: BATAILLE
23 G. Bataille, <<La notion de dépense», O. C. I, op. cit. , p. 305 (ed. ai.: p. 25).
211
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
G. Bataille, «La notion de dépense», op. cit., p. 313 (ed. ai.: p. 12).
24
G. Bataille, La Part maudite. Essai d'économie générale, I. La Consommation, Paris, 1949;
25
reimpresso in O. C. 7 e O. C. 8; neste caso: op. cit., p. 123 (ed. ai.: pp. 22 e segs.)
212
EN TRE EROTISMO E ECONOMIA GERAL: BATAILLE
213
O DISCURSO FIWSÓFICO DA MODERNIDADE
originário, mas sim a reacção à perda de uma unidade íntima do homem com
a natureza. Esta unidade só pode ser por nós inferida quando nos recordarmos
do que foi feito pelo trabalho da mão humana ao universo das coisas inocentes,
portanto, pelo primeiro acto de uma objectivação activa orientada para fins.
A versão batailliana da expulsão do paraíso reza assim: «Com a introdução do
trabalho no mundo, a intimidade, a profundidade do desejo e o seu livre desen-
volvimento foram substituídos pelo encadeamento racional, no qual já não
importa a verdade do instante presente, mas sim o resultado final das opera-
ções. O .primeiro trabalho fundou o mundo das coisas ... Desde o estabeleci-
mento do mundo das coisas, o próprio homem tornou-se numa coisa deste
mundo, pelo menos, durante o tempo em que trabalha. Foi a este destino que
o homem se esforçou sempre por escapar. Nos seus mitos peculiares, nos seus
ritos cruéis, o homem encontra-se desde sempre em busca de uma intimidade
perdida... Trata-se sempre de resgatar algo à ordem real, à mesquinhez das coi-
sas, e de devolver algo à ordem divina.» 30 Do mesmo modo que a religião já
se encontra à partida sob a maldição do trabalho, restituindo a ordem das coi-
sas destruída apenas nos instantes da auto-exteriorização ritual do sujeito, e
facultando deste modo uma comunicação sem palavras com ela, assim a pura
soberania também só pode ser reconquistada nos instantes de êxtase.
Aquilo que na história se torna eficiente enquanto poder soberano, aquilo
que ganha força duradoura, primeiro, no poder sagrado dos sacerdotes, depois,
no poder militar da nobreza e, por fim, no poder absolutista, já apoiado num
aparelho de Estado, do monarca e da sua corte, é uma soberania derivada,
maculada pela sua ligação com o poder profano. Todas as formas históricas da
soberania são reconhecíveis pela sua força diferenciadora, a qual estabelece
diferenças de posições. A posição social do soberano e a daqueles que partici-
pam na sua dominação é um fenómeno híbrido que denota duas coisas: a
dominação a partir de uma esfera que está além do trabalho e das coisas e a
função repressiva e exploradora da dominação dentro do sistema do trabalho
social. A metamorfose da soberania do ponto de vista da história universal
mostra, porém, uma tendência para a diferenciação das distinções entre posi-
ções sociais: «Na verdade, na sociedade arcaica a posição está ligada à presença
sagrada de um sujeito, cuja soberania não depende das coisas, mas que conduz
as coisas no seu movimento. Na sociedade burguesa ela já só depende da pro-
priedade das coisas que não comporta nada nem de soberano nem de
sagrado.» 31 Isso não significa que a soberania desapareça inteiramente do
mundo burguês. A isso opõe-se a circunstância de a propriedade privada dos
meios de produção não só cindir objectivamente a sociedade em classes, mas
214
ENTRE EROTISM O E ECONOMIA GERAL: BATAILLE
32 G. Bataille, <<La souveraineté», in O. C 8, op. cit., p. 391 (ed. ai.: pp. 67 e segs.).
33 G. Bataille, <<La souveraineté», in op. cit., p. 392 (ed. ai.: p. 68).
215
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
36 G. Bataille, «La part maudite», op. cit., p. 127 (ed. ai.: p. 169).
37 G. Bataille, «La part maudite>>, op. cit. , p. 133 (ed. ai.: p. 177).
216
ENTRE EROTISMO E ECONOMIA GERAL: BATAILLE
IV
Desde o início dos seus estudos antropológicos que Bataille se tinha ocupado
repetidas vezes do fenómeno do potlatch, daquela festa de dissipação durante a
qual os índios norte-americanos atulham os seus rivais de oferendas a fim de,
por meio do desperdício ostentativo da sua própria riqueza, desafiá-los, humilhá-
-los e assumirem um compromisso 39. Claro que, propriamente falando, não lhe
interessam as funções de integração social da troca de oferendas, portanto, o
estabelecimento de compromissos recíprocos: ele negligencia este aspecto a favor
do aspecto mais notório do esbanjamento, da destruição e da perda intencional
de propriedade, a qual é desperdiçada como oferenda sem contrapartida directa.
O potlatch é um exemplo de consumo improdutivo na sociedade tribal. Contudo,
não se pode deixar de ver que, quem oferece de modo algum dissipa a sua
riqueza. Ao sobrepor-se a rivais que, por sua vez, concorrem com as suas oferen-
das, ele granjeia prestígio e poder, adquire ou consolida a sua posição social den-
tro do colectivo. O desprezo soberano pelos valores-de-uso é, já nesta fase, como
que recuperado pela obtenção calculada de poder. Esta praxis comporta a contra-
dição entre soberania e racionalidade orientada para fins. «Ela coloca o valor,
o prestígio e a verdade da vida na negação do uso servil dos bens, mas, ao
mesmo tempo, faz um uso servil dessa negação.» 40 Porque precisamente esta
I
38 G. Bataille, «La part maudite>>, op. cit. , p. 128 (ed. ai. : p. 171).
39 Bataille refere-se ao estudo clássico de M. Mauss, «Essai sur !e Dom>, in A nnée Sociologi-
que, 1923124, pp. 30 e segs. (ed. alemã: Die Gabe, Frankfurt, 1968).
40 G. Bataille, <<La part maudite>>, op. cit. , p. 75 (ed. ai. : p. 105).
217
j
O DI SCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
218
ENTRE EROTISMO E ECO OMIA GERAL: BATAILLE
219
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
43 Aquilo a que Bataille chama a experiência interior do erótico tinha Leiris descrito em 1931
nos Documents, editados por Bataille, partindo de uma fotografia que mostrava uma mulher nua
com uma máscara de couro; esta máscara tinha sido criada segundo um desenho de W. Seabrook,
o qual tinha feito longas pesquisas na Costa do Marfim. O texto de Leiris mostra a ligação que então
tinha lugar entre pesquisa antropológica de campo, exotismo na arte e erotismo tanto na experiência
pessoal como na literatura. Leiris imagina o gozo sacrílego e o prazer satânico que experimenta o
fetichista perante a visão do corpo da mulher mascarada e, desse modo, transformada em ser gené-
rico, desapossado da sua individualidade: <<Assim, o amor é reduzido - muito lucidamente - a
um processo natural e bestial, uma vez que o cérebro, em virtude da máscara, é esmagado simbolica-
mente, sendo a fatalidade que nos oprime enfim dominada (pois que essa mulher colocada nas nossa
mãos, em virtude desse instrumento, não é mais que própria natureza, plena de leis deslumbrantes,
sem alma nem personalidade, porém, desta vez, subjugada totalmente a nós, tal qual essa mulher).
O olhar - essa quintessência da expressão humana - apagado temporariamente (o que confere à
mulher em questão um significado ainda mais infernal e subterrâneo), a boca reduzida ao papel ani-
mal de uma ferida (graças a um orifício diminuto que apenas a deixa transparecer), as regras corren-
tes da indumentária inteiramente invertidas (aqui o corpo está nu e a cabeça dissimulada, enquanto
que, normalmente, é a cabeça que se encontra descoberta e o corpo dissimulado), tudo isto elementos
que fazem desses pedaços de couro (matéria de que são feitas as botas e os chicotes) ferramentas
prodigiosas, admiravelmente adequadas ao que é o verdadeiro erotismo: um meio de sair de si, de
quebrar os vínculos que vos impõe a moral, a inteligência e os costumes, uma maneira, igualmente,
de esconjurar as forças malignas e de defrontar Deus e seus sucedâneos, cérberos do mundo, apode-
rando-se e arrebatando o universo inteiro, propriedade deles, numa das suas parcelas particularmente
significativas, mas que já não está diferenciada.» (M. Leiris, <<Caput mortuum ou la femme de
l'alchimiste>>, in Documents, n.0 8, 1930, reimpresso in Les Cahiers du double, n.0 I, Paris, 1977,
pp. 61 e segs. (ed. alemã: 1981, pp. 260-262).
220
ENTRE EROTISMO E ECONOMIA GERAL: BATAILLE
44 G. Bataille, «La part maudite», in O. C. 7, op. cit., p. 132 (ed. al.: p. 164).
45 G. Bataille, «La souveraineté>>, in op. cit., p. 341 (ed. ai.: p. 282).
221
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
222
ENTRE EROTISMO E ECONOMIA GERAL: BATAILLE
223
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
224
IX. AS CIÊNCIAS HUMANAS DESMASCARADAS
PELA CRÍTICA DA RAZÃO: FOUCAULT
225
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
226
AS CIÊNCIAS HUMANAS DESMASCARADAS PELA CRÍTICA DA RAZÃO: FOUCAULT
227
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
o autor imagina aqui uma análise do discurso que procura, à maneira de uma
hermenêutica profunda, tornar perceptíveis os lugares de origem daquela sepa-
ração inicial da loucura e da razão a fim de decifrar no que é falado o que não
foi dito 5. Esta intenção sugere a direcção de uma dialéctica negativa que pro-
cura, com os meios do pensamento identificado, sair do seu círculo de influên-
cia para, na história do nascimento da razão instrumental, alcançar o local da
usurpação primitiva e da separação de uma razão moneídica estável da mimesis
e para envolver aquele pelo menos à maneira de aporia. Se esta fosse a sua
intenção Foucault teria de procurar arqueologicamente nos escombros de uma
razão objectiva aniquilada de cujas testemunhas mudas se pode sempre formar · t
retrospectivamente a perspectiva_de uma esperança mesmo que há muito rs:vo-
-
gada de conciliação. Esta é a perspectiva de Adorno, não de Foucault.
Quem não quer desmascarar mais do que a una forma da razão centrada
no sujeito não pode entregar-se aos sonhos em que cai esta razão no seu «dor-
mitar antropológico». Três anos mais tarde, no prefácio ao Nascimento da Clí-
nica, Foucault chama-se a si mesmo à ordem. Futuramente quer renunciar ao
trato com a palavra como mero comentário, a qualquer hermenêutica por mais
profundamente que esta penetre para além da superfície do texto. Por detrás do
discurso sobre a loucura, já não é a própria loucura que ele procura, por detrás
da arqueologia do olhar do médico ele já não procura aquele contacto mudo
do corpo com os olhos, o qual parecia preceder todos os discursos. De maneira
diferente da de Bataille, ele renuncia ao acesso evocativo ao excluído e maldito -
os elementos heterogéneos não prometem mais nada. Uma hermenêutica ine-
vitavelmente desmistificadora continua a ligar sempre uma promessa à sua crí-
tica; uma arqueologia desenganada deve libertar-se dela: «Não seria possível
uma análise do discurso que não pressupusesse naquilo que foi dito nenhum
resto nem nenhum excesso (significativos) mas algures e simplesmente o facto
do seu aparecimento histórico? Dever-se-ia tratar os factos discursivos, não
como núcleos autónomos de significações múltiplas mas sim como aconteci-
mentos e elementos funcionais os quais constituem um sistema que se vai mon-
tando a pouco e pouco. O sentido de uma asserção não seria definido pelo
tesouro das intenções nela contidas através das quais essa asserção é simulta-
neamente revelada e retida, mas sim pela diferença que a articula com outras
asserções, reais e possíveis, simultâneas ou temporalmente opostas. Assim surgi-
ria à luz o conteúdo sistemático do discurso.» 6
5 Como nos falta a pureza originária, o estudo da estrutura deve reconduzir até à decisão que
liga e separa simultaneamente a razão e a loucura. Deve tentar descobrir a troca constante, a obscura
raiz comum e o confronto originário que dão sentido tanto à unidade como à oposição entre o que
é sensato e o que é insensato. Assim poderá reaparecer a decisão fulminante que é heterogénea no
tempo da história, mas incompreensível fora dele, e que separa esse murmúrio de insectos obscuros
da linguagem da razão e das promessas do tempo. (Foucault, 1965, p. 13).
6 M. Foucault, Die Geburt der Klinik, Mü., 1973.
228
AS CIÊNCIAS HUMANAS DESMASCARADAS PELA CRÍTICA DA RAZÃO: FOUCAULT
II
229
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
relação devia ser pensada como a que tem lugar entre base e superstrutura ou
antes pelo modelo da causalidade circular ou ainda como um jogo correlativo
da estrutura e do evento.
Foucault manteve também até ao fim os cortes epocais que articulam a his-
tória da loucura. Diante do pano de fundo difuso, não claramente assinalado,
da alta Idade Média, o qual por sua vez remete para os primórdios do Jogos
grego 7 elevam-se um pouco mais claramente os contornos do Renascimento
que, por seu turno, serve de pano de fundo, para a época clássica (do meio do
século XVII até ao final do século xvm), assinalada com clareza e simpatia.
O fim do século XVIII marca assim a peripécia do drama da história da racio-
nalidade, aquele limiar para a modernidade que é constituído pela filosofia
kantiana e as novas ciências humanas. A estas épocas, que devem as suas desig-
nações convencionais a cesuras culturais e sacio-históricas, atribui Foucault um
significado mais profundo em função das constelações alternantes da razão e
da loucura. Ao século XVII atribui uma certa inquietude autocrítica e uma
abertura no trato com os fenómenos da loucura. A razão tem ainda uma per-
meabilidade osmótica - a loucura está ainda em ligação com o elemento trá-
gico e visionário, é um lugar de verdades apócrifas; tem a função de um espe-
lho que revela ironicamente as fraquezas da razão. A vulnerabilidade às ilusões
faz parte do carácter da razão. Durante o Renascimento não foi apagada ainda
da relação da razão com o seu outro toda a reversibilidade. Com este pano de
fundo, dois incidentes assumem o significado de serem os limiares da história
da racionalidade: a grande onda de internamentos nos meados do século xvn,
altura em que, por ex., em Paris, nos primeiros meados do ano de 1656, um
em cada 100 habitantes era preso e internado; e depois, no fim do século XVIII,
a transformação destes campos de internamento e asilos em instituições fecha-
das, com assistência médica para aqueles que o diagnóstico médico qualificara
como doentes do espírito - portanto, o nascimento das instituições psiquiátri-
cas que ainda hoje existem e cuja supressão é propagandeada pelo movimento
anti psiquiátrico.
Ambos os acontecimentos, em primeiro lugar o aquartelamento indescrimi-
nado de loucos, criminosos, gente sem residência permanente, libertinos,
pobres, excêntricos de todos os tipos e, mais tarde, a criação de clínicas para
tratamento de doenças do espírito assinalam duas espécies de práticas; ambos
servem para marginalizar elementos heterogéneos daquele monólogo que se ia
consolidando gradualmente e que o sujeito, elevado finalmente à razão humana
universal, tem consigo mesmo, transformando em objecto tudo o que estiver à
sua volta. Como em outros estudos posteriores o ponto central é a comparação
da época clássica com a moderna. Estas duas formas de prática de exclusão
7 M. Foucault, 1969, pp. 8 e segs. Já não me foi possível ter em conta os Vols. II e III da His-
230
AS CIÊNCIAS HUMANAS DESMASCARADAS PELA CRÍTICA DA RAZÃO: FOUCAULT
231
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
10 <<Na periferia um edifício circular; ao meio uma torre quebrada por amplas janelas, as quais
se abrem para o interior do anel. O edifício circular está dividido em celas, cada uma das quais
atinge toda a espessura do edifício. Cada uma tem duas janelas, uma que dá para o interior, corres-
pendendo às janelas da torre, e uma para o exterior de modo que a cela é atravessada pela luz que
vem dos dois lados. Basta, portanto, colocar um vigilante na torre e alojar em cada cela um louco,
um doente, um condenado, um operário ou um estudante. Pelo efeito de contra-luz podem
distinguir-se bem, a partir da torre, as pequenas silhuetas dos presos nas celas do anel. Cada janela
é um pequeno teatro no qual cada actor está só, perfeitamente individualizado e constantemente visí-
vel.» (M. Foucault, Vigiar e Punir, Efm, 1978, pp. 256 e segs.). Das funções do velho cárcere
-detenção, privação de luz, ocultação - apenas se mantém a primeira: a limitação da liberdade
de movimento é necessária para preencher as condições experimentais para a instalação do olhar rei-
ficado: «0 panóptico é uma máquina para dissociar o grupo ver/ ser-visto: no anel exterior é-se visto
constantemente sem se poder ver; no espaço central vê-se tudo sem se ser visto>> (ibid. , p. 259).
232
AS CIÊNCIAS HUMANAS DESMASCARADAS PELA CRÍTICA DA RAZÃO: FOUCAULT
233
O DISCURSO FIWSÓFICO DA MODERNIDADE
12 M. Foucault, A Ordem dos Discursos, Munique, 1974, pp. 10 e segs. (Citações 1974 b).
13 Ibid., pp. 14 e segs.
234
AS CIÊNCIAS HUMANAS DESMASCARADAS PELA CRÍTICA DA RAZÃO: FOUCAULT I
235
O DISCURSO FIWSÓFICO DA MODERNIDADE
236
AS CIÊNCIAS HUMANAS DESMASCARADAS PELA CRÍTICA DA RAZÃO: FOUCAULT
aquela «garantia de que tudo o que se lhe escapou poderá vir a ser-lhe resti-
tuído... ; a promessa de que todas estas coisas mantidas à distância pela dife-
rença poderão um dia voltar a ser adquiridas sob a forma de uma consciência
histórica» 17.
Os conceitos básicos da filosofia do sujeito dominam não só o modo de
acesso ao domínio do objecto, mas também a própria história. Por isso Fou-
cault quer sobretudo (c) acabar com uma historiografia global a qual concebe
secretamente a história como uma macro-consciência. A história no singular
tem de voltar a ser dissolvida, não na diversidade das histórias narrativas, mas
num pluralismo de ilhas discursivas que emergem sem regra para voltarem a
submergir. O historiador crítico será o primeiro a dissolver as falsas continuida-
des e a prestar atenção às quebras, limiares e mudanças de direcção. Ele não
postula qualquer relação teleológica, não se interessa por grandes causalidades,
não conta com sínteses, renuncia a princípios de articulação como o progresso
e a evolução e não divide a história em épocas : «É o projecto de uma história
global que tenta restaurar a forma global de uma cultura, o princípio material
ou espiritual de uma sociedade que confere a todos os fenómenos de um
período e significado comum, a lei que presta contas sobre a sua coesão, aquilo
a que se chama metaforicamente "o rosto" de uma época.» 18 Em vez disso
Foucault vai buscar à «história serial» da escola dos anais as representações
programáticas de um método estruturalista que conta com uma pluralidade de
histórias de sistemas não simultâneos e que forma as suas unidades analíticas
a partir de indicadores afastados de toda a consciência e que, em todo o caso,
renuncia aos meios conceptuais do rendimento sintético de uma suposta cons-
ciência, ou seja, à formação de totalidades 19. Assim é também excluída a ideia
da conciliação, uma herança da Filosofia da História na qual a crítica da
modernidade relacionada com Hegel ainda agira sem problemas. Cada história
«que pretende recolher a diversidade do tempo numa totalidade fechada, uma
história que... vê a reconciliação em todos os adiamentos, uma história que
olha tudo o que está por detrás de si de um ponto de vista do fim do
mundo» 20 , essa história recebe uma negativa brutal.
Desta destruição de uma historiografia que se mantém presa ao pensamento
antropológico e às convicções humanistas fundamentais resultam esboços de
um historicismo transcendental , o qual herda, ultrapassando-a simultanea-
mente, a crítica do historicismo de Nietzsche. A historiografia de Foucault
mantém-se, no sentido fraco do tempo, «transcendental» na medida em que
237
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
21 Cf. a autocrítica in Foucault, 1973, p. 29: «De uma maneira geral a Histoire de la j olie atri-
bui uma parte demasiado importante e, de resto, bastante enigmática ao que nela foi designado como
experiência e através da qual o livro mostrava em que medida se estava disposto a admitir um sujeito
anónimo e universal da história.»
22 P. Veyne, Der Eisberg der Geschichte (O Icebergue da História), Berlim, 1981, p. 42.
A metáforà de Veyne tem pontos de contacto com a imagem da «cristalização» de Gehlen.
238
AS CIÊNCIAS HUMANAS DESMASCARADAS PELA CRÍTICA DA RAZÃO: FOUCAULT
IV
239
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
24 A. Honneth, Kritik der Macht (Crítica do Poder) Frankfurt Main, 1985, p. 142.
240
AS CIÊNCIAS HUMANAS DESMASCARADAS PELA CRÍTICA DA RAZÃO: FOUCAULT
fronto corpóreo. Mas é importante no nosso contexto ver como Foucault pensa
em conjunto estes significados tangíveis do poder no sentido transcendental de
operações sintéticas que Kant ainda atribuíra a um sujeito e que um estrutura-
lismo entende como acontecer anónimo, ou seja, como um puro operar descen-
tralizado, guiado por regras com elementos ordenados de um sistema organi-
zado supra-subjectivarriente 25. Na genealogia de Foucault «podeo> é sinónimo
desta pura actividade estruturalista; ocupa o mesmo lugar que a «diferença»
em Derrida. Mas este poder constitutivo do discurso deve ser simultaneamente
um poder transcendental de produção e um poder empírico de auto-afirmação.
Tal como Heidegger também Foucault empreende uma fusão de significados
opostos. De facto, surge nele uma amálgama que permite a Foucault, seguindo
as pegadas de Bataille, inspirar-se no crítico da ideologia que é Nietzsche. Hei-
degger queria fixar no conceito do ser enquanto poder temporalizado da ori-
gem, o sentido fundamentador de validez da explicação transcendental do
mundo, mas queria ao mesmo tempo suprimir as componentes idealistas
semânticas do invariável, do que remete para além do histórico e meramente
fenomenal, que ainda estavam contidas no conceito de transcendental. Foucault
deve o seu conceito histórico-transcendental fundamental do poder não só a
esta única operação paradoxal que recupera as operações sintéticas a priori para
o reino dos acontecimentos históricos. Mas ele retoma três novas operações
igualmente paradoxais.
Por um lado Foucault tem de manter o sentido transcendental das condições
que tornam possível a verdade num conceito de poder que se esconde ironica-
mente e simultaneamente se impõe no discurso enquanto vontade de verdade.
Mas, por outro lado, ele não só opõe ao idealismo do conceito kantiano uma
temporalização do a priori - de modo que podem surgir como eventos novas
formações discursivas que recalcam as antigas; Foucault tira antes ao poder
transcendental as conotações que Heidegger sabiamente deixa ficar a uma his-
tória aurática do ser. Foucault não historicisa só, ele pensa ao mesmo tempo
de maneira nominalista, materialista e empirista uma vez que concebe as práti-
cas transcendentais do poder como o particular que se empertiga contra todos
os universais, como o inferior, o corpóreo sensível que escapa a tudo o que é
inteligível e, finalmente, como o contingente que poderia igualmente ser outro
em virtude de não estar submetido a nenhuma ordem reinante. Na filosofia tar-
dia de Heidegger não é fácil estabelecer as consequências paradoxais de um
conceito contaminado por significados opostos porque de facto o memorar do
ser imemorial escapa a uma avaliação feita por meio de critérios verificáveis.
Perante isto, Foucault expõe-se a objecções vigorosas, em virtude de a sua
241
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
242
AS CIÊNCIAS HUMANAS DESMASCARADAS PELA CRÍTICA DA RAZÃO: FOUCAULT
v
Enquanto o pensamento do Renascimento ainda é dirigido por uma visão
cosmológica do mundo na qual as coisas podem ser fisionomicamente ordena-
das segundo relações de analogia porque no grande livro da natureza cada sinal
remete para outros sinais, o racionalismo do século xvn instaura uma ordem
totalmente diferente no seio das coisas. A lógica de Port-Royal, que esboça uma
semiótica e uma combinatória universal, cria uma estrutura: Para Descartes,
Hobbes e Leibniz a natureza transforma-se na totalidade de tudo o que «repre-
senta» em sentido duplo, i. e., representado e como representação que pode ser
também apresentada por meio de sinais convencionais. O paradigma decisivo
!J.ão está, para Foucault, na matematização da E_atureza nem no mecanismo mas
sim no sistema de signos ordenados. Este sistema já não se fundamenta numa
;rdem ~recedente das coisas mas:-Pela primeira vez, estabelece uma ordem
taxonómica pela via da representação das coisas. Os signos combinados ou a
linguagem formam um medium perfeitamente transparente através do qual a
representação pode ser ligada àquilo que é representado. O significante esconde-
-se por detrás do significado caracterizado; funciona como ·um instrumento de
representação, de vid_!9, sem ..Yi~ própria: «A vocação profunda da língua
clássica foi sempre criar um quadro, fosse como discurso natural, recolha de
243
j
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
244
AS CIÊNCIAS HUMANAS DESMASCARADAS PELA CRÍTICA DA RAZÃO: FOUCAUU
clássico 29. Nenhuma das personagens que participam na cena clássica de uma
representação pictórica do par real (da representação do homem como sobe-
rano) aparece no quadro como sujeito soberano capaz de se auto-representar,
ou seja, simultaneamente como sujeito e objecto, como representante e repre-
sentado, como alguém que está presente ele mesmo no processo de representa-
ção: «Aquele que se representa no pensamento clássico, se reconhece como
imagem ou reflexo, nunca se encontra presente por si próprio. Antes do fim
do século xvm o homem não existia... Certamente poderá dizer-se que a
gramática geral, a história natural, a análise de riquezas eram maneiras de
reconhecer o homem ... mas não havia consciência epistemológica do homem
como tal.» 30
Com Kant abre-se a época da modernidade. Logo que se quebra o selo
metafísico que garantia a correspondência entre a língua e o mundo, a própria
função representativa da língua transforma-se num problema: o sujeito repre-
sentante tem de se tornar objecto para ver com clareza no processo problemá-
tico da representação. O conceito da auto-reflexão é adoptado e a relação do
sujeito representante consigo próprio torna-se o único fundamento das últimas
certezas. O fim da metafísica é o fim de uma coordenação objectiva das coisas
e das representações, executada pela língua como que em silêncio e que perma-
nece por isso a problemática. O homem que se torna presente na autoconsciên-
cia deve empreender a tarefa sobre-humana de estabelecer uma ordem das coi-
sas no momento em que toma consciência da sua existência simultaneamente
como autónoma e como finita. Por isso Foucault vê desde o início a moderna
forma de saber marcada pela aporia de que o sujeito cognoscente se ergue dos
escombros da metafísica para na consciência das suas forças finitas, levar a
cabo uma tarefa que exige forças infinitas. Kant torna esta aporia o caminho
directo para o princípio de construção da sua teoria do conhecimento transfor-
mando as restrições de uma faculdade de conhecimento finita em condições
transcendentais de um conhecimento que progride para o infinito: «a moderni-
29 Foucault constrói duas séries de ausências. Ao pintor representado falta-lhe o modelo, o par
real que se encontra fora do limite do quadro; a este, por seu turno, é vedada a visão da sua imagem
enquanto ela é criada - só vê a tela pelo lado de trás; ao espectador, enfim, falta o centro da cena,
justamente, o par que serve de modelo e para o qual remetem os olhares das damas da corte e do
pintor. Ainda mais de molde a desmascarar do que a ausência dos objectos representados é a dos
sujeitos que representam, nomeadamente a tripla ausência do pintor, do modelo e do espectador que,
postado diante do quadro, toma a perspectiva dos outros dois. O pintor, Velasquez, surge de facto
no espaço pictórico mas não é exactamente representado no acto de pintar - vê-se durante uma
pausa na pintura e sabe-se que voltará a desaparecer por detrás da tela logo que retomar o seu traba-
lho. Os rostos dos dois modelos podem, de facto, ser reconhecidos, esbatidos, numa imagem de um
espelho, mas não podem ser observados directamente durante o acto do retratar. Por fim, tão pouco
está representado o acto do contemplar - o espectador pintado, que entra pela direita, ao fundo,
no espaço do quadro, não pode assumir essa função. (Cf. Foucault, 1971, pp. 31-45, pp. 372-377).
30M. Foucault, (1971), p. 373.
245
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
dade começa com esta ideia inaudita e dum ser que é soberano precisamente
por estar escravizado, um ser cuja finitude lhe permite tomar o lugar de
Deus» 31,
Foucault desenvolve num grande arco que vai de Kant e Fichte até Husser
e Heidegger, o seu pensamento básico segundo o qual a modernidade se carac
teriza por uma forma contraditória e antropocêntrica de saber de um sujeito
estruturalmente sobrecarregado, um sujeito finito que se transcende no infinito.!
A filosofia da consciência obedece a pressões de estratégia conceptual, sob as
quais tem de suplicar o sujeito e considerá-lo segundo dois aspectos contrários,
conforme o caso, e incompatíveis um com o outro. O impulso para romper com
este vaivem instável entre aspectos tão inconciliáveis como inevitáveis da auto-
-tematização manifesta-se então sob a forma de uma vontade incontrolada do
saber e saber cada vez mais. Esta vontade excede pretensiosamente tudo o que
o sujeito estruturalmente sobrecarregado, sobre-esforçado, é capaz de fornecer.
' Desta maneira a forma moderna de saber é determinada pela dinâmica peculiar
de uma vontade de verdade para a qual cada frustração é apenas um incentivo
para uma renovada produção do saber. Esta vontade de verdade é agora para
Foucault a chave da relação interna que existe entre o saber e o _poder. As ciên-
cias humanas ocupam o terreno que foi inaugurado pela auto-tematização apo-
rética do sujeito cognoscente. Elas erigem, com as suas exigências pretensiosas
e nunca atingidas, a fachada de um conhecimento universalmente válido atrás
do qual se esconde a facticidade de uma mera vontade de autodomínio pelo
saber - de uma vontade de incrementação produtiva do saber sem qualquer
base em cuja esteira é forjada a subjectividade e a consciência pela primeira
vez.
Foucault persegue a coacção para a duplicação aporética do sujeito auto-
-referencial na base de três oposições: da oposição entre o transcendental e o
empírico, da oposição entre o acto reflexivo da tomada de consciência e do
reflexivamente irrecuperável, imprevisível e, por fim, a oposição entre o perfeito
apriorístico de uma origem sempre já existente de antemão e o futuro adven-
tista de um regresso ainda pendente das origens. Foucault teria podido expor
estas oposições a propósito da doutrina da ciência de Fichte; trata-se efectiva-
mente daquele constrangimento conceptual que é inerente à filosofia da cons-
ciência e que se condensa de modo exemplar no acto-acção do eu absoluto.
O eu pode tomar posse de si mesmo, «pôr-se» a si mesmo pondo como que
inconsciente um não-eu e tentando captar gradualmente o que é posto pelo eu.
Este acto do pôr-se mediatizado pode entender-se sob três aspectos diferentes:
como um processo do autoconhecimento, como um processo de tomada de
consciência e como um processo de formação. Em cada uma destas dimensões
o pensamento europeu dos séculos XIX e xx balança entre princípios teóricos
246
t
32 Dieter Henrich, Fluchtlinie (Linhas de Fuga), Frankfurt/ Main, 1982, pp. 125 e segs.
33 Isto explica também por que razão o materialismo consegue manter-se vivo na filosofia ana-
lítica e até apoiando-se na problemática da alma e do corpo.
247
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
248
I
AS CIÊNCIAS HUMANAS DESMASCARADAS PELA CRÍTICA DA RAZÃO: FOUCAULT
I
com menos defesas que a Etnologia e a Psicanálise, pois estas movem-se (em
Lévi-Strauss e Lacan) ainda assim reflexivamente na selva do inconsciente estru- I
tural e individual.
Uma vez que as ciências humanas, principalmente a Psicologia e a Sociolo- I
gia, se dedicam, com modelos emprestados e ideais de objectividade que lhes
são estranhos a um ser humano que começa por ser considerado pela forma I
moderna de saber como objecto de investigações científicas, pode-lhes ser
imposto traiçoeiramente um impulso que elas não podem admitir sem perigo I
para a sua aspiração à verdade: trata-se justamente daquela ânsia infatigável de
saber, de autodomínio, auto-apropriamento e de auto-incremento com a qual o I
sujeito da época pós-clássica, metafisicamente isolado e estruturalmente sobre-
I
carregado, abandonado por Deus e divinizando-se a si próprio, procura escapar
às a porias da sua autotematização: «Crê-se facilmente que o homem se libenou
I
de si próprio desde que descobriu que não se encontra, nem no centro da cria-
ção, nem no meio do espaço, nem talvez no cume ou no fim da vida. Mas se
I
o homem já não está como soberano no mundo, se já não reina no centro do
ser, as ciências humanas são intermediárias perigosas.» 35 Apenas intermediá-
I
rias, pois que não fomentam directamente, como as ciências da reflexão e a
filosofia, aquela dinâmica autodestruidora do sujeito que se põe a si mesmo,
antes são inconscientemente instrumentalizados para esta dinâmica. As ciências
I
humanas são e continuam a ser pseudo-ciências porque não podem aperce- .
ber-se da coacção a uma duplicação aporética do sujeito auto-referencial e por-
que não lhes é permitido admitir a vontade estruturalmente produzida de auto-
-conhecimento e auto-verificação - e, por isso, não podem também libertar-se
do poder que as governa. Foucault já apresentara esta ideia na sua História da
Loucura a propósito do positivismo psiquiátrico.
Mas que razões determinam Foucault a reintrepretar e postular esta vontade
específica de saber e de verdade, que é constitutiva para as modernas formas
de saber em geral e para as ciências humanas em particular, esta vontade de
saber e de auto-domínio, de um modo generalizado, numa vontade de poder
per se segundo a qual todos os discursos e não apenas os modernos, denotam
um carácter camuflado de poder e de proveniência de práticas do poder? Esta
assumpção marca a inflexão de uma arqueologia do saber para a explicação
genealógica da proveniência, ascensão e declínio daquelas formações discursivas
que preenchem o espaço da história sem lacunas e sem sentido.
249
X . .A-PORIAS DE UMA TEORIA DO PODE~
251
--- ----=======-=---
252
APORIAS DE UMA TEORIA DO PODER
4 Dreyfus, Rabinow, 1982, p. 84; Cf. também A. Honneth, (1985), pp. 133 e segs.
253
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
254
VEfiSiU.M.JZ fi::O~ ~&.11•. ~ ~áitiU•
&l!U l-"T.<?(' *' CR:<!T Q il r
APOR/AS DE UMA TEORIA DO PODER
li
255
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
7 «Estas ciências com que a nossa humanidade se deleita há mais de um século têm a sua
matriz e o seu modelo na minúcia meticulosa e maldosa das disciplinas e das suas investigações.
Estas desempenham para a psiquiatria, a pedagogia, a criminologia e tantos outros conhecimentos
estranhos o mesmo papel que o terrível poder da inquisição desempenhou para o saber calmo sobre
os animais, as plantas e a terra. Outro poder, outro saber. No limiar da Época Clássica, Bacon, o
jurista e estadista, tentou definir uma metodologia da investigação para as ciências empíricas. Que
superintendente e vigilante superior estabelecerá a metodologia do exame para as ciências humanas ?
Mas talvez isso não seja possível. Porque, se é verdade que a investigação, ao tornar-se uma técnica
para as ciências empíricas, se libertou do procedimento inquisitorial em que se enraizava historica-
mente quanto ao exame, esse permaneceu mais perto do poder disciplinar que formo u. Ele continua
a ser um elemento intrínseco das disciplinas. É exacto que ele parece ter sofrido uma depuração espe-
culativa ao integrar-se em ciências como a psiquiatria e a psicologia. E na forma de testes, palestras,
inquéritos ou consultas ele parece rectificar os mecanismos disciplinares: apsicologia escolar é encar-
regada de compensar os rigores da escola, tal como a consulta médica ou psiquiátrica deve corrigir
os efeitos da disciplina de trabalho. Mas não nos iludamos : estas técnicas limitam-se a enviar o indi-
víduo de uma instância disciplinar para outra e reproduzem, sob uma forma concentrada ou formali-
zada, o esquema do poder/saber próprio de cada disciplina. A investigação tornou-se no local das
ciências da natureza ao libertar-se do seu modelo político-jurídico. O exame, por seu lado, continua
integrado na tecnologia disciplinar.» (M. Foucault, Vigiar e Punir, 1976, pp. 290 e segs.) Esta passa-
gem é interessante de dois pontos de vista. Em primeiro lugar, pelo confronto entre ciências da natu-
reza e ciências humanas fica-se a saber que ambas resultaram de tecnologias do poder, mas que só
as ciências da natureza puderam destacar-se do contexto da sua formação e desenvolver discursos
sérios, efectivamente à altura das suas pretensões à objectividade e à verdade. Em segundo lugar,
Foucault considera que as ciências humanas foram incapazes de se libertar do contexto da sua forma-
ção, porquanto, no seu caso, as práticas do poder não intervêm simplesmente na história da sua for-
mação de maneira casual, mas desempenham também o papel transcendental de constituição do
saber.
256
APORIAS DE UMA TEORIA DO PODER
do poder. A fim de provar o que quer, ele teria de demonstrar (por exemplo
no quadro de uma teoria do conhecimento pragmático-transcendental) que as
estratégias específicas do poder se transpõem para as estratégias corresponden-
tes da objectivação de experiências do quotidiano verbal e, consequentemente,
que prejudicam o sentido do uso de proposições teóricas sobre domínios assim
constituídos de objectos 8. Foucault não retomou as reflexões anteriores sobre
o papel epistemológico de olhar clínico que apontam, em todo o caso, nesta
direcção. Se o tivesse feito, não teria ficado na ignorância de que, nas ciências
humanas dos anos setenta, as abordagens objectivistas já não dominavam o ter-
reno e antes sofriam a concorrência das abordagens hermenêuticas e críticas
que, pela sua forma de saber, foram traçadas para possibilidades de aplicação
diversas da manipulação e automanipulação. N' As palavras e as coisas Fou-
cault tinha reduzido as ciências humanas à força constituinte de uma vontade
de saber explicada pela história da metafísica. A teoria do poder tem de escon-
der esta relação, como se demonstrou. De agora em diante, permanece, pois,
vago o lugar das explicações teóricas da constituição dos saberes. A «vontade
de saber» reaparece no título do primeiro volume da História da Sexualidade
(1976), mas numa forma totalmente transformada pela teoria do poder. Perdeu
o sentido transcendental de uma vontade forjada estruturalmente para aceder
ao autodomínio pelo saber e adquire a forma empírica de uma tecnologia espe-
cial de poder gue, juntamente com outras tecnologias de poder, torna agora
possíveis as ciências do homem.
Esta positivização tangível da vontade de verdade e de saber torna-se nítida
numa autocrítica que Foucault apresentou numa conferência proferida em Ber-
. keley em 1980. Ele admite nesta conferência que da análise das tecnologias de
dominação produzida em Vigiar e Punir resulta um quadro unilateral :
«lf one wants to analize the genealogy of the subject in Western societies,
one has to take into account not only techniques of the self. Let's say one has
to take into account the interaction between those two types of techniques, the
point where the technologies of domination of individuais over one another
have recourse to processes by which the individual acts upon himself.» 9 Fou-
cault, como se sabe, remete estas tecnologias que exortam os indivíduos a fazer
um auto-exame escrupuloso e a descobrir a verdade sobre si próprios às práticas
da confissão, ao exame de consciência cristã. Práticas estruturalmente idênticas
que, ao longo do século xvm, invadem todos os domínios da educação,
instalam, em redor do ponto fulcral que constitui para cada um a percepção
das emoções sexuais próprias e de outrem, um arsenal com instrumentos
257
O DISCURSO FIWSÓFICO DA MODERNIDADE
258
APORIAS DE UMA TEORIA DO PODER
259
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
III
260
APORIAS DE UMA TEORIA DO PODER
de crianças que precisam de ser educadas - e não se pode deixar que as crian-
ças se entreguem descuidadamente a espectáculos sangrentos. Os discursos que
fundamentaram a organização ou a abolição dos combates de gladiadores não
passam de um disfarce de uma praxis de dominação inconsciente que lhes está
subjacente. Enquanto fontes de todo o sentido, tais práticas são em si mesmas
destituídas de sentido; o historiador tem de as abordar do exterior, para lhes
apreender a estrutura. Neste contexto, não há necessidade de nenhuma pré-
-compreensão hermenêutica, mas tão-somente do conceito da história como
mutação formal destituída de sentido e caleidoscópica de universos discursivos
que nada têm de comum senão o serem protuberâncias do poder em geral.
Relativamente à pretensão obstinada à objectividade que acompanha a auto-
-compreensão, basta um relance de olhos a qualquer dos livros de Foucault
para se ficar a saber que o historiador radical só pode explicar as tecnologias
do poder e as práticas de dominação comparando-as umas com as outras -
e de modo nenhum pode explicar cada uma delas como uma totalidade a partir
de si própria. Neste sentido, os pontos de vista de que parte para empreender
estas comparações são inevitavelmente articulados com a própria situação her-
menêutica de partida. Isto é evidente, entre outras coisas, pelo facto de Fou-
cault não conseguir evitar a divisão em épocas históricas implicitamente referi-
das ao presente. Quer se trate da história da loucura, da sexualidade ou da
punição, as formações de poder da Idade Média, do Renascimento e da Época
Clássica apontam invariavelmente para o próprio poder disciplinar, para aquela
mesma biopolítica que Foucault mantém ser o destino da época actual. Na
parte final da Arqueologia do Saber faz a si próprio esta objecção, mas tão
somente para a evitar. «De momento e sem que eu possa ainda prever-lhe um
termo, o meu discurso - longe de predeterminar o lugar de onde ele fala -
evita o solo onde poderia encontrar apoio.» 13 Foucault tem consciência da
aporia de um procedimento que pretende ser objectivista e que deve fazer o
diagnóstico da época, mas ele não dá resposta a este problema.
Só no contexto da sua interpretação de Nietzsche é que Foucault sucumbe
à melodia familiar de um irracionalismo confesso. Aqui, com efeito, o auto-
-apagamento, ou seja, «O sacrifício do sujeito do conhecimento» que o historia-
dor radical deve exigir de si próprio a favor da objectividade da pura análise
estrutural é ironicamente interpretada a contrario: «Aparentemente ou segundo
a máscara que traz, a consciência histórica é neutra, despojada de toda a pai-
xão e apenas dedicada à verdade. Mas se se auto-interroga e se, de maneira
geral, interroga toda a consciência científica na sua história, então d ~ as
formas e as transformações da vontade de saber que são o inst:i.nro. a ..,--~
o furor inquisitorial, a subtileza cruel, a maldade; descobre a violência das
tomadas de posição. A análise histórica desta enorme vontade de saber torna
261
j
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
evidente que não há conhecimento que não assente na injustiça (e que, por isso,
no conhecimento não há um direito à verdade nem qualquer fundamentação do
verdadeiro).» 14
Assim, a tentativa de explicar sob o olhar rigoroso e objectivante do analista
que vem de longe e opõe a toda a realidade indígena a sua não-compreensão,
as formações do discurso e do poder a partir de si mesmas, redunda no seu
oposto. O desmascarar das ilusões objectivistas de qualquer vontade de saber
conduz ao acordo com uma historiografia narcisisticamente orientada para a
posição do historiador que instrumentaliza a contemplação do passado para as
necessidades do presente: a «história real» cai «na vertical do lugar onde se
. encontra» 15.
·· 2) A historiografia de Foucault pode tão-pouco fugir a este agudo presen-
tismo como a um certo relativismo. As suas investigações enredam-se precisa-
mente na auto-referencialidade que deveria ser excluída pelo tratamento natura-
lista da problemática da validade. A historiografia genealógica deve tornar as
práticas de poder, precisamente nas suas realizações constituintes do discurso,
acessíveis a uma análise empírica. Desta perspectiva, as pretensões à verdade não
estão somente limitadas aos espaços dos discursos dentro dos quais ocorrem.
Elas esgotam em geral o seu significado no contributo funcional que dão à auto-
-afirmação de um dado universo discursivo. É, pois, nos efeitos do poder que
elas têm que reside o sentido das pretensões a validade. Por outro lado, esta hipó-
tese fundamental da teoria do poder é auto-referencial; ela deve, se for justa, des-
truir também o fundo de validade das investigações que inspira. Se, porém, a
pretensão à verdade, que o próprio Foucault associa à sua genealogia do saber,
fosse efectivamente ilusória e se se identificasse com os efeitos que esta teoria
pode desencadear no círculo dos seus aderentes, seria a empresa no seu conjunto
- a desmistificação crítica das ciências humanas - que perderia o sentido. Fou-
cault pratica a historiografia genealógica com a intenção séria de levar a bom
termo uma ciência que é superior às ciências humanas que estão em declínio. Ora
se a sua superioridade não pudesse exprimir-se na substituição das pseudo-
-ciências convictas da sua culpabilidade por algo mais convincente; se essa supe-
rioridade se exprimisse unicamente no efeito de recalcamento ejectivo do discurso
científico até então dominante, a teoria de Foucault esgotar-se-ia na política teó-
rica ou, mais precisamente, na colocação de objectivos teórico-políticos que exce-
deriam os meios de que dispõe no seu empreendimento um homem só, mesmo
que heróico. Foucault tem consciência disso. Consequentemente, gostaria de dis-
tinguir a sua genealogia de todas as restantes ciências humanas de um modo con-
ciliável com os fundamentos da sua própria teoria. Para este fim, ele aplica a
historiografia genealógica a si própria; na história da sua própria formação deve
262
APORIAS DE UMA TEORIA DO PODER
poder ser verificada a diferença capaz de fundamentar a vantagem que ela pos-
sui sobre as restantes ciências humanas.
A genealogia do saber faz uso daquelas ciências desqualificadas de que se
demarcam as ciências estabelecidas. Oferece o medium para a sublevação das
«ciências oprimidas». Por «ciências oprimidas» Foucault não entende, em pri-
meira linha, os sedimentos do saber erudito, simultaneamente velados e presen-
tes, mas as experiências de grupos submetidos ao poder nunca apresentadas
como saber oficial, nunca suficientemente articuladas. Trata-se do saber implí-
cito «das gentes» que constituem a base num sistema de poder e que são as pri-
meiras a experimentar no próprio corpo uma tecnologia de poder, quer como
pacientes quer como executantes dessa maquinaria de sofrimento - pode-se
citar como exemplo o saber que se forja entre os doentes do foro psiquiátriêo
e os enfermeiros, os delinquentes e os vigilantes, os prisioneiros nos campos de
concentração e os guardas, os negros e os homossexuais, as mulheres e as bru-
xas, os vagabundos, as crianças e os tontos. A genealogia dirige os seus traba-
lhos de prospecção para o fundo escuro daquele saber local, marginal e alterna-
tivo «que deriva a sua força da dureza com que se opõe a tudo o que o rodeia».
Estes elementos de saber são normalmente «desqualificados como inadequados
à sua missão ou insuficientemente elaborados: são formas de saber ingénuas,
localizadas no fundo da hierarquia, abaixo dos níveis exigíveis de saber e cienti-
ficidade» 16. Dentro deles dormita, porém, o «saber histórico das lutas».
A genealogia que eleva estas «memórias locais» ao nível de «conhecimentos
eruditos» toma o partido daqueles que resistem às práticas estabelecidas do
poder. Desta posição de contra-poder ganha uma perspectiva que deve ultrapas-
sar as perspectivas dos detentores particulares do poder. E isso permite-lhe
transcender todas as pretensões a validade que não se constituem senão dentro
da zona de influência do poder. A aliança com o saber desqualificado das pes-
soas deve procurar no trabalho de reconstrução do genealogista aquela superio-
ridade «que emprestou a sua solidez capital à crítica dos discursos praticada
nos últimos quinze anos» 17.
Isto recorda-me um argumento do jovem Lukács. Segundo ele, com efeito,
a teoria marxista devia a sua imparcialidade ideológica às possibilidades privile-
giadas do conhecimento de uma perspectiva de experiência forjada através da
posição do assalariado no processo da produção. Ora, sem dúvida, um tal argu-
mento era válido no quadro de uma filosofia da história que pretendia desco-
brir o interesse geral no interesse da classe proletária e a autoconsciência do
género humano na consciência de classe do proletariado. O conceito de poder
em Foucault não permite um tal conceito de contra-poder que se apoiaria sobre
uma filosofia da história e conferiria privilégios cognitivos. Cada contra-poder
263
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
move-se já no horizonte do poder que ele combate e transforma-se, logo que vito-
rioso, num complexo de poder que provoca outro contra-poder. A genealogia do
saber não pode sair deste círculo enquanto activar a insurreição das formas des-
qualificadas do saber e mobilizar o saber oprimido «contra o constrangimento
de um discurso teórico, formal e científico» 18. Quem vencer a avant-garde teó-
rica de hoje e abandonar a hierarquização do saber existente constitui a avant-
-garde teórica de amanhã e ergue uma nova hierarquia do saber. Em todo o caso,
ele não pode pretender para o seu saber uma superioridade que seria adquirida
tomando como critério reivindicações de verdade que transcendem acordos locais.
Deste modo, a tentativa de preservar, pelos seus próprios meios, a historio-
grafia genealógica contra um relativismo interno susceptível de a desmentir fica
aquém dos seus objectivos. Ao tomar consciência do que provém desta aliança
entre o saber estabelecido e o saber desqualificado, a genealogia vê confirmado
que as pretensões à validade dos contra-discursos não contam mais nem menos
que aos discursos detentores do poder - também eles nada mais são do que os
efeitos do poder que os desencadeiam. Foucault apercebe-se deste dilema, mas
também desta vez, se furta a uma resposta. E uma vez mais professa um perspec-
tivismo militante apenas no contexto da sua recepção de Nietzsche: «Os historia-
dores procuram, tanto quanto possível, apagar tudo o que possa trair, no seu saber,
o lugar de onde observam, o momento em que se encontram, o partido que tomam
e a inevitabilidade das suas paixões. O sentido histórico, como Nietzsche o entende,
sabe-se perspectivista... Ele olha de um determinado ângulo; está decidido a apre-
ciar, a dizer sim ou não, a seguir todos os vestígios do veneno, a descobrir o melhor
antídoto.» 19
3) Resta examinar se Foucault consegue subtrair-se àquele cripto-normativismo
de que, na sua concepção, se tornam culpadas as ciências humanas, ao proclamar-
-se livres de valores. A historiografia genealógica deve apanhar, numa atitude rigo-
rosamente descritiva, o que está por detrás dos universos discursivos dentro dos
quais se disputa apenas sobre normas e valores. Pondo entre parênteses as pre-
tensões à validade normativa do mesmo modo que as pretensões à verdade pro-
fissional, ela abstém-se de se interrogar sobre se certas formações discursivas ou
certas formações de poder poderiam ser mais justificáveis que outras. Convidado
a tomar partido, Foucault resiste e zomba do «dogma gauchista» que crê que
o poder é o mal, que é feio, estéril e morto «e que aquilo sobre que se exerce
o poder é o bem, o genuíno, o grandioso.» 20 Não há para ele um «lado bom».
Por detrás disto está a convicção de que a política, que desde 1789 se encontra
sob o signo da revolução, chegou ao fim, que as teorias que reflectiram a relação
entre teoria e prática estão ultrapassadas.
264
APORIAS DE UMA TEORIA DO PODER
265
J
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
266
APORJAS DE UMA TEORIA DO PODER
267
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
Se assim não fosse, ele deveria, como Bataille, conferir ao outro da razão o
estatuto que, com bons fundamentos, ele lhe negou desde Loucura e Civiliza-
ção. Ele defende-se contra uma metafísica naturalista que venera o contrapoder,
fazendo dele um referente prediscursivo. «Aquilo a que você chama natura-
lismo», responde ele a Bernard-Henri Lévy em 1977, «designa a ideia de que;
.
sob o. poder, com os seus actos de violência e os seus artifícios, devemos ser
capazes de redescobrir as coisas na sua vitalidade primordial: para lá dos
muros do manicómio, a espontaneidade da loucura, através do sistema penal,
a inquietação fértil da delinquência, sob a proibição sexual, a pureza do
desejo» 27. Porque não pode aceitar esta representação da filosofia da vida,
Foucault tem de se abster de responder à questão relativa aos fundamentos nor-
mativos da sua crítica.
IV
268
APORIAS DE UMA TEORIA DO PODER
269
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
se aquilo que se nos afigura uma deficiência conceptual básica repercutisse tam-
bém sobre o desígnio e execução das investigações empíricas e assim pudesse
ficar preso a leituras selectivas e cegueiras parciais. Vou pelo menos nomear
algumas perspectivas a partir das quais deveria ser possível conduzir uma crí-
tica empírica àquilo que Foucault apresenta como a génese da penalidade
moderna e da sexualidade.
Vigiar e Punir apresenta-se como analogia do direito penal cientificamente
racionalizado com a penalidade cientificamente humanizada. Aquelas tecnologias
da dominação nas quais hoje se exprime o poder disciplinar constituem a matriz
comum para «a humanização da pena e o conhecimento do homem» 31.
A racionalização do direito penal e a humanização da penalidade foram postas
em movimento no final do século xvm, a coberto da protecção retórica de um
movimento de reforma que se justifica normativamente em conceitos de direito
e moraL Foucault pretende mostrar que por detrás disto se esconde uma brutal
transformação nas práticas de poder - o nascimento do regime moderno de
poder, «a adaptação e refinamento dos aparelhos que registam e colocam sob
vigilância o comportamento quotidiano dos indivíduos, a sua identidade, a sua
actividade, os seus gestos aparentemente sem significado» 32. Foucault pode ilus-
trar esta tese com exemplos expressivos; contudo, na sua generalização ela é -intei-
ramente falsa. Neste caso ela vai ao ponto de dizer que o panopticismo que
releva a execução moderna da pena é característico da estrutura da modernização
social no seu conjunto. Foucault só pode permitir-se esta generalização porque
ele evolui em conceitos fundamentais da teoria do poder de que decorrem as
estruturas normativas da evolução jurídica. Os processos de aprendizagem prá-
tico-morais devem apresentar-se como uma intensificação dos processos pelos
quais o poder se sistematiza. Esta redução opera-se por escalões.
Em primeiro lugar, Foucault analisa os jogos de linguagem normativos do
direito natural racional apoiando-se nas funções latentes que preenchem o dis-
curso de dominação da Época Clássica, para a imposição do exercício do poder
absoluto do Estado. A soberania do Estado monopolizador da força mani-
festa-se também nas formas demonstrativas da penalidade que Foucault ilustra
chamando à colação procedimentos de tortura e suplício. Da mesma perspectiva
funcionalista, Foucault descreve depois os prolongamentos do jogo de lingua-
gem clássico na época reformista do iluminismo, prolongamentos que culmi-
nam, por um lado, na teoria kantiana da moral e do direito e, por outro, no
utilitarismo. É interessante notar que Foucault não menciona o facto de que
ambos servem, por outro lado, para impor revolucionariamente uma força
constitucional do Estado, o mesmo é dizer, uma ordem política transferida
ideologicamente da soberania de princípios para a soberania do povo. Este tipo
270
APORIAS DE UMA TEORIA DO PODER
271
O DISCf.JRSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
272
APOR/AS DE UMA TEORIA DO PODER
273
- - - - - - - - - - - - - ----····------ - - - -
\ 275
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
------- ---- -- - - --
sim em relação a mundos da vida estruturados de forma comunicacional/ os
-- -
.. / -
quais se reproduzem através do meio de comunicação da acção orientada para
~preensão mútuai7Sugeri nestas passagens q~aradigma do co~heji
mento . de objecto tem de ser substituído pelo {p~gma da compreens!2J
mútua entre sujeitos-
capazes de falar e --
....---....._
agir. Hegel e Marx não cumpriram esta
~
1 Cf. a lição proferida por Foucault, no princípio de 1983, sobre o texto de Kant: «Resposta à
276
------------- -----------------------------------------------~----~
2 Zum begriff des kommunikativen Handelns, in J. Habermas, Vorstudien und Ergãnzungen zur
Theorie des kommunikativen Handelns, Frankfurt, 1984 I «Explicitations du concept d'activité com-
municationelle» in Logique des sciences sociales et autres essais I «Remarks on the Concept of Com-
municative Actiom> in 'G. Seebass e R. Tuomela, eds., Social Action, Dordrecht, 1985, pp. 151-178.
277
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
<. cr
soai que lhe permite relacionar-se consigo como participante numa interacção
d; perspectiva do alter. E de facto~ reflexão efectuada da p-;;pectiva de parti-
cipante escapa àquela forma de objectivação que é inevitável da perspectiva do
observador, usada reflexivamente. Sob o olhar da terceira pessoa, quer este se
dirija para fora quer para dentro tudo se cristaliza sob a forma de objecto.
A primeira pessoa que se debruça sobre si própria do ângulo de visão da
segunda pessoa, em atitude performativa pode realizar actos que acaba de pra-
ticar/ Uma reconstrução recapitul~ do saber já organizado surge no lugar de
_um saber reflexivamente objectivado, ou seja, da consciência de si próprio.
Aquilo que antes cabia à filosofia transcendental, ou seja a análise intuitiva
da consciência de si, adapta-se agora ao círculo de ciências reconstru 1va que
procuram tornar explícito o conhecimento pré-teórico de regras de sujeitos
falantes, agentes e sabedores competentes, da perspectiva de partici antesf~m .,
dis~l!r.§OS e j~s a partir de uma análise de declarações conseguidas ou
distorcidas. Porque tais tentativas de reconstrução já se não dirigem a um reino ·
de inteligível para além das aparências, mas sim ao conhecimento das regras
realmente praticado que se precipita em declarações produzidas de acordo com
~as,~a~ ~eparação ont;;'iógféa7ntre o transcende~-o empí-
..'il§oJ Como se pode ver pelo estruturalismo genético d0ea~ Pi~g~ suposi-
ções reconstrutivas e empíricas podem ser incluídas numa _!lle~mA__!eoria 3.
Deste modo quebra-se a dificuldade de uma relação não resolvida entre dois
aspectos tão inevitáveis como incompatíveis da autotematização. Por isso não
são necessárias mais teorias híbridas que supram a lacuna entre o transcenden-
tal e o empírico.
'c
Acontece a mesma coisa quanto à duplicação da auto-referência na dimen-
são de tornar consciente o 'nc_?_i2~~~~nte. Aqui, segund~ o pensamento
da filosofia do sujeito oscila entre o esforço heróico de transf~rmar o que é em
si reflexo no gg_e é para si e o reconhecimento de um fundo opaco que escapa
teimosamente à transparência da consciência de si próprio. Também estes dois
aspectos da autote!fiatização já não são inconciliáveis se passarmos para o
paradigma da compreensão mútua. Enquanto o falante e o ouvinte se entendem
frontalmente acerca de algo num mundo, eles movem-se dentro do horizonte do
seu mundo de vida comum e este continua a ser para os intervenientes como
um pano de fundo intuitivamente conhecido, não problemático, indesmembrá-
--
vel e holístico. A situação do discurso é, no que respeita à temática respectiva,
- -- --
- - ~
2 excerto de um mundo da vida que tanto constitui o contexto como fornece
278
l ._
' b
279
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
4 Cf. Habermas, 1973, pp. 441 e segs.; H. Dahmer, Libido und Gesellschaft, Frankfurt, 1982,
pp. 8 e segs. I Connaissance et Interêt; Habermas, <<A Postscript to Knowledge and Human Inte-
rests, Philosophy of Social Science, 1973 , pp. 157-189.
5 J. Habermas, Der Universalitãtsanspruch der Hermeneutik, in Zur Logik der Sozialwissens-
chaften, Frankfurt, 1982, pp. 331 e segs. I <<La prétention à l'universalité de l' herméneutique» in
Logique des sciences sociales, I <<The hermeneutic Claim to Universality», in J. Bleicher, ed., Con-
temporary Hermeneutics , London e Boston, 1980.
6 Cf. Habermas, 1981, Vol. 2, pp. 589 e segs. I Théorie de !'agir communicationnel, t. n,
pp. 441 e segs. I Theory of Communicative Action, Vol. 2 : System and Lifeworld: A Critique
of Functionalist Reason (Boston, 1987).
280
UMA OUTRA SAÍDA DA FILOSOFIA DO SUJEITO
dlla:rtaS a partir dos quais Foucault explica a perigosa dinâmica de uma subjec-
e aferrada ao saber e que àcaba por cair nas pseudociências. A mudança
paradigma da azao centrada no su.fêit'<D para 'razão co_municaciõiiãl pode
rambém encorajar a voltar a admitir o contradiscurso que desde o início acom-
panha a modernidade. Como a radical crítica da razão de Nietzsche se não
deixa conduzir consistentemente, nem na linha da crítica metafísica, nem na
linha da filosofia do poder, somos dirigidos para outra saída da filosofia do
sujeito. Talvez se possam aí ter em conta os motivos de autocrítica de uma
modernidade em colapso, sob outras premissas, de modo que façamos justiça
em relação aos motivos virulentos que, desde Nietzsche, levam à despedida pre-
cipitada da modernidade. Deve ficar claro q_ue o purismo da razão pura !!,ãO
• ressuscita, Qa razão comunicativa.
11
--
Kant conduzira a sua crítica da Razão da perspectiva própria desta, ou seja,
na forma de uma(autolimitação- estritamente discursiva da razão. Se, agora, lhe
têm de ser apresentados os custos de produção dest~ãzão autolimitada que
delimita o metafísico seria necessário um horizonte da razão que ultrapassasse
estes limites e no qual se pudesse mover o discurso transcendente que apresenta
as contas. ~ Crítica da Razão, uma vez mais radicalizada, deveria pos~ular num
conceito de Rázão mais amplo, compreensivo. Mas os irmãos Bõhme não
281
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
querem espantar o diabo com a ajuda de Belzebu. Tal COJPO Foucault eles vêem
muito mais na transição da Razão exclusiva (em moldes kantianos) para uma
razão compreensiva apenas a «complementarização do tipo de poder funda-
mentado na exclusão pelo tipo de poder fundamentado na ermeabilidade» 8.
De fori!!.'!_ c_9nsequente o seu próprio~ a@eridade da razao j everia ocu-
par um lugar decididamente heterogéneo à razão. Mas de que valem consequên-
cias num lugar que é a priori inacessível ao discurso racional?
~----=--.:__--~-~ -- -- -- - ~
Os paradoxos continuamente repetidos desde Nietzsche não deixam, pois,
qualquer rasto reconhecível de inquietação. A hostill?3tde metodo~ógica em rela-
ção à razão poderá estar ligada à inocência histórica com a qual os estudos
deste tipo se movimentam hoje na terra de ninguém situada entre a argumenta-
ção, a narrativa e a ficção 9/ A nova crítica da razão reprime aq~ele contradis-
curso inerente à própria modernidade há quase duzentos anos e que eu gostaria
de fazer recordar nestas lições.
Este contradiscurso teve o seu ponto de partida na filosofia de Kant como
expressão inconsciente da Idade Moderna e teve como objectivo o esclareci-
mento do iluminismo acerca das suas próprias limitações. A nova Crítica da
Razão nega a continuidade em relação a este contradiscurso no qual ela,
porém, se insere: «Já não pode tratar-se de completar o projecto da Moderni-
dade (Habermas), tem de se tratar de o rever. Também o iluminismo não ficou
incompleto, mas sim não esclarecido.» 10 A intenção de proceder a uma revisão
do iluminismo, a qual se serve dos meios do próprio iluminismo, uniu desde
a primeira hora os críticos de Kant - Schiller com Schlegel, Fichte com os
seminaristas de Tubingen. Continuemos a ler: «A filosofia de Kant tinha sido
iniciada como uma empresa de demarcação de fronteiras. Mas nada se diz
sobre o facto de demarcação de fronteiras ser um processo dinâmico, da razão
se ter retirado para terreno firme abandonando outras zonas, que demarcar
fronteiras significa auto-inclusão e exclusão de outro.» Vimos, no início (no
capítulo n) das nossas lições, como Hegel com Schelling e Hôlderlin sentiram
como outras tantas provocações as operações de demarcação da filosofia da
reflexão, a oposição de fé e saber, de infinito e finito, a separação de espírito
e natureza, de entendimento e sensibilidade, dever e inclinação, e vimos como
eles perseguiram as marcas desta alienação de uma razão subjectiva empolada
de natureza interior e exterior até às « ositividades»· da eticidade destruída da
vida quotidiana política e privada. egel · ira, ~elo facto de o poder da conci-
liação desaparecer da vida do homem, s~rgi~ a ne; essidacte de filo'Sofia. De
~ie-;ãOinterp'fet;u como exclusõe~ a~ demarcações da ra~ã~ centrãda no
~jeito; interpretou-as- como bipa_!!iç~ e exigiu da filosofia que ela tivesse
8 H. Bóhme, G. Bóhme, Das Andere der Vernunft, Frankfurt a. M., 1983, p. 326.
9 Cf. excurso sobre Derrida, pp. 178 e segs.
IO H . Bóhme, G. Bóhme, 1983, p. 11.
282
UMA OUTRA SAÍDA DA FILOSOFIA DO SUJEITO
nuam: «Mas o que é razão permanece ininteligível enquanto o seu outro (na
sua irredutibilidade) não for incluído. A razão pode, pois, enganar-se acerca de
si própria, tornar-se a si própria pelo todo (Hegel) ou pretender compreender
a totalidade.» Foi exactamente esta a objecção que os jovens hegelianos opuse-
ram em tempos ao seu mestre. Eles intentaram contra o espírito absoluto, um
processo no qual o outro da razão, o seu predecessor, devia ser reabilitado no
seu direito próprio. Deste processo de des-sublimação surgiu o conceito de uma
razão situa"(fà) a qual define a sua relação com a historicidade do tempo, com
a factualidade da natureza exterior, com a subjectividade descentrada da natu-
reza interior e com a materialidade da sociedade, não pela inclusão nem pela
exclusão mas sim por uma praxis de imaginar e formar forças essenciais/ a qual
I
é realizada em condições finitas .
e não escolhidas por ela própria IA sociedade
l ~,.;;.;;.;;;,o;o.,;.;.;.;.ow.
~
historicamente
......._,_ situada, carnalmente incarnada, e confrontada
~ . com -a natureza ---....,-
-- ---
dora de comunidades e de solidariedade de uma cooQeraç.ão e de uma vida em
~----
~omum não alienadas que decide se a razão encarnada na praxis social se
entende com a história e com a natureza. É a própria sociedade bipartida que
- -
_forç~ a repres~ão da morte, o nivelamento da consciência histórica e a sujeição
da natureza externa e interna.
No contexto de uma história da razão a filosofia da praxis do jovem Marx
tem o significado de ter desligado o modelo da bipartição de Hegel de um con-
ceito da razão inclusivo que integrava o outro da razão. É claro que a razão
da filosofia da praxis, que se considera finita, se mantém - sob a forma de
uma teoria crítica da sociedade - sujeita a uma razão compreensiva na medida
em que sabe que não poderia conhecer sem os ultrapassar os limites históricos
- materializados nas relações sociais burguesas - da razão centrada sobre o
sujeito. Quem se agarrou obstinadamente ao modelo de exclusão tem de ficar
fechado a esta descoberta hegeliana que, como se verifica em Marx, não era
de modo algum apenas atingível através da absolutização do espírito. De um
ponto de vista assim restrito também se verifica a deficiência hegeliana
congénita da teoria pós-hegeliana no ponto «onde a razão é criticadâ como
283
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
11Ibid, p. 18.
12lbid., p. 19.
13 Enquanto Schiller e Hegel queriam ver realizada a ideia da autolegislação numa sociedade
esteticamente conciliada, ou na totalidade do contexto de vida moral, Bõhme e Bõhme só conseguem
reconhecer na autonomia moral a obra do poder disciplinar: se tivéssemos de ilustrar, através de
modelos sociais, o processo jurídico interior que é conduzido através das máximas em nome da lei
moral, teríamos de retroceder até ao exame de consciência protestante que transpôs para o interior
das pessoas o padrão da Inquisição, ou melhor, teríamos de nos projectar para as salas de audiência
frias e higiénicas e às salas informatizadas da polícia, agora com métodos científicos cujo ideal é
o do imperativo categórico - a compreensão sem lacunas e o controlo de tudo o que é particular
e resistente até ao âmago do ser humano (Bõhme e Bõhme, 1983, p. 349).
284
,)_;\..
UMA OUTRA SAÍDA DA FILOSOFIA DO SUJEITO
1
r
,/'~{ ria Enquanto O<!_llodelo da razão bipartid indica à razão a praxis social solidá-
como o lugar de uma razão historicamente situada, no qual se juntam os
fios da natureza externa, da natureza interna e da sociedade, este espaço utopi-
camente aberto é completamente preenchido, no( modelo da razão exclusiva,
por uma razão não conciliadora, reduzida ao mero poder. A praxis social serve
aqui apenas de palco no qual o poder disciplinar experimenta sempre novas
encenações. Nesse · palco reina arbitrariamente uma razão à qual se nega o
poder de ter acesso não obrigatório aos seus predecessores. Na sua pretensa
soberania 5l razão identificada com a subjectividade torna-se joguete de forças
- que sobre ela actuam de maneira imediata e, por assim dizer, mecânica -
da natureza excluída e que é transformada em objecto tanto interna como exter-
namente. O outro de uma subjectividade autoconvencida já não é agora o todo
bipartido - portanto em primeiro lugar aquilo que se legitima na força vinga-
dora de reciprocidades destruídas na causalidade fatal de relações comunicati-
vas deformadas, nem à natureza alienada, interior ou exterior através do sofri-
mento provocado pelas alterações na vida social. No modelo de exclusão
decifra-se esta estrutura completada de uma razão subjectiva socialmente fen-
dida e, por isso, arrancada à natureza: «0 outro da razão é a natureza, o corpo
humano, a fantasia, o desejo, os sentimentos, ou melhor, é tudo isto enquanto
a razão não se puder apropriar das coisas.» 14 Por isso então são as próprias
forças vitais de uma natureza subjectiva dividida e reprimida, são os fenómenos
do sonho, da fantasia da excitação orgiástica, do êxtase, os quais foram redes-
cobertos pelo romantismo; são as exper:iências estéticas de uma subjectividade
descentrada que são centradas no corpo e que actuam como delegados do outro
da razão. De facto o romantismo de Jena queria ainda estabelecer a arte sob
a forma de uma nova mitologia, como instituição pública no seio da vida
social, queria tornar a excitação que dela irradiava equivalente ao poder unifi-
cador da religião. Foi Nietzsche o primeiro a transferir este potencial de excita-
ção no além da sociedade moderna e da própria história. Oculta-se a origem
moderna das experiências estéticas de vanguarda.
O potencial de excitação estilizado como outro da razão torna-se simulta-
~amente esotérico e pseudónimo; surge sob outro nome, como ser [Sein],
::orno hete:ogéneo, como poder. A natureza cósmica da metafísica e o Deus dos
filósofos diluem-se, tornando-se reminiscência evocativa, recordação comovente
do sujeito metafísico e religiosamente isolado. A ordem em relação à qual se
emancipou - o que quer dizer a natureza interna e externa na sua forma não
alienada já · só surgem no pretérito, como origem arcaica da metafísica em
Heidegger, como ponto de transbordo na arqueologia das ciências humanas em
Foucault - ou, de maneira talvez mais à moda, assim: «separada do corpo
cujas potê~ciaslibidinosas podiam ter oferecido imagens de felicidade, separadas
285
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
286
UMA OUTRA SAÍDA DA FILOSOFIA DO SUJEITO
III
287
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
\
exaltação de verdades futuras que continuam indefinidas. O jogo ridículo com
o êxtase, afinado religiosa e esteticamente, tem o seu público principalmente no
círculo de intelectuais prontos a oferecer no altar das suas necessidades de
orientação o sacrifício de inteligência (sacrificium intellectus).
Porém, uma vez mais, um paradigma só perde a sua força quando é negado
por outro paradigma de uma maneira definida~ isto é, quando é desvalorizado
de modo que se pode julgar pertinente; resiste, sem dúvida, ao simples jura-
mento da extinção do sujeito. O trabalho da desconstrução, por mais entusiasta
que seja, só pode ter consequências definíveis quando o paradigma da consciên-
cia de si, da auto-referência de um sujeito que conhece e age isoladamente é
substituído por outro, pelo paradigma da intercompreensão, isto é, da relação
intersubjectiva de indivíduos, que socializados através da comunicação, se reco-
nhecem mutuamente. Só então surge a crítica do pensamento ordenador da
razão centrada no sujeito de forma determinada - nomeadamente como crítica
ao «logocentrismo» ocidental a qual diagnostica não um excesso mas um défice
de razão. Em lugar de dar cartas à modernidade, retoma o contradiscurso ine-
rente a esta modernidade e condu-lo para fora da frente de combate ~em saída
entre Hegel e Nietzsche. Esta crítica renuncia à originalidade exaltadà de um
retorno às origens arcaicas: liberta a própria força subversiva do pensamento
moderno contra o paradigma da filosofia de consciência imposto desde Descar-
tes até Kant.
A crítica dos seguidores de Nietzsche à exaltação do Jogos procede destruti-
vamente. Mostra que o sujeito enquanto ligado ao corpo, falante e agente não
é o dono da sua casa; daqui se infere que o sujeito que se coloca a si mesmo
no conhecimento depende de um acontecer anterior, anónimo e trans-subjec-
tivo - quer seja o destino do ser, o acaso da formação estrutura ou o poder
produtor de uma formação discursiva. O Jogos do sujeito despótico aparece
assim como desventura de uma especialização falhada tão transcendente como
enganadora. A esperança que provocam tais análises pós-nietzscheanas ·tem
sempre a mesma qualidade de indeterminação expectante. Quando um dia tiver
sido arrasada a fortaleza da razão centrada no sujeito, também cairá sobre si
mesmo o Jogos, que manteve durante tanto tempo a interioridade protegida
pelo poder, vazia por dentro e agressiva por fora. Terá então de se entregar ao
seu outro, seja ele qual for.
Uma outra crítica aos privilégios ocidentais do Jogos, menos dramática mas
comprovável passo a passo, assenta nas abstracções do próprio Jogos, liberto .
da língua, universalista e sem corpo. Entende a compreensão intersubjectiva
como o telas imanente à linguagem corrente e o logocentrismo do pensamento
ocidental que culmina na filosofia da consciência como contracção e distorção
sistemáticas de um potencial já operativo na praxis quotidiana, mas explorado
selectivamente. Enquanto a autocompreensão ocidental distingue o ser humano
pelo monopólio de se opor ao ente, reconhecer e tratar objectos, fazer e cumprir
288
UMA OUTRA SAÍDA DA FILOSOFIA DO SUJEITO
289
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
290
--"'Y'"L'!éttVJ!_..~.G:i r:.:. ~~·-/~2. Jj.O ,, ~~~
t!lT':lLCO'í'I~Cl;>. ,f::;_7,7;r.~,o .'>li
18 A . Wellmer mostrou que a harmonia de uma obra de arte, a verdade estética, como lhe cha-
mam, não pode ser de modo -algum reduzida sem consequências a autenticidade ou sinceridade; vd.
«Verdade, Aparência, Conciliação. A salvação estética da Modernidade, de Adorno» in L. v. Friede-
burg, J. Habermas, ed., Adorno-Konferenz, 1983, Frankfurt, 1983, pp. 138 e segs.
291
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
292
UMA OUTRA SAÍDA DA FIWSOFIA DO SUJEITO
ão é por acaso que os suicídios suscitam nos que lhes estão próximos uma
espécie de choque que, por momentos, deixa entrever, até aos mais imperturbá-
veis; qualquer coisa da colectividade inevitável de um tal destino.
IV
293
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
o seu mundo se lhes abra de modo inovador, ou eles se movem já sempre dentro
de um horizonte em mutação, independente da abertura ao mundo determinado
pela própria língua - a língua como meio de uma praxis criadora (Castoriadis)
ou como acontecimento diferencial (Heidegger, Derrida). Com a sua teoria da
instituição imaginária Castoriadis pode, graças ao princípio da filosofia da lin-
guagem dar continuidade à filosofia da praxis. Para devolver força revolucioná-
ria e um conteúdo normativo à praxis social, Castoriadis abandona a concep-
ção expressivista do agir a favor de uma concepção poético-demiúrgica - o
agir é a criação sem origem de figuras absolutamente novas e únicas no seu
género em que cada uma delas abre um horizonte de sentido incomparável.
A garantia do conteúdo racional da modernidade - da consciência de si, da
autêntica auto-realização e autodeterminação em solidariedade - é apresentada
como uma força imaginária criadora da linguagem. É claro que esta facilmente
cai numa proximidade precária do ser que opera sem fundamento. No fim já
só há uma diferença entre a «instauração» voluntária e o «destino» fatalista.
Para Castoriadis a sociedade divide-se, tal como a subjectividade transcenden-
tal, em criador e criado, em instituinte e instituído, o que permite ao fluxo do
imaginário criador do sentido, expandir-se na variedade de imagens linguísticas
do mundo. Esta criação ontológica de totalidades de sentido absolutamente
novas, sempre diferentes e únicas no seu género acontece como um destino do
ser; não se vê como esta criação demiúrgica das verdades históricas se pode
transformar no projecto revolucionário da praxis dos indivíduos conscientes,
autónomos, e que se realizaram por si próprios. A autonomia e a heteronomia
devem, ao fim e ao cabo, orientar-se pela autenticidade da transparência que não
esconde a sua origem imaginária sob projecções extra-sociais e se conhece explici-
tamente como sociedade auto-instituinte. Porém - quem é o sujeito deste saber?
Para a revolução da sociedade reificada não conhece Castoriadis outra razão que
não seja a decisão existencialista - «porque nós o queremos»; o que nos leva
a de novo perguntar: quem pode ser este «nós» da vontade radical, se os indiví-
duos socializados são unicamente «instituídos» pelo imaginário social? Castoria-
dis termina como Simrnel começou: com a filosofia da vida 19.
Esta consequência resulta do conceito de língua que Castoriadis vai buscar
tanto à hermenêutica como ao estruturalismo. Tal como, cada um a seu modo,
Heidegger, Derrida e Foucault, também Castoriadis parte do princípio que há
uma diferença ontológica entre a língua e as coisas de que se fala, entre a com-
preensão constituinte de um mundo e a esfera intermundana constituída. Esta
diferença significa que a língua descobre o horizonte do sentido, no interior do
qual os sujeitos reconhecedores e agentes interpretam coisas a as pessoas fazem
experiências em concreto com elas. A função da língua de abrir o mundo é pen-
sada em analogia com as operações produtoras da consciência transcendental,
mas abstraindo do seu carácter puramente formal e supratemporal. A imagem
294
UMA OUTRA SAÍDA DA FILOSOFIA DO SUJEITO
295
O DISCURSO FIWSÓFICO DA MODERNIDADE
v
Questão mais séria é a de saber se, com o conceito de agir comunicacional
e da força transcendente de exigências universalistas de validade, não é estabele-
cido um idealismo que é incompatível com as ideias naturalistas do materia-
lismo histórico. Um mundo da vida que deve reproduzir-se apenas sobre o meio
de agir orientado para a compreensão não estará afastado dos seus processos
de vida materiais? Naturalmente, um mundo de vida reproduz-se materialmente
296
UMA OUTRA SAÍDA DA FILOSOFIA DO SUJEITO
20 Agradeço a Charles Taylor o encorajamento; cf., deste, Philosophical Papers, Vol. I e li,
Cambridge, 1985.
297
O DISCURSO FIWSÓFICO DA MODERNIDADE
21 K. O. Apel, Transformation der Philosophie, Frankfurt, 1973, Vol. Il, pp. 358 e segs. Cf. tb.
a minha resposta a M. Hesse, in J. Thompson, D. Held (Eds.), Habermas Criticai Debates, London,
1982, pp. 276 e segs.
298
\ UMA OUTRA SA ÍDA DA FILOSOFIA DO SUJEITO
299
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
300
UMA OUTRA SAÍDA DA FIWSOFIA DO SUJEITO
formas de vida, ter audiência, está por certo relacionado com o facto de os
esforços da filosofia da praxis para reformular o projecto da modernidade na
linha do pensamento marxista terem perdido credibilidade. A primeira tentativa
de renovação da filosofia da praxis a partir de Husserl e Heidegger foi feita
pelo jovem Herbert Marcuse. Seguiu-se-lhe Sartre com a «Crítica da Razão
Dialéctica». Castoriadis imprimiu um novo impulso a esta tradição, introduzin-
do-lhe uma viragem linguística única. A sua obra ocupa um lugar cenrral no
círculo das abordagens da filosofia da Praxis que se desenvolveram desde os
meados dos anos sessenta, especialmente na Europa de Leste: em Praga, Buda-
peste, Zagrebe e Belgrado, e que animaram durante um decénio as discussões
dos Cursos de Verão da Universidade de Korculu. Castoriadis fez a tentativa
mais original, mais ambiciosa e mais reflectida para repensar como praxis a
mediação libertadora de história, sociedade, natureza exterior e interior. Tam-
bém Castoriadis parte da «contradição» entre o trabalho morto e o trabalho
vivo. O capitalismo tem, simultaneamente, «que reivindicar a actividade
humana dos sujeitos que dependem dele... e desumaniza essa actividade» 24.
A cooperação de operários em autogestão serve de modelo para uma praxis não
desumanizada. Mas Castoriadis não desenvolve esta actividade no sentido pró-
prio do termo, segundo a via do processamento e da produção técnica de objec-
tos. Tal como a simples actividade reflexa, também a actividade instrumental
constitui um caso limite contrastante ao qual faltam algumas características
essenciais da praxis enquanto auto-actuação. Em ambos os casos a actividade
está reduzida às condutas previsíveis.
Castoriadis (tal como Aristóteles) lê as características da praxis não reduzida
nos exemplos da praxis política, artística, medieval e educativa. Esta tem o seu
fim em si própria e não é possível fazer dela uma organização medianeira racio-
nal. A praxis segue um projecto, o qual, porém, não a precede como a teoria
precede a aplicação mas, enquanto antecipação, pode ser corrigida e aumentada
no decurso da sua realização prática. A praxis remete sempre para uma totali-
dade de acções realizadas em função da vida, acções às quais ela pertence e,
enquanto totalidade, subtrai-se a qualquer aproveitamento objectivante. Final-
mente ainda, a praxis tem em vista promover a autonomia da qual nasceu. «Ü
que se pretende atingir (o desenvolvimento da autonomia) está em estreita relação
com o meio para o atingir (o exercício dessa autonomia) ... É claro que tem de
ter em conta a rede concreta de relações causais que percorrem o seu terreno.
Apesar disso a praxis nunca pode limitar-se a seguir um cálculo quando escolhe
o seu modo de actuar, não porque isto fosse complicado demais mas porque, por
definição, este cálculo não contempla o factor decisivo, a autonomia.» (129)
301
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
302
. : . ,QJ _,r_ .
I -..J ··.··~:-•
irrompe do tempo contínuo e cria algo de completamente novo. Ele crê que só
assim poderá descobrir o cerne essencialmente produtivo na reprodução da
sociedade. O processo social é a produção de formas radicalmente outras, um
trabalho demiúrgico, a criação contínua de novos tipos que encarnam exemplar-
mente de modos sempre diferentes, em resumo : a auto-instituição e a génese
ontológica de «mundos» sempre novos. Nesta concepção faz-se uma ligação
marxista entre o Heidegger da fase tardia e o Fichte primitivo. No lugar do
sujeito que se auto-institui surge agora a sociedade, e aquilo que se institui
representa uma compreensão criativa do mundo, um sentido inovador, um novo
universo de significações. A este sentido revelador do mundo chama Castoriadis
imaginário central. Tal como um magma de significações ele jorra do vulcão
do tempo histórico para as instituições sociais «a História não é possível nem
conciliável sem um imaginário produtivo, criativo ou radical como se revela na
unidade inseparável da acção histórica e na elaboração simultânea de um uni-
verso de significação». (251) O imaginário determina o estilo de vida, o «Volks-
geist» de uma sociedade, de uma época. Castoriadis fala de uma «ocupação
original do mundo e do si-mesmo com um sentido que não foi ditado à
sociedade por factores reais, porque é antes este sentido que confere àqueles
factores reais a sua importância e o seu lugar privilegiado no universo desta
sociedade». (220)
Na verdade, todo o resto depende do modo como Castoriadis correlaciona
a sociedade, enquanto instituição de um mundo, com a praxis intermundana.
O interesse de Castoriadis relaciona-se com um modo de viver consciente de si,
autónomo, que deve possibilitar a verdadeira realização de si e a liberdade em
solidariedade. Ele tem de resolver o problema de conceber a função linguística
de revelar o mundo de modo que ela corresponda a um conceito de praxis de
conteúdo normativo. A minha tese é que Castoriadis não consegue resolver o
problema, e isto porque o seu conceito de sociedade, em termos de ontologia
fundamental, não deixa lugar para uma praxis intersubjectiva que possa ser
atribuída a indivíduos socializados. No fim a praxis social é absorvida na maré
anónima de uma instituição, produzida pelo imaginário, de mundos sempre
novos. Castoriadis acentua com razão a originalidade do dizer e do fazer, do
falar e do fabricar, do «legein» e do «teukien» em oposição a um estreitamento
positivista do conceito de praxis. Em ambas as dimensões a acção humana
relaciona-se com alguma coisa no mundo, com o material simultaneamente
resistente e maleável que se encontra no mundo e carece de interpretação. De
resto Castoriadis dispõe apenas do conceito de mundo objectivo para este «pri-
meiro estrato» no qual a sociedade tem de apoiar-se. É a natureza ou a totali-
dade dos entes que oferece um contra-apoio a qualquer mundo socialmente ins-
tituído. Analogamente o «fazem reduz-se à intervenção com finalidade no
mundo de estados de coisas existentes, e o «dizer» reduz-se à semântica lógica
do discurso que relata factos na medida em que é constitutivo para o circuito
303
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
304
UMA OUTRA SAÍDA DA FILOSOFIA DO SUJEITO
remete não só para a resistência de uma natureza exterior maleável mas também
para as limitações de uma existência histórica, social e corporal. Uma praxis
que coincide com a creatio contínua de novas interpretações do mundo, com
a génese ontológica, projecta, ela mesma, as épocas históricas e os espaços
sociais, abre ela mesma as dimensões de possíveis limitações. Sem dúvida, Cas-
toriadis solicita figuras bem conhecidas do pensamento, da Teogonia ou da
Doutrina da Ciência de Fichte, para opor à actualidade infinita de uma socie-
dade auto-instituinte o limite interior sob a forma da sociedade instituída.
Como no modelo expressivista do espírito que se perde nas suas próprias objec-
tivações, está também inscrito no modelo ontológico da sociedade um ponto de
rotura teórica da auto-alienação. Logo que o fluxo de produção da génese onto-
lógica se interrompe, a sociedade instituída fortalece-se em relação às suas pró-
prias origens: «a alienação ou heteronomia da sociedade é uma auto-alienação
na qual a sociedade oculta o seu próprio ser enquanto auto-instituição e a sua
temporalidade essencial» (608). Esta concepção tem duas consequências
nefastas.
Ao assimilar a praxis intermundana a uma interpretação linguística hiposta-
siante à história do ser, Castoriadis já não pode situar a luta política pela con-
duta de vida autónoma - exactamente aquela praxis emancipatória como pro-
jecto criador, que é o seu ponto de interesse. Pois ou ele tem de chamar, como
Heidegger, os actores para que regressem do seu intermundano e fixamente sub-
jectivo abandono àquilo que não se apresenta disponível, e assim, à heterono-
mia aurática perante o acontecimento original de uma sociedade que se auto-
-institui - isto seria apenas a transformação irónica da Filosofia da Praxis
numa variante do pós-estruturalismo - ou então Castoriadis transfere a auto-
nomia da praxis social, impossível de se salvar intermundanamente, para o pró-
prio acontecer primordial. Nesse caso tem de submeter a um eu absoluto a pro-
dutividade da língua, reveladora do mundo, e voltar de facto à filosofia
especulativa da consciência. Neste caso repete-se, sob outra forma, o problema
da teodiceia: a quem, se não ao próprio demiurgo criador da língua, deveria
ser atribuída a responsabilidade pela queda da sociedade instituída das origens
da sua auto-instituição?
A segunda consequência, muito mais terrena mas não menos desagradável,
é o regresso de um problema que já ocupara em vão a filosofia da consciência,
de Fichte a Husserl: trata-se de uma explanação de intersubjectividade da
praxis social que é forçada a partir da premissa da consciência isolada. Casto-
riadis postula uma segunda corrente do imaginário para o inconsciente indivi-
dual, que constitui o cerne monádico da subjectividade na primeira infância.
Neste processo torna-se evidente que o imaginário, a fantasia que cria imagens
e é dirigida pelos impulsos, é anterior à própria língua como meio construtor
de mundos do imaginário social. Desta produção da fantasia da natureza inte-
rior pré-linguística e familiar ao psicanalista Castoriadis resulta um mundo
305
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
306
t\''t."\íi.Rt~\~J' ~}t:: r -
a:r!ll.r..rot..~ac .,
~·· · '-· L::;· N-..t-"!A
CQL"·l'.Oll.Jl
LJ
I
UMA OUTRA SA ÍDA DA FILOSOFIA DO SUJEITO
I
de interpretação) para o contacto com uma natureza que se encontra no circuito
de funções do agir instrumental. A praxis opera então muito mais à luz da I
razão comunicacional que impõe aos participantes na interacção uma orienta-
ção para exigências de validação tornando assim possível uma acumulação de I
saber que transforma o mundo. É claro que também, no que .respeita ao agir
comunicativo, os contextos dos mundos de vida independentes se devem à fun- I
ção reveladora de uma língua que é partilhada pelos respectivos par.ticipantes.
O sistema linguístico põe também condições de validade das asserções produzi- I
das com o seu auxílio. Mas a relação interna entre o significado e a validade
I
das asserções é, desta vez, simétrica: o sentido de uma asserção não pressupõe
se as condições de validade e as respectivas aspirações de validade, na prática
I
intermundana e de apropriação do mundo, são ou não preenchidas.
A praxis social está constituída linguisticamente, mas também a língua tem
de afirmar-se para além desta praxis e no horizonte já definido por eles
mesmos. Mas quando a revelação do mundo e a praxis de afirmação se pressu-
põem mutuamente, as inovações criadoras de sentido são tão limitadas pelos
processos de aprendizagem e estão ambas de tal modo presas às estruturas
gerais de acção orientadas para a aquisição da compreensão, que a reprodução
de um mundo da vida se faz sempre também graças à produtividade dos seus
membros.
307
XII. O CONTEÚDO NORMATIVO DA MODERNIDADE
309
O DISCURSO FIWSÓFICO DA MODERNIDADE
310
O CONTEÚDO NORMATIVO DA MODERNIDADE
311
O DISCURSO FIWSÓFJCO DA MODERNIDADE
312
O CONTEÚDO NORMATIVO DA MODERNIDADE
II
313
,
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
assume ele mesmo a auto-ejectivação dos sujeitos activos nele inseridos. Ambos
são processos da autocriação; eles produzem-se a partir dos seus próprios pro-
dutos. De modo idêntico a sociedade que surge desta praxis é entendida como
produto das forças produtivas e das relações de produção criadas por ela.
A figura de pensamento da filosofia da praxis obriga a que os momentos, ini-
cialmente distintos, do trabalho e da natureza possam assomar na totalidade de
um processo de reprodução auto-referente. Por fim, é a própria natureza que,
por meio da reprodução do grande sujeito da sociedade e dos sujeitos nela acti-
vos, se reproduz a si mesma. Nem mesmo Marx escapou ao pensamento da
totalidade de Hegel. Isto altera-se se a praxis social não for mais pensada pri-
mordialmente como processo de trabalho.
Com os conceitos que se completam reciprocamente do agir comunica-
cional e do mundo da vida é introduzida uma diferença entre determinações
que - diferentemente da diferença entre trabalho e natureza - não reaparecem
como momentos numa unidade superior. É certo que a reprodução do mundo
da vida se nutre de contribuições do agir comunicacional, enquanto que este
depende por sua vez dos recursos do mundo da vida 2. Este processo circular
não deve ser representado segundo o modelo da autocriação como uma produ-
ção a partir dos seus próprios produtos, nem mesmo associado à auto-reali-
zação. Doutra forma hipostasiaríamos o processo de compreensão mútua -
como acontece na filosofia da praxis com o processo do trabalho - como
acontecer mediatizante e exacerbaríamos o mundo da vida - como a filosofia
da reflexão o faz com o espírito - numa totalidade de um sujeito de nível
superior. A diferença entre mundo da vida e agir comunicacional não é recupe-
rado numa unidade: ela chega mesmo a aprofundar-se na medida em que a
reprodução do mundo da vida já não é apenas conduzida através do medium
do agir orientado para a compreensão mútua, mas imposto às contribuições
interpretativas dos próprios autores. Na mesma medida em que as decisões
sim/não, que comportam a praxis comunicacional do quotidiano, não decorrem
de um acordo normativo imputado, mas emergem dos processos cooperativos
de interpretação dos próprios participantes, dissociam-se as formas concretas
da vida e as estruturas universais da vida. Entre as totalidades de formas de vida
que aparecem no plural existem é certo semelhanças familiares; elas sobre-
põem-se e enredam-se, mas não são, por sua vez, englobadas por uma supertota-
lidade. Pois a variedade e a dispersão forjam-se no decorrer de um processo de
abstracção por meio do qual os conteúdos dos mundos da vida particulares se
destacam cada vez com mais energia das estruturas universais do mundo da vida.
Considerado como recurso, o mundo da vida divide-se de acordo com as
componentes «fornecidas» dos actos de fala, ou seja das suas partes cons-
2 Cf. fig. 23 in J. Habermas, Theorie des kommunikativen Handelns (Teoria do agir comunica-
cional), 1981, Vol. 11, p. 217.
314
'""~ .cr~~\LAGE h.• -~h. -· t.t,J hi;.)-/.jj
ólf:!.i.{JO'rf:?.Ct. C~N'í'QJ!!!
3 No que se segue apoio-me na minha exposição in J. Habermas, op. cit. , 1981, Vol. Il, p. 209.
315
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
uma reprodução harmoniosa de uma forma de vida concreta, tendo pelo con-
trário de ser assegurada cada vez mais por consensos alcançados de modo arris-
cado, logo, por contribuições cooperativas dos agentes comunicacionais.
Isto é certamente uma projecção idealizada, mas não é arbitrária. Pois sobre
este plano de fundo do experimento mental desenham-se linhas factuais de
desenvolvimento dos modernos mundos da vida: a abstracção das estruturas
universais do mundo da vida de cada uma das configurações particulares das
totalidades das formas de vida que só aparecem em número plural. A nível cul-
tural, os núcleos da tradição que asseguram a identidade separam-se dos con-
teúdos concretos com os quais estiveram uma vez estreitamente entrosados nas
imagens míticas do mundo. Eles atrofiam-se até elementos abstractos como
conceitos de mundo, pressupostos de comunicação, procedimentos de argumen-
tação, valores fundamentais abstractos, etc. Ao nível da sociedade cristalizam-se
princípios universais que partem de contextos particulares com os quais, em
sociedades primitivas, estiveram uma vez associados. Nas sociedades modernas
acabam por se impor princípios da ordem legal e moral que são cada vez menos
talhados à medida das formas de vida particulares. Ao nível da personalidade
as estruturas cognitivas adquiridas no processo de socialização dissociam-se
cada vez com mais veemência dos conteúdos do saber cultural com os quais
estiveram inicialmente integrados no «pensamento concreto». Os objectos em
que as competências formais podem ser exercidas tornam-se cada vez mais
variáveis. Se nestas tendências considerarmos apenas o grau de liberdade que
as componentes estruturais do mundo da vida ganham, aparecem como pontos
de fuga os seguintes aspectos: para a cultura, uma situação de revisão constante
de tradições que se tornaram fluidas, i. e., reflexivas; para a sociedade, uma
situação de dependência das ordens legítimas de procedimentos formais, por
fim, discursivos que estabelecem e fundamentam normas; para a personalidade,
um estado de autopilotagem arriscada de uma Eu-Identidade ainda altamente
abstracta. Surgem constrangimentos culturais para a análise crítica de saber
garantido, para a instauração de valores generalizados e normas e para a indivi-
duação auto-regulada (pois as identidades do Eu remetem para uma auto-reali-
zação em projectos de vida autónomos).
Esta separação entre forma e conteúdo recorda de longe as determinações
com grande tradição de uma «praxis racional»: a autoconsciência retoma de
novo na figura de uma cultura tornada reflexiva, a autodeterminação em valo-
res e normas generalizados, a auto-realização na individuação progressiva dos
sujeitos socializados. Mas o acréscimo em reflexividade, em universalismo e em
individuação que os núcleos estruturais do mundo da vida experimentam no
decorrer da sua desdiferenciação já não se adapta à descrição de um acréscimo
nas dimensões da auto-referência de um sujeito. E é apenas sob esta descrição
da filosofia do sujeito que a racionalização social, o desenvolvimento do poten-
cial racional da praxis social, poderia ser representada como auto-reflexão
316
O CONTEÚDO NORMATIVO DA MODERNIDADE
317
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
318
O CONTEÚDO NORMATIVO DA MODERNIDADE
III
319
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
320
O CONTEÚDO NORMATIVO DA MODERNIDADE
321
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
322
O CONTEÚDO NORMATIVO DA MODERNIDADE
rei fi cação concordam cada vez mais com os seus contraentes na descrição; eles
estão cada vez com mais vigor impressionados com a impotência dos sujeitos
perante os processos circulares ininfluenciáveis dos sistemas auto-referenciais.
Já quase não há diferença no facto de aquilo que a um soa como totalidade
negativa o outro celebrar como cristalização, ou em um denunciar como coisifi-
cação o que o outro estabelece como legalidade tecnocraticamente inerente ao
curso das coisas. Esta tendência da diagnose teorético-social conflui desde há
séculos para um ponto que o funcionalismo sistémico transformou na sua
pointe: ele deixa que os próprios sujeitos degenerem em sistemas. Consigna sem
palavras «o fim do indivíduo» que Adorno ainda tinha envolvido de modo
negativo-dialéctico e exortado como destino que o indivíduo infligiu a si
mesmo. N. Luhmann pressupõe pura e simplesmente que as estruturas da inter-
subjectividade se desmembram, que os indivíduos são dissociados do seu
mundo da vida - que sistemas pessoais e sociais forjam mundos circundantes
uns para os outros 7. O estado bárbaro que Marx tinha previsto para o caso
de fracassar a praxis revolucionária é caracterizado por uma subsunção com-
pleta do mundo da vida aos imperativos de um processo de valorização desco-
nectado dos valores de uso e do trabalho concreto. O funcionalismo sistémico
parte impavidamente do principio que este estado já ocorreu e, nomeadamente,
não apenas no domínio de entrada da economia capitalista, mas nas antecâma-
ras de todos os sistemas. o mundo da vida marginalizado só poderia sobreviver
se se transformasse, por seu turno, num subsistema controlado pelos media e
abandonasse a praxis quotidiana como a cobra despe a sua pele.
Na sua versão luhmanniana o funcionalismo sistémico assumé, por um
lado, a herança da filosofia do sujeito: substitui o sujeito auto-referencial pelo
sistema auto-referencial; por outro lado, ele radicaliza a crítica de Nietzsche à
razão: com a referência à totalidade do mundo da vida ele renuncia a todo o
tipo de pretensão da razão 8.
323
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
de ficções, numa forma nova da fundamentação legitimante.» (D. Henrich, «Versuch ueber Fiktion
und Wahrheit» (Ensaio sobre a verdade e a ficção), in Poetik und Hermeneutik (Poética e Herme-
nêutica), Vol. X, Munique, 1984, p. 513).
O crítico total da ideologia, que dá este passo sem reservas, já não pode encarar o seu próprio
empreendimento de modo ingénuo como se este estivesse orientado para a verdade. Ele identifica
agora a sua própria vida consciente com a produtividade e a liberdade de um poder vital subjacente
e gerador de ficções. Neste ponto, porém, ramificam-se os caminhos. A empresa da crítica tem de
optar: alarga-se ao todo de uma razão hostil às ficções que, com enorme vigor incriminante, reprime,
exclui e proscreve tudo aquilo que poderia quebrar o círculo fechado da sua subjectividade auto-refe-
rencial e fazê-la distanciar-se de si mesma. Para esta crítica da razão a validade da verdade só pode
aparecer ainda no domínio do objecto - ela mesma se proporciona a sua certificação a partir do
horizonte das forças vitais que criam ficções, i. e., a partir do horizonte estético de experiência.
A esta esteticização - até Derrida - inconfessa de uma crítica continuada de modo paradoxal,
oferece-se, é certo, unia alternativa. Pode-se continuar o pensamento ao nivel alcançado no segundo
grau da crítica ideológica noutra direcção na medida em que se renuncie apenas à intenção da pró-
pria crítica. Então o interesse pode-se dirigir, em cada caso, de acordo com o modo como os sujeitos
se afirmam na sua produtividade e criatividade originárias, por meio das ficções vitais de um mundo
constituído sempre de modo auto-referencial. Esta investigação serve, por assim dizer, de modo fron-
tal, a <<dimensão de um processo», descoberto pela segunda reflexão, «que é ele próprio apenas fac-
tua!, mas que tem a propriedade de necessitar para a sua continuação da ilusão do discernimento.»
(D. Henrich, ibid., p. 514). O objecto já não é a razão que denega a ficção, mas a poiesis da auto-
conservação potenciadora da vida dos sujeitos que vivem com e das suas ficções - ficções que do
ponto de vista da função só podem ser aprovadas.
Isto significa ao mesmo tempo uma afirmação funcion alista da validade da verdade, validade
esta que é constitutiva para a reprodução da vida sensória em geral. É precisamente esta validade
da verdade - não mais, mas também não menos - relativa à perspectiva do conhecimento de cada
sujeito, que tem de utilizar a própria teoria especializada num tal conhecimento da reprodução da
vida sensível. A teoria tem ela mesma de se entender como produto de uma conservação da existên-
cia, que se autopotencia, de um sujeito que se reproduz apenas em virtude de um mundo ficcional
para ele válido. O perspectivismo perde uma parte do seu efeito tenebroso se, neste caso, não pensar-
mos num sujeito qualquer, mas num sujeito do conhecimento, altamente especializado, virado para
o autoconhecimento. Mais propriamente, a isto corresponde de modo aproximado a auto-aplicação
da teoria dos sistemas com a qual a teoria da sociedade, enquanto esforço de um subsistema da
sociedade que depende da redução da complexidade, se relativiza. É este passo que é dado por
Luhmann.
Luhmann utiliza os conceitos fundamentais da cibernética e da teoria geral dos sistemas, testados
na biologia, para combinar de modo original as ideias de Nietzsche e Kant. As operações de constitui-
ção do mundo de um sujeito transcendental que perdeu o seu estatuto de ser exterior ao mundo e que
desceu ao nível dos sujeitos empíricos, são reconceptualizados como operações de um sistema que
opera com sentido e de modo auto-referencial e que é capaz da representação interna do seu meio cir-
cundante. A produtividade criadora de ficções da autoconservação, potenciadora da vida, de sujeitos
para os quais a diferença entre verdade e ilusão perdeu o sentido, é conceptualizada como conservação
da existência, potenciadora da sua própria complexidade e superadora da complexidade do meio cir-
cundante, de um sistema que utiliza o sentido. (Cf. infra, o excurso sobre Luhmann, pp. 335 e segs.).
324
O CONTEÚDO N ORMATIVO DA MODERNIDADE
elaboram o sentido 9. Uma vez que, ao mesmo tempo que abandona o con-
ceito de razão, também abandona a intenção da crítica à razão, ele pode orien-
tar para o descritivo todas as afirmações que Foucault ainda formulava de
modo denunciador. Neste sentido Luhmann conduz ao extremo a afirmação
neoconservadora da m odernidade social, por conseguinte também a um nível
da reflexão onde tudo o que os defensores da pós-modernidade poderiam ale-
gar, já foi ponderado anteriormente sem acusação e de modo mais diferenciado.
Acresce que o funcionalismo sistémico não se expõe à objecção de ele não
poder prestar contas que vão além do seu estatuto: ele coloca-se sem hesitação
no sistema da ciência e aparece como teoria com pretensão «universal na sua
especialidade». !ao-pouco se poderia acusá-lo de uma tendência para o nivela-
mento. A teoria de l.nhmann, que é hoje em dia incomparável no que se refere
à força de conceptualização, à imaginação teórica e capacidade de elaboração,
desperta em todo o caso dúvidas sobre se o preço para o seu «ganho em abs-
tracção» não seria demasiado elevado. O infatigável dilacerador da reconcep-
tualização elimina justamente o mundo da vida «subcomplexo» como residc!O
indigesto - logo, precisamente o domínio de fenómenos que atrai o in:r.eresse
de uma teoria da sociedade que ainda não quebrou todas as pontes que a ligpm
a experiências de crise pré-científicas.
No que concerne à economia capitalista, Marx não tinha distinguido entre
o novo nível da diferenciação sistémica que se aperfeiçoou num sistema econó-
mico controlado pelos media e as formas da sua institucionalização característi-
cas de cada classe. Para ele a supressão das estruturas de classe e a redução do
sentido especificamente sistémico de domínios de interacção funcionalmente
des-diferenciados e coisificados era uma e a mesma síndroma. Luhmann incorre
num erro complementar. Face ao novo nível da diferenciação sistémica ele
ignora que os media de controlo, como o dinheiro e o poder, por via dos quais
os sistemas funcionais se demarcam do mundo da vida, têm de ser, por sua vez,
institucionalizados no mundo da vida. É por isso que de início não são visíveis
os efeitos de distribuição, específicos de cada classe, da ancoragem dos media
a normas de propriedade e de constituição. A «inclusão», no sentido do acesso
igualmente legítimo de cada um a todos os sistemas funcionais, parece assim
ser uma consequência necessária no sistema do processo de diferenciação 10.
Enquanto que para Marx, após uma revolução bem sucedida, os contextos fun-
cionais sistem~amente autonomizados irão um dia reduzir-se a nada, para Luh-
mann o mundo da vida na sociedade diferenciada funcionalmente da moderni-
dade já perdeu todo o significado. De ambas as perspectivas desaparece aquela
interpenetração e aquela oposição de imperativos do sistema e do mundo da
vida que explica o carácter ambíguo da modernização social.
9 A. Honneth, op. cit., 1985, pp. 214 e segs., chamou-me a atenção para este facto.
10 N. Luhmann, Politische Theorie im Woh/fahrtsstaat (Teoria po/ftica no Estado Providência),
Munique, 1981, pp. 25 e segs.
325
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
326
O CONTEÚDO NORMATIVO DA MODERNIDADE
IV
327
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
Uma tal acção sobre si mesma requer, por um lado, um centro reflexivo
onde a sociedade forje, num processo de autocompreensão, um saber sobre si
mesma, por outro lado, um sistema executivo que pode agir na qualidade de
parte pelo todo e actuar sobre o todo. Poderão as sociedades modernas preen-
cher estas duas condições? A teoria dos sistemas projecta a imagem destas
sociedades como sendo sociedades acêntricas, «sem órgãos centrais» 13.
Segundo ela o mundo da vida desfez-se sem deixar resto em sistemas funcionais
parciais como o são a economia, o Estado, a educação, a ciência, etc. Estas
mónadas sistémicas, que substituíram as relações intersubjectivas por contextos
funcionais, comportam-se simetricamente umas para com as outras sem que o
seu equilíbrio precário pudesse ser ainda regulado de modo socioglobal. Elas
têm de se contrabalançar reciprocamente porque nenhuma das funções sociais
globais que nelas decorrem pode alcançar um primado socioglobal. Nenhum
dos sistemas parciais poderia alcançar o cume de uma hierarquia e representar
o todo como nas sociedades estratificadas o imp~rador representava o seu impé-
rio. As sociedades modernas já não dispõem de uma instância central de auto-
-reflexão e de controlo.
Do ponto de vista da teoria dos sistemas apenas os sistemas parciais, mais
precisamente apenas em relação às suas funções próprias, desenvolvem algo
como uma autoconsciência. Aí o todo reflecte-se apenas da perspectiva do sis-
tema parcial como sendo o seu respectivo mundo social circundante: «Deste
modo, um consenso que funcione a nível da sociedade na sua globalidade sobre
o que é e o que tem validade torna-se difícil e, de facto, impossível; o que for
utilizado como consenso funciona na forma de um provisorium reconhecido.
A par disso existem as sínteses funcionalmente específicas e propriamente pro-
dutivas da realidade aos níveis de complexidade que sistemas funcionais indivi-
duais podem comportar em cada momento, mas que já não podem ser adicio-
nadas num panorama do mundo no sentido de uma 'congregatio corporum, de
uma universitas rerum'.» 14 O «provisorium» é explicado por Luhmann numa
nota de rodapé do seguinte modo: «Foi uma decisão característica da filosofia
husserliana, com consequências colossais para as discussões sociológicas, confe-
rir a este provisorium, como o título de [mundo da vida], o estatuto de uma
base de partida com validade de última instância, de um a priori concreto.» É
sociologicamente indefensável postular para o mundo da vida uma espécie de
«primazia ontológica».
A herança do apriorismo husserliano poderá significar um fardo para
diferentes géneros de fenomenologia social 15; mas das hipotecas da filosofia
328
O CONTEÚDO NORMATIVO DA MODERNIDADE
329
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
330
O CONTEÚDO NORMATIVO DA MODERNIDADE
tinha de ser introduzida em prol da existência e do mundo da vida dos que tra-
balham de modo dependente 16. Que o Estado activo intervém não só na circu-
lação económica dos seus cidadãos, mas também nas circunstâncias da vida dos
seus cidadãos foi o que viram os advogados do Estado social como aproblemá-
tico - o objectivo de reformar as condições de vida dos cidadãos por meio das
relações reformadas de trabalho e de ocupação. Isso tinha por base a ideia da
tradição democrática de que a sociedade poderia ter influência sobre si mesma
com o meio neutral do poder político-administrativo. Precisamente esta expec-
tativa foi desiludida.
Entretanto, uma rede cada vez mais densa de normas jurídicas, de burocra-
cias estatais e para-estatais, cobrem o quotidiano dos clientes potenciais e fac-
tuais. Discussões alargadas sobre a judicialização e burocratização em geral,
sobre os efeitos contraproducentes da política do Estado social em particular,
sobre a profissionalização e cientifização dos serviços sociais, têm dirigido a
atenção para factos que tornam nítida uma coisa: os meios jurídico-
-administrativos da transformação de programas do Estado social não apresen-
tam nenhum medium passivo, como que ausente de propriedades. Ao invés, a
eles está ligada uma praxis de singularização dos factos, da normalização e do
controlo, cujo poder reificante e subjectivante Foucault registou até às ramifica-
ções mais capilares da comunicação quotidiana. As transformações de um
mundo da vida regulamentado, desmembrado, controlado e tutelado, são de
certo mais sublimes que as formas manifestas da exploração material e da pau-
perização; mas os conflitos sociais impostos aos aspectos psíquico e corpóreo
e interiorizados não são por isso menos destrutivos.
Hoje vê-se a contradição que é inerente ao projecto do Estado social como
tal. O seu objectivo substancial era o franqueamento de formas de vida igualitá-
rias que, ao mesmo tempo, deveriam abrir espaços para a auto-realização indi-
vidual e a espontaneidade; mas com a criação de novas formas de vida foi exi-
gido demasiado do medium do poder. Após o Estado se ter desdiferenciado
num entre outros sistemas funcionais controlados pelos media ele não pode ser
encarado mais como instância central de controlo na qual a sociedade concen-
tra as suas capacidades de auto-organização. Face aos processos de formação
da opinião e da vontade numa esfera pública geral - difusos, mas ainda focali-
zados na globalidade da sociedade - aparece um sistema funcional que se tor-
nou autónomo, que ultrapassa os horizontes do mundo da vida e que se fecha
às perspectivas socioglobais e que, por seu turno, só pode percepcionar a socie-
dade inteira da perspectiva de um sistema parcial.
Da desilusão histórica sobre um projecto burocraticamente coagulado do
Estado social surge uma nova visão como que estereoscopicamente aperfei-
16 No que se segue apoio-me no ensaio do mesmo título in J. Habermas, Die Neue Unueber-
sichtlichkeit (A nova opacidade), Frankfurt, 1985.
331
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
332
O CONTEÚDO NORMATIVO DA MODERNIDADE
17 As reflexões sobre uma «teoria social da regulação» de H. Willke, Entzauberung des Staates
(Desencantamento do Estado), Koenigstein, 1983, pp. 129 e segs., são interessantes, principalmente
por o autor proceder de modo suficientemente inconsequente para analisar a influência recíproca de
sistemas autopoiéticos segundo o modelo da compreensão intersubjectiva.
333
~~~--------------------------------------~~~~~----~----------------------------~
334
O CONTEÚDO NORMATIVO DA MODERNIDADE
335
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
da teoria, que ocorreu durante décadas, de modo que o projecto se torna visível
na sua totalidade. Em todo o caso, pensa-se perceber melhor o que nela se
passa. O empreendimento de Luhmann procura menos um vínculo à tradição
especializada da teoria social desenvolvida desde Comte até Parsons do que à
história dos problemas da filosofia da consciência desde Kant até Hegel. Esta
teoria dos sistemas não conduz a sociologia pela senda segura da ciência, ela
apresenta-se antes como sucessora de uma filosofia que se dispensou. Ela quer
herdar conceitos fundamentais e formulações de problemas da filosofia do
sujeito e, ao mesmo tempo, ultrapassar a capacidade de resolução de problemas
daquela. De modo que ela procede a uma mudança de perspectiva que torna
inútil a autocrítica de uma modernidade em luta consigo mesma. A teoria sisté-
mica da sociedade, aplicada a si mesma, não pode deixar de ter uma atitude
afirmativa face ao incremento em complexidade das sociedades modernas.
A mim interessa-me agora saber se com esta reorientação da herança da filoso-
fia do sujeito, efectuada de modo distanciado, os problemas característicos da
herança transitam para a teoria dos sistemas, nomeadamente aqueles que desde
a morte de Hegel provocaram a dúvida, acima explicada, acerca da razão cen-
trada no sujeito como princípio da modernidade. 20
zo Tendo sido já várias vezes sujeito a esta prova, sei, naturalmente, que não se faz justiça à
riqueza de uma teoria quando a abordamos rigorosamente segundo um único aspecto; porém, é apenas
segundo este aspecto que ela tem interesse no nosso contexto.
336
O CONTEÚDO NORMATIVO DA MODERNIDADE
21 «Todo o sistema auto-referencial só tem o contacto com o meio circundante que ele próprio
se proporciona, não tendo qualquer meio circundante em si.>> (N. Luhmann, 1984, p. 146).
337
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
338
O CONTEÚDO NORMATIVO DA MODERNIDADE
23 Neste aspecto Luhmann segue Nietzsche e não a filosofia do sujeito, cf. supra, p. 323, nota
de rodapé n.0 8.
339
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
340
O CONTEÚDO NORMATIVO DA MODERNIDADE
341
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
de maneira indolor. Mas a teoria dos sistemas tinha de, mesmo se se pudesse
elevar tais processos a fórmulas problemáticas, contestar às sociedades moder-
nas a possibilidade de uma percepção da crise que não fosse logo desvitalizada
na perspectiva de um sistema parcial especial.
Se sociedades desdiferenciadas funcionalmente não dispuserem de identi-
dade também não podem constituir nenhuma identidade racional: «Racionali-
dade social requereria que os problemas do meio circundante desencadeados
pela sociedade, na medida em que voltam a afectar a sociedade, fossem reflecti-
dos no sistema social, i. e., introduzidos no processo social de comunicação.
Isto pode acontecer, em extensão limitada, em todo o sistema funcional -
assim, quando os médicos são confrontados com as doenças que eles próprios
provocaram. Mais típico é, porém, que um sistema funcional sobrecarregue o
meio circundante de outros sistemas funcionais. Principalmente, o que faz falta
é um subsistema social para a percepção das interdependências do meio circun-
dante. Tal subsistema não pode existir a par da diferenciação social; pois isso
significaria que a própria sociedade ocorre outra vez na sociedade. O princípio
de diferenciação torna, ao mesmo tempo, a questão da racionalidade mais
urgente- e mais insolúvel.» (645) Não sem ironia, Luhmann recusa as respecti-
vas tentativas de resolução da filosofia do sujeito: «Üs espíritos simples querem
fazer intervir aqui a ética. Melhor não será o Estado de Hegel. E tão-pouco
a esperança marxista da revolução.» (599)
Acima (na lição xu), explicámos as razões que falam contra a construção
de uma consciência socioglobal a partir da filosofia do sujeito. Se os indivíduos
são inseridos e submetidos como partes no sujeito de nível superior da socie-
dade enquanto todo, surge um jogo de resultado nulo no qual os fenómenos
modernos, como os crescentes espaços de manobra e de movimento e os cres-
centes níveis de liberdade dos indivíduos, não podem ser acolhidos correcta-
mente. Dificuldades são provocadas também por uma consciência socioglobal
que é representada como a auto-reflexão de um macro-sujeito. Em sociedades
diferenciadas ocorre um conhecimento exigente, orientado para a totalidade da
sociedade, se necessário em sistemas de saber especializados, mas não no centro
da sociedade na qualidade de um saber da sociedade inteira sobre si mesma.
Em todo o caso, encontrámos uma estratégia conceptual alternativa que nos
salvaguarda de ter de abandonar a concepção de uma auto-representação da
sociedade em geral. Esferas públicas podem ser entendidas como intersubjecti-
vidades de nível superior. Nelas podem articular-se autodefinições colectivas
que forjem a identidade. E na esfera pública superiormente agregada também
se pode forjar uma consciência socioglobal. Esta não precisa então de satisfazer
a exigência de precisão que a filosofia do sujeito tem de colocar à autoconsciên-
cia. Não é a filosofia nem a teoria social o local onde se concentra o saber da
sociedade acerca de si mesma.
É por meio desta consciência comum, por muito difusa e em si controversa
342
O CONTEÚDO NORMATIVO DA MODERNIDADE
que seja, que a sociedade global pode ganhar, de modo normativo, distancia-
mento de si própria e reagir a percepções de crise, por conseguinte, conseguir
precisamente o que Luhmann lhe recusa como possibilidade pertinente: «Ü que
significaria se a sociedade moderna se questionasse sobre a sua racionalidade»
é, para Luhmann, óbvio; cada passo da reflexão tornaria «a questão da racio-
nalidade ao mesmo tempo mais urgente e mais insolúvel». Por isso, ela não
deveria ser colocada: «Ü perfil do problema da racionalidade não nos diz que
a sociedade teria de resolver problemas deste formato para garantir a sua sobre-
vivência. Para a sobrevivência é suficiente a evolução.» (654)
Os processos de formação da opinião e da vontade, agregados a nível supe-
rior e condensados publicamente, mas próximos do mundo da vida, deixam
transparecer um entrosamento estreito entre socialização e individuação, entre
identidade do eu e identidade de grupo. Luhmann, que não tem à disposição
a concepção da intersubjectividade gerada por meio da linguagem, só pode
imaginar uma tal engrenagem de acordo com o modelo de inclusão das partes
contidas no todo. Esta figura de pensamento considera ele «humanista» 24 e
dela se distancia. É justamente a proximidade da filosofia do sujeito que incita,
como mostra o exemplo de Parsons, a imitar simplesmente o modelo clássico
e a instituir o sistema social (em Parsons: o sistema da acção) como um todo
que contém os sistemas físicos na qualidade de subsistemas. Assim, as falhas
assinaladas com razão em relação à filosofia do sujeito seriam transferidas para
a teoria dos sistemas. Por isso, Luhmann decide-se por uma solução de cujo
alcance teórico-estratégico ele tem consciência: «Se se encarar o homem como
parte do meio circundante da sociedade (em vez de parte da própria sociedade)
são alteradas todas as premissas do questionamento tradicional, bem assim
como as premissas do humanismo clássico.» (288) E, inversamente: «Quem se
atém a esta(s) premissa(s) e procura representar (com elas) um conteúdo huma-
nista tem, por isso, de aparecer como adversário da aspiração universalista da
teoria dos sistemas.» 25 (92)
De facto, este anti-humanismo metódico não se dirige contra uma figura de
pensamento falhada por incluir partes concretistas [Konkretistische] no todo,
mas contra uma «intenção humanista» que também pudesse passar sem o con-
cretismo do todo e das suas partes; refiro-me à «intenção» de conceptualizar
a sociedade moderna de modo a que para ale a possibilidade de, nesse todo,
ganhar distanciamento de si própria de modo normativo e de, nos processos de
comunicação de nível superior da esfera pública, elaborar percepções de crise,
24 Luhmann acentua «que para a tradição humanista o homem se encontra dentro e não fora
da ordem social. Ele passava por parte integrante da ordem social, por elemento da própria socie-
dade. Se era denominado indivíduo era porque ele era um elemento último que não podia ser divi-
dido». (Luhmann, 1984, p. 286).
25 Afecções de um anti-humanismo normativo, como as que marcaram a obra de Gehlen, estão
343
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
não seja prejudicada logo de modo negativo pela escolha dos conceitos funda-
mentais. O constructo de uma esfera pública que pudesse preencher esta fun-
ção, como é óbvio, já não tem lugar a partir do momento que o agir comunica-
cional e o mundo da vida partilhado intersubjectivamente deslizem entre tipos
de sistemas que, como os sistemas psíquico e social, formam uns para os outros
meios circundantes e mantém relações recíprocas de carácter mais exterior.
11
O fluxo das actas entre as repartições ministeriais, por um lado, e por outro,
a consciência de um Robinson dentro de uma cápsula como que numa mónada,
fornecem as representações directoras para a desconexão conceptual do sistema
social e psíquico, onde um deve basear-se apenas na comunicação e o outro
apenas na consciência 26.
Nesta separação abstracta do sistema psíquico e do sistema social afirma-se
igualmente uma herança da filosofia do sujeito: a relação sujeito-objecto ofe-
rece tão poucas ligações conceptuais à intersubjectividade genuinamente linguís-
tica do acordo e do sentido, partilhado de modo comunicacional, como a rela-
ção sistema/ mundo-circundante. Todavia, Luhmann oscila entre a construção
da intersubjectividade partindo do entrosamento de perspectivas individuais
dependentes dos sujeitos - uma transformação teorético-evolutiva das soluções
da filosofia do sujeito propostas por Fichte e Husserl - e, por outro lado, da
idêntica origem evolucionária da consciência individual e do sistema auto-
-suificiente de perspectivas. 27.
26 Luhmann, 1984, p. 142: «0 sentido pode inserir-se numa sequência que se prende com o sen-
timento vital do corpo e que, posteriormente, aparece como consciência. Mas o sentido também se
pode inserir numa sequência que envolve o entender de outros e que, assim se manifesta como comu-
nicação.»
27 Em várias passagens, Luhmann parte da premissa de que, na série evolucionária, os sistemas
psíquicos ocupam uma posição entre os sistemas orgânicos e os sociais e que, por conseguinte, são
geneticamente «anteriores» aos sistemas sociais. São apenas os sistemas psíquicos que dispõem de
consciência, e as pessoas como portadoras de consciência são subjacentes aps sistemas (pp. 244 e
segs.). Esta imagem aparece, particularmente, no contexto da reflexão que respeita à autocatálise dos
sistemas sociais. Se a ordem social (segundo Lewis) é estabelecida quando um dos autores, concebido
de modo solipsista, quebra, por meio da autofixação unilateral, o círculo vicioso da contingência
dupla, têm de ser postuladas pessoas ou <<portadores de consciência» que, antes de toda a participa-
ção em sistemas sociais, são capazes de enunciar juízos e ter decisões - é só a partir desta <<reali-
dade físico-químico-orgânico-psíquica» que se destaca então o sistema social emergente (pp. 170 e
segs.). De outro modo, se ambos os tipos de sistemas se têm de distinguir face aos sistemas orgâni-
cos, em igual medida, pela conquista emergente da transformação do sentido, eles não podem estar
em ramificações diferentes da escada evolutiva. Assim, noutras passagens (pp. 141 e segs.), Luhmann
fala de uma co-evolução, de uma formação co-originária de sistemas transformadores de sentido que
se pressupõem reciprocamente (no seu meio circundante) e que se apoiam, por um lado, na consciên-
cia e, por outro, na comunicação.
344
O CONTEÚDO NORMATIVO DA MODERNIDADE
28 Em aberto permanece, obviamente, o modo como o sentido pré-linguístico pode ser colocado
antes da estrutura intencional da consciência.
345
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
346
O CONTEÚDO NORMATIVO DA MODERNIDADE
347
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
348
O CONTEÚDO NORMATIVO DA MODERNIDADE
349
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
350
.6.. * o • 11 • * ~
«Quem quer que se interess~ pela filosofia eu-
ropeia contemporânea tem de ler este livro,
que* é tão estim lante11ente oi é : o qu nto
0 1
1storicamenfe sofisticado.•• . ·. ·
Richard Rorty -
f!
ecO ~iscur. o Fild;ófico ' da- M Ôdernilfade . um · -U ·
dos livros mais apaixonados e interventores· de
o
* #
Haberinas.»
ichard J~Bernstei 8 - I
• })
< ' -
• - +
\
o
o
*
o •
I -
o_ o
*
.-,-
* *
-~' * •