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4º Encontro de Psicólogos do Tribunal de

Justiça do Estado do
Rio de Janeiro

ORGANIZAÇÃO:
Divisão de Psicologia da 1ª Vara da Infância e da
Juventude
Comarca da Capital

APOIO:
EMERJ - Escola de Magistratura
do Estado do Rio de Janeiro
Encontro de Psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado do
Rio de Janeiro, 4., Rio de Janeiro, nov.23, 2003 Divisão
de Psicologia da 1ª Vara da Infância e da Juventude da
Capital org – Rio de Janeiro: DIAG – Divisão de Artes
Gráficas do TJERJ, 2004.p

1. Psicólogos Jurídicos – Ação, atuação. 2. Psicólogos


Jurídicos – Congressos, conferências, etc – Rio de Janeiro. 3;
Bioética. 4. Justiça e Ética, I. Título.

CDD340.730638154

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AGRADECIMENTOS
Gostaríamos de agradecer o apoio e estímulo dos
juízes da 1ª Vara da Infância e Juventude, Dr Siro Darlan de
Oliveira e Dr Leonardo de Castro Gomes, sem os quais não
seria possível a realização deste evento, assim como a
contribuição de todos os setores da 1ª Vara da Infância e
Juventude.
Agradecemos o apoio a imprescindível parceria da
EMERJ na realização do Encontro e, particularmente, na
publicação deste livro.
Outrossim, ressaltamos nossos agradecimentos à
Corregedoria Geral de Justiça e ao Tribunal de Justiça do
Estado do Rio de Janeiro, que têm acolhido a realização dos
Encontros de Psicólogos Jurídicos e possibilitaram a
publicação deste livro através da Divisão de Artes Gráficas.

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Comissão Organizadora
Daniela Bloris
Mônicca de Carvalho Moreira
Patrícia Glycerio Rodrigues Pinho

Comissão Científica
José César Coimbra
José Eduardo Menescal Saraiva

Divisão de Psicologia da 1ª VIJ da Comarca


da Capital

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Sumário

Apresentação........................................ 06
1. Conferência: Entre a Lei e a Justiça, a Ética?
Dr. Olinto Antônio Pegoraro . ............. 09

2. Mesa Redonda: Bioética e discurso científico: que


lugar para a lei?

Drª Heloísa Helena Barboza ............... 30


Drª Madalena Ramirez Sapucaia ........ 54

3. Mesa Redonda: Do parecer e do Julgamento: De


que fala o psicólogo no universo jurídico?
Drª Damiana de Oliveira ....................... 77
Drª Érika Figueiredo Reis ....................105
Drª Sílvia G. Felgueiras de Freitas ..... 135

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Apresentação

No momento em que nos encontramos no centro da


discussão sobre a possibilidade de aborto de fetos
anencéfalos; em que assistimos a manifestações
expressivas em revistas e jornais do Brasil e do exterior
acerca das possibilidades e implicações referentes à
compra de óvulos, descarte de embriões, uso de células-
tronco e sexagem, constatamos o quanto as discussões de
nosso 4o Encontro foram oportunas.
Podemos recuperá-las agora através desta
publicação e lançar um olhar sobre o instante em que a
história esboça o seu momento de criação: não somos
todos nós responsáveis por essas discussões em curso?
Para além de uma aguerrida defesa de opiniões, como
levar ao limite as possibilidades de construção do espaço
público, onde as idéias de sociedade e comunidade
adquiririam prevalência, ultrapassando o cálculo estrito de
eventuais ganhos pessoais? E mais: qual o lugar do
judiciário nesse dispositivo, em que cada vez mais se torna
difuso o limite entre a esfera pública e o mundo privado?
No 4o Encontro, foi possível seguir as questões
acima nas contribuições daqueles que estiveram em nossa
linha de frente: Olinto Pegoraro nos apresentou uma
instigante articulação entre Lei, Justiça e Ética, extraindo
conseqüências ricas em desdobramentos para todos nós,
as quais tiveram o valor de uma grande introdução aos
debates que se sucederam; Heloísa Helena Barbosa e
Madalena Ramirez Sapucaia centraram-se no tema
‘Bioética’ e através de suas apresentações fomos lançados
a uma interrogação sobre os limites e valores da própria
noção, assim como dos modos de interlocução entre
discurso científico e lei ante o desamparo essencial que
marca o sujeito; por fim, os psicólogos da Corregedoria-
Geral da Justiça do Rio de Janeiro - Damiana de Oliveira,

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Érika Figueiredo e Sílvia Gomes Felgueiras - avançaram na
interrogação sobre o que caraterizaria o nosso trabalho
frente ao julgamento legal, ato próprio ao juiz. Em outras
palavras, o tema ‘Ética’ é recuperado no questionamento
acerca do que seria, de fato, a linha de força do trabalho
do psicólogo jurídico.
É fácil notar que de um ano a outro o cerne de
nossas discussões permanece. Não por acaso o 5o Encontro
coloca em destaque justamente o tema das relações entre
as esferas pública e privada. Com ele reiteramos o convite
à participação em nossos Encontros e a aposta de que
neles novas possibilidades de pensamento e ação possam
ser esboçados. Bem-vindos, mais uma vez.

DiPsi – 1ª Vara da Infância e Juventude

Ética, justiça e lei


Olinto A . Pegoraro

Em sentido amplo, os três termos, ética, justiça e


lei, convergem e postulam-se mutuamente a ponto de não
existir um sem o outro. Tratá-los numa única conferência é
praticamente impossível dada a importância e a grande
abrangência de cada um. Por isso, coloco primeiro um
sentido geral de sua convergência e depois me ocuparei
especialmente da ética.
A lei, que se opõe ao arbítrio subjetivista, é
convencional; uma convenção feita por pessoas delegadas
como, por exemplo, o parlamento de qualquer país
democrático. A lei obriga a fazer certas ações e impõe
penas às transgressões. Outra dimensão da lei é que ela
oficializa a tradição, o costume de um povo. Fixa
comportamentos sociais que passam a ser protegidos (ou
proibidos) por ela.
A justiça é mais profunda, é uma qualidade humana,
é uma virtude, uma inclinação que nos orienta para a
convivência com os outros. Para Aristóteles, a justiça é a
única virtude que só se pratica em relação aos outros. Eu
sou justo se faço ações justas em relação aos outros. Por

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isso ela é a virtude da cidadania e a primeira virtude das
instituições sociais, no dizer de John Ralws. Portanto a
justiça conjuga, une o senso moral das pessoas e das
instituições públicas de uma sociedade.
As duas, lei e justiça, emergem de uma radicalidade
mais profunda, a ética. A ética nasce exatamente da
relação viva entre as pessoas, as relações entre eu e tu.
Esta se traduz em leis e em instituições justas. Então, lei,
justiça e ética não só convergem mas são um só tema, o
tema do ser humano virtuoso e vivendo com os outros e
para os outros seres humanos em instituições
juridicamente justas. Então, nesta conferência, me
concentrarei no ponto de vista da ética, donde arrancam a
justiça e a lei.

A ) a urgência ética hoje


Desde Aristóteles e Platão, a ética trata somente do
agir humano em relação a si próprio e aos outros. Duas são
as vertentes principais que formam o núcleo central da
ética. Primeiramente trata da formação do caráter do
indivíduo pela prática das virtudes como a coragem e a
benevolência; é sempre o indivíduo que se torna corajoso
pela prática de ações de coragem. Em segundo lugar a
ética trata da formação do cidadão pela prática política.
Bom cidadão é aquele que participa das decisões públicas
e pratica a justiça. A justiça é a virtude da cidadania; é
síntese de todas as outras virtudes. O indivíduo ético é
aquele que pratica a justiça no convívio social. Ou seja, o
núcleo central da ética visa a formação do indivíduo de
caráter para a prática da cidadania.
Este foi também o horizonte da ética medieval
profundamente marcada pelo cristianismo que a
subordinou aos preceitos de fé. Grandes pensadores
sustentavam que sem a fé, a ética ficaria sem
fundamentos. Caberá a Kant restituir à ética a sua
autonomia, como no tempo dos gregos, quando ainda não
existia a religião cristã. Segundo Kant, a ética sustenta-se
em bases exclusivamente racionais: no exercício da razão

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e da liberdade. Ela se submete exclusivamente ao
imperativo categórico que é um imperativo da auto-
limitação da liberdade.
Portanto, em todos os tempos, a ética só se ocupou
da orientação dos comportamentos e das ações humanas
tendo em vista o bem e a felicidade do homem. Nunca a
ética tratou do agir científico no mundo das coisas e dos
artefatos da técnica. Duas eram as atitudes a este
respeito: ou a ética ignorava o mundo da técnica e da
ciência ou o subordinava a seus ditames. Exemplo
consumado desta atitude é a figura de Galileu que foi
coagido a confessar o “erro” de suas descobertas
científicas em nome da ética e da religião.
Por isso, durante séculos, ética e ciência se
hostilizaram. A ciência manteve-se distante da ética. Mas
no último século e meio, especialmente nos últimos
cinqüenta anos, a ciência passou a agir poderosamente
sobre a vida do ser humano, sobre a vida cotidiana pessoal
e social. Por exemplo, os avanços da biologia introduziram
profundas modificações sobre a maneira da reprodução
tornando possível a concepção in vitro e por clonagem.
Estes avanços colocam para a ética questões nunca
imaginadas em toda a história. Agora não é a ética clássica
que interroga a ciência, mas esta a aquela.
Mas a ciência não tem resposta para todos os
problemas que levanta e nem a ética pode ditar regras à
ciência; a ciência não é um sistema pronto, nem a ética é
um saber soberano que paira acima dos outros saberes.
Mas ciência e ética são sistemas abertos e em diálogo. A
ciência é aliada do homem. Ajuda-o a libertar-se das
enfermidades e a viver mais longamente. Por outro lado, a
ética confere à ciência uma feição humana; é ciência para
o homem e para todas as formas de vida. A ciência e a
técnica são produtos da inteligência como o são as
cadeiras, mesas, os aviões, a poesia e a música. O produto
científico assume uma feição ética quando o homem o usa
em benefício da vida; torna-se um produto a-ético quando
usado para destruir a vida como aconteceu com a energia
atômica. Portanto, ciência e ética já não se hostilizam, mas

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convivem no diálogo pelo qual se enriquecem mutuamente
e constróem conjuntamente a vida.
Para que esta convivência seja real é preciso que
cada campo reconheça seus limites. Por exemplo, a
biogenética explica que o homem é o conjunto de seus
gens. Mas reconhecerá que ele não é simplesmente seu
código genético decifrado. O homem quer ser mais que
isto. É deste “mais” que trata a ética; ela dirá que o
homem, além de ser biologicamente um conjunto de genes
é também liberdade e criatividade capaz de inventar
sistemas filosóficos, políticos e religiosos. Disto não sabe a
ciência.
Se fossemos apenas nosso código genético, então
seríamos determinados a agir sempre do mesmo modo
como acontece com as outras espécies de vida, quando
deixadas na sua espontaneidade. Pelo contrário, a
liberdade nos leva a alterar os comportamentos e a fazer
ações diferentes daquelas sugeridas pela nossa estrutura
biológica. Por exemplo, há pessoas que biologicamente
tendem a praticar suicídio; a liberdade e a ética e o
ambiente cultural podem reverter esta tendência em amor
à vida posta a serviço de um projeto.
Portanto, a ciência e a técnica podem conviver
harmoniosamente com a ética e olhar para a mesma
direção que é a construção da vida e a proteção da
natureza.
Porém há uma condição. Para que a ética seja capaz
deste diálogo precisa abandonar o antigo fixismo
doutrinário e flexibilizar suas posições. Disto trataremos
abaixo.

B) Uma ética flexível


A flexibilização da ética consiste em repensá-la à luz
da filosofia contemporânea, da psicologia, da política, da
técnica ; ciências estas que promovem profundas
alterações nos comportamentos humanos. A ética é
desafiada a encontrar formas de interpretação que aliem a
dignidade da vida com estes progressos. Começaremos por
dizer o que a ética não é para , depois, afirmar o que é
uma ética flexível.

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Em primeiro lugar a ética não é um código de
prescrições e proibições, ou seja, a ético do “pode” e do
“não pode”. Segundo esta concepção, as prescrições são
fixas e a-temporais, inflexíveis; uma vez postas, elas
permanecem como marcos permanentes e que ficam para
trás no tempo. Ora, os comportamentos humanos mudam
e olham para a frente, criando uma distância sempre maior
entre a contemporaneidade da vida e a perenidade das
prescrições. Sirva de exemplo o comportamento sexual.
Segundo antigas prescrições a prática homossexual era
proibida e permitida somente a heterossexualidade. Ora,
os hábitos humanos evoluíram e, com a ajuda da
psicologia, da biologia, das novas concepções filosóficas da
vida, hoje a sociedade aceita o comportamento
homossexual como eticamente válido, como maneira digna
do exercício da afetividade. Portanto a ética não é um
código permanente de prescrições permitidas ou
proibitivas. Com este tipo de ética a ciência não tem
sobre o que dialogar.
Em segundo lugar, a ética não se confunde com
religião e nem dela depende para fundamentar-se. Como já
dissemos, a primeira grande articulação ética dos
comportamentos humanos foi feita pelos gregos, bem
antes do advento do cristianismo.
Para eles, a ética é um modo de entender e
procurar o bem humano. Por isso a ética não é nem laica e
nem religiosa; ela é simplesmente humana e visa apontar
para o homem um rumo existencial positivo.
Vejamos agora, em sentido positivo, o que é uma
ética flexível na vida contemporânea. Evidentemente, hoje
há uma pluralidade de modos de entender positivamente a
ética. Mas, de um modo geral, podemos entende-la como
um estilo de vida, um modo de viver, um rumo que
imprimimos aos nossos comportamentos para que vivamos
em harmonia na vida pessoal, com os outros e com a
natureza.
Esta concepção de ética extrapola o campo dos
comportamentos humanos, e se estende a todas as formas
de vida e á natureza, como veremos abaixo. O filósofo
Hans Jonas escreve a este respeito: “ a natureza está

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confiada á nossa guarda e nos faz um apelo ético, não só
por causa de nossos interesses, mas por si mesma, de
direito próprio”.
Tomemos outra imagem para tentar dizer o que a
ética é. A imagem do horizonte; ele está sempre adiante de
nós e nos atrai. Mas nunca chegamos lá, nunca o
alcançamos. Ele serve para nos apontar o rumo a seguir na
viagem da vida.
Deste horizonte da vida, a ética se ocupou em todos
os tempos. Os gregos, por primeiros no Ocidente,
resumiram o horizonte ético em dois movimentos
concêntricos: a) levar uma vida pessoal feliz; b) numa
sociedade justa, solidária e pacífica. Todas as teorias éticas
sucessivas tentaram, cada uma a seu modo, apontar para
este mesmo horizonte. Assim, o cristianismo se propõe
como meta construir uma sociedade onde reinem a
verdade, a justiça, o amor e a paz. Estes valores são
referências supremas que nunca realizamos totalmente;
mas caminhamos para, em cada época, nos aproximar
delas pelo menos em parte. Assim, nunca haverá plena
verdade, justiça total ou paz perpétua. Não é isso que
importa; o decisivo é que cada civilização construa um
modo positivo de vida pessoal feliz e de uma sociedade
mais justa e pacífica. Estes valores não existem em si,
como queria Platão. Eles são valores ideais, mentais que
servem de guia aos homens e às civilizações orientando-os
na construção de um mundo com estas características.
Na modernidade, a intuição ética greco-cristã foi
anunciada com outros termos. Foi a Revolução Francesa
que, ao banir as monarquias absolutas, lançou o ideal de
uma nova sociedade baseada em três pilares: igualdade,
liberdade e fraternidade. Estes três valores pessoais são
também a base da nova sociedade; são exatamente
aqueles de Aristóteles, Platão e do cristianismo.
Portanto, em todos os tempo da história ocidental,
os povos sonharam com os mesmos princípios éticos
centrais. E, a época contemporânea, não sairá deste
roteiro ético. Em 1948, logo após a catástrofe da guerra
mundial, a ONU, na tentativa de propor a todas as nações
um caminho ético, elaborou a Declaração dos Direitos

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humanos. O primeiro artigo retoma quase com as mesmas
palavras as da revolução francesa: “os homens nascem
livres e iguais em dignidade; por isso devem agir, em
relação de uns com os outros, com espírito de
fraternidade”. É este o horizonte ético do século XX e XXI:
construir um mundo global onde vigorem a liberdade, a
igualdade e a fraternidade ou o conjunto dos direitos
humanos. Hoje a ética leva exatamente o nome de Direitos
humanos. O mundo será ético quando cumprir estes
Direitos. Poderíamos simplificar ainda mais os três termos
do horizonte ético. Este pode ser expresso com uma só
palavra: justiça. Podemos então dizer que ética é lutar para
construir um mundo justo. Isto porque o termo justiça
sintetiza em si todos os outros valores e todas as virtudes.
Portanto, ser pessoa ética, ser uma nação ética ou um
mundo ético significa praticar a justiça.
Com isto, cremos ter apresentado um modo mais
flexível de vida ética. Esta modalidade de ética, sem
dúvida, é capaz de dialogar com a ciência e a técnica
contemporâneas: a ética que se dedica especialmente ao
diálogo com as ciências biológicas recebeu, em nossos
dias, o nome de bioética enquanto se concentra sobre as
ciências e as técnicas da vida.

C) Uma ética antropocósmica


A ética sempre disse respeito ao ser humano como
indivíduo e como ser social. Os outros seres eram simples
coisas, utilidades a serviço do ser humano.
Nos últimos 50 anos do século XX, o domínio da
técnica sobre a natureza viva e morta começou a ser tema
de ecologistas e humanistas. Criou-se a ética dos animais e
a ética da proteção do meio ambiente. Em outras palavras,
as coisas passaram de simples utilidades à dignidade ética.
Todos os seres, não só os homens, têm qualidade
ética, cada um em seu nível: o vegetal como vegetal, o
animal como animal e o homem como homem, segundo
seu nível de existência. No topo da evolução da vida está o
homem. Ele é o único inteligente, capaz de entender a
estrutura dos seres e a organizá-los. A História é a história
da inteligência do mundo, da natureza, do sentido que a

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ela imprimimos. Mas a inteligência filosófica e científica,
não existe para destruir o mundo mas para ordena-lo de
modo respeitoso de tal sorte que sejamos solidários não só
entre nós, os humanos, mas com todos os seres do
planeta, nossa pequena nau no cosmos: é a ética da
solidariedade antropocósmica.

D) A pessoa , um novo conceito


A ética flexível precisa ainda de um
aprofundamento, sem o qual ela não passa de uma opinião
insuficientemente elaborada. Isto é, a ética flexível, que
visa a solidariedade antropocósmica, exige também a
flexibilização do conceito de pessoa, adequando-o com a
mobilidade contemporânea das ciências humanas e da
natureza.
De fato, a pessoa é o sujeito da ética e da política.
São as pessoas justas que visam construir uma sociedade
solidária e pacífica.
Historicamente falando, não há conceito ético mais
fixo e imutável que o de pessoa. Concebido no início da
idade média por Severino Boécio (séc.VI) este conceito
atravessou inalterado todos os séculos. Este supremo pilar
da ética foi assim definido : “um indivíduo que subsiste
numa natureza racional”. Esta tese quer dizer que é a
racionalidade que confere ao indivíduo toda a sua
consistência e razão de ser. O indivíduo humano é,
portanto, uma essência racional plenamente constituída no
momento da concepção.
Segundo esta tese, o embrião humano está
revestido da mesma dignidade ética de um bebê, de um
adulto ou de um ancião. O ser humano é intocável desde a
concepção e nunca pode ser submetido à manipulação
científica. Esta concepção essencialista e naturalista de
pessoa é necessariamente inflexível e por isso esbarra
tanto com uma ética mais aberta quanto com os
progressos da biologia humana sobretudo em relação aos
inícios da vida.
Para superar este conflito será necessário
reformular o conceito de pessoa. Desde o início do século
XX, este conceito começou a ser elaborado. Três fatores

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colaboraram para a eclosão da nova concepção.
Primeiramente as teorias evolucionistas que desde o século
XIX vinham mostrando que o homem todo inteiro, corpo e
alma, resultou da evolução da vida. Esta posição
enfraqueceu as doutrinas teológicas criacionistas
anteriores a esses avanços.
Em segundo lugar, o advento da fenomenologia
alterou profundamente a maneira filosófica de se entender
o homem especialmente no âmbito da análise existencial
heideggeriana que concebe a existência humana como um
processo de temporalização. Finalmente, os grandes
avanços da biogenética colocaram questões éticas nunca
imaginadas pela tradição filosófica como, por exemplo, a
possibilidade da clonagem humana reprodutiva e
terapêutica.
É evidente que todos estes avanços postularam
uma ética mais flexível e uma concepção mais elástica da
pessoa humana.
É praticamente impossível o diálogo da ciência com
a teoria absoluta e transcendente da pessoa formulada
pelos pensadores medievais.
Qual será o novo conceito de pessoa? Várias teorias
bioéticas tentam, de algum modo, tornar mais atual este
milenar conceito. Aqui preferimos expor a concepção de
pessoa formulada pela ontologia existencial de cunho
heideggeriano.
Segundo esta teoria, a pessoa não é simplesmente
um fato biológico constituído no momento da concepção,
nem é uma essência metafísica definitivamente dada
desde o início. Pelo contrário, a ontologia existencial não
encara a pessoa como essência mas como uma existência
que vai acontecendo ao longo da vida. Nunca acabamos de
nos construir, somos sempre um vir-a-ser desde o embrião
até a velhice. Somos um processo de acontecer, de fluir
que vem do passado e avança de hoje para o futuro. Isto
significa que o homem não se define por uma essência
racional dada biologicamente e imutável mas se define
pela sua existência temporal aberta ao futuro pela
realização de suas potencialidades.

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Muitos séculos antes da ontologia existencial, santo
Agostinho identificava o ser humano como uma distensão;
a distensão da alma que se estende ao passado pela
memória, que vive no presente e antecipa o futuro pelo
desejo de realizar suas aspirações já presentes na alma em
expectativa mas ainda não realizadas.
Sendo o homem um ser temporal, por isso mesmo,
ele é um ser relacional e potencial. Primeiramente não
sendo dado por inteiro desde a concepção, ele se constrói
num processo de relações; desde a relação mãe – feto,
passando pelas relações familiares, sociais e culturais.
Quando estas relações são positivas dizemos que tal
sujeito construiu uma personalidade equilibrada; ao
contrário, as relações negativas constróem a personalidade
problemática.
O processo das relações nunca se fecha; por isso
mesmo a pessoa está sempre em construção, seja qual for
a sua idade. Neste sentido a pessoa é também uma
existência potencial; ela está sempre em processo de
realizar suas virtualidades da concepção à morte. Nos
momentos iniciais da vida, o novo ser humano está
próximo à pura potencialidade (com o mínimo de
realidade) porquanto não tem nenhuma estrutura corporal
definida, nem dimensão psíquica estruturada, nem
personalidade estabelecida; ele é potencialidade em
expansão, um ser humano em vir-a-ser.
Em síntese, a ontologia existencial concebe a
existência humana como um ser temporal, relacional e
potencial. Só ele existe sob esta modalidade. Todos os
outros seres vivos são dados desde o início, incapazes de
transcender seu determinismo biológico. Ao contrário, o ser
humano é um projeto que vai se construindo livremente
por sua própria iniciativa.
Esta teoria da pessoa como existência temporal
está aberta ao debate com a ciência especialmente sobre o
estatuto do embrião humano. Para ela, não
necessariamente (como na teoria essencialista) a pessoa
está definida no ato da concepção. Por isso há boas razões
para a utilização das células-tronco para estudos científicos
e para a prática da clonagem terapêutica. Nos primeiros

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dias, as células-tronco não têm nem estrutura orgânica,
nem psíquica e muito menos pessoal. Não sendo essas
células pessoa, elas estão cientificamente disponíveis sem
que se fira princípios éticos. A tese contrária é sustentada
pela teoria essencialista da pessoa.
Em conclusão, a pessoa não é uma essência com
rumos traçados pela biologia, mas é uma existência que se
dá um rumo, um horizonte ético a ser perseguido por toda
a vida pelo exercício da liberdade. Ela não é só responsável
pelo seu destino mas também pelo da natureza e dos
artefatos tecnocientíficos com os quais deve conviver
numa solidariedade antropocósmica. Nisto está a grandeza
da liberdade e da criatividade mas também o peso da
responsabilidade ética que a acompanha.

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Bioética e discurso científico: que lugar para a
lei?

Já podemos dispensar o pai ?



Heloisa Helena Barboza

1. Reprodução assistida no Brasil: estado da arte.


Jornal de grande circulação no país noticiou há uma
semana (14 de novembro), sob o título “Israel libera uso de
sêmen de mortos – Viúvas poderão engravidar”, que o
procurador-geral de Israel determinara que as viúvas
israelenses poderiam usar o sêmen dos maridos mortos
para fazer fertilização artificial. Essa deliberação evita que
as viúvas travem uma batalha judicial para garantir o
direito de engravidar dos companheiros falecidos, mesmo
que eles não tenham autorizado isso em vida. De acordo
com as novas regras, somente se o homem tiver deixado
explicitada sua proibição é que a viúva será impedida de
fazer a fertilização post mortem.
Segundo a referida notícia, Guido Pennings,
membro da comissão de ética da Sociedade Européia de
Embriologia e Reprodução Humana, declarou não saber de
nenhum outro país que permita a viúva utilizar sêmen de
um homem morto sem prévio consentimento por escrito. A
lei brasileira admite a hipótese, mas não contém qualquer
exigência.
O fato, acontecido em Israel, é oportuno para
(re)abrir a discussão sobre o assunto1. As disposições
legais existentes no Brasil são precárias e ensejam
inúmeras indagações, além de não protegerem de forma
adequada os envolvidos com as técnicas de reprodução
assistida. No presente procura-se abordar uma dessas
indagações, gerada por disposição legal talvez mal

Professora Titular de Direito Civil da Uerj – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Procuradora de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, aposentada.
1
Algumas possíveis polêmicas foram apontadas na reportagem intitulada “Código
Civil muda a vida de casais inférteis”, publicada pelo O Globo em 28.09.03,
caderno Jornal da Família, p. 3.

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dimensionada ou sem o necessário processo de reflexão,
que acaba por trair sua proposta aparente, no caso a de
proteção dos filhos. Mais grave, a norma em tal caso
compromete a efetividade dos princípios constitucionais
que a orientam, a saber: o da dignidade da pessoa humana
e o do melhor interesse da criança e do adolescente.
Indispensável, ainda, seja feita a ponderação desses
princípios com o direito ao planejamento familiar, também
assegurado pela Constituição da República.

As técnicas de reprodução humana assistida


deixaram há muito, mesmo no Brasil, de ser uma atividade
experimental. O tema foi objeto de já antiga novela de
televisão. Recentemente a mesma emissora alcançou altos
índices de audiência ao por em discussão a clonagem
reprodutiva, matéria, registre-se, de todo impertinente ao
objeto do presente. Em cidades como o Rio de Janeiro,
anúncios circulam por toda parte, nas vidros posteriores
dos ônibus, convidando pessoas a realizar o sonho de ter
um filho. Não obstante, faltam aos interessados
informações seguras sobre os procedimentos existentes,
seus efeitos e, principalmente, quanto à possibilidade de
sucesso. Ter um filho mediante a utilização de uma das
técnicas de reprodução assistida não é tão fácil quanto
parece.
A matéria é vasta e complexa, impondo-se de início
se circunscrever o campo dessas breves considerações:
inseminação artificial de mulher casada com sêmen do
marido, quando este já falecido, procedimento que tem
sido denominado “inseminação post mortem”. Afastadas
estão a dissolução da sociedade conjugal por separação de
fato, judicial ou divórcio, ou mesmo de invalidade do
casamento, bem como, as hipóteses de utilização desse
mesmo procedimento fora do casamento, como, por
exemplo, por mulheres que vivem em união estável ou que
sejam solteiras.
A restrição é necessária, principalmente, por ter a
lei cogitado apenas da utilização das técnicas por pessoas
casadas, gerando, em conseqüência, efeitos jurídicos
diferenciados.

19
A lei mencionada, que admite a possibilidade de
inseminação artificial após a morte do marido é a de n°
10.406, de 10 de janeiro de 2002, ou seja, o novo Código
Civil, em vigor a partir de janeiro do corrente ano. A nova
Lei Civil incluiu dentre os filhos presumidos como
concebidos na constância do casamento aqueles: havidos
por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o
marido; havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de
embriões excedentários, decorrentes de concepção
artificial homóloga e os havidos por inseminação artificial
heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido
(art. 1.597, III, IV e V, respectivamente). Estas são as
primeiras disposições legais sancionadas no Brasil sobre a
matéria, sobre a qual apenas o Conselho Federal de
Medicina se pronunciara (Resolução n° 1.358/92).
Fiéis à proposta inicial, as presentes reflexões estão
restritas ao disposto no artigo 1.597, III, do Código Civil:
filhos “havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo
que falecido o marido”. Não há no Código qualquer outra
disposição relacionada diretamente ao assunto, exigindo
do operador do direito grande esforço interpretativo, nem
sempre bem sucedido, não só para manter a harmonia
entre regras inspiradas por fatos bastante distintos, mas
precipuamente para não afrontar os ditames
constitucionais.
De início constata-se que o legislador não primou
pelo rigor técnico. Não bastasse a menção à “fecundação”,
em lugar de “fertilização”, termo reconhecido como mais
adequado, a referência imprecisa permitiria estivessem
compreendidas duas técnicas: a inseminação e a
fertilização in vitro, desde que homólogas. Não é o que se
conclui, se considerado o inciso seguinte (IV, do art. 1.597)
que inclui na presunção de paternidade do marido os filhos
havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões
excedentários, decorrentes de concepção artificial
homóloga.
Embora as hipóteses se aproximem, visto que
ambas cuidam de filhos que geneticamente são do marido
(homólogas) e lhe atribuam paternidade não vinculada
temporalmente à constância do casamento (“mesmo que

20
falecido o marido” e “havidos a qualquer tempo”), dois
importantes aspectos as distinguem: a menção à
“fecundação mesmo que falecido o marido” admite a
inseminação post mortem e o conflito, se houver, dirá
respeito à utilização do sêmen congelado do marido, mas
não terá havido concepção; diferentemente, a referência a
embriões excedentários pressupõe concepção já verificada
e a eventual divergência pode-se dar quanto à “utilização”
de embriões, à semelhança de recente discussão havida na
Inglaterra2, bem como ao destino que lhes deve ser dado,
se o simples descarte, adoção por outros casais ou
experimentação.
A utilização de sêmen ou seu descarte é problema
circunscrito ao consentimento do marido3 ou de sua
família4. Não há, ao que se sabe, maiores complicações
quanto ao descarte. Contudo, no caso de morte, a sua
utilização para fins de inseminação artificial, mesmo da
esposa, poderá encontrar obstáculos por parte da família
que “dispõe” de seus mortos, de que é exemplo a
controvérsia, hoje superada, gerada pela lei de
transplantes5.

2
O Alto Tribunal de Londres rejeitou ação de duas mulheres contra a lei que
determina a destruição de embriões, salvo haja consentimento do casal para
armazená-los. Ambas estão hoje separadas e os dois ex-companheiros retiraram a
autorização para o uso dos embriões. Uma das mulheres teve seus ovários
extirpados por conterem células cancerígenas. Jornal do Brasil. 02.10.03. p. A15.
3
Tribunal japonês de Osaka negou o laço de paternidade de uma criança concebida
por inseminação artificial com esperma congelado do pai morto de câncer em
1999, tendo em vista que o homem tinha decidido que seu esperma fosse destruído
caso morresse. (www.espacovital.com.br/asmaisnovas13112003g.htm, acesso em
13.11.03).
4
Considere-se aqui o conceito amplo de família, juridicamente composta por
parentes até o 4° grau. Observe-se que o surgimento de uma família pelo
casamento (conceito restrito, compreendendo pai, mãe e filhos), não extingue o
vínculo com a família de origem.
5
Para os efeitos da Lei 9.434, de 04.02.97, Lei de Transplantes, não estão
compreendidos, entre os tecidos a que se refere, o sangue, o esperma e o óvulo.
Esta lei sofreu importante alteração (art. 4°) em matéria de disposição post mortem
de tecidos, órgãos e partes do corpo humano para fins de transplante, para vincular
a sua retida à autorização dos familiares ali indicados, sob o argumento de que
estes sempre eram consultados, mesmo havendo autorização expressa doador.

21
Já em se tratando de embriões, o problema tem
atormentado a comunidade internacional. Verificada a
concepção, o surgimento de um embrião (ou pré-embrião)
provoca intrincadas discussões de natureza ética, religiosa,
sociológica e jurídica. Por conseguinte, sua análise deve ser
feita em separado.
Cingida a questão, permita-se a insistência, à
inseminação homóloga post mortem, cabe de início
questionar a adoção da presunção de paternidade no caso,
visto ser certa a paternidade genética, graças ao próprio
procedimento médico.
As técnicas de reprodução humana assistida
desafiam, em muito, os meios e prazos naturais de
concepção e gestação, tomados como base de referência
da presunção. Nos procedimentos que utilizam material
fecundante do casal, dúvidas não deverão existir quanto à
paternidade, considerado o vínculo biológico: há certeza
médica quanto à paternidade, ressalvada, à evidência, a
possibilidade de fraude ou erro na efetivação da técnica.
Portanto, de pouca ou nenhuma utilidade a presunção. Se
utilizado material de doador, deverá o legislador indicar a
quem cabe a paternidade, como o fez (art. 1.597, V).
Na verdade, após a possibilidade de verificação do
vínculo genético por meio do exame do DNA, a presunção
assume um papel secundário. Os tribunais brasileiros
tendem a atribuir a paternidade ao pai biológico, por vezes
em detrimento do pai socioafetivo. Mais simples seria, se o
legislador indicasse o critério preferencial para o
estabelecimento da paternidade, permitindo melhor
apreciação do juiz em cada caso. Contudo, isso não
ocorreu, devendo o intérprete buscar o objetivo da lei.
Contudo, a presunção legal foi estabelecida,
impondo algumas questionamentos, no que se refere à
época da concepção, embora não haja dúvida quanto ao
vínculo genético, como destacado.
De acordo com a parte final do inciso III, do art.
1.597, presumem-se concebidos na constância do
casamento os filhos havidos por fecundação artificial
homóloga, "mesmo que falecido o marido". Se a concepção
se der durante o casamento, o filho nascerá nos prazos

22
legais aproveitados pela presunção, que levam em conta o
tempo normal (mínimo e máximo) de gestação, como
assinalado (incisos I e II, do art. 1.597, art. 1.598).
O problema parece residir, assim, na possibilidade
da concepção ocorrer, com o sêmen do marido, após o
falecimento desse e, em conseqüência, o nascimento
acontecer após os 300 dias subseqüentes à dissolução da
sociedade conjugal. Tudo leva a concluir que o intento do
legislador foi resolver esse problema, incluindo na
presunção mesmo os filhos que venham a nascer após o
prazo máximo de gestação, estimado em 300 dias pela lei.
A presunção consiste, pois, em considerar como
concebido na constância do casamento mesmo o filho que
se sabe concebido quando já extinto o vínculo conjugal, em
razão da morte do marido. Admite o Código Civil, desse
modo, que a mulher possa valer-se do sêmen congelado do
marido morto.

2. As entidades familiares: a família monoparental. A


vigente Constituição da República inovou e revolucionou os
fundamentos do Direito de Família no Brasil ao reconhecer
três entidades familiares: a constituída pelo casamento, a
resultante da união estável entre o homem e a mulher e a
comunidade formada por qualquer dos pais e seus
descendentes (art. 226, §§ 2º, 3° e 4°). Essa última
modalidade tem sido denominada família monoparental e
ainda não recebeu por parte dos intérpretes o merecido
tratamento, ensejando dúvidas quanto a sua exata
compreensão.
Registre-se, desde logo, que, não obstante
respeitáveis opiniões em contrário, não há qualquer tipo de
hierarquia entre as entidades familiares. A família, como
expresso na Constituição, é a base da sociedade e tem
especial proteção do Estado. Deve ser rejeitada qualquer
forma de discriminação entre as diferentes modalidades
de família, cabendo indagar como e em que dimensão
deve-se dar a proteção do Estado.
Essa indagação se torna de mais difícil resposta no
caso da famílias monoparentais, visto que o legislador não
se posicionou quanto a sua compreensão. O quê devemos

23
nelas incluir: apenas as mães (ou pais) “solteiros”,
qualificação aqui que assume o significado de pessoa sem
parceiro, por causas que independem da sua vontade,
como abandono, separação ou morte, ou também os que
se encontram nessa qualificação por opção de vontade e
que desejam ter um filho mediante o que popularmente se
designa “produção independente” ? Estão amparados
também os homossexuais que não coabitem com um
companheiro ?
No caso dos homossexuais há interessante situação.
Os juízes do Estado do Rio de Janeiro firmaram
entendimento, no sentido de admitir a adoção por pessoas
homossexuais, desde que não fossem casais. Admitiu-se,
assim, ainda que de forma indireta a família monoparental
em que o pai ou mãe é homossexual.
O foco das presentes considerações, contudo, são
as famílias monoparentais que se formam por vontade do
pai ou mãe, valendo-se de uma das técnicas de reprodução
assistida, no caso em exame, da inseminação da viúva com
o sêmen congelado do marido morto.

3. Critérios de estabelecimento da paternidade. Para


melhor compreensão do problema é necessário considerar
que, de acordo com a doutrina jurídica, há três critérios
para atribuição da paternidade: o critério jurídico, pelo qual
a lei estabelece o vínculo com base em presunções; o
biológico que privilegia o vínculo genético, que pode ser
verificado pelo exame do DNA; e o critério socioafetivo que
faz prevalecer o laço da afetividade entre pai e filho.
Havendo inseminação post mortem, o pai será o
marido, por força da presunção de paternidade antes
referida. Adotou a lei civil o critério jurídico para atribuição
da paternidade dos filhos de pessoas casadas. Não foi
estabelecido, porém, qualquer prazo para a utilização do
sêmen do marido morto, o quê poderá trazer muitas
dificuldades, especialmente de ordem prática. Até quanto
tempo depois da morte será possível a disposição do
sêmen ? Como proceder se já realizada a partilha dos bens
do falecido ? Seria razoável fazer-se reserva de bens, em

24
nome de uma mera possibilidade de surgimento de um
herdeiro6.
Neste cenário assume capital importância a vontade
do falecido, da qual não se ocupou o legislador. Uma das
orientações possíveis é respeitar o que houver sido
determinado pelo marido. Na vigente lei civil não há
qualquer disposição sobre o assunto7. Essa omissão, ao
lado de tantas outras, vem demonstrar a precariedade das
regras estabelecidas no Código Civil sobre matéria de tão
graves conseqüências.
Fica assim a questão submetida, exclusivamente,
ao disposto na Resolução 1.358/92, do Conselho Federal de
Medicina, que contém as normas éticas para a utilização
das técnicas de reprodução assistida. Sob o título
“Criopreservação de gametas ou pré-embriões” (V) a
mencionada Resolução autoriza a criopreservação de
espermatozóides, óvulos e pré-embriões (V-1), mas
somente dispõe sobre a declaração de vontade dos
cônjuges ou companheiros, por escrito, quanto ao destino
que será dado aos pré-embriões criopreservados, em caso
de divórcio, doenças graves ou falecimento de um deles ou
de ambos, e quando desejam doá-los (V-3). Não há
referência expressa aos gametas crioconservados.
A omissão não chega a ser grave, visto ser aplicável
ao sêmen a orientação prevista para os pré-embriões.
Impõe-se destacar, porém, a grande responsabilidade dos
médicos ao colher a declaração escrita dos interessados,
na medida em que, ante o silêncio da lei na matéria, esse
documento poderá ser o único sinal revelador da vontade,
no caso de falecimento. A sua utilização como prova
documental, em situação de litígio, será de grande valia.
Indispensável observar que a ausência dessa
declaração expressa não autoriza a entrega do sêmen à
viúva, à família, ou sua utilização, para qualquer fim, sob

6
A contemplação de prole futura é prevista na sucessão testamentária, em caráter
excepcional, mas que deverá estar concebida em até dois anos contados da data da
morte (art. 1.800, do Código Civil).
7
O artigo 1.597, V, do Código Civil, condiciona a presunção de paternidade à
prévia autorização do marido somente no caso de inseminação artificial
heteróloga.

25
pena de responsabilização civil das clínicas, centros ou
serviços que assim procederem, naturalmente por argüição
da parte que se sentir prejudicada. A rigor, o mesmo pode-
se dizer quanto ao descarte dos gametas crioconservados.
Impõe-se, portanto, toda cautela prévia por parte dos
médicos. Em caso de dúvida ou de conflito, será prudente
submeter a matéria ao judiciário.
Há, porém, outras indagações. Parece razoável que
a mulher dê continuidade ao projeto familiar iniciado com
seu marido, desde que este em vida assim tenha
autorizado. Esse entendimento, que encontra amparo no
direito ao planejamento familiar, constitucionalmente
garantido, não leva em consideração os direitos do filho,
também assegurados pela Constituição (art. 227),
especialmente o direito à convivência familiar.
É sedutor o argumento de que o direito ao
planejamento familiar pode ser exercido em qualquer
modalidade de família e, portanto, também em família
monoparental, denominação que vem sendo atribuída à
comunidade formada por qualquer dos pais e seus
descendentes, igualmente reconhecida e protegida pela
Constituição da República (art. 226, § 4°). Robustece esse
argumento o fato de algumas mulheres perderem seus
maridos, quando grávidas por processo natural. Inclua-se,
por igual, a adoção por uma só pessoa.
Indispensável considerar, para melhor compreensão
dos efeitos da inexistência do pai, o entendimento da
psicologia sobre tal problema, visto ser o pai sabidamente
importante na construção da estrutura psíquica do
indivíduo. Ao que se sabe, esta lacuna poderá ser
preenchida por outra pessoa que venha a exercer a função
de pai.
A rigor, porém, as hipóteses não são idênticas: na
primeira a concepção se deu em vida do pai, na segunda
quando já morto o marido. Não se indaga da paternidade
(biológica), esta é certa, independentemente da presunção;
mas da conveniência de se promover o nascimento de
crianças geradas após a morte do pai. Fará diferença o
tempo decorrido entre a morte e a concepção ? Estará

26
atendido o melhor interesse da criança ? Há interesse da
criança ou da mãe ?
Essa última pergunta tem sido formulada nos casos
de adoção. Observe-se que o adotado tem um pai, uma
família de origem, sendo possível identificá-lo e até
conhecê-lo. O segredo quanto a sua existência tem sido
condenado, ante o choque futuro da descoberta. Já existe
julgado permitindo a identificação da família de origem,
sem alteração do vínculo de adoção, que é irrevogável.
Como se vê, também na adoção, a situação não é
exatamente a mesma do filho gerado após a morte do pai.
Vai se consolidando, em boa hora, o entendimento
de que a figura do pai é muito superior a do mero provedor
ou reprodutor. Ao vínculo puramente jurídico, calcado em
presunções, estruturadas num sistema de marcantes
características patrimonialistas, substituiu-se a tendência,
hoje vigente, de prevalência do vínculo biológico8.
Caminha-se, porém, seguramente no sentido de
privilegiar o vínculo afetivo, que se estabelece entre o filho
e aquele que exerce a função de pai. Somente quando o
direito reconhecer, de modo pleno, o papel do pai, em toda
sua complexidade, que transcende, e muito, uma ligação
biológica, haverá possibilidade efetiva de se atender o
melhor interesse do filho.
A existência de disposição legal estabelecendo a
paternidade presumida, nos termos acima, por si só, não
deve afastar o questionamento quanto à legitimidade da
inseminação post mortem. Em caso de eventual conflito,
poderá haver decisões bastante diversificadas.
Havendo declaração do marido quanto ao destino a
ser dado ao seu sêmen no caso de morte, poderá o
julgador determinar se respeite a vontade do falecido, quer
no sentido de destruição do material, quer permitindo a
inseminação. Na ausência de tal declaração, existirá igual
alternativa. Não seria de surpreender decisão que
autorizasse a inseminação, mesmo havendo manifestação
contrária do marido, por reconhecer à mulher o direito de
8
O exame da jurisprudência revela forte tendência a se estabelecer a paternidade
com base no vínculo biológico, aferível mediante exame do DNA, o quê pode ser
constatado nos julgados do STJ. Vive-se o império do DNA.

27
concretizar o plano familiar iniciado com o marido, sendo
mais justo que utilizasse o seu sêmen do que o de um
doador estranho.
Do mesmo modo, se a esposa tiver negado pela
clínica seu pedido de entrega do sêmen do marido morto, a
regra vigente dá margem ao juiz para, ponderando os
interesses envolvidos, indeferir o pedido da mulher,
entendendo que deve prevalecer o melhor interesse da
criança, no sentido de ter um pai, princípio contido no
artigo 227, da Constituição Federal, independentemente da
vontade do marido.
Indispensável é, em qualquer caso, ter em mente
que o direito ao planejamento familiar tem como
fundamentos o princípio da dignidade humana e a
paternidade responsável. O homem casado que fornece
gametas para a inseminação de sua mulher ou fertilização
in vitro, ou ainda, autorização para a inseminação de sua
esposa com sêmen de doador, presumidamente quer a
paternidade que por lei lhe será atribuída. A possibilidade
de arrependimento em tais casos deveria ser
regulamentada pela lei. Na ausência de regra sobre a
matéria deve prevalecer a presunção, caso realizada com
sucesso a inseminação, com base no princípio do melhor
interesse da criança e do adolescente, de todo prioritário.
O que se constata é que, por ser a lei de todo
inadequada, restaram sem proteção adequada o marido,
no que respeita a sua vontade, a mulher, relativamente ao
seu desejo de ter um filho do marido, e o filho, que, afinal,
terá apenas um pai jurídico.
Se entendido que é razoável a inseminação post
mortem, não haverá, em princípio, motivo para não se
admita igual procedimento nos demais casos de pessoas
sem companheiro, por ato de vontade. Já podemos
dispensar o pai?

28
Bioética e discurso científico: que lugar para a
lei?
Madalena R. Sapucaia

Quando os organizadores deste evento, através da


Mônicca, me chamaram para esta mesa, eles explicaram
que o convite surgiu por um texto que eu escrevera sobre
Bioética. Voltei ao texto e fiquei pensando de qual lugar eu
poderia falar, já que não sou especialista em Bioética.
Decidi começar falando do meu encontro com a palavra
Bioética, e como ela me atraiu.
Antes dela, comecei ouvindo muito uma outra
palavra - Biotecnologia, que vinha sempre carregada de
promessas de soluções eficientes para as questões que a
mortalidade do corpo insiste em trazer ao sujeito de todas
as épocas, o sujeito do Mal-Estar na Civilização. Eficiência e
rapidez, dão ao Homem contemporâneo os sinais de que
ele está no caminho do sucesso. Logo, da felicidade. O
esforço para que "tudo funcione na mais perfeita ordem",
insinua sedutoramente que apreenderemos o Real, que
viveremos sem angústia e atingiremos a imortalidade.
Talvez seja este o ponto de encontro da Bioética com a
Psicanálise e também com a Psicologia Jurídica :
trabalhamos com aquele que esquece, com o distraído,
com o que se apaixona, com o que odeia, com o que não
aprende, e com o cria. Trabalhamos com sujeitos,
eternamente desamparados - mortais.
No início da era cristã eram 300 milhões de homens
habitando a Terra. Mil e oitocentos anos depois, eram 900
milhões. Mais 200 anos são 6 bilhões. Muita gente, não?
Muita gente procriando, muita gente envelhecendo e cada
dia mais aumentando a longevidade do homem
contemporâneo. Tentei imaginar o que são 6 bilhões de
pessoas, e concluí que são 6 bilhões de corpos, claro ! É
muito DNA funcionando, com muito material para a
biotecnologia operar!
Foi neste ponto que esbarrei na palavra Bioética,
tentando responder minhas indagações num trabalho
sobre as novas formas de reprodução e filiação. Pensava,

29
naquela momento, se essas técnicas iriam trazer uma
nova ordenação ética. Pois se durante tantos séculos a
palavra ética não precisou incluir o prefixo bio, esta nova
roupagem (bio + ética) , parecia indicar grandes
mudanças..
Parti de algumas definições como a do
Professor Olinto Pegoraro que diz: "A ordem ética é relativa
à vida e à cultura numa situação histórica determinada..... A
historicidade e a temporalidade fazem da existência humana uma
natureza mutável, entregue à sua liberdade e responsabilidade
constituindo-se, por isso mesmo, como único ser naturalmente
ético Se fôssemos apenas viventes biológicos , subordinados às
leis do funcionamento dos sistemas vivos, não nos proporíamos
questões éticas.. (Fundamentos da Bioética- Olinto Pegoraro-
pag.81)

Freud também não postulava um caráter natural


para a ética, não pensava que o bem e o mal estariam
gravados no coração do homem (hoje no DNA),
fundamentando uma ética de alcance universal. No Mal-
Estar na Civilização ele diz : “É lícito desautorizar a
existência de uma capacidade originária ,por assim dizer
natural, de diferenciar o bem do mal.”
Tendo um pouco mais de 30 anos, a palavra
Bioética se reproduz em todos os cantos, talvez como a
melhor representante de que há um novo Mal-Estar na
Civilização. Mal-estar que é formado através da soma da
Biotecnologia com os investimentos milionários das
multinacionais farmacêuticas. Alguns estudiosos do tema
acham que preocupações com a manipulação do corpo
são anteriores a tentativa de barrar o excesso da indústria
farmacêutica. Que tais preocupações começaram no
Processo de Nuremberg (1946), onde foram julgados como
crime as experiências de manipulações genéticas feitas
com prisioneiros
Enfim, há mais de 50 anos que já se discutia o que
uma tecnologia cada vez mais eficaz e veloz poderia fazer
ao manipular o corpo humano, numa medicina que
começava a ser, além de terapêutica e preventiva, agora
preditiva. O que isto poderia causar na civilização, nesta
civilização chamada do espetáculo, do narcisismo, do

30
individualismo, ao colocar o corpo na lista das coisas entre
coisas era o núcleo da questão.
Mas foi só no ano de 1971, num artigo para a
revista Times, nos Estados Unidos, que o professor de
bioquímica e oncologista Van Potter inaugurou o uso da
palavra Bioética, como um novo estudo sobre a ética da
Terra, das populações, do consumo, da urbanização, enfim
uma ciência da sobrevivência. A palavra entra na mídia e
passa a ser interpretada como sinônimo de ética médica.
Mas Potter, em novos pronunciamentos, define que a
Bioética foi pensada como uma nova ciência que viria fazer
ponte entre Ciência e Humanidade, principalmente entre a
explosiva ciência biológica e a ética, com a necessidade de
se elaborar um sistema capaz de prover diretrizes para
uma atuação responsável do ser humano em relação ao
futuro.(Bioética ; ponte para o futuro é o nome do livro do
Potter).
Sabemos que a rapidez biotecnológica avança sem
dar muito tempo de elaboração ao homem comum, que
informado pela mídia, fica entre o fascínio e a apreensão,
pois são infinitas as possibilidades de mudança no real do
corpo, que neste meio século, deixaram de ser pura ficção,
e passaram até a serem oferecidas como irresistíveis,
desejáveis, inevitáveis e até mesmo imperativas..
Se trata então de pensar nos efeitos da
biotecnologia no laço social, de como o discurso da
eficiência passa a formar parte da vida cotidiana, se
infiltrando no tecido social, com ares de solução para todos
os males que o corpo traz a cada um dos sujeitos.
O surgimento da Bioética para alguns críticos, não
tem nada de novo, a não ser o nome, e pensam que ela é
apenas um produto da sociedade do bem-estar pós-
industrial e da expansão dos direitos humanos. Outros
acham que, como nunca, o avanço científico pede um novo
limite ético a ser imposto à ciência, que temos uma nova
realidade a partir da biotecnologia. e que talvez a novidade
seja a necessidade de uma abordagem interdisciplinar,
para esta reflexão.
Frente a esta proposta interdisciplinar pensei que se
é no corpo onde se aloja o psiquismo. aonde a pulsão faz a

31
curva, aonde o ato-falho faz cotidiano, aonde o sonho
persiste, a Psicanálise pode contribuir dizendo do corpo
que ela conhece: o que é marcado de significantes,
revestindo seus órgãos, sua bioquímica, suas células.
Podemos incluir na lista de intervenções
tecnológicas no corpo, uns objetinhos, umas coisinhas
muito pequeninas, trazidas pela nanotecnologia, outra
palavra que aprendi, que podem ser engolidas ou
implantadas para mapear partes do corpo outrora
inacessíveis, e agora expostos em telas de consultórios ou
num programa de tv. A pele já não esconde os órgãos
internos do olhar do outro, tais câmerazinhas podem
invadir a circulação e detectar o entupimento de artérias, e
passear por lugares nunca dantes navegados, trazendo a
velha questão: Tenho um corpo? Sou um corpo?
Jean Baudrillard, no livro "A transparência do Mal",
diz que o corpo que foi outrora "metáfora da alma, e depois
metáfora do sexo, hoje não é metáfora de coisa nenhuma"
e a busca pela clonagem é uma "utopia monocelular que,
por via genética, faz os seres complexos acederem ao
destino dos protozoários."
Realmente, com a Biotecnologia o corpo humano
não tem mais condição natural e imodificável. A
intercorporeidade deixou de ser apenas uma forma
imaginária (como a quimera monstro, cabeça de leão,
corpo de cabra e cauda de serpente, fogo pelas narinas),
ou a criação de Eva, os vampiros, Frankenstein, ou como
coloca Baudrillard, Michel Jackson, ou Madona) ou natural
(coito, gravidez, canibalismo, siameses, e até
epidemiologia - contágio).As novas formas tecnológicas de
intercorporeidade se referem aos transplantes, reprodução
assistida e engenharia genética, onde, de fato, há uma
incorporação de pedaços de um corpo para outro.
O desenvolvimento destas tecnologias favoreceu a
explosão da indústria de materiais corporais, de
proporções mundiais, hoje tudo tem valor de mercado. E
todos sabemos que quando falamos de indústria de
proporções mundiais, falamos também de imposições de
proporções mundiais.

32
A transformação do corpo humano em mercadoria é
um fenômeno antigo, está na base da escravidão e da
prostituição desde as suas origens. Mas atualmente temos
aspectos inusitados, que são: a compra e venda de funções
para uso limitado no tempo (barriga de aluguel), a compra
e venda de células e tecidos regeneráveis (da matriz
germinal ao sangue), ao comércio de órgãos não-
regeneráveis, quase sempre os duplos-rins, e o comércio
de embriões.
Mas quem são os proprietários dos órgãos e do
patrimônio genético? Já que da noção de propriedade se
desprendem a disponibilidade para doar e para vender
uma pedaço do próprio corpo ou do corpo de um familiar.
Com a nova dissociação biomédica do corpo
humano se gera uma crise profunda da noção de pessoa.
De um lado a realidade do corpo se desprende da pessoa
para fazer-se objeto recolocável, e o Eu se embola com o
Meu, sendo então proprietário de um bem disponível, seu
próprio corpo com tudo o que tem dentro.
No Projeto Genoma Humano são enormes as
implicações econômicas e financeiras que levaram a
investigação do que seria um conceito de Propriedade, o
corpo como patrimônio dependente e inseparável do Ente
pessoal.
Apesar da UNESCO ter declarado o Patrimônio
Genético Humano, um patrimônio comum da humanidade,
como os oceanos e o ar, os Estados Unidos já patentearam
alguns gens decodificados. E de acordo com o Centro
Britânico para a Exploração da Ciência e da Tecnologia,
para o ano 2010, as industrias estarão em condições de
vender mais de 60. milhões de dólares em produtos
derivados da investigação do genoma humano.
Enfim o corpo está sendo invadido , revelado,
remodelado, recauchutado, clonado, recortado, vendido,
num ritmo de euforia. E já começa a ser comum casos
como o de uma jovem americana que fez 35 plásticas para
ficar igual a Barbie, ou o de uma artista plástica paulista
que diz que está cansada de ser gente e quer virar vaca, e
para isso faz enormes manchas tatuadas no corpo para
virar uma vaca malhada. Como disse Alberto Mainetti:

33
Pigmalião tirou Narciso do espelho. A cultura do Narcisismo
virando a cultura de Pigmalião.
Freud ensina que o que há nos humanos é um corpo
libidinal , afetado pela linguagem. E por isso não dá para
transformar a medicina em veterinária, não dá para retirar
dos humanos a sua fala como sujeito. Nenhum aparelho da
nanotecnologia poderia localizar a origem dos sintomas
das pacientes histéricas de Freud.
Freud ao usar o mito de Edipo, para explicar as
formas em que cada sujeito estrutura seu estilo particular
de ser, demonstra que a singularidade se constitui dentro
dos laços sociais (familiares) que lhe são oferecidos.
Mas ao se pensar em familias concretas devemos
pensar em funções, tema que quem trabalha com Direito
de família se torna especialista. O sujeito nasce em uma
estrutura que não pode escolher, está determinada. As
categorias de maternidade, paternidade, filiação, família,
são construções relativas a um universo simbólico (e por
tanto não biológicos).Cada época cria recursos que lhe são
próprios para definir as modalidades do simbólico às quais
dará uso para a constituição dos sujeitos. E todo sujeito
terá de universal o desejo de se apresentar numa
particularidade, de marcar aonde ele se identifica e onde
ele se diferencia a cada encontro com o outro.
É na eficácia do simbólico, que o sujeito vai
construir seu sentido A trama do humano se constitui na
construção do sentido, na referência aos sistemas
conceptuais conhecidos ou na invenção do novo. A
clonagem pode produzir uma fotocópia genética, mas não
há fotocópia da produção de sentido.
Lacan nos diz que no discurso científico o saber
sofre de um imperativo que faz com que ele avance
sempre, que impele o sujeito na direção de saber sempre
mais, sem se deter em nenhum obstáculo e sem refletir
sobre tais avanços.
Trabalhando com este imperativo do saber, nesta
sociedade da Produção e do Consumo, não se interessando
pelo sujeito, mas sim pelas alterações no real do
organismo, é que a Biotecnologia caminha. No Projeto
Genoma Humano, por exemplo, que já recebeu

34
investimentos de bilhões de dólares, as implicações
econômicas e financeiras levaram à investigação do que
seria um conceito de Propriedade Corporal. Por um novo
conceito de Propriedade Corporal foi possível que toda a
Islândia vendesse para o Laboratório Roche, por US$ 200
milhões, o direito à pesquisa do código genético de sua
população.(A Islândia tem a população de menor
miscigenação do planeta). Nesta mesma via econômica,
um dia depois da divulgação da “Dolly”, a empresa dona
dos direitos sobre a técnica de clonagem viu subir em 56%
suas ações na Bolsa de NY. Da mesma forma, uma coleta
de esperma, pode ser vendida em N. York por 25 dólares, e
um óvulo por 5.000. É a extensão da mercantilização
chegando ao corpo, onde tudo vira mercadoria. Na busca
de um sentido ético para estas mudanças no real do corpo,
a Bioética faz anúncios importantes: a Biotecnologia não é
apenas um aprimoramento do real do corpo, ela tem uma
ideologia montada na eficiência do capital, ela tem um
investimento de milhões e milhões de dólares , ela
subverte uma ordem do sistema corporal e isto tem efeitos
no indivíduo e na sociedade, enfim ela é poderosa e
transformadora.
Todo este bio-shopping promove uma inquietação,
levando a sociedade a montar comitês de Bioética em todo
o mundo, como um Outro regulador, na busca de um ideal.
No começo a Bioética estava dirigida até a clínica
médica, até o leito do paciente, e não existia outra reflexão
que a do diagnóstico médico, depois se pensou que
bastava ditar leis internacionais, para ordenar as
manipulações, mas estas entravam em colisão com as
diferenças entre as inúmeras culturas, e não foi possível
uma Bioética Universal. Tentando repensar o particular
quando ele se manifesta na sua dimensão de imprevisto,
que não pode ser regulado sobre os universais, uma das
tendências da Bioética é a de estabelecer um debate da
pluralidade, pela impossibilidade de um fundamento
comum e hegemônico. Ela tenta mostrar a multiplicidade
de nossa sociedade atual, indo contra o caráter dogmático,
totalitário, de se estabelecer respostas de pretensão
universal, sustentadas em princípios e fundamentos

35
absolutos que busquem impor-se amparadas na figura de
“verdade única”. A partir do pluralismo ético, sem
absolutos, os bioeticistas se colocam contra ideais
universais, estabelecendo debates angustiados, mas
também criativos, causados mais por uma reflexão na
diferença, do que na composição de regras morais.
A função médica atual vai além da tentativa de cura
e de preservação da vida, agora ela tem que decidir desde
se um feto deve ou não nascer, e em qual barriga, até
quando um paciente terminal deve ou não morrer, e
mesmo se alguém já morreu, apesar de estar respirando.
O discurso psicanalítico também surgiu
historicamente marcado pelo avanço da ciência, mas
encontrou seu lugar fora deste avanço, colocando o sujeito
numa nova configuração, ressaltando o objeto que causa
seu desejo. Como já disse, a ciência não se interessa pelo
sujeito, mas sim pelas alterações no real do organismo,
sem intermediação do simbólico e do imaginário. A
Psicanálise tem tentado mostrar para a ciência que a
inscrição significante é que vai dar sentido ao corpo.
Enquanto a ciência trilha um caminho da
universalização dos corpos, sem querer saber dos efeitos
no sujeito, tendo sua satisfação sustentada pelo Saber, a
Psicanálise vai em outro sentido, no sentido da verdade
que contém cada sujeito, verdade que é um saber não
sabido por ele, um saber inconsciente .
Os bioeticistas se colocaram na função de tentar re-
inscrever esta inexorável pulsão do progresso científico
tentando dar-lhe um caráter ético, um limite. Mas para a
Psicanálise jamais haverá este equilíbrio entre a ciência e a
ética. Lacan dizia que a ciência não pensa, ela SABE,
ignorando a dimensão da verdade, ela é a mais pura
expressão da pulsão. Qualquer limitação desse tipo é
completamente estranha à lógica da ciência, ela é
indiferente às modalidades de simbolização, ao modo
como ela afetará a vida social.
Na Psicanálise, desde que Freud falou que no corpo
da histérica havia muito a decifrar, que sabemos que o
corpo não é condição primária para o sujeito, ele tem que
advir submetido a uma estrutura simbólica que lhe é

36
anterior, pois é o Outro que nos determina. Se não somos
acolhidos, não sobrevivemos. Se inicialmente não somos
"falados" pelo outro, jamais falaremos.
Mesmo após a morte, nos sepulturas, a letra
continuará marcando aquele que já não tem corpo. A
inscrição e não a pele fará seu último contorno, e o
transformará, quando vivo, num corpo que goza.
Quando o campo do Outro é disperso, está aberto o
espaço para uma manipulação do corpo sem sentido, puro
gozo, como por exemplo o caso do casal que alugou uma
barriga, comprou um embrião, e quando a gestação estava
na metade, se separou e não queria mais a criança, como
também não a queria a mãe de aluguel.
Na sociedade atual, a idéia de felicidade é associada
a um consumo compulsivo, pelo poderoso mercado global.
Os produtos da tecnologia que são, constantemente
oferecidos para tamponar a divisão do sujeito, com uma
oferta saturada de bens descartáveis, acrescentaram nesta
lista de ofertas as manipulações do corpo. Apesar do corpo
já ter sido reconhecido como não comercializável, ele
voltou a ter tabela de preço, como no mercado de
escravos.
Com todas estas novas técnicas há uma exigência
de maior eficiência do corpo, para que ele possa dar conta
de um novo sistema de produção que é insaciável, e que
até já conta com um mercado de peças de reposição, como
empresas especializadas em Importação e Exportação de
órgãos. Numa sociedade individualista e competitiva, como
a nossa, um corpo perfeito é buscado como uma
ferramenta para que o indivíduo tenha valor de mercado.
Mas nem sempre o corpo responde com a tal eficiência e
surgem as anorexias, as dependências de drogas, as
cirurgia plásticas em série, a compulsão por exercícios. O
corpo como oferenda a esta demanda do Mercado.
Freud falava que a civilização tinha que renunciar à
satisfação em troca de segurança. Baudrillard pergunta se
não se está trocando a segurança pela satisfação, o que
traria uma torção à organização social.
É o desvario de nosso gozo, fala Lacan. (texto :
“Televisão”).Este desvario, esta dispersão, este gozo na

37
errância, que recusa uma localização, é o que a Bioética
busca barrar.
Será uma missão impossível? A oferta insaciável de
tantos produtos fantásticos, colocados como imperativos
para que o sujeito se sinta fazendo parte do seu grupo,
leva cada um a esmorecer e ceder frente ao seu
desejo.Essa submissão para não perder seu lugar no grupo,
fragmenta o sentido, confunde o sujeito e expande uma
outra palavra : depressão
Quando um sujeito, sem mais saber como buscar a
causa de seu desejo, cede ante o mundo mágico e
perverso trazido pela cultura do espetáculo, isso se paga
com a tristeza. Quando a imagem que cada um recebe de
sí mesmo em comparação as ideais de riqueza, beleza ,
saúde, juventude, é de ineficiência, incompetência, objeto
sombrío, resta uma tristeza, tristeza de não corresponder
aos mandamentos do Senhor Moderno
E se estamos tristes, não é porque os tempos atuais
trouxeram uma alteração bioquímica, mas porque o sujeito
sem direito à diversidade.
A Bioética me atraiu por fazer oposição a essa
tristeza cultuada, porque faz frente ao gigantismo do
Capital. Acho que todos nós temos um dever ético de
tomar parte na discussão urgente que os bioeticistas nos
convidam.
Não é que os desenvolvimentos científicos não
avançarão, ou que a humanidade não vá dispor das
tecnologias adequadas para um mundo mais confortável,
com menos doenças. A discussão que se abre é de outra
ordem: o que se coloca é se a posse do conhecimento
implica sempre a necessidade de seu uso; coloca-se uma
disjuntiva para o desenvolvimento científico, interrogando
si o que pode ser feito deve ser feito; deixa claro que as
possibilidades técnicas de produção de um fenômeno
determinado não está necessariamente no mesmo registro
que sua necessidade ética. Se faz necessário que uma lei
social acompanhe o limite citado para impedir usos que
transgridam o próprio da condição humana, ou que
funcionem reduzindo a dimensão do conhecimento à pura
lógica mercantil.

38
A falta de limites nos desenvolvimentos
biotecnológicos não leva à construção de benefícios para a
humanidade. Para ilustrar isto, vou ler 2 parágrafos do livro
Frankenstein - 1 do desesperado Dr. Frankenstein e outro
de seu angustiado Monstro, que no final da história,
escolheu um lugar muito interessante para morar:
“Eu trabalhara duramente durante 2 anos para infundir
vida a um corpo inanimado. Para tanto sacrificara o repouso e
expusera a saúde. Eis que, terminada minha escultura viva,
esvaía-se a beleza que eu sonhara, e eu tinha diante dos olhos
um ser que me enchia de terror e repulsa.”

“Quero de você apenas que me dê uma companheira,


semelhante a mim, tão hedionda quanto eu. Por amor a tal
criatura, eu firmaria a paz com gênero humano! Ë verdade que
seríamos 2 monstros, isolados de todo o mundo, mas por isso
mesmo mais próximos um do outro. Ó meu criador atenda
minha súplica! Se você consentir, nem você nem qualquer outro
ser humano jamais tornará a ver-me. Partirei para os ermos
longínquos da América do Sul”.

Obrigada.

39
Do parecer e do Julgamento: De que fala o
psicólogo no universo jurídico?

Justiça Terapêutica: Rompendo os limites da


indiferença – a Ética como sustentáculo da
resistência

Damiana de Oliveira

“O mais importante neste mundo não é tanto


onde estamos, mas em que direção estamos nos
movendo.”
OW Holmes

Primeiramente gostaria de agradecer o convite que


me foi feito pela Comissão organizadora do 4º Encontro de
Psicólogos Jurídicos do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
para compor a mesa Do Parecer ou do Julgamento: O que
faz o psicólogo no universo jurídico?
Partindo dessa indagação e tendo como eixo
temático a questão da ética, buscarei estar pensando junto
com vocês algumas questões referentes à Justiça
Terapêutica, enfocando principalmente a atuação do
psicólogo dentro dessa modalidade de tratamento, que
cada vez mais vem ganhando espaço no meio jurídico. Tal
fato acaba suscitando dos profissionais “psi” novas formas
de agenciamento, a fim de não se deixarem capturar pela
naturalização de certos procedimentos tidos como
terapêuticos.
Desde que no Brasil se começou a falar em Justiça
Terapêutica, muitas dúvidas, questionamentos e
indagações começaram a despontar, evidenciando, assim,
todo um desconforto com o lugar que os psicólogos
estavam sendo chamados a ocupar nessa nova ordem que
estava se configurando.
A idéia de uma Justiça que trata, que cuida, pode, a
princípio, parecer atraente para alguns que,

40
inadvertidamente, vêem nessa situação anômala uma
sinalização da humanização do Sistema Judiciário, já que o
instituto da punição, do encarceramento, estaria sendo
substituído por um sistema de tratamento. Entretanto, o
que podemos perceber é uma exacerbação da função
jurisdicional, pois como bem nos diz Walter Maierovitch,
em entrevista ao Site Psicologia On Line, do Conselho
Federal de Psicologia:

“… justiça não é lugar de tratamento. A justiça se impõe para


outras coisas. Justiça não é Justiça Terapêutica. Este
conceito é absolutamente equivocado. Justiça dá a cada um o
que é seu e resolve conflitos de interesses. Uma Justiça não
trabalha na imposição de terapias.” 9

Diante desta tendência de cada vez mais a Justiça


se direcionar a outras disciplinas, a fim de ser auxiliada em
suas decisões, fica-nos então uma pergunta: Será que o
simples fato do saber jurídico se unir aos saberes médico-
psicológico faz com que a Justiça esteja compromissada
com a saúde e o desenvolvimento das potencialidades do
indivíduo? A história nos diz que não, pois se nos
reportarmos aos tipos de alianças que foram estabelecidas
entre a Psicologia e o Direito ao longo dos tempos, iremos
constatar que, infelizmente, essa relação nem sempre foi
pautada visando à promoção da dignidade e da liberdade
humana.
Cabe ressaltar que, embora no Rio de Janeiro e até
mesmo no Brasil a atuação do psicólogo dentro do Sistema
Judiciário seja algo recente, a relação da Psicologia com a
Justiça no mundo é bastante antiga, sendo que podemos
encontrar marcas dessa interseção já no século XIX, com o
surgimento do que se convencionou chamar de “Psicologia
do testemunho”. O principal objetivo da Psicologia de
então era verificar até que ponto o relato dos sujeitos
envolvidos nos processos judiciais podia ser considerado
fidedigno. A esse respeito, diz-nos Brito:

9
Maierovitch, Walter. Justiça Terapêutica – Entrevista. Disponível em:
<http://www.pol.org.br/pesquisa/resposta_pesquisa>. Acesso em: 10 novembro 2003.

41
“…várias foram as contribuições oferecidas pela Psicologia
Jurídica da época – por exemplo, métodos que possibilitassem
detectar a mentira. Pode-se imaginar a expectativa com que se
aguardava um método preciso e objetivo que indicasse o
grau de sinceridade das pessoas. Diversas foram as técnicas e
aparelhos desenvolvidos para tal intento, como o método da
prova psicanalítica de Abraham-Rosanoff-Jung e o emprego do
reflexo psicogalvânico para o controle da sinceridade.” 10

Landry, um Psiquiatra francês, já chamava-nos a


atenção em seu livro “O Psiquiatra no Tribunal” para o
caráter repressivo e controlador que era impingido aos
profissionais “psi”, entendendo-se sob essa denominação
psicólogos, psiquiatras e psicanalistas, quando chamados a
atuar em processos nos Tribunais. Esses processos, quase
sempre envolvendo crimes, eram analisados, visando
encontrar algum indício de patologia que justificasse a
intervenção do saber médico-psicológico. Pretendia-se,
assim, no dizer de Foucault efetuar a ortopedia social, ou
seja, o enquadramento do indivíduo às normas sociais.
Cumpre dizer que havia uma predominância do
saber médico sobre as demais ciências humanas, ficando a
participação do psicólogo, quando admitida, subordinada
aos interesses médicos. Dessa forma, os profissionais “psi”
eram chamados a intervir sempre que se observava a
necessidade da aplicação de medidas terapêuticas, tendo
em vista que a visão medicalizada da sociedade fazia com
que o crime fosse visto como resultado de uma patologia
social e como tal precisaria de tratamento.
Através de exames psicológicos, testes
psicométricos, entrevistas e outros referenciais técnicos,
esses profissionais buscavam dar um caráter científico às
decisões judiciais, reforçando, assim, o caráter repressivo e
violento que muitas vezes o Direito impunha aos seus
cidadãos (doentes mentais, presos, crianças e
adolescentes). Nesse sentido, a perícia, enquanto
instrumento de um saber especializado, era largamente
utilizada e, ainda hoje, acaba se constituindo numa das
principais colaborações da Psicologia à instância jurídica, a
10
Brito, Leila Maria Torraca de. Separando: Um Estudo sobre a Atuação do Psicólogo
nas Varas de Família, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1993, p. 25

42
qual irá recorrer ao perito sempre que sentir necessidade
de ser auxiliada com um saber técnico em suas decisões.
A esse saber, juntam-se outras questões que o psicólogo
acaba sendo chamado a responder, tais como, se o
indivíduo voltará ou não a delinqüir ou o grau de
periculosidade do mesmo, como se fosse possível a esse
profissional predizer comportamentos futuros.
Bem, a importância de contextualizarmos o modo
como vem se processando a relação da Psicologia com o
Direito desde priscas eras é fundamental para que nós
possamos compreender e entender os atravessamentos
que em nossa prática, enquanto psicólogos jurídicos,
sofremos, não se constituindo a Justiça Terapêutica numa
exceção a isso.
Se pararmos para pensar nos fundamentos que
norteiam os Tribunais para Dependentes Químicos nos
Estados Unidos, iremos verificar que a idéia subjacente a
essas Cortes é de que é possível vivermos num mundo
totalmente livre da presença de substâncias psicoativas.
Esquecem-se, dessa forma, que as drogas sempre fizeram
parte da história da humanidade, não sendo possível
encontrar nenhuma civilização que não tenha feito uso
dessas substâncias em algum momento de sua existência.
Os defensores desse modelo de Justiça acreditam
que, através de mecanismos de repressão e de punição
severos, atrelados a tratamentos compulsórios sob intensa
supervisão do Poder Judiciário, seremos capazes de
erradicar o consumo de drogas da vida das pessoas,
notadamente entre o público mais jovem, bem como os
demais delitos associados a esse consumo. Essa política
de guerra às drogas, ao encontrar eco no modelo de Justiça
Terapêutica norte americano, defende o controle intensivo
sobre os indivíduos, tendo como mote a famosa “tolerância
zero”, a qual na prática pode se traduzir em intolerância
contra os usuários de substâncias psicotrópicas.
No Brasil, o uso cada vez mais crescente de
entorpecentes pela população, cuja média de idade para
início do consumo vem sofrendo um decréscimo constante,
aliado a toda uma campanha de demonização das drogas,
que vem sendo perpetrada, acaba encontrando um terreno

43
fértil para que políticas de cunho repressivo ganhem força
e se firmem enquanto modelos de enfrentamento da
questão da drogadicção a serem seguidos. É assim que nos
deparamos todos os dias com inúmeras tentativas de se
colocar na conta do consumo de drogas a responsabilidade
pela onda de violência que assola o país, cujo ápice pode
ser observado nas campanhas governamentais que
buscam culpabilizar os usuários de substâncias
entorpecentes pela criminalidade que não para de crescer.
A Justiça Terapêutica, desse modo, acaba indo ao
encontro dos anseios de uma parcela da população que,
atemorizada diante da possibilidade de ver seus filhos
enveredarem pelo universo das drogas, demanda do Poder
Público uma linha de atuação mais dura, não só no
combate ao tráfico de drogas, mas também contra aqueles
que fazem um uso recreacional dessas substâncias, os
quais passam a ser vistos como dependentes químicos e
criminosos em potenciais. Muito têm contribuído para esse
clima de histeria que começamos a verificar os últimos
acontecimentos violentos envolvendo jovens, cujos crimes,
cometidos muitas vezes contra a própria família, tiveram a
droga como pano de fundo.
A essa demanda de alguns segmentos da
sociedade, a Justiça Terapêutica irá responder lançando
mão de uma série de instrumentais, tais como, a testagem
de urina para verificação se o indivíduo fez uso e/ou abuso
de drogas, a aplicação de sanções para aqueles que
descumprirem as regras do Programa, a imposição de
tratamentos psicoterápicos e antidrogas compulsórios,
entre outras medidas. Pretende-se, assim, exercer uma
vigilância cerrada sobre as pessoas submetidas a esse
modelo de tratamento, de modo a alcançar o seu objetivo
primordial, qual seja, a abstinência total de substâncias
entorpecentes.
E nós psicólogos? como ficamos diante desse
quadro que se apresenta? Como lidar com as diferentes
demandas que nos chegam pela via judicial? Como
responder eticamente a esses chamados? Será que isso é
possível? Lembro que em 2001, quando da realização do 2º
Encontro de Psicólogos Jurídicos do Tribunal de Justiça do

44
Estado do Rio de Janeiro, ao fazer parte de uma mesa que
se propunha a discutir a responsabilidade de cada um
frente ao mal estar atual, apresentei neste mesmo
Auditório o Programa Especial para Usuários de Drogas
(PROUD) que, na ocasião, havia sido recém-implantado na
2ª Vara da Infância e da Juventude.
Naquele instante, por ser tudo muito recente, ainda
estávamos atônitos com as mudanças trazidas por esse
Programa de Justiça Terapêutica, notadamente em relação
a um outro olhar que começava a se lançar sobre os jovens
e sua relação com as drogas. Ficavam evidentes, assim, as
inquietações e mal-estares que o referido Programa estava
suscitando em nós psicólogos, dadas as peculiaridades do
mesmo e as novas demandas que a nós estavam sendo
dirigidas. Não obstante isso, já naquele momento,
tínhamos a preocupação de encontrar formas de intervir
nesse modelo de tratamento, que diminuísse o desconforto
causado e ao mesmo tempo possibilitasse ao sujeito a
afirmação de sua singularidade.
Tais inquietações que sentíamos se faziam justificar,
o que fica bastante patente na fala do Dr. Márcio Mothé,
Promotor de Justiça e Coordenador de Justiça Terapêutica,
que ao explicar o que vem a ser o PROUD, assim se refere
ao trabalho da equipe interdisciplinar que atua no
Programa:
“Trata-se de uma nova visão da equipe de trabalho
que, aliada aos representantes da Justiça, propõem um
tratamento forçado, a partir da apreensão em flagrante do
usuário de substância entorpecente. A equipe barganha a
substituição da ação pelo tratamento compulsório e
obrigatório, centrado na total abstinência do participante, o
qual deverá submeter-se às severas regras do Programa,
inclusive à testagem aleatória que detecta o uso de drogas.” 11
(grifos meus)

É claro que essa visão da equipe interdisciplinar,


que tem em seus quadros o Psicólogo, coloca-nos a todos
num lugar que não nos pertence, por excelência. A grande
questão que se apresenta para nós então é: Como sair
11
Fernandes, Márcio Mothé e Cordeiro, John Kennedy. Justiça Terapêutica – 2º Ano, Rio
de Janeiro, Consulado Geral dos EUA, p. 10

45
desse lugar, mesmo trabalhando dentro de um Programa
de Justiça Terapêutica com tudo que isso representa?
Como coadunar nossa prática com princípios éticos
fundamentais? Afinal, longe de poder ser entendida
apenas como um conjunto de normas e regras valorativas,
que irão regular a vida em sociedade, o que estaria mais
próximo de preceitos morais, a ética nos remete ao campo
do sujeito, com seus desejos, sonhos, expectativas e
vulnerabilidades.
Falar em ética é falar em subjetividade, é pensar
nos tipos de subjetividades que estão sendo produzidas
num Programa que elegeu a droga como o principal
problema a ser enfrentado. É pensar nas alianças
estabelecidas, rompendo com a cultura da indiferença que,
muitas vezes, faz com que o psicólogo não se perceba no
cerne das relações de poder e nem se veja também como
importante agente de transformação. É estar atento aos
processos de rupturas capazes de promoverem a
desnaturalização de certas práticas, afirmando outros
espaços e lugares, de modo que diferentes possibilidades
possam acontecer.
Foucault irá nos dizer que nós já nascemos
transgressores, enfatizando o fato de que as relações de
poder só se dão onde há resistência. Dentro de uma ótica
foucaultiana sujeito e objeto são objetivações que
acontecem pela prática. É a prática que inaugura objetos
no mundo e um desses objetos é o sujeito. É das relações
entre as práticas discursivas (dizíveis) e das práticas não
discursivas (visíveis) que se constituíram saberes
especializados. A ética, assim, para Foucault é uma ética
do rompimento, da invenção, portanto, falar em ética
implica também trazer à tona nosso potencial criativo e
inovador, que faz com que a todo instante estejamos
reinventando nossos fazeres e dizeres, constituindo novos
modos de existência , conscientes que somos de que
nenhum saber neste mundo está desvinculado do poder.
A ética, dessa forma, não se confunde com a
moral, pois enquanto esta busca nos códigos, nas normas,
formas de disciplinar os comportamentos na vida em
sociedade, a ética, ao contrário, faz das inquietações de

46
que somos acometidos vetores que nos possibilitam criar
novos lugares, novos fluxos, subvertendo, assim, as formas
de ocupação usuais desses espaços. Pode se dizer, então,
que a ética estaria relacionada aos nossos atos e condutas,
pensados, não só em nossa relação com os outros, mas
fundamentalmente na relação que estabelecemos com nós
mesmos, caracterizando o que Foucault denominou de
“cultura de si”, de “práticas de si”.
Foucault irá assinalar para a necessidade de
que nós passemos por todo um processo de elaboração de
nossos desejos, sentimentos, enfim, de elaboração de nós
mesmos, a fim de que nos comportemos eticamente.
Dentro dessa dimensão ética, não podemos deixar de
refletir também sobre o modo que nos sujeitamos aos
códigos morais da sociedade.
Se resistir é preciso, parafraseando o poeta,
devemos então nos perguntar qual o real sentido de nossa
resistência, entendendo-a não como um movimento de
insurreição, de oposição a alguma situação que se quer
mudar, mas sim como algo que transcende essa visão
coloquial e aponta para a afirmação plena de nossa
existência, desconstruindo, assim, alguns lugares
demarcados pelas subjetividades dominantes.
E é exatamente essa resistência que faz com que
hoje, passados dois anos da inauguração do PROUD, eu
possa estar trazendo para vocês uma experiência que
demonstra bem esse movimento de resistência que vem
sendo empreendido dentro da 2ª Vara da Infância e da
Juventude.
Embora o Programa centre sua atuação em cima
do uso de drogas, nos atendimentos a nossos jovens, pude
perceber que o nosso foco, enquanto psicólogos, continua
sendo o sujeito, e nem poderia ser diferente, devendo a
droga ser compreendida enquanto uma experiência, dentre
tantas outras, em que o jovem se lança na busca pela
afirmação de sua identidade. O adolescente que nos
chega para atendimento no PROUD traz questões, olhares
e formas de vinculação muitas vezes relacionadas com o
seu ingresso no Programa, com o que o Programa
representa para ele enquanto proposta de tratamento,

47
cabendo a nós psicólogos estarmos atentos para essas
novas subjetividades que vão sendo produzidas.
A Ordem de Serviço que instituiu o PROUD prevê,
dentre outras coisas, a aplicação de sanções para aqueles
que descumprirem as regras do Programa e a realização de
testagens de urina aleatórias para verificação da
abstinência. Entretanto, por falta de infra-estrutura, que
neste caso tem funcionado a nosso favor, e,
principalmente, devido a um movimento de resistência da
equipe técnica, que a todo instante tem buscado formas de
se reinventar e de afirmar a sua existência plena dentro do
Programa, o mesmo vem assumindo uma configuração
bem diferente na prática.
Cabe enfatizar que o PROUD fez uso das
testagens de forma bastante precária, desde o seu início,
dada a falta de recursos para conseguir comprar os testes,
os quais foram obtidos durante um curto período, em
forma de doação, pelo Laboratório fabricante do Kit de
testagem. Atualmente tem cerca de um ano que o PROUD
não tem realizado testagens em seus jovens, já havendo,
inclusive, casos de adolescentes que ingressaram no
Programa e cumpriram o mesmo sem serem submetidos à
testagem em nenhum momento. Soma-se a isso também o
fato de que nesses dois anos de existência do PROUD
nenhuma das sanções previstas até hoje foi aplicada,
tendo contribuído, primordialmente, para isso a resistência
da equipe técnica.
O PROUD, assim, tem ganho uma nova cara, onde
nossos jovens têm sido acolhidos plenamente em suas
problemáticas, que vão para além do uso de drogas, o que
nos tem possibilitado realizar um trabalho abrangente,
dinamizador, com espaço para reflexões e descobertas,
que possam ajudar os adolescentes em suas
ressignificações de papéis e na maior compreensão de sua
dinâmica familiar.
É claro que não podemos dizer que o mecanismo
da testagem foi definitivamente abolido do PROUD, pois a
todo momento somos ameaçados com a possibilidade de
se conseguir verba para a aquisição dos testes,
principalmente agora que o Tribunal de Justiça resolveu

48
abraçar de vez a causa da Justiça Terapêutica. Nesse
sentido, foi criada até mesmo uma Comissão de Justiça
Terapêutica, com a função de estabelecer diretrizes de
funcionamento para os diferentes programas já existentes
e para aqueles ainda a serem implantados em todo o
Estado do Rio de Janeiro.
Como parte da resistência empreendida pela
equipe técnica temos também a realização do grupo de
reflexão intitulado: “Sexo, Drogas e Mitos”, o qual, a
princípio, sofremos pressão para que se resumisse a um
ciclo de palestras, mas que nós conseguimos transformar
num espaço, onde o jovem possa estar pensando e se
posicionando sobre diferentes assuntos pertinentes ao
universo juvenil e à vida em sociedade, através de jogos,
vídeos, músicas, dinâmicas de grupo e técnicas
psicodramáticas. É comum que no grupo o jovem se sinta
acolhido para expressar todo o seu inconformismo com o
fato de estar sendo submetido a um tratamento
compulsório, bem como a sua raiva e revolta por toda a
situação que se iniciou com a apreensão policial e
culminou com o seu comparecimento perante ao Juiz para
a audiência, o que muitas vezes tem se revelado uma
experiência bastante traumática.
Cabe salientar que ter um espaço para falar sobre
essas coisas, sendo esse espaço ainda por cima dentro da
própria Instituição, pivô muitas vezes de seu sofrimento, é
extremamente importante para o processo terapêutico, a
fim de que num segundo momento, o jovem possa
transcender a revolta e a raiva por ter de comparecer
forçosamente ao Juizado e possa tirar algum benefício do
espaço que lhe é oferecido. Quando isso acontece, e cada
vez tem ocorrido mais, o adolescente consegue refletir
sobre as implicações de suas escolhas, que no caso em
questão acabaram ensejando a sua apreensão, bem como
passa a se sentir confiante para falar de suas emoções e
sentimentos, encontrando um sentido nos atendimentos
que são realizados, bem como nas propostas de
tratamentos que lhes são disponibilizadas.
A equipe técnica do PROUD atualmente é
composta por três psicólogos, uma assistente social, dois

49
estagiários de Serviço Social, uma estagiária de Psicologia,
uma estagiária com formação em Direito, um médico, que
é o Diretor do Programa, e um voluntário que é Conselheiro
em Dependência Química. Cabe aqui um registro de
agradecimento a toda a equipe que muito tem se
empenhado para superar as dificuldades institucionais,
resistindo de todas as formas às malhas do poder,
esforçando-se, também, por angariar recursos e
estabelecer parcerias que possibilitem aos nossos
adolescentes uma existência mais plena. Pretende-se,
assim, construir junto com os jovens outras perspectivas,
outros lugares que sinalizem na direção da produção de
singularidades.
Nesse sentido, duas experiências merecem especial
atenção. A primeira é uma parceria que foi firmada entre o
PROUD e a escola de Samba Acadêmicos da Grande Rio.
Por conta desse convênio, a equipe do PROUD encaminha
os adolescentes atendidos pelo Programa para o Barracão
da referida Escola de Samba, onde os jovens irão fazer um
curso em que aprenderão diferentes ofícios ligados ao
mundo do carnaval. Durante o período do curso, eles
recebem uma pequena quantia mensal, a título de ajuda
de custo. Aqueles que se destacam são então contratados
temporariamente até o carnaval, passando a receber um
salário que pode chegar até a R$ 500,00 (quinhentos reais)
mensais. Além disso, existe a possibilidade de que, mesmo
depois de passado o carnaval, alguns jovens possam ser
aproveitados para diferentes atividades dentro da Escola.
Essa experiência tem sido bastante gratificante
pois, além de acenar para os jovens uma perspectiva de
futuro, tem servido também para aproximar a comunidade
no entorno do Juizado de nossos adolescentes,
desmistificando, assim, algumas idéias errôneas a respeito
dos mesmos.
A segunda parceria tem a ver com um fenômeno
que vem acontecendo na 2ª Vara da Infância e Juventude e
que, dada a sua importância, não pode ser desprezado.
Nós temos nos deparados com alguns casos de demanda
espontânea, em que pais e até mesmo adolescentes têm
procurado o PROUD em busca de orientação e ajuda para

50
lidar com problemas relacionados ao uso de drogas ou a
conflitos familiares. No atendimento a essas pessoas, o
PROUD acabou sentindo a necessidade de criar um grupo
de Prevenção voltado justamente para atender essas
demandas. Esse grupo de reflexão que se propõe a
trabalhar algumas temáticas que muito tem mobilizado
pais e jovens, que vivem uma relação bastante belicosa,
consiste em oito encontros, dos quais quatro são feitos
somente com os adolescentes, dois são feitos somente
com os pais e dois são realizados em conjunto com pais e
filhos.
Um desses pais que procurou espontaneamente o
PROUD é produtor cultural e possui uma produtora de
vídeo. Desse atendimento, acabou surgindo uma parceria
que tem sido bastante interessante para a equipe que atua
no Programa, pois já possibilitou, entre outras coisas, que
alguns adolescentes fossem assistir ao ensaio de uma peça
teatral, entrando em contato com os bastidores da peça e
aprendendo um pouco sobre as diferentes profissões
ligadas ao mundo do espetáculo. Além disso, esse pai
também colocou à disposição do Programa a sua produtora
de vídeo para aquilo que se fizer necessário, ficando,
inclusive, de produzir para o PROUD um material
publicitário, em forma de um mini CD, usando uma
tecnologia denominada Vídeo Car .
Diante de tudo que foi apresentado até aqui,
somos levados a acreditar que o quadro não é tão
desesperador como talvez alguns possam supor. Há luz no
fim do túnel. Não obstante isso, sempre que o tema droga
surge como destaque no cenário nacional, algumas
pessoas, saudosistas de um tempo que não volta mais, se
põem a reclamar, adotando um discurso da necessidade de
um endurecimento das leis e da política antidrogas a ser
implementada. Alegam, assim, como justificativa, que
antes o uso de drogas não era intermediado pelo
narcotráfico, a violência era menor, sendo quase pueril, as
drogas utilizadas eram menos potentes, quase inofensivas,
já que não havia essa profusão de drogas sintéticas como
hoje e o uso de drogas tinha um sentido de contestação e
protesto, diferentemente dos tempos atuais.

51
A essas pessoas, gostaria de fazer minha as
palavras de José Saramago, em seu livro “A Caverna”:

“…ai daqueles que, com medo de possíveis inquietações


futuras, se deixam ficar sentados à beira do caminho a
chorar um passado que nem sequer havia sido melhor do
que o presente”. (José Saramago – “A Caverna”)

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Estudo sobre a Atuação do Psicólogo nas
Varas de Família. Rio de Janeiro, Relume-
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Entrevista. Disponível em:
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52
VIDAS E HISTÓRIAS CONTADAS PELA
PSICOLOGIA: DIZERES ÉTICO-POLITICOS.
Érika Figueiredo Reis12

Em minha experiência como psicóloga de uma vara


de família, pude perceber como os processos de disputa de
guarda e regulamentação de visitas encontram-se
atravessados por múltiplos discursos que veiculam
incessantemente concepções essencialistas e
naturalizantes com relação às dinâmicas familiares e às
relações de gênero.
Não há dúvidas de que, atualmente, vivenciamos
um momento de intensas transformações sociais, no qual
pode-se perceber um deslocamento dos indivíduos com
relação aos modelos familiares e às identidades que lhes
foram designadas por convenções sócio-históricas.
Contudo, o contexto das varas de família representa um
campo de análise privilegiado para observarmos a
persistência no espaço social de uma série de mitos
relativos às instituições da paternidade e da maternidade
que, historicamente, vem demarcando lugares sociais,
psicológicos e afetivos determinados para homens e
mulheres.
À medida que acompanhamos os processos,
percebemos que o mito do amor materno, aliado à
histórica primazia da mulher no exercício da maternagem,
tem se revelado como uma das mais importantes
estratégias utilizadas pelas mulheres para obter a guarda
dos filhos, ou mesmo para exercer um controle despótico
sobre as visitas do outro genitor. Neste cenário, é
importante registrar que em cerca de 90% dos processos
de guarda os filhos ficam com as mães, enquanto que aos
pais geralmente fica reservado o direito de estar com os
filhos durante sábados e domingos alternados.

12
Psicóloga da Vara de Família Regional da Ilha do Governador.

53
Fazendo um levantamento a respeito das principais
alegações que surgem nos discursos de pais e mães que
pleiteiam a guarda, ou a alteração na regulamentação de
visitas, encontramos, na quase totalidade dos casos, uma
constante naturalização dos papéis sexuais, sobretudo no
que diz respeito à identidade da mulher como mãe
cuidadora e principal responsável pela casa e pelos filhos.
Por um lado, as mulheres afirmam que os homens não têm
competência para cuidar de crianças, principalmente
quando em tenra idade, sendo bastante comum solicitarem
visitas acompanhadas e não permitirem o pernoite da
criança na casa do pai; enquanto que os homens, por sua
vez, em linhas gerais, contra-atacam com acusações de
ordem moral e com fatos que indicam que a ex-mulher não
representa uma “boa mãe”, segundo os preceitos
tradicionais.
Além disso, não seria fora de propósito mencionar
aqui uma série de outras acusações bastante freqüentes,
que surgem como forma de desqualificação mútua, quais
sejam: suspeitas com relação a (ao) nova (o) companheira
(o) do (a) genitor (a), não querendo que ela (ele) se
aproxime de seus filhos; suspeitas quanto à periculosidade
do local ou as condições de moradia do outro; queixas
relativas à rotina da criança que seria prejudicada; e uma
série de outras acusações que vão desde a possibilidade do
outro exercer uma influência psicológica negativa, até a
suspeita de ocorrências de violências físicas ou sexuais.
Vale dizer que tais acusações, na grande maioria das
vezes, referem-se a virtualidades de comportamento.
Podemos pensar que são estratégias de poder
estreitamente vinculadas à noção de periculosidade,
segundo a qual os indivíduos são considerados não pelos
seus atos, mas, antes, ao nível “do que podem fazer, do
que estão sujeitos a fazer, do que estão na iminência de
fazer” (Foucault, 1999:85).
Neste sentido, é importante salientar que, embora
as mulheres, de certa forma, contem com certos privilégios
no âmbito das varas de família, elas também são vítimas
do mesmo discurso dos “riscos supostos”, principalmente

54
quando seu comportamento não se adequa plenamente ao
papel convencionado da “verdadeira” mãe dedicada.
No entanto, não devemos esquecer que os efeitos
de poder desses discursos normalizadores se estendem
para além da problemática da perda de direitos de
paternidade ou maternidade, que representa um conflito
mais freqüentemente encontrado nos setores da classe
média. Ao contrário, percebemos que os efeitos são
múltiplos e se fazem notar, de uma forma talvez mais
dramática, nas dificuldades vivenciadas pelas mulheres
das classes desfavorecidas, as quais lotam as defensorias
públicas com pedidos de reconhecimento de paternidade
ou de pensão para os filhos, pois, muitos homens, com o
desenlace da união conjugal, passam a ignorar sua
responsabilidade paterna, abandonando as mulheres-mães
à sua própria sorte.
Pensamos então que a gênese dos conflitos das
varas de família está estreitamente ligada à problemática
das relações de gênero e ao discurso de existência de uma
suposta natureza feminina, que, como sabemos, foi
estrategicamente usado para justificar o confinamento da
mulher à esfera doméstica e às funções de mãe-esposa-
dona-de-casa.
Os historiadores apontam que a solidificação da
família nuclear moderna, entre os séculos XVIII e XIX,
caminhou ao lado de uma intensa promoção da
maternidade, por meio da qual a possibilidade de gestação
e amamentação, próprias do sexo feminino, passou a
representar uma norma social, ancorada na exaltação do
instinto materno supostamente presente em toda mulher,
conforme afirmavam os representantes da medicina social
da época. A partir de então, multiplicaram-se as
publicações que recomendavam às mães cuidarem
pessoalmente dos filhos, propagava-se na mídia,
exaustivamente, a imagem estereotipada da boa mãe no
lar, ao mesmo tempo em que eram realçados as
infelicidades e problemas de que são vítimas as crianças
“abandonadas” pela mãe que trabalha fora de casa
(Badinter, 1985).

55
A construção do papel da mulher-mãe implicou na
realização de intervenções disciplinares constantes por
parte dos agentes de normalização, além da produção de
uma série de dispositivos usados para convencer a mulher
a aceitar seu novo papel na família. Tal como afirma
Badinter (1985):

“Veremos que se tornará necessário lançar mão de muitos


argumentos para convocar a mãe para sua atividade ‘instintiva’.
Será preciso apelar ao senso de dever, culpá-la e até ameaçá-la
para reconduzi-la à sua função nutrícia e maternante, dita
natural e espontânea” (p.144).

Como resultado de tamanha pressão, muitas das


concepções relativas ao feminino e à maternidade
acabaram por ser gradativamente internalizadas pelas
mulheres, que passaram não apenas a acreditar na
existência do “instinto” materno, como também a atribuir
um caráter de nobreza à função de mãe, sentindo-se, elas
próprias, inteiramente responsáveis por tudo o que
acontecia no ambiente doméstico, desde a educação e
formação do caráter da criança, até a própria felicidade
dos filhos.
Por outro lado, a regulação dos desejos e a violência
simbólica que incidia sobre as mulheres acabou por
conduzi-las ao desenvolvimento de sutis mecanismos de
domínio afetivo que elas passaram a exercer na família,
dentre os quais se destacam as cobranças pela sua
dedicação e abnegação, visando a satisfação dos seus
desejos ou mudanças de comportamento por parte do
marido e/ou dos filhos; a produção de dependência com
relação aos serviços domésticos, além da dependência
emocional e do excessivo controle exercido sobre os filhos
(Rocha-Coutinho,1994).
Atualmente, embora as mulheres estejam
ampliando sua participação no espaço público, graças às
inúmeras conquistas obtidas pelos movimentos feministas,
o que se percebe é que a maioria delas ainda não
conseguiu se desvencilhar daquele antigo modelo. Esta
situação tem levado a mulher a desempenhar múltiplos
papéis, além de produzir nela um desejo angustiante de

56
adquirir a excelência no desempenho das tarefas
domésticas e no exercício profissional, “escravizando-a,
agora, a ambos os modelos de identidade feminina – o
feminino e o feminista” (Rocha-Coutinho, 1994:122).
No decorrer dos processos nas varas de família,
pode-se observar claramente que as mulheres continuam
sendo “capturadas” (na expressão de Guatarri) por um
processo histórico-institucional de autodomesticação e de
auto-representação que, ao final, acaba por lhes ser
extremamente desfavorável. Tal como expressa Swain
(2002), “Esta é a relação de poder, é a inflexão sobre a
auto-representação, sobre a conduta, sobre a apreensão
do mundo, instituindo assim uma realidade lá onde
existem apenas possibilidades”(p.332).
Foucault denomina essa especificidade das relações
de poder como ‘governo por individuação’, ou seja, um
modo de exercício de poder que assinala para cada
indivíduo sua identidade própria, até que ele acabe se
tornando o que dele se previu, ou se prescreveu. Assim foi
com a promoção da mulher como mãe-esposa-dona-de-
casa, com a produção do homem-pai-provedor, com a
figura do machista e com a figura da mulher-nervosa.
Neste sentido, importa ressaltar que a
surpreendente eficácia desses procedimentos de poder
deve-se ao fato de serem disseminados e praticados pelos
próprios membros da sociedade que acabam por se tornar
agentes da disciplinarização e da normalização no campo
social (Branco, 2000). Tal como Foucault (2000) nos
adverte, os indivíduos nunca são o alvo inerte ou
consentido do poder, mas, ao invés disso, são, ao mesmo
tempo, efeitos do poder e seus centros de transmissão.
O que percebemos no contexto das varas de família
é que essa contínua produção e reprodução de regimes de
verdade, de valores e de critérios que definem a
verdadeira mulher-mãe, ou o verdadeiro homem-pai,
repercutem de forma perversa na vida cotidiana das
pessoas. Portanto, trata-se de um problema que diz
respeito a todo o conjunto da sociedade, na medida em
que prende homens e mulheres à mesma teia discursiva,
que impõe limites identitários aos indivíduos. E, neste

57
sentido, mesmo os homens, que por tanto tempo
ocuparam o lugar de uma subjetividade dominante, têm
percebido que também sofreram mutilações e
constrangimentos neste processo, o que se faz notar no
interesse de muitos que almejam desenvolver novos
modos de subjetivação, numa tentativa de se aproximar de
campos de expressão e de atividades tidos como
exclusivamente femininos.
Pode-se dizer que se, por um lado, estamos
atravessando um processo intenso de desterritorialização
da família, que tem implicado na desterritorialização de um
certo homem, de uma certa mulher e de um certo amor
(Rolnik , 2000); por outro lado, os indivíduos continuam a
buscar para si uma marca identitária, resgatando nesse
movimento muitas das antigas concepções higienistas que
definiram os papéis sexuais. Este talvez seja um dos
principais impasses presentes nos litígios das varas de
família, ou seja, a reivindicação de um lugar identitário
que, estrategicamente, possibilite ao indivíduo o exercício
de um poder.
Neste aspecto, é interessante observar o modo
como nós psicólogos somos continuamente convocados a
participar da construção dessas identidades, delimitando
para homens e mulheres seus respectivos campos de
atuação. O perigoso desdobramento desta prática reside
no próprio acirramento do conflito das identidades sexuais,
no prolongamento de uma lógica binária de oposições e
contradições entre os gêneros e, conseqüentemente, na
predominância de uma modalidade de subjetivação
empobrecida, pouco flexível, que não percebe o múltiplo,
ignora diferenças e reproduz discursos regulatórios e
discriminatórios.
A partir dessas reflexões, é possível pensar que
nosso compromisso ético com a prática psicológica passa
pela elaboração estratégica de possíveis espaços de
libertação. Neste sentido, os estudos de Foucault
representam uma ferramenta valiosa, pois nos faz
questionar a todo o momento: por que os fatos acontecem
assim e não de uma outra maneira? Por meio de quais
mecanismos de poder determinadas verdades estão sendo

58
produzidas? Assim, um dos pontos nodais dos trabalhos de
Foucault é justamente a inversão das evidências
historicamente produzidas, sobretudo no sentido de
detectar “os diferentes modos pelos quais, em nossa
cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos” (Foucault,
1995: 231).
A este respeito é importante ressaltar que um
dos modos de objetivação do indivíduo analisados por
Foucault foi o domínio da sexualidade, mediante o
qual os homens aprenderam a se reconhecer como
sujeitos de “sexualidade”, ou seja, “é pelo sexo,
efetivamente, ponto imaginário fixado pelo dispositivo da
sexualidade, que todos devem passar para ter acesso à sua
própria inteligibilidade (...), à totalidade de seu corpo (...), à sua
identidade” (Foucault,1997:145). Mediante a análise do
funcionamento do dispositivo de sexualidade, Foucault nos
permitiu pensar que a masculinidade e a feminilidade
podem ser ditas de várias maneiras e praticadas de
diversas formas. Assim fazendo, ele nos abriu um espaço
de transformação possível, na medida em que conhecendo
os mecanismos de produção da verdade torna-se possível
desconstruí-los, torna-se mais fácil desfazê-los.
Essa postura crítica e analítica, que se traduz
também numa ação ética e política, torna-se fundamental
para que possamos desatar os múltiplos modos de ser, de
sentir, de pensar e de desejar, das concepções
cristalizadas referentes às diferenças sexuais, as quais,
segundo Foucault (1997), nos colocam diante de uma
lógica do sexo, de um “sexo-discurso”, um “sexo-
significação”. Cabe então questionarmos, conforme o faz o
autor, “Que injunção é essa?” (p.77), qual o percurso que
nos levou a colocar a questão do que somos, o sentido de
nossa individualidade, com relação ao sexo?
Para além da ênfase no contínuo, na repetição e na
idéia de sujeito, Foucault nos leva a pensar em termos de
rupturas, de diferenças que vem abalar as identidades, de
processos de subjetivação, de lugares de sujeitos
constituídos pelas relações de poder e pelos saberes. Tal
como expressa Albuquerque Jr. (2000), “É preciso abandonar
esta trajetória que nos leva de um sujeito em germe, de uma

59
promessa de sujeito a um sujeito acabado, fechado, girando em
torno de uma identidade. (...) Temos um nome, mas podíamos ter
qualquer um. Este nome não nos contém, nos possibilita, nos
impele à busca incessante do sentido (...)” (p.120).
Nesta perspectiva de pensamento, torna-se
fundamental que a análise dos conflitos entre homens e
mulheres opere um deslocamento de uma lógica da
representação em direção a uma lógica das multiplicidades
e dos devires. De acordo com Guatarri (2000), esta idéia de
um “devir” está ligada às possibilidades de singularização,
em oposição às estratificações dominantes, ou seja, os
processos de singularização não dizem respeito a uma
questão de identidade cultural, de retorno ao idêntico, de
retorno ao arcaico, mas, antes, são da ordem da
multiplicidade e da pluralidade.
A partir do final da década de 70, Foucault
privilegiou em seus estudos o campo ético-político, dando
ênfase a questões como a autonomia, a liberdade e os
movimentos de resistência contra as práticas
normalizadoras do biopoder, ou seja, as práticas que
definem padrões de normalidade, para, então, diferenciar e
manipular as anomalias que passam a ser assim definidas.
Foucault procurou então demonstrar como as normas
estão em constante movimento e caminham no sentido de
uma totalização e uma especificação cada vez maiores,
elas “se ramificam para colonizar, nos mínimos detalhes,
as micropráticas, de modo que nenhuma ação considerada
importante e real possa escapar da rede de
normalidade“(Dreyfuss e Rabinow, 1995:285).
Ao abordar as lutas de resistência contra as
diferentes formas de poder, Foucault (1995) identificou as
lutas contra as formas de sujeição, “contra a submissão da
subjetividade” (p.236), como as mais importantes nas
sociedades contemporâneas. Segundo o autor, estas lutas
vêm questionar o estatuto do indivíduo. São lutas contra
formas específicas de poder, moleculares, sutis, produtivas
e permanentes que incidem na vida cotidiana das pessoas
e que atuam no sentido de categorizar o indivíduo, ou seja,
“marca-o com sua própria individualidade, liga-o à sua própria
identidade, impõe-lhe uma lei de verdade, que devemos
reconhecer e que os outros têm que reconhecer nele. É uma

60
forma de poder que faz dos indivíduos sujeitos” (Foucault,
1995:235).
Uma outra importante característica que estas lutas
têm em comum é o fato de constituírem uma oposição aos
efeitos de poder relacionados ao saber, e uma oposição às
representações mistificadoras impostas às pessoas. De
acordo com Foucault, “todas essas lutas giram em torno da
questão: quem somos nós? Elas são uma recusa a estas
abstrações, do estado de violência econômico e ideológico,
que ignora quem somos individualmente, e também uma
recusa de uma investigação científica ou administrativa
que determina quem somos”(p235). Trata-se de lutas
contra “um duplo constrangimento político”, contra o
aspecto totalizador e, ao mesmo tempo, individualizante do
exercício do poder. São lutas contra as múltiplas formas de
assujeitamento que atuam no sentido de controlar a
subjetividade pela constituição de uma individualidade
dobrada sobre si, normatizada e apartada de sua relação
com os outros.
Para Foucault (1995), “O problema político, ético,
social e filosófico de nossos dias não consiste em tentar liberar o
indivíduo do Estado nem das instituições do Estado, porém nos
liberarmos tanto do Estado quanto do tipo de individualização que
a ele se liga. Temos que promover novas formas de subjetividade
através da recusa deste tipo de individualidade que nos foi
imposta há vários séculos” (p.239).
A perspectiva ético-política de Foucault aponta,
portanto, para a elaboração de uma relação não
normatizada consigo mesmo como estratégia de
resistência ao biopoder, ou seja, como uma recusa às
formas impostas de subjetividade, porque, para o autor,
nosso objetivo não é o de “descobrir o que somos, mas
recusar o que somos” (Foucault, 1995:239). O problema
atual seria então o de construir uma ética diferente, onde
não estivéssemos aprisionados a nós mesmos e
governados pelo poder normalizador da lei e da medicina
(Dreyfuss e Rabinow, 1995).
É importante acrescentar que a perspectiva ética
foucaultiana é ao mesmo tempo estética. Estética no
sentido da criação e, sobretudo, da invenção de novas
relações sociais, novos vínculos comunitários. Tal como

61
analisa Branco (2000), a resistência contra o “governo por
individuação”, embora seja iniciada na subjetividade,
induz a uma imbricação necessária do domínio público,
apontando para a recriação contínua de novos mundos
subjetivos e coletivos. Segundo o autor, “a estética da
existência considerada deste ponto de vista, implica em
valores e formas de vida criativos, solidários, generosos e
ousados, no limite possível da experimentação histórica”
(p. 319).
Dentro dessa perspectiva, uma escolha ética seria
mais da ordem da arte do que do método, no sentido de
ter como objetivo primordial a expansão da vida, a criação
de novas formas de existência. Portanto, o compromisso
ético não estaria preso a normas pré-estabelecidas ou a
códigos de valores, mas, antes, estaria voltado,
fundamentalmente, para a produtividade do ser. Tal como
expressa Rolnik (1994), ser ético é “ter o caráter criador da
vida como critério de valor e não qualquer espécie de
forma que a vida tenha tomado, ou venha a tomar”
(p.171).
Todavia, é importante ressaltar que o elogio desse
compromisso ético não conduz ao desprezo com o
cumprimento do conjunto das normas sociais, que
determinam os direitos e os deveres dos cidadãos. O que
se procurou destacar é que esse tipo de compromisso de
ordem moral, embora seja inegavelmente importante, ele
não é suficiente para que se conquiste uma melhor
qualidade de existência. Mais uma vez citando Rolnik
(1994), “A qualidade da vida tem a ver com o grau com que esta
se afirma em sua potência criadora e este grau depende de em
que quantidade se está encontrando modos de expressão para as
diferenças que vão se produzindo nas misturas do mundo”
(p.168).
Neste sentido, é importante considerar que as
escolhas são múltiplas e devem ser feitas em função do
que é melhor para a expansão da vida. De acordo com
este raciocínio, as linhas de virtualidade, que se anunciam
em cada processo litigioso das varas de família, assumem
uma positividade, uma confiança de que um novo contexto
pode ser formado, onde a desestabilização das identidades
e das representações familiares cristalizadas não seja

62
vivida como negativa. Trata-se, portanto, de um trabalho
pela diferenciação, pela promoção da produtividade do ser
e, por conseguinte, contra o estatuto do indivíduo, contra
a submissão da subjetividade.
Consideramos fundamental levantar este aspecto
pelo fato de que, no contexto das varas de família,
freqüentemente as linhas de virtualidade são
problematizadas a partir do discurso do risco. As
alegações de pais e mães em litígio veiculam
continuamente as ameaças que um ou outro apresentam
para a criança, ou seja, a possibilidade que um ou outro
teria em comprometer a saúde física ou psicológica do
filho, num processo que abarca desde a apresentação de
ocorrências policiais, que surgem para demonstrar a
suposta agressividade de um dos genitores, até denúncias
de ordem moral e banalidades da vida cotidiana, que
levantam incompetências no cuidado com crianças. Neste
contexto, o psicólogo acaba sendo convocado a fazer a
gestão desses riscos e a estabelecer com os fatos
apresentados uma relação de antecipação, controle e
prevenção. O grande perigo que se insinua aqui reside no
fato de que lidar com o virtual como se ele só implicasse o
risco, acaba excluindo da reflexão outras possibilidades de
relação entre homens e mulheres e entre pais e filhos.
Pensamos então que o lugar do psicólogo nesse
universo jurídico deve ser marcado por uma tentativa
contínua de promover a singularização e a criação de
novos espaços de experimentação nas relações familiares.
Neste sentido, não apenas a intervenção com as famílias,
mas também o parecer apresentado ao juízo deve apontar
para essa abertura de caminhos e não para o reforço da
norma, que trava a processualidade da vida e reitera os
modos de subjetivação dominantes.
Para Foucault (1995), a escolha ético-política que
devemos fazer a cada dia é determinar qual é o principal
perigo. E, para o autor, o principal perigo das sociedades
contemporâneas revela-se justamente nas múltiplas
formas de assujeitamento, ou seja, nos exercícios
específicos de poder “que liga o indivíduo a si mesmo e o
submete” (p.235). Dentro dessa idéia, é possível pensar

63
que nós psicólogos temos uma responsabilidade ética e
política nessa luta contra as múltiplas formas de sujeição,
na medida em que somos, inevitavelmente, importantes
produtores de subjetividade. Além disso, não podemos
esquecer que nosso campo de atuação nas varas de
família pode constituir um meio privilegiado de
viabilização das mudanças que se impõem na atualidade,
sobretudo no que diz respeito às relações entre homens,
mulheres e crianças.
Seguindo estas indicações, e tomando a feitura do
parecer como uma escolha ética, torna-se fundamental
que essa tomada de posição não se confunda com o
julgamento. Que o parecer apresentado ao juízo não
reinscreva regimes de verdade que categorizam o
indivíduo e nivelam sua subjetividade. Quanto a isto, não
se pode negar que há sempre um horizonte de
previsibilidade a partir do qual as escolhas precisam ser
feitas, mas é fundamental registrar no parecer que essa
previsibilidade, tal como nos lembra Rolnik (1999), está
limitada a contextos problemáticos singulares e, além
disso, está, inevitavelmente, atravessada pelo
imprevisível. Esse caráter de imprevisibilidade e incerteza
constitui um importante desdobramento do paradigma
ético-estético, do qual nos fala Foucault e Guatarri, que
nos coloca cotidianamente diante do desafio de
abandonarmos nossas certezas e nossas crenças em uma
suposta segurança, assim como de rompermos com o
exercício exaustivo de busca de uma verdade para o
sujeito.
Esta ruptura com as práticas normalizadoras
conduz, ao mesmo tempo, a uma ruptura com os
processos de infantilização dos indivíduos, que acabam
ficando presos a uma relação de dependência do Estado.
Tal como define Guatarri (2000), “A infantilização (...)
consiste em que tudo o que se faz, se pensa ou se possa vir a
fazer ou pensar seja mediado pelo estado” (p.42). A
singularização, ao contrário, conforme defende o autor,
implica, num processo automodelador, mediante o qual o
indivíduo torna-se capaz de ler sua própria situação e de

64
criar novos modos de existência a partir daí, num ato de
liberdade e autonomia.
Por fim, diante de todas essas considerações, é
particularmente interessante salientar o caráter
performativo de nosso parecer psicológico, o que, aliás,
representa uma propriedade de todo ato lingüístico,
conforme demonstrou Austin (1990). Isto que dizer que
essa narrativa, enquanto um enunciado ético, vai além da
descrição ou constatação dos acontecimentos ou das
ações humanas, para constituir-se em ato, capaz de
alterar ações ou estados de sujeito. Neste sentido, todo
dizer é fazer. Tal como nos lembra Costa (2000), as ficções
teóricas que criamos tornam-se também realidades
humanas e têm conseqüências reais sobre a subjetividade.
Portanto, esta é uma questão fundamental para
pensarmos nosso lugar no universo jurídico e nosso
compromisso ético com as intervenções realizadas. Isto
porque, diante da encruzilhada entre forças de
homogeneização e forças de diferenciação, caberá a nós
escolhermos, dentre os muitos caminhos possíveis, aquele
que poderá, em cada contexto específico, favorecer a
criação de novos modos de subjetivação e novos vínculos
familiares e comunitários, que possibilitem rupturas nas
relações sociais de dominação entre homens e mulheres e
entre pais e filhos.

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- ROCHA-COUTINHO, M. L. Tecendo por trás dos panos. A


mulher brasileira nas relações familiares. Rio de Janeiro:
Rocco, 1994.

- ROLNIK, S. “Novas figuras do caos. Mutações da


subjetividade contemporânea” In Caos e Ordem na
Filosofia e nas Ciências. SANTAELLA, L. e VIEIRA, J. A. (org.)
São Paulo: Face e Fapesp, 1999.

66
- __________.“Cidadania e alteridade: o psicólogo, o homem
da ética e a reinvenção da democracia”. In SPINK, M. J. P.
(org.) A cidadania em construção. Uma reflexão
transdisciplinar. São Paulo: Cortez, 1994.

- SWAIN, T. N. “Identidade nômade: heterotopias de mim”. In


RAGO, M., ORLANDI, L.B., VEIGA-NETO, A.(Orgs.) Imagens
de Foucault e Deleuze. Ressonâncias nietzschianas. Rio de
Janeiro: DP & A, 2002.

67
A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO NAS CENTRAIS DE
PENAS E MEDIDAS ALTERNATIVAS: REFLEXÕES
E DESAFIOS

Sílvia G. Felgueiras de Freitas

A exposição que pretendo fazer neste encontro se


propõe mais a uma reflexão do que trazer conclusões. Nós,
Psicólogos, estamos para completar cinco anos de inclusão
no Judiciário e, apesar de já possuirmos um percurso,
pensando e elaborando nosso trabalho, penso que ainda há
uma grande e talvez eterna trajetória de pensar, repensar
e refletir sobre nossa prática.
Para falar da prática do psicólogo na VEP, é
importante descrever rapidamente qual a sua função, e a
respectiva metodologia desenvolvida pelas Centrais de
penas e medidas Alternativas. Em 03/02/1999, o Serviço de
Psicologia foi implantado na VEP, decorrente do primeiro
concurso para Psicólogo do Quadro da Corregedoria Geral
de Justiça. Em junho de 2001, com a instalação das
Centrais de Penas e Medidas Alternativas e o convênio com
o Ministério da Justiça, que, através da Cenapa (Central
Nacional de Penas e Medidas Alternativas), vem
implantando as Centrais em vários Estados do Brasil, o
Serviço de Psicologia passou a integrar as centrais
juntamente com o Serviço Social.

“Em outubro de 1988, dez técnicos do Serviço Social foram


lotados na Vara de Execuções Penais e, a partir de então,
iniciaram estudos relacionados com a atividade do Juízo,
priorizando projetos que contemplavam a execução das penas
restritivas de direitos, em particular, a prestação de serviços à
comunidade, como alternativa à pena de reclusão”.

“Hoje, uma equipe interdisciplinar composta por 13 assistentes


sociais e 13 psicólogos é responsável pelo atendimento,

68
encaminhamento e acompanhamento dos beneficiários com
penas e medidas alternativas”.13

É um trabalho novo, que vem em constante


aperfeiçoamento de acordo com a prática. Nosso material
teórico e nossa rotina de trabalho passam por reavaliações,
de acordo com a demanda que vem surgindo, e é
justamente essa prática e suas discussões que
desenvolvem e aperfeiçoam o trabalho.
As penas e medidas alternativas destinam-se a
apenados não perigosos, que cometem infrações de menor
gravidade e substituem as penas detentivas de curta
duração. Com a superlotação das penitenciárias e a
divulgação de tais modalidades de pena, a demanda do
trabalho vem crescendo muito.

CENTRAIS DE PENAS E MEDIDAS ALTERNATIVAS (CPMA):


DIVISÃO

CENTRAL DE PENAS ALTERNATIVAS: A Central de


Penas Alternativas compreende o Sursis, ou seja, a
Suspensão Condicional da pena, onde pode estar incluída,
como uma de suas condições a Prestação de Serviços a
Comunidade no 1º ano e as demais penas restritivas de
direito. No caso, atuamos nas penas restritivas de direito
de Prestação de Serviços à Comunidade e Limitação de
final de semana.

CENTRAL DE MEDIDAS ALTERNATIVAS: A Central de


Medidas Alternativas compreende as penas restritivas de
direitos aplicadas de forma antecipada, (art.76 da Lei
9099/95) e o Sursis Processual (art. 89 da Lei 9099/95),
quando há a suspensão do processo e a aplicação de uma
medida alternativa ou a proposta de Tratamento, nos casos
de uso de drogas e violência de Gênero. Em se tratando do
Art 16 (porte de substância entorpecente), ressalta-se a
implantação da Justiça Terapêutica em setembro de 2002,

13
Cartilha da central de penas e medidas alternativas.

69
com o ato executivo nº 042/2003, que absorveu grande
parte das medidas de tratamento pelo consumo de drogas.

PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE: Consiste


na atribuição de tarefas gratuitas ao condenado em
entidades públicas ou na comunidade.
Quando o beneficiário chega a CPMA, para dar início
ao cumprimento da pena ou medida de Prestação de
Serviços a Comunidade, passa em um primeiro momento
pelo grupo de recepção, coordenado sempre por um
psicólogo e uma assistente social, onde recebe as
informações iniciais sobre o funcionamento das centrais e
sobre a pena a ser cumprida, motivando assim para um
melhor cumprimento da pena. Ao final do grupo há o
agendamento para as entrevistas individuais. No dia
agendado, o beneficiário é entrevistado pelo Serviço de
Psicologia e, imediatamente a seguir, pelo Serviço Social,
tendo estas entrevistas o objetivo de adequar o
encaminhamento ao perfil do beneficiário em acordo com o
da instituição, individualizando assim a pena.
Com a entrevista Psicológica inicial, pretende-se
elaborar as primeiras impressões sobre o caso, contribuir
para a avaliação interdisciplinar com observações relativas
a aptidões, afinidades ou restrições para o cumprimento da
pena ou medida. Se não for notado nesta primeira
entrevista psicológica nada que impossibilite, naquele
momento, o encaminhamento, o beneficiário costuma já
sair com o encaminhamento em mãos nos casos de PSC e
LFS.
Nesta primeira entrevista não se pretende fazer
uma avaliação psicológica.

AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA: Quando o psicólogo


considerar a necessidade de avaliação mais aprofundada,
outras entrevistas serão agendadas com este objetivo e o
encaminhamento para a Instituição apenas será realizado
ao final da avaliação, se o beneficiário apresentar
condições de iniciar sua pena.
A avaliação visa um encaminhamento mais seguro
e adequado, esclarecer dúvidas quanto a problemas

70
decorrentes do uso/abuso de substâncias psicoativas,
álcool, problemas psiquiátricos, dentre outros e
encaminhamento para tratamento quando se mostre
necessário.
O acompanhamento da pena ou medida alternativa
será realizado pela dupla de técnicos que o atendeu na
entrevista inicial. Estes profissionais estarão sempre
trocando informações e avaliando o melhor procedimento e
intervenção para cada caso.
O Serviço Social e a Psicologia, alternadamente,
efetuam visitas periódicas as instituições, a fim de
perceber a relação beneficiário/instituição, seu
desempenho e possíveis dificuldades.

MEDIDAS ALTERNATIVAS DE TRATAMENTO: As medidas


alternativas de tratamento são aplicadas principalmente
nos casos de drogadicção e violência doméstica.
Nas medidas de Tratamento, a equipe desenvolve
metodologia semelhante à Justiça Terapêutica. Cada caso é
avaliado, podendo ser encaminhado para tratamento em
instituição parceira ou participar de algum dos grupos da
VEP, sempre com o acompanhamento do profissional
responsável.

JUSTIÇA TERAPÊUTICA: Possui como objetivo oferecer e


possibilitar o tratamento de indiciados e acusados de posse
ilegal de substância entorpecente para uso próprio, tendo
em vista que a drogadicção é uma questão de saúde
pública, além de contribuir para a prevenção da
criminalidade e do uso/abuso da substancia supracitada.
A metodologia de Justiça Terapêutica na VEP se
inicia com uma entrevista de acolhimento no momento em
que o beneficiário é encaminhado a VEP, imediatamente
após a audiência nos Juizados Especiais Criminais. Este
primeiro contato tem como objetivos identificar a urgência
de cada caso, iniciar um trabalho motivacional para
tratamento, fornecer informações iniciais sobre o
funcionamento da equipe, dentre outros.
A partir deste primeiro contato, o beneficiário
entrará em processo de avaliação para que se proceda ao

71
devido encaminhamento à instituição de tratamento ou às
atividades de grupo realizadas na VEP. Cada caso é
analisado em suas peculiaridades, pretendendo-se, assim,
avaliar a conveniência de inseri-lo no programa, a
indicação de tratamento específico, perceber a intervenção
e encaminhamento mais adequado para cada caso
específico, naquele momento, aumentando assim sua
eficácia.
Mesmo encaminhados para tratamento, continuam
as entrevistas de acompanhamento individual na VEP que
têm, como objetivo principal, verificar a evolução dos
beneficiários inseridos no programa, observando os
benefícios do tratamento e atentando para intercorrências
ou para a necessidade de novos encaminhamentos.
A possibilidade de tratamento, a partir do momento
de abertura desta possibilidade pelo Poder Judiciário, está
levando um número considerável de pessoas ao dito
“tratamento compulsório”. A pessoa tem como escolha se
tratar ou cumprir outra medida como Prestação Pecuniária,
Prestação de Serviços à Comunidade ou Limitação de Final
de Semana. Este tipo de tratamento está em crescimento,
uma vez que o sistema Judiciário cada vez mais tem
buscado tal alternativa.
Pensando-se em Medida de Tratamento e Justiça
Terapêutica, abre-se, portanto, o questionamento:
Tratamento compulsório seria a coação ao tratamento para
evitar algo pior? Vemos posicionamentos contrários a
respeito de tal tema. De um lado ouvimos afirmações de
que só há a possibilidade de tratamento se há o desejo da
pessoa de se tratar e de outro lado ouvimos que se há a
necessidade de tratamento este deve ser feito como em
qualquer outra doença. Porém, parece que entre estas
duas posições há um longo caminho e várias outras
questões. O que é considerado doença se há vários graus
de uso e abuso de substâncias entorpecentes e álcool?
Aquele usuário eventual que usa drogas esporadicamente
e está longe de ser abusivo, mas se deixa prender por
várias vezes, o que será que está buscando? Limites, uma
intervenção para não ir adiante ou uma simples afronta?
Temos visto em tais opções por tratamento que tanto é

72
comum vermos pessoas que em um primeiro momento
apenas aceitam o tratamento com a finalidade de evitar
uma punição, mas, com o decorrer das entrevistas de
motivação, conseguem perceber os ganhos que advirão em
sua vida e acabam por se engajar seriamente no
tratamento com excelentes resultados, quanto algumas
pessoas que chegam afirmando grande disposição e
acabam por demonstrar não possuir o perfil para o
programa de Justiça Terapêutica.
O que pretendo ressaltar aqui é que entre essas
duas posições opostas, devemos ver o indivíduo
particularmente, em suas peculiaridades, caso a caso.
Outra questão a se pensar é o que representa o
psicólogo que está inserido no Judiciário para aquele
beneficiário que vem com condição de tratamento. Até
onde pode confiar naquele profissional, que, de alguma
forma, está a serviço do Judiciário? Não são poucas as
ocasiões que percebemos manipulação por parte do
beneficiário para se ver livre daquela obrigação, afinal,
muitas vezes, é o psicólogo quem comunica se ele está
apto ou não para acabar com aquela obrigação,
principalmente, nos casos onde não há tempo
determinado.
“Embora muitos tentem persuadir o cliente, encaminhado pela justiça,
que são seus representantes, não do Estado (mesmo que não seja
assim), o cliente, naturalmente, está inseguro sobre quanto pode revelar
sobre suas atividades ilegais, com medo de que o terapeuta revele essa
informação para o tribunal. A terapia compulsória pode tornar-se
corrupta, e a segurança de uma relação confidencial com o terapeuta
pode ser destruída não apenas pelo temor do cliente de revelar
informações pessoais, como pela insegurança do terapeuta
sobre o quanto terá de revelar ao tribunal”.14

Apesar da convicção de que muitas intervenções


devam ser realizadas pelo psicólogo na Justiça, possuir
uma rede social com parcerias para os encaminhamentos
para tratamento, tem sido fundamental em nosso trabalho.
Esta exposição é um resumo do nosso trabalho na
VEP, mas há ainda uma grande demanda que não vem do

14
Texto Terapia Compulsória do livro “Aprendendo e ensinando terapia”

73
processo e que é observada nas entrevistas. Nessas
situações, atuamos sem que estas informações cheguem
ao processo. Os casos de medida terapêutica o e Justiça
Terapêutica já chegam com a condição de tratamento. Mas
há casos onde o beneficiário recebe uma pena ou medida
alternativa de PSC ou LFS pelo art.16 (porte de substância
psicoativas) ou qualquer outro artigo e percebemos o
comprometimento com álcool ou drogas. É comum
inclusive que este uso tenha propiciado o delito cometido,
como, por exemplo, furtar para consumir drogas. Nos
Sistemas Judiciário e penitenciário, não podemos deixar de
considerar a estreita relação entre os mais diversos delitos
e o uso dessas substâncias. Nestes casos, a Psicologia faz
uma intervenção tentando motivar o beneficiário para
tratamento. Ele poderá ser encaminhado para alguma
instituição de tratamento, encaminhado para um dos
grupos realizados na VEP, sempre com acompanhamento
pelo psicólogo. O beneficiário não é obrigado a aceitar essa
ajuda, uma vez que não há na sentença ou medida
condição de tratamento, porém se abre uma oportunidade
de reflexão sobre seus valores, suas prioridades e o que
espera para sua vida. Fica de frente para a
responsabilidade que possui diante de sua própria vida.
Em todas as modalidades de trabalho onde
atuamos na VEP, as alterações e informações sobre a pena,
medida ou tratamento devem ser informados ao Juízo.
Porém, são enviados para o processo, apenas, as
informações relacionadas ao cumprimento da pena ou
medida. Entra o Sumário Psicossocial, que é um resumo do
observado na entrevista inicial, ressaltando restrições ou
aptidões específicas, a ficha de encaminhamento quando
retorna da instituição, as folhas de freqüência com a
avaliação mensal, a avaliação final, intercorrências no
cumprimento e comunicações de não cumprimento, ou
seja, apenas informações que importem análise judicial.
Nos casos de medida de tratamento e Justiça Terapêutica,
é informado se o beneficiário está cumprindo
adequadamente e se está tirando proveito daquele
tratamento.

74
Os processos ficam no cartório das Centrais e a
equipe possui arquivos com os prontuários próprios de
cada beneficiário, onde se encontram os roteiros de
entrevistas, históricos, evolução de cada caso e
informações sigilosas, as quais só tem acesso a equipe
técnica. Os casos, que não possuem condição de
tratamento e são encaminhados e acompanhados pela
equipe, apenas possuem estes registros no prontuário.

”Transmitir a quem de direito somente informações que sirvam


de subsídios às decisões que envolvam a pessoa atendida”. 15

“O Psicólogo garantirá o caráter confidencial das informações


que vier a receber em razão de seu trabalho, bem como do
material Psicológico produzido”.16

Este sigilo é mantido e respeitado pelo Juízo da


VEP.
Acreditamos que, se trabalhamos o ser humano e
conseguimos atingi-lo o mínimo, que seja, em sua
qualidade de vida, estamos sendo éticos com quem
atendemos e com a demanda do judiciário. Tanto o
Judiciário quanto o Ser Humano em quem atuamos,
buscam no profissional o auxílio, ser tratados com respeito
e dignidade.

“O psicólogo nas Centrais de Penas e Medidas Alternativas tem a


função de nortear a compreensão da pena/medida para além da
perspectiva da punição. Desde o primeiro contato, a intervenção
se dá de forma a perceber o beneficiário como um indivíduo que
possui história pessoal, valores a serem preservados ou
questionados e expectativas com relação ao benefício e ao
futuro. Além disso, sua implicação com esse benefício produz
efeitos no decorrer de seu cumprimento, possibilitando, assim, a
redução de eventuais intercorrências”.

15
Letra b do Art.3º do Código de Ética do Psicólogo.
16
Art 6º do Código de Ética do Psicólogo.

75
“Estabelece-se, desse modo, uma relação que se pretende
construtiva com a pena/medida, proporcionando uma
oportunidade de modificação do curso de vida do beneficiário”.17

Refletindo sobre a ética em nossa prática


profissional, consideramos que tanto na Vara de Execuções
Penais, como nas Varas de Infância e Juventude, Varas de
Família e outras que possam abrir espaço futuramente
para o trabalho do psicólogo, são revelados nos
atendimentos fatos importantes os quais não dizem
respeito ao processo. Até que ponto devemos informar?
Em cada vara especializada, os técnicos debatem essas
questões em cima de casos atendidos e vamos assim
aprendendo com a experiência, construindo e adequando o
trabalho ao nosso código de ética. Se a droga, álcool ou
problema psiquiátrico o impede de cumprir uma pena, tal
fato deve ser considerado para tentarmos uma alternativa
que adie ou substitua o cumprimento daquela pena e seja
terapêutico ao mesmo tempo já que o processo criminal ou
guia de medida alternativa precisa receber,
constantemente informações relativas ao beneficiário no
que diz respeito ao cumprimento de sua pena.

“O Psicólogo colocará o seu conhecimento à disposição da


justiça, no sentido de promover e aprofundar uma maior
compreensão entre a lei e o agir humano, entre a liberdade e as
instituições judiciais”. 18

Penso que ainda há uma longa discussão na qual


devemos investir quanto ao que é ser ético dentro da
moral de cada saber, da reflexão crítica das normas e
regras de nossa sociedade e da instituição onde atuamos,
que se caracteriza por atuar sobre normas que visam à
regulamentação das relações do ser humano, tentando
manter a paz social, usando para isso códigos bem
definidos de certo e errado. O não cumprimento dessas
normas implica em conseqüências judiciais e pessoais.

17
Cartilha da Central de Penas e Medidas Alternativas.

18
Art 17 do Código de Ética do Psicólogo.

76
A conclusão que posso chegar no momento é a de
que apesar de já termos um percurso no Judiciário, e
estarmos preocupados em fazer o melhor, ainda possuímos
muitas questões para discutir, na tentativa de cada vez
mais sermos úteis, competentes e éticos para responder à
demanda do Judiciário e do ser humano em quem atuamos
diretamente. Portanto, devemos continuar nossa jornada.

BIBLIOGRAFIA
1- HALEY, Jay - Aprendendo e ensinando terapia. Artes
Médicas, 1998.

2- A direção da cura nas toxicomanias. Associação


psicanalítica de Porto Alegre, nº 24, maio-2003.
3- Cartilhas – Manual e outros materiais formulados pela
equipe de Psicólogos e Assistentes Sociais da VEP.

4- Código de Ética dos Psicólogos

77

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